universidade estadual de maringÁ programa de pÓs … · cada batimento do nosso coração. sem...

151
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Área de Concentração: Instituições e História das Ideias ALESSANDRO ARZANI AS AÇÕES ANTICRISTÃS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE JUSTINO MÁRTIR: Controle social e religião no Império Romano Maringá 2013

Upload: others

Post on 27-Oct-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGAacute PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Instituiccedilotildees e Histoacuteria das Ideias

ALESSANDRO ARZANI

AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE

JUSTINO MAacuteRTIR

Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano

Maringaacute 2013

2

ALESSANDRO ARZANI

AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE

JUSTINO MAacuteRTIR

Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano

Orientadora Profordf Drordf Renata Lopes Biazotto Venturini

Maringaacute 2013

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria

3

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

A797a Arzani Alessandro

As accedilotildees anticristatildes segundo as Apologias de Justino Maacutertir controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano Alessandro Arzani Maringaacute [sn] 2013

149p

Orientador Profordf Dra Renata Lopes Biazotto Venturini

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria ndash Universidade Estadual de Maringaacute

1 Histoacuteria do cristianismo 2 Perseguiccedilatildeo aos cristatildeos 3 Impeacuterio Romano 4 Justino Maacutertir I Venturini Renata Lopes Biazotto II Universidade Estadual de Maringaacute

Ficha Catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Mara R Colafatti - CRB 91272

4

ALESSANDRO ARZANI

AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE

JUSTINO MAacuteRTIR

Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano

Aprovado em

BANCA EXAMINADORA

Profordf Drordf Monica Selvatici

Universidade Estadual de Londrina - UEL

Profordf Drordf Solange Ramos de Andrade

Universidade Estadual de Maringaacute - UEM

Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini

Universidade Estadual de Maringaacute - UEM

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria

5

Dedico este trabalho

ao senhor de todas as eras que natildeo pode ser submetido a qualquer estaticidade que se possa

imaginar no universo Ao que era desde o princiacutepio eacute agora e continuaraacute sendo

indefinidamente Ao que consola e agraves vezes oprime a qualquer que seja Ao que

cuidadosamente nos observa desde o primeiro instante de vida e que conta

cada batimento do nosso coraccedilatildeo Sem ele nossos dias natildeo poderiam

ser contados Dele depende o amanhatilde nossa existecircncia e nossa

histoacuteria Agravequele que acompanhou cada passo deste

desafio e que me fazia lembrar do valor de

cada instante Agravequele que muitos

simplesmente chamam de

ldquotempordquo

6

AGRADECIMENTOS

Agrave Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini minha querida orientadora pela confianccedila

incentivo amizade e paciecircncia durante essa jornada Eu confesso que nunca havia conhecido

algueacutem que carregasse em si de tal forma a franqueza e a doccedilura associadas ao rigor

acadecircmico como pude constatar em sua pessoa

Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) pelo

amparo financeiro para o desenvolvimento dessa pesquisa

Agrave Profordf Drordf Sara Parvis (University of Edinburgh) por sua gentileza em indicar

algumas informaccedilotildees importantes sobre o principal manuscrito das Apologias de Justino o

MS Parisinus Graecus 450

Agrave minha querida amiga Profordf Viviana L Felix (Universidad Catolica de Buenos

Aires) que generozamente compartilhou comigo artigos e momentos agradaacuteveis de fluecircncia de

ideias

Aos professores Drordm Mauro Pesce e Drordf Adriana Destro (Universitagrave di Bologna) pela

atenccedilatildeo em partilhar comigo algumas indicaccedilotildees bibliograacuteficas

Agraves professoras Drordf Maria Aparecida de Oliveria Silva (pesquisadora na UNESP-

Araraquara) e Drordf Giovanna Menci (Istituto Papirologico ldquoG Vitellirdquo dellrsquoUniversitagrave degli

Studi di Firenze) assim como tambeacutem ao nobre B Jobjorn Boman (Oumlrebro University) pelos

riquiacutessimos artigos compartilhados

Ao Profordm Me Deivid V Gaia (Universidade Federal de Pelotas) por haver gentilmente

compartilhado alguns documentos importantes conseguidos junto agrave Bibliothegraveque national de

France

Agraves professoras Drordf Monica Selvatici (Universidade Estadual de Londrina) e Drordf

Solange Ramos de Andrade (Universidade Estadual de Maringaacute) pelas ricas criacuteticas e

consideraccedilotildees que contribuiacuteram para o aprimoramento dessa pesquisa

Aos colegas Camila Santiago Luz Thiago Franccedila Thais Bassi Soares Profordm Drordm

Jaime Estevatildeo dos Reis e demais integrantes do Laboratoacuterio de Estudos Antigos e Medievais

(LEAM-UEM) pelo companheirismo e satisfaccedilatildeo proporcionada pela dedicaccedilatildeo conjunta aos

estudos histoacutericos

7

Ateacute voacutes apenas ouvindo que esperamos um reino logo supondes sem nenhuma averiguaccedilatildeo que se trata de

reino humano quando noacutes falamos do reino de Deus [] Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a

manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o

avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens

conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos os modos e se

adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos De fato aqueles que agora

por medo das leis e dos castigos por voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los porque

sabem que sois homens e que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutes se se inteirassem e se persuadissem de que

natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se

moderariam de todos os modos como voacutes mesmos haveis de convir

Justino Maacutertir I Apologia 111121

8

Resumo

A histoacuteria do cristianismo na primeira metade do II seacuteculo eacute marcada por atritos locais

denuacutencias em tribunais e caluacutenias que faziam do nome ldquocristatildeordquo um motivo de condenaccedilatildeo

Trajano Adriano e Antonino Pio fizeram suas recomendaccedilotildees aos governantes locais para

desestimular a expansatildeo da nova superstitio dos cristatildeos que demonstrava aversatildeo aos

deuses agraves tradiccedilotildees agraves celebraccedilotildees puacuteblicas e ao culto imperial Nenhuma perseguiccedilatildeo de

fato devia ser estabelecida denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas e os cristatildeos que

abandonassem a feacute deveriam ser perdoados os que se recusavam a abandonar a feacute eram

punidos com a pena capital segundo o julgamento de cada magistrado Nesse periacuteodo alguns

chamados apologistas produziram escritos em defesa dos fieacuteis Justino escreveu duas vezes

ao imperador Antonino e a seus filhos entre os anos de 154 e 161 Nas Apologias ele critica a

postura dos governantes por acatarem as caluacutenias das massas que acarretavam uma ideia

depreciativa ao nomen christianum A fidelidade cristatilde ao Impeacuterio eacute ratificada pelo

apologista que surpreende ao destacar a colaboraccedilatildeo dos fieacuteis na manutenccedilatildeo da ordem Por

meio desta pesquisa que tem por obejtivo analisar a relaccedilatildeo entre controle e religiatildeo a partir as

accedilotildees anticristatildes nesses escritos de Justino nota-se que esse tipo de accedilotildees foi fundamental

para que a funccedilatildeo social da religiatildeo dos cristatildeos fosse pensada no desenvolvimento desse

discurso apologeacutetico Nesse discurso procura-se justificar a rejeiccedilatildeo aos deuses e agrave

imoralidade por eles representada Atento agraves interrogaccedilotildees dos intelectuais e homens letrados

de sua eacutepoca satildeo destacados os aspectos tidos por ldquoirracionais e imoraisrdquo das crenccedilas pagatildes

enquanto a feacute cristatilde eacute apresentada em contornos racionais com o intuito de reconhececirc-la como

filosofia divina e superior agraves demais Nesse sentido a crenccedila num Deus absoluto justo e

onisciente aparece como um instrumento capaz de subter as pessoas agrave moralidade enquanto

aguardam a recompensa eterna e procuram se afastar da condenaccedilatildeo divina Eacute nesse momento

que a religiatildeo dos cristatildeos comeccedila a ser pensada como uma substituta agraves crenccedilas pagatildes

apontadas como incoerentes

Palavras-chave

Justino Maacutertir histoacuteria do cristianismo Impeacuterio Romano perseguiccedilatildeo aos cristatildeos

9

Abstract

The history of Christianity in the first half of the second century is marked by local clashes

accusations in court and slanders that made the name Christian reason for condemnation

Trajan Hadrian and Antoninus Pius made their recommendations to local governments to

discourage the expansion of new superstitio of the Christians who showed aversion to the

gods traditions public celebrations and the imperial cult No persecution in fact should have

been established anonymous reports should not have been accepted and if any Christian

abandoned the faith they should have been forgiven however those who refused to abandon

their faith were punished with the death penalty according to the judgment of each magistrate

During this period some Christians with high education produced writings in defense of their

faith Justin wrote twice to the Emperor Antoninus and his sons between the years 154 and

161 AD In ldquoApologiesrdquo he criticizes the attitudes of the rulers for accepting the slander of the

masses who were accusing the Christians The Christian fidelity to the Empire is ratified and

he highlights the collaboration of the faithful in the maintenance of order Through this

research on the relationship between religion and control as seen in the antichristian actions

reported in the writings of Justin it is noted that this type of action was essential to the social

function of the Christian religion to be thought in your apologetic discourse It seeks to justify

the condemnation of the gods and the immorality represented by them In attention to the

questions of intellectuals and men of letters of his age the irrational behaviors and immoral

aspects of the pagan beliefs are pointed by the apologist while the Christian faith is presented

in rational contours making it a divine philosophy and superior to the other In this sense the

Christian belief in an absolute God who is just and omniscient appears as an instrument with

the ability to teach and demand morality from its followers while they are awaiting the

eternal reward and actively trying to move away from divine condemnation It is then that

their religion begins to be thought of as a substitute for pagan beliefs which are pointed out as

incoherent with the order in the Empire

Key-words

Justin Martyr History of Christianity Roman Empire persecution of Christians

10

LISTA DE ABREVIATURAS

Hist Ecles Histoacuteria Eclesiaacutestica

Diaacutel Diaacutelogo com Trifatildeo

I Apol Primeira Apologia de Justino

II Apol Segunda Apologia de Justino

A Manuscrito Parisinus Graecus 450

B Manuscrito Phillipicus

C Manuscrito Ottobonianus Graecus 274

IGRR Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes

Apolog Apologeticus de Tertuliano

Hist Rom Histoacuteria Romana de Cassius Dio

Hist Aug Histoacuteria Augusta

ApS Apologia de Soacutecrates

PIR Prosopografia Imperii Romani

Ep Epiacutestolas de Pliacutenio

Hist Roma Histoacuteria de Roma de Tito Liacutevio

ANRW Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt

ZKG Zeitschrift fuumlr Kirchengeschichte

Ant Jud Antiguidades Judaicas

Guer Jud Guerras Judaicas

11

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 12

CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS 18

11 As principais ediccedilotildees das Apologias 18

12 A questatildeo da autoria Justino 22

13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino 25

131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica 26

132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino 27

14 Destinataacuterios 31

CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS 34

21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano 35

22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano 49

23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos 57

CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE

MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM 62

31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem 67

32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus 71

33 Sobre as leis e imoralidades 85

CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM

SOCIAL 91

41 O controle absoluto do controlador absoluto 91

42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde 100

421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios 102

422 A razatildeo que julga 109

43 O governo o controle e os governantes 115

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 121

REFEREcircNCIAS 126

APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS 143

Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos 146

Iacutendice remissivo 148

12

INTRODUCcedilAtildeO

Este que no dia 1 de junho eacute reverenciado pelas Igrejas Catoacutelica Ortodoxa Oriental e

Anglicana tem a apresentar um testemunho que vai aleacutem do seu martiacuterio Seus escritos

oferecem pistas importantes para o entendimento da condiccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no

Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II Muitos como o Papa Bento XVI o tecircm chamado

de ldquoo mais importante dos padres apologistas do segundo seacuteculordquo1 Poreacutem o que esta

pesquisa iraacute mostrar eacute que os escritos atribuiacutedos a esse ldquofiloacutesofo cristatildeordquo apresentam acima de

tudo os primeiros indiacutecios de uma efetiva reflexatildeo histoacuterico-teoloacutegica sobre a funccedilatildeo do

cristianismo na organizaccedilatildeo social

Dentre as pesquisas do seacuteculo XX sobre Justino recebe destaque primeiramente o

trabalho de Johannes M Pfaumlttisch2 em 1910 a respeito da influecircncia do pensamento de

Platatildeo sobre esse apologista Em 1923 foi publicada a obra de E R Goodenough3 que

apresentava uma sistematizaccedilatildeo do pensamento teoloacutegico desse que segundo seu ponto de

vista fazia jus ao nome de ldquomaacutertirrdquo ou seja algueacutem ldquoque daacute testemunhordquo mas que em

contrapartida estava longe de merecer o tiacutetulo de ldquofiloacutesofordquo Poucos anos mais tarde

destoando em alguns aspectos do pensamento de Goodenough empreendeu C Andresen4

uma anaacutelise sublinhando os traccedilos filosoacuteficos dos escritos de Justino em comparaccedilatildeo ao

meacutedio-platonismo que tinha um espaccedilo significativo no pano de fundo intelectual do II

seacuteculo dC A problemaacutetica da relaccedilatildeo entre as doutrinas cristatildes ganhou reforccedilo com a defesa

da tese de N Hyldahl5 em 1965 Na mesma deacutecada de 1960 eacute Lislie W Barnard6 quem

intersecciona os aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos e as ideias sobre o judaiacutesmo representados

nos escritos de Justino Aleacutem dos interesses teoloacutegico-filosoacuteficos em torno desses escritos haacute

tambeacutem uma busca por elementos que auxiliem a compreender a condiccedilatildeo dos cristatildeos no

1 PAPA BENTO XVI Audiecircncia geral Praccedila de Satildeo Pedro Vaticano 21 de marccedilo de 2007 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherbenedict_xviaudiences2007documentshf_ben-xvi_aud_20070321_pohtml acesso em 20 de dezembro de 2011 2 Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910 3 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 4 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf tambeacutem ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Berliacuten Walter de Gruyter und co 1955 5 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 6 Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967 cf tambeacutem id Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology V 22 n 2 jun1969 pp 152-164

13

Impeacuterio em meados do seacuteculo II Nesse sentido os escritos de Justino tecircm muito a contribuir

tanto para se pensar a influecircncia da cultura greco-romana sobre as ideias cristatildes quanto sobre

as accedilotildees anticristatildes

As conferecircncias de Henry Chadwich7 na The John Rylands Library em 1965

chamavam a atenccedilatildeo para a inter-relaccedilatildeo entre a filosofia e a teologia nascente percebidas nas

estrateacutegias de defesa argumentativa apresentadas por Justino contra a opressatildeo sobre os

cristatildeos Mas por que os cristatildeos foram perseguidos

As hipoacuteteses tecircm girado em torno de uma lei especial contra os cristatildeos instituiacuteda por

Nero institutum neronianum como chamou Tertuliano8 ou pelo enquadramento em crimes

comuns como maiestas ou pela livre accedilatildeo dos magistrados para manter a ordem ius

coertiones9 Na deacutecada de 1950 receberam destaque os trabalhos de Henry Gregoire10 A N

Sherwin-White11 e J Moreau12 Na deacutecada seguinte Geoffrey E M de Ste Croix13

estabeleceu um debate com Sherwin-White14 sobre essa questatildeo

GEM de Ste Croix sustentava que as perseguiccedilotildees aos cristatildeos baseavam-se na

recusa em reconhecer os deuses de Roma comportamento que era frequentemente

considerado perigoso e sedicioso Os deuses tradicionais do panteatildeo greco-romano eram as

divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma que exigiam culto para a estabilidade da

pax deorum15 Por essa perspectiva Ste Croix propunha que a perseguiccedilatildeo se relacionava ao

sentimento religioso da eacutepoca16 AN Sherwin-White por outro lado defendeu que as

perseguiccedilotildees aos cristatildeos natildeo se baseavam na questatildeo do rompimento da pax deorum mas na

aguda obstinaccedilatildeo dos cristatildeos em natildeo cometer apostasia nem sacrificar para os deuses do

Impeacuterio17 Tal postura dos cristatildeos desafiava as autoridades romanas e representavam uma

grave insubordinaccedilatildeo GEM Ste Croix deu uma treacuteplica a essa questatildeo em 196418 mas essa

problemaacutetica tem despertado pesquisadores ateacute hoje19

7 Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 8 Ad Nationis I78 9 BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 1968 pp 30-50 10 Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 1111 The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952 p 199 12 La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 13 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 pp 6-38 14 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 15 De Ste CROIX GEM Op cit 1963 p 24 16 Ste CROIX GEM Op cit 1963 pp 29-31 17 SHERWIN-WHITE AN Op cit 1964 pp 25 18 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 19 Cf BARNES Timothy D Constantine and Eusebius Cambridge MA Harvard University Press 1981 MacMULLEN Ramsay Christianizing the Roman Empire (AD 100-400) New HavenLondon Yale

14

A proclamaccedilatildeo cristatilde no I e II seacuteculos causava tanto conversotildees quanto reaccedilotildees

adversas entre os pagatildeos20 A religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio Romano era presente na vida dos

povos 21 Relembrando Marcel Simon e Andreacute Benoicirct22 eacute justo admitir que com a refutaccedilatildeo

de todos os compromissos e a sustentaccedilatildeo intransigente do monoteiacutesmo a Igreja parecia um

corpo estranho aos pagatildeos Distanciando-se dos eventos puacuteblicos normalmente envolvidos

com a idolatria condenada pela Igreja rejeitando o serviccedilo militar os jogos e as celebraccedilotildees

artiacutesticas os cristatildeos se autoexpunham agrave marginalizaccedilatildeo da sociedade

Entre o povo ou entre os intelectuais os cristatildeos eram vistos com estranheza ou

desconfianccedila23 Assim como foram caracterizados os judeus podia-se pensar que os cristatildeos

apresentavam um odio humani generis24 em parte devido aos comentaacuterios depreciativos que

se espalhavam entre o povo Foram caracterizados por Taacutecito como membros de uma

destrutiacutevel superstitio25 oriunda da Judeia Suetocircnio se referiu a eles como ldquoraccedila de homens de

uma superstitio nova e maleacuteficardquo26 As acusaccedilotildees ou suspeitas poderiam girar em torno de

delitos ou coisas consideradas repulsivas como infanticiacutedio incesto assembleias ilegais

introduccedilatildeo de cultos iliacutecitos e mais especialmente traiccedilatildeo sendo esta uacuteltima caracterizada pela

recusa em adorar a divindade do imperador27

As superstitiones e os cultos locais eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob

atenccedilatildeo Como destacam Mary Beard John North e Simon Price28 as controveacutersias poderiam

desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito

em 172 e 173 aC29 na incursatildeo da Traacutecia que foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que

University Press 1984 DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000 DRAKE Harold Allen Constantine and the Bishops the politics of intolerance BaltimoreLondon John Hopkins University Press 1999 CLARK Gillian Christianity and the Roman Society Cambridge Cambridge University press 2004 CHADWICK Henry The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001 FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006 20 GOODMAN Martin Mission and conversion proselytizing in the religous history of the Roman Empire Clarendon Press Oxford University Press 1994 p 12 21 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 Cf BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35 22 SIMON M BENOIcircT A Giudaismo e Cristianesimo una storia antica RomaBari LaterzaFigli Spa 2005 p 12 23 ldquoaqueles que por suas abominaccedilotildees eram mal vistosrdquo [quos per flagitia invisos] Taacutecito Annales 1544 24 ldquooacutedio agrave humanidaderdquo Ibid 25 exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo] Annales 1544 26 genus hominum superstitionis novae ac maleficae De Vita XII Caesarum Vita Neronis 162 27 MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 28 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 29 Cassius Dio Hist Rom LXXII4

15

conseguiu seguidores30 entre os druidas incitados por profecias sobre o fim de Roma da

Gaacutelia31 e nas revoltas judaicas do I e II seacuteculos dC Embora existisse um niacutevel significativo

de liberdades religiosa e individual os grupos e assembleias ficavam sob atenccedilatildeo das

autoridades Os baacutequicos os astroacutelogos e maacutegicos o culto de Iacutesis e a crenccedila dos druidas

tambeacutem enfrentaram a obstruccedilatildeo romana32

Paul Veyne faz diferenciaccedilatildeo entre os interesses dos homens letrados e das autoridades

preocupadas com a manutenccedilatildeo da ordem e o interesse da populaccedilatildeo pagatilde em geral Em sua

percepccedilatildeo a atitude de criacutetica dos romanos frente agraves comunidades cristatildes manifestava a

repulsa ao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguo33 Desse modo a rejeiccedilatildeo ao novo grupo religioso

do oriente deveria envolver um problema identitaacuterio tambeacutem relacionado agrave dificuldade de se

assimilar um grupo dotado de particularidades que pretendiam a superioridade diante dos

estabelecidos Justino tambeacutem sustenta uma tese em torno da questatildeo do ldquopor que os cristatildeos

eram perseguidosrdquo esforccedilando-se em convencer os romanos sobre as ldquoinjusticcedilasrdquo cometidas

contra os cristatildeos

Embora natildeo exista um consenso sobre o iniacutecio das perseguiccedilotildees no I seacuteculo34 eacute certo

que o estilo de vida e o conteuacutedo das crenccedilas cristatildes natildeo agradavam a muitos o que

culminava na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados

Natildeo haacute sinais de uma perseguiccedilatildeo generalizada no iniacutecio do II seacuteculo mas apareciam

atritos locais que por vezes culminavam na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados ou agredidos

pelo povo Pliacutenio Segundo natildeo sabia ao certo como proceder nos processos que julgavam os

cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia e chegou a pedir a orientaccedilatildeo de Trajano35 Sob Adriano36 o

governador da Aacutesia Menor Graniano tambeacutem levantou questotildees sobre esses processos

30 Cassius Dio Hist Rom LI255 LIV345-7 31 Taacutecito Historias IV546165 V2224 32 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 Cf AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 33 VEYNE Paul Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 pp 245-246 34 Marta Sordi (I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 15-29) por exemplo sustenta a tese de que a resposta negativa do Senado ao pedido de Tibeacuterio sobre o reconhecimento de Cristo entre os deuses oficiais teria tornado a feacute cristatilde em uma religio illicta Paul Keresztes defende que foi o institutum neronianum que primeiramente comprometeu a legalidade do grupo dos cristatildeos (Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214) 35 Governou de 98 a 117 dC 36 Governou de 117 a 138 dC

16

Nesse periacuteodo Quadrato e Aristides tambeacutem escreveram ao imperador em defesa dos cristatildeos

mas a situaccedilatildeo continuou a mesma sob o governo de Antonino Pio37

Justino que havia nascido em Flaacutevia Neaacutepolis38 atual Nablus uma cidade na antiga

regiatildeo da Samaria filho de pai latino e de um avocirc com nome grego estudou filosofia mas se

converteu ao cristianismo e se pocircs em defesa da feacute39 Escreveu suas Apologias entre os anos

de 154 e 161 aproximadamente em defesa dos cristatildeos levados aos tribunais e entatildeo

condenados agrave morte Aleacutem da previsatildeo de seu proacuteprio martiacuterio o apologista retrata ainda um

caso especiacutefico que ocorreu sob Urbico em Roma Seu discurso busca convencer o imperador

Antonino Pio40 de que os cristatildeos natildeo representavam nenhum tipo de ameaccedila e que seria

segundo seu ponto de vista uma grande injusticcedila condenar agrave morte aqueles que eram

colaboradores ldquoda pazrdquo no Impeacuterio41 Os problemas penais e de outros caraacuteteres juriacutedicos

abordados por Justino e comuns ao governo de Antonino Pio foram uma vez analisados por

Paul Keresztes42 que destacou a estrateacutegia desse apologista de interpretar o rescrito43 de

Adriano a Minuacutecio Fundano Todavia as Apologias desse pensador cristatildeo desafiam a

compreensatildeo de um capiacutetulo intrigante da histoacuteria das ideias religiosas cristatildes como esse

discurso em defesa dos cristatildeos apresenta em meio agraves proposiccedilotildees teoloacutegico-filosoacuteficas que

permeiam o texto uma leitura das accedilotildees anticristatildes conjuguando controle social e religiatildeo na

reprovaccedilatildeo da coaccedilatildeo imposta por Roma sobre os cristatildeos e na indicaccedilatildeo da funccedilatildeo

reguladora da religiatildeo cristatilde para a cooperaccedilatildeo na manutenccedilatildeo da ordem

Por isso essa pesquisa tem por objetivo principal compreender as relaccedilotildees entre

controle social e religiatildeo a partir da anaacutelise das accedilotildees anticristatildes praticadas ateacute meados do

seacuteculo II dC segundo as Apologias de Justino Maacutertir O exame de suas ideias deve

compreender o paradoxo construiacutedo em seu discurso entre o tipo de controle social

desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia aos cristatildeos que

tumultuam a ordem e por outro lado o tipo de controle social apontado nas Apologias que

37 Governou de 138 a 161 dC 38 I Apol 11 cf MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 127-129 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought New York Cambridge University Press 1967 pp 3-12 39 JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991 Cf mais informaccedilotildees no capiacutetulo I 40 E tambeacutem a seus filhos Marco Vero (que seria chamado Marco Aureacutelio) e Luacutecio Vero 41 I Apol 31ss I Apol 121ss 42 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129 Id Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214 Id The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 43 Rescrito em resposta aos questionamentos do governador anterior Graniano

17

daria razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos mediante um tipo de ordem derivado da proliferaccedilatildeo de

suas crenccedilas

Por ldquocontrole socialrdquo entende-se ldquoo conjunto dos recursos materiais e simboacutelicos de

que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de seus

membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo44 Ou ainda

seguindo a perspectiva de Martin Innes45 ldquocontrole socialrdquo refere aos mecanismos e

tecnologias empregados para manutenccedilatildeo da ordem social Esta por sua vez eacute composta de

diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais de alguma forma contribuem para a

constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social Nesse embate apologeacutetico do seacuteculo II satildeo

apresentados argumentos para convencer de que a feacute cristatilde natildeo estava propiacutecia a nenhum tipo

de desordem social e que pelo contraacuterio seria capaz de influenciar na formaccedilatildeo de suacuteditos

fieacuteis do Impeacuterio

Para o cumprimento do objetivo central dessa pesquisa as Apologias de Justino satildeo

estabelecidas como principal objeto e fonte de investigaccedilatildeo a serem submetidas agrave criacutetica

interna e externa segundo o desenvolvimento de uma anaacutelise histoacuterica46 Ao colocar as

Apologias de Justino no centro dessa anaacutelise busca-se delimitar um campo possiacutevel de anaacutelise

dentro do processo de expansatildeo do cristianismo pelos territoacuterios do Impeacuterio Romano tendo

em vista as vaacuterias formas de resistecircncias e aceitaccedilotildees Uma anaacutelise sobre Justino e a

sobrevivecircncia de suas Apologias eacute apresentada no capiacutetulo I e no Apecircndice I

44 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) Dicionaacuterio criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 45 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 46 TOPOLSKY Jersy Metodologia de la historia Madrid Ediciones Catedras 1992 pp 36-45

18

CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS

Para desenvolver uma investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre controle social e religiatildeo

nas accedilotildees anticristatildes de meados do seacuteculo II dC a partir das Apologias de Justino Maacutertir eacute

preciso responder a algumas perguntas baacutesicas sobre sua origem transmissatildeo e forma

Levando em consideraccedilatildeo que as Apologias foram redigidas originalmente haacute quase 1900

anos e passaram por diversos copistas e editores ateacute chegar agrave atualidade eacute necessaacuterio fazer um

raacutepido percurso analiacutetico sobre as ediccedilotildees e suportes materiais que garantiram a preservaccedilatildeo

do texto Isso deveraacute contribuir para a compreensatildeo de suas caracteriacutesticas atuais

Esse tipo de anaacutelise contempla as diferenccedilas entre as trecircs principais ediccedilotildees recentes

das Apologias Miroslav Marcovich47 (com a 1ordf ediccedilatildeo em 1995) por exemplo oferece uma

ediccedilatildeo seguindo o padratildeo apresentado no MS Parisinus Graecus enquanto Charles Munier48

(com ediccedilotildees em 1994 1996 e 2006) sustenta a teoria de que os dois textos seriam

originalmente uma mesma peccedila Denis Minns e Paul Parvis49 (2009) oferecem uma ediccedilatildeo

que aleacutem de considerar a II Apologia uma compilaccedilatildeo de fragmentos e anotaccedilotildees de Justino

transformadas em Apologia por terceiros ainda realoca partes da segunda peccedila para a

primeira fazendo-a ganhar dois capiacutetulos a mais do que as duas ediccedilotildees mencionadas

anteriormente

Assim seratildeo analisados a seguir alguns dos principais pontos sobre as ediccedilotildees o

tamanho original e os destinataacuterios das Apologias bem como as evidecircncias que apontam para

Justino como seu autor

11 As principais ediccedilotildees das Apologias

A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450

ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C

47 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 48 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 Id Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 49 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

19

segundo a forma estabelecida por T Otto50 Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar

com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra

Parallela51 e no Chronicon Paschale52 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo

menos que doze vezes Na Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito

passagens No Chronicon Paschale aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4

Esse uacuteltimo deriva provavelmente da tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)53

Em 1551 foi produzida a partir do MS A a editio princeps importante trabalho do

typographus regius Robert Estienne54 ou Robertus Stephanus Conforme a anaacutelise de Minns e

Parvis55 trata-se de um texto bem produzido Do mesmo modo que A a composiccedilatildeo de

Stephanus que foi dedicada a ldquoBiblioteca Realrdquo apresenta os extratos de Photius e Euseacutebio

sobre Justino A Apologia menor tambeacutem aparece antes da maior56 Natildeo haacute nenhuma divisatildeo

ou quebra de texto Apenas algumas variantes de A satildeo colocadas nas margens das paacuteginas

A primeira traduccedilatildeo das Apologias viria em 1554 por Joachim Peacuterion57 em Paris

Frederick Sylburg58 apresentou sua ediccedilatildeo em 1593 em Heidelberg seguindo rigorosamente

o texto de Robert Etienne Sabe-se tambeacutem que Feacutedeacuteric Morel publicou as Apologias de

Justino em 161559 As ediccedilotildees de Johann Ernst Grabe seguiram fieacuteis ao Stephanus mas

trouxeram duas inovaccedilotildees a ediccedilatildeo de 170060 em Oxford apresentou a Apologia maior como

50 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 51 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 52 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 53 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 13 54 Minns e Parvis oferecem a seguinte referecircncia TOU AGIOU FILOSOFOU KAI MARTUROS) ZHNA kai Serhnw|) LOGOS parainetikoj proj Hllhnaj) PROS TRUFWNA Ioudaion dialogoj) APOLOGIA uper Cristianwn proj thn Rwmaiwn Sugklhton) APOLOGIA b uper Cristianwn proj Antoninon ton euvsebh) EX BIBLIOTHECA REGIA LVTETIAE Ex officina Roberti Stephani typographi Regii Regiis typis MDLI Cum priuilegio Regis Devido agrave corrupccedilatildeo dos textos antigos nem sempre eacute possiacutevel identificar os tiacutetulos corretamente por isso satildeo apresentados aqui em letras maiuacutesculas As barras representam a separaccedilatildeo das linhas onde satildeo lidas as informaccedilotildees a respeito dos volumes referenciados 55 Op cit p 14 56 A I Apologia eacute a ldquoapologia maiorrdquo mas no MS A a ldquoapologia menorrdquo isto eacute a II Apologia vem primeiro 57 Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis 58 TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953 59 Minns e Parvis (Op cit p 15) mencionam que Feacutederic Morel tenha criado a categoria de ldquoApologistasrdquo lanccedilando uma coleccedilatildeo de texto Esta informaccedilatildeo pode ateacute estar correta mas os autores natildeo apontaram nenhuma referecircncia do tipoacutegrafo Sabe-se que ele publicou as Apologias devito as informaccedilotildees do seguinte cataacutelogo GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18-- 60 SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700

20

a primeira e a ediccedilatildeo de 170361 apresentou a obra menor como a II Apologia tal como satildeo

reconhecidas hoje e tambeacutem foram acrescentadas divisotildees de capiacutetulos diferentes das usuais

A ediccedilatildeo de Styan Thirlby de 172262 juntou as trecircs obras de Justino reconhecidas como

autecircnticas I e II Apologia e o Diaacutelogo com Trifatildeo O texto ainda era baseado em Stephanus

Em 1742 Prudentius Maran63 publicou sua obra com uma divisatildeo de capiacutetulos que se

tornaria a usual Segundo Minns e Parvis64 Maran teve acesso a A e B mas seu texto eacute

semelhante ao de Stephanus As Apologias da coleccedilatildeo Patrologia Graeca volume 6 de

185765 eacute a reproduccedilatildeo da sua ediccedilatildeo alocada na seacuterie de Jacques Paul Migne (1800-1875)

JCT von Otto66 publicou sua primeira ediccedilatildeo em 1842 e a terceira e definitiva em

1876 Ele natildeo ficou preso ao texto de Stephanus e apresenta o princiacutepio das ediccedilotildees criacuteticas

sugerindo modificaccedilotildees e melhoramentos do texto Em 1911 foi a vez de Alfred Blunt

Segundo Minns e Parvis67 a obra se baseou principalmente nos trabalhos de G Kruumlger68 que

se espelhou em Otto A ediccedilatildeo de Edgar Goodspeed69 em 1914 recorre a A C e agrave tradiccedilatildeo de

Euseacutebio e da Sacra Parallela poreacutem natildeo apresenta notas criacuteticas

Em 1994 Miroslav Marcovich70 publicou sua ediccedilatildeo criacutetica das Apologias Em 1997

publicou tambeacutem a ediccedilatildeo do Diaacutelogo71 A qualidade criacutetica destes textos passou a um alto

niacutevel Segundo a anaacutelise de Minns e Parvis72 as emendas de Marcovich satildeo de um teor

filoloacutegico tatildeo elevado e com intervenccedilotildees sobre o caraacuteter estiliacutestico de tal modo que eacute possiacutevel

duvidar que Justino tivesse um conhecimento tatildeo apurado de grego

61 SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703 62 Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722 63 TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius 64 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 16 65 MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 66 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 67 Op cit p 17 68 Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896 69 Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 70 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 71 MARCOVICH Miroslav Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997 72 Op cit p 18

21

Charles Munier tambeacutem apresentou em 199473 um volume simples das Apologias em

francecircs Em 199574 foi lanccedilada sua ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto grego Ele confessa natildeo ter tido

acesso agrave obra de Marcovich receacutem-publicada75 Sua ldquogrande obrardquo veio em 2006 uma ediccedilatildeo

criacutetica na coleccedilatildeo Sources Chreacutetiennes O ponto forte do texto de Munier satildeo os comentaacuterios

e a extensiva discussatildeo do contexto teoloacutegico e filosoacutefico76 As anaacutelises textuais natildeo satildeo

muito profundas mas contribuem significativamente com a indicaccedilatildeo de textos

correlacionados

A ediccedilatildeo criacutetica de Denis Minns e Paul Parvis77 ndash com texto grego traduccedilatildeo e notas ndash

foi publicada em 2009 Aleacutem da ampla revisatildeo das ediccedilotildees de outros autores o texto

apresenta um rico aparato criacutetico As interferecircncias no texto fazem a I Apologia chegar ateacute o

capiacutetulo 70

Em 1995 a editora Paulus preparou uma versatildeo das I e II Apologias e o Diaacutelogo com

Trifatildeo em um uacutenico volume78 O texto eacute problemaacutetico e muito simplista Natildeo haacute sinais de

criacutetica textual e podem ser encontrados alguns erros de portuguecircs A traduccedilatildeo foi feita por Ivo

Storniolo com introduccedilatildeo e notas de Roque Frangiotti mas natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo sobre

qual foi o texto base para a traduccedilatildeo Eacute evidente todavia que os editores natildeo contaram com

as ediccedilotildees de Marcovich Munier ou Minns e Parvis Por isso deixaremos este texto em

segundo plano

Nessa pesquisa as ediccedilotildees de Miroslav Marcovich79 Charles Munier80 e a de Denis

Minns e Paul Parvis81 satildeo lidas em conjunto comparando as divergecircncias sempre que for

necessaacuterio A interferecircncia na disposiccedilatildeo dos capiacutetulos adotada por Denis Minns e Paul Parvis

natildeo seraacute admitida A divisatildeo das Apologias seraacute tal qual a que apresenta Marcovich por ater-

se ao padratildeo comum agrave maioria dos estudiosos82 poreacutem a Apologia Maior seraacute chamada I

Apologia abreviado para I Apol ou simplesmente I quando jaacute houver uma citaccedilatildeo no

paraacutegrafo Semelhantemente a Apologia Menor seraacute chamada II Apologia abreviado para II

73 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p 74 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 75 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 90 76 Opiniatildeo tambeacutem compartilhada por MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 18 77 Ibid 346 p 78 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 79 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 80 Op cit 2006 81 Op cit 82 Cf MARCOVICH M Op cit 2005 p 10

22

Apol ou II nas mesmas condiccedilotildees que a primeira O texto de Munier segue a mesma

padronizaccedilatildeo de Marcovich no entanto ele prefere se referir a Apologia parte I e parte II

nomenclatura que natildeo seraacute seguida nesse texto O termo ldquoApologiasrdquo seraacute empregado como

referecircncia aos dois textos de Justino

12 A questatildeo da autoria Justino

A I Apologia (11) aponta explicitamente que seu autor eacute Justino homem oriundo de

Flaacutevia Neaacutepolis hoje conhecida como Nablus localizada na Siacuteria Palestina B Bagatti83

afirma que ela foi fundada por veteranos da conquista da Judeia sob Vespasiano por volta do

ano de 72 O avocirc de Justino Baquios pode ter participado da implantaccedilatildeo da cidade

O apologista se reconhece como conterracircneo dos samaritanos84 No Diaacutelogo com

Trifatildeo ele eacute identificado como ldquofiloacutesofordquo e nas Apologias fica evidente seu conhecimento da

filosofia Taciano chamou seu mestre apologista de ldquoo mais admiraacutevel85rdquo Irineu de Lyon fez

menccedilatildeo ao seu martiacuterio e carregou sua influecircncia em seu escrito86 Tertuliano87 atribuiu-lhe

dois tiacutetulos ldquofiloacutesofo e maacutertirrdquo O apologista tambeacutem recebeu um lugar no De viriis

illustribus de Satildeo Jerocircnimo e Gennadius88

Em seu Diaacutelogo com Trifatildeo89 ele eacute apresentado como um homem educado no estudo

da filosofia Segundo a narrativa do Diaacutelogo Justino conheceu o estoicismo frequentou a

escola peripateacutetica ficou junto a um filoacutesofo pitagoacuterico que lhe solicitou aprender muacutesica

astronomia e geometria Por uacuteltimo havia se aproximado da escola platocircnica quando entatildeo

conheceu os escritos dos profetas e a feacute cristatilde90 Segundo E R Goodenough91 Justino adota

uma dramatizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o cristianismo e a filosofia apresentando as passagens

por diversas escolas agraves quais critica rumo agrave ldquoverdaderdquo cristatilde Ele compara a narrativa de

Justino agrave de seu contemporacircneo Luciano em Menippus IVVI Em Menippus tambeacutem eacute

descrita a passagem por diversas escolas de pensamento chegando-se ao consentimento pelas

inuacutemeras contradiccedilotildees de que nenhuma delas tinha autoridade Goodenough tambeacutem vecirc a

83 S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319 84 Diaacutel 1206 II Apol 151 85 Discurso contra os gregos 191ss 86 Contra as heresias I281 cf IV62 V262 87 Contra os Valentinianos 51ss 88 Vida dos homens Ilustres 89 21ss 90 II Apol 81ss 91 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 pp 58-59

23

recorrecircncia dessa forma literaacuteria na descriccedilatildeo de verdadeiros proseacutelitos do judaiacutesmo Githro

Naaman e Rahab descritos na Tannaim92 N Hyldahl93 aleacutem de considerar a narrativa da

trajetoacuteria filosoacutefica de Justino mera ficccedilatildeo tambeacutem sustenta ser impossiacutevel determinar que

tipo de platonista esse pensador foi antes de sua conversatildeo e que a capa de filoacutesofo que usava

mencionada por Euseacutebio era um erro de interpretaccedilatildeo

Deve-se reconhecer como tambeacutem destacou L W Barnard que se por um lado havia

uma convenccedilatildeo literaacuteria grega ndash e que pudesse ser encontrada ocasionalmente ateacute no judaiacutesmo

ndash sobre as aventuras por diversas escolas a fim de criticaacute-las por outro lado isso natildeo contradiz

a admissatildeo da atual condiccedilatildeo de filoacutesofo cristatildeo assumida por Justino naquele momento Por

ldquofiloacutesofo cristatildeordquo natildeo se pretende dizer outra coisa senatildeo aquilo que ele mesmo confessa e

procura convencer os seus leitores a saber de que apoacutes conhecer diversas correntes

filosoacuteficas encontrou nas doutrinas cristatildes a ldquoverdaderdquo que o contentou94 Aleacutem disso o teor

apologeacutetico do discurso de Justino estaacute fundamentalmente relacionado a paralelos e

intersecccedilotildees com a filosofia C Andresen95 concorda que a trajetoacuteria filosoacutefica de Justino seja

mais do que um simples jogo literaacuterio Segundo Andresen e ele parece estar correto o meacutedio-

platonismo eacute a base da construccedilatildeo do pensamento cristatildeo de Justino

Em Roma Justino esteve engajado em debates com o filoacutesofo ciacutenico Crescente96

Segundo a Ata do Martiacuterio de Justino97 ele foi decapitado sob o julgamento de Rusticus

prefeito de Roma entre 162 e 168

A data e o local da conversatildeo de Justino satildeo imprecisos Eacutefeso tem sido cogitada como

uma boa hipoacutetese para o local de seu membramento ao cristianismo98 ou ainda algum ponto

na sua longa jornada da Palestina para Roma99 Minns e Parvis100 pensam que sua adesatildeo deve

ter ocorrido pelo menos uns 30 anos antes de sua morte Isso apontaria para uma data proacutexima

92 Ibid pp 58-59 93 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 94 Dial II1-6 95 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf FELIX Viviana Laura Elementos medioplatoacutenicos en la filosofiacutea de Justino IV JORNADAS NACIONALES DE FILOSOFIacuteA MEDIEVAL Academia Nacional de Ciencias de Ciencias de Buenos Aires Abril 2009 96 II Apol 31ss 97 Atti del Martiacuterio di San Giustino Caritone Caritoacute Evelpisto Ierace Peone e Liberiano Martirizzati a Roma In GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 Texto grego e traduccedilatildeo italiana a partir da obra de WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987 98 QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197 99 SKARSAUNE Oskar The proof from phophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provence theological profile Leiden EJBrill 1987 pp 245-246 100 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 33

24

agrave guerra judaica da deacutecada de 130 dC O Dialogo (1206) cita a I Apologia e desse modo

ambos os textos fazem referecircncia agrave revolta de Bar Kosiba entre os anos de 132 e 135101

Aleacutem das Apologias e do Diaacutelogo com Trifatildeo obras que satildeo reconhecidamente

proacuteprias a Justino Euseacutebio102 aponta que o apologista escreveu tambeacutem um livro contra os

gregos outro intitulado Elenchos um tratado sobre a soberania de Deus outro com o tiacutetulo

Psaltes e um escrito sobre a alma Um tratado contra Marciatildeo tambeacutem eacute citado mas essa

passagem corresponde a um trecho da I Apol 265-6103 Na sequecircncia dessa periacutecope da I

Apologia Justino disse que ele mesmo escreveu um ldquotratadordquo contra todas as heresias Esse

escrito poreacutem eacute dado por perdido No Dialogo 1206 o apologista diz ter aprestado um

escrito endereccedilado ao imperador no qual se refere a Simatildeo Mago104 o que eacute constatado na I

Apologia Eacute pertinente admitir que natildeo eacute possiacutevel saber se o texto que foi preservado ateacute agora

derivou daquele primeiro endereccedilado ao imperador Se seu trabalho foi entregue ao imperador

eacute provaacutevel que Justino tenha ficado com uma coacutepia

Minns e Parvis105 natildeo acreditam que seu texto tenha sido copiado com o intuito de ser

amplamente publicado Parece-lhes razoaacutevel sustentar a hipoacutetese de que o texto preservado

ateacute hoje pelo MS A deriva do documento que estava com Justino no momento de sua prisatildeo

Talvez tenha sido necessaacuteria uma reorganizaccedilatildeo do texto mais tarde com um propoacutesito

catequeacutetico ou apologeacutetico diferente do seu sentido original Entre sua emissatildeo original e o

teacutermino do trabalho do copista do Parisinus Graecus 450 em 11 de setembro de 1364106

muita coisa pode ter acontecido ao texto Todavia o principal obstaacuteculo a essa hipoacutetese eacute que

natildeo foram encontrados quaisquer vestiacutegios de um texto que ateste que o documento jaacute teve

outro formato sem os acreacutescimos catequeacuteticos Aleacutem disso as partes que tratam das crenccedilas

cristatildes estatildeo bem relacionadas agrave estrutura da obra e cumprem com seu propoacutesito

apologeacutetico107 Sua estrutura apresenta traccedilos comuns aos escritos de outros apologistas do II

101 Diaacutel 13 I Apol 316 102 Hist Ecles IV181-6 103 Hist Ecles IV118-9 104 Cf I Apol 262-3 105 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 34 106 Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005) calcula o ano de 1363 mas Bobichon ( lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 pp 157-158) apontou de forma mais satisfatoacuteria a data de 1364 com a qual Minns e Parvis (Op cit 34) e Munier (Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 84) concordam 107 A funccedilatildeo catequeacutetica da obra seraacute examinada mais propriamente no terceiro capiacutetulo parte 4 dessa dissertaccedilatildeo

25

seacuteculo induzindo Sara Parvis108 a pensar que Justino tenha sido o ldquopairdquo do gecircnero apologeacutetico

cristatildeo servindo de inspiraccedilatildeo para outros escritores da eacutepoca

Embora existam interrogaccedilotildees e divergecircncias sobre a unicidade ou biparticcedilatildeo das

Apologias haacute semelhanccedilas estiliacutesticas entre as duas partes que fazem com que Marcovich109

Munier110 Minns e Parvis111 concordem que os escritos procedam de Justino ainda que certas

modificaccedilotildees sejam admitidas durante o tempo conforme as irregularidades de alguns pontos

tecircm mostrado Eacute preciso ainda ter uma ideia clara sobre que tipo de escritos se estaacute

analisando tendo em vista que o conceito de ldquoapologiardquo como uma espeacutecie de gecircnero literaacuterio

eacute recente

13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino

Termo derivado da palavra grega avpologia significa basicamente ldquodiscurso de defesa

defesardquo Que tambeacutem deriva do verbo avpologeomai que representa o oposto de kathgoria

que significa ldquoacusaccedilatildeordquo112

No seacuteculo IV aC Platatildeo113 e Xenofontes114 cada um a seu modo narram a ldquoapologia

de Soacutecratesrdquo e proporcionam um tributo agrave valorizaccedilatildeo da razatildeo No I seacuteculo dC eacute Flaacutevio

Josefo115 quem eterniza um discurso desse tipo remetido a Aacutepion em prol dos judeus Josefo

defende a religiatildeo judaica salientando a sua antiguidade e contrastando a pretensatildeo grega agrave

superioridade no campo cultural O caraacuteter ldquoapologeacuteticordquo do texto como um ldquodiscurso de

defesardquo fica por conta da resposta a algumas alegaccedilotildees antijudaicas atribuiacutedas ao escritor

grego Aacutepion e os mitos acreditados por Manetho

No seacuteculo II dC Apuleio de Madura tambeacutem compocircs uma apologia pela qual se

defende das acusaccedilotildees de magia Eacute nesse mesmo seacuteculo que uma seacuterie de escritos como os de

Quadrato Aristides Justino Atenaacutegoras Meacuteliton de Sardes Teoacutefilo de Antioquia Taciano e

outros emerge em defesa dos cristatildeos que sofriam acusaccedilotildees principalmente na Aacutesia Menor

108 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 109 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 110 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 111 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 112 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 Cf RUSCONI C (Ed) DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 113

Apologia de Soacutecrates 114

Apologia 115 Contra Aacutepion

26

Para compreender os aspectos constitutivos das apologias de Justino eacute preciso analisar

as vaacuterias teorias sobre sua composiccedilatildeo e sua estrutura retoacuterica

131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica

As diferenccedilas estruturais de uma para a outra apologia de Justino exigem uma anaacutelise

especiacutefica Notadamente a II Apol eacute menor que a I Apol Minns e Parvis116 apresentam trecircs

teorias sobre o nuacutemero desses escritos de Justino

A forma como aparecem no MS A corrobora com a ideia de que sejam duas apologias

Mas enquanto a primeira eacute cheia de citaccedilotildees da escritura a segunda natildeo tem nenhuma citaccedilatildeo

desse tipo De modo bem peculiar eacute na II Apologia que aparece a reflexatildeo sobre o loacutegoj

sperermatikoj117 e o comprometimento de Justino no debate com Crescente A anaacutelise textual

da II Apologia eacute desfavorecida pelo tamanho do texto todavia as diferenccedilas proporcionais

entre os escritos satildeo somadas agrave hipoacutetese de que seriam de fato duas apologias

A segunda teoria sustenta a ideia de que originalmente a atual composiccedilatildeo dupla era

na verdade uma uacutenica Apologia Munier eacute aliado a essa proposta Ele considera que uma obra

uacutenica ndash um libellus ndash teria sido apresentada em Roma como requisiccedilatildeo pessoal endereccedilada ao

Imperador Antonino Pio e seus filhos para mudar a condiccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio118 O

principal argumento dessa hipoacutetese eacute que existe uma boa inclusio entre as referecircncias agrave

piedade e agrave filosofia no iniacutecio da primeira (I Apol 1 21-2 31) e os que aparecem no final da

segunda (II Apol 1213 e 14) As retomadas na segunda do tipo ldquoconforme dissemos

anteriormenterdquo seriam referecircncias ao que foi dito na parte imediatamente anterior e natildeo a

outro texto

De modo diverso Minns e Parvis119 consideram que a estrutura do texto ficaria muito

estranha se fosse pensada segundo essa teoria O cliacutemax da primeira parte estaria no rescrito

de Adriano quando o autor mostra a incoerecircncia das acusaccedilotildees e perseguiccedilotildees sofridas pelos

cristatildeos (I Apol 685-10) Isso tornaria incoerente recomeccedilar uma seccedilatildeo de defesa na parte

posterior Outro argumento desfavoraacutevel eacute que o escriba que picou o texto teria sido

demasiadamente astuto para escolher uma parte que marcaria precisamente a distinccedilatildeo de tons

entre os dois textos

116 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p22 117 Logos spermatikos que pode ser entendido de modo limitado com ldquosemente da razatildeordquo 118 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 119 Op cit p 22

27

Outra teoria sustenta que se trata de uma apologia e um apecircndice Minns e Parvis120

fazem saber que essa foi a teoria apresentada por Grabe121 em 1703 recebida por Harnack122

popularizada por Goodspeed123 em 1914 e ainda sustentada com entusiasmo por Marcovich124

em 1994 As correspondecircncias entre a primeira e a segunda estariam relacionadas ao material

deixado pelo proacuteprio Justino apoacutes concluir o texto definitivo A I Apologia pode ser

reconhecida como um libellus ou seja uma requisiccedilatildeo particular endereccedilada ao Imperador

mas a classificaccedilatildeo da II Apologia natildeo eacute muito precisa

Seguindo o raciociacutenio de Robert M Haddad125 qualquer peticcedilatildeo (libellus) apresentada

ao imperador buscava persuadi-lo a fazer alguma coisa De fato na Antiguidade a persuasatildeo

se tornou uma arte Desenvolvida pelos gregos a retoacuterica foi adaptada pelos romanos para

suas proacuteprias aspiraccedilotildees Ciacutecero Secircneca o Velho Taacutecito Pliacutenio o Jovem Quintiliano e

Fronto se tornaram nomes referenciais dessa habilidade Como foi apontado anteriormente

Justino era muito familiarizado com a filosofia mas natildeo se mostrou muito familiarizado com

a retoacuterica o que natildeo isentou seu texto de revelar uma estrutura comum agraves teacutecnicas dessa

disciplina126 No entanto esses aspectos ainda natildeo satildeo suficientes para oferecer uma

explicaccedilatildeo clara sobre o gecircnero das Apologias

132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino

Se a apologia de Soacutecrates diante do tribunal grego adaptada por Platatildeo127 e por

Xenofontes128 tornou-se um emblema da defesa da razatildeo no II seacuteculo dC foram as

120 Op cit p 23 121 HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703 Grabe atuou em parceria com Huntchim nessa ediccedilatildeo 122 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274 123

Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 passim 124 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 10 125 HADDAD Robert M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 Werner Eck escreve que o imperador romano era cercado por pessoas que procuravam influenciaacute-lo ou conseguir favores (Id The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000) 126 The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 21-28 127 Apologia de Soacutecrates 128 Apologia

28

acusaccedilotildees contras os cristatildeos que deram ldquorazatildeordquo agrave proliferaccedilatildeo de apologias em defesa da feacute

cristatilde que ainda natildeo apresentava uma sistematizaccedilatildeo coerente de suas ideias

Segundo a anaacutelise de Robert Grant a literatura apologeacutetica emerge de grupos

minoritaacuterios que estatildeo tentando desenvolver uma linguagem que seja compreensiacutevel agraves

culturas no Impeacuterio Romano para que por meio dela seja comunicada a mensagem cristatilde129

Satildeo vaacuterias as formas apresentadas para atestar a autenticidade das correntes religiosas

defendidas A apologia significaria algo mais do que uma simples defesa dos ataques sofridos

pela Igreja Seria uma forma baseada na defesa que Soacutecrates teria feito no seu julgamento

diante do povo de Atenas para mostrar a racionalidade de seu julgamento Os apologistas

cristatildeos teriam a ampla tarefa de estender possiacuteveis conexotildees entre as concepccedilotildees da filosofia

grega e aquela que para os cristatildeos era a ldquoverdade por excelecircnciardquo Mas esse processo

precisa ser analisado dentro do acircmbito missioloacutegico cristatildeo 130

A apreciaccedilatildeo helenizante estendida tambeacutem por Leslie W Barnard131 a todos os

apologistas eacute desajeitada O proacuteprio disciacutepulo de Justino Taciano opotildee-se agrave cultura grega

Poucos anos depois Tertuliano132 se mostraria o principal disseminador de um discurso que

estava longe de buscar os pontos comuns entre Jerusaleacutem e Atenas A comparaccedilatildeo com

Soacutecrates tambeacutem natildeo pode ser estendida a todos os apologistas

Justino poreacutem aleacutem de se referir positivamente a Soacutecrates como participante no logos

que autentica a racionalidade cristatilde proporciona uma analogia com a sua proacutepria condiccedilatildeo

enquanto prevecirc o seu martiacuterio em defesa da feacute cristatilde133

Em 1897 Th Wehofer em busca dos modelos literaacuterios de Justino observou que no

elogio dos mortos de Menexenus e na Apologia de Soacutecrates Platatildeo proporciona o modelo de

uma retoacuterica a serviccedilo da justiccedila e da verdade Sem duacutevida Justino conhecia os escritos de

Platatildeo Algumas correlaccedilotildees podem ser identificadas em trechos de suas Apologias I Apol

24 = ApS 30c 53 = 24b et 26c 82 = 30d 682 = 19a II102 = 24b Segundo Munier134

a exposiccedilatildeo temaacutetica progressiva encontrada nessa obra pode parecer uma desorganizaccedilatildeo

129 GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988 p 9 apud HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 31 130 Isso significa que as interconexotildees apologeacuteticas entre cultura greco-romana e cristianismo precisam ser contempladas como mecanismo dos discursos cristatildeos para proporcionar siginificaccedilotildees eficientes entre os povos de outras culturas cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990 131 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 2008 p 2(3) 132 Apolog passim 133 I Apol 51-3 II Apol 81ss 134 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 33

29

uma composiccedilatildeo aparentemente relaxada uma sucessatildeo aparentemente arbitraacuteria de

passagens dogmaacuteticas e pareneacuteticas que retoma abundantemente o mesmo tema abordando-o

sob uma perspectiva diversa Nota-se que um esquema preside a composiccedilatildeo geral das

Apologias

A estrutura essencial da Apologia de Soacutecrates por si soacute natildeo eacute suficiente para dar conta

do plano geral da obra de Justino As correlaccedilotildees entre o escrito de Platatildeo e o de Justino vatildeo

aleacutem do niacutevel estrutural Elas tambeacutem se mostram nos modelos de argumentaccedilatildeo De fato

este eacute o coraccedilatildeo mesmo da defesa que se funda sobre o exemplo de Soacutecrates condenado como

ldquoateu e iacutempiordquo135 Para Justino136 o destino traacutegico do filoacutesofo ateniense ilustra perfeitamente

a sorte dos cristatildeos ameaccedilados de morte

A diatribe de Justino contra Crescente toma uma funccedilatildeo analoacutegica Ela estaacute associada

agrave evocaccedilatildeo de Soacutecrates Assim como Meacuteletos tinha acusado Soacutecrates Crescente acusa os

cristatildeos de serem ldquoateus e iacutempiosrdquo a fim de agradar a multidatildeo insensata137 E como Soacutecrates

tinha oposto a seus acusadores sua indiferenccedila ao ldquotalento da palavra e sua uacutenica preocupaccedilatildeo

era dizer a verdaderdquo138 o desafio de Justino a Crescente se inspira na sentenccedila de Platatildeo139

ldquoDe modo nenhum se deve honrar mais a homens do que agrave verdaderdquo

Contudo a Apologia de Soacutecrates natildeo eacute um modelo literaacuterio estrito no qual Justino se

inspirou Segundo a anaacutelise de Munier140 o Protreacuteptico de Aristoacuteteles oferece tambeacutem

alguma correlaccedilatildeo mas isso natildeo deve significar que haja alguma dependecircncia intriacutenseca entre

esses escritos Aristoacuteteles se dedica a demonstrar que a filosofia converte todo seu valor agrave

vida em sociedade e que uma vida sem filosofia natildeo vale a pena de ser vivida Na medida em

que apresenta o cristianismo como uma ldquofilosofia divinardquo141 Justino poderia tirar o melhor

partido dos protreacutepticos142 de Aristoacuteteles de Isoacutecrate e de seus seguidores dedicados agrave

filosofia Mas essa semelhanccedila eacute apenas ocasional e natildeo intencional O apologista natildeo

esconde seu desejo de que o imperador se torne um filoacutesofo de Cristo Ele acreditava que se

seu pedido fosse aceito a feacute cristatilde espalharia benefiacutecios por todo o Impeacuterio143 Eacute nesse sentido

135 I Apol 53 136 II Apol 12 81-2 137 Cf WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991 138 Platatildeo ApS 17bc 139 Repuacuteblica X595c 607c 140 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 40 141 II125 142 Protreacuteptico exortaccedilatildeo Restam apenas fragmentos dos escritos protreacutepticos de Aristoacuteteles cf CHROUST Anton-Hermann Aristotle Protrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964 143 I 12 1-2 17 1-4

30

que ele recorre agrave maacutexima de Platatildeo144 ldquoSe governantes e governados natildeo satildeo filoacutesofos natildeo

pode haver felicidade nas cidadesrdquo

P Keresztes145 estava certo ao dizer que a caracteriacutestica marcante da Apologia eacute a

extensiva defesa dos cristatildeos contra as acusaccedilotildees de ateiacutesmo traiccedilatildeo canibalismo e agraves accedilotildees

caluniosas de modo geral Justino sustenta essa defesa tentando mostrar a exclusiva verdade

da religiatildeo cristatilde O principal propoacutesito das Apologias seria garantir que os cristatildeos tivessem

liberdade para professarem a feacute embora isso significasse a condenaccedilatildeo dos demais deuses

Tambeacutem fazia parte do propoacutesito chamar os pagatildeos a abraccedilarem o cristianismo Seus

conselhos retoacutericos no contexto servem ao propoacutesito de sugerir ao imperador que mude o

corrente curso da justiccedila Isso significa clamar por um julgamento comum que natildeo permitisse

a condenaccedilatildeo pelo ldquonome cristatildeordquo

Esses escritos do pensador de Flaacutevia Neaacutepolis satildeo dotados de certa particularidade em

sua composiccedilatildeo Mas se nota que a princiacutepio o apologista procurou valer-se do seu direito de

dirigir uma ldquopeticcedilatildeordquo ou libellus ao imperador

Na I Apol 74 ele faz sua requisiccedilatildeo usando o verbo normalmente empregado para

uma peticcedilatildeo em grego avxioun Assumindo a postura de um pensador compromissado com a

justiccedila e a verdade ele pede para que ldquosejam examinadas as accedilotildees de todos os que [] satildeo

denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por

outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo

ter cometido nenhum crimerdquo146 (I Apol 74) Uma requisiccedilatildeo desse tipo deveria ser

encaminhada ao escritoacuterio administrativo para ser ou natildeo subscrita e receber uma resposta O

equivalente grego para libellus eacute biblidion para subscribere o equivalente eacute u`pografein e

para postar uma resposta usa-se proqeiai no lugar de proponere147 Esta terminologia pode

ser precisamente encontrada na II Apol 141

Kai u`maj ou=n avxioumen u`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaj148148148148 to dokoun proqeinaiproqeinaiproqeinaiproqeinai touti to biblidionbiblidionbiblidionbiblidion( o[pwj kai toij alloij ta hmetera gnwsqh| kai dunwntai thj yeudodoxiaj kai avgnoiaj ton kalwn avpallaghvai( oi para thn

144 Repuacuteblica V 473de 145 The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965 p 109 146 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 pp 23-24 [Oqen pantwn twn kataggellomenwn umin taj praxeij krinesqai avxioumen( i[na o` evlegcqeij w`j adikoj kolazhtai( avlla mh wvj Cristianoj evan de tij avnelegktoj fanhtai( avpoluhtai w`j Cristianoj ouvden avdikon) MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 142-144 147 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 25 148 Grifos nossos

31

e`autwn aivtina u`peuqunoi taij timwriaij eivj to gnwsqhnai toij avnqrwpoij tauta(149

As proporccedilotildees desses textos ultrapassam os padrotildees de um libellus Para explicar essa

relativa incompatibilidade Minns e Parvis150 referindo-se apenas a I Apologia sustentam que

Justino usou de uma estrateacutegia por meio da qual ele adota esse tipo de documento

administrativo romano inserindo um material catequeacutetico e explanatoacuterio cristatildeo convertendo-

o em um dispositivo disseminador da mensagem de feacute Ou ainda traduzindo as palavras de

W R Schoedel151 trata-se de uma peticcedilatildeo apologeticamente fundamentada e sem precedentes

na tradiccedilatildeo literaacuteria greco-romana As diferenccedilas na estrutura da II Apologia natildeo permitem

dizer que se trata de um documento de outro autor pois as caracteriacutesticas do texto atestam sua

compatibilidade com a primeira peccedila O que faz multiplicar as interrogaccedilotildees sobre o segundo

texto eacute que mesmo apresentando traccedilos de uma segunda ldquopeticcedilatildeordquo ela eacute evidentemente menor

e dispensa um exordio bem formulado como o do primeiro escrito Mas essa propriedade da II

Apologia se tornaraacute mais clara a seguir na anaacutelise dos destinataacuterios

14 Destinataacuterios

Existem algumas variaccedilotildees entre a forma como a I Apologia eacute endereccedila no MS A e na

Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio A tabela a seguir foi construiacuteda seguindo as informaccedilotildees

apresentadas por Minns e Parvis152

MS A Euseacutebio HE IV12

a Antoninus Pius Augustus Caesar a Antoninus Pius Augustus Caesar

e a Verissimus seu filho e a Verissimus seu filho

Filoacutesofo Filoacutesofo

e a Lucius e a Lucius

Filoacutesofo do filoacutesofo

de Ceacutesar filho por natureza Ceacutesar filho por natureza

e de Pius por adoccedilatildeo e de Pius por adoccedilatildeo

149 MUNIER Op cit pp 364 366 TrldquoPortanto noacutes vos suplicamos que subscrevendo como vos pareccedila deis publicidade a este livro a fim de que tambeacutem os outros conheccedilam a nossa religiatildeo e se vejam livres da vatilde opiniatildeo e da ignoracircncia em relaccedilatildeo ao bem Por sua proacutepria culpa eles se tornam responsaacuteveis pelo castigordquo 150 Op cit p 25 151 SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72 152 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35

32

Eacute incluiacuteda ainda no manuscrito a expressatildeo ldquoao santo senado e a todo o povo dos

romanosrdquo entre os destinataacuterios da Apologia Minns e Parvis153 consideram esse uacuteltimo

trecho uma antiga adiccedilatildeo editorial Eles apontam que a expressatildeo ldquosanto senadordquo foi

comumente encontrada em moedas de bronze cunhadas na Aacutesia Menor154 Outras inscriccedilotildees

mostram essa expressatildeo vinculada agrave famiacutelia imperial e ao povo romano Vespasiano ldquoe toda

sua casa o santo senado e o povo dos romanosrdquo155 Trajano ldquoe toda sua casa o santo senado e

o povo dos romanosrdquo156 Marco Aureacutelio e Luacutecio Veroldquoe toda [sua] casa o mais santo senado e

o povo dos romanosrdquo157 Septimus Severus Caracalla Geta Julia Domna ldquoe toda a sua casa o

santo senado o povo dos romanos e os santos exeacutercitosrdquo158 Eacute possiacutevel indicar muitas outras

inscriccedilotildees mas o impasse identificado por Minns e Parvis estaacute relacionado ao fato de o

ldquosenadordquo e o ldquopovordquo aparecem no endereccedilamento de uma ldquopeticcedilatildeordquo como eacute caracterizada a

Apologia de Justino Entra na hipoacutetese a importaccedilatildeo da expressatildeo que ocorre na I Apol 563

ldquoPor isso noacutes vos suplicamos que o sacro senado e o povo romano conheccedilam este nosso

escrito []rdquo Ou ainda que a primeira ocorrecircncia do termo ldquosacro senadordquo seja a da fala de

Lucius a Urbicus na II Apol 216

Munier159 no entanto tem outra proposta Para ele eacute mais provaacutevel que tal expressatildeo

tenha assumido seu lugar em funccedilatildeo da necessaacuteria autorizaccedilatildeo do senado e do povo para o

estabelecimento de um novo culto puacuteblico Seu argumento eacute baseado no escrito de Ciacutecero

(Legibus II19-20) e parece mais seguro

Euseacutebio escreve que Justino tambeacutem endereccedilou uma Apologia ao imperador

ldquoAntonino Verordquo160 ou seja a Marco Aureacutelio A menccedilatildeo ao ldquoimperador Piordquo ao ldquofilho de

Ceacutesar amante do saberrdquo e ao ldquosacro senadordquo na II Apol 21ss pode significar para estudiosos

como M Marcovich161 que a II Apologia foi dirigida aos mesmos nomes que a primeira Essa

periacutecope do texto apresenta a narraccedilatildeo de um episoacutedio que se sucedeu nos dias de Antonino

153 Ibid 154 TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984 p 96 apud MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35 155 tan i`eran sunklhton kai ton damon ton R`wmaiwn Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386 Minns e Paris (op cit p35) citam o mesmo texto com algumas variaccedilotildees 156 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn (Cyrenis IGRR I-II 1037) Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355 157 i`erwtathj boulhj te kai dhmou tou Rwmaiwn (Serdicae IGRR I-II 1452) Ibid p 182 158 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn kai strateumatwn (Pizi IGRR I-II 766) Ibid p 251 159 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 278 160 Hist Ecles IV183 161 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 7

33

Pio mas eacute provaacutevel que a alusatildeo agrave piedade e agrave filosofia novamente seja proposital para

constranger seus destinataacuterios Euseacutebio se confunde com o nome de Antonino assim como o

faz quanto ao rescrito agrave comunidade da Aacutesia162

Considerando que Justino escreveu na I Apologia 462-3 que ldquoCristo nasceu cento e

cinquenta anos antes de nosso tempordquo A Harnack163 conclui que esse primeiro escrito foi

composto entre 147 e 154 dC Tambeacutem na I Apol 296 L Munatius Felix eacute mencionado

como prefeito do Egito Sabe-se que ele exerceu seu mandato de 150 a 154 dC164 A II Apol

11 faz referecircncia a Q Lollius Urbicus como prefeito de Roma cargo que ocupou de 146 a

160 dC165 Segundo a anaacutelise de Munier o Chronicon de Euseacutebio indica que o adversaacuterio de

Justino Crescente comeccedilou a denunciaacute-lo em Roma no segundo ano da 233ordf Olimpiacuteada que

corresponde ao ano de 153 ou 154 Desse modo seraacute acatada a uma data por volta do ano 153

ou 154 para a I Apologia e alguns anos depois para o segundo escrito ateacute no maacuteximo 161 dC

A I Apologia apresenta uma defesa geral dos cristatildeos O segundo escrito parte da

reprovaccedilatildeo das accedilotildees anticristatildes tendo em vista principalmente o que havia acontecido em

Roma sob Urbico e as investidas do ciacutenico Crescente Entranhado nessa ldquopeticcedilatildeo

apologeticamente fundamentadardquo166 estaacute o argumento de que os cristatildeos ao contraacuterio do que

era disseminado em algumas denuacutencias e caluacutenias natildeo seriam de nenhum modo uma ameaccedila

agrave ordem A seguir seratildeo examinadas as accedilotildees anticristatildes que compunham o contexto da

primeira metade do seacuteculo II dC

162 Hist Ecles IV131ss A confusatildeo com os nomes dos imperadores no rescrito da Aacutesia seraacute examinada mais adiante Pode-se admitir tambeacutem que essa confusatildeo tenha sido acarretada pela organizaccedilatildeo do texto em um periacuteodo posterior a Euseacutebio 163 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 227 164 Prosopografia Imperii Romani V 2 Berlim Walter de Gruyter 1983 (M 723) 165 PIR v1 1970 L 327 166 Usando novamente a expressatildeo de SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72

34

CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS

Justino se opotildee agraves investidas contra os cristatildeos167 por natildeo considerar vaacutelidas as

justificativas apresentadas para as condenaccedilotildees dos fieacuteis A confissatildeo de ldquocristianismordquo diante

de uma autoridade acaba sendo ironizada como uma condenaccedilatildeo do nome ldquocristatildeordquo Na II

Apologia (11) ele afirma que accedilotildees desse tipo estatildeo ocorrendo por todo o Impeacuterio O que natildeo

deve significar que existia uma busca exaustiva dos romanos pelos membros do novo

movimento No entanto eacute provaacutevel que esses atritos pudessem ser localizados em vaacuterias

regiotildees Um caso especiacutefico da execuccedilatildeo em Roma sob Urbico motivou-o a se manifestar

novamente168 As intimaccedilotildees por razotildees religiosas aos tribunais jaacute haviam movido outros

apologistas na primeira metade do II seacuteculo Euseacutebio169 faz saber que antes de Justino

Quadrato e Aristides jaacute clamavam em favor dos cristatildeos ao Imperador Adriano

Natildeo haacute nenhum indiacutecio de que o cerne da crenccedila cristatilde apresentasse alguma forma de

conspiraccedilatildeo contra os romanos Mas eacute preciso estabelecer uma visatildeo geral das accedilotildees

anticristatildes que se desenvolveram antes de Justino e em seu tempo para que se possa assimilar

o sentido de sua reflexatildeo

O II seacuteculo se inicia com um quadro indefinido a respeito dos cristatildeos A atividade

cristatilde de anunciaccedilatildeo da sua mensagem de feacute e conversatildeo dos pagatildeos alcanccedilava diversas

regiotildees do Impeacuterio Conversotildees e alguns atritos sempre ocorriam

A conversatildeo ao cristianismo implicava em uma mudanccedila que aleacutem de religiosa

poderia ser existencial social e ateacute poliacutetica Eacute provaacutevel que essa postura de resistecircncia agrave

associaccedilatildeo com a ldquoidolatriardquo identificada na vida ciacutevica fosse interpretada como ldquoineacuterciardquo ou

falta de vigor para se envolverem nos assuntos puacuteblicos jaacute despertasse preocupaccedilotildees na virada

do I seacuteculo Principalmente quando membros das classes dirigentes comeccedilam a aderir agrave feacute do

oriente A linha entre a toleracircncia e a intoleracircncia eacute indefinida Eacute preciso analisar os contornos

desde Trajano (governou de 98-117 dC) ateacute os primeiros anos de Marco Aureacutelio (governou

de 161-180 dC)

167 ldquopedimos sejam examinadas as acusaccedilotildees contra os cristatildeos Se for demonstrado que satildeo reais castiguem-nos como eacute conveniente que sejam castigados os reacuteus convictosrdquo I Apol 31 168 ldquo[] o que aconteceu ultimamente em vossa cidade sob Urbico e o que os governadores estatildeo fazendo sem razatildeo em todo o impeacuteriordquo II Apol 11 169 Hist Ecles IV1-3

35

21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano

Natildeo haacute indiacutecios de uma perseguiccedilatildeo generalizada aos cristatildeos no Impeacuterio Romano no

iniacutecio do seacuteculo II mas a expansatildeo cristatilde em curso proporcionava um nuacutemero significativo de

processos nos tribunais locais Se por um lado alguns estavam certos de que os membros

dessa superstitio illicita deveriam ser condenados por outro lado existiam algumas lacunas

sobre esse tipo de julgamento

A expansatildeo proporcionava atritos corriqueiros de resistecircncia agraves novas crenccedilas O

nuacutemero de cristatildeos era crescente170 Ateacute o governo de Nero171 os adeptos agrave nova religiatildeo que

se desenvolvia no seio do judaiacutesmo natildeo enfrentaram problemas significativos em relaccedilatildeo aos

romanos Taacutecito faz saber que esses que a seu ver jaacute eram impopulares pelas suas flagitia

foram incriminados por Nero pelo incecircndio de Roma em 64 dC172 Se Nero lanccedilou a culpa

do incecircndio de Roma sobre os cristatildeos fica aberta a questatildeo sobre a dimensatildeo dessa

perseguiccedilatildeo A accedilatildeo de Nero foi suficiente para que a tradiccedilatildeo cristatilde o transformasse no

ldquoprimeiro imperador perseguidorrdquo logo seguido por Domiciano173174 do qual natildeo se conhece

uma perseguiccedilatildeo direta contra os cristatildeos mas uma repressatildeo a asebeia e ao proselitismo

judaico175 que deve ter ocasionado transtornos inclusive agrave Igreja Isso foi suficiente para se

sustentar que a referecircncia de Tertuliano176 ao institutum neronianum fazia de Nero o primeiro

a lanccedilar as bases juriacutedicas para a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos177 Todavia a utilizaccedilatildeo dessa

referecircncia de Tertuliano para a identificaccedilatildeo das bases juriacutedicas da perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute

problemaacutetica Marta Sordi178 recorrendo ao mesmo Tertuliano sustenta a ideia de que houve

170 GOODMANN M Mission and conversion poselytizing in the Religious History of the Roman Empire New York Clarendon PressOxford 1994 p 91-108 Cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 171 Governou de 54 a 68 dC 172 Anais XV44 Flagitia poderia referir-se a algo vergonhoso ou inapropriado algo descabido cf LIDDEL H G SCOTT R (Ed) Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 173 Governou de 81 a 96 dC 174 Euseacutebio His Ecles III26 175 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3 176 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4 177 KERESZTES Paul Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 Segundo C G Roman as bases dessa teoria se encontram na obra de CALLEWAERD C La methode dans la recherrch de la base juridique des premiers persecutions Reviste dhistoire Ecclesiastique 12 1911 pp 5-16 e segue acompanhada por Cf DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106 MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 1953 pp 3-32 178 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968

36

um senatus consultum na eacutepoca de Tibeacuterio179 que teria desaprovado o reconhecimento de

Cristo como deus do panteatildeo a contragosto do Imperador

A incerteza sobre como proceder em julgamento de cristatildeos fez com que Pliacutenio o

Jovem escrevesse ao imperador Trajano no iniacutecio do II seacuteculo A resposta do imperador

confirma a accedilatildeo de Pliacutenio em condenar os cristatildeos confessos proiacutebe agrave perseguiccedilatildeo a esses

religiosos rejeita as denuacutencias anocircnimas e faz aumenta as interrogaccedilotildees sobre as bases

juriacutedicas processos desse tipo Uma hipoacutetese comum tal como sustentam Marcel Simon e

Andreacute Benoicirct180 eacute a de que neste periacuteodo natildeo existia nenhuma lei sobre os cristatildeos e que os

magistrados agiam mediante a ius coertionis181 Essa teoria que havia sido sustentada

originalmente por Mommsen arrebanhou alguns seguidores mas como aponta Giorgio

Jossa182 em alguns casos como na questatildeo dirigida por Pliacutenio a Trajano o uso da coercitio eacute

limitado pelas interrogaccedilotildees sobre como enquadrar judicialmente os processos Para ser mais

especiacutefico Pliacutenio deseja saber se os cristatildeos deveriam ser condenados simplesmente por

confessarem esse nomem ou por algum crime que esteja subentendido Com base nos

trabalhos de E Le Blant183 no seacuteculo XIX outra teoria sobre esse tipo de julgamento propotildee

que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais existentes dentro do

direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea maiestatis Segundo C

G Roman184 essa teoria teve muitos seguidores nos seacuteculos XIX e XX sendo favoraacutevel

agravequeles que como L Homo e Ch Saumagne185 consideram que o institutum neronianum186

natildeo pode ser compreendido como edito ou lei especial emanada do princeps

As maiores discrepacircncias quanto agraves razotildees juriacutedicas e populares para condenaccedilatildeo dos

cristatildeos eacute a proacutepria relaccedilatildeo desse grupo religioso com o Impeacuterio neste iniacutecio do II seacuteculo

aparecem em funccedilatildeo das supostas posturas diferentes assumidas por Trajano e Adriano diante

dessa superstitio As explicaccedilotildees atuais trilham caminhos que vatildeo desde diferentes niacuteveis de

toleracircncia atribuiacutedos a esses dois imperadores como sustenta Pedro Barcelograve187 ateacute a hipoacutetese

179 Governou de 14 a 37 dC 180 Giudaismo e cristianismo una storia antica RomaBari Gius Laterza Figli Spa 2005 p 97 181 MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-96 182 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 107-144 183 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 184 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 185 HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229 186 Tertuliano Ad nationes 17 187 Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim

37

de que Adriano tenha reconhecido o cristianismo como uma religio licita conforme sustentou

primeiramente Mommsen188

Trajano assumiu o poder no ano de 98 dC A estrateacutegia de Nerva189 em adotaacute-lo para

ser seu sucessor aproximou o senado do futuro priacutencipe190 originaacuterio da Itaacutelica cidade da

proviacutencia senatorial da Baetica no sul da Hispania Eacute provaacutevel que tenha recebido formaccedilatildeo

poliacutetica e puacuteblica razoaacutevel mas sua imagem de homem militar e popular entre as legiotildees eacute a

que prevaleceu para a posteridade Segundo Julien Bennett191 Trajano era de uma famiacutelia

provincial de status elevado Mas essa ascensatildeo natildeo era para qualquer um Pliacutenio192 destaca-o

como priacutencipe escolhido pelas divindades ndash o epiacuteteto optimum era especiacutefico de Juacutepiter ndash

respeitador de todas as tradiccedilotildees ancestrais e das instituiccedilotildees poliacuteticas entre elas o senado

Uma idealizaccedilatildeo que certamente contrapunha-se agrave realidade efetiva pois Trajano apoiado

pelas legiotildees e representado como escolhido de Juacutepiter era detentor de um poder autocraacutetico

tatildeo grande quanto ou maior que o dos mais proacuteximos conselheiros os amigos do priacutencipe

Pode-se considerar que as accedilotildees poliacuteticas de Trajano tinham um caraacuteter apaziguador nos

territoacuterios romanos Ampliou-se a poliacutetica urbana e a extensatildeo das vias romanas nas

proviacutencias favorecendo significativamente a atividade comercial193

Nesse periacuteodo a filosofia estoica encontrou grande honra Por outro lado tambeacutem

houve uma significativa propagaccedilatildeo dos cultos orientais e da magia Prodiacutegios e milagres

eram ansiosamente buscados desencadeando certo fervor religioso entre o povo A piedade

religiosa ancorada agrave velha tradiccedilatildeo grega e romana nutrida por fermento novo proveniente

dos misteacuterios egiacutepcios e dos oraacuteculos caldeus permeava ainda os escritos dos intelectuais O

culto ao imperador natildeo recebeu tanta ecircnfase mas a sacralidade do Impeacuterio eacute talvez um fato

adquirido por todos e a aceitaccedilatildeo praacutetica da forma de culto se juntou com a formaccedilatildeo estoica

da classe dominante194

No ano de 96 Nerva estipulou a requisiccedilatildeo dos relegados e o veto contra as acusaccedilotildees

de ldquoateiacutesmordquo ou mais precisamente de avsebeia e de ldquocostumes judaicosrdquo195 Se os cristatildeos

haviam sido incomodados por decretos que indiretamente insidiam sobre eles alguma

188 Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-399 189 Governou de 96 a 98 dC 190 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 38 191 Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005 pIX 192 Epistolas 1012 Panegiricus 27 884 passim 193 FRIGHETTO Renan Op cit 2012 p 38 194 Ibid p 38 195 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3

38

opressatildeo as mudanccedilas de Nerva teriam representado um aliacutevio196 Mas sob Trajano percebe-

se que os casos esporaacutedicos de condenaccedilotildees aos fieacuteis ainda satildeo identificados Natildeo se ouviraacute

mais falar sobre acusaccedilatildeo de costume judaico no II seacuteculo mas os cristatildeos continuaratildeo a

enfrentar repressotildees em alguns pontos do territoacuterio romano o que levanta uma obscura

questatildeo sobre por qual crime seriam culpados os cristatildeos e quais seriam os fundamentos

juriacutedicos de suas condenaccedilotildees

Como destacou Giorgio Jossa197 a apologeacutetica cristatilde desse periacuteodo distingue dois

tipos de criacuteticos Uma opiniatildeo puacuteblica grosseira e mal informada como as acusaccedilotildees de

cometerem delitos particularmente vergonhosos como incesto e antropofagia movida contra

os cristatildeos por meio de falatoacuterio e caluacutenias e a acusaccedilatildeo de serem a causa de todos os males

no Impeacuterio devido agrave ameaccedila que representavam agrave pax deorum Eacute difiacutecil dizer qual era

realmente a extensatildeo da hostilidade dos pagatildeos das diversas regiotildees mas essa hostilidade

existia e constituiacutea um terreno feacutertil para o desenvolvimento tanto das acusaccedilotildees poliacuteticas da

opiniatildeo culta quanto juriacutedicas por parte dos funcionaacuterios imperiais

O cristianismo natildeo se dirigiu apenas agraves classes humildes Rapidamente sua mensagem

chegou tambeacutem agraves classes elevadas A oposiccedilatildeo da classe culta era principalmente de caraacuteter

filosoacutefico e nesse periacuteodo foram sustentadas especialmente por Epiacuteteto Luciano e Galeno a

partir dos valores mais tradicionais da cultura helecircnica Por outro lado sustentando acusaccedilotildees

de caraacuteter social aparecem as consideraccedilotildees de Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio tendo em vista as

preocupaccedilotildees poliacuteticas do governo romano Taacutecito198 escreveu que os cristatildeos eram mal vistos

pela suas flagitia199 e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero humano] A

crenccedila desse grupo era considerada uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]

Suetocircnio200 os considerava homens de uma superstitionis novae ac maleficae [superstitio201

nova e maleacutefica] Frontatildeo202 em atenccedilatildeo agraves antigas caluacutenias de flagitia teria acusado os

196 Eusebio Hist Ecles III231 197 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 108 198 Anais XV44 199 O termo latino pode significar ldquocrime infacircmia ato vergonhoso etcrdquo LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) 200 genus hominum superstitionis novae ac maleficae [raccedila de homens de uma superstitio nova e maleacutefica] De Vita Caesarum Vita Neronis 162 201 A palavra latina superstitio significa basicamente ldquotemor distinto aos deusesrdquo ldquopavor pelo sobrenatualrdquo com possiacuteveis variaccedilotildees em contextos diferentes Sua traduccedilatildeo para ldquosupersticcedilatildeordquo pode ocasionar uma confusatildeo indesejada de conceitos LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) cf JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 jun1979 pp 131-159 MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007 SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002 202 apud Minucio Felix Octavius 96-7

39

cristatildeos de orgias incestuosas Pliacutenio203 vecirc nas novas crenccedilas uma superstitionem pravam et

immodicam A imagem dos cristatildeos diante desses homens educados era negativa Mas as

opiniotildees satildeo muito divergentes sobre as bases juriacutedicas da condenaccedilatildeo dos membros desse

novo grupo religioso

O governador do Ponto-Bitiacutenia diz nunca ter participado de julgamentos de cristatildeos e

por isso natildeo sabia quais eram as medidas e os procedimentos para castigar e inquirir204 Ele

levanta as seguintes questotildees a Trajano se as diferentes idades e condiccedilotildees fiacutesicas dos

acusados deveriam ser levadas em consideraccedilatildeo se os que se retratavam mereciam ser

perdoados e se deveriam ser punidos por serem cristatildeos sem qualquer crime ou

exclusivamente pelos delitos encobertos por este nome205 O rescrito de Trajano a Pliacutenio

tendo em vista a inscriccedilatildeo de Como (CIL V 5262206) pode ter sido escrito em 111 e 112 ou

112 e 113 anos que compreenderiam o governo de Pliacutenio no Ponto-Bitiacutenia

Sua interrogaccedilatildeo sobre se o ldquonomerdquo deveria ser punido mesmo sem significar uma

ofensa ou a ofensa subentendida pelo nome207 incide sobre que tipo de lei existia naquela

eacutepoca Segundo E Le Blant208 as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis

penais existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de

laesea maiestatis Todavia conforme propocircs C G Roman209 em seu estudo eacute provaacutevel que

os cristatildeos estivessem sendo denunciados naquela regiatildeo devido ao fato de se reunirem

semanalmente Isso contrariava as estipulaccedilotildees do edito promulgado pelo governador segundo

as instruccedilotildees de Trajano que proibia as assembleias ou hetaerias210 entre o povo para evitar

conspiraccedilotildees211 Assim pelo menos neste ponto eacute preciso concordar com Pedro Barcelograve no

203 [superstitio distorcida e desregrada] Ep X968 204 Cognitionibus de Christianis interfui nunquam ideo nescio quid et quatenus aut puniri soleat aut quaeri [ Nunca tomei parte em processos contra cristatildeos por esta razatildeo eu natildeo sei o que costumeiramente se deve punir e quais satildeo as extensotildees ou investigaccedilotildees] (Ep X97) 205 Ep X96 206 Corpus Inscripitionum Latinarum V Berolini Reimer 1959 207 nomen ipsu etiamsi flagitiis careat an flagita cohaerentia nomini puniantur [O proacuteprio nome mesmo sem nenhuma ofensa ou os crimes associados a esse nome devem ser punidos] (Ep X97) 208 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 209 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 passim 210 Assembleias civis comuns entre os gregos 211 Ep X97

40

reconhecimento de que se estaacute diante de um problema local212 Os cristatildeos estavam agrave mercecirc

de denuacutencias de desobediecircncia ao edito do governador mas tambeacutem por alguma

irregularidade identificada no tocante agrave nova religiatildeo

Pliacutenio consultou Trajano pelo menos duas vezes sobre como lidar com as heterias213

Ele havia questionado sobre a possibilidade de criar um coleacutegio de fabri composto por 150

homens na Nicomeacutedia214 Mas o imperador respondeu ldquoNatildeo esqueccedilamos que tua proviacutencia e

sobretudo esta vila eacute vitima de sociedades deste gecircnero Qualquer que seja seu nome

qualquer que seja a finalidade de que dermos a estes homens reunidos daraacute lugar rapidamente

a heteriasrdquo215 Natildeo seria razoaacutevel abrir uma exceccedilatildeo aos cristatildeos Mediante inuacutemeras

denuacutencias Pliacutenio resolveu investigar sobre o tipo de assembleia que constituiacuteam as reuniotildees

cuacutelticas cristatildes Os processos de acusaccedilatildeo cresceram e proporcionaram vaacuterios incidentes216

Denuacutencias anocircnimas por meio de libelus contendo o nome de pessoas que negavam ser cristatildes

estavam entre os inconvenientes Os cristatildeos alegavam que sua uacutenica culpa ou erro era se

reunirem antes de nascer o sol em um dia especiacutefico da semana para cantar hinos a Cristo E

tambeacutem de se ajuntarem para uma refeiccedilatildeo comum vista pelo governador como innoxium

[inocente] Praacutetica que havia sido abandonada devido ao edito de Pliacutenio O governador

procurou extrair informaccedilotildees sobre os cristatildeos mas ele escreve que natildeo encontrou nada aleacutem

de uma superstitionem pravam et immodicam Visto que o nuacutemero de acusados estava

provocando ldquoincidentesrdquo Pliacutenio decidiu consultar o imperador sobre o assunto Ele nota que

pessoas de todas as idades de todos os graus de ambos os sexos e de muitas cidades satildeo

citadas em juiacutezo A superstitio dos cristatildeos jaacute se estendia pelos campos e vilas mas ele eacute

otimista e acredita ser possiacutevel sanar esse problema217 Pliacutenio218 escreve que

muitos recomeccedilam a frequentar os templos que haviam ficado quase desertos tornando a se celebrarem os sacrifiacutecios solenes abandonados e a se venderem as viacutetimas das quais ateacute agora eram raros os compradores De modo que eacute faacutecil argumentar que muitas pessoas podem se emendar se existir lugar para arrependimento

Desse modo haacute uma evidente intenccedilatildeo de realocar os cristatildeos ao povo em geral que

participa da religiatildeo oficial Deve ser esta a razatildeo pela qual o governador concede o perdatildeo

212 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 p 69 213 Assembleias comuns aos gregos 214 Ep X33 215 Ep X341 216 mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species incierunt [Assim como seu suceder crescem os processos de acusaccedilatildeo ocasionando vaacuterios incidentes] (Ep X97) 217 quae videtur sisti et corrigi posse (Ep X97) 218 Ep X97

41

agravequeles que abandonam o cristianismo Mas baseado em relatos anteriores219 e em textos

posteriores sobre esse tipo de julgamento220 pode-se supor que os cristatildeos intimados

argumentavam e questionavam sobre a razatildeo da culpa que os condenava

Roman221 em certa medida seguindo o raciociacutenio de Marta Sordi222 sustenta que a

disposiccedilatildeo de Trajano estaacute voltada para a soluccedilatildeo de problemas sociais na regiatildeo do Ponto-

Bitiacutenia tendo em vista a sua recomendaccedilatildeo geral contra as heterias Proibindo as reuniotildees

puacuteblicas de qualquer caraacuteter os cristatildeos estariam indiretamente incluiacutedos Mas Roman

atribuindo um acentuado grau de toleracircncia a Trajano considera que o imperador estaacute

liberando os cristatildeos dessa condenaccedilatildeo recomendando que os mesmos natildeo sejam buscados

No entanto natildeo haacute qualquer razatildeo para supervalorizar a ldquotoleracircnciardquo desse imperador aos

cristatildeos

Se fossem acusados de violaccedilatildeo do edito das heterias defender-se-iam dizendo que

natildeo se reuniam mais Caso os problemas envolvendo cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia se ressumissem

a essa questatildeo o magistrado deveria soltaacute-los imediatamente Mas natildeo eacute isso que eacute descrito

por Pliacutenio Ele relata que insistia para que os acusados negassem ser ldquocristatildeosrdquo ameaccedilando-os

de morte Certamente um cristatildeo questionaria esse tipo de julgamento perguntando sobre qual

crime teria sido por eles cometido O governador sabia que esses religiosos eram acusados em

outros lugares e ao caracterizar as crenccedilas cristatildes como pravam et immodicam uma percepccedilatildeo

muito negativa se manifesta No entanto natildeo haacute referecircncia a nenhuma lei contra os cristatildeos

Pliacutenio decidiu punir os que confessavam essa superstitio procurando convencecirc-los a

mudarem de opiniatildeo quanto agrave feacute a que se apegavam ameaccedilando-os por ateacute trecircs vezes Seu

julgamento foi que independente da natureza dos credos dos cristatildeos a inflexibilidade e

obstinaccedilatildeo que os faziam natildeo negar o nomen christianum tornavam-lhes dignos de puniccedilatildeo223

Giorgio Jossa224 destacou ainda que nenhum dos crimes a eles imputados eram demonstados

ou pareciam dignos de serem cridos contudo os cristatildeos satildeo vistos como seguidores de

crenccedilas despresiacuteveis Embora natildeo exista nenhuma referecircncia a uma lei contra os fieacuteis natildeo haacute

nenhuma razatildeo para se pensar que Pliacutenio estivesse receoso de punir os cristatildeos exceto pelo

fato de que o nuacutemero de denuacutencias anocircnimas poderia provocar desordem Conforme apontou

219 Atos dos Apoacutestolospassim 220 Euseacutebio Hist Ecles passim Atas dos maacutertires passim 221 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-242 222 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 87-102 223 hellip qualecumque esset quod faterentur pervicaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri (Ep X97) 224 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 116

42

J Danieacutelou225 natildeo era uma lei especiacutefica que ocasionava a condenaccedilatildeo dos fieacuteis mas a

ausecircncia de uma lei que regulamentasse a nova religiatildeo como a que autorizava a religiatildeo

judaica

A resposta de Trajano natildeo demonstrou muita preocupaccedilatildeo com os cristatildeos O

imperador aprovou as medidas empregadas contra eles e para evitar o problema do excesso

de denuacutencias sem fundamento recomendou que natildeo fossem admitidas delaccedilotildees anocircnimas O

imperador tambeacutem estabeleceu que os fieacuteis natildeo deveriam ser perseguidos Ele escreveu

Agiste muito bem meu caro Pliacutenio ao instituir os processos contra esses que te foram denunciados como cristatildeos Natildeo se deve estabelecer regra dura e inflexiacutevel de aplicaccedilatildeo universal Natildeo os procure mas se surgirem outras denuacutencias que procedam puna-os Poreacutem com esta ressalva de que se algueacutem nega ser cristatildeo e mediante a adoraccedilatildeo dos deuses demonstra natildeo o ser atualmente deve ser perdoado em recompensa de sua emenda por muito que o acusem suspeitas relativas ao passado Natildeo merecem atenccedilatildeo panfletos anocircnimos em causa alguma aleacutem do dever de evitarem-se antecedentes iniacutequos panfletos anocircnimos natildeo condizem absolutamente com os nossos tempos226

O caraacuteter lacocircnico da resposta de Trajano poderia se justificar pelo menos de trecircs

formas Em primeiro lugar a autenticidade do rescrito de Trajano e a carta de Pliacutenio a esse

imperador foram questionadas por alguns estudiosos desde o seacuteculo XVIII Segundo

Cristobal G Roman a anaacutelise de J S Semler227 em 1788 contribuiu para desencadear uma

corrente de pensamento que foi bem representada ateacute longos anos do seacuteculo XX228 As

principais objeccedilotildees natildeo estariam diretamente relacionadas agrave inadequaccedilatildeo da descriccedilatildeo de

Pliacutenio sobre as comunidades cristatildes e a situaccedilatildeo real na qual se encontrariam As

discordacircncias incidiriam sobre o tipo de canto praticado nas reuniotildees cristatildes e sobre o nuacutemero

de cristatildeos existentes no Ponto-Bitiacutenia segundo o relato de Pliacutenio229 Os aspectos estruturais

satildeo analisados na criacutetica de L Hermann230 que aponta as repeticcedilotildees e as reiteradas alusotildees agrave

proacutepria ignoracircncia de Pliacutenio como elementos que induzem a pensar em interpolaccedilotildees ou 225 Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975 pp 13-15 226 Pliacutenio Ep X981ss 227 Novae observationes quibus studiosius illustrantur potiora capita historiae et religionis christianae usque ad Constantinum Halle Impensis Bibliopolii Hemmerdiani 1781 228 Marcel Durry (Pline-le-juene Paris Soc DrsquoEacuted Le belle Lettre 1972 p 7071) oferece uma lista dos pesquisadores que aponta a inautenticidade da correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano Entre as obras aparecem AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875 p 186 HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844 pp 426 HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885 LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934 pp 28-34 e GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946 p 585 229 VIDMAN L Etude sur la correspondance de Pline Le Jeune avec Trajan Roma LErma di Bretschneider 1972 pp 87 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 227 230 HERMANN L Les interpretations de la lettre de Pline sur les chretiens Latomus XIII 1954 p 343 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228

43

falsificaccedilotildees Dentro dessa mesma loacutegica estaria a resposta lacocircnica de Trajano agraves trecircs

questotildees que aparecem na carta de Pliacutenio a) se deveriam ser feitas distinccedilotildees tendo em vistas

as idades dos cristatildeos b) se deveria lhes permitir o arrependimento c) e se o roacutetulo de cristatildeo

deveria ser motivo de castigo por si mesmo ou apenas os delitos que aquele nome

implicava231 A resposta de Trajano contempla diretamente apenas a segunda questatildeo natildeo

dando provas de que a primeira e a terceira estivessem na carta por ele recebida Desse modo

Hermann deduz que as questotildees natildeo contempladas seriam interpolaccedilotildees

Entretanto a despreocupaccedilatildeo de Trajano em estabelecer uma norma riacutegida contra os

cristatildeos pode justificar o caraacuteter superficial de sua resposta Ele escreve que neque enim in

universum aliquid quod quase certam formam habeat constitui potest232 [natildeo se pode

constituir uma norma universal ou que seja invariaacutevel] Com isso nota-se tambeacutem a

liberdade do magistrado em avaliar os suspeitos e procurar enquadraacute-los sob uma lei

A tese mommseniana da coercitio eacute rebatida parcialmente por Jossa233 tendo em vista

que na maioria dos casos de condenaccedilatildeo dos cristatildeos nesse periacuteodo a atitude das autoridades

natildeo se reduz a uma simples atitude de poliacutecia para manter a ordem puacuteblica em uma proviacutencia

atingida pela desordem mas em um procedimento judiciaacuterio que tinha iniacutecio com uma

denuacutencia privada comporta uma acusaccedilatildeo precisa e se conclue com a condenaccedilatildeo formal Um

procedimento judiciaacuterio que corresponde perfeitamente a cognitio extra ordinem234 um

processo criminal de natureza inquisitorial afirmado durante o principado para crimes e que

tinha formas diversas daqueles previstos na ordo iudiciorum que nas proviacutencias eram tidos

pelos governadores delegados pelo princeps No entanto diante da ausecircncia de uma

legislaccedilatildeo clara sobre o que fazer com os cristatildeos Pliacutenio recorre a ius coertionis para

desestimular os adeptos dessa pravam et immodicam que desrespeitam o magistrado para

sustentarem seu credo Eacute preciso considerar com certo cuidado a teoria derivada da obra de E

Le Blant235 de que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais

existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea

maiestatis Pliacutenio primeiramente julgou os cristatildeos por meio da lei local que proibia as

assembleias entre o povo poreacutem diante da correccedilatildeo por parte dos cristatildeos apontada pelo

231 Pliacutenio Epistolas X962-3 232 Ep X98 233 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 122-123 234 Tido de processo que substitui o processo padratildeo Eacute provaacutevel que soacute tenha se oficializado com forma instituiacuteda de processo no seacuteculo IV O julgamento dos cristatildeos no seacuteculo II seria um processo semelhante 235 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229

44

proacuteprio governador em sua carta ele natildeo sabia exatamente como punir os que se negavam a

desprezar agravequela superstitio Para Jossa236 estaacute evidente que a condenaccedilatildeo se efetiva diante da

profissatildeo da feacute cristatilde natildeo aos delitos a esse nome associados

O cristianismo natildeo eacute condenado como superstitio externa Uma religiatildeo estrangeira

poderia ser socialmente suspeita mas isso natildeo faz com que seja judicialmente perseguida E

natildeo eacute o seu caraacuteter baacuterbaro que lhe rende ilicidade Superstio externa e barbara o judaiacutesmo

era de fato religio licita Os romanos consideravam superstitio toda forma religiosa e toda

praacutetica cultural que natildeo correspondia agravequela transmitida pelos seus antepassados e que natildeo

eram munidas de puacuteblico reconhecimento Todas as praacuteticas religiosas de caraacuteter privado

individuais ou enraizadas em certos grupos sociais como magos ou adivinhos eram dessa

forma rotuladas Religiotildees e cultos puacuteblicos estrangeiros ainda que constituiacutessem patrimocircnio

de um povo e fossem transmitidos desde os tempos mais antigos poderiam ser tachados de

superstitio237 Segundo Jossa238 exprime-se desse modo a diferenccedila instintiva dos ciacuterculos

romanos abastados de uma consciecircncia nacional diante das religiotildees estrangeiras para os

quais os cultos natildeo romanos eram ldquonatildeo religiotildeesrdquo ou seja apenas superstitiones Externa

superstitio vem a ser toda forma ou manifestaccedilatildeo religiosa que natildeo pertenccedila originalmente agrave

tradiccedilatildeo romana ou pelo menos ao puacuteblico reconhecimento e agrave apreciaccedilatildeo dos ritos e crenccedilas

religiosas da parte dos romanos

A partir de Cicero superstitio passa a indicar tambeacutem qualquer forma excesiva

fanaacutetica de religiosidade que se contrapunha agrave moderaccedilatildeo da religio aquela manifestaccedilatildeo

religiosa tiacutepica de uma alma deacutebil (imbecillis) ou velha (anilis) que derivam em particular de

uma anguacutestia inuacutetil e absurda dos deuses239 A superstitio natildeo eacute apenas diversa mas se opotildee

sendo uma corrupccedilatildeo da religio (De natura Deorum II72)

Diante da convicccedilatildeo dos romanos de serem muito religiosos entre todos os homens de

serem inclusive religiosamente superiores aos demais fica impliacutecito que toda e qualquer

religiatildeo estrangeira eacute excessiva ou fanaacutetica que todas as religiotildees estrangeiras satildeo tambeacutem

superstitio e assim toda externa superstitio eacute tambeacutem barbara superstitio no sentido

embrionaacuterio do termo pela falta de racionalidade e moderaccedilatildeo que sempre deixam a

desejar240

236 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 123 237 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 131-159 238 Op Cit p 115 239 Ciacutecero De natura Deorum I117 Cf SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 240 JANSEN L F Op cit pp 145

45

Como jaacute foi apontado anteriormente aleacutem do proacuteprio Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio

tambeacutem adjetivaram negativamente a superstitio cristatilde Taacutecito escreveu que os cristatildeos eram

mal vistos pelas suas flagitia e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero

humano] Flagitia por sinal que Pliacutenio natildeo detectou A crenccedila desse grupo eacute considerada

uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]241 Analisando as consideraccedilotildees de Taacutecito

nota-se que a provaacutevel ofensa que os cristatildeos causavam aos deuses combatendo-os com a

propagaccedilatildeo da sua mensagem evangeacutelica e com abstenccedilatildeo de participaccedilatildeo nas celebraccedilotildees

puacuteblicas responsabilizava-lhes pelo rompimento da pax deorum que havia fragilizado a

capital do Impeacuterio tornando-a vulneraacutevel a tamanha cataacutestrofe da eacutepoca de Nero Segundo L

F Jansen242 o odio humani generis visto por Taacutecito sobre os cristatildeos ndash como antes sobre os

judeus ndash era um elemento que condenava essa superstitionis novae ac maleficae como

escreveu Suetocircnio243 tornando-a exitiabilis No entanto apologistas como Justino244

sustentaram que as flagitia atribuiacutedas aos cristatildeos eram fruto de ldquocaluacuteniasrdquo o que natildeo

acarretaria isenccedilatildeo de serem relativamente enquadrados nos crimes de sacrilegium245 ou

maiestas

No entanto ao confirmar a accedilatildeo de Pliacutenio Trajano ratifica a condenaccedilatildeo do nomen

christianum Isso deve estar ligado ao fato de o governador do Ponto-Bitiacutenia ter confirmado

os resultados positivos desse tipo de condenaccedilatildeo que visava desestimular a aderecircncia ao grupo

cristatildeos garantindo a manutenccedilatildeo da religiatildeo tradicional a uma medida moderada que

impedisse falsas denuacutencias e o cometimento de injusticcedilas O que natildeo significa que Trajano

tenha empreendido uma poliacutetica de toleracircncia aos cristatildeos dificultando as denuacutencias como em

alguns momentos parece sugerir Pedro Barcelograve246

Euseacutebio247 explora o fato de Trajano ter determinado que os cristatildeos natildeo deveriam ser

buscados (conquirendi non sunt) para assim construir uma ldquotradiccedilatildeo favoraacutevelrdquo aos fieacuteis Ele

confirma que Trajano promulga um decreto para que os cristatildeos natildeo fossem perseguidos Tal

medida eacute interpretada como o fator importante para a reduccedilatildeo parcial da perseguiccedilatildeo naquela

241 Anais XV44 242 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 145 243 De Vita Caesarum Vita Neronis 162 244 II Apol 82 245 Este caso envolveria um crime especiacutefico contra o patrimocircnio religioso pagatildeo mas natildeo haacute sinais evidentes no na primeira metade do II seacuteculo cf ROBINSON OF The criminal Law of ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 passim 246 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim 247 Histoacuteria Eclesiaacutestica III231-3

46

eacutepoca Mas essas vantagens que Euseacutebio vecirc na recomendaccedilatildeo de Trajano se reduzem ao fato

de ele natildeo admitir que os cristatildeos sejam levados em juiacutezo mediante denuacutencias anocircnimas

Mesmo assim os incocircmodos locais permaneceram Euseacutebio escreve ldquoAlgumas vezes eram as

populaccedilotildees outras as proacuteprias autoridades locais que preparavam os asseacutedios contra noacutes de

forma que ainda que sem perseguiccedilotildees manifestas acenderam-se focos parciais segundo as

proviacutenciasrdquo248 Por outro lado em grande medida influenciado por Meacuteliton de Sardes249 que

escreveu a Marco Aureacutelio Euseacutebio ratifica a tradiccedilatildeo cristatilde que destaca Nero e Domiciano

como grandes perseguidores da Igreja250 Eacute interessante a tradiccedilatildeo cristatilde relacionar as accedilotildees

anticristatildes a ldquomaus imperadoresrdquo Com isso tenta-se reproduzir a ideia de que perseguir os

cristatildeos eacute seguir os passos de tiranos Todavia quando se procuram as raiacutezes das hostilidades

imperiais com os cristatildeos faz-se necessaacuterio ter em mente que por vaacuterias regiotildees do Impeacuterio os

atritos envolvendo o combate aos cristatildeos emergem do processo de expansatildeo da comunicaccedilatildeo

da mensagem apelativa cristatilde e das transformaccedilotildees reivindicadas e provocadas por ela nas

tradiccedilotildees e no comportamento das pessoas

Desse modo deixando de lado a hipoacutetese de Marta Sordi251 sobre um senatus

consultum na eacutepoca de Tibeacuterio que teria desaprovado o reconhecimento de Cristo a

contragosto do Imperador eacute preciso lidar com o institutum neronianum252 tambeacutem

mencionado por Tertuliano como a primeira hostilidade incisiva do Impeacuterio contra os

cristatildeos Mas esta peculiar expressatildeo empregada por Tertuliano natildeo se refere a uma lei e sim

a uma accedilatildeo de Nero E a accedilatildeo de Nero neste caso teria interesses particulares e usa os cristatildeos

como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo Mesmo que as flagitia cristatildes se fundamentem em caluacutenias

originaacuterias dos atritos populares a superstitio cristatilde natildeo poderia representar algo aceitaacutevel aos

olhos dos romanos devido ao seu caraacuteter exclusivista e seu desprezo pela vida puacuteblica ligada agrave

religiatildeo tradicional Em defesa dos cristatildeos poucos anos mais tarde Justino escreveu ldquoEsta eacute

a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo

oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos sepulcros nem

celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo (I Apol 242) Aleacutem disso seria uma incriacutevel contradiccedilatildeo

sustentar que existia uma lei geral em vigor que determinava a pena capital para os cristatildeos e

248 Hist EclesIII232 249 ldquoEntre todos somente Nero e Domiciano persuadidos por alguns homens maleacutevolos quiseram caluniar nossa doutrina e acontece que deles derivou por costume irracional a mentira caluniosa contra tais pessoasrdquo (apud Euseacutebio Hist EclesIV239) 250 Hist Ecles III171 201-9 221-8 251 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968 252 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4

47

ser necessaacuterio admitir que Trajano recomenda que os cristatildeos natildeo sejam perseguidos e que

apenas os casos mais precisos sejam examinados

A resposta de Trajano alegando ldquonatildeo eacute possiacutevel constituir por assim dizer algo

universal que possua forma fixardquo253 pode servir como evidecircncia de que natildeo existia uma lei

geral para julgar os cristatildeos Todavia Roman254 considera que a foacutermula neque enin

universum deve ser relativizada em funccedilatildeo de um marco geograacutefico concreto o da proviacutencia

Ponto-Bitiacutenia e em relaccedilatildeo agrave diversidade de status juriacutedico e de situaccedilotildees existentes nessa

regiatildeo que motivam a correspondecircncia entre Pliacutenio e o Imperador Um exemplo dessa

preocupaccedilatildeo aparece quando se fala da constituiccedilatildeo de um evranouj (sociedade de seguros

muacutetuos) em Amisos255 Trajano desaprovando a ideia responde

Se as leis de Amisos de acordo com as obrigaccedilotildees do tratado lhe datildeo direito a ter uma associaccedilatildeo de seguros muacutetuos natildeo podemos proibir que a tenham tanto mais se tal sociedade natildeo procede a organizar tumultos e reuniotildees iliacutecitas senatildeo para sustentar os mais pobres Nas cidades restantes que estatildeo submetidas a nosso direito praacuteticas desse tipo devem ser proibidas []256

Roman257 estaacute correto em considerar que Trajano potildee em praacutetica um tipo de

disposiccedilatildeo que tende a fazer frente aos problemas sociais provinciais que encontram uma

ampla expressatildeo na formaccedilatildeo de heterias Esta poliacutetica encontra uma limitaccedilatildeo na situaccedilatildeo da

proviacutencia Ponto-Bitiacutenia com a existecircncia de cidades livres e federadas que se autorregulam

Poreacutem a hipoacutetese de Roman apresenta limitaccedilotildees Ele considera que tal poliacutetica

administrativa com respeito aos cristatildeos constituiria uma exceccedilatildeo em suas disposiccedilotildees sobre

as associaccedilotildees no Ponto-Bitiacutenia Esta exceccedilatildeo natildeo se explica em funccedilatildeo da diversidade de

status juriacutedico das cidades existentes nessa proviacutencia mas estaacute relacionada ao caraacuteter peculiar

das reuniotildees das comunidades cristatildes que natildeo consistiam um perigo ao Impeacuterio Roman segue

a hipoacutetese de De Robertis258 e chega a alegar que as reuniotildees cristatildes eram consideradas licita

A proposiccedilatildeo de Roman falha basicamente em natildeo compreender que a aprovaccedilatildeo por

parte de Trajano dos atos de execuccedilatildeo da pena capital sobre os cristatildeos desempenhada por

Pliacutenio estaacute diametralmente oposta a uma hipoteacutetica licenccedila agrave religiatildeo cristatilde O que descarta

qualquer vestiacutegio de simpatia romana pelos cristatildeos Aleacutem disso Pliacutenio havia informado ao

imperador que os cristatildeos haviam deixado de se reunir tendo em vista as disposiccedilotildees do edito

253 neque enim in universum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest (Ep X98) 254 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 233-234 255 Ep X92 256 Pliacutenio Ep X94 257 Op cit pp 233-234 258 ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89

48

recente Quando Trajano aponta que seria inadequado estabelecer uma norma fixa para julgar

os cristatildeos ele estaacute se referindo agraves interrogaccedilotildees levantadas por Pliacutenio questionando sobre a

necessidade de se fazer distinccedilatildeo entre jovens e idosos satildeos e doentes romanos e natildeo

romanos Desse modo o imperador estaacute de acordo que o magistrado use de seus poderes

constituiacutedos para fazer as distinccedilotildees necessaacuterias sem que se fixe uma norma universal

Giorgio Jossa259 faz uma siacutentese das teorias baacutesicas sobre as accedilotildees anticristatildes no

periacuteodo de Trajano e desenvolve uma avaliaccedilatildeo que tem em vista a complexidade da situaccedilatildeo

poliacutetica da religiatildeo cristatilde e da peculiaridade do procedimento criminal do direito romano Esta

explicaccedilatildeo comporta certa mescla de todas as trecircs hipoacuteteses aceitaacuteveis Assim Jossa considera

que o cristianismo representa antes de tudo um problema de ordem puacuteblica que dependia em

parte da sensibilidade dos magistrados por meio do uso da ius coertionis num momento onde

jaacute existia uma legislaccedilatildeo especiacutefica contra os cristatildeos e onde o nomen christianum carregava

subentendido os crimes de sacrilegium e maiesta Exceto pela sua insistecircncia em admitir que

havia uma lei especiacutefica contra os cristatildeos sua anaacutelise torna-se proveitosa em funccedilatildeo de sua

sensibilidade agrave questatildeo da ordem puacuteblica enviesada nesse dilema juriacutedico Se o nomen

christianum carregava subentendido crimes comuns eles se manifestam com a pressatildeo civil

procurando expelir esse corpo estranho da sociedade pagatilde e obriga os magistrados a

procurarem um enquadramento que ratifique a condenaccedilatildeo daquilo que para muitos do povo

estava evidente que os cristatildeos deviam ser condenados

Em siacutentese eacute mais prudente admitir que as condenaccedilotildees de outrora sobre os cristatildeos

davam margem para que os magistrados em outras regiotildees do Impeacuterio eventualmente

condenassem os cristatildeos que lhes fossem entregues normalmente devido a atritos populares

Isso justificaria a incerteza de Pliacutenio em condenar os cristatildeos Eacute o uso de se condenar os

cristatildeos em decorrecircncia desde a eacutepoca de Nero da opiniatildeo puacuteblica somada agrave imagem

negativa que a classe culta tinha desses religiosos que atribui flagitia aos fieacuteis tornando o

nomen christianum razatildeo de condenaccedilatildeo Algo que eacute negado pelos apologistas com

veemecircncia no II seacuteculo e que seraacute avaliado por Adriano subsequentemente a Trajano

259 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125

49

22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano

A Histoacuteria Augusta (51) aponta que Adriano foi um imperador dedicado agrave

manutenccedilatildeo da paz no mundo mas tatildeo logo as revoltas estouraram em regiotildees variadas Os

samaritanos se envolveram em guerra os britacircnicos davam sinais de que natildeo permaneceriam

sob o domiacutenio romano o Egito foi jogado em desordem por distuacuterbios e finalmente a Liacutebia e

a Palestina mostraram espiacuterito de rebeliatildeo

Nos anos 130 e 131 Adriano partiu para o Oriente No plano das suas reformas estava

a revitalizaccedilatildeo da cidade de Jerusaleacutem que havia sido destruiacuteda na guerra judaica de 66 a 73

Natildeo eacute agrave toa que ficou reconhecido como promotor da vida urbana no Impeacuterio valorizando as

obras puacuteblicas (aacutegoras templos teatros anfiteatros aquedutos portos ou estradas) Os

investimentos na Judeia faziam parte de sua estrateacutegia de integraccedilatildeo e romanizaccedilatildeo

Os judeus sofreram em muitos aspectos os efeitos das transformaccedilotildees culturais Mas a

introduccedilatildeo de elementos estrangeiros e a construccedilatildeo de um templo a Juacutepiter na cidade sagrada

gerou protestos260 A proibiccedilatildeo da circuncisatildeo261 contribuiu para acirrar os acircnimos revoltosos

No entanto segundo a anaacutelise de J M C Copete262 se esse foi o estopim da guerra as causas

que levaram o povo judeu e alguns outros provincianos a lutar natildeo poderiam estar apenas na

devoccedilatildeo ao seu Deus tradicional Yahveacute A insensatez romana em ignorar os problemas

estruturais da regiatildeo tais como a pobreza endecircmica reinante e as proacuteprias rivalidades entre

sacerdotes e rabinos na regiatildeo proporcionaram as condiccedilotildees para esse movimento que se

levantou como uma ameaccedila agrave ordem

Euseacutebio escreve que

Rufo governador da Judeacuteia com o reforccedilo militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade marchou contra eles Aniquilou em massa milhares de homens de crianccedilas e de mulheres e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territoacuterios agrave escravidatildeo Mandava entatildeo sobre os judeus um chamado Bar Kosibas que significa ldquofilho da estrela263

A religiatildeo dos judeus era o elemento fundamental de sua identidade Havia interaccedilatildeo

com os demais povos do Impeacuterio mas qualquer tipo de resistecircncia em funccedilatildeo dessa

260 Cassius Dio His Rom 121-3 261 Hist Aug 142 262 Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 263 His Ecles IV61-2

50

identidade poderia deixar as autoridades romanas ressabiadas Taacutecito264 fala da diferenccedila de

ambos os mundos O judaiacutesmo parecia-lhe uma supersticcedilatildeo absurda soacuterdida e depravada que

gerava costumes contraacuterios aos dos outros povos A abstenccedilatildeo do culto ao imperador por parte

dos judeus poderia simbolizar sua rejeiccedilatildeo ao Impeacuterio e agrave cultura greco-romana mas natildeo se

deve pensar que os judeus estavam blindados agrave cultura helecircnica e que as oligarquias judaicas

se isolassem dos negoacutecios com as demais proviacutencias do Impeacuterio265

Uma das preocupaccedilotildees de Justino em sua I Apologia eacute deixar claro que os judeus

haviam se tornado os principais opositores dos cristatildeos e que muitos foram vitimados por Bar

Kosiba que os mandava ldquosubmeter a terriacuteveis torturasrdquo266 Natildeo haacute certeza sobre as razotildees

dessa oposiccedilatildeo e se ela diferia da rivalidade entre judeus e cristatildeos constatada no I seacuteculo

Todavia aleacutem desse tipo de accedilatildeo anticristatilde haacute indiacutecios de que os tribunais locais recebessem

queixas sobre os cristatildeos e um nuacutemero significativo de fieacuteis era levado agrave morte Tal como a feacute

dos judeus a religiatildeo dos cristatildeos era considerada uma superstitio reprovaacutevel que apresentava

resistecircncia agrave vida puacuteblica no Impeacuterio ou seja que natildeo se envolviam em teatros jogos e todo

tipo de reverecircncias aos deuses pagatildeos Para evitar quaisquer duacutevidas quanto agrave identidade entre

cristatildeos e judeus o apologista faz essa interpolaccedilatildeo

Em funccedilatildeo das condenaccedilotildees sofridas pelos cristatildeos durante o governo de Adriano

Quadrato e Aristides escreveram-lhe apologias267 Se a teoria de Paul Andriessen268 for

tomada por certa e a Carta a Diogneto for reconhecida como a apologia perdida de Quadrato

reconhecer-se-aacute a disposiccedilatildeo tanto nesse escrito quanto na Apologia de Aristides em

apresentar algumas das principais distinccedilotildees entre as crenccedilas dos cristatildeos dos judeus e dos

pagatildeos A principal queixa na Carta a Diogneto leva a crer que o ldquonomerdquo cristatildeo era um

elemento chave para a condenaccedilatildeo269 Sua queixa faz pensar que as variaccedilotildees nos julgamentos

nos tribunais locais pudessem proporcionar um destino distinto aos cristatildeos ldquoPor isso

condeno tambeacutem as vossas leis Deveria haver uma soacute constituiccedilatildeo poliacutetica comum para

todos agora haacute tantas legislaccedilotildees quantas cidades existem e assim acontece que o que entre

uns eacute vergonhoso entre outros eacute tido por honrosordquo270

264 Taacutecito Historia V 3-6 Cf Strabatildeo Geografia XVI237 Quintiliano Institutio Oratoria II7 Juvenal Satiras III 13-6 VI 541-7 96-106 Plutarco De Superstitione 8 Cassius Dio Hist Rom 37174 265 Josefo Antiguidades Judaicas XVIII 23 Guerras dos Judeus II118 266 I Apol 316 267 Euseacutebio His Ecles IV31-3 268 Lrsquoapologie de Quadratus conserve sous le nom drsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedievale 13 1946 pp 5-260 Id Lrsquoepilogue de lrsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedieacutevale 14 1947 pp 121-156 269 Carta a Diogneto 271ss 270 Carta a Diogneto 281ss

51

O rescrito de Adriano ao prococircnsul da Aacutesia a partir de 124125 dC Minuacutecio

Fundano oferece uma ideia sobre sua forma de lidar com os cristatildeos O texto foi conservado

na Apologia de Justino (I Apol 68) no texto de Euseacutebio271 e por Rufino na versatildeo latina

Adriano havia recebido a carta de Serecircncio Graniano272 antecessor de Minuacutecio e julgou ser

importante responder essa demanda a fim de ldquoevitar que se perturbem os homens e que os

delatores encontrem apoio para suas maldadesrdquo273 Adriano recomenda que

se os provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo que respondam a ela diante do tribunal deveratildeo ater-se a esse procedimento e natildeo a meras peticcedilotildees e gritarias Com efeito eacute muito mais conveniente que se algueacutem pretende fazer uma acusaccedilatildeo examines tu o assunto Em conclusatildeo se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delito Mas por Heacutercules se a acusaccedilatildeo eacute caluniosa castiga-o com maior severidade e cuida para que natildeo fique impune (I Apol 688-10)

As interpretaccedilotildees desse rescrito satildeo divergentes Em uma primeira linha interpretativa

representada por exemplo por B Orgeval H Gregoire L Regibus e M Sordi274 acredita-se

que esse rescrito assegurou a liberdade de algum tipo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos por

professarem sua religiatildeo e providenciou que fossem punidos apenas por crimes cometidos

contra as leis comuns Representantes de outro ponto de vista como C Callewaerd J Moreau

e W Schimid275 sustentam que o rescrito natildeo concede aos cristatildeos nenhuma liberdade

O rescrito foi lido por Justino de um modo favoraacutevel aos cristatildeos como se de fato o

Imperador tivesse agido decididamente a favor dos cristatildeos A esse documento fez alusatildeo

Meliton bispo de Sardes276 Euseacutebio agiu de modo semelhante em sua proacutepria leitura do

rescrito de Trajano e seguiu a Justino em sua interpretaccedilatildeo do rescrito de Adriano No entanto

como mostrou Paul Kereszts277 a interpretaccedilatildeo do apologista difere do sentido original do

rescrito Segundo a interpretaccedilatildeo de Justino Adriano teria proibido que os cristatildeos fossem

271 His Ecles IV 9 272 O nome correto eacute Q Licinio Silvano Graniano cocircnsul a partir de 106 dC e pro-cocircnsul da Aacutesia a paritir de 122123 dC MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 132 273 I Apol 687 Eus Hist Ecles IV9 274 ORGEVAL B LEmpereur Hadrien oeuvre leacutegislative et administrative ParisGrenoble Domat MontchrestienImpr De Allier 1950 pp 302-307 GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 pp 138-139 REGIBUS L de Storia e Diritto Romano negli Acta Martyrum Didascalos 1926 pp 147-148 SORDI M I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349 275 CALLEWAERT C Le Rescrit dHadrien a Minucius Fundanus Reviste dHistoire et de Litterature 6l 8 1903 pp 152-189 MOREAU J La Persecution du Christianism e dans lEmpire Romain Paris Presses Universitaires de France 1956 p 48 SCHIMID W The Christian Re-Interpretation of the Rescript of Hadrian Maia 71955 pp 5-13 276 Euseacutebio Hist EclesIV 2610 277 Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129

52

punidos simplesmente mediante a confissatildeo de que eram ldquocristatildeosrdquo e teriam recomendado

que fossem julgados pelos crimes como quaisquer outros e natildeo por suas crenccedilas

Segundo C G Roman278 a postura de Adriano em advertir a Minuacutecio Fundano a nada

julgar sem denuacutencia e acusaccedilatildeo formal contra os cristatildeos dava continuidade agrave poliacutetica de

Trajano Tomando essa perspectiva como exemplo deve-se destacar que a interpretaccedilatildeo do

rescrito de Adriano dependeraacute significativamente da interpretaccedilatildeo do rescrito de Trajano e

talvez deva remontar ateacute um pouco antes Roman interpretou as recomendaccedilotildees deste uacuteltimo

como sendo positivas para com os cristatildeos e sua tendecircncia eacute reconhecer o aprimoramento das

limitaccedilotildees das accedilotildees anticristatildes

J Beaujeu279 considera que Adriano procedeu a uma grande obra de restauraccedilatildeo

religiosa que obedecia aleacutem das necessidades religiosas a objetivos poliacuteticos agrave medida que

tendia a uma unificaccedilatildeo religiosa das distintas proviacutencias do Impeacuterio debaixo da eacutegide dos

cultos Greco-romanos mediante a criaccedilatildeo de uma religiatildeo do Estado siacutentese destes uacuteltimos

cultos com as religiotildees orientais com a originalidade dos diversos grupos sociais e eacutetnicos

que formavam o Impeacuterio

De fato Adriano foi um imperador interessado em conhecer a cultura do vasto

Impeacuterio Por volta do ano de 124 iniciou-se nos misteacuterios Eleusis importante oraacuteculo do

mundo grego revelando um interesse miacutestico que acabou por conduzi-lo tambeacutem ao

conhecimento misterioso da religiatildeo egiacutepcia Os cultos tradicionais de Roma natildeo receberam

menor atenccedilatildeo certamente para manter uma relaccedilatildeo amistosa com os integrantes do universo

senatorial Construiu um templo a Venus em Roma no Foro Romano no ano de 121 e mandou

reconstruir o Panteatildeo de Marco Agripa um dos mais importantes colaboradores de

Augusto280 No entanto isso natildeo permite ver em seu rescrito uma accedilatildeo proacute-cristatilde que

estivesse em consonacircncia com a ideia sustentada por Marta Sordi281 de que Adriano teve em

mente reconhecer a Cristo entre os outros deuses e lhe oferecer um templo conforme anota a

Histoacuteria Augusta (Alexandre Severus 436-7) Essa passagem se assemelha agrave lenda de que

antes de propor a construir a cidade de Elia Adriano havia empreendido um projeto de

reconstruccedilatildeo conjunta do templo de Jerusaleacutem com os judeus mas a oposiccedilatildeo dos samaritanos

278 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 230 279 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp150ss 280 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 43 281 I Cristiani e Lrsquoimpero Romano Ed rev e atual Milano Jaca Book 2011 p 98

53

fez com que os planos sofressem mudanccedilas draacutesticas282 Esse tipo de tendecircncia pode chegar a

ponto de admitir como sustentou T Mommsem283 que Adriano estava proacuteximo a elevar a feacute

cristatilde a uma religio licita

As comparaccedilotildees entre as accedilotildees de Trajano e Adriano satildeo muito importantes para o

desenvolvimento de uma teoria coerente que explique a condiccedilatildeo dos cristatildeos nesse iniacutecio do

II seacuteculo todavia natildeo eacute necessaacuterio admitir nenhuma continuidade entre ambos em razatildeo dos

rescritos G Jossa284 alerta que os rescritos natildeo satildeo ldquoleisrdquo mas recomendaccedilotildees a governantes

locais e nem um desses imperadores estabeleceu normas gerais sobre o julgamento dos

cristatildeos

Como foi visto anteriormente ao responder a demanda de Pliacutenio Trajano admitiu o

procedimento daquele governador em condenar os cristatildeos mediante a confissatildeo

recomendaccedilatildeo que fazia pressupor que o nomen christianum representava a razatildeo da

condenaccedilatildeo que visava desestimular a adesatildeo e expansatildeo dessa superstitio Naquela ocasiatildeo o

imperador fez questatildeo de lembrar que as denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas Pouco

tempo depois Adriano precisa admoestar os governantes da Aacutesia Menor a natildeo serem movidos

por ldquomeras peticcedilotildees e gritariasrdquo285 A condenaccedilatildeo aos cristatildeos provocou abusos nas

condenaccedilotildees Se bastasse estender o dedo para algueacutem e acusaacute-lo de cristianismo para

conseguir sua condenaccedilatildeo essa seria uma forma eficaz de eliminar qualquer pessoa

indesejada ainda que ela natildeo fosse cristatilde Adriano entatildeo reconhece que a questatildeo levantada

por Graniano natildeo poderia ficar sem resposta pois os efeitos da desordem seriam extensos

Embora a carta de Graniano natildeo tenha sido preservada eacute possiacutevel deduzir que se o imperador

recomenda a condenaccedilatildeo dos ldquomaleacutevolosrdquo delatores dos cristatildeos que indevidamente os

caluniavam visando agrave puniccedilatildeo isso significa que esse tipo de episoacutedio jaacute havia sido

constatado naquela regiatildeo Nenhuma norma universal eacute estabelecida ou mencionada O

governador eacute designado como o responsaacutevel por examinar as denuacutencias formais e averiguar os

casos

Fica evidenciada a obrigaccedilatildeo por parte de quem realiza a denuacutencia de apresentar ele

mesmo provas sobre seu testemunho diferenciando-se um pouco da medida de Trajano

segundo a qual o governador deveria se responsabilizar pela investigaccedilatildeo O castigo aos falsos

282 Midash Berersquoshit Babba 6410 e Epiacutestola de Barnabeacute 163-4 apud COPETE J M C Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII CONGRESSO INTERNACIONAL GIREA-ARYS IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 283 Der religonsfrevel nach der roumlmischen Recht Historische Zeitschrift 64 1890 pp 389-429 284 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125 285 I Apol 688

54

acusadores era praacutetica usual no direito romano286 Neste ponto surge a seguinte questatildeo Os

acusadores deveriam provar que os cristatildeos por eles acusados cometiam a infraccedilatildeo de serem

ldquocristatildeosrdquo ou que infringiam outras leis comuns subentendidas pelo seu nomen

A expressatildeo287 ei tij ou=n kathgorei kai deiknusi ti para touj nomouj prattontaj(

ou[twj Diorixw kata thn Dunamin tou a`marthmatoj( [ se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e

demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade

do delito ] (I Apol 6810) eacute entendida de modo positivo ou negativo dependendo da corrente

de interpretaccedilatildeo No entanto o proacuteprio rescrito tem algo a dizer em um delineamento mais

claro sobre essa questatildeo A especificaccedilatildeo de que os acusadores deveriam demonstrar que os

cristatildeos acusados agiam contra as leis [touj nomoj prattontaj] eacute uma medida para evitar as

sukofantiaj [caluacutenias] Por isso ele recomenda que Minuacutecio Fundano examine os casos e ldquose

a acusaccedilatildeo eacute caluniosa [castigue-o]288 com maior severidade e [cuide]289 para que natildeo fique

impunerdquo (I Apol 6810)

Uma nova questatildeo incide sobre o significado dessa acusaccedilatildeo ldquocaluniosardquo Justino

interpretou esse trecho como as acusaccedilotildees que maculavam injustamente a imagem dos

cristatildeos atribuindo-lhes canibalismo ateiacutesmo maiestas ou outras coisas desse tipo Segundo

esse tipo de interpretaccedilatildeo Adriano estaria reprovando a condenaccedilatildeo pelo nomen christianum

e recomendando que os governantes examinassem se existia de fato algum crime contra as

leis Ateacute esse ponto essa medida natildeo significaria nenhuma benevolecircncia para com os cristatildeos

apenas garantiria que fossem julgados como quaisquer outros no Impeacuterio sem que os

magistrados fossem movidos por gritarias puacuteblicas mas que se detivessem aos processos

formais Todavia uma segunda hipoacutetese eacute cogitada

Nessa hipoacutetese as acusaccedilotildees ldquocaluniosasrdquo agraves quais Adriano se refere poderiam natildeo ser

do mesmo tipo das que Justino tinha em mente em suas Apologias Elas poderiam se referir agrave

proacutepria acusaccedilatildeo de cristianismo lanccedilada sobre algueacutem com o intuito de levaacute-lo agrave condenaccedilatildeo

sob uma lei especiacutefica contra os cristatildeos Nessa perspectiva a exigecircncia de Adriano para que

se examinasse a comprovaccedilatildeo da denuacutencia seria uma medida semelhante agravequela tomada por

Pliacutenio exigindo que os acusados sacrificassem aos deuses e amaldiccediloassem a Cristo para que

assim se pudesse verificar se eram realmente cristatildeos A diferenccedila eacute que natildeo eacute possiacutevel

286 ROBINSON O F The criminal Law of ancient Rome Baltimore John Hopkins University Press 1996 pp 8100 287 O rescrito em latim que Euseacutebio dizia ter sido anexado originalmente por Justino foi substituiacutedo no MS Par Grae 450 pela traduccedilatildeo grega de Euseacutebio (MINNS D PARVIS P Justin philosopher and martyr apologies New York Oxford University Press 2009 p 265) 288 Adaptaccedilatildeo de ldquocastiga-ordquo para melhor leitura da frase 289 Originalmente ldquocuidardquo

55

conferir a carta de Graniano para fazer algum tipo de comparaccedilatildeo Desse modo natildeo haveria

nenhuma diferenccedila entre a posiccedilatildeo de Trajano e Adriano exceto a recomendaccedilatildeo desse uacuteltimo

para que os caluniadores fossem punidos Para sustentar essa teoria poreacutem torna-se

necessaacuterio admitir que o rescrito de Adriano foi sutilmente modificado pelos cristatildeos para

convertecirc-lo a favor da feacute cristatilde Se por um lado eacute faacutecil supor a modificaccedilatildeo desse documento

ndash o que poderia ter ocorrido ateacute em funccedilatildeo da sua traduccedilatildeo do latim para o grego ndash por outro

lado natildeo haacute outro documento desse tipo que comprove tal adulteraccedilatildeo e nem mesmo que

ratifique uma accedilatildeo intolerante de Adriano para com os cristatildeos Outra hipoacutetese deve ser

examinada e agora deveraacute levar em consideraccedilatildeo as leis agraves quais o rescrito se refere

No texto grego de Euseacutebio que agora aparece na I Apologia de Justino conforme o

MS A a conjugaccedilatildeo no particiacutepio plural presente ativo masculino do verbo prattontaj estaacute

relacionada agrave frase anterior Aproximando as frases o sentido que se tem eacute o seguinte ldquose os

provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo

que respondam a ela diante do tribunal [] faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam

alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delitordquo290 O texto

latino de Rufino eacute mais especiacutefico com essa associaccedilatildeo Si quis igitur accusat et probat

adversum leges quicquam agere memoratos homines pro merito peccatorum etiam suplicia

statues291 Nesse caso memoratos homines [homens mencionados] eacute uma expliacutecita referecircncia

aos Christianos Todavia tanto C Munier292 quanto D Minns e P Parvis293 ignoram a

palavra memoratos294 traduzindo o texto como se o rescrito se referisse ao modo geral de se

proceder em um julgamento ou seja a todos os homens cujos crimes fossem confirmados

Essa hipoacutetese forccedila o texto pois neste caso uma norma geral faria com que qualquer denuacutencia

precisasse ser provada pelo delator sob o risco de ser punido severamente caso natildeo fosse

confirmada pelas autoridades Desse modo esse tipo de sustentaccedilatildeo se converte em absurdo

Admitir que Adriano estivesse realmente orientando Minuacutecio Fundano a julgar

pessoalmente as denuacutencias contra os cristatildeos e exigir provas dos delatores que confirmassem

o descumprimento das leis natildeo significa que o imperador demonstrava simpatia pelo

cristianismo Sua preocupaccedilatildeo eacute manter a ordem e evitar os abusos Era preciso impedir que

290 I Apol 688-10 291 Apud MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 133 292 Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 pp 314-317 293 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 44264-267 294 Participio plural passado perfeito masculino acusativo que significa ldquotrazido agrave lembranccedilardquo ldquoditordquo ldquomencionadordquo ldquorelacionadordquo etc LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project)

56

as manifestaccedilotildees puacuteblicas solapassem o procedimento correto dos tribunais Haacute sim uma

diferenccedila significativa entre a postura de Trajano e a de Adriano mas ela natildeo torna o segundo

um amigo ou inimigo dos cristatildeos Cabe lembrar que uma das questotildees levantadas por Pliacutenio

a Trajano era se os cristatildeos deveriam ser punidos pela confissatildeo desse nome ou pelos crimes

subentendidos Naquele caso especiacutefico da Bitiacutenia uma das infraccedilotildees era quando os cristatildeos

se reuniam em seus cultos passar por cima da lei que impedia as reuniotildees e associaccedilotildees

gerais Abandonada essa praacutetica o governador natildeo via nenhum crime ou ameaccedila no modo de

ser dos cristatildeos e natildeo encontrou outra razatildeo para puni-los senatildeo pela contumaacutecia que

apresentavam diante de um magistrado em natildeo negar a feacute que era estranha aos olhos de Pliacutenio

A resposta de Trajano ainda que lacocircnica ratificou o procedimento de Pliacutenio e mesmo sem se

identificar um ldquocrimerdquo especiacutefico aprovou a condenaccedilatildeo dos cristatildeos pelo seu nomen para

desestimular a superstitio estranha e incentivar a retomada do culto puacuteblico pagatildeo Adriano

por outro lado tambeacutem sem fazer referecircncia a qualquer lei especiacutefica contra os cristatildeos

orienta os governantes a condenarem a todos aqueles que comprovadamente estivessem

infringindo a lei Tudo indica que a Aacutesia estava sendo agitada por mobilizaccedilotildees puacuteblicas que

impeliam os magistrados contra os cristatildeos Essa eacute a razatildeo para os apologistas Quadrato e

Aristides escreverem tambeacutem O nuacutemero dos cristatildeos ainda natildeo era muito significativo para o

estabelecimento de uma lei geral

Conforme destacou Jossa295 os cristatildeos se confrontavam com a opiniatildeo puacuteblica

Dentre o povo emergiram acusaccedilotildees de incesto infanticiacutedio e outras coisas do gecircnero A

rejeiccedilatildeo aos deuses e o estranhamento ao mos romanorum e o seu odio humanum generis

faziam com que os cristatildeos se tornassem a causa das desgraccedilas no Impeacuterio diante dos olhos de

uma boa parte dos pagatildeos No periacuteodo de Adriano a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos era apenas uma

questatildeo de ordem puacuteblica que constrangia o governo romano a uma difiacutecil obra de mediaccedilatildeo

entre os vaacuterios grupos locais Era um aspecto da poliacutetica de pacificaccedilatildeo das proviacutencias A sua

preocupaccedilatildeo estaacute relacionada exclusivamente a manter a ordem puacuteblica nas proviacutencias e a

garantir a observacircncia rigorosa do direito296 A hostilidade aos cristatildeos e os crescentes

confrontos obrigavam os governadores a intervirem e a consultarem o imperador em casos

como esse em que as coisas ameaccedilavam sair do controle

295 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125132 296 Na Digesta XXII53 o jurista Callistrato se reporta a uma seacuterie de rescritos dos quais cinco satildeo de Adriano a governadores das proviacutencias sobre o modo como escutar os textos nos processos e sobre o valor de dar a eles testemunho cf tambeacutem Dig XLVIII27

57

As respostas de Trajano e Adriano mostram que a repressatildeo puramente local do

cristianismo tinha um caraacuteter descontiacutenuo e excepcional que natildeo impedia a nova religiatildeo de

estender-se pelo Impeacuterio fazendo novos adeptos

23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos

Durante o governo de Antonino Pio (governou de 138-161) os tribunais continuavam

a receber queixas esporaacutedicas da populaccedilatildeo sobre os cristatildeos Marco Aureacutelio297 reconheceu

seu conservadorismo e o descreveu como algueacutem profundamente devoto aos deuses

romanos298 e sempre atento ao cumprimento do proacuteprio dever no culto puacuteblico

Segundo Meacuteliton que escreveu nos tempos de Marco Aureacutelio Antonino Pio natildeo

empreendeu nenhuma modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo que viesse a abater a Igreja e que

repetidamente nos rescritos dirigidos aos tessalonicenses aos atenienses e a todos os gregos

recomendou ldquonatildeo inovar nada sobre os cristatildeosrdquo299

Na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio (IV13) aparece um rescrito de Antonino ao

conselho da Aacutesia Satildeo levantados alguns argumentos contra a autenticidade desse documento

Destacam-se principalmente os erros de titulaccedilatildeo Tambeacutem se alega que suas caracteriacutesticas

formais natildeo sejam proacuteprias dos escritos de Antonino Pio Aleacutem disso o documento apresenta

uma exaltaccedilatildeo ao cristianismo Isso faz com que alguns rejeitem total300 ou parcialmente301

esse documento No entanto as condiccedilotildees da eacutepoca corroboram com a ideia de que o

imperador tenha de fato deliberado sobre essa questatildeo e J Beaujeu302 natildeo vecirc nenhuma razatildeo

para duvidar da existecircncia de um rescrito de Antonino Pio G Jossa303 e C G Roman304

297 Pensamentos I16 298 Marco Aureacutelio Pensamentos VI3014 299 apud Euseacutebio His EclesIV2610 300 Cf SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 1954 pp 190ss SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 301 Cf FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 302 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp 279-329 303 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 148 304 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 228

58

admitem-no com reservas e P Keresztes305 sustenta que por haver um comentaacuterio tanto

negativo quanto positivo sobre os cristatildeos natildeo deveria se tratar de uma falsificaccedilatildeo O modo

como tal texto foi preservado na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio eacute controverso e merece um

exame cauteloso

Pela sequecircncia do texto entende-se que Euseacutebio falaraacute de Antonino Pio Ele anuncia o

nome de Antonino que tambeacutem foi uma forma de se referir a Marco Aureacutelio mas comeccedila a

citaccedilatildeo do texto com ldquoO imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto Armecircnio

pontiacutefice maacuteximo tribuno da plebe pela deacutecima quinta vez cocircnsul por trecircs vezes ao conciacutelio

da Aacutesia saudaccedilotildeesrdquo306 A secccedilatildeo de IV82-5 apresenta um comentaacuterio que dificilmente

poderia ser admitido como autecircntico por isso esta eacute a parte que sofre maior oposiccedilatildeo Trata-se

de uma repreensatildeo moral do imperador aos provincianos O nuacutecleo seguinte do texto agraves vezes

eacute admitido como histoacuterico como sustenta C G Roman307 Lecirc-se

Em favor destes jaacute escreveram a nosso diviniacutessimo pai muitos governadores das proviacutencias aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados a natildeo ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder puacuteblico de Roma Tambeacutem a mim muitos me falaram sobre eles e tambeacutem respondi seguindo o parecer de meu pai Mas se algueacutem persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles fique o acusado livre de encargos ainda que seja evidente que eacute cristatildeo por outro lado o acusador ficaraacute sujeito a castigo Publicado em Eacutefeso no concilio da Aacutesia (Hist Ecles IV136-7)308

O contexto e as evidecircncias internas mostram que o rescrito pretende ser de Antonino

Pio Em siacutentese o texto afirma que sob seu governo natildeo se modificou em nada o que foi

estabelecido por Adriano A liberaccedilatildeo de um cristatildeo acusado em funccedilatildeo da denuacutencia de outro

cristatildeo que insiste em levaacute-lo ao tribunal natildeo faz muito sentido Pode-se imaginar que

desavenccedilas entre cristatildeos fizessem com que um cristatildeo procurasse se livrar do seu adversaacuterio

denunciando-o agraves autoridades para que fosse condenado mas eacute inimaginaacutevel que essa fosse

uma preocupaccedilatildeo de um imperador pagatildeo Eacute provaacutevel tenha sofrido uma adaptaccedilatildeo cristatilde

Mesmo despertando ceticismo sobre sua autenticidade esse rescrito pode traduzir com

reservas a situaccedilatildeo dos cristatildeos daquela eacutepoca Neste caso a compreensatildeo da condiccedilatildeo dos

cristatildeos nesse periacuteodo depende em parte da compreensatildeo da postura de Adriano diante dos

cristatildeos Euseacutebio havia interpretado o rescrito de Adriano como uma medida que beneficiava

os fieacuteis e consequentemente vecirc como positivo o rescrito de Antonino Pio No entanto

consideram as conclusotildees especificadas sobre o rescrito de Adriano nesta pesquisa se Pio natildeo

305 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 306 Euseacutebio Hist Ecles IV131 307 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 230-231 308 Ibid

59

adicionou em nada agravequela determinaccedilatildeo os cristatildeos continuavam a serem viacutetimas de

condenaccedilotildees locais e os governantes tinham liberdade para julgar cada caso

Nesse periacuteodo ocorre o martiacuterio do Papa Teleacutesforo e o processo contra Tolomeu e

Luacutecio sob o prefeito de Roma Lollio Urbico mencionados na II Apologia de Justino (21ss)

O repuacutedio da novidade e irracionalidade da feacute dos cristatildeos aparece nos escritos de Eacutelio

Aristides309 e nas vozes populares inferiores referidas por Luciano (De morte Peregrini 11)

Sobre o martiacuterio de Policarpo haacute divergecircncias Jossa310 sustenta que ele padeceu sob Marco

Aureacutelio mas o tipo de perseguiccedilatildeo recebida natildeo foi diferente daquela pela qual padeceram os

cristatildeos condenados sob Antonino Pio Tumultos e agitaccedilotildees puacuteblicas foram problemas que

Adriano havia procurado resolver

As acusaccedilotildees de ldquoateiacutesmordquo sofridas pelos cristatildeos que aparecem na primeira parte do

rescrito satildeo pertinentes ao periacuteodo311 Esse tipo de acusaccedilatildeo levou o proacuteprio Justino a incluir

esse tema nas suas Apologias312 Eacute certo como destaca Keresztes313 que ldquoateiacutesmordquo natildeo era

um crime de fato E em segundo lugar diante das cataacutestrofes aqueles que professavam

orgulhosamente a inexistecircncia dos deuses pagatildeos tornavam-se a explicaccedilatildeo mais provaacutevel

para o distuacuterbio da pax deorum314 Haacute indiacutecios no rescrito de Antonino que esse temor dos

pagatildeos diante das forccedilas da natureza tambeacutem corroborava com o combate aos cristatildeos315

A principal queixa de Justino na deacutecada de 150 dC era a de que natildeo seria justo

algueacutem ser condenado simplesmente por professar ser ldquocristatildeordquo316 O apologista tece sua

reivindicaccedilatildeo considerando o que pensa ser ldquojustordquo e assim tambeacutem apresenta uma peticcedilatildeo

309 Aristides (Orationes XLVI309) fala dos cristatildeos como ldquoos iacutempios da Palestinardquo que se distanciavam dos costumes gregos e natildeo honravam os deuses 310 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125132 311 ldquoA estes estais empurrando para a agitaccedilatildeo uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateusrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV133) 312 I62 313 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 p 17 314 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam e comparais nossa situaccedilatildeo agrave suardquo (Hist Ecles IV134) [Os seguintes infortuacutenios e prodiacutegios ocorridos em seu reino a fome a qual jaacute mencionamos o colapso do Circus e o terremoto por meio do qual as cidades de Rodes e da Aacutesia foram destruiacutedas] Adversa eius temporibus haec provenerunt fames de qua diximus Circi ruina terrae motus quo Rhodiorum et Asiae oppida conciderunt quae omnia mirifice instauravit et Romae incendium quod trecentas quadraginta insulas vel domos absumpsit (Hist Aug Vita Antoninus IX1) Dion Cassius escreveu que ldquoNos dias de Antonino tambeacutem um terriacutevel terremoto ocorreu na regiatildeo da Bitinia e de Helesponto Vaacuterias cidades foram severamente danificadas ou caiacuteram em ruiacutenas em particular Cizicus e o templo de laacute que era o maior e mais belo de todos os templo foi lanccedilado abaixordquo (Hist Rom LXX 4) Ἐπὶ τοῦ Ἀντωνίνου λέγεται καὶ φοβερώτατος περὶ τὰ microέρη τῆς Βιθυνίας καὶ τοῦ Ἑλλησπόντου σεισmicroὸς γενέσθαι καὶ ἄλλας τε πόλεις καmicroεῖν ἰσχυρῶς καὶ πεσεῖν ὁλοσχερῶς καὶ ἐξαιρέτως τὴν Κύζικον καὶ τὸν ἐν αὐτῇ ναὸν microέγιστόν τε καὶ κάλλιστον ναῶν ἁπάντων καταρριφῆναι 315 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegamrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV134) 316 I Apol 41-7

60

reinterpretando o rescrito de Adriano317 Desse modo em exigecircncia mediante o que chama de

ldquosatilde razatildeordquo ele sustenta ser justo que os cristatildeos sejam julgados quando porventura vierem a

cometer alguma falta contra a lei ou por algum delito mas nunca por se chamarem ldquocristatildeosrdquo

Eacute em funccedilatildeo do que representava ser ldquocristatildeordquo que o apologista se dedica a algumas

explicaccedilotildees Em sua anaacutelise era por causa do preconceito das crenccedilas pagatildes dos boatos

maliciosos e ainda por certo impulso irracional por parte dos ldquooutrosrdquo que os cristatildeos eram

ofendidos318 O caso de uma mulher que se divorciou do marido pagatildeo narrado na II Apologia

eacute outro exemplo dos atritos corriqueiros que poderiam chegar aos tribunais Segundo o

apologista ldquotodo aquele que eacute repreendido pelo pai vizinho filho amigo marido ou mulher

por causa de uma falta se volta contra [os cristatildeos] por sua obstinaccedilatildeo no mal por seu amor

ao prazer e por sua impotecircncia para seguir o que eacute bomrdquo319 Aleacutem desse caso emblemaacutetico

acontecido havia pouco tempo na cidade de Roma sob Urbico320 ele acrescenta que tais accedilotildees

tambeacutem eram comuns aos governadores em todo o Impeacuterio e que ldquoem todas as partesrdquo havia

quem estivesse disposto a levar os seguidores de Cristo agrave morte321 Em ambas as Apologias

Justino escreve como quem procura alertar o imperador sobre os abusos cometidos contra os

cristatildeos Devido agrave ausecircncia de uma lei geral contra os fieacuteis as accedilotildees anticristatildes aparecem

como fruto dos distuacuterbios locais que emergiam em resistecircncia agrave nova religiatildeo A I Apologia

parece se referir aos atritos gerais contra os cristatildeos enquanto a segunda comeccedila com um

clamor a partir de um caso especiacutefico ocorrido em Roma sob o prefeito Urbico A II Apologia

daacute sinais de que as disputas de Justino com Crescente na capital imperial levavam o

apologista a prever o seu martiacuterio que soacute viria a acontecer no iniacutecio do governo de Marco

Aureacutelio

Marta Sordi322 assim como Robert M Grant323 identifica trecircs fases na poliacutetica

imperial de Marco Aureacutelio mas as duas uacuteltimas extrapolam o contexto em que se insere

Justino A primeira fase se relaciona ao periacuteodo da corregecircncia entre Marco Aureacutelio e Lucio

Vero de 161 a 169 que corresponde em parte aos uacuteltimos anos de Justino Esta fase revela a

princiacutepio a mesma condiccedilatildeo do governo de Antonino Pio mas pode ter sofrido mudanccedilas no

final da deacutecada

317 I Apol 681-10 318 I Apol 23 319 II 12 320 Quintus Lollius Urbicus havia sido incumbido por Adriano na Guerra Judaica (133-135 dC) governou a Germania Menor (136-138 dC) e a Britania (139-142 dC) e foi prefeito de Roma de 146 a 160 dC (Historiae Augustae 54) 321 II 11-2 322 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103 323 Five apologists and Marcus Aurelius Vigiliae Christianae V 42 n 1 Mar1988 pp 1-17

61

Algumas fontes cristatildes (Atas do martiacuterio de Justino 58324 Oroacutesio Historiae Adversus

PaganusVII154325) vinculam a intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo a um edito sobre sacrifiacutecios

Natildeo se tratava de um decreto diretamente contra os cristatildeos A determinaccedilatildeo exigia sacrifiacutecios

aos deuses por todas as cidades do Impeacuterio nos anos de 166168 e devia estar relacionada aos

temores devido agrave peste agrave guerra na Partia e agrave pressatildeo germacircnica326 Justino foi provavelmente

condenado por se negar a obedecer ao novo decreto mas suas Apologias refletem a situaccedilatildeo

dos cristatildeos sob Antonino Pio

Por meio de uma leitura do seu tempo Justino contemplaraacute em seu discurso os

fundamentos desse tipo de accedilotildees Ele apresenta uma desconstruccedilatildeo da forma de controle que

proporciona agreccedilotildees aos cristatildeos e entatildeo oferece uma concepccedilatildeo cristatilde para fundamentar o

estabelecimento da ordem social

O apologista compotildee uma argumentaccedilatildeo para mostrar que a religiatildeo cristatilde poderia

contribuir para a estabilidade da ordem social no Impeacuterio e oferece uma reflexatildeo sobre os

fundamentos da noccedilatildeo de justiccedila na perspectiva cristatilde Por meio do exame do discurso de

Justino identificam-se dois aspectos da relaccedilatildeo entre religiatildeo e controle social no Impeacuterio

Romano contemplados nas accedilotildees anticristatildes de seu tempo O primeiro eacute representado na sua

anaacutelise da repressatildeo aos cristatildeos em funccedilatildeo da preservaccedilatildeo da ordem e o segundo na sua

proposta de contribuiccedilatildeo dos cristatildeos para a manutenccedilatildeo da ordem

324 ldquoAqueles que natildeo desejarem sacrificarem aos deuses e se submeterem ao decreto imperial satildeo condenados primeiro a serem castigados e depois agrave pena capital conforme a leirdquo (Tr A) kai ei=xai tw| tou auvtokragmati( mastigwqevtej avpacqhtwsan( kefalikhn avpotinnuntej dikhn( kata thn twn nomwn avkoluqian) cf Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 p152 325 Eo defuncto Marcus Antoninus solus reipublicae praefuit sed in diebus Parthici belli persecutiones Christianorum quarta iam post Neronem uice in Asia et in Gallia graues praecepto eius exstiterunt multique sanctorum martyrio coronati sunt Cf OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889 326 SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103

62

CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE

MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM

Ao escrever suas Apologias em defesa dos cristatildeos e endereccedilaacute-las ao imperador

Justino se posiciona tanto como um profeta da antiga monarquia de Israel quanto como um

filoacutesofo conselheiro que se prontifica a oferecer conselhos ao governante Eacute possiacutevel

estabelecer uma analogia entre essas duas posturas nesse caso pois para esse pensador o

cristianismo ndash que em certo sentido eacute para os cristatildeos o cumprimento das expectativas de

Israel ndash eacute a ldquoverdadeira filosofiardquo327 Eacute a partir dessa sua perspectiva cristatilde que ele analisa a

forma romana de garantir o estabelecimento da ordem no tocante agrave religiatildeo e que manifesta

suas razotildees para se opor agrave religiatildeo pagatilde

Sua construccedilatildeo apologeacutetica contrasta tal forma de controle romana que acaba por

vitimar os cristatildeos agrave contribuiccedilatildeo cristatilde para a ordem social Seus pronunciamentos agraves vezes

satildeo muito diretos aos governantes ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem

e natildeo tenhais a quem castigar coisa que conviria melhor a verdugos do que a priacutencipes

bonsrdquo328 Na verdade o problema central incide sobre as formas de controle sociais

empregadas para a repressatildeo da expansatildeo dessa nova religiatildeo Por isso os argumentos de

Justino tecircm por objetivo combater algumas das principais queixas sobre os cristatildeos e tambeacutem

informar sobre o caraacuteter de suas crenccedilas e estilo de vida

Nessa parte da pesquisa seraacute analisada a forma como o apologista tece suas criacuteticas ao

procedimento romano contra a religiatildeo cristatilde e agrave postura dos cristatildeos diante dessas outras

religiotildees A proposta de Justino sobre os fundamentos cristatildeos para o controle social seraacute

examinada no proacuteximo capiacutetulo Sua interrogaccedilatildeo eacute a mesma que ainda voltou agrave tona no

seacuteculo XX com G E M de Ste Croix329 em 1963 com A N Sherwin-White330 em 1964 e

com o proacuteprio Ste Croix331 em uma treacuteplica ldquoWhy were the Early Christians persecutedrdquo

Segundo GEM de Ste Croix as perseguiccedilotildees aos cristatildeos eram decorrentes

basicamente da recusa desse grupo em reconhecer os deuses de Roma acarretando uma

situaccedilatildeo de suspeitas de sediccedilatildeo e periculosidade social Os deuses tradicionais do panteatildeo

greco-romano eram as divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma e seus cultos eram

327 II Apol 152 328 I Apol 124 329 Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p6-38 330 Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 331 Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 p28-33

63

uma necessidade para a manutenccedilatildeo da pax deorum [paz dos deuses]332 A perseguiccedilatildeo se

relacionaria ao sentimento religioso da eacutepoca supersticiosa na qual eles viviam333

A N Sherwin-White334 de modo diverso desviou a tocircnica da perseguiccedilatildeo da questatildeo

da pax deorum e lanccedilou seu olhar agrave contumaacutecia dos cristatildeos em se manterem fieacuteis agraves suas

crenccedilas exclusivistas diante do panteatildeo greco-romano Tal postura teria sido interpretada em

muitos momentos como um desafio agraves autoridades romanas Desse modo atrairiam para si

mesmos acusaccedilotildees e suspeitas em decorrecircncia de sua potencial insubordinaccedilatildeo conforme

pode ser visto nas Cartas de Pliacutenio o Jovem a Trajano335

A treacuteplica de GEM Ste Croix336 natildeo colocou um ponto-final na questatildeo e

incomodou a outros estudiosos contemporacircneos Segundo Paul Veyne as comunidades cristatildes

enfrentaram resistecircncias devido agrave aversatildeo romana ldquoao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguordquo337

O fato de o grupo ser ainda pouco conhecido e sustentar a veneraccedilatildeo a um ldquoreirdquo na esperanccedila

de um reino torna a situaccedilatildeo ainda mais complicada Tal hibridez alegada seria notada tendo

em vista que embora possuindo as mesmas categorias de pensamentos dos demais cidadatildeos do

Impeacuterio Romano

os cristatildeos faziam parte do Impeacuterio mas sem os mesmos costumes evitavam conviver com os outros natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo veneravam os deuses nacionais seu Deus natildeo pertencia agrave determinada naccedilatildeo diferente do deus dos judeus Aleacutem de querer se isolar como uma legiacutetima diferenccedila nacional esse Deus pretendia superar os deuses nacionais338

Nesse sentido as perseguiccedilotildees teriam sido causadas pela rejeiccedilatildeo a algo pouco

definido anormal capaz de produzir inseguranccedilas e exigir uma medida cautelar E para

justificar as accedilotildees persecutoacuterias os romanos lanccedilavam matildeo de argumentos tradicionais como

o respeito ao mos maiorum [os costumes ancestrais] e o respeito agrave unidade religiosa e moral

da coletividade

Mesmo apresentando explicaccedilotildees diferentes sobre as perseguiccedilotildees as consideraccedilotildees

de Sherwin-White Ste Croix e Paul Veyne natildeo satildeo completamente opostas Se por um lado

observamos a posiccedilatildeo obstinada dos cristatildeos em manter a sua religiatildeo a ponto de se tornar

332 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p 24 333 Ibid 1963 pp 29-31 Cf DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963 334 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n 27 1964 pp 25 335 Pliacutenio Segundo Cartas X 96-97 336 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 337 VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 338 Ibid p 246

64

uma desobediecircncia contra as autoridades imperiais por outro a religiatildeo romana se baseava na

manutenccedilatildeo do equiliacutebrio das relaccedilotildees entre o Impeacuterio Romano e os deuses tradicionais

Essas explicaccedilotildees decorrem de uma anaacutelise geral das accedilotildees anticristatildes do I ao IV

seacuteculo Um exame mais localizado ndash e em niacuteveis menos oficiais ndash poderia multiplicar as

razotildees pelas quais os cristatildeos foram perseguidos ou chamar a atenccedilatildeo para o fator psicoloacutegico

desses atritos religiosos Essa pesquisa no entanto limitar-se aos aspectos que possibilitem

uma leitura das accedilotildees anticristatildes a partir das Apologias de Justino

O apologista tambeacutem se propotildee a responder a esta questatildeo ldquoPor que os cristatildeos satildeo

perseguidosrdquo Sua leitura teoloacutegica da histoacuteria procura chegar agrave causa uacuteltima motivadora das

accedilotildees anticristatildes desenvolvendo uma trama apologeacutetica que relaciona controle social e

religiatildeo Para compreender suas formulaccedilotildees conveacutem analisar esse conceito chave

ldquoControle socialrdquo pode ser definido como ldquoo conjunto dos recursos materiais e

simboacutelicos que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de

seus membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo339 O termo de

modo geral eacute frequentemente usado para se referir a alguma forma de reaccedilatildeo organizada ao

comportamento pervertido Essa abordagem eacute baseada o trabalho de Stan Cohen que definiu

controle social como ldquorespostas organizadas ao crime delinquecircncia e formas aliadas de

perversatildeo eou comportamento socialmente problemaacutetico os quais satildeo atualmente concebidos

se no reativo sentido (depois do putativo ato ter tomado espaccedilo ou o ator ter sido identificado)

ou no proativo sentido (para prever os atos)rdquo340

A definiccedilatildeo usada por Donald Black341 eacute muito semelhante Ele assinalou que

ldquocontrole social eacute o aspecto normativo da vida social ou a definiccedilatildeo de comportamento

pervertido e a resposta a ele tal como proibiccedilotildees acusaccedilotildees puniccedilotildees e compensaccedilatildeordquo

Segundo esta afirmaccedilatildeo controle social se refere aos mecanismos determinantes usados para

regular a conduta das pessoas que satildeo vistas como pervertidas criminosas preocupantes ou

problemaacuteticas em algum sentido para os outros Todo tempo os sentidos nos quais diferentes

culturas entendem e respondem a diferentes formas de mudanccedilas e ajustes de comportamentos

problemaacuteticos

A causa desses problemas pode ser atribuiacuteda agrave criminalidade perversatildeo imoralidade

maldade perversidade ou alguma combinaccedilatildeo desses Similarmente os mecanismos

empregados para alcanccedilar o controle podem incluir formas variadas de puniccedilatildeo tratamento

339 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 340 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 p 3 341 BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press 1976 pp 1-2

65

dissuasatildeo segregaccedilatildeo ou prevenccedilatildeo342 Desse modo se a combinaccedilatildeo de fatores eacute usada para

compreender e reatar o problema o objetivo eacute promulgar o controle sobre o comportamento

que eacute visto como pervertido em algum sentido

A complexidade do tema se manifesta ainda quando R Meier343 considera que

controle social pode ser encontrado em trecircs principais contextos a) como uma descriccedilatildeo da

condiccedilatildeo ou processo social baacutesico ndash definiccedilatildeo dominante na teoria socioloacutegica claacutessica ndash b)

como um mecanismo para assegurar o cumprimento das normas e c) como um meacutetodo pelo

qual estudar (ou interpretar dados sobre) a ordem social Cohen retoma Joseph Rouceck344

que escreveu em 1947 entendendo controle social como ldquoum termo coletivo para aqueles

processos planejados ou natildeo planejados pelos quais indiviacuteduos satildeo ensinados ou compelidos

a conformar os usos e valores vitais dos gruposrdquo E A Horwitz345 que considerava que o

ldquocontrole social emerge da vida e das praacuteticas sociais e serve para manter o sentido da vida e

das praacuteticas sociais dos gruposrdquo Muitos diriam que tal descriccedilatildeo se aproxima mais dos

processos de socializaccedilatildeo E natildeo eacute preciso ir muito longe para perceber que os dilemas desse

conceito podem vir a ser complexos Tatildeo logo manifesta-se a necessidade de estabeler os

limites desse termo de modo que natildeo seja tatildeo limitado e que tambeacutem natildeo seja tatildeo amplo a

ponto de natildeo ser reconhecido

Segundo a anaacutelise de Martin Innes346 a definiccedilatildeo de Cohen permanece muito flexiacutevel

para mostrar a promulgaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social pelo Estado ou por agentes

profissionais autocircnomos tais como funcionaacuterios de corporaccedilotildees privadas e psiquiatras As

pessoas tendem a usar outros meios antes de recorrer ao aparato formal estabelecido de

controle social subcolocados como satildeo pela lei Mais conflitos satildeo resolvidos sem recursos da

lei ou controle social formal Uma soluccedilatildeo eacute frequentemente negociada ou a perversatildeo

tolerada e a imposiccedilatildeo do controle social tende a ser uma funccedilatildeo de elevada distacircncia

relacional Por isso a extensatildeo do desempenho do controle social atinge tambeacutem um caraacuteter

informal na sociedade

A definiccedilatildeo de controle social como uma resposta organizada a comportamentos

pervertidos natildeo eacute consensual Mas na busca por uma definiccedilatildeo que se adapte aos objetivos

desse trabalho seratildeo levadas em consideraccedilatildeo as proposiccedilotildees de Martin Innes347 Ele sintetiza

342 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 passim 343 MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology 1982 8 pp 35ndash55 344 Social Control Westport CT Greenwood Press 1970 p 3 345 The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990 p 5 346 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 347 Ibid

66

os aspectos da definiccedilatildeo de Cohen em uma abordagem revisionista Seu argumento eacute que

controle social pode ser pensado como um conceito-mestre composto de uma raiz de

diferentes modos de controle e tecnologias

Para estabelecer os limites desse conceito de controle social tambeacutem eacute necessaacuterio

estabelecer conceitos paacutereos como ldquoordem socialrdquo Segundo Erwin Goffman348 as relaccedilotildees

regulares entre as pessoas os variados padrotildees de funcionamento variadamente motivados

de comportamento as rotinas associadas com regras baacutesicas juntos constituem o que pode ser

chamada de uma ldquoordem socialrdquo

Baseando-se nesta definiccedilatildeo pode-se distinguir entre o significado de ordem social e

controle social A promulgaccedilatildeo de controle social eacute frequentemente destinada a proteger a

ordem social mas ordem social natildeo eacute unicamente produto de controles sociais Ao contraacuterio

o conceito de ordem social se refere agraves condiccedilotildees de existecircncia de uma sociedade De fato

toda sociedade tem intrinsecamente um grau de organizaccedilatildeo e entatildeo uma ordem social Uma

ordem social natildeo eacute estaacutetica estaacute constantemente em processo sendo produzida e reproduzida

pela combinaccedilatildeo de atitudes valores praacuteticas instituiccedilotildees e accedilotildees de seus membros

Entatildeo a ordem social eacute composta de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees

as quais de alguma forma contribuem para a constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social As

fronteiras entre as praacuteticas de organizaccedilatildeo social e controles sociais natildeo satildeo fixas nem

estaacuteveis e ao longo do tempo mudam de equiliacutebrio Pois se ordem social se refere ao estado

da sociedade e ao arranjo organizado de seu essencial conhecimento valores accedilotildees

instituiccedilotildees e estabelecimentos controle social se refere aos processos pelos quais se busca

gerir desvios ou conflitos com a ordem social Essas formas de gerenciamento podem ser

formais ou seja institucionalizadas ou informais

Controle social formal se refere a alguma ocasiatildeo onde a imposiccedilatildeo do controle eacute

baseada sobre ou informada por a presenccedila da lei Outras atividades de controle podem ser

definidas como tipo informal349 Dentre essas formas de controle tambeacutem eacute possiacutevel distinguir

os modos reativos e os proativos O primeiro tipo eacute aquele usado para responder algumas

coisas depois que elas tecircm tomado espaccedilo O segundo envolve o caacutelculo da probabilidade de

um ato ocorrer no mesmo ponto no futuro e a manufatura de alguma forma de intervenccedilatildeo em

antecipaccedilatildeo deste Essa eacute uma forma preditiva de controle Tambeacutem eacute possiacutevel distinguir entre

formas de controle social ldquoverticalrdquo para falar sobre o poder diferencial que frequentemente

existe entre controladores e os controlados Controle social para baixo eacute mais comum

348 GOFFMAN E Relations in Public New York Basic Books 1971 p x 349 Cf BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press passim

67

envolvendo alguns com mais poder ou autoridade de regulaccedilatildeo do comportamento de

indiviacuteduos ou grupos menores Contudo o controle social tambeacutem pode ser ldquoupwardsrdquo [para

cima] envolvendo os menos poderosos moldando o comportamento de indiviacuteduos ou grupos

mais poderosos

Eacute numa perspectiva ldquode baixo para cimardquo que Justino questiona a forma de controle

empreendida pelos governantes romanos quando agem contra os cristatildeos Essa perspectiva

contempla as condiccedilotildees do grupo minoritaacuterio daqueles que satildeo considerados adeptos de uma

superstito digna de ser combatida por aqueles que detecircm os meios de controle e dessa forma

eacute produzido um instrumento de controle que busca ldquoconvencerrdquo e intimidar as autoridades e a

todos os demias a natildeo se oporem aos cristatildeos Embora reconheccedila que os governantes satildeo

constituiacutedos por Deus eacute aquilo que ele chama de ldquoreta razatildeordquo que lhe daacute o direito de se

pronunciar350 As autoridades romanas soacute satildeo buscadas porque os conflitos cotidianos quanto

agraves diferenccedilas religiosas produziram atritos e inquietaccedilotildees que abriram margem para que os

romanos aplicassem coaccedilotildees ldquoformaisrdquo Ao questionar a intervenccedilatildeo imperial para a

manutenccedilatildeo da ordem o apologista revela refugiar-se em um padratildeo de justiccedila distinto

daquele dos romanos Em seus escritos ele tambeacutem manifesta uma perspectiva cristatilde da

ordem que seraacute analisada no proacuteximo capiacutetulo

Para se compreender as proposiccedilotildees de Justino seratildeo examinados os seguintes

aspectos a criacutetica aos governantes no processo de manutenccedilatildeo da ordem no tocante aos

cristatildeos as diferenccedilas entre os cristatildeos e as outras religiotildees e sua criacutetica sobre as leis e a

moralidade

31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem

Na I Apologia logo apoacutes o exoacuterdio Justino procura justificar suas razotildees agraves

autoridades agraves quais se refere em peticcedilatildeo Ele escreve que

todo homem sensato manifestaraacute que a melhor exigecircncia ou ainda mais que a uacutenica exigecircncia justa eacute que os suacuteditos possam apresentar uma vida e um pensar irrepreensiacuteveis e que por outro lado igualmente os mandantes deem sua sentenccedila

350 ldquoA razatildeo exige dos que satildeo verdadeiramente piedosos e filoacutesofos que desprezando as opiniotildees dos antigos se estas satildeo maacutes estimem e amem apenas a verdade De fato o raciociacutenio sensato natildeo soacute exige que se abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente mas tambeacutem que o amante da verdade de todos os modos e acima da proacutepria vida mesmo que seja ameaccedilado de morte deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiccedilardquo (I Apol 12)

68

natildeo levados pela violecircncia e tirania mas segundo a piedade e a filosofia Soacute assim governantes e governados podem gozar de felicidade351

O bom procedimento dos suacuteditos conjugado agrave postura iacutentegra de justiccedila daqueles que

tecircm autoridade aparece como condiccedilatildeo para que ldquogovernantesrdquo e ldquogovernadosrdquo desfrutem da

felicidade O que mais chama atenccedilatildeo eacute a seguinte expressatildeo ldquoem algum lugar um dos

antigos disse lsquoSe os governantes e os governados natildeo forem filoacutesofos natildeo eacute possiacutevel os

Estados prosperaremrsquordquo352 Tanto Munier353 quanto Minns e Parvis354 identificam esse trecho

como uma citaccedilatildeo de Platatildeo (Repuacuteblica V 473) Na obra de Platatildeo fica claro o apontamento

da necessidade de que os governantes adiram ao cultivo da sabedoria numa junccedilatildeo de

δύναmicroίς τε πολιτικὴ καὶ φιλοσοφία [poder poliacutetico e filosofia] para que natildeo haja problemas

sociais

Justino ressignifica o conceito de ldquofilosofiardquo a partir da sua experiecircncia cristatilde Desse

modo aqueles que satildeo ldquopiedosos e filoacutesofosrdquo como satildeo chamados o imperador e seus filhos

deveriam julgar com retidatildeo para que todos gozem de bem estar

Haacute vaacuterias hipoacuteteses para justificar o tiacutetulo ldquoPiordquo de Antonino Uma hipoacutetese eacute que esse

nome lhe fora dado por ter defendido a deificaccedilatildeo dedicaccedilatildeo de um templo e concessatildeo de

inuacutemeras honras a Adriano Outras hipoacuteteses levam em conta seu caraacuteter e sua maneira de

ser355 ldquoVerissimusrdquo356 era uma denominaccedilatildeo de Marco Annio Vero que viria a ser o

Imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto O modo como esse apelido eacute empregado

no texto indica provavelmente uma estrateacutegia retoacuterica de Justino Marco era

reconhecidamente chamado de ldquofiloacutesofordquo357 Seus proacuteprios escritos eliminam qualquer

indagaccedilatildeo Poreacutem quando Luacutecio eacute chamado de ldquofiloacutesofordquo isso pode soar estranho Mas antes

de se rejeitar esse tiacutetulo eacute mais prudente tentar compreender se existe uma ligaccedilatildeo isotoacutepica

com a estrutura do texto Se os tiacutetulos ldquoPiordquo e ldquofiloacutesofordquo respectivamente de Antonino e de

Marco Aureacutelio apresentam um forte viacutenculo com a construccedilatildeo do cerne da obra haacute boa razatildeo 351 I Apol 32 Cf Kalhn de kai monhn dikaian proltsgtklhsin tauthn paj o` swfronwn avpofaneitai( to touj avrcomenouj thn euvqunhn tou eautwn biou kai logou alhpton parecein( o`moiwj drsquoauv kai touj arxontaj mh bia| mhde turannidi( avllrsquo euvsebeia| kai filosofia| avkolouqountaj thn yhfon tiqesqai ou[twj gar avrcontej kai oi` avrcomenoi avpolauoien tou avgaqou) MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 352 I Apol 33 Cf An mh oi` arcontej filosofhswsi [kai oi` avrcomenoi]( ouvk av eih taj poleij euvdaimonhsai) Cf MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 353 MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p 172 354 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 85 355 Hist Aug Antoninus Pius 21-10 356 Ele foi carinhosamente chamado ldquoVeriacutessimordquo [Ouvrissiacutemon] como apontou Cassius Dio (Hist Rom 69212) e como aparece tambeacutem na Hist Aug I41 357 Hist Aug Marcus Aurelius 15-9

69

para buscar uma hipoacutetese que aluda agrave possiacutevel relaccedilatildeo do tiacutetulo de Luacutecio com o restante do

texto

Luacutecio foi adotado por Antonino ao mesmo tempo em que Marco e se tornou Luacutecio

Aeacutelio Aureacutelio Commodo Com a morte de seu pai adotivo recebeu o tiacutetulo de Imperador

Ceacutesar como esse seu irmatildeo mas a dimensatildeo do seu poder eacute amplamente questionada Minns e

Parvis358 consideram que nos tempos de sua ldquosaiacutedardquo para as regiotildees do Impeacuterio em 153 ou

154 poderia ser mais prudente incluiacute-lo entre os destinataacuterios Ele eacute chamado de ldquofiloacutesofo

[filosofw|] filho natural de Ceacutesarrdquo no MS A e de filosofou kaisaroj fush| ui`w| [Filho

natural do filoacutesofo Ceacutesar] por Euseacutebio359 Esse tiacutetulo natildeo poderia ser atribuiacutedo ao pai

bioloacutegico de Luacutecio Segundo os registros da Historia Augusta seu pai Luacutecio Aeacutelio Vero

recebeu realmente o tiacutetulo de Ceacutesar do Imperador Adriano mas morreu sem chegar ao posto

elevado Por outro lado haacute evidecircncias suficientes para Justino chamar a Luacutecio filho natural

de Ceacutesar e filho de Pio por adoccedilatildeo de ldquoamante do saberrdquo o que equivaleria a dizer que tinha

uma formaccedilatildeo baacutesica

O tiacutetulo ldquofiloacutesofordquo natildeo se referia a apenas um exiacutemio pensador O filoacutesofo podia ser

algueacutem que se dedicava aos assuntos filosoacuteficos que frequentava alguma escola ou grupo de

discussatildeo ou algueacutem de reconhecido destaque intelectual podendo ser considerado ateacute um

embaixador em assuntos poliacuteticos360 Luacutecio poreacutem natildeo apresentou dons naturais para os

estudos literaacuterios Compocircs versos e oraccedilotildees mas suas habilidades poeacuteticas eram muito

limitadas Haacute quem diga que ele foi ajudado pela inteligecircncia de seus amigos e que muitas das

coisas creditadas a ele foram escritas por outros361 A despeito de Luacutecio ser ndash ou natildeo ndash

reconhecidamente um filoacutesofo essa denominaccedilatildeo podia render uma associaccedilatildeo desses nomes

ao cultivo do saber em geral e da piedade Se por outro lado o tiacutetulo de filoacutesofo viesse a ser

improacuteprio comparado agrave pertinecircncia da forma como Marco Aureacutelio eacute chamado abre-se espaccedilo

para uma nova hipoacutetese Seria esta uma estrateacutegia para chamar a atenccedilatildeo para as proacuteximas

colocaccedilotildees quando o apologista destaca aqueles que dizem ser filoacutesofos e natildeo o satildeo Mais do

que isso o apologista precisa de um elemento que viabilize a abertura de um espaccedilo textual

para a apresentaccedilatildeo do que ele considera ldquoa verdadeira filosofiardquo isto eacute o cristianismo

358 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 38-39 359 Hist Ecle IV121ss 360 DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940 361 Hist Aug Lucius Verus 21ss

70

Justino conheceu vaacuterias correntes filosoacuteficas Uma variedade de escolas poderia ser

encontrada pelo Impeacuterio Euseacutebio362 o chamou de ldquoamante da verdadeira filosofiardquo No

Diaacutelogo com Trifatildeo363 a filosofia eacute por ele reconhecida como ldquoo maior e mais precioso bem

diante de Deus para o qual somente ela conduz e nos associardquo Esses ensinamentos satildeo

considerados ldquosuperiores a toda filosofia humanardquo364 e reconhecidos como ldquoa filosofia segura

e proveitosardquo365 Dessa forma o pensamento cristatildeo eacute revestido de uma aacuteurea de

superioridade capaz de fundamentar sua teoria e sua criacutetica ao modo romano de repelir os

fieacuteis

Em sua leitura teoloacutegica da histoacuteria e dos problemas religiosos do seu tempo o

apologista procura a razatildeo uacuteltima que fundamenta a accedilatildeo humana para aquilo que eacute ldquobomrdquo e

para as accedilotildees de oposiccedilatildeo agrave feacute Eacute trabalhoso encontrar uma definiccedilatildeo para o que eacute ser ldquobomrdquo

segundo seu modo de pensar Sabe-se poreacutem que os cristatildeos satildeo tidos como os que buscam

aquilo que eacute ldquobomrdquo e que por isso natildeo haacute nenhuma razatildeo para persegui-los Aquilo que eacute

ldquobomrdquo pode ser experimentado de forma parcial por aqueles que natildeo satildeo cristatildeos mas essa

experiecircncia deriva de uma mesma fonte coacutesmica da ldquobondaderdquo Por isso ele sustenta que tudo

o que pode ser chamado ldquobomrdquo entre os filoacutesofos e legisladores elaborado por eles mediante

a investigaccedilatildeo e a instituiccedilatildeo foi comunicado pela parcela do Logos que lhes coube De outro

modo Justino afirma que por natildeo conhecerem plenamente o Logos que eacute Cristo eles

frequentemente se contradizem Em seu ponto de vista outrora muitos pensadores que

tentaram investigar e demonstrar as coisas por meio dessa ldquorazatildeordquo tambeacutem foram levados ao

tribunal como Soacutecrates

Em oposiccedilatildeo ao que eacute ldquobomrdquo uma forccedila oposta aparece como a propiciadora do

engano Eacute esse o elemento uacuteltimo responsaacutevel pelo desvirtuamento da sintonia com aquilo

que eacute ldquobomrdquo e que promove as accedilotildees ldquoinjustasrdquo das autoridades Ele escreve ldquoVoacutes poreacutem

natildeo examinais nossos juiacutezos mas movidos de paixatildeo irracional e aguilhoados por democircnios

perversos nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por issordquo366

Segundo sua teoria satildeo os democircnios os uacuteltimos responsaacuteveis por espalhar a ignoracircncia e

mover as autoridades contra os cristatildeos

Sob essa perspectiva ele destaca a transparecircncia cristatilde e a disposiccedilatildeo paciacutefica desse

grupo diante da autoridade imperial ao dever dos governantes

362 Hist Ecles IV83 363 Diaacutelogo com Trifatildeo 21 364 II Apol 153 365 Diaacutelogo com Trifatildeo 81 366 I Apol 51

71

Cabe a noacutes portanto expor ao exame de todos a nossa vida e os nossos ensinamentos para que natildeo nos tornemos responsaacuteveis pelo castigo daqueles que ignorando a nossa religiatildeo pecam por cegueira contra noacutes Contudo o vosso dever eacute tambeacutem ouvir-nos e mostrar-vos bons juiacutezes Com efeito daqui para frente informados como estais caso natildeo ajais com justiccedila natildeo tereis nenhuma desculpa diante de Deus367

A lealdade dos cristatildeos natildeo era algo evidente e por isso eacute uma das principais

preocupaccedilotildees do apologista ratificaacute-la Justino assinala que havia suposiccedilotildees inclusive de

que os cristatildeos arquitetavam algum tipo de irrupccedilatildeo de outro ldquoreinordquo quando de fato falavam

do ldquoreino de Deusrdquo em todos os seus aspectos espirituais (I Apol 111) A nova religiatildeo jaacute se

espalhava pelo Impeacuterio havia um seacuteculo mas eacute provaacutevel que natildeo tivesse alcanccedilado um

nuacutemero expressivo de fieacuteis Aleacutem disso ainda natildeo existia uma estrutura eclesiaacutestica bem

formada O marcionistas os valentinianos e outros grupos tornavam a questatildeo da identidade

cristatilde um assunto das apologias justinianas e de outros escritores e pregadores que pretendiam

definir quem eram os ldquocristatildeosrdquo

32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus

Na verdade o exclusivismo caracteriacutestico do monoteiacutesmo cristatildeo contrastava com a

religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio As accedilotildees importantes do Estado sempre envolviam rituais

sagrados Comemoraccedilotildees de vitoacuterias e triunfos do exeacutercito normalmente culminavam em

procissotildees e sacrifiacutecios E a proacutepria estabilidade social dependia de uma barganha feita com

os deuses para a manutenccedilatildeo da paz368

Os variados rituais produziam interaccedilotildees entre deuses e homens na religiatildeo romana

Por meio deles eram marcados todos os eventos puacuteblicos e celebraccedilotildees que envolviam

festivais anuais os juramentos ou aniversaacuterios das fundaccedilotildees de templos Tambeacutem podiam

estar relacionados aos jogos ou agraves performances dramaacuteticas que tinham elementos rituais em

seu programa ainda que incluiacutessem o entretenimento entre seus propoacutesitos Os jogos jamais

perderam seu aspecto ritual Cria-se que nessas ocasiotildees os deuses desciam para assisti-los e

entatildeo eram realizados rituais religiosos inclusive representados perfeitamente para que a

cerimocircnia fosse bem sucedida De modo geral tambeacutem os sacrifiacutecios eram feitos estritamente

367 I Apol 34 368 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35

72

segundo regras e tradiccedilotildees que necessariamente tinham de ser respeitadas369 Os prodiacutegios

envolviam quase todos os grupos de influecircncia nas decisotildees estatais ndash os coleacutegios sacerdotais

o senado os magistrados e ocasionalmente o povo nas comitia370

A criaccedilatildeo de novos lugares sagrados sejam templos propriamente ditos ou santuaacuterios

com um altar era tema de interesse puacuteblico e conflito potencial371 Alguns templos eram fruto

de promessas de generais em batalhas Com o tempo expandiram-se pelo espaccedilo urbano

representando uma imagem visiacutevel do domiacutenio romano sobre o Mediterracircneo e assinalando a

contribuiccedilatildeo de novos e antigos deuses em cada estaacutegio dessa conquista

Os rituais religiosos estavam intimamente ligados agraves demais atividades de guerra e

paz Desse modo a aprovaccedilatildeo de uma lei ou a eleiccedilatildeo de magistrado eram atos que envolviam

a tomada dos augures responsaacuteveis pelo sistema especial de regras que os controlavam o ius

augurale372 Os limites dessa religiosidade natildeo satildeo muito bem definidos Mas tanto o povo

quanto os magistrados demonstravam respeito pelas obrigaccedilotildees religiosas

A religiatildeo e os deuses estavam entre os fatores importantes na determinaccedilatildeo dos

eventos e na garantia de suas reivindicaccedilotildees de autoridade e comando dos agentes puacuteblicos

romanos Era tambeacutem uma das expressotildees da ideologia da elite romana e da manutenccedilatildeo do

poder E ainda como escreve Claudia B Rosa

ao mesmo tempo eram os rituais que garantiam as relaccedilotildees entre dois grupos homens e deuses Garantir os ritos representava a certeza da manutenccedilatildeo da sociedade como a queriam ordenada e segura Ao registrar as regras de comportamento como o respeito aos deuses sobretudo em seus espaccedilos ao curvar-se sob a autoridade dos rituais o cidadatildeo garantia a ordem social e a pax deorum e as praacuteticas que acarretavam a transgressatildeo agrave ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e agrave desagregaccedilatildeo A concoacuterdia entre homens e deuses eacute a garantia da ordem romana373

No I seacuteculo aC Augusto se tornou membro de todos os coleacutegios sacerdotais

assumindo o papel de pontifex maximus liderando os demais sacerdotes Se esta interpretaccedilatildeo

for correta ela representa a nova e revolucionaacuteria ordem religiosa do periacuteodo imperial e todos

os seus sucessores foram tambeacutem pontifices maximus ateacute o seacuteculo IV aC Desde entatildeo o

imperador se via responsaacutevel pela construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de templos O poder religioso e o

poder poliacutetico se assentaram sobre um mesmo indiviacuteduo no novo regime do Impeacuterio374

369 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 370 Assembleia dos cidadatildeos romanos 371 ROSA Claudia Beltratildeo Op cit p 144 Ciacutecero indica duas ocasiotildees em que tentativas de dedicaccedilotildees foram canceladas pelos pontiacutefices porque natildeo haviam sido aprovadas pelos comitia (De domo sua 136) 372 LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 1986 pp 2146-312 373 ROSA C B Op cit p 145-146 374 Ibid p 147

73

Conforme escreveu Paul Veyne375 ldquoO Estado com certeza exercia sua autoridade sobre os

cidadatildeos que lhe deviam tudo Mas mesmo assim apenas em circunstacircncias excepcionais

um decreto obrigaria cada cidadatildeo a tomar parte numa cerimocircnia puacuteblica []rdquo Devia-se no

entanto zelar pela pax deorum para a prosperidade e seguranccedila no Impeacuterio376

Natildeo havia uma ldquodependecircnciardquo humana em ralaccedilatildeo aos deuses o que existia era o

reconhecimento da superioridade daqueles seres que viviam entre os humanos Esse

reconhecimento cuacuteltico piedoso estava relacionado agrave barganha Esperava-se conhecer o

futuro escapar do perigo obter boas colheitas ter boa sauacutede sem que isso significasse que os

deuses estariam agrave disposiccedilatildeo a todo instante377

As accedilotildees de Augusto podem evidenciar uma estreita conexatildeo com episoacutedios de

restauraccedilatildeo e especialmente com as recorrentes observaccedilotildees de que as tradiccedilotildees ancestrais

estavam sendo perdidas ou abandonadas O ldquoculto imperialrdquo passa a representar uma novidade

no iniacutecio do Impeacuterio Se os apelos agrave restauraccedilatildeo das crenccedilas e tradiccedilotildees eram presentes nos

discursos natildeo se pode falar em uma nova forccedila religiosa ou uma nova religiatildeo no periacuteodo

imperial

Essas praacuteticas religiosas proporcionaram choques com judeus e depois com os

cristatildeos Sendo monoteiacutestas era impossiacutevel aceitar a inclusatildeo de deuses e cultos Os judeus

sacrificavam em prol do imperador e natildeo para o imperador jaacute os cristatildeos recusavam-se a

participar de qualquer sacrifiacutecio Considerando que os altares ao imperador eram colocados

muito proacuteximos ao tribunal do magistrado que ouvia os seus casos pode-se pensar que tal

sacrifiacutecio ao chefe do Impeacuterio era mais simboacutelico do que de adoraccedilatildeo e funcionava como sinal

de lealdade a Roma378 Secircneca em sua Apocolocyntosis do Divino Claacuteudio escrita

provavelmente no iniacutecio do reinado de Nero apresenta conotaccedilotildees negativas a respeito da

deificaccedilatildeo dos governantes em geral o que indica que existiam aqueles que natildeo viam com

bons olhos o processo de deificaccedilatildeo do governante Mas para a populaccedilatildeo geral do Impeacuterio

natildeo havia problemas em aceitar que o imperador pudesse ser tratado como um deus

A partir da sua expansatildeo e domiacutenio por um vasto territoacuterio o poder romano teve que

lidar com os problemas de integraccedilatildeo das regiotildees conquistadas Conforme tem destacado

375 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 244 376 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 p 15 377 MACMULLEN Ramsay Christianizatin the roman empire (AD 100-400) New Haven Yale University Press 1984 p 13 378 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 150

74

Claudia M Beltratildeo379 o mapa da peniacutensula Itaacutelica o Oriente Proacuteximo o norte da Aacutefrica e

Europa conformam uma rede que se aglutina em torno de Roma constituindo um espaccedilo

dinacircmico de interconexatildeo espaccedilo no qual se daratildeo variados modos de relaccedilatildeo Essa complexa

relaccedilatildeo exigia tambeacutem uma forma de lidar com os cultos estrangeiros

A cultura romana tornou-se sinteacutetica e sintetizante e relativamente favoraacutevel agrave

incorporaccedilatildeo de cultos estrangeiros Roma natildeo apenas se tornou o centro poliacutetico do mundo

por ela construiacutedo como tambeacutem passou a abrigar o nuacutecleo das religiotildees Segundo a anaacutelise

de Ceciacutelia Ames380 o caraacuteter sinteacutetico da religiatildeo romana que combina rito paacutetrio rito grego

e disciplina etrusca facilitou aos romanos a integraccedilatildeo de cultos estrangeiros e a difusatildeo de

seu proacuteprio sistema nos territoacuterios constituindo-se em um elemento chave na relaccedilatildeo destes

espaccedilos interconectados Sua toleracircncia e flexibilidade no entanto tambeacutem incluiacuteam

mecanismos para regular o fluxo de ideias e praacuteticas estrangeiras381 O senado era o oacutergatildeo

responsaacutevel por velar e vigiar da tradiccedilatildeo e da religiatildeo A necessidade de controle cresce junto

com a expansatildeo dos domiacutenios de Roma

Dentro da sua anaacutelise Justino se incomoda com o fato de que no meio de um universo

tatildeo vasto de culturas que se encontram no Impeacuterio Romano os cristatildeos sejam muitas vezes

odiados e levados agrave morte Para o apologista essa eacute mais uma evidecircncia da ignoracircncia

disseminada pelos maus democircnios que faz com que de algum modo as crenccedilas cristatildes sejam

tachadas de irracionais Enquanto isso ldquoalguns cultuam aacutervores rios382 ratos gatos

crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionaisrdquo de modo que todos satildeo iacutempios entre si por

natildeo terem a mesma religiatildeo (I Apol 241) O apologista na verdade aponta aquilo que

considera ser uma incoerecircncia nessa estrutura intercultural

Estaacute evidente que sua anaacutelise eacute dependente da sua loacutegica cristatilde mas Luciano de

Samosata tambeacutem apontava no seacuteculo II dC a ldquoconfusatildeordquo causada pelas diferentes opiniotildees

sobre os Deuses383 Plutarco um pouco antes anotara que a adoraccedilatildeo a diferentes formas de

379 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 151 380 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 p 342 381 Cf MACMULLEN R Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 382 Sextus Empiricus cita a afirmaccedilatildeo de Prodicus de que ldquoos antigos tinham como deus o sol a lua os rios e as primaveras [] assim como os Egiacutepicios deificavam o Nilordquo (Adversus Dogmaticos I18) apud MINNS PARVIS Op cit p 143 383 Juppiter Tragoedus 42

75

animais causava disputas entre seus adoradores384 Juvenal385 tambeacutem menciona que a

contenda se instalava na vizinhanccedila egiacutepcia quando um odiava o deus do outro e sustentava

que somente o seu deus predileto era o deus verdadeiro Essas diferenccedilas poderiam causar

ainda deboches sobre os deuses alheios entre os diferentes povos no Impeacuterio assim como

Clemente de Alexandria diz que os gregos faziam aos deuses e as crenccedilas egiacutepcias386 A

estranheza dos deuses dos outros povos tambeacutem chamou a atenccedilatildeo de Ciacutecero que indagava

Se existem divindades agraves quais adoramos e consideramos como tais por que natildeo Serapis e Isis localizadas no mesmo ranque E se eles satildeo admitidos que razatildeo temos noacutes para rejeitar os deuses dos baacuterbaros Entatildeo noacutes devemos deificar bois cavalos iacutebis gaviotildees viacuteboras crocodilos peixes cachorros lobos gatos e muitas outras bestas Se noacutes vamos de volta agraves fontes destas supersticcedilotildees devemos igualmente condenar todas as divindades das quais eles procedem [] Se vocecircs natildeo deificarem a um bem como o outro o que seraacute de Ino Pois todos esses deuses tem a mesma origem387

Diante desse universo de pensamentos e crenccedilas distintos os romanos tinham o

desafio de conceber formas para garantir a integraccedilatildeo desses grupos Justino acentua que

diante dessa variedade de ideias somente os cristatildeos satildeo perseguidos e vecirc nisso mais uma

evidecircncia de que as accedilotildees anticristatildes satildeo arquitetadas pelos maus democircnios Mas os cristatildeos

natildeo haviam sido os uacutenicos a serem cerceados pelas autoridades romanas

Nos anos 180 aC o culto a Baco despertou suspeitas e passou a ser tratado como uma

ameaccedila agrave ordem Infelizmente as fontes sobre essa questatildeo se resumem a um decreto do

Senado388 regulando o culto e um longo relato de Tito Liacutevio389

Natildeo eacute uma tarefa simples determinar qual foi o epicentro do problema Talvez natildeo se

referisse a uma crise religiosa propriamente dita representando um caso de accedilatildeo policial

contra uma conspiraccedilatildeo Mas o decreto do Senado preservado numa placa de bronze

endereccedilado a uma das cidades aliadas indica uma preocupaccedilatildeo em inviabilizar possiacuteveis

agrupamentos potencialmente conspiratoacuterios Proibia-se aos grupos ter liacutederes ou sacerdotes

masculinos tesouro juramentos ou fieacuteis Ele tambeacutem restringia o tamanho desses

aglomerados e a estrutura de seus membros390 De algum modo a organizaccedilatildeo dos baacutequicos

deve ter ameaccedilado aos romanos tambeacutem por trazer uma nova e perigosa forma de poder

384 De Iside et Osiride 72 385 Saacutetiras XV37-38 386 Protrepticus 2396 387 De natura deorum III19(47) 388 Senatus Consultum de Bacchanalibus In JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961 pp 26-27 389 Histoacuteria de Roma 398-19 390 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 152

76

Os seguidores de Baco no entanto natildeo eram hostis a nenhum deus do Impeacuterio

Tambeacutem natildeo rejeitavam os sacrifiacutecios nem viam os deuses como democircnios e natildeo tinham

nenhum problema com os rituais tradicionais Tito Liacutevio daacute sinais dessa suspeita num

discurso que atribuiu ao cocircnsul Postumio Albino numa contio391 quando falou ao povo da

ameaccedila de um poder rival

A menos que vocecircs se precavejam homens de Roma esta vossa assembleia diurna apropriadamente reunida pelo cocircnsul seraacute rivalizada por sua assembleia noturna Nesse momento eles separadamente temem a vocecircs agora reunidos em assembleia quando vocecircs retornarem agraves suas casas e fazendas eles se reuniratildeo para decidirem sobre sua proacutepria salvaccedilatildeo e a vossa ruiacutena Seraacute quando vocecircs separadamente teratildeo de temecirc-los reunidos (39164)

Segundo a anaacutelise de Clara Gallini os adeptos ao culto eram grupos marginais392 As

bacanais seriam lugares de evasatildeo para a massa de pobres e deserdados com graves

problemas econocircmicos e sociais devido agrave situaccedilatildeo que atravessava Roma A crise social teria

se manifestado em uma forma representativa de protesto religioso por meio dos quais se

buscaram respostas religiosas a problemas da sociedade pretendendo uma liberaccedilatildeo religiosa

Deste modo a repressatildeo dos cultos baacutequicos tambeacutem representaria a repressatildeo de uma

sociedade na qual uns poucos os membros da oligarquia romana decidem impotildeem as regras

e governam a maioria No entanto ainda que os problemas sociais fossem evidentes natildeo eacute

possiacutevel afirmar que atraacutes destes cultos se escondia uma revolta contra as estruturas vigentes

nem ver os rituais baacutequicos como uma espeacutecie de esperanccedila em uma nova liberdade pois

essas interpretaccedilotildees como bem sustentou C Ames393 sofrem de anacronismo

Outros grupos religiosos no periacuteodo posterior a Bacanalia tambeacutem foram objeto de

uma accedilatildeo hostil das autoridades romanas Os caldeus chamados presumivelmente de

astroacutelogos foram expulsos de Roma em 139 aC Depois os seguidores de Iacutesis em vaacuterias

ocasiotildees na Repuacuteblica Tardia e no primeiro principado Tambeacutem os judeus enfrentaram seacuterias

dificuldades com os romanos em certos momentos394

Com a viabilizaccedilatildeo de um maior nuacutemero de viagens e trocas comerciais e culturais no

Impeacuterio Romano o conhecimento das variadas religiotildees deuses e crenccedilas tambeacutem podia

viajar rapidamente E isso significou ter que lidar com atritos decorrentes dessas diferenccedilas

envolvendo inclusive o judaiacutesmo o cristianismo e o maniqueiacutesmo

391 Audiecircncia convocada 392 GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52 393 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 p 344 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 394 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Op cit pp 161 230 231

77

De um modo bem diferente desses monoteiacutesmos de caraacuteter exclusivista entre as outras

crenccedilas como nas religiotildees de misteacuterios os adeptos natildeo rejeitavam ou condenavam outros

deuses Tambeacutem natildeo era necessaacuterio evitar os festivais e rituais da cidade ou a praacutetica do culto

imperial Natildeo havia nada que os pusesse em conflito com as autoridades Ocasionalmente

recebiam o apoio de membros da elite romana

Justino todavia procura mostrar que natildeo havia nenhum motivo para os romanos se

preocuparem com os cristatildeos afinal eles reconheciam que toda autoridade eacute constituiacuteda por

Deus e por isso devia ser respeitada Eacute fazendo jus a certo sentido de transparecircncia que o

apologista julga indispensaacutevel nas relaccedilotildees entre governantes e governados que ele entatildeo se

prontifica em demonstrar as razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo se misturavam com outros

deuses Com confianccedila ele afirma ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo

veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo

colocamos coroas nos sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo395

O fato de os cristatildeos natildeo concordarem com os sacrifiacutecios pagatildeos natildeo faz sentido

isoladamente aos incocircmodos caluacutenias e perseguiccedilotildees sofridos Parece ser razoaacutevel que por ser

um grupo cujas crenccedilas natildeo estavam bem sistematizadas e que se espalhavam pelo Impeacuterio as

caluacutenias oriundas dos atritos culturais podem ter chegado agraves autoridades e despertado

desconfianccedila396 Calumnia era um crime condenado pelas leis romanas desde o I seacuteculo aC e

se exatamente agraves acusaccedilotildees falsas e maliciosas397 As accedilotildees anticristatildes todavia natildeo podem

ser analisadas em termos generalizantes e absolutos pois passam por diversos momentos

Embora os cristatildeos natildeo representem uma ameaccedila poliacutetica na perspectiva de Pliacutenio por

exemplo o fato de natildeo praticarem o culto ao imperador e a separaccedilatildeo das praacuteticas idoacutelatras da

esfera puacuteblica interseciona a questatildeo poliacutetica agrave religiosa

Seria essa uma boa razatildeo para Justino explicar em seu projeto apologeacutetico por que os

cristatildeos natildeo participavam de sacrifiacutecios a outros deuses e natildeo lhes ofereciam culto Seu

argumento eacute diametralmente oposto a ou]j anqrwpoi [esses homens] que oferecem sacrifiacutecios

aos que eles proacuteprios datildeo forma colocam nos templos e chamam de deuses Ele justifica a

crenccedila cristatilde apenas dizendo ldquosabemos que [esses deuses] satildeo coisas sem alma e mortas que

395 I Apol 242 396 Cf VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006 Passim URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932 397 ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 Passim BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 p 238 Cf I Apol 267

78

natildeo tem forma de Deusrdquo398 (I Apol 91) Afirma tambeacutem que os nomes e figuras que os

deuses assumem satildeo arquitetados pelos maus democircnios de modo que coisas corruptiacuteveis que

necessitam de cuidado recebem o nome de Deus Agrega-se ao seu argumento que os artesatildeos

dos deuses satildeo pessoas dissolutas e que eacute uma estupidez fazer guardas para os deuses nos

templos Na sequecircncia o autor introduz a justificativa cristatilde para esse distanciamento de tais

praacuteticas ldquo aprendemos que Deus natildeo tem necessidade de nenhuma oferta material dos

homens pois vemos que eacute ele quem nos concede tudordquo399 (I Apol 93) Em resposta a essa

benevolecircncia divina espera-se a gratidatildeo humana que soacute pode ser atestada atraveacutes do ldquobom

sensordquo [swfrosunhn] da ldquojusticcedilardquo [dikaiosunhn] do ldquoamor aos homensrdquo [filanqrwpian] e

numa expressatildeo pouco clara em ldquotudo que conveacutem a um Deus que natildeo pode ser chamado por

nenhum nome impostordquo400 (I Apol 101) Enquanto para o apologista os deuses pagatildeos satildeo

criados por matildeos humanas o Deus cristatildeo eacute apresentado como aquele que concederaacute a sua

presenccedila aos dignos Assim Justino demonstra estar certo de que os cristatildeos tecircm um

conhecimento superior ao dos que creem em outros deuses a ponto de se satisfazer em dizer

ldquosabemosrdquo ldquoaprendemosrdquo ou ldquocremosrdquo e isso basta

Se por um lado a perspectiva escatoloacutegica cristatilde do ldquoreinordquo natildeo implicava nenhuma

conspiraccedilatildeo poliacutetica contra os romanos seu iacutempeto proselitista causava tanto rumores quanto

um nuacutemero crescente de conversos Eacute por isso que ateacute meados do seacuteculo II quando Justino

escreve as accedilotildees anticristatildes tecircm suas raiacutezes nas relaccedilotildees interculturais travadas no proacuteprio

processo de expansatildeo da mensagem cristatilde Isso significa que os mecanismos de controle

social empregados contra os cristatildeos pelas autoridades imperiais satildeo requeridos mediante os

problemas locais E pode-se dizer que por ser uma religiatildeo emergente outros como Pliacutenio

natildeo sabiam como proceder diante das denuacutencias e caluacutenias contra esse novo grupo

Os cristatildeos formavam um grupo em expansatildeo que estava no Impeacuterio mas viviam de

modo diferente e procuravam evitar a participaccedilatildeo de todo tipo de praacuteticas contraacuterias agraves

prescriccedilotildees doutrinaacuterias cristatildes Natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo

veneravam os deuses nacionais e seu Deus natildeo pertencia a uma naccedilatildeo mas deveria ser

reconhecido como superior a todos os outros401

398 evpei ayuca kai nekra tauta ginwskomen kai qeou morfhn mh econta cf MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 96 399 Ouv deesqai thj para avnqrwpwn ulikhj prosforaj proseilhfamen ton qeon( auvton pareconta panta orwntej ibid p 96 400 o[as oivkeia qew| evsti( tw| mhdeni ovnomati qetw| kaloumenw| MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 401 Cf MACMULLEN Ramsay Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966 Id Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997

79

Justino insere o seu testemunho pessoal

Eu mesmo quando seguia a doutrina de Platatildeo ouvia as caluacutenias contra os cristatildeos Contudo ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que eacute considerado espantoso comecei a refletir que era impossiacutevel que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres Com efeito que homem amante do prazer intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas poderia abraccedilar alegremente a morte que vai privaacute-lo de seus bens402

Prossegue sua queixa ldquobuscando condenar agrave morte alguns cristatildeos fundados nas

caluacutenias contra noacutes arrastaram tambeacutem escravos meninos e mulheres e por meio de incriacuteveis

tormentos os forccedilam a repetir contra noacutes o que o povo inventardquo403 No entanto ele eacute enfaacutetico

contra esse tipo de opiniatildeo sustentada sobre os cristatildeos ldquonada disso nos diz respeitordquo404

Justino tambeacutem nega que os cristatildeos abusariam de homens e se uniriam destemidamente com

as mulheres Seguindo para o desfecho de seu escrito ele faz uma declaraccedilatildeo reveladora ldquoA

verdade eacute que nos fazem guerra de mil modos exatamente porque ensinamos a fugir de

semelhantes doutrinas e daqueles que praticam tais coisas ou imitam tais exemplos como

mesmo nesse discurso que vos dirigimosrdquo405 Tal declaraccedilatildeo de Justino daacute margem para a

reflexatildeo sobre esse processo de ldquonegativizaccedilatildeordquo da figura do ldquooutrordquo que condena as praacuteticas

que ldquoumrdquo pratica Segundo esse pensador os cristatildeos seriam muitas vezes caluniados por

condenarem as praacuteticas dos outros que em retaliaccedilatildeo se esforccedilariam por difamar os

seguidores do nazareno

Por isso tambeacutem parece significativo considerar que os atritos com os cristatildeos natildeo

satildeo decorrentes de uma preocupaccedilatildeo poliacutetica para minar um potencial grupo subversivo Satildeo

destacados alguns aspectos desses atritos que se remetem agraves caluacutenias e maus comentaacuterios

sobre os cristatildeos que desembocam na estigmatizaccedilatildeo desse grupo Eacute preciso lembrar que o

contexto no qual o discurso de Justino estaacute inserido se refere a meados do II seacuteculo quando o

impacto do estilo de vida dos cristatildeos era sentido apenas em niacuteveis locais ainda que em

diversas regiotildees Os cristatildeos jaacute se encontravam pela Siacuteria-Palestina Egito Aacutesia Menor

Peniacutensula Itaacutelica e outras regiotildees mas o nuacutemero de fieacuteis ainda era muito pequeno diante do

tamanho do Impeacuterio Romano406 O desprezo e o combate por parte dos cristatildeos aos deuses

pagatildeos provocavam ocasionalmente reaccedilotildees e mobilizaccedilotildees contra os proacuteprios cristatildeos Por se

tratar de um grupo distinto com praacuteticas pouco conhecidas as caluacutenias se propagaram como

402 II Apol 121-2 403 II Apol 124 404 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 405 II Apol 126 406 GIBBON Edward Number of Christians in the Empire under Diocletioan and Constantine In _____ The History of the Decline and Fall of the Roman Empire ed JB New York Fred de Fau and Co 1906 pp 337 341

80

uma forma de defesa dos pagatildeos A perseguiccedilatildeo de Nero no I seacuteculo havia aberto precedentes

para a condenaccedilatildeo dos cristatildeos mas sua determinaccedilatildeo foi limitada agrave execuccedilatildeo de seu plano de

acobertar as suspeitas de seu envolvimento no incecircndio de Roma Na primeira metade do II

seacuteculo alguns tumultos procuravam condenar os cristatildeos buscando sem um enquadramento

juriacutedico algo que foi condenado por Adriano na Aacutesia Em outros casos como o que relatou

Pliacutenio a Trajano procurava-se por um crime que condenasse os cristatildeos Desse modo as

acusaccedilotildees tais como canibalismo denuacutencia de ateiacutesmo imoralidades e inclusive de

infidelidade ganhavam forccedila Essas caluacutenias somadas ao precedente neroniano fizeram com

que para muitos como Trajano e Urbico o nomen Christianum assumisse um significado

negativo Essa conotaccedilatildeo negativa no entanto natildeo se instalou apenas em funccedilatildeo das caluacutenias

Conforme destacou Paul Veyne407 ldquoas autoridades natildeo acreditavam que os cristatildeos comiam

criancinhas ou praticavam incesto todos os domingos a atitude polecircmica de Celso a respeito

da nova religiatildeo natildeo fazia alusatildeo a essas praacuteticas considerando-as um fato socialrdquo Se para o

povo em geral o oacutedio e o medo pela estranheza dos cristatildeos faziam-lhes repulsivos para as

autoridades a ausecircncia de participaccedilatildeo nas praacuteticas puacuteblicas ou mesmo a contumaacutecia em natildeo

negar a feacute diante do magistrado faziam com que os pedidos de condenaccedilatildeo fossem acatados

Neste momento cabe destacar que entre os tipos de estigmas destacados por Erving

Goffman408 estatildeo os tribais de raccedila naccedilatildeo e religiatildeo considerados suscetiacuteveis de uma

transmissatildeo por heranccedila e decontaminar outros ao redor Nesses estigmas encontram-se os

seguintes traccedilos socioloacutegicos

un individuo que podiacutea haber sido faacutecilmente aceptado en un intercambio social corriente posee un rasgo que pude imponerse por la fuerza a nuestra atencioacuten u que nos lleva a alejarnos de eacutel cuando lo encontramos anulando el llamado que nos hacen sus restantes atributos Posee un estigma una indeseable diferencia que no habiacuteamos previsto

Essa diferenccedila se torna o elemento fundamental para a praacutetica de vaacuterios tipos de

discriminaccedilatildeo Consciente ou inconscientemente se constroacutei uma teoria do estigma uma

ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do perigo que representa essa pessoa

racionalizando agraves vezes uma animosidade que se baseia em outras diferenccedilas

Goffman409 natildeo deixa de contemplar em sua anaacutelise a possibilidade de sujeitos

estigmatizados permanecerem ilhados protegidos por suas crenccedilas proacuteprias sobre sua

identidade mas ao mesmo tempo em constante contato com os outros Nesse sentido os 407 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 408 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 16 Tr A ldquoum indiviacuteduo que podia ter sido facilmente aceito num intercacircmbio social corrente possui um traccedilo que pode impor-se agrave forccedila a nossa atenccedilatildeo e que nos leva a nos afastarmos dele quando o encontramos anulando a chamada que nos fazem seus ouros atributos Possui um estigma uma indesejaacutevel diferenccedila que natildeo haviacuteamos previstordquo 409 Ibid p 17

81

seguidores da Igreja dos disciacutepulos de Jesus de Nazareacute podiam refugiar-se em suas crenccedilas

proacuteprias a saber seu proacuteprio modo de se autodefinir como ldquocristatildeosrdquo Enquanto o termo

ldquocristatildeordquo eacute capaz de referir-se a algueacutem de uma superstitio ilicita que abusa das crianccedilas que

se une promiscuamente com homens e mulheres que acredita em lendas de um deus

encarnado e nascido de uma virgem cujos fieacuteis se reuacutenem para comer sua carne em reuniotildees

secretas e assim se torna estigma de algueacutem despreziacutevel por outro lado ganha outro

significado para os seguidores do Cristo

Os atritos entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos poderiam surgir em decorrecircncia do exerciacutecio da

anunciaccedilatildeo da mensagem cristatilde ou devido ao apelo agrave mudanccedila de conduta e implementaccedilatildeo

de novos haacutebitos O caso mais emblemaacutetico apontado por Justino eacute o que aparece na II

Apologia

Certa mulher vivia com o seu marido homem dissoluto e antes de se tornar cristatilde se entregara agrave vida licenciosa Todavia logo que conheceu os ensinamentos de Cristo natildeo soacute se tornou casta como procurava tambeacutem persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme a reta razatildeo Ele poreacutem obstinado na dissoluccedilatildeo com a sua conduta desanimou a sua mulher [] Depois disso para natildeo se tornar cuacutemplice de tais iniquidades e impiedades permanecendo no matrimocircnio e partilhando o leito e a mesa com tal homem ela [] separou-se [] Despeitado [] [] a acusou diante dos tribunais dizendo que ela era cristatilde [] natildeo podendo na ocasiatildeo fazer nada contra a mulher voltou-se contra Ptolomeu que Urbico chamara ao seu tribunal por ter sido mestre dela nos ensinamentos de Cristordquo410

A uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se era cristatildeo Apoacutes

confessar foi condenado ao supliacutecio Justino ainda conta que certo Luacutecio advertiu a Urbico e

do mesmo modo foi conduzido ao supliacutecio Um terceiro sobreveio mas tambeacutem foi

condenado agrave morte411

Se fosse um caso isolado esse episoacutedio jamais poderia servir como pista para

fundamentar a hipoacutetese de que significativamente os atritos com os cristatildeos podem surgir

tambeacutem devido agrave condenaccedilatildeo das praacuteticas dos natildeo-cristatildeos Mas outras evidecircncias se

mostram Os Evangelhos do Novo Testamento (Mt 1413-12 Mc 614-28 Lc 318-20 97-9)

afirmam que Joatildeo Batista foi para a prisatildeo por repreender ao rei Herodes que vivia com

Herodiacuteades a mulher de seu irmatildeo e por outros crimes cometidos pelo governante Flaacutevio

Josefo escreveu que Herodes temeu que o povo fosse influenciado para uma sublevaccedilatildeo e por

isso encaminhou Joatildeo Batista para o caacutercere412 Embora pareccedilam discrepantes pode haver

alguma convergecircncia nas duas versotildees O ldquoprofetardquo Joatildeo Batista devia fazer repreensotildees

410 II Apol 2 411 II Apol 216-20 412 Ant Jud II 52

82

puacuteblicas condenando os haacutebitos do rei Herodes e a sua uniatildeo com Herodiacuteades o que poderia

despertar alguma inseguranccedila quanto agrave reaccedilatildeo do povo

Outras ocorrecircncias podem ser identificadas Quando Paulo repreendeu um espiacuterito de

adivinhaccedilatildeo de uma jovem escrava quando estava em Filipos na Macedocircnia os patrotildees da

moccedila se irritaram pois exploravam aquela habilidade da jovem para lucrar Por isso levaram

Paulo e seu companheiro Silas aos magistrados e disseram ldquoEsses homens estatildeo provocando

desordem em nossa cidade satildeo judeus e pregam costumes que a noacutes romanos natildeo eacute

permitido aceitar nem seguirrdquo A multidatildeo se levantou contra Paulo e Silas e depois disso

foram accediloitados e presos sem julgamento formal 413 Em Eacutefeso os artesatildeos teriam visto na

doutrina de Paulo mais do que uma ofensa agrave religiatildeo uma ameaccedila a seus negoacutecios Conta-se

que um ourives chamado Demeacutetrio que fabricava miniaturas em prata no templo de Diana

reuniu alguns artesatildeos e outros profissionais do ramo e disse-lhes

Amigos sabeis que o nosso bem-estar proveacutem dessa nossa atividade [] esse tal de Paulo com sua propaganda desencaminha muita gente natildeo soacute em Eacutefeso mas em quase toda a Aacutesia Ele afirma que natildeo satildeo deuses os produtos de matildeos humanas Natildeo eacute soacute a nossa profissatildeo que corre o risco de cair em descreacutedito mas tambeacutem o templo da grande deusa Diana acabaraacute sendo desacreditado e assim ficaraacute despojada de majestade aquela que toda a Aacutesia e o mundo inteiro adoram414

Segundo o livro de Atos dos Apoacutestolos esses homens furiosos arrastaram os

companheiros de Paulo para o teatro da cidade O tumulto se espalhou

Esses tipos de atritos envolviam o encobrimento de uma praacutetica moralmente

condenada pelos seguidores da Igreja e manifestavam a defesa dos interesses pessoais ou de

determinados grupos que sofreriam com as possiacuteveis mudanccedilas nos costumes e tradiccedilotildees

Neste uacuteltimo caso aparece algo distinto a menccedilatildeo da representaccedilatildeo de uma divindade para

uma determinada regiatildeo Diana para a Aacutesia especialmente

Yi-Fu Tuan415 aponta que nas religiotildees que vinculam o povo a um lugar os deuses

parecem estimular nos seus fieacuteis um forte sentido do passado de linhagem e continuidade no

lugar O culto aos ancestrais eacute o fundamento de tal praacutetica religiosa Atraveacutes deste sentido

histoacuterico de continuidade busca-se algum tipo de ldquoseguranccedilardquo Entre o I e II seacuteculos dC

deuses romanos e gregos satildeo conhecidos por povos de culturas diferentes mas nenhum deles

exige exclusividade O Deus dos judeus figura nesse cenaacuterio de deuses e homens e agraves vezes

se confunde com deus nenhum Os seguidores de Cristo propagadores desse mesmo Deus

mediante a crenccedila no seu messias paradoxalmente tambeacutem satildeo tachados de ateus algumas

vezes Poreacutem enquanto os ldquooutrosrdquo natildeo veem o Deus cristatildeo os cristatildeos natildeo veem outro deus

413 At 1617-40 414 At 1923-27 415 Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983 p 168

83

aleacutem do seu proacuteprio Desse modo a negaccedilatildeo dos deuses alheios pode ser interpretada por

muitos como profunda agressatildeo agraves crenccedilas que por um periacuteodo indeterminado serviram para

explicar e inspirar a vida das pessoas que nasceram cresceram e morreram em determinado

local

A estigmatizaccedilatildeo dos ldquocristatildeosrdquo eacute portanto em grande medida uma reaccedilatildeo das

pessoas que satildeo alvo dos cristatildeos no exerciacutecio de sua feacute Pois esses cristatildeos ndash dos quais

Justino eacute um ndash manifestam o repuacutedio a tudo aquilo que se associa a uma moral que lhes seja

estranha e que se vincule agrave veneraccedilatildeo de outros deuses que natildeo sejam o Deus do seu Cristo

Diante das reaccedilotildees adversas que lhes satildeo imputadas sob a forma de duras penas e

condenaccedilotildees Justino teologiza o seu estigma Isso natildeo eacute uma invenccedilatildeo sua Talvez lhe caiba o

meacuterito de tecirc-lo feito habilidosamente poreacutem haacute indiacutecios desse procedimento anos antes de

seus escritos

Na I Epiacutestola de Pedro (413-1416) o autor frisa a gloacuteria do sofrimento dos cristatildeos

nas perseguiccedilotildees

alegrai-vos por participar dos sofrimentos de Cristo para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua gloacuteria Se sofreis injuacuterias por causa do nome de Cristo sois felizes pois o Espiacuterito da gloacuteria o Espiacuterito de Deus repousa sobre voacutes [] Se poreacutem algueacutem sofrer por ser cristatildeo natildeo se envergonhe Antes glorifique a Deus por este nome

Antes ainda eacute Paulo quem permitiraacute um trocadilho didaacutetico para que melhor se

compreenda essa formulaccedilatildeo teoloacutegica por traacutes do sofrimento dos fieacuteis da Igreja Ao finalizar

sua Epiacutestola aos Gaacutelatas (617) escreve ldquo eu trago em meu corpo as marcas [stigmata] de

Cristordquo416 Como o proacuteprio Goffman observou para os gregos estigma significava

basicamente algum tipo de signo ou marca na pele417 Paulo evidentemente se refere aos sinais

do sofrimento enfrentado devido agraves perseguiccedilotildees sofridas no exerciacutecio do seu apostolado Natildeo

existe nenhuma ligaccedilatildeo entre essa passagem e o discurso de Justino O que eacute preciso notar

atentamente eacute que assim como Paulo transforma seus estigmas em seu testemunho na

perspectiva de Justino a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute representada como ldquoas marcasrdquo de sua

identidade que se pretende afirmar Essa identidade por ele afirmada eacute distinta dos devaneios

caluniosos que lhes satildeo associados pelos seus opositores Ser cristatildeo para Justino eacute a razatildeo de

natildeo serem perseguidos e ao mesmo tempo o motivo pelo qual satildeo perseguidos A

416 Versatildeo grega evgw gar ta stigmata tou Kuriou VIhsou evn tw| swmati mou bastazw ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) [Bible Work 5 Software 2002] 417 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 11 Para maiores informaccedilotildees sobre o significado do termo estigma cf LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940

84

perseguiccedilatildeo seraacute interpretada como uma reaccedilatildeo dos ldquomaus democircniosrdquo contra os ldquoverdadeiros

cristatildeosrdquo como seraacute examinado no proacuteximo capiacutetulo

Seus acusadores estariam movidos por paixatildeo irracional e ldquoaguilhoados por democircnios

perversosrdquo418 por isso natildeo conseguiam enxergar a verdade anunciada por esses cristatildeos

Mesmo tendo grande responsabilidade na ocultaccedilatildeo dessa verdade os democircnios natildeo satildeo os

uacutenicos culpados Escreve Justino a respeito dos judeus

As outras naccedilotildees natildeo tecircm tanta culpa da iniquidade que se comete contra noacutes e contra Cristo como voacutes que sois causa do preconceito injusto que elas tecircm contra ele e contra noacutes que viemos dele [] escolhestes homens especiais de Jerusaleacutem e os mandastes por todo o mundo a fim de espalhar que havia aparecido uma iacutempia seita de cristatildeos e espalharam caluacutenias que todos aqueles que natildeo vos conhecem repetem contra noacutes419

Os judeus tecircm uma parcela de responsabilidade pelos preconceitos e caluacutenias herdados

pelos gentios Em vaacuterios episoacutedios no livro dos Atos dos Apoacutestolos haacute a mesma disposiccedilatildeo

cristatilde para atribuir aos judeus a culpa pelas delaccedilotildees agraves autoridades romanas para reclamar

dos cristatildeos No entanto eacute pouco provaacutevel que o apologista assim sintetize a causa das

caluacutenias e puniccedilotildees contra os cristatildeos Mas haacute uma disposiccedilatildeo por parte do apologista em

afastar os cristatildeos dos judeus Semelhantemente Justino tambeacutem natildeo demonstra nenhuma

simpatia por aqueles que ele chama de ldquocristatildeos soacute de nomerdquo

Sobre esses que natildeo viviam como Cristo teria ensinado o filoacutesofo orienta que ldquosejam

declarados como natildeo-cristatildeosrdquo420 por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de

Cristo Para os pagatildeos provavelmente natildeo haveria distinccedilatildeo entre esses grupos Justino

poreacutem chama a atenccedilatildeo para o fato de que esses satildeo denominados segundo o nome de quem

promoveu cada doutrina especiacutefica Eram eles os marcionistas valentinianos basilidianos

saturnilianos e com outros nomes421

Um dos argumentos de que a accedilatildeo dos ldquodemocircnios perversosrdquo move seus opositores

contra os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo eacute que os cristatildeos dessas outras ldquoheresiasrdquo natildeo satildeo perseguidos

pelas autoridades422 Quanto a esses ldquooutrosrdquo pelos quais o apologista natildeo demonstra

nenhuma simpatia sua recomendaccedilatildeo eacute que sejam punidos423

Os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo segundo Justino satildeo aqueles que estatildeo prontos a confessar

que satildeo cristatildeos a ponto de padecerem Desse modo recorrendo ao trocadilho didaacutetico

desenvolvido a partir da fala paulina esses homens de feacute colocam-se agrave disposiccedilatildeo para

418 I Apol 51ss 419 Diaacutelogo com Trifatildeo 171 420 I Apol 168 421 Diaacutelogo com Trifatildeo 355-6 422 I Apol 267 423 I Apol 1614

85

receber os ldquoestigmas de Cristordquo a saber as marcas das perseguiccedilotildees sobre seus corpos em

razatildeo de suas crenccedilas Satildeo persuadidos a crer que a verdadeira recompensa seraacute atribuiacuteda para

a vida eterna que em muito excede ao sofrimento transitoacuterio desse mundo Cabe-lhes

anunciar e testemunhar a feacute a todos mesmo sob a insiacutegnia das tribulaccedilotildees Por isso Justino

declara

Decapitam-nos pregam-nos em cruzes atiram-nos agraves feras agrave prisatildeo ao fogo e nos submetem a todo tipo de torturas Todavia estaacute agrave vista de todos que natildeo apostatamos de nossa feacute Ao contraacuterio quanto maiores satildeo os nossos sofrimentos mais ainda se multiplicam os que abraccedilam a feacute e a piedade pelo nome de Jesus424

Essa missatildeo cristatilde implica tambeacutem em buscar convencer aos seus opositores de que

os ldquocristatildeosrdquo natildeo deviam ser perseguidos simplesmente por denominarem-se ldquocristatildeosrdquo

33 Sobre as leis e imoralidades

Justino faz saber que a confissatildeo de cristianismo diante de um magistrado acarretava a

pena de morte425 Isto eacute ser ldquocristatildeordquo poderia implicar na condenaccedilatildeo agrave pena de morte426

Uma das interrogaccedilotildees centrais desses escritos de Justino eacute sobre o fato de os cristatildeos

serem condenados por confessarem esse nome Seria um absurdo pensar que os romanos

condenariam os membros dessa superstitio simplesmente por sustentarem um nome e eacute

justamente esse absurdo que o apologista busca destacar para ridicularizar o procedimento dos

magistrados Na verdade os acusados de cristianismo natildeo eram condenados apenas pelo

ldquonomerdquo mas sim pelo que ele representava uma superstitio nova maleacutefica depravada e

excessiva que envolvia os cristatildeos em flagitia que sustentava certo desprezo pela religiatildeo

tradicional Mas pelo fato de natildeo haver uma lei universal para este caso os governantes

tinham liberdade para julgar as ocorrecircncias de modo particular As recomendaccedilotildees de Trajano

e Adriano ao dispensarem a busca pelos cristatildeos limitaram os processos a apenas denuacutencias

formais A nova religiatildeo ainda natildeo se mostrava um problema seacuterio para o Impeacuterio Eacute provaacutevel

que essas medidas visem solucionar os atritos e inibir os conflitos locais ocasionados pelas

diferenccedilas religiosas O caraacuteter flexiacutevel do processo que permitia que o acusado mudasse de

ideia quanto a sua religiatildeo no meio do processo e recebesse a absolviccedilatildeo eacute o elemento

fundamental para se argumentar que os cristatildeos eram condenados pelo ldquonomerdquo

424 Dialogo com Trifatildeo 110 4 425 I Apol 81-2 No I111 lecirc-se ldquoconfessamos ser cristatildeos sabendo como sabemos que tal confissatildeo traz consigo a pena de morterdquo 426 ldquo e nos tiram a vida sem termos cometido crime algumrdquo (I241) Mas o consolo dos fieacuteis estaacute na feacute ldquo aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis fazerrdquo (I456)

86

Justino deseja que os romanos compreendam a maneira de pensar dos cristatildeos e que se

desvencilhem da ideia negativa sobre os fieacuteis Desse modo depois da exposiccedilatildeo da sua I

Apologia ele escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da verdade

respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees despreze-as Natildeo

decreteis poreacutem pena de morte como contra inimigos contra aqueles que nenhum crime

cometemrdquo427

Como jaacute foi mencionado no Capiacutetulo II dessa dissertaccedilatildeo Justino procura alinhar sua

Apologia ao rescrito de Adriano o qual ele interpreta convertendo-o sutilmente a favor dos

cristatildeos

Noacutes vos pedimos portanto que sejam examinadas accedilotildees de todos os que vos satildeo denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo ter cometido nenhum crime428

Mesmo assim o apologista sustenta que sua reclamaccedilatildeo natildeo estaacute fundamentada no rescrito de

Adriano mas em um senso de justiccedila que permeia sua peticcedilatildeo429

Sua interpretaccedilatildeo considera que mediante as obras dos democircnios perversos os cristatildeos

satildeo buscados e condenados agrave morte devido a caluacutenias O apologista aponta atentados contra

escravos meninos e mulheres obrigando-os a confessarem coisas falsas430 Segundo sua

leitura teoloacutegica desses eventos os cristatildeos eram acusados de tais praacuteticas justamente porque

as condenavam e assim fazendo incomodam aqueles que procediam dissolutamente431

Tendo em vista que a razatildeo para que as autoridades acatassem as denuacutencias dirigidas

contra os cristatildeos estava no fato de que esta superstitio era uma ameaccedila agrave ordem em funccedilatildeo da

sua expectativa sobre o ldquoreino de Deusrdquo Justino inclui no seu projeto apologeacutetico uma

explanaccedilatildeo sobre a contribuiccedilatildeo cristatilde ao estabelecimento da paz no Impeacuterio Natildeo se podia

esperar que uma religiatildeo estrangeira principalmente oriunda de uma naccedilatildeo problemaacutetica

como a dos judeus pudesse representar algum benefiacutecio A sua proacutepria indefiniccedilatildeo enquanto

religiatildeo dificultaria essa possibilidade e o seu caraacuteter exclusivista acentuaria os atritos sociais

Mas o pensador de Flaacutevia Neaacutepolis eacute direto em dizer

Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo e salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que

427 I651 428 I74 429 ldquo natildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo (I683) 430 II124 431 II12

87

caminharia para a sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos e se adornaria de virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos432

A proposta de Justino apresenta o valor das crenccedilas cristatildes O desenvolvimento da sua

teoria seraacute analisado com mais detalhes no proacuteximo capiacutetulo Neste momento analisar-se-aacute a

reprovaccedilatildeo da moralidade dos natildeo-cristatildeos Segundo Paul Veyne433 no mundo greco-romano

ldquomoral e religiatildeo estavam parcialmente ligadas porque se pedia aos deuses que protegessem

os bons e castigassem os maus Deuses e homens julgavam da mesma maneira os bons e

maus pois compartilhavam da mesma moralrdquo Para os deuses a moral dos mortais tambeacutem

natildeo interessava A opiniatildeo humana sobre os deuses tambeacutem variava desde a atribuiccedilatildeo de

virtudes ateacute a laacutestima por serem egoiacutestas e mercenaacuterios Natildeo era possiacutevel pensar nos deuses

como senhores vigilantes da justiccedila No entanto os deuses poderiam vingar as injusticcedilas434

Natildeo se deve pensar que a religiatildeo de gregos e romanos era estaacutetica Satildeo identificadas

transformaccedilotildees durante os seacuteculos A filosofia as mudanccedilas culturais e a paideia

relacionaram a divindade ao sumo bem e acentuou os contornos entre a religiosidade das

pessoas comuns e agrave dos membros das classes elevadas e dos letrados435

Varratildeo436 atribuiu trecircs concepccedilotildees para os deuses os deuses das cidades os deuses

vistos pelos filoacutesofos e os deuses das narrativas dos poetas Segundo Paul Veyne437

inspirados por Euriacutepides os estoicos estavam convencidos de que os deuses natildeo podiam se

portar mal Os deuses dos filoacutesofos se afastavam das narrativas mitoloacutegicas anteriores para

assumirem agraves vezes o aacutepice da virtude Para Platatildeo os deuses eram a medida de todas as

coisas e natildeo seria conveniente receberem oferendas de pessoas desonradas438 A relaccedilatildeo entre

moral e religiatildeo passou por transformaccedilatildeo mas essa mudanccedila ficou restrita a alguns ciacuterculos

sociais Para alguns criacuteticos e pensadores o temor religioso seria uacutetil para a contensatildeo

humana Mas essa natildeo era uma opiniatildeo comum Isoacutecrates (viveu de 436 a 338 aC) escreveu

que ldquoaqueles que creem que os favores dos deuses e suas puniccedilotildees satildeo maiores do que

realmente satildeo prestam um grande serviccedilo agrave sociedaderdquo439 Mais tarde Poliacutebio (viveu entre 203

aC ndash 120 aC) ao comparar os romanos aos gregos tambeacutem destacou o valor das crenccedilas

religiosas romanas no estabelecimento da ordem

432 I121-3 433 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 220 434 Ibid p 239 435 BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 pp 305-332 436 Apud Agostinho de Hipona Cidade de Deus IV311 Plutarco se referia a trecircs visotildees sobre os deuses a dos filoacutesofos poetas e legisladores (Amatorius XVIII10765c) 437 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 256 438 Leis IV716c717 439 Busires 1124

88

muitos poderiam pensar que isso eacute irresponsaacutevel mas [] seu objetivo eacute usar isso como forma de controle sobre as pessoas comuns Se era possiacutevel formar um Estado inteiro de filoacutesofos isso seria no entanto desnecessaacuterio Mas vendo que as multidotildees satildeo inconstantes cheios de desejos desregrados iras irracionais e paixatildeo violenta o uacutenico recurso eacute mantecirc-los sob controle pelo terror misterioso e efeitos cecircnicos desse tipo440

Ainda nesse sentido ele afirma que tambeacutem natildeo era sem sentido que os antigos

promoviam entre as pessoas simples diversas opiniotildees sobre os deuses e a crenccedila no Hades

Tendo em vista essa importante funccedilatildeo da religiatildeo na manutenccedilatildeo da ordem Poliacutebio pensa

que aqueles que em seu tempo abriam matildeo da religiatildeo agiram de forma precipitada e

insensata Assim ele destaca

Esta eacute a razatildeo por que aleacutem de tudo se aos estadistas gregos eacute confiada uma uacutenica moeda embora protegidos por dez funcionaacuterios de vigilacircncia muitos selos e o dobro de testemunhas jaacute natildeo podem ser induzidos a manter a feacute enquanto entre os romanos em suas magistraturas e embaixadas homens tecircm cuidado de grandes quantias de dinheiro e ainda por puro respeito a seus juramentos manteacutem a feacute intacta E em outras naccedilotildees eacute raro encontrar um homem que meta suas matildeos fora do eraacuterio puacuteblico e eacute inteiramente puro em tais assuntos Mas entre os romanos eacute raro encontrar um homem cometendo tal crime441

A necessidade de uma sociedade ter mecanismos para estabelecer a ldquoconfianccedilardquo ou a

ldquoboa feacuterdquo entre as relaccedilotildees humanas eacute sublinhada diante dos efeitos dos questionamentos

cultivados pela filosofia e do proacuteprio ideal poliacutetico-filosoacutefico que poderia diminuir o valor da

religiatildeo

No seacuteculo II dC eacute Justino quem olha as mais distintas crenccedilas do Impeacuterio com um

tom de superioridade proporcionada pela sua proacutepria religiatildeo Mas haacute um espaccedilo de

aproximadamente trecircs seacuteculos entre Poliacutebio por exemplo e Justino No II seacuteculo dC a

filosofia jaacute havia se tornado um elemento essencial da cultura romana e o fluxo das suas

interrogaccedilotildees e das suas performances puacuteblicas acarretavam algumas transformaccedilotildees de

caraacuteter ideoloacutegico na sociedade Como escreveu Paul Veyne

o povo nunca deixou de crer e rezar Mas em que um romano culto mdash um Ciacutecero um Horaacutecio um imperador um senador um notaacutevel mdash podia crer dentro dessa fantasmagoria dos deuses ancestrais A resposta eacute categoacuterica natildeo podia crer em nada leu Platatildeo e Aristoacuteteles que quatro seacuteculos antes tampouco acreditavam Virgiacutelio alma religiosa acredita na Providecircncia mas natildeo nos deuses de seus proacuteprios poemas mdash Vecircnus Juno ou Apolo442

Justino mostra algumas razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo compactuavam com os

demais deuses e com a religiatildeo tradicional romana e ainda aponta aquilo que considera ser o

caraacuteter racional da verdadeira filosofia isto eacute da religiatildeo cristatilde Por isso ele escreve ldquoas

440 Historias VI5614 441 Ibid 442 Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197

89

nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo443 Poreacutem

como ele proacuteprio diz ldquonos condenam sem saber se praticamos as coisas vergonhosas de que

nos acusam comprazem-se com deuses que as fizeram e ainda exigem dos homens coisas

semelhantesrdquo444 Desse modo o apologista destaca a incoerecircncia em se pensar que os povos

seriam contidos por temor a deuses tatildeo imoderados quanto os proacuteprios homens em suas

paixotildees Por outro lado tambeacutem o temor ao Imperador ou a fidelidade demonstrada por

meio do culto imperial satildeo apontados como algo que representa uma forma superficial de

controle pois como Justino escreve ldquoaqueles que agora por medo das leis e dos castigos por

voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los [] sabem que sois homens e

que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutesrdquo445 Esse ldquomedordquo das leis era um temor ao que eacute

humano Desse modo Justino sublinha que a ausecircncia de mecanismo superior de controle

como a absorccedilatildeo da crenccedila em um Deus onisciente como o Deus dos cristatildeos favorecia a

desobediecircncia agraves leis

O apologista apresenta um mecanismo de controle que julga ser muito mais eficiente

ldquose se inteirassem e se persuadissem de que natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma

accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os

modos como voacutes mesmos haveis de convirrdquo Por essa razatildeo ele considera que a expansatildeo do

cristianismo contribuiria para que as pessoas agissem de modo moderado e respeitoso de

acordo com a moral cultivada na comunidade e ainda em atentar fidelidade ao Impeacuterio

Esse ldquotemorrdquo religioso proveniente de uma crenccedila distinta da religiatildeo tradicional se

enquadra no que os romanos chamavam de superstitio As superstitiones e os cultos locais

eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob atenccedilatildeo com destacam Mary Beard John North e

Simon Price446 as controveacutersias poderiam desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade

romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito em 172 a 173 aC447 na incursatildeo da Traacutecia que

foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que conseguiu seguidores448 entre os druidas da

Gaacutelia profecias indicavam que o incecircndio de Roma era o sinal do fim do domiacutenio romano

sobre aquela regiatildeo fazendo com que uma revolta nas fronteiras do Reno fosse animada por

essas profecias449 e as revoltas judaicas contemporacircneas a Justino satildeo outro exemplo

443 II153 444 II142 445 I123 446 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 447 Cassius Dio Hist Rom LXXII4 448 Ibid LI255 LIV345-7 449 Taacutecito Historias IV546165 V2224

90

Todavia o apologista procura convencer de que os cristatildeos natildeo suportavam nenhum tipo de

ameaccedila agrave sociedade sob o domiacutenio romano

Sua estrateacutegia apologeacutetica portanto natildeo pode negar que as crenccedilas cristatildes reprovavam

uma seacuterie de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais caracterizam um

quadro da organizaccedilatildeo social No entanto essa nova religiatildeo deveria ser encarada como uma

dessemelhanccedila absoluta Vaacuterios pontos de contato entre a cultura pagatilde e a doutrina dos

cristatildeos satildeo estabelecidos para convencer sobre esse aspecto450 Os deuses e a religiatildeo pagatilde

deveriam ser rejeitados por serem incoerentes com a moralidade segundo as narrativas

antigas A feacute cristatilde eacute apresentada como um mecanismo eficaz de controle e de organizaccedilatildeo

social que exige uma mudanccedila subjetiva antes de um reflexo socialmente objetivo Por isso

segundo seu ponto de vista a condenaccedilatildeo dos cristatildeos acatada pelos governantes locais eacute uma

forma equivocada de manter a ordem Em grande medida essa forma de controle que emerge

dos clamores reativos populares estaria impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do

nomen Christianum sem conhecerem de fato a forma de pensar dos cristatildeos Por isso Justino

procura afirmar que os cristatildeos satildeo os melhores auxiliadores na manutenccedilatildeo da paz no

Impeacuterio

450 Esse ponto seraacute analisado no proacuteximo capiacutetulo

91

CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM SOCIAL

Justino combate agrave forma de controle que recrimina os cristatildeos e que segundo seu

ponto de vista tem fundamento nas accedilotildees dos democircnios Eacute dentro do seu objetivo apologeacutetico

que emerge sua tese da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem no Impeacuterio Eacute a

primeira vez que a religiatildeo emergente dos cristatildeos aparece assumidamente como um

instrumento a favor do Impeacuterio Natildeo havia nenhuma razatildeo para esse tipo de preocupaccedilatildeo por

parte dos cristatildeos A tese da contribuiccedilatildeo cristatilde agrave manutenccedilatildeo da ordem vem em oposiccedilatildeo agrave

ideia de que os cristatildeos seriam uma ameaccedila social Todavia eacute permitido supor que diante da

mira dos ldquoperseguidoresrdquo locais nesse periacuteodo natildeo era uacutetil jurar fidelidade ao Impeacuterio

As caluacutenias e a proacutepria inclinaccedilatildeo a repudiar as superstitones estrangeiras faziam com

que os cristatildeos fossem reprimidos em diferentes niacuteveis pelos pagatildeos do Impeacuterio Justino

apresenta uma forma de controle cristatilde que julga ser mais eficiente do que aquelas pagatildes

empregadas contra os proacuteprios cristatildeos A base de tal eficiecircncia estaacute no caraacuteter de sua

doutrina que quando absorvida deveria conduzir os crentes a uma conduta pautada por regras

morais que estabelecem precircmio ou castigo eterno a todos depois da morte de acordo com seu

meacuterito em vida A doutrina cristatilde eacute uma incentivadora da moral

Ao recorrer ao imperador o apologista natildeo apenas reafirma a fidelidade dos cristatildeos

mas expotildee o caraacuteter de sua doutrina e procura ser o mais convincente possiacutevel sobre a

razoabilidade de suas crenccedilas

41 O controle absoluto do controlador absoluto

Em primeiro lugar Justino sustenta que os cristatildeos satildeo os ldquomelhores ajudantes e

aliados para a manutenccedilatildeo da pazrdquo devido ao caraacuteter das suas doutrinas como a de que ldquonatildeo

eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que

cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildeesrdquo (I Apol

121) Segundo essa perspectiva a crenccedila em um Deus onisciente seria capaz de induzir os

que a deteacutem a se comedirem Nesse sentido ele destaca ldquoningueacutem escolheria por um

momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se

92

conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e

livrar-se dos castigosrdquo (I Apol 122) Esse mecanismo de controle apresenta uma estrutura

limitadora das accedilotildees humanas que eacute dependente do conhecimento das normas que determinam

a recompensa e o castigo O traccedilo marcante desse mecanismo eacute que existe um vigilante

constante de quem natildeo se pode esconder absolutamente nada nem mesmo as intenccedilotildees

Haacute certa dependecircncia do sentimento de temor pessoal diante da ideia de vigilacircncia

constante pelos olhos infaliacuteveis de um ser superior que julgaraacute com rigor as accedilotildees humanas de

uma vez por todas num momento aguardado mas desconhecido Todavia para que ele

funcione eacute preciso que exista um miacutenimo de plausibilidade nas ideias que sustentam o

controle absoluto de Deus Ou seja ningueacutem temeria algo que natildeo fizesse o miacutenimo sentido

Aqueles que combatiam os cristatildeos natildeo se intimidavam diante do Deus cristatildeo e em alguns

casos acreditavam estar sendo piedosos combatendo as crenccedilas descabidas desse novo grupo

Atentando para essas circunstacircncias Justino se empenha em mostrar correlaccedilotildees entre

elementos do pensamento cristatildeo e outros comuns agraves culturas no Impeacuterio

A ameaccedila do castigo no poacutes-morte eacute fundamental na estrutura da doutrina da justiccedila

divina Por isso para que sua estrateacutegia de persuasatildeo funcione ele se empenha em demonstrar

ldquoas evidecircnciasrdquo da vida eterna ou do poacutes-morte O apologista admite que ldquose a morte

terminasse na inconsciecircncia seria uma boa sorte para todos os malvadosrdquo (I181) uma

reflexatildeo comum tambeacutem a Plutarco (Consolatio ad Apollonium 11107c) Todavia Justino

manteacutem que a consciecircncia permanece e que a conduta humana eacute passiacutevel de puniccedilatildeo ou

precircmio em um momento aleacutem da vida451 Sua linha de pensamento sobre esse assunto

representa apenas uma das correntes de pensamento que emergiam entre os cristatildeos no seacuteculo

II452

Para minimizar qualquer exotismo no reconhecimento dessa doutrina cristatilde ele

menciona a necromancia453 as visotildees obtidas atraveacutes de crianccedilas puras454 os que satildeo

451 Como Platatildeo discorrendo sobre a vida apoacutes a morte em Phaedo 107c 452 Cf POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005 passim 453 Justino usa o termo nekuomanteiaj que deve ser entendido como ldquoconsulta aos mortosrdquo cf I183 454 Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p178) editou essa passagem da seguinte forma ai` avdiafqorwn paidwn evpopteuseij [les divinations faites sur les entrailles drsquoenfants innocents] Seu texto grego foi fiel ao MS A que sugere o termo avdiafqorwn no lugar de diafqorwn mas a versatildeo em francecircs se distanciou muito do significado estrito Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 59) observou a nota marginal do MS A e acrescentou tambeacutem a conjunccedilatildeo div proporcionando a seguinte frase ai` div avdiafqorwn paidwn evpopteuseij Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 123) apresentam uma correccedilatildeo que parece ser a mais convincente Em vez de substituir diafqorwn por avdiafqorwn eles simplesmente dividem a palavra que aparece no MS A em duas div avfqorwn paidwn evpopteuseij [visions obtained through uncorrupted children] Natildeo eacute possiacutevel dizer se se trata de uma

93

chamados entre os magos de espiacuteritos dos sonhos e espiacuteritos assistentes para assim tentar

estabelecer que mesmo depois da morte as almas conservam a consciecircncia Os casos de

possessatildeo ou loucura quando segundo sua concepccedilatildeo sobre o que se pensava naquela eacutepoca

alguns eram ldquoarrebatados e agitados pelas almas dos mortosrdquo tambeacutem satildeo alocados ao lado

dos oraacuteculos de Anfiloco de Dodona de Piton e outros semelhantes A descida de Ulisses ateacute

a regiatildeo dos mortos na obra de Homero (Odisseia10101 ndash 111ss) as doutrinas de escritores

como Empeacutedocles e Pitaacutegoras Platatildeo e outros que disseram coisas parecidas tambeacutem satildeo

destacadas

A ideia de uma consciecircncia apoacutes a morte fiacutesica natildeo era algo estranho no mundo greco-

romano da eacutepoca de Justino Mas o apologista apresenta uma elaboraccedilatildeo teoloacutegica sobre o

ldquocastigo ou salvaccedilatildeo eternardquo que deveria desempenhar uma funccedilatildeo coercitiva sobre as pessoas

em geral Essas ideias cristatildes satildeo herdeiras de elementos do pensamento judaico jaacute sob a

influecircncia do helenismo Desse modo satildeo encontrados aspectos comuns ao judaiacutesmo como o

da justiccedila divina e outros relativos a outras culturas como a existecircncia da alma455

Segundo Dag Oistein Endsjo456 os judeus sofreram a influecircncia da cultura grega sobre

as ideias do poacutes-morte sem que isso represente uma planificaccedilatildeo das duas culturas A

correspondecircncia entre alguns elementos aparece por exemplo na traduccedilatildeo de lw a v para avdej

na LXX proporcionando a associaccedilatildeo entre a ldquosepulturardquo e o ldquosubmundo dos mortosrdquo

Associaccedilatildeo que remonta a Odisseia de Homero e se estende para niacuteveis mais complexos

Conforme tambeacutem considerou E D Wright457 judeus e cristatildeos emprestaram alguns

elementos da cultura greco-romana para a elaboraccedilatildeo de suas cosmologias Mas as

consulta de crianccedilas vivas ou mortas mas poder haver alguma relaccedilatildeo com as passagens sobre as ldquocrianccedilas purasrdquo nos Papyri Graecae Magicae e principalmente com a Historia Eclesiaacutestica (III1311-12) de Soacutecrates 455 Devido aos objetivos desta pesquisa seraacute necessaacuterio ser bastante seletivo neste ponto A anaacutelise do desenvolvimento das ideias cristatildes sobre a vida apoacutes a morte exigiria uma anaacutelise de suas raiacutezes na cultura egeia entre os egiacutepcios mesopotacircmicos no zoroastrismo na cultura grega em geral e nas vaacuterias fases da religiatildeo dos judeus As correlaccedilotildees estabelecidas neste capiacutetulo satildeo aprofundamentos de toacutepicos sugeridos pelos proacuteprio Justino no decorrer de sua anaacutelises Para mais informaccedilotildees cf SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946 OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992 COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987 DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000 SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006 456 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 457 The History of Heaven New York Oxford University Press 2000 p 139

94

correlaccedilotildees se estendem tambeacutem para com a cultura persa que segundo Alan Segal458

apresentava aspectos muito atrativos ao povo simples

O desenvolvimento das ideias sobre o poacutes-morte entre os judeus eacute complexa Haacute

algum consenso entre os estudiosos de que a ideia de ldquoressurreiccedilatildeordquo tenha aparecido

tardiamente no judaiacutesmo Mas as Escrituras judaicas apresentam referecircncias a algum tipo de

existecircncia apoacutes a morte fiacutesica Um caso emblemaacutetico acontece quando o rei Saul procurou

uma b A a ecircb A a ecircb A a ecircb A a ecirc-t l[]B [evocadora de espiacuteritos] para poder falar com o falecido profeta Samuel (I

Samuel 281-7) praacutetica proibida pela Lei (Dt 189-12) No I seacutec dC a ressurreiccedilatildeo era

motivo de disputas entre saduceus e fariseus459 Os saduceus natildeo acreditavam na ressurreiccedilatildeo

dos mortos Sobre os fariseus Flaacutevio Josefo460 escreveu que ldquotoda alma [] eacute impereciacutevel

mas somente a alma dos bons passa a outro corpo Por outro lado a alma dos homens maus

estaacute sujeita agrave puniccedilatildeo eternardquo Os saduceus satildeo descritos como aqueles que ldquoacreditavam que

Deus natildeo estaacute interessado em se agimos bem ou mal [] agir bem ou mal eacute apenas uma

questatildeo de escolha humana e que uma ou outra pertence a cada um assim podem agir como

bem entendemrdquo461 Tambeacutem descartam a crenccedila ldquona duraccedilatildeo imortal da alma e na puniccedilatildeo e

recompensa no Hadesrdquo462 Na contramatildeo dessas ideias Josefo escreve que os fariseus

ldquotambeacutem acreditam que a alma tem o poder de sobreviver agrave morte em si e que embaixo da

terra haveraacute recompensa ou puniccedilatildeo para a vida de viacutecio ou virtude que se viveu nesta

vidardquo463

Natildeo passou despercebido a Vicente Dobroduka464 que o vocabulaacuterio empregado pelo

historiador judeu se assemelha razoavelmente ao de Platatildeo465 Quer seja por uma intenccedilatildeo do

autor em aproximar a doutrina farisaica agrave filosofia ou pela adaptaccedilatildeo de um editor posterior

os pontos de semelhanccedila entre essas doutrinas e a cultura helecircnica satildeo evidentes Mesmo sem

ser uma forma de pensar que atraiacutesse a todos os judeus naquela eacutepoca natildeo haacute razotildees para se

458 Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 p 394 Cf as noccedilotildees escatoloacutegicas persas que teriam influenciado a apocaliacuteptica judaica em RUSSELL D S The Method and Message of Jewish ApocalypticPhiladelphia Westminster Press 1964 p 19 e em SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008 p 314 Entre essas noccedilotildees esta a ideia da ressurreiccedilatildeo corporal Para uma visatildeo geral da escatologia do Avesta cf MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975 pp 177-207 459 Mt 2223-33 Josefo Ant Jud 1814 Guer Jud 28 460 Guer Jud 2162ss 461 Guer Jud 2162ss 462 Guer Jud 2162ss 463 Ant Jud 1814 464 DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 2005 p 24 465 Meno 81b5 Feacutedon 70a8 e 72a8

95

duvidar que a ideia de uma recompensa futura baseada nas accedilotildees humanas era amplamente

conhecida entre os judeus Como escreveu Elizacircngela A Sousa466

certos elementos nas ideias particulares de juiacutezo satildeo compartilhados por uma e outra cultura assinalando algum tipo de intercacircmbio existente entre elas o que ainda outra vez nos coloca de frente com o pressuposto de que certos aspectos culturais (e religiosos) se constituem se natildeo totalmente a partir de trocas simboacutelicas pelo menos em parte satildeo influenciados por elas

A tradiccedilatildeo aponta que Paulo era um fariseu467 e a sua crenccedila na ressurreiccedilatildeo se

desenvolveraacute entre os cristatildeos No entanto eacute preciso lembrar como destacou D O Sousa468

que entre os cristatildeos ldquonatildeo havia uma unicidade de pensamento em continuidade com a

escatologia judaicardquo No processo proselitista de comunicaccedilatildeo da mensagem cristatilde os fieacuteis

enfrentaram os questionamentos de outros grupos Segundo o relato de Atos dos Apoacutestolos

(1716-34) Paulo enfrentou a resistecircncia dos filoacutesofos epicureus e estoicos no areoacutepago em

Atenas e em outro episoacutedio precisou repreender os coriacutentios em carta porque alguns estavam

sustentando que natildeo existia ressurreiccedilatildeo (I Co 1512-33) Embora os relatos de ressurreiccedilatildeo

dos mortos e da existecircncia de uma consciecircncia apoacutes a morte fossem comuns ao mundo greco-

romano como destaca Dag Oistein Endsjo469 natildeo existia nenhum consenso e eacute possiacutevel

distinguir essas contraposiccedilotildees em pelo menos dois grupos os criacuteticos intelectuais que

incluiacuteam filoacutesofos oradores e escritores e por outro lado a maioria sem instruccedilatildeo

De acordo com Lewis Richard Farnell470 a especulaccedilatildeo filosoacutefica grega natildeo poderia

ser considerada uma testemunha plena da mentalidade e da feacute daquela eacutepoca da cultura greco-

romana Estrabatildeo471 escreveu provavelmente no iniacutecio do I seacuteculo dC que ldquofilosofia era

algo para poucos enquanto poesia era mais uacutetil para as pessoas em geralrdquo No mesmo sentido

Plutarco472 admite que em sua eacutepoca apenas poucos conheciam as Leis de Platatildeo enquanto os

escritos de Homero eram ainda amplamente disseminados Pausacircnias no seacuteculo II dC

escreveu que Platatildeo a quem ele chama de ldquoo maior dos filoacutesofosrdquo473 tinha suas ideias

recebidas somente ldquopor alguns dos gregosrdquo474 Tudo indica que a situaccedilatildeo no II seacuteculo era a

466 SOARES Elizangela A Variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte desenvolvimento de uma crenccedila no judaiacutesmo do segundo templo 127 f (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2006 p 104 467 At 223 468 SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 setdez 2009 p 412 469 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 passim 470 Ibid p 386 471 Geografia 128 472 Moralia 328de 473 Descriccedilatildeo da Greacutecia 4324 474 Ibid 1303

96

mesma que Oriacutegenes475 descreve no seacuteculo seguinte ldquoeacute faacutecil de fato observar que Platatildeo eacute

encontrado somente nas matildeos daqueles que professam serem homens das letrasrdquo

Conforme destacou Henry Chadwick476 o estudo da metafiacutesica platocircnica foi peculiar a

poucos de uma ldquoaristocracia intelectualrdquo Nesse sentido Ramsay MacMullen477 tambeacutem

apontou que a reflexatildeo filosoacutefica natildeo apresentou nenhuma influecircncia detectaacutevel agrave praacutetica

cuacuteltica da religiatildeo tradicional grega478 Por outro lado eacute possiacutevel encontrar criacuteticas da

intelectualidade agraves superstitiones e agrave religiatildeo tradicional Certamente para pensadores como

Plutarco Dio de Prusa e Luciano de Samoacutesata os deuses natildeo existiam conforme as formas

homeacutericas Segundo Ramsay MacMullen479 esses pensadores puristas sustentam que os

deuses estavam distantes demais de tais caracteriacutesticas humanas comuns tais como nascer

comer beber e fornicar como a maioria deles faz extensivamente em suas tradicionais

representaccedilotildees Tudo isso natildeo passa de deisidaimonia ou seja ldquosupersticcedilatildeordquo Muitas vezes os

filoacutesofos reinterpretavam ou racionalizavam os mitos antigos rejeitando acontecimentos

milagrosos recentes semelhantes agraves narrativas antigas

No mundo grego a morte foi usualmente definida como a separaccedilatildeo da alma do corpo

Isso eacute amplamente demonstrado nas representaccedilotildees da morte de muitos guerreiros de Homero

repetidamente descritas como a alma [yuch] deixando o corpo480 E mesmo Platatildeo poderia

concordar com isso tendo Soacutecrates proclamado que a morte em sua opiniatildeo ldquonatildeo eacute nada

aleacutem do que a separaccedilatildeo dessas duas coisas a alma e o corpordquo481 A alma homeacuterica no Hades

era sempre definida como ldquomorterdquo Eram ldquoespiacuteritos da morterdquo482 ldquoMorterdquo natildeo significava

inexistecircncia absoluta mas uma existecircncia deacutebil da alma sem o corpo Sem um corpo fiacutesico

ningueacutem era de fato uma ldquopessoa completardquo Para os gregos a natureza humana sempre

equivaleu a uma unidade psicossomaacutetica Como escreveu Michael Clarcke483 ldquoo homem

homeacuterico natildeo tinha uma mente pois seus pensamentos e consciecircncia eram partes constituintes

da sua vida corpoacuterea como eram os movimentos e o metabolismordquo

475 Contra Celso 62 476 Introduction In ____ Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi 477 Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 p77 478 Isso natildeo quer dizer que filosofia natildeo acarretou mudanccedilas na maneira de pensar a religiatildeo pelos letrados como se considerou no capiacutetulo anterior 479 Ibid p77 480 ENDSJO Dag Oistein Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 p 38 481 Platatildeo Gorgias 524b cf Platatildeo Feacutedon 64c 482 Odisseia 11541 cf Odisseia 10521 10536 1129 1149 483 CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999 p 115

97

Como filoacutesofo Plutarco natildeo acreditava em nenhuma dessas histoacuterias populares sobre

ressurreiccedilatildeo fiacutesica e imortalizaccedilatildeo Para ele somente a alma tinha a chance de alcanccedilar a

esfera divina ldquoquando ela definitivamente se separa e se torna livre do corpo tornando-se

pura descarnada e imaculadardquo484 Mas ele admite que a maioria das pessoas natildeo se importava

com isso

Essas especulaccedilotildees tinham consequecircncias apenas limitadas de modo que natildeo

apresentaram um impedimento destacaacutevel agrave proliferaccedilatildeo de superstitiones inclusive entre as

classes elevadas agraves vezes Conforme Rohde485 argumenta a indignaccedilatildeo apaixonada de

filoacutesofos estoicos e epicureus que atacavam as crenccedilas que repousavam sobre os ensinos de

Homero natildeo poderiam ser explicadas exceto pela suposiccedilatildeo de que Homero e suas

representaccedilotildees permaneciam com uma significativa forccedila de orientaccedilatildeo entre as massas que

natildeo tinham conhecimento da filosofia O proacuteprio Justino indica que as ideias em torno da

crenccedila no Hades ainda eram fortes

O apologista toma o desafio de mostrar que a forma de pensar cristatilde natildeo era uma

novidade tatildeo descabida que natildeo pudesse ser aceita e ao mesmo tempo procura mostrar que

suas ideias apresentam um argumento razoaacutevel Comparando a crenccedila cristatilde na existecircncia de

uma consciecircncia apoacutes a morte do corpo agraves outras opiniotildees disseminadas pelo Impeacuterio

destaca-se tambeacutem que essa doutrina natildeo era demasiadamente estranha aos povos486 Os

elementos aparentemente comuns agrave cultura greco-romana e ao cristianismo nascente satildeo

alinhados na construccedilatildeo do argumento de que se os cristatildeos natildeo apresentavam uma doutrina

demasiadamente nova natildeo deveriam existir razotildees para serem incomodados ou combatidos

Neste caso os que apresentam doutrinas semelhantes agraves dos fieacuteis tambeacutem mereceriam ser

combatidos ou em uma melhor hipoacutetese ambos mereceriam ser deixados em paz

Outro refuacutegio apologeacutetico encontrado por Justino eacute recorrer ao fundamento cristatildeo na

tradiccedilatildeo judaica para assim alegar a antiguidade cristatilde Mas reconhecendo os elementos

semelhantes agrave cultura geral e agrave religiatildeo dos judeus o apologista abaixa a guarda para os

golpes da intelectualidade Por isso sua trama apologeacutetica precisa forjar um sentido

racionalizante desses elementos comuns a pagatildeos e a judeus e apresentar ao mesmo tempo a

doutrina cristatilde como um ensinamento superior agrave filosofia

484 Plutarco Romulus 287 485 ROHDE Erwin [1921] Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966 p 535 486 I186

98

Ele compara a crenccedila cristatilde na consumaccedilatildeo final de todas as coisas agraves noccedilotildees de

Sibila487 e Histapes488 (I201) sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo de tudo o que eacute corruptiacutevel A

funccedilatildeo do fogo no processo do ciclo coacutesmico dos filoacutesofos estoicos tambeacutem eacute elencado

destacando o renascimento do mundo pela transformaccedilatildeo489 Arquitetando seu argumento

apologeacutetico Justino questiona por que os cristatildeos satildeo ldquoperseguidosrdquo se existem algumas

correlaccedilotildees ou semelhanccedila entre as coisas ensinadas entre os fieacuteis e entre os filoacutesofos e

ldquopoetasrdquo estimados pelos romanos490 Essas correlaccedilotildees no entanto levaratildeo o apologista a

um aprofundamento dessas semelhanccedilas e dessemelhanccedilas Ele escreve

Assim quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus pareceraacute apenas que enunciamos um dogma de Platatildeo ao falar sobre conflagraccedilatildeo outro dogma dos estoicos ao dizer que satildeo castigadas as almas dos iniacutequos que ainda depois da morte conservaratildeo a consciecircncia e que as dos bons livres de todo castigo seratildeo felizes pareceraacute que falamos como vossos poetas e filoacutesofos que natildeo se devem adorar obras de matildeos humanas natildeo eacute senatildeo repetir o que disseram Menandro o

487 O substantivo feminino Sibulla pode significar uma ldquoprofetizardquo (PEREIRA Isidro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 516) Admite-se que essas elas profetizavam sob a influecircncia divina O primeiro escritor grego a fazer menccedilatildeo a Sibila eacute Heraacuteclito (Fragmento 92) No entanto Walter Burket (Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 p 116) escreve que mulheres em frenesi espiritual pelas quais os deuses falavam podiam ser encontradas muito antes no Oriente proacuteximo como em Mari no secundo milecircnio e na Assiacuteria no primeiro milecircnio Elas natildeo eram identificadas por um nome proacuteprio ficavam conhecidas apenas com o nome do local onde atuavam Uma coleccedilatildeo de anuacutencios profeacuteticos deu origem ao que ficou conhecido como Libri Sibyllini Acredita-se que a abra tenha sido obtida no reinado de Tarquinio Priscus (616 aC ndash 579 ac) por uma Sibila que protagoniza um mito em torno do livro Por vezes ela eacute chamada apenas de Sibila Os textos serviam de paracircmetro para a religiatildeo e eram guardados no Juacutepiter Captolino Com o incecircndio do templo em 82 aC os livros se perderam Deram iniacutecio a uma raacutepida busca por textos sibiliacutenicos por diversas regiotildees para compor uma nova coleccedilatildeo Poreacutem o caraacuteter e a pretensatildeo dos textos coletados desapontou esse objetivo Augustus determinou que os livros fossem destruiacutedos (Suetonio Vita cesarum Augustus 31 Tacito Anais VI12) Tibeacuterio voltou a examinar os Livros Sibilinos Muitos foram rejeitados como escritos espuacuterios (Cassius Dio LIV17) Pouco tempo mais tarde ainda sob seu governo um novo volume foi admitido (Taacutecito Anais VI12) (cf SMITH W (Ed) A Dictionary of Greek na Roman Antiquities London John Murray 1875 pp 1043-1044) Do primeiro para o segundo seacuteculo uma grande porccedilatildeo de escritos de cunho judaico-cristatildeos entram no paacutereo do textos sibiliacutenios (cf TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899) Eacute difiacutecil saber exatamente a qual ensino sibilino sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo Justino se refere MUNIER (op cit p 185) sugere que seja o trecho dos Oracles Sibyllins II196 MARCOVICH (Op cit p 62) aponta as passagens de Oracle Sibylline 2196ss 2286ss 3672ss 3689ss 4173ss 7120ss 8243ss O mesmo livro sibilino eacute mencionado em I4512 cuja leitura era vetada ao povo Cf ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997 PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988 A Greek-English Lexicon Edited by Henry Georg Liddell and Robert Scott OxfordNew York Clarendon PressOxford University Press 1996 488 U`stasphj eacute a forma grega de se escrever Vistaspa nome do pai de Dario o Grande e protetor de Zoroastro (KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945) Justino provavelmente estaacute se referindo ao escrito pseudoepiacutegrafo dos Oraacuteculos de Histaspes produzido provavelmente entre os seacuteculo II e I aC Essa obra heleniacutestica da Aacutesia menor apresentava fortes traccedilos do Zoroastrismo mas tambeacutem evidenciava aspectos poliacutetico-apocaliacutepticos relacionado ao domiacutenio de Roma sobre os demais povos (SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012 cf CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938) Histaspe e Sibila tambeacutem aparecem juntos nos escrito de Clemente de Alexandria (Stromata VI51) Lactacircncio (Divinae Institutiones VII1519 VII182) 489 I202 490 I203

99

poeta cocircmico e outros com ele que afirmaram que o artiacutefice eacute maior do que aquele que o fabrica (I204-5)

Tendo em vista a criacutetica dos filoacutesofos e letrados agraves crenccedilas gerais do povo as

semelhanccedilas e pontos de contato entre as doutrinas cristatildes e os mitos pagatildeos apontados por

Justino em defesa dos cristatildeos poderia se converter em uma nova dificuldade como algueacutem

que tenta sair de um abismo para cair em outro Por isso ele desenvolve uma explicaccedilatildeo para

essas semelhanccedilas elevando as doutrinas cristatildes a um niacutevel de primazia e evidenciando o seu

aspecto filosoacutefico

Segundo Viviana L Felix491 mesmo admitindo a semelhanccedila entre os ensinos de

Platatildeo e o dos cristatildeos uma posiccedilatildeo contraacuteria agrave doutrina platocircnica da alma eacute assumida

empenhando-se na construccedilatildeo de uma soteriologia e escatologia cristatildes conforme seratildeo

analisadas mais adiante O apologista combate como destaca Van Winden492 as correntes

filosoacuteficas que natildeo tecircm esperanccedila que Deus castigue ou premie em outra vida Seu interesse

estaacute ligado agrave vida eacutetica do homem e seu destino escatoloacutegico

A esperanccedila dos cristatildeos de terem os seus corpos restabelecidos mesmo depois de

mortos poderia representar algo ldquoimpossiacutevelrdquo na opiniatildeo de alguns Justino natildeo usa outro

argumento que natildeo seja o argumento da feacute Esse seu subterfuacutegio indica que muitas coisas que

parecem ser impossiacuteveis em um momento se demonstram possiacuteveis em outro surpreendendo

a muitos Ele usa o exemplo do secircmen humano para dizer que mostrado a algueacutem luacutecido

jamais se poderia supor imediatamente que uma soacute gota desse liacutequido seria capaz de se

transformar em um corpo humano De modo semelhante entatildeo se a princiacutepio pode parecer

estranho crer que um corpo ldquosemeadordquo na sepultura possa se transformar em um corpo

glorificado na ressurreiccedilatildeo depois se mostraraacute evidente493 Explanando esse argumento o

apologista explica que os cristatildeos sustentam que ldquoeacute melhor crer naquilo que estaacute acima da []

proacutepria natureza e que eacute impossiacutevel aos homens do que serem increacutedulosrdquo494 Tudo gira em

torno dos ensinamentos do seu mestre Jesus Cristo O mesmo que ensinou que o que eacute

impossiacutevel para os homens eacute possiacutevel para Deus495 Para um ouvinte alheio agrave mentalidade

judaico-cristatilde tal sentenccedila poderia parecer muito vaga Afinal os pagatildeos estavam

familiarizados com as limitaccedilotildees humanas e os poderes divinos que recheavam os mitos 491 FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa 492 WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 1975 pp 181-190 493 I191-4 494 I196 Kreitton de pisteuein kai tauta kai ta Th| e`autwn fusei kai avnqrwpoij avdunata hv o`moiwj toij alloij avpistein proseilhfamen MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 495 `Ta avdunata para avnqrwpoij dunata para qew|( MINNSPARVIS Op cit p 128 A citaccedilatildeo eacute de Lc 1827

100

Todavia Justino faraacute saber que o ponto chave desse misteacuterio eacute a feacute naquilo que eacute crido como a

ldquorevelaccedilatildeo divinardquo Essa revelaccedilatildeo mostra-se tambeacutem desafiadora pois ao mesmo tempo em

que traz luz sobre as accedilotildees humanas porta condenaccedilatildeo e temor ainda que estes sejam

contemplados pela mensagem da cruz496 de modo reparador Eacute no exato momento em que se

manifesta a necessidade de escolher aquilo que se revela como o correto verdadeiro e bom

que se deve temer pela escolha capaz de determinar o destino no poacutes-morte Essa advertecircncia

tambeacutem foi feita pelo mestre Natildeo temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais

podem fazer temei antes aquele que depois da morte pode lanccedilar alma e corpo no

inferno497 Ele mesmo define o ldquoinfernordquo como ldquoo lugar onde seratildeo castigados os que

tiverem vivido iniquamente e natildeo acreditaram que aconteceratildeo essas coisas ensinadas por

Deus atraveacutes de Cristordquo498 (I198) O Deus absoluto que tudo vecirc tudo conhece e do qual

nada se pode ocultar aparece tambeacutem como o grande juiz das accedilotildees humanas Assim

comunicada essa ldquoverdaderdquo cristatilde ela deve produzir temor e efetivar a sua funccedilatildeo em exigir

uma accedilatildeo positiva ou negativa de quem a ouve ou a lecirc

42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde

Seguindo o raciociacutenio do apologista deve ser a ldquorazatildeordquo a dirigir as escolhas humanas

No entanto a ldquorazatildeordquo ou seja o logos que estaacute em evidecircncia no pensamento de Justino eacute

produto da sua arguiccedilatildeo teoloacutegico-apologeacutetica Eacute possiacutevel identificar uma estrateacutegia literaacuteria

496 Mensagem da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo 497 lsquoMh Fobeisqe touj avnairountaj umaj kai meta tauta mh dunamenouj ti poihsai( fobhqhte de meta to Avpoqanein dunaMenon kai yuchn kai swma eivj geennan evmbalein)v MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 Cf Mt 1028 Lc 124-5 Geenna eacute uma transliteraccedilatildeo grega do termo aramaico ~ N h iy G e que corresponde ao ~oN h i a y G e hebraico e assumiu o sentido de ldquopuniccedilatildeo futurardquo (RUSCONI C Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 106 A primeira menccedilatildeo ao Vale de Hinnom na Biacuteblia aparece em Js 158 No entanto no texto dos LXX (LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]) satildeo empregadas as palavras faragga Onom para se referir ao ~ N Oh i- y g E) da Biacuteblia Hebraica (Biblia Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50]) Em II Cr 283 a LXX substitui ~ N O=h i- b a y g EaringB pela transliteraccedilatildeo Gaibenenom Esse lugar teria destinados primeiramente ao sacrifiacutecio de crianccedilas a Moloque e a Baal numa parte especiacutefica do vale chamada Tophet Depois do Exiacutelio com o intuito de mostrar a abominaccedilatildeo do local o judeus o transformaram no depoacutesito de lixo da cidade Para a destruiccedilatildeo dos resiacuteduos ali depositados o fogo era mantido sempre aceso Por isso os judeus associaram ao local a ideia de sofrimento e corrupccedilatildeo (Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998 p 457) A palavra geenna eacute sempre empregada nos discursos de Jesus (Mt 2333 Lu 125 Mt 522) como um lugar de puniccedilatildeo num julgamento futuro e Justino o emprega nesse mesmo sentido 498 h de geenna evsti topoj enqa kolaxesqai mellousin oi` avdikwn biwsantej kai mh pisteuontej tauta genhsesqai( o[as o` qeoj dia tou Cristou evdidaxe) MINNSPARVIS Op cit p 128 Cf Lc 125 Mt 1028

101

que ressignifica o conceito de ldquorazatildeordquo por meio da construccedilatildeo teoloacutegica em torno do logos

cristatildeo buscando atestar a racionalidade da ldquofilosofiardquo cristatilde

Considerar a religiatildeo cristatilde como uma ldquofilosofia divinardquo499 natildeo eacute apenas o reflexo da

sua trajetoacuteria filosoacutefica ateacute sua conversatildeo eacute tambeacutem uma estrateacutegia apologeacutetica que considera

normal existirem diferentes correntes de pensamento dentro do Impeacuterio sem que isso acarrete

automaticamente perseguiccedilotildees entre grupos distintos500 Segundo Justino eacute o logosrazatildeo que

orienta o curso da apologia em favor dos cristatildeos501 O apologista estaacute convencido de que suas

reivindicaccedilotildees satildeo ldquojustas e verdadeirasrdquo502 o que exige uma investigaccedilatildeo particular sobre o

sentido desses dois conceitos tambeacutem De outro modo a causa uacuteltima das accedilotildees anticristatildes eacute a

influecircncia dos democircnios que colocam o povo e as autoridades contra os fieacuteis Segundo seu

raciociacutenio os ldquomaus democircniosrdquo agiam por meio da promoccedilatildeo da ignoracircncia e da confusatildeo

Por isso ele se demonstra disposto a apresentar outros pontos sobre as crenccedilas cristatildes ldquoa fim

de persuadir os amantes da verdaderdquo503

Tendo em vista que o mecanismo de controle proporcionado pelo conteuacutedo das

doutrinas cristatildes eacute estabelecido fundamentalmente pelo temor diante do Deus que sonda todas

as coisas e que pode punir ou recompensar eternamente aqueles que agem virtuosamente nesta

vida o apologista escreve sobre a capacidade humana de agir racionalmente

Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e se recusem

outras como ldquoa pobreza o sofrimento e a desonra paternardquo504 A incompreensatildeo dessa

ldquoracionalidade cristatilderdquo fazia com que muitos se opusessem aos cristatildeos A falta de

conhecimento sobre as doutrinas cristatildes seria a responsaacutevel por exemplo por muitos

acusarem-lhes de ateiacutesmo505 Por ser uma religiatildeo nova e em processo de consolidaccedilatildeo natildeo eacute

nenhuma surpresa que muitos ainda estivessem confusos acerca das doutrinas cristatildes que por

vezes encabulavam os proacuteprios cristatildeos506

499 II Apol 125 500 II Apol 126 501 II Apol 128 502 I1211 tambeacutem em I683 ldquonatildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo 503 I1211 504 I128 505 I131 506 Os cristatildeos estavam longe de apresentarem unidade doutrinaacuteria Justino faz menccedilatildeo a cristatildeos divergentes como Helena Menandro e os marcionitas (I261-8)

102

421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios

Segundo a tese apresentada por Justino os democircnios se apoderam de todos aqueles

que de um ou outro modo natildeo trabalham por sua proacutepria salvaccedilatildeo O conceito de daiacute mwn

estava presente na cultura grega desde Homero e Hesiacuteodo507 Seu campo semacircntico eacute extenso

Deus conceito baacutesico que mais se aproxima da ideia que Justino sustenta eacute o de ldquoum ser

divinordquo ldquoo poder divinordquo ldquoum semideusrdquo ldquoser que interfere no destino humanordquo e poderia

ser ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo508

O conceito de ldquosalvaccedilatildeordquo natildeo estaacute claro nesses escritos mas estaacute relacionado agrave

recompensa positiva daqueles que creram e agiram conforme a revelaccedilatildeo dos desiacutegnios

divinos Isso tambeacutem significa associar-se ao logos e dissociar-se dos enganos demoniacuteacos

Desse modo ele escreve que ldquodepois de crer no logos noacutes nos afastamos deles [dos democircnios]

e por meio do Filho seguimos o uacutenico Deus unigecircnitordquo509

Esse distanciamento dos enganos destes seres malignos e pelo apego ao logos eacute o que

produz uma mudanccedila de conduta Seu testemunho em defesa da feacute eacute que os que antes se

compraziam na dissoluccedilatildeo agora abraccedilam apenas a temperanccedila os que antes se entregavam

agraves artes maacutegicas agora se consagram ao Deus bom e ingecircnito aqueles que antes eram

apegados aos bens materiais e agraves rendas agora compartilham do quem tecircm os que antes se

odiavam e se matavam mutuamente desprezando aqueles que natildeo pertenciam agrave mesma raccedila

pela diferenccedila de costumes agora vivem todos juntos rezam pelos seus inimigos e tratam de

persuadir os que os aborrecem injustamente a fim de que vivendo conforme conselhos de

Cristo tenham boas esperanccedilas de alcanccedilar uma recompensa de Deus (I Apol 141-3) Por

isso o filoacutesofo apologista critica as accedilotildees anticristatildes romanas que acatavam as caluacutenias

disseminadas dizendo ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e natildeo

tenhais a quem castigarrdquo510

A fonte da moralidade cristatilde estaacute primeiramente relacionada agrave mensagem do seu

mestre o Cristo por vezes tido como motivo de escacircndalo para os infieacuteis Essa moralidade eacute

destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e comentaacuterios ldquodisseminados

507 POPE Kyle Mark The concept of theDAIMWN in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 13-17 cf REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004 508 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 (Perseu Project) 509 I Apol 141 510 I Apol 124

103

entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso seu discurso sobressalta o

valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de temperanccedila511 Tambeacutem recebem

destaques a doutrina cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos

necessitados e a ausecircncia de valor da ostentaccedilatildeo512 Com o mesmo tom piedoso seguem as

afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico513 Desse

modo Justino contribui tambeacutem para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos

propondo uma identidade coletiva Nesse processo o apologista combate um conceito

estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que considera equiacutevocos e mal entendidos

ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja Essa sua atitude revela tambeacutem que o processo de construccedilatildeo da

identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada principalmente pela

necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os variados grupos

cristatildeos Pois as Igrejas em meados do seacuteculo II devem ser vistas ainda como manifestaccedilotildees

de ldquocristianismosrdquo514

No intuito de explicar o caraacuteter das crenccedilas cristatildes Justino faz referecircncia agrave recepccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo de escritos e doutrinas Ser cristatildeo em sua perspectiva natildeo eacute simplesmente

pertencer a um grupo eacute um ldquoidealrdquo o de aprender o que foi ensinado pelo Cristo e praticar

em suas obras Desse modo elege-se a praacutetica dos ensinamentos do Logos como o elemento

fundamental diferenciador entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos515 Justino defende a liberdade para

estes que ele tem por ldquocristatildeosrdquo aos outros espera-se que sejam mesmo perseguidos516

Dentre os ensinos do Cristo estaacute o pagamento dos tributos e contribuiccedilotildees517 mas o

apologista vai aleacutem Propondo-se a oferecer algumas das principais informaccedilotildees sobre o

conteuacutedo das crenccedilas cristatildes um paralelo entre a natureza desses ensinamentos e outras

arguiccedilotildees eacute traccedilado518

Jesus eacute descrito como u`ioj de Qeou [filho de Deus] aquele que ainda que parecesse

homem de modo comum por sua sabedoria mereceria chamar-se filho de Deus Haacute um

511 I151-7 512 I141-919 513 I161-6 514 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 515 ldquoAqueles poreacutem que se vecirc que natildeo vivem como ele ensinou sejam declarados como natildeo cristatildeos por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de Cristo pois ele disse que se salvariam natildeo os que apenas falassem mas que tambeacutem praticassem as obrasrdquo (I169) 516 ldquoAqueles que natildeo vivem conforme os ensinamentos de Cristo e satildeo cristatildeos apenas de nome noacutes somos os primeiros a vos pedir que sejam castigadosrdquo (I1614) 517 Justino recorre agrave passagem comum a Mt 221719-20 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo cf I172 518 I144

104

contraste entre o Cristo que nasceu como Logos de Deus e o que afirmavam sobre Hermes

chamado de Logos anunciador ou mensageiro de Deus519 Para rebater o desdeacutem pela

crucificaccedilatildeo de Cristo que poderia representar algo despreziacutevel aos olhos de muitos no

Impeacuterio o apologista aponta que tambeacutem os filhos de Zeus sofreram mortes terriacuteveis Sobre

ele haver nascido de uma virgem ele compara-o a Perseu Quanto agrave cura de coxos paraliacuteticos

e enfermos de nascimento e ateacute mesmo ressurreiccedilatildeo de mortos ele aponta que haacute alguma

semelhanccedila com Ascleacutepio520 As comparaccedilotildees tambeacutem envolvem Dioniso e Heacuteracles esta

uacuteltima ascendida depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos os Dioacutescoros filhos de

Leda Perseu de Dacircnae e Belerofonte nascido de homens que ascenderam sobre o cavalo

Peacutegaso O apologista fala tambeacutem dos imperadores mortos aos quais muitos consideravam

como dignos da imortalidade e alguns juravam terem visto Ceacutesar subir ao ceacuteu521 Mas ele

adverte ldquoNatildeo pedimos que se aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque

dizemos a verdaderdquo522

As doutrinas cristatildes satildeo apresentadas como a ldquouacutenica verdaderdquo e a mais antiga do que

todos os escritores que existiram Seu discurso busca demonstrar que Jesus Cristo eacute

propriamente o uacutenico Filho nascido de Deus como seu Logos seu Primogecircnito e sua

Potecircncia A encarnaccedilatildeo do Filho pelo seu designo deu-se para que ele ensinasse essas

verdades para a transformaccedilatildeo e conduccedilatildeo do ldquogecircnero humanordquo523 Poreacutem segundo sua teoria

apologeacutetica antes de tornar-se homem entre os homens houve alguns democircnios malvados

que se adiantaram a dizer por meio dos poetas terem acontecido os mitos que inventaram

Seriam esses os mitos gerais conhecidos por gregos e romanos Em oposiccedilatildeo ao

esclarecimento proposto pelo logos para a salvaccedilatildeo humana esta o obscurecimento de toda a

racionalidade proporcionado pelos democircnios

Os democircnios satildeo entatildeo reconceituados a partir de uma perspectiva cristatilde que toma por

base a tradiccedilatildeo judaica em intersecccedilatildeo com aspectos da cultura grega conforme analisou K

M Pope524 Sua imagem estaacute relacionada ao ldquopriacutencipe dos maus democircniosrdquo chamado de

ldquoserpente satanaacutes diabo ou caluniador Todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que

519 I221-2 520 I225-6 521 Cassius Dio (Hist Rom 56462 cf T Livio Histoacuteria de Roma (Ad urbe condita) I165-7) menciona a histoacuteria de que um senador e ex-pretor tinha jurado que ele tinha visto Augustus subindo aos ceacuteus Suetocircnio tambeacutem se refere a algo desse tipo Augustus 1004 Uma histoacuteria similar foi contada sobre Iulia Drusilla a irmatilde de Caliacutegula (Cassius Dio Hist Rom 59114) Secircneca zomba deste testemunho em Apocolocyntosis I 522 I231 523 I232 cf SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987 524 The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 52-53

105

o seguem seraacute enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de

antematildeo anunciada por Cristordquo525

Justino acredita ser possiacutevel demonstrar a veracidade da feacute cristatilde por meio do

cumprimento das Escrituras526 Ele explica que os profetas de Deus movidos pelo logos e sob

o Espiacuterito profeacutetico anunciaram antecipadamente os acontecimentos futuros Vem em

seguida uma seacuterie de ldquoprediccedilotildeesrdquo sobre a vinda de Cristo e sobre o que deveria acontecer tais

como a queda de Jerusaleacutem527 a cura das enfermidades e a morte de Cristo a ressurreiccedilatildeo dos

mortos e a prediccedilatildeo de Isaiacuteas528 sobre a expansatildeo para todas as naccedilotildees Ele tambeacutem procura

mostrar que ateacute o sofrimento e a humilhaccedilatildeo de Jesus estavam previstas nas profecias e que

ele chegou a ser abandonado ateacute pelos seus (I501ss) Seu raciociacutenio eacute o seguinte

Com efeito do mesmo modo que o acontecido antecipadamente anunciado por mais que natildeo tivesse sido compreendido aconteceu assim tambeacutem o que ainda falta para ser cumprido aconteceraacute por mais que natildeo se compreenda nem se creia Assim eacute que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo uma jaacute cumprida como homem desonrado e passiacutevel a segunda quando viraacute dos ceacuteus acompanhado de seu exeacutercito de anjos quando ressuscitaraacute tambeacutem os corpos de todos os homens que existiram revestiraacute de incorruptibilidade os que forem dignos e enviaraacute os iniacutequos com percepccedilatildeo eterna ao fogo eterno junto com os perversos democircnios (I521-3)

Com convicccedilatildeo sobre o cumprimento das profecias escreve ldquoDe fato por que motivo

haveriacuteamos de crer que um homem crucificado eacute o primogecircnito do Deus ingecircnito e que

julgaraacute todo o gecircnero humano se natildeo encontraacutessemos testemunhos sobre ele publicados

antes de ele ter nascido como homem e natildeo os viacutessemos literalmente cumpridosrdquo 529 E isso o

faz pensar que a apresentaccedilatildeo desse elevado nuacutemero de referecircncias a prediccedilotildees e seus

cumprimentos deveria razoavelmente convencer a seus leitores530

Os mitos dos pagatildeos satildeo comparados aos ldquoensinosrdquo cristatildeos sustentando que eles natildeo

apresentam nenhuma prova de sua veracidade Isso deveria demonstrar que foram ditos por

obra dos ldquodemocircnios perversosrdquo para enganar e extraviar o ldquogecircnero humanordquo Ouvindo os

profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens iacutempios seriam castigados atraveacutes do

fogo esses seres maleacutevolos teriam colocado agrave ldquofrente muitos que se disseram filhos de Zeus

crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo

como um conto de fada semelhante aos contados pelos poetasrdquo531 Assim eacute elencada uma

seacuterie de semelhanccedilas entre a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e a greco-romana para mostrar a distorccedilatildeo

525 I281 526 I301ss 527 I471ss 528 Is 651-15 520 529 I532 530 Justino escreve que seriam persuadidos os que ldquoamam a verdade que natildeo seguem a opiniatildeo nem se deixam dominar por suas paixotildeesrdquo (I5310-12) 531 I542

106

pagatilde que soacute podem ser identificadas atraveacutes de uma hermenecircutica bem peculiar532 As

comparaccedilotildees vatildeo desde o texto de Gn 4910-11 agrave vinha de Dioniso e sua ascensatildeo

semelhante agrave subida de Belerofonte montado no cavalo Peacutegaso ao ceacuteu o texto de Is 714 e a

lenda de Perseu Sl 186 e as narrativas sobre Heacutercules ateacute as ldquoprofeciasrdquo de curas a todas as

enfermidades e ressurreiccedilatildeo dos mortos533 ao mito de Ascleacutepio Mas a crucificaccedilatildeo eacute algo que

os pagatildeos natildeo poderiam imitar pois tudo ldquotudo o que se refere agrave cruz foi dito de forma

simboacutelicardquo534

Os judeus no entanto satildeo tidos como ignorantes sobre o cumprimento das profecias

de que Jesus deveria vir nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda

doenccedila toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e

crucificado que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus

que ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os

homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nele535

Ele recorre aos escritos do profeta Isaiacuteas536 para indicar que Cristo seria concebido por

uma virgem O logos eacute conceituado como o Filho a primeira virtude ou potecircncia depois de

Deus que eacute Pai e soberano de todas as coisas O logos entatildeo se tornou carne e nasceu homem

(I3210) Por Espiacuterito e forccedila que procede de Deus ele eacute reconhecido como o Logos que eacute o

primogecircnito de Deus O apologista sustenta que aqueles que profetizam satildeo inspirados pelo

logos divino

Em sua perspectiva os judeus detentores da tradiccedilatildeo e dos livros dos profetas poreacutem

aleacutem de natildeo reconhecerem a Cristo jaacute vindo tambeacutem odeiam aos cristatildeos Isso eacute destacado

na sua afirmaccedilatildeo de que na guerra dos judeus Bar Koseba o cabeccedila da rebeliatildeo mandava

submeter a terriacuteveis torturas somente os cristatildeos caso estes natildeo negassem e blasfemassem

Jesus Cristo (I316)

A mensagem cristatilde eacute um elemento apelativo que busca induzir os fieacuteis a uma conduta

diferente ldquoNoacutes que antes nos mataacutevamos mutuamente agora natildeo soacute natildeo fazemos guerra

contra os nossos inimigos mas tambeacutem por natildeo mentir nem enganar os juiacutezes que nos

interrogam morremos felizes de confessar a Cristordquo (I393) Justino considera ridiacuteculo que os

soldados que se arrolam e se alistam pusessem a lealdade para com o imperador ldquoacima de

sua proacutepria vida acima dos pais paacutetria e tudo o que lhes pertence embora nada de

532 BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 2009 pp 538-555 533 Is 355-6 Mt 115 534 I551 535 I317-8 536 Is 111-10

107

impereciacutevel lhes pudeacutesseis oferecerrdquo (I395) Por outro lado os cristatildeos que amam a

incorrupccedilatildeo suportam tudo a troco de receber daquele que confiam ter poder para lhes dar

(I395)

A superioridade do Deus judaico-cristatildeo sobre os deuses das outras naccedilotildees aparece

submetendo os demais deuses ao jugo dos ldquodemocircniosrdquo sob a sombra da ignoracircncia que esses

propagam Entretanto o Deus dos cristatildeos eacute o Deus que criou a racionalidade

Justino coloca que

no princiacutepio [Deus] criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma pedra Virtude e viacutecio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e iniquidade (I283-4)

Esse ser racional que Justino se refere eacute tambeacutem aquele cuja racionalidade pode ser ratificada

no reconhecimento e submissatildeo aos ensinos cristatildeos Haacute uma postura anti-estoica manifesta

em suas palavras que reduz o dogma do destino dessa corrente filosoacutefica a ldquoimpiedade e

iniquidaderdquo537

Ele sustenta que os cristatildeos aprenderam com os profetas que

os castigos e tormentos assim como as boas recompensas satildeo dadas a cada um conforme as suas obras Se natildeo fosse assim mas tudo acontecesse por destino natildeo haveria absolutamente livre-arbiacutetrio Com efeito se jaacute estaacute determinado que um seja bom e outro mau nem aquele merece elogio nem este vitupeacuterio Se o gecircnero humano natildeo tem poder de fugir por livre determinaccedilatildeo do que eacute vergonhoso e escolher o belo ele natildeo eacute irresponsaacutevel de nenhuma accedilatildeo que faccedila538 (I432-3)

Ele destaca que se por outro lado algueacutem

estivesse determinado [para] ser mau ou bom natildeo seria capaz de coisas contraacuterias nem mudaria com tanta frequumlecircncia Na realidade nem se poderia dizer que uns satildeo bons e outros maus desde o momento que afirmamos que o destino eacute a causa de bons e maus e que realiza coisas contraacuterias a si mesmo ou que se deveria tomar como verdade o que jaacute anteriormente insinuamos isto eacute que virtude e maldade satildeo puras palavras e que soacute por opiniatildeo se tem algo como bom ou mau Isso como demonstra a verdadeira razatildeo eacute o cuacutemulo da impiedade e da iniquidade (I436)

O ldquodestino iniludiacutevelrdquo reconhecido pelo apologista eacute que aqueles que escolheram o

bem tenham ldquodigna recompensardquo e os que escolheram o contraacuterio tenham igualmente ldquodigno

castigordquo (I437) Dentro do sistema de pensamento construiacutedo por Justino seria incoerente

com o sistema de controle social admitir que Deus tenha determinado as escolhas humanas

Nesse caso como ele escreve ldquonatildeo seria digno de recompensa e elogio pois natildeo teria

escolhido o bem por si mesmo mas nascido jaacute bom nem por ter sido mau seria castigado

537 avsebeia kai avdikia evsti I284 538 PLATAtildeO Repuacuteblica 617e

108

justamente pois natildeo o seria livremente mas por natildeo ter podido ser algo diferente do que foirdquo

(I438) Desse modo o apologista deixa clara sua oposiccedilatildeo ao estoicismo539

O pensamento de Justino sobre isso poderia ser resumido em ldquoDeus criou livres tanto

os anjos como o gecircnero humano e por isso receberam com justiccedila o castigo de seus pecados

no fogo eternordquo540 Tal alegaccedilatildeo estaria fundamentada na ideia de que tudo deve ser capaz de

viacutecio e de virtude pois ningueacutem seria digno de louvor se natildeo pudesse tambeacutem voltar-se para

um desses extremos541

Ele assume que esta doutrina foi ensinada pelo Espiacuterito profeacutetico que por meio de

Moiseacutes nos testemunha que falou ao primeiro homem que havia criado do seguinte modo

ldquoOlha que diante de tua face estaacute o bem e o mal escolhe o bemrdquo542 Ele cita tambeacutem Isaiacuteas543

e o proacuteprio Platatildeo544 ao dizer A culpa eacute de quem escolhe Deus natildeo tem culpa Justino

alega que Platatildeo falou isso por tecirc-lo tomado do profeta Moiseacutes desse modo ele diz que ldquopois

se sabe que este eacute mais antigo do que todos os escritores gregosrdquo (I441-8) Para explicar os

elementos semelhantes entre os escritos gregos e os judaico-cristatildeos o apologista alega que

tudo o que os filoacutesofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplaccedilatildeo das coisas celestes aproveitaram-se dos profetas natildeo soacute para poder entender mas tambeacutem para expressar isso Daiacute que parece haver em todos algo como germes de verdade Todavia demonstra-se que natildeo o entenderam exatamente pelo fato de que se contradizem uns aos outros (I449-10)

Deus conhece de antematildeo tudo o que seraacute feito por todos os homens e eacute decreto seu

recompensar cada um segundo o meacuterito de suas obras e por isso justamente prediz por meio

do Espiacuterito profeacutetico o que para cada um viraacute da parte dele conforme o que suas obras

mereccedilam545 Ele eacute aquele que constantemente conduz o gecircnero humano agrave reflexatildeo e agrave

lembranccedila demonstrando-lhe que cuida e usa de providecircncia para com os homens

Sobre a novidade da religiatildeo cristatilde Justino escreve ldquoAlguns sem motivo para rejeitar

o nosso ensinamento poderiam nos objetar que ao dizermos que Cristo nasceu somente haacute

cento e cinquumlenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio

Pilatos os homens que o precederam natildeo tecircm nenhuma responsabilidaderdquo (461) Ele entatildeo

responde

Noacutes recebemos o ensinamento de que Cristo eacute o primogecircnito de Deus e indicamos antes que ele eacute o Logos do qual todo o gecircnero humano participou Portanto aqueles

539 ldquohellipnoacutes dizemos que aconteceraacute a conflagraccedilatildeo universal mas natildeo como dizem os estoacuteicosrdquo II63 cf Alesandre de Aphrodisias On Fate 9 [17525] 540 II65 541 II66 542 Dt 301519 543 Is 116-20 544 Repuacuteblica X617e 545 I4411

109

que viveram conforme o Logos satildeo cristatildeos quando foram considerados ateus como sucedeu entre os gregos com Soacutecrates Heraacuteclito e outros semelhantes e entre os baacuterbaros com Abraatildeo Ananias Azarias e Misael e muitos outros cujos fatos e nomes omitimos agora pois seria longo enumerar De modo que tambeacutem os que antes viveram sem razatildeo [logos] se tornaram inuacuteteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razatildeo [logos] mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela satildeo cristatildeos e natildeo experimentam medo ou perturbaccedilatildeo O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma virgem pela virtude do Logos conforme o desiacutegnio de Deus Pai e soberano do universo e foi chamado Jesus e depois de crucificado e morto ressuscitou e subiu ao ceacuteu o leitor inteligente poderaacute perfeitamente compreendecirc-lo pelas longas explicaccedilotildees que foram dadas ateacute aqui (462-6)

O apologista usa de uma estrateacutegia semacircntica para literalmente ldquodar razatildeordquo agraves

doutrinas cristatildes

422 A razatildeo que julga

No mundo grego a palavra logoj jaacute assumira uma significacircncia para o pensamento

especulativo desde muito cedo Era um termo teacutecnico para as vaacuterias ldquociecircnciasrdquo que se

desenvolviam na Greacutecia do seacutec V aC A gramaacutetica a loacutegica a retoacuterica a psicologia a

metafiacutesica a teologia e a matemaacutetica deram-lhe sentidos diferentes ainda dentro do mesmo

campo da ciecircncia Seu campo semacircntico eacute vasto Pode significar razatildeo palavra discurso

menccedilatildeo declaraccedilatildeo afirmaccedilatildeo resposta promessa dito proveacuterbio ou maacutexima546 Alguns

destes significados podem parecer contraditoacuterios Ele eacute um termo comum que pode aparecer

em qualquer lugar Aparece nos textos de Homero Heroacutedoto Platatildeo Aristoacuteteles Tuciacutededes

Piacutendaro Aeschylus Xenoacutefanes Soacutefocles Aischines e outros547 mas eacute seu significado

filosoacutefico-religioso que importa A histoacuteria desse conceito eacute bastante complexa todavia eacute

suficiente abordar os principais aspectos do uso filosoacutefico-religioso do logoj

Justino sustenta que os gregos aprenderam muitos conceitos com as Escrituras

judaicas Segundo sua teoria Ptolomeu rei do Egito se preocupou em formar uma biblioteca

e nela reunir os escritos de todo o mundo tendo notiacutecia dessas profecias mandou uma

546 Significa ainda decisatildeo resoluccedilatildeo ordem proclamaccedilatildeo ensinamento doutrina parte de doutrina definiccedilatildeo hipoacutetese condiccedilatildeo pacto fama tradiccedilatildeo lenda reputaccedilatildeo boato opiniatildeo notiacutecia revelaccedilatildeo oraacuteculo resposta de oraacuteculo palavra revelada verbo assunto mateacuteria objeto questatildeo fato acontecimento coisa discurso frase prosa falar faculdade de falar e como logoj proforikoj discurso extriacutenseco palavra uso da palavra direito agrave palavra coloacutequio discussatildeo faacutebula narrativa imaginaacuteria lenda mito narrativa histoacuterica histoacuteria literatura conta caacutelculo soma explicaccedilatildeo avaliaccedilatildeo valor significado a razatildeo praacutetica (nouj especulativo) razatildeo divina personificada motivo causa fundamento justificaccedilatildeo plano projeto RUSCONI C (ed) DICIONAacuteRIO do grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 350 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001 547 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001

110

embaixada pedindo os livros dos judeus Ptolomeu providenciou que fossem traduzidos para o

grego Depois disso os livros permaneceram entre os egiacutepcios ateacute o presente e os judeus os

usam no mundo inteiro Assim os gregos teriam aprendido muitas coisas que teriam

ldquoenriquecidordquo seus mitos e pensamentos em geral548

Todavia foi Filon de Alexandria quem primeiro tomou as interrogaccedilotildees filosoacuteficas

estabelecendo correlaccedilotildees com os elementos da cultura religiosa judaica549 Era corrente no

judaiacutesmo a reflexatildeo sobre a ldquoPalavrardquo criadora e comunicadora da revelaccedilatildeo divina Mas foi o

contato com a cultura helecircnica e as proximidades semacircnticas ainda que muito limitadas entre

Escrituras judaicas e as palavras gregas que carregaram o teor filosoacutefico ou especulativo550

Conforme analisou Dax F P Nascimento551 eacute por intermeacutedio do Logos uma espeacutecie de

declaraccedilatildeo divina que se remete a si mesmo revelado que se obteacutem a educaccedilatildeo acerca da

verdade por meio da qual haacute o arrependimento ou conversatildeo dos prazeres e ciecircncias do

mundo sensiacutevel para a razatildeo e para a piedade

Entre os cristatildeos natildeo haacute evidecircncias de que a reflexatildeo sobre o logos tenha a princiacutepio

alguma conotaccedilatildeo filosoacutefica Teoacutelogos como R Bultmann552 G Kimmel553 O Culmann554

concordam que o logos mencionado no proacutelogo do Evangelho segundo Joatildeo eacute uma niacutetida

referecircncia agrave ldquoPalavrardquo comunicadora de Deus sobre a qual Fiacutelon refletiu Eacute possiacutevel que na

virada do I para o II seacuteculo a expansatildeo cristatilde comeccedilasse a exigir uma atenccedilatildeo maior tambeacutem

aos conceitos e questotildees pertinentes ao mundo greco-romano555

Com a conversatildeo de filoacutesofos como Atenaacutegoras Aristides e do proacuteprio Justino as

correlaccedilotildees entre essas correntes de pensamentos se manifestam principalmente na produccedilatildeo

apologeacutetica cristatilde556

Justino escreve que do logos que inspirou os profetas Platatildeo tomou o que disse sobre

Deus ter criado o mundo transformando uma mateacuteria informe557 Segundo Minns e Parvis558

548 I311-5 549 BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950 550 KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91 Cf COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp 1507-1562 551 O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia PUC Rio de Janeiro 2003 p 179 552 Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004 553 Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983 554 Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002 555 ARZANI A A teologia do logoj no Quarto Evangelho Orientador Dr Paulo Beniacutecio Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008 pp 52-60 556 Cf WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982 557 I591

111

suas comparaccedilotildees entre algumas passagens das Escrituras e dos textos de Platatildeo satildeo

interpretaccedilotildees difiacuteceis de serem compartilhadas pois apresentam uma hermenecircutica muito

particular e em alguns pontos chega a interpretar o platonismo segundo formas comuns ao

estoicismo Destacando os elementos semelhantes ao cristianismo e outras correntes de

pensamento Justino alega ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim

todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinasrdquo559 Mas esses pontos de contato satildeo

limitados Ele escreve que

natildeo satildeo totalmente semelhantes como tambeacutem as dos outros filoacutesofos os estoacuteicos por exemplo poetas e historiadores De fato cada um falou bem vendo o que tinha afinidade com ele pela parte que lhe coube do logos seminal divino Todavia eacute evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros natildeo alcanccedilaram uma ciecircncia infaliacutevel nem um conhecimento irrefutaacutevel Portanto tudo o que de bom foi dito por eles pertence a noacutes cristatildeos porque noacutes adoramos e amamos depois de Deus o logos que procede do mesmo Deus ingecircnito e inefaacutevel Ele por amor a noacutes se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curaacute-los Todos os escritores soacute puderam obscuramente ver a realidade graccedilas agrave semente do logos neles ingecircnita560

Enquanto algumas correlaccedilotildees entre o pensamento cristatildeo e a cultura greco-romana

satildeo fruto da accedilatildeo dos democircnios para causar confusatildeo uma porccedilatildeo do logos pode ser

identificada para aleacutem daqueles que deteacutem o logos pleno

Nesse sentido ele escreve

Sabemos que alguns que professaram a doutrina estoacuteica foram odiados e mortos Pelo menos na eacutetica eles se mostram moderados assim como os poetas em determinados pontos por causa da semente do Logos que se encontra ingecircnita em todo o gecircnero humano (II71)

Heraacuteclito que foi banido de Eacutefeso por causa de suas ideias e tambeacutem o filoacutesofo

Musonius que dentre outros que sofreram algum tipo de hostilidade nos tempos de Nero a

Vespasiano561 satildeo citados como exemplo Natildeo haacute nenhum motivo evidente para Justino

mencionar Heraacuteclito exceto pela sua teoria sobre o logos Quanto a Gaius Musonius Rufus

seu nome eacute lembrado pelo acento moral de sua filosofia de inspiraccedilatildeo estoica que o tornou

ridiacuteculo a muitos soldados562 Desse modo procura-se destacar que ldquoos democircnios sempre se

empenharam em tornar odiosos aqueles que de algum modo quiseram viver conforme o

Logos e fugir da maldade (II72)

O apologista ainda considera como uma investida dos democircnios a pena de morte

estabelecida contra aqueles que lessem os livros de Histaspes da Sibila e dos profetas a fim

558Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 236 559 I6010 560 II132-5 561 TACITO Histoacuterias III81 562 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 42

112

de impedir por meio do terror que os homens consigam lendo-os o conhecimento do bem e

retecirc-los como seus escravos563

Segundo o apologista muito mais odiado que aqueles que possuem o logos seminal

satildeo os que tecircm conhecimento e contemplaccedilatildeo do logos total Conforme suas proacuteprias

palavras ldquoO logos de Deus eacute seu Filho [] E tambeacutem se chama mensageiro e embaixador

porque ele anuncia o que se deve conhecer e eacute enviado para nos manifestar tudo o que o Pai

nos comunicardquo564 Sendo os cristatildeos os detentores do logos total e sendo o logos total aquele

que anuncia o que se deve conhecer para se proceder corretamente e receber a recompensa

futura tudo se resume agrave submissatildeo agraves ideias cristatildes565

A forma de controle empregada pelos romanos e que conduz os cristatildeos diante dos

tribunais satildeo pintadas como um sinal da ignoracircncia despreziacutevel daqueles que se submetem agrave

irracionalidade da obscuridade demoniacuteaca em exerciacutecio de uma falsa justiccedila

O julgamento segundo a ldquorazatildeordquo eacute o julgamento final estabelecido pelo Deus cristatildeo e

sobre o qual o apologista pretende convencer a todos ao seu redor566 Os democircnios no

entanto natildeo conseguem convencer de que natildeo haveraacute a conflagraccedilatildeo para castigar os iacutempios

do mesmo modo que natildeo conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu A uacutenica coisa

que conseguem eacute fazer com que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em

meio aos maus costumes entregues agraves suas paixotildees e seguindo a opiniatildeo vatilde procurem tirar a

vida dos cristatildeos e os odeiem Os cristatildeos por outro lado satildeo apresentados como aqueles que

por pura compaixatildeo por eles procuram persuadi-los a se converterem

Os maus haacutebitos dos deuses satildeo reprovados por essa medida cristatilde pois serviriam para

a corrupccedilatildeo dos que eram educados tendo em vista que muitos consideravam ldquobelordquo serem

imitadores dos deuses567 O apologista natildeo pode admitir que uma mente sensata aceite as

accedilotildees de Zeus e de Ganimedes como ldquodivinasrdquo (I215) Por isso ele relaciona a disseminaccedilatildeo

desses mitos agraves artimanhas dos democircnios que induzem os homens agrave imoralidade Em

oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo dos democircnios Justino sustenta que aos cristatildeos foi ensinado que soacute poderiam

alcanccedilar a imortalidade aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus assim como

tambeacutem se sustenta que seratildeo castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e

563 Cf Tacitus Annales II32 XII52 Historias I22 II62 Cassius Dio Hist Rom 57157-8 564 I634-5 565 Cf PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988 566 Cf KERESZTES P Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986 567 E um pensamento que estava relacionado aos epicureus pelo menos Philodemus Sobre a Piedade 71

113

natildeo se converteram (I216) Para os outros estaacute guardado o dia do juiacutezo descrito com grande

tormento em que se encontraratildeo os injustos568

A moralidade cristatilde eacute destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e

comentaacuterios ldquodisseminados entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso

seu discurso sobressalta o valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de

temperanccedila569 que crescia em nuacutemeros naquela eacutepoca Tambeacutem recebem destaques a doutrina

cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos necessitados e a ausecircncia de

valor da ostentaccedilatildeo570 Com o mesmo tom piedoso seguem as afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia

a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico571 Desse modo Justino contribui tambeacutem

para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos propondo uma identidade

coletiva

Um conceito estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que chama de equiacutevocos e mal

entendidos ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja satildeo combatidos Essa sua atitude revela que o

processo de construccedilatildeo da identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada

principalmente pela necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os

variados grupos cristatildeos572 Os outros grupos cristatildeos como o dos seguidores de Marciatildeo satildeo

tidos como instrumentos nas matildeos dos democircnios (I581) Seus discursos satildeo ldquoirracionaisrdquo e

satildeo presas de doutrinas ateiacutestas do democircnio573

Tendo em vista que as pessoas satildeo capazes de agir bem ou mal devido agrave liberdade

concedida por Deus considera-se que em todas as partes haacute tambeacutem os que ldquolegislaram e

filosofaram conforme a reta razatildeordquo ou aparte dela ao mandarem que se faccedilam algumas coisas

e se evitem outras574 A ldquoreta razatildeordquo agrave qual Justino se refere eacute aquela que deriva do Logos

cristatildeo que permeia a criaccedilatildeo revela a mensagem de Deus aos homens desde outros tempos

pelas Escrituras e no seacutec I pelo proacuteprio Cristo e que assim estabelece o padratildeo de conduta

aos que desejam a ldquorecompensa eternardquo Desse modo eacute identificado um padratildeo de justiccedila

baseado nas crenccedilas e valores cultivados pelos cristatildeos que estatildeo proacuteximos a Justino e que L

W Barnard575 chega a chamar de uma ldquoproto-ortodoxiardquo Natildeo eacute possiacutevel resumir ou descrever

568 Is 6624 569 I151-7 570 I141-919 571 I161-6 572 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 573 Avlla Avlogwj w`j upoacute Lukou arnej sunhrpasmenoi( bora Twn avqewn dogmatwn kai daiacutemonwn ginontai I582 574 II68 575 Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 1967

114

o conteuacutedo dessas crenccedilas e valores a partir da anaacutelise das Apologias sabe-se poreacutem que o

apologista se refere agrave forma de pensar dos cristatildeos que lhe satildeo proacuteximos e se distanciam do

modo de pensar por exemplo do grupo de Marciatildeo Helena e Menandro

Justino contempla tambeacutem as criacuteticas daqueles que segundo o seu parecer ldquose

consideram filoacutesofosrdquo e que alegariam que as ideias cristatildes sobre um julgamento universal

futuro ldquosatildeo apenas ruiacutedos espalhafatosos e alarmismosrdquo e diriam que a ameaccedila do castigo no

fogo eterno natildeo passa de um instrumento despreziacutevel para que a ldquohumanidade viva retamente

por medo e natildeo porque a virtude eacute bela e gratificanterdquo (II91) Haacute indiacutecios de que Chrysippus

de Solis dizia que Platatildeo errava em fazer do temor aos deuses um instrumento para a detenccedilatildeo

da injusticcedila e que o argumento do castigo divino natildeo eacute diferente das histoacuterias que as matildees

contam para assustar as criancinhas576 E ainda segundo Diogenes Laertius Crisipo

sustentava que a ldquovirtude [] eacute uma disposiccedilatildeo harmoniosa escolha digna para seu proacuteprio

bem e natildeo de esperanccedila medo ou qualquer outro motivo externordquo577 Em sua soluccedilatildeo Justino

toma emprestado o argumento de Alexandre de Afrodiacutesias578 que defendeu a responsabilidade

moral humana e diz ldquose isto natildeo eacute como dizemos entatildeo natildeo existe Deus ou se existe natildeo se

importa em nada com os homensrdquo579 Virtude e o viacutecio nada seriam e em consequecircncia nem

os legisladores castigariam com justiccedila os que transgridem as boas ordenaccedilotildees Segundo

Minns e Parvis580 a hipoacutetese de Deus natildeo se importar com os seres humanos parece refletir a

visatildeo estoica que estabelecia a teoria do bem e do mal ou virtude e infelicidade considerando

a proximidade com o universo natural e a administraccedilatildeo do mundo Assim quando

Chrysippus581 mantinha que a natureza universal e a administraccedilatildeo do mundo era o

fundamento da teoria estoica sobre o bem e o mal ele estava apelando agrave racional e

providencial atividade de deus cuja conformidade com o qual constitui o bem para o homem

e cuja carecircncia de conformidade constitui o mal

Todavia Justino pontua que os legisladores ldquonatildeo satildeo injustos e o Pai deles ensina

atraveacutes do Logos a fazer o que ele mesmo fazrdquo e neste sentido ldquonatildeo satildeo injustos os que

576 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1040b 577 Diogenes Laertius Vida dos filoacutesofos eminentes VII89 578 ldquopois se natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo e virtude e viacutecio eles argumentam tambeacutem natildeo haacuteacutelouvor ou reprovaccedilatildeo e sem estes natildeo haacute accedilotildees certas ou erradas e se natildeo haacute essas tambeacutem natildeo haacute virtude ou viacutecio e se natildeo haacute essas eles dizem natildeo haacute seque deuses Mas antes assim designadamente que natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo chega a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas vem a estar em concordacircncia com o destino como tem sido mostrado Desse modo a uacuteltima posiccedilatildeo segue tambeacutem mas isto eacute absurdo e impossiacutevel (Alexandre de Afrodisias De fato36) 579 II91 580 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 305 nota 1 581 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1035c-d

115

aderem a essas virtudesrdquo582 Assim o apologista constroacutei outro padratildeo ldquoracionalrdquo atraveacutes do

qual os juiacutezes deveriam julgar para natildeo serem julgados por Deus O novo fundamento da

justiccedila no cumprimento dos seus anseios apologeacuteticos se resume a deixar os cristatildeos em paz

pois segundo seu ponto de vista natildeo havia nenhuma evidecircncia de que os fieacuteis fossem inimigos

do Impeacuterio Ele busca convencer o Imperador e seus filhos a impedir que os governantes e

magistrados locais empreendam accedilotildees anticristatildes apontando as razotildees e a racionalidade cristatilde

43 O governo o controle e os governantes

Justino ndash nessas suas peticcedilotildees apologeticamente fundamentadas que tinham como

destinataacuterios especiais Antonino Pio e seus filhos583 reconhecidamente apreciadores da

filosofia ndash alega que natildeo havia nenhuma ldquorazatildeordquo [logos] para se perseguirem os cristatildeos pois

seria a proacutepria ldquorazatildeordquo [o Logos] quem exige que ldquoos amantes da piedade e da filosofiardquo584

natildeo faccedilam algo irracionalmente

No capiacutetulo anterior foi destacada a criacutetica de Justino sobre os governantes agora

poreacutem eacute oportuno notar o perfil do governante traccedilado pelo apologista dentro do seu

argumento da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem Segundo sua teoria os homens

revestidos de autoridade para governar natildeo devem valorizar nada aleacutem da ldquoverdaderdquo Aleacutem

disso a partir de sua inspiraccedilatildeo platocircnica nota-se sua exigecircncia agravequeles que satildeo ldquopiedosos e

filoacutesofosrdquo assim como satildeo chamados o Imperador e seus filhos que deveriam julgar com

retidatildeo para que todos gozem de bem estar Governar com retidatildeo eacute para Justino governar

segundo a ldquoreta razatildeordquo Esse conceito eacute cristianizado mas aleacutem disso um governante ideal

ldquosuperiorrdquo eacute reverenciado ldquoo logosrdquo A quem ele chama de ldquoo rei mais alto o governante

mais justo que conhecemos depois de Deus que o gerourdquo (I Apol 127) Manifesta-se um

jogo semioacutetico com a palavra logos ou razatildeo

582 II92 583 A I Apologia foi dirigida ao Imperador Antonino Pio e a seus filhos Veriacutessimo (Marco Aureacutelio) e Lucio Vero A II Apologia pode ser continuaccedilatildeo da primeira como sustentou C Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006) fragmentos de anotaccedilotildees de um segundo escrito que natildeo pode ser entregue quando Justino foi preso durante o iniacutecio do governo de Marco Aureacutelio por volta de 160 dC como sustentam Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 passim) A teoria mais tradicional eacute admitir que a II Apologia foi dirigida ao imperador Marco Aureacutelio mas como seraacute visto mais adiante haacute indiacutecios de que Justino tinha por destinataacuterios secundaacuterios todos os que pudessem ler o texto e se informar acerca da inocecircncia dos cristatildeos A soluccedilatildeo para a questatildeo dos destinataacuterios das Apologias exige uma investigaccedilatildeo agrave parte mas natildeo haacute duacutevidas de que Justino pretendia que se texto fosse conhecido por Antonino e seus filhos Marco e Lucio que desde cedo atuaram ao lado 584 I125

116

Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e recusem as

coisas maacutes e assim controlar os excessos humanos (I Apol 128) Do mesmo modo eacute o logos

quem deve orientar os governantes para que o bem ou a ldquosalvaccedilatildeordquo opere sobre o ldquogecircnero

humanordquo Por isso ele escreve ldquose os filoacutesofos e legisladores disseram e encontraram algo de

bom foi elaborado por eles pela investigaccedilatildeo e intuiccedilatildeo conforme a parte do logos que lhes

couberdquo585 Poreacutem por natildeo conheceram a integralidade do Logos que eacute Cristo ldquoeles

frequentemente se contradisseram uns aos outrosrdquo586 Aqueles que antes de Cristo tentaram

investigar e demonstrar as coisas pela razatildeo conforme as forccedilas humanas foram levados aos

tribunais como iacutempios e amigos de novidades Soacutecrates aparece como um exemplo que

ratifica a fala de Justino Segundo o apologista ele foi acusado ldquodos mesmos crimes que [os

cristatildeos]rdquo587 A condenaccedilatildeo seria em razatildeo da oposiccedilatildeo daquele filoacutesofo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica e

a outros poetas ensinando os homens a rejeitar ldquoos maus democircniosrdquo envolvidos com a

idolatria e ao mesmo tempo os exortando ao conhecimento de Deus para eles desconhecido

por meio de investigaccedilatildeo racional dizendo Natildeo eacute faacutecil encontrar o Pai e artiacutefice do universo

nem quando o tivermos encontrado eacute seguro dizecirc-lo a todos588 Todavia se ningueacutem deu

ouvidos a Soacutecrates ateacute que ele deu a sua vida por essa doutrina em Cristo acreditaram natildeo soacute

filoacutesofos e homens dos quais o proacuteprio Justino eacute um mas tambeacutem artesatildeos e pessoas

totalmente ignorantes que souberam desprezar a opiniatildeo o medo e a morte Justino pretende

assim apresentar o poder de abrangecircncia da mensagem cristatilde que deriva do Logos que em

parte foi conhecido por Soacutecrates pois como o apologista escreve ldquoele era e eacute o Logos que

estaacute em tudo e foi quem predisse o futuro atraveacutes dos profetas e feito de nossa natureza por

si mesmo nos ensinou essas coisasrdquo589

A partir desse tipo de comparaccedilatildeo retrata-se o caso que ocorreu sob Urbico na cidade

de Roma Eacute provaacutevel que outros casos como esse acontecessem em regiotildees diferentes590

Segundo Justino ldquoo fato eacute que em todas as partes haacute gente disposta a [] levar [os cristatildeos] agrave

morterdquo591 A reprovaccedilatildeo cristatilde das atitudes condenaacuteveis ou repreensiacuteveis de outras pessoas era

um dos motivos para que os cristatildeos fossem denunciados aos governantes ldquoendemoniadosrdquo592

Ele escreve especialmente sobre certa mulher cristatilde na eacutepoca do prefeito Urbico que

procurou persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e lhe 585 II102 586 II102 587 II105 588 II105-6 Citaccedilatildeo de Platatildeo Timeu 28c 589 II108 590 II11 591 II12 592 II13

117

anunciando o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme

a ldquoreta razatildeordquo Naquela ocasiatildeo a uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se

era cristatildeo Apoacutes confessar recebeu condenaccedilatildeo ao supliacutecio O mesmo aconteceu com Luacutecio

que tambeacutem advertiu a Urbico593 de que ele natildeo estava ldquojulgando de modo conveniente ao

imperador Pio nem ao Ceacutesar filoacutesofo nem ao filho de Ceacutesar amigo do saber nem ao sacro

Senadordquo (II216)

Justino procura persuadir o imperador seus filhos e demais autoridades a barrarem as

condenaccedilotildees dos cristatildeos num momento quando natildeo haacute indiacutecios do estabelecimento de uma

lei concreta sobre a puniccedilatildeo dos cristatildeos Em vaacuterias regiotildees e em situaccedilotildees variaacuteveis os atritos

ocasionados pela presenccedila e expansatildeo cristatilde ocasionavam denuacutencias tidas pelos proacuteprios

cristatildeos como ldquocaluniosasrdquo a respeito da nova religiatildeo As accedilotildees anticristatildes se refletiam

muitas vezes na busca por sua condenaccedilatildeo em discussotildees em praccedilas ou em denuacutencias

dirigidas aos magistrados Em meados do seacuteculo II as delaccedilotildees sobre os cristatildeos variavam

pois seus opositores procuravam brechas juriacutedicas para enquadraacute-los A superstitio cristatilde

poderia proporcionar o oacutedio de muitos que resistiam agraves suas implicaccedilotildees morais sociais ou

simplesmente religiosas Por isso as denuacutencias ou posicionamentos se contradiziam em

lugares e ocasiotildees diferentes Taacutecito identificou algumas flagitia nas praacuteticas religiosas cristatildes

ou nos comentaacuterios sobre elas mas essa natildeo foi a opiniatildeo de Pliacutenio Segundo que julgou os

cristatildeos dignos de condenaccedilatildeo somente pela contumaacutecia que apresentaram diante de um

magistrado Para outros deveriam ser rejeitados pelo seu ateiacutesmo Comer o corpo e o sangue

de Cristo tambeacutem poderia provocar suspeitas de canibalismo594

O apologista contrasta a imagem do ldquopiordquo e ldquosaacutebiordquo governante representada na figura

de Antonino e seus filhos agravequela do falso filoacutesofo ou seja aquele que estaacute contra a ldquorazatildeordquo A

sua morte em defesa da ldquorazatildeordquo cristatilde aparece como uma possiacutevel analogia a Soacutecrates

devido aos seus embates com Crescente em Roma O falso ldquofiloacutesofordquo eacute aquele que natildeo sabe

uma palavra sobre os cristatildeos mas os calunia publicamente como esses fossem ldquoateus e

iacutempiosrdquo595 Ele adapta a esse novo contexto Xenofonte596 que conta que em uma encruzilhada

vieram ao encontro de Heacuteracles597 a virtude e o viacutecio na forma de mulheres

O viacutecio estava vestido com roupas finas tinha rosto atraente e adornado com enfeites e disse a Heacuteracles que se ele a seguisse ela o faria viver sempre no prazer

593 II215 594 Cf MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 winter1994 pp 413-442 595 wj avlogoj kai avsebwn Cristianwn ontwn( (II82) 596 Memorabilia II121-34 597 Heraacutecles tambeacutem foi invocada por estoicos como exemplo de luta moral (Churniss em Plutarco De Communibbus Notitiis adversus stoicos 1065c em Moralia)

118

e enfeitado com o mais belo ornamento semelhante ao que ela usava Ao contraacuterio a virtude com rosto e veste severos lhe disse Se seguires a mim natildeo te enfeitarei com beleza ou adorno passageiro e corruptiacutevel mas com enfeites eternos e belos598

Semelhantemente Justino considera

estamos persuadidos de que alcanccedilam a felicidade todos aqueles que fazem dos bens aparentes e seguem o que parece duro e contra a razatildeo Porque a maldade veste as suas accedilotildees com as qualidades da virtude e do que eacute de fato bem remedando o incorruptiacutevel pois ela de si natildeo tem nada de incorruptiacutevel e nem eacute capaz de produzi-lo e torna escravos seus os homens que se arrastam pelo chatildeo atribuindo agrave virtude os males proacuteprios da maldade Contudo os que compreendem os bens verdadeiros proacuteprios da virtude tambeacutem se tornam incorruptiacuteveis pela virtude599

Desse modo Justino procura constranger o imperador a partir do seu argumento

apologeacutetico e do jogo semioacutetico em torno da ldquorazatildeordquo e da filosofia a ser favoraacutevel aos

cristatildeos pois natildeo seria de nenhum modo virtuoso combater ou permitir que sejam combatidos

aqueles que segundo seu ponto de vista tecircm muito a contribuir para a paz no Impeacuterio

A contribuiccedilatildeo da religiatildeo cristatilde eacute apresentada dentro do seu plano apologeacutetico que

busca convencer natildeo apenas dos efeitos positivos do caraacuteter de suas crenccedilas para a

manutenccedilatildeo da ordem mas tambeacutem na apresentaccedilatildeo de alguns pontos fundamentais do seu

conteuacutedo que rebatam as ldquocaluacuteniasrdquo dos acusadores e apresentem o seu aspecto ldquoracionalrdquo Ao

explicar alguns fundamentos da crenccedila cristatilde como o combate agrave idolatria eacute possiacutevel notar que

o apologista eacute sensiacutevel em sua anaacutelise agrave diversidade de ideias e crenccedilas que interagem e se

contradizem no Impeacuterio Essa contradiccedilatildeo aparece tambeacutem entre os intelectuais e as crenccedilas

do povo comum Segundo Paul Veyne600 ldquotodo erudito hesitava entre o ceticismo da alta

sociedade e o esoterismo cultivadordquo Isso leva Justino a formular um argumento que busque

apresentar os aspectos racionais das crenccedilas cristatildes ainda que isso se reduza a um jogo

semioacutetico e linguiacutestico em torno do logos De qualquer forma a religiatildeo cristatilde aparece como

uma opccedilatildeo de superaccedilatildeo tanto da religiatildeo pagatilde questionada pelos intelectuais em muitos

aspectos quanto como uma filosofia sublime ou superior601 que tem maior alcance e eficaacutecia

no controle das accedilotildees humanas602 Assim ele escreve ldquoem Cristo acreditaram natildeo soacute filoacutesofos

e homens cultos mas tambeacutem artesatildeos e pessoas totalmente ignorantes que souberam

598 II114-5 599 II116-8 600 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 280 601 ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Logos inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (II101) E tambeacutem ldquoas nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo (II152) 602 ldquoEntre noacutes tudo isso se pode ouvir e aprender ateacute daqueles que ignoram as formas das letras pessoas ignorantes e baacuterbaras de liacutengua mas saacutebias e fieacuteis de inteligecircncia e ateacute pessoas mutiladas e privadas de visatildeo De onde se pode entender que isso natildeo acontece pela sabedoria humana mas se diz que eacute pela forccedila de Deusrdquo (I6011)

119

desprezar a opiniatildeo o medo e a morte porque ele eacute a virtude do Pai inefaacutevel e natildeo um vaso

de humana razatildeordquo603

Apoacutes explicar os pontos fundamentais do pensamento cristatildeo Justino diz que ldquodaqui

por diante noacutes natildeo nos sentiremos irresponsaacuteveis mesmo que continueis increacutedulos pois o

que dependia de noacutes jaacute foi feito e chegou ao fimrdquo (558) Seguindo sua articulaccedilatildeo para

ratificar a fidelidade dos cristatildeos a Deus e ao Impeacuterio nota-se que o apologista faz uso do

proacuteprio efeito da doutrina cristatilde que sugere como instrumento de controle para persuadir o

imperador tambeacutem pelo possiacutevel temor Assim com um tom de advertecircncia ele escreve

[] se natildeo atendeis agraves nossas suacuteplicas nem esta exposiccedilatildeo puacuteblica que vos fazemos de todo o nosso modo de viver em nada ficaremos prejudicados pois cremos ou melhor estamos persuadidos de que cada um pagaraacute a pena conforme mereccedilam as suas obras pelo fogo eterno e que teraacute que prestar contas a Deus segundo as faculdades que recebeu do proacuteprio Deus conforme nos indicou Cristo dizendo A quem Deus deu mais mais seraacute exigido por Deusrdquo604 (I173-4)

Em outras palavras esse eacute um tipo de alerta ao imperador sobre a sua responsabilidade

diante de Deus devido a sua posiccedilatildeo de autoridade E como se deveria esperar de um

governante ldquopiordquo e ldquoamante da sabedoriardquo tal como foi idealizado no perfil construiacutedo por

Justino segundo sua leitura logocecircntrica Ou seja tendo a ideia do logos cristatildeo como

referecircncia o apologista escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da

verdade respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees

desprezai-as Natildeo decreteis poreacutem pena de morte como contra a inimigos contra aqueles

que nenhum crime cometemrdquo605 Sua peticcedilatildeo eacute seguida de outro alerta ldquoescatoloacutegicordquo ldquovos

avisamos de antematildeo que se vos obstinais em vossa iniquidade natildeo escapareis do futuro

julgamento de Deusrdquo606 Em outro ponto nesse mesmo sentido lecirc-se ldquose tambeacutem voacutes ledes

como inimigos estas nossas palavras aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis

fazer A noacutes isso nenhum dano causaraacute a voacutes poreacutem e a todos os que injustamente nos

odeiam e natildeo se convertem trar-vos-aacute castigo de fogo eternordquo (I456)

Aliada agrave ciecircncia dos benefiacutecios da religiatildeo cristatilde o apologista deixa claro o seu desejo

de que ldquotodos os homens de todo o mundordquo conheccedilam ldquoa verdaderdquo o que incluiacutea o imperador

e seus filhos Desses uacuteltimos deseja-se tambeacutem que julguem ldquocom justiccedila de acordo com [a]

piedade e filosofiardquo e que se possiacutevel publiquem esse escrito para o conhecimento de todos607

Natildeo eacute possiacutevel saber se as Apologias chegaram ateacute o imperador e eacute pouco provaacutevel

que ela tenha circulado amplamente conforme desejava Justino No entanto segundo Sara 603 II108 604 Fazendo menccedilatildeo a Lc 1248 605 I681 606 I681 607 II152

120

Parvis608 seu modo de escrever em defesa dos cristatildeos teria influenciado outros apologistas

As aproximaccedilotildees praticadas por esse pensador em sua manobra teoloacutegica buscam a conversatildeo

inclusive do imperador Em oposiccedilatildeo agrave forma controle que emerge dos clamores reativos

populares que estariam impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do nomen

Christianum o apologista acaba por formular uma reflexatildeo teoloacutegica da histoacuteria que

contempla a relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo Se por um lado estaacute a criacutetica agrave forma de

manutenccedilatildeo da ordem imposta pelos romanos que dava margem para que denuacutencias

decorrentes de atritos locais que conduziam os cristatildeos agrave morte por outro emerge a sua teoria

sobre a cooperaccedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo da sociedade devido ao caraacuteter de suas crenccedilas

Trata-se de um confronto de ideias cujos efeitos deveriam ser aguardados O modelo de

controle cristatildeo pode-se dizer eacute aquele que vem do alto ou de dentro Eacute fruto da assimilaccedilatildeo

da doutrina cristatilde que tem um Deus que zela pela justiccedila e pela moral e que exige uma

conduta impecaacutevel de todos os seus fieacuteis Os que creem e os que natildeo creem estatildeo sob a

condiccedilatildeo do seu juiacutezo O Deus cuja feacute os cristatildeos professam e procuram comunicar aos

demais natildeo tem nacionalidade Ele eacute o criador dos homens e da razatildeo [logos] Todo ser

humano recebeu uma semente dessa razatildeo mas os democircnios maleacutevolos satildeo os responsaacuteveis

por obscurecer o julgamento correto que conduz todo o genus humanus a uma vida reta justa

e virtuosa para a sua recompensa eterna Essa racionalidade humana eacute a responsaacutevel por fazer

com que os homens reconheccedilam e atentem para a mensagem pelo logos que revela Deus pelas

Escrituras ignoradas pelos judeus e examinas pelos cristatildeos Esse temor diante de Deus

entatildeo natildeo deveria ser rechaccedilado como uma superstitio despreziacutevel mas deveria ser acatada

como um mecanismo capaz de traduzir razoavelmente uma doutrina que agregue pontos de

aproximaccedilatildeo aos assuntos filosoacuteficos e a uma mensagem significativa para as pessoas sem

instruccedilatildeo Deve ser reconhecida natildeo como uma mensagem de odio humanus genus mas de

salvatio humanus genus609 sob o domiacutenio do Logos que se traduz na submissatildeo e conversatildeo

ao cristianismo

608 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 609 Isto eacute ldquosalvaccedilatildeo da humanidaderdquo

121

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A situaccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II era instaacutevel e

revelava condenaccedilotildees esporaacutedicas Gritarias e tumultos puacuteblicos agraves vezes pressionavam os

magistrados para que condenassem os cristatildeos sem que houvesse uma ideia clara sobre como

enquadraacute-los em uma lei comum Um pouco antes Adriano havia sido consultado por

governantes610 como Graniano sobre esses problemas Naquela eacutepoca o imperador

recomendou a Minuacutecio Fundano que examinasse de modo particular as denuacutencias formais e

que natildeo desse espaccedilo para a pressatildeo dos tumultos puacuteblicos

Ainda um pouco antes a forma como deviam ser conduzidos os processos contra os

cristatildeos despertava algumas duacutevidas em Pliacutenio Segundo no Ponto-Bitiacutenia A crenccedila cristatilde era

vista como uma superstitio cujo temor os faziam repudiar os deuses comuns o culto ao

Imperador e todos os aspectos da vida puacuteblica que apresentasse algum viacutenculo com outras

crenccedilas e com a ldquoimoralidaderdquo Esse afastamento das interaccedilotildees sociais e o desprezo pelos

deuses tradicionais causou a aversatildeo de muitos das camadas populares e a desconfianccedila das

autoridades A estranheza dessa superstitio favoreceu a disseminaccedilatildeo de caluacutenias como a de

que a celebraccedilatildeo da ceia fosse algum tipo de ritual antropofaacutegico e que as reuniotildees cristatildes

privadas constituiacuteam-se em orgias Desse modo o nonem christianum assumiu uma forte

conotaccedilatildeo negativa pelas regiotildees do Impeacuterio A condenaccedilatildeo dos membros dessa nova religiatildeo

tinha precedentes desde a culpa pelo incecircndio de Roma nos tempos de Nero embora nenhuma

evidecircncia concreta a uma lei que condenasse o crime de ldquocristianismordquo seja encontrada na

primeira metade do II seacuteculo Trajano ratificou o procedimento de Pliacutenio em condenar os

cristatildeos por confessarem-se ldquocristatildeosrdquo todavia essas condenaccedilotildees tinham caraacuteter

admoestativo para desestimular o crescimento do grupo As buscas ou perseguiccedilotildees de fato

natildeo deviam entrar em curso Visava-se minar o corpo estranho representado pelo grupo

antissocial dos cristatildeos da sociedade e garantir a sua reintegraccedilatildeo mediante o perdatildeo aos que

abandonassem a feacute Se para alguns como Taacutecito a superstitio incidia sobre flagitia para

outros como Pliacutenio nenhum flagitium era detectado provavelmente eram produto das

caluacutenias e rumores das massas

A religiatildeo e os deuses tinham diferentes conotaccedilotildees entre a classe letrada entre os

poetas e para o povo sem instruccedilatildeo Desde os tempos de Platatildeo e Soacutecrates a filosofia

610 Deve-se considerar que a ldquoCarta de Antonino ao conciacutelio da Aacutesiardquo citada por Euseacutebio na Histoacuteria Eclesiaacutestica IV131-8 estava correta

122

sustentou criacuteticas agrave religiatildeo tradicional No II seacuteculo dC a influecircncia do cultivo do saber e do

exerciacutecio filosoacutefico podia ser percebida nas correntes de pensamento tais como o estoicismo e

o neoplatonismo que aproximavam a religiatildeo da moral Justino recebeu educaccedilatildeo grega e

provavelmente era filho de um funcionaacuterio romano Priscus cuja famiacutelia pode ter atuado na

colonizaccedilatildeo de Flavia Neaacutepolis na Palestina De laacute partiu para sua jornada pelos caminhos da

filosofia ateacute conhecer as doutrinas cristatildes Como ldquofiloacutesofordquo eacute possiacutevel que sustentasse criacuteticas

agrave forma de pensar das pessoas comuns considerada expressatildeo de ldquoexcessos supersticiososrdquo

Na condiccedilatildeo de cristatildeo passou a pensar a religiatildeo a partir da filosofia Desse modo a feacute cristatilde

passou a representar em seu pensamento a ldquofilosofia verdadeirardquo e ldquodivinardquo Diante dos atritos

sofridos pelos cristatildeos em seu tempo recorreu ao poder da argumentaccedilatildeo e da conveniecircncia

da escrita para defender os cristatildeos da ldquoinjusticcedilardquo sofrida Em uma peticcedilatildeo apologeticamente

fundamenta escreveu a Antonino Pio e a seus filhos clamando para que os cristatildeos natildeo

fossem condenados apenas pela confissatildeo de ldquocristianismordquo Para alcanccedilar o favor do

imperador Justino procura desfazer a conotaccedilatildeo negativa em torno desse nomen christianum

por meio da explicaccedilatildeo dos principais toacutepicos das doutrinas cristatildes e da afirmaccedilatildeo da

submissatildeo dos cristatildeos

A partir da reflexatildeo sobre suas ideias compreende-se o paradoxo entre tipo de controle

social desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia a esses (ou seja

os cristatildeos) que satildeo tidos como ameaccedila agrave ordem e por outro lado o tipo de controle social

apontado nas Apologias que daacute razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos Justino tece uma criacutetica jaacute

conhecida sobre a imoralidade dos deuses pagatildeos Ele natildeo se sente nem um pouco intimidado

em sustentar que os deuses nada satildeo aleacutem de uma ilusatildeo criada pelos ldquomaus democircniosrdquo para o

desvirtuamento dos homens Os ldquomaus democircniosrdquo satildeo os responsaacuteveis pelo obscurecimento

de toda a ldquoverdaderdquo A ldquoverdaderdquo eacute o conhecimento superior que conduz a humanidade agrave

moralidade e eacute reconhecida pelo exerciacutecio da ldquorazatildeordquo A ldquorazatildeordquo eacute algo divino compartilhado

a todos os homens e encarnada na pessoa de Jesus Cristo o mestre dos cristatildeos Sua

encarnaccedilatildeo eacute o cumprimento das profecias das Escrituras sustentadas pelos judeus que por

natildeo a compreenderem corretamente natildeo satildeo capazes de reconhecer o cumprimento da

expectativa messiacircnica611 Por reconhecer mediante uma hermenecircutica que busca identificar

o maacuteximo de evidecircncias possiacuteveis sobre o cumprimento das Escrituras em Cristo612 o

611 ldquoExpectativa messiacircnicardquo expressatildeo teoloacutegica utilizada para se referir a esperanccedila de que o messias libertador de Israel chegaria conforme os profetas israelitas haviam predito 612 Tambeacutem chamada de ldquohermenecircutica cristocecircntricardquo ou no que se refere agrave comunicaccedilatildeo da mensagem divina pelo Logos uma ldquohermenecircutica logocecircntricardquo

123

cumprimento das profecias julga prudente reconhecer as advertecircncias divinas pelas escrituras

sobre o julgamento futuro

Justino desenvolve uma leitura teoloacutegica da histoacuteria contrastando o julgamento a que

satildeo submetidos os cristatildeos e o julgamento final de Deus O primeiro considerado um

julgamento ldquoirracionalrdquo e momentacircneo movido pela cegueira produzida pelos maus

democircnios enquanto o segundo eacute idealizado como um julgamento divinamente justo e eterno

A accedilatildeo dos primeiros governantes estaacute relacionada a uma preocupaccedilatildeo com a manutenccedilatildeo da

ordem que os leva a acatar as denuacutencias caluacutenias e mobilizaccedilotildees contra os cristatildeos Eacute um tipo

de controle social que emerge de baixo pela repulsa do povo por aqueles que representavam

uma ameaccedila a pax deorum devido agrave condenaccedilatildeo ao culto dos deuses Justino acredita que em

meio agrave variedade de ideias e crenccedilas que constituem o quadro social do Impeacuterio os cristatildeos

natildeo deveriam ser reprimidos pelas autoridades por pensarem diferente Desse modo ele se

empenha em mostrar as correlaccedilotildees existentes entre as coisas sustentadas pelos cristatildeos e

outros pontos da cultura greco-romana Enquanto algumas correlaccedilotildees satildeo consideradas

estrateacutegias do democircnio para enganar os homens outras satildeo consideradas a manifestaccedilatildeo da

accedilatildeo do logos que comunica a verdade quer seja pelo conhecimento que os gregos tiveram

pelas Escrituras judaicas ou pelo logos spermatikos comum ao gecircnero humano Tudo o que

foi dito escrito ou julgado corretamente segundo a razatildeo eacute considerado consonante com o

posicionamento dos cristatildeos Pois eacute a ldquorazatildeordquo ou logos que deve conduzir as accedilotildees humanas

para a salvaccedilatildeo Desse modo aleacutem de procurar investir as doutrinas cristatildes de aspectos

racionais Justino tambeacutem busca deixar claro que os cristatildeos natildeo satildeo nenhuma ameaccedila ao

Impeacuterio Os fieacuteis satildeo apresentados como os melhores cooperados do Impeacuterio na manutenccedilatildeo

da paz devido ao caraacuteter das suas doutrinas Contrastando em alguns pontos com o tipo de

controle exercido sobre os soldados que juram fidelidade sem esperarem algo duradouro em

troca Justino fala do tipo de controle que vem ldquodo altordquo A crenccedila no controle absoluto do

Deus cristatildeo eacute apresentada como uma alternativa para solapar a incoerecircncia manifestada na

reverecircncia a deuses tatildeo desregrados e impiedosos quanto aos seres humanos que natildeo

poderiam servir de exemplo de conduta Natildeo haacute muitos detalhes acerca da moralidade cristatilde

mas ela parece estar relacionada agrave moderaccedilatildeo a restriccedilotildees sexuais ao respeito agrave verdade e aos

outros Segundo essa crenccedila cristatilde toda pessoa eacute livre para escolher como deseja viver mas

um dia estaraacute diante do juiacutezo do Deus absoluto do qual ningueacutem pode esconder nada

Tambeacutem eacute nesse sentido que satildeo identificados os cristatildeos Os cristatildeos satildeo definidos como

praticantes de um ideal de vida a seguir fortemente caracterizado pelo moralismo estrito

124

Desse modo Justino acredita que a disseminaccedilatildeo das doutrinas cristatildes poderia servir para

controlar os excessos humanos e as injusticcedilas

Esse tipo de ferramenta de controle foi empregado inclusive para constranger o

imperador a ouvi-lo Aleacutem de considerar irracional desprezar a doutrina dos cristatildeos o

apologista faz uso dessa ferramenta de controle para destacar que a uacutenica coisa que os

romanos poderiam fazer pelos cristatildeos em sua oposiccedilatildeo era lhes tirar a vida algo que

ironicamente o apologista considera insignificante visto que todos um dia morreratildeo Todavia

sustentando que a vida natildeo termina no tuacutemulo Justino alerta que a injusticcedilas como essas

Deus retribuiraacute um dia o castigo eterno enquanto para os que satildeo piedosos e justos estaacute

guardada uma ldquorecompensa eternardquo

Talvez as Apologias de Justino nunca tenham chegado ao seu destinataacuterio

especificado E se chegaram natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que tenham surtido um efeito

positivo Justino morreu anos mais tarde Todavia seu martiacuterio nos tempos de Marco Aureacutelio

tornou-se inspiraccedilatildeo para outros escritores como Atenaacutegoras ou Teoacutefilo de Antioquia Ao

revelar uma relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo a partir das accedilotildees anticristatildes seus escritos

se tornam peccedila fundamental para se compreender como as suspeitas e caluacutenias que incidiam

sobre os cristatildeos despertaram pessoas como esse mestre para pensar a relaccedilatildeo entre a nova

religiatildeo e a estrutura social e poliacutetica existente Se em siacutentese o que suas Apologias

pretendiam de fato era a retirada dos empecilhos para a conversatildeo dos pagatildeos elas satildeo

tambeacutem a primeira manifestaccedilatildeo da ideia de que para proporcionar a conversatildeo dos ldquooutrosrdquo e

o abandono dos rituais religiosos que permeavam a vida puacuteblica e os eventos sociais no

Impeacuterio era preciso pensar a religiatildeo cristatilde como uma alternativa que oferecesse algum tipo

de vantagem social e poliacutetica

Quando se busca por exemplo compreender as vantagens identificadas pelos romanos

na autorizaccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no IV seacuteculo manifesta-se a necessidade de se

investigar sobre as raiacutezes da aproximaccedilatildeo entre religiatildeo cristatilde e o Impeacuterio Eacute pelo exame das

Apologias de Justino Maacutertir que se percebe que em grande medida tal aproximaccedilatildeo eacute fruto

da reflexatildeo apologeacutetica que procurar livrar os cristatildeos da condenaccedilatildeo das autoridades romanas

e ao mesmo tempo em sintonia com a orientaccedilatildeo missionaacuteria na propagaccedilatildeo da mensagem

cristatilde busca livrar os romanos da condenaccedilatildeo eterna de Deus por meio da conversatildeo A

condenaccedilatildeo do culto aos deuses pagatildeos e da religiatildeo ciacutevica associada agrave contumaacutecia cristatilde em

natildeo contradizer suas crenccedilas em funccedilatildeo das determinaccedilotildees romanas exigiu uma reflexatildeo

sobre a sua contribuiccedilatildeo social para o Impeacuterio que os isentasse da culpa de traiccedilatildeo falta de

civismo ou algum tipo de conspiraccedilatildeo do ldquoreino de Deusrdquo Ateacute meados do seacuteculo II as

125

acusaccedilotildees variavam em cada regiatildeo e um paralelo que proporcione uma anaacutelise entre cada

uma delas tambeacutem parece ser um tema digno de uma investigaccedilatildeo especiacutefica e um desafio que

ainda precisa ser encarado

126

REFEREcircNCIAS

Fontes principais

MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005

MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006

JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995

Referecircncas gerais

AGOSTINHO de Hipona A cidade de Deus Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2000

ALCINOOS Enseignement des doctrines de Platon Les Belles Lettres Paris 1990

APHRODISIAS Alexandre drsquo De fato ad Imperatores Ed Guilaume de Moerbek e Pierre Thillet Paris J Vrin 1963

APULEIO Lrsquoautodifesa (apologia di segrave e della magia) Ed Bruno Cassianelli Caserta Edizioni UTEM 1948

AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] vol29 n2 pp 341-356 2010 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019

ANDRESEN C Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft Berlin-New York v44 pp157-195 1952-1953

ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Walter de Gruyter und co Berliacuten 1955

ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris Librairie Alphonse Picard et Fils 1909

127

ARISTIDES Aelius Orationes In Aristides ex recensione Guilielmi Dindorfii Leipzig Weidmann 1829

ARZANI A A teologia do loacutegoj no Quarto Evangelho Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Escola Superior de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008

ATHENAGORAS A Plea for the Chrstians In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995

AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875

AYRES Lewis LOUTH Andrew YOUNG Francecircs M (org) The Cambridge history of early Christian life New York Cambridge 2007

BAGATTI B S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319

BARCELOgrave P Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002

BARNARD L W Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology v 22 n 2 pp 152-164 jun1969

________ Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967

BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 pp 30-50 1968

BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 pp 538-555 2009

BAUMGARTNER M Social control from below In D Black (ed) Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 Orlando Academic Press 1984

BAYET Jean La religion romaine histore politique et psychologique Paris Payot 1976

BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998

BENNET J Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005

BENOIcircT Simon Giudaismo e Cristianesimo una storia antica Bari Laterza 2005

128

BIBLIA Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50])

BIBLIA Sagrada ediccedilatildeo da CNBB 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2002

BLACK Donald The Behaviour of Law New York Academic Press 1976

_______ Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 New York Academic Press 1984

_______ Toward a General Theory of Social Control Selected Problems Vol 2 New York Academic Press 1984

BLANT E le Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373

_______ le Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373

BLUNT A W The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911

BOBICHON P lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 pp 157-158 2003

BOFFO Laura Iscrizioni greche e latine per lo Studio della Bibblia Brescia Paideia Editrice 1994

BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101

BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950

BRENT Allen A political history of Early Christianity London TampT Clark 2009

BUELL Denise K Why this new race ethnic reasoning in early Christianity New York Columbia University Press 2005

BULTMANN R Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004

BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985

BURNS Stacy Lee Ethnographies of law and social control Oxford Elsevier 2005

Carta a Diogneto In Padres Apologistas Satildeo Paulo Paulus 1995

CHADWICH H Early Christian Thought and the Classical Tradition Oxford Clarendon Press 2002

129

________ Introduction In ____ (Ed) Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi

________ Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 (v 47)

________ The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001

________ The gospel a Republication of the natural religion in Justin Martyr Illinois Classical Studies n 18 pp 237-247 1993

CLEMENT of Alexandria Protrepticus In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

________ Stromata In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832

CHROUST Anton-Hermann AristotleProtrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964

CICERO M Tullius De Natura Deorum Edited by O Plasberg Leipzig Teubner 1917 pp 136-137

_________ Tullius De Legibus Georges de Plinval (ed) Paris Belles Lettres 1959

CLARK Gillian Christianity and Roman Society Cambridge Cambridge University Press 2004

CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999

COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp1507-1562

COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985

COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987

COPETE Juan Manuel Corteacutes Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004

130

COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008

Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonnae E Webere 1832

CULMANN O Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002

CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938

DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000

DANIELOU J Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975

De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted- A Rejoinder Past and Present n27 pp28-33 1964

De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 pp6-38 1963

DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000

DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940

DIOGENES Laertius The life of the eminents philosophers Ed Robert Drew Hicks LondonNew York W HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1925

DION Cassius Histoire Romaine V 9 Editado por E Gros Paris Librairie de Firmin Didot Fregraveres Fil Et C Imprimeurs de LrsquoInstitut 1867

DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 p 24 2005

DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963

DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990

DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106

DURRY Marcel Durry Pline-le-juene Paris Le belle Lettre 1972 p 7071

131

ECK Werner The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 195-213

ENDSJO Dag Oistein Greek resurrection beliefs and the soccess of Christianity New York Palgrave Macmillan 2009

ESTRABAtildeO Geography London Heinemann 1949

EUSEBIO de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduzido por Wolfgang Fischer Satildeo Paulo Novo Seacuteculo 2002

EUSEBIUS Die Chronik des Hieronymus heraugegeben und in 2 Auflage bearbeitet von R Helm 3 unveraumlnderte Auflage mit einer Vorbemerkung von U Treu GCS 31 Berlin Akademie Verlag 1984

FARNELL R L Greek hero cult and ideas of immortality Oxford Carendon Press 1921

FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa

________ La relacioacuten entre razoacuten y revelacioacuten em la antropologiacutea de Justino Maacutertir Teologiacutea y Vida v LII pp 35-50 2011

FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006

FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967

FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012

FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11

GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52

GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995

GOFFMAN E Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006

__________ Relations in Public New York Basic Books 1971

GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946

132

GOODENOUGH E R Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923

GOODMAN R ROWLAND C Apologetics in the Roman Empire Oxford Oxford University Press 1999

GOODSPEED E Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914

GRABE J E SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703

__________ SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700

GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988

GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951

GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18--

HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010

__________ The appropriateness of the apologetical arguments of Justin Martyr Tesis submitted for the Master of Philosophy Australian Catholic University 2008

HARNACK A Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274

__________ Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882

__________ Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99

__________ The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962

HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844

HENTEN Jan Willem AVEMARIE Friedrich Martyrdom and noble death selected texts from Graeco-Roman Jewish and Christian Antiquity New York Routledge 2002

133

HIPPOLYTUS The refutation of all heresies Traduzido por Rev J H MacMahon In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 5 Fathers of the Third Century Hippolytus Cyprian Caius Novatian Appendix Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

Historiae Augustae v I text latin with english translation by David Magie London Harvard University Press 1921 (Loeb Classical Library)

HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885

HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897

HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931

HORWITZ E A The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990

HUNT Emily J Christianity in the second century a case of Tatian New York Routledge 2003

HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703

HYLDAHL N Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965)

Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998

INNES Martin Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003

Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386

Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355

IRINEO of Lyon Againt Heresies Traduzido por Rev Alexander Roberts e James Donaldson In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene Fathers v 1 The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

ISOCRATES Busiris with an English Translation in three volumes by George Norlin PhD LLD Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1980

JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 pp 131-159 jun1979

134

JEROME GENNADIUS Lives of illustrious men Traduzido por Ernest Cushing Richardson In SCHAFF Philip (ed) Nicene and Post-Nicene Fathers 2 v 3 Theodoret Jerome Gennadius amp Rufinus Historical Writings New York Grand Rapids MI Christian Literature Publishing Co Christian Classics Ethereal Library 1892

JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961

JOLY E MOORE D Corpus Inscriptionum Latinarum vol VI pars VII fasc IV Berolini De Gruyter p 4262

JOSEgravePHE F Contre Appion Trad Th Reinach Paris Les Belles Lettres 1930

JOSEPHUS Flavius Jewish antiquities books XVI-XVII (Loeb Classical Library) Translated by Ralph Marcus and Allen Wikgren New York Harvad Press 1963

JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991

JOUCE Cullan The seeds of dialogue in Justin Martyr Australian eJournal of Theology 7 jun2006

JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995

JUVENAL Satiras In Juvenal and Persius With An English Translation G G Ramsay London New York William Heinemann G P Putnams Son 1918

KEITH Graham Justin Martyr and religious exclusivism Tyndale Bulletin 431 pp 56-80 1992

KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945

KERESZTES P Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 pp 204-214 dec1964

_________ Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986

_________ Rome and Christians Church I ANRW II 23 1 pp 260 274ss (1979)

_________ The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965

KHORENATSrsquoI Moses History of Armenians Traduzido por Robert W Thomson Ann Arbor Caravan Books 2006

KIMMEL G Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983

135

KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91

KRUEGER Paul MOMMSEN Theodor (Ed) Corpus iuris civilis I Institutiones Dublin Weidmann 1920 passim

KRUumlGER G Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896

LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934

LACTANTIUS The divine institutes Washington Catholic University of America Press 1964

LEWIS Charlton Thomas KINGERY Hugh Macmaster (Ed) An elementary latin dictionary New York American Book Co 1918

LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940

_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999

_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001

LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 pp 2146-312 1986

LUCIAN De morte Peregrini In Works with an English Translation by A M Harmon Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1936

_______ Menippus In The Works of Lucian of Samosata Translated by Fowler H W and F G Oxford The Clarendon Press 1905

LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]

MACMULLEN Ramsay Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997

__________ Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966

__________ Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981

MAIR AW GR MAIR Callimachus Hymn and Epigrams Lycophron With an English Translation by AW Mair Revised Version Cambridge MA amp London Harvard University Press 2000

136

MARAN P TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius

MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005

_________ Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994

_________ Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997

_________ Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 (2) pp 322-335 1992

MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007

MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 pp 413-442 winter1994

MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology v 8 pp 35ndash55 1982

MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 161v

_________ (Org) Patrologiae cursus completus series latina Paris Garnier-Migne 1878 217v

MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 pp 392-399 1890

MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 pp 3-32 1953

MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956

MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975

MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006

137

__________ LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p

__________ Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995

NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002

NASCIMENTO DFP O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia Pontificia Universidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003

NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzene Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129

OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992

ORIGIN Against Celsus In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997

OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889

OTTO JCT von Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876

PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988

PARVIS Sara Justin Martyr and Apologetc Tradition In PARVIS Sara FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007

________ FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007

PAUSANIAS Description of Greece with an English Translation by WHS Jones LittD and HA Ormerod MA in 4 Volumes Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1918

PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998

PERION Joachin Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum

138

Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis

PERKINS Judith Roman Imperial Identities in the Early Christian Era New York Routledge 2009

PFAumlTTISCH Johannes M Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910

PLATO Apology In Plato in Twelve Volumes Vol 1 translated by Harold North Fowler Introduction by WRM Lamb Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1966

______ Republic In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903

______ Law In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903

PLINIUS Caecilius Secundus Gaius Lettres Paris Belle Lettres 1953

PLUTARCH Moralia with an English Translation by Frank Cole Babbitt Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1928

POLYBIUS The Histories V III Translated by W R Paton Cambridge MALondon Harvard University PressWilliam Heinemann LTD 1979

POPE M The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000

POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005

PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988

QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197

RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972

REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004

ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89

ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) Bible Work 5 Software 2002

139

ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995

ROHDE Erwin Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966

ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981

ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141

ROSS Robert C Superstitio The Classical Journal v 64 n 8 pp 354-358 mai1969

ROUCECK Joseph Social Control Westport CT Greenwood Press 1970

RUSCONI C DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005

RUSSELL D S The Method and Message of Jewish Apocalyptic Philadelphia Westminster Press 1964

SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961

SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958

SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 pp 190ss 1954

SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review N 82 p 72 Jan1982

SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004

SENECA Apocolocyntosis WHD Rouse MA Litt D London William Heinemann 1913

SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008

SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 pp 23-27 1964

___________ The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952

140

SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987

SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 p 412 setdez 2009

SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006

SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944

SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011

________ I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349

STARK Rodney Baindridge Religion deviance and social control New York Routledge 1996

SUETONIUS The lives of the CAESARS In ROLFE JC (ed) SUETONIUS v II LondonNew York William HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1928

SUETONII C T De Vita XII Caesarum Harvard Loeb Classical Library 1914

SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012

SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946

SYLBERG F TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953

TACITUS C Annais In Complete Works of Tacitus Edited by Alfred John Church William Jackson Brodribb Sara Bryant New York Random House Inc Random House Inc reprinted 1942

________ Historiae Ed Charles Dennis Fisher Clarendon Press Oxford 1911

TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984

TATIAN Address to the Greeks Traduzido por JE Ryland In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

141

TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899

TERTULLIAN Apology Traduzido por Rev S Thelwall In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

________ Apology With tradution of TRGlover In GOOLD G P TertullianMinucius Felix Cambridge MassachusettsLondon Harvard University PressWilliam Heinemann 1978 pp 112-113 (The Loeb Classical Library)

________ Against the Valentinians Traduzido por Dr Roberts In SCHAFF Philip MENZIES Allan (ed) Anti-nicene fathers v 3 Latin Christianity its Founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2006b

THIRLBY S Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722

TITUS Livius History of Rome Cambridge Mass Harvard University Press 1970

TUAN Yi-fu Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983

URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932

VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006

VALANTASIS Richard Demons Adversaries devils fishermen The Asceticism of authoritative teaching (NHLVI3) in context of Roman AscetismThe Journal of religion v 81 n 4 pp 549-565 out2001

VEYNE P Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197

VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009

XENOPHON Apology In ____ Xenophontis opera omnia 2nd ed Oxford Clarendon Press 1921

WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991

WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987

WHIGHT ED The History of Heaven New York Oxford University Press 2000

WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 pp 181-190 1975

142

WINDISCH Hans Die orakel des Hystaspes Amsterdam Koninklijke Akademie van Wetenschappen 1929

WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982

143

APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS

A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450

ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C

segundo a forma estabelecida por Otto613

O Parisinus Graecus 450 ndash A ndash eacute o mais antigo manuscrito das obras de Justino

consideradas autecircnticas Ele eacute descrito como um conjunto de 467 foacutelios de 285x215 cm

terminado em 11 de setembro de 1364 segundo seu colofatildeo (fol 461a)614 Presume-se que

tenha sido adquirido em Veneza por Guillaume Pellicier bispo de Montpellirer e embaixador

francecircs naquela cidade de 1539 a 1542615 Natildeo eacute possiacutevel saber onde o manuscrito esteve

entre 1364 e 1540 Miroslav Marcovich616 considera ateacute razoaacutevel a hipoacutetese de A ter sido

produzido na Mistra617 do Deacutespota Manuel Cantacuzenos O antigo imperador John VI

Cantacuzenos pai de Manuel teria vivido contente como monge ateacute seus uacuteltimos dias

conhecido como Joasaph Era um homem culto e interessado nos assuntos teoloacutegicos Esse foi

um periacuteodo de prosperidade cultural e material no despotado de Morea618 Minns e Davis

identificam outros pontos que contribuem razoavelmente para indicar um centro maior como

Mitra ou Constantinopla Os primeiros cinco foacutelios que introduzem a coleccedilatildeo das obras de

Justino no A satildeo extratos de Photius e Euseacutebio sobre esse apologista Especificamente no

primeiro foacutelio aparecem indiacutecios de que o texto foi copiado ou adaptado de outro exemplar

Isso levaria a crer que A foi escrito em um lugar onde fosse possiacutevel ter acesso a outros textos

que auxiliassem na adaptaccedilatildeo Ter acesso agraves relevantes passagens de Photius no seacuteculo XIV

pode ser considerado algo raro619

Outro manuscrito completo das Apologias eacute o Phillippicus 3081 chamado B A partir

da anaacutelise de Bobichon620 B eacute reconhecido como um apoacutegrafo de A Sua dataccedilatildeo eacute de 2 de

abril de 1541 e apresenta uma assinatura no nome de ldquoGeorgerdquo provavelmente Georgios

613 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 614 MINNS D PARVIS P Justin Philosopher and Martyr Apologies Oxford Oxfrod Press 2009 p 3 615 ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris 1909 616 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 Cf Id Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 2 1992 p 322-335 617 Apoacutes o ano de 1261 a cidade ao sul do Peloponeso teria passado por um periacuteodo de ascendente prosperidade No seacuteculo XIV tornou-se importante centro cultural que teria sido capaz de influenciar o Renascimento na Itaacutelia 618 NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzenos Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129 619 MINNS PARVIS Op cit p 5 620 lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 p 157-158

144

Kokolos que viveu em Veneza e trabalhou para Guillaume Pelicier621 Acredita-se que B

tenha pertencido sucessivamente a Pellicier Clausde Noulot du Val ao Coleacutegio Jesuiacuteta de

Clermont em Paris e com a expulsatildeo dos Jesuiacutetas da Franccedila agrave coleccedilatildeo de Meermann E entatildeo

passou para a coleccedilatildeo de Sir Thomas Phillipps622 dando origem ao seu nome Por alguns anos

esses escritos estiveram no depoacutesito da British Library identificado como ldquoLoan 3613rdquo mas

foi retirado e vendido ldquoby private treatyrdquo em Marccedilo de 2006623

O coacutedice Ottobonianus 274 chamado de C tambeacutem tem certo valor na tradiccedilatildeo

manuscrita das Apologias mesmo contendo apenas trecircs capiacutetulos das mesmas Minns e

Parvis624 Marcovich625 Otto626 Harnack627 Blunt628 e Munier629 concordam que sua

qualidade eacute bem inferior a de A Mas quando se trata de saber se C eacute paralelo e independente

de A ou se eacute simplesmente uma coacutepia as opiniotildees se dividem Harnack630 considerou-o um

escrito independente de A Blunt destacou que ele parecia representar uma tradiccedilatildeo diferente

de A Marcovich e Munier segundo Minns e Parvis contentaram-se em apontar o demeacuterito

do texto Sem dar muitos detalhes sobre tais caracteriacutesticas de C Minns e Parvis se

esforccedilaram para argumentar que se trata de uma coacutepia de A feita agraves pressas Uma hipoacutetese

razoaacutevel eacute a de que o trecho da I Apologia 65-67 teria sido copiado pelo escriba Giovanni

Onorio atuante no Vaticano e em outros lugares de Roma por nomeaccedilatildeo do papa Paulo III em

1535 ateacute sua morte em agosto de 1563631 O restante de C teve outros escritores de diferentes

datas632 Ainda segundo a anaacutelise de Minns e Parvis633 a junccedilatildeo da ediccedilatildeo de Petrus Nannius

do De Resurretione Mortuorum de Atenaacutegoras ao conjunto de escritos proacuteximos aos extratos

das Apologias aponta para uma data natildeo anterior a 1541 Semelhantemente a Legatio de

Atenaacutegoras impotildee uma data natildeo posterior a 1557 quando a edito princeps foi impressa por H

Stephanus A visatildeo de Justino sobre a eucaristia teria sido de grande interesse teoloacutegico no

621 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 6 Vide nota 14 622 Esta trajetoacuteria apontada por Minns e Parvis eacute traccedilada por Archambault (Op cit v I pp xxiv-xxviii) e sumarizada por Bobichon (Op cit p 160) 623 Conforme Minns e Parvis (Op cit p 6) indicam e o Newslatter of the Association for Manuscripts and Archives in Research Collectons 46 mai2006 p 13 atesta 624 Op cit p 6 625 Op cit p 7 626 Op cit p xxviii 627 Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882 628 The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911 p lii 629 Justin Apologie pour les Chreacutetiens Paris Les Eacuteditons du Cerf 2006 p 86 630 Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99 631 MINNS PARVIS Op cit p 7 Ele indaca tambeacutem RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972 632 Conforme mostram Minns e Parvis (Op cit p 7) 633 Ibid p 8

145

periacuteodo que antecedeu e aos redores do decreto da eucaristia na deacutecima terceira sessatildeo do

Conciacutelio de Trento em 11 de outubro de 1551 Esses trecircs capiacutetulos do texto de Justino teriam

sido citados por Thomas Cranmer e Stephen Gardiner em 1549 antes de aparecer a editio

princeps Uma data proacutexima a 1548 eacute sustentada para esses dois primeiros foacutelios de C

Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra Parallela634 e no Chronicon

Paschale635 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo menos que doze vezes Na

Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito passagens No Chronicon Paschale

aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4 Esse uacuteltimo deriva provavelmente da

tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)636

634 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 635 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 636 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 13

146

Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos

Agostinho de Hipona 86

Alexandre de Afrodiacutesias 113

Apuleio 24

Aristides 15 24 33 49 55 58 109

Ata do Martiacuterio de Justino 22

Atenaacutegoras 24 109 123 143

Carta a Diogneto 49

Cassius Dio 9 13 14 34 36 48 49 67 88 97 103 111

Chronicon Paschale 18 128 144

Chrysippus de Solis 113

Cicero 43 139

26 31 43 71 74 87

Clemente de Alexandria 74 97

Diogenes Laertius 113

Eacutelio Aristides 58

Estrabatildeo 94

Euseacutebio 18 19 22 23 30 31 32 33 34 40 44 45 48 49 50 53 54 56 57 58 68 69

120 142 144

Flaacutevio Josefo 24 80 93 129

Histoacuteria Augusta 9 48 51

Homero 92

Irineu de Lyon 21

Isoacutecrates 86

Jerocircnimo e Gennadius 21

Juvenal 74

Lactacircncio 97

Luciano 21 37 58 73 95

Meacuteliton de Sardes 24 45

Oraacuteculos de Histaspes 97

Oriacutegenes 95

Oroacutesio 60

147

Papyri Graecae Magicae 92

Pausacircnias 94

Platatildeo 11 24 26 27 28 29 67 78 86 87 91 92 93 94 95 97 98 107 108 109 113 115

120

Pliacutenio 9 14 26 35 36 37 38 39 40 41 42 44 46 47 52 53 55 62 76 77 79 116 120

Plutarco 73 86 91 94 95 96 113 116

Poliacutebio 86 87

Quadrato 15 24 33 49 55

Secircneca 26 72 103

Suetocircnio 13 37 44 103

Taciano 21 24 27

Taacutecito 13 14 26 34 37 44 49 88 97 116 120

Teoacutefilo de Antioquia 24 123

Tertuliano 9 12 21 27 34 35 45

Tito Liacutevio 9 74 75

Varratildeo 86

Xenofontes 24 26

148

Iacutendice remissivo

acusadores 30 56 88 125

Adriano 7 10 15 16 27 35 37 40 41

42 44 49 50 51 52 53 54 55 56 57

58 59 60 61 62 63 71 72 84 90

106 128 143

alma 24 46 81 93 98 99 101 102 104

105 114 125 137

Antonino Pio 7 10 15 16 26 33 59 60

61 62 64 121 129

antropofagia 39

asebeia 36

Aacutesia Menor 15 26 32 55 83

ateiacutesmo 30 38 56 62 84 107 124

avsebeia 38

Bar Koseba 112

24 51 52 55 136

boatos maliciosos 63

caluacutenias

caluacutenia 7 34 39 40 47 48 56 81 82

83 84 88 91 96 108 119 125 128

130 131

canibalismo 30 56 84 124

castigo 6 31 44 56 61 74 85 91 94 96

97 98 104 113 114 120 123 126

131

coercitio 37 44

cognitio extra ordinem 45

controle social 14 16 17 18 64 65 67

68 69 70 77 80 82 113 127 129

130 131 133

costumes judaicos

costume judaico 39

Crescente 23 26 29 34 63 124

crime 17 31 37 39 40 42 47 57 58 62

67 68 84 89 90 93 126 128 139

culto ao imperador

culto imperial 38 52 81

decreto 47 64 76 79 114 148

democircnios

democircnio 11 74 78 79 81 88 89 91

96 106 107 108 110 111 112 117

118 119 122 127 129 130

denuacutencias

denuacutencia 7 34 37 41 43 47 55 56

58 82 90 91 123 124 127 128

130

desordem social 17

destino 29 52 104 105 107 113 120

Domiciano 36 48

epicureus 100 102

escola peripateacutetica 22

escola platocircnica

platonismo 22

estigmas

estigma 84 88 89

estigmatizaccedilatildeo 11 74 83 87

estoicismo 22 114 117 129

estoicos 92 100 102 104 124

exclusivismo 74

fariseus

fariseu 99

149

filosofia 7 12 16 22 23 27 28 30 33

38 65 71 73 92 93 99 100 101 102

103 106 118 122 125 126 129

filosofia estoica 38

flagitia

flagitium 14 36 39 40 46 47 48 50

90 124 128

gecircnero apologeacutetico 10 25 28

Graniano 15 16 53 56 57 128

Hades 92 99 101 102

Helena 107 120

Heraacuteclito 103 115 117

hetaerias 41

Histapes 103

Homero 98 101 102 107 115

incesto 14 39 59 84

inferno 105

injusticcedilas

injusticcedila 15 47 91 131

institutum neronianum 12 15 36 37 48

ius coertionis 37 45 50

julgamento 7 23 28 30 35 36 42 45 55

58 86 106 118 120 126 127 130

justiccedila 11 29 30 31 64 70 71 74 82

90 91 97 98 106 114 118 120 121

126 127

laesea maiestatis 37 40 45

livre-arbiacutetrio 113

loacutegoj sperermatikoj 26

Logos

logos 12 26 73 109 110 112 115

116 117 118 120 121 122 123

125 127 130 133 142 143

Luacutecio Vero 33

maiestas 47 56

manutenccedilatildeo da ordem 7 10 11 15 16 17

64 70 71 92 95 96 122 125 127

130

Marciatildeo 24 119 120

Marco Aureacutelio

M Aureacutelio 10 16 33 35 48 59 60 62

63 72 73 121 131

Menandro 104 107 120

Minuacutecio Fundano 16 53 54 56 58 128

Moiseacutes 114

moral 15 61 66 87 91 92 94 96 118

121 124 127 129

moralidade 7 70 91 94 108 119 129

131

morte 16 24 29 42 52 62 63 70 72 78

82 83 85 89 90 91 96 97 98 99

100 101 102 104 105 111 118 123

124 125 126 127 144 147

neoplatonismo 129

Nero 12 36 47 48 50 77 83 117 128

Nerva 38

nome cristatildeo

nomen christianum 30

nomen christianum 7 43 47 50 55 57

129

nomen Christianum 84 95 127

opiniatildeo puacuteblica 39 50 59

Ottobonianus Graecus 274 9 19 146

Parisinus Graecus 450 5 9 19 24 146

pax deorum 13 39 46 62 65 66 76 130

perseguiccedilatildeo 7 8 13 15 35 36 37 47 53

59 62 64 66 83 88

150

perseguiccedilotildees 13 15 27 47 65 66 81 87

89 106 128

peticcedilatildeo

libellus 27 31 32 33 34 62 71 90

126 129

Phillipicus 3081 19 146

pitagoacuterico 22

preconceito 63 88

reino de Deus 6 74 91

religio licita 38 45 55

rescrito 16 27 33 40 43 53 54 55 56

57 58 60 61 62 90

rescrito de Adriano 54 57 61

ressurreiccedilatildeo 99 100 102 105 109 111

112 144

retoacuterica 10 26 27 29 72 115

revelaccedilatildeo 11 105 107 115 116

Rusticus 23

sacrifiacutecios

sacrifiacutecio 42 48 64 74 75 79 81

sacrilegium 37 40 45 47 50

saduceus

saduceu 99

senatus consultum 36 48

Sibila 103 118

Simatildeo Mago 24

Soacutecrates 9 25 28 29 30 73 97 101 115

122 124 129

superstitio 7 8 14 35 37 39 40 42 43

45 46 48 52 55 58 85 90 91 94

124 127 128

superstitiones 14 46 94 101 102

temor 40 62 92 93 94 97 105 107 120

126 127 128

Tibeacuterio 15 16 36 48 103 139

toleracircncia 17 35 37 42 47 129

Tolomeu 61

Trajano7 10 15 32 35 36 37 38 39 40

41 42 43 44 47 48 49 50 54 55 56

57 58 59 60 61 66 84 90 128 133

143

Tumultos

Tumulto 62

Urbico 16 34 35 61 63 84 85 123

verdade 22 23 26 28 29 30 31 65 70

74 78 83 88 90 106 108 110 111

113 114 116 119 122 126 129 130

Vespasiano 22 32 117

viacutecio 99 113 114 120 121 124

virtude 6 91 92 96 99 112 113 114

115 120 124 125

151

Page 2: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência

2

ALESSANDRO ARZANI

AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE

JUSTINO MAacuteRTIR

Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano

Orientadora Profordf Drordf Renata Lopes Biazotto Venturini

Maringaacute 2013

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria

3

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

A797a Arzani Alessandro

As accedilotildees anticristatildes segundo as Apologias de Justino Maacutertir controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano Alessandro Arzani Maringaacute [sn] 2013

149p

Orientador Profordf Dra Renata Lopes Biazotto Venturini

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria ndash Universidade Estadual de Maringaacute

1 Histoacuteria do cristianismo 2 Perseguiccedilatildeo aos cristatildeos 3 Impeacuterio Romano 4 Justino Maacutertir I Venturini Renata Lopes Biazotto II Universidade Estadual de Maringaacute

Ficha Catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Mara R Colafatti - CRB 91272

4

ALESSANDRO ARZANI

AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE

JUSTINO MAacuteRTIR

Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano

Aprovado em

BANCA EXAMINADORA

Profordf Drordf Monica Selvatici

Universidade Estadual de Londrina - UEL

Profordf Drordf Solange Ramos de Andrade

Universidade Estadual de Maringaacute - UEM

Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini

Universidade Estadual de Maringaacute - UEM

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria

5

Dedico este trabalho

ao senhor de todas as eras que natildeo pode ser submetido a qualquer estaticidade que se possa

imaginar no universo Ao que era desde o princiacutepio eacute agora e continuaraacute sendo

indefinidamente Ao que consola e agraves vezes oprime a qualquer que seja Ao que

cuidadosamente nos observa desde o primeiro instante de vida e que conta

cada batimento do nosso coraccedilatildeo Sem ele nossos dias natildeo poderiam

ser contados Dele depende o amanhatilde nossa existecircncia e nossa

histoacuteria Agravequele que acompanhou cada passo deste

desafio e que me fazia lembrar do valor de

cada instante Agravequele que muitos

simplesmente chamam de

ldquotempordquo

6

AGRADECIMENTOS

Agrave Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini minha querida orientadora pela confianccedila

incentivo amizade e paciecircncia durante essa jornada Eu confesso que nunca havia conhecido

algueacutem que carregasse em si de tal forma a franqueza e a doccedilura associadas ao rigor

acadecircmico como pude constatar em sua pessoa

Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) pelo

amparo financeiro para o desenvolvimento dessa pesquisa

Agrave Profordf Drordf Sara Parvis (University of Edinburgh) por sua gentileza em indicar

algumas informaccedilotildees importantes sobre o principal manuscrito das Apologias de Justino o

MS Parisinus Graecus 450

Agrave minha querida amiga Profordf Viviana L Felix (Universidad Catolica de Buenos

Aires) que generozamente compartilhou comigo artigos e momentos agradaacuteveis de fluecircncia de

ideias

Aos professores Drordm Mauro Pesce e Drordf Adriana Destro (Universitagrave di Bologna) pela

atenccedilatildeo em partilhar comigo algumas indicaccedilotildees bibliograacuteficas

Agraves professoras Drordf Maria Aparecida de Oliveria Silva (pesquisadora na UNESP-

Araraquara) e Drordf Giovanna Menci (Istituto Papirologico ldquoG Vitellirdquo dellrsquoUniversitagrave degli

Studi di Firenze) assim como tambeacutem ao nobre B Jobjorn Boman (Oumlrebro University) pelos

riquiacutessimos artigos compartilhados

Ao Profordm Me Deivid V Gaia (Universidade Federal de Pelotas) por haver gentilmente

compartilhado alguns documentos importantes conseguidos junto agrave Bibliothegraveque national de

France

Agraves professoras Drordf Monica Selvatici (Universidade Estadual de Londrina) e Drordf

Solange Ramos de Andrade (Universidade Estadual de Maringaacute) pelas ricas criacuteticas e

consideraccedilotildees que contribuiacuteram para o aprimoramento dessa pesquisa

Aos colegas Camila Santiago Luz Thiago Franccedila Thais Bassi Soares Profordm Drordm

Jaime Estevatildeo dos Reis e demais integrantes do Laboratoacuterio de Estudos Antigos e Medievais

(LEAM-UEM) pelo companheirismo e satisfaccedilatildeo proporcionada pela dedicaccedilatildeo conjunta aos

estudos histoacutericos

7

Ateacute voacutes apenas ouvindo que esperamos um reino logo supondes sem nenhuma averiguaccedilatildeo que se trata de

reino humano quando noacutes falamos do reino de Deus [] Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a

manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o

avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens

conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos os modos e se

adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos De fato aqueles que agora

por medo das leis e dos castigos por voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los porque

sabem que sois homens e que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutes se se inteirassem e se persuadissem de que

natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se

moderariam de todos os modos como voacutes mesmos haveis de convir

Justino Maacutertir I Apologia 111121

8

Resumo

A histoacuteria do cristianismo na primeira metade do II seacuteculo eacute marcada por atritos locais

denuacutencias em tribunais e caluacutenias que faziam do nome ldquocristatildeordquo um motivo de condenaccedilatildeo

Trajano Adriano e Antonino Pio fizeram suas recomendaccedilotildees aos governantes locais para

desestimular a expansatildeo da nova superstitio dos cristatildeos que demonstrava aversatildeo aos

deuses agraves tradiccedilotildees agraves celebraccedilotildees puacuteblicas e ao culto imperial Nenhuma perseguiccedilatildeo de

fato devia ser estabelecida denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas e os cristatildeos que

abandonassem a feacute deveriam ser perdoados os que se recusavam a abandonar a feacute eram

punidos com a pena capital segundo o julgamento de cada magistrado Nesse periacuteodo alguns

chamados apologistas produziram escritos em defesa dos fieacuteis Justino escreveu duas vezes

ao imperador Antonino e a seus filhos entre os anos de 154 e 161 Nas Apologias ele critica a

postura dos governantes por acatarem as caluacutenias das massas que acarretavam uma ideia

depreciativa ao nomen christianum A fidelidade cristatilde ao Impeacuterio eacute ratificada pelo

apologista que surpreende ao destacar a colaboraccedilatildeo dos fieacuteis na manutenccedilatildeo da ordem Por

meio desta pesquisa que tem por obejtivo analisar a relaccedilatildeo entre controle e religiatildeo a partir as

accedilotildees anticristatildes nesses escritos de Justino nota-se que esse tipo de accedilotildees foi fundamental

para que a funccedilatildeo social da religiatildeo dos cristatildeos fosse pensada no desenvolvimento desse

discurso apologeacutetico Nesse discurso procura-se justificar a rejeiccedilatildeo aos deuses e agrave

imoralidade por eles representada Atento agraves interrogaccedilotildees dos intelectuais e homens letrados

de sua eacutepoca satildeo destacados os aspectos tidos por ldquoirracionais e imoraisrdquo das crenccedilas pagatildes

enquanto a feacute cristatilde eacute apresentada em contornos racionais com o intuito de reconhececirc-la como

filosofia divina e superior agraves demais Nesse sentido a crenccedila num Deus absoluto justo e

onisciente aparece como um instrumento capaz de subter as pessoas agrave moralidade enquanto

aguardam a recompensa eterna e procuram se afastar da condenaccedilatildeo divina Eacute nesse momento

que a religiatildeo dos cristatildeos comeccedila a ser pensada como uma substituta agraves crenccedilas pagatildes

apontadas como incoerentes

Palavras-chave

Justino Maacutertir histoacuteria do cristianismo Impeacuterio Romano perseguiccedilatildeo aos cristatildeos

9

Abstract

The history of Christianity in the first half of the second century is marked by local clashes

accusations in court and slanders that made the name Christian reason for condemnation

Trajan Hadrian and Antoninus Pius made their recommendations to local governments to

discourage the expansion of new superstitio of the Christians who showed aversion to the

gods traditions public celebrations and the imperial cult No persecution in fact should have

been established anonymous reports should not have been accepted and if any Christian

abandoned the faith they should have been forgiven however those who refused to abandon

their faith were punished with the death penalty according to the judgment of each magistrate

During this period some Christians with high education produced writings in defense of their

faith Justin wrote twice to the Emperor Antoninus and his sons between the years 154 and

161 AD In ldquoApologiesrdquo he criticizes the attitudes of the rulers for accepting the slander of the

masses who were accusing the Christians The Christian fidelity to the Empire is ratified and

he highlights the collaboration of the faithful in the maintenance of order Through this

research on the relationship between religion and control as seen in the antichristian actions

reported in the writings of Justin it is noted that this type of action was essential to the social

function of the Christian religion to be thought in your apologetic discourse It seeks to justify

the condemnation of the gods and the immorality represented by them In attention to the

questions of intellectuals and men of letters of his age the irrational behaviors and immoral

aspects of the pagan beliefs are pointed by the apologist while the Christian faith is presented

in rational contours making it a divine philosophy and superior to the other In this sense the

Christian belief in an absolute God who is just and omniscient appears as an instrument with

the ability to teach and demand morality from its followers while they are awaiting the

eternal reward and actively trying to move away from divine condemnation It is then that

their religion begins to be thought of as a substitute for pagan beliefs which are pointed out as

incoherent with the order in the Empire

Key-words

Justin Martyr History of Christianity Roman Empire persecution of Christians

10

LISTA DE ABREVIATURAS

Hist Ecles Histoacuteria Eclesiaacutestica

Diaacutel Diaacutelogo com Trifatildeo

I Apol Primeira Apologia de Justino

II Apol Segunda Apologia de Justino

A Manuscrito Parisinus Graecus 450

B Manuscrito Phillipicus

C Manuscrito Ottobonianus Graecus 274

IGRR Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes

Apolog Apologeticus de Tertuliano

Hist Rom Histoacuteria Romana de Cassius Dio

Hist Aug Histoacuteria Augusta

ApS Apologia de Soacutecrates

PIR Prosopografia Imperii Romani

Ep Epiacutestolas de Pliacutenio

Hist Roma Histoacuteria de Roma de Tito Liacutevio

ANRW Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt

ZKG Zeitschrift fuumlr Kirchengeschichte

Ant Jud Antiguidades Judaicas

Guer Jud Guerras Judaicas

11

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 12

CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS 18

11 As principais ediccedilotildees das Apologias 18

12 A questatildeo da autoria Justino 22

13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino 25

131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica 26

132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino 27

14 Destinataacuterios 31

CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS 34

21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano 35

22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano 49

23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos 57

CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE

MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM 62

31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem 67

32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus 71

33 Sobre as leis e imoralidades 85

CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM

SOCIAL 91

41 O controle absoluto do controlador absoluto 91

42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde 100

421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios 102

422 A razatildeo que julga 109

43 O governo o controle e os governantes 115

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 121

REFEREcircNCIAS 126

APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS 143

Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos 146

Iacutendice remissivo 148

12

INTRODUCcedilAtildeO

Este que no dia 1 de junho eacute reverenciado pelas Igrejas Catoacutelica Ortodoxa Oriental e

Anglicana tem a apresentar um testemunho que vai aleacutem do seu martiacuterio Seus escritos

oferecem pistas importantes para o entendimento da condiccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no

Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II Muitos como o Papa Bento XVI o tecircm chamado

de ldquoo mais importante dos padres apologistas do segundo seacuteculordquo1 Poreacutem o que esta

pesquisa iraacute mostrar eacute que os escritos atribuiacutedos a esse ldquofiloacutesofo cristatildeordquo apresentam acima de

tudo os primeiros indiacutecios de uma efetiva reflexatildeo histoacuterico-teoloacutegica sobre a funccedilatildeo do

cristianismo na organizaccedilatildeo social

Dentre as pesquisas do seacuteculo XX sobre Justino recebe destaque primeiramente o

trabalho de Johannes M Pfaumlttisch2 em 1910 a respeito da influecircncia do pensamento de

Platatildeo sobre esse apologista Em 1923 foi publicada a obra de E R Goodenough3 que

apresentava uma sistematizaccedilatildeo do pensamento teoloacutegico desse que segundo seu ponto de

vista fazia jus ao nome de ldquomaacutertirrdquo ou seja algueacutem ldquoque daacute testemunhordquo mas que em

contrapartida estava longe de merecer o tiacutetulo de ldquofiloacutesofordquo Poucos anos mais tarde

destoando em alguns aspectos do pensamento de Goodenough empreendeu C Andresen4

uma anaacutelise sublinhando os traccedilos filosoacuteficos dos escritos de Justino em comparaccedilatildeo ao

meacutedio-platonismo que tinha um espaccedilo significativo no pano de fundo intelectual do II

seacuteculo dC A problemaacutetica da relaccedilatildeo entre as doutrinas cristatildes ganhou reforccedilo com a defesa

da tese de N Hyldahl5 em 1965 Na mesma deacutecada de 1960 eacute Lislie W Barnard6 quem

intersecciona os aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos e as ideias sobre o judaiacutesmo representados

nos escritos de Justino Aleacutem dos interesses teoloacutegico-filosoacuteficos em torno desses escritos haacute

tambeacutem uma busca por elementos que auxiliem a compreender a condiccedilatildeo dos cristatildeos no

1 PAPA BENTO XVI Audiecircncia geral Praccedila de Satildeo Pedro Vaticano 21 de marccedilo de 2007 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherbenedict_xviaudiences2007documentshf_ben-xvi_aud_20070321_pohtml acesso em 20 de dezembro de 2011 2 Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910 3 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 4 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf tambeacutem ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Berliacuten Walter de Gruyter und co 1955 5 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 6 Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967 cf tambeacutem id Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology V 22 n 2 jun1969 pp 152-164

13

Impeacuterio em meados do seacuteculo II Nesse sentido os escritos de Justino tecircm muito a contribuir

tanto para se pensar a influecircncia da cultura greco-romana sobre as ideias cristatildes quanto sobre

as accedilotildees anticristatildes

As conferecircncias de Henry Chadwich7 na The John Rylands Library em 1965

chamavam a atenccedilatildeo para a inter-relaccedilatildeo entre a filosofia e a teologia nascente percebidas nas

estrateacutegias de defesa argumentativa apresentadas por Justino contra a opressatildeo sobre os

cristatildeos Mas por que os cristatildeos foram perseguidos

As hipoacuteteses tecircm girado em torno de uma lei especial contra os cristatildeos instituiacuteda por

Nero institutum neronianum como chamou Tertuliano8 ou pelo enquadramento em crimes

comuns como maiestas ou pela livre accedilatildeo dos magistrados para manter a ordem ius

coertiones9 Na deacutecada de 1950 receberam destaque os trabalhos de Henry Gregoire10 A N

Sherwin-White11 e J Moreau12 Na deacutecada seguinte Geoffrey E M de Ste Croix13

estabeleceu um debate com Sherwin-White14 sobre essa questatildeo

GEM de Ste Croix sustentava que as perseguiccedilotildees aos cristatildeos baseavam-se na

recusa em reconhecer os deuses de Roma comportamento que era frequentemente

considerado perigoso e sedicioso Os deuses tradicionais do panteatildeo greco-romano eram as

divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma que exigiam culto para a estabilidade da

pax deorum15 Por essa perspectiva Ste Croix propunha que a perseguiccedilatildeo se relacionava ao

sentimento religioso da eacutepoca16 AN Sherwin-White por outro lado defendeu que as

perseguiccedilotildees aos cristatildeos natildeo se baseavam na questatildeo do rompimento da pax deorum mas na

aguda obstinaccedilatildeo dos cristatildeos em natildeo cometer apostasia nem sacrificar para os deuses do

Impeacuterio17 Tal postura dos cristatildeos desafiava as autoridades romanas e representavam uma

grave insubordinaccedilatildeo GEM Ste Croix deu uma treacuteplica a essa questatildeo em 196418 mas essa

problemaacutetica tem despertado pesquisadores ateacute hoje19

7 Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 8 Ad Nationis I78 9 BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 1968 pp 30-50 10 Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 1111 The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952 p 199 12 La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 13 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 pp 6-38 14 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 15 De Ste CROIX GEM Op cit 1963 p 24 16 Ste CROIX GEM Op cit 1963 pp 29-31 17 SHERWIN-WHITE AN Op cit 1964 pp 25 18 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 19 Cf BARNES Timothy D Constantine and Eusebius Cambridge MA Harvard University Press 1981 MacMULLEN Ramsay Christianizing the Roman Empire (AD 100-400) New HavenLondon Yale

14

A proclamaccedilatildeo cristatilde no I e II seacuteculos causava tanto conversotildees quanto reaccedilotildees

adversas entre os pagatildeos20 A religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio Romano era presente na vida dos

povos 21 Relembrando Marcel Simon e Andreacute Benoicirct22 eacute justo admitir que com a refutaccedilatildeo

de todos os compromissos e a sustentaccedilatildeo intransigente do monoteiacutesmo a Igreja parecia um

corpo estranho aos pagatildeos Distanciando-se dos eventos puacuteblicos normalmente envolvidos

com a idolatria condenada pela Igreja rejeitando o serviccedilo militar os jogos e as celebraccedilotildees

artiacutesticas os cristatildeos se autoexpunham agrave marginalizaccedilatildeo da sociedade

Entre o povo ou entre os intelectuais os cristatildeos eram vistos com estranheza ou

desconfianccedila23 Assim como foram caracterizados os judeus podia-se pensar que os cristatildeos

apresentavam um odio humani generis24 em parte devido aos comentaacuterios depreciativos que

se espalhavam entre o povo Foram caracterizados por Taacutecito como membros de uma

destrutiacutevel superstitio25 oriunda da Judeia Suetocircnio se referiu a eles como ldquoraccedila de homens de

uma superstitio nova e maleacuteficardquo26 As acusaccedilotildees ou suspeitas poderiam girar em torno de

delitos ou coisas consideradas repulsivas como infanticiacutedio incesto assembleias ilegais

introduccedilatildeo de cultos iliacutecitos e mais especialmente traiccedilatildeo sendo esta uacuteltima caracterizada pela

recusa em adorar a divindade do imperador27

As superstitiones e os cultos locais eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob

atenccedilatildeo Como destacam Mary Beard John North e Simon Price28 as controveacutersias poderiam

desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito

em 172 e 173 aC29 na incursatildeo da Traacutecia que foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que

University Press 1984 DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000 DRAKE Harold Allen Constantine and the Bishops the politics of intolerance BaltimoreLondon John Hopkins University Press 1999 CLARK Gillian Christianity and the Roman Society Cambridge Cambridge University press 2004 CHADWICK Henry The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001 FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006 20 GOODMAN Martin Mission and conversion proselytizing in the religous history of the Roman Empire Clarendon Press Oxford University Press 1994 p 12 21 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 Cf BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35 22 SIMON M BENOIcircT A Giudaismo e Cristianesimo una storia antica RomaBari LaterzaFigli Spa 2005 p 12 23 ldquoaqueles que por suas abominaccedilotildees eram mal vistosrdquo [quos per flagitia invisos] Taacutecito Annales 1544 24 ldquooacutedio agrave humanidaderdquo Ibid 25 exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo] Annales 1544 26 genus hominum superstitionis novae ac maleficae De Vita XII Caesarum Vita Neronis 162 27 MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 28 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 29 Cassius Dio Hist Rom LXXII4

15

conseguiu seguidores30 entre os druidas incitados por profecias sobre o fim de Roma da

Gaacutelia31 e nas revoltas judaicas do I e II seacuteculos dC Embora existisse um niacutevel significativo

de liberdades religiosa e individual os grupos e assembleias ficavam sob atenccedilatildeo das

autoridades Os baacutequicos os astroacutelogos e maacutegicos o culto de Iacutesis e a crenccedila dos druidas

tambeacutem enfrentaram a obstruccedilatildeo romana32

Paul Veyne faz diferenciaccedilatildeo entre os interesses dos homens letrados e das autoridades

preocupadas com a manutenccedilatildeo da ordem e o interesse da populaccedilatildeo pagatilde em geral Em sua

percepccedilatildeo a atitude de criacutetica dos romanos frente agraves comunidades cristatildes manifestava a

repulsa ao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguo33 Desse modo a rejeiccedilatildeo ao novo grupo religioso

do oriente deveria envolver um problema identitaacuterio tambeacutem relacionado agrave dificuldade de se

assimilar um grupo dotado de particularidades que pretendiam a superioridade diante dos

estabelecidos Justino tambeacutem sustenta uma tese em torno da questatildeo do ldquopor que os cristatildeos

eram perseguidosrdquo esforccedilando-se em convencer os romanos sobre as ldquoinjusticcedilasrdquo cometidas

contra os cristatildeos

Embora natildeo exista um consenso sobre o iniacutecio das perseguiccedilotildees no I seacuteculo34 eacute certo

que o estilo de vida e o conteuacutedo das crenccedilas cristatildes natildeo agradavam a muitos o que

culminava na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados

Natildeo haacute sinais de uma perseguiccedilatildeo generalizada no iniacutecio do II seacuteculo mas apareciam

atritos locais que por vezes culminavam na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados ou agredidos

pelo povo Pliacutenio Segundo natildeo sabia ao certo como proceder nos processos que julgavam os

cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia e chegou a pedir a orientaccedilatildeo de Trajano35 Sob Adriano36 o

governador da Aacutesia Menor Graniano tambeacutem levantou questotildees sobre esses processos

30 Cassius Dio Hist Rom LI255 LIV345-7 31 Taacutecito Historias IV546165 V2224 32 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 Cf AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 33 VEYNE Paul Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 pp 245-246 34 Marta Sordi (I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 15-29) por exemplo sustenta a tese de que a resposta negativa do Senado ao pedido de Tibeacuterio sobre o reconhecimento de Cristo entre os deuses oficiais teria tornado a feacute cristatilde em uma religio illicta Paul Keresztes defende que foi o institutum neronianum que primeiramente comprometeu a legalidade do grupo dos cristatildeos (Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214) 35 Governou de 98 a 117 dC 36 Governou de 117 a 138 dC

16

Nesse periacuteodo Quadrato e Aristides tambeacutem escreveram ao imperador em defesa dos cristatildeos

mas a situaccedilatildeo continuou a mesma sob o governo de Antonino Pio37

Justino que havia nascido em Flaacutevia Neaacutepolis38 atual Nablus uma cidade na antiga

regiatildeo da Samaria filho de pai latino e de um avocirc com nome grego estudou filosofia mas se

converteu ao cristianismo e se pocircs em defesa da feacute39 Escreveu suas Apologias entre os anos

de 154 e 161 aproximadamente em defesa dos cristatildeos levados aos tribunais e entatildeo

condenados agrave morte Aleacutem da previsatildeo de seu proacuteprio martiacuterio o apologista retrata ainda um

caso especiacutefico que ocorreu sob Urbico em Roma Seu discurso busca convencer o imperador

Antonino Pio40 de que os cristatildeos natildeo representavam nenhum tipo de ameaccedila e que seria

segundo seu ponto de vista uma grande injusticcedila condenar agrave morte aqueles que eram

colaboradores ldquoda pazrdquo no Impeacuterio41 Os problemas penais e de outros caraacuteteres juriacutedicos

abordados por Justino e comuns ao governo de Antonino Pio foram uma vez analisados por

Paul Keresztes42 que destacou a estrateacutegia desse apologista de interpretar o rescrito43 de

Adriano a Minuacutecio Fundano Todavia as Apologias desse pensador cristatildeo desafiam a

compreensatildeo de um capiacutetulo intrigante da histoacuteria das ideias religiosas cristatildes como esse

discurso em defesa dos cristatildeos apresenta em meio agraves proposiccedilotildees teoloacutegico-filosoacuteficas que

permeiam o texto uma leitura das accedilotildees anticristatildes conjuguando controle social e religiatildeo na

reprovaccedilatildeo da coaccedilatildeo imposta por Roma sobre os cristatildeos e na indicaccedilatildeo da funccedilatildeo

reguladora da religiatildeo cristatilde para a cooperaccedilatildeo na manutenccedilatildeo da ordem

Por isso essa pesquisa tem por objetivo principal compreender as relaccedilotildees entre

controle social e religiatildeo a partir da anaacutelise das accedilotildees anticristatildes praticadas ateacute meados do

seacuteculo II dC segundo as Apologias de Justino Maacutertir O exame de suas ideias deve

compreender o paradoxo construiacutedo em seu discurso entre o tipo de controle social

desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia aos cristatildeos que

tumultuam a ordem e por outro lado o tipo de controle social apontado nas Apologias que

37 Governou de 138 a 161 dC 38 I Apol 11 cf MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 127-129 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought New York Cambridge University Press 1967 pp 3-12 39 JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991 Cf mais informaccedilotildees no capiacutetulo I 40 E tambeacutem a seus filhos Marco Vero (que seria chamado Marco Aureacutelio) e Luacutecio Vero 41 I Apol 31ss I Apol 121ss 42 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129 Id Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214 Id The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 43 Rescrito em resposta aos questionamentos do governador anterior Graniano

17

daria razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos mediante um tipo de ordem derivado da proliferaccedilatildeo de

suas crenccedilas

Por ldquocontrole socialrdquo entende-se ldquoo conjunto dos recursos materiais e simboacutelicos de

que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de seus

membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo44 Ou ainda

seguindo a perspectiva de Martin Innes45 ldquocontrole socialrdquo refere aos mecanismos e

tecnologias empregados para manutenccedilatildeo da ordem social Esta por sua vez eacute composta de

diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais de alguma forma contribuem para a

constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social Nesse embate apologeacutetico do seacuteculo II satildeo

apresentados argumentos para convencer de que a feacute cristatilde natildeo estava propiacutecia a nenhum tipo

de desordem social e que pelo contraacuterio seria capaz de influenciar na formaccedilatildeo de suacuteditos

fieacuteis do Impeacuterio

Para o cumprimento do objetivo central dessa pesquisa as Apologias de Justino satildeo

estabelecidas como principal objeto e fonte de investigaccedilatildeo a serem submetidas agrave criacutetica

interna e externa segundo o desenvolvimento de uma anaacutelise histoacuterica46 Ao colocar as

Apologias de Justino no centro dessa anaacutelise busca-se delimitar um campo possiacutevel de anaacutelise

dentro do processo de expansatildeo do cristianismo pelos territoacuterios do Impeacuterio Romano tendo

em vista as vaacuterias formas de resistecircncias e aceitaccedilotildees Uma anaacutelise sobre Justino e a

sobrevivecircncia de suas Apologias eacute apresentada no capiacutetulo I e no Apecircndice I

44 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) Dicionaacuterio criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 45 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 46 TOPOLSKY Jersy Metodologia de la historia Madrid Ediciones Catedras 1992 pp 36-45

18

CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS

Para desenvolver uma investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre controle social e religiatildeo

nas accedilotildees anticristatildes de meados do seacuteculo II dC a partir das Apologias de Justino Maacutertir eacute

preciso responder a algumas perguntas baacutesicas sobre sua origem transmissatildeo e forma

Levando em consideraccedilatildeo que as Apologias foram redigidas originalmente haacute quase 1900

anos e passaram por diversos copistas e editores ateacute chegar agrave atualidade eacute necessaacuterio fazer um

raacutepido percurso analiacutetico sobre as ediccedilotildees e suportes materiais que garantiram a preservaccedilatildeo

do texto Isso deveraacute contribuir para a compreensatildeo de suas caracteriacutesticas atuais

Esse tipo de anaacutelise contempla as diferenccedilas entre as trecircs principais ediccedilotildees recentes

das Apologias Miroslav Marcovich47 (com a 1ordf ediccedilatildeo em 1995) por exemplo oferece uma

ediccedilatildeo seguindo o padratildeo apresentado no MS Parisinus Graecus enquanto Charles Munier48

(com ediccedilotildees em 1994 1996 e 2006) sustenta a teoria de que os dois textos seriam

originalmente uma mesma peccedila Denis Minns e Paul Parvis49 (2009) oferecem uma ediccedilatildeo

que aleacutem de considerar a II Apologia uma compilaccedilatildeo de fragmentos e anotaccedilotildees de Justino

transformadas em Apologia por terceiros ainda realoca partes da segunda peccedila para a

primeira fazendo-a ganhar dois capiacutetulos a mais do que as duas ediccedilotildees mencionadas

anteriormente

Assim seratildeo analisados a seguir alguns dos principais pontos sobre as ediccedilotildees o

tamanho original e os destinataacuterios das Apologias bem como as evidecircncias que apontam para

Justino como seu autor

11 As principais ediccedilotildees das Apologias

A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450

ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C

47 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 48 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 Id Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 49 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

19

segundo a forma estabelecida por T Otto50 Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar

com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra

Parallela51 e no Chronicon Paschale52 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo

menos que doze vezes Na Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito

passagens No Chronicon Paschale aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4

Esse uacuteltimo deriva provavelmente da tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)53

Em 1551 foi produzida a partir do MS A a editio princeps importante trabalho do

typographus regius Robert Estienne54 ou Robertus Stephanus Conforme a anaacutelise de Minns e

Parvis55 trata-se de um texto bem produzido Do mesmo modo que A a composiccedilatildeo de

Stephanus que foi dedicada a ldquoBiblioteca Realrdquo apresenta os extratos de Photius e Euseacutebio

sobre Justino A Apologia menor tambeacutem aparece antes da maior56 Natildeo haacute nenhuma divisatildeo

ou quebra de texto Apenas algumas variantes de A satildeo colocadas nas margens das paacuteginas

A primeira traduccedilatildeo das Apologias viria em 1554 por Joachim Peacuterion57 em Paris

Frederick Sylburg58 apresentou sua ediccedilatildeo em 1593 em Heidelberg seguindo rigorosamente

o texto de Robert Etienne Sabe-se tambeacutem que Feacutedeacuteric Morel publicou as Apologias de

Justino em 161559 As ediccedilotildees de Johann Ernst Grabe seguiram fieacuteis ao Stephanus mas

trouxeram duas inovaccedilotildees a ediccedilatildeo de 170060 em Oxford apresentou a Apologia maior como

50 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 51 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 52 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 53 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 13 54 Minns e Parvis oferecem a seguinte referecircncia TOU AGIOU FILOSOFOU KAI MARTUROS) ZHNA kai Serhnw|) LOGOS parainetikoj proj Hllhnaj) PROS TRUFWNA Ioudaion dialogoj) APOLOGIA uper Cristianwn proj thn Rwmaiwn Sugklhton) APOLOGIA b uper Cristianwn proj Antoninon ton euvsebh) EX BIBLIOTHECA REGIA LVTETIAE Ex officina Roberti Stephani typographi Regii Regiis typis MDLI Cum priuilegio Regis Devido agrave corrupccedilatildeo dos textos antigos nem sempre eacute possiacutevel identificar os tiacutetulos corretamente por isso satildeo apresentados aqui em letras maiuacutesculas As barras representam a separaccedilatildeo das linhas onde satildeo lidas as informaccedilotildees a respeito dos volumes referenciados 55 Op cit p 14 56 A I Apologia eacute a ldquoapologia maiorrdquo mas no MS A a ldquoapologia menorrdquo isto eacute a II Apologia vem primeiro 57 Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis 58 TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953 59 Minns e Parvis (Op cit p 15) mencionam que Feacutederic Morel tenha criado a categoria de ldquoApologistasrdquo lanccedilando uma coleccedilatildeo de texto Esta informaccedilatildeo pode ateacute estar correta mas os autores natildeo apontaram nenhuma referecircncia do tipoacutegrafo Sabe-se que ele publicou as Apologias devito as informaccedilotildees do seguinte cataacutelogo GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18-- 60 SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700

20

a primeira e a ediccedilatildeo de 170361 apresentou a obra menor como a II Apologia tal como satildeo

reconhecidas hoje e tambeacutem foram acrescentadas divisotildees de capiacutetulos diferentes das usuais

A ediccedilatildeo de Styan Thirlby de 172262 juntou as trecircs obras de Justino reconhecidas como

autecircnticas I e II Apologia e o Diaacutelogo com Trifatildeo O texto ainda era baseado em Stephanus

Em 1742 Prudentius Maran63 publicou sua obra com uma divisatildeo de capiacutetulos que se

tornaria a usual Segundo Minns e Parvis64 Maran teve acesso a A e B mas seu texto eacute

semelhante ao de Stephanus As Apologias da coleccedilatildeo Patrologia Graeca volume 6 de

185765 eacute a reproduccedilatildeo da sua ediccedilatildeo alocada na seacuterie de Jacques Paul Migne (1800-1875)

JCT von Otto66 publicou sua primeira ediccedilatildeo em 1842 e a terceira e definitiva em

1876 Ele natildeo ficou preso ao texto de Stephanus e apresenta o princiacutepio das ediccedilotildees criacuteticas

sugerindo modificaccedilotildees e melhoramentos do texto Em 1911 foi a vez de Alfred Blunt

Segundo Minns e Parvis67 a obra se baseou principalmente nos trabalhos de G Kruumlger68 que

se espelhou em Otto A ediccedilatildeo de Edgar Goodspeed69 em 1914 recorre a A C e agrave tradiccedilatildeo de

Euseacutebio e da Sacra Parallela poreacutem natildeo apresenta notas criacuteticas

Em 1994 Miroslav Marcovich70 publicou sua ediccedilatildeo criacutetica das Apologias Em 1997

publicou tambeacutem a ediccedilatildeo do Diaacutelogo71 A qualidade criacutetica destes textos passou a um alto

niacutevel Segundo a anaacutelise de Minns e Parvis72 as emendas de Marcovich satildeo de um teor

filoloacutegico tatildeo elevado e com intervenccedilotildees sobre o caraacuteter estiliacutestico de tal modo que eacute possiacutevel

duvidar que Justino tivesse um conhecimento tatildeo apurado de grego

61 SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703 62 Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722 63 TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius 64 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 16 65 MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 66 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 67 Op cit p 17 68 Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896 69 Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 70 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 71 MARCOVICH Miroslav Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997 72 Op cit p 18

21

Charles Munier tambeacutem apresentou em 199473 um volume simples das Apologias em

francecircs Em 199574 foi lanccedilada sua ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto grego Ele confessa natildeo ter tido

acesso agrave obra de Marcovich receacutem-publicada75 Sua ldquogrande obrardquo veio em 2006 uma ediccedilatildeo

criacutetica na coleccedilatildeo Sources Chreacutetiennes O ponto forte do texto de Munier satildeo os comentaacuterios

e a extensiva discussatildeo do contexto teoloacutegico e filosoacutefico76 As anaacutelises textuais natildeo satildeo

muito profundas mas contribuem significativamente com a indicaccedilatildeo de textos

correlacionados

A ediccedilatildeo criacutetica de Denis Minns e Paul Parvis77 ndash com texto grego traduccedilatildeo e notas ndash

foi publicada em 2009 Aleacutem da ampla revisatildeo das ediccedilotildees de outros autores o texto

apresenta um rico aparato criacutetico As interferecircncias no texto fazem a I Apologia chegar ateacute o

capiacutetulo 70

Em 1995 a editora Paulus preparou uma versatildeo das I e II Apologias e o Diaacutelogo com

Trifatildeo em um uacutenico volume78 O texto eacute problemaacutetico e muito simplista Natildeo haacute sinais de

criacutetica textual e podem ser encontrados alguns erros de portuguecircs A traduccedilatildeo foi feita por Ivo

Storniolo com introduccedilatildeo e notas de Roque Frangiotti mas natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo sobre

qual foi o texto base para a traduccedilatildeo Eacute evidente todavia que os editores natildeo contaram com

as ediccedilotildees de Marcovich Munier ou Minns e Parvis Por isso deixaremos este texto em

segundo plano

Nessa pesquisa as ediccedilotildees de Miroslav Marcovich79 Charles Munier80 e a de Denis

Minns e Paul Parvis81 satildeo lidas em conjunto comparando as divergecircncias sempre que for

necessaacuterio A interferecircncia na disposiccedilatildeo dos capiacutetulos adotada por Denis Minns e Paul Parvis

natildeo seraacute admitida A divisatildeo das Apologias seraacute tal qual a que apresenta Marcovich por ater-

se ao padratildeo comum agrave maioria dos estudiosos82 poreacutem a Apologia Maior seraacute chamada I

Apologia abreviado para I Apol ou simplesmente I quando jaacute houver uma citaccedilatildeo no

paraacutegrafo Semelhantemente a Apologia Menor seraacute chamada II Apologia abreviado para II

73 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p 74 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 75 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 90 76 Opiniatildeo tambeacutem compartilhada por MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 18 77 Ibid 346 p 78 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 79 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 80 Op cit 2006 81 Op cit 82 Cf MARCOVICH M Op cit 2005 p 10

22

Apol ou II nas mesmas condiccedilotildees que a primeira O texto de Munier segue a mesma

padronizaccedilatildeo de Marcovich no entanto ele prefere se referir a Apologia parte I e parte II

nomenclatura que natildeo seraacute seguida nesse texto O termo ldquoApologiasrdquo seraacute empregado como

referecircncia aos dois textos de Justino

12 A questatildeo da autoria Justino

A I Apologia (11) aponta explicitamente que seu autor eacute Justino homem oriundo de

Flaacutevia Neaacutepolis hoje conhecida como Nablus localizada na Siacuteria Palestina B Bagatti83

afirma que ela foi fundada por veteranos da conquista da Judeia sob Vespasiano por volta do

ano de 72 O avocirc de Justino Baquios pode ter participado da implantaccedilatildeo da cidade

O apologista se reconhece como conterracircneo dos samaritanos84 No Diaacutelogo com

Trifatildeo ele eacute identificado como ldquofiloacutesofordquo e nas Apologias fica evidente seu conhecimento da

filosofia Taciano chamou seu mestre apologista de ldquoo mais admiraacutevel85rdquo Irineu de Lyon fez

menccedilatildeo ao seu martiacuterio e carregou sua influecircncia em seu escrito86 Tertuliano87 atribuiu-lhe

dois tiacutetulos ldquofiloacutesofo e maacutertirrdquo O apologista tambeacutem recebeu um lugar no De viriis

illustribus de Satildeo Jerocircnimo e Gennadius88

Em seu Diaacutelogo com Trifatildeo89 ele eacute apresentado como um homem educado no estudo

da filosofia Segundo a narrativa do Diaacutelogo Justino conheceu o estoicismo frequentou a

escola peripateacutetica ficou junto a um filoacutesofo pitagoacuterico que lhe solicitou aprender muacutesica

astronomia e geometria Por uacuteltimo havia se aproximado da escola platocircnica quando entatildeo

conheceu os escritos dos profetas e a feacute cristatilde90 Segundo E R Goodenough91 Justino adota

uma dramatizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o cristianismo e a filosofia apresentando as passagens

por diversas escolas agraves quais critica rumo agrave ldquoverdaderdquo cristatilde Ele compara a narrativa de

Justino agrave de seu contemporacircneo Luciano em Menippus IVVI Em Menippus tambeacutem eacute

descrita a passagem por diversas escolas de pensamento chegando-se ao consentimento pelas

inuacutemeras contradiccedilotildees de que nenhuma delas tinha autoridade Goodenough tambeacutem vecirc a

83 S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319 84 Diaacutel 1206 II Apol 151 85 Discurso contra os gregos 191ss 86 Contra as heresias I281 cf IV62 V262 87 Contra os Valentinianos 51ss 88 Vida dos homens Ilustres 89 21ss 90 II Apol 81ss 91 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 pp 58-59

23

recorrecircncia dessa forma literaacuteria na descriccedilatildeo de verdadeiros proseacutelitos do judaiacutesmo Githro

Naaman e Rahab descritos na Tannaim92 N Hyldahl93 aleacutem de considerar a narrativa da

trajetoacuteria filosoacutefica de Justino mera ficccedilatildeo tambeacutem sustenta ser impossiacutevel determinar que

tipo de platonista esse pensador foi antes de sua conversatildeo e que a capa de filoacutesofo que usava

mencionada por Euseacutebio era um erro de interpretaccedilatildeo

Deve-se reconhecer como tambeacutem destacou L W Barnard que se por um lado havia

uma convenccedilatildeo literaacuteria grega ndash e que pudesse ser encontrada ocasionalmente ateacute no judaiacutesmo

ndash sobre as aventuras por diversas escolas a fim de criticaacute-las por outro lado isso natildeo contradiz

a admissatildeo da atual condiccedilatildeo de filoacutesofo cristatildeo assumida por Justino naquele momento Por

ldquofiloacutesofo cristatildeordquo natildeo se pretende dizer outra coisa senatildeo aquilo que ele mesmo confessa e

procura convencer os seus leitores a saber de que apoacutes conhecer diversas correntes

filosoacuteficas encontrou nas doutrinas cristatildes a ldquoverdaderdquo que o contentou94 Aleacutem disso o teor

apologeacutetico do discurso de Justino estaacute fundamentalmente relacionado a paralelos e

intersecccedilotildees com a filosofia C Andresen95 concorda que a trajetoacuteria filosoacutefica de Justino seja

mais do que um simples jogo literaacuterio Segundo Andresen e ele parece estar correto o meacutedio-

platonismo eacute a base da construccedilatildeo do pensamento cristatildeo de Justino

Em Roma Justino esteve engajado em debates com o filoacutesofo ciacutenico Crescente96

Segundo a Ata do Martiacuterio de Justino97 ele foi decapitado sob o julgamento de Rusticus

prefeito de Roma entre 162 e 168

A data e o local da conversatildeo de Justino satildeo imprecisos Eacutefeso tem sido cogitada como

uma boa hipoacutetese para o local de seu membramento ao cristianismo98 ou ainda algum ponto

na sua longa jornada da Palestina para Roma99 Minns e Parvis100 pensam que sua adesatildeo deve

ter ocorrido pelo menos uns 30 anos antes de sua morte Isso apontaria para uma data proacutexima

92 Ibid pp 58-59 93 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 94 Dial II1-6 95 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf FELIX Viviana Laura Elementos medioplatoacutenicos en la filosofiacutea de Justino IV JORNADAS NACIONALES DE FILOSOFIacuteA MEDIEVAL Academia Nacional de Ciencias de Ciencias de Buenos Aires Abril 2009 96 II Apol 31ss 97 Atti del Martiacuterio di San Giustino Caritone Caritoacute Evelpisto Ierace Peone e Liberiano Martirizzati a Roma In GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 Texto grego e traduccedilatildeo italiana a partir da obra de WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987 98 QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197 99 SKARSAUNE Oskar The proof from phophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provence theological profile Leiden EJBrill 1987 pp 245-246 100 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 33

24

agrave guerra judaica da deacutecada de 130 dC O Dialogo (1206) cita a I Apologia e desse modo

ambos os textos fazem referecircncia agrave revolta de Bar Kosiba entre os anos de 132 e 135101

Aleacutem das Apologias e do Diaacutelogo com Trifatildeo obras que satildeo reconhecidamente

proacuteprias a Justino Euseacutebio102 aponta que o apologista escreveu tambeacutem um livro contra os

gregos outro intitulado Elenchos um tratado sobre a soberania de Deus outro com o tiacutetulo

Psaltes e um escrito sobre a alma Um tratado contra Marciatildeo tambeacutem eacute citado mas essa

passagem corresponde a um trecho da I Apol 265-6103 Na sequecircncia dessa periacutecope da I

Apologia Justino disse que ele mesmo escreveu um ldquotratadordquo contra todas as heresias Esse

escrito poreacutem eacute dado por perdido No Dialogo 1206 o apologista diz ter aprestado um

escrito endereccedilado ao imperador no qual se refere a Simatildeo Mago104 o que eacute constatado na I

Apologia Eacute pertinente admitir que natildeo eacute possiacutevel saber se o texto que foi preservado ateacute agora

derivou daquele primeiro endereccedilado ao imperador Se seu trabalho foi entregue ao imperador

eacute provaacutevel que Justino tenha ficado com uma coacutepia

Minns e Parvis105 natildeo acreditam que seu texto tenha sido copiado com o intuito de ser

amplamente publicado Parece-lhes razoaacutevel sustentar a hipoacutetese de que o texto preservado

ateacute hoje pelo MS A deriva do documento que estava com Justino no momento de sua prisatildeo

Talvez tenha sido necessaacuteria uma reorganizaccedilatildeo do texto mais tarde com um propoacutesito

catequeacutetico ou apologeacutetico diferente do seu sentido original Entre sua emissatildeo original e o

teacutermino do trabalho do copista do Parisinus Graecus 450 em 11 de setembro de 1364106

muita coisa pode ter acontecido ao texto Todavia o principal obstaacuteculo a essa hipoacutetese eacute que

natildeo foram encontrados quaisquer vestiacutegios de um texto que ateste que o documento jaacute teve

outro formato sem os acreacutescimos catequeacuteticos Aleacutem disso as partes que tratam das crenccedilas

cristatildes estatildeo bem relacionadas agrave estrutura da obra e cumprem com seu propoacutesito

apologeacutetico107 Sua estrutura apresenta traccedilos comuns aos escritos de outros apologistas do II

101 Diaacutel 13 I Apol 316 102 Hist Ecles IV181-6 103 Hist Ecles IV118-9 104 Cf I Apol 262-3 105 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 34 106 Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005) calcula o ano de 1363 mas Bobichon ( lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 pp 157-158) apontou de forma mais satisfatoacuteria a data de 1364 com a qual Minns e Parvis (Op cit 34) e Munier (Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 84) concordam 107 A funccedilatildeo catequeacutetica da obra seraacute examinada mais propriamente no terceiro capiacutetulo parte 4 dessa dissertaccedilatildeo

25

seacuteculo induzindo Sara Parvis108 a pensar que Justino tenha sido o ldquopairdquo do gecircnero apologeacutetico

cristatildeo servindo de inspiraccedilatildeo para outros escritores da eacutepoca

Embora existam interrogaccedilotildees e divergecircncias sobre a unicidade ou biparticcedilatildeo das

Apologias haacute semelhanccedilas estiliacutesticas entre as duas partes que fazem com que Marcovich109

Munier110 Minns e Parvis111 concordem que os escritos procedam de Justino ainda que certas

modificaccedilotildees sejam admitidas durante o tempo conforme as irregularidades de alguns pontos

tecircm mostrado Eacute preciso ainda ter uma ideia clara sobre que tipo de escritos se estaacute

analisando tendo em vista que o conceito de ldquoapologiardquo como uma espeacutecie de gecircnero literaacuterio

eacute recente

13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino

Termo derivado da palavra grega avpologia significa basicamente ldquodiscurso de defesa

defesardquo Que tambeacutem deriva do verbo avpologeomai que representa o oposto de kathgoria

que significa ldquoacusaccedilatildeordquo112

No seacuteculo IV aC Platatildeo113 e Xenofontes114 cada um a seu modo narram a ldquoapologia

de Soacutecratesrdquo e proporcionam um tributo agrave valorizaccedilatildeo da razatildeo No I seacuteculo dC eacute Flaacutevio

Josefo115 quem eterniza um discurso desse tipo remetido a Aacutepion em prol dos judeus Josefo

defende a religiatildeo judaica salientando a sua antiguidade e contrastando a pretensatildeo grega agrave

superioridade no campo cultural O caraacuteter ldquoapologeacuteticordquo do texto como um ldquodiscurso de

defesardquo fica por conta da resposta a algumas alegaccedilotildees antijudaicas atribuiacutedas ao escritor

grego Aacutepion e os mitos acreditados por Manetho

No seacuteculo II dC Apuleio de Madura tambeacutem compocircs uma apologia pela qual se

defende das acusaccedilotildees de magia Eacute nesse mesmo seacuteculo que uma seacuterie de escritos como os de

Quadrato Aristides Justino Atenaacutegoras Meacuteliton de Sardes Teoacutefilo de Antioquia Taciano e

outros emerge em defesa dos cristatildeos que sofriam acusaccedilotildees principalmente na Aacutesia Menor

108 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 109 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 110 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 111 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 112 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 Cf RUSCONI C (Ed) DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 113

Apologia de Soacutecrates 114

Apologia 115 Contra Aacutepion

26

Para compreender os aspectos constitutivos das apologias de Justino eacute preciso analisar

as vaacuterias teorias sobre sua composiccedilatildeo e sua estrutura retoacuterica

131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica

As diferenccedilas estruturais de uma para a outra apologia de Justino exigem uma anaacutelise

especiacutefica Notadamente a II Apol eacute menor que a I Apol Minns e Parvis116 apresentam trecircs

teorias sobre o nuacutemero desses escritos de Justino

A forma como aparecem no MS A corrobora com a ideia de que sejam duas apologias

Mas enquanto a primeira eacute cheia de citaccedilotildees da escritura a segunda natildeo tem nenhuma citaccedilatildeo

desse tipo De modo bem peculiar eacute na II Apologia que aparece a reflexatildeo sobre o loacutegoj

sperermatikoj117 e o comprometimento de Justino no debate com Crescente A anaacutelise textual

da II Apologia eacute desfavorecida pelo tamanho do texto todavia as diferenccedilas proporcionais

entre os escritos satildeo somadas agrave hipoacutetese de que seriam de fato duas apologias

A segunda teoria sustenta a ideia de que originalmente a atual composiccedilatildeo dupla era

na verdade uma uacutenica Apologia Munier eacute aliado a essa proposta Ele considera que uma obra

uacutenica ndash um libellus ndash teria sido apresentada em Roma como requisiccedilatildeo pessoal endereccedilada ao

Imperador Antonino Pio e seus filhos para mudar a condiccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio118 O

principal argumento dessa hipoacutetese eacute que existe uma boa inclusio entre as referecircncias agrave

piedade e agrave filosofia no iniacutecio da primeira (I Apol 1 21-2 31) e os que aparecem no final da

segunda (II Apol 1213 e 14) As retomadas na segunda do tipo ldquoconforme dissemos

anteriormenterdquo seriam referecircncias ao que foi dito na parte imediatamente anterior e natildeo a

outro texto

De modo diverso Minns e Parvis119 consideram que a estrutura do texto ficaria muito

estranha se fosse pensada segundo essa teoria O cliacutemax da primeira parte estaria no rescrito

de Adriano quando o autor mostra a incoerecircncia das acusaccedilotildees e perseguiccedilotildees sofridas pelos

cristatildeos (I Apol 685-10) Isso tornaria incoerente recomeccedilar uma seccedilatildeo de defesa na parte

posterior Outro argumento desfavoraacutevel eacute que o escriba que picou o texto teria sido

demasiadamente astuto para escolher uma parte que marcaria precisamente a distinccedilatildeo de tons

entre os dois textos

116 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p22 117 Logos spermatikos que pode ser entendido de modo limitado com ldquosemente da razatildeordquo 118 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 119 Op cit p 22

27

Outra teoria sustenta que se trata de uma apologia e um apecircndice Minns e Parvis120

fazem saber que essa foi a teoria apresentada por Grabe121 em 1703 recebida por Harnack122

popularizada por Goodspeed123 em 1914 e ainda sustentada com entusiasmo por Marcovich124

em 1994 As correspondecircncias entre a primeira e a segunda estariam relacionadas ao material

deixado pelo proacuteprio Justino apoacutes concluir o texto definitivo A I Apologia pode ser

reconhecida como um libellus ou seja uma requisiccedilatildeo particular endereccedilada ao Imperador

mas a classificaccedilatildeo da II Apologia natildeo eacute muito precisa

Seguindo o raciociacutenio de Robert M Haddad125 qualquer peticcedilatildeo (libellus) apresentada

ao imperador buscava persuadi-lo a fazer alguma coisa De fato na Antiguidade a persuasatildeo

se tornou uma arte Desenvolvida pelos gregos a retoacuterica foi adaptada pelos romanos para

suas proacuteprias aspiraccedilotildees Ciacutecero Secircneca o Velho Taacutecito Pliacutenio o Jovem Quintiliano e

Fronto se tornaram nomes referenciais dessa habilidade Como foi apontado anteriormente

Justino era muito familiarizado com a filosofia mas natildeo se mostrou muito familiarizado com

a retoacuterica o que natildeo isentou seu texto de revelar uma estrutura comum agraves teacutecnicas dessa

disciplina126 No entanto esses aspectos ainda natildeo satildeo suficientes para oferecer uma

explicaccedilatildeo clara sobre o gecircnero das Apologias

132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino

Se a apologia de Soacutecrates diante do tribunal grego adaptada por Platatildeo127 e por

Xenofontes128 tornou-se um emblema da defesa da razatildeo no II seacuteculo dC foram as

120 Op cit p 23 121 HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703 Grabe atuou em parceria com Huntchim nessa ediccedilatildeo 122 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274 123

Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 passim 124 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 10 125 HADDAD Robert M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 Werner Eck escreve que o imperador romano era cercado por pessoas que procuravam influenciaacute-lo ou conseguir favores (Id The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000) 126 The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 21-28 127 Apologia de Soacutecrates 128 Apologia

28

acusaccedilotildees contras os cristatildeos que deram ldquorazatildeordquo agrave proliferaccedilatildeo de apologias em defesa da feacute

cristatilde que ainda natildeo apresentava uma sistematizaccedilatildeo coerente de suas ideias

Segundo a anaacutelise de Robert Grant a literatura apologeacutetica emerge de grupos

minoritaacuterios que estatildeo tentando desenvolver uma linguagem que seja compreensiacutevel agraves

culturas no Impeacuterio Romano para que por meio dela seja comunicada a mensagem cristatilde129

Satildeo vaacuterias as formas apresentadas para atestar a autenticidade das correntes religiosas

defendidas A apologia significaria algo mais do que uma simples defesa dos ataques sofridos

pela Igreja Seria uma forma baseada na defesa que Soacutecrates teria feito no seu julgamento

diante do povo de Atenas para mostrar a racionalidade de seu julgamento Os apologistas

cristatildeos teriam a ampla tarefa de estender possiacuteveis conexotildees entre as concepccedilotildees da filosofia

grega e aquela que para os cristatildeos era a ldquoverdade por excelecircnciardquo Mas esse processo

precisa ser analisado dentro do acircmbito missioloacutegico cristatildeo 130

A apreciaccedilatildeo helenizante estendida tambeacutem por Leslie W Barnard131 a todos os

apologistas eacute desajeitada O proacuteprio disciacutepulo de Justino Taciano opotildee-se agrave cultura grega

Poucos anos depois Tertuliano132 se mostraria o principal disseminador de um discurso que

estava longe de buscar os pontos comuns entre Jerusaleacutem e Atenas A comparaccedilatildeo com

Soacutecrates tambeacutem natildeo pode ser estendida a todos os apologistas

Justino poreacutem aleacutem de se referir positivamente a Soacutecrates como participante no logos

que autentica a racionalidade cristatilde proporciona uma analogia com a sua proacutepria condiccedilatildeo

enquanto prevecirc o seu martiacuterio em defesa da feacute cristatilde133

Em 1897 Th Wehofer em busca dos modelos literaacuterios de Justino observou que no

elogio dos mortos de Menexenus e na Apologia de Soacutecrates Platatildeo proporciona o modelo de

uma retoacuterica a serviccedilo da justiccedila e da verdade Sem duacutevida Justino conhecia os escritos de

Platatildeo Algumas correlaccedilotildees podem ser identificadas em trechos de suas Apologias I Apol

24 = ApS 30c 53 = 24b et 26c 82 = 30d 682 = 19a II102 = 24b Segundo Munier134

a exposiccedilatildeo temaacutetica progressiva encontrada nessa obra pode parecer uma desorganizaccedilatildeo

129 GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988 p 9 apud HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 31 130 Isso significa que as interconexotildees apologeacuteticas entre cultura greco-romana e cristianismo precisam ser contempladas como mecanismo dos discursos cristatildeos para proporcionar siginificaccedilotildees eficientes entre os povos de outras culturas cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990 131 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 2008 p 2(3) 132 Apolog passim 133 I Apol 51-3 II Apol 81ss 134 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 33

29

uma composiccedilatildeo aparentemente relaxada uma sucessatildeo aparentemente arbitraacuteria de

passagens dogmaacuteticas e pareneacuteticas que retoma abundantemente o mesmo tema abordando-o

sob uma perspectiva diversa Nota-se que um esquema preside a composiccedilatildeo geral das

Apologias

A estrutura essencial da Apologia de Soacutecrates por si soacute natildeo eacute suficiente para dar conta

do plano geral da obra de Justino As correlaccedilotildees entre o escrito de Platatildeo e o de Justino vatildeo

aleacutem do niacutevel estrutural Elas tambeacutem se mostram nos modelos de argumentaccedilatildeo De fato

este eacute o coraccedilatildeo mesmo da defesa que se funda sobre o exemplo de Soacutecrates condenado como

ldquoateu e iacutempiordquo135 Para Justino136 o destino traacutegico do filoacutesofo ateniense ilustra perfeitamente

a sorte dos cristatildeos ameaccedilados de morte

A diatribe de Justino contra Crescente toma uma funccedilatildeo analoacutegica Ela estaacute associada

agrave evocaccedilatildeo de Soacutecrates Assim como Meacuteletos tinha acusado Soacutecrates Crescente acusa os

cristatildeos de serem ldquoateus e iacutempiosrdquo a fim de agradar a multidatildeo insensata137 E como Soacutecrates

tinha oposto a seus acusadores sua indiferenccedila ao ldquotalento da palavra e sua uacutenica preocupaccedilatildeo

era dizer a verdaderdquo138 o desafio de Justino a Crescente se inspira na sentenccedila de Platatildeo139

ldquoDe modo nenhum se deve honrar mais a homens do que agrave verdaderdquo

Contudo a Apologia de Soacutecrates natildeo eacute um modelo literaacuterio estrito no qual Justino se

inspirou Segundo a anaacutelise de Munier140 o Protreacuteptico de Aristoacuteteles oferece tambeacutem

alguma correlaccedilatildeo mas isso natildeo deve significar que haja alguma dependecircncia intriacutenseca entre

esses escritos Aristoacuteteles se dedica a demonstrar que a filosofia converte todo seu valor agrave

vida em sociedade e que uma vida sem filosofia natildeo vale a pena de ser vivida Na medida em

que apresenta o cristianismo como uma ldquofilosofia divinardquo141 Justino poderia tirar o melhor

partido dos protreacutepticos142 de Aristoacuteteles de Isoacutecrate e de seus seguidores dedicados agrave

filosofia Mas essa semelhanccedila eacute apenas ocasional e natildeo intencional O apologista natildeo

esconde seu desejo de que o imperador se torne um filoacutesofo de Cristo Ele acreditava que se

seu pedido fosse aceito a feacute cristatilde espalharia benefiacutecios por todo o Impeacuterio143 Eacute nesse sentido

135 I Apol 53 136 II Apol 12 81-2 137 Cf WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991 138 Platatildeo ApS 17bc 139 Repuacuteblica X595c 607c 140 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 40 141 II125 142 Protreacuteptico exortaccedilatildeo Restam apenas fragmentos dos escritos protreacutepticos de Aristoacuteteles cf CHROUST Anton-Hermann Aristotle Protrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964 143 I 12 1-2 17 1-4

30

que ele recorre agrave maacutexima de Platatildeo144 ldquoSe governantes e governados natildeo satildeo filoacutesofos natildeo

pode haver felicidade nas cidadesrdquo

P Keresztes145 estava certo ao dizer que a caracteriacutestica marcante da Apologia eacute a

extensiva defesa dos cristatildeos contra as acusaccedilotildees de ateiacutesmo traiccedilatildeo canibalismo e agraves accedilotildees

caluniosas de modo geral Justino sustenta essa defesa tentando mostrar a exclusiva verdade

da religiatildeo cristatilde O principal propoacutesito das Apologias seria garantir que os cristatildeos tivessem

liberdade para professarem a feacute embora isso significasse a condenaccedilatildeo dos demais deuses

Tambeacutem fazia parte do propoacutesito chamar os pagatildeos a abraccedilarem o cristianismo Seus

conselhos retoacutericos no contexto servem ao propoacutesito de sugerir ao imperador que mude o

corrente curso da justiccedila Isso significa clamar por um julgamento comum que natildeo permitisse

a condenaccedilatildeo pelo ldquonome cristatildeordquo

Esses escritos do pensador de Flaacutevia Neaacutepolis satildeo dotados de certa particularidade em

sua composiccedilatildeo Mas se nota que a princiacutepio o apologista procurou valer-se do seu direito de

dirigir uma ldquopeticcedilatildeordquo ou libellus ao imperador

Na I Apol 74 ele faz sua requisiccedilatildeo usando o verbo normalmente empregado para

uma peticcedilatildeo em grego avxioun Assumindo a postura de um pensador compromissado com a

justiccedila e a verdade ele pede para que ldquosejam examinadas as accedilotildees de todos os que [] satildeo

denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por

outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo

ter cometido nenhum crimerdquo146 (I Apol 74) Uma requisiccedilatildeo desse tipo deveria ser

encaminhada ao escritoacuterio administrativo para ser ou natildeo subscrita e receber uma resposta O

equivalente grego para libellus eacute biblidion para subscribere o equivalente eacute u`pografein e

para postar uma resposta usa-se proqeiai no lugar de proponere147 Esta terminologia pode

ser precisamente encontrada na II Apol 141

Kai u`maj ou=n avxioumen u`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaj148148148148 to dokoun proqeinaiproqeinaiproqeinaiproqeinai touti to biblidionbiblidionbiblidionbiblidion( o[pwj kai toij alloij ta hmetera gnwsqh| kai dunwntai thj yeudodoxiaj kai avgnoiaj ton kalwn avpallaghvai( oi para thn

144 Repuacuteblica V 473de 145 The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965 p 109 146 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 pp 23-24 [Oqen pantwn twn kataggellomenwn umin taj praxeij krinesqai avxioumen( i[na o` evlegcqeij w`j adikoj kolazhtai( avlla mh wvj Cristianoj evan de tij avnelegktoj fanhtai( avpoluhtai w`j Cristianoj ouvden avdikon) MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 142-144 147 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 25 148 Grifos nossos

31

e`autwn aivtina u`peuqunoi taij timwriaij eivj to gnwsqhnai toij avnqrwpoij tauta(149

As proporccedilotildees desses textos ultrapassam os padrotildees de um libellus Para explicar essa

relativa incompatibilidade Minns e Parvis150 referindo-se apenas a I Apologia sustentam que

Justino usou de uma estrateacutegia por meio da qual ele adota esse tipo de documento

administrativo romano inserindo um material catequeacutetico e explanatoacuterio cristatildeo convertendo-

o em um dispositivo disseminador da mensagem de feacute Ou ainda traduzindo as palavras de

W R Schoedel151 trata-se de uma peticcedilatildeo apologeticamente fundamentada e sem precedentes

na tradiccedilatildeo literaacuteria greco-romana As diferenccedilas na estrutura da II Apologia natildeo permitem

dizer que se trata de um documento de outro autor pois as caracteriacutesticas do texto atestam sua

compatibilidade com a primeira peccedila O que faz multiplicar as interrogaccedilotildees sobre o segundo

texto eacute que mesmo apresentando traccedilos de uma segunda ldquopeticcedilatildeordquo ela eacute evidentemente menor

e dispensa um exordio bem formulado como o do primeiro escrito Mas essa propriedade da II

Apologia se tornaraacute mais clara a seguir na anaacutelise dos destinataacuterios

14 Destinataacuterios

Existem algumas variaccedilotildees entre a forma como a I Apologia eacute endereccedila no MS A e na

Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio A tabela a seguir foi construiacuteda seguindo as informaccedilotildees

apresentadas por Minns e Parvis152

MS A Euseacutebio HE IV12

a Antoninus Pius Augustus Caesar a Antoninus Pius Augustus Caesar

e a Verissimus seu filho e a Verissimus seu filho

Filoacutesofo Filoacutesofo

e a Lucius e a Lucius

Filoacutesofo do filoacutesofo

de Ceacutesar filho por natureza Ceacutesar filho por natureza

e de Pius por adoccedilatildeo e de Pius por adoccedilatildeo

149 MUNIER Op cit pp 364 366 TrldquoPortanto noacutes vos suplicamos que subscrevendo como vos pareccedila deis publicidade a este livro a fim de que tambeacutem os outros conheccedilam a nossa religiatildeo e se vejam livres da vatilde opiniatildeo e da ignoracircncia em relaccedilatildeo ao bem Por sua proacutepria culpa eles se tornam responsaacuteveis pelo castigordquo 150 Op cit p 25 151 SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72 152 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35

32

Eacute incluiacuteda ainda no manuscrito a expressatildeo ldquoao santo senado e a todo o povo dos

romanosrdquo entre os destinataacuterios da Apologia Minns e Parvis153 consideram esse uacuteltimo

trecho uma antiga adiccedilatildeo editorial Eles apontam que a expressatildeo ldquosanto senadordquo foi

comumente encontrada em moedas de bronze cunhadas na Aacutesia Menor154 Outras inscriccedilotildees

mostram essa expressatildeo vinculada agrave famiacutelia imperial e ao povo romano Vespasiano ldquoe toda

sua casa o santo senado e o povo dos romanosrdquo155 Trajano ldquoe toda sua casa o santo senado e

o povo dos romanosrdquo156 Marco Aureacutelio e Luacutecio Veroldquoe toda [sua] casa o mais santo senado e

o povo dos romanosrdquo157 Septimus Severus Caracalla Geta Julia Domna ldquoe toda a sua casa o

santo senado o povo dos romanos e os santos exeacutercitosrdquo158 Eacute possiacutevel indicar muitas outras

inscriccedilotildees mas o impasse identificado por Minns e Parvis estaacute relacionado ao fato de o

ldquosenadordquo e o ldquopovordquo aparecem no endereccedilamento de uma ldquopeticcedilatildeordquo como eacute caracterizada a

Apologia de Justino Entra na hipoacutetese a importaccedilatildeo da expressatildeo que ocorre na I Apol 563

ldquoPor isso noacutes vos suplicamos que o sacro senado e o povo romano conheccedilam este nosso

escrito []rdquo Ou ainda que a primeira ocorrecircncia do termo ldquosacro senadordquo seja a da fala de

Lucius a Urbicus na II Apol 216

Munier159 no entanto tem outra proposta Para ele eacute mais provaacutevel que tal expressatildeo

tenha assumido seu lugar em funccedilatildeo da necessaacuteria autorizaccedilatildeo do senado e do povo para o

estabelecimento de um novo culto puacuteblico Seu argumento eacute baseado no escrito de Ciacutecero

(Legibus II19-20) e parece mais seguro

Euseacutebio escreve que Justino tambeacutem endereccedilou uma Apologia ao imperador

ldquoAntonino Verordquo160 ou seja a Marco Aureacutelio A menccedilatildeo ao ldquoimperador Piordquo ao ldquofilho de

Ceacutesar amante do saberrdquo e ao ldquosacro senadordquo na II Apol 21ss pode significar para estudiosos

como M Marcovich161 que a II Apologia foi dirigida aos mesmos nomes que a primeira Essa

periacutecope do texto apresenta a narraccedilatildeo de um episoacutedio que se sucedeu nos dias de Antonino

153 Ibid 154 TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984 p 96 apud MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35 155 tan i`eran sunklhton kai ton damon ton R`wmaiwn Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386 Minns e Paris (op cit p35) citam o mesmo texto com algumas variaccedilotildees 156 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn (Cyrenis IGRR I-II 1037) Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355 157 i`erwtathj boulhj te kai dhmou tou Rwmaiwn (Serdicae IGRR I-II 1452) Ibid p 182 158 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn kai strateumatwn (Pizi IGRR I-II 766) Ibid p 251 159 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 278 160 Hist Ecles IV183 161 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 7

33

Pio mas eacute provaacutevel que a alusatildeo agrave piedade e agrave filosofia novamente seja proposital para

constranger seus destinataacuterios Euseacutebio se confunde com o nome de Antonino assim como o

faz quanto ao rescrito agrave comunidade da Aacutesia162

Considerando que Justino escreveu na I Apologia 462-3 que ldquoCristo nasceu cento e

cinquenta anos antes de nosso tempordquo A Harnack163 conclui que esse primeiro escrito foi

composto entre 147 e 154 dC Tambeacutem na I Apol 296 L Munatius Felix eacute mencionado

como prefeito do Egito Sabe-se que ele exerceu seu mandato de 150 a 154 dC164 A II Apol

11 faz referecircncia a Q Lollius Urbicus como prefeito de Roma cargo que ocupou de 146 a

160 dC165 Segundo a anaacutelise de Munier o Chronicon de Euseacutebio indica que o adversaacuterio de

Justino Crescente comeccedilou a denunciaacute-lo em Roma no segundo ano da 233ordf Olimpiacuteada que

corresponde ao ano de 153 ou 154 Desse modo seraacute acatada a uma data por volta do ano 153

ou 154 para a I Apologia e alguns anos depois para o segundo escrito ateacute no maacuteximo 161 dC

A I Apologia apresenta uma defesa geral dos cristatildeos O segundo escrito parte da

reprovaccedilatildeo das accedilotildees anticristatildes tendo em vista principalmente o que havia acontecido em

Roma sob Urbico e as investidas do ciacutenico Crescente Entranhado nessa ldquopeticcedilatildeo

apologeticamente fundamentadardquo166 estaacute o argumento de que os cristatildeos ao contraacuterio do que

era disseminado em algumas denuacutencias e caluacutenias natildeo seriam de nenhum modo uma ameaccedila

agrave ordem A seguir seratildeo examinadas as accedilotildees anticristatildes que compunham o contexto da

primeira metade do seacuteculo II dC

162 Hist Ecles IV131ss A confusatildeo com os nomes dos imperadores no rescrito da Aacutesia seraacute examinada mais adiante Pode-se admitir tambeacutem que essa confusatildeo tenha sido acarretada pela organizaccedilatildeo do texto em um periacuteodo posterior a Euseacutebio 163 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 227 164 Prosopografia Imperii Romani V 2 Berlim Walter de Gruyter 1983 (M 723) 165 PIR v1 1970 L 327 166 Usando novamente a expressatildeo de SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72

34

CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS

Justino se opotildee agraves investidas contra os cristatildeos167 por natildeo considerar vaacutelidas as

justificativas apresentadas para as condenaccedilotildees dos fieacuteis A confissatildeo de ldquocristianismordquo diante

de uma autoridade acaba sendo ironizada como uma condenaccedilatildeo do nome ldquocristatildeordquo Na II

Apologia (11) ele afirma que accedilotildees desse tipo estatildeo ocorrendo por todo o Impeacuterio O que natildeo

deve significar que existia uma busca exaustiva dos romanos pelos membros do novo

movimento No entanto eacute provaacutevel que esses atritos pudessem ser localizados em vaacuterias

regiotildees Um caso especiacutefico da execuccedilatildeo em Roma sob Urbico motivou-o a se manifestar

novamente168 As intimaccedilotildees por razotildees religiosas aos tribunais jaacute haviam movido outros

apologistas na primeira metade do II seacuteculo Euseacutebio169 faz saber que antes de Justino

Quadrato e Aristides jaacute clamavam em favor dos cristatildeos ao Imperador Adriano

Natildeo haacute nenhum indiacutecio de que o cerne da crenccedila cristatilde apresentasse alguma forma de

conspiraccedilatildeo contra os romanos Mas eacute preciso estabelecer uma visatildeo geral das accedilotildees

anticristatildes que se desenvolveram antes de Justino e em seu tempo para que se possa assimilar

o sentido de sua reflexatildeo

O II seacuteculo se inicia com um quadro indefinido a respeito dos cristatildeos A atividade

cristatilde de anunciaccedilatildeo da sua mensagem de feacute e conversatildeo dos pagatildeos alcanccedilava diversas

regiotildees do Impeacuterio Conversotildees e alguns atritos sempre ocorriam

A conversatildeo ao cristianismo implicava em uma mudanccedila que aleacutem de religiosa

poderia ser existencial social e ateacute poliacutetica Eacute provaacutevel que essa postura de resistecircncia agrave

associaccedilatildeo com a ldquoidolatriardquo identificada na vida ciacutevica fosse interpretada como ldquoineacuterciardquo ou

falta de vigor para se envolverem nos assuntos puacuteblicos jaacute despertasse preocupaccedilotildees na virada

do I seacuteculo Principalmente quando membros das classes dirigentes comeccedilam a aderir agrave feacute do

oriente A linha entre a toleracircncia e a intoleracircncia eacute indefinida Eacute preciso analisar os contornos

desde Trajano (governou de 98-117 dC) ateacute os primeiros anos de Marco Aureacutelio (governou

de 161-180 dC)

167 ldquopedimos sejam examinadas as acusaccedilotildees contra os cristatildeos Se for demonstrado que satildeo reais castiguem-nos como eacute conveniente que sejam castigados os reacuteus convictosrdquo I Apol 31 168 ldquo[] o que aconteceu ultimamente em vossa cidade sob Urbico e o que os governadores estatildeo fazendo sem razatildeo em todo o impeacuteriordquo II Apol 11 169 Hist Ecles IV1-3

35

21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano

Natildeo haacute indiacutecios de uma perseguiccedilatildeo generalizada aos cristatildeos no Impeacuterio Romano no

iniacutecio do seacuteculo II mas a expansatildeo cristatilde em curso proporcionava um nuacutemero significativo de

processos nos tribunais locais Se por um lado alguns estavam certos de que os membros

dessa superstitio illicita deveriam ser condenados por outro lado existiam algumas lacunas

sobre esse tipo de julgamento

A expansatildeo proporcionava atritos corriqueiros de resistecircncia agraves novas crenccedilas O

nuacutemero de cristatildeos era crescente170 Ateacute o governo de Nero171 os adeptos agrave nova religiatildeo que

se desenvolvia no seio do judaiacutesmo natildeo enfrentaram problemas significativos em relaccedilatildeo aos

romanos Taacutecito faz saber que esses que a seu ver jaacute eram impopulares pelas suas flagitia

foram incriminados por Nero pelo incecircndio de Roma em 64 dC172 Se Nero lanccedilou a culpa

do incecircndio de Roma sobre os cristatildeos fica aberta a questatildeo sobre a dimensatildeo dessa

perseguiccedilatildeo A accedilatildeo de Nero foi suficiente para que a tradiccedilatildeo cristatilde o transformasse no

ldquoprimeiro imperador perseguidorrdquo logo seguido por Domiciano173174 do qual natildeo se conhece

uma perseguiccedilatildeo direta contra os cristatildeos mas uma repressatildeo a asebeia e ao proselitismo

judaico175 que deve ter ocasionado transtornos inclusive agrave Igreja Isso foi suficiente para se

sustentar que a referecircncia de Tertuliano176 ao institutum neronianum fazia de Nero o primeiro

a lanccedilar as bases juriacutedicas para a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos177 Todavia a utilizaccedilatildeo dessa

referecircncia de Tertuliano para a identificaccedilatildeo das bases juriacutedicas da perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute

problemaacutetica Marta Sordi178 recorrendo ao mesmo Tertuliano sustenta a ideia de que houve

170 GOODMANN M Mission and conversion poselytizing in the Religious History of the Roman Empire New York Clarendon PressOxford 1994 p 91-108 Cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 171 Governou de 54 a 68 dC 172 Anais XV44 Flagitia poderia referir-se a algo vergonhoso ou inapropriado algo descabido cf LIDDEL H G SCOTT R (Ed) Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 173 Governou de 81 a 96 dC 174 Euseacutebio His Ecles III26 175 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3 176 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4 177 KERESZTES Paul Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 Segundo C G Roman as bases dessa teoria se encontram na obra de CALLEWAERD C La methode dans la recherrch de la base juridique des premiers persecutions Reviste dhistoire Ecclesiastique 12 1911 pp 5-16 e segue acompanhada por Cf DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106 MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 1953 pp 3-32 178 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968

36

um senatus consultum na eacutepoca de Tibeacuterio179 que teria desaprovado o reconhecimento de

Cristo como deus do panteatildeo a contragosto do Imperador

A incerteza sobre como proceder em julgamento de cristatildeos fez com que Pliacutenio o

Jovem escrevesse ao imperador Trajano no iniacutecio do II seacuteculo A resposta do imperador

confirma a accedilatildeo de Pliacutenio em condenar os cristatildeos confessos proiacutebe agrave perseguiccedilatildeo a esses

religiosos rejeita as denuacutencias anocircnimas e faz aumenta as interrogaccedilotildees sobre as bases

juriacutedicas processos desse tipo Uma hipoacutetese comum tal como sustentam Marcel Simon e

Andreacute Benoicirct180 eacute a de que neste periacuteodo natildeo existia nenhuma lei sobre os cristatildeos e que os

magistrados agiam mediante a ius coertionis181 Essa teoria que havia sido sustentada

originalmente por Mommsen arrebanhou alguns seguidores mas como aponta Giorgio

Jossa182 em alguns casos como na questatildeo dirigida por Pliacutenio a Trajano o uso da coercitio eacute

limitado pelas interrogaccedilotildees sobre como enquadrar judicialmente os processos Para ser mais

especiacutefico Pliacutenio deseja saber se os cristatildeos deveriam ser condenados simplesmente por

confessarem esse nomem ou por algum crime que esteja subentendido Com base nos

trabalhos de E Le Blant183 no seacuteculo XIX outra teoria sobre esse tipo de julgamento propotildee

que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais existentes dentro do

direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea maiestatis Segundo C

G Roman184 essa teoria teve muitos seguidores nos seacuteculos XIX e XX sendo favoraacutevel

agravequeles que como L Homo e Ch Saumagne185 consideram que o institutum neronianum186

natildeo pode ser compreendido como edito ou lei especial emanada do princeps

As maiores discrepacircncias quanto agraves razotildees juriacutedicas e populares para condenaccedilatildeo dos

cristatildeos eacute a proacutepria relaccedilatildeo desse grupo religioso com o Impeacuterio neste iniacutecio do II seacuteculo

aparecem em funccedilatildeo das supostas posturas diferentes assumidas por Trajano e Adriano diante

dessa superstitio As explicaccedilotildees atuais trilham caminhos que vatildeo desde diferentes niacuteveis de

toleracircncia atribuiacutedos a esses dois imperadores como sustenta Pedro Barcelograve187 ateacute a hipoacutetese

179 Governou de 14 a 37 dC 180 Giudaismo e cristianismo una storia antica RomaBari Gius Laterza Figli Spa 2005 p 97 181 MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-96 182 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 107-144 183 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 184 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 185 HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229 186 Tertuliano Ad nationes 17 187 Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim

37

de que Adriano tenha reconhecido o cristianismo como uma religio licita conforme sustentou

primeiramente Mommsen188

Trajano assumiu o poder no ano de 98 dC A estrateacutegia de Nerva189 em adotaacute-lo para

ser seu sucessor aproximou o senado do futuro priacutencipe190 originaacuterio da Itaacutelica cidade da

proviacutencia senatorial da Baetica no sul da Hispania Eacute provaacutevel que tenha recebido formaccedilatildeo

poliacutetica e puacuteblica razoaacutevel mas sua imagem de homem militar e popular entre as legiotildees eacute a

que prevaleceu para a posteridade Segundo Julien Bennett191 Trajano era de uma famiacutelia

provincial de status elevado Mas essa ascensatildeo natildeo era para qualquer um Pliacutenio192 destaca-o

como priacutencipe escolhido pelas divindades ndash o epiacuteteto optimum era especiacutefico de Juacutepiter ndash

respeitador de todas as tradiccedilotildees ancestrais e das instituiccedilotildees poliacuteticas entre elas o senado

Uma idealizaccedilatildeo que certamente contrapunha-se agrave realidade efetiva pois Trajano apoiado

pelas legiotildees e representado como escolhido de Juacutepiter era detentor de um poder autocraacutetico

tatildeo grande quanto ou maior que o dos mais proacuteximos conselheiros os amigos do priacutencipe

Pode-se considerar que as accedilotildees poliacuteticas de Trajano tinham um caraacuteter apaziguador nos

territoacuterios romanos Ampliou-se a poliacutetica urbana e a extensatildeo das vias romanas nas

proviacutencias favorecendo significativamente a atividade comercial193

Nesse periacuteodo a filosofia estoica encontrou grande honra Por outro lado tambeacutem

houve uma significativa propagaccedilatildeo dos cultos orientais e da magia Prodiacutegios e milagres

eram ansiosamente buscados desencadeando certo fervor religioso entre o povo A piedade

religiosa ancorada agrave velha tradiccedilatildeo grega e romana nutrida por fermento novo proveniente

dos misteacuterios egiacutepcios e dos oraacuteculos caldeus permeava ainda os escritos dos intelectuais O

culto ao imperador natildeo recebeu tanta ecircnfase mas a sacralidade do Impeacuterio eacute talvez um fato

adquirido por todos e a aceitaccedilatildeo praacutetica da forma de culto se juntou com a formaccedilatildeo estoica

da classe dominante194

No ano de 96 Nerva estipulou a requisiccedilatildeo dos relegados e o veto contra as acusaccedilotildees

de ldquoateiacutesmordquo ou mais precisamente de avsebeia e de ldquocostumes judaicosrdquo195 Se os cristatildeos

haviam sido incomodados por decretos que indiretamente insidiam sobre eles alguma

188 Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-399 189 Governou de 96 a 98 dC 190 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 38 191 Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005 pIX 192 Epistolas 1012 Panegiricus 27 884 passim 193 FRIGHETTO Renan Op cit 2012 p 38 194 Ibid p 38 195 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3

38

opressatildeo as mudanccedilas de Nerva teriam representado um aliacutevio196 Mas sob Trajano percebe-

se que os casos esporaacutedicos de condenaccedilotildees aos fieacuteis ainda satildeo identificados Natildeo se ouviraacute

mais falar sobre acusaccedilatildeo de costume judaico no II seacuteculo mas os cristatildeos continuaratildeo a

enfrentar repressotildees em alguns pontos do territoacuterio romano o que levanta uma obscura

questatildeo sobre por qual crime seriam culpados os cristatildeos e quais seriam os fundamentos

juriacutedicos de suas condenaccedilotildees

Como destacou Giorgio Jossa197 a apologeacutetica cristatilde desse periacuteodo distingue dois

tipos de criacuteticos Uma opiniatildeo puacuteblica grosseira e mal informada como as acusaccedilotildees de

cometerem delitos particularmente vergonhosos como incesto e antropofagia movida contra

os cristatildeos por meio de falatoacuterio e caluacutenias e a acusaccedilatildeo de serem a causa de todos os males

no Impeacuterio devido agrave ameaccedila que representavam agrave pax deorum Eacute difiacutecil dizer qual era

realmente a extensatildeo da hostilidade dos pagatildeos das diversas regiotildees mas essa hostilidade

existia e constituiacutea um terreno feacutertil para o desenvolvimento tanto das acusaccedilotildees poliacuteticas da

opiniatildeo culta quanto juriacutedicas por parte dos funcionaacuterios imperiais

O cristianismo natildeo se dirigiu apenas agraves classes humildes Rapidamente sua mensagem

chegou tambeacutem agraves classes elevadas A oposiccedilatildeo da classe culta era principalmente de caraacuteter

filosoacutefico e nesse periacuteodo foram sustentadas especialmente por Epiacuteteto Luciano e Galeno a

partir dos valores mais tradicionais da cultura helecircnica Por outro lado sustentando acusaccedilotildees

de caraacuteter social aparecem as consideraccedilotildees de Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio tendo em vista as

preocupaccedilotildees poliacuteticas do governo romano Taacutecito198 escreveu que os cristatildeos eram mal vistos

pela suas flagitia199 e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero humano] A

crenccedila desse grupo era considerada uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]

Suetocircnio200 os considerava homens de uma superstitionis novae ac maleficae [superstitio201

nova e maleacutefica] Frontatildeo202 em atenccedilatildeo agraves antigas caluacutenias de flagitia teria acusado os

196 Eusebio Hist Ecles III231 197 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 108 198 Anais XV44 199 O termo latino pode significar ldquocrime infacircmia ato vergonhoso etcrdquo LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) 200 genus hominum superstitionis novae ac maleficae [raccedila de homens de uma superstitio nova e maleacutefica] De Vita Caesarum Vita Neronis 162 201 A palavra latina superstitio significa basicamente ldquotemor distinto aos deusesrdquo ldquopavor pelo sobrenatualrdquo com possiacuteveis variaccedilotildees em contextos diferentes Sua traduccedilatildeo para ldquosupersticcedilatildeordquo pode ocasionar uma confusatildeo indesejada de conceitos LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) cf JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 jun1979 pp 131-159 MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007 SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002 202 apud Minucio Felix Octavius 96-7

39

cristatildeos de orgias incestuosas Pliacutenio203 vecirc nas novas crenccedilas uma superstitionem pravam et

immodicam A imagem dos cristatildeos diante desses homens educados era negativa Mas as

opiniotildees satildeo muito divergentes sobre as bases juriacutedicas da condenaccedilatildeo dos membros desse

novo grupo religioso

O governador do Ponto-Bitiacutenia diz nunca ter participado de julgamentos de cristatildeos e

por isso natildeo sabia quais eram as medidas e os procedimentos para castigar e inquirir204 Ele

levanta as seguintes questotildees a Trajano se as diferentes idades e condiccedilotildees fiacutesicas dos

acusados deveriam ser levadas em consideraccedilatildeo se os que se retratavam mereciam ser

perdoados e se deveriam ser punidos por serem cristatildeos sem qualquer crime ou

exclusivamente pelos delitos encobertos por este nome205 O rescrito de Trajano a Pliacutenio

tendo em vista a inscriccedilatildeo de Como (CIL V 5262206) pode ter sido escrito em 111 e 112 ou

112 e 113 anos que compreenderiam o governo de Pliacutenio no Ponto-Bitiacutenia

Sua interrogaccedilatildeo sobre se o ldquonomerdquo deveria ser punido mesmo sem significar uma

ofensa ou a ofensa subentendida pelo nome207 incide sobre que tipo de lei existia naquela

eacutepoca Segundo E Le Blant208 as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis

penais existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de

laesea maiestatis Todavia conforme propocircs C G Roman209 em seu estudo eacute provaacutevel que

os cristatildeos estivessem sendo denunciados naquela regiatildeo devido ao fato de se reunirem

semanalmente Isso contrariava as estipulaccedilotildees do edito promulgado pelo governador segundo

as instruccedilotildees de Trajano que proibia as assembleias ou hetaerias210 entre o povo para evitar

conspiraccedilotildees211 Assim pelo menos neste ponto eacute preciso concordar com Pedro Barcelograve no

203 [superstitio distorcida e desregrada] Ep X968 204 Cognitionibus de Christianis interfui nunquam ideo nescio quid et quatenus aut puniri soleat aut quaeri [ Nunca tomei parte em processos contra cristatildeos por esta razatildeo eu natildeo sei o que costumeiramente se deve punir e quais satildeo as extensotildees ou investigaccedilotildees] (Ep X97) 205 Ep X96 206 Corpus Inscripitionum Latinarum V Berolini Reimer 1959 207 nomen ipsu etiamsi flagitiis careat an flagita cohaerentia nomini puniantur [O proacuteprio nome mesmo sem nenhuma ofensa ou os crimes associados a esse nome devem ser punidos] (Ep X97) 208 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 209 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 passim 210 Assembleias civis comuns entre os gregos 211 Ep X97

40

reconhecimento de que se estaacute diante de um problema local212 Os cristatildeos estavam agrave mercecirc

de denuacutencias de desobediecircncia ao edito do governador mas tambeacutem por alguma

irregularidade identificada no tocante agrave nova religiatildeo

Pliacutenio consultou Trajano pelo menos duas vezes sobre como lidar com as heterias213

Ele havia questionado sobre a possibilidade de criar um coleacutegio de fabri composto por 150

homens na Nicomeacutedia214 Mas o imperador respondeu ldquoNatildeo esqueccedilamos que tua proviacutencia e

sobretudo esta vila eacute vitima de sociedades deste gecircnero Qualquer que seja seu nome

qualquer que seja a finalidade de que dermos a estes homens reunidos daraacute lugar rapidamente

a heteriasrdquo215 Natildeo seria razoaacutevel abrir uma exceccedilatildeo aos cristatildeos Mediante inuacutemeras

denuacutencias Pliacutenio resolveu investigar sobre o tipo de assembleia que constituiacuteam as reuniotildees

cuacutelticas cristatildes Os processos de acusaccedilatildeo cresceram e proporcionaram vaacuterios incidentes216

Denuacutencias anocircnimas por meio de libelus contendo o nome de pessoas que negavam ser cristatildes

estavam entre os inconvenientes Os cristatildeos alegavam que sua uacutenica culpa ou erro era se

reunirem antes de nascer o sol em um dia especiacutefico da semana para cantar hinos a Cristo E

tambeacutem de se ajuntarem para uma refeiccedilatildeo comum vista pelo governador como innoxium

[inocente] Praacutetica que havia sido abandonada devido ao edito de Pliacutenio O governador

procurou extrair informaccedilotildees sobre os cristatildeos mas ele escreve que natildeo encontrou nada aleacutem

de uma superstitionem pravam et immodicam Visto que o nuacutemero de acusados estava

provocando ldquoincidentesrdquo Pliacutenio decidiu consultar o imperador sobre o assunto Ele nota que

pessoas de todas as idades de todos os graus de ambos os sexos e de muitas cidades satildeo

citadas em juiacutezo A superstitio dos cristatildeos jaacute se estendia pelos campos e vilas mas ele eacute

otimista e acredita ser possiacutevel sanar esse problema217 Pliacutenio218 escreve que

muitos recomeccedilam a frequentar os templos que haviam ficado quase desertos tornando a se celebrarem os sacrifiacutecios solenes abandonados e a se venderem as viacutetimas das quais ateacute agora eram raros os compradores De modo que eacute faacutecil argumentar que muitas pessoas podem se emendar se existir lugar para arrependimento

Desse modo haacute uma evidente intenccedilatildeo de realocar os cristatildeos ao povo em geral que

participa da religiatildeo oficial Deve ser esta a razatildeo pela qual o governador concede o perdatildeo

212 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 p 69 213 Assembleias comuns aos gregos 214 Ep X33 215 Ep X341 216 mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species incierunt [Assim como seu suceder crescem os processos de acusaccedilatildeo ocasionando vaacuterios incidentes] (Ep X97) 217 quae videtur sisti et corrigi posse (Ep X97) 218 Ep X97

41

agravequeles que abandonam o cristianismo Mas baseado em relatos anteriores219 e em textos

posteriores sobre esse tipo de julgamento220 pode-se supor que os cristatildeos intimados

argumentavam e questionavam sobre a razatildeo da culpa que os condenava

Roman221 em certa medida seguindo o raciociacutenio de Marta Sordi222 sustenta que a

disposiccedilatildeo de Trajano estaacute voltada para a soluccedilatildeo de problemas sociais na regiatildeo do Ponto-

Bitiacutenia tendo em vista a sua recomendaccedilatildeo geral contra as heterias Proibindo as reuniotildees

puacuteblicas de qualquer caraacuteter os cristatildeos estariam indiretamente incluiacutedos Mas Roman

atribuindo um acentuado grau de toleracircncia a Trajano considera que o imperador estaacute

liberando os cristatildeos dessa condenaccedilatildeo recomendando que os mesmos natildeo sejam buscados

No entanto natildeo haacute qualquer razatildeo para supervalorizar a ldquotoleracircnciardquo desse imperador aos

cristatildeos

Se fossem acusados de violaccedilatildeo do edito das heterias defender-se-iam dizendo que

natildeo se reuniam mais Caso os problemas envolvendo cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia se ressumissem

a essa questatildeo o magistrado deveria soltaacute-los imediatamente Mas natildeo eacute isso que eacute descrito

por Pliacutenio Ele relata que insistia para que os acusados negassem ser ldquocristatildeosrdquo ameaccedilando-os

de morte Certamente um cristatildeo questionaria esse tipo de julgamento perguntando sobre qual

crime teria sido por eles cometido O governador sabia que esses religiosos eram acusados em

outros lugares e ao caracterizar as crenccedilas cristatildes como pravam et immodicam uma percepccedilatildeo

muito negativa se manifesta No entanto natildeo haacute referecircncia a nenhuma lei contra os cristatildeos

Pliacutenio decidiu punir os que confessavam essa superstitio procurando convencecirc-los a

mudarem de opiniatildeo quanto agrave feacute a que se apegavam ameaccedilando-os por ateacute trecircs vezes Seu

julgamento foi que independente da natureza dos credos dos cristatildeos a inflexibilidade e

obstinaccedilatildeo que os faziam natildeo negar o nomen christianum tornavam-lhes dignos de puniccedilatildeo223

Giorgio Jossa224 destacou ainda que nenhum dos crimes a eles imputados eram demonstados

ou pareciam dignos de serem cridos contudo os cristatildeos satildeo vistos como seguidores de

crenccedilas despresiacuteveis Embora natildeo exista nenhuma referecircncia a uma lei contra os fieacuteis natildeo haacute

nenhuma razatildeo para se pensar que Pliacutenio estivesse receoso de punir os cristatildeos exceto pelo

fato de que o nuacutemero de denuacutencias anocircnimas poderia provocar desordem Conforme apontou

219 Atos dos Apoacutestolospassim 220 Euseacutebio Hist Ecles passim Atas dos maacutertires passim 221 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-242 222 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 87-102 223 hellip qualecumque esset quod faterentur pervicaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri (Ep X97) 224 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 116

42

J Danieacutelou225 natildeo era uma lei especiacutefica que ocasionava a condenaccedilatildeo dos fieacuteis mas a

ausecircncia de uma lei que regulamentasse a nova religiatildeo como a que autorizava a religiatildeo

judaica

A resposta de Trajano natildeo demonstrou muita preocupaccedilatildeo com os cristatildeos O

imperador aprovou as medidas empregadas contra eles e para evitar o problema do excesso

de denuacutencias sem fundamento recomendou que natildeo fossem admitidas delaccedilotildees anocircnimas O

imperador tambeacutem estabeleceu que os fieacuteis natildeo deveriam ser perseguidos Ele escreveu

Agiste muito bem meu caro Pliacutenio ao instituir os processos contra esses que te foram denunciados como cristatildeos Natildeo se deve estabelecer regra dura e inflexiacutevel de aplicaccedilatildeo universal Natildeo os procure mas se surgirem outras denuacutencias que procedam puna-os Poreacutem com esta ressalva de que se algueacutem nega ser cristatildeo e mediante a adoraccedilatildeo dos deuses demonstra natildeo o ser atualmente deve ser perdoado em recompensa de sua emenda por muito que o acusem suspeitas relativas ao passado Natildeo merecem atenccedilatildeo panfletos anocircnimos em causa alguma aleacutem do dever de evitarem-se antecedentes iniacutequos panfletos anocircnimos natildeo condizem absolutamente com os nossos tempos226

O caraacuteter lacocircnico da resposta de Trajano poderia se justificar pelo menos de trecircs

formas Em primeiro lugar a autenticidade do rescrito de Trajano e a carta de Pliacutenio a esse

imperador foram questionadas por alguns estudiosos desde o seacuteculo XVIII Segundo

Cristobal G Roman a anaacutelise de J S Semler227 em 1788 contribuiu para desencadear uma

corrente de pensamento que foi bem representada ateacute longos anos do seacuteculo XX228 As

principais objeccedilotildees natildeo estariam diretamente relacionadas agrave inadequaccedilatildeo da descriccedilatildeo de

Pliacutenio sobre as comunidades cristatildes e a situaccedilatildeo real na qual se encontrariam As

discordacircncias incidiriam sobre o tipo de canto praticado nas reuniotildees cristatildes e sobre o nuacutemero

de cristatildeos existentes no Ponto-Bitiacutenia segundo o relato de Pliacutenio229 Os aspectos estruturais

satildeo analisados na criacutetica de L Hermann230 que aponta as repeticcedilotildees e as reiteradas alusotildees agrave

proacutepria ignoracircncia de Pliacutenio como elementos que induzem a pensar em interpolaccedilotildees ou 225 Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975 pp 13-15 226 Pliacutenio Ep X981ss 227 Novae observationes quibus studiosius illustrantur potiora capita historiae et religionis christianae usque ad Constantinum Halle Impensis Bibliopolii Hemmerdiani 1781 228 Marcel Durry (Pline-le-juene Paris Soc DrsquoEacuted Le belle Lettre 1972 p 7071) oferece uma lista dos pesquisadores que aponta a inautenticidade da correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano Entre as obras aparecem AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875 p 186 HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844 pp 426 HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885 LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934 pp 28-34 e GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946 p 585 229 VIDMAN L Etude sur la correspondance de Pline Le Jeune avec Trajan Roma LErma di Bretschneider 1972 pp 87 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 227 230 HERMANN L Les interpretations de la lettre de Pline sur les chretiens Latomus XIII 1954 p 343 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228

43

falsificaccedilotildees Dentro dessa mesma loacutegica estaria a resposta lacocircnica de Trajano agraves trecircs

questotildees que aparecem na carta de Pliacutenio a) se deveriam ser feitas distinccedilotildees tendo em vistas

as idades dos cristatildeos b) se deveria lhes permitir o arrependimento c) e se o roacutetulo de cristatildeo

deveria ser motivo de castigo por si mesmo ou apenas os delitos que aquele nome

implicava231 A resposta de Trajano contempla diretamente apenas a segunda questatildeo natildeo

dando provas de que a primeira e a terceira estivessem na carta por ele recebida Desse modo

Hermann deduz que as questotildees natildeo contempladas seriam interpolaccedilotildees

Entretanto a despreocupaccedilatildeo de Trajano em estabelecer uma norma riacutegida contra os

cristatildeos pode justificar o caraacuteter superficial de sua resposta Ele escreve que neque enim in

universum aliquid quod quase certam formam habeat constitui potest232 [natildeo se pode

constituir uma norma universal ou que seja invariaacutevel] Com isso nota-se tambeacutem a

liberdade do magistrado em avaliar os suspeitos e procurar enquadraacute-los sob uma lei

A tese mommseniana da coercitio eacute rebatida parcialmente por Jossa233 tendo em vista

que na maioria dos casos de condenaccedilatildeo dos cristatildeos nesse periacuteodo a atitude das autoridades

natildeo se reduz a uma simples atitude de poliacutecia para manter a ordem puacuteblica em uma proviacutencia

atingida pela desordem mas em um procedimento judiciaacuterio que tinha iniacutecio com uma

denuacutencia privada comporta uma acusaccedilatildeo precisa e se conclue com a condenaccedilatildeo formal Um

procedimento judiciaacuterio que corresponde perfeitamente a cognitio extra ordinem234 um

processo criminal de natureza inquisitorial afirmado durante o principado para crimes e que

tinha formas diversas daqueles previstos na ordo iudiciorum que nas proviacutencias eram tidos

pelos governadores delegados pelo princeps No entanto diante da ausecircncia de uma

legislaccedilatildeo clara sobre o que fazer com os cristatildeos Pliacutenio recorre a ius coertionis para

desestimular os adeptos dessa pravam et immodicam que desrespeitam o magistrado para

sustentarem seu credo Eacute preciso considerar com certo cuidado a teoria derivada da obra de E

Le Blant235 de que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais

existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea

maiestatis Pliacutenio primeiramente julgou os cristatildeos por meio da lei local que proibia as

assembleias entre o povo poreacutem diante da correccedilatildeo por parte dos cristatildeos apontada pelo

231 Pliacutenio Epistolas X962-3 232 Ep X98 233 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 122-123 234 Tido de processo que substitui o processo padratildeo Eacute provaacutevel que soacute tenha se oficializado com forma instituiacuteda de processo no seacuteculo IV O julgamento dos cristatildeos no seacuteculo II seria um processo semelhante 235 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229

44

proacuteprio governador em sua carta ele natildeo sabia exatamente como punir os que se negavam a

desprezar agravequela superstitio Para Jossa236 estaacute evidente que a condenaccedilatildeo se efetiva diante da

profissatildeo da feacute cristatilde natildeo aos delitos a esse nome associados

O cristianismo natildeo eacute condenado como superstitio externa Uma religiatildeo estrangeira

poderia ser socialmente suspeita mas isso natildeo faz com que seja judicialmente perseguida E

natildeo eacute o seu caraacuteter baacuterbaro que lhe rende ilicidade Superstio externa e barbara o judaiacutesmo

era de fato religio licita Os romanos consideravam superstitio toda forma religiosa e toda

praacutetica cultural que natildeo correspondia agravequela transmitida pelos seus antepassados e que natildeo

eram munidas de puacuteblico reconhecimento Todas as praacuteticas religiosas de caraacuteter privado

individuais ou enraizadas em certos grupos sociais como magos ou adivinhos eram dessa

forma rotuladas Religiotildees e cultos puacuteblicos estrangeiros ainda que constituiacutessem patrimocircnio

de um povo e fossem transmitidos desde os tempos mais antigos poderiam ser tachados de

superstitio237 Segundo Jossa238 exprime-se desse modo a diferenccedila instintiva dos ciacuterculos

romanos abastados de uma consciecircncia nacional diante das religiotildees estrangeiras para os

quais os cultos natildeo romanos eram ldquonatildeo religiotildeesrdquo ou seja apenas superstitiones Externa

superstitio vem a ser toda forma ou manifestaccedilatildeo religiosa que natildeo pertenccedila originalmente agrave

tradiccedilatildeo romana ou pelo menos ao puacuteblico reconhecimento e agrave apreciaccedilatildeo dos ritos e crenccedilas

religiosas da parte dos romanos

A partir de Cicero superstitio passa a indicar tambeacutem qualquer forma excesiva

fanaacutetica de religiosidade que se contrapunha agrave moderaccedilatildeo da religio aquela manifestaccedilatildeo

religiosa tiacutepica de uma alma deacutebil (imbecillis) ou velha (anilis) que derivam em particular de

uma anguacutestia inuacutetil e absurda dos deuses239 A superstitio natildeo eacute apenas diversa mas se opotildee

sendo uma corrupccedilatildeo da religio (De natura Deorum II72)

Diante da convicccedilatildeo dos romanos de serem muito religiosos entre todos os homens de

serem inclusive religiosamente superiores aos demais fica impliacutecito que toda e qualquer

religiatildeo estrangeira eacute excessiva ou fanaacutetica que todas as religiotildees estrangeiras satildeo tambeacutem

superstitio e assim toda externa superstitio eacute tambeacutem barbara superstitio no sentido

embrionaacuterio do termo pela falta de racionalidade e moderaccedilatildeo que sempre deixam a

desejar240

236 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 123 237 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 131-159 238 Op Cit p 115 239 Ciacutecero De natura Deorum I117 Cf SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 240 JANSEN L F Op cit pp 145

45

Como jaacute foi apontado anteriormente aleacutem do proacuteprio Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio

tambeacutem adjetivaram negativamente a superstitio cristatilde Taacutecito escreveu que os cristatildeos eram

mal vistos pelas suas flagitia e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero

humano] Flagitia por sinal que Pliacutenio natildeo detectou A crenccedila desse grupo eacute considerada

uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]241 Analisando as consideraccedilotildees de Taacutecito

nota-se que a provaacutevel ofensa que os cristatildeos causavam aos deuses combatendo-os com a

propagaccedilatildeo da sua mensagem evangeacutelica e com abstenccedilatildeo de participaccedilatildeo nas celebraccedilotildees

puacuteblicas responsabilizava-lhes pelo rompimento da pax deorum que havia fragilizado a

capital do Impeacuterio tornando-a vulneraacutevel a tamanha cataacutestrofe da eacutepoca de Nero Segundo L

F Jansen242 o odio humani generis visto por Taacutecito sobre os cristatildeos ndash como antes sobre os

judeus ndash era um elemento que condenava essa superstitionis novae ac maleficae como

escreveu Suetocircnio243 tornando-a exitiabilis No entanto apologistas como Justino244

sustentaram que as flagitia atribuiacutedas aos cristatildeos eram fruto de ldquocaluacuteniasrdquo o que natildeo

acarretaria isenccedilatildeo de serem relativamente enquadrados nos crimes de sacrilegium245 ou

maiestas

No entanto ao confirmar a accedilatildeo de Pliacutenio Trajano ratifica a condenaccedilatildeo do nomen

christianum Isso deve estar ligado ao fato de o governador do Ponto-Bitiacutenia ter confirmado

os resultados positivos desse tipo de condenaccedilatildeo que visava desestimular a aderecircncia ao grupo

cristatildeos garantindo a manutenccedilatildeo da religiatildeo tradicional a uma medida moderada que

impedisse falsas denuacutencias e o cometimento de injusticcedilas O que natildeo significa que Trajano

tenha empreendido uma poliacutetica de toleracircncia aos cristatildeos dificultando as denuacutencias como em

alguns momentos parece sugerir Pedro Barcelograve246

Euseacutebio247 explora o fato de Trajano ter determinado que os cristatildeos natildeo deveriam ser

buscados (conquirendi non sunt) para assim construir uma ldquotradiccedilatildeo favoraacutevelrdquo aos fieacuteis Ele

confirma que Trajano promulga um decreto para que os cristatildeos natildeo fossem perseguidos Tal

medida eacute interpretada como o fator importante para a reduccedilatildeo parcial da perseguiccedilatildeo naquela

241 Anais XV44 242 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 145 243 De Vita Caesarum Vita Neronis 162 244 II Apol 82 245 Este caso envolveria um crime especiacutefico contra o patrimocircnio religioso pagatildeo mas natildeo haacute sinais evidentes no na primeira metade do II seacuteculo cf ROBINSON OF The criminal Law of ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 passim 246 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim 247 Histoacuteria Eclesiaacutestica III231-3

46

eacutepoca Mas essas vantagens que Euseacutebio vecirc na recomendaccedilatildeo de Trajano se reduzem ao fato

de ele natildeo admitir que os cristatildeos sejam levados em juiacutezo mediante denuacutencias anocircnimas

Mesmo assim os incocircmodos locais permaneceram Euseacutebio escreve ldquoAlgumas vezes eram as

populaccedilotildees outras as proacuteprias autoridades locais que preparavam os asseacutedios contra noacutes de

forma que ainda que sem perseguiccedilotildees manifestas acenderam-se focos parciais segundo as

proviacutenciasrdquo248 Por outro lado em grande medida influenciado por Meacuteliton de Sardes249 que

escreveu a Marco Aureacutelio Euseacutebio ratifica a tradiccedilatildeo cristatilde que destaca Nero e Domiciano

como grandes perseguidores da Igreja250 Eacute interessante a tradiccedilatildeo cristatilde relacionar as accedilotildees

anticristatildes a ldquomaus imperadoresrdquo Com isso tenta-se reproduzir a ideia de que perseguir os

cristatildeos eacute seguir os passos de tiranos Todavia quando se procuram as raiacutezes das hostilidades

imperiais com os cristatildeos faz-se necessaacuterio ter em mente que por vaacuterias regiotildees do Impeacuterio os

atritos envolvendo o combate aos cristatildeos emergem do processo de expansatildeo da comunicaccedilatildeo

da mensagem apelativa cristatilde e das transformaccedilotildees reivindicadas e provocadas por ela nas

tradiccedilotildees e no comportamento das pessoas

Desse modo deixando de lado a hipoacutetese de Marta Sordi251 sobre um senatus

consultum na eacutepoca de Tibeacuterio que teria desaprovado o reconhecimento de Cristo a

contragosto do Imperador eacute preciso lidar com o institutum neronianum252 tambeacutem

mencionado por Tertuliano como a primeira hostilidade incisiva do Impeacuterio contra os

cristatildeos Mas esta peculiar expressatildeo empregada por Tertuliano natildeo se refere a uma lei e sim

a uma accedilatildeo de Nero E a accedilatildeo de Nero neste caso teria interesses particulares e usa os cristatildeos

como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo Mesmo que as flagitia cristatildes se fundamentem em caluacutenias

originaacuterias dos atritos populares a superstitio cristatilde natildeo poderia representar algo aceitaacutevel aos

olhos dos romanos devido ao seu caraacuteter exclusivista e seu desprezo pela vida puacuteblica ligada agrave

religiatildeo tradicional Em defesa dos cristatildeos poucos anos mais tarde Justino escreveu ldquoEsta eacute

a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo

oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos sepulcros nem

celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo (I Apol 242) Aleacutem disso seria uma incriacutevel contradiccedilatildeo

sustentar que existia uma lei geral em vigor que determinava a pena capital para os cristatildeos e

248 Hist EclesIII232 249 ldquoEntre todos somente Nero e Domiciano persuadidos por alguns homens maleacutevolos quiseram caluniar nossa doutrina e acontece que deles derivou por costume irracional a mentira caluniosa contra tais pessoasrdquo (apud Euseacutebio Hist EclesIV239) 250 Hist Ecles III171 201-9 221-8 251 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968 252 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4

47

ser necessaacuterio admitir que Trajano recomenda que os cristatildeos natildeo sejam perseguidos e que

apenas os casos mais precisos sejam examinados

A resposta de Trajano alegando ldquonatildeo eacute possiacutevel constituir por assim dizer algo

universal que possua forma fixardquo253 pode servir como evidecircncia de que natildeo existia uma lei

geral para julgar os cristatildeos Todavia Roman254 considera que a foacutermula neque enin

universum deve ser relativizada em funccedilatildeo de um marco geograacutefico concreto o da proviacutencia

Ponto-Bitiacutenia e em relaccedilatildeo agrave diversidade de status juriacutedico e de situaccedilotildees existentes nessa

regiatildeo que motivam a correspondecircncia entre Pliacutenio e o Imperador Um exemplo dessa

preocupaccedilatildeo aparece quando se fala da constituiccedilatildeo de um evranouj (sociedade de seguros

muacutetuos) em Amisos255 Trajano desaprovando a ideia responde

Se as leis de Amisos de acordo com as obrigaccedilotildees do tratado lhe datildeo direito a ter uma associaccedilatildeo de seguros muacutetuos natildeo podemos proibir que a tenham tanto mais se tal sociedade natildeo procede a organizar tumultos e reuniotildees iliacutecitas senatildeo para sustentar os mais pobres Nas cidades restantes que estatildeo submetidas a nosso direito praacuteticas desse tipo devem ser proibidas []256

Roman257 estaacute correto em considerar que Trajano potildee em praacutetica um tipo de

disposiccedilatildeo que tende a fazer frente aos problemas sociais provinciais que encontram uma

ampla expressatildeo na formaccedilatildeo de heterias Esta poliacutetica encontra uma limitaccedilatildeo na situaccedilatildeo da

proviacutencia Ponto-Bitiacutenia com a existecircncia de cidades livres e federadas que se autorregulam

Poreacutem a hipoacutetese de Roman apresenta limitaccedilotildees Ele considera que tal poliacutetica

administrativa com respeito aos cristatildeos constituiria uma exceccedilatildeo em suas disposiccedilotildees sobre

as associaccedilotildees no Ponto-Bitiacutenia Esta exceccedilatildeo natildeo se explica em funccedilatildeo da diversidade de

status juriacutedico das cidades existentes nessa proviacutencia mas estaacute relacionada ao caraacuteter peculiar

das reuniotildees das comunidades cristatildes que natildeo consistiam um perigo ao Impeacuterio Roman segue

a hipoacutetese de De Robertis258 e chega a alegar que as reuniotildees cristatildes eram consideradas licita

A proposiccedilatildeo de Roman falha basicamente em natildeo compreender que a aprovaccedilatildeo por

parte de Trajano dos atos de execuccedilatildeo da pena capital sobre os cristatildeos desempenhada por

Pliacutenio estaacute diametralmente oposta a uma hipoteacutetica licenccedila agrave religiatildeo cristatilde O que descarta

qualquer vestiacutegio de simpatia romana pelos cristatildeos Aleacutem disso Pliacutenio havia informado ao

imperador que os cristatildeos haviam deixado de se reunir tendo em vista as disposiccedilotildees do edito

253 neque enim in universum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest (Ep X98) 254 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 233-234 255 Ep X92 256 Pliacutenio Ep X94 257 Op cit pp 233-234 258 ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89

48

recente Quando Trajano aponta que seria inadequado estabelecer uma norma fixa para julgar

os cristatildeos ele estaacute se referindo agraves interrogaccedilotildees levantadas por Pliacutenio questionando sobre a

necessidade de se fazer distinccedilatildeo entre jovens e idosos satildeos e doentes romanos e natildeo

romanos Desse modo o imperador estaacute de acordo que o magistrado use de seus poderes

constituiacutedos para fazer as distinccedilotildees necessaacuterias sem que se fixe uma norma universal

Giorgio Jossa259 faz uma siacutentese das teorias baacutesicas sobre as accedilotildees anticristatildes no

periacuteodo de Trajano e desenvolve uma avaliaccedilatildeo que tem em vista a complexidade da situaccedilatildeo

poliacutetica da religiatildeo cristatilde e da peculiaridade do procedimento criminal do direito romano Esta

explicaccedilatildeo comporta certa mescla de todas as trecircs hipoacuteteses aceitaacuteveis Assim Jossa considera

que o cristianismo representa antes de tudo um problema de ordem puacuteblica que dependia em

parte da sensibilidade dos magistrados por meio do uso da ius coertionis num momento onde

jaacute existia uma legislaccedilatildeo especiacutefica contra os cristatildeos e onde o nomen christianum carregava

subentendido os crimes de sacrilegium e maiesta Exceto pela sua insistecircncia em admitir que

havia uma lei especiacutefica contra os cristatildeos sua anaacutelise torna-se proveitosa em funccedilatildeo de sua

sensibilidade agrave questatildeo da ordem puacuteblica enviesada nesse dilema juriacutedico Se o nomen

christianum carregava subentendido crimes comuns eles se manifestam com a pressatildeo civil

procurando expelir esse corpo estranho da sociedade pagatilde e obriga os magistrados a

procurarem um enquadramento que ratifique a condenaccedilatildeo daquilo que para muitos do povo

estava evidente que os cristatildeos deviam ser condenados

Em siacutentese eacute mais prudente admitir que as condenaccedilotildees de outrora sobre os cristatildeos

davam margem para que os magistrados em outras regiotildees do Impeacuterio eventualmente

condenassem os cristatildeos que lhes fossem entregues normalmente devido a atritos populares

Isso justificaria a incerteza de Pliacutenio em condenar os cristatildeos Eacute o uso de se condenar os

cristatildeos em decorrecircncia desde a eacutepoca de Nero da opiniatildeo puacuteblica somada agrave imagem

negativa que a classe culta tinha desses religiosos que atribui flagitia aos fieacuteis tornando o

nomen christianum razatildeo de condenaccedilatildeo Algo que eacute negado pelos apologistas com

veemecircncia no II seacuteculo e que seraacute avaliado por Adriano subsequentemente a Trajano

259 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125

49

22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano

A Histoacuteria Augusta (51) aponta que Adriano foi um imperador dedicado agrave

manutenccedilatildeo da paz no mundo mas tatildeo logo as revoltas estouraram em regiotildees variadas Os

samaritanos se envolveram em guerra os britacircnicos davam sinais de que natildeo permaneceriam

sob o domiacutenio romano o Egito foi jogado em desordem por distuacuterbios e finalmente a Liacutebia e

a Palestina mostraram espiacuterito de rebeliatildeo

Nos anos 130 e 131 Adriano partiu para o Oriente No plano das suas reformas estava

a revitalizaccedilatildeo da cidade de Jerusaleacutem que havia sido destruiacuteda na guerra judaica de 66 a 73

Natildeo eacute agrave toa que ficou reconhecido como promotor da vida urbana no Impeacuterio valorizando as

obras puacuteblicas (aacutegoras templos teatros anfiteatros aquedutos portos ou estradas) Os

investimentos na Judeia faziam parte de sua estrateacutegia de integraccedilatildeo e romanizaccedilatildeo

Os judeus sofreram em muitos aspectos os efeitos das transformaccedilotildees culturais Mas a

introduccedilatildeo de elementos estrangeiros e a construccedilatildeo de um templo a Juacutepiter na cidade sagrada

gerou protestos260 A proibiccedilatildeo da circuncisatildeo261 contribuiu para acirrar os acircnimos revoltosos

No entanto segundo a anaacutelise de J M C Copete262 se esse foi o estopim da guerra as causas

que levaram o povo judeu e alguns outros provincianos a lutar natildeo poderiam estar apenas na

devoccedilatildeo ao seu Deus tradicional Yahveacute A insensatez romana em ignorar os problemas

estruturais da regiatildeo tais como a pobreza endecircmica reinante e as proacuteprias rivalidades entre

sacerdotes e rabinos na regiatildeo proporcionaram as condiccedilotildees para esse movimento que se

levantou como uma ameaccedila agrave ordem

Euseacutebio escreve que

Rufo governador da Judeacuteia com o reforccedilo militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade marchou contra eles Aniquilou em massa milhares de homens de crianccedilas e de mulheres e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territoacuterios agrave escravidatildeo Mandava entatildeo sobre os judeus um chamado Bar Kosibas que significa ldquofilho da estrela263

A religiatildeo dos judeus era o elemento fundamental de sua identidade Havia interaccedilatildeo

com os demais povos do Impeacuterio mas qualquer tipo de resistecircncia em funccedilatildeo dessa

260 Cassius Dio His Rom 121-3 261 Hist Aug 142 262 Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 263 His Ecles IV61-2

50

identidade poderia deixar as autoridades romanas ressabiadas Taacutecito264 fala da diferenccedila de

ambos os mundos O judaiacutesmo parecia-lhe uma supersticcedilatildeo absurda soacuterdida e depravada que

gerava costumes contraacuterios aos dos outros povos A abstenccedilatildeo do culto ao imperador por parte

dos judeus poderia simbolizar sua rejeiccedilatildeo ao Impeacuterio e agrave cultura greco-romana mas natildeo se

deve pensar que os judeus estavam blindados agrave cultura helecircnica e que as oligarquias judaicas

se isolassem dos negoacutecios com as demais proviacutencias do Impeacuterio265

Uma das preocupaccedilotildees de Justino em sua I Apologia eacute deixar claro que os judeus

haviam se tornado os principais opositores dos cristatildeos e que muitos foram vitimados por Bar

Kosiba que os mandava ldquosubmeter a terriacuteveis torturasrdquo266 Natildeo haacute certeza sobre as razotildees

dessa oposiccedilatildeo e se ela diferia da rivalidade entre judeus e cristatildeos constatada no I seacuteculo

Todavia aleacutem desse tipo de accedilatildeo anticristatilde haacute indiacutecios de que os tribunais locais recebessem

queixas sobre os cristatildeos e um nuacutemero significativo de fieacuteis era levado agrave morte Tal como a feacute

dos judeus a religiatildeo dos cristatildeos era considerada uma superstitio reprovaacutevel que apresentava

resistecircncia agrave vida puacuteblica no Impeacuterio ou seja que natildeo se envolviam em teatros jogos e todo

tipo de reverecircncias aos deuses pagatildeos Para evitar quaisquer duacutevidas quanto agrave identidade entre

cristatildeos e judeus o apologista faz essa interpolaccedilatildeo

Em funccedilatildeo das condenaccedilotildees sofridas pelos cristatildeos durante o governo de Adriano

Quadrato e Aristides escreveram-lhe apologias267 Se a teoria de Paul Andriessen268 for

tomada por certa e a Carta a Diogneto for reconhecida como a apologia perdida de Quadrato

reconhecer-se-aacute a disposiccedilatildeo tanto nesse escrito quanto na Apologia de Aristides em

apresentar algumas das principais distinccedilotildees entre as crenccedilas dos cristatildeos dos judeus e dos

pagatildeos A principal queixa na Carta a Diogneto leva a crer que o ldquonomerdquo cristatildeo era um

elemento chave para a condenaccedilatildeo269 Sua queixa faz pensar que as variaccedilotildees nos julgamentos

nos tribunais locais pudessem proporcionar um destino distinto aos cristatildeos ldquoPor isso

condeno tambeacutem as vossas leis Deveria haver uma soacute constituiccedilatildeo poliacutetica comum para

todos agora haacute tantas legislaccedilotildees quantas cidades existem e assim acontece que o que entre

uns eacute vergonhoso entre outros eacute tido por honrosordquo270

264 Taacutecito Historia V 3-6 Cf Strabatildeo Geografia XVI237 Quintiliano Institutio Oratoria II7 Juvenal Satiras III 13-6 VI 541-7 96-106 Plutarco De Superstitione 8 Cassius Dio Hist Rom 37174 265 Josefo Antiguidades Judaicas XVIII 23 Guerras dos Judeus II118 266 I Apol 316 267 Euseacutebio His Ecles IV31-3 268 Lrsquoapologie de Quadratus conserve sous le nom drsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedievale 13 1946 pp 5-260 Id Lrsquoepilogue de lrsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedieacutevale 14 1947 pp 121-156 269 Carta a Diogneto 271ss 270 Carta a Diogneto 281ss

51

O rescrito de Adriano ao prococircnsul da Aacutesia a partir de 124125 dC Minuacutecio

Fundano oferece uma ideia sobre sua forma de lidar com os cristatildeos O texto foi conservado

na Apologia de Justino (I Apol 68) no texto de Euseacutebio271 e por Rufino na versatildeo latina

Adriano havia recebido a carta de Serecircncio Graniano272 antecessor de Minuacutecio e julgou ser

importante responder essa demanda a fim de ldquoevitar que se perturbem os homens e que os

delatores encontrem apoio para suas maldadesrdquo273 Adriano recomenda que

se os provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo que respondam a ela diante do tribunal deveratildeo ater-se a esse procedimento e natildeo a meras peticcedilotildees e gritarias Com efeito eacute muito mais conveniente que se algueacutem pretende fazer uma acusaccedilatildeo examines tu o assunto Em conclusatildeo se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delito Mas por Heacutercules se a acusaccedilatildeo eacute caluniosa castiga-o com maior severidade e cuida para que natildeo fique impune (I Apol 688-10)

As interpretaccedilotildees desse rescrito satildeo divergentes Em uma primeira linha interpretativa

representada por exemplo por B Orgeval H Gregoire L Regibus e M Sordi274 acredita-se

que esse rescrito assegurou a liberdade de algum tipo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos por

professarem sua religiatildeo e providenciou que fossem punidos apenas por crimes cometidos

contra as leis comuns Representantes de outro ponto de vista como C Callewaerd J Moreau

e W Schimid275 sustentam que o rescrito natildeo concede aos cristatildeos nenhuma liberdade

O rescrito foi lido por Justino de um modo favoraacutevel aos cristatildeos como se de fato o

Imperador tivesse agido decididamente a favor dos cristatildeos A esse documento fez alusatildeo

Meliton bispo de Sardes276 Euseacutebio agiu de modo semelhante em sua proacutepria leitura do

rescrito de Trajano e seguiu a Justino em sua interpretaccedilatildeo do rescrito de Adriano No entanto

como mostrou Paul Kereszts277 a interpretaccedilatildeo do apologista difere do sentido original do

rescrito Segundo a interpretaccedilatildeo de Justino Adriano teria proibido que os cristatildeos fossem

271 His Ecles IV 9 272 O nome correto eacute Q Licinio Silvano Graniano cocircnsul a partir de 106 dC e pro-cocircnsul da Aacutesia a paritir de 122123 dC MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 132 273 I Apol 687 Eus Hist Ecles IV9 274 ORGEVAL B LEmpereur Hadrien oeuvre leacutegislative et administrative ParisGrenoble Domat MontchrestienImpr De Allier 1950 pp 302-307 GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 pp 138-139 REGIBUS L de Storia e Diritto Romano negli Acta Martyrum Didascalos 1926 pp 147-148 SORDI M I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349 275 CALLEWAERT C Le Rescrit dHadrien a Minucius Fundanus Reviste dHistoire et de Litterature 6l 8 1903 pp 152-189 MOREAU J La Persecution du Christianism e dans lEmpire Romain Paris Presses Universitaires de France 1956 p 48 SCHIMID W The Christian Re-Interpretation of the Rescript of Hadrian Maia 71955 pp 5-13 276 Euseacutebio Hist EclesIV 2610 277 Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129

52

punidos simplesmente mediante a confissatildeo de que eram ldquocristatildeosrdquo e teriam recomendado

que fossem julgados pelos crimes como quaisquer outros e natildeo por suas crenccedilas

Segundo C G Roman278 a postura de Adriano em advertir a Minuacutecio Fundano a nada

julgar sem denuacutencia e acusaccedilatildeo formal contra os cristatildeos dava continuidade agrave poliacutetica de

Trajano Tomando essa perspectiva como exemplo deve-se destacar que a interpretaccedilatildeo do

rescrito de Adriano dependeraacute significativamente da interpretaccedilatildeo do rescrito de Trajano e

talvez deva remontar ateacute um pouco antes Roman interpretou as recomendaccedilotildees deste uacuteltimo

como sendo positivas para com os cristatildeos e sua tendecircncia eacute reconhecer o aprimoramento das

limitaccedilotildees das accedilotildees anticristatildes

J Beaujeu279 considera que Adriano procedeu a uma grande obra de restauraccedilatildeo

religiosa que obedecia aleacutem das necessidades religiosas a objetivos poliacuteticos agrave medida que

tendia a uma unificaccedilatildeo religiosa das distintas proviacutencias do Impeacuterio debaixo da eacutegide dos

cultos Greco-romanos mediante a criaccedilatildeo de uma religiatildeo do Estado siacutentese destes uacuteltimos

cultos com as religiotildees orientais com a originalidade dos diversos grupos sociais e eacutetnicos

que formavam o Impeacuterio

De fato Adriano foi um imperador interessado em conhecer a cultura do vasto

Impeacuterio Por volta do ano de 124 iniciou-se nos misteacuterios Eleusis importante oraacuteculo do

mundo grego revelando um interesse miacutestico que acabou por conduzi-lo tambeacutem ao

conhecimento misterioso da religiatildeo egiacutepcia Os cultos tradicionais de Roma natildeo receberam

menor atenccedilatildeo certamente para manter uma relaccedilatildeo amistosa com os integrantes do universo

senatorial Construiu um templo a Venus em Roma no Foro Romano no ano de 121 e mandou

reconstruir o Panteatildeo de Marco Agripa um dos mais importantes colaboradores de

Augusto280 No entanto isso natildeo permite ver em seu rescrito uma accedilatildeo proacute-cristatilde que

estivesse em consonacircncia com a ideia sustentada por Marta Sordi281 de que Adriano teve em

mente reconhecer a Cristo entre os outros deuses e lhe oferecer um templo conforme anota a

Histoacuteria Augusta (Alexandre Severus 436-7) Essa passagem se assemelha agrave lenda de que

antes de propor a construir a cidade de Elia Adriano havia empreendido um projeto de

reconstruccedilatildeo conjunta do templo de Jerusaleacutem com os judeus mas a oposiccedilatildeo dos samaritanos

278 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 230 279 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp150ss 280 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 43 281 I Cristiani e Lrsquoimpero Romano Ed rev e atual Milano Jaca Book 2011 p 98

53

fez com que os planos sofressem mudanccedilas draacutesticas282 Esse tipo de tendecircncia pode chegar a

ponto de admitir como sustentou T Mommsem283 que Adriano estava proacuteximo a elevar a feacute

cristatilde a uma religio licita

As comparaccedilotildees entre as accedilotildees de Trajano e Adriano satildeo muito importantes para o

desenvolvimento de uma teoria coerente que explique a condiccedilatildeo dos cristatildeos nesse iniacutecio do

II seacuteculo todavia natildeo eacute necessaacuterio admitir nenhuma continuidade entre ambos em razatildeo dos

rescritos G Jossa284 alerta que os rescritos natildeo satildeo ldquoleisrdquo mas recomendaccedilotildees a governantes

locais e nem um desses imperadores estabeleceu normas gerais sobre o julgamento dos

cristatildeos

Como foi visto anteriormente ao responder a demanda de Pliacutenio Trajano admitiu o

procedimento daquele governador em condenar os cristatildeos mediante a confissatildeo

recomendaccedilatildeo que fazia pressupor que o nomen christianum representava a razatildeo da

condenaccedilatildeo que visava desestimular a adesatildeo e expansatildeo dessa superstitio Naquela ocasiatildeo o

imperador fez questatildeo de lembrar que as denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas Pouco

tempo depois Adriano precisa admoestar os governantes da Aacutesia Menor a natildeo serem movidos

por ldquomeras peticcedilotildees e gritariasrdquo285 A condenaccedilatildeo aos cristatildeos provocou abusos nas

condenaccedilotildees Se bastasse estender o dedo para algueacutem e acusaacute-lo de cristianismo para

conseguir sua condenaccedilatildeo essa seria uma forma eficaz de eliminar qualquer pessoa

indesejada ainda que ela natildeo fosse cristatilde Adriano entatildeo reconhece que a questatildeo levantada

por Graniano natildeo poderia ficar sem resposta pois os efeitos da desordem seriam extensos

Embora a carta de Graniano natildeo tenha sido preservada eacute possiacutevel deduzir que se o imperador

recomenda a condenaccedilatildeo dos ldquomaleacutevolosrdquo delatores dos cristatildeos que indevidamente os

caluniavam visando agrave puniccedilatildeo isso significa que esse tipo de episoacutedio jaacute havia sido

constatado naquela regiatildeo Nenhuma norma universal eacute estabelecida ou mencionada O

governador eacute designado como o responsaacutevel por examinar as denuacutencias formais e averiguar os

casos

Fica evidenciada a obrigaccedilatildeo por parte de quem realiza a denuacutencia de apresentar ele

mesmo provas sobre seu testemunho diferenciando-se um pouco da medida de Trajano

segundo a qual o governador deveria se responsabilizar pela investigaccedilatildeo O castigo aos falsos

282 Midash Berersquoshit Babba 6410 e Epiacutestola de Barnabeacute 163-4 apud COPETE J M C Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII CONGRESSO INTERNACIONAL GIREA-ARYS IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 283 Der religonsfrevel nach der roumlmischen Recht Historische Zeitschrift 64 1890 pp 389-429 284 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125 285 I Apol 688

54

acusadores era praacutetica usual no direito romano286 Neste ponto surge a seguinte questatildeo Os

acusadores deveriam provar que os cristatildeos por eles acusados cometiam a infraccedilatildeo de serem

ldquocristatildeosrdquo ou que infringiam outras leis comuns subentendidas pelo seu nomen

A expressatildeo287 ei tij ou=n kathgorei kai deiknusi ti para touj nomouj prattontaj(

ou[twj Diorixw kata thn Dunamin tou a`marthmatoj( [ se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e

demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade

do delito ] (I Apol 6810) eacute entendida de modo positivo ou negativo dependendo da corrente

de interpretaccedilatildeo No entanto o proacuteprio rescrito tem algo a dizer em um delineamento mais

claro sobre essa questatildeo A especificaccedilatildeo de que os acusadores deveriam demonstrar que os

cristatildeos acusados agiam contra as leis [touj nomoj prattontaj] eacute uma medida para evitar as

sukofantiaj [caluacutenias] Por isso ele recomenda que Minuacutecio Fundano examine os casos e ldquose

a acusaccedilatildeo eacute caluniosa [castigue-o]288 com maior severidade e [cuide]289 para que natildeo fique

impunerdquo (I Apol 6810)

Uma nova questatildeo incide sobre o significado dessa acusaccedilatildeo ldquocaluniosardquo Justino

interpretou esse trecho como as acusaccedilotildees que maculavam injustamente a imagem dos

cristatildeos atribuindo-lhes canibalismo ateiacutesmo maiestas ou outras coisas desse tipo Segundo

esse tipo de interpretaccedilatildeo Adriano estaria reprovando a condenaccedilatildeo pelo nomen christianum

e recomendando que os governantes examinassem se existia de fato algum crime contra as

leis Ateacute esse ponto essa medida natildeo significaria nenhuma benevolecircncia para com os cristatildeos

apenas garantiria que fossem julgados como quaisquer outros no Impeacuterio sem que os

magistrados fossem movidos por gritarias puacuteblicas mas que se detivessem aos processos

formais Todavia uma segunda hipoacutetese eacute cogitada

Nessa hipoacutetese as acusaccedilotildees ldquocaluniosasrdquo agraves quais Adriano se refere poderiam natildeo ser

do mesmo tipo das que Justino tinha em mente em suas Apologias Elas poderiam se referir agrave

proacutepria acusaccedilatildeo de cristianismo lanccedilada sobre algueacutem com o intuito de levaacute-lo agrave condenaccedilatildeo

sob uma lei especiacutefica contra os cristatildeos Nessa perspectiva a exigecircncia de Adriano para que

se examinasse a comprovaccedilatildeo da denuacutencia seria uma medida semelhante agravequela tomada por

Pliacutenio exigindo que os acusados sacrificassem aos deuses e amaldiccediloassem a Cristo para que

assim se pudesse verificar se eram realmente cristatildeos A diferenccedila eacute que natildeo eacute possiacutevel

286 ROBINSON O F The criminal Law of ancient Rome Baltimore John Hopkins University Press 1996 pp 8100 287 O rescrito em latim que Euseacutebio dizia ter sido anexado originalmente por Justino foi substituiacutedo no MS Par Grae 450 pela traduccedilatildeo grega de Euseacutebio (MINNS D PARVIS P Justin philosopher and martyr apologies New York Oxford University Press 2009 p 265) 288 Adaptaccedilatildeo de ldquocastiga-ordquo para melhor leitura da frase 289 Originalmente ldquocuidardquo

55

conferir a carta de Graniano para fazer algum tipo de comparaccedilatildeo Desse modo natildeo haveria

nenhuma diferenccedila entre a posiccedilatildeo de Trajano e Adriano exceto a recomendaccedilatildeo desse uacuteltimo

para que os caluniadores fossem punidos Para sustentar essa teoria poreacutem torna-se

necessaacuterio admitir que o rescrito de Adriano foi sutilmente modificado pelos cristatildeos para

convertecirc-lo a favor da feacute cristatilde Se por um lado eacute faacutecil supor a modificaccedilatildeo desse documento

ndash o que poderia ter ocorrido ateacute em funccedilatildeo da sua traduccedilatildeo do latim para o grego ndash por outro

lado natildeo haacute outro documento desse tipo que comprove tal adulteraccedilatildeo e nem mesmo que

ratifique uma accedilatildeo intolerante de Adriano para com os cristatildeos Outra hipoacutetese deve ser

examinada e agora deveraacute levar em consideraccedilatildeo as leis agraves quais o rescrito se refere

No texto grego de Euseacutebio que agora aparece na I Apologia de Justino conforme o

MS A a conjugaccedilatildeo no particiacutepio plural presente ativo masculino do verbo prattontaj estaacute

relacionada agrave frase anterior Aproximando as frases o sentido que se tem eacute o seguinte ldquose os

provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo

que respondam a ela diante do tribunal [] faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam

alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delitordquo290 O texto

latino de Rufino eacute mais especiacutefico com essa associaccedilatildeo Si quis igitur accusat et probat

adversum leges quicquam agere memoratos homines pro merito peccatorum etiam suplicia

statues291 Nesse caso memoratos homines [homens mencionados] eacute uma expliacutecita referecircncia

aos Christianos Todavia tanto C Munier292 quanto D Minns e P Parvis293 ignoram a

palavra memoratos294 traduzindo o texto como se o rescrito se referisse ao modo geral de se

proceder em um julgamento ou seja a todos os homens cujos crimes fossem confirmados

Essa hipoacutetese forccedila o texto pois neste caso uma norma geral faria com que qualquer denuacutencia

precisasse ser provada pelo delator sob o risco de ser punido severamente caso natildeo fosse

confirmada pelas autoridades Desse modo esse tipo de sustentaccedilatildeo se converte em absurdo

Admitir que Adriano estivesse realmente orientando Minuacutecio Fundano a julgar

pessoalmente as denuacutencias contra os cristatildeos e exigir provas dos delatores que confirmassem

o descumprimento das leis natildeo significa que o imperador demonstrava simpatia pelo

cristianismo Sua preocupaccedilatildeo eacute manter a ordem e evitar os abusos Era preciso impedir que

290 I Apol 688-10 291 Apud MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 133 292 Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 pp 314-317 293 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 44264-267 294 Participio plural passado perfeito masculino acusativo que significa ldquotrazido agrave lembranccedilardquo ldquoditordquo ldquomencionadordquo ldquorelacionadordquo etc LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project)

56

as manifestaccedilotildees puacuteblicas solapassem o procedimento correto dos tribunais Haacute sim uma

diferenccedila significativa entre a postura de Trajano e a de Adriano mas ela natildeo torna o segundo

um amigo ou inimigo dos cristatildeos Cabe lembrar que uma das questotildees levantadas por Pliacutenio

a Trajano era se os cristatildeos deveriam ser punidos pela confissatildeo desse nome ou pelos crimes

subentendidos Naquele caso especiacutefico da Bitiacutenia uma das infraccedilotildees era quando os cristatildeos

se reuniam em seus cultos passar por cima da lei que impedia as reuniotildees e associaccedilotildees

gerais Abandonada essa praacutetica o governador natildeo via nenhum crime ou ameaccedila no modo de

ser dos cristatildeos e natildeo encontrou outra razatildeo para puni-los senatildeo pela contumaacutecia que

apresentavam diante de um magistrado em natildeo negar a feacute que era estranha aos olhos de Pliacutenio

A resposta de Trajano ainda que lacocircnica ratificou o procedimento de Pliacutenio e mesmo sem se

identificar um ldquocrimerdquo especiacutefico aprovou a condenaccedilatildeo dos cristatildeos pelo seu nomen para

desestimular a superstitio estranha e incentivar a retomada do culto puacuteblico pagatildeo Adriano

por outro lado tambeacutem sem fazer referecircncia a qualquer lei especiacutefica contra os cristatildeos

orienta os governantes a condenarem a todos aqueles que comprovadamente estivessem

infringindo a lei Tudo indica que a Aacutesia estava sendo agitada por mobilizaccedilotildees puacuteblicas que

impeliam os magistrados contra os cristatildeos Essa eacute a razatildeo para os apologistas Quadrato e

Aristides escreverem tambeacutem O nuacutemero dos cristatildeos ainda natildeo era muito significativo para o

estabelecimento de uma lei geral

Conforme destacou Jossa295 os cristatildeos se confrontavam com a opiniatildeo puacuteblica

Dentre o povo emergiram acusaccedilotildees de incesto infanticiacutedio e outras coisas do gecircnero A

rejeiccedilatildeo aos deuses e o estranhamento ao mos romanorum e o seu odio humanum generis

faziam com que os cristatildeos se tornassem a causa das desgraccedilas no Impeacuterio diante dos olhos de

uma boa parte dos pagatildeos No periacuteodo de Adriano a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos era apenas uma

questatildeo de ordem puacuteblica que constrangia o governo romano a uma difiacutecil obra de mediaccedilatildeo

entre os vaacuterios grupos locais Era um aspecto da poliacutetica de pacificaccedilatildeo das proviacutencias A sua

preocupaccedilatildeo estaacute relacionada exclusivamente a manter a ordem puacuteblica nas proviacutencias e a

garantir a observacircncia rigorosa do direito296 A hostilidade aos cristatildeos e os crescentes

confrontos obrigavam os governadores a intervirem e a consultarem o imperador em casos

como esse em que as coisas ameaccedilavam sair do controle

295 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125132 296 Na Digesta XXII53 o jurista Callistrato se reporta a uma seacuterie de rescritos dos quais cinco satildeo de Adriano a governadores das proviacutencias sobre o modo como escutar os textos nos processos e sobre o valor de dar a eles testemunho cf tambeacutem Dig XLVIII27

57

As respostas de Trajano e Adriano mostram que a repressatildeo puramente local do

cristianismo tinha um caraacuteter descontiacutenuo e excepcional que natildeo impedia a nova religiatildeo de

estender-se pelo Impeacuterio fazendo novos adeptos

23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos

Durante o governo de Antonino Pio (governou de 138-161) os tribunais continuavam

a receber queixas esporaacutedicas da populaccedilatildeo sobre os cristatildeos Marco Aureacutelio297 reconheceu

seu conservadorismo e o descreveu como algueacutem profundamente devoto aos deuses

romanos298 e sempre atento ao cumprimento do proacuteprio dever no culto puacuteblico

Segundo Meacuteliton que escreveu nos tempos de Marco Aureacutelio Antonino Pio natildeo

empreendeu nenhuma modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo que viesse a abater a Igreja e que

repetidamente nos rescritos dirigidos aos tessalonicenses aos atenienses e a todos os gregos

recomendou ldquonatildeo inovar nada sobre os cristatildeosrdquo299

Na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio (IV13) aparece um rescrito de Antonino ao

conselho da Aacutesia Satildeo levantados alguns argumentos contra a autenticidade desse documento

Destacam-se principalmente os erros de titulaccedilatildeo Tambeacutem se alega que suas caracteriacutesticas

formais natildeo sejam proacuteprias dos escritos de Antonino Pio Aleacutem disso o documento apresenta

uma exaltaccedilatildeo ao cristianismo Isso faz com que alguns rejeitem total300 ou parcialmente301

esse documento No entanto as condiccedilotildees da eacutepoca corroboram com a ideia de que o

imperador tenha de fato deliberado sobre essa questatildeo e J Beaujeu302 natildeo vecirc nenhuma razatildeo

para duvidar da existecircncia de um rescrito de Antonino Pio G Jossa303 e C G Roman304

297 Pensamentos I16 298 Marco Aureacutelio Pensamentos VI3014 299 apud Euseacutebio His EclesIV2610 300 Cf SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 1954 pp 190ss SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 301 Cf FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 302 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp 279-329 303 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 148 304 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 228

58

admitem-no com reservas e P Keresztes305 sustenta que por haver um comentaacuterio tanto

negativo quanto positivo sobre os cristatildeos natildeo deveria se tratar de uma falsificaccedilatildeo O modo

como tal texto foi preservado na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio eacute controverso e merece um

exame cauteloso

Pela sequecircncia do texto entende-se que Euseacutebio falaraacute de Antonino Pio Ele anuncia o

nome de Antonino que tambeacutem foi uma forma de se referir a Marco Aureacutelio mas comeccedila a

citaccedilatildeo do texto com ldquoO imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto Armecircnio

pontiacutefice maacuteximo tribuno da plebe pela deacutecima quinta vez cocircnsul por trecircs vezes ao conciacutelio

da Aacutesia saudaccedilotildeesrdquo306 A secccedilatildeo de IV82-5 apresenta um comentaacuterio que dificilmente

poderia ser admitido como autecircntico por isso esta eacute a parte que sofre maior oposiccedilatildeo Trata-se

de uma repreensatildeo moral do imperador aos provincianos O nuacutecleo seguinte do texto agraves vezes

eacute admitido como histoacuterico como sustenta C G Roman307 Lecirc-se

Em favor destes jaacute escreveram a nosso diviniacutessimo pai muitos governadores das proviacutencias aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados a natildeo ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder puacuteblico de Roma Tambeacutem a mim muitos me falaram sobre eles e tambeacutem respondi seguindo o parecer de meu pai Mas se algueacutem persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles fique o acusado livre de encargos ainda que seja evidente que eacute cristatildeo por outro lado o acusador ficaraacute sujeito a castigo Publicado em Eacutefeso no concilio da Aacutesia (Hist Ecles IV136-7)308

O contexto e as evidecircncias internas mostram que o rescrito pretende ser de Antonino

Pio Em siacutentese o texto afirma que sob seu governo natildeo se modificou em nada o que foi

estabelecido por Adriano A liberaccedilatildeo de um cristatildeo acusado em funccedilatildeo da denuacutencia de outro

cristatildeo que insiste em levaacute-lo ao tribunal natildeo faz muito sentido Pode-se imaginar que

desavenccedilas entre cristatildeos fizessem com que um cristatildeo procurasse se livrar do seu adversaacuterio

denunciando-o agraves autoridades para que fosse condenado mas eacute inimaginaacutevel que essa fosse

uma preocupaccedilatildeo de um imperador pagatildeo Eacute provaacutevel tenha sofrido uma adaptaccedilatildeo cristatilde

Mesmo despertando ceticismo sobre sua autenticidade esse rescrito pode traduzir com

reservas a situaccedilatildeo dos cristatildeos daquela eacutepoca Neste caso a compreensatildeo da condiccedilatildeo dos

cristatildeos nesse periacuteodo depende em parte da compreensatildeo da postura de Adriano diante dos

cristatildeos Euseacutebio havia interpretado o rescrito de Adriano como uma medida que beneficiava

os fieacuteis e consequentemente vecirc como positivo o rescrito de Antonino Pio No entanto

consideram as conclusotildees especificadas sobre o rescrito de Adriano nesta pesquisa se Pio natildeo

305 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 306 Euseacutebio Hist Ecles IV131 307 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 230-231 308 Ibid

59

adicionou em nada agravequela determinaccedilatildeo os cristatildeos continuavam a serem viacutetimas de

condenaccedilotildees locais e os governantes tinham liberdade para julgar cada caso

Nesse periacuteodo ocorre o martiacuterio do Papa Teleacutesforo e o processo contra Tolomeu e

Luacutecio sob o prefeito de Roma Lollio Urbico mencionados na II Apologia de Justino (21ss)

O repuacutedio da novidade e irracionalidade da feacute dos cristatildeos aparece nos escritos de Eacutelio

Aristides309 e nas vozes populares inferiores referidas por Luciano (De morte Peregrini 11)

Sobre o martiacuterio de Policarpo haacute divergecircncias Jossa310 sustenta que ele padeceu sob Marco

Aureacutelio mas o tipo de perseguiccedilatildeo recebida natildeo foi diferente daquela pela qual padeceram os

cristatildeos condenados sob Antonino Pio Tumultos e agitaccedilotildees puacuteblicas foram problemas que

Adriano havia procurado resolver

As acusaccedilotildees de ldquoateiacutesmordquo sofridas pelos cristatildeos que aparecem na primeira parte do

rescrito satildeo pertinentes ao periacuteodo311 Esse tipo de acusaccedilatildeo levou o proacuteprio Justino a incluir

esse tema nas suas Apologias312 Eacute certo como destaca Keresztes313 que ldquoateiacutesmordquo natildeo era

um crime de fato E em segundo lugar diante das cataacutestrofes aqueles que professavam

orgulhosamente a inexistecircncia dos deuses pagatildeos tornavam-se a explicaccedilatildeo mais provaacutevel

para o distuacuterbio da pax deorum314 Haacute indiacutecios no rescrito de Antonino que esse temor dos

pagatildeos diante das forccedilas da natureza tambeacutem corroborava com o combate aos cristatildeos315

A principal queixa de Justino na deacutecada de 150 dC era a de que natildeo seria justo

algueacutem ser condenado simplesmente por professar ser ldquocristatildeordquo316 O apologista tece sua

reivindicaccedilatildeo considerando o que pensa ser ldquojustordquo e assim tambeacutem apresenta uma peticcedilatildeo

309 Aristides (Orationes XLVI309) fala dos cristatildeos como ldquoos iacutempios da Palestinardquo que se distanciavam dos costumes gregos e natildeo honravam os deuses 310 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125132 311 ldquoA estes estais empurrando para a agitaccedilatildeo uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateusrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV133) 312 I62 313 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 p 17 314 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam e comparais nossa situaccedilatildeo agrave suardquo (Hist Ecles IV134) [Os seguintes infortuacutenios e prodiacutegios ocorridos em seu reino a fome a qual jaacute mencionamos o colapso do Circus e o terremoto por meio do qual as cidades de Rodes e da Aacutesia foram destruiacutedas] Adversa eius temporibus haec provenerunt fames de qua diximus Circi ruina terrae motus quo Rhodiorum et Asiae oppida conciderunt quae omnia mirifice instauravit et Romae incendium quod trecentas quadraginta insulas vel domos absumpsit (Hist Aug Vita Antoninus IX1) Dion Cassius escreveu que ldquoNos dias de Antonino tambeacutem um terriacutevel terremoto ocorreu na regiatildeo da Bitinia e de Helesponto Vaacuterias cidades foram severamente danificadas ou caiacuteram em ruiacutenas em particular Cizicus e o templo de laacute que era o maior e mais belo de todos os templo foi lanccedilado abaixordquo (Hist Rom LXX 4) Ἐπὶ τοῦ Ἀντωνίνου λέγεται καὶ φοβερώτατος περὶ τὰ microέρη τῆς Βιθυνίας καὶ τοῦ Ἑλλησπόντου σεισmicroὸς γενέσθαι καὶ ἄλλας τε πόλεις καmicroεῖν ἰσχυρῶς καὶ πεσεῖν ὁλοσχερῶς καὶ ἐξαιρέτως τὴν Κύζικον καὶ τὸν ἐν αὐτῇ ναὸν microέγιστόν τε καὶ κάλλιστον ναῶν ἁπάντων καταρριφῆναι 315 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegamrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV134) 316 I Apol 41-7

60

reinterpretando o rescrito de Adriano317 Desse modo em exigecircncia mediante o que chama de

ldquosatilde razatildeordquo ele sustenta ser justo que os cristatildeos sejam julgados quando porventura vierem a

cometer alguma falta contra a lei ou por algum delito mas nunca por se chamarem ldquocristatildeosrdquo

Eacute em funccedilatildeo do que representava ser ldquocristatildeordquo que o apologista se dedica a algumas

explicaccedilotildees Em sua anaacutelise era por causa do preconceito das crenccedilas pagatildes dos boatos

maliciosos e ainda por certo impulso irracional por parte dos ldquooutrosrdquo que os cristatildeos eram

ofendidos318 O caso de uma mulher que se divorciou do marido pagatildeo narrado na II Apologia

eacute outro exemplo dos atritos corriqueiros que poderiam chegar aos tribunais Segundo o

apologista ldquotodo aquele que eacute repreendido pelo pai vizinho filho amigo marido ou mulher

por causa de uma falta se volta contra [os cristatildeos] por sua obstinaccedilatildeo no mal por seu amor

ao prazer e por sua impotecircncia para seguir o que eacute bomrdquo319 Aleacutem desse caso emblemaacutetico

acontecido havia pouco tempo na cidade de Roma sob Urbico320 ele acrescenta que tais accedilotildees

tambeacutem eram comuns aos governadores em todo o Impeacuterio e que ldquoem todas as partesrdquo havia

quem estivesse disposto a levar os seguidores de Cristo agrave morte321 Em ambas as Apologias

Justino escreve como quem procura alertar o imperador sobre os abusos cometidos contra os

cristatildeos Devido agrave ausecircncia de uma lei geral contra os fieacuteis as accedilotildees anticristatildes aparecem

como fruto dos distuacuterbios locais que emergiam em resistecircncia agrave nova religiatildeo A I Apologia

parece se referir aos atritos gerais contra os cristatildeos enquanto a segunda comeccedila com um

clamor a partir de um caso especiacutefico ocorrido em Roma sob o prefeito Urbico A II Apologia

daacute sinais de que as disputas de Justino com Crescente na capital imperial levavam o

apologista a prever o seu martiacuterio que soacute viria a acontecer no iniacutecio do governo de Marco

Aureacutelio

Marta Sordi322 assim como Robert M Grant323 identifica trecircs fases na poliacutetica

imperial de Marco Aureacutelio mas as duas uacuteltimas extrapolam o contexto em que se insere

Justino A primeira fase se relaciona ao periacuteodo da corregecircncia entre Marco Aureacutelio e Lucio

Vero de 161 a 169 que corresponde em parte aos uacuteltimos anos de Justino Esta fase revela a

princiacutepio a mesma condiccedilatildeo do governo de Antonino Pio mas pode ter sofrido mudanccedilas no

final da deacutecada

317 I Apol 681-10 318 I Apol 23 319 II 12 320 Quintus Lollius Urbicus havia sido incumbido por Adriano na Guerra Judaica (133-135 dC) governou a Germania Menor (136-138 dC) e a Britania (139-142 dC) e foi prefeito de Roma de 146 a 160 dC (Historiae Augustae 54) 321 II 11-2 322 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103 323 Five apologists and Marcus Aurelius Vigiliae Christianae V 42 n 1 Mar1988 pp 1-17

61

Algumas fontes cristatildes (Atas do martiacuterio de Justino 58324 Oroacutesio Historiae Adversus

PaganusVII154325) vinculam a intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo a um edito sobre sacrifiacutecios

Natildeo se tratava de um decreto diretamente contra os cristatildeos A determinaccedilatildeo exigia sacrifiacutecios

aos deuses por todas as cidades do Impeacuterio nos anos de 166168 e devia estar relacionada aos

temores devido agrave peste agrave guerra na Partia e agrave pressatildeo germacircnica326 Justino foi provavelmente

condenado por se negar a obedecer ao novo decreto mas suas Apologias refletem a situaccedilatildeo

dos cristatildeos sob Antonino Pio

Por meio de uma leitura do seu tempo Justino contemplaraacute em seu discurso os

fundamentos desse tipo de accedilotildees Ele apresenta uma desconstruccedilatildeo da forma de controle que

proporciona agreccedilotildees aos cristatildeos e entatildeo oferece uma concepccedilatildeo cristatilde para fundamentar o

estabelecimento da ordem social

O apologista compotildee uma argumentaccedilatildeo para mostrar que a religiatildeo cristatilde poderia

contribuir para a estabilidade da ordem social no Impeacuterio e oferece uma reflexatildeo sobre os

fundamentos da noccedilatildeo de justiccedila na perspectiva cristatilde Por meio do exame do discurso de

Justino identificam-se dois aspectos da relaccedilatildeo entre religiatildeo e controle social no Impeacuterio

Romano contemplados nas accedilotildees anticristatildes de seu tempo O primeiro eacute representado na sua

anaacutelise da repressatildeo aos cristatildeos em funccedilatildeo da preservaccedilatildeo da ordem e o segundo na sua

proposta de contribuiccedilatildeo dos cristatildeos para a manutenccedilatildeo da ordem

324 ldquoAqueles que natildeo desejarem sacrificarem aos deuses e se submeterem ao decreto imperial satildeo condenados primeiro a serem castigados e depois agrave pena capital conforme a leirdquo (Tr A) kai ei=xai tw| tou auvtokragmati( mastigwqevtej avpacqhtwsan( kefalikhn avpotinnuntej dikhn( kata thn twn nomwn avkoluqian) cf Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 p152 325 Eo defuncto Marcus Antoninus solus reipublicae praefuit sed in diebus Parthici belli persecutiones Christianorum quarta iam post Neronem uice in Asia et in Gallia graues praecepto eius exstiterunt multique sanctorum martyrio coronati sunt Cf OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889 326 SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103

62

CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE

MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM

Ao escrever suas Apologias em defesa dos cristatildeos e endereccedilaacute-las ao imperador

Justino se posiciona tanto como um profeta da antiga monarquia de Israel quanto como um

filoacutesofo conselheiro que se prontifica a oferecer conselhos ao governante Eacute possiacutevel

estabelecer uma analogia entre essas duas posturas nesse caso pois para esse pensador o

cristianismo ndash que em certo sentido eacute para os cristatildeos o cumprimento das expectativas de

Israel ndash eacute a ldquoverdadeira filosofiardquo327 Eacute a partir dessa sua perspectiva cristatilde que ele analisa a

forma romana de garantir o estabelecimento da ordem no tocante agrave religiatildeo e que manifesta

suas razotildees para se opor agrave religiatildeo pagatilde

Sua construccedilatildeo apologeacutetica contrasta tal forma de controle romana que acaba por

vitimar os cristatildeos agrave contribuiccedilatildeo cristatilde para a ordem social Seus pronunciamentos agraves vezes

satildeo muito diretos aos governantes ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem

e natildeo tenhais a quem castigar coisa que conviria melhor a verdugos do que a priacutencipes

bonsrdquo328 Na verdade o problema central incide sobre as formas de controle sociais

empregadas para a repressatildeo da expansatildeo dessa nova religiatildeo Por isso os argumentos de

Justino tecircm por objetivo combater algumas das principais queixas sobre os cristatildeos e tambeacutem

informar sobre o caraacuteter de suas crenccedilas e estilo de vida

Nessa parte da pesquisa seraacute analisada a forma como o apologista tece suas criacuteticas ao

procedimento romano contra a religiatildeo cristatilde e agrave postura dos cristatildeos diante dessas outras

religiotildees A proposta de Justino sobre os fundamentos cristatildeos para o controle social seraacute

examinada no proacuteximo capiacutetulo Sua interrogaccedilatildeo eacute a mesma que ainda voltou agrave tona no

seacuteculo XX com G E M de Ste Croix329 em 1963 com A N Sherwin-White330 em 1964 e

com o proacuteprio Ste Croix331 em uma treacuteplica ldquoWhy were the Early Christians persecutedrdquo

Segundo GEM de Ste Croix as perseguiccedilotildees aos cristatildeos eram decorrentes

basicamente da recusa desse grupo em reconhecer os deuses de Roma acarretando uma

situaccedilatildeo de suspeitas de sediccedilatildeo e periculosidade social Os deuses tradicionais do panteatildeo

greco-romano eram as divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma e seus cultos eram

327 II Apol 152 328 I Apol 124 329 Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p6-38 330 Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 331 Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 p28-33

63

uma necessidade para a manutenccedilatildeo da pax deorum [paz dos deuses]332 A perseguiccedilatildeo se

relacionaria ao sentimento religioso da eacutepoca supersticiosa na qual eles viviam333

A N Sherwin-White334 de modo diverso desviou a tocircnica da perseguiccedilatildeo da questatildeo

da pax deorum e lanccedilou seu olhar agrave contumaacutecia dos cristatildeos em se manterem fieacuteis agraves suas

crenccedilas exclusivistas diante do panteatildeo greco-romano Tal postura teria sido interpretada em

muitos momentos como um desafio agraves autoridades romanas Desse modo atrairiam para si

mesmos acusaccedilotildees e suspeitas em decorrecircncia de sua potencial insubordinaccedilatildeo conforme

pode ser visto nas Cartas de Pliacutenio o Jovem a Trajano335

A treacuteplica de GEM Ste Croix336 natildeo colocou um ponto-final na questatildeo e

incomodou a outros estudiosos contemporacircneos Segundo Paul Veyne as comunidades cristatildes

enfrentaram resistecircncias devido agrave aversatildeo romana ldquoao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguordquo337

O fato de o grupo ser ainda pouco conhecido e sustentar a veneraccedilatildeo a um ldquoreirdquo na esperanccedila

de um reino torna a situaccedilatildeo ainda mais complicada Tal hibridez alegada seria notada tendo

em vista que embora possuindo as mesmas categorias de pensamentos dos demais cidadatildeos do

Impeacuterio Romano

os cristatildeos faziam parte do Impeacuterio mas sem os mesmos costumes evitavam conviver com os outros natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo veneravam os deuses nacionais seu Deus natildeo pertencia agrave determinada naccedilatildeo diferente do deus dos judeus Aleacutem de querer se isolar como uma legiacutetima diferenccedila nacional esse Deus pretendia superar os deuses nacionais338

Nesse sentido as perseguiccedilotildees teriam sido causadas pela rejeiccedilatildeo a algo pouco

definido anormal capaz de produzir inseguranccedilas e exigir uma medida cautelar E para

justificar as accedilotildees persecutoacuterias os romanos lanccedilavam matildeo de argumentos tradicionais como

o respeito ao mos maiorum [os costumes ancestrais] e o respeito agrave unidade religiosa e moral

da coletividade

Mesmo apresentando explicaccedilotildees diferentes sobre as perseguiccedilotildees as consideraccedilotildees

de Sherwin-White Ste Croix e Paul Veyne natildeo satildeo completamente opostas Se por um lado

observamos a posiccedilatildeo obstinada dos cristatildeos em manter a sua religiatildeo a ponto de se tornar

332 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p 24 333 Ibid 1963 pp 29-31 Cf DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963 334 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n 27 1964 pp 25 335 Pliacutenio Segundo Cartas X 96-97 336 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 337 VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 338 Ibid p 246

64

uma desobediecircncia contra as autoridades imperiais por outro a religiatildeo romana se baseava na

manutenccedilatildeo do equiliacutebrio das relaccedilotildees entre o Impeacuterio Romano e os deuses tradicionais

Essas explicaccedilotildees decorrem de uma anaacutelise geral das accedilotildees anticristatildes do I ao IV

seacuteculo Um exame mais localizado ndash e em niacuteveis menos oficiais ndash poderia multiplicar as

razotildees pelas quais os cristatildeos foram perseguidos ou chamar a atenccedilatildeo para o fator psicoloacutegico

desses atritos religiosos Essa pesquisa no entanto limitar-se aos aspectos que possibilitem

uma leitura das accedilotildees anticristatildes a partir das Apologias de Justino

O apologista tambeacutem se propotildee a responder a esta questatildeo ldquoPor que os cristatildeos satildeo

perseguidosrdquo Sua leitura teoloacutegica da histoacuteria procura chegar agrave causa uacuteltima motivadora das

accedilotildees anticristatildes desenvolvendo uma trama apologeacutetica que relaciona controle social e

religiatildeo Para compreender suas formulaccedilotildees conveacutem analisar esse conceito chave

ldquoControle socialrdquo pode ser definido como ldquoo conjunto dos recursos materiais e

simboacutelicos que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de

seus membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo339 O termo de

modo geral eacute frequentemente usado para se referir a alguma forma de reaccedilatildeo organizada ao

comportamento pervertido Essa abordagem eacute baseada o trabalho de Stan Cohen que definiu

controle social como ldquorespostas organizadas ao crime delinquecircncia e formas aliadas de

perversatildeo eou comportamento socialmente problemaacutetico os quais satildeo atualmente concebidos

se no reativo sentido (depois do putativo ato ter tomado espaccedilo ou o ator ter sido identificado)

ou no proativo sentido (para prever os atos)rdquo340

A definiccedilatildeo usada por Donald Black341 eacute muito semelhante Ele assinalou que

ldquocontrole social eacute o aspecto normativo da vida social ou a definiccedilatildeo de comportamento

pervertido e a resposta a ele tal como proibiccedilotildees acusaccedilotildees puniccedilotildees e compensaccedilatildeordquo

Segundo esta afirmaccedilatildeo controle social se refere aos mecanismos determinantes usados para

regular a conduta das pessoas que satildeo vistas como pervertidas criminosas preocupantes ou

problemaacuteticas em algum sentido para os outros Todo tempo os sentidos nos quais diferentes

culturas entendem e respondem a diferentes formas de mudanccedilas e ajustes de comportamentos

problemaacuteticos

A causa desses problemas pode ser atribuiacuteda agrave criminalidade perversatildeo imoralidade

maldade perversidade ou alguma combinaccedilatildeo desses Similarmente os mecanismos

empregados para alcanccedilar o controle podem incluir formas variadas de puniccedilatildeo tratamento

339 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 340 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 p 3 341 BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press 1976 pp 1-2

65

dissuasatildeo segregaccedilatildeo ou prevenccedilatildeo342 Desse modo se a combinaccedilatildeo de fatores eacute usada para

compreender e reatar o problema o objetivo eacute promulgar o controle sobre o comportamento

que eacute visto como pervertido em algum sentido

A complexidade do tema se manifesta ainda quando R Meier343 considera que

controle social pode ser encontrado em trecircs principais contextos a) como uma descriccedilatildeo da

condiccedilatildeo ou processo social baacutesico ndash definiccedilatildeo dominante na teoria socioloacutegica claacutessica ndash b)

como um mecanismo para assegurar o cumprimento das normas e c) como um meacutetodo pelo

qual estudar (ou interpretar dados sobre) a ordem social Cohen retoma Joseph Rouceck344

que escreveu em 1947 entendendo controle social como ldquoum termo coletivo para aqueles

processos planejados ou natildeo planejados pelos quais indiviacuteduos satildeo ensinados ou compelidos

a conformar os usos e valores vitais dos gruposrdquo E A Horwitz345 que considerava que o

ldquocontrole social emerge da vida e das praacuteticas sociais e serve para manter o sentido da vida e

das praacuteticas sociais dos gruposrdquo Muitos diriam que tal descriccedilatildeo se aproxima mais dos

processos de socializaccedilatildeo E natildeo eacute preciso ir muito longe para perceber que os dilemas desse

conceito podem vir a ser complexos Tatildeo logo manifesta-se a necessidade de estabeler os

limites desse termo de modo que natildeo seja tatildeo limitado e que tambeacutem natildeo seja tatildeo amplo a

ponto de natildeo ser reconhecido

Segundo a anaacutelise de Martin Innes346 a definiccedilatildeo de Cohen permanece muito flexiacutevel

para mostrar a promulgaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social pelo Estado ou por agentes

profissionais autocircnomos tais como funcionaacuterios de corporaccedilotildees privadas e psiquiatras As

pessoas tendem a usar outros meios antes de recorrer ao aparato formal estabelecido de

controle social subcolocados como satildeo pela lei Mais conflitos satildeo resolvidos sem recursos da

lei ou controle social formal Uma soluccedilatildeo eacute frequentemente negociada ou a perversatildeo

tolerada e a imposiccedilatildeo do controle social tende a ser uma funccedilatildeo de elevada distacircncia

relacional Por isso a extensatildeo do desempenho do controle social atinge tambeacutem um caraacuteter

informal na sociedade

A definiccedilatildeo de controle social como uma resposta organizada a comportamentos

pervertidos natildeo eacute consensual Mas na busca por uma definiccedilatildeo que se adapte aos objetivos

desse trabalho seratildeo levadas em consideraccedilatildeo as proposiccedilotildees de Martin Innes347 Ele sintetiza

342 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 passim 343 MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology 1982 8 pp 35ndash55 344 Social Control Westport CT Greenwood Press 1970 p 3 345 The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990 p 5 346 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 347 Ibid

66

os aspectos da definiccedilatildeo de Cohen em uma abordagem revisionista Seu argumento eacute que

controle social pode ser pensado como um conceito-mestre composto de uma raiz de

diferentes modos de controle e tecnologias

Para estabelecer os limites desse conceito de controle social tambeacutem eacute necessaacuterio

estabelecer conceitos paacutereos como ldquoordem socialrdquo Segundo Erwin Goffman348 as relaccedilotildees

regulares entre as pessoas os variados padrotildees de funcionamento variadamente motivados

de comportamento as rotinas associadas com regras baacutesicas juntos constituem o que pode ser

chamada de uma ldquoordem socialrdquo

Baseando-se nesta definiccedilatildeo pode-se distinguir entre o significado de ordem social e

controle social A promulgaccedilatildeo de controle social eacute frequentemente destinada a proteger a

ordem social mas ordem social natildeo eacute unicamente produto de controles sociais Ao contraacuterio

o conceito de ordem social se refere agraves condiccedilotildees de existecircncia de uma sociedade De fato

toda sociedade tem intrinsecamente um grau de organizaccedilatildeo e entatildeo uma ordem social Uma

ordem social natildeo eacute estaacutetica estaacute constantemente em processo sendo produzida e reproduzida

pela combinaccedilatildeo de atitudes valores praacuteticas instituiccedilotildees e accedilotildees de seus membros

Entatildeo a ordem social eacute composta de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees

as quais de alguma forma contribuem para a constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social As

fronteiras entre as praacuteticas de organizaccedilatildeo social e controles sociais natildeo satildeo fixas nem

estaacuteveis e ao longo do tempo mudam de equiliacutebrio Pois se ordem social se refere ao estado

da sociedade e ao arranjo organizado de seu essencial conhecimento valores accedilotildees

instituiccedilotildees e estabelecimentos controle social se refere aos processos pelos quais se busca

gerir desvios ou conflitos com a ordem social Essas formas de gerenciamento podem ser

formais ou seja institucionalizadas ou informais

Controle social formal se refere a alguma ocasiatildeo onde a imposiccedilatildeo do controle eacute

baseada sobre ou informada por a presenccedila da lei Outras atividades de controle podem ser

definidas como tipo informal349 Dentre essas formas de controle tambeacutem eacute possiacutevel distinguir

os modos reativos e os proativos O primeiro tipo eacute aquele usado para responder algumas

coisas depois que elas tecircm tomado espaccedilo O segundo envolve o caacutelculo da probabilidade de

um ato ocorrer no mesmo ponto no futuro e a manufatura de alguma forma de intervenccedilatildeo em

antecipaccedilatildeo deste Essa eacute uma forma preditiva de controle Tambeacutem eacute possiacutevel distinguir entre

formas de controle social ldquoverticalrdquo para falar sobre o poder diferencial que frequentemente

existe entre controladores e os controlados Controle social para baixo eacute mais comum

348 GOFFMAN E Relations in Public New York Basic Books 1971 p x 349 Cf BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press passim

67

envolvendo alguns com mais poder ou autoridade de regulaccedilatildeo do comportamento de

indiviacuteduos ou grupos menores Contudo o controle social tambeacutem pode ser ldquoupwardsrdquo [para

cima] envolvendo os menos poderosos moldando o comportamento de indiviacuteduos ou grupos

mais poderosos

Eacute numa perspectiva ldquode baixo para cimardquo que Justino questiona a forma de controle

empreendida pelos governantes romanos quando agem contra os cristatildeos Essa perspectiva

contempla as condiccedilotildees do grupo minoritaacuterio daqueles que satildeo considerados adeptos de uma

superstito digna de ser combatida por aqueles que detecircm os meios de controle e dessa forma

eacute produzido um instrumento de controle que busca ldquoconvencerrdquo e intimidar as autoridades e a

todos os demias a natildeo se oporem aos cristatildeos Embora reconheccedila que os governantes satildeo

constituiacutedos por Deus eacute aquilo que ele chama de ldquoreta razatildeordquo que lhe daacute o direito de se

pronunciar350 As autoridades romanas soacute satildeo buscadas porque os conflitos cotidianos quanto

agraves diferenccedilas religiosas produziram atritos e inquietaccedilotildees que abriram margem para que os

romanos aplicassem coaccedilotildees ldquoformaisrdquo Ao questionar a intervenccedilatildeo imperial para a

manutenccedilatildeo da ordem o apologista revela refugiar-se em um padratildeo de justiccedila distinto

daquele dos romanos Em seus escritos ele tambeacutem manifesta uma perspectiva cristatilde da

ordem que seraacute analisada no proacuteximo capiacutetulo

Para se compreender as proposiccedilotildees de Justino seratildeo examinados os seguintes

aspectos a criacutetica aos governantes no processo de manutenccedilatildeo da ordem no tocante aos

cristatildeos as diferenccedilas entre os cristatildeos e as outras religiotildees e sua criacutetica sobre as leis e a

moralidade

31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem

Na I Apologia logo apoacutes o exoacuterdio Justino procura justificar suas razotildees agraves

autoridades agraves quais se refere em peticcedilatildeo Ele escreve que

todo homem sensato manifestaraacute que a melhor exigecircncia ou ainda mais que a uacutenica exigecircncia justa eacute que os suacuteditos possam apresentar uma vida e um pensar irrepreensiacuteveis e que por outro lado igualmente os mandantes deem sua sentenccedila

350 ldquoA razatildeo exige dos que satildeo verdadeiramente piedosos e filoacutesofos que desprezando as opiniotildees dos antigos se estas satildeo maacutes estimem e amem apenas a verdade De fato o raciociacutenio sensato natildeo soacute exige que se abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente mas tambeacutem que o amante da verdade de todos os modos e acima da proacutepria vida mesmo que seja ameaccedilado de morte deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiccedilardquo (I Apol 12)

68

natildeo levados pela violecircncia e tirania mas segundo a piedade e a filosofia Soacute assim governantes e governados podem gozar de felicidade351

O bom procedimento dos suacuteditos conjugado agrave postura iacutentegra de justiccedila daqueles que

tecircm autoridade aparece como condiccedilatildeo para que ldquogovernantesrdquo e ldquogovernadosrdquo desfrutem da

felicidade O que mais chama atenccedilatildeo eacute a seguinte expressatildeo ldquoem algum lugar um dos

antigos disse lsquoSe os governantes e os governados natildeo forem filoacutesofos natildeo eacute possiacutevel os

Estados prosperaremrsquordquo352 Tanto Munier353 quanto Minns e Parvis354 identificam esse trecho

como uma citaccedilatildeo de Platatildeo (Repuacuteblica V 473) Na obra de Platatildeo fica claro o apontamento

da necessidade de que os governantes adiram ao cultivo da sabedoria numa junccedilatildeo de

δύναmicroίς τε πολιτικὴ καὶ φιλοσοφία [poder poliacutetico e filosofia] para que natildeo haja problemas

sociais

Justino ressignifica o conceito de ldquofilosofiardquo a partir da sua experiecircncia cristatilde Desse

modo aqueles que satildeo ldquopiedosos e filoacutesofosrdquo como satildeo chamados o imperador e seus filhos

deveriam julgar com retidatildeo para que todos gozem de bem estar

Haacute vaacuterias hipoacuteteses para justificar o tiacutetulo ldquoPiordquo de Antonino Uma hipoacutetese eacute que esse

nome lhe fora dado por ter defendido a deificaccedilatildeo dedicaccedilatildeo de um templo e concessatildeo de

inuacutemeras honras a Adriano Outras hipoacuteteses levam em conta seu caraacuteter e sua maneira de

ser355 ldquoVerissimusrdquo356 era uma denominaccedilatildeo de Marco Annio Vero que viria a ser o

Imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto O modo como esse apelido eacute empregado

no texto indica provavelmente uma estrateacutegia retoacuterica de Justino Marco era

reconhecidamente chamado de ldquofiloacutesofordquo357 Seus proacuteprios escritos eliminam qualquer

indagaccedilatildeo Poreacutem quando Luacutecio eacute chamado de ldquofiloacutesofordquo isso pode soar estranho Mas antes

de se rejeitar esse tiacutetulo eacute mais prudente tentar compreender se existe uma ligaccedilatildeo isotoacutepica

com a estrutura do texto Se os tiacutetulos ldquoPiordquo e ldquofiloacutesofordquo respectivamente de Antonino e de

Marco Aureacutelio apresentam um forte viacutenculo com a construccedilatildeo do cerne da obra haacute boa razatildeo 351 I Apol 32 Cf Kalhn de kai monhn dikaian proltsgtklhsin tauthn paj o` swfronwn avpofaneitai( to touj avrcomenouj thn euvqunhn tou eautwn biou kai logou alhpton parecein( o`moiwj drsquoauv kai touj arxontaj mh bia| mhde turannidi( avllrsquo euvsebeia| kai filosofia| avkolouqountaj thn yhfon tiqesqai ou[twj gar avrcontej kai oi` avrcomenoi avpolauoien tou avgaqou) MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 352 I Apol 33 Cf An mh oi` arcontej filosofhswsi [kai oi` avrcomenoi]( ouvk av eih taj poleij euvdaimonhsai) Cf MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 353 MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p 172 354 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 85 355 Hist Aug Antoninus Pius 21-10 356 Ele foi carinhosamente chamado ldquoVeriacutessimordquo [Ouvrissiacutemon] como apontou Cassius Dio (Hist Rom 69212) e como aparece tambeacutem na Hist Aug I41 357 Hist Aug Marcus Aurelius 15-9

69

para buscar uma hipoacutetese que aluda agrave possiacutevel relaccedilatildeo do tiacutetulo de Luacutecio com o restante do

texto

Luacutecio foi adotado por Antonino ao mesmo tempo em que Marco e se tornou Luacutecio

Aeacutelio Aureacutelio Commodo Com a morte de seu pai adotivo recebeu o tiacutetulo de Imperador

Ceacutesar como esse seu irmatildeo mas a dimensatildeo do seu poder eacute amplamente questionada Minns e

Parvis358 consideram que nos tempos de sua ldquosaiacutedardquo para as regiotildees do Impeacuterio em 153 ou

154 poderia ser mais prudente incluiacute-lo entre os destinataacuterios Ele eacute chamado de ldquofiloacutesofo

[filosofw|] filho natural de Ceacutesarrdquo no MS A e de filosofou kaisaroj fush| ui`w| [Filho

natural do filoacutesofo Ceacutesar] por Euseacutebio359 Esse tiacutetulo natildeo poderia ser atribuiacutedo ao pai

bioloacutegico de Luacutecio Segundo os registros da Historia Augusta seu pai Luacutecio Aeacutelio Vero

recebeu realmente o tiacutetulo de Ceacutesar do Imperador Adriano mas morreu sem chegar ao posto

elevado Por outro lado haacute evidecircncias suficientes para Justino chamar a Luacutecio filho natural

de Ceacutesar e filho de Pio por adoccedilatildeo de ldquoamante do saberrdquo o que equivaleria a dizer que tinha

uma formaccedilatildeo baacutesica

O tiacutetulo ldquofiloacutesofordquo natildeo se referia a apenas um exiacutemio pensador O filoacutesofo podia ser

algueacutem que se dedicava aos assuntos filosoacuteficos que frequentava alguma escola ou grupo de

discussatildeo ou algueacutem de reconhecido destaque intelectual podendo ser considerado ateacute um

embaixador em assuntos poliacuteticos360 Luacutecio poreacutem natildeo apresentou dons naturais para os

estudos literaacuterios Compocircs versos e oraccedilotildees mas suas habilidades poeacuteticas eram muito

limitadas Haacute quem diga que ele foi ajudado pela inteligecircncia de seus amigos e que muitas das

coisas creditadas a ele foram escritas por outros361 A despeito de Luacutecio ser ndash ou natildeo ndash

reconhecidamente um filoacutesofo essa denominaccedilatildeo podia render uma associaccedilatildeo desses nomes

ao cultivo do saber em geral e da piedade Se por outro lado o tiacutetulo de filoacutesofo viesse a ser

improacuteprio comparado agrave pertinecircncia da forma como Marco Aureacutelio eacute chamado abre-se espaccedilo

para uma nova hipoacutetese Seria esta uma estrateacutegia para chamar a atenccedilatildeo para as proacuteximas

colocaccedilotildees quando o apologista destaca aqueles que dizem ser filoacutesofos e natildeo o satildeo Mais do

que isso o apologista precisa de um elemento que viabilize a abertura de um espaccedilo textual

para a apresentaccedilatildeo do que ele considera ldquoa verdadeira filosofiardquo isto eacute o cristianismo

358 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 38-39 359 Hist Ecle IV121ss 360 DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940 361 Hist Aug Lucius Verus 21ss

70

Justino conheceu vaacuterias correntes filosoacuteficas Uma variedade de escolas poderia ser

encontrada pelo Impeacuterio Euseacutebio362 o chamou de ldquoamante da verdadeira filosofiardquo No

Diaacutelogo com Trifatildeo363 a filosofia eacute por ele reconhecida como ldquoo maior e mais precioso bem

diante de Deus para o qual somente ela conduz e nos associardquo Esses ensinamentos satildeo

considerados ldquosuperiores a toda filosofia humanardquo364 e reconhecidos como ldquoa filosofia segura

e proveitosardquo365 Dessa forma o pensamento cristatildeo eacute revestido de uma aacuteurea de

superioridade capaz de fundamentar sua teoria e sua criacutetica ao modo romano de repelir os

fieacuteis

Em sua leitura teoloacutegica da histoacuteria e dos problemas religiosos do seu tempo o

apologista procura a razatildeo uacuteltima que fundamenta a accedilatildeo humana para aquilo que eacute ldquobomrdquo e

para as accedilotildees de oposiccedilatildeo agrave feacute Eacute trabalhoso encontrar uma definiccedilatildeo para o que eacute ser ldquobomrdquo

segundo seu modo de pensar Sabe-se poreacutem que os cristatildeos satildeo tidos como os que buscam

aquilo que eacute ldquobomrdquo e que por isso natildeo haacute nenhuma razatildeo para persegui-los Aquilo que eacute

ldquobomrdquo pode ser experimentado de forma parcial por aqueles que natildeo satildeo cristatildeos mas essa

experiecircncia deriva de uma mesma fonte coacutesmica da ldquobondaderdquo Por isso ele sustenta que tudo

o que pode ser chamado ldquobomrdquo entre os filoacutesofos e legisladores elaborado por eles mediante

a investigaccedilatildeo e a instituiccedilatildeo foi comunicado pela parcela do Logos que lhes coube De outro

modo Justino afirma que por natildeo conhecerem plenamente o Logos que eacute Cristo eles

frequentemente se contradizem Em seu ponto de vista outrora muitos pensadores que

tentaram investigar e demonstrar as coisas por meio dessa ldquorazatildeordquo tambeacutem foram levados ao

tribunal como Soacutecrates

Em oposiccedilatildeo ao que eacute ldquobomrdquo uma forccedila oposta aparece como a propiciadora do

engano Eacute esse o elemento uacuteltimo responsaacutevel pelo desvirtuamento da sintonia com aquilo

que eacute ldquobomrdquo e que promove as accedilotildees ldquoinjustasrdquo das autoridades Ele escreve ldquoVoacutes poreacutem

natildeo examinais nossos juiacutezos mas movidos de paixatildeo irracional e aguilhoados por democircnios

perversos nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por issordquo366

Segundo sua teoria satildeo os democircnios os uacuteltimos responsaacuteveis por espalhar a ignoracircncia e

mover as autoridades contra os cristatildeos

Sob essa perspectiva ele destaca a transparecircncia cristatilde e a disposiccedilatildeo paciacutefica desse

grupo diante da autoridade imperial ao dever dos governantes

362 Hist Ecles IV83 363 Diaacutelogo com Trifatildeo 21 364 II Apol 153 365 Diaacutelogo com Trifatildeo 81 366 I Apol 51

71

Cabe a noacutes portanto expor ao exame de todos a nossa vida e os nossos ensinamentos para que natildeo nos tornemos responsaacuteveis pelo castigo daqueles que ignorando a nossa religiatildeo pecam por cegueira contra noacutes Contudo o vosso dever eacute tambeacutem ouvir-nos e mostrar-vos bons juiacutezes Com efeito daqui para frente informados como estais caso natildeo ajais com justiccedila natildeo tereis nenhuma desculpa diante de Deus367

A lealdade dos cristatildeos natildeo era algo evidente e por isso eacute uma das principais

preocupaccedilotildees do apologista ratificaacute-la Justino assinala que havia suposiccedilotildees inclusive de

que os cristatildeos arquitetavam algum tipo de irrupccedilatildeo de outro ldquoreinordquo quando de fato falavam

do ldquoreino de Deusrdquo em todos os seus aspectos espirituais (I Apol 111) A nova religiatildeo jaacute se

espalhava pelo Impeacuterio havia um seacuteculo mas eacute provaacutevel que natildeo tivesse alcanccedilado um

nuacutemero expressivo de fieacuteis Aleacutem disso ainda natildeo existia uma estrutura eclesiaacutestica bem

formada O marcionistas os valentinianos e outros grupos tornavam a questatildeo da identidade

cristatilde um assunto das apologias justinianas e de outros escritores e pregadores que pretendiam

definir quem eram os ldquocristatildeosrdquo

32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus

Na verdade o exclusivismo caracteriacutestico do monoteiacutesmo cristatildeo contrastava com a

religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio As accedilotildees importantes do Estado sempre envolviam rituais

sagrados Comemoraccedilotildees de vitoacuterias e triunfos do exeacutercito normalmente culminavam em

procissotildees e sacrifiacutecios E a proacutepria estabilidade social dependia de uma barganha feita com

os deuses para a manutenccedilatildeo da paz368

Os variados rituais produziam interaccedilotildees entre deuses e homens na religiatildeo romana

Por meio deles eram marcados todos os eventos puacuteblicos e celebraccedilotildees que envolviam

festivais anuais os juramentos ou aniversaacuterios das fundaccedilotildees de templos Tambeacutem podiam

estar relacionados aos jogos ou agraves performances dramaacuteticas que tinham elementos rituais em

seu programa ainda que incluiacutessem o entretenimento entre seus propoacutesitos Os jogos jamais

perderam seu aspecto ritual Cria-se que nessas ocasiotildees os deuses desciam para assisti-los e

entatildeo eram realizados rituais religiosos inclusive representados perfeitamente para que a

cerimocircnia fosse bem sucedida De modo geral tambeacutem os sacrifiacutecios eram feitos estritamente

367 I Apol 34 368 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35

72

segundo regras e tradiccedilotildees que necessariamente tinham de ser respeitadas369 Os prodiacutegios

envolviam quase todos os grupos de influecircncia nas decisotildees estatais ndash os coleacutegios sacerdotais

o senado os magistrados e ocasionalmente o povo nas comitia370

A criaccedilatildeo de novos lugares sagrados sejam templos propriamente ditos ou santuaacuterios

com um altar era tema de interesse puacuteblico e conflito potencial371 Alguns templos eram fruto

de promessas de generais em batalhas Com o tempo expandiram-se pelo espaccedilo urbano

representando uma imagem visiacutevel do domiacutenio romano sobre o Mediterracircneo e assinalando a

contribuiccedilatildeo de novos e antigos deuses em cada estaacutegio dessa conquista

Os rituais religiosos estavam intimamente ligados agraves demais atividades de guerra e

paz Desse modo a aprovaccedilatildeo de uma lei ou a eleiccedilatildeo de magistrado eram atos que envolviam

a tomada dos augures responsaacuteveis pelo sistema especial de regras que os controlavam o ius

augurale372 Os limites dessa religiosidade natildeo satildeo muito bem definidos Mas tanto o povo

quanto os magistrados demonstravam respeito pelas obrigaccedilotildees religiosas

A religiatildeo e os deuses estavam entre os fatores importantes na determinaccedilatildeo dos

eventos e na garantia de suas reivindicaccedilotildees de autoridade e comando dos agentes puacuteblicos

romanos Era tambeacutem uma das expressotildees da ideologia da elite romana e da manutenccedilatildeo do

poder E ainda como escreve Claudia B Rosa

ao mesmo tempo eram os rituais que garantiam as relaccedilotildees entre dois grupos homens e deuses Garantir os ritos representava a certeza da manutenccedilatildeo da sociedade como a queriam ordenada e segura Ao registrar as regras de comportamento como o respeito aos deuses sobretudo em seus espaccedilos ao curvar-se sob a autoridade dos rituais o cidadatildeo garantia a ordem social e a pax deorum e as praacuteticas que acarretavam a transgressatildeo agrave ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e agrave desagregaccedilatildeo A concoacuterdia entre homens e deuses eacute a garantia da ordem romana373

No I seacuteculo aC Augusto se tornou membro de todos os coleacutegios sacerdotais

assumindo o papel de pontifex maximus liderando os demais sacerdotes Se esta interpretaccedilatildeo

for correta ela representa a nova e revolucionaacuteria ordem religiosa do periacuteodo imperial e todos

os seus sucessores foram tambeacutem pontifices maximus ateacute o seacuteculo IV aC Desde entatildeo o

imperador se via responsaacutevel pela construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de templos O poder religioso e o

poder poliacutetico se assentaram sobre um mesmo indiviacuteduo no novo regime do Impeacuterio374

369 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 370 Assembleia dos cidadatildeos romanos 371 ROSA Claudia Beltratildeo Op cit p 144 Ciacutecero indica duas ocasiotildees em que tentativas de dedicaccedilotildees foram canceladas pelos pontiacutefices porque natildeo haviam sido aprovadas pelos comitia (De domo sua 136) 372 LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 1986 pp 2146-312 373 ROSA C B Op cit p 145-146 374 Ibid p 147

73

Conforme escreveu Paul Veyne375 ldquoO Estado com certeza exercia sua autoridade sobre os

cidadatildeos que lhe deviam tudo Mas mesmo assim apenas em circunstacircncias excepcionais

um decreto obrigaria cada cidadatildeo a tomar parte numa cerimocircnia puacuteblica []rdquo Devia-se no

entanto zelar pela pax deorum para a prosperidade e seguranccedila no Impeacuterio376

Natildeo havia uma ldquodependecircnciardquo humana em ralaccedilatildeo aos deuses o que existia era o

reconhecimento da superioridade daqueles seres que viviam entre os humanos Esse

reconhecimento cuacuteltico piedoso estava relacionado agrave barganha Esperava-se conhecer o

futuro escapar do perigo obter boas colheitas ter boa sauacutede sem que isso significasse que os

deuses estariam agrave disposiccedilatildeo a todo instante377

As accedilotildees de Augusto podem evidenciar uma estreita conexatildeo com episoacutedios de

restauraccedilatildeo e especialmente com as recorrentes observaccedilotildees de que as tradiccedilotildees ancestrais

estavam sendo perdidas ou abandonadas O ldquoculto imperialrdquo passa a representar uma novidade

no iniacutecio do Impeacuterio Se os apelos agrave restauraccedilatildeo das crenccedilas e tradiccedilotildees eram presentes nos

discursos natildeo se pode falar em uma nova forccedila religiosa ou uma nova religiatildeo no periacuteodo

imperial

Essas praacuteticas religiosas proporcionaram choques com judeus e depois com os

cristatildeos Sendo monoteiacutestas era impossiacutevel aceitar a inclusatildeo de deuses e cultos Os judeus

sacrificavam em prol do imperador e natildeo para o imperador jaacute os cristatildeos recusavam-se a

participar de qualquer sacrifiacutecio Considerando que os altares ao imperador eram colocados

muito proacuteximos ao tribunal do magistrado que ouvia os seus casos pode-se pensar que tal

sacrifiacutecio ao chefe do Impeacuterio era mais simboacutelico do que de adoraccedilatildeo e funcionava como sinal

de lealdade a Roma378 Secircneca em sua Apocolocyntosis do Divino Claacuteudio escrita

provavelmente no iniacutecio do reinado de Nero apresenta conotaccedilotildees negativas a respeito da

deificaccedilatildeo dos governantes em geral o que indica que existiam aqueles que natildeo viam com

bons olhos o processo de deificaccedilatildeo do governante Mas para a populaccedilatildeo geral do Impeacuterio

natildeo havia problemas em aceitar que o imperador pudesse ser tratado como um deus

A partir da sua expansatildeo e domiacutenio por um vasto territoacuterio o poder romano teve que

lidar com os problemas de integraccedilatildeo das regiotildees conquistadas Conforme tem destacado

375 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 244 376 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 p 15 377 MACMULLEN Ramsay Christianizatin the roman empire (AD 100-400) New Haven Yale University Press 1984 p 13 378 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 150

74

Claudia M Beltratildeo379 o mapa da peniacutensula Itaacutelica o Oriente Proacuteximo o norte da Aacutefrica e

Europa conformam uma rede que se aglutina em torno de Roma constituindo um espaccedilo

dinacircmico de interconexatildeo espaccedilo no qual se daratildeo variados modos de relaccedilatildeo Essa complexa

relaccedilatildeo exigia tambeacutem uma forma de lidar com os cultos estrangeiros

A cultura romana tornou-se sinteacutetica e sintetizante e relativamente favoraacutevel agrave

incorporaccedilatildeo de cultos estrangeiros Roma natildeo apenas se tornou o centro poliacutetico do mundo

por ela construiacutedo como tambeacutem passou a abrigar o nuacutecleo das religiotildees Segundo a anaacutelise

de Ceciacutelia Ames380 o caraacuteter sinteacutetico da religiatildeo romana que combina rito paacutetrio rito grego

e disciplina etrusca facilitou aos romanos a integraccedilatildeo de cultos estrangeiros e a difusatildeo de

seu proacuteprio sistema nos territoacuterios constituindo-se em um elemento chave na relaccedilatildeo destes

espaccedilos interconectados Sua toleracircncia e flexibilidade no entanto tambeacutem incluiacuteam

mecanismos para regular o fluxo de ideias e praacuteticas estrangeiras381 O senado era o oacutergatildeo

responsaacutevel por velar e vigiar da tradiccedilatildeo e da religiatildeo A necessidade de controle cresce junto

com a expansatildeo dos domiacutenios de Roma

Dentro da sua anaacutelise Justino se incomoda com o fato de que no meio de um universo

tatildeo vasto de culturas que se encontram no Impeacuterio Romano os cristatildeos sejam muitas vezes

odiados e levados agrave morte Para o apologista essa eacute mais uma evidecircncia da ignoracircncia

disseminada pelos maus democircnios que faz com que de algum modo as crenccedilas cristatildes sejam

tachadas de irracionais Enquanto isso ldquoalguns cultuam aacutervores rios382 ratos gatos

crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionaisrdquo de modo que todos satildeo iacutempios entre si por

natildeo terem a mesma religiatildeo (I Apol 241) O apologista na verdade aponta aquilo que

considera ser uma incoerecircncia nessa estrutura intercultural

Estaacute evidente que sua anaacutelise eacute dependente da sua loacutegica cristatilde mas Luciano de

Samosata tambeacutem apontava no seacuteculo II dC a ldquoconfusatildeordquo causada pelas diferentes opiniotildees

sobre os Deuses383 Plutarco um pouco antes anotara que a adoraccedilatildeo a diferentes formas de

379 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 151 380 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 p 342 381 Cf MACMULLEN R Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 382 Sextus Empiricus cita a afirmaccedilatildeo de Prodicus de que ldquoos antigos tinham como deus o sol a lua os rios e as primaveras [] assim como os Egiacutepicios deificavam o Nilordquo (Adversus Dogmaticos I18) apud MINNS PARVIS Op cit p 143 383 Juppiter Tragoedus 42

75

animais causava disputas entre seus adoradores384 Juvenal385 tambeacutem menciona que a

contenda se instalava na vizinhanccedila egiacutepcia quando um odiava o deus do outro e sustentava

que somente o seu deus predileto era o deus verdadeiro Essas diferenccedilas poderiam causar

ainda deboches sobre os deuses alheios entre os diferentes povos no Impeacuterio assim como

Clemente de Alexandria diz que os gregos faziam aos deuses e as crenccedilas egiacutepcias386 A

estranheza dos deuses dos outros povos tambeacutem chamou a atenccedilatildeo de Ciacutecero que indagava

Se existem divindades agraves quais adoramos e consideramos como tais por que natildeo Serapis e Isis localizadas no mesmo ranque E se eles satildeo admitidos que razatildeo temos noacutes para rejeitar os deuses dos baacuterbaros Entatildeo noacutes devemos deificar bois cavalos iacutebis gaviotildees viacuteboras crocodilos peixes cachorros lobos gatos e muitas outras bestas Se noacutes vamos de volta agraves fontes destas supersticcedilotildees devemos igualmente condenar todas as divindades das quais eles procedem [] Se vocecircs natildeo deificarem a um bem como o outro o que seraacute de Ino Pois todos esses deuses tem a mesma origem387

Diante desse universo de pensamentos e crenccedilas distintos os romanos tinham o

desafio de conceber formas para garantir a integraccedilatildeo desses grupos Justino acentua que

diante dessa variedade de ideias somente os cristatildeos satildeo perseguidos e vecirc nisso mais uma

evidecircncia de que as accedilotildees anticristatildes satildeo arquitetadas pelos maus democircnios Mas os cristatildeos

natildeo haviam sido os uacutenicos a serem cerceados pelas autoridades romanas

Nos anos 180 aC o culto a Baco despertou suspeitas e passou a ser tratado como uma

ameaccedila agrave ordem Infelizmente as fontes sobre essa questatildeo se resumem a um decreto do

Senado388 regulando o culto e um longo relato de Tito Liacutevio389

Natildeo eacute uma tarefa simples determinar qual foi o epicentro do problema Talvez natildeo se

referisse a uma crise religiosa propriamente dita representando um caso de accedilatildeo policial

contra uma conspiraccedilatildeo Mas o decreto do Senado preservado numa placa de bronze

endereccedilado a uma das cidades aliadas indica uma preocupaccedilatildeo em inviabilizar possiacuteveis

agrupamentos potencialmente conspiratoacuterios Proibia-se aos grupos ter liacutederes ou sacerdotes

masculinos tesouro juramentos ou fieacuteis Ele tambeacutem restringia o tamanho desses

aglomerados e a estrutura de seus membros390 De algum modo a organizaccedilatildeo dos baacutequicos

deve ter ameaccedilado aos romanos tambeacutem por trazer uma nova e perigosa forma de poder

384 De Iside et Osiride 72 385 Saacutetiras XV37-38 386 Protrepticus 2396 387 De natura deorum III19(47) 388 Senatus Consultum de Bacchanalibus In JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961 pp 26-27 389 Histoacuteria de Roma 398-19 390 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 152

76

Os seguidores de Baco no entanto natildeo eram hostis a nenhum deus do Impeacuterio

Tambeacutem natildeo rejeitavam os sacrifiacutecios nem viam os deuses como democircnios e natildeo tinham

nenhum problema com os rituais tradicionais Tito Liacutevio daacute sinais dessa suspeita num

discurso que atribuiu ao cocircnsul Postumio Albino numa contio391 quando falou ao povo da

ameaccedila de um poder rival

A menos que vocecircs se precavejam homens de Roma esta vossa assembleia diurna apropriadamente reunida pelo cocircnsul seraacute rivalizada por sua assembleia noturna Nesse momento eles separadamente temem a vocecircs agora reunidos em assembleia quando vocecircs retornarem agraves suas casas e fazendas eles se reuniratildeo para decidirem sobre sua proacutepria salvaccedilatildeo e a vossa ruiacutena Seraacute quando vocecircs separadamente teratildeo de temecirc-los reunidos (39164)

Segundo a anaacutelise de Clara Gallini os adeptos ao culto eram grupos marginais392 As

bacanais seriam lugares de evasatildeo para a massa de pobres e deserdados com graves

problemas econocircmicos e sociais devido agrave situaccedilatildeo que atravessava Roma A crise social teria

se manifestado em uma forma representativa de protesto religioso por meio dos quais se

buscaram respostas religiosas a problemas da sociedade pretendendo uma liberaccedilatildeo religiosa

Deste modo a repressatildeo dos cultos baacutequicos tambeacutem representaria a repressatildeo de uma

sociedade na qual uns poucos os membros da oligarquia romana decidem impotildeem as regras

e governam a maioria No entanto ainda que os problemas sociais fossem evidentes natildeo eacute

possiacutevel afirmar que atraacutes destes cultos se escondia uma revolta contra as estruturas vigentes

nem ver os rituais baacutequicos como uma espeacutecie de esperanccedila em uma nova liberdade pois

essas interpretaccedilotildees como bem sustentou C Ames393 sofrem de anacronismo

Outros grupos religiosos no periacuteodo posterior a Bacanalia tambeacutem foram objeto de

uma accedilatildeo hostil das autoridades romanas Os caldeus chamados presumivelmente de

astroacutelogos foram expulsos de Roma em 139 aC Depois os seguidores de Iacutesis em vaacuterias

ocasiotildees na Repuacuteblica Tardia e no primeiro principado Tambeacutem os judeus enfrentaram seacuterias

dificuldades com os romanos em certos momentos394

Com a viabilizaccedilatildeo de um maior nuacutemero de viagens e trocas comerciais e culturais no

Impeacuterio Romano o conhecimento das variadas religiotildees deuses e crenccedilas tambeacutem podia

viajar rapidamente E isso significou ter que lidar com atritos decorrentes dessas diferenccedilas

envolvendo inclusive o judaiacutesmo o cristianismo e o maniqueiacutesmo

391 Audiecircncia convocada 392 GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52 393 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 p 344 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 394 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Op cit pp 161 230 231

77

De um modo bem diferente desses monoteiacutesmos de caraacuteter exclusivista entre as outras

crenccedilas como nas religiotildees de misteacuterios os adeptos natildeo rejeitavam ou condenavam outros

deuses Tambeacutem natildeo era necessaacuterio evitar os festivais e rituais da cidade ou a praacutetica do culto

imperial Natildeo havia nada que os pusesse em conflito com as autoridades Ocasionalmente

recebiam o apoio de membros da elite romana

Justino todavia procura mostrar que natildeo havia nenhum motivo para os romanos se

preocuparem com os cristatildeos afinal eles reconheciam que toda autoridade eacute constituiacuteda por

Deus e por isso devia ser respeitada Eacute fazendo jus a certo sentido de transparecircncia que o

apologista julga indispensaacutevel nas relaccedilotildees entre governantes e governados que ele entatildeo se

prontifica em demonstrar as razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo se misturavam com outros

deuses Com confianccedila ele afirma ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo

veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo

colocamos coroas nos sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo395

O fato de os cristatildeos natildeo concordarem com os sacrifiacutecios pagatildeos natildeo faz sentido

isoladamente aos incocircmodos caluacutenias e perseguiccedilotildees sofridos Parece ser razoaacutevel que por ser

um grupo cujas crenccedilas natildeo estavam bem sistematizadas e que se espalhavam pelo Impeacuterio as

caluacutenias oriundas dos atritos culturais podem ter chegado agraves autoridades e despertado

desconfianccedila396 Calumnia era um crime condenado pelas leis romanas desde o I seacuteculo aC e

se exatamente agraves acusaccedilotildees falsas e maliciosas397 As accedilotildees anticristatildes todavia natildeo podem

ser analisadas em termos generalizantes e absolutos pois passam por diversos momentos

Embora os cristatildeos natildeo representem uma ameaccedila poliacutetica na perspectiva de Pliacutenio por

exemplo o fato de natildeo praticarem o culto ao imperador e a separaccedilatildeo das praacuteticas idoacutelatras da

esfera puacuteblica interseciona a questatildeo poliacutetica agrave religiosa

Seria essa uma boa razatildeo para Justino explicar em seu projeto apologeacutetico por que os

cristatildeos natildeo participavam de sacrifiacutecios a outros deuses e natildeo lhes ofereciam culto Seu

argumento eacute diametralmente oposto a ou]j anqrwpoi [esses homens] que oferecem sacrifiacutecios

aos que eles proacuteprios datildeo forma colocam nos templos e chamam de deuses Ele justifica a

crenccedila cristatilde apenas dizendo ldquosabemos que [esses deuses] satildeo coisas sem alma e mortas que

395 I Apol 242 396 Cf VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006 Passim URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932 397 ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 Passim BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 p 238 Cf I Apol 267

78

natildeo tem forma de Deusrdquo398 (I Apol 91) Afirma tambeacutem que os nomes e figuras que os

deuses assumem satildeo arquitetados pelos maus democircnios de modo que coisas corruptiacuteveis que

necessitam de cuidado recebem o nome de Deus Agrega-se ao seu argumento que os artesatildeos

dos deuses satildeo pessoas dissolutas e que eacute uma estupidez fazer guardas para os deuses nos

templos Na sequecircncia o autor introduz a justificativa cristatilde para esse distanciamento de tais

praacuteticas ldquo aprendemos que Deus natildeo tem necessidade de nenhuma oferta material dos

homens pois vemos que eacute ele quem nos concede tudordquo399 (I Apol 93) Em resposta a essa

benevolecircncia divina espera-se a gratidatildeo humana que soacute pode ser atestada atraveacutes do ldquobom

sensordquo [swfrosunhn] da ldquojusticcedilardquo [dikaiosunhn] do ldquoamor aos homensrdquo [filanqrwpian] e

numa expressatildeo pouco clara em ldquotudo que conveacutem a um Deus que natildeo pode ser chamado por

nenhum nome impostordquo400 (I Apol 101) Enquanto para o apologista os deuses pagatildeos satildeo

criados por matildeos humanas o Deus cristatildeo eacute apresentado como aquele que concederaacute a sua

presenccedila aos dignos Assim Justino demonstra estar certo de que os cristatildeos tecircm um

conhecimento superior ao dos que creem em outros deuses a ponto de se satisfazer em dizer

ldquosabemosrdquo ldquoaprendemosrdquo ou ldquocremosrdquo e isso basta

Se por um lado a perspectiva escatoloacutegica cristatilde do ldquoreinordquo natildeo implicava nenhuma

conspiraccedilatildeo poliacutetica contra os romanos seu iacutempeto proselitista causava tanto rumores quanto

um nuacutemero crescente de conversos Eacute por isso que ateacute meados do seacuteculo II quando Justino

escreve as accedilotildees anticristatildes tecircm suas raiacutezes nas relaccedilotildees interculturais travadas no proacuteprio

processo de expansatildeo da mensagem cristatilde Isso significa que os mecanismos de controle

social empregados contra os cristatildeos pelas autoridades imperiais satildeo requeridos mediante os

problemas locais E pode-se dizer que por ser uma religiatildeo emergente outros como Pliacutenio

natildeo sabiam como proceder diante das denuacutencias e caluacutenias contra esse novo grupo

Os cristatildeos formavam um grupo em expansatildeo que estava no Impeacuterio mas viviam de

modo diferente e procuravam evitar a participaccedilatildeo de todo tipo de praacuteticas contraacuterias agraves

prescriccedilotildees doutrinaacuterias cristatildes Natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo

veneravam os deuses nacionais e seu Deus natildeo pertencia a uma naccedilatildeo mas deveria ser

reconhecido como superior a todos os outros401

398 evpei ayuca kai nekra tauta ginwskomen kai qeou morfhn mh econta cf MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 96 399 Ouv deesqai thj para avnqrwpwn ulikhj prosforaj proseilhfamen ton qeon( auvton pareconta panta orwntej ibid p 96 400 o[as oivkeia qew| evsti( tw| mhdeni ovnomati qetw| kaloumenw| MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 401 Cf MACMULLEN Ramsay Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966 Id Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997

79

Justino insere o seu testemunho pessoal

Eu mesmo quando seguia a doutrina de Platatildeo ouvia as caluacutenias contra os cristatildeos Contudo ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que eacute considerado espantoso comecei a refletir que era impossiacutevel que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres Com efeito que homem amante do prazer intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas poderia abraccedilar alegremente a morte que vai privaacute-lo de seus bens402

Prossegue sua queixa ldquobuscando condenar agrave morte alguns cristatildeos fundados nas

caluacutenias contra noacutes arrastaram tambeacutem escravos meninos e mulheres e por meio de incriacuteveis

tormentos os forccedilam a repetir contra noacutes o que o povo inventardquo403 No entanto ele eacute enfaacutetico

contra esse tipo de opiniatildeo sustentada sobre os cristatildeos ldquonada disso nos diz respeitordquo404

Justino tambeacutem nega que os cristatildeos abusariam de homens e se uniriam destemidamente com

as mulheres Seguindo para o desfecho de seu escrito ele faz uma declaraccedilatildeo reveladora ldquoA

verdade eacute que nos fazem guerra de mil modos exatamente porque ensinamos a fugir de

semelhantes doutrinas e daqueles que praticam tais coisas ou imitam tais exemplos como

mesmo nesse discurso que vos dirigimosrdquo405 Tal declaraccedilatildeo de Justino daacute margem para a

reflexatildeo sobre esse processo de ldquonegativizaccedilatildeordquo da figura do ldquooutrordquo que condena as praacuteticas

que ldquoumrdquo pratica Segundo esse pensador os cristatildeos seriam muitas vezes caluniados por

condenarem as praacuteticas dos outros que em retaliaccedilatildeo se esforccedilariam por difamar os

seguidores do nazareno

Por isso tambeacutem parece significativo considerar que os atritos com os cristatildeos natildeo

satildeo decorrentes de uma preocupaccedilatildeo poliacutetica para minar um potencial grupo subversivo Satildeo

destacados alguns aspectos desses atritos que se remetem agraves caluacutenias e maus comentaacuterios

sobre os cristatildeos que desembocam na estigmatizaccedilatildeo desse grupo Eacute preciso lembrar que o

contexto no qual o discurso de Justino estaacute inserido se refere a meados do II seacuteculo quando o

impacto do estilo de vida dos cristatildeos era sentido apenas em niacuteveis locais ainda que em

diversas regiotildees Os cristatildeos jaacute se encontravam pela Siacuteria-Palestina Egito Aacutesia Menor

Peniacutensula Itaacutelica e outras regiotildees mas o nuacutemero de fieacuteis ainda era muito pequeno diante do

tamanho do Impeacuterio Romano406 O desprezo e o combate por parte dos cristatildeos aos deuses

pagatildeos provocavam ocasionalmente reaccedilotildees e mobilizaccedilotildees contra os proacuteprios cristatildeos Por se

tratar de um grupo distinto com praacuteticas pouco conhecidas as caluacutenias se propagaram como

402 II Apol 121-2 403 II Apol 124 404 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 405 II Apol 126 406 GIBBON Edward Number of Christians in the Empire under Diocletioan and Constantine In _____ The History of the Decline and Fall of the Roman Empire ed JB New York Fred de Fau and Co 1906 pp 337 341

80

uma forma de defesa dos pagatildeos A perseguiccedilatildeo de Nero no I seacuteculo havia aberto precedentes

para a condenaccedilatildeo dos cristatildeos mas sua determinaccedilatildeo foi limitada agrave execuccedilatildeo de seu plano de

acobertar as suspeitas de seu envolvimento no incecircndio de Roma Na primeira metade do II

seacuteculo alguns tumultos procuravam condenar os cristatildeos buscando sem um enquadramento

juriacutedico algo que foi condenado por Adriano na Aacutesia Em outros casos como o que relatou

Pliacutenio a Trajano procurava-se por um crime que condenasse os cristatildeos Desse modo as

acusaccedilotildees tais como canibalismo denuacutencia de ateiacutesmo imoralidades e inclusive de

infidelidade ganhavam forccedila Essas caluacutenias somadas ao precedente neroniano fizeram com

que para muitos como Trajano e Urbico o nomen Christianum assumisse um significado

negativo Essa conotaccedilatildeo negativa no entanto natildeo se instalou apenas em funccedilatildeo das caluacutenias

Conforme destacou Paul Veyne407 ldquoas autoridades natildeo acreditavam que os cristatildeos comiam

criancinhas ou praticavam incesto todos os domingos a atitude polecircmica de Celso a respeito

da nova religiatildeo natildeo fazia alusatildeo a essas praacuteticas considerando-as um fato socialrdquo Se para o

povo em geral o oacutedio e o medo pela estranheza dos cristatildeos faziam-lhes repulsivos para as

autoridades a ausecircncia de participaccedilatildeo nas praacuteticas puacuteblicas ou mesmo a contumaacutecia em natildeo

negar a feacute diante do magistrado faziam com que os pedidos de condenaccedilatildeo fossem acatados

Neste momento cabe destacar que entre os tipos de estigmas destacados por Erving

Goffman408 estatildeo os tribais de raccedila naccedilatildeo e religiatildeo considerados suscetiacuteveis de uma

transmissatildeo por heranccedila e decontaminar outros ao redor Nesses estigmas encontram-se os

seguintes traccedilos socioloacutegicos

un individuo que podiacutea haber sido faacutecilmente aceptado en un intercambio social corriente posee un rasgo que pude imponerse por la fuerza a nuestra atencioacuten u que nos lleva a alejarnos de eacutel cuando lo encontramos anulando el llamado que nos hacen sus restantes atributos Posee un estigma una indeseable diferencia que no habiacuteamos previsto

Essa diferenccedila se torna o elemento fundamental para a praacutetica de vaacuterios tipos de

discriminaccedilatildeo Consciente ou inconscientemente se constroacutei uma teoria do estigma uma

ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do perigo que representa essa pessoa

racionalizando agraves vezes uma animosidade que se baseia em outras diferenccedilas

Goffman409 natildeo deixa de contemplar em sua anaacutelise a possibilidade de sujeitos

estigmatizados permanecerem ilhados protegidos por suas crenccedilas proacuteprias sobre sua

identidade mas ao mesmo tempo em constante contato com os outros Nesse sentido os 407 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 408 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 16 Tr A ldquoum indiviacuteduo que podia ter sido facilmente aceito num intercacircmbio social corrente possui um traccedilo que pode impor-se agrave forccedila a nossa atenccedilatildeo e que nos leva a nos afastarmos dele quando o encontramos anulando a chamada que nos fazem seus ouros atributos Possui um estigma uma indesejaacutevel diferenccedila que natildeo haviacuteamos previstordquo 409 Ibid p 17

81

seguidores da Igreja dos disciacutepulos de Jesus de Nazareacute podiam refugiar-se em suas crenccedilas

proacuteprias a saber seu proacuteprio modo de se autodefinir como ldquocristatildeosrdquo Enquanto o termo

ldquocristatildeordquo eacute capaz de referir-se a algueacutem de uma superstitio ilicita que abusa das crianccedilas que

se une promiscuamente com homens e mulheres que acredita em lendas de um deus

encarnado e nascido de uma virgem cujos fieacuteis se reuacutenem para comer sua carne em reuniotildees

secretas e assim se torna estigma de algueacutem despreziacutevel por outro lado ganha outro

significado para os seguidores do Cristo

Os atritos entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos poderiam surgir em decorrecircncia do exerciacutecio da

anunciaccedilatildeo da mensagem cristatilde ou devido ao apelo agrave mudanccedila de conduta e implementaccedilatildeo

de novos haacutebitos O caso mais emblemaacutetico apontado por Justino eacute o que aparece na II

Apologia

Certa mulher vivia com o seu marido homem dissoluto e antes de se tornar cristatilde se entregara agrave vida licenciosa Todavia logo que conheceu os ensinamentos de Cristo natildeo soacute se tornou casta como procurava tambeacutem persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme a reta razatildeo Ele poreacutem obstinado na dissoluccedilatildeo com a sua conduta desanimou a sua mulher [] Depois disso para natildeo se tornar cuacutemplice de tais iniquidades e impiedades permanecendo no matrimocircnio e partilhando o leito e a mesa com tal homem ela [] separou-se [] Despeitado [] [] a acusou diante dos tribunais dizendo que ela era cristatilde [] natildeo podendo na ocasiatildeo fazer nada contra a mulher voltou-se contra Ptolomeu que Urbico chamara ao seu tribunal por ter sido mestre dela nos ensinamentos de Cristordquo410

A uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se era cristatildeo Apoacutes

confessar foi condenado ao supliacutecio Justino ainda conta que certo Luacutecio advertiu a Urbico e

do mesmo modo foi conduzido ao supliacutecio Um terceiro sobreveio mas tambeacutem foi

condenado agrave morte411

Se fosse um caso isolado esse episoacutedio jamais poderia servir como pista para

fundamentar a hipoacutetese de que significativamente os atritos com os cristatildeos podem surgir

tambeacutem devido agrave condenaccedilatildeo das praacuteticas dos natildeo-cristatildeos Mas outras evidecircncias se

mostram Os Evangelhos do Novo Testamento (Mt 1413-12 Mc 614-28 Lc 318-20 97-9)

afirmam que Joatildeo Batista foi para a prisatildeo por repreender ao rei Herodes que vivia com

Herodiacuteades a mulher de seu irmatildeo e por outros crimes cometidos pelo governante Flaacutevio

Josefo escreveu que Herodes temeu que o povo fosse influenciado para uma sublevaccedilatildeo e por

isso encaminhou Joatildeo Batista para o caacutercere412 Embora pareccedilam discrepantes pode haver

alguma convergecircncia nas duas versotildees O ldquoprofetardquo Joatildeo Batista devia fazer repreensotildees

410 II Apol 2 411 II Apol 216-20 412 Ant Jud II 52

82

puacuteblicas condenando os haacutebitos do rei Herodes e a sua uniatildeo com Herodiacuteades o que poderia

despertar alguma inseguranccedila quanto agrave reaccedilatildeo do povo

Outras ocorrecircncias podem ser identificadas Quando Paulo repreendeu um espiacuterito de

adivinhaccedilatildeo de uma jovem escrava quando estava em Filipos na Macedocircnia os patrotildees da

moccedila se irritaram pois exploravam aquela habilidade da jovem para lucrar Por isso levaram

Paulo e seu companheiro Silas aos magistrados e disseram ldquoEsses homens estatildeo provocando

desordem em nossa cidade satildeo judeus e pregam costumes que a noacutes romanos natildeo eacute

permitido aceitar nem seguirrdquo A multidatildeo se levantou contra Paulo e Silas e depois disso

foram accediloitados e presos sem julgamento formal 413 Em Eacutefeso os artesatildeos teriam visto na

doutrina de Paulo mais do que uma ofensa agrave religiatildeo uma ameaccedila a seus negoacutecios Conta-se

que um ourives chamado Demeacutetrio que fabricava miniaturas em prata no templo de Diana

reuniu alguns artesatildeos e outros profissionais do ramo e disse-lhes

Amigos sabeis que o nosso bem-estar proveacutem dessa nossa atividade [] esse tal de Paulo com sua propaganda desencaminha muita gente natildeo soacute em Eacutefeso mas em quase toda a Aacutesia Ele afirma que natildeo satildeo deuses os produtos de matildeos humanas Natildeo eacute soacute a nossa profissatildeo que corre o risco de cair em descreacutedito mas tambeacutem o templo da grande deusa Diana acabaraacute sendo desacreditado e assim ficaraacute despojada de majestade aquela que toda a Aacutesia e o mundo inteiro adoram414

Segundo o livro de Atos dos Apoacutestolos esses homens furiosos arrastaram os

companheiros de Paulo para o teatro da cidade O tumulto se espalhou

Esses tipos de atritos envolviam o encobrimento de uma praacutetica moralmente

condenada pelos seguidores da Igreja e manifestavam a defesa dos interesses pessoais ou de

determinados grupos que sofreriam com as possiacuteveis mudanccedilas nos costumes e tradiccedilotildees

Neste uacuteltimo caso aparece algo distinto a menccedilatildeo da representaccedilatildeo de uma divindade para

uma determinada regiatildeo Diana para a Aacutesia especialmente

Yi-Fu Tuan415 aponta que nas religiotildees que vinculam o povo a um lugar os deuses

parecem estimular nos seus fieacuteis um forte sentido do passado de linhagem e continuidade no

lugar O culto aos ancestrais eacute o fundamento de tal praacutetica religiosa Atraveacutes deste sentido

histoacuterico de continuidade busca-se algum tipo de ldquoseguranccedilardquo Entre o I e II seacuteculos dC

deuses romanos e gregos satildeo conhecidos por povos de culturas diferentes mas nenhum deles

exige exclusividade O Deus dos judeus figura nesse cenaacuterio de deuses e homens e agraves vezes

se confunde com deus nenhum Os seguidores de Cristo propagadores desse mesmo Deus

mediante a crenccedila no seu messias paradoxalmente tambeacutem satildeo tachados de ateus algumas

vezes Poreacutem enquanto os ldquooutrosrdquo natildeo veem o Deus cristatildeo os cristatildeos natildeo veem outro deus

413 At 1617-40 414 At 1923-27 415 Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983 p 168

83

aleacutem do seu proacuteprio Desse modo a negaccedilatildeo dos deuses alheios pode ser interpretada por

muitos como profunda agressatildeo agraves crenccedilas que por um periacuteodo indeterminado serviram para

explicar e inspirar a vida das pessoas que nasceram cresceram e morreram em determinado

local

A estigmatizaccedilatildeo dos ldquocristatildeosrdquo eacute portanto em grande medida uma reaccedilatildeo das

pessoas que satildeo alvo dos cristatildeos no exerciacutecio de sua feacute Pois esses cristatildeos ndash dos quais

Justino eacute um ndash manifestam o repuacutedio a tudo aquilo que se associa a uma moral que lhes seja

estranha e que se vincule agrave veneraccedilatildeo de outros deuses que natildeo sejam o Deus do seu Cristo

Diante das reaccedilotildees adversas que lhes satildeo imputadas sob a forma de duras penas e

condenaccedilotildees Justino teologiza o seu estigma Isso natildeo eacute uma invenccedilatildeo sua Talvez lhe caiba o

meacuterito de tecirc-lo feito habilidosamente poreacutem haacute indiacutecios desse procedimento anos antes de

seus escritos

Na I Epiacutestola de Pedro (413-1416) o autor frisa a gloacuteria do sofrimento dos cristatildeos

nas perseguiccedilotildees

alegrai-vos por participar dos sofrimentos de Cristo para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua gloacuteria Se sofreis injuacuterias por causa do nome de Cristo sois felizes pois o Espiacuterito da gloacuteria o Espiacuterito de Deus repousa sobre voacutes [] Se poreacutem algueacutem sofrer por ser cristatildeo natildeo se envergonhe Antes glorifique a Deus por este nome

Antes ainda eacute Paulo quem permitiraacute um trocadilho didaacutetico para que melhor se

compreenda essa formulaccedilatildeo teoloacutegica por traacutes do sofrimento dos fieacuteis da Igreja Ao finalizar

sua Epiacutestola aos Gaacutelatas (617) escreve ldquo eu trago em meu corpo as marcas [stigmata] de

Cristordquo416 Como o proacuteprio Goffman observou para os gregos estigma significava

basicamente algum tipo de signo ou marca na pele417 Paulo evidentemente se refere aos sinais

do sofrimento enfrentado devido agraves perseguiccedilotildees sofridas no exerciacutecio do seu apostolado Natildeo

existe nenhuma ligaccedilatildeo entre essa passagem e o discurso de Justino O que eacute preciso notar

atentamente eacute que assim como Paulo transforma seus estigmas em seu testemunho na

perspectiva de Justino a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute representada como ldquoas marcasrdquo de sua

identidade que se pretende afirmar Essa identidade por ele afirmada eacute distinta dos devaneios

caluniosos que lhes satildeo associados pelos seus opositores Ser cristatildeo para Justino eacute a razatildeo de

natildeo serem perseguidos e ao mesmo tempo o motivo pelo qual satildeo perseguidos A

416 Versatildeo grega evgw gar ta stigmata tou Kuriou VIhsou evn tw| swmati mou bastazw ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) [Bible Work 5 Software 2002] 417 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 11 Para maiores informaccedilotildees sobre o significado do termo estigma cf LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940

84

perseguiccedilatildeo seraacute interpretada como uma reaccedilatildeo dos ldquomaus democircniosrdquo contra os ldquoverdadeiros

cristatildeosrdquo como seraacute examinado no proacuteximo capiacutetulo

Seus acusadores estariam movidos por paixatildeo irracional e ldquoaguilhoados por democircnios

perversosrdquo418 por isso natildeo conseguiam enxergar a verdade anunciada por esses cristatildeos

Mesmo tendo grande responsabilidade na ocultaccedilatildeo dessa verdade os democircnios natildeo satildeo os

uacutenicos culpados Escreve Justino a respeito dos judeus

As outras naccedilotildees natildeo tecircm tanta culpa da iniquidade que se comete contra noacutes e contra Cristo como voacutes que sois causa do preconceito injusto que elas tecircm contra ele e contra noacutes que viemos dele [] escolhestes homens especiais de Jerusaleacutem e os mandastes por todo o mundo a fim de espalhar que havia aparecido uma iacutempia seita de cristatildeos e espalharam caluacutenias que todos aqueles que natildeo vos conhecem repetem contra noacutes419

Os judeus tecircm uma parcela de responsabilidade pelos preconceitos e caluacutenias herdados

pelos gentios Em vaacuterios episoacutedios no livro dos Atos dos Apoacutestolos haacute a mesma disposiccedilatildeo

cristatilde para atribuir aos judeus a culpa pelas delaccedilotildees agraves autoridades romanas para reclamar

dos cristatildeos No entanto eacute pouco provaacutevel que o apologista assim sintetize a causa das

caluacutenias e puniccedilotildees contra os cristatildeos Mas haacute uma disposiccedilatildeo por parte do apologista em

afastar os cristatildeos dos judeus Semelhantemente Justino tambeacutem natildeo demonstra nenhuma

simpatia por aqueles que ele chama de ldquocristatildeos soacute de nomerdquo

Sobre esses que natildeo viviam como Cristo teria ensinado o filoacutesofo orienta que ldquosejam

declarados como natildeo-cristatildeosrdquo420 por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de

Cristo Para os pagatildeos provavelmente natildeo haveria distinccedilatildeo entre esses grupos Justino

poreacutem chama a atenccedilatildeo para o fato de que esses satildeo denominados segundo o nome de quem

promoveu cada doutrina especiacutefica Eram eles os marcionistas valentinianos basilidianos

saturnilianos e com outros nomes421

Um dos argumentos de que a accedilatildeo dos ldquodemocircnios perversosrdquo move seus opositores

contra os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo eacute que os cristatildeos dessas outras ldquoheresiasrdquo natildeo satildeo perseguidos

pelas autoridades422 Quanto a esses ldquooutrosrdquo pelos quais o apologista natildeo demonstra

nenhuma simpatia sua recomendaccedilatildeo eacute que sejam punidos423

Os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo segundo Justino satildeo aqueles que estatildeo prontos a confessar

que satildeo cristatildeos a ponto de padecerem Desse modo recorrendo ao trocadilho didaacutetico

desenvolvido a partir da fala paulina esses homens de feacute colocam-se agrave disposiccedilatildeo para

418 I Apol 51ss 419 Diaacutelogo com Trifatildeo 171 420 I Apol 168 421 Diaacutelogo com Trifatildeo 355-6 422 I Apol 267 423 I Apol 1614

85

receber os ldquoestigmas de Cristordquo a saber as marcas das perseguiccedilotildees sobre seus corpos em

razatildeo de suas crenccedilas Satildeo persuadidos a crer que a verdadeira recompensa seraacute atribuiacuteda para

a vida eterna que em muito excede ao sofrimento transitoacuterio desse mundo Cabe-lhes

anunciar e testemunhar a feacute a todos mesmo sob a insiacutegnia das tribulaccedilotildees Por isso Justino

declara

Decapitam-nos pregam-nos em cruzes atiram-nos agraves feras agrave prisatildeo ao fogo e nos submetem a todo tipo de torturas Todavia estaacute agrave vista de todos que natildeo apostatamos de nossa feacute Ao contraacuterio quanto maiores satildeo os nossos sofrimentos mais ainda se multiplicam os que abraccedilam a feacute e a piedade pelo nome de Jesus424

Essa missatildeo cristatilde implica tambeacutem em buscar convencer aos seus opositores de que

os ldquocristatildeosrdquo natildeo deviam ser perseguidos simplesmente por denominarem-se ldquocristatildeosrdquo

33 Sobre as leis e imoralidades

Justino faz saber que a confissatildeo de cristianismo diante de um magistrado acarretava a

pena de morte425 Isto eacute ser ldquocristatildeordquo poderia implicar na condenaccedilatildeo agrave pena de morte426

Uma das interrogaccedilotildees centrais desses escritos de Justino eacute sobre o fato de os cristatildeos

serem condenados por confessarem esse nome Seria um absurdo pensar que os romanos

condenariam os membros dessa superstitio simplesmente por sustentarem um nome e eacute

justamente esse absurdo que o apologista busca destacar para ridicularizar o procedimento dos

magistrados Na verdade os acusados de cristianismo natildeo eram condenados apenas pelo

ldquonomerdquo mas sim pelo que ele representava uma superstitio nova maleacutefica depravada e

excessiva que envolvia os cristatildeos em flagitia que sustentava certo desprezo pela religiatildeo

tradicional Mas pelo fato de natildeo haver uma lei universal para este caso os governantes

tinham liberdade para julgar as ocorrecircncias de modo particular As recomendaccedilotildees de Trajano

e Adriano ao dispensarem a busca pelos cristatildeos limitaram os processos a apenas denuacutencias

formais A nova religiatildeo ainda natildeo se mostrava um problema seacuterio para o Impeacuterio Eacute provaacutevel

que essas medidas visem solucionar os atritos e inibir os conflitos locais ocasionados pelas

diferenccedilas religiosas O caraacuteter flexiacutevel do processo que permitia que o acusado mudasse de

ideia quanto a sua religiatildeo no meio do processo e recebesse a absolviccedilatildeo eacute o elemento

fundamental para se argumentar que os cristatildeos eram condenados pelo ldquonomerdquo

424 Dialogo com Trifatildeo 110 4 425 I Apol 81-2 No I111 lecirc-se ldquoconfessamos ser cristatildeos sabendo como sabemos que tal confissatildeo traz consigo a pena de morterdquo 426 ldquo e nos tiram a vida sem termos cometido crime algumrdquo (I241) Mas o consolo dos fieacuteis estaacute na feacute ldquo aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis fazerrdquo (I456)

86

Justino deseja que os romanos compreendam a maneira de pensar dos cristatildeos e que se

desvencilhem da ideia negativa sobre os fieacuteis Desse modo depois da exposiccedilatildeo da sua I

Apologia ele escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da verdade

respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees despreze-as Natildeo

decreteis poreacutem pena de morte como contra inimigos contra aqueles que nenhum crime

cometemrdquo427

Como jaacute foi mencionado no Capiacutetulo II dessa dissertaccedilatildeo Justino procura alinhar sua

Apologia ao rescrito de Adriano o qual ele interpreta convertendo-o sutilmente a favor dos

cristatildeos

Noacutes vos pedimos portanto que sejam examinadas accedilotildees de todos os que vos satildeo denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo ter cometido nenhum crime428

Mesmo assim o apologista sustenta que sua reclamaccedilatildeo natildeo estaacute fundamentada no rescrito de

Adriano mas em um senso de justiccedila que permeia sua peticcedilatildeo429

Sua interpretaccedilatildeo considera que mediante as obras dos democircnios perversos os cristatildeos

satildeo buscados e condenados agrave morte devido a caluacutenias O apologista aponta atentados contra

escravos meninos e mulheres obrigando-os a confessarem coisas falsas430 Segundo sua

leitura teoloacutegica desses eventos os cristatildeos eram acusados de tais praacuteticas justamente porque

as condenavam e assim fazendo incomodam aqueles que procediam dissolutamente431

Tendo em vista que a razatildeo para que as autoridades acatassem as denuacutencias dirigidas

contra os cristatildeos estava no fato de que esta superstitio era uma ameaccedila agrave ordem em funccedilatildeo da

sua expectativa sobre o ldquoreino de Deusrdquo Justino inclui no seu projeto apologeacutetico uma

explanaccedilatildeo sobre a contribuiccedilatildeo cristatilde ao estabelecimento da paz no Impeacuterio Natildeo se podia

esperar que uma religiatildeo estrangeira principalmente oriunda de uma naccedilatildeo problemaacutetica

como a dos judeus pudesse representar algum benefiacutecio A sua proacutepria indefiniccedilatildeo enquanto

religiatildeo dificultaria essa possibilidade e o seu caraacuteter exclusivista acentuaria os atritos sociais

Mas o pensador de Flaacutevia Neaacutepolis eacute direto em dizer

Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo e salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que

427 I651 428 I74 429 ldquo natildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo (I683) 430 II124 431 II12

87

caminharia para a sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos e se adornaria de virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos432

A proposta de Justino apresenta o valor das crenccedilas cristatildes O desenvolvimento da sua

teoria seraacute analisado com mais detalhes no proacuteximo capiacutetulo Neste momento analisar-se-aacute a

reprovaccedilatildeo da moralidade dos natildeo-cristatildeos Segundo Paul Veyne433 no mundo greco-romano

ldquomoral e religiatildeo estavam parcialmente ligadas porque se pedia aos deuses que protegessem

os bons e castigassem os maus Deuses e homens julgavam da mesma maneira os bons e

maus pois compartilhavam da mesma moralrdquo Para os deuses a moral dos mortais tambeacutem

natildeo interessava A opiniatildeo humana sobre os deuses tambeacutem variava desde a atribuiccedilatildeo de

virtudes ateacute a laacutestima por serem egoiacutestas e mercenaacuterios Natildeo era possiacutevel pensar nos deuses

como senhores vigilantes da justiccedila No entanto os deuses poderiam vingar as injusticcedilas434

Natildeo se deve pensar que a religiatildeo de gregos e romanos era estaacutetica Satildeo identificadas

transformaccedilotildees durante os seacuteculos A filosofia as mudanccedilas culturais e a paideia

relacionaram a divindade ao sumo bem e acentuou os contornos entre a religiosidade das

pessoas comuns e agrave dos membros das classes elevadas e dos letrados435

Varratildeo436 atribuiu trecircs concepccedilotildees para os deuses os deuses das cidades os deuses

vistos pelos filoacutesofos e os deuses das narrativas dos poetas Segundo Paul Veyne437

inspirados por Euriacutepides os estoicos estavam convencidos de que os deuses natildeo podiam se

portar mal Os deuses dos filoacutesofos se afastavam das narrativas mitoloacutegicas anteriores para

assumirem agraves vezes o aacutepice da virtude Para Platatildeo os deuses eram a medida de todas as

coisas e natildeo seria conveniente receberem oferendas de pessoas desonradas438 A relaccedilatildeo entre

moral e religiatildeo passou por transformaccedilatildeo mas essa mudanccedila ficou restrita a alguns ciacuterculos

sociais Para alguns criacuteticos e pensadores o temor religioso seria uacutetil para a contensatildeo

humana Mas essa natildeo era uma opiniatildeo comum Isoacutecrates (viveu de 436 a 338 aC) escreveu

que ldquoaqueles que creem que os favores dos deuses e suas puniccedilotildees satildeo maiores do que

realmente satildeo prestam um grande serviccedilo agrave sociedaderdquo439 Mais tarde Poliacutebio (viveu entre 203

aC ndash 120 aC) ao comparar os romanos aos gregos tambeacutem destacou o valor das crenccedilas

religiosas romanas no estabelecimento da ordem

432 I121-3 433 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 220 434 Ibid p 239 435 BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 pp 305-332 436 Apud Agostinho de Hipona Cidade de Deus IV311 Plutarco se referia a trecircs visotildees sobre os deuses a dos filoacutesofos poetas e legisladores (Amatorius XVIII10765c) 437 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 256 438 Leis IV716c717 439 Busires 1124

88

muitos poderiam pensar que isso eacute irresponsaacutevel mas [] seu objetivo eacute usar isso como forma de controle sobre as pessoas comuns Se era possiacutevel formar um Estado inteiro de filoacutesofos isso seria no entanto desnecessaacuterio Mas vendo que as multidotildees satildeo inconstantes cheios de desejos desregrados iras irracionais e paixatildeo violenta o uacutenico recurso eacute mantecirc-los sob controle pelo terror misterioso e efeitos cecircnicos desse tipo440

Ainda nesse sentido ele afirma que tambeacutem natildeo era sem sentido que os antigos

promoviam entre as pessoas simples diversas opiniotildees sobre os deuses e a crenccedila no Hades

Tendo em vista essa importante funccedilatildeo da religiatildeo na manutenccedilatildeo da ordem Poliacutebio pensa

que aqueles que em seu tempo abriam matildeo da religiatildeo agiram de forma precipitada e

insensata Assim ele destaca

Esta eacute a razatildeo por que aleacutem de tudo se aos estadistas gregos eacute confiada uma uacutenica moeda embora protegidos por dez funcionaacuterios de vigilacircncia muitos selos e o dobro de testemunhas jaacute natildeo podem ser induzidos a manter a feacute enquanto entre os romanos em suas magistraturas e embaixadas homens tecircm cuidado de grandes quantias de dinheiro e ainda por puro respeito a seus juramentos manteacutem a feacute intacta E em outras naccedilotildees eacute raro encontrar um homem que meta suas matildeos fora do eraacuterio puacuteblico e eacute inteiramente puro em tais assuntos Mas entre os romanos eacute raro encontrar um homem cometendo tal crime441

A necessidade de uma sociedade ter mecanismos para estabelecer a ldquoconfianccedilardquo ou a

ldquoboa feacuterdquo entre as relaccedilotildees humanas eacute sublinhada diante dos efeitos dos questionamentos

cultivados pela filosofia e do proacuteprio ideal poliacutetico-filosoacutefico que poderia diminuir o valor da

religiatildeo

No seacuteculo II dC eacute Justino quem olha as mais distintas crenccedilas do Impeacuterio com um

tom de superioridade proporcionada pela sua proacutepria religiatildeo Mas haacute um espaccedilo de

aproximadamente trecircs seacuteculos entre Poliacutebio por exemplo e Justino No II seacuteculo dC a

filosofia jaacute havia se tornado um elemento essencial da cultura romana e o fluxo das suas

interrogaccedilotildees e das suas performances puacuteblicas acarretavam algumas transformaccedilotildees de

caraacuteter ideoloacutegico na sociedade Como escreveu Paul Veyne

o povo nunca deixou de crer e rezar Mas em que um romano culto mdash um Ciacutecero um Horaacutecio um imperador um senador um notaacutevel mdash podia crer dentro dessa fantasmagoria dos deuses ancestrais A resposta eacute categoacuterica natildeo podia crer em nada leu Platatildeo e Aristoacuteteles que quatro seacuteculos antes tampouco acreditavam Virgiacutelio alma religiosa acredita na Providecircncia mas natildeo nos deuses de seus proacuteprios poemas mdash Vecircnus Juno ou Apolo442

Justino mostra algumas razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo compactuavam com os

demais deuses e com a religiatildeo tradicional romana e ainda aponta aquilo que considera ser o

caraacuteter racional da verdadeira filosofia isto eacute da religiatildeo cristatilde Por isso ele escreve ldquoas

440 Historias VI5614 441 Ibid 442 Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197

89

nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo443 Poreacutem

como ele proacuteprio diz ldquonos condenam sem saber se praticamos as coisas vergonhosas de que

nos acusam comprazem-se com deuses que as fizeram e ainda exigem dos homens coisas

semelhantesrdquo444 Desse modo o apologista destaca a incoerecircncia em se pensar que os povos

seriam contidos por temor a deuses tatildeo imoderados quanto os proacuteprios homens em suas

paixotildees Por outro lado tambeacutem o temor ao Imperador ou a fidelidade demonstrada por

meio do culto imperial satildeo apontados como algo que representa uma forma superficial de

controle pois como Justino escreve ldquoaqueles que agora por medo das leis e dos castigos por

voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los [] sabem que sois homens e

que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutesrdquo445 Esse ldquomedordquo das leis era um temor ao que eacute

humano Desse modo Justino sublinha que a ausecircncia de mecanismo superior de controle

como a absorccedilatildeo da crenccedila em um Deus onisciente como o Deus dos cristatildeos favorecia a

desobediecircncia agraves leis

O apologista apresenta um mecanismo de controle que julga ser muito mais eficiente

ldquose se inteirassem e se persuadissem de que natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma

accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os

modos como voacutes mesmos haveis de convirrdquo Por essa razatildeo ele considera que a expansatildeo do

cristianismo contribuiria para que as pessoas agissem de modo moderado e respeitoso de

acordo com a moral cultivada na comunidade e ainda em atentar fidelidade ao Impeacuterio

Esse ldquotemorrdquo religioso proveniente de uma crenccedila distinta da religiatildeo tradicional se

enquadra no que os romanos chamavam de superstitio As superstitiones e os cultos locais

eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob atenccedilatildeo com destacam Mary Beard John North e

Simon Price446 as controveacutersias poderiam desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade

romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito em 172 a 173 aC447 na incursatildeo da Traacutecia que

foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que conseguiu seguidores448 entre os druidas da

Gaacutelia profecias indicavam que o incecircndio de Roma era o sinal do fim do domiacutenio romano

sobre aquela regiatildeo fazendo com que uma revolta nas fronteiras do Reno fosse animada por

essas profecias449 e as revoltas judaicas contemporacircneas a Justino satildeo outro exemplo

443 II153 444 II142 445 I123 446 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 447 Cassius Dio Hist Rom LXXII4 448 Ibid LI255 LIV345-7 449 Taacutecito Historias IV546165 V2224

90

Todavia o apologista procura convencer de que os cristatildeos natildeo suportavam nenhum tipo de

ameaccedila agrave sociedade sob o domiacutenio romano

Sua estrateacutegia apologeacutetica portanto natildeo pode negar que as crenccedilas cristatildes reprovavam

uma seacuterie de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais caracterizam um

quadro da organizaccedilatildeo social No entanto essa nova religiatildeo deveria ser encarada como uma

dessemelhanccedila absoluta Vaacuterios pontos de contato entre a cultura pagatilde e a doutrina dos

cristatildeos satildeo estabelecidos para convencer sobre esse aspecto450 Os deuses e a religiatildeo pagatilde

deveriam ser rejeitados por serem incoerentes com a moralidade segundo as narrativas

antigas A feacute cristatilde eacute apresentada como um mecanismo eficaz de controle e de organizaccedilatildeo

social que exige uma mudanccedila subjetiva antes de um reflexo socialmente objetivo Por isso

segundo seu ponto de vista a condenaccedilatildeo dos cristatildeos acatada pelos governantes locais eacute uma

forma equivocada de manter a ordem Em grande medida essa forma de controle que emerge

dos clamores reativos populares estaria impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do

nomen Christianum sem conhecerem de fato a forma de pensar dos cristatildeos Por isso Justino

procura afirmar que os cristatildeos satildeo os melhores auxiliadores na manutenccedilatildeo da paz no

Impeacuterio

450 Esse ponto seraacute analisado no proacuteximo capiacutetulo

91

CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM SOCIAL

Justino combate agrave forma de controle que recrimina os cristatildeos e que segundo seu

ponto de vista tem fundamento nas accedilotildees dos democircnios Eacute dentro do seu objetivo apologeacutetico

que emerge sua tese da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem no Impeacuterio Eacute a

primeira vez que a religiatildeo emergente dos cristatildeos aparece assumidamente como um

instrumento a favor do Impeacuterio Natildeo havia nenhuma razatildeo para esse tipo de preocupaccedilatildeo por

parte dos cristatildeos A tese da contribuiccedilatildeo cristatilde agrave manutenccedilatildeo da ordem vem em oposiccedilatildeo agrave

ideia de que os cristatildeos seriam uma ameaccedila social Todavia eacute permitido supor que diante da

mira dos ldquoperseguidoresrdquo locais nesse periacuteodo natildeo era uacutetil jurar fidelidade ao Impeacuterio

As caluacutenias e a proacutepria inclinaccedilatildeo a repudiar as superstitones estrangeiras faziam com

que os cristatildeos fossem reprimidos em diferentes niacuteveis pelos pagatildeos do Impeacuterio Justino

apresenta uma forma de controle cristatilde que julga ser mais eficiente do que aquelas pagatildes

empregadas contra os proacuteprios cristatildeos A base de tal eficiecircncia estaacute no caraacuteter de sua

doutrina que quando absorvida deveria conduzir os crentes a uma conduta pautada por regras

morais que estabelecem precircmio ou castigo eterno a todos depois da morte de acordo com seu

meacuterito em vida A doutrina cristatilde eacute uma incentivadora da moral

Ao recorrer ao imperador o apologista natildeo apenas reafirma a fidelidade dos cristatildeos

mas expotildee o caraacuteter de sua doutrina e procura ser o mais convincente possiacutevel sobre a

razoabilidade de suas crenccedilas

41 O controle absoluto do controlador absoluto

Em primeiro lugar Justino sustenta que os cristatildeos satildeo os ldquomelhores ajudantes e

aliados para a manutenccedilatildeo da pazrdquo devido ao caraacuteter das suas doutrinas como a de que ldquonatildeo

eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que

cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildeesrdquo (I Apol

121) Segundo essa perspectiva a crenccedila em um Deus onisciente seria capaz de induzir os

que a deteacutem a se comedirem Nesse sentido ele destaca ldquoningueacutem escolheria por um

momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se

92

conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e

livrar-se dos castigosrdquo (I Apol 122) Esse mecanismo de controle apresenta uma estrutura

limitadora das accedilotildees humanas que eacute dependente do conhecimento das normas que determinam

a recompensa e o castigo O traccedilo marcante desse mecanismo eacute que existe um vigilante

constante de quem natildeo se pode esconder absolutamente nada nem mesmo as intenccedilotildees

Haacute certa dependecircncia do sentimento de temor pessoal diante da ideia de vigilacircncia

constante pelos olhos infaliacuteveis de um ser superior que julgaraacute com rigor as accedilotildees humanas de

uma vez por todas num momento aguardado mas desconhecido Todavia para que ele

funcione eacute preciso que exista um miacutenimo de plausibilidade nas ideias que sustentam o

controle absoluto de Deus Ou seja ningueacutem temeria algo que natildeo fizesse o miacutenimo sentido

Aqueles que combatiam os cristatildeos natildeo se intimidavam diante do Deus cristatildeo e em alguns

casos acreditavam estar sendo piedosos combatendo as crenccedilas descabidas desse novo grupo

Atentando para essas circunstacircncias Justino se empenha em mostrar correlaccedilotildees entre

elementos do pensamento cristatildeo e outros comuns agraves culturas no Impeacuterio

A ameaccedila do castigo no poacutes-morte eacute fundamental na estrutura da doutrina da justiccedila

divina Por isso para que sua estrateacutegia de persuasatildeo funcione ele se empenha em demonstrar

ldquoas evidecircnciasrdquo da vida eterna ou do poacutes-morte O apologista admite que ldquose a morte

terminasse na inconsciecircncia seria uma boa sorte para todos os malvadosrdquo (I181) uma

reflexatildeo comum tambeacutem a Plutarco (Consolatio ad Apollonium 11107c) Todavia Justino

manteacutem que a consciecircncia permanece e que a conduta humana eacute passiacutevel de puniccedilatildeo ou

precircmio em um momento aleacutem da vida451 Sua linha de pensamento sobre esse assunto

representa apenas uma das correntes de pensamento que emergiam entre os cristatildeos no seacuteculo

II452

Para minimizar qualquer exotismo no reconhecimento dessa doutrina cristatilde ele

menciona a necromancia453 as visotildees obtidas atraveacutes de crianccedilas puras454 os que satildeo

451 Como Platatildeo discorrendo sobre a vida apoacutes a morte em Phaedo 107c 452 Cf POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005 passim 453 Justino usa o termo nekuomanteiaj que deve ser entendido como ldquoconsulta aos mortosrdquo cf I183 454 Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p178) editou essa passagem da seguinte forma ai` avdiafqorwn paidwn evpopteuseij [les divinations faites sur les entrailles drsquoenfants innocents] Seu texto grego foi fiel ao MS A que sugere o termo avdiafqorwn no lugar de diafqorwn mas a versatildeo em francecircs se distanciou muito do significado estrito Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 59) observou a nota marginal do MS A e acrescentou tambeacutem a conjunccedilatildeo div proporcionando a seguinte frase ai` div avdiafqorwn paidwn evpopteuseij Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 123) apresentam uma correccedilatildeo que parece ser a mais convincente Em vez de substituir diafqorwn por avdiafqorwn eles simplesmente dividem a palavra que aparece no MS A em duas div avfqorwn paidwn evpopteuseij [visions obtained through uncorrupted children] Natildeo eacute possiacutevel dizer se se trata de uma

93

chamados entre os magos de espiacuteritos dos sonhos e espiacuteritos assistentes para assim tentar

estabelecer que mesmo depois da morte as almas conservam a consciecircncia Os casos de

possessatildeo ou loucura quando segundo sua concepccedilatildeo sobre o que se pensava naquela eacutepoca

alguns eram ldquoarrebatados e agitados pelas almas dos mortosrdquo tambeacutem satildeo alocados ao lado

dos oraacuteculos de Anfiloco de Dodona de Piton e outros semelhantes A descida de Ulisses ateacute

a regiatildeo dos mortos na obra de Homero (Odisseia10101 ndash 111ss) as doutrinas de escritores

como Empeacutedocles e Pitaacutegoras Platatildeo e outros que disseram coisas parecidas tambeacutem satildeo

destacadas

A ideia de uma consciecircncia apoacutes a morte fiacutesica natildeo era algo estranho no mundo greco-

romano da eacutepoca de Justino Mas o apologista apresenta uma elaboraccedilatildeo teoloacutegica sobre o

ldquocastigo ou salvaccedilatildeo eternardquo que deveria desempenhar uma funccedilatildeo coercitiva sobre as pessoas

em geral Essas ideias cristatildes satildeo herdeiras de elementos do pensamento judaico jaacute sob a

influecircncia do helenismo Desse modo satildeo encontrados aspectos comuns ao judaiacutesmo como o

da justiccedila divina e outros relativos a outras culturas como a existecircncia da alma455

Segundo Dag Oistein Endsjo456 os judeus sofreram a influecircncia da cultura grega sobre

as ideias do poacutes-morte sem que isso represente uma planificaccedilatildeo das duas culturas A

correspondecircncia entre alguns elementos aparece por exemplo na traduccedilatildeo de lw a v para avdej

na LXX proporcionando a associaccedilatildeo entre a ldquosepulturardquo e o ldquosubmundo dos mortosrdquo

Associaccedilatildeo que remonta a Odisseia de Homero e se estende para niacuteveis mais complexos

Conforme tambeacutem considerou E D Wright457 judeus e cristatildeos emprestaram alguns

elementos da cultura greco-romana para a elaboraccedilatildeo de suas cosmologias Mas as

consulta de crianccedilas vivas ou mortas mas poder haver alguma relaccedilatildeo com as passagens sobre as ldquocrianccedilas purasrdquo nos Papyri Graecae Magicae e principalmente com a Historia Eclesiaacutestica (III1311-12) de Soacutecrates 455 Devido aos objetivos desta pesquisa seraacute necessaacuterio ser bastante seletivo neste ponto A anaacutelise do desenvolvimento das ideias cristatildes sobre a vida apoacutes a morte exigiria uma anaacutelise de suas raiacutezes na cultura egeia entre os egiacutepcios mesopotacircmicos no zoroastrismo na cultura grega em geral e nas vaacuterias fases da religiatildeo dos judeus As correlaccedilotildees estabelecidas neste capiacutetulo satildeo aprofundamentos de toacutepicos sugeridos pelos proacuteprio Justino no decorrer de sua anaacutelises Para mais informaccedilotildees cf SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946 OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992 COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987 DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000 SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006 456 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 457 The History of Heaven New York Oxford University Press 2000 p 139

94

correlaccedilotildees se estendem tambeacutem para com a cultura persa que segundo Alan Segal458

apresentava aspectos muito atrativos ao povo simples

O desenvolvimento das ideias sobre o poacutes-morte entre os judeus eacute complexa Haacute

algum consenso entre os estudiosos de que a ideia de ldquoressurreiccedilatildeordquo tenha aparecido

tardiamente no judaiacutesmo Mas as Escrituras judaicas apresentam referecircncias a algum tipo de

existecircncia apoacutes a morte fiacutesica Um caso emblemaacutetico acontece quando o rei Saul procurou

uma b A a ecircb A a ecircb A a ecircb A a ecirc-t l[]B [evocadora de espiacuteritos] para poder falar com o falecido profeta Samuel (I

Samuel 281-7) praacutetica proibida pela Lei (Dt 189-12) No I seacutec dC a ressurreiccedilatildeo era

motivo de disputas entre saduceus e fariseus459 Os saduceus natildeo acreditavam na ressurreiccedilatildeo

dos mortos Sobre os fariseus Flaacutevio Josefo460 escreveu que ldquotoda alma [] eacute impereciacutevel

mas somente a alma dos bons passa a outro corpo Por outro lado a alma dos homens maus

estaacute sujeita agrave puniccedilatildeo eternardquo Os saduceus satildeo descritos como aqueles que ldquoacreditavam que

Deus natildeo estaacute interessado em se agimos bem ou mal [] agir bem ou mal eacute apenas uma

questatildeo de escolha humana e que uma ou outra pertence a cada um assim podem agir como

bem entendemrdquo461 Tambeacutem descartam a crenccedila ldquona duraccedilatildeo imortal da alma e na puniccedilatildeo e

recompensa no Hadesrdquo462 Na contramatildeo dessas ideias Josefo escreve que os fariseus

ldquotambeacutem acreditam que a alma tem o poder de sobreviver agrave morte em si e que embaixo da

terra haveraacute recompensa ou puniccedilatildeo para a vida de viacutecio ou virtude que se viveu nesta

vidardquo463

Natildeo passou despercebido a Vicente Dobroduka464 que o vocabulaacuterio empregado pelo

historiador judeu se assemelha razoavelmente ao de Platatildeo465 Quer seja por uma intenccedilatildeo do

autor em aproximar a doutrina farisaica agrave filosofia ou pela adaptaccedilatildeo de um editor posterior

os pontos de semelhanccedila entre essas doutrinas e a cultura helecircnica satildeo evidentes Mesmo sem

ser uma forma de pensar que atraiacutesse a todos os judeus naquela eacutepoca natildeo haacute razotildees para se

458 Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 p 394 Cf as noccedilotildees escatoloacutegicas persas que teriam influenciado a apocaliacuteptica judaica em RUSSELL D S The Method and Message of Jewish ApocalypticPhiladelphia Westminster Press 1964 p 19 e em SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008 p 314 Entre essas noccedilotildees esta a ideia da ressurreiccedilatildeo corporal Para uma visatildeo geral da escatologia do Avesta cf MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975 pp 177-207 459 Mt 2223-33 Josefo Ant Jud 1814 Guer Jud 28 460 Guer Jud 2162ss 461 Guer Jud 2162ss 462 Guer Jud 2162ss 463 Ant Jud 1814 464 DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 2005 p 24 465 Meno 81b5 Feacutedon 70a8 e 72a8

95

duvidar que a ideia de uma recompensa futura baseada nas accedilotildees humanas era amplamente

conhecida entre os judeus Como escreveu Elizacircngela A Sousa466

certos elementos nas ideias particulares de juiacutezo satildeo compartilhados por uma e outra cultura assinalando algum tipo de intercacircmbio existente entre elas o que ainda outra vez nos coloca de frente com o pressuposto de que certos aspectos culturais (e religiosos) se constituem se natildeo totalmente a partir de trocas simboacutelicas pelo menos em parte satildeo influenciados por elas

A tradiccedilatildeo aponta que Paulo era um fariseu467 e a sua crenccedila na ressurreiccedilatildeo se

desenvolveraacute entre os cristatildeos No entanto eacute preciso lembrar como destacou D O Sousa468

que entre os cristatildeos ldquonatildeo havia uma unicidade de pensamento em continuidade com a

escatologia judaicardquo No processo proselitista de comunicaccedilatildeo da mensagem cristatilde os fieacuteis

enfrentaram os questionamentos de outros grupos Segundo o relato de Atos dos Apoacutestolos

(1716-34) Paulo enfrentou a resistecircncia dos filoacutesofos epicureus e estoicos no areoacutepago em

Atenas e em outro episoacutedio precisou repreender os coriacutentios em carta porque alguns estavam

sustentando que natildeo existia ressurreiccedilatildeo (I Co 1512-33) Embora os relatos de ressurreiccedilatildeo

dos mortos e da existecircncia de uma consciecircncia apoacutes a morte fossem comuns ao mundo greco-

romano como destaca Dag Oistein Endsjo469 natildeo existia nenhum consenso e eacute possiacutevel

distinguir essas contraposiccedilotildees em pelo menos dois grupos os criacuteticos intelectuais que

incluiacuteam filoacutesofos oradores e escritores e por outro lado a maioria sem instruccedilatildeo

De acordo com Lewis Richard Farnell470 a especulaccedilatildeo filosoacutefica grega natildeo poderia

ser considerada uma testemunha plena da mentalidade e da feacute daquela eacutepoca da cultura greco-

romana Estrabatildeo471 escreveu provavelmente no iniacutecio do I seacuteculo dC que ldquofilosofia era

algo para poucos enquanto poesia era mais uacutetil para as pessoas em geralrdquo No mesmo sentido

Plutarco472 admite que em sua eacutepoca apenas poucos conheciam as Leis de Platatildeo enquanto os

escritos de Homero eram ainda amplamente disseminados Pausacircnias no seacuteculo II dC

escreveu que Platatildeo a quem ele chama de ldquoo maior dos filoacutesofosrdquo473 tinha suas ideias

recebidas somente ldquopor alguns dos gregosrdquo474 Tudo indica que a situaccedilatildeo no II seacuteculo era a

466 SOARES Elizangela A Variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte desenvolvimento de uma crenccedila no judaiacutesmo do segundo templo 127 f (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2006 p 104 467 At 223 468 SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 setdez 2009 p 412 469 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 passim 470 Ibid p 386 471 Geografia 128 472 Moralia 328de 473 Descriccedilatildeo da Greacutecia 4324 474 Ibid 1303

96

mesma que Oriacutegenes475 descreve no seacuteculo seguinte ldquoeacute faacutecil de fato observar que Platatildeo eacute

encontrado somente nas matildeos daqueles que professam serem homens das letrasrdquo

Conforme destacou Henry Chadwick476 o estudo da metafiacutesica platocircnica foi peculiar a

poucos de uma ldquoaristocracia intelectualrdquo Nesse sentido Ramsay MacMullen477 tambeacutem

apontou que a reflexatildeo filosoacutefica natildeo apresentou nenhuma influecircncia detectaacutevel agrave praacutetica

cuacuteltica da religiatildeo tradicional grega478 Por outro lado eacute possiacutevel encontrar criacuteticas da

intelectualidade agraves superstitiones e agrave religiatildeo tradicional Certamente para pensadores como

Plutarco Dio de Prusa e Luciano de Samoacutesata os deuses natildeo existiam conforme as formas

homeacutericas Segundo Ramsay MacMullen479 esses pensadores puristas sustentam que os

deuses estavam distantes demais de tais caracteriacutesticas humanas comuns tais como nascer

comer beber e fornicar como a maioria deles faz extensivamente em suas tradicionais

representaccedilotildees Tudo isso natildeo passa de deisidaimonia ou seja ldquosupersticcedilatildeordquo Muitas vezes os

filoacutesofos reinterpretavam ou racionalizavam os mitos antigos rejeitando acontecimentos

milagrosos recentes semelhantes agraves narrativas antigas

No mundo grego a morte foi usualmente definida como a separaccedilatildeo da alma do corpo

Isso eacute amplamente demonstrado nas representaccedilotildees da morte de muitos guerreiros de Homero

repetidamente descritas como a alma [yuch] deixando o corpo480 E mesmo Platatildeo poderia

concordar com isso tendo Soacutecrates proclamado que a morte em sua opiniatildeo ldquonatildeo eacute nada

aleacutem do que a separaccedilatildeo dessas duas coisas a alma e o corpordquo481 A alma homeacuterica no Hades

era sempre definida como ldquomorterdquo Eram ldquoespiacuteritos da morterdquo482 ldquoMorterdquo natildeo significava

inexistecircncia absoluta mas uma existecircncia deacutebil da alma sem o corpo Sem um corpo fiacutesico

ningueacutem era de fato uma ldquopessoa completardquo Para os gregos a natureza humana sempre

equivaleu a uma unidade psicossomaacutetica Como escreveu Michael Clarcke483 ldquoo homem

homeacuterico natildeo tinha uma mente pois seus pensamentos e consciecircncia eram partes constituintes

da sua vida corpoacuterea como eram os movimentos e o metabolismordquo

475 Contra Celso 62 476 Introduction In ____ Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi 477 Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 p77 478 Isso natildeo quer dizer que filosofia natildeo acarretou mudanccedilas na maneira de pensar a religiatildeo pelos letrados como se considerou no capiacutetulo anterior 479 Ibid p77 480 ENDSJO Dag Oistein Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 p 38 481 Platatildeo Gorgias 524b cf Platatildeo Feacutedon 64c 482 Odisseia 11541 cf Odisseia 10521 10536 1129 1149 483 CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999 p 115

97

Como filoacutesofo Plutarco natildeo acreditava em nenhuma dessas histoacuterias populares sobre

ressurreiccedilatildeo fiacutesica e imortalizaccedilatildeo Para ele somente a alma tinha a chance de alcanccedilar a

esfera divina ldquoquando ela definitivamente se separa e se torna livre do corpo tornando-se

pura descarnada e imaculadardquo484 Mas ele admite que a maioria das pessoas natildeo se importava

com isso

Essas especulaccedilotildees tinham consequecircncias apenas limitadas de modo que natildeo

apresentaram um impedimento destacaacutevel agrave proliferaccedilatildeo de superstitiones inclusive entre as

classes elevadas agraves vezes Conforme Rohde485 argumenta a indignaccedilatildeo apaixonada de

filoacutesofos estoicos e epicureus que atacavam as crenccedilas que repousavam sobre os ensinos de

Homero natildeo poderiam ser explicadas exceto pela suposiccedilatildeo de que Homero e suas

representaccedilotildees permaneciam com uma significativa forccedila de orientaccedilatildeo entre as massas que

natildeo tinham conhecimento da filosofia O proacuteprio Justino indica que as ideias em torno da

crenccedila no Hades ainda eram fortes

O apologista toma o desafio de mostrar que a forma de pensar cristatilde natildeo era uma

novidade tatildeo descabida que natildeo pudesse ser aceita e ao mesmo tempo procura mostrar que

suas ideias apresentam um argumento razoaacutevel Comparando a crenccedila cristatilde na existecircncia de

uma consciecircncia apoacutes a morte do corpo agraves outras opiniotildees disseminadas pelo Impeacuterio

destaca-se tambeacutem que essa doutrina natildeo era demasiadamente estranha aos povos486 Os

elementos aparentemente comuns agrave cultura greco-romana e ao cristianismo nascente satildeo

alinhados na construccedilatildeo do argumento de que se os cristatildeos natildeo apresentavam uma doutrina

demasiadamente nova natildeo deveriam existir razotildees para serem incomodados ou combatidos

Neste caso os que apresentam doutrinas semelhantes agraves dos fieacuteis tambeacutem mereceriam ser

combatidos ou em uma melhor hipoacutetese ambos mereceriam ser deixados em paz

Outro refuacutegio apologeacutetico encontrado por Justino eacute recorrer ao fundamento cristatildeo na

tradiccedilatildeo judaica para assim alegar a antiguidade cristatilde Mas reconhecendo os elementos

semelhantes agrave cultura geral e agrave religiatildeo dos judeus o apologista abaixa a guarda para os

golpes da intelectualidade Por isso sua trama apologeacutetica precisa forjar um sentido

racionalizante desses elementos comuns a pagatildeos e a judeus e apresentar ao mesmo tempo a

doutrina cristatilde como um ensinamento superior agrave filosofia

484 Plutarco Romulus 287 485 ROHDE Erwin [1921] Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966 p 535 486 I186

98

Ele compara a crenccedila cristatilde na consumaccedilatildeo final de todas as coisas agraves noccedilotildees de

Sibila487 e Histapes488 (I201) sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo de tudo o que eacute corruptiacutevel A

funccedilatildeo do fogo no processo do ciclo coacutesmico dos filoacutesofos estoicos tambeacutem eacute elencado

destacando o renascimento do mundo pela transformaccedilatildeo489 Arquitetando seu argumento

apologeacutetico Justino questiona por que os cristatildeos satildeo ldquoperseguidosrdquo se existem algumas

correlaccedilotildees ou semelhanccedila entre as coisas ensinadas entre os fieacuteis e entre os filoacutesofos e

ldquopoetasrdquo estimados pelos romanos490 Essas correlaccedilotildees no entanto levaratildeo o apologista a

um aprofundamento dessas semelhanccedilas e dessemelhanccedilas Ele escreve

Assim quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus pareceraacute apenas que enunciamos um dogma de Platatildeo ao falar sobre conflagraccedilatildeo outro dogma dos estoicos ao dizer que satildeo castigadas as almas dos iniacutequos que ainda depois da morte conservaratildeo a consciecircncia e que as dos bons livres de todo castigo seratildeo felizes pareceraacute que falamos como vossos poetas e filoacutesofos que natildeo se devem adorar obras de matildeos humanas natildeo eacute senatildeo repetir o que disseram Menandro o

487 O substantivo feminino Sibulla pode significar uma ldquoprofetizardquo (PEREIRA Isidro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 516) Admite-se que essas elas profetizavam sob a influecircncia divina O primeiro escritor grego a fazer menccedilatildeo a Sibila eacute Heraacuteclito (Fragmento 92) No entanto Walter Burket (Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 p 116) escreve que mulheres em frenesi espiritual pelas quais os deuses falavam podiam ser encontradas muito antes no Oriente proacuteximo como em Mari no secundo milecircnio e na Assiacuteria no primeiro milecircnio Elas natildeo eram identificadas por um nome proacuteprio ficavam conhecidas apenas com o nome do local onde atuavam Uma coleccedilatildeo de anuacutencios profeacuteticos deu origem ao que ficou conhecido como Libri Sibyllini Acredita-se que a abra tenha sido obtida no reinado de Tarquinio Priscus (616 aC ndash 579 ac) por uma Sibila que protagoniza um mito em torno do livro Por vezes ela eacute chamada apenas de Sibila Os textos serviam de paracircmetro para a religiatildeo e eram guardados no Juacutepiter Captolino Com o incecircndio do templo em 82 aC os livros se perderam Deram iniacutecio a uma raacutepida busca por textos sibiliacutenicos por diversas regiotildees para compor uma nova coleccedilatildeo Poreacutem o caraacuteter e a pretensatildeo dos textos coletados desapontou esse objetivo Augustus determinou que os livros fossem destruiacutedos (Suetonio Vita cesarum Augustus 31 Tacito Anais VI12) Tibeacuterio voltou a examinar os Livros Sibilinos Muitos foram rejeitados como escritos espuacuterios (Cassius Dio LIV17) Pouco tempo mais tarde ainda sob seu governo um novo volume foi admitido (Taacutecito Anais VI12) (cf SMITH W (Ed) A Dictionary of Greek na Roman Antiquities London John Murray 1875 pp 1043-1044) Do primeiro para o segundo seacuteculo uma grande porccedilatildeo de escritos de cunho judaico-cristatildeos entram no paacutereo do textos sibiliacutenios (cf TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899) Eacute difiacutecil saber exatamente a qual ensino sibilino sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo Justino se refere MUNIER (op cit p 185) sugere que seja o trecho dos Oracles Sibyllins II196 MARCOVICH (Op cit p 62) aponta as passagens de Oracle Sibylline 2196ss 2286ss 3672ss 3689ss 4173ss 7120ss 8243ss O mesmo livro sibilino eacute mencionado em I4512 cuja leitura era vetada ao povo Cf ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997 PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988 A Greek-English Lexicon Edited by Henry Georg Liddell and Robert Scott OxfordNew York Clarendon PressOxford University Press 1996 488 U`stasphj eacute a forma grega de se escrever Vistaspa nome do pai de Dario o Grande e protetor de Zoroastro (KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945) Justino provavelmente estaacute se referindo ao escrito pseudoepiacutegrafo dos Oraacuteculos de Histaspes produzido provavelmente entre os seacuteculo II e I aC Essa obra heleniacutestica da Aacutesia menor apresentava fortes traccedilos do Zoroastrismo mas tambeacutem evidenciava aspectos poliacutetico-apocaliacutepticos relacionado ao domiacutenio de Roma sobre os demais povos (SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012 cf CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938) Histaspe e Sibila tambeacutem aparecem juntos nos escrito de Clemente de Alexandria (Stromata VI51) Lactacircncio (Divinae Institutiones VII1519 VII182) 489 I202 490 I203

99

poeta cocircmico e outros com ele que afirmaram que o artiacutefice eacute maior do que aquele que o fabrica (I204-5)

Tendo em vista a criacutetica dos filoacutesofos e letrados agraves crenccedilas gerais do povo as

semelhanccedilas e pontos de contato entre as doutrinas cristatildes e os mitos pagatildeos apontados por

Justino em defesa dos cristatildeos poderia se converter em uma nova dificuldade como algueacutem

que tenta sair de um abismo para cair em outro Por isso ele desenvolve uma explicaccedilatildeo para

essas semelhanccedilas elevando as doutrinas cristatildes a um niacutevel de primazia e evidenciando o seu

aspecto filosoacutefico

Segundo Viviana L Felix491 mesmo admitindo a semelhanccedila entre os ensinos de

Platatildeo e o dos cristatildeos uma posiccedilatildeo contraacuteria agrave doutrina platocircnica da alma eacute assumida

empenhando-se na construccedilatildeo de uma soteriologia e escatologia cristatildes conforme seratildeo

analisadas mais adiante O apologista combate como destaca Van Winden492 as correntes

filosoacuteficas que natildeo tecircm esperanccedila que Deus castigue ou premie em outra vida Seu interesse

estaacute ligado agrave vida eacutetica do homem e seu destino escatoloacutegico

A esperanccedila dos cristatildeos de terem os seus corpos restabelecidos mesmo depois de

mortos poderia representar algo ldquoimpossiacutevelrdquo na opiniatildeo de alguns Justino natildeo usa outro

argumento que natildeo seja o argumento da feacute Esse seu subterfuacutegio indica que muitas coisas que

parecem ser impossiacuteveis em um momento se demonstram possiacuteveis em outro surpreendendo

a muitos Ele usa o exemplo do secircmen humano para dizer que mostrado a algueacutem luacutecido

jamais se poderia supor imediatamente que uma soacute gota desse liacutequido seria capaz de se

transformar em um corpo humano De modo semelhante entatildeo se a princiacutepio pode parecer

estranho crer que um corpo ldquosemeadordquo na sepultura possa se transformar em um corpo

glorificado na ressurreiccedilatildeo depois se mostraraacute evidente493 Explanando esse argumento o

apologista explica que os cristatildeos sustentam que ldquoeacute melhor crer naquilo que estaacute acima da []

proacutepria natureza e que eacute impossiacutevel aos homens do que serem increacutedulosrdquo494 Tudo gira em

torno dos ensinamentos do seu mestre Jesus Cristo O mesmo que ensinou que o que eacute

impossiacutevel para os homens eacute possiacutevel para Deus495 Para um ouvinte alheio agrave mentalidade

judaico-cristatilde tal sentenccedila poderia parecer muito vaga Afinal os pagatildeos estavam

familiarizados com as limitaccedilotildees humanas e os poderes divinos que recheavam os mitos 491 FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa 492 WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 1975 pp 181-190 493 I191-4 494 I196 Kreitton de pisteuein kai tauta kai ta Th| e`autwn fusei kai avnqrwpoij avdunata hv o`moiwj toij alloij avpistein proseilhfamen MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 495 `Ta avdunata para avnqrwpoij dunata para qew|( MINNSPARVIS Op cit p 128 A citaccedilatildeo eacute de Lc 1827

100

Todavia Justino faraacute saber que o ponto chave desse misteacuterio eacute a feacute naquilo que eacute crido como a

ldquorevelaccedilatildeo divinardquo Essa revelaccedilatildeo mostra-se tambeacutem desafiadora pois ao mesmo tempo em

que traz luz sobre as accedilotildees humanas porta condenaccedilatildeo e temor ainda que estes sejam

contemplados pela mensagem da cruz496 de modo reparador Eacute no exato momento em que se

manifesta a necessidade de escolher aquilo que se revela como o correto verdadeiro e bom

que se deve temer pela escolha capaz de determinar o destino no poacutes-morte Essa advertecircncia

tambeacutem foi feita pelo mestre Natildeo temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais

podem fazer temei antes aquele que depois da morte pode lanccedilar alma e corpo no

inferno497 Ele mesmo define o ldquoinfernordquo como ldquoo lugar onde seratildeo castigados os que

tiverem vivido iniquamente e natildeo acreditaram que aconteceratildeo essas coisas ensinadas por

Deus atraveacutes de Cristordquo498 (I198) O Deus absoluto que tudo vecirc tudo conhece e do qual

nada se pode ocultar aparece tambeacutem como o grande juiz das accedilotildees humanas Assim

comunicada essa ldquoverdaderdquo cristatilde ela deve produzir temor e efetivar a sua funccedilatildeo em exigir

uma accedilatildeo positiva ou negativa de quem a ouve ou a lecirc

42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde

Seguindo o raciociacutenio do apologista deve ser a ldquorazatildeordquo a dirigir as escolhas humanas

No entanto a ldquorazatildeordquo ou seja o logos que estaacute em evidecircncia no pensamento de Justino eacute

produto da sua arguiccedilatildeo teoloacutegico-apologeacutetica Eacute possiacutevel identificar uma estrateacutegia literaacuteria

496 Mensagem da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo 497 lsquoMh Fobeisqe touj avnairountaj umaj kai meta tauta mh dunamenouj ti poihsai( fobhqhte de meta to Avpoqanein dunaMenon kai yuchn kai swma eivj geennan evmbalein)v MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 Cf Mt 1028 Lc 124-5 Geenna eacute uma transliteraccedilatildeo grega do termo aramaico ~ N h iy G e que corresponde ao ~oN h i a y G e hebraico e assumiu o sentido de ldquopuniccedilatildeo futurardquo (RUSCONI C Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 106 A primeira menccedilatildeo ao Vale de Hinnom na Biacuteblia aparece em Js 158 No entanto no texto dos LXX (LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]) satildeo empregadas as palavras faragga Onom para se referir ao ~ N Oh i- y g E) da Biacuteblia Hebraica (Biblia Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50]) Em II Cr 283 a LXX substitui ~ N O=h i- b a y g EaringB pela transliteraccedilatildeo Gaibenenom Esse lugar teria destinados primeiramente ao sacrifiacutecio de crianccedilas a Moloque e a Baal numa parte especiacutefica do vale chamada Tophet Depois do Exiacutelio com o intuito de mostrar a abominaccedilatildeo do local o judeus o transformaram no depoacutesito de lixo da cidade Para a destruiccedilatildeo dos resiacuteduos ali depositados o fogo era mantido sempre aceso Por isso os judeus associaram ao local a ideia de sofrimento e corrupccedilatildeo (Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998 p 457) A palavra geenna eacute sempre empregada nos discursos de Jesus (Mt 2333 Lu 125 Mt 522) como um lugar de puniccedilatildeo num julgamento futuro e Justino o emprega nesse mesmo sentido 498 h de geenna evsti topoj enqa kolaxesqai mellousin oi` avdikwn biwsantej kai mh pisteuontej tauta genhsesqai( o[as o` qeoj dia tou Cristou evdidaxe) MINNSPARVIS Op cit p 128 Cf Lc 125 Mt 1028

101

que ressignifica o conceito de ldquorazatildeordquo por meio da construccedilatildeo teoloacutegica em torno do logos

cristatildeo buscando atestar a racionalidade da ldquofilosofiardquo cristatilde

Considerar a religiatildeo cristatilde como uma ldquofilosofia divinardquo499 natildeo eacute apenas o reflexo da

sua trajetoacuteria filosoacutefica ateacute sua conversatildeo eacute tambeacutem uma estrateacutegia apologeacutetica que considera

normal existirem diferentes correntes de pensamento dentro do Impeacuterio sem que isso acarrete

automaticamente perseguiccedilotildees entre grupos distintos500 Segundo Justino eacute o logosrazatildeo que

orienta o curso da apologia em favor dos cristatildeos501 O apologista estaacute convencido de que suas

reivindicaccedilotildees satildeo ldquojustas e verdadeirasrdquo502 o que exige uma investigaccedilatildeo particular sobre o

sentido desses dois conceitos tambeacutem De outro modo a causa uacuteltima das accedilotildees anticristatildes eacute a

influecircncia dos democircnios que colocam o povo e as autoridades contra os fieacuteis Segundo seu

raciociacutenio os ldquomaus democircniosrdquo agiam por meio da promoccedilatildeo da ignoracircncia e da confusatildeo

Por isso ele se demonstra disposto a apresentar outros pontos sobre as crenccedilas cristatildes ldquoa fim

de persuadir os amantes da verdaderdquo503

Tendo em vista que o mecanismo de controle proporcionado pelo conteuacutedo das

doutrinas cristatildes eacute estabelecido fundamentalmente pelo temor diante do Deus que sonda todas

as coisas e que pode punir ou recompensar eternamente aqueles que agem virtuosamente nesta

vida o apologista escreve sobre a capacidade humana de agir racionalmente

Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e se recusem

outras como ldquoa pobreza o sofrimento e a desonra paternardquo504 A incompreensatildeo dessa

ldquoracionalidade cristatilderdquo fazia com que muitos se opusessem aos cristatildeos A falta de

conhecimento sobre as doutrinas cristatildes seria a responsaacutevel por exemplo por muitos

acusarem-lhes de ateiacutesmo505 Por ser uma religiatildeo nova e em processo de consolidaccedilatildeo natildeo eacute

nenhuma surpresa que muitos ainda estivessem confusos acerca das doutrinas cristatildes que por

vezes encabulavam os proacuteprios cristatildeos506

499 II Apol 125 500 II Apol 126 501 II Apol 128 502 I1211 tambeacutem em I683 ldquonatildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo 503 I1211 504 I128 505 I131 506 Os cristatildeos estavam longe de apresentarem unidade doutrinaacuteria Justino faz menccedilatildeo a cristatildeos divergentes como Helena Menandro e os marcionitas (I261-8)

102

421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios

Segundo a tese apresentada por Justino os democircnios se apoderam de todos aqueles

que de um ou outro modo natildeo trabalham por sua proacutepria salvaccedilatildeo O conceito de daiacute mwn

estava presente na cultura grega desde Homero e Hesiacuteodo507 Seu campo semacircntico eacute extenso

Deus conceito baacutesico que mais se aproxima da ideia que Justino sustenta eacute o de ldquoum ser

divinordquo ldquoo poder divinordquo ldquoum semideusrdquo ldquoser que interfere no destino humanordquo e poderia

ser ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo508

O conceito de ldquosalvaccedilatildeordquo natildeo estaacute claro nesses escritos mas estaacute relacionado agrave

recompensa positiva daqueles que creram e agiram conforme a revelaccedilatildeo dos desiacutegnios

divinos Isso tambeacutem significa associar-se ao logos e dissociar-se dos enganos demoniacuteacos

Desse modo ele escreve que ldquodepois de crer no logos noacutes nos afastamos deles [dos democircnios]

e por meio do Filho seguimos o uacutenico Deus unigecircnitordquo509

Esse distanciamento dos enganos destes seres malignos e pelo apego ao logos eacute o que

produz uma mudanccedila de conduta Seu testemunho em defesa da feacute eacute que os que antes se

compraziam na dissoluccedilatildeo agora abraccedilam apenas a temperanccedila os que antes se entregavam

agraves artes maacutegicas agora se consagram ao Deus bom e ingecircnito aqueles que antes eram

apegados aos bens materiais e agraves rendas agora compartilham do quem tecircm os que antes se

odiavam e se matavam mutuamente desprezando aqueles que natildeo pertenciam agrave mesma raccedila

pela diferenccedila de costumes agora vivem todos juntos rezam pelos seus inimigos e tratam de

persuadir os que os aborrecem injustamente a fim de que vivendo conforme conselhos de

Cristo tenham boas esperanccedilas de alcanccedilar uma recompensa de Deus (I Apol 141-3) Por

isso o filoacutesofo apologista critica as accedilotildees anticristatildes romanas que acatavam as caluacutenias

disseminadas dizendo ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e natildeo

tenhais a quem castigarrdquo510

A fonte da moralidade cristatilde estaacute primeiramente relacionada agrave mensagem do seu

mestre o Cristo por vezes tido como motivo de escacircndalo para os infieacuteis Essa moralidade eacute

destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e comentaacuterios ldquodisseminados

507 POPE Kyle Mark The concept of theDAIMWN in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 13-17 cf REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004 508 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 (Perseu Project) 509 I Apol 141 510 I Apol 124

103

entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso seu discurso sobressalta o

valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de temperanccedila511 Tambeacutem recebem

destaques a doutrina cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos

necessitados e a ausecircncia de valor da ostentaccedilatildeo512 Com o mesmo tom piedoso seguem as

afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico513 Desse

modo Justino contribui tambeacutem para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos

propondo uma identidade coletiva Nesse processo o apologista combate um conceito

estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que considera equiacutevocos e mal entendidos

ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja Essa sua atitude revela tambeacutem que o processo de construccedilatildeo da

identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada principalmente pela

necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os variados grupos

cristatildeos Pois as Igrejas em meados do seacuteculo II devem ser vistas ainda como manifestaccedilotildees

de ldquocristianismosrdquo514

No intuito de explicar o caraacuteter das crenccedilas cristatildes Justino faz referecircncia agrave recepccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo de escritos e doutrinas Ser cristatildeo em sua perspectiva natildeo eacute simplesmente

pertencer a um grupo eacute um ldquoidealrdquo o de aprender o que foi ensinado pelo Cristo e praticar

em suas obras Desse modo elege-se a praacutetica dos ensinamentos do Logos como o elemento

fundamental diferenciador entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos515 Justino defende a liberdade para

estes que ele tem por ldquocristatildeosrdquo aos outros espera-se que sejam mesmo perseguidos516

Dentre os ensinos do Cristo estaacute o pagamento dos tributos e contribuiccedilotildees517 mas o

apologista vai aleacutem Propondo-se a oferecer algumas das principais informaccedilotildees sobre o

conteuacutedo das crenccedilas cristatildes um paralelo entre a natureza desses ensinamentos e outras

arguiccedilotildees eacute traccedilado518

Jesus eacute descrito como u`ioj de Qeou [filho de Deus] aquele que ainda que parecesse

homem de modo comum por sua sabedoria mereceria chamar-se filho de Deus Haacute um

511 I151-7 512 I141-919 513 I161-6 514 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 515 ldquoAqueles poreacutem que se vecirc que natildeo vivem como ele ensinou sejam declarados como natildeo cristatildeos por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de Cristo pois ele disse que se salvariam natildeo os que apenas falassem mas que tambeacutem praticassem as obrasrdquo (I169) 516 ldquoAqueles que natildeo vivem conforme os ensinamentos de Cristo e satildeo cristatildeos apenas de nome noacutes somos os primeiros a vos pedir que sejam castigadosrdquo (I1614) 517 Justino recorre agrave passagem comum a Mt 221719-20 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo cf I172 518 I144

104

contraste entre o Cristo que nasceu como Logos de Deus e o que afirmavam sobre Hermes

chamado de Logos anunciador ou mensageiro de Deus519 Para rebater o desdeacutem pela

crucificaccedilatildeo de Cristo que poderia representar algo despreziacutevel aos olhos de muitos no

Impeacuterio o apologista aponta que tambeacutem os filhos de Zeus sofreram mortes terriacuteveis Sobre

ele haver nascido de uma virgem ele compara-o a Perseu Quanto agrave cura de coxos paraliacuteticos

e enfermos de nascimento e ateacute mesmo ressurreiccedilatildeo de mortos ele aponta que haacute alguma

semelhanccedila com Ascleacutepio520 As comparaccedilotildees tambeacutem envolvem Dioniso e Heacuteracles esta

uacuteltima ascendida depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos os Dioacutescoros filhos de

Leda Perseu de Dacircnae e Belerofonte nascido de homens que ascenderam sobre o cavalo

Peacutegaso O apologista fala tambeacutem dos imperadores mortos aos quais muitos consideravam

como dignos da imortalidade e alguns juravam terem visto Ceacutesar subir ao ceacuteu521 Mas ele

adverte ldquoNatildeo pedimos que se aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque

dizemos a verdaderdquo522

As doutrinas cristatildes satildeo apresentadas como a ldquouacutenica verdaderdquo e a mais antiga do que

todos os escritores que existiram Seu discurso busca demonstrar que Jesus Cristo eacute

propriamente o uacutenico Filho nascido de Deus como seu Logos seu Primogecircnito e sua

Potecircncia A encarnaccedilatildeo do Filho pelo seu designo deu-se para que ele ensinasse essas

verdades para a transformaccedilatildeo e conduccedilatildeo do ldquogecircnero humanordquo523 Poreacutem segundo sua teoria

apologeacutetica antes de tornar-se homem entre os homens houve alguns democircnios malvados

que se adiantaram a dizer por meio dos poetas terem acontecido os mitos que inventaram

Seriam esses os mitos gerais conhecidos por gregos e romanos Em oposiccedilatildeo ao

esclarecimento proposto pelo logos para a salvaccedilatildeo humana esta o obscurecimento de toda a

racionalidade proporcionado pelos democircnios

Os democircnios satildeo entatildeo reconceituados a partir de uma perspectiva cristatilde que toma por

base a tradiccedilatildeo judaica em intersecccedilatildeo com aspectos da cultura grega conforme analisou K

M Pope524 Sua imagem estaacute relacionada ao ldquopriacutencipe dos maus democircniosrdquo chamado de

ldquoserpente satanaacutes diabo ou caluniador Todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que

519 I221-2 520 I225-6 521 Cassius Dio (Hist Rom 56462 cf T Livio Histoacuteria de Roma (Ad urbe condita) I165-7) menciona a histoacuteria de que um senador e ex-pretor tinha jurado que ele tinha visto Augustus subindo aos ceacuteus Suetocircnio tambeacutem se refere a algo desse tipo Augustus 1004 Uma histoacuteria similar foi contada sobre Iulia Drusilla a irmatilde de Caliacutegula (Cassius Dio Hist Rom 59114) Secircneca zomba deste testemunho em Apocolocyntosis I 522 I231 523 I232 cf SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987 524 The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 52-53

105

o seguem seraacute enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de

antematildeo anunciada por Cristordquo525

Justino acredita ser possiacutevel demonstrar a veracidade da feacute cristatilde por meio do

cumprimento das Escrituras526 Ele explica que os profetas de Deus movidos pelo logos e sob

o Espiacuterito profeacutetico anunciaram antecipadamente os acontecimentos futuros Vem em

seguida uma seacuterie de ldquoprediccedilotildeesrdquo sobre a vinda de Cristo e sobre o que deveria acontecer tais

como a queda de Jerusaleacutem527 a cura das enfermidades e a morte de Cristo a ressurreiccedilatildeo dos

mortos e a prediccedilatildeo de Isaiacuteas528 sobre a expansatildeo para todas as naccedilotildees Ele tambeacutem procura

mostrar que ateacute o sofrimento e a humilhaccedilatildeo de Jesus estavam previstas nas profecias e que

ele chegou a ser abandonado ateacute pelos seus (I501ss) Seu raciociacutenio eacute o seguinte

Com efeito do mesmo modo que o acontecido antecipadamente anunciado por mais que natildeo tivesse sido compreendido aconteceu assim tambeacutem o que ainda falta para ser cumprido aconteceraacute por mais que natildeo se compreenda nem se creia Assim eacute que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo uma jaacute cumprida como homem desonrado e passiacutevel a segunda quando viraacute dos ceacuteus acompanhado de seu exeacutercito de anjos quando ressuscitaraacute tambeacutem os corpos de todos os homens que existiram revestiraacute de incorruptibilidade os que forem dignos e enviaraacute os iniacutequos com percepccedilatildeo eterna ao fogo eterno junto com os perversos democircnios (I521-3)

Com convicccedilatildeo sobre o cumprimento das profecias escreve ldquoDe fato por que motivo

haveriacuteamos de crer que um homem crucificado eacute o primogecircnito do Deus ingecircnito e que

julgaraacute todo o gecircnero humano se natildeo encontraacutessemos testemunhos sobre ele publicados

antes de ele ter nascido como homem e natildeo os viacutessemos literalmente cumpridosrdquo 529 E isso o

faz pensar que a apresentaccedilatildeo desse elevado nuacutemero de referecircncias a prediccedilotildees e seus

cumprimentos deveria razoavelmente convencer a seus leitores530

Os mitos dos pagatildeos satildeo comparados aos ldquoensinosrdquo cristatildeos sustentando que eles natildeo

apresentam nenhuma prova de sua veracidade Isso deveria demonstrar que foram ditos por

obra dos ldquodemocircnios perversosrdquo para enganar e extraviar o ldquogecircnero humanordquo Ouvindo os

profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens iacutempios seriam castigados atraveacutes do

fogo esses seres maleacutevolos teriam colocado agrave ldquofrente muitos que se disseram filhos de Zeus

crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo

como um conto de fada semelhante aos contados pelos poetasrdquo531 Assim eacute elencada uma

seacuterie de semelhanccedilas entre a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e a greco-romana para mostrar a distorccedilatildeo

525 I281 526 I301ss 527 I471ss 528 Is 651-15 520 529 I532 530 Justino escreve que seriam persuadidos os que ldquoamam a verdade que natildeo seguem a opiniatildeo nem se deixam dominar por suas paixotildeesrdquo (I5310-12) 531 I542

106

pagatilde que soacute podem ser identificadas atraveacutes de uma hermenecircutica bem peculiar532 As

comparaccedilotildees vatildeo desde o texto de Gn 4910-11 agrave vinha de Dioniso e sua ascensatildeo

semelhante agrave subida de Belerofonte montado no cavalo Peacutegaso ao ceacuteu o texto de Is 714 e a

lenda de Perseu Sl 186 e as narrativas sobre Heacutercules ateacute as ldquoprofeciasrdquo de curas a todas as

enfermidades e ressurreiccedilatildeo dos mortos533 ao mito de Ascleacutepio Mas a crucificaccedilatildeo eacute algo que

os pagatildeos natildeo poderiam imitar pois tudo ldquotudo o que se refere agrave cruz foi dito de forma

simboacutelicardquo534

Os judeus no entanto satildeo tidos como ignorantes sobre o cumprimento das profecias

de que Jesus deveria vir nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda

doenccedila toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e

crucificado que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus

que ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os

homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nele535

Ele recorre aos escritos do profeta Isaiacuteas536 para indicar que Cristo seria concebido por

uma virgem O logos eacute conceituado como o Filho a primeira virtude ou potecircncia depois de

Deus que eacute Pai e soberano de todas as coisas O logos entatildeo se tornou carne e nasceu homem

(I3210) Por Espiacuterito e forccedila que procede de Deus ele eacute reconhecido como o Logos que eacute o

primogecircnito de Deus O apologista sustenta que aqueles que profetizam satildeo inspirados pelo

logos divino

Em sua perspectiva os judeus detentores da tradiccedilatildeo e dos livros dos profetas poreacutem

aleacutem de natildeo reconhecerem a Cristo jaacute vindo tambeacutem odeiam aos cristatildeos Isso eacute destacado

na sua afirmaccedilatildeo de que na guerra dos judeus Bar Koseba o cabeccedila da rebeliatildeo mandava

submeter a terriacuteveis torturas somente os cristatildeos caso estes natildeo negassem e blasfemassem

Jesus Cristo (I316)

A mensagem cristatilde eacute um elemento apelativo que busca induzir os fieacuteis a uma conduta

diferente ldquoNoacutes que antes nos mataacutevamos mutuamente agora natildeo soacute natildeo fazemos guerra

contra os nossos inimigos mas tambeacutem por natildeo mentir nem enganar os juiacutezes que nos

interrogam morremos felizes de confessar a Cristordquo (I393) Justino considera ridiacuteculo que os

soldados que se arrolam e se alistam pusessem a lealdade para com o imperador ldquoacima de

sua proacutepria vida acima dos pais paacutetria e tudo o que lhes pertence embora nada de

532 BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 2009 pp 538-555 533 Is 355-6 Mt 115 534 I551 535 I317-8 536 Is 111-10

107

impereciacutevel lhes pudeacutesseis oferecerrdquo (I395) Por outro lado os cristatildeos que amam a

incorrupccedilatildeo suportam tudo a troco de receber daquele que confiam ter poder para lhes dar

(I395)

A superioridade do Deus judaico-cristatildeo sobre os deuses das outras naccedilotildees aparece

submetendo os demais deuses ao jugo dos ldquodemocircniosrdquo sob a sombra da ignoracircncia que esses

propagam Entretanto o Deus dos cristatildeos eacute o Deus que criou a racionalidade

Justino coloca que

no princiacutepio [Deus] criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma pedra Virtude e viacutecio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e iniquidade (I283-4)

Esse ser racional que Justino se refere eacute tambeacutem aquele cuja racionalidade pode ser ratificada

no reconhecimento e submissatildeo aos ensinos cristatildeos Haacute uma postura anti-estoica manifesta

em suas palavras que reduz o dogma do destino dessa corrente filosoacutefica a ldquoimpiedade e

iniquidaderdquo537

Ele sustenta que os cristatildeos aprenderam com os profetas que

os castigos e tormentos assim como as boas recompensas satildeo dadas a cada um conforme as suas obras Se natildeo fosse assim mas tudo acontecesse por destino natildeo haveria absolutamente livre-arbiacutetrio Com efeito se jaacute estaacute determinado que um seja bom e outro mau nem aquele merece elogio nem este vitupeacuterio Se o gecircnero humano natildeo tem poder de fugir por livre determinaccedilatildeo do que eacute vergonhoso e escolher o belo ele natildeo eacute irresponsaacutevel de nenhuma accedilatildeo que faccedila538 (I432-3)

Ele destaca que se por outro lado algueacutem

estivesse determinado [para] ser mau ou bom natildeo seria capaz de coisas contraacuterias nem mudaria com tanta frequumlecircncia Na realidade nem se poderia dizer que uns satildeo bons e outros maus desde o momento que afirmamos que o destino eacute a causa de bons e maus e que realiza coisas contraacuterias a si mesmo ou que se deveria tomar como verdade o que jaacute anteriormente insinuamos isto eacute que virtude e maldade satildeo puras palavras e que soacute por opiniatildeo se tem algo como bom ou mau Isso como demonstra a verdadeira razatildeo eacute o cuacutemulo da impiedade e da iniquidade (I436)

O ldquodestino iniludiacutevelrdquo reconhecido pelo apologista eacute que aqueles que escolheram o

bem tenham ldquodigna recompensardquo e os que escolheram o contraacuterio tenham igualmente ldquodigno

castigordquo (I437) Dentro do sistema de pensamento construiacutedo por Justino seria incoerente

com o sistema de controle social admitir que Deus tenha determinado as escolhas humanas

Nesse caso como ele escreve ldquonatildeo seria digno de recompensa e elogio pois natildeo teria

escolhido o bem por si mesmo mas nascido jaacute bom nem por ter sido mau seria castigado

537 avsebeia kai avdikia evsti I284 538 PLATAtildeO Repuacuteblica 617e

108

justamente pois natildeo o seria livremente mas por natildeo ter podido ser algo diferente do que foirdquo

(I438) Desse modo o apologista deixa clara sua oposiccedilatildeo ao estoicismo539

O pensamento de Justino sobre isso poderia ser resumido em ldquoDeus criou livres tanto

os anjos como o gecircnero humano e por isso receberam com justiccedila o castigo de seus pecados

no fogo eternordquo540 Tal alegaccedilatildeo estaria fundamentada na ideia de que tudo deve ser capaz de

viacutecio e de virtude pois ningueacutem seria digno de louvor se natildeo pudesse tambeacutem voltar-se para

um desses extremos541

Ele assume que esta doutrina foi ensinada pelo Espiacuterito profeacutetico que por meio de

Moiseacutes nos testemunha que falou ao primeiro homem que havia criado do seguinte modo

ldquoOlha que diante de tua face estaacute o bem e o mal escolhe o bemrdquo542 Ele cita tambeacutem Isaiacuteas543

e o proacuteprio Platatildeo544 ao dizer A culpa eacute de quem escolhe Deus natildeo tem culpa Justino

alega que Platatildeo falou isso por tecirc-lo tomado do profeta Moiseacutes desse modo ele diz que ldquopois

se sabe que este eacute mais antigo do que todos os escritores gregosrdquo (I441-8) Para explicar os

elementos semelhantes entre os escritos gregos e os judaico-cristatildeos o apologista alega que

tudo o que os filoacutesofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplaccedilatildeo das coisas celestes aproveitaram-se dos profetas natildeo soacute para poder entender mas tambeacutem para expressar isso Daiacute que parece haver em todos algo como germes de verdade Todavia demonstra-se que natildeo o entenderam exatamente pelo fato de que se contradizem uns aos outros (I449-10)

Deus conhece de antematildeo tudo o que seraacute feito por todos os homens e eacute decreto seu

recompensar cada um segundo o meacuterito de suas obras e por isso justamente prediz por meio

do Espiacuterito profeacutetico o que para cada um viraacute da parte dele conforme o que suas obras

mereccedilam545 Ele eacute aquele que constantemente conduz o gecircnero humano agrave reflexatildeo e agrave

lembranccedila demonstrando-lhe que cuida e usa de providecircncia para com os homens

Sobre a novidade da religiatildeo cristatilde Justino escreve ldquoAlguns sem motivo para rejeitar

o nosso ensinamento poderiam nos objetar que ao dizermos que Cristo nasceu somente haacute

cento e cinquumlenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio

Pilatos os homens que o precederam natildeo tecircm nenhuma responsabilidaderdquo (461) Ele entatildeo

responde

Noacutes recebemos o ensinamento de que Cristo eacute o primogecircnito de Deus e indicamos antes que ele eacute o Logos do qual todo o gecircnero humano participou Portanto aqueles

539 ldquohellipnoacutes dizemos que aconteceraacute a conflagraccedilatildeo universal mas natildeo como dizem os estoacuteicosrdquo II63 cf Alesandre de Aphrodisias On Fate 9 [17525] 540 II65 541 II66 542 Dt 301519 543 Is 116-20 544 Repuacuteblica X617e 545 I4411

109

que viveram conforme o Logos satildeo cristatildeos quando foram considerados ateus como sucedeu entre os gregos com Soacutecrates Heraacuteclito e outros semelhantes e entre os baacuterbaros com Abraatildeo Ananias Azarias e Misael e muitos outros cujos fatos e nomes omitimos agora pois seria longo enumerar De modo que tambeacutem os que antes viveram sem razatildeo [logos] se tornaram inuacuteteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razatildeo [logos] mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela satildeo cristatildeos e natildeo experimentam medo ou perturbaccedilatildeo O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma virgem pela virtude do Logos conforme o desiacutegnio de Deus Pai e soberano do universo e foi chamado Jesus e depois de crucificado e morto ressuscitou e subiu ao ceacuteu o leitor inteligente poderaacute perfeitamente compreendecirc-lo pelas longas explicaccedilotildees que foram dadas ateacute aqui (462-6)

O apologista usa de uma estrateacutegia semacircntica para literalmente ldquodar razatildeordquo agraves

doutrinas cristatildes

422 A razatildeo que julga

No mundo grego a palavra logoj jaacute assumira uma significacircncia para o pensamento

especulativo desde muito cedo Era um termo teacutecnico para as vaacuterias ldquociecircnciasrdquo que se

desenvolviam na Greacutecia do seacutec V aC A gramaacutetica a loacutegica a retoacuterica a psicologia a

metafiacutesica a teologia e a matemaacutetica deram-lhe sentidos diferentes ainda dentro do mesmo

campo da ciecircncia Seu campo semacircntico eacute vasto Pode significar razatildeo palavra discurso

menccedilatildeo declaraccedilatildeo afirmaccedilatildeo resposta promessa dito proveacuterbio ou maacutexima546 Alguns

destes significados podem parecer contraditoacuterios Ele eacute um termo comum que pode aparecer

em qualquer lugar Aparece nos textos de Homero Heroacutedoto Platatildeo Aristoacuteteles Tuciacutededes

Piacutendaro Aeschylus Xenoacutefanes Soacutefocles Aischines e outros547 mas eacute seu significado

filosoacutefico-religioso que importa A histoacuteria desse conceito eacute bastante complexa todavia eacute

suficiente abordar os principais aspectos do uso filosoacutefico-religioso do logoj

Justino sustenta que os gregos aprenderam muitos conceitos com as Escrituras

judaicas Segundo sua teoria Ptolomeu rei do Egito se preocupou em formar uma biblioteca

e nela reunir os escritos de todo o mundo tendo notiacutecia dessas profecias mandou uma

546 Significa ainda decisatildeo resoluccedilatildeo ordem proclamaccedilatildeo ensinamento doutrina parte de doutrina definiccedilatildeo hipoacutetese condiccedilatildeo pacto fama tradiccedilatildeo lenda reputaccedilatildeo boato opiniatildeo notiacutecia revelaccedilatildeo oraacuteculo resposta de oraacuteculo palavra revelada verbo assunto mateacuteria objeto questatildeo fato acontecimento coisa discurso frase prosa falar faculdade de falar e como logoj proforikoj discurso extriacutenseco palavra uso da palavra direito agrave palavra coloacutequio discussatildeo faacutebula narrativa imaginaacuteria lenda mito narrativa histoacuterica histoacuteria literatura conta caacutelculo soma explicaccedilatildeo avaliaccedilatildeo valor significado a razatildeo praacutetica (nouj especulativo) razatildeo divina personificada motivo causa fundamento justificaccedilatildeo plano projeto RUSCONI C (ed) DICIONAacuteRIO do grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 350 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001 547 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001

110

embaixada pedindo os livros dos judeus Ptolomeu providenciou que fossem traduzidos para o

grego Depois disso os livros permaneceram entre os egiacutepcios ateacute o presente e os judeus os

usam no mundo inteiro Assim os gregos teriam aprendido muitas coisas que teriam

ldquoenriquecidordquo seus mitos e pensamentos em geral548

Todavia foi Filon de Alexandria quem primeiro tomou as interrogaccedilotildees filosoacuteficas

estabelecendo correlaccedilotildees com os elementos da cultura religiosa judaica549 Era corrente no

judaiacutesmo a reflexatildeo sobre a ldquoPalavrardquo criadora e comunicadora da revelaccedilatildeo divina Mas foi o

contato com a cultura helecircnica e as proximidades semacircnticas ainda que muito limitadas entre

Escrituras judaicas e as palavras gregas que carregaram o teor filosoacutefico ou especulativo550

Conforme analisou Dax F P Nascimento551 eacute por intermeacutedio do Logos uma espeacutecie de

declaraccedilatildeo divina que se remete a si mesmo revelado que se obteacutem a educaccedilatildeo acerca da

verdade por meio da qual haacute o arrependimento ou conversatildeo dos prazeres e ciecircncias do

mundo sensiacutevel para a razatildeo e para a piedade

Entre os cristatildeos natildeo haacute evidecircncias de que a reflexatildeo sobre o logos tenha a princiacutepio

alguma conotaccedilatildeo filosoacutefica Teoacutelogos como R Bultmann552 G Kimmel553 O Culmann554

concordam que o logos mencionado no proacutelogo do Evangelho segundo Joatildeo eacute uma niacutetida

referecircncia agrave ldquoPalavrardquo comunicadora de Deus sobre a qual Fiacutelon refletiu Eacute possiacutevel que na

virada do I para o II seacuteculo a expansatildeo cristatilde comeccedilasse a exigir uma atenccedilatildeo maior tambeacutem

aos conceitos e questotildees pertinentes ao mundo greco-romano555

Com a conversatildeo de filoacutesofos como Atenaacutegoras Aristides e do proacuteprio Justino as

correlaccedilotildees entre essas correntes de pensamentos se manifestam principalmente na produccedilatildeo

apologeacutetica cristatilde556

Justino escreve que do logos que inspirou os profetas Platatildeo tomou o que disse sobre

Deus ter criado o mundo transformando uma mateacuteria informe557 Segundo Minns e Parvis558

548 I311-5 549 BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950 550 KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91 Cf COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp 1507-1562 551 O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia PUC Rio de Janeiro 2003 p 179 552 Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004 553 Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983 554 Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002 555 ARZANI A A teologia do logoj no Quarto Evangelho Orientador Dr Paulo Beniacutecio Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008 pp 52-60 556 Cf WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982 557 I591

111

suas comparaccedilotildees entre algumas passagens das Escrituras e dos textos de Platatildeo satildeo

interpretaccedilotildees difiacuteceis de serem compartilhadas pois apresentam uma hermenecircutica muito

particular e em alguns pontos chega a interpretar o platonismo segundo formas comuns ao

estoicismo Destacando os elementos semelhantes ao cristianismo e outras correntes de

pensamento Justino alega ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim

todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinasrdquo559 Mas esses pontos de contato satildeo

limitados Ele escreve que

natildeo satildeo totalmente semelhantes como tambeacutem as dos outros filoacutesofos os estoacuteicos por exemplo poetas e historiadores De fato cada um falou bem vendo o que tinha afinidade com ele pela parte que lhe coube do logos seminal divino Todavia eacute evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros natildeo alcanccedilaram uma ciecircncia infaliacutevel nem um conhecimento irrefutaacutevel Portanto tudo o que de bom foi dito por eles pertence a noacutes cristatildeos porque noacutes adoramos e amamos depois de Deus o logos que procede do mesmo Deus ingecircnito e inefaacutevel Ele por amor a noacutes se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curaacute-los Todos os escritores soacute puderam obscuramente ver a realidade graccedilas agrave semente do logos neles ingecircnita560

Enquanto algumas correlaccedilotildees entre o pensamento cristatildeo e a cultura greco-romana

satildeo fruto da accedilatildeo dos democircnios para causar confusatildeo uma porccedilatildeo do logos pode ser

identificada para aleacutem daqueles que deteacutem o logos pleno

Nesse sentido ele escreve

Sabemos que alguns que professaram a doutrina estoacuteica foram odiados e mortos Pelo menos na eacutetica eles se mostram moderados assim como os poetas em determinados pontos por causa da semente do Logos que se encontra ingecircnita em todo o gecircnero humano (II71)

Heraacuteclito que foi banido de Eacutefeso por causa de suas ideias e tambeacutem o filoacutesofo

Musonius que dentre outros que sofreram algum tipo de hostilidade nos tempos de Nero a

Vespasiano561 satildeo citados como exemplo Natildeo haacute nenhum motivo evidente para Justino

mencionar Heraacuteclito exceto pela sua teoria sobre o logos Quanto a Gaius Musonius Rufus

seu nome eacute lembrado pelo acento moral de sua filosofia de inspiraccedilatildeo estoica que o tornou

ridiacuteculo a muitos soldados562 Desse modo procura-se destacar que ldquoos democircnios sempre se

empenharam em tornar odiosos aqueles que de algum modo quiseram viver conforme o

Logos e fugir da maldade (II72)

O apologista ainda considera como uma investida dos democircnios a pena de morte

estabelecida contra aqueles que lessem os livros de Histaspes da Sibila e dos profetas a fim

558Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 236 559 I6010 560 II132-5 561 TACITO Histoacuterias III81 562 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 42

112

de impedir por meio do terror que os homens consigam lendo-os o conhecimento do bem e

retecirc-los como seus escravos563

Segundo o apologista muito mais odiado que aqueles que possuem o logos seminal

satildeo os que tecircm conhecimento e contemplaccedilatildeo do logos total Conforme suas proacuteprias

palavras ldquoO logos de Deus eacute seu Filho [] E tambeacutem se chama mensageiro e embaixador

porque ele anuncia o que se deve conhecer e eacute enviado para nos manifestar tudo o que o Pai

nos comunicardquo564 Sendo os cristatildeos os detentores do logos total e sendo o logos total aquele

que anuncia o que se deve conhecer para se proceder corretamente e receber a recompensa

futura tudo se resume agrave submissatildeo agraves ideias cristatildes565

A forma de controle empregada pelos romanos e que conduz os cristatildeos diante dos

tribunais satildeo pintadas como um sinal da ignoracircncia despreziacutevel daqueles que se submetem agrave

irracionalidade da obscuridade demoniacuteaca em exerciacutecio de uma falsa justiccedila

O julgamento segundo a ldquorazatildeordquo eacute o julgamento final estabelecido pelo Deus cristatildeo e

sobre o qual o apologista pretende convencer a todos ao seu redor566 Os democircnios no

entanto natildeo conseguem convencer de que natildeo haveraacute a conflagraccedilatildeo para castigar os iacutempios

do mesmo modo que natildeo conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu A uacutenica coisa

que conseguem eacute fazer com que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em

meio aos maus costumes entregues agraves suas paixotildees e seguindo a opiniatildeo vatilde procurem tirar a

vida dos cristatildeos e os odeiem Os cristatildeos por outro lado satildeo apresentados como aqueles que

por pura compaixatildeo por eles procuram persuadi-los a se converterem

Os maus haacutebitos dos deuses satildeo reprovados por essa medida cristatilde pois serviriam para

a corrupccedilatildeo dos que eram educados tendo em vista que muitos consideravam ldquobelordquo serem

imitadores dos deuses567 O apologista natildeo pode admitir que uma mente sensata aceite as

accedilotildees de Zeus e de Ganimedes como ldquodivinasrdquo (I215) Por isso ele relaciona a disseminaccedilatildeo

desses mitos agraves artimanhas dos democircnios que induzem os homens agrave imoralidade Em

oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo dos democircnios Justino sustenta que aos cristatildeos foi ensinado que soacute poderiam

alcanccedilar a imortalidade aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus assim como

tambeacutem se sustenta que seratildeo castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e

563 Cf Tacitus Annales II32 XII52 Historias I22 II62 Cassius Dio Hist Rom 57157-8 564 I634-5 565 Cf PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988 566 Cf KERESZTES P Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986 567 E um pensamento que estava relacionado aos epicureus pelo menos Philodemus Sobre a Piedade 71

113

natildeo se converteram (I216) Para os outros estaacute guardado o dia do juiacutezo descrito com grande

tormento em que se encontraratildeo os injustos568

A moralidade cristatilde eacute destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e

comentaacuterios ldquodisseminados entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso

seu discurso sobressalta o valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de

temperanccedila569 que crescia em nuacutemeros naquela eacutepoca Tambeacutem recebem destaques a doutrina

cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos necessitados e a ausecircncia de

valor da ostentaccedilatildeo570 Com o mesmo tom piedoso seguem as afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia

a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico571 Desse modo Justino contribui tambeacutem

para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos propondo uma identidade

coletiva

Um conceito estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que chama de equiacutevocos e mal

entendidos ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja satildeo combatidos Essa sua atitude revela que o

processo de construccedilatildeo da identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada

principalmente pela necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os

variados grupos cristatildeos572 Os outros grupos cristatildeos como o dos seguidores de Marciatildeo satildeo

tidos como instrumentos nas matildeos dos democircnios (I581) Seus discursos satildeo ldquoirracionaisrdquo e

satildeo presas de doutrinas ateiacutestas do democircnio573

Tendo em vista que as pessoas satildeo capazes de agir bem ou mal devido agrave liberdade

concedida por Deus considera-se que em todas as partes haacute tambeacutem os que ldquolegislaram e

filosofaram conforme a reta razatildeordquo ou aparte dela ao mandarem que se faccedilam algumas coisas

e se evitem outras574 A ldquoreta razatildeordquo agrave qual Justino se refere eacute aquela que deriva do Logos

cristatildeo que permeia a criaccedilatildeo revela a mensagem de Deus aos homens desde outros tempos

pelas Escrituras e no seacutec I pelo proacuteprio Cristo e que assim estabelece o padratildeo de conduta

aos que desejam a ldquorecompensa eternardquo Desse modo eacute identificado um padratildeo de justiccedila

baseado nas crenccedilas e valores cultivados pelos cristatildeos que estatildeo proacuteximos a Justino e que L

W Barnard575 chega a chamar de uma ldquoproto-ortodoxiardquo Natildeo eacute possiacutevel resumir ou descrever

568 Is 6624 569 I151-7 570 I141-919 571 I161-6 572 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 573 Avlla Avlogwj w`j upoacute Lukou arnej sunhrpasmenoi( bora Twn avqewn dogmatwn kai daiacutemonwn ginontai I582 574 II68 575 Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 1967

114

o conteuacutedo dessas crenccedilas e valores a partir da anaacutelise das Apologias sabe-se poreacutem que o

apologista se refere agrave forma de pensar dos cristatildeos que lhe satildeo proacuteximos e se distanciam do

modo de pensar por exemplo do grupo de Marciatildeo Helena e Menandro

Justino contempla tambeacutem as criacuteticas daqueles que segundo o seu parecer ldquose

consideram filoacutesofosrdquo e que alegariam que as ideias cristatildes sobre um julgamento universal

futuro ldquosatildeo apenas ruiacutedos espalhafatosos e alarmismosrdquo e diriam que a ameaccedila do castigo no

fogo eterno natildeo passa de um instrumento despreziacutevel para que a ldquohumanidade viva retamente

por medo e natildeo porque a virtude eacute bela e gratificanterdquo (II91) Haacute indiacutecios de que Chrysippus

de Solis dizia que Platatildeo errava em fazer do temor aos deuses um instrumento para a detenccedilatildeo

da injusticcedila e que o argumento do castigo divino natildeo eacute diferente das histoacuterias que as matildees

contam para assustar as criancinhas576 E ainda segundo Diogenes Laertius Crisipo

sustentava que a ldquovirtude [] eacute uma disposiccedilatildeo harmoniosa escolha digna para seu proacuteprio

bem e natildeo de esperanccedila medo ou qualquer outro motivo externordquo577 Em sua soluccedilatildeo Justino

toma emprestado o argumento de Alexandre de Afrodiacutesias578 que defendeu a responsabilidade

moral humana e diz ldquose isto natildeo eacute como dizemos entatildeo natildeo existe Deus ou se existe natildeo se

importa em nada com os homensrdquo579 Virtude e o viacutecio nada seriam e em consequecircncia nem

os legisladores castigariam com justiccedila os que transgridem as boas ordenaccedilotildees Segundo

Minns e Parvis580 a hipoacutetese de Deus natildeo se importar com os seres humanos parece refletir a

visatildeo estoica que estabelecia a teoria do bem e do mal ou virtude e infelicidade considerando

a proximidade com o universo natural e a administraccedilatildeo do mundo Assim quando

Chrysippus581 mantinha que a natureza universal e a administraccedilatildeo do mundo era o

fundamento da teoria estoica sobre o bem e o mal ele estava apelando agrave racional e

providencial atividade de deus cuja conformidade com o qual constitui o bem para o homem

e cuja carecircncia de conformidade constitui o mal

Todavia Justino pontua que os legisladores ldquonatildeo satildeo injustos e o Pai deles ensina

atraveacutes do Logos a fazer o que ele mesmo fazrdquo e neste sentido ldquonatildeo satildeo injustos os que

576 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1040b 577 Diogenes Laertius Vida dos filoacutesofos eminentes VII89 578 ldquopois se natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo e virtude e viacutecio eles argumentam tambeacutem natildeo haacuteacutelouvor ou reprovaccedilatildeo e sem estes natildeo haacute accedilotildees certas ou erradas e se natildeo haacute essas tambeacutem natildeo haacute virtude ou viacutecio e se natildeo haacute essas eles dizem natildeo haacute seque deuses Mas antes assim designadamente que natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo chega a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas vem a estar em concordacircncia com o destino como tem sido mostrado Desse modo a uacuteltima posiccedilatildeo segue tambeacutem mas isto eacute absurdo e impossiacutevel (Alexandre de Afrodisias De fato36) 579 II91 580 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 305 nota 1 581 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1035c-d

115

aderem a essas virtudesrdquo582 Assim o apologista constroacutei outro padratildeo ldquoracionalrdquo atraveacutes do

qual os juiacutezes deveriam julgar para natildeo serem julgados por Deus O novo fundamento da

justiccedila no cumprimento dos seus anseios apologeacuteticos se resume a deixar os cristatildeos em paz

pois segundo seu ponto de vista natildeo havia nenhuma evidecircncia de que os fieacuteis fossem inimigos

do Impeacuterio Ele busca convencer o Imperador e seus filhos a impedir que os governantes e

magistrados locais empreendam accedilotildees anticristatildes apontando as razotildees e a racionalidade cristatilde

43 O governo o controle e os governantes

Justino ndash nessas suas peticcedilotildees apologeticamente fundamentadas que tinham como

destinataacuterios especiais Antonino Pio e seus filhos583 reconhecidamente apreciadores da

filosofia ndash alega que natildeo havia nenhuma ldquorazatildeordquo [logos] para se perseguirem os cristatildeos pois

seria a proacutepria ldquorazatildeordquo [o Logos] quem exige que ldquoos amantes da piedade e da filosofiardquo584

natildeo faccedilam algo irracionalmente

No capiacutetulo anterior foi destacada a criacutetica de Justino sobre os governantes agora

poreacutem eacute oportuno notar o perfil do governante traccedilado pelo apologista dentro do seu

argumento da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem Segundo sua teoria os homens

revestidos de autoridade para governar natildeo devem valorizar nada aleacutem da ldquoverdaderdquo Aleacutem

disso a partir de sua inspiraccedilatildeo platocircnica nota-se sua exigecircncia agravequeles que satildeo ldquopiedosos e

filoacutesofosrdquo assim como satildeo chamados o Imperador e seus filhos que deveriam julgar com

retidatildeo para que todos gozem de bem estar Governar com retidatildeo eacute para Justino governar

segundo a ldquoreta razatildeordquo Esse conceito eacute cristianizado mas aleacutem disso um governante ideal

ldquosuperiorrdquo eacute reverenciado ldquoo logosrdquo A quem ele chama de ldquoo rei mais alto o governante

mais justo que conhecemos depois de Deus que o gerourdquo (I Apol 127) Manifesta-se um

jogo semioacutetico com a palavra logos ou razatildeo

582 II92 583 A I Apologia foi dirigida ao Imperador Antonino Pio e a seus filhos Veriacutessimo (Marco Aureacutelio) e Lucio Vero A II Apologia pode ser continuaccedilatildeo da primeira como sustentou C Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006) fragmentos de anotaccedilotildees de um segundo escrito que natildeo pode ser entregue quando Justino foi preso durante o iniacutecio do governo de Marco Aureacutelio por volta de 160 dC como sustentam Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 passim) A teoria mais tradicional eacute admitir que a II Apologia foi dirigida ao imperador Marco Aureacutelio mas como seraacute visto mais adiante haacute indiacutecios de que Justino tinha por destinataacuterios secundaacuterios todos os que pudessem ler o texto e se informar acerca da inocecircncia dos cristatildeos A soluccedilatildeo para a questatildeo dos destinataacuterios das Apologias exige uma investigaccedilatildeo agrave parte mas natildeo haacute duacutevidas de que Justino pretendia que se texto fosse conhecido por Antonino e seus filhos Marco e Lucio que desde cedo atuaram ao lado 584 I125

116

Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e recusem as

coisas maacutes e assim controlar os excessos humanos (I Apol 128) Do mesmo modo eacute o logos

quem deve orientar os governantes para que o bem ou a ldquosalvaccedilatildeordquo opere sobre o ldquogecircnero

humanordquo Por isso ele escreve ldquose os filoacutesofos e legisladores disseram e encontraram algo de

bom foi elaborado por eles pela investigaccedilatildeo e intuiccedilatildeo conforme a parte do logos que lhes

couberdquo585 Poreacutem por natildeo conheceram a integralidade do Logos que eacute Cristo ldquoeles

frequentemente se contradisseram uns aos outrosrdquo586 Aqueles que antes de Cristo tentaram

investigar e demonstrar as coisas pela razatildeo conforme as forccedilas humanas foram levados aos

tribunais como iacutempios e amigos de novidades Soacutecrates aparece como um exemplo que

ratifica a fala de Justino Segundo o apologista ele foi acusado ldquodos mesmos crimes que [os

cristatildeos]rdquo587 A condenaccedilatildeo seria em razatildeo da oposiccedilatildeo daquele filoacutesofo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica e

a outros poetas ensinando os homens a rejeitar ldquoos maus democircniosrdquo envolvidos com a

idolatria e ao mesmo tempo os exortando ao conhecimento de Deus para eles desconhecido

por meio de investigaccedilatildeo racional dizendo Natildeo eacute faacutecil encontrar o Pai e artiacutefice do universo

nem quando o tivermos encontrado eacute seguro dizecirc-lo a todos588 Todavia se ningueacutem deu

ouvidos a Soacutecrates ateacute que ele deu a sua vida por essa doutrina em Cristo acreditaram natildeo soacute

filoacutesofos e homens dos quais o proacuteprio Justino eacute um mas tambeacutem artesatildeos e pessoas

totalmente ignorantes que souberam desprezar a opiniatildeo o medo e a morte Justino pretende

assim apresentar o poder de abrangecircncia da mensagem cristatilde que deriva do Logos que em

parte foi conhecido por Soacutecrates pois como o apologista escreve ldquoele era e eacute o Logos que

estaacute em tudo e foi quem predisse o futuro atraveacutes dos profetas e feito de nossa natureza por

si mesmo nos ensinou essas coisasrdquo589

A partir desse tipo de comparaccedilatildeo retrata-se o caso que ocorreu sob Urbico na cidade

de Roma Eacute provaacutevel que outros casos como esse acontecessem em regiotildees diferentes590

Segundo Justino ldquoo fato eacute que em todas as partes haacute gente disposta a [] levar [os cristatildeos] agrave

morterdquo591 A reprovaccedilatildeo cristatilde das atitudes condenaacuteveis ou repreensiacuteveis de outras pessoas era

um dos motivos para que os cristatildeos fossem denunciados aos governantes ldquoendemoniadosrdquo592

Ele escreve especialmente sobre certa mulher cristatilde na eacutepoca do prefeito Urbico que

procurou persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e lhe 585 II102 586 II102 587 II105 588 II105-6 Citaccedilatildeo de Platatildeo Timeu 28c 589 II108 590 II11 591 II12 592 II13

117

anunciando o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme

a ldquoreta razatildeordquo Naquela ocasiatildeo a uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se

era cristatildeo Apoacutes confessar recebeu condenaccedilatildeo ao supliacutecio O mesmo aconteceu com Luacutecio

que tambeacutem advertiu a Urbico593 de que ele natildeo estava ldquojulgando de modo conveniente ao

imperador Pio nem ao Ceacutesar filoacutesofo nem ao filho de Ceacutesar amigo do saber nem ao sacro

Senadordquo (II216)

Justino procura persuadir o imperador seus filhos e demais autoridades a barrarem as

condenaccedilotildees dos cristatildeos num momento quando natildeo haacute indiacutecios do estabelecimento de uma

lei concreta sobre a puniccedilatildeo dos cristatildeos Em vaacuterias regiotildees e em situaccedilotildees variaacuteveis os atritos

ocasionados pela presenccedila e expansatildeo cristatilde ocasionavam denuacutencias tidas pelos proacuteprios

cristatildeos como ldquocaluniosasrdquo a respeito da nova religiatildeo As accedilotildees anticristatildes se refletiam

muitas vezes na busca por sua condenaccedilatildeo em discussotildees em praccedilas ou em denuacutencias

dirigidas aos magistrados Em meados do seacuteculo II as delaccedilotildees sobre os cristatildeos variavam

pois seus opositores procuravam brechas juriacutedicas para enquadraacute-los A superstitio cristatilde

poderia proporcionar o oacutedio de muitos que resistiam agraves suas implicaccedilotildees morais sociais ou

simplesmente religiosas Por isso as denuacutencias ou posicionamentos se contradiziam em

lugares e ocasiotildees diferentes Taacutecito identificou algumas flagitia nas praacuteticas religiosas cristatildes

ou nos comentaacuterios sobre elas mas essa natildeo foi a opiniatildeo de Pliacutenio Segundo que julgou os

cristatildeos dignos de condenaccedilatildeo somente pela contumaacutecia que apresentaram diante de um

magistrado Para outros deveriam ser rejeitados pelo seu ateiacutesmo Comer o corpo e o sangue

de Cristo tambeacutem poderia provocar suspeitas de canibalismo594

O apologista contrasta a imagem do ldquopiordquo e ldquosaacutebiordquo governante representada na figura

de Antonino e seus filhos agravequela do falso filoacutesofo ou seja aquele que estaacute contra a ldquorazatildeordquo A

sua morte em defesa da ldquorazatildeordquo cristatilde aparece como uma possiacutevel analogia a Soacutecrates

devido aos seus embates com Crescente em Roma O falso ldquofiloacutesofordquo eacute aquele que natildeo sabe

uma palavra sobre os cristatildeos mas os calunia publicamente como esses fossem ldquoateus e

iacutempiosrdquo595 Ele adapta a esse novo contexto Xenofonte596 que conta que em uma encruzilhada

vieram ao encontro de Heacuteracles597 a virtude e o viacutecio na forma de mulheres

O viacutecio estava vestido com roupas finas tinha rosto atraente e adornado com enfeites e disse a Heacuteracles que se ele a seguisse ela o faria viver sempre no prazer

593 II215 594 Cf MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 winter1994 pp 413-442 595 wj avlogoj kai avsebwn Cristianwn ontwn( (II82) 596 Memorabilia II121-34 597 Heraacutecles tambeacutem foi invocada por estoicos como exemplo de luta moral (Churniss em Plutarco De Communibbus Notitiis adversus stoicos 1065c em Moralia)

118

e enfeitado com o mais belo ornamento semelhante ao que ela usava Ao contraacuterio a virtude com rosto e veste severos lhe disse Se seguires a mim natildeo te enfeitarei com beleza ou adorno passageiro e corruptiacutevel mas com enfeites eternos e belos598

Semelhantemente Justino considera

estamos persuadidos de que alcanccedilam a felicidade todos aqueles que fazem dos bens aparentes e seguem o que parece duro e contra a razatildeo Porque a maldade veste as suas accedilotildees com as qualidades da virtude e do que eacute de fato bem remedando o incorruptiacutevel pois ela de si natildeo tem nada de incorruptiacutevel e nem eacute capaz de produzi-lo e torna escravos seus os homens que se arrastam pelo chatildeo atribuindo agrave virtude os males proacuteprios da maldade Contudo os que compreendem os bens verdadeiros proacuteprios da virtude tambeacutem se tornam incorruptiacuteveis pela virtude599

Desse modo Justino procura constranger o imperador a partir do seu argumento

apologeacutetico e do jogo semioacutetico em torno da ldquorazatildeordquo e da filosofia a ser favoraacutevel aos

cristatildeos pois natildeo seria de nenhum modo virtuoso combater ou permitir que sejam combatidos

aqueles que segundo seu ponto de vista tecircm muito a contribuir para a paz no Impeacuterio

A contribuiccedilatildeo da religiatildeo cristatilde eacute apresentada dentro do seu plano apologeacutetico que

busca convencer natildeo apenas dos efeitos positivos do caraacuteter de suas crenccedilas para a

manutenccedilatildeo da ordem mas tambeacutem na apresentaccedilatildeo de alguns pontos fundamentais do seu

conteuacutedo que rebatam as ldquocaluacuteniasrdquo dos acusadores e apresentem o seu aspecto ldquoracionalrdquo Ao

explicar alguns fundamentos da crenccedila cristatilde como o combate agrave idolatria eacute possiacutevel notar que

o apologista eacute sensiacutevel em sua anaacutelise agrave diversidade de ideias e crenccedilas que interagem e se

contradizem no Impeacuterio Essa contradiccedilatildeo aparece tambeacutem entre os intelectuais e as crenccedilas

do povo comum Segundo Paul Veyne600 ldquotodo erudito hesitava entre o ceticismo da alta

sociedade e o esoterismo cultivadordquo Isso leva Justino a formular um argumento que busque

apresentar os aspectos racionais das crenccedilas cristatildes ainda que isso se reduza a um jogo

semioacutetico e linguiacutestico em torno do logos De qualquer forma a religiatildeo cristatilde aparece como

uma opccedilatildeo de superaccedilatildeo tanto da religiatildeo pagatilde questionada pelos intelectuais em muitos

aspectos quanto como uma filosofia sublime ou superior601 que tem maior alcance e eficaacutecia

no controle das accedilotildees humanas602 Assim ele escreve ldquoem Cristo acreditaram natildeo soacute filoacutesofos

e homens cultos mas tambeacutem artesatildeos e pessoas totalmente ignorantes que souberam

598 II114-5 599 II116-8 600 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 280 601 ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Logos inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (II101) E tambeacutem ldquoas nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo (II152) 602 ldquoEntre noacutes tudo isso se pode ouvir e aprender ateacute daqueles que ignoram as formas das letras pessoas ignorantes e baacuterbaras de liacutengua mas saacutebias e fieacuteis de inteligecircncia e ateacute pessoas mutiladas e privadas de visatildeo De onde se pode entender que isso natildeo acontece pela sabedoria humana mas se diz que eacute pela forccedila de Deusrdquo (I6011)

119

desprezar a opiniatildeo o medo e a morte porque ele eacute a virtude do Pai inefaacutevel e natildeo um vaso

de humana razatildeordquo603

Apoacutes explicar os pontos fundamentais do pensamento cristatildeo Justino diz que ldquodaqui

por diante noacutes natildeo nos sentiremos irresponsaacuteveis mesmo que continueis increacutedulos pois o

que dependia de noacutes jaacute foi feito e chegou ao fimrdquo (558) Seguindo sua articulaccedilatildeo para

ratificar a fidelidade dos cristatildeos a Deus e ao Impeacuterio nota-se que o apologista faz uso do

proacuteprio efeito da doutrina cristatilde que sugere como instrumento de controle para persuadir o

imperador tambeacutem pelo possiacutevel temor Assim com um tom de advertecircncia ele escreve

[] se natildeo atendeis agraves nossas suacuteplicas nem esta exposiccedilatildeo puacuteblica que vos fazemos de todo o nosso modo de viver em nada ficaremos prejudicados pois cremos ou melhor estamos persuadidos de que cada um pagaraacute a pena conforme mereccedilam as suas obras pelo fogo eterno e que teraacute que prestar contas a Deus segundo as faculdades que recebeu do proacuteprio Deus conforme nos indicou Cristo dizendo A quem Deus deu mais mais seraacute exigido por Deusrdquo604 (I173-4)

Em outras palavras esse eacute um tipo de alerta ao imperador sobre a sua responsabilidade

diante de Deus devido a sua posiccedilatildeo de autoridade E como se deveria esperar de um

governante ldquopiordquo e ldquoamante da sabedoriardquo tal como foi idealizado no perfil construiacutedo por

Justino segundo sua leitura logocecircntrica Ou seja tendo a ideia do logos cristatildeo como

referecircncia o apologista escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da

verdade respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees

desprezai-as Natildeo decreteis poreacutem pena de morte como contra a inimigos contra aqueles

que nenhum crime cometemrdquo605 Sua peticcedilatildeo eacute seguida de outro alerta ldquoescatoloacutegicordquo ldquovos

avisamos de antematildeo que se vos obstinais em vossa iniquidade natildeo escapareis do futuro

julgamento de Deusrdquo606 Em outro ponto nesse mesmo sentido lecirc-se ldquose tambeacutem voacutes ledes

como inimigos estas nossas palavras aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis

fazer A noacutes isso nenhum dano causaraacute a voacutes poreacutem e a todos os que injustamente nos

odeiam e natildeo se convertem trar-vos-aacute castigo de fogo eternordquo (I456)

Aliada agrave ciecircncia dos benefiacutecios da religiatildeo cristatilde o apologista deixa claro o seu desejo

de que ldquotodos os homens de todo o mundordquo conheccedilam ldquoa verdaderdquo o que incluiacutea o imperador

e seus filhos Desses uacuteltimos deseja-se tambeacutem que julguem ldquocom justiccedila de acordo com [a]

piedade e filosofiardquo e que se possiacutevel publiquem esse escrito para o conhecimento de todos607

Natildeo eacute possiacutevel saber se as Apologias chegaram ateacute o imperador e eacute pouco provaacutevel

que ela tenha circulado amplamente conforme desejava Justino No entanto segundo Sara 603 II108 604 Fazendo menccedilatildeo a Lc 1248 605 I681 606 I681 607 II152

120

Parvis608 seu modo de escrever em defesa dos cristatildeos teria influenciado outros apologistas

As aproximaccedilotildees praticadas por esse pensador em sua manobra teoloacutegica buscam a conversatildeo

inclusive do imperador Em oposiccedilatildeo agrave forma controle que emerge dos clamores reativos

populares que estariam impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do nomen

Christianum o apologista acaba por formular uma reflexatildeo teoloacutegica da histoacuteria que

contempla a relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo Se por um lado estaacute a criacutetica agrave forma de

manutenccedilatildeo da ordem imposta pelos romanos que dava margem para que denuacutencias

decorrentes de atritos locais que conduziam os cristatildeos agrave morte por outro emerge a sua teoria

sobre a cooperaccedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo da sociedade devido ao caraacuteter de suas crenccedilas

Trata-se de um confronto de ideias cujos efeitos deveriam ser aguardados O modelo de

controle cristatildeo pode-se dizer eacute aquele que vem do alto ou de dentro Eacute fruto da assimilaccedilatildeo

da doutrina cristatilde que tem um Deus que zela pela justiccedila e pela moral e que exige uma

conduta impecaacutevel de todos os seus fieacuteis Os que creem e os que natildeo creem estatildeo sob a

condiccedilatildeo do seu juiacutezo O Deus cuja feacute os cristatildeos professam e procuram comunicar aos

demais natildeo tem nacionalidade Ele eacute o criador dos homens e da razatildeo [logos] Todo ser

humano recebeu uma semente dessa razatildeo mas os democircnios maleacutevolos satildeo os responsaacuteveis

por obscurecer o julgamento correto que conduz todo o genus humanus a uma vida reta justa

e virtuosa para a sua recompensa eterna Essa racionalidade humana eacute a responsaacutevel por fazer

com que os homens reconheccedilam e atentem para a mensagem pelo logos que revela Deus pelas

Escrituras ignoradas pelos judeus e examinas pelos cristatildeos Esse temor diante de Deus

entatildeo natildeo deveria ser rechaccedilado como uma superstitio despreziacutevel mas deveria ser acatada

como um mecanismo capaz de traduzir razoavelmente uma doutrina que agregue pontos de

aproximaccedilatildeo aos assuntos filosoacuteficos e a uma mensagem significativa para as pessoas sem

instruccedilatildeo Deve ser reconhecida natildeo como uma mensagem de odio humanus genus mas de

salvatio humanus genus609 sob o domiacutenio do Logos que se traduz na submissatildeo e conversatildeo

ao cristianismo

608 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 609 Isto eacute ldquosalvaccedilatildeo da humanidaderdquo

121

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A situaccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II era instaacutevel e

revelava condenaccedilotildees esporaacutedicas Gritarias e tumultos puacuteblicos agraves vezes pressionavam os

magistrados para que condenassem os cristatildeos sem que houvesse uma ideia clara sobre como

enquadraacute-los em uma lei comum Um pouco antes Adriano havia sido consultado por

governantes610 como Graniano sobre esses problemas Naquela eacutepoca o imperador

recomendou a Minuacutecio Fundano que examinasse de modo particular as denuacutencias formais e

que natildeo desse espaccedilo para a pressatildeo dos tumultos puacuteblicos

Ainda um pouco antes a forma como deviam ser conduzidos os processos contra os

cristatildeos despertava algumas duacutevidas em Pliacutenio Segundo no Ponto-Bitiacutenia A crenccedila cristatilde era

vista como uma superstitio cujo temor os faziam repudiar os deuses comuns o culto ao

Imperador e todos os aspectos da vida puacuteblica que apresentasse algum viacutenculo com outras

crenccedilas e com a ldquoimoralidaderdquo Esse afastamento das interaccedilotildees sociais e o desprezo pelos

deuses tradicionais causou a aversatildeo de muitos das camadas populares e a desconfianccedila das

autoridades A estranheza dessa superstitio favoreceu a disseminaccedilatildeo de caluacutenias como a de

que a celebraccedilatildeo da ceia fosse algum tipo de ritual antropofaacutegico e que as reuniotildees cristatildes

privadas constituiacuteam-se em orgias Desse modo o nonem christianum assumiu uma forte

conotaccedilatildeo negativa pelas regiotildees do Impeacuterio A condenaccedilatildeo dos membros dessa nova religiatildeo

tinha precedentes desde a culpa pelo incecircndio de Roma nos tempos de Nero embora nenhuma

evidecircncia concreta a uma lei que condenasse o crime de ldquocristianismordquo seja encontrada na

primeira metade do II seacuteculo Trajano ratificou o procedimento de Pliacutenio em condenar os

cristatildeos por confessarem-se ldquocristatildeosrdquo todavia essas condenaccedilotildees tinham caraacuteter

admoestativo para desestimular o crescimento do grupo As buscas ou perseguiccedilotildees de fato

natildeo deviam entrar em curso Visava-se minar o corpo estranho representado pelo grupo

antissocial dos cristatildeos da sociedade e garantir a sua reintegraccedilatildeo mediante o perdatildeo aos que

abandonassem a feacute Se para alguns como Taacutecito a superstitio incidia sobre flagitia para

outros como Pliacutenio nenhum flagitium era detectado provavelmente eram produto das

caluacutenias e rumores das massas

A religiatildeo e os deuses tinham diferentes conotaccedilotildees entre a classe letrada entre os

poetas e para o povo sem instruccedilatildeo Desde os tempos de Platatildeo e Soacutecrates a filosofia

610 Deve-se considerar que a ldquoCarta de Antonino ao conciacutelio da Aacutesiardquo citada por Euseacutebio na Histoacuteria Eclesiaacutestica IV131-8 estava correta

122

sustentou criacuteticas agrave religiatildeo tradicional No II seacuteculo dC a influecircncia do cultivo do saber e do

exerciacutecio filosoacutefico podia ser percebida nas correntes de pensamento tais como o estoicismo e

o neoplatonismo que aproximavam a religiatildeo da moral Justino recebeu educaccedilatildeo grega e

provavelmente era filho de um funcionaacuterio romano Priscus cuja famiacutelia pode ter atuado na

colonizaccedilatildeo de Flavia Neaacutepolis na Palestina De laacute partiu para sua jornada pelos caminhos da

filosofia ateacute conhecer as doutrinas cristatildes Como ldquofiloacutesofordquo eacute possiacutevel que sustentasse criacuteticas

agrave forma de pensar das pessoas comuns considerada expressatildeo de ldquoexcessos supersticiososrdquo

Na condiccedilatildeo de cristatildeo passou a pensar a religiatildeo a partir da filosofia Desse modo a feacute cristatilde

passou a representar em seu pensamento a ldquofilosofia verdadeirardquo e ldquodivinardquo Diante dos atritos

sofridos pelos cristatildeos em seu tempo recorreu ao poder da argumentaccedilatildeo e da conveniecircncia

da escrita para defender os cristatildeos da ldquoinjusticcedilardquo sofrida Em uma peticcedilatildeo apologeticamente

fundamenta escreveu a Antonino Pio e a seus filhos clamando para que os cristatildeos natildeo

fossem condenados apenas pela confissatildeo de ldquocristianismordquo Para alcanccedilar o favor do

imperador Justino procura desfazer a conotaccedilatildeo negativa em torno desse nomen christianum

por meio da explicaccedilatildeo dos principais toacutepicos das doutrinas cristatildes e da afirmaccedilatildeo da

submissatildeo dos cristatildeos

A partir da reflexatildeo sobre suas ideias compreende-se o paradoxo entre tipo de controle

social desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia a esses (ou seja

os cristatildeos) que satildeo tidos como ameaccedila agrave ordem e por outro lado o tipo de controle social

apontado nas Apologias que daacute razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos Justino tece uma criacutetica jaacute

conhecida sobre a imoralidade dos deuses pagatildeos Ele natildeo se sente nem um pouco intimidado

em sustentar que os deuses nada satildeo aleacutem de uma ilusatildeo criada pelos ldquomaus democircniosrdquo para o

desvirtuamento dos homens Os ldquomaus democircniosrdquo satildeo os responsaacuteveis pelo obscurecimento

de toda a ldquoverdaderdquo A ldquoverdaderdquo eacute o conhecimento superior que conduz a humanidade agrave

moralidade e eacute reconhecida pelo exerciacutecio da ldquorazatildeordquo A ldquorazatildeordquo eacute algo divino compartilhado

a todos os homens e encarnada na pessoa de Jesus Cristo o mestre dos cristatildeos Sua

encarnaccedilatildeo eacute o cumprimento das profecias das Escrituras sustentadas pelos judeus que por

natildeo a compreenderem corretamente natildeo satildeo capazes de reconhecer o cumprimento da

expectativa messiacircnica611 Por reconhecer mediante uma hermenecircutica que busca identificar

o maacuteximo de evidecircncias possiacuteveis sobre o cumprimento das Escrituras em Cristo612 o

611 ldquoExpectativa messiacircnicardquo expressatildeo teoloacutegica utilizada para se referir a esperanccedila de que o messias libertador de Israel chegaria conforme os profetas israelitas haviam predito 612 Tambeacutem chamada de ldquohermenecircutica cristocecircntricardquo ou no que se refere agrave comunicaccedilatildeo da mensagem divina pelo Logos uma ldquohermenecircutica logocecircntricardquo

123

cumprimento das profecias julga prudente reconhecer as advertecircncias divinas pelas escrituras

sobre o julgamento futuro

Justino desenvolve uma leitura teoloacutegica da histoacuteria contrastando o julgamento a que

satildeo submetidos os cristatildeos e o julgamento final de Deus O primeiro considerado um

julgamento ldquoirracionalrdquo e momentacircneo movido pela cegueira produzida pelos maus

democircnios enquanto o segundo eacute idealizado como um julgamento divinamente justo e eterno

A accedilatildeo dos primeiros governantes estaacute relacionada a uma preocupaccedilatildeo com a manutenccedilatildeo da

ordem que os leva a acatar as denuacutencias caluacutenias e mobilizaccedilotildees contra os cristatildeos Eacute um tipo

de controle social que emerge de baixo pela repulsa do povo por aqueles que representavam

uma ameaccedila a pax deorum devido agrave condenaccedilatildeo ao culto dos deuses Justino acredita que em

meio agrave variedade de ideias e crenccedilas que constituem o quadro social do Impeacuterio os cristatildeos

natildeo deveriam ser reprimidos pelas autoridades por pensarem diferente Desse modo ele se

empenha em mostrar as correlaccedilotildees existentes entre as coisas sustentadas pelos cristatildeos e

outros pontos da cultura greco-romana Enquanto algumas correlaccedilotildees satildeo consideradas

estrateacutegias do democircnio para enganar os homens outras satildeo consideradas a manifestaccedilatildeo da

accedilatildeo do logos que comunica a verdade quer seja pelo conhecimento que os gregos tiveram

pelas Escrituras judaicas ou pelo logos spermatikos comum ao gecircnero humano Tudo o que

foi dito escrito ou julgado corretamente segundo a razatildeo eacute considerado consonante com o

posicionamento dos cristatildeos Pois eacute a ldquorazatildeordquo ou logos que deve conduzir as accedilotildees humanas

para a salvaccedilatildeo Desse modo aleacutem de procurar investir as doutrinas cristatildes de aspectos

racionais Justino tambeacutem busca deixar claro que os cristatildeos natildeo satildeo nenhuma ameaccedila ao

Impeacuterio Os fieacuteis satildeo apresentados como os melhores cooperados do Impeacuterio na manutenccedilatildeo

da paz devido ao caraacuteter das suas doutrinas Contrastando em alguns pontos com o tipo de

controle exercido sobre os soldados que juram fidelidade sem esperarem algo duradouro em

troca Justino fala do tipo de controle que vem ldquodo altordquo A crenccedila no controle absoluto do

Deus cristatildeo eacute apresentada como uma alternativa para solapar a incoerecircncia manifestada na

reverecircncia a deuses tatildeo desregrados e impiedosos quanto aos seres humanos que natildeo

poderiam servir de exemplo de conduta Natildeo haacute muitos detalhes acerca da moralidade cristatilde

mas ela parece estar relacionada agrave moderaccedilatildeo a restriccedilotildees sexuais ao respeito agrave verdade e aos

outros Segundo essa crenccedila cristatilde toda pessoa eacute livre para escolher como deseja viver mas

um dia estaraacute diante do juiacutezo do Deus absoluto do qual ningueacutem pode esconder nada

Tambeacutem eacute nesse sentido que satildeo identificados os cristatildeos Os cristatildeos satildeo definidos como

praticantes de um ideal de vida a seguir fortemente caracterizado pelo moralismo estrito

124

Desse modo Justino acredita que a disseminaccedilatildeo das doutrinas cristatildes poderia servir para

controlar os excessos humanos e as injusticcedilas

Esse tipo de ferramenta de controle foi empregado inclusive para constranger o

imperador a ouvi-lo Aleacutem de considerar irracional desprezar a doutrina dos cristatildeos o

apologista faz uso dessa ferramenta de controle para destacar que a uacutenica coisa que os

romanos poderiam fazer pelos cristatildeos em sua oposiccedilatildeo era lhes tirar a vida algo que

ironicamente o apologista considera insignificante visto que todos um dia morreratildeo Todavia

sustentando que a vida natildeo termina no tuacutemulo Justino alerta que a injusticcedilas como essas

Deus retribuiraacute um dia o castigo eterno enquanto para os que satildeo piedosos e justos estaacute

guardada uma ldquorecompensa eternardquo

Talvez as Apologias de Justino nunca tenham chegado ao seu destinataacuterio

especificado E se chegaram natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que tenham surtido um efeito

positivo Justino morreu anos mais tarde Todavia seu martiacuterio nos tempos de Marco Aureacutelio

tornou-se inspiraccedilatildeo para outros escritores como Atenaacutegoras ou Teoacutefilo de Antioquia Ao

revelar uma relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo a partir das accedilotildees anticristatildes seus escritos

se tornam peccedila fundamental para se compreender como as suspeitas e caluacutenias que incidiam

sobre os cristatildeos despertaram pessoas como esse mestre para pensar a relaccedilatildeo entre a nova

religiatildeo e a estrutura social e poliacutetica existente Se em siacutentese o que suas Apologias

pretendiam de fato era a retirada dos empecilhos para a conversatildeo dos pagatildeos elas satildeo

tambeacutem a primeira manifestaccedilatildeo da ideia de que para proporcionar a conversatildeo dos ldquooutrosrdquo e

o abandono dos rituais religiosos que permeavam a vida puacuteblica e os eventos sociais no

Impeacuterio era preciso pensar a religiatildeo cristatilde como uma alternativa que oferecesse algum tipo

de vantagem social e poliacutetica

Quando se busca por exemplo compreender as vantagens identificadas pelos romanos

na autorizaccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no IV seacuteculo manifesta-se a necessidade de se

investigar sobre as raiacutezes da aproximaccedilatildeo entre religiatildeo cristatilde e o Impeacuterio Eacute pelo exame das

Apologias de Justino Maacutertir que se percebe que em grande medida tal aproximaccedilatildeo eacute fruto

da reflexatildeo apologeacutetica que procurar livrar os cristatildeos da condenaccedilatildeo das autoridades romanas

e ao mesmo tempo em sintonia com a orientaccedilatildeo missionaacuteria na propagaccedilatildeo da mensagem

cristatilde busca livrar os romanos da condenaccedilatildeo eterna de Deus por meio da conversatildeo A

condenaccedilatildeo do culto aos deuses pagatildeos e da religiatildeo ciacutevica associada agrave contumaacutecia cristatilde em

natildeo contradizer suas crenccedilas em funccedilatildeo das determinaccedilotildees romanas exigiu uma reflexatildeo

sobre a sua contribuiccedilatildeo social para o Impeacuterio que os isentasse da culpa de traiccedilatildeo falta de

civismo ou algum tipo de conspiraccedilatildeo do ldquoreino de Deusrdquo Ateacute meados do seacuteculo II as

125

acusaccedilotildees variavam em cada regiatildeo e um paralelo que proporcione uma anaacutelise entre cada

uma delas tambeacutem parece ser um tema digno de uma investigaccedilatildeo especiacutefica e um desafio que

ainda precisa ser encarado

126

REFEREcircNCIAS

Fontes principais

MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005

MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006

JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995

Referecircncas gerais

AGOSTINHO de Hipona A cidade de Deus Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2000

ALCINOOS Enseignement des doctrines de Platon Les Belles Lettres Paris 1990

APHRODISIAS Alexandre drsquo De fato ad Imperatores Ed Guilaume de Moerbek e Pierre Thillet Paris J Vrin 1963

APULEIO Lrsquoautodifesa (apologia di segrave e della magia) Ed Bruno Cassianelli Caserta Edizioni UTEM 1948

AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] vol29 n2 pp 341-356 2010 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019

ANDRESEN C Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft Berlin-New York v44 pp157-195 1952-1953

ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Walter de Gruyter und co Berliacuten 1955

ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris Librairie Alphonse Picard et Fils 1909

127

ARISTIDES Aelius Orationes In Aristides ex recensione Guilielmi Dindorfii Leipzig Weidmann 1829

ARZANI A A teologia do loacutegoj no Quarto Evangelho Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Escola Superior de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008

ATHENAGORAS A Plea for the Chrstians In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995

AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875

AYRES Lewis LOUTH Andrew YOUNG Francecircs M (org) The Cambridge history of early Christian life New York Cambridge 2007

BAGATTI B S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319

BARCELOgrave P Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002

BARNARD L W Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology v 22 n 2 pp 152-164 jun1969

________ Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967

BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 pp 30-50 1968

BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 pp 538-555 2009

BAUMGARTNER M Social control from below In D Black (ed) Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 Orlando Academic Press 1984

BAYET Jean La religion romaine histore politique et psychologique Paris Payot 1976

BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998

BENNET J Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005

BENOIcircT Simon Giudaismo e Cristianesimo una storia antica Bari Laterza 2005

128

BIBLIA Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50])

BIBLIA Sagrada ediccedilatildeo da CNBB 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2002

BLACK Donald The Behaviour of Law New York Academic Press 1976

_______ Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 New York Academic Press 1984

_______ Toward a General Theory of Social Control Selected Problems Vol 2 New York Academic Press 1984

BLANT E le Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373

_______ le Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373

BLUNT A W The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911

BOBICHON P lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 pp 157-158 2003

BOFFO Laura Iscrizioni greche e latine per lo Studio della Bibblia Brescia Paideia Editrice 1994

BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101

BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950

BRENT Allen A political history of Early Christianity London TampT Clark 2009

BUELL Denise K Why this new race ethnic reasoning in early Christianity New York Columbia University Press 2005

BULTMANN R Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004

BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985

BURNS Stacy Lee Ethnographies of law and social control Oxford Elsevier 2005

Carta a Diogneto In Padres Apologistas Satildeo Paulo Paulus 1995

CHADWICH H Early Christian Thought and the Classical Tradition Oxford Clarendon Press 2002

129

________ Introduction In ____ (Ed) Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi

________ Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 (v 47)

________ The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001

________ The gospel a Republication of the natural religion in Justin Martyr Illinois Classical Studies n 18 pp 237-247 1993

CLEMENT of Alexandria Protrepticus In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

________ Stromata In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832

CHROUST Anton-Hermann AristotleProtrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964

CICERO M Tullius De Natura Deorum Edited by O Plasberg Leipzig Teubner 1917 pp 136-137

_________ Tullius De Legibus Georges de Plinval (ed) Paris Belles Lettres 1959

CLARK Gillian Christianity and Roman Society Cambridge Cambridge University Press 2004

CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999

COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp1507-1562

COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985

COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987

COPETE Juan Manuel Corteacutes Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004

130

COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008

Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonnae E Webere 1832

CULMANN O Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002

CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938

DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000

DANIELOU J Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975

De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted- A Rejoinder Past and Present n27 pp28-33 1964

De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 pp6-38 1963

DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000

DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940

DIOGENES Laertius The life of the eminents philosophers Ed Robert Drew Hicks LondonNew York W HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1925

DION Cassius Histoire Romaine V 9 Editado por E Gros Paris Librairie de Firmin Didot Fregraveres Fil Et C Imprimeurs de LrsquoInstitut 1867

DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 p 24 2005

DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963

DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990

DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106

DURRY Marcel Durry Pline-le-juene Paris Le belle Lettre 1972 p 7071

131

ECK Werner The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 195-213

ENDSJO Dag Oistein Greek resurrection beliefs and the soccess of Christianity New York Palgrave Macmillan 2009

ESTRABAtildeO Geography London Heinemann 1949

EUSEBIO de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduzido por Wolfgang Fischer Satildeo Paulo Novo Seacuteculo 2002

EUSEBIUS Die Chronik des Hieronymus heraugegeben und in 2 Auflage bearbeitet von R Helm 3 unveraumlnderte Auflage mit einer Vorbemerkung von U Treu GCS 31 Berlin Akademie Verlag 1984

FARNELL R L Greek hero cult and ideas of immortality Oxford Carendon Press 1921

FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa

________ La relacioacuten entre razoacuten y revelacioacuten em la antropologiacutea de Justino Maacutertir Teologiacutea y Vida v LII pp 35-50 2011

FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006

FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967

FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012

FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11

GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52

GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995

GOFFMAN E Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006

__________ Relations in Public New York Basic Books 1971

GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946

132

GOODENOUGH E R Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923

GOODMAN R ROWLAND C Apologetics in the Roman Empire Oxford Oxford University Press 1999

GOODSPEED E Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914

GRABE J E SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703

__________ SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700

GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988

GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951

GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18--

HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010

__________ The appropriateness of the apologetical arguments of Justin Martyr Tesis submitted for the Master of Philosophy Australian Catholic University 2008

HARNACK A Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274

__________ Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882

__________ Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99

__________ The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962

HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844

HENTEN Jan Willem AVEMARIE Friedrich Martyrdom and noble death selected texts from Graeco-Roman Jewish and Christian Antiquity New York Routledge 2002

133

HIPPOLYTUS The refutation of all heresies Traduzido por Rev J H MacMahon In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 5 Fathers of the Third Century Hippolytus Cyprian Caius Novatian Appendix Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

Historiae Augustae v I text latin with english translation by David Magie London Harvard University Press 1921 (Loeb Classical Library)

HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885

HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897

HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931

HORWITZ E A The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990

HUNT Emily J Christianity in the second century a case of Tatian New York Routledge 2003

HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703

HYLDAHL N Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965)

Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998

INNES Martin Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003

Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386

Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355

IRINEO of Lyon Againt Heresies Traduzido por Rev Alexander Roberts e James Donaldson In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene Fathers v 1 The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

ISOCRATES Busiris with an English Translation in three volumes by George Norlin PhD LLD Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1980

JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 pp 131-159 jun1979

134

JEROME GENNADIUS Lives of illustrious men Traduzido por Ernest Cushing Richardson In SCHAFF Philip (ed) Nicene and Post-Nicene Fathers 2 v 3 Theodoret Jerome Gennadius amp Rufinus Historical Writings New York Grand Rapids MI Christian Literature Publishing Co Christian Classics Ethereal Library 1892

JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961

JOLY E MOORE D Corpus Inscriptionum Latinarum vol VI pars VII fasc IV Berolini De Gruyter p 4262

JOSEgravePHE F Contre Appion Trad Th Reinach Paris Les Belles Lettres 1930

JOSEPHUS Flavius Jewish antiquities books XVI-XVII (Loeb Classical Library) Translated by Ralph Marcus and Allen Wikgren New York Harvad Press 1963

JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991

JOUCE Cullan The seeds of dialogue in Justin Martyr Australian eJournal of Theology 7 jun2006

JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995

JUVENAL Satiras In Juvenal and Persius With An English Translation G G Ramsay London New York William Heinemann G P Putnams Son 1918

KEITH Graham Justin Martyr and religious exclusivism Tyndale Bulletin 431 pp 56-80 1992

KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945

KERESZTES P Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 pp 204-214 dec1964

_________ Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986

_________ Rome and Christians Church I ANRW II 23 1 pp 260 274ss (1979)

_________ The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965

KHORENATSrsquoI Moses History of Armenians Traduzido por Robert W Thomson Ann Arbor Caravan Books 2006

KIMMEL G Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983

135

KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91

KRUEGER Paul MOMMSEN Theodor (Ed) Corpus iuris civilis I Institutiones Dublin Weidmann 1920 passim

KRUumlGER G Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896

LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934

LACTANTIUS The divine institutes Washington Catholic University of America Press 1964

LEWIS Charlton Thomas KINGERY Hugh Macmaster (Ed) An elementary latin dictionary New York American Book Co 1918

LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940

_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999

_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001

LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 pp 2146-312 1986

LUCIAN De morte Peregrini In Works with an English Translation by A M Harmon Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1936

_______ Menippus In The Works of Lucian of Samosata Translated by Fowler H W and F G Oxford The Clarendon Press 1905

LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]

MACMULLEN Ramsay Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997

__________ Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966

__________ Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981

MAIR AW GR MAIR Callimachus Hymn and Epigrams Lycophron With an English Translation by AW Mair Revised Version Cambridge MA amp London Harvard University Press 2000

136

MARAN P TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius

MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005

_________ Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994

_________ Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997

_________ Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 (2) pp 322-335 1992

MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007

MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 pp 413-442 winter1994

MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology v 8 pp 35ndash55 1982

MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 161v

_________ (Org) Patrologiae cursus completus series latina Paris Garnier-Migne 1878 217v

MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 pp 392-399 1890

MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 pp 3-32 1953

MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956

MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975

MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006

137

__________ LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p

__________ Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995

NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002

NASCIMENTO DFP O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia Pontificia Universidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003

NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzene Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129

OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992

ORIGIN Against Celsus In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997

OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889

OTTO JCT von Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876

PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988

PARVIS Sara Justin Martyr and Apologetc Tradition In PARVIS Sara FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007

________ FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007

PAUSANIAS Description of Greece with an English Translation by WHS Jones LittD and HA Ormerod MA in 4 Volumes Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1918

PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998

PERION Joachin Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum

138

Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis

PERKINS Judith Roman Imperial Identities in the Early Christian Era New York Routledge 2009

PFAumlTTISCH Johannes M Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910

PLATO Apology In Plato in Twelve Volumes Vol 1 translated by Harold North Fowler Introduction by WRM Lamb Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1966

______ Republic In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903

______ Law In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903

PLINIUS Caecilius Secundus Gaius Lettres Paris Belle Lettres 1953

PLUTARCH Moralia with an English Translation by Frank Cole Babbitt Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1928

POLYBIUS The Histories V III Translated by W R Paton Cambridge MALondon Harvard University PressWilliam Heinemann LTD 1979

POPE M The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000

POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005

PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988

QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197

RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972

REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004

ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89

ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) Bible Work 5 Software 2002

139

ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995

ROHDE Erwin Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966

ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981

ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141

ROSS Robert C Superstitio The Classical Journal v 64 n 8 pp 354-358 mai1969

ROUCECK Joseph Social Control Westport CT Greenwood Press 1970

RUSCONI C DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005

RUSSELL D S The Method and Message of Jewish Apocalyptic Philadelphia Westminster Press 1964

SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961

SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958

SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 pp 190ss 1954

SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review N 82 p 72 Jan1982

SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004

SENECA Apocolocyntosis WHD Rouse MA Litt D London William Heinemann 1913

SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008

SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 pp 23-27 1964

___________ The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952

140

SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987

SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 p 412 setdez 2009

SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006

SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944

SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011

________ I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349

STARK Rodney Baindridge Religion deviance and social control New York Routledge 1996

SUETONIUS The lives of the CAESARS In ROLFE JC (ed) SUETONIUS v II LondonNew York William HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1928

SUETONII C T De Vita XII Caesarum Harvard Loeb Classical Library 1914

SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012

SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946

SYLBERG F TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953

TACITUS C Annais In Complete Works of Tacitus Edited by Alfred John Church William Jackson Brodribb Sara Bryant New York Random House Inc Random House Inc reprinted 1942

________ Historiae Ed Charles Dennis Fisher Clarendon Press Oxford 1911

TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984

TATIAN Address to the Greeks Traduzido por JE Ryland In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

141

TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899

TERTULLIAN Apology Traduzido por Rev S Thelwall In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

________ Apology With tradution of TRGlover In GOOLD G P TertullianMinucius Felix Cambridge MassachusettsLondon Harvard University PressWilliam Heinemann 1978 pp 112-113 (The Loeb Classical Library)

________ Against the Valentinians Traduzido por Dr Roberts In SCHAFF Philip MENZIES Allan (ed) Anti-nicene fathers v 3 Latin Christianity its Founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2006b

THIRLBY S Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722

TITUS Livius History of Rome Cambridge Mass Harvard University Press 1970

TUAN Yi-fu Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983

URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932

VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006

VALANTASIS Richard Demons Adversaries devils fishermen The Asceticism of authoritative teaching (NHLVI3) in context of Roman AscetismThe Journal of religion v 81 n 4 pp 549-565 out2001

VEYNE P Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197

VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009

XENOPHON Apology In ____ Xenophontis opera omnia 2nd ed Oxford Clarendon Press 1921

WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991

WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987

WHIGHT ED The History of Heaven New York Oxford University Press 2000

WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 pp 181-190 1975

142

WINDISCH Hans Die orakel des Hystaspes Amsterdam Koninklijke Akademie van Wetenschappen 1929

WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982

143

APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS

A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450

ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C

segundo a forma estabelecida por Otto613

O Parisinus Graecus 450 ndash A ndash eacute o mais antigo manuscrito das obras de Justino

consideradas autecircnticas Ele eacute descrito como um conjunto de 467 foacutelios de 285x215 cm

terminado em 11 de setembro de 1364 segundo seu colofatildeo (fol 461a)614 Presume-se que

tenha sido adquirido em Veneza por Guillaume Pellicier bispo de Montpellirer e embaixador

francecircs naquela cidade de 1539 a 1542615 Natildeo eacute possiacutevel saber onde o manuscrito esteve

entre 1364 e 1540 Miroslav Marcovich616 considera ateacute razoaacutevel a hipoacutetese de A ter sido

produzido na Mistra617 do Deacutespota Manuel Cantacuzenos O antigo imperador John VI

Cantacuzenos pai de Manuel teria vivido contente como monge ateacute seus uacuteltimos dias

conhecido como Joasaph Era um homem culto e interessado nos assuntos teoloacutegicos Esse foi

um periacuteodo de prosperidade cultural e material no despotado de Morea618 Minns e Davis

identificam outros pontos que contribuem razoavelmente para indicar um centro maior como

Mitra ou Constantinopla Os primeiros cinco foacutelios que introduzem a coleccedilatildeo das obras de

Justino no A satildeo extratos de Photius e Euseacutebio sobre esse apologista Especificamente no

primeiro foacutelio aparecem indiacutecios de que o texto foi copiado ou adaptado de outro exemplar

Isso levaria a crer que A foi escrito em um lugar onde fosse possiacutevel ter acesso a outros textos

que auxiliassem na adaptaccedilatildeo Ter acesso agraves relevantes passagens de Photius no seacuteculo XIV

pode ser considerado algo raro619

Outro manuscrito completo das Apologias eacute o Phillippicus 3081 chamado B A partir

da anaacutelise de Bobichon620 B eacute reconhecido como um apoacutegrafo de A Sua dataccedilatildeo eacute de 2 de

abril de 1541 e apresenta uma assinatura no nome de ldquoGeorgerdquo provavelmente Georgios

613 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 614 MINNS D PARVIS P Justin Philosopher and Martyr Apologies Oxford Oxfrod Press 2009 p 3 615 ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris 1909 616 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 Cf Id Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 2 1992 p 322-335 617 Apoacutes o ano de 1261 a cidade ao sul do Peloponeso teria passado por um periacuteodo de ascendente prosperidade No seacuteculo XIV tornou-se importante centro cultural que teria sido capaz de influenciar o Renascimento na Itaacutelia 618 NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzenos Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129 619 MINNS PARVIS Op cit p 5 620 lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 p 157-158

144

Kokolos que viveu em Veneza e trabalhou para Guillaume Pelicier621 Acredita-se que B

tenha pertencido sucessivamente a Pellicier Clausde Noulot du Val ao Coleacutegio Jesuiacuteta de

Clermont em Paris e com a expulsatildeo dos Jesuiacutetas da Franccedila agrave coleccedilatildeo de Meermann E entatildeo

passou para a coleccedilatildeo de Sir Thomas Phillipps622 dando origem ao seu nome Por alguns anos

esses escritos estiveram no depoacutesito da British Library identificado como ldquoLoan 3613rdquo mas

foi retirado e vendido ldquoby private treatyrdquo em Marccedilo de 2006623

O coacutedice Ottobonianus 274 chamado de C tambeacutem tem certo valor na tradiccedilatildeo

manuscrita das Apologias mesmo contendo apenas trecircs capiacutetulos das mesmas Minns e

Parvis624 Marcovich625 Otto626 Harnack627 Blunt628 e Munier629 concordam que sua

qualidade eacute bem inferior a de A Mas quando se trata de saber se C eacute paralelo e independente

de A ou se eacute simplesmente uma coacutepia as opiniotildees se dividem Harnack630 considerou-o um

escrito independente de A Blunt destacou que ele parecia representar uma tradiccedilatildeo diferente

de A Marcovich e Munier segundo Minns e Parvis contentaram-se em apontar o demeacuterito

do texto Sem dar muitos detalhes sobre tais caracteriacutesticas de C Minns e Parvis se

esforccedilaram para argumentar que se trata de uma coacutepia de A feita agraves pressas Uma hipoacutetese

razoaacutevel eacute a de que o trecho da I Apologia 65-67 teria sido copiado pelo escriba Giovanni

Onorio atuante no Vaticano e em outros lugares de Roma por nomeaccedilatildeo do papa Paulo III em

1535 ateacute sua morte em agosto de 1563631 O restante de C teve outros escritores de diferentes

datas632 Ainda segundo a anaacutelise de Minns e Parvis633 a junccedilatildeo da ediccedilatildeo de Petrus Nannius

do De Resurretione Mortuorum de Atenaacutegoras ao conjunto de escritos proacuteximos aos extratos

das Apologias aponta para uma data natildeo anterior a 1541 Semelhantemente a Legatio de

Atenaacutegoras impotildee uma data natildeo posterior a 1557 quando a edito princeps foi impressa por H

Stephanus A visatildeo de Justino sobre a eucaristia teria sido de grande interesse teoloacutegico no

621 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 6 Vide nota 14 622 Esta trajetoacuteria apontada por Minns e Parvis eacute traccedilada por Archambault (Op cit v I pp xxiv-xxviii) e sumarizada por Bobichon (Op cit p 160) 623 Conforme Minns e Parvis (Op cit p 6) indicam e o Newslatter of the Association for Manuscripts and Archives in Research Collectons 46 mai2006 p 13 atesta 624 Op cit p 6 625 Op cit p 7 626 Op cit p xxviii 627 Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882 628 The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911 p lii 629 Justin Apologie pour les Chreacutetiens Paris Les Eacuteditons du Cerf 2006 p 86 630 Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99 631 MINNS PARVIS Op cit p 7 Ele indaca tambeacutem RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972 632 Conforme mostram Minns e Parvis (Op cit p 7) 633 Ibid p 8

145

periacuteodo que antecedeu e aos redores do decreto da eucaristia na deacutecima terceira sessatildeo do

Conciacutelio de Trento em 11 de outubro de 1551 Esses trecircs capiacutetulos do texto de Justino teriam

sido citados por Thomas Cranmer e Stephen Gardiner em 1549 antes de aparecer a editio

princeps Uma data proacutexima a 1548 eacute sustentada para esses dois primeiros foacutelios de C

Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra Parallela634 e no Chronicon

Paschale635 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo menos que doze vezes Na

Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito passagens No Chronicon Paschale

aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4 Esse uacuteltimo deriva provavelmente da

tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)636

634 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 635 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 636 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 13

146

Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos

Agostinho de Hipona 86

Alexandre de Afrodiacutesias 113

Apuleio 24

Aristides 15 24 33 49 55 58 109

Ata do Martiacuterio de Justino 22

Atenaacutegoras 24 109 123 143

Carta a Diogneto 49

Cassius Dio 9 13 14 34 36 48 49 67 88 97 103 111

Chronicon Paschale 18 128 144

Chrysippus de Solis 113

Cicero 43 139

26 31 43 71 74 87

Clemente de Alexandria 74 97

Diogenes Laertius 113

Eacutelio Aristides 58

Estrabatildeo 94

Euseacutebio 18 19 22 23 30 31 32 33 34 40 44 45 48 49 50 53 54 56 57 58 68 69

120 142 144

Flaacutevio Josefo 24 80 93 129

Histoacuteria Augusta 9 48 51

Homero 92

Irineu de Lyon 21

Isoacutecrates 86

Jerocircnimo e Gennadius 21

Juvenal 74

Lactacircncio 97

Luciano 21 37 58 73 95

Meacuteliton de Sardes 24 45

Oraacuteculos de Histaspes 97

Oriacutegenes 95

Oroacutesio 60

147

Papyri Graecae Magicae 92

Pausacircnias 94

Platatildeo 11 24 26 27 28 29 67 78 86 87 91 92 93 94 95 97 98 107 108 109 113 115

120

Pliacutenio 9 14 26 35 36 37 38 39 40 41 42 44 46 47 52 53 55 62 76 77 79 116 120

Plutarco 73 86 91 94 95 96 113 116

Poliacutebio 86 87

Quadrato 15 24 33 49 55

Secircneca 26 72 103

Suetocircnio 13 37 44 103

Taciano 21 24 27

Taacutecito 13 14 26 34 37 44 49 88 97 116 120

Teoacutefilo de Antioquia 24 123

Tertuliano 9 12 21 27 34 35 45

Tito Liacutevio 9 74 75

Varratildeo 86

Xenofontes 24 26

148

Iacutendice remissivo

acusadores 30 56 88 125

Adriano 7 10 15 16 27 35 37 40 41

42 44 49 50 51 52 53 54 55 56 57

58 59 60 61 62 63 71 72 84 90

106 128 143

alma 24 46 81 93 98 99 101 102 104

105 114 125 137

Antonino Pio 7 10 15 16 26 33 59 60

61 62 64 121 129

antropofagia 39

asebeia 36

Aacutesia Menor 15 26 32 55 83

ateiacutesmo 30 38 56 62 84 107 124

avsebeia 38

Bar Koseba 112

24 51 52 55 136

boatos maliciosos 63

caluacutenias

caluacutenia 7 34 39 40 47 48 56 81 82

83 84 88 91 96 108 119 125 128

130 131

canibalismo 30 56 84 124

castigo 6 31 44 56 61 74 85 91 94 96

97 98 104 113 114 120 123 126

131

coercitio 37 44

cognitio extra ordinem 45

controle social 14 16 17 18 64 65 67

68 69 70 77 80 82 113 127 129

130 131 133

costumes judaicos

costume judaico 39

Crescente 23 26 29 34 63 124

crime 17 31 37 39 40 42 47 57 58 62

67 68 84 89 90 93 126 128 139

culto ao imperador

culto imperial 38 52 81

decreto 47 64 76 79 114 148

democircnios

democircnio 11 74 78 79 81 88 89 91

96 106 107 108 110 111 112 117

118 119 122 127 129 130

denuacutencias

denuacutencia 7 34 37 41 43 47 55 56

58 82 90 91 123 124 127 128

130

desordem social 17

destino 29 52 104 105 107 113 120

Domiciano 36 48

epicureus 100 102

escola peripateacutetica 22

escola platocircnica

platonismo 22

estigmas

estigma 84 88 89

estigmatizaccedilatildeo 11 74 83 87

estoicismo 22 114 117 129

estoicos 92 100 102 104 124

exclusivismo 74

fariseus

fariseu 99

149

filosofia 7 12 16 22 23 27 28 30 33

38 65 71 73 92 93 99 100 101 102

103 106 118 122 125 126 129

filosofia estoica 38

flagitia

flagitium 14 36 39 40 46 47 48 50

90 124 128

gecircnero apologeacutetico 10 25 28

Graniano 15 16 53 56 57 128

Hades 92 99 101 102

Helena 107 120

Heraacuteclito 103 115 117

hetaerias 41

Histapes 103

Homero 98 101 102 107 115

incesto 14 39 59 84

inferno 105

injusticcedilas

injusticcedila 15 47 91 131

institutum neronianum 12 15 36 37 48

ius coertionis 37 45 50

julgamento 7 23 28 30 35 36 42 45 55

58 86 106 118 120 126 127 130

justiccedila 11 29 30 31 64 70 71 74 82

90 91 97 98 106 114 118 120 121

126 127

laesea maiestatis 37 40 45

livre-arbiacutetrio 113

loacutegoj sperermatikoj 26

Logos

logos 12 26 73 109 110 112 115

116 117 118 120 121 122 123

125 127 130 133 142 143

Luacutecio Vero 33

maiestas 47 56

manutenccedilatildeo da ordem 7 10 11 15 16 17

64 70 71 92 95 96 122 125 127

130

Marciatildeo 24 119 120

Marco Aureacutelio

M Aureacutelio 10 16 33 35 48 59 60 62

63 72 73 121 131

Menandro 104 107 120

Minuacutecio Fundano 16 53 54 56 58 128

Moiseacutes 114

moral 15 61 66 87 91 92 94 96 118

121 124 127 129

moralidade 7 70 91 94 108 119 129

131

morte 16 24 29 42 52 62 63 70 72 78

82 83 85 89 90 91 96 97 98 99

100 101 102 104 105 111 118 123

124 125 126 127 144 147

neoplatonismo 129

Nero 12 36 47 48 50 77 83 117 128

Nerva 38

nome cristatildeo

nomen christianum 30

nomen christianum 7 43 47 50 55 57

129

nomen Christianum 84 95 127

opiniatildeo puacuteblica 39 50 59

Ottobonianus Graecus 274 9 19 146

Parisinus Graecus 450 5 9 19 24 146

pax deorum 13 39 46 62 65 66 76 130

perseguiccedilatildeo 7 8 13 15 35 36 37 47 53

59 62 64 66 83 88

150

perseguiccedilotildees 13 15 27 47 65 66 81 87

89 106 128

peticcedilatildeo

libellus 27 31 32 33 34 62 71 90

126 129

Phillipicus 3081 19 146

pitagoacuterico 22

preconceito 63 88

reino de Deus 6 74 91

religio licita 38 45 55

rescrito 16 27 33 40 43 53 54 55 56

57 58 60 61 62 90

rescrito de Adriano 54 57 61

ressurreiccedilatildeo 99 100 102 105 109 111

112 144

retoacuterica 10 26 27 29 72 115

revelaccedilatildeo 11 105 107 115 116

Rusticus 23

sacrifiacutecios

sacrifiacutecio 42 48 64 74 75 79 81

sacrilegium 37 40 45 47 50

saduceus

saduceu 99

senatus consultum 36 48

Sibila 103 118

Simatildeo Mago 24

Soacutecrates 9 25 28 29 30 73 97 101 115

122 124 129

superstitio 7 8 14 35 37 39 40 42 43

45 46 48 52 55 58 85 90 91 94

124 127 128

superstitiones 14 46 94 101 102

temor 40 62 92 93 94 97 105 107 120

126 127 128

Tibeacuterio 15 16 36 48 103 139

toleracircncia 17 35 37 42 47 129

Tolomeu 61

Trajano7 10 15 32 35 36 37 38 39 40

41 42 43 44 47 48 49 50 54 55 56

57 58 59 60 61 66 84 90 128 133

143

Tumultos

Tumulto 62

Urbico 16 34 35 61 63 84 85 123

verdade 22 23 26 28 29 30 31 65 70

74 78 83 88 90 106 108 110 111

113 114 116 119 122 126 129 130

Vespasiano 22 32 117

viacutecio 99 113 114 120 121 124

virtude 6 91 92 96 99 112 113 114

115 120 124 125

151

Page 3: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência

3

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

A797a Arzani Alessandro

As accedilotildees anticristatildes segundo as Apologias de Justino Maacutertir controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano Alessandro Arzani Maringaacute [sn] 2013

149p

Orientador Profordf Dra Renata Lopes Biazotto Venturini

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria ndash Universidade Estadual de Maringaacute

1 Histoacuteria do cristianismo 2 Perseguiccedilatildeo aos cristatildeos 3 Impeacuterio Romano 4 Justino Maacutertir I Venturini Renata Lopes Biazotto II Universidade Estadual de Maringaacute

Ficha Catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Mara R Colafatti - CRB 91272

4

ALESSANDRO ARZANI

AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE

JUSTINO MAacuteRTIR

Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano

Aprovado em

BANCA EXAMINADORA

Profordf Drordf Monica Selvatici

Universidade Estadual de Londrina - UEL

Profordf Drordf Solange Ramos de Andrade

Universidade Estadual de Maringaacute - UEM

Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini

Universidade Estadual de Maringaacute - UEM

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria

5

Dedico este trabalho

ao senhor de todas as eras que natildeo pode ser submetido a qualquer estaticidade que se possa

imaginar no universo Ao que era desde o princiacutepio eacute agora e continuaraacute sendo

indefinidamente Ao que consola e agraves vezes oprime a qualquer que seja Ao que

cuidadosamente nos observa desde o primeiro instante de vida e que conta

cada batimento do nosso coraccedilatildeo Sem ele nossos dias natildeo poderiam

ser contados Dele depende o amanhatilde nossa existecircncia e nossa

histoacuteria Agravequele que acompanhou cada passo deste

desafio e que me fazia lembrar do valor de

cada instante Agravequele que muitos

simplesmente chamam de

ldquotempordquo

6

AGRADECIMENTOS

Agrave Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini minha querida orientadora pela confianccedila

incentivo amizade e paciecircncia durante essa jornada Eu confesso que nunca havia conhecido

algueacutem que carregasse em si de tal forma a franqueza e a doccedilura associadas ao rigor

acadecircmico como pude constatar em sua pessoa

Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) pelo

amparo financeiro para o desenvolvimento dessa pesquisa

Agrave Profordf Drordf Sara Parvis (University of Edinburgh) por sua gentileza em indicar

algumas informaccedilotildees importantes sobre o principal manuscrito das Apologias de Justino o

MS Parisinus Graecus 450

Agrave minha querida amiga Profordf Viviana L Felix (Universidad Catolica de Buenos

Aires) que generozamente compartilhou comigo artigos e momentos agradaacuteveis de fluecircncia de

ideias

Aos professores Drordm Mauro Pesce e Drordf Adriana Destro (Universitagrave di Bologna) pela

atenccedilatildeo em partilhar comigo algumas indicaccedilotildees bibliograacuteficas

Agraves professoras Drordf Maria Aparecida de Oliveria Silva (pesquisadora na UNESP-

Araraquara) e Drordf Giovanna Menci (Istituto Papirologico ldquoG Vitellirdquo dellrsquoUniversitagrave degli

Studi di Firenze) assim como tambeacutem ao nobre B Jobjorn Boman (Oumlrebro University) pelos

riquiacutessimos artigos compartilhados

Ao Profordm Me Deivid V Gaia (Universidade Federal de Pelotas) por haver gentilmente

compartilhado alguns documentos importantes conseguidos junto agrave Bibliothegraveque national de

France

Agraves professoras Drordf Monica Selvatici (Universidade Estadual de Londrina) e Drordf

Solange Ramos de Andrade (Universidade Estadual de Maringaacute) pelas ricas criacuteticas e

consideraccedilotildees que contribuiacuteram para o aprimoramento dessa pesquisa

Aos colegas Camila Santiago Luz Thiago Franccedila Thais Bassi Soares Profordm Drordm

Jaime Estevatildeo dos Reis e demais integrantes do Laboratoacuterio de Estudos Antigos e Medievais

(LEAM-UEM) pelo companheirismo e satisfaccedilatildeo proporcionada pela dedicaccedilatildeo conjunta aos

estudos histoacutericos

7

Ateacute voacutes apenas ouvindo que esperamos um reino logo supondes sem nenhuma averiguaccedilatildeo que se trata de

reino humano quando noacutes falamos do reino de Deus [] Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a

manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o

avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens

conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos os modos e se

adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos De fato aqueles que agora

por medo das leis e dos castigos por voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los porque

sabem que sois homens e que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutes se se inteirassem e se persuadissem de que

natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se

moderariam de todos os modos como voacutes mesmos haveis de convir

Justino Maacutertir I Apologia 111121

8

Resumo

A histoacuteria do cristianismo na primeira metade do II seacuteculo eacute marcada por atritos locais

denuacutencias em tribunais e caluacutenias que faziam do nome ldquocristatildeordquo um motivo de condenaccedilatildeo

Trajano Adriano e Antonino Pio fizeram suas recomendaccedilotildees aos governantes locais para

desestimular a expansatildeo da nova superstitio dos cristatildeos que demonstrava aversatildeo aos

deuses agraves tradiccedilotildees agraves celebraccedilotildees puacuteblicas e ao culto imperial Nenhuma perseguiccedilatildeo de

fato devia ser estabelecida denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas e os cristatildeos que

abandonassem a feacute deveriam ser perdoados os que se recusavam a abandonar a feacute eram

punidos com a pena capital segundo o julgamento de cada magistrado Nesse periacuteodo alguns

chamados apologistas produziram escritos em defesa dos fieacuteis Justino escreveu duas vezes

ao imperador Antonino e a seus filhos entre os anos de 154 e 161 Nas Apologias ele critica a

postura dos governantes por acatarem as caluacutenias das massas que acarretavam uma ideia

depreciativa ao nomen christianum A fidelidade cristatilde ao Impeacuterio eacute ratificada pelo

apologista que surpreende ao destacar a colaboraccedilatildeo dos fieacuteis na manutenccedilatildeo da ordem Por

meio desta pesquisa que tem por obejtivo analisar a relaccedilatildeo entre controle e religiatildeo a partir as

accedilotildees anticristatildes nesses escritos de Justino nota-se que esse tipo de accedilotildees foi fundamental

para que a funccedilatildeo social da religiatildeo dos cristatildeos fosse pensada no desenvolvimento desse

discurso apologeacutetico Nesse discurso procura-se justificar a rejeiccedilatildeo aos deuses e agrave

imoralidade por eles representada Atento agraves interrogaccedilotildees dos intelectuais e homens letrados

de sua eacutepoca satildeo destacados os aspectos tidos por ldquoirracionais e imoraisrdquo das crenccedilas pagatildes

enquanto a feacute cristatilde eacute apresentada em contornos racionais com o intuito de reconhececirc-la como

filosofia divina e superior agraves demais Nesse sentido a crenccedila num Deus absoluto justo e

onisciente aparece como um instrumento capaz de subter as pessoas agrave moralidade enquanto

aguardam a recompensa eterna e procuram se afastar da condenaccedilatildeo divina Eacute nesse momento

que a religiatildeo dos cristatildeos comeccedila a ser pensada como uma substituta agraves crenccedilas pagatildes

apontadas como incoerentes

Palavras-chave

Justino Maacutertir histoacuteria do cristianismo Impeacuterio Romano perseguiccedilatildeo aos cristatildeos

9

Abstract

The history of Christianity in the first half of the second century is marked by local clashes

accusations in court and slanders that made the name Christian reason for condemnation

Trajan Hadrian and Antoninus Pius made their recommendations to local governments to

discourage the expansion of new superstitio of the Christians who showed aversion to the

gods traditions public celebrations and the imperial cult No persecution in fact should have

been established anonymous reports should not have been accepted and if any Christian

abandoned the faith they should have been forgiven however those who refused to abandon

their faith were punished with the death penalty according to the judgment of each magistrate

During this period some Christians with high education produced writings in defense of their

faith Justin wrote twice to the Emperor Antoninus and his sons between the years 154 and

161 AD In ldquoApologiesrdquo he criticizes the attitudes of the rulers for accepting the slander of the

masses who were accusing the Christians The Christian fidelity to the Empire is ratified and

he highlights the collaboration of the faithful in the maintenance of order Through this

research on the relationship between religion and control as seen in the antichristian actions

reported in the writings of Justin it is noted that this type of action was essential to the social

function of the Christian religion to be thought in your apologetic discourse It seeks to justify

the condemnation of the gods and the immorality represented by them In attention to the

questions of intellectuals and men of letters of his age the irrational behaviors and immoral

aspects of the pagan beliefs are pointed by the apologist while the Christian faith is presented

in rational contours making it a divine philosophy and superior to the other In this sense the

Christian belief in an absolute God who is just and omniscient appears as an instrument with

the ability to teach and demand morality from its followers while they are awaiting the

eternal reward and actively trying to move away from divine condemnation It is then that

their religion begins to be thought of as a substitute for pagan beliefs which are pointed out as

incoherent with the order in the Empire

Key-words

Justin Martyr History of Christianity Roman Empire persecution of Christians

10

LISTA DE ABREVIATURAS

Hist Ecles Histoacuteria Eclesiaacutestica

Diaacutel Diaacutelogo com Trifatildeo

I Apol Primeira Apologia de Justino

II Apol Segunda Apologia de Justino

A Manuscrito Parisinus Graecus 450

B Manuscrito Phillipicus

C Manuscrito Ottobonianus Graecus 274

IGRR Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes

Apolog Apologeticus de Tertuliano

Hist Rom Histoacuteria Romana de Cassius Dio

Hist Aug Histoacuteria Augusta

ApS Apologia de Soacutecrates

PIR Prosopografia Imperii Romani

Ep Epiacutestolas de Pliacutenio

Hist Roma Histoacuteria de Roma de Tito Liacutevio

ANRW Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt

ZKG Zeitschrift fuumlr Kirchengeschichte

Ant Jud Antiguidades Judaicas

Guer Jud Guerras Judaicas

11

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 12

CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS 18

11 As principais ediccedilotildees das Apologias 18

12 A questatildeo da autoria Justino 22

13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino 25

131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica 26

132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino 27

14 Destinataacuterios 31

CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS 34

21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano 35

22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano 49

23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos 57

CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE

MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM 62

31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem 67

32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus 71

33 Sobre as leis e imoralidades 85

CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM

SOCIAL 91

41 O controle absoluto do controlador absoluto 91

42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde 100

421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios 102

422 A razatildeo que julga 109

43 O governo o controle e os governantes 115

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 121

REFEREcircNCIAS 126

APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS 143

Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos 146

Iacutendice remissivo 148

12

INTRODUCcedilAtildeO

Este que no dia 1 de junho eacute reverenciado pelas Igrejas Catoacutelica Ortodoxa Oriental e

Anglicana tem a apresentar um testemunho que vai aleacutem do seu martiacuterio Seus escritos

oferecem pistas importantes para o entendimento da condiccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no

Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II Muitos como o Papa Bento XVI o tecircm chamado

de ldquoo mais importante dos padres apologistas do segundo seacuteculordquo1 Poreacutem o que esta

pesquisa iraacute mostrar eacute que os escritos atribuiacutedos a esse ldquofiloacutesofo cristatildeordquo apresentam acima de

tudo os primeiros indiacutecios de uma efetiva reflexatildeo histoacuterico-teoloacutegica sobre a funccedilatildeo do

cristianismo na organizaccedilatildeo social

Dentre as pesquisas do seacuteculo XX sobre Justino recebe destaque primeiramente o

trabalho de Johannes M Pfaumlttisch2 em 1910 a respeito da influecircncia do pensamento de

Platatildeo sobre esse apologista Em 1923 foi publicada a obra de E R Goodenough3 que

apresentava uma sistematizaccedilatildeo do pensamento teoloacutegico desse que segundo seu ponto de

vista fazia jus ao nome de ldquomaacutertirrdquo ou seja algueacutem ldquoque daacute testemunhordquo mas que em

contrapartida estava longe de merecer o tiacutetulo de ldquofiloacutesofordquo Poucos anos mais tarde

destoando em alguns aspectos do pensamento de Goodenough empreendeu C Andresen4

uma anaacutelise sublinhando os traccedilos filosoacuteficos dos escritos de Justino em comparaccedilatildeo ao

meacutedio-platonismo que tinha um espaccedilo significativo no pano de fundo intelectual do II

seacuteculo dC A problemaacutetica da relaccedilatildeo entre as doutrinas cristatildes ganhou reforccedilo com a defesa

da tese de N Hyldahl5 em 1965 Na mesma deacutecada de 1960 eacute Lislie W Barnard6 quem

intersecciona os aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos e as ideias sobre o judaiacutesmo representados

nos escritos de Justino Aleacutem dos interesses teoloacutegico-filosoacuteficos em torno desses escritos haacute

tambeacutem uma busca por elementos que auxiliem a compreender a condiccedilatildeo dos cristatildeos no

1 PAPA BENTO XVI Audiecircncia geral Praccedila de Satildeo Pedro Vaticano 21 de marccedilo de 2007 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherbenedict_xviaudiences2007documentshf_ben-xvi_aud_20070321_pohtml acesso em 20 de dezembro de 2011 2 Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910 3 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 4 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf tambeacutem ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Berliacuten Walter de Gruyter und co 1955 5 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 6 Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967 cf tambeacutem id Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology V 22 n 2 jun1969 pp 152-164

13

Impeacuterio em meados do seacuteculo II Nesse sentido os escritos de Justino tecircm muito a contribuir

tanto para se pensar a influecircncia da cultura greco-romana sobre as ideias cristatildes quanto sobre

as accedilotildees anticristatildes

As conferecircncias de Henry Chadwich7 na The John Rylands Library em 1965

chamavam a atenccedilatildeo para a inter-relaccedilatildeo entre a filosofia e a teologia nascente percebidas nas

estrateacutegias de defesa argumentativa apresentadas por Justino contra a opressatildeo sobre os

cristatildeos Mas por que os cristatildeos foram perseguidos

As hipoacuteteses tecircm girado em torno de uma lei especial contra os cristatildeos instituiacuteda por

Nero institutum neronianum como chamou Tertuliano8 ou pelo enquadramento em crimes

comuns como maiestas ou pela livre accedilatildeo dos magistrados para manter a ordem ius

coertiones9 Na deacutecada de 1950 receberam destaque os trabalhos de Henry Gregoire10 A N

Sherwin-White11 e J Moreau12 Na deacutecada seguinte Geoffrey E M de Ste Croix13

estabeleceu um debate com Sherwin-White14 sobre essa questatildeo

GEM de Ste Croix sustentava que as perseguiccedilotildees aos cristatildeos baseavam-se na

recusa em reconhecer os deuses de Roma comportamento que era frequentemente

considerado perigoso e sedicioso Os deuses tradicionais do panteatildeo greco-romano eram as

divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma que exigiam culto para a estabilidade da

pax deorum15 Por essa perspectiva Ste Croix propunha que a perseguiccedilatildeo se relacionava ao

sentimento religioso da eacutepoca16 AN Sherwin-White por outro lado defendeu que as

perseguiccedilotildees aos cristatildeos natildeo se baseavam na questatildeo do rompimento da pax deorum mas na

aguda obstinaccedilatildeo dos cristatildeos em natildeo cometer apostasia nem sacrificar para os deuses do

Impeacuterio17 Tal postura dos cristatildeos desafiava as autoridades romanas e representavam uma

grave insubordinaccedilatildeo GEM Ste Croix deu uma treacuteplica a essa questatildeo em 196418 mas essa

problemaacutetica tem despertado pesquisadores ateacute hoje19

7 Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 8 Ad Nationis I78 9 BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 1968 pp 30-50 10 Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 1111 The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952 p 199 12 La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 13 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 pp 6-38 14 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 15 De Ste CROIX GEM Op cit 1963 p 24 16 Ste CROIX GEM Op cit 1963 pp 29-31 17 SHERWIN-WHITE AN Op cit 1964 pp 25 18 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 19 Cf BARNES Timothy D Constantine and Eusebius Cambridge MA Harvard University Press 1981 MacMULLEN Ramsay Christianizing the Roman Empire (AD 100-400) New HavenLondon Yale

14

A proclamaccedilatildeo cristatilde no I e II seacuteculos causava tanto conversotildees quanto reaccedilotildees

adversas entre os pagatildeos20 A religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio Romano era presente na vida dos

povos 21 Relembrando Marcel Simon e Andreacute Benoicirct22 eacute justo admitir que com a refutaccedilatildeo

de todos os compromissos e a sustentaccedilatildeo intransigente do monoteiacutesmo a Igreja parecia um

corpo estranho aos pagatildeos Distanciando-se dos eventos puacuteblicos normalmente envolvidos

com a idolatria condenada pela Igreja rejeitando o serviccedilo militar os jogos e as celebraccedilotildees

artiacutesticas os cristatildeos se autoexpunham agrave marginalizaccedilatildeo da sociedade

Entre o povo ou entre os intelectuais os cristatildeos eram vistos com estranheza ou

desconfianccedila23 Assim como foram caracterizados os judeus podia-se pensar que os cristatildeos

apresentavam um odio humani generis24 em parte devido aos comentaacuterios depreciativos que

se espalhavam entre o povo Foram caracterizados por Taacutecito como membros de uma

destrutiacutevel superstitio25 oriunda da Judeia Suetocircnio se referiu a eles como ldquoraccedila de homens de

uma superstitio nova e maleacuteficardquo26 As acusaccedilotildees ou suspeitas poderiam girar em torno de

delitos ou coisas consideradas repulsivas como infanticiacutedio incesto assembleias ilegais

introduccedilatildeo de cultos iliacutecitos e mais especialmente traiccedilatildeo sendo esta uacuteltima caracterizada pela

recusa em adorar a divindade do imperador27

As superstitiones e os cultos locais eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob

atenccedilatildeo Como destacam Mary Beard John North e Simon Price28 as controveacutersias poderiam

desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito

em 172 e 173 aC29 na incursatildeo da Traacutecia que foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que

University Press 1984 DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000 DRAKE Harold Allen Constantine and the Bishops the politics of intolerance BaltimoreLondon John Hopkins University Press 1999 CLARK Gillian Christianity and the Roman Society Cambridge Cambridge University press 2004 CHADWICK Henry The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001 FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006 20 GOODMAN Martin Mission and conversion proselytizing in the religous history of the Roman Empire Clarendon Press Oxford University Press 1994 p 12 21 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 Cf BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35 22 SIMON M BENOIcircT A Giudaismo e Cristianesimo una storia antica RomaBari LaterzaFigli Spa 2005 p 12 23 ldquoaqueles que por suas abominaccedilotildees eram mal vistosrdquo [quos per flagitia invisos] Taacutecito Annales 1544 24 ldquooacutedio agrave humanidaderdquo Ibid 25 exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo] Annales 1544 26 genus hominum superstitionis novae ac maleficae De Vita XII Caesarum Vita Neronis 162 27 MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 28 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 29 Cassius Dio Hist Rom LXXII4

15

conseguiu seguidores30 entre os druidas incitados por profecias sobre o fim de Roma da

Gaacutelia31 e nas revoltas judaicas do I e II seacuteculos dC Embora existisse um niacutevel significativo

de liberdades religiosa e individual os grupos e assembleias ficavam sob atenccedilatildeo das

autoridades Os baacutequicos os astroacutelogos e maacutegicos o culto de Iacutesis e a crenccedila dos druidas

tambeacutem enfrentaram a obstruccedilatildeo romana32

Paul Veyne faz diferenciaccedilatildeo entre os interesses dos homens letrados e das autoridades

preocupadas com a manutenccedilatildeo da ordem e o interesse da populaccedilatildeo pagatilde em geral Em sua

percepccedilatildeo a atitude de criacutetica dos romanos frente agraves comunidades cristatildes manifestava a

repulsa ao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguo33 Desse modo a rejeiccedilatildeo ao novo grupo religioso

do oriente deveria envolver um problema identitaacuterio tambeacutem relacionado agrave dificuldade de se

assimilar um grupo dotado de particularidades que pretendiam a superioridade diante dos

estabelecidos Justino tambeacutem sustenta uma tese em torno da questatildeo do ldquopor que os cristatildeos

eram perseguidosrdquo esforccedilando-se em convencer os romanos sobre as ldquoinjusticcedilasrdquo cometidas

contra os cristatildeos

Embora natildeo exista um consenso sobre o iniacutecio das perseguiccedilotildees no I seacuteculo34 eacute certo

que o estilo de vida e o conteuacutedo das crenccedilas cristatildes natildeo agradavam a muitos o que

culminava na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados

Natildeo haacute sinais de uma perseguiccedilatildeo generalizada no iniacutecio do II seacuteculo mas apareciam

atritos locais que por vezes culminavam na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados ou agredidos

pelo povo Pliacutenio Segundo natildeo sabia ao certo como proceder nos processos que julgavam os

cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia e chegou a pedir a orientaccedilatildeo de Trajano35 Sob Adriano36 o

governador da Aacutesia Menor Graniano tambeacutem levantou questotildees sobre esses processos

30 Cassius Dio Hist Rom LI255 LIV345-7 31 Taacutecito Historias IV546165 V2224 32 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 Cf AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 33 VEYNE Paul Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 pp 245-246 34 Marta Sordi (I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 15-29) por exemplo sustenta a tese de que a resposta negativa do Senado ao pedido de Tibeacuterio sobre o reconhecimento de Cristo entre os deuses oficiais teria tornado a feacute cristatilde em uma religio illicta Paul Keresztes defende que foi o institutum neronianum que primeiramente comprometeu a legalidade do grupo dos cristatildeos (Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214) 35 Governou de 98 a 117 dC 36 Governou de 117 a 138 dC

16

Nesse periacuteodo Quadrato e Aristides tambeacutem escreveram ao imperador em defesa dos cristatildeos

mas a situaccedilatildeo continuou a mesma sob o governo de Antonino Pio37

Justino que havia nascido em Flaacutevia Neaacutepolis38 atual Nablus uma cidade na antiga

regiatildeo da Samaria filho de pai latino e de um avocirc com nome grego estudou filosofia mas se

converteu ao cristianismo e se pocircs em defesa da feacute39 Escreveu suas Apologias entre os anos

de 154 e 161 aproximadamente em defesa dos cristatildeos levados aos tribunais e entatildeo

condenados agrave morte Aleacutem da previsatildeo de seu proacuteprio martiacuterio o apologista retrata ainda um

caso especiacutefico que ocorreu sob Urbico em Roma Seu discurso busca convencer o imperador

Antonino Pio40 de que os cristatildeos natildeo representavam nenhum tipo de ameaccedila e que seria

segundo seu ponto de vista uma grande injusticcedila condenar agrave morte aqueles que eram

colaboradores ldquoda pazrdquo no Impeacuterio41 Os problemas penais e de outros caraacuteteres juriacutedicos

abordados por Justino e comuns ao governo de Antonino Pio foram uma vez analisados por

Paul Keresztes42 que destacou a estrateacutegia desse apologista de interpretar o rescrito43 de

Adriano a Minuacutecio Fundano Todavia as Apologias desse pensador cristatildeo desafiam a

compreensatildeo de um capiacutetulo intrigante da histoacuteria das ideias religiosas cristatildes como esse

discurso em defesa dos cristatildeos apresenta em meio agraves proposiccedilotildees teoloacutegico-filosoacuteficas que

permeiam o texto uma leitura das accedilotildees anticristatildes conjuguando controle social e religiatildeo na

reprovaccedilatildeo da coaccedilatildeo imposta por Roma sobre os cristatildeos e na indicaccedilatildeo da funccedilatildeo

reguladora da religiatildeo cristatilde para a cooperaccedilatildeo na manutenccedilatildeo da ordem

Por isso essa pesquisa tem por objetivo principal compreender as relaccedilotildees entre

controle social e religiatildeo a partir da anaacutelise das accedilotildees anticristatildes praticadas ateacute meados do

seacuteculo II dC segundo as Apologias de Justino Maacutertir O exame de suas ideias deve

compreender o paradoxo construiacutedo em seu discurso entre o tipo de controle social

desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia aos cristatildeos que

tumultuam a ordem e por outro lado o tipo de controle social apontado nas Apologias que

37 Governou de 138 a 161 dC 38 I Apol 11 cf MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 127-129 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought New York Cambridge University Press 1967 pp 3-12 39 JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991 Cf mais informaccedilotildees no capiacutetulo I 40 E tambeacutem a seus filhos Marco Vero (que seria chamado Marco Aureacutelio) e Luacutecio Vero 41 I Apol 31ss I Apol 121ss 42 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129 Id Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214 Id The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 43 Rescrito em resposta aos questionamentos do governador anterior Graniano

17

daria razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos mediante um tipo de ordem derivado da proliferaccedilatildeo de

suas crenccedilas

Por ldquocontrole socialrdquo entende-se ldquoo conjunto dos recursos materiais e simboacutelicos de

que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de seus

membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo44 Ou ainda

seguindo a perspectiva de Martin Innes45 ldquocontrole socialrdquo refere aos mecanismos e

tecnologias empregados para manutenccedilatildeo da ordem social Esta por sua vez eacute composta de

diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais de alguma forma contribuem para a

constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social Nesse embate apologeacutetico do seacuteculo II satildeo

apresentados argumentos para convencer de que a feacute cristatilde natildeo estava propiacutecia a nenhum tipo

de desordem social e que pelo contraacuterio seria capaz de influenciar na formaccedilatildeo de suacuteditos

fieacuteis do Impeacuterio

Para o cumprimento do objetivo central dessa pesquisa as Apologias de Justino satildeo

estabelecidas como principal objeto e fonte de investigaccedilatildeo a serem submetidas agrave criacutetica

interna e externa segundo o desenvolvimento de uma anaacutelise histoacuterica46 Ao colocar as

Apologias de Justino no centro dessa anaacutelise busca-se delimitar um campo possiacutevel de anaacutelise

dentro do processo de expansatildeo do cristianismo pelos territoacuterios do Impeacuterio Romano tendo

em vista as vaacuterias formas de resistecircncias e aceitaccedilotildees Uma anaacutelise sobre Justino e a

sobrevivecircncia de suas Apologias eacute apresentada no capiacutetulo I e no Apecircndice I

44 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) Dicionaacuterio criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 45 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 46 TOPOLSKY Jersy Metodologia de la historia Madrid Ediciones Catedras 1992 pp 36-45

18

CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS

Para desenvolver uma investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre controle social e religiatildeo

nas accedilotildees anticristatildes de meados do seacuteculo II dC a partir das Apologias de Justino Maacutertir eacute

preciso responder a algumas perguntas baacutesicas sobre sua origem transmissatildeo e forma

Levando em consideraccedilatildeo que as Apologias foram redigidas originalmente haacute quase 1900

anos e passaram por diversos copistas e editores ateacute chegar agrave atualidade eacute necessaacuterio fazer um

raacutepido percurso analiacutetico sobre as ediccedilotildees e suportes materiais que garantiram a preservaccedilatildeo

do texto Isso deveraacute contribuir para a compreensatildeo de suas caracteriacutesticas atuais

Esse tipo de anaacutelise contempla as diferenccedilas entre as trecircs principais ediccedilotildees recentes

das Apologias Miroslav Marcovich47 (com a 1ordf ediccedilatildeo em 1995) por exemplo oferece uma

ediccedilatildeo seguindo o padratildeo apresentado no MS Parisinus Graecus enquanto Charles Munier48

(com ediccedilotildees em 1994 1996 e 2006) sustenta a teoria de que os dois textos seriam

originalmente uma mesma peccedila Denis Minns e Paul Parvis49 (2009) oferecem uma ediccedilatildeo

que aleacutem de considerar a II Apologia uma compilaccedilatildeo de fragmentos e anotaccedilotildees de Justino

transformadas em Apologia por terceiros ainda realoca partes da segunda peccedila para a

primeira fazendo-a ganhar dois capiacutetulos a mais do que as duas ediccedilotildees mencionadas

anteriormente

Assim seratildeo analisados a seguir alguns dos principais pontos sobre as ediccedilotildees o

tamanho original e os destinataacuterios das Apologias bem como as evidecircncias que apontam para

Justino como seu autor

11 As principais ediccedilotildees das Apologias

A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450

ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C

47 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 48 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 Id Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 49 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

19

segundo a forma estabelecida por T Otto50 Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar

com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra

Parallela51 e no Chronicon Paschale52 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo

menos que doze vezes Na Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito

passagens No Chronicon Paschale aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4

Esse uacuteltimo deriva provavelmente da tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)53

Em 1551 foi produzida a partir do MS A a editio princeps importante trabalho do

typographus regius Robert Estienne54 ou Robertus Stephanus Conforme a anaacutelise de Minns e

Parvis55 trata-se de um texto bem produzido Do mesmo modo que A a composiccedilatildeo de

Stephanus que foi dedicada a ldquoBiblioteca Realrdquo apresenta os extratos de Photius e Euseacutebio

sobre Justino A Apologia menor tambeacutem aparece antes da maior56 Natildeo haacute nenhuma divisatildeo

ou quebra de texto Apenas algumas variantes de A satildeo colocadas nas margens das paacuteginas

A primeira traduccedilatildeo das Apologias viria em 1554 por Joachim Peacuterion57 em Paris

Frederick Sylburg58 apresentou sua ediccedilatildeo em 1593 em Heidelberg seguindo rigorosamente

o texto de Robert Etienne Sabe-se tambeacutem que Feacutedeacuteric Morel publicou as Apologias de

Justino em 161559 As ediccedilotildees de Johann Ernst Grabe seguiram fieacuteis ao Stephanus mas

trouxeram duas inovaccedilotildees a ediccedilatildeo de 170060 em Oxford apresentou a Apologia maior como

50 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 51 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 52 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 53 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 13 54 Minns e Parvis oferecem a seguinte referecircncia TOU AGIOU FILOSOFOU KAI MARTUROS) ZHNA kai Serhnw|) LOGOS parainetikoj proj Hllhnaj) PROS TRUFWNA Ioudaion dialogoj) APOLOGIA uper Cristianwn proj thn Rwmaiwn Sugklhton) APOLOGIA b uper Cristianwn proj Antoninon ton euvsebh) EX BIBLIOTHECA REGIA LVTETIAE Ex officina Roberti Stephani typographi Regii Regiis typis MDLI Cum priuilegio Regis Devido agrave corrupccedilatildeo dos textos antigos nem sempre eacute possiacutevel identificar os tiacutetulos corretamente por isso satildeo apresentados aqui em letras maiuacutesculas As barras representam a separaccedilatildeo das linhas onde satildeo lidas as informaccedilotildees a respeito dos volumes referenciados 55 Op cit p 14 56 A I Apologia eacute a ldquoapologia maiorrdquo mas no MS A a ldquoapologia menorrdquo isto eacute a II Apologia vem primeiro 57 Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis 58 TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953 59 Minns e Parvis (Op cit p 15) mencionam que Feacutederic Morel tenha criado a categoria de ldquoApologistasrdquo lanccedilando uma coleccedilatildeo de texto Esta informaccedilatildeo pode ateacute estar correta mas os autores natildeo apontaram nenhuma referecircncia do tipoacutegrafo Sabe-se que ele publicou as Apologias devito as informaccedilotildees do seguinte cataacutelogo GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18-- 60 SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700

20

a primeira e a ediccedilatildeo de 170361 apresentou a obra menor como a II Apologia tal como satildeo

reconhecidas hoje e tambeacutem foram acrescentadas divisotildees de capiacutetulos diferentes das usuais

A ediccedilatildeo de Styan Thirlby de 172262 juntou as trecircs obras de Justino reconhecidas como

autecircnticas I e II Apologia e o Diaacutelogo com Trifatildeo O texto ainda era baseado em Stephanus

Em 1742 Prudentius Maran63 publicou sua obra com uma divisatildeo de capiacutetulos que se

tornaria a usual Segundo Minns e Parvis64 Maran teve acesso a A e B mas seu texto eacute

semelhante ao de Stephanus As Apologias da coleccedilatildeo Patrologia Graeca volume 6 de

185765 eacute a reproduccedilatildeo da sua ediccedilatildeo alocada na seacuterie de Jacques Paul Migne (1800-1875)

JCT von Otto66 publicou sua primeira ediccedilatildeo em 1842 e a terceira e definitiva em

1876 Ele natildeo ficou preso ao texto de Stephanus e apresenta o princiacutepio das ediccedilotildees criacuteticas

sugerindo modificaccedilotildees e melhoramentos do texto Em 1911 foi a vez de Alfred Blunt

Segundo Minns e Parvis67 a obra se baseou principalmente nos trabalhos de G Kruumlger68 que

se espelhou em Otto A ediccedilatildeo de Edgar Goodspeed69 em 1914 recorre a A C e agrave tradiccedilatildeo de

Euseacutebio e da Sacra Parallela poreacutem natildeo apresenta notas criacuteticas

Em 1994 Miroslav Marcovich70 publicou sua ediccedilatildeo criacutetica das Apologias Em 1997

publicou tambeacutem a ediccedilatildeo do Diaacutelogo71 A qualidade criacutetica destes textos passou a um alto

niacutevel Segundo a anaacutelise de Minns e Parvis72 as emendas de Marcovich satildeo de um teor

filoloacutegico tatildeo elevado e com intervenccedilotildees sobre o caraacuteter estiliacutestico de tal modo que eacute possiacutevel

duvidar que Justino tivesse um conhecimento tatildeo apurado de grego

61 SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703 62 Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722 63 TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius 64 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 16 65 MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 66 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 67 Op cit p 17 68 Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896 69 Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 70 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 71 MARCOVICH Miroslav Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997 72 Op cit p 18

21

Charles Munier tambeacutem apresentou em 199473 um volume simples das Apologias em

francecircs Em 199574 foi lanccedilada sua ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto grego Ele confessa natildeo ter tido

acesso agrave obra de Marcovich receacutem-publicada75 Sua ldquogrande obrardquo veio em 2006 uma ediccedilatildeo

criacutetica na coleccedilatildeo Sources Chreacutetiennes O ponto forte do texto de Munier satildeo os comentaacuterios

e a extensiva discussatildeo do contexto teoloacutegico e filosoacutefico76 As anaacutelises textuais natildeo satildeo

muito profundas mas contribuem significativamente com a indicaccedilatildeo de textos

correlacionados

A ediccedilatildeo criacutetica de Denis Minns e Paul Parvis77 ndash com texto grego traduccedilatildeo e notas ndash

foi publicada em 2009 Aleacutem da ampla revisatildeo das ediccedilotildees de outros autores o texto

apresenta um rico aparato criacutetico As interferecircncias no texto fazem a I Apologia chegar ateacute o

capiacutetulo 70

Em 1995 a editora Paulus preparou uma versatildeo das I e II Apologias e o Diaacutelogo com

Trifatildeo em um uacutenico volume78 O texto eacute problemaacutetico e muito simplista Natildeo haacute sinais de

criacutetica textual e podem ser encontrados alguns erros de portuguecircs A traduccedilatildeo foi feita por Ivo

Storniolo com introduccedilatildeo e notas de Roque Frangiotti mas natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo sobre

qual foi o texto base para a traduccedilatildeo Eacute evidente todavia que os editores natildeo contaram com

as ediccedilotildees de Marcovich Munier ou Minns e Parvis Por isso deixaremos este texto em

segundo plano

Nessa pesquisa as ediccedilotildees de Miroslav Marcovich79 Charles Munier80 e a de Denis

Minns e Paul Parvis81 satildeo lidas em conjunto comparando as divergecircncias sempre que for

necessaacuterio A interferecircncia na disposiccedilatildeo dos capiacutetulos adotada por Denis Minns e Paul Parvis

natildeo seraacute admitida A divisatildeo das Apologias seraacute tal qual a que apresenta Marcovich por ater-

se ao padratildeo comum agrave maioria dos estudiosos82 poreacutem a Apologia Maior seraacute chamada I

Apologia abreviado para I Apol ou simplesmente I quando jaacute houver uma citaccedilatildeo no

paraacutegrafo Semelhantemente a Apologia Menor seraacute chamada II Apologia abreviado para II

73 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p 74 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 75 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 90 76 Opiniatildeo tambeacutem compartilhada por MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 18 77 Ibid 346 p 78 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 79 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 80 Op cit 2006 81 Op cit 82 Cf MARCOVICH M Op cit 2005 p 10

22

Apol ou II nas mesmas condiccedilotildees que a primeira O texto de Munier segue a mesma

padronizaccedilatildeo de Marcovich no entanto ele prefere se referir a Apologia parte I e parte II

nomenclatura que natildeo seraacute seguida nesse texto O termo ldquoApologiasrdquo seraacute empregado como

referecircncia aos dois textos de Justino

12 A questatildeo da autoria Justino

A I Apologia (11) aponta explicitamente que seu autor eacute Justino homem oriundo de

Flaacutevia Neaacutepolis hoje conhecida como Nablus localizada na Siacuteria Palestina B Bagatti83

afirma que ela foi fundada por veteranos da conquista da Judeia sob Vespasiano por volta do

ano de 72 O avocirc de Justino Baquios pode ter participado da implantaccedilatildeo da cidade

O apologista se reconhece como conterracircneo dos samaritanos84 No Diaacutelogo com

Trifatildeo ele eacute identificado como ldquofiloacutesofordquo e nas Apologias fica evidente seu conhecimento da

filosofia Taciano chamou seu mestre apologista de ldquoo mais admiraacutevel85rdquo Irineu de Lyon fez

menccedilatildeo ao seu martiacuterio e carregou sua influecircncia em seu escrito86 Tertuliano87 atribuiu-lhe

dois tiacutetulos ldquofiloacutesofo e maacutertirrdquo O apologista tambeacutem recebeu um lugar no De viriis

illustribus de Satildeo Jerocircnimo e Gennadius88

Em seu Diaacutelogo com Trifatildeo89 ele eacute apresentado como um homem educado no estudo

da filosofia Segundo a narrativa do Diaacutelogo Justino conheceu o estoicismo frequentou a

escola peripateacutetica ficou junto a um filoacutesofo pitagoacuterico que lhe solicitou aprender muacutesica

astronomia e geometria Por uacuteltimo havia se aproximado da escola platocircnica quando entatildeo

conheceu os escritos dos profetas e a feacute cristatilde90 Segundo E R Goodenough91 Justino adota

uma dramatizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o cristianismo e a filosofia apresentando as passagens

por diversas escolas agraves quais critica rumo agrave ldquoverdaderdquo cristatilde Ele compara a narrativa de

Justino agrave de seu contemporacircneo Luciano em Menippus IVVI Em Menippus tambeacutem eacute

descrita a passagem por diversas escolas de pensamento chegando-se ao consentimento pelas

inuacutemeras contradiccedilotildees de que nenhuma delas tinha autoridade Goodenough tambeacutem vecirc a

83 S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319 84 Diaacutel 1206 II Apol 151 85 Discurso contra os gregos 191ss 86 Contra as heresias I281 cf IV62 V262 87 Contra os Valentinianos 51ss 88 Vida dos homens Ilustres 89 21ss 90 II Apol 81ss 91 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 pp 58-59

23

recorrecircncia dessa forma literaacuteria na descriccedilatildeo de verdadeiros proseacutelitos do judaiacutesmo Githro

Naaman e Rahab descritos na Tannaim92 N Hyldahl93 aleacutem de considerar a narrativa da

trajetoacuteria filosoacutefica de Justino mera ficccedilatildeo tambeacutem sustenta ser impossiacutevel determinar que

tipo de platonista esse pensador foi antes de sua conversatildeo e que a capa de filoacutesofo que usava

mencionada por Euseacutebio era um erro de interpretaccedilatildeo

Deve-se reconhecer como tambeacutem destacou L W Barnard que se por um lado havia

uma convenccedilatildeo literaacuteria grega ndash e que pudesse ser encontrada ocasionalmente ateacute no judaiacutesmo

ndash sobre as aventuras por diversas escolas a fim de criticaacute-las por outro lado isso natildeo contradiz

a admissatildeo da atual condiccedilatildeo de filoacutesofo cristatildeo assumida por Justino naquele momento Por

ldquofiloacutesofo cristatildeordquo natildeo se pretende dizer outra coisa senatildeo aquilo que ele mesmo confessa e

procura convencer os seus leitores a saber de que apoacutes conhecer diversas correntes

filosoacuteficas encontrou nas doutrinas cristatildes a ldquoverdaderdquo que o contentou94 Aleacutem disso o teor

apologeacutetico do discurso de Justino estaacute fundamentalmente relacionado a paralelos e

intersecccedilotildees com a filosofia C Andresen95 concorda que a trajetoacuteria filosoacutefica de Justino seja

mais do que um simples jogo literaacuterio Segundo Andresen e ele parece estar correto o meacutedio-

platonismo eacute a base da construccedilatildeo do pensamento cristatildeo de Justino

Em Roma Justino esteve engajado em debates com o filoacutesofo ciacutenico Crescente96

Segundo a Ata do Martiacuterio de Justino97 ele foi decapitado sob o julgamento de Rusticus

prefeito de Roma entre 162 e 168

A data e o local da conversatildeo de Justino satildeo imprecisos Eacutefeso tem sido cogitada como

uma boa hipoacutetese para o local de seu membramento ao cristianismo98 ou ainda algum ponto

na sua longa jornada da Palestina para Roma99 Minns e Parvis100 pensam que sua adesatildeo deve

ter ocorrido pelo menos uns 30 anos antes de sua morte Isso apontaria para uma data proacutexima

92 Ibid pp 58-59 93 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 94 Dial II1-6 95 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf FELIX Viviana Laura Elementos medioplatoacutenicos en la filosofiacutea de Justino IV JORNADAS NACIONALES DE FILOSOFIacuteA MEDIEVAL Academia Nacional de Ciencias de Ciencias de Buenos Aires Abril 2009 96 II Apol 31ss 97 Atti del Martiacuterio di San Giustino Caritone Caritoacute Evelpisto Ierace Peone e Liberiano Martirizzati a Roma In GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 Texto grego e traduccedilatildeo italiana a partir da obra de WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987 98 QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197 99 SKARSAUNE Oskar The proof from phophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provence theological profile Leiden EJBrill 1987 pp 245-246 100 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 33

24

agrave guerra judaica da deacutecada de 130 dC O Dialogo (1206) cita a I Apologia e desse modo

ambos os textos fazem referecircncia agrave revolta de Bar Kosiba entre os anos de 132 e 135101

Aleacutem das Apologias e do Diaacutelogo com Trifatildeo obras que satildeo reconhecidamente

proacuteprias a Justino Euseacutebio102 aponta que o apologista escreveu tambeacutem um livro contra os

gregos outro intitulado Elenchos um tratado sobre a soberania de Deus outro com o tiacutetulo

Psaltes e um escrito sobre a alma Um tratado contra Marciatildeo tambeacutem eacute citado mas essa

passagem corresponde a um trecho da I Apol 265-6103 Na sequecircncia dessa periacutecope da I

Apologia Justino disse que ele mesmo escreveu um ldquotratadordquo contra todas as heresias Esse

escrito poreacutem eacute dado por perdido No Dialogo 1206 o apologista diz ter aprestado um

escrito endereccedilado ao imperador no qual se refere a Simatildeo Mago104 o que eacute constatado na I

Apologia Eacute pertinente admitir que natildeo eacute possiacutevel saber se o texto que foi preservado ateacute agora

derivou daquele primeiro endereccedilado ao imperador Se seu trabalho foi entregue ao imperador

eacute provaacutevel que Justino tenha ficado com uma coacutepia

Minns e Parvis105 natildeo acreditam que seu texto tenha sido copiado com o intuito de ser

amplamente publicado Parece-lhes razoaacutevel sustentar a hipoacutetese de que o texto preservado

ateacute hoje pelo MS A deriva do documento que estava com Justino no momento de sua prisatildeo

Talvez tenha sido necessaacuteria uma reorganizaccedilatildeo do texto mais tarde com um propoacutesito

catequeacutetico ou apologeacutetico diferente do seu sentido original Entre sua emissatildeo original e o

teacutermino do trabalho do copista do Parisinus Graecus 450 em 11 de setembro de 1364106

muita coisa pode ter acontecido ao texto Todavia o principal obstaacuteculo a essa hipoacutetese eacute que

natildeo foram encontrados quaisquer vestiacutegios de um texto que ateste que o documento jaacute teve

outro formato sem os acreacutescimos catequeacuteticos Aleacutem disso as partes que tratam das crenccedilas

cristatildes estatildeo bem relacionadas agrave estrutura da obra e cumprem com seu propoacutesito

apologeacutetico107 Sua estrutura apresenta traccedilos comuns aos escritos de outros apologistas do II

101 Diaacutel 13 I Apol 316 102 Hist Ecles IV181-6 103 Hist Ecles IV118-9 104 Cf I Apol 262-3 105 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 34 106 Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005) calcula o ano de 1363 mas Bobichon ( lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 pp 157-158) apontou de forma mais satisfatoacuteria a data de 1364 com a qual Minns e Parvis (Op cit 34) e Munier (Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 84) concordam 107 A funccedilatildeo catequeacutetica da obra seraacute examinada mais propriamente no terceiro capiacutetulo parte 4 dessa dissertaccedilatildeo

25

seacuteculo induzindo Sara Parvis108 a pensar que Justino tenha sido o ldquopairdquo do gecircnero apologeacutetico

cristatildeo servindo de inspiraccedilatildeo para outros escritores da eacutepoca

Embora existam interrogaccedilotildees e divergecircncias sobre a unicidade ou biparticcedilatildeo das

Apologias haacute semelhanccedilas estiliacutesticas entre as duas partes que fazem com que Marcovich109

Munier110 Minns e Parvis111 concordem que os escritos procedam de Justino ainda que certas

modificaccedilotildees sejam admitidas durante o tempo conforme as irregularidades de alguns pontos

tecircm mostrado Eacute preciso ainda ter uma ideia clara sobre que tipo de escritos se estaacute

analisando tendo em vista que o conceito de ldquoapologiardquo como uma espeacutecie de gecircnero literaacuterio

eacute recente

13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino

Termo derivado da palavra grega avpologia significa basicamente ldquodiscurso de defesa

defesardquo Que tambeacutem deriva do verbo avpologeomai que representa o oposto de kathgoria

que significa ldquoacusaccedilatildeordquo112

No seacuteculo IV aC Platatildeo113 e Xenofontes114 cada um a seu modo narram a ldquoapologia

de Soacutecratesrdquo e proporcionam um tributo agrave valorizaccedilatildeo da razatildeo No I seacuteculo dC eacute Flaacutevio

Josefo115 quem eterniza um discurso desse tipo remetido a Aacutepion em prol dos judeus Josefo

defende a religiatildeo judaica salientando a sua antiguidade e contrastando a pretensatildeo grega agrave

superioridade no campo cultural O caraacuteter ldquoapologeacuteticordquo do texto como um ldquodiscurso de

defesardquo fica por conta da resposta a algumas alegaccedilotildees antijudaicas atribuiacutedas ao escritor

grego Aacutepion e os mitos acreditados por Manetho

No seacuteculo II dC Apuleio de Madura tambeacutem compocircs uma apologia pela qual se

defende das acusaccedilotildees de magia Eacute nesse mesmo seacuteculo que uma seacuterie de escritos como os de

Quadrato Aristides Justino Atenaacutegoras Meacuteliton de Sardes Teoacutefilo de Antioquia Taciano e

outros emerge em defesa dos cristatildeos que sofriam acusaccedilotildees principalmente na Aacutesia Menor

108 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 109 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 110 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 111 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 112 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 Cf RUSCONI C (Ed) DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 113

Apologia de Soacutecrates 114

Apologia 115 Contra Aacutepion

26

Para compreender os aspectos constitutivos das apologias de Justino eacute preciso analisar

as vaacuterias teorias sobre sua composiccedilatildeo e sua estrutura retoacuterica

131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica

As diferenccedilas estruturais de uma para a outra apologia de Justino exigem uma anaacutelise

especiacutefica Notadamente a II Apol eacute menor que a I Apol Minns e Parvis116 apresentam trecircs

teorias sobre o nuacutemero desses escritos de Justino

A forma como aparecem no MS A corrobora com a ideia de que sejam duas apologias

Mas enquanto a primeira eacute cheia de citaccedilotildees da escritura a segunda natildeo tem nenhuma citaccedilatildeo

desse tipo De modo bem peculiar eacute na II Apologia que aparece a reflexatildeo sobre o loacutegoj

sperermatikoj117 e o comprometimento de Justino no debate com Crescente A anaacutelise textual

da II Apologia eacute desfavorecida pelo tamanho do texto todavia as diferenccedilas proporcionais

entre os escritos satildeo somadas agrave hipoacutetese de que seriam de fato duas apologias

A segunda teoria sustenta a ideia de que originalmente a atual composiccedilatildeo dupla era

na verdade uma uacutenica Apologia Munier eacute aliado a essa proposta Ele considera que uma obra

uacutenica ndash um libellus ndash teria sido apresentada em Roma como requisiccedilatildeo pessoal endereccedilada ao

Imperador Antonino Pio e seus filhos para mudar a condiccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio118 O

principal argumento dessa hipoacutetese eacute que existe uma boa inclusio entre as referecircncias agrave

piedade e agrave filosofia no iniacutecio da primeira (I Apol 1 21-2 31) e os que aparecem no final da

segunda (II Apol 1213 e 14) As retomadas na segunda do tipo ldquoconforme dissemos

anteriormenterdquo seriam referecircncias ao que foi dito na parte imediatamente anterior e natildeo a

outro texto

De modo diverso Minns e Parvis119 consideram que a estrutura do texto ficaria muito

estranha se fosse pensada segundo essa teoria O cliacutemax da primeira parte estaria no rescrito

de Adriano quando o autor mostra a incoerecircncia das acusaccedilotildees e perseguiccedilotildees sofridas pelos

cristatildeos (I Apol 685-10) Isso tornaria incoerente recomeccedilar uma seccedilatildeo de defesa na parte

posterior Outro argumento desfavoraacutevel eacute que o escriba que picou o texto teria sido

demasiadamente astuto para escolher uma parte que marcaria precisamente a distinccedilatildeo de tons

entre os dois textos

116 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p22 117 Logos spermatikos que pode ser entendido de modo limitado com ldquosemente da razatildeordquo 118 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 119 Op cit p 22

27

Outra teoria sustenta que se trata de uma apologia e um apecircndice Minns e Parvis120

fazem saber que essa foi a teoria apresentada por Grabe121 em 1703 recebida por Harnack122

popularizada por Goodspeed123 em 1914 e ainda sustentada com entusiasmo por Marcovich124

em 1994 As correspondecircncias entre a primeira e a segunda estariam relacionadas ao material

deixado pelo proacuteprio Justino apoacutes concluir o texto definitivo A I Apologia pode ser

reconhecida como um libellus ou seja uma requisiccedilatildeo particular endereccedilada ao Imperador

mas a classificaccedilatildeo da II Apologia natildeo eacute muito precisa

Seguindo o raciociacutenio de Robert M Haddad125 qualquer peticcedilatildeo (libellus) apresentada

ao imperador buscava persuadi-lo a fazer alguma coisa De fato na Antiguidade a persuasatildeo

se tornou uma arte Desenvolvida pelos gregos a retoacuterica foi adaptada pelos romanos para

suas proacuteprias aspiraccedilotildees Ciacutecero Secircneca o Velho Taacutecito Pliacutenio o Jovem Quintiliano e

Fronto se tornaram nomes referenciais dessa habilidade Como foi apontado anteriormente

Justino era muito familiarizado com a filosofia mas natildeo se mostrou muito familiarizado com

a retoacuterica o que natildeo isentou seu texto de revelar uma estrutura comum agraves teacutecnicas dessa

disciplina126 No entanto esses aspectos ainda natildeo satildeo suficientes para oferecer uma

explicaccedilatildeo clara sobre o gecircnero das Apologias

132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino

Se a apologia de Soacutecrates diante do tribunal grego adaptada por Platatildeo127 e por

Xenofontes128 tornou-se um emblema da defesa da razatildeo no II seacuteculo dC foram as

120 Op cit p 23 121 HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703 Grabe atuou em parceria com Huntchim nessa ediccedilatildeo 122 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274 123

Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 passim 124 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 10 125 HADDAD Robert M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 Werner Eck escreve que o imperador romano era cercado por pessoas que procuravam influenciaacute-lo ou conseguir favores (Id The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000) 126 The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 21-28 127 Apologia de Soacutecrates 128 Apologia

28

acusaccedilotildees contras os cristatildeos que deram ldquorazatildeordquo agrave proliferaccedilatildeo de apologias em defesa da feacute

cristatilde que ainda natildeo apresentava uma sistematizaccedilatildeo coerente de suas ideias

Segundo a anaacutelise de Robert Grant a literatura apologeacutetica emerge de grupos

minoritaacuterios que estatildeo tentando desenvolver uma linguagem que seja compreensiacutevel agraves

culturas no Impeacuterio Romano para que por meio dela seja comunicada a mensagem cristatilde129

Satildeo vaacuterias as formas apresentadas para atestar a autenticidade das correntes religiosas

defendidas A apologia significaria algo mais do que uma simples defesa dos ataques sofridos

pela Igreja Seria uma forma baseada na defesa que Soacutecrates teria feito no seu julgamento

diante do povo de Atenas para mostrar a racionalidade de seu julgamento Os apologistas

cristatildeos teriam a ampla tarefa de estender possiacuteveis conexotildees entre as concepccedilotildees da filosofia

grega e aquela que para os cristatildeos era a ldquoverdade por excelecircnciardquo Mas esse processo

precisa ser analisado dentro do acircmbito missioloacutegico cristatildeo 130

A apreciaccedilatildeo helenizante estendida tambeacutem por Leslie W Barnard131 a todos os

apologistas eacute desajeitada O proacuteprio disciacutepulo de Justino Taciano opotildee-se agrave cultura grega

Poucos anos depois Tertuliano132 se mostraria o principal disseminador de um discurso que

estava longe de buscar os pontos comuns entre Jerusaleacutem e Atenas A comparaccedilatildeo com

Soacutecrates tambeacutem natildeo pode ser estendida a todos os apologistas

Justino poreacutem aleacutem de se referir positivamente a Soacutecrates como participante no logos

que autentica a racionalidade cristatilde proporciona uma analogia com a sua proacutepria condiccedilatildeo

enquanto prevecirc o seu martiacuterio em defesa da feacute cristatilde133

Em 1897 Th Wehofer em busca dos modelos literaacuterios de Justino observou que no

elogio dos mortos de Menexenus e na Apologia de Soacutecrates Platatildeo proporciona o modelo de

uma retoacuterica a serviccedilo da justiccedila e da verdade Sem duacutevida Justino conhecia os escritos de

Platatildeo Algumas correlaccedilotildees podem ser identificadas em trechos de suas Apologias I Apol

24 = ApS 30c 53 = 24b et 26c 82 = 30d 682 = 19a II102 = 24b Segundo Munier134

a exposiccedilatildeo temaacutetica progressiva encontrada nessa obra pode parecer uma desorganizaccedilatildeo

129 GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988 p 9 apud HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 31 130 Isso significa que as interconexotildees apologeacuteticas entre cultura greco-romana e cristianismo precisam ser contempladas como mecanismo dos discursos cristatildeos para proporcionar siginificaccedilotildees eficientes entre os povos de outras culturas cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990 131 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 2008 p 2(3) 132 Apolog passim 133 I Apol 51-3 II Apol 81ss 134 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 33

29

uma composiccedilatildeo aparentemente relaxada uma sucessatildeo aparentemente arbitraacuteria de

passagens dogmaacuteticas e pareneacuteticas que retoma abundantemente o mesmo tema abordando-o

sob uma perspectiva diversa Nota-se que um esquema preside a composiccedilatildeo geral das

Apologias

A estrutura essencial da Apologia de Soacutecrates por si soacute natildeo eacute suficiente para dar conta

do plano geral da obra de Justino As correlaccedilotildees entre o escrito de Platatildeo e o de Justino vatildeo

aleacutem do niacutevel estrutural Elas tambeacutem se mostram nos modelos de argumentaccedilatildeo De fato

este eacute o coraccedilatildeo mesmo da defesa que se funda sobre o exemplo de Soacutecrates condenado como

ldquoateu e iacutempiordquo135 Para Justino136 o destino traacutegico do filoacutesofo ateniense ilustra perfeitamente

a sorte dos cristatildeos ameaccedilados de morte

A diatribe de Justino contra Crescente toma uma funccedilatildeo analoacutegica Ela estaacute associada

agrave evocaccedilatildeo de Soacutecrates Assim como Meacuteletos tinha acusado Soacutecrates Crescente acusa os

cristatildeos de serem ldquoateus e iacutempiosrdquo a fim de agradar a multidatildeo insensata137 E como Soacutecrates

tinha oposto a seus acusadores sua indiferenccedila ao ldquotalento da palavra e sua uacutenica preocupaccedilatildeo

era dizer a verdaderdquo138 o desafio de Justino a Crescente se inspira na sentenccedila de Platatildeo139

ldquoDe modo nenhum se deve honrar mais a homens do que agrave verdaderdquo

Contudo a Apologia de Soacutecrates natildeo eacute um modelo literaacuterio estrito no qual Justino se

inspirou Segundo a anaacutelise de Munier140 o Protreacuteptico de Aristoacuteteles oferece tambeacutem

alguma correlaccedilatildeo mas isso natildeo deve significar que haja alguma dependecircncia intriacutenseca entre

esses escritos Aristoacuteteles se dedica a demonstrar que a filosofia converte todo seu valor agrave

vida em sociedade e que uma vida sem filosofia natildeo vale a pena de ser vivida Na medida em

que apresenta o cristianismo como uma ldquofilosofia divinardquo141 Justino poderia tirar o melhor

partido dos protreacutepticos142 de Aristoacuteteles de Isoacutecrate e de seus seguidores dedicados agrave

filosofia Mas essa semelhanccedila eacute apenas ocasional e natildeo intencional O apologista natildeo

esconde seu desejo de que o imperador se torne um filoacutesofo de Cristo Ele acreditava que se

seu pedido fosse aceito a feacute cristatilde espalharia benefiacutecios por todo o Impeacuterio143 Eacute nesse sentido

135 I Apol 53 136 II Apol 12 81-2 137 Cf WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991 138 Platatildeo ApS 17bc 139 Repuacuteblica X595c 607c 140 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 40 141 II125 142 Protreacuteptico exortaccedilatildeo Restam apenas fragmentos dos escritos protreacutepticos de Aristoacuteteles cf CHROUST Anton-Hermann Aristotle Protrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964 143 I 12 1-2 17 1-4

30

que ele recorre agrave maacutexima de Platatildeo144 ldquoSe governantes e governados natildeo satildeo filoacutesofos natildeo

pode haver felicidade nas cidadesrdquo

P Keresztes145 estava certo ao dizer que a caracteriacutestica marcante da Apologia eacute a

extensiva defesa dos cristatildeos contra as acusaccedilotildees de ateiacutesmo traiccedilatildeo canibalismo e agraves accedilotildees

caluniosas de modo geral Justino sustenta essa defesa tentando mostrar a exclusiva verdade

da religiatildeo cristatilde O principal propoacutesito das Apologias seria garantir que os cristatildeos tivessem

liberdade para professarem a feacute embora isso significasse a condenaccedilatildeo dos demais deuses

Tambeacutem fazia parte do propoacutesito chamar os pagatildeos a abraccedilarem o cristianismo Seus

conselhos retoacutericos no contexto servem ao propoacutesito de sugerir ao imperador que mude o

corrente curso da justiccedila Isso significa clamar por um julgamento comum que natildeo permitisse

a condenaccedilatildeo pelo ldquonome cristatildeordquo

Esses escritos do pensador de Flaacutevia Neaacutepolis satildeo dotados de certa particularidade em

sua composiccedilatildeo Mas se nota que a princiacutepio o apologista procurou valer-se do seu direito de

dirigir uma ldquopeticcedilatildeordquo ou libellus ao imperador

Na I Apol 74 ele faz sua requisiccedilatildeo usando o verbo normalmente empregado para

uma peticcedilatildeo em grego avxioun Assumindo a postura de um pensador compromissado com a

justiccedila e a verdade ele pede para que ldquosejam examinadas as accedilotildees de todos os que [] satildeo

denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por

outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo

ter cometido nenhum crimerdquo146 (I Apol 74) Uma requisiccedilatildeo desse tipo deveria ser

encaminhada ao escritoacuterio administrativo para ser ou natildeo subscrita e receber uma resposta O

equivalente grego para libellus eacute biblidion para subscribere o equivalente eacute u`pografein e

para postar uma resposta usa-se proqeiai no lugar de proponere147 Esta terminologia pode

ser precisamente encontrada na II Apol 141

Kai u`maj ou=n avxioumen u`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaj148148148148 to dokoun proqeinaiproqeinaiproqeinaiproqeinai touti to biblidionbiblidionbiblidionbiblidion( o[pwj kai toij alloij ta hmetera gnwsqh| kai dunwntai thj yeudodoxiaj kai avgnoiaj ton kalwn avpallaghvai( oi para thn

144 Repuacuteblica V 473de 145 The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965 p 109 146 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 pp 23-24 [Oqen pantwn twn kataggellomenwn umin taj praxeij krinesqai avxioumen( i[na o` evlegcqeij w`j adikoj kolazhtai( avlla mh wvj Cristianoj evan de tij avnelegktoj fanhtai( avpoluhtai w`j Cristianoj ouvden avdikon) MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 142-144 147 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 25 148 Grifos nossos

31

e`autwn aivtina u`peuqunoi taij timwriaij eivj to gnwsqhnai toij avnqrwpoij tauta(149

As proporccedilotildees desses textos ultrapassam os padrotildees de um libellus Para explicar essa

relativa incompatibilidade Minns e Parvis150 referindo-se apenas a I Apologia sustentam que

Justino usou de uma estrateacutegia por meio da qual ele adota esse tipo de documento

administrativo romano inserindo um material catequeacutetico e explanatoacuterio cristatildeo convertendo-

o em um dispositivo disseminador da mensagem de feacute Ou ainda traduzindo as palavras de

W R Schoedel151 trata-se de uma peticcedilatildeo apologeticamente fundamentada e sem precedentes

na tradiccedilatildeo literaacuteria greco-romana As diferenccedilas na estrutura da II Apologia natildeo permitem

dizer que se trata de um documento de outro autor pois as caracteriacutesticas do texto atestam sua

compatibilidade com a primeira peccedila O que faz multiplicar as interrogaccedilotildees sobre o segundo

texto eacute que mesmo apresentando traccedilos de uma segunda ldquopeticcedilatildeordquo ela eacute evidentemente menor

e dispensa um exordio bem formulado como o do primeiro escrito Mas essa propriedade da II

Apologia se tornaraacute mais clara a seguir na anaacutelise dos destinataacuterios

14 Destinataacuterios

Existem algumas variaccedilotildees entre a forma como a I Apologia eacute endereccedila no MS A e na

Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio A tabela a seguir foi construiacuteda seguindo as informaccedilotildees

apresentadas por Minns e Parvis152

MS A Euseacutebio HE IV12

a Antoninus Pius Augustus Caesar a Antoninus Pius Augustus Caesar

e a Verissimus seu filho e a Verissimus seu filho

Filoacutesofo Filoacutesofo

e a Lucius e a Lucius

Filoacutesofo do filoacutesofo

de Ceacutesar filho por natureza Ceacutesar filho por natureza

e de Pius por adoccedilatildeo e de Pius por adoccedilatildeo

149 MUNIER Op cit pp 364 366 TrldquoPortanto noacutes vos suplicamos que subscrevendo como vos pareccedila deis publicidade a este livro a fim de que tambeacutem os outros conheccedilam a nossa religiatildeo e se vejam livres da vatilde opiniatildeo e da ignoracircncia em relaccedilatildeo ao bem Por sua proacutepria culpa eles se tornam responsaacuteveis pelo castigordquo 150 Op cit p 25 151 SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72 152 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35

32

Eacute incluiacuteda ainda no manuscrito a expressatildeo ldquoao santo senado e a todo o povo dos

romanosrdquo entre os destinataacuterios da Apologia Minns e Parvis153 consideram esse uacuteltimo

trecho uma antiga adiccedilatildeo editorial Eles apontam que a expressatildeo ldquosanto senadordquo foi

comumente encontrada em moedas de bronze cunhadas na Aacutesia Menor154 Outras inscriccedilotildees

mostram essa expressatildeo vinculada agrave famiacutelia imperial e ao povo romano Vespasiano ldquoe toda

sua casa o santo senado e o povo dos romanosrdquo155 Trajano ldquoe toda sua casa o santo senado e

o povo dos romanosrdquo156 Marco Aureacutelio e Luacutecio Veroldquoe toda [sua] casa o mais santo senado e

o povo dos romanosrdquo157 Septimus Severus Caracalla Geta Julia Domna ldquoe toda a sua casa o

santo senado o povo dos romanos e os santos exeacutercitosrdquo158 Eacute possiacutevel indicar muitas outras

inscriccedilotildees mas o impasse identificado por Minns e Parvis estaacute relacionado ao fato de o

ldquosenadordquo e o ldquopovordquo aparecem no endereccedilamento de uma ldquopeticcedilatildeordquo como eacute caracterizada a

Apologia de Justino Entra na hipoacutetese a importaccedilatildeo da expressatildeo que ocorre na I Apol 563

ldquoPor isso noacutes vos suplicamos que o sacro senado e o povo romano conheccedilam este nosso

escrito []rdquo Ou ainda que a primeira ocorrecircncia do termo ldquosacro senadordquo seja a da fala de

Lucius a Urbicus na II Apol 216

Munier159 no entanto tem outra proposta Para ele eacute mais provaacutevel que tal expressatildeo

tenha assumido seu lugar em funccedilatildeo da necessaacuteria autorizaccedilatildeo do senado e do povo para o

estabelecimento de um novo culto puacuteblico Seu argumento eacute baseado no escrito de Ciacutecero

(Legibus II19-20) e parece mais seguro

Euseacutebio escreve que Justino tambeacutem endereccedilou uma Apologia ao imperador

ldquoAntonino Verordquo160 ou seja a Marco Aureacutelio A menccedilatildeo ao ldquoimperador Piordquo ao ldquofilho de

Ceacutesar amante do saberrdquo e ao ldquosacro senadordquo na II Apol 21ss pode significar para estudiosos

como M Marcovich161 que a II Apologia foi dirigida aos mesmos nomes que a primeira Essa

periacutecope do texto apresenta a narraccedilatildeo de um episoacutedio que se sucedeu nos dias de Antonino

153 Ibid 154 TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984 p 96 apud MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35 155 tan i`eran sunklhton kai ton damon ton R`wmaiwn Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386 Minns e Paris (op cit p35) citam o mesmo texto com algumas variaccedilotildees 156 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn (Cyrenis IGRR I-II 1037) Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355 157 i`erwtathj boulhj te kai dhmou tou Rwmaiwn (Serdicae IGRR I-II 1452) Ibid p 182 158 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn kai strateumatwn (Pizi IGRR I-II 766) Ibid p 251 159 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 278 160 Hist Ecles IV183 161 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 7

33

Pio mas eacute provaacutevel que a alusatildeo agrave piedade e agrave filosofia novamente seja proposital para

constranger seus destinataacuterios Euseacutebio se confunde com o nome de Antonino assim como o

faz quanto ao rescrito agrave comunidade da Aacutesia162

Considerando que Justino escreveu na I Apologia 462-3 que ldquoCristo nasceu cento e

cinquenta anos antes de nosso tempordquo A Harnack163 conclui que esse primeiro escrito foi

composto entre 147 e 154 dC Tambeacutem na I Apol 296 L Munatius Felix eacute mencionado

como prefeito do Egito Sabe-se que ele exerceu seu mandato de 150 a 154 dC164 A II Apol

11 faz referecircncia a Q Lollius Urbicus como prefeito de Roma cargo que ocupou de 146 a

160 dC165 Segundo a anaacutelise de Munier o Chronicon de Euseacutebio indica que o adversaacuterio de

Justino Crescente comeccedilou a denunciaacute-lo em Roma no segundo ano da 233ordf Olimpiacuteada que

corresponde ao ano de 153 ou 154 Desse modo seraacute acatada a uma data por volta do ano 153

ou 154 para a I Apologia e alguns anos depois para o segundo escrito ateacute no maacuteximo 161 dC

A I Apologia apresenta uma defesa geral dos cristatildeos O segundo escrito parte da

reprovaccedilatildeo das accedilotildees anticristatildes tendo em vista principalmente o que havia acontecido em

Roma sob Urbico e as investidas do ciacutenico Crescente Entranhado nessa ldquopeticcedilatildeo

apologeticamente fundamentadardquo166 estaacute o argumento de que os cristatildeos ao contraacuterio do que

era disseminado em algumas denuacutencias e caluacutenias natildeo seriam de nenhum modo uma ameaccedila

agrave ordem A seguir seratildeo examinadas as accedilotildees anticristatildes que compunham o contexto da

primeira metade do seacuteculo II dC

162 Hist Ecles IV131ss A confusatildeo com os nomes dos imperadores no rescrito da Aacutesia seraacute examinada mais adiante Pode-se admitir tambeacutem que essa confusatildeo tenha sido acarretada pela organizaccedilatildeo do texto em um periacuteodo posterior a Euseacutebio 163 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 227 164 Prosopografia Imperii Romani V 2 Berlim Walter de Gruyter 1983 (M 723) 165 PIR v1 1970 L 327 166 Usando novamente a expressatildeo de SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72

34

CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS

Justino se opotildee agraves investidas contra os cristatildeos167 por natildeo considerar vaacutelidas as

justificativas apresentadas para as condenaccedilotildees dos fieacuteis A confissatildeo de ldquocristianismordquo diante

de uma autoridade acaba sendo ironizada como uma condenaccedilatildeo do nome ldquocristatildeordquo Na II

Apologia (11) ele afirma que accedilotildees desse tipo estatildeo ocorrendo por todo o Impeacuterio O que natildeo

deve significar que existia uma busca exaustiva dos romanos pelos membros do novo

movimento No entanto eacute provaacutevel que esses atritos pudessem ser localizados em vaacuterias

regiotildees Um caso especiacutefico da execuccedilatildeo em Roma sob Urbico motivou-o a se manifestar

novamente168 As intimaccedilotildees por razotildees religiosas aos tribunais jaacute haviam movido outros

apologistas na primeira metade do II seacuteculo Euseacutebio169 faz saber que antes de Justino

Quadrato e Aristides jaacute clamavam em favor dos cristatildeos ao Imperador Adriano

Natildeo haacute nenhum indiacutecio de que o cerne da crenccedila cristatilde apresentasse alguma forma de

conspiraccedilatildeo contra os romanos Mas eacute preciso estabelecer uma visatildeo geral das accedilotildees

anticristatildes que se desenvolveram antes de Justino e em seu tempo para que se possa assimilar

o sentido de sua reflexatildeo

O II seacuteculo se inicia com um quadro indefinido a respeito dos cristatildeos A atividade

cristatilde de anunciaccedilatildeo da sua mensagem de feacute e conversatildeo dos pagatildeos alcanccedilava diversas

regiotildees do Impeacuterio Conversotildees e alguns atritos sempre ocorriam

A conversatildeo ao cristianismo implicava em uma mudanccedila que aleacutem de religiosa

poderia ser existencial social e ateacute poliacutetica Eacute provaacutevel que essa postura de resistecircncia agrave

associaccedilatildeo com a ldquoidolatriardquo identificada na vida ciacutevica fosse interpretada como ldquoineacuterciardquo ou

falta de vigor para se envolverem nos assuntos puacuteblicos jaacute despertasse preocupaccedilotildees na virada

do I seacuteculo Principalmente quando membros das classes dirigentes comeccedilam a aderir agrave feacute do

oriente A linha entre a toleracircncia e a intoleracircncia eacute indefinida Eacute preciso analisar os contornos

desde Trajano (governou de 98-117 dC) ateacute os primeiros anos de Marco Aureacutelio (governou

de 161-180 dC)

167 ldquopedimos sejam examinadas as acusaccedilotildees contra os cristatildeos Se for demonstrado que satildeo reais castiguem-nos como eacute conveniente que sejam castigados os reacuteus convictosrdquo I Apol 31 168 ldquo[] o que aconteceu ultimamente em vossa cidade sob Urbico e o que os governadores estatildeo fazendo sem razatildeo em todo o impeacuteriordquo II Apol 11 169 Hist Ecles IV1-3

35

21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano

Natildeo haacute indiacutecios de uma perseguiccedilatildeo generalizada aos cristatildeos no Impeacuterio Romano no

iniacutecio do seacuteculo II mas a expansatildeo cristatilde em curso proporcionava um nuacutemero significativo de

processos nos tribunais locais Se por um lado alguns estavam certos de que os membros

dessa superstitio illicita deveriam ser condenados por outro lado existiam algumas lacunas

sobre esse tipo de julgamento

A expansatildeo proporcionava atritos corriqueiros de resistecircncia agraves novas crenccedilas O

nuacutemero de cristatildeos era crescente170 Ateacute o governo de Nero171 os adeptos agrave nova religiatildeo que

se desenvolvia no seio do judaiacutesmo natildeo enfrentaram problemas significativos em relaccedilatildeo aos

romanos Taacutecito faz saber que esses que a seu ver jaacute eram impopulares pelas suas flagitia

foram incriminados por Nero pelo incecircndio de Roma em 64 dC172 Se Nero lanccedilou a culpa

do incecircndio de Roma sobre os cristatildeos fica aberta a questatildeo sobre a dimensatildeo dessa

perseguiccedilatildeo A accedilatildeo de Nero foi suficiente para que a tradiccedilatildeo cristatilde o transformasse no

ldquoprimeiro imperador perseguidorrdquo logo seguido por Domiciano173174 do qual natildeo se conhece

uma perseguiccedilatildeo direta contra os cristatildeos mas uma repressatildeo a asebeia e ao proselitismo

judaico175 que deve ter ocasionado transtornos inclusive agrave Igreja Isso foi suficiente para se

sustentar que a referecircncia de Tertuliano176 ao institutum neronianum fazia de Nero o primeiro

a lanccedilar as bases juriacutedicas para a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos177 Todavia a utilizaccedilatildeo dessa

referecircncia de Tertuliano para a identificaccedilatildeo das bases juriacutedicas da perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute

problemaacutetica Marta Sordi178 recorrendo ao mesmo Tertuliano sustenta a ideia de que houve

170 GOODMANN M Mission and conversion poselytizing in the Religious History of the Roman Empire New York Clarendon PressOxford 1994 p 91-108 Cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 171 Governou de 54 a 68 dC 172 Anais XV44 Flagitia poderia referir-se a algo vergonhoso ou inapropriado algo descabido cf LIDDEL H G SCOTT R (Ed) Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 173 Governou de 81 a 96 dC 174 Euseacutebio His Ecles III26 175 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3 176 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4 177 KERESZTES Paul Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 Segundo C G Roman as bases dessa teoria se encontram na obra de CALLEWAERD C La methode dans la recherrch de la base juridique des premiers persecutions Reviste dhistoire Ecclesiastique 12 1911 pp 5-16 e segue acompanhada por Cf DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106 MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 1953 pp 3-32 178 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968

36

um senatus consultum na eacutepoca de Tibeacuterio179 que teria desaprovado o reconhecimento de

Cristo como deus do panteatildeo a contragosto do Imperador

A incerteza sobre como proceder em julgamento de cristatildeos fez com que Pliacutenio o

Jovem escrevesse ao imperador Trajano no iniacutecio do II seacuteculo A resposta do imperador

confirma a accedilatildeo de Pliacutenio em condenar os cristatildeos confessos proiacutebe agrave perseguiccedilatildeo a esses

religiosos rejeita as denuacutencias anocircnimas e faz aumenta as interrogaccedilotildees sobre as bases

juriacutedicas processos desse tipo Uma hipoacutetese comum tal como sustentam Marcel Simon e

Andreacute Benoicirct180 eacute a de que neste periacuteodo natildeo existia nenhuma lei sobre os cristatildeos e que os

magistrados agiam mediante a ius coertionis181 Essa teoria que havia sido sustentada

originalmente por Mommsen arrebanhou alguns seguidores mas como aponta Giorgio

Jossa182 em alguns casos como na questatildeo dirigida por Pliacutenio a Trajano o uso da coercitio eacute

limitado pelas interrogaccedilotildees sobre como enquadrar judicialmente os processos Para ser mais

especiacutefico Pliacutenio deseja saber se os cristatildeos deveriam ser condenados simplesmente por

confessarem esse nomem ou por algum crime que esteja subentendido Com base nos

trabalhos de E Le Blant183 no seacuteculo XIX outra teoria sobre esse tipo de julgamento propotildee

que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais existentes dentro do

direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea maiestatis Segundo C

G Roman184 essa teoria teve muitos seguidores nos seacuteculos XIX e XX sendo favoraacutevel

agravequeles que como L Homo e Ch Saumagne185 consideram que o institutum neronianum186

natildeo pode ser compreendido como edito ou lei especial emanada do princeps

As maiores discrepacircncias quanto agraves razotildees juriacutedicas e populares para condenaccedilatildeo dos

cristatildeos eacute a proacutepria relaccedilatildeo desse grupo religioso com o Impeacuterio neste iniacutecio do II seacuteculo

aparecem em funccedilatildeo das supostas posturas diferentes assumidas por Trajano e Adriano diante

dessa superstitio As explicaccedilotildees atuais trilham caminhos que vatildeo desde diferentes niacuteveis de

toleracircncia atribuiacutedos a esses dois imperadores como sustenta Pedro Barcelograve187 ateacute a hipoacutetese

179 Governou de 14 a 37 dC 180 Giudaismo e cristianismo una storia antica RomaBari Gius Laterza Figli Spa 2005 p 97 181 MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-96 182 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 107-144 183 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 184 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 185 HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229 186 Tertuliano Ad nationes 17 187 Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim

37

de que Adriano tenha reconhecido o cristianismo como uma religio licita conforme sustentou

primeiramente Mommsen188

Trajano assumiu o poder no ano de 98 dC A estrateacutegia de Nerva189 em adotaacute-lo para

ser seu sucessor aproximou o senado do futuro priacutencipe190 originaacuterio da Itaacutelica cidade da

proviacutencia senatorial da Baetica no sul da Hispania Eacute provaacutevel que tenha recebido formaccedilatildeo

poliacutetica e puacuteblica razoaacutevel mas sua imagem de homem militar e popular entre as legiotildees eacute a

que prevaleceu para a posteridade Segundo Julien Bennett191 Trajano era de uma famiacutelia

provincial de status elevado Mas essa ascensatildeo natildeo era para qualquer um Pliacutenio192 destaca-o

como priacutencipe escolhido pelas divindades ndash o epiacuteteto optimum era especiacutefico de Juacutepiter ndash

respeitador de todas as tradiccedilotildees ancestrais e das instituiccedilotildees poliacuteticas entre elas o senado

Uma idealizaccedilatildeo que certamente contrapunha-se agrave realidade efetiva pois Trajano apoiado

pelas legiotildees e representado como escolhido de Juacutepiter era detentor de um poder autocraacutetico

tatildeo grande quanto ou maior que o dos mais proacuteximos conselheiros os amigos do priacutencipe

Pode-se considerar que as accedilotildees poliacuteticas de Trajano tinham um caraacuteter apaziguador nos

territoacuterios romanos Ampliou-se a poliacutetica urbana e a extensatildeo das vias romanas nas

proviacutencias favorecendo significativamente a atividade comercial193

Nesse periacuteodo a filosofia estoica encontrou grande honra Por outro lado tambeacutem

houve uma significativa propagaccedilatildeo dos cultos orientais e da magia Prodiacutegios e milagres

eram ansiosamente buscados desencadeando certo fervor religioso entre o povo A piedade

religiosa ancorada agrave velha tradiccedilatildeo grega e romana nutrida por fermento novo proveniente

dos misteacuterios egiacutepcios e dos oraacuteculos caldeus permeava ainda os escritos dos intelectuais O

culto ao imperador natildeo recebeu tanta ecircnfase mas a sacralidade do Impeacuterio eacute talvez um fato

adquirido por todos e a aceitaccedilatildeo praacutetica da forma de culto se juntou com a formaccedilatildeo estoica

da classe dominante194

No ano de 96 Nerva estipulou a requisiccedilatildeo dos relegados e o veto contra as acusaccedilotildees

de ldquoateiacutesmordquo ou mais precisamente de avsebeia e de ldquocostumes judaicosrdquo195 Se os cristatildeos

haviam sido incomodados por decretos que indiretamente insidiam sobre eles alguma

188 Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-399 189 Governou de 96 a 98 dC 190 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 38 191 Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005 pIX 192 Epistolas 1012 Panegiricus 27 884 passim 193 FRIGHETTO Renan Op cit 2012 p 38 194 Ibid p 38 195 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3

38

opressatildeo as mudanccedilas de Nerva teriam representado um aliacutevio196 Mas sob Trajano percebe-

se que os casos esporaacutedicos de condenaccedilotildees aos fieacuteis ainda satildeo identificados Natildeo se ouviraacute

mais falar sobre acusaccedilatildeo de costume judaico no II seacuteculo mas os cristatildeos continuaratildeo a

enfrentar repressotildees em alguns pontos do territoacuterio romano o que levanta uma obscura

questatildeo sobre por qual crime seriam culpados os cristatildeos e quais seriam os fundamentos

juriacutedicos de suas condenaccedilotildees

Como destacou Giorgio Jossa197 a apologeacutetica cristatilde desse periacuteodo distingue dois

tipos de criacuteticos Uma opiniatildeo puacuteblica grosseira e mal informada como as acusaccedilotildees de

cometerem delitos particularmente vergonhosos como incesto e antropofagia movida contra

os cristatildeos por meio de falatoacuterio e caluacutenias e a acusaccedilatildeo de serem a causa de todos os males

no Impeacuterio devido agrave ameaccedila que representavam agrave pax deorum Eacute difiacutecil dizer qual era

realmente a extensatildeo da hostilidade dos pagatildeos das diversas regiotildees mas essa hostilidade

existia e constituiacutea um terreno feacutertil para o desenvolvimento tanto das acusaccedilotildees poliacuteticas da

opiniatildeo culta quanto juriacutedicas por parte dos funcionaacuterios imperiais

O cristianismo natildeo se dirigiu apenas agraves classes humildes Rapidamente sua mensagem

chegou tambeacutem agraves classes elevadas A oposiccedilatildeo da classe culta era principalmente de caraacuteter

filosoacutefico e nesse periacuteodo foram sustentadas especialmente por Epiacuteteto Luciano e Galeno a

partir dos valores mais tradicionais da cultura helecircnica Por outro lado sustentando acusaccedilotildees

de caraacuteter social aparecem as consideraccedilotildees de Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio tendo em vista as

preocupaccedilotildees poliacuteticas do governo romano Taacutecito198 escreveu que os cristatildeos eram mal vistos

pela suas flagitia199 e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero humano] A

crenccedila desse grupo era considerada uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]

Suetocircnio200 os considerava homens de uma superstitionis novae ac maleficae [superstitio201

nova e maleacutefica] Frontatildeo202 em atenccedilatildeo agraves antigas caluacutenias de flagitia teria acusado os

196 Eusebio Hist Ecles III231 197 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 108 198 Anais XV44 199 O termo latino pode significar ldquocrime infacircmia ato vergonhoso etcrdquo LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) 200 genus hominum superstitionis novae ac maleficae [raccedila de homens de uma superstitio nova e maleacutefica] De Vita Caesarum Vita Neronis 162 201 A palavra latina superstitio significa basicamente ldquotemor distinto aos deusesrdquo ldquopavor pelo sobrenatualrdquo com possiacuteveis variaccedilotildees em contextos diferentes Sua traduccedilatildeo para ldquosupersticcedilatildeordquo pode ocasionar uma confusatildeo indesejada de conceitos LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) cf JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 jun1979 pp 131-159 MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007 SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002 202 apud Minucio Felix Octavius 96-7

39

cristatildeos de orgias incestuosas Pliacutenio203 vecirc nas novas crenccedilas uma superstitionem pravam et

immodicam A imagem dos cristatildeos diante desses homens educados era negativa Mas as

opiniotildees satildeo muito divergentes sobre as bases juriacutedicas da condenaccedilatildeo dos membros desse

novo grupo religioso

O governador do Ponto-Bitiacutenia diz nunca ter participado de julgamentos de cristatildeos e

por isso natildeo sabia quais eram as medidas e os procedimentos para castigar e inquirir204 Ele

levanta as seguintes questotildees a Trajano se as diferentes idades e condiccedilotildees fiacutesicas dos

acusados deveriam ser levadas em consideraccedilatildeo se os que se retratavam mereciam ser

perdoados e se deveriam ser punidos por serem cristatildeos sem qualquer crime ou

exclusivamente pelos delitos encobertos por este nome205 O rescrito de Trajano a Pliacutenio

tendo em vista a inscriccedilatildeo de Como (CIL V 5262206) pode ter sido escrito em 111 e 112 ou

112 e 113 anos que compreenderiam o governo de Pliacutenio no Ponto-Bitiacutenia

Sua interrogaccedilatildeo sobre se o ldquonomerdquo deveria ser punido mesmo sem significar uma

ofensa ou a ofensa subentendida pelo nome207 incide sobre que tipo de lei existia naquela

eacutepoca Segundo E Le Blant208 as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis

penais existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de

laesea maiestatis Todavia conforme propocircs C G Roman209 em seu estudo eacute provaacutevel que

os cristatildeos estivessem sendo denunciados naquela regiatildeo devido ao fato de se reunirem

semanalmente Isso contrariava as estipulaccedilotildees do edito promulgado pelo governador segundo

as instruccedilotildees de Trajano que proibia as assembleias ou hetaerias210 entre o povo para evitar

conspiraccedilotildees211 Assim pelo menos neste ponto eacute preciso concordar com Pedro Barcelograve no

203 [superstitio distorcida e desregrada] Ep X968 204 Cognitionibus de Christianis interfui nunquam ideo nescio quid et quatenus aut puniri soleat aut quaeri [ Nunca tomei parte em processos contra cristatildeos por esta razatildeo eu natildeo sei o que costumeiramente se deve punir e quais satildeo as extensotildees ou investigaccedilotildees] (Ep X97) 205 Ep X96 206 Corpus Inscripitionum Latinarum V Berolini Reimer 1959 207 nomen ipsu etiamsi flagitiis careat an flagita cohaerentia nomini puniantur [O proacuteprio nome mesmo sem nenhuma ofensa ou os crimes associados a esse nome devem ser punidos] (Ep X97) 208 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 209 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 passim 210 Assembleias civis comuns entre os gregos 211 Ep X97

40

reconhecimento de que se estaacute diante de um problema local212 Os cristatildeos estavam agrave mercecirc

de denuacutencias de desobediecircncia ao edito do governador mas tambeacutem por alguma

irregularidade identificada no tocante agrave nova religiatildeo

Pliacutenio consultou Trajano pelo menos duas vezes sobre como lidar com as heterias213

Ele havia questionado sobre a possibilidade de criar um coleacutegio de fabri composto por 150

homens na Nicomeacutedia214 Mas o imperador respondeu ldquoNatildeo esqueccedilamos que tua proviacutencia e

sobretudo esta vila eacute vitima de sociedades deste gecircnero Qualquer que seja seu nome

qualquer que seja a finalidade de que dermos a estes homens reunidos daraacute lugar rapidamente

a heteriasrdquo215 Natildeo seria razoaacutevel abrir uma exceccedilatildeo aos cristatildeos Mediante inuacutemeras

denuacutencias Pliacutenio resolveu investigar sobre o tipo de assembleia que constituiacuteam as reuniotildees

cuacutelticas cristatildes Os processos de acusaccedilatildeo cresceram e proporcionaram vaacuterios incidentes216

Denuacutencias anocircnimas por meio de libelus contendo o nome de pessoas que negavam ser cristatildes

estavam entre os inconvenientes Os cristatildeos alegavam que sua uacutenica culpa ou erro era se

reunirem antes de nascer o sol em um dia especiacutefico da semana para cantar hinos a Cristo E

tambeacutem de se ajuntarem para uma refeiccedilatildeo comum vista pelo governador como innoxium

[inocente] Praacutetica que havia sido abandonada devido ao edito de Pliacutenio O governador

procurou extrair informaccedilotildees sobre os cristatildeos mas ele escreve que natildeo encontrou nada aleacutem

de uma superstitionem pravam et immodicam Visto que o nuacutemero de acusados estava

provocando ldquoincidentesrdquo Pliacutenio decidiu consultar o imperador sobre o assunto Ele nota que

pessoas de todas as idades de todos os graus de ambos os sexos e de muitas cidades satildeo

citadas em juiacutezo A superstitio dos cristatildeos jaacute se estendia pelos campos e vilas mas ele eacute

otimista e acredita ser possiacutevel sanar esse problema217 Pliacutenio218 escreve que

muitos recomeccedilam a frequentar os templos que haviam ficado quase desertos tornando a se celebrarem os sacrifiacutecios solenes abandonados e a se venderem as viacutetimas das quais ateacute agora eram raros os compradores De modo que eacute faacutecil argumentar que muitas pessoas podem se emendar se existir lugar para arrependimento

Desse modo haacute uma evidente intenccedilatildeo de realocar os cristatildeos ao povo em geral que

participa da religiatildeo oficial Deve ser esta a razatildeo pela qual o governador concede o perdatildeo

212 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 p 69 213 Assembleias comuns aos gregos 214 Ep X33 215 Ep X341 216 mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species incierunt [Assim como seu suceder crescem os processos de acusaccedilatildeo ocasionando vaacuterios incidentes] (Ep X97) 217 quae videtur sisti et corrigi posse (Ep X97) 218 Ep X97

41

agravequeles que abandonam o cristianismo Mas baseado em relatos anteriores219 e em textos

posteriores sobre esse tipo de julgamento220 pode-se supor que os cristatildeos intimados

argumentavam e questionavam sobre a razatildeo da culpa que os condenava

Roman221 em certa medida seguindo o raciociacutenio de Marta Sordi222 sustenta que a

disposiccedilatildeo de Trajano estaacute voltada para a soluccedilatildeo de problemas sociais na regiatildeo do Ponto-

Bitiacutenia tendo em vista a sua recomendaccedilatildeo geral contra as heterias Proibindo as reuniotildees

puacuteblicas de qualquer caraacuteter os cristatildeos estariam indiretamente incluiacutedos Mas Roman

atribuindo um acentuado grau de toleracircncia a Trajano considera que o imperador estaacute

liberando os cristatildeos dessa condenaccedilatildeo recomendando que os mesmos natildeo sejam buscados

No entanto natildeo haacute qualquer razatildeo para supervalorizar a ldquotoleracircnciardquo desse imperador aos

cristatildeos

Se fossem acusados de violaccedilatildeo do edito das heterias defender-se-iam dizendo que

natildeo se reuniam mais Caso os problemas envolvendo cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia se ressumissem

a essa questatildeo o magistrado deveria soltaacute-los imediatamente Mas natildeo eacute isso que eacute descrito

por Pliacutenio Ele relata que insistia para que os acusados negassem ser ldquocristatildeosrdquo ameaccedilando-os

de morte Certamente um cristatildeo questionaria esse tipo de julgamento perguntando sobre qual

crime teria sido por eles cometido O governador sabia que esses religiosos eram acusados em

outros lugares e ao caracterizar as crenccedilas cristatildes como pravam et immodicam uma percepccedilatildeo

muito negativa se manifesta No entanto natildeo haacute referecircncia a nenhuma lei contra os cristatildeos

Pliacutenio decidiu punir os que confessavam essa superstitio procurando convencecirc-los a

mudarem de opiniatildeo quanto agrave feacute a que se apegavam ameaccedilando-os por ateacute trecircs vezes Seu

julgamento foi que independente da natureza dos credos dos cristatildeos a inflexibilidade e

obstinaccedilatildeo que os faziam natildeo negar o nomen christianum tornavam-lhes dignos de puniccedilatildeo223

Giorgio Jossa224 destacou ainda que nenhum dos crimes a eles imputados eram demonstados

ou pareciam dignos de serem cridos contudo os cristatildeos satildeo vistos como seguidores de

crenccedilas despresiacuteveis Embora natildeo exista nenhuma referecircncia a uma lei contra os fieacuteis natildeo haacute

nenhuma razatildeo para se pensar que Pliacutenio estivesse receoso de punir os cristatildeos exceto pelo

fato de que o nuacutemero de denuacutencias anocircnimas poderia provocar desordem Conforme apontou

219 Atos dos Apoacutestolospassim 220 Euseacutebio Hist Ecles passim Atas dos maacutertires passim 221 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-242 222 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 87-102 223 hellip qualecumque esset quod faterentur pervicaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri (Ep X97) 224 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 116

42

J Danieacutelou225 natildeo era uma lei especiacutefica que ocasionava a condenaccedilatildeo dos fieacuteis mas a

ausecircncia de uma lei que regulamentasse a nova religiatildeo como a que autorizava a religiatildeo

judaica

A resposta de Trajano natildeo demonstrou muita preocupaccedilatildeo com os cristatildeos O

imperador aprovou as medidas empregadas contra eles e para evitar o problema do excesso

de denuacutencias sem fundamento recomendou que natildeo fossem admitidas delaccedilotildees anocircnimas O

imperador tambeacutem estabeleceu que os fieacuteis natildeo deveriam ser perseguidos Ele escreveu

Agiste muito bem meu caro Pliacutenio ao instituir os processos contra esses que te foram denunciados como cristatildeos Natildeo se deve estabelecer regra dura e inflexiacutevel de aplicaccedilatildeo universal Natildeo os procure mas se surgirem outras denuacutencias que procedam puna-os Poreacutem com esta ressalva de que se algueacutem nega ser cristatildeo e mediante a adoraccedilatildeo dos deuses demonstra natildeo o ser atualmente deve ser perdoado em recompensa de sua emenda por muito que o acusem suspeitas relativas ao passado Natildeo merecem atenccedilatildeo panfletos anocircnimos em causa alguma aleacutem do dever de evitarem-se antecedentes iniacutequos panfletos anocircnimos natildeo condizem absolutamente com os nossos tempos226

O caraacuteter lacocircnico da resposta de Trajano poderia se justificar pelo menos de trecircs

formas Em primeiro lugar a autenticidade do rescrito de Trajano e a carta de Pliacutenio a esse

imperador foram questionadas por alguns estudiosos desde o seacuteculo XVIII Segundo

Cristobal G Roman a anaacutelise de J S Semler227 em 1788 contribuiu para desencadear uma

corrente de pensamento que foi bem representada ateacute longos anos do seacuteculo XX228 As

principais objeccedilotildees natildeo estariam diretamente relacionadas agrave inadequaccedilatildeo da descriccedilatildeo de

Pliacutenio sobre as comunidades cristatildes e a situaccedilatildeo real na qual se encontrariam As

discordacircncias incidiriam sobre o tipo de canto praticado nas reuniotildees cristatildes e sobre o nuacutemero

de cristatildeos existentes no Ponto-Bitiacutenia segundo o relato de Pliacutenio229 Os aspectos estruturais

satildeo analisados na criacutetica de L Hermann230 que aponta as repeticcedilotildees e as reiteradas alusotildees agrave

proacutepria ignoracircncia de Pliacutenio como elementos que induzem a pensar em interpolaccedilotildees ou 225 Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975 pp 13-15 226 Pliacutenio Ep X981ss 227 Novae observationes quibus studiosius illustrantur potiora capita historiae et religionis christianae usque ad Constantinum Halle Impensis Bibliopolii Hemmerdiani 1781 228 Marcel Durry (Pline-le-juene Paris Soc DrsquoEacuted Le belle Lettre 1972 p 7071) oferece uma lista dos pesquisadores que aponta a inautenticidade da correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano Entre as obras aparecem AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875 p 186 HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844 pp 426 HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885 LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934 pp 28-34 e GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946 p 585 229 VIDMAN L Etude sur la correspondance de Pline Le Jeune avec Trajan Roma LErma di Bretschneider 1972 pp 87 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 227 230 HERMANN L Les interpretations de la lettre de Pline sur les chretiens Latomus XIII 1954 p 343 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228

43

falsificaccedilotildees Dentro dessa mesma loacutegica estaria a resposta lacocircnica de Trajano agraves trecircs

questotildees que aparecem na carta de Pliacutenio a) se deveriam ser feitas distinccedilotildees tendo em vistas

as idades dos cristatildeos b) se deveria lhes permitir o arrependimento c) e se o roacutetulo de cristatildeo

deveria ser motivo de castigo por si mesmo ou apenas os delitos que aquele nome

implicava231 A resposta de Trajano contempla diretamente apenas a segunda questatildeo natildeo

dando provas de que a primeira e a terceira estivessem na carta por ele recebida Desse modo

Hermann deduz que as questotildees natildeo contempladas seriam interpolaccedilotildees

Entretanto a despreocupaccedilatildeo de Trajano em estabelecer uma norma riacutegida contra os

cristatildeos pode justificar o caraacuteter superficial de sua resposta Ele escreve que neque enim in

universum aliquid quod quase certam formam habeat constitui potest232 [natildeo se pode

constituir uma norma universal ou que seja invariaacutevel] Com isso nota-se tambeacutem a

liberdade do magistrado em avaliar os suspeitos e procurar enquadraacute-los sob uma lei

A tese mommseniana da coercitio eacute rebatida parcialmente por Jossa233 tendo em vista

que na maioria dos casos de condenaccedilatildeo dos cristatildeos nesse periacuteodo a atitude das autoridades

natildeo se reduz a uma simples atitude de poliacutecia para manter a ordem puacuteblica em uma proviacutencia

atingida pela desordem mas em um procedimento judiciaacuterio que tinha iniacutecio com uma

denuacutencia privada comporta uma acusaccedilatildeo precisa e se conclue com a condenaccedilatildeo formal Um

procedimento judiciaacuterio que corresponde perfeitamente a cognitio extra ordinem234 um

processo criminal de natureza inquisitorial afirmado durante o principado para crimes e que

tinha formas diversas daqueles previstos na ordo iudiciorum que nas proviacutencias eram tidos

pelos governadores delegados pelo princeps No entanto diante da ausecircncia de uma

legislaccedilatildeo clara sobre o que fazer com os cristatildeos Pliacutenio recorre a ius coertionis para

desestimular os adeptos dessa pravam et immodicam que desrespeitam o magistrado para

sustentarem seu credo Eacute preciso considerar com certo cuidado a teoria derivada da obra de E

Le Blant235 de que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais

existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea

maiestatis Pliacutenio primeiramente julgou os cristatildeos por meio da lei local que proibia as

assembleias entre o povo poreacutem diante da correccedilatildeo por parte dos cristatildeos apontada pelo

231 Pliacutenio Epistolas X962-3 232 Ep X98 233 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 122-123 234 Tido de processo que substitui o processo padratildeo Eacute provaacutevel que soacute tenha se oficializado com forma instituiacuteda de processo no seacuteculo IV O julgamento dos cristatildeos no seacuteculo II seria um processo semelhante 235 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229

44

proacuteprio governador em sua carta ele natildeo sabia exatamente como punir os que se negavam a

desprezar agravequela superstitio Para Jossa236 estaacute evidente que a condenaccedilatildeo se efetiva diante da

profissatildeo da feacute cristatilde natildeo aos delitos a esse nome associados

O cristianismo natildeo eacute condenado como superstitio externa Uma religiatildeo estrangeira

poderia ser socialmente suspeita mas isso natildeo faz com que seja judicialmente perseguida E

natildeo eacute o seu caraacuteter baacuterbaro que lhe rende ilicidade Superstio externa e barbara o judaiacutesmo

era de fato religio licita Os romanos consideravam superstitio toda forma religiosa e toda

praacutetica cultural que natildeo correspondia agravequela transmitida pelos seus antepassados e que natildeo

eram munidas de puacuteblico reconhecimento Todas as praacuteticas religiosas de caraacuteter privado

individuais ou enraizadas em certos grupos sociais como magos ou adivinhos eram dessa

forma rotuladas Religiotildees e cultos puacuteblicos estrangeiros ainda que constituiacutessem patrimocircnio

de um povo e fossem transmitidos desde os tempos mais antigos poderiam ser tachados de

superstitio237 Segundo Jossa238 exprime-se desse modo a diferenccedila instintiva dos ciacuterculos

romanos abastados de uma consciecircncia nacional diante das religiotildees estrangeiras para os

quais os cultos natildeo romanos eram ldquonatildeo religiotildeesrdquo ou seja apenas superstitiones Externa

superstitio vem a ser toda forma ou manifestaccedilatildeo religiosa que natildeo pertenccedila originalmente agrave

tradiccedilatildeo romana ou pelo menos ao puacuteblico reconhecimento e agrave apreciaccedilatildeo dos ritos e crenccedilas

religiosas da parte dos romanos

A partir de Cicero superstitio passa a indicar tambeacutem qualquer forma excesiva

fanaacutetica de religiosidade que se contrapunha agrave moderaccedilatildeo da religio aquela manifestaccedilatildeo

religiosa tiacutepica de uma alma deacutebil (imbecillis) ou velha (anilis) que derivam em particular de

uma anguacutestia inuacutetil e absurda dos deuses239 A superstitio natildeo eacute apenas diversa mas se opotildee

sendo uma corrupccedilatildeo da religio (De natura Deorum II72)

Diante da convicccedilatildeo dos romanos de serem muito religiosos entre todos os homens de

serem inclusive religiosamente superiores aos demais fica impliacutecito que toda e qualquer

religiatildeo estrangeira eacute excessiva ou fanaacutetica que todas as religiotildees estrangeiras satildeo tambeacutem

superstitio e assim toda externa superstitio eacute tambeacutem barbara superstitio no sentido

embrionaacuterio do termo pela falta de racionalidade e moderaccedilatildeo que sempre deixam a

desejar240

236 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 123 237 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 131-159 238 Op Cit p 115 239 Ciacutecero De natura Deorum I117 Cf SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 240 JANSEN L F Op cit pp 145

45

Como jaacute foi apontado anteriormente aleacutem do proacuteprio Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio

tambeacutem adjetivaram negativamente a superstitio cristatilde Taacutecito escreveu que os cristatildeos eram

mal vistos pelas suas flagitia e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero

humano] Flagitia por sinal que Pliacutenio natildeo detectou A crenccedila desse grupo eacute considerada

uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]241 Analisando as consideraccedilotildees de Taacutecito

nota-se que a provaacutevel ofensa que os cristatildeos causavam aos deuses combatendo-os com a

propagaccedilatildeo da sua mensagem evangeacutelica e com abstenccedilatildeo de participaccedilatildeo nas celebraccedilotildees

puacuteblicas responsabilizava-lhes pelo rompimento da pax deorum que havia fragilizado a

capital do Impeacuterio tornando-a vulneraacutevel a tamanha cataacutestrofe da eacutepoca de Nero Segundo L

F Jansen242 o odio humani generis visto por Taacutecito sobre os cristatildeos ndash como antes sobre os

judeus ndash era um elemento que condenava essa superstitionis novae ac maleficae como

escreveu Suetocircnio243 tornando-a exitiabilis No entanto apologistas como Justino244

sustentaram que as flagitia atribuiacutedas aos cristatildeos eram fruto de ldquocaluacuteniasrdquo o que natildeo

acarretaria isenccedilatildeo de serem relativamente enquadrados nos crimes de sacrilegium245 ou

maiestas

No entanto ao confirmar a accedilatildeo de Pliacutenio Trajano ratifica a condenaccedilatildeo do nomen

christianum Isso deve estar ligado ao fato de o governador do Ponto-Bitiacutenia ter confirmado

os resultados positivos desse tipo de condenaccedilatildeo que visava desestimular a aderecircncia ao grupo

cristatildeos garantindo a manutenccedilatildeo da religiatildeo tradicional a uma medida moderada que

impedisse falsas denuacutencias e o cometimento de injusticcedilas O que natildeo significa que Trajano

tenha empreendido uma poliacutetica de toleracircncia aos cristatildeos dificultando as denuacutencias como em

alguns momentos parece sugerir Pedro Barcelograve246

Euseacutebio247 explora o fato de Trajano ter determinado que os cristatildeos natildeo deveriam ser

buscados (conquirendi non sunt) para assim construir uma ldquotradiccedilatildeo favoraacutevelrdquo aos fieacuteis Ele

confirma que Trajano promulga um decreto para que os cristatildeos natildeo fossem perseguidos Tal

medida eacute interpretada como o fator importante para a reduccedilatildeo parcial da perseguiccedilatildeo naquela

241 Anais XV44 242 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 145 243 De Vita Caesarum Vita Neronis 162 244 II Apol 82 245 Este caso envolveria um crime especiacutefico contra o patrimocircnio religioso pagatildeo mas natildeo haacute sinais evidentes no na primeira metade do II seacuteculo cf ROBINSON OF The criminal Law of ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 passim 246 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim 247 Histoacuteria Eclesiaacutestica III231-3

46

eacutepoca Mas essas vantagens que Euseacutebio vecirc na recomendaccedilatildeo de Trajano se reduzem ao fato

de ele natildeo admitir que os cristatildeos sejam levados em juiacutezo mediante denuacutencias anocircnimas

Mesmo assim os incocircmodos locais permaneceram Euseacutebio escreve ldquoAlgumas vezes eram as

populaccedilotildees outras as proacuteprias autoridades locais que preparavam os asseacutedios contra noacutes de

forma que ainda que sem perseguiccedilotildees manifestas acenderam-se focos parciais segundo as

proviacutenciasrdquo248 Por outro lado em grande medida influenciado por Meacuteliton de Sardes249 que

escreveu a Marco Aureacutelio Euseacutebio ratifica a tradiccedilatildeo cristatilde que destaca Nero e Domiciano

como grandes perseguidores da Igreja250 Eacute interessante a tradiccedilatildeo cristatilde relacionar as accedilotildees

anticristatildes a ldquomaus imperadoresrdquo Com isso tenta-se reproduzir a ideia de que perseguir os

cristatildeos eacute seguir os passos de tiranos Todavia quando se procuram as raiacutezes das hostilidades

imperiais com os cristatildeos faz-se necessaacuterio ter em mente que por vaacuterias regiotildees do Impeacuterio os

atritos envolvendo o combate aos cristatildeos emergem do processo de expansatildeo da comunicaccedilatildeo

da mensagem apelativa cristatilde e das transformaccedilotildees reivindicadas e provocadas por ela nas

tradiccedilotildees e no comportamento das pessoas

Desse modo deixando de lado a hipoacutetese de Marta Sordi251 sobre um senatus

consultum na eacutepoca de Tibeacuterio que teria desaprovado o reconhecimento de Cristo a

contragosto do Imperador eacute preciso lidar com o institutum neronianum252 tambeacutem

mencionado por Tertuliano como a primeira hostilidade incisiva do Impeacuterio contra os

cristatildeos Mas esta peculiar expressatildeo empregada por Tertuliano natildeo se refere a uma lei e sim

a uma accedilatildeo de Nero E a accedilatildeo de Nero neste caso teria interesses particulares e usa os cristatildeos

como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo Mesmo que as flagitia cristatildes se fundamentem em caluacutenias

originaacuterias dos atritos populares a superstitio cristatilde natildeo poderia representar algo aceitaacutevel aos

olhos dos romanos devido ao seu caraacuteter exclusivista e seu desprezo pela vida puacuteblica ligada agrave

religiatildeo tradicional Em defesa dos cristatildeos poucos anos mais tarde Justino escreveu ldquoEsta eacute

a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo

oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos sepulcros nem

celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo (I Apol 242) Aleacutem disso seria uma incriacutevel contradiccedilatildeo

sustentar que existia uma lei geral em vigor que determinava a pena capital para os cristatildeos e

248 Hist EclesIII232 249 ldquoEntre todos somente Nero e Domiciano persuadidos por alguns homens maleacutevolos quiseram caluniar nossa doutrina e acontece que deles derivou por costume irracional a mentira caluniosa contra tais pessoasrdquo (apud Euseacutebio Hist EclesIV239) 250 Hist Ecles III171 201-9 221-8 251 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968 252 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4

47

ser necessaacuterio admitir que Trajano recomenda que os cristatildeos natildeo sejam perseguidos e que

apenas os casos mais precisos sejam examinados

A resposta de Trajano alegando ldquonatildeo eacute possiacutevel constituir por assim dizer algo

universal que possua forma fixardquo253 pode servir como evidecircncia de que natildeo existia uma lei

geral para julgar os cristatildeos Todavia Roman254 considera que a foacutermula neque enin

universum deve ser relativizada em funccedilatildeo de um marco geograacutefico concreto o da proviacutencia

Ponto-Bitiacutenia e em relaccedilatildeo agrave diversidade de status juriacutedico e de situaccedilotildees existentes nessa

regiatildeo que motivam a correspondecircncia entre Pliacutenio e o Imperador Um exemplo dessa

preocupaccedilatildeo aparece quando se fala da constituiccedilatildeo de um evranouj (sociedade de seguros

muacutetuos) em Amisos255 Trajano desaprovando a ideia responde

Se as leis de Amisos de acordo com as obrigaccedilotildees do tratado lhe datildeo direito a ter uma associaccedilatildeo de seguros muacutetuos natildeo podemos proibir que a tenham tanto mais se tal sociedade natildeo procede a organizar tumultos e reuniotildees iliacutecitas senatildeo para sustentar os mais pobres Nas cidades restantes que estatildeo submetidas a nosso direito praacuteticas desse tipo devem ser proibidas []256

Roman257 estaacute correto em considerar que Trajano potildee em praacutetica um tipo de

disposiccedilatildeo que tende a fazer frente aos problemas sociais provinciais que encontram uma

ampla expressatildeo na formaccedilatildeo de heterias Esta poliacutetica encontra uma limitaccedilatildeo na situaccedilatildeo da

proviacutencia Ponto-Bitiacutenia com a existecircncia de cidades livres e federadas que se autorregulam

Poreacutem a hipoacutetese de Roman apresenta limitaccedilotildees Ele considera que tal poliacutetica

administrativa com respeito aos cristatildeos constituiria uma exceccedilatildeo em suas disposiccedilotildees sobre

as associaccedilotildees no Ponto-Bitiacutenia Esta exceccedilatildeo natildeo se explica em funccedilatildeo da diversidade de

status juriacutedico das cidades existentes nessa proviacutencia mas estaacute relacionada ao caraacuteter peculiar

das reuniotildees das comunidades cristatildes que natildeo consistiam um perigo ao Impeacuterio Roman segue

a hipoacutetese de De Robertis258 e chega a alegar que as reuniotildees cristatildes eram consideradas licita

A proposiccedilatildeo de Roman falha basicamente em natildeo compreender que a aprovaccedilatildeo por

parte de Trajano dos atos de execuccedilatildeo da pena capital sobre os cristatildeos desempenhada por

Pliacutenio estaacute diametralmente oposta a uma hipoteacutetica licenccedila agrave religiatildeo cristatilde O que descarta

qualquer vestiacutegio de simpatia romana pelos cristatildeos Aleacutem disso Pliacutenio havia informado ao

imperador que os cristatildeos haviam deixado de se reunir tendo em vista as disposiccedilotildees do edito

253 neque enim in universum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest (Ep X98) 254 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 233-234 255 Ep X92 256 Pliacutenio Ep X94 257 Op cit pp 233-234 258 ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89

48

recente Quando Trajano aponta que seria inadequado estabelecer uma norma fixa para julgar

os cristatildeos ele estaacute se referindo agraves interrogaccedilotildees levantadas por Pliacutenio questionando sobre a

necessidade de se fazer distinccedilatildeo entre jovens e idosos satildeos e doentes romanos e natildeo

romanos Desse modo o imperador estaacute de acordo que o magistrado use de seus poderes

constituiacutedos para fazer as distinccedilotildees necessaacuterias sem que se fixe uma norma universal

Giorgio Jossa259 faz uma siacutentese das teorias baacutesicas sobre as accedilotildees anticristatildes no

periacuteodo de Trajano e desenvolve uma avaliaccedilatildeo que tem em vista a complexidade da situaccedilatildeo

poliacutetica da religiatildeo cristatilde e da peculiaridade do procedimento criminal do direito romano Esta

explicaccedilatildeo comporta certa mescla de todas as trecircs hipoacuteteses aceitaacuteveis Assim Jossa considera

que o cristianismo representa antes de tudo um problema de ordem puacuteblica que dependia em

parte da sensibilidade dos magistrados por meio do uso da ius coertionis num momento onde

jaacute existia uma legislaccedilatildeo especiacutefica contra os cristatildeos e onde o nomen christianum carregava

subentendido os crimes de sacrilegium e maiesta Exceto pela sua insistecircncia em admitir que

havia uma lei especiacutefica contra os cristatildeos sua anaacutelise torna-se proveitosa em funccedilatildeo de sua

sensibilidade agrave questatildeo da ordem puacuteblica enviesada nesse dilema juriacutedico Se o nomen

christianum carregava subentendido crimes comuns eles se manifestam com a pressatildeo civil

procurando expelir esse corpo estranho da sociedade pagatilde e obriga os magistrados a

procurarem um enquadramento que ratifique a condenaccedilatildeo daquilo que para muitos do povo

estava evidente que os cristatildeos deviam ser condenados

Em siacutentese eacute mais prudente admitir que as condenaccedilotildees de outrora sobre os cristatildeos

davam margem para que os magistrados em outras regiotildees do Impeacuterio eventualmente

condenassem os cristatildeos que lhes fossem entregues normalmente devido a atritos populares

Isso justificaria a incerteza de Pliacutenio em condenar os cristatildeos Eacute o uso de se condenar os

cristatildeos em decorrecircncia desde a eacutepoca de Nero da opiniatildeo puacuteblica somada agrave imagem

negativa que a classe culta tinha desses religiosos que atribui flagitia aos fieacuteis tornando o

nomen christianum razatildeo de condenaccedilatildeo Algo que eacute negado pelos apologistas com

veemecircncia no II seacuteculo e que seraacute avaliado por Adriano subsequentemente a Trajano

259 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125

49

22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano

A Histoacuteria Augusta (51) aponta que Adriano foi um imperador dedicado agrave

manutenccedilatildeo da paz no mundo mas tatildeo logo as revoltas estouraram em regiotildees variadas Os

samaritanos se envolveram em guerra os britacircnicos davam sinais de que natildeo permaneceriam

sob o domiacutenio romano o Egito foi jogado em desordem por distuacuterbios e finalmente a Liacutebia e

a Palestina mostraram espiacuterito de rebeliatildeo

Nos anos 130 e 131 Adriano partiu para o Oriente No plano das suas reformas estava

a revitalizaccedilatildeo da cidade de Jerusaleacutem que havia sido destruiacuteda na guerra judaica de 66 a 73

Natildeo eacute agrave toa que ficou reconhecido como promotor da vida urbana no Impeacuterio valorizando as

obras puacuteblicas (aacutegoras templos teatros anfiteatros aquedutos portos ou estradas) Os

investimentos na Judeia faziam parte de sua estrateacutegia de integraccedilatildeo e romanizaccedilatildeo

Os judeus sofreram em muitos aspectos os efeitos das transformaccedilotildees culturais Mas a

introduccedilatildeo de elementos estrangeiros e a construccedilatildeo de um templo a Juacutepiter na cidade sagrada

gerou protestos260 A proibiccedilatildeo da circuncisatildeo261 contribuiu para acirrar os acircnimos revoltosos

No entanto segundo a anaacutelise de J M C Copete262 se esse foi o estopim da guerra as causas

que levaram o povo judeu e alguns outros provincianos a lutar natildeo poderiam estar apenas na

devoccedilatildeo ao seu Deus tradicional Yahveacute A insensatez romana em ignorar os problemas

estruturais da regiatildeo tais como a pobreza endecircmica reinante e as proacuteprias rivalidades entre

sacerdotes e rabinos na regiatildeo proporcionaram as condiccedilotildees para esse movimento que se

levantou como uma ameaccedila agrave ordem

Euseacutebio escreve que

Rufo governador da Judeacuteia com o reforccedilo militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade marchou contra eles Aniquilou em massa milhares de homens de crianccedilas e de mulheres e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territoacuterios agrave escravidatildeo Mandava entatildeo sobre os judeus um chamado Bar Kosibas que significa ldquofilho da estrela263

A religiatildeo dos judeus era o elemento fundamental de sua identidade Havia interaccedilatildeo

com os demais povos do Impeacuterio mas qualquer tipo de resistecircncia em funccedilatildeo dessa

260 Cassius Dio His Rom 121-3 261 Hist Aug 142 262 Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 263 His Ecles IV61-2

50

identidade poderia deixar as autoridades romanas ressabiadas Taacutecito264 fala da diferenccedila de

ambos os mundos O judaiacutesmo parecia-lhe uma supersticcedilatildeo absurda soacuterdida e depravada que

gerava costumes contraacuterios aos dos outros povos A abstenccedilatildeo do culto ao imperador por parte

dos judeus poderia simbolizar sua rejeiccedilatildeo ao Impeacuterio e agrave cultura greco-romana mas natildeo se

deve pensar que os judeus estavam blindados agrave cultura helecircnica e que as oligarquias judaicas

se isolassem dos negoacutecios com as demais proviacutencias do Impeacuterio265

Uma das preocupaccedilotildees de Justino em sua I Apologia eacute deixar claro que os judeus

haviam se tornado os principais opositores dos cristatildeos e que muitos foram vitimados por Bar

Kosiba que os mandava ldquosubmeter a terriacuteveis torturasrdquo266 Natildeo haacute certeza sobre as razotildees

dessa oposiccedilatildeo e se ela diferia da rivalidade entre judeus e cristatildeos constatada no I seacuteculo

Todavia aleacutem desse tipo de accedilatildeo anticristatilde haacute indiacutecios de que os tribunais locais recebessem

queixas sobre os cristatildeos e um nuacutemero significativo de fieacuteis era levado agrave morte Tal como a feacute

dos judeus a religiatildeo dos cristatildeos era considerada uma superstitio reprovaacutevel que apresentava

resistecircncia agrave vida puacuteblica no Impeacuterio ou seja que natildeo se envolviam em teatros jogos e todo

tipo de reverecircncias aos deuses pagatildeos Para evitar quaisquer duacutevidas quanto agrave identidade entre

cristatildeos e judeus o apologista faz essa interpolaccedilatildeo

Em funccedilatildeo das condenaccedilotildees sofridas pelos cristatildeos durante o governo de Adriano

Quadrato e Aristides escreveram-lhe apologias267 Se a teoria de Paul Andriessen268 for

tomada por certa e a Carta a Diogneto for reconhecida como a apologia perdida de Quadrato

reconhecer-se-aacute a disposiccedilatildeo tanto nesse escrito quanto na Apologia de Aristides em

apresentar algumas das principais distinccedilotildees entre as crenccedilas dos cristatildeos dos judeus e dos

pagatildeos A principal queixa na Carta a Diogneto leva a crer que o ldquonomerdquo cristatildeo era um

elemento chave para a condenaccedilatildeo269 Sua queixa faz pensar que as variaccedilotildees nos julgamentos

nos tribunais locais pudessem proporcionar um destino distinto aos cristatildeos ldquoPor isso

condeno tambeacutem as vossas leis Deveria haver uma soacute constituiccedilatildeo poliacutetica comum para

todos agora haacute tantas legislaccedilotildees quantas cidades existem e assim acontece que o que entre

uns eacute vergonhoso entre outros eacute tido por honrosordquo270

264 Taacutecito Historia V 3-6 Cf Strabatildeo Geografia XVI237 Quintiliano Institutio Oratoria II7 Juvenal Satiras III 13-6 VI 541-7 96-106 Plutarco De Superstitione 8 Cassius Dio Hist Rom 37174 265 Josefo Antiguidades Judaicas XVIII 23 Guerras dos Judeus II118 266 I Apol 316 267 Euseacutebio His Ecles IV31-3 268 Lrsquoapologie de Quadratus conserve sous le nom drsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedievale 13 1946 pp 5-260 Id Lrsquoepilogue de lrsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedieacutevale 14 1947 pp 121-156 269 Carta a Diogneto 271ss 270 Carta a Diogneto 281ss

51

O rescrito de Adriano ao prococircnsul da Aacutesia a partir de 124125 dC Minuacutecio

Fundano oferece uma ideia sobre sua forma de lidar com os cristatildeos O texto foi conservado

na Apologia de Justino (I Apol 68) no texto de Euseacutebio271 e por Rufino na versatildeo latina

Adriano havia recebido a carta de Serecircncio Graniano272 antecessor de Minuacutecio e julgou ser

importante responder essa demanda a fim de ldquoevitar que se perturbem os homens e que os

delatores encontrem apoio para suas maldadesrdquo273 Adriano recomenda que

se os provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo que respondam a ela diante do tribunal deveratildeo ater-se a esse procedimento e natildeo a meras peticcedilotildees e gritarias Com efeito eacute muito mais conveniente que se algueacutem pretende fazer uma acusaccedilatildeo examines tu o assunto Em conclusatildeo se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delito Mas por Heacutercules se a acusaccedilatildeo eacute caluniosa castiga-o com maior severidade e cuida para que natildeo fique impune (I Apol 688-10)

As interpretaccedilotildees desse rescrito satildeo divergentes Em uma primeira linha interpretativa

representada por exemplo por B Orgeval H Gregoire L Regibus e M Sordi274 acredita-se

que esse rescrito assegurou a liberdade de algum tipo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos por

professarem sua religiatildeo e providenciou que fossem punidos apenas por crimes cometidos

contra as leis comuns Representantes de outro ponto de vista como C Callewaerd J Moreau

e W Schimid275 sustentam que o rescrito natildeo concede aos cristatildeos nenhuma liberdade

O rescrito foi lido por Justino de um modo favoraacutevel aos cristatildeos como se de fato o

Imperador tivesse agido decididamente a favor dos cristatildeos A esse documento fez alusatildeo

Meliton bispo de Sardes276 Euseacutebio agiu de modo semelhante em sua proacutepria leitura do

rescrito de Trajano e seguiu a Justino em sua interpretaccedilatildeo do rescrito de Adriano No entanto

como mostrou Paul Kereszts277 a interpretaccedilatildeo do apologista difere do sentido original do

rescrito Segundo a interpretaccedilatildeo de Justino Adriano teria proibido que os cristatildeos fossem

271 His Ecles IV 9 272 O nome correto eacute Q Licinio Silvano Graniano cocircnsul a partir de 106 dC e pro-cocircnsul da Aacutesia a paritir de 122123 dC MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 132 273 I Apol 687 Eus Hist Ecles IV9 274 ORGEVAL B LEmpereur Hadrien oeuvre leacutegislative et administrative ParisGrenoble Domat MontchrestienImpr De Allier 1950 pp 302-307 GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 pp 138-139 REGIBUS L de Storia e Diritto Romano negli Acta Martyrum Didascalos 1926 pp 147-148 SORDI M I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349 275 CALLEWAERT C Le Rescrit dHadrien a Minucius Fundanus Reviste dHistoire et de Litterature 6l 8 1903 pp 152-189 MOREAU J La Persecution du Christianism e dans lEmpire Romain Paris Presses Universitaires de France 1956 p 48 SCHIMID W The Christian Re-Interpretation of the Rescript of Hadrian Maia 71955 pp 5-13 276 Euseacutebio Hist EclesIV 2610 277 Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129

52

punidos simplesmente mediante a confissatildeo de que eram ldquocristatildeosrdquo e teriam recomendado

que fossem julgados pelos crimes como quaisquer outros e natildeo por suas crenccedilas

Segundo C G Roman278 a postura de Adriano em advertir a Minuacutecio Fundano a nada

julgar sem denuacutencia e acusaccedilatildeo formal contra os cristatildeos dava continuidade agrave poliacutetica de

Trajano Tomando essa perspectiva como exemplo deve-se destacar que a interpretaccedilatildeo do

rescrito de Adriano dependeraacute significativamente da interpretaccedilatildeo do rescrito de Trajano e

talvez deva remontar ateacute um pouco antes Roman interpretou as recomendaccedilotildees deste uacuteltimo

como sendo positivas para com os cristatildeos e sua tendecircncia eacute reconhecer o aprimoramento das

limitaccedilotildees das accedilotildees anticristatildes

J Beaujeu279 considera que Adriano procedeu a uma grande obra de restauraccedilatildeo

religiosa que obedecia aleacutem das necessidades religiosas a objetivos poliacuteticos agrave medida que

tendia a uma unificaccedilatildeo religiosa das distintas proviacutencias do Impeacuterio debaixo da eacutegide dos

cultos Greco-romanos mediante a criaccedilatildeo de uma religiatildeo do Estado siacutentese destes uacuteltimos

cultos com as religiotildees orientais com a originalidade dos diversos grupos sociais e eacutetnicos

que formavam o Impeacuterio

De fato Adriano foi um imperador interessado em conhecer a cultura do vasto

Impeacuterio Por volta do ano de 124 iniciou-se nos misteacuterios Eleusis importante oraacuteculo do

mundo grego revelando um interesse miacutestico que acabou por conduzi-lo tambeacutem ao

conhecimento misterioso da religiatildeo egiacutepcia Os cultos tradicionais de Roma natildeo receberam

menor atenccedilatildeo certamente para manter uma relaccedilatildeo amistosa com os integrantes do universo

senatorial Construiu um templo a Venus em Roma no Foro Romano no ano de 121 e mandou

reconstruir o Panteatildeo de Marco Agripa um dos mais importantes colaboradores de

Augusto280 No entanto isso natildeo permite ver em seu rescrito uma accedilatildeo proacute-cristatilde que

estivesse em consonacircncia com a ideia sustentada por Marta Sordi281 de que Adriano teve em

mente reconhecer a Cristo entre os outros deuses e lhe oferecer um templo conforme anota a

Histoacuteria Augusta (Alexandre Severus 436-7) Essa passagem se assemelha agrave lenda de que

antes de propor a construir a cidade de Elia Adriano havia empreendido um projeto de

reconstruccedilatildeo conjunta do templo de Jerusaleacutem com os judeus mas a oposiccedilatildeo dos samaritanos

278 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 230 279 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp150ss 280 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 43 281 I Cristiani e Lrsquoimpero Romano Ed rev e atual Milano Jaca Book 2011 p 98

53

fez com que os planos sofressem mudanccedilas draacutesticas282 Esse tipo de tendecircncia pode chegar a

ponto de admitir como sustentou T Mommsem283 que Adriano estava proacuteximo a elevar a feacute

cristatilde a uma religio licita

As comparaccedilotildees entre as accedilotildees de Trajano e Adriano satildeo muito importantes para o

desenvolvimento de uma teoria coerente que explique a condiccedilatildeo dos cristatildeos nesse iniacutecio do

II seacuteculo todavia natildeo eacute necessaacuterio admitir nenhuma continuidade entre ambos em razatildeo dos

rescritos G Jossa284 alerta que os rescritos natildeo satildeo ldquoleisrdquo mas recomendaccedilotildees a governantes

locais e nem um desses imperadores estabeleceu normas gerais sobre o julgamento dos

cristatildeos

Como foi visto anteriormente ao responder a demanda de Pliacutenio Trajano admitiu o

procedimento daquele governador em condenar os cristatildeos mediante a confissatildeo

recomendaccedilatildeo que fazia pressupor que o nomen christianum representava a razatildeo da

condenaccedilatildeo que visava desestimular a adesatildeo e expansatildeo dessa superstitio Naquela ocasiatildeo o

imperador fez questatildeo de lembrar que as denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas Pouco

tempo depois Adriano precisa admoestar os governantes da Aacutesia Menor a natildeo serem movidos

por ldquomeras peticcedilotildees e gritariasrdquo285 A condenaccedilatildeo aos cristatildeos provocou abusos nas

condenaccedilotildees Se bastasse estender o dedo para algueacutem e acusaacute-lo de cristianismo para

conseguir sua condenaccedilatildeo essa seria uma forma eficaz de eliminar qualquer pessoa

indesejada ainda que ela natildeo fosse cristatilde Adriano entatildeo reconhece que a questatildeo levantada

por Graniano natildeo poderia ficar sem resposta pois os efeitos da desordem seriam extensos

Embora a carta de Graniano natildeo tenha sido preservada eacute possiacutevel deduzir que se o imperador

recomenda a condenaccedilatildeo dos ldquomaleacutevolosrdquo delatores dos cristatildeos que indevidamente os

caluniavam visando agrave puniccedilatildeo isso significa que esse tipo de episoacutedio jaacute havia sido

constatado naquela regiatildeo Nenhuma norma universal eacute estabelecida ou mencionada O

governador eacute designado como o responsaacutevel por examinar as denuacutencias formais e averiguar os

casos

Fica evidenciada a obrigaccedilatildeo por parte de quem realiza a denuacutencia de apresentar ele

mesmo provas sobre seu testemunho diferenciando-se um pouco da medida de Trajano

segundo a qual o governador deveria se responsabilizar pela investigaccedilatildeo O castigo aos falsos

282 Midash Berersquoshit Babba 6410 e Epiacutestola de Barnabeacute 163-4 apud COPETE J M C Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII CONGRESSO INTERNACIONAL GIREA-ARYS IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 283 Der religonsfrevel nach der roumlmischen Recht Historische Zeitschrift 64 1890 pp 389-429 284 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125 285 I Apol 688

54

acusadores era praacutetica usual no direito romano286 Neste ponto surge a seguinte questatildeo Os

acusadores deveriam provar que os cristatildeos por eles acusados cometiam a infraccedilatildeo de serem

ldquocristatildeosrdquo ou que infringiam outras leis comuns subentendidas pelo seu nomen

A expressatildeo287 ei tij ou=n kathgorei kai deiknusi ti para touj nomouj prattontaj(

ou[twj Diorixw kata thn Dunamin tou a`marthmatoj( [ se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e

demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade

do delito ] (I Apol 6810) eacute entendida de modo positivo ou negativo dependendo da corrente

de interpretaccedilatildeo No entanto o proacuteprio rescrito tem algo a dizer em um delineamento mais

claro sobre essa questatildeo A especificaccedilatildeo de que os acusadores deveriam demonstrar que os

cristatildeos acusados agiam contra as leis [touj nomoj prattontaj] eacute uma medida para evitar as

sukofantiaj [caluacutenias] Por isso ele recomenda que Minuacutecio Fundano examine os casos e ldquose

a acusaccedilatildeo eacute caluniosa [castigue-o]288 com maior severidade e [cuide]289 para que natildeo fique

impunerdquo (I Apol 6810)

Uma nova questatildeo incide sobre o significado dessa acusaccedilatildeo ldquocaluniosardquo Justino

interpretou esse trecho como as acusaccedilotildees que maculavam injustamente a imagem dos

cristatildeos atribuindo-lhes canibalismo ateiacutesmo maiestas ou outras coisas desse tipo Segundo

esse tipo de interpretaccedilatildeo Adriano estaria reprovando a condenaccedilatildeo pelo nomen christianum

e recomendando que os governantes examinassem se existia de fato algum crime contra as

leis Ateacute esse ponto essa medida natildeo significaria nenhuma benevolecircncia para com os cristatildeos

apenas garantiria que fossem julgados como quaisquer outros no Impeacuterio sem que os

magistrados fossem movidos por gritarias puacuteblicas mas que se detivessem aos processos

formais Todavia uma segunda hipoacutetese eacute cogitada

Nessa hipoacutetese as acusaccedilotildees ldquocaluniosasrdquo agraves quais Adriano se refere poderiam natildeo ser

do mesmo tipo das que Justino tinha em mente em suas Apologias Elas poderiam se referir agrave

proacutepria acusaccedilatildeo de cristianismo lanccedilada sobre algueacutem com o intuito de levaacute-lo agrave condenaccedilatildeo

sob uma lei especiacutefica contra os cristatildeos Nessa perspectiva a exigecircncia de Adriano para que

se examinasse a comprovaccedilatildeo da denuacutencia seria uma medida semelhante agravequela tomada por

Pliacutenio exigindo que os acusados sacrificassem aos deuses e amaldiccediloassem a Cristo para que

assim se pudesse verificar se eram realmente cristatildeos A diferenccedila eacute que natildeo eacute possiacutevel

286 ROBINSON O F The criminal Law of ancient Rome Baltimore John Hopkins University Press 1996 pp 8100 287 O rescrito em latim que Euseacutebio dizia ter sido anexado originalmente por Justino foi substituiacutedo no MS Par Grae 450 pela traduccedilatildeo grega de Euseacutebio (MINNS D PARVIS P Justin philosopher and martyr apologies New York Oxford University Press 2009 p 265) 288 Adaptaccedilatildeo de ldquocastiga-ordquo para melhor leitura da frase 289 Originalmente ldquocuidardquo

55

conferir a carta de Graniano para fazer algum tipo de comparaccedilatildeo Desse modo natildeo haveria

nenhuma diferenccedila entre a posiccedilatildeo de Trajano e Adriano exceto a recomendaccedilatildeo desse uacuteltimo

para que os caluniadores fossem punidos Para sustentar essa teoria poreacutem torna-se

necessaacuterio admitir que o rescrito de Adriano foi sutilmente modificado pelos cristatildeos para

convertecirc-lo a favor da feacute cristatilde Se por um lado eacute faacutecil supor a modificaccedilatildeo desse documento

ndash o que poderia ter ocorrido ateacute em funccedilatildeo da sua traduccedilatildeo do latim para o grego ndash por outro

lado natildeo haacute outro documento desse tipo que comprove tal adulteraccedilatildeo e nem mesmo que

ratifique uma accedilatildeo intolerante de Adriano para com os cristatildeos Outra hipoacutetese deve ser

examinada e agora deveraacute levar em consideraccedilatildeo as leis agraves quais o rescrito se refere

No texto grego de Euseacutebio que agora aparece na I Apologia de Justino conforme o

MS A a conjugaccedilatildeo no particiacutepio plural presente ativo masculino do verbo prattontaj estaacute

relacionada agrave frase anterior Aproximando as frases o sentido que se tem eacute o seguinte ldquose os

provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo

que respondam a ela diante do tribunal [] faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam

alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delitordquo290 O texto

latino de Rufino eacute mais especiacutefico com essa associaccedilatildeo Si quis igitur accusat et probat

adversum leges quicquam agere memoratos homines pro merito peccatorum etiam suplicia

statues291 Nesse caso memoratos homines [homens mencionados] eacute uma expliacutecita referecircncia

aos Christianos Todavia tanto C Munier292 quanto D Minns e P Parvis293 ignoram a

palavra memoratos294 traduzindo o texto como se o rescrito se referisse ao modo geral de se

proceder em um julgamento ou seja a todos os homens cujos crimes fossem confirmados

Essa hipoacutetese forccedila o texto pois neste caso uma norma geral faria com que qualquer denuacutencia

precisasse ser provada pelo delator sob o risco de ser punido severamente caso natildeo fosse

confirmada pelas autoridades Desse modo esse tipo de sustentaccedilatildeo se converte em absurdo

Admitir que Adriano estivesse realmente orientando Minuacutecio Fundano a julgar

pessoalmente as denuacutencias contra os cristatildeos e exigir provas dos delatores que confirmassem

o descumprimento das leis natildeo significa que o imperador demonstrava simpatia pelo

cristianismo Sua preocupaccedilatildeo eacute manter a ordem e evitar os abusos Era preciso impedir que

290 I Apol 688-10 291 Apud MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 133 292 Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 pp 314-317 293 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 44264-267 294 Participio plural passado perfeito masculino acusativo que significa ldquotrazido agrave lembranccedilardquo ldquoditordquo ldquomencionadordquo ldquorelacionadordquo etc LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project)

56

as manifestaccedilotildees puacuteblicas solapassem o procedimento correto dos tribunais Haacute sim uma

diferenccedila significativa entre a postura de Trajano e a de Adriano mas ela natildeo torna o segundo

um amigo ou inimigo dos cristatildeos Cabe lembrar que uma das questotildees levantadas por Pliacutenio

a Trajano era se os cristatildeos deveriam ser punidos pela confissatildeo desse nome ou pelos crimes

subentendidos Naquele caso especiacutefico da Bitiacutenia uma das infraccedilotildees era quando os cristatildeos

se reuniam em seus cultos passar por cima da lei que impedia as reuniotildees e associaccedilotildees

gerais Abandonada essa praacutetica o governador natildeo via nenhum crime ou ameaccedila no modo de

ser dos cristatildeos e natildeo encontrou outra razatildeo para puni-los senatildeo pela contumaacutecia que

apresentavam diante de um magistrado em natildeo negar a feacute que era estranha aos olhos de Pliacutenio

A resposta de Trajano ainda que lacocircnica ratificou o procedimento de Pliacutenio e mesmo sem se

identificar um ldquocrimerdquo especiacutefico aprovou a condenaccedilatildeo dos cristatildeos pelo seu nomen para

desestimular a superstitio estranha e incentivar a retomada do culto puacuteblico pagatildeo Adriano

por outro lado tambeacutem sem fazer referecircncia a qualquer lei especiacutefica contra os cristatildeos

orienta os governantes a condenarem a todos aqueles que comprovadamente estivessem

infringindo a lei Tudo indica que a Aacutesia estava sendo agitada por mobilizaccedilotildees puacuteblicas que

impeliam os magistrados contra os cristatildeos Essa eacute a razatildeo para os apologistas Quadrato e

Aristides escreverem tambeacutem O nuacutemero dos cristatildeos ainda natildeo era muito significativo para o

estabelecimento de uma lei geral

Conforme destacou Jossa295 os cristatildeos se confrontavam com a opiniatildeo puacuteblica

Dentre o povo emergiram acusaccedilotildees de incesto infanticiacutedio e outras coisas do gecircnero A

rejeiccedilatildeo aos deuses e o estranhamento ao mos romanorum e o seu odio humanum generis

faziam com que os cristatildeos se tornassem a causa das desgraccedilas no Impeacuterio diante dos olhos de

uma boa parte dos pagatildeos No periacuteodo de Adriano a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos era apenas uma

questatildeo de ordem puacuteblica que constrangia o governo romano a uma difiacutecil obra de mediaccedilatildeo

entre os vaacuterios grupos locais Era um aspecto da poliacutetica de pacificaccedilatildeo das proviacutencias A sua

preocupaccedilatildeo estaacute relacionada exclusivamente a manter a ordem puacuteblica nas proviacutencias e a

garantir a observacircncia rigorosa do direito296 A hostilidade aos cristatildeos e os crescentes

confrontos obrigavam os governadores a intervirem e a consultarem o imperador em casos

como esse em que as coisas ameaccedilavam sair do controle

295 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125132 296 Na Digesta XXII53 o jurista Callistrato se reporta a uma seacuterie de rescritos dos quais cinco satildeo de Adriano a governadores das proviacutencias sobre o modo como escutar os textos nos processos e sobre o valor de dar a eles testemunho cf tambeacutem Dig XLVIII27

57

As respostas de Trajano e Adriano mostram que a repressatildeo puramente local do

cristianismo tinha um caraacuteter descontiacutenuo e excepcional que natildeo impedia a nova religiatildeo de

estender-se pelo Impeacuterio fazendo novos adeptos

23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos

Durante o governo de Antonino Pio (governou de 138-161) os tribunais continuavam

a receber queixas esporaacutedicas da populaccedilatildeo sobre os cristatildeos Marco Aureacutelio297 reconheceu

seu conservadorismo e o descreveu como algueacutem profundamente devoto aos deuses

romanos298 e sempre atento ao cumprimento do proacuteprio dever no culto puacuteblico

Segundo Meacuteliton que escreveu nos tempos de Marco Aureacutelio Antonino Pio natildeo

empreendeu nenhuma modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo que viesse a abater a Igreja e que

repetidamente nos rescritos dirigidos aos tessalonicenses aos atenienses e a todos os gregos

recomendou ldquonatildeo inovar nada sobre os cristatildeosrdquo299

Na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio (IV13) aparece um rescrito de Antonino ao

conselho da Aacutesia Satildeo levantados alguns argumentos contra a autenticidade desse documento

Destacam-se principalmente os erros de titulaccedilatildeo Tambeacutem se alega que suas caracteriacutesticas

formais natildeo sejam proacuteprias dos escritos de Antonino Pio Aleacutem disso o documento apresenta

uma exaltaccedilatildeo ao cristianismo Isso faz com que alguns rejeitem total300 ou parcialmente301

esse documento No entanto as condiccedilotildees da eacutepoca corroboram com a ideia de que o

imperador tenha de fato deliberado sobre essa questatildeo e J Beaujeu302 natildeo vecirc nenhuma razatildeo

para duvidar da existecircncia de um rescrito de Antonino Pio G Jossa303 e C G Roman304

297 Pensamentos I16 298 Marco Aureacutelio Pensamentos VI3014 299 apud Euseacutebio His EclesIV2610 300 Cf SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 1954 pp 190ss SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 301 Cf FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 302 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp 279-329 303 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 148 304 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 228

58

admitem-no com reservas e P Keresztes305 sustenta que por haver um comentaacuterio tanto

negativo quanto positivo sobre os cristatildeos natildeo deveria se tratar de uma falsificaccedilatildeo O modo

como tal texto foi preservado na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio eacute controverso e merece um

exame cauteloso

Pela sequecircncia do texto entende-se que Euseacutebio falaraacute de Antonino Pio Ele anuncia o

nome de Antonino que tambeacutem foi uma forma de se referir a Marco Aureacutelio mas comeccedila a

citaccedilatildeo do texto com ldquoO imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto Armecircnio

pontiacutefice maacuteximo tribuno da plebe pela deacutecima quinta vez cocircnsul por trecircs vezes ao conciacutelio

da Aacutesia saudaccedilotildeesrdquo306 A secccedilatildeo de IV82-5 apresenta um comentaacuterio que dificilmente

poderia ser admitido como autecircntico por isso esta eacute a parte que sofre maior oposiccedilatildeo Trata-se

de uma repreensatildeo moral do imperador aos provincianos O nuacutecleo seguinte do texto agraves vezes

eacute admitido como histoacuterico como sustenta C G Roman307 Lecirc-se

Em favor destes jaacute escreveram a nosso diviniacutessimo pai muitos governadores das proviacutencias aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados a natildeo ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder puacuteblico de Roma Tambeacutem a mim muitos me falaram sobre eles e tambeacutem respondi seguindo o parecer de meu pai Mas se algueacutem persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles fique o acusado livre de encargos ainda que seja evidente que eacute cristatildeo por outro lado o acusador ficaraacute sujeito a castigo Publicado em Eacutefeso no concilio da Aacutesia (Hist Ecles IV136-7)308

O contexto e as evidecircncias internas mostram que o rescrito pretende ser de Antonino

Pio Em siacutentese o texto afirma que sob seu governo natildeo se modificou em nada o que foi

estabelecido por Adriano A liberaccedilatildeo de um cristatildeo acusado em funccedilatildeo da denuacutencia de outro

cristatildeo que insiste em levaacute-lo ao tribunal natildeo faz muito sentido Pode-se imaginar que

desavenccedilas entre cristatildeos fizessem com que um cristatildeo procurasse se livrar do seu adversaacuterio

denunciando-o agraves autoridades para que fosse condenado mas eacute inimaginaacutevel que essa fosse

uma preocupaccedilatildeo de um imperador pagatildeo Eacute provaacutevel tenha sofrido uma adaptaccedilatildeo cristatilde

Mesmo despertando ceticismo sobre sua autenticidade esse rescrito pode traduzir com

reservas a situaccedilatildeo dos cristatildeos daquela eacutepoca Neste caso a compreensatildeo da condiccedilatildeo dos

cristatildeos nesse periacuteodo depende em parte da compreensatildeo da postura de Adriano diante dos

cristatildeos Euseacutebio havia interpretado o rescrito de Adriano como uma medida que beneficiava

os fieacuteis e consequentemente vecirc como positivo o rescrito de Antonino Pio No entanto

consideram as conclusotildees especificadas sobre o rescrito de Adriano nesta pesquisa se Pio natildeo

305 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 306 Euseacutebio Hist Ecles IV131 307 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 230-231 308 Ibid

59

adicionou em nada agravequela determinaccedilatildeo os cristatildeos continuavam a serem viacutetimas de

condenaccedilotildees locais e os governantes tinham liberdade para julgar cada caso

Nesse periacuteodo ocorre o martiacuterio do Papa Teleacutesforo e o processo contra Tolomeu e

Luacutecio sob o prefeito de Roma Lollio Urbico mencionados na II Apologia de Justino (21ss)

O repuacutedio da novidade e irracionalidade da feacute dos cristatildeos aparece nos escritos de Eacutelio

Aristides309 e nas vozes populares inferiores referidas por Luciano (De morte Peregrini 11)

Sobre o martiacuterio de Policarpo haacute divergecircncias Jossa310 sustenta que ele padeceu sob Marco

Aureacutelio mas o tipo de perseguiccedilatildeo recebida natildeo foi diferente daquela pela qual padeceram os

cristatildeos condenados sob Antonino Pio Tumultos e agitaccedilotildees puacuteblicas foram problemas que

Adriano havia procurado resolver

As acusaccedilotildees de ldquoateiacutesmordquo sofridas pelos cristatildeos que aparecem na primeira parte do

rescrito satildeo pertinentes ao periacuteodo311 Esse tipo de acusaccedilatildeo levou o proacuteprio Justino a incluir

esse tema nas suas Apologias312 Eacute certo como destaca Keresztes313 que ldquoateiacutesmordquo natildeo era

um crime de fato E em segundo lugar diante das cataacutestrofes aqueles que professavam

orgulhosamente a inexistecircncia dos deuses pagatildeos tornavam-se a explicaccedilatildeo mais provaacutevel

para o distuacuterbio da pax deorum314 Haacute indiacutecios no rescrito de Antonino que esse temor dos

pagatildeos diante das forccedilas da natureza tambeacutem corroborava com o combate aos cristatildeos315

A principal queixa de Justino na deacutecada de 150 dC era a de que natildeo seria justo

algueacutem ser condenado simplesmente por professar ser ldquocristatildeordquo316 O apologista tece sua

reivindicaccedilatildeo considerando o que pensa ser ldquojustordquo e assim tambeacutem apresenta uma peticcedilatildeo

309 Aristides (Orationes XLVI309) fala dos cristatildeos como ldquoos iacutempios da Palestinardquo que se distanciavam dos costumes gregos e natildeo honravam os deuses 310 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125132 311 ldquoA estes estais empurrando para a agitaccedilatildeo uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateusrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV133) 312 I62 313 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 p 17 314 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam e comparais nossa situaccedilatildeo agrave suardquo (Hist Ecles IV134) [Os seguintes infortuacutenios e prodiacutegios ocorridos em seu reino a fome a qual jaacute mencionamos o colapso do Circus e o terremoto por meio do qual as cidades de Rodes e da Aacutesia foram destruiacutedas] Adversa eius temporibus haec provenerunt fames de qua diximus Circi ruina terrae motus quo Rhodiorum et Asiae oppida conciderunt quae omnia mirifice instauravit et Romae incendium quod trecentas quadraginta insulas vel domos absumpsit (Hist Aug Vita Antoninus IX1) Dion Cassius escreveu que ldquoNos dias de Antonino tambeacutem um terriacutevel terremoto ocorreu na regiatildeo da Bitinia e de Helesponto Vaacuterias cidades foram severamente danificadas ou caiacuteram em ruiacutenas em particular Cizicus e o templo de laacute que era o maior e mais belo de todos os templo foi lanccedilado abaixordquo (Hist Rom LXX 4) Ἐπὶ τοῦ Ἀντωνίνου λέγεται καὶ φοβερώτατος περὶ τὰ microέρη τῆς Βιθυνίας καὶ τοῦ Ἑλλησπόντου σεισmicroὸς γενέσθαι καὶ ἄλλας τε πόλεις καmicroεῖν ἰσχυρῶς καὶ πεσεῖν ὁλοσχερῶς καὶ ἐξαιρέτως τὴν Κύζικον καὶ τὸν ἐν αὐτῇ ναὸν microέγιστόν τε καὶ κάλλιστον ναῶν ἁπάντων καταρριφῆναι 315 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegamrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV134) 316 I Apol 41-7

60

reinterpretando o rescrito de Adriano317 Desse modo em exigecircncia mediante o que chama de

ldquosatilde razatildeordquo ele sustenta ser justo que os cristatildeos sejam julgados quando porventura vierem a

cometer alguma falta contra a lei ou por algum delito mas nunca por se chamarem ldquocristatildeosrdquo

Eacute em funccedilatildeo do que representava ser ldquocristatildeordquo que o apologista se dedica a algumas

explicaccedilotildees Em sua anaacutelise era por causa do preconceito das crenccedilas pagatildes dos boatos

maliciosos e ainda por certo impulso irracional por parte dos ldquooutrosrdquo que os cristatildeos eram

ofendidos318 O caso de uma mulher que se divorciou do marido pagatildeo narrado na II Apologia

eacute outro exemplo dos atritos corriqueiros que poderiam chegar aos tribunais Segundo o

apologista ldquotodo aquele que eacute repreendido pelo pai vizinho filho amigo marido ou mulher

por causa de uma falta se volta contra [os cristatildeos] por sua obstinaccedilatildeo no mal por seu amor

ao prazer e por sua impotecircncia para seguir o que eacute bomrdquo319 Aleacutem desse caso emblemaacutetico

acontecido havia pouco tempo na cidade de Roma sob Urbico320 ele acrescenta que tais accedilotildees

tambeacutem eram comuns aos governadores em todo o Impeacuterio e que ldquoem todas as partesrdquo havia

quem estivesse disposto a levar os seguidores de Cristo agrave morte321 Em ambas as Apologias

Justino escreve como quem procura alertar o imperador sobre os abusos cometidos contra os

cristatildeos Devido agrave ausecircncia de uma lei geral contra os fieacuteis as accedilotildees anticristatildes aparecem

como fruto dos distuacuterbios locais que emergiam em resistecircncia agrave nova religiatildeo A I Apologia

parece se referir aos atritos gerais contra os cristatildeos enquanto a segunda comeccedila com um

clamor a partir de um caso especiacutefico ocorrido em Roma sob o prefeito Urbico A II Apologia

daacute sinais de que as disputas de Justino com Crescente na capital imperial levavam o

apologista a prever o seu martiacuterio que soacute viria a acontecer no iniacutecio do governo de Marco

Aureacutelio

Marta Sordi322 assim como Robert M Grant323 identifica trecircs fases na poliacutetica

imperial de Marco Aureacutelio mas as duas uacuteltimas extrapolam o contexto em que se insere

Justino A primeira fase se relaciona ao periacuteodo da corregecircncia entre Marco Aureacutelio e Lucio

Vero de 161 a 169 que corresponde em parte aos uacuteltimos anos de Justino Esta fase revela a

princiacutepio a mesma condiccedilatildeo do governo de Antonino Pio mas pode ter sofrido mudanccedilas no

final da deacutecada

317 I Apol 681-10 318 I Apol 23 319 II 12 320 Quintus Lollius Urbicus havia sido incumbido por Adriano na Guerra Judaica (133-135 dC) governou a Germania Menor (136-138 dC) e a Britania (139-142 dC) e foi prefeito de Roma de 146 a 160 dC (Historiae Augustae 54) 321 II 11-2 322 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103 323 Five apologists and Marcus Aurelius Vigiliae Christianae V 42 n 1 Mar1988 pp 1-17

61

Algumas fontes cristatildes (Atas do martiacuterio de Justino 58324 Oroacutesio Historiae Adversus

PaganusVII154325) vinculam a intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo a um edito sobre sacrifiacutecios

Natildeo se tratava de um decreto diretamente contra os cristatildeos A determinaccedilatildeo exigia sacrifiacutecios

aos deuses por todas as cidades do Impeacuterio nos anos de 166168 e devia estar relacionada aos

temores devido agrave peste agrave guerra na Partia e agrave pressatildeo germacircnica326 Justino foi provavelmente

condenado por se negar a obedecer ao novo decreto mas suas Apologias refletem a situaccedilatildeo

dos cristatildeos sob Antonino Pio

Por meio de uma leitura do seu tempo Justino contemplaraacute em seu discurso os

fundamentos desse tipo de accedilotildees Ele apresenta uma desconstruccedilatildeo da forma de controle que

proporciona agreccedilotildees aos cristatildeos e entatildeo oferece uma concepccedilatildeo cristatilde para fundamentar o

estabelecimento da ordem social

O apologista compotildee uma argumentaccedilatildeo para mostrar que a religiatildeo cristatilde poderia

contribuir para a estabilidade da ordem social no Impeacuterio e oferece uma reflexatildeo sobre os

fundamentos da noccedilatildeo de justiccedila na perspectiva cristatilde Por meio do exame do discurso de

Justino identificam-se dois aspectos da relaccedilatildeo entre religiatildeo e controle social no Impeacuterio

Romano contemplados nas accedilotildees anticristatildes de seu tempo O primeiro eacute representado na sua

anaacutelise da repressatildeo aos cristatildeos em funccedilatildeo da preservaccedilatildeo da ordem e o segundo na sua

proposta de contribuiccedilatildeo dos cristatildeos para a manutenccedilatildeo da ordem

324 ldquoAqueles que natildeo desejarem sacrificarem aos deuses e se submeterem ao decreto imperial satildeo condenados primeiro a serem castigados e depois agrave pena capital conforme a leirdquo (Tr A) kai ei=xai tw| tou auvtokragmati( mastigwqevtej avpacqhtwsan( kefalikhn avpotinnuntej dikhn( kata thn twn nomwn avkoluqian) cf Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 p152 325 Eo defuncto Marcus Antoninus solus reipublicae praefuit sed in diebus Parthici belli persecutiones Christianorum quarta iam post Neronem uice in Asia et in Gallia graues praecepto eius exstiterunt multique sanctorum martyrio coronati sunt Cf OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889 326 SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103

62

CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE

MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM

Ao escrever suas Apologias em defesa dos cristatildeos e endereccedilaacute-las ao imperador

Justino se posiciona tanto como um profeta da antiga monarquia de Israel quanto como um

filoacutesofo conselheiro que se prontifica a oferecer conselhos ao governante Eacute possiacutevel

estabelecer uma analogia entre essas duas posturas nesse caso pois para esse pensador o

cristianismo ndash que em certo sentido eacute para os cristatildeos o cumprimento das expectativas de

Israel ndash eacute a ldquoverdadeira filosofiardquo327 Eacute a partir dessa sua perspectiva cristatilde que ele analisa a

forma romana de garantir o estabelecimento da ordem no tocante agrave religiatildeo e que manifesta

suas razotildees para se opor agrave religiatildeo pagatilde

Sua construccedilatildeo apologeacutetica contrasta tal forma de controle romana que acaba por

vitimar os cristatildeos agrave contribuiccedilatildeo cristatilde para a ordem social Seus pronunciamentos agraves vezes

satildeo muito diretos aos governantes ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem

e natildeo tenhais a quem castigar coisa que conviria melhor a verdugos do que a priacutencipes

bonsrdquo328 Na verdade o problema central incide sobre as formas de controle sociais

empregadas para a repressatildeo da expansatildeo dessa nova religiatildeo Por isso os argumentos de

Justino tecircm por objetivo combater algumas das principais queixas sobre os cristatildeos e tambeacutem

informar sobre o caraacuteter de suas crenccedilas e estilo de vida

Nessa parte da pesquisa seraacute analisada a forma como o apologista tece suas criacuteticas ao

procedimento romano contra a religiatildeo cristatilde e agrave postura dos cristatildeos diante dessas outras

religiotildees A proposta de Justino sobre os fundamentos cristatildeos para o controle social seraacute

examinada no proacuteximo capiacutetulo Sua interrogaccedilatildeo eacute a mesma que ainda voltou agrave tona no

seacuteculo XX com G E M de Ste Croix329 em 1963 com A N Sherwin-White330 em 1964 e

com o proacuteprio Ste Croix331 em uma treacuteplica ldquoWhy were the Early Christians persecutedrdquo

Segundo GEM de Ste Croix as perseguiccedilotildees aos cristatildeos eram decorrentes

basicamente da recusa desse grupo em reconhecer os deuses de Roma acarretando uma

situaccedilatildeo de suspeitas de sediccedilatildeo e periculosidade social Os deuses tradicionais do panteatildeo

greco-romano eram as divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma e seus cultos eram

327 II Apol 152 328 I Apol 124 329 Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p6-38 330 Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 331 Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 p28-33

63

uma necessidade para a manutenccedilatildeo da pax deorum [paz dos deuses]332 A perseguiccedilatildeo se

relacionaria ao sentimento religioso da eacutepoca supersticiosa na qual eles viviam333

A N Sherwin-White334 de modo diverso desviou a tocircnica da perseguiccedilatildeo da questatildeo

da pax deorum e lanccedilou seu olhar agrave contumaacutecia dos cristatildeos em se manterem fieacuteis agraves suas

crenccedilas exclusivistas diante do panteatildeo greco-romano Tal postura teria sido interpretada em

muitos momentos como um desafio agraves autoridades romanas Desse modo atrairiam para si

mesmos acusaccedilotildees e suspeitas em decorrecircncia de sua potencial insubordinaccedilatildeo conforme

pode ser visto nas Cartas de Pliacutenio o Jovem a Trajano335

A treacuteplica de GEM Ste Croix336 natildeo colocou um ponto-final na questatildeo e

incomodou a outros estudiosos contemporacircneos Segundo Paul Veyne as comunidades cristatildes

enfrentaram resistecircncias devido agrave aversatildeo romana ldquoao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguordquo337

O fato de o grupo ser ainda pouco conhecido e sustentar a veneraccedilatildeo a um ldquoreirdquo na esperanccedila

de um reino torna a situaccedilatildeo ainda mais complicada Tal hibridez alegada seria notada tendo

em vista que embora possuindo as mesmas categorias de pensamentos dos demais cidadatildeos do

Impeacuterio Romano

os cristatildeos faziam parte do Impeacuterio mas sem os mesmos costumes evitavam conviver com os outros natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo veneravam os deuses nacionais seu Deus natildeo pertencia agrave determinada naccedilatildeo diferente do deus dos judeus Aleacutem de querer se isolar como uma legiacutetima diferenccedila nacional esse Deus pretendia superar os deuses nacionais338

Nesse sentido as perseguiccedilotildees teriam sido causadas pela rejeiccedilatildeo a algo pouco

definido anormal capaz de produzir inseguranccedilas e exigir uma medida cautelar E para

justificar as accedilotildees persecutoacuterias os romanos lanccedilavam matildeo de argumentos tradicionais como

o respeito ao mos maiorum [os costumes ancestrais] e o respeito agrave unidade religiosa e moral

da coletividade

Mesmo apresentando explicaccedilotildees diferentes sobre as perseguiccedilotildees as consideraccedilotildees

de Sherwin-White Ste Croix e Paul Veyne natildeo satildeo completamente opostas Se por um lado

observamos a posiccedilatildeo obstinada dos cristatildeos em manter a sua religiatildeo a ponto de se tornar

332 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p 24 333 Ibid 1963 pp 29-31 Cf DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963 334 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n 27 1964 pp 25 335 Pliacutenio Segundo Cartas X 96-97 336 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 337 VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 338 Ibid p 246

64

uma desobediecircncia contra as autoridades imperiais por outro a religiatildeo romana se baseava na

manutenccedilatildeo do equiliacutebrio das relaccedilotildees entre o Impeacuterio Romano e os deuses tradicionais

Essas explicaccedilotildees decorrem de uma anaacutelise geral das accedilotildees anticristatildes do I ao IV

seacuteculo Um exame mais localizado ndash e em niacuteveis menos oficiais ndash poderia multiplicar as

razotildees pelas quais os cristatildeos foram perseguidos ou chamar a atenccedilatildeo para o fator psicoloacutegico

desses atritos religiosos Essa pesquisa no entanto limitar-se aos aspectos que possibilitem

uma leitura das accedilotildees anticristatildes a partir das Apologias de Justino

O apologista tambeacutem se propotildee a responder a esta questatildeo ldquoPor que os cristatildeos satildeo

perseguidosrdquo Sua leitura teoloacutegica da histoacuteria procura chegar agrave causa uacuteltima motivadora das

accedilotildees anticristatildes desenvolvendo uma trama apologeacutetica que relaciona controle social e

religiatildeo Para compreender suas formulaccedilotildees conveacutem analisar esse conceito chave

ldquoControle socialrdquo pode ser definido como ldquoo conjunto dos recursos materiais e

simboacutelicos que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de

seus membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo339 O termo de

modo geral eacute frequentemente usado para se referir a alguma forma de reaccedilatildeo organizada ao

comportamento pervertido Essa abordagem eacute baseada o trabalho de Stan Cohen que definiu

controle social como ldquorespostas organizadas ao crime delinquecircncia e formas aliadas de

perversatildeo eou comportamento socialmente problemaacutetico os quais satildeo atualmente concebidos

se no reativo sentido (depois do putativo ato ter tomado espaccedilo ou o ator ter sido identificado)

ou no proativo sentido (para prever os atos)rdquo340

A definiccedilatildeo usada por Donald Black341 eacute muito semelhante Ele assinalou que

ldquocontrole social eacute o aspecto normativo da vida social ou a definiccedilatildeo de comportamento

pervertido e a resposta a ele tal como proibiccedilotildees acusaccedilotildees puniccedilotildees e compensaccedilatildeordquo

Segundo esta afirmaccedilatildeo controle social se refere aos mecanismos determinantes usados para

regular a conduta das pessoas que satildeo vistas como pervertidas criminosas preocupantes ou

problemaacuteticas em algum sentido para os outros Todo tempo os sentidos nos quais diferentes

culturas entendem e respondem a diferentes formas de mudanccedilas e ajustes de comportamentos

problemaacuteticos

A causa desses problemas pode ser atribuiacuteda agrave criminalidade perversatildeo imoralidade

maldade perversidade ou alguma combinaccedilatildeo desses Similarmente os mecanismos

empregados para alcanccedilar o controle podem incluir formas variadas de puniccedilatildeo tratamento

339 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 340 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 p 3 341 BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press 1976 pp 1-2

65

dissuasatildeo segregaccedilatildeo ou prevenccedilatildeo342 Desse modo se a combinaccedilatildeo de fatores eacute usada para

compreender e reatar o problema o objetivo eacute promulgar o controle sobre o comportamento

que eacute visto como pervertido em algum sentido

A complexidade do tema se manifesta ainda quando R Meier343 considera que

controle social pode ser encontrado em trecircs principais contextos a) como uma descriccedilatildeo da

condiccedilatildeo ou processo social baacutesico ndash definiccedilatildeo dominante na teoria socioloacutegica claacutessica ndash b)

como um mecanismo para assegurar o cumprimento das normas e c) como um meacutetodo pelo

qual estudar (ou interpretar dados sobre) a ordem social Cohen retoma Joseph Rouceck344

que escreveu em 1947 entendendo controle social como ldquoum termo coletivo para aqueles

processos planejados ou natildeo planejados pelos quais indiviacuteduos satildeo ensinados ou compelidos

a conformar os usos e valores vitais dos gruposrdquo E A Horwitz345 que considerava que o

ldquocontrole social emerge da vida e das praacuteticas sociais e serve para manter o sentido da vida e

das praacuteticas sociais dos gruposrdquo Muitos diriam que tal descriccedilatildeo se aproxima mais dos

processos de socializaccedilatildeo E natildeo eacute preciso ir muito longe para perceber que os dilemas desse

conceito podem vir a ser complexos Tatildeo logo manifesta-se a necessidade de estabeler os

limites desse termo de modo que natildeo seja tatildeo limitado e que tambeacutem natildeo seja tatildeo amplo a

ponto de natildeo ser reconhecido

Segundo a anaacutelise de Martin Innes346 a definiccedilatildeo de Cohen permanece muito flexiacutevel

para mostrar a promulgaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social pelo Estado ou por agentes

profissionais autocircnomos tais como funcionaacuterios de corporaccedilotildees privadas e psiquiatras As

pessoas tendem a usar outros meios antes de recorrer ao aparato formal estabelecido de

controle social subcolocados como satildeo pela lei Mais conflitos satildeo resolvidos sem recursos da

lei ou controle social formal Uma soluccedilatildeo eacute frequentemente negociada ou a perversatildeo

tolerada e a imposiccedilatildeo do controle social tende a ser uma funccedilatildeo de elevada distacircncia

relacional Por isso a extensatildeo do desempenho do controle social atinge tambeacutem um caraacuteter

informal na sociedade

A definiccedilatildeo de controle social como uma resposta organizada a comportamentos

pervertidos natildeo eacute consensual Mas na busca por uma definiccedilatildeo que se adapte aos objetivos

desse trabalho seratildeo levadas em consideraccedilatildeo as proposiccedilotildees de Martin Innes347 Ele sintetiza

342 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 passim 343 MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology 1982 8 pp 35ndash55 344 Social Control Westport CT Greenwood Press 1970 p 3 345 The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990 p 5 346 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 347 Ibid

66

os aspectos da definiccedilatildeo de Cohen em uma abordagem revisionista Seu argumento eacute que

controle social pode ser pensado como um conceito-mestre composto de uma raiz de

diferentes modos de controle e tecnologias

Para estabelecer os limites desse conceito de controle social tambeacutem eacute necessaacuterio

estabelecer conceitos paacutereos como ldquoordem socialrdquo Segundo Erwin Goffman348 as relaccedilotildees

regulares entre as pessoas os variados padrotildees de funcionamento variadamente motivados

de comportamento as rotinas associadas com regras baacutesicas juntos constituem o que pode ser

chamada de uma ldquoordem socialrdquo

Baseando-se nesta definiccedilatildeo pode-se distinguir entre o significado de ordem social e

controle social A promulgaccedilatildeo de controle social eacute frequentemente destinada a proteger a

ordem social mas ordem social natildeo eacute unicamente produto de controles sociais Ao contraacuterio

o conceito de ordem social se refere agraves condiccedilotildees de existecircncia de uma sociedade De fato

toda sociedade tem intrinsecamente um grau de organizaccedilatildeo e entatildeo uma ordem social Uma

ordem social natildeo eacute estaacutetica estaacute constantemente em processo sendo produzida e reproduzida

pela combinaccedilatildeo de atitudes valores praacuteticas instituiccedilotildees e accedilotildees de seus membros

Entatildeo a ordem social eacute composta de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees

as quais de alguma forma contribuem para a constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social As

fronteiras entre as praacuteticas de organizaccedilatildeo social e controles sociais natildeo satildeo fixas nem

estaacuteveis e ao longo do tempo mudam de equiliacutebrio Pois se ordem social se refere ao estado

da sociedade e ao arranjo organizado de seu essencial conhecimento valores accedilotildees

instituiccedilotildees e estabelecimentos controle social se refere aos processos pelos quais se busca

gerir desvios ou conflitos com a ordem social Essas formas de gerenciamento podem ser

formais ou seja institucionalizadas ou informais

Controle social formal se refere a alguma ocasiatildeo onde a imposiccedilatildeo do controle eacute

baseada sobre ou informada por a presenccedila da lei Outras atividades de controle podem ser

definidas como tipo informal349 Dentre essas formas de controle tambeacutem eacute possiacutevel distinguir

os modos reativos e os proativos O primeiro tipo eacute aquele usado para responder algumas

coisas depois que elas tecircm tomado espaccedilo O segundo envolve o caacutelculo da probabilidade de

um ato ocorrer no mesmo ponto no futuro e a manufatura de alguma forma de intervenccedilatildeo em

antecipaccedilatildeo deste Essa eacute uma forma preditiva de controle Tambeacutem eacute possiacutevel distinguir entre

formas de controle social ldquoverticalrdquo para falar sobre o poder diferencial que frequentemente

existe entre controladores e os controlados Controle social para baixo eacute mais comum

348 GOFFMAN E Relations in Public New York Basic Books 1971 p x 349 Cf BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press passim

67

envolvendo alguns com mais poder ou autoridade de regulaccedilatildeo do comportamento de

indiviacuteduos ou grupos menores Contudo o controle social tambeacutem pode ser ldquoupwardsrdquo [para

cima] envolvendo os menos poderosos moldando o comportamento de indiviacuteduos ou grupos

mais poderosos

Eacute numa perspectiva ldquode baixo para cimardquo que Justino questiona a forma de controle

empreendida pelos governantes romanos quando agem contra os cristatildeos Essa perspectiva

contempla as condiccedilotildees do grupo minoritaacuterio daqueles que satildeo considerados adeptos de uma

superstito digna de ser combatida por aqueles que detecircm os meios de controle e dessa forma

eacute produzido um instrumento de controle que busca ldquoconvencerrdquo e intimidar as autoridades e a

todos os demias a natildeo se oporem aos cristatildeos Embora reconheccedila que os governantes satildeo

constituiacutedos por Deus eacute aquilo que ele chama de ldquoreta razatildeordquo que lhe daacute o direito de se

pronunciar350 As autoridades romanas soacute satildeo buscadas porque os conflitos cotidianos quanto

agraves diferenccedilas religiosas produziram atritos e inquietaccedilotildees que abriram margem para que os

romanos aplicassem coaccedilotildees ldquoformaisrdquo Ao questionar a intervenccedilatildeo imperial para a

manutenccedilatildeo da ordem o apologista revela refugiar-se em um padratildeo de justiccedila distinto

daquele dos romanos Em seus escritos ele tambeacutem manifesta uma perspectiva cristatilde da

ordem que seraacute analisada no proacuteximo capiacutetulo

Para se compreender as proposiccedilotildees de Justino seratildeo examinados os seguintes

aspectos a criacutetica aos governantes no processo de manutenccedilatildeo da ordem no tocante aos

cristatildeos as diferenccedilas entre os cristatildeos e as outras religiotildees e sua criacutetica sobre as leis e a

moralidade

31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem

Na I Apologia logo apoacutes o exoacuterdio Justino procura justificar suas razotildees agraves

autoridades agraves quais se refere em peticcedilatildeo Ele escreve que

todo homem sensato manifestaraacute que a melhor exigecircncia ou ainda mais que a uacutenica exigecircncia justa eacute que os suacuteditos possam apresentar uma vida e um pensar irrepreensiacuteveis e que por outro lado igualmente os mandantes deem sua sentenccedila

350 ldquoA razatildeo exige dos que satildeo verdadeiramente piedosos e filoacutesofos que desprezando as opiniotildees dos antigos se estas satildeo maacutes estimem e amem apenas a verdade De fato o raciociacutenio sensato natildeo soacute exige que se abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente mas tambeacutem que o amante da verdade de todos os modos e acima da proacutepria vida mesmo que seja ameaccedilado de morte deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiccedilardquo (I Apol 12)

68

natildeo levados pela violecircncia e tirania mas segundo a piedade e a filosofia Soacute assim governantes e governados podem gozar de felicidade351

O bom procedimento dos suacuteditos conjugado agrave postura iacutentegra de justiccedila daqueles que

tecircm autoridade aparece como condiccedilatildeo para que ldquogovernantesrdquo e ldquogovernadosrdquo desfrutem da

felicidade O que mais chama atenccedilatildeo eacute a seguinte expressatildeo ldquoem algum lugar um dos

antigos disse lsquoSe os governantes e os governados natildeo forem filoacutesofos natildeo eacute possiacutevel os

Estados prosperaremrsquordquo352 Tanto Munier353 quanto Minns e Parvis354 identificam esse trecho

como uma citaccedilatildeo de Platatildeo (Repuacuteblica V 473) Na obra de Platatildeo fica claro o apontamento

da necessidade de que os governantes adiram ao cultivo da sabedoria numa junccedilatildeo de

δύναmicroίς τε πολιτικὴ καὶ φιλοσοφία [poder poliacutetico e filosofia] para que natildeo haja problemas

sociais

Justino ressignifica o conceito de ldquofilosofiardquo a partir da sua experiecircncia cristatilde Desse

modo aqueles que satildeo ldquopiedosos e filoacutesofosrdquo como satildeo chamados o imperador e seus filhos

deveriam julgar com retidatildeo para que todos gozem de bem estar

Haacute vaacuterias hipoacuteteses para justificar o tiacutetulo ldquoPiordquo de Antonino Uma hipoacutetese eacute que esse

nome lhe fora dado por ter defendido a deificaccedilatildeo dedicaccedilatildeo de um templo e concessatildeo de

inuacutemeras honras a Adriano Outras hipoacuteteses levam em conta seu caraacuteter e sua maneira de

ser355 ldquoVerissimusrdquo356 era uma denominaccedilatildeo de Marco Annio Vero que viria a ser o

Imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto O modo como esse apelido eacute empregado

no texto indica provavelmente uma estrateacutegia retoacuterica de Justino Marco era

reconhecidamente chamado de ldquofiloacutesofordquo357 Seus proacuteprios escritos eliminam qualquer

indagaccedilatildeo Poreacutem quando Luacutecio eacute chamado de ldquofiloacutesofordquo isso pode soar estranho Mas antes

de se rejeitar esse tiacutetulo eacute mais prudente tentar compreender se existe uma ligaccedilatildeo isotoacutepica

com a estrutura do texto Se os tiacutetulos ldquoPiordquo e ldquofiloacutesofordquo respectivamente de Antonino e de

Marco Aureacutelio apresentam um forte viacutenculo com a construccedilatildeo do cerne da obra haacute boa razatildeo 351 I Apol 32 Cf Kalhn de kai monhn dikaian proltsgtklhsin tauthn paj o` swfronwn avpofaneitai( to touj avrcomenouj thn euvqunhn tou eautwn biou kai logou alhpton parecein( o`moiwj drsquoauv kai touj arxontaj mh bia| mhde turannidi( avllrsquo euvsebeia| kai filosofia| avkolouqountaj thn yhfon tiqesqai ou[twj gar avrcontej kai oi` avrcomenoi avpolauoien tou avgaqou) MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 352 I Apol 33 Cf An mh oi` arcontej filosofhswsi [kai oi` avrcomenoi]( ouvk av eih taj poleij euvdaimonhsai) Cf MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 353 MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p 172 354 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 85 355 Hist Aug Antoninus Pius 21-10 356 Ele foi carinhosamente chamado ldquoVeriacutessimordquo [Ouvrissiacutemon] como apontou Cassius Dio (Hist Rom 69212) e como aparece tambeacutem na Hist Aug I41 357 Hist Aug Marcus Aurelius 15-9

69

para buscar uma hipoacutetese que aluda agrave possiacutevel relaccedilatildeo do tiacutetulo de Luacutecio com o restante do

texto

Luacutecio foi adotado por Antonino ao mesmo tempo em que Marco e se tornou Luacutecio

Aeacutelio Aureacutelio Commodo Com a morte de seu pai adotivo recebeu o tiacutetulo de Imperador

Ceacutesar como esse seu irmatildeo mas a dimensatildeo do seu poder eacute amplamente questionada Minns e

Parvis358 consideram que nos tempos de sua ldquosaiacutedardquo para as regiotildees do Impeacuterio em 153 ou

154 poderia ser mais prudente incluiacute-lo entre os destinataacuterios Ele eacute chamado de ldquofiloacutesofo

[filosofw|] filho natural de Ceacutesarrdquo no MS A e de filosofou kaisaroj fush| ui`w| [Filho

natural do filoacutesofo Ceacutesar] por Euseacutebio359 Esse tiacutetulo natildeo poderia ser atribuiacutedo ao pai

bioloacutegico de Luacutecio Segundo os registros da Historia Augusta seu pai Luacutecio Aeacutelio Vero

recebeu realmente o tiacutetulo de Ceacutesar do Imperador Adriano mas morreu sem chegar ao posto

elevado Por outro lado haacute evidecircncias suficientes para Justino chamar a Luacutecio filho natural

de Ceacutesar e filho de Pio por adoccedilatildeo de ldquoamante do saberrdquo o que equivaleria a dizer que tinha

uma formaccedilatildeo baacutesica

O tiacutetulo ldquofiloacutesofordquo natildeo se referia a apenas um exiacutemio pensador O filoacutesofo podia ser

algueacutem que se dedicava aos assuntos filosoacuteficos que frequentava alguma escola ou grupo de

discussatildeo ou algueacutem de reconhecido destaque intelectual podendo ser considerado ateacute um

embaixador em assuntos poliacuteticos360 Luacutecio poreacutem natildeo apresentou dons naturais para os

estudos literaacuterios Compocircs versos e oraccedilotildees mas suas habilidades poeacuteticas eram muito

limitadas Haacute quem diga que ele foi ajudado pela inteligecircncia de seus amigos e que muitas das

coisas creditadas a ele foram escritas por outros361 A despeito de Luacutecio ser ndash ou natildeo ndash

reconhecidamente um filoacutesofo essa denominaccedilatildeo podia render uma associaccedilatildeo desses nomes

ao cultivo do saber em geral e da piedade Se por outro lado o tiacutetulo de filoacutesofo viesse a ser

improacuteprio comparado agrave pertinecircncia da forma como Marco Aureacutelio eacute chamado abre-se espaccedilo

para uma nova hipoacutetese Seria esta uma estrateacutegia para chamar a atenccedilatildeo para as proacuteximas

colocaccedilotildees quando o apologista destaca aqueles que dizem ser filoacutesofos e natildeo o satildeo Mais do

que isso o apologista precisa de um elemento que viabilize a abertura de um espaccedilo textual

para a apresentaccedilatildeo do que ele considera ldquoa verdadeira filosofiardquo isto eacute o cristianismo

358 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 38-39 359 Hist Ecle IV121ss 360 DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940 361 Hist Aug Lucius Verus 21ss

70

Justino conheceu vaacuterias correntes filosoacuteficas Uma variedade de escolas poderia ser

encontrada pelo Impeacuterio Euseacutebio362 o chamou de ldquoamante da verdadeira filosofiardquo No

Diaacutelogo com Trifatildeo363 a filosofia eacute por ele reconhecida como ldquoo maior e mais precioso bem

diante de Deus para o qual somente ela conduz e nos associardquo Esses ensinamentos satildeo

considerados ldquosuperiores a toda filosofia humanardquo364 e reconhecidos como ldquoa filosofia segura

e proveitosardquo365 Dessa forma o pensamento cristatildeo eacute revestido de uma aacuteurea de

superioridade capaz de fundamentar sua teoria e sua criacutetica ao modo romano de repelir os

fieacuteis

Em sua leitura teoloacutegica da histoacuteria e dos problemas religiosos do seu tempo o

apologista procura a razatildeo uacuteltima que fundamenta a accedilatildeo humana para aquilo que eacute ldquobomrdquo e

para as accedilotildees de oposiccedilatildeo agrave feacute Eacute trabalhoso encontrar uma definiccedilatildeo para o que eacute ser ldquobomrdquo

segundo seu modo de pensar Sabe-se poreacutem que os cristatildeos satildeo tidos como os que buscam

aquilo que eacute ldquobomrdquo e que por isso natildeo haacute nenhuma razatildeo para persegui-los Aquilo que eacute

ldquobomrdquo pode ser experimentado de forma parcial por aqueles que natildeo satildeo cristatildeos mas essa

experiecircncia deriva de uma mesma fonte coacutesmica da ldquobondaderdquo Por isso ele sustenta que tudo

o que pode ser chamado ldquobomrdquo entre os filoacutesofos e legisladores elaborado por eles mediante

a investigaccedilatildeo e a instituiccedilatildeo foi comunicado pela parcela do Logos que lhes coube De outro

modo Justino afirma que por natildeo conhecerem plenamente o Logos que eacute Cristo eles

frequentemente se contradizem Em seu ponto de vista outrora muitos pensadores que

tentaram investigar e demonstrar as coisas por meio dessa ldquorazatildeordquo tambeacutem foram levados ao

tribunal como Soacutecrates

Em oposiccedilatildeo ao que eacute ldquobomrdquo uma forccedila oposta aparece como a propiciadora do

engano Eacute esse o elemento uacuteltimo responsaacutevel pelo desvirtuamento da sintonia com aquilo

que eacute ldquobomrdquo e que promove as accedilotildees ldquoinjustasrdquo das autoridades Ele escreve ldquoVoacutes poreacutem

natildeo examinais nossos juiacutezos mas movidos de paixatildeo irracional e aguilhoados por democircnios

perversos nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por issordquo366

Segundo sua teoria satildeo os democircnios os uacuteltimos responsaacuteveis por espalhar a ignoracircncia e

mover as autoridades contra os cristatildeos

Sob essa perspectiva ele destaca a transparecircncia cristatilde e a disposiccedilatildeo paciacutefica desse

grupo diante da autoridade imperial ao dever dos governantes

362 Hist Ecles IV83 363 Diaacutelogo com Trifatildeo 21 364 II Apol 153 365 Diaacutelogo com Trifatildeo 81 366 I Apol 51

71

Cabe a noacutes portanto expor ao exame de todos a nossa vida e os nossos ensinamentos para que natildeo nos tornemos responsaacuteveis pelo castigo daqueles que ignorando a nossa religiatildeo pecam por cegueira contra noacutes Contudo o vosso dever eacute tambeacutem ouvir-nos e mostrar-vos bons juiacutezes Com efeito daqui para frente informados como estais caso natildeo ajais com justiccedila natildeo tereis nenhuma desculpa diante de Deus367

A lealdade dos cristatildeos natildeo era algo evidente e por isso eacute uma das principais

preocupaccedilotildees do apologista ratificaacute-la Justino assinala que havia suposiccedilotildees inclusive de

que os cristatildeos arquitetavam algum tipo de irrupccedilatildeo de outro ldquoreinordquo quando de fato falavam

do ldquoreino de Deusrdquo em todos os seus aspectos espirituais (I Apol 111) A nova religiatildeo jaacute se

espalhava pelo Impeacuterio havia um seacuteculo mas eacute provaacutevel que natildeo tivesse alcanccedilado um

nuacutemero expressivo de fieacuteis Aleacutem disso ainda natildeo existia uma estrutura eclesiaacutestica bem

formada O marcionistas os valentinianos e outros grupos tornavam a questatildeo da identidade

cristatilde um assunto das apologias justinianas e de outros escritores e pregadores que pretendiam

definir quem eram os ldquocristatildeosrdquo

32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus

Na verdade o exclusivismo caracteriacutestico do monoteiacutesmo cristatildeo contrastava com a

religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio As accedilotildees importantes do Estado sempre envolviam rituais

sagrados Comemoraccedilotildees de vitoacuterias e triunfos do exeacutercito normalmente culminavam em

procissotildees e sacrifiacutecios E a proacutepria estabilidade social dependia de uma barganha feita com

os deuses para a manutenccedilatildeo da paz368

Os variados rituais produziam interaccedilotildees entre deuses e homens na religiatildeo romana

Por meio deles eram marcados todos os eventos puacuteblicos e celebraccedilotildees que envolviam

festivais anuais os juramentos ou aniversaacuterios das fundaccedilotildees de templos Tambeacutem podiam

estar relacionados aos jogos ou agraves performances dramaacuteticas que tinham elementos rituais em

seu programa ainda que incluiacutessem o entretenimento entre seus propoacutesitos Os jogos jamais

perderam seu aspecto ritual Cria-se que nessas ocasiotildees os deuses desciam para assisti-los e

entatildeo eram realizados rituais religiosos inclusive representados perfeitamente para que a

cerimocircnia fosse bem sucedida De modo geral tambeacutem os sacrifiacutecios eram feitos estritamente

367 I Apol 34 368 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35

72

segundo regras e tradiccedilotildees que necessariamente tinham de ser respeitadas369 Os prodiacutegios

envolviam quase todos os grupos de influecircncia nas decisotildees estatais ndash os coleacutegios sacerdotais

o senado os magistrados e ocasionalmente o povo nas comitia370

A criaccedilatildeo de novos lugares sagrados sejam templos propriamente ditos ou santuaacuterios

com um altar era tema de interesse puacuteblico e conflito potencial371 Alguns templos eram fruto

de promessas de generais em batalhas Com o tempo expandiram-se pelo espaccedilo urbano

representando uma imagem visiacutevel do domiacutenio romano sobre o Mediterracircneo e assinalando a

contribuiccedilatildeo de novos e antigos deuses em cada estaacutegio dessa conquista

Os rituais religiosos estavam intimamente ligados agraves demais atividades de guerra e

paz Desse modo a aprovaccedilatildeo de uma lei ou a eleiccedilatildeo de magistrado eram atos que envolviam

a tomada dos augures responsaacuteveis pelo sistema especial de regras que os controlavam o ius

augurale372 Os limites dessa religiosidade natildeo satildeo muito bem definidos Mas tanto o povo

quanto os magistrados demonstravam respeito pelas obrigaccedilotildees religiosas

A religiatildeo e os deuses estavam entre os fatores importantes na determinaccedilatildeo dos

eventos e na garantia de suas reivindicaccedilotildees de autoridade e comando dos agentes puacuteblicos

romanos Era tambeacutem uma das expressotildees da ideologia da elite romana e da manutenccedilatildeo do

poder E ainda como escreve Claudia B Rosa

ao mesmo tempo eram os rituais que garantiam as relaccedilotildees entre dois grupos homens e deuses Garantir os ritos representava a certeza da manutenccedilatildeo da sociedade como a queriam ordenada e segura Ao registrar as regras de comportamento como o respeito aos deuses sobretudo em seus espaccedilos ao curvar-se sob a autoridade dos rituais o cidadatildeo garantia a ordem social e a pax deorum e as praacuteticas que acarretavam a transgressatildeo agrave ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e agrave desagregaccedilatildeo A concoacuterdia entre homens e deuses eacute a garantia da ordem romana373

No I seacuteculo aC Augusto se tornou membro de todos os coleacutegios sacerdotais

assumindo o papel de pontifex maximus liderando os demais sacerdotes Se esta interpretaccedilatildeo

for correta ela representa a nova e revolucionaacuteria ordem religiosa do periacuteodo imperial e todos

os seus sucessores foram tambeacutem pontifices maximus ateacute o seacuteculo IV aC Desde entatildeo o

imperador se via responsaacutevel pela construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de templos O poder religioso e o

poder poliacutetico se assentaram sobre um mesmo indiviacuteduo no novo regime do Impeacuterio374

369 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 370 Assembleia dos cidadatildeos romanos 371 ROSA Claudia Beltratildeo Op cit p 144 Ciacutecero indica duas ocasiotildees em que tentativas de dedicaccedilotildees foram canceladas pelos pontiacutefices porque natildeo haviam sido aprovadas pelos comitia (De domo sua 136) 372 LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 1986 pp 2146-312 373 ROSA C B Op cit p 145-146 374 Ibid p 147

73

Conforme escreveu Paul Veyne375 ldquoO Estado com certeza exercia sua autoridade sobre os

cidadatildeos que lhe deviam tudo Mas mesmo assim apenas em circunstacircncias excepcionais

um decreto obrigaria cada cidadatildeo a tomar parte numa cerimocircnia puacuteblica []rdquo Devia-se no

entanto zelar pela pax deorum para a prosperidade e seguranccedila no Impeacuterio376

Natildeo havia uma ldquodependecircnciardquo humana em ralaccedilatildeo aos deuses o que existia era o

reconhecimento da superioridade daqueles seres que viviam entre os humanos Esse

reconhecimento cuacuteltico piedoso estava relacionado agrave barganha Esperava-se conhecer o

futuro escapar do perigo obter boas colheitas ter boa sauacutede sem que isso significasse que os

deuses estariam agrave disposiccedilatildeo a todo instante377

As accedilotildees de Augusto podem evidenciar uma estreita conexatildeo com episoacutedios de

restauraccedilatildeo e especialmente com as recorrentes observaccedilotildees de que as tradiccedilotildees ancestrais

estavam sendo perdidas ou abandonadas O ldquoculto imperialrdquo passa a representar uma novidade

no iniacutecio do Impeacuterio Se os apelos agrave restauraccedilatildeo das crenccedilas e tradiccedilotildees eram presentes nos

discursos natildeo se pode falar em uma nova forccedila religiosa ou uma nova religiatildeo no periacuteodo

imperial

Essas praacuteticas religiosas proporcionaram choques com judeus e depois com os

cristatildeos Sendo monoteiacutestas era impossiacutevel aceitar a inclusatildeo de deuses e cultos Os judeus

sacrificavam em prol do imperador e natildeo para o imperador jaacute os cristatildeos recusavam-se a

participar de qualquer sacrifiacutecio Considerando que os altares ao imperador eram colocados

muito proacuteximos ao tribunal do magistrado que ouvia os seus casos pode-se pensar que tal

sacrifiacutecio ao chefe do Impeacuterio era mais simboacutelico do que de adoraccedilatildeo e funcionava como sinal

de lealdade a Roma378 Secircneca em sua Apocolocyntosis do Divino Claacuteudio escrita

provavelmente no iniacutecio do reinado de Nero apresenta conotaccedilotildees negativas a respeito da

deificaccedilatildeo dos governantes em geral o que indica que existiam aqueles que natildeo viam com

bons olhos o processo de deificaccedilatildeo do governante Mas para a populaccedilatildeo geral do Impeacuterio

natildeo havia problemas em aceitar que o imperador pudesse ser tratado como um deus

A partir da sua expansatildeo e domiacutenio por um vasto territoacuterio o poder romano teve que

lidar com os problemas de integraccedilatildeo das regiotildees conquistadas Conforme tem destacado

375 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 244 376 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 p 15 377 MACMULLEN Ramsay Christianizatin the roman empire (AD 100-400) New Haven Yale University Press 1984 p 13 378 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 150

74

Claudia M Beltratildeo379 o mapa da peniacutensula Itaacutelica o Oriente Proacuteximo o norte da Aacutefrica e

Europa conformam uma rede que se aglutina em torno de Roma constituindo um espaccedilo

dinacircmico de interconexatildeo espaccedilo no qual se daratildeo variados modos de relaccedilatildeo Essa complexa

relaccedilatildeo exigia tambeacutem uma forma de lidar com os cultos estrangeiros

A cultura romana tornou-se sinteacutetica e sintetizante e relativamente favoraacutevel agrave

incorporaccedilatildeo de cultos estrangeiros Roma natildeo apenas se tornou o centro poliacutetico do mundo

por ela construiacutedo como tambeacutem passou a abrigar o nuacutecleo das religiotildees Segundo a anaacutelise

de Ceciacutelia Ames380 o caraacuteter sinteacutetico da religiatildeo romana que combina rito paacutetrio rito grego

e disciplina etrusca facilitou aos romanos a integraccedilatildeo de cultos estrangeiros e a difusatildeo de

seu proacuteprio sistema nos territoacuterios constituindo-se em um elemento chave na relaccedilatildeo destes

espaccedilos interconectados Sua toleracircncia e flexibilidade no entanto tambeacutem incluiacuteam

mecanismos para regular o fluxo de ideias e praacuteticas estrangeiras381 O senado era o oacutergatildeo

responsaacutevel por velar e vigiar da tradiccedilatildeo e da religiatildeo A necessidade de controle cresce junto

com a expansatildeo dos domiacutenios de Roma

Dentro da sua anaacutelise Justino se incomoda com o fato de que no meio de um universo

tatildeo vasto de culturas que se encontram no Impeacuterio Romano os cristatildeos sejam muitas vezes

odiados e levados agrave morte Para o apologista essa eacute mais uma evidecircncia da ignoracircncia

disseminada pelos maus democircnios que faz com que de algum modo as crenccedilas cristatildes sejam

tachadas de irracionais Enquanto isso ldquoalguns cultuam aacutervores rios382 ratos gatos

crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionaisrdquo de modo que todos satildeo iacutempios entre si por

natildeo terem a mesma religiatildeo (I Apol 241) O apologista na verdade aponta aquilo que

considera ser uma incoerecircncia nessa estrutura intercultural

Estaacute evidente que sua anaacutelise eacute dependente da sua loacutegica cristatilde mas Luciano de

Samosata tambeacutem apontava no seacuteculo II dC a ldquoconfusatildeordquo causada pelas diferentes opiniotildees

sobre os Deuses383 Plutarco um pouco antes anotara que a adoraccedilatildeo a diferentes formas de

379 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 151 380 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 p 342 381 Cf MACMULLEN R Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 382 Sextus Empiricus cita a afirmaccedilatildeo de Prodicus de que ldquoos antigos tinham como deus o sol a lua os rios e as primaveras [] assim como os Egiacutepicios deificavam o Nilordquo (Adversus Dogmaticos I18) apud MINNS PARVIS Op cit p 143 383 Juppiter Tragoedus 42

75

animais causava disputas entre seus adoradores384 Juvenal385 tambeacutem menciona que a

contenda se instalava na vizinhanccedila egiacutepcia quando um odiava o deus do outro e sustentava

que somente o seu deus predileto era o deus verdadeiro Essas diferenccedilas poderiam causar

ainda deboches sobre os deuses alheios entre os diferentes povos no Impeacuterio assim como

Clemente de Alexandria diz que os gregos faziam aos deuses e as crenccedilas egiacutepcias386 A

estranheza dos deuses dos outros povos tambeacutem chamou a atenccedilatildeo de Ciacutecero que indagava

Se existem divindades agraves quais adoramos e consideramos como tais por que natildeo Serapis e Isis localizadas no mesmo ranque E se eles satildeo admitidos que razatildeo temos noacutes para rejeitar os deuses dos baacuterbaros Entatildeo noacutes devemos deificar bois cavalos iacutebis gaviotildees viacuteboras crocodilos peixes cachorros lobos gatos e muitas outras bestas Se noacutes vamos de volta agraves fontes destas supersticcedilotildees devemos igualmente condenar todas as divindades das quais eles procedem [] Se vocecircs natildeo deificarem a um bem como o outro o que seraacute de Ino Pois todos esses deuses tem a mesma origem387

Diante desse universo de pensamentos e crenccedilas distintos os romanos tinham o

desafio de conceber formas para garantir a integraccedilatildeo desses grupos Justino acentua que

diante dessa variedade de ideias somente os cristatildeos satildeo perseguidos e vecirc nisso mais uma

evidecircncia de que as accedilotildees anticristatildes satildeo arquitetadas pelos maus democircnios Mas os cristatildeos

natildeo haviam sido os uacutenicos a serem cerceados pelas autoridades romanas

Nos anos 180 aC o culto a Baco despertou suspeitas e passou a ser tratado como uma

ameaccedila agrave ordem Infelizmente as fontes sobre essa questatildeo se resumem a um decreto do

Senado388 regulando o culto e um longo relato de Tito Liacutevio389

Natildeo eacute uma tarefa simples determinar qual foi o epicentro do problema Talvez natildeo se

referisse a uma crise religiosa propriamente dita representando um caso de accedilatildeo policial

contra uma conspiraccedilatildeo Mas o decreto do Senado preservado numa placa de bronze

endereccedilado a uma das cidades aliadas indica uma preocupaccedilatildeo em inviabilizar possiacuteveis

agrupamentos potencialmente conspiratoacuterios Proibia-se aos grupos ter liacutederes ou sacerdotes

masculinos tesouro juramentos ou fieacuteis Ele tambeacutem restringia o tamanho desses

aglomerados e a estrutura de seus membros390 De algum modo a organizaccedilatildeo dos baacutequicos

deve ter ameaccedilado aos romanos tambeacutem por trazer uma nova e perigosa forma de poder

384 De Iside et Osiride 72 385 Saacutetiras XV37-38 386 Protrepticus 2396 387 De natura deorum III19(47) 388 Senatus Consultum de Bacchanalibus In JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961 pp 26-27 389 Histoacuteria de Roma 398-19 390 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 152

76

Os seguidores de Baco no entanto natildeo eram hostis a nenhum deus do Impeacuterio

Tambeacutem natildeo rejeitavam os sacrifiacutecios nem viam os deuses como democircnios e natildeo tinham

nenhum problema com os rituais tradicionais Tito Liacutevio daacute sinais dessa suspeita num

discurso que atribuiu ao cocircnsul Postumio Albino numa contio391 quando falou ao povo da

ameaccedila de um poder rival

A menos que vocecircs se precavejam homens de Roma esta vossa assembleia diurna apropriadamente reunida pelo cocircnsul seraacute rivalizada por sua assembleia noturna Nesse momento eles separadamente temem a vocecircs agora reunidos em assembleia quando vocecircs retornarem agraves suas casas e fazendas eles se reuniratildeo para decidirem sobre sua proacutepria salvaccedilatildeo e a vossa ruiacutena Seraacute quando vocecircs separadamente teratildeo de temecirc-los reunidos (39164)

Segundo a anaacutelise de Clara Gallini os adeptos ao culto eram grupos marginais392 As

bacanais seriam lugares de evasatildeo para a massa de pobres e deserdados com graves

problemas econocircmicos e sociais devido agrave situaccedilatildeo que atravessava Roma A crise social teria

se manifestado em uma forma representativa de protesto religioso por meio dos quais se

buscaram respostas religiosas a problemas da sociedade pretendendo uma liberaccedilatildeo religiosa

Deste modo a repressatildeo dos cultos baacutequicos tambeacutem representaria a repressatildeo de uma

sociedade na qual uns poucos os membros da oligarquia romana decidem impotildeem as regras

e governam a maioria No entanto ainda que os problemas sociais fossem evidentes natildeo eacute

possiacutevel afirmar que atraacutes destes cultos se escondia uma revolta contra as estruturas vigentes

nem ver os rituais baacutequicos como uma espeacutecie de esperanccedila em uma nova liberdade pois

essas interpretaccedilotildees como bem sustentou C Ames393 sofrem de anacronismo

Outros grupos religiosos no periacuteodo posterior a Bacanalia tambeacutem foram objeto de

uma accedilatildeo hostil das autoridades romanas Os caldeus chamados presumivelmente de

astroacutelogos foram expulsos de Roma em 139 aC Depois os seguidores de Iacutesis em vaacuterias

ocasiotildees na Repuacuteblica Tardia e no primeiro principado Tambeacutem os judeus enfrentaram seacuterias

dificuldades com os romanos em certos momentos394

Com a viabilizaccedilatildeo de um maior nuacutemero de viagens e trocas comerciais e culturais no

Impeacuterio Romano o conhecimento das variadas religiotildees deuses e crenccedilas tambeacutem podia

viajar rapidamente E isso significou ter que lidar com atritos decorrentes dessas diferenccedilas

envolvendo inclusive o judaiacutesmo o cristianismo e o maniqueiacutesmo

391 Audiecircncia convocada 392 GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52 393 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 p 344 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 394 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Op cit pp 161 230 231

77

De um modo bem diferente desses monoteiacutesmos de caraacuteter exclusivista entre as outras

crenccedilas como nas religiotildees de misteacuterios os adeptos natildeo rejeitavam ou condenavam outros

deuses Tambeacutem natildeo era necessaacuterio evitar os festivais e rituais da cidade ou a praacutetica do culto

imperial Natildeo havia nada que os pusesse em conflito com as autoridades Ocasionalmente

recebiam o apoio de membros da elite romana

Justino todavia procura mostrar que natildeo havia nenhum motivo para os romanos se

preocuparem com os cristatildeos afinal eles reconheciam que toda autoridade eacute constituiacuteda por

Deus e por isso devia ser respeitada Eacute fazendo jus a certo sentido de transparecircncia que o

apologista julga indispensaacutevel nas relaccedilotildees entre governantes e governados que ele entatildeo se

prontifica em demonstrar as razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo se misturavam com outros

deuses Com confianccedila ele afirma ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo

veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo

colocamos coroas nos sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo395

O fato de os cristatildeos natildeo concordarem com os sacrifiacutecios pagatildeos natildeo faz sentido

isoladamente aos incocircmodos caluacutenias e perseguiccedilotildees sofridos Parece ser razoaacutevel que por ser

um grupo cujas crenccedilas natildeo estavam bem sistematizadas e que se espalhavam pelo Impeacuterio as

caluacutenias oriundas dos atritos culturais podem ter chegado agraves autoridades e despertado

desconfianccedila396 Calumnia era um crime condenado pelas leis romanas desde o I seacuteculo aC e

se exatamente agraves acusaccedilotildees falsas e maliciosas397 As accedilotildees anticristatildes todavia natildeo podem

ser analisadas em termos generalizantes e absolutos pois passam por diversos momentos

Embora os cristatildeos natildeo representem uma ameaccedila poliacutetica na perspectiva de Pliacutenio por

exemplo o fato de natildeo praticarem o culto ao imperador e a separaccedilatildeo das praacuteticas idoacutelatras da

esfera puacuteblica interseciona a questatildeo poliacutetica agrave religiosa

Seria essa uma boa razatildeo para Justino explicar em seu projeto apologeacutetico por que os

cristatildeos natildeo participavam de sacrifiacutecios a outros deuses e natildeo lhes ofereciam culto Seu

argumento eacute diametralmente oposto a ou]j anqrwpoi [esses homens] que oferecem sacrifiacutecios

aos que eles proacuteprios datildeo forma colocam nos templos e chamam de deuses Ele justifica a

crenccedila cristatilde apenas dizendo ldquosabemos que [esses deuses] satildeo coisas sem alma e mortas que

395 I Apol 242 396 Cf VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006 Passim URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932 397 ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 Passim BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 p 238 Cf I Apol 267

78

natildeo tem forma de Deusrdquo398 (I Apol 91) Afirma tambeacutem que os nomes e figuras que os

deuses assumem satildeo arquitetados pelos maus democircnios de modo que coisas corruptiacuteveis que

necessitam de cuidado recebem o nome de Deus Agrega-se ao seu argumento que os artesatildeos

dos deuses satildeo pessoas dissolutas e que eacute uma estupidez fazer guardas para os deuses nos

templos Na sequecircncia o autor introduz a justificativa cristatilde para esse distanciamento de tais

praacuteticas ldquo aprendemos que Deus natildeo tem necessidade de nenhuma oferta material dos

homens pois vemos que eacute ele quem nos concede tudordquo399 (I Apol 93) Em resposta a essa

benevolecircncia divina espera-se a gratidatildeo humana que soacute pode ser atestada atraveacutes do ldquobom

sensordquo [swfrosunhn] da ldquojusticcedilardquo [dikaiosunhn] do ldquoamor aos homensrdquo [filanqrwpian] e

numa expressatildeo pouco clara em ldquotudo que conveacutem a um Deus que natildeo pode ser chamado por

nenhum nome impostordquo400 (I Apol 101) Enquanto para o apologista os deuses pagatildeos satildeo

criados por matildeos humanas o Deus cristatildeo eacute apresentado como aquele que concederaacute a sua

presenccedila aos dignos Assim Justino demonstra estar certo de que os cristatildeos tecircm um

conhecimento superior ao dos que creem em outros deuses a ponto de se satisfazer em dizer

ldquosabemosrdquo ldquoaprendemosrdquo ou ldquocremosrdquo e isso basta

Se por um lado a perspectiva escatoloacutegica cristatilde do ldquoreinordquo natildeo implicava nenhuma

conspiraccedilatildeo poliacutetica contra os romanos seu iacutempeto proselitista causava tanto rumores quanto

um nuacutemero crescente de conversos Eacute por isso que ateacute meados do seacuteculo II quando Justino

escreve as accedilotildees anticristatildes tecircm suas raiacutezes nas relaccedilotildees interculturais travadas no proacuteprio

processo de expansatildeo da mensagem cristatilde Isso significa que os mecanismos de controle

social empregados contra os cristatildeos pelas autoridades imperiais satildeo requeridos mediante os

problemas locais E pode-se dizer que por ser uma religiatildeo emergente outros como Pliacutenio

natildeo sabiam como proceder diante das denuacutencias e caluacutenias contra esse novo grupo

Os cristatildeos formavam um grupo em expansatildeo que estava no Impeacuterio mas viviam de

modo diferente e procuravam evitar a participaccedilatildeo de todo tipo de praacuteticas contraacuterias agraves

prescriccedilotildees doutrinaacuterias cristatildes Natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo

veneravam os deuses nacionais e seu Deus natildeo pertencia a uma naccedilatildeo mas deveria ser

reconhecido como superior a todos os outros401

398 evpei ayuca kai nekra tauta ginwskomen kai qeou morfhn mh econta cf MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 96 399 Ouv deesqai thj para avnqrwpwn ulikhj prosforaj proseilhfamen ton qeon( auvton pareconta panta orwntej ibid p 96 400 o[as oivkeia qew| evsti( tw| mhdeni ovnomati qetw| kaloumenw| MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 401 Cf MACMULLEN Ramsay Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966 Id Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997

79

Justino insere o seu testemunho pessoal

Eu mesmo quando seguia a doutrina de Platatildeo ouvia as caluacutenias contra os cristatildeos Contudo ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que eacute considerado espantoso comecei a refletir que era impossiacutevel que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres Com efeito que homem amante do prazer intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas poderia abraccedilar alegremente a morte que vai privaacute-lo de seus bens402

Prossegue sua queixa ldquobuscando condenar agrave morte alguns cristatildeos fundados nas

caluacutenias contra noacutes arrastaram tambeacutem escravos meninos e mulheres e por meio de incriacuteveis

tormentos os forccedilam a repetir contra noacutes o que o povo inventardquo403 No entanto ele eacute enfaacutetico

contra esse tipo de opiniatildeo sustentada sobre os cristatildeos ldquonada disso nos diz respeitordquo404

Justino tambeacutem nega que os cristatildeos abusariam de homens e se uniriam destemidamente com

as mulheres Seguindo para o desfecho de seu escrito ele faz uma declaraccedilatildeo reveladora ldquoA

verdade eacute que nos fazem guerra de mil modos exatamente porque ensinamos a fugir de

semelhantes doutrinas e daqueles que praticam tais coisas ou imitam tais exemplos como

mesmo nesse discurso que vos dirigimosrdquo405 Tal declaraccedilatildeo de Justino daacute margem para a

reflexatildeo sobre esse processo de ldquonegativizaccedilatildeordquo da figura do ldquooutrordquo que condena as praacuteticas

que ldquoumrdquo pratica Segundo esse pensador os cristatildeos seriam muitas vezes caluniados por

condenarem as praacuteticas dos outros que em retaliaccedilatildeo se esforccedilariam por difamar os

seguidores do nazareno

Por isso tambeacutem parece significativo considerar que os atritos com os cristatildeos natildeo

satildeo decorrentes de uma preocupaccedilatildeo poliacutetica para minar um potencial grupo subversivo Satildeo

destacados alguns aspectos desses atritos que se remetem agraves caluacutenias e maus comentaacuterios

sobre os cristatildeos que desembocam na estigmatizaccedilatildeo desse grupo Eacute preciso lembrar que o

contexto no qual o discurso de Justino estaacute inserido se refere a meados do II seacuteculo quando o

impacto do estilo de vida dos cristatildeos era sentido apenas em niacuteveis locais ainda que em

diversas regiotildees Os cristatildeos jaacute se encontravam pela Siacuteria-Palestina Egito Aacutesia Menor

Peniacutensula Itaacutelica e outras regiotildees mas o nuacutemero de fieacuteis ainda era muito pequeno diante do

tamanho do Impeacuterio Romano406 O desprezo e o combate por parte dos cristatildeos aos deuses

pagatildeos provocavam ocasionalmente reaccedilotildees e mobilizaccedilotildees contra os proacuteprios cristatildeos Por se

tratar de um grupo distinto com praacuteticas pouco conhecidas as caluacutenias se propagaram como

402 II Apol 121-2 403 II Apol 124 404 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 405 II Apol 126 406 GIBBON Edward Number of Christians in the Empire under Diocletioan and Constantine In _____ The History of the Decline and Fall of the Roman Empire ed JB New York Fred de Fau and Co 1906 pp 337 341

80

uma forma de defesa dos pagatildeos A perseguiccedilatildeo de Nero no I seacuteculo havia aberto precedentes

para a condenaccedilatildeo dos cristatildeos mas sua determinaccedilatildeo foi limitada agrave execuccedilatildeo de seu plano de

acobertar as suspeitas de seu envolvimento no incecircndio de Roma Na primeira metade do II

seacuteculo alguns tumultos procuravam condenar os cristatildeos buscando sem um enquadramento

juriacutedico algo que foi condenado por Adriano na Aacutesia Em outros casos como o que relatou

Pliacutenio a Trajano procurava-se por um crime que condenasse os cristatildeos Desse modo as

acusaccedilotildees tais como canibalismo denuacutencia de ateiacutesmo imoralidades e inclusive de

infidelidade ganhavam forccedila Essas caluacutenias somadas ao precedente neroniano fizeram com

que para muitos como Trajano e Urbico o nomen Christianum assumisse um significado

negativo Essa conotaccedilatildeo negativa no entanto natildeo se instalou apenas em funccedilatildeo das caluacutenias

Conforme destacou Paul Veyne407 ldquoas autoridades natildeo acreditavam que os cristatildeos comiam

criancinhas ou praticavam incesto todos os domingos a atitude polecircmica de Celso a respeito

da nova religiatildeo natildeo fazia alusatildeo a essas praacuteticas considerando-as um fato socialrdquo Se para o

povo em geral o oacutedio e o medo pela estranheza dos cristatildeos faziam-lhes repulsivos para as

autoridades a ausecircncia de participaccedilatildeo nas praacuteticas puacuteblicas ou mesmo a contumaacutecia em natildeo

negar a feacute diante do magistrado faziam com que os pedidos de condenaccedilatildeo fossem acatados

Neste momento cabe destacar que entre os tipos de estigmas destacados por Erving

Goffman408 estatildeo os tribais de raccedila naccedilatildeo e religiatildeo considerados suscetiacuteveis de uma

transmissatildeo por heranccedila e decontaminar outros ao redor Nesses estigmas encontram-se os

seguintes traccedilos socioloacutegicos

un individuo que podiacutea haber sido faacutecilmente aceptado en un intercambio social corriente posee un rasgo que pude imponerse por la fuerza a nuestra atencioacuten u que nos lleva a alejarnos de eacutel cuando lo encontramos anulando el llamado que nos hacen sus restantes atributos Posee un estigma una indeseable diferencia que no habiacuteamos previsto

Essa diferenccedila se torna o elemento fundamental para a praacutetica de vaacuterios tipos de

discriminaccedilatildeo Consciente ou inconscientemente se constroacutei uma teoria do estigma uma

ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do perigo que representa essa pessoa

racionalizando agraves vezes uma animosidade que se baseia em outras diferenccedilas

Goffman409 natildeo deixa de contemplar em sua anaacutelise a possibilidade de sujeitos

estigmatizados permanecerem ilhados protegidos por suas crenccedilas proacuteprias sobre sua

identidade mas ao mesmo tempo em constante contato com os outros Nesse sentido os 407 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 408 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 16 Tr A ldquoum indiviacuteduo que podia ter sido facilmente aceito num intercacircmbio social corrente possui um traccedilo que pode impor-se agrave forccedila a nossa atenccedilatildeo e que nos leva a nos afastarmos dele quando o encontramos anulando a chamada que nos fazem seus ouros atributos Possui um estigma uma indesejaacutevel diferenccedila que natildeo haviacuteamos previstordquo 409 Ibid p 17

81

seguidores da Igreja dos disciacutepulos de Jesus de Nazareacute podiam refugiar-se em suas crenccedilas

proacuteprias a saber seu proacuteprio modo de se autodefinir como ldquocristatildeosrdquo Enquanto o termo

ldquocristatildeordquo eacute capaz de referir-se a algueacutem de uma superstitio ilicita que abusa das crianccedilas que

se une promiscuamente com homens e mulheres que acredita em lendas de um deus

encarnado e nascido de uma virgem cujos fieacuteis se reuacutenem para comer sua carne em reuniotildees

secretas e assim se torna estigma de algueacutem despreziacutevel por outro lado ganha outro

significado para os seguidores do Cristo

Os atritos entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos poderiam surgir em decorrecircncia do exerciacutecio da

anunciaccedilatildeo da mensagem cristatilde ou devido ao apelo agrave mudanccedila de conduta e implementaccedilatildeo

de novos haacutebitos O caso mais emblemaacutetico apontado por Justino eacute o que aparece na II

Apologia

Certa mulher vivia com o seu marido homem dissoluto e antes de se tornar cristatilde se entregara agrave vida licenciosa Todavia logo que conheceu os ensinamentos de Cristo natildeo soacute se tornou casta como procurava tambeacutem persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme a reta razatildeo Ele poreacutem obstinado na dissoluccedilatildeo com a sua conduta desanimou a sua mulher [] Depois disso para natildeo se tornar cuacutemplice de tais iniquidades e impiedades permanecendo no matrimocircnio e partilhando o leito e a mesa com tal homem ela [] separou-se [] Despeitado [] [] a acusou diante dos tribunais dizendo que ela era cristatilde [] natildeo podendo na ocasiatildeo fazer nada contra a mulher voltou-se contra Ptolomeu que Urbico chamara ao seu tribunal por ter sido mestre dela nos ensinamentos de Cristordquo410

A uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se era cristatildeo Apoacutes

confessar foi condenado ao supliacutecio Justino ainda conta que certo Luacutecio advertiu a Urbico e

do mesmo modo foi conduzido ao supliacutecio Um terceiro sobreveio mas tambeacutem foi

condenado agrave morte411

Se fosse um caso isolado esse episoacutedio jamais poderia servir como pista para

fundamentar a hipoacutetese de que significativamente os atritos com os cristatildeos podem surgir

tambeacutem devido agrave condenaccedilatildeo das praacuteticas dos natildeo-cristatildeos Mas outras evidecircncias se

mostram Os Evangelhos do Novo Testamento (Mt 1413-12 Mc 614-28 Lc 318-20 97-9)

afirmam que Joatildeo Batista foi para a prisatildeo por repreender ao rei Herodes que vivia com

Herodiacuteades a mulher de seu irmatildeo e por outros crimes cometidos pelo governante Flaacutevio

Josefo escreveu que Herodes temeu que o povo fosse influenciado para uma sublevaccedilatildeo e por

isso encaminhou Joatildeo Batista para o caacutercere412 Embora pareccedilam discrepantes pode haver

alguma convergecircncia nas duas versotildees O ldquoprofetardquo Joatildeo Batista devia fazer repreensotildees

410 II Apol 2 411 II Apol 216-20 412 Ant Jud II 52

82

puacuteblicas condenando os haacutebitos do rei Herodes e a sua uniatildeo com Herodiacuteades o que poderia

despertar alguma inseguranccedila quanto agrave reaccedilatildeo do povo

Outras ocorrecircncias podem ser identificadas Quando Paulo repreendeu um espiacuterito de

adivinhaccedilatildeo de uma jovem escrava quando estava em Filipos na Macedocircnia os patrotildees da

moccedila se irritaram pois exploravam aquela habilidade da jovem para lucrar Por isso levaram

Paulo e seu companheiro Silas aos magistrados e disseram ldquoEsses homens estatildeo provocando

desordem em nossa cidade satildeo judeus e pregam costumes que a noacutes romanos natildeo eacute

permitido aceitar nem seguirrdquo A multidatildeo se levantou contra Paulo e Silas e depois disso

foram accediloitados e presos sem julgamento formal 413 Em Eacutefeso os artesatildeos teriam visto na

doutrina de Paulo mais do que uma ofensa agrave religiatildeo uma ameaccedila a seus negoacutecios Conta-se

que um ourives chamado Demeacutetrio que fabricava miniaturas em prata no templo de Diana

reuniu alguns artesatildeos e outros profissionais do ramo e disse-lhes

Amigos sabeis que o nosso bem-estar proveacutem dessa nossa atividade [] esse tal de Paulo com sua propaganda desencaminha muita gente natildeo soacute em Eacutefeso mas em quase toda a Aacutesia Ele afirma que natildeo satildeo deuses os produtos de matildeos humanas Natildeo eacute soacute a nossa profissatildeo que corre o risco de cair em descreacutedito mas tambeacutem o templo da grande deusa Diana acabaraacute sendo desacreditado e assim ficaraacute despojada de majestade aquela que toda a Aacutesia e o mundo inteiro adoram414

Segundo o livro de Atos dos Apoacutestolos esses homens furiosos arrastaram os

companheiros de Paulo para o teatro da cidade O tumulto se espalhou

Esses tipos de atritos envolviam o encobrimento de uma praacutetica moralmente

condenada pelos seguidores da Igreja e manifestavam a defesa dos interesses pessoais ou de

determinados grupos que sofreriam com as possiacuteveis mudanccedilas nos costumes e tradiccedilotildees

Neste uacuteltimo caso aparece algo distinto a menccedilatildeo da representaccedilatildeo de uma divindade para

uma determinada regiatildeo Diana para a Aacutesia especialmente

Yi-Fu Tuan415 aponta que nas religiotildees que vinculam o povo a um lugar os deuses

parecem estimular nos seus fieacuteis um forte sentido do passado de linhagem e continuidade no

lugar O culto aos ancestrais eacute o fundamento de tal praacutetica religiosa Atraveacutes deste sentido

histoacuterico de continuidade busca-se algum tipo de ldquoseguranccedilardquo Entre o I e II seacuteculos dC

deuses romanos e gregos satildeo conhecidos por povos de culturas diferentes mas nenhum deles

exige exclusividade O Deus dos judeus figura nesse cenaacuterio de deuses e homens e agraves vezes

se confunde com deus nenhum Os seguidores de Cristo propagadores desse mesmo Deus

mediante a crenccedila no seu messias paradoxalmente tambeacutem satildeo tachados de ateus algumas

vezes Poreacutem enquanto os ldquooutrosrdquo natildeo veem o Deus cristatildeo os cristatildeos natildeo veem outro deus

413 At 1617-40 414 At 1923-27 415 Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983 p 168

83

aleacutem do seu proacuteprio Desse modo a negaccedilatildeo dos deuses alheios pode ser interpretada por

muitos como profunda agressatildeo agraves crenccedilas que por um periacuteodo indeterminado serviram para

explicar e inspirar a vida das pessoas que nasceram cresceram e morreram em determinado

local

A estigmatizaccedilatildeo dos ldquocristatildeosrdquo eacute portanto em grande medida uma reaccedilatildeo das

pessoas que satildeo alvo dos cristatildeos no exerciacutecio de sua feacute Pois esses cristatildeos ndash dos quais

Justino eacute um ndash manifestam o repuacutedio a tudo aquilo que se associa a uma moral que lhes seja

estranha e que se vincule agrave veneraccedilatildeo de outros deuses que natildeo sejam o Deus do seu Cristo

Diante das reaccedilotildees adversas que lhes satildeo imputadas sob a forma de duras penas e

condenaccedilotildees Justino teologiza o seu estigma Isso natildeo eacute uma invenccedilatildeo sua Talvez lhe caiba o

meacuterito de tecirc-lo feito habilidosamente poreacutem haacute indiacutecios desse procedimento anos antes de

seus escritos

Na I Epiacutestola de Pedro (413-1416) o autor frisa a gloacuteria do sofrimento dos cristatildeos

nas perseguiccedilotildees

alegrai-vos por participar dos sofrimentos de Cristo para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua gloacuteria Se sofreis injuacuterias por causa do nome de Cristo sois felizes pois o Espiacuterito da gloacuteria o Espiacuterito de Deus repousa sobre voacutes [] Se poreacutem algueacutem sofrer por ser cristatildeo natildeo se envergonhe Antes glorifique a Deus por este nome

Antes ainda eacute Paulo quem permitiraacute um trocadilho didaacutetico para que melhor se

compreenda essa formulaccedilatildeo teoloacutegica por traacutes do sofrimento dos fieacuteis da Igreja Ao finalizar

sua Epiacutestola aos Gaacutelatas (617) escreve ldquo eu trago em meu corpo as marcas [stigmata] de

Cristordquo416 Como o proacuteprio Goffman observou para os gregos estigma significava

basicamente algum tipo de signo ou marca na pele417 Paulo evidentemente se refere aos sinais

do sofrimento enfrentado devido agraves perseguiccedilotildees sofridas no exerciacutecio do seu apostolado Natildeo

existe nenhuma ligaccedilatildeo entre essa passagem e o discurso de Justino O que eacute preciso notar

atentamente eacute que assim como Paulo transforma seus estigmas em seu testemunho na

perspectiva de Justino a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute representada como ldquoas marcasrdquo de sua

identidade que se pretende afirmar Essa identidade por ele afirmada eacute distinta dos devaneios

caluniosos que lhes satildeo associados pelos seus opositores Ser cristatildeo para Justino eacute a razatildeo de

natildeo serem perseguidos e ao mesmo tempo o motivo pelo qual satildeo perseguidos A

416 Versatildeo grega evgw gar ta stigmata tou Kuriou VIhsou evn tw| swmati mou bastazw ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) [Bible Work 5 Software 2002] 417 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 11 Para maiores informaccedilotildees sobre o significado do termo estigma cf LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940

84

perseguiccedilatildeo seraacute interpretada como uma reaccedilatildeo dos ldquomaus democircniosrdquo contra os ldquoverdadeiros

cristatildeosrdquo como seraacute examinado no proacuteximo capiacutetulo

Seus acusadores estariam movidos por paixatildeo irracional e ldquoaguilhoados por democircnios

perversosrdquo418 por isso natildeo conseguiam enxergar a verdade anunciada por esses cristatildeos

Mesmo tendo grande responsabilidade na ocultaccedilatildeo dessa verdade os democircnios natildeo satildeo os

uacutenicos culpados Escreve Justino a respeito dos judeus

As outras naccedilotildees natildeo tecircm tanta culpa da iniquidade que se comete contra noacutes e contra Cristo como voacutes que sois causa do preconceito injusto que elas tecircm contra ele e contra noacutes que viemos dele [] escolhestes homens especiais de Jerusaleacutem e os mandastes por todo o mundo a fim de espalhar que havia aparecido uma iacutempia seita de cristatildeos e espalharam caluacutenias que todos aqueles que natildeo vos conhecem repetem contra noacutes419

Os judeus tecircm uma parcela de responsabilidade pelos preconceitos e caluacutenias herdados

pelos gentios Em vaacuterios episoacutedios no livro dos Atos dos Apoacutestolos haacute a mesma disposiccedilatildeo

cristatilde para atribuir aos judeus a culpa pelas delaccedilotildees agraves autoridades romanas para reclamar

dos cristatildeos No entanto eacute pouco provaacutevel que o apologista assim sintetize a causa das

caluacutenias e puniccedilotildees contra os cristatildeos Mas haacute uma disposiccedilatildeo por parte do apologista em

afastar os cristatildeos dos judeus Semelhantemente Justino tambeacutem natildeo demonstra nenhuma

simpatia por aqueles que ele chama de ldquocristatildeos soacute de nomerdquo

Sobre esses que natildeo viviam como Cristo teria ensinado o filoacutesofo orienta que ldquosejam

declarados como natildeo-cristatildeosrdquo420 por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de

Cristo Para os pagatildeos provavelmente natildeo haveria distinccedilatildeo entre esses grupos Justino

poreacutem chama a atenccedilatildeo para o fato de que esses satildeo denominados segundo o nome de quem

promoveu cada doutrina especiacutefica Eram eles os marcionistas valentinianos basilidianos

saturnilianos e com outros nomes421

Um dos argumentos de que a accedilatildeo dos ldquodemocircnios perversosrdquo move seus opositores

contra os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo eacute que os cristatildeos dessas outras ldquoheresiasrdquo natildeo satildeo perseguidos

pelas autoridades422 Quanto a esses ldquooutrosrdquo pelos quais o apologista natildeo demonstra

nenhuma simpatia sua recomendaccedilatildeo eacute que sejam punidos423

Os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo segundo Justino satildeo aqueles que estatildeo prontos a confessar

que satildeo cristatildeos a ponto de padecerem Desse modo recorrendo ao trocadilho didaacutetico

desenvolvido a partir da fala paulina esses homens de feacute colocam-se agrave disposiccedilatildeo para

418 I Apol 51ss 419 Diaacutelogo com Trifatildeo 171 420 I Apol 168 421 Diaacutelogo com Trifatildeo 355-6 422 I Apol 267 423 I Apol 1614

85

receber os ldquoestigmas de Cristordquo a saber as marcas das perseguiccedilotildees sobre seus corpos em

razatildeo de suas crenccedilas Satildeo persuadidos a crer que a verdadeira recompensa seraacute atribuiacuteda para

a vida eterna que em muito excede ao sofrimento transitoacuterio desse mundo Cabe-lhes

anunciar e testemunhar a feacute a todos mesmo sob a insiacutegnia das tribulaccedilotildees Por isso Justino

declara

Decapitam-nos pregam-nos em cruzes atiram-nos agraves feras agrave prisatildeo ao fogo e nos submetem a todo tipo de torturas Todavia estaacute agrave vista de todos que natildeo apostatamos de nossa feacute Ao contraacuterio quanto maiores satildeo os nossos sofrimentos mais ainda se multiplicam os que abraccedilam a feacute e a piedade pelo nome de Jesus424

Essa missatildeo cristatilde implica tambeacutem em buscar convencer aos seus opositores de que

os ldquocristatildeosrdquo natildeo deviam ser perseguidos simplesmente por denominarem-se ldquocristatildeosrdquo

33 Sobre as leis e imoralidades

Justino faz saber que a confissatildeo de cristianismo diante de um magistrado acarretava a

pena de morte425 Isto eacute ser ldquocristatildeordquo poderia implicar na condenaccedilatildeo agrave pena de morte426

Uma das interrogaccedilotildees centrais desses escritos de Justino eacute sobre o fato de os cristatildeos

serem condenados por confessarem esse nome Seria um absurdo pensar que os romanos

condenariam os membros dessa superstitio simplesmente por sustentarem um nome e eacute

justamente esse absurdo que o apologista busca destacar para ridicularizar o procedimento dos

magistrados Na verdade os acusados de cristianismo natildeo eram condenados apenas pelo

ldquonomerdquo mas sim pelo que ele representava uma superstitio nova maleacutefica depravada e

excessiva que envolvia os cristatildeos em flagitia que sustentava certo desprezo pela religiatildeo

tradicional Mas pelo fato de natildeo haver uma lei universal para este caso os governantes

tinham liberdade para julgar as ocorrecircncias de modo particular As recomendaccedilotildees de Trajano

e Adriano ao dispensarem a busca pelos cristatildeos limitaram os processos a apenas denuacutencias

formais A nova religiatildeo ainda natildeo se mostrava um problema seacuterio para o Impeacuterio Eacute provaacutevel

que essas medidas visem solucionar os atritos e inibir os conflitos locais ocasionados pelas

diferenccedilas religiosas O caraacuteter flexiacutevel do processo que permitia que o acusado mudasse de

ideia quanto a sua religiatildeo no meio do processo e recebesse a absolviccedilatildeo eacute o elemento

fundamental para se argumentar que os cristatildeos eram condenados pelo ldquonomerdquo

424 Dialogo com Trifatildeo 110 4 425 I Apol 81-2 No I111 lecirc-se ldquoconfessamos ser cristatildeos sabendo como sabemos que tal confissatildeo traz consigo a pena de morterdquo 426 ldquo e nos tiram a vida sem termos cometido crime algumrdquo (I241) Mas o consolo dos fieacuteis estaacute na feacute ldquo aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis fazerrdquo (I456)

86

Justino deseja que os romanos compreendam a maneira de pensar dos cristatildeos e que se

desvencilhem da ideia negativa sobre os fieacuteis Desse modo depois da exposiccedilatildeo da sua I

Apologia ele escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da verdade

respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees despreze-as Natildeo

decreteis poreacutem pena de morte como contra inimigos contra aqueles que nenhum crime

cometemrdquo427

Como jaacute foi mencionado no Capiacutetulo II dessa dissertaccedilatildeo Justino procura alinhar sua

Apologia ao rescrito de Adriano o qual ele interpreta convertendo-o sutilmente a favor dos

cristatildeos

Noacutes vos pedimos portanto que sejam examinadas accedilotildees de todos os que vos satildeo denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo ter cometido nenhum crime428

Mesmo assim o apologista sustenta que sua reclamaccedilatildeo natildeo estaacute fundamentada no rescrito de

Adriano mas em um senso de justiccedila que permeia sua peticcedilatildeo429

Sua interpretaccedilatildeo considera que mediante as obras dos democircnios perversos os cristatildeos

satildeo buscados e condenados agrave morte devido a caluacutenias O apologista aponta atentados contra

escravos meninos e mulheres obrigando-os a confessarem coisas falsas430 Segundo sua

leitura teoloacutegica desses eventos os cristatildeos eram acusados de tais praacuteticas justamente porque

as condenavam e assim fazendo incomodam aqueles que procediam dissolutamente431

Tendo em vista que a razatildeo para que as autoridades acatassem as denuacutencias dirigidas

contra os cristatildeos estava no fato de que esta superstitio era uma ameaccedila agrave ordem em funccedilatildeo da

sua expectativa sobre o ldquoreino de Deusrdquo Justino inclui no seu projeto apologeacutetico uma

explanaccedilatildeo sobre a contribuiccedilatildeo cristatilde ao estabelecimento da paz no Impeacuterio Natildeo se podia

esperar que uma religiatildeo estrangeira principalmente oriunda de uma naccedilatildeo problemaacutetica

como a dos judeus pudesse representar algum benefiacutecio A sua proacutepria indefiniccedilatildeo enquanto

religiatildeo dificultaria essa possibilidade e o seu caraacuteter exclusivista acentuaria os atritos sociais

Mas o pensador de Flaacutevia Neaacutepolis eacute direto em dizer

Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo e salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que

427 I651 428 I74 429 ldquo natildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo (I683) 430 II124 431 II12

87

caminharia para a sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos e se adornaria de virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos432

A proposta de Justino apresenta o valor das crenccedilas cristatildes O desenvolvimento da sua

teoria seraacute analisado com mais detalhes no proacuteximo capiacutetulo Neste momento analisar-se-aacute a

reprovaccedilatildeo da moralidade dos natildeo-cristatildeos Segundo Paul Veyne433 no mundo greco-romano

ldquomoral e religiatildeo estavam parcialmente ligadas porque se pedia aos deuses que protegessem

os bons e castigassem os maus Deuses e homens julgavam da mesma maneira os bons e

maus pois compartilhavam da mesma moralrdquo Para os deuses a moral dos mortais tambeacutem

natildeo interessava A opiniatildeo humana sobre os deuses tambeacutem variava desde a atribuiccedilatildeo de

virtudes ateacute a laacutestima por serem egoiacutestas e mercenaacuterios Natildeo era possiacutevel pensar nos deuses

como senhores vigilantes da justiccedila No entanto os deuses poderiam vingar as injusticcedilas434

Natildeo se deve pensar que a religiatildeo de gregos e romanos era estaacutetica Satildeo identificadas

transformaccedilotildees durante os seacuteculos A filosofia as mudanccedilas culturais e a paideia

relacionaram a divindade ao sumo bem e acentuou os contornos entre a religiosidade das

pessoas comuns e agrave dos membros das classes elevadas e dos letrados435

Varratildeo436 atribuiu trecircs concepccedilotildees para os deuses os deuses das cidades os deuses

vistos pelos filoacutesofos e os deuses das narrativas dos poetas Segundo Paul Veyne437

inspirados por Euriacutepides os estoicos estavam convencidos de que os deuses natildeo podiam se

portar mal Os deuses dos filoacutesofos se afastavam das narrativas mitoloacutegicas anteriores para

assumirem agraves vezes o aacutepice da virtude Para Platatildeo os deuses eram a medida de todas as

coisas e natildeo seria conveniente receberem oferendas de pessoas desonradas438 A relaccedilatildeo entre

moral e religiatildeo passou por transformaccedilatildeo mas essa mudanccedila ficou restrita a alguns ciacuterculos

sociais Para alguns criacuteticos e pensadores o temor religioso seria uacutetil para a contensatildeo

humana Mas essa natildeo era uma opiniatildeo comum Isoacutecrates (viveu de 436 a 338 aC) escreveu

que ldquoaqueles que creem que os favores dos deuses e suas puniccedilotildees satildeo maiores do que

realmente satildeo prestam um grande serviccedilo agrave sociedaderdquo439 Mais tarde Poliacutebio (viveu entre 203

aC ndash 120 aC) ao comparar os romanos aos gregos tambeacutem destacou o valor das crenccedilas

religiosas romanas no estabelecimento da ordem

432 I121-3 433 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 220 434 Ibid p 239 435 BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 pp 305-332 436 Apud Agostinho de Hipona Cidade de Deus IV311 Plutarco se referia a trecircs visotildees sobre os deuses a dos filoacutesofos poetas e legisladores (Amatorius XVIII10765c) 437 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 256 438 Leis IV716c717 439 Busires 1124

88

muitos poderiam pensar que isso eacute irresponsaacutevel mas [] seu objetivo eacute usar isso como forma de controle sobre as pessoas comuns Se era possiacutevel formar um Estado inteiro de filoacutesofos isso seria no entanto desnecessaacuterio Mas vendo que as multidotildees satildeo inconstantes cheios de desejos desregrados iras irracionais e paixatildeo violenta o uacutenico recurso eacute mantecirc-los sob controle pelo terror misterioso e efeitos cecircnicos desse tipo440

Ainda nesse sentido ele afirma que tambeacutem natildeo era sem sentido que os antigos

promoviam entre as pessoas simples diversas opiniotildees sobre os deuses e a crenccedila no Hades

Tendo em vista essa importante funccedilatildeo da religiatildeo na manutenccedilatildeo da ordem Poliacutebio pensa

que aqueles que em seu tempo abriam matildeo da religiatildeo agiram de forma precipitada e

insensata Assim ele destaca

Esta eacute a razatildeo por que aleacutem de tudo se aos estadistas gregos eacute confiada uma uacutenica moeda embora protegidos por dez funcionaacuterios de vigilacircncia muitos selos e o dobro de testemunhas jaacute natildeo podem ser induzidos a manter a feacute enquanto entre os romanos em suas magistraturas e embaixadas homens tecircm cuidado de grandes quantias de dinheiro e ainda por puro respeito a seus juramentos manteacutem a feacute intacta E em outras naccedilotildees eacute raro encontrar um homem que meta suas matildeos fora do eraacuterio puacuteblico e eacute inteiramente puro em tais assuntos Mas entre os romanos eacute raro encontrar um homem cometendo tal crime441

A necessidade de uma sociedade ter mecanismos para estabelecer a ldquoconfianccedilardquo ou a

ldquoboa feacuterdquo entre as relaccedilotildees humanas eacute sublinhada diante dos efeitos dos questionamentos

cultivados pela filosofia e do proacuteprio ideal poliacutetico-filosoacutefico que poderia diminuir o valor da

religiatildeo

No seacuteculo II dC eacute Justino quem olha as mais distintas crenccedilas do Impeacuterio com um

tom de superioridade proporcionada pela sua proacutepria religiatildeo Mas haacute um espaccedilo de

aproximadamente trecircs seacuteculos entre Poliacutebio por exemplo e Justino No II seacuteculo dC a

filosofia jaacute havia se tornado um elemento essencial da cultura romana e o fluxo das suas

interrogaccedilotildees e das suas performances puacuteblicas acarretavam algumas transformaccedilotildees de

caraacuteter ideoloacutegico na sociedade Como escreveu Paul Veyne

o povo nunca deixou de crer e rezar Mas em que um romano culto mdash um Ciacutecero um Horaacutecio um imperador um senador um notaacutevel mdash podia crer dentro dessa fantasmagoria dos deuses ancestrais A resposta eacute categoacuterica natildeo podia crer em nada leu Platatildeo e Aristoacuteteles que quatro seacuteculos antes tampouco acreditavam Virgiacutelio alma religiosa acredita na Providecircncia mas natildeo nos deuses de seus proacuteprios poemas mdash Vecircnus Juno ou Apolo442

Justino mostra algumas razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo compactuavam com os

demais deuses e com a religiatildeo tradicional romana e ainda aponta aquilo que considera ser o

caraacuteter racional da verdadeira filosofia isto eacute da religiatildeo cristatilde Por isso ele escreve ldquoas

440 Historias VI5614 441 Ibid 442 Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197

89

nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo443 Poreacutem

como ele proacuteprio diz ldquonos condenam sem saber se praticamos as coisas vergonhosas de que

nos acusam comprazem-se com deuses que as fizeram e ainda exigem dos homens coisas

semelhantesrdquo444 Desse modo o apologista destaca a incoerecircncia em se pensar que os povos

seriam contidos por temor a deuses tatildeo imoderados quanto os proacuteprios homens em suas

paixotildees Por outro lado tambeacutem o temor ao Imperador ou a fidelidade demonstrada por

meio do culto imperial satildeo apontados como algo que representa uma forma superficial de

controle pois como Justino escreve ldquoaqueles que agora por medo das leis e dos castigos por

voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los [] sabem que sois homens e

que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutesrdquo445 Esse ldquomedordquo das leis era um temor ao que eacute

humano Desse modo Justino sublinha que a ausecircncia de mecanismo superior de controle

como a absorccedilatildeo da crenccedila em um Deus onisciente como o Deus dos cristatildeos favorecia a

desobediecircncia agraves leis

O apologista apresenta um mecanismo de controle que julga ser muito mais eficiente

ldquose se inteirassem e se persuadissem de que natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma

accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os

modos como voacutes mesmos haveis de convirrdquo Por essa razatildeo ele considera que a expansatildeo do

cristianismo contribuiria para que as pessoas agissem de modo moderado e respeitoso de

acordo com a moral cultivada na comunidade e ainda em atentar fidelidade ao Impeacuterio

Esse ldquotemorrdquo religioso proveniente de uma crenccedila distinta da religiatildeo tradicional se

enquadra no que os romanos chamavam de superstitio As superstitiones e os cultos locais

eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob atenccedilatildeo com destacam Mary Beard John North e

Simon Price446 as controveacutersias poderiam desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade

romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito em 172 a 173 aC447 na incursatildeo da Traacutecia que

foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que conseguiu seguidores448 entre os druidas da

Gaacutelia profecias indicavam que o incecircndio de Roma era o sinal do fim do domiacutenio romano

sobre aquela regiatildeo fazendo com que uma revolta nas fronteiras do Reno fosse animada por

essas profecias449 e as revoltas judaicas contemporacircneas a Justino satildeo outro exemplo

443 II153 444 II142 445 I123 446 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 447 Cassius Dio Hist Rom LXXII4 448 Ibid LI255 LIV345-7 449 Taacutecito Historias IV546165 V2224

90

Todavia o apologista procura convencer de que os cristatildeos natildeo suportavam nenhum tipo de

ameaccedila agrave sociedade sob o domiacutenio romano

Sua estrateacutegia apologeacutetica portanto natildeo pode negar que as crenccedilas cristatildes reprovavam

uma seacuterie de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais caracterizam um

quadro da organizaccedilatildeo social No entanto essa nova religiatildeo deveria ser encarada como uma

dessemelhanccedila absoluta Vaacuterios pontos de contato entre a cultura pagatilde e a doutrina dos

cristatildeos satildeo estabelecidos para convencer sobre esse aspecto450 Os deuses e a religiatildeo pagatilde

deveriam ser rejeitados por serem incoerentes com a moralidade segundo as narrativas

antigas A feacute cristatilde eacute apresentada como um mecanismo eficaz de controle e de organizaccedilatildeo

social que exige uma mudanccedila subjetiva antes de um reflexo socialmente objetivo Por isso

segundo seu ponto de vista a condenaccedilatildeo dos cristatildeos acatada pelos governantes locais eacute uma

forma equivocada de manter a ordem Em grande medida essa forma de controle que emerge

dos clamores reativos populares estaria impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do

nomen Christianum sem conhecerem de fato a forma de pensar dos cristatildeos Por isso Justino

procura afirmar que os cristatildeos satildeo os melhores auxiliadores na manutenccedilatildeo da paz no

Impeacuterio

450 Esse ponto seraacute analisado no proacuteximo capiacutetulo

91

CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM SOCIAL

Justino combate agrave forma de controle que recrimina os cristatildeos e que segundo seu

ponto de vista tem fundamento nas accedilotildees dos democircnios Eacute dentro do seu objetivo apologeacutetico

que emerge sua tese da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem no Impeacuterio Eacute a

primeira vez que a religiatildeo emergente dos cristatildeos aparece assumidamente como um

instrumento a favor do Impeacuterio Natildeo havia nenhuma razatildeo para esse tipo de preocupaccedilatildeo por

parte dos cristatildeos A tese da contribuiccedilatildeo cristatilde agrave manutenccedilatildeo da ordem vem em oposiccedilatildeo agrave

ideia de que os cristatildeos seriam uma ameaccedila social Todavia eacute permitido supor que diante da

mira dos ldquoperseguidoresrdquo locais nesse periacuteodo natildeo era uacutetil jurar fidelidade ao Impeacuterio

As caluacutenias e a proacutepria inclinaccedilatildeo a repudiar as superstitones estrangeiras faziam com

que os cristatildeos fossem reprimidos em diferentes niacuteveis pelos pagatildeos do Impeacuterio Justino

apresenta uma forma de controle cristatilde que julga ser mais eficiente do que aquelas pagatildes

empregadas contra os proacuteprios cristatildeos A base de tal eficiecircncia estaacute no caraacuteter de sua

doutrina que quando absorvida deveria conduzir os crentes a uma conduta pautada por regras

morais que estabelecem precircmio ou castigo eterno a todos depois da morte de acordo com seu

meacuterito em vida A doutrina cristatilde eacute uma incentivadora da moral

Ao recorrer ao imperador o apologista natildeo apenas reafirma a fidelidade dos cristatildeos

mas expotildee o caraacuteter de sua doutrina e procura ser o mais convincente possiacutevel sobre a

razoabilidade de suas crenccedilas

41 O controle absoluto do controlador absoluto

Em primeiro lugar Justino sustenta que os cristatildeos satildeo os ldquomelhores ajudantes e

aliados para a manutenccedilatildeo da pazrdquo devido ao caraacuteter das suas doutrinas como a de que ldquonatildeo

eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que

cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildeesrdquo (I Apol

121) Segundo essa perspectiva a crenccedila em um Deus onisciente seria capaz de induzir os

que a deteacutem a se comedirem Nesse sentido ele destaca ldquoningueacutem escolheria por um

momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se

92

conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e

livrar-se dos castigosrdquo (I Apol 122) Esse mecanismo de controle apresenta uma estrutura

limitadora das accedilotildees humanas que eacute dependente do conhecimento das normas que determinam

a recompensa e o castigo O traccedilo marcante desse mecanismo eacute que existe um vigilante

constante de quem natildeo se pode esconder absolutamente nada nem mesmo as intenccedilotildees

Haacute certa dependecircncia do sentimento de temor pessoal diante da ideia de vigilacircncia

constante pelos olhos infaliacuteveis de um ser superior que julgaraacute com rigor as accedilotildees humanas de

uma vez por todas num momento aguardado mas desconhecido Todavia para que ele

funcione eacute preciso que exista um miacutenimo de plausibilidade nas ideias que sustentam o

controle absoluto de Deus Ou seja ningueacutem temeria algo que natildeo fizesse o miacutenimo sentido

Aqueles que combatiam os cristatildeos natildeo se intimidavam diante do Deus cristatildeo e em alguns

casos acreditavam estar sendo piedosos combatendo as crenccedilas descabidas desse novo grupo

Atentando para essas circunstacircncias Justino se empenha em mostrar correlaccedilotildees entre

elementos do pensamento cristatildeo e outros comuns agraves culturas no Impeacuterio

A ameaccedila do castigo no poacutes-morte eacute fundamental na estrutura da doutrina da justiccedila

divina Por isso para que sua estrateacutegia de persuasatildeo funcione ele se empenha em demonstrar

ldquoas evidecircnciasrdquo da vida eterna ou do poacutes-morte O apologista admite que ldquose a morte

terminasse na inconsciecircncia seria uma boa sorte para todos os malvadosrdquo (I181) uma

reflexatildeo comum tambeacutem a Plutarco (Consolatio ad Apollonium 11107c) Todavia Justino

manteacutem que a consciecircncia permanece e que a conduta humana eacute passiacutevel de puniccedilatildeo ou

precircmio em um momento aleacutem da vida451 Sua linha de pensamento sobre esse assunto

representa apenas uma das correntes de pensamento que emergiam entre os cristatildeos no seacuteculo

II452

Para minimizar qualquer exotismo no reconhecimento dessa doutrina cristatilde ele

menciona a necromancia453 as visotildees obtidas atraveacutes de crianccedilas puras454 os que satildeo

451 Como Platatildeo discorrendo sobre a vida apoacutes a morte em Phaedo 107c 452 Cf POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005 passim 453 Justino usa o termo nekuomanteiaj que deve ser entendido como ldquoconsulta aos mortosrdquo cf I183 454 Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p178) editou essa passagem da seguinte forma ai` avdiafqorwn paidwn evpopteuseij [les divinations faites sur les entrailles drsquoenfants innocents] Seu texto grego foi fiel ao MS A que sugere o termo avdiafqorwn no lugar de diafqorwn mas a versatildeo em francecircs se distanciou muito do significado estrito Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 59) observou a nota marginal do MS A e acrescentou tambeacutem a conjunccedilatildeo div proporcionando a seguinte frase ai` div avdiafqorwn paidwn evpopteuseij Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 123) apresentam uma correccedilatildeo que parece ser a mais convincente Em vez de substituir diafqorwn por avdiafqorwn eles simplesmente dividem a palavra que aparece no MS A em duas div avfqorwn paidwn evpopteuseij [visions obtained through uncorrupted children] Natildeo eacute possiacutevel dizer se se trata de uma

93

chamados entre os magos de espiacuteritos dos sonhos e espiacuteritos assistentes para assim tentar

estabelecer que mesmo depois da morte as almas conservam a consciecircncia Os casos de

possessatildeo ou loucura quando segundo sua concepccedilatildeo sobre o que se pensava naquela eacutepoca

alguns eram ldquoarrebatados e agitados pelas almas dos mortosrdquo tambeacutem satildeo alocados ao lado

dos oraacuteculos de Anfiloco de Dodona de Piton e outros semelhantes A descida de Ulisses ateacute

a regiatildeo dos mortos na obra de Homero (Odisseia10101 ndash 111ss) as doutrinas de escritores

como Empeacutedocles e Pitaacutegoras Platatildeo e outros que disseram coisas parecidas tambeacutem satildeo

destacadas

A ideia de uma consciecircncia apoacutes a morte fiacutesica natildeo era algo estranho no mundo greco-

romano da eacutepoca de Justino Mas o apologista apresenta uma elaboraccedilatildeo teoloacutegica sobre o

ldquocastigo ou salvaccedilatildeo eternardquo que deveria desempenhar uma funccedilatildeo coercitiva sobre as pessoas

em geral Essas ideias cristatildes satildeo herdeiras de elementos do pensamento judaico jaacute sob a

influecircncia do helenismo Desse modo satildeo encontrados aspectos comuns ao judaiacutesmo como o

da justiccedila divina e outros relativos a outras culturas como a existecircncia da alma455

Segundo Dag Oistein Endsjo456 os judeus sofreram a influecircncia da cultura grega sobre

as ideias do poacutes-morte sem que isso represente uma planificaccedilatildeo das duas culturas A

correspondecircncia entre alguns elementos aparece por exemplo na traduccedilatildeo de lw a v para avdej

na LXX proporcionando a associaccedilatildeo entre a ldquosepulturardquo e o ldquosubmundo dos mortosrdquo

Associaccedilatildeo que remonta a Odisseia de Homero e se estende para niacuteveis mais complexos

Conforme tambeacutem considerou E D Wright457 judeus e cristatildeos emprestaram alguns

elementos da cultura greco-romana para a elaboraccedilatildeo de suas cosmologias Mas as

consulta de crianccedilas vivas ou mortas mas poder haver alguma relaccedilatildeo com as passagens sobre as ldquocrianccedilas purasrdquo nos Papyri Graecae Magicae e principalmente com a Historia Eclesiaacutestica (III1311-12) de Soacutecrates 455 Devido aos objetivos desta pesquisa seraacute necessaacuterio ser bastante seletivo neste ponto A anaacutelise do desenvolvimento das ideias cristatildes sobre a vida apoacutes a morte exigiria uma anaacutelise de suas raiacutezes na cultura egeia entre os egiacutepcios mesopotacircmicos no zoroastrismo na cultura grega em geral e nas vaacuterias fases da religiatildeo dos judeus As correlaccedilotildees estabelecidas neste capiacutetulo satildeo aprofundamentos de toacutepicos sugeridos pelos proacuteprio Justino no decorrer de sua anaacutelises Para mais informaccedilotildees cf SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946 OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992 COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987 DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000 SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006 456 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 457 The History of Heaven New York Oxford University Press 2000 p 139

94

correlaccedilotildees se estendem tambeacutem para com a cultura persa que segundo Alan Segal458

apresentava aspectos muito atrativos ao povo simples

O desenvolvimento das ideias sobre o poacutes-morte entre os judeus eacute complexa Haacute

algum consenso entre os estudiosos de que a ideia de ldquoressurreiccedilatildeordquo tenha aparecido

tardiamente no judaiacutesmo Mas as Escrituras judaicas apresentam referecircncias a algum tipo de

existecircncia apoacutes a morte fiacutesica Um caso emblemaacutetico acontece quando o rei Saul procurou

uma b A a ecircb A a ecircb A a ecircb A a ecirc-t l[]B [evocadora de espiacuteritos] para poder falar com o falecido profeta Samuel (I

Samuel 281-7) praacutetica proibida pela Lei (Dt 189-12) No I seacutec dC a ressurreiccedilatildeo era

motivo de disputas entre saduceus e fariseus459 Os saduceus natildeo acreditavam na ressurreiccedilatildeo

dos mortos Sobre os fariseus Flaacutevio Josefo460 escreveu que ldquotoda alma [] eacute impereciacutevel

mas somente a alma dos bons passa a outro corpo Por outro lado a alma dos homens maus

estaacute sujeita agrave puniccedilatildeo eternardquo Os saduceus satildeo descritos como aqueles que ldquoacreditavam que

Deus natildeo estaacute interessado em se agimos bem ou mal [] agir bem ou mal eacute apenas uma

questatildeo de escolha humana e que uma ou outra pertence a cada um assim podem agir como

bem entendemrdquo461 Tambeacutem descartam a crenccedila ldquona duraccedilatildeo imortal da alma e na puniccedilatildeo e

recompensa no Hadesrdquo462 Na contramatildeo dessas ideias Josefo escreve que os fariseus

ldquotambeacutem acreditam que a alma tem o poder de sobreviver agrave morte em si e que embaixo da

terra haveraacute recompensa ou puniccedilatildeo para a vida de viacutecio ou virtude que se viveu nesta

vidardquo463

Natildeo passou despercebido a Vicente Dobroduka464 que o vocabulaacuterio empregado pelo

historiador judeu se assemelha razoavelmente ao de Platatildeo465 Quer seja por uma intenccedilatildeo do

autor em aproximar a doutrina farisaica agrave filosofia ou pela adaptaccedilatildeo de um editor posterior

os pontos de semelhanccedila entre essas doutrinas e a cultura helecircnica satildeo evidentes Mesmo sem

ser uma forma de pensar que atraiacutesse a todos os judeus naquela eacutepoca natildeo haacute razotildees para se

458 Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 p 394 Cf as noccedilotildees escatoloacutegicas persas que teriam influenciado a apocaliacuteptica judaica em RUSSELL D S The Method and Message of Jewish ApocalypticPhiladelphia Westminster Press 1964 p 19 e em SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008 p 314 Entre essas noccedilotildees esta a ideia da ressurreiccedilatildeo corporal Para uma visatildeo geral da escatologia do Avesta cf MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975 pp 177-207 459 Mt 2223-33 Josefo Ant Jud 1814 Guer Jud 28 460 Guer Jud 2162ss 461 Guer Jud 2162ss 462 Guer Jud 2162ss 463 Ant Jud 1814 464 DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 2005 p 24 465 Meno 81b5 Feacutedon 70a8 e 72a8

95

duvidar que a ideia de uma recompensa futura baseada nas accedilotildees humanas era amplamente

conhecida entre os judeus Como escreveu Elizacircngela A Sousa466

certos elementos nas ideias particulares de juiacutezo satildeo compartilhados por uma e outra cultura assinalando algum tipo de intercacircmbio existente entre elas o que ainda outra vez nos coloca de frente com o pressuposto de que certos aspectos culturais (e religiosos) se constituem se natildeo totalmente a partir de trocas simboacutelicas pelo menos em parte satildeo influenciados por elas

A tradiccedilatildeo aponta que Paulo era um fariseu467 e a sua crenccedila na ressurreiccedilatildeo se

desenvolveraacute entre os cristatildeos No entanto eacute preciso lembrar como destacou D O Sousa468

que entre os cristatildeos ldquonatildeo havia uma unicidade de pensamento em continuidade com a

escatologia judaicardquo No processo proselitista de comunicaccedilatildeo da mensagem cristatilde os fieacuteis

enfrentaram os questionamentos de outros grupos Segundo o relato de Atos dos Apoacutestolos

(1716-34) Paulo enfrentou a resistecircncia dos filoacutesofos epicureus e estoicos no areoacutepago em

Atenas e em outro episoacutedio precisou repreender os coriacutentios em carta porque alguns estavam

sustentando que natildeo existia ressurreiccedilatildeo (I Co 1512-33) Embora os relatos de ressurreiccedilatildeo

dos mortos e da existecircncia de uma consciecircncia apoacutes a morte fossem comuns ao mundo greco-

romano como destaca Dag Oistein Endsjo469 natildeo existia nenhum consenso e eacute possiacutevel

distinguir essas contraposiccedilotildees em pelo menos dois grupos os criacuteticos intelectuais que

incluiacuteam filoacutesofos oradores e escritores e por outro lado a maioria sem instruccedilatildeo

De acordo com Lewis Richard Farnell470 a especulaccedilatildeo filosoacutefica grega natildeo poderia

ser considerada uma testemunha plena da mentalidade e da feacute daquela eacutepoca da cultura greco-

romana Estrabatildeo471 escreveu provavelmente no iniacutecio do I seacuteculo dC que ldquofilosofia era

algo para poucos enquanto poesia era mais uacutetil para as pessoas em geralrdquo No mesmo sentido

Plutarco472 admite que em sua eacutepoca apenas poucos conheciam as Leis de Platatildeo enquanto os

escritos de Homero eram ainda amplamente disseminados Pausacircnias no seacuteculo II dC

escreveu que Platatildeo a quem ele chama de ldquoo maior dos filoacutesofosrdquo473 tinha suas ideias

recebidas somente ldquopor alguns dos gregosrdquo474 Tudo indica que a situaccedilatildeo no II seacuteculo era a

466 SOARES Elizangela A Variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte desenvolvimento de uma crenccedila no judaiacutesmo do segundo templo 127 f (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2006 p 104 467 At 223 468 SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 setdez 2009 p 412 469 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 passim 470 Ibid p 386 471 Geografia 128 472 Moralia 328de 473 Descriccedilatildeo da Greacutecia 4324 474 Ibid 1303

96

mesma que Oriacutegenes475 descreve no seacuteculo seguinte ldquoeacute faacutecil de fato observar que Platatildeo eacute

encontrado somente nas matildeos daqueles que professam serem homens das letrasrdquo

Conforme destacou Henry Chadwick476 o estudo da metafiacutesica platocircnica foi peculiar a

poucos de uma ldquoaristocracia intelectualrdquo Nesse sentido Ramsay MacMullen477 tambeacutem

apontou que a reflexatildeo filosoacutefica natildeo apresentou nenhuma influecircncia detectaacutevel agrave praacutetica

cuacuteltica da religiatildeo tradicional grega478 Por outro lado eacute possiacutevel encontrar criacuteticas da

intelectualidade agraves superstitiones e agrave religiatildeo tradicional Certamente para pensadores como

Plutarco Dio de Prusa e Luciano de Samoacutesata os deuses natildeo existiam conforme as formas

homeacutericas Segundo Ramsay MacMullen479 esses pensadores puristas sustentam que os

deuses estavam distantes demais de tais caracteriacutesticas humanas comuns tais como nascer

comer beber e fornicar como a maioria deles faz extensivamente em suas tradicionais

representaccedilotildees Tudo isso natildeo passa de deisidaimonia ou seja ldquosupersticcedilatildeordquo Muitas vezes os

filoacutesofos reinterpretavam ou racionalizavam os mitos antigos rejeitando acontecimentos

milagrosos recentes semelhantes agraves narrativas antigas

No mundo grego a morte foi usualmente definida como a separaccedilatildeo da alma do corpo

Isso eacute amplamente demonstrado nas representaccedilotildees da morte de muitos guerreiros de Homero

repetidamente descritas como a alma [yuch] deixando o corpo480 E mesmo Platatildeo poderia

concordar com isso tendo Soacutecrates proclamado que a morte em sua opiniatildeo ldquonatildeo eacute nada

aleacutem do que a separaccedilatildeo dessas duas coisas a alma e o corpordquo481 A alma homeacuterica no Hades

era sempre definida como ldquomorterdquo Eram ldquoespiacuteritos da morterdquo482 ldquoMorterdquo natildeo significava

inexistecircncia absoluta mas uma existecircncia deacutebil da alma sem o corpo Sem um corpo fiacutesico

ningueacutem era de fato uma ldquopessoa completardquo Para os gregos a natureza humana sempre

equivaleu a uma unidade psicossomaacutetica Como escreveu Michael Clarcke483 ldquoo homem

homeacuterico natildeo tinha uma mente pois seus pensamentos e consciecircncia eram partes constituintes

da sua vida corpoacuterea como eram os movimentos e o metabolismordquo

475 Contra Celso 62 476 Introduction In ____ Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi 477 Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 p77 478 Isso natildeo quer dizer que filosofia natildeo acarretou mudanccedilas na maneira de pensar a religiatildeo pelos letrados como se considerou no capiacutetulo anterior 479 Ibid p77 480 ENDSJO Dag Oistein Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 p 38 481 Platatildeo Gorgias 524b cf Platatildeo Feacutedon 64c 482 Odisseia 11541 cf Odisseia 10521 10536 1129 1149 483 CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999 p 115

97

Como filoacutesofo Plutarco natildeo acreditava em nenhuma dessas histoacuterias populares sobre

ressurreiccedilatildeo fiacutesica e imortalizaccedilatildeo Para ele somente a alma tinha a chance de alcanccedilar a

esfera divina ldquoquando ela definitivamente se separa e se torna livre do corpo tornando-se

pura descarnada e imaculadardquo484 Mas ele admite que a maioria das pessoas natildeo se importava

com isso

Essas especulaccedilotildees tinham consequecircncias apenas limitadas de modo que natildeo

apresentaram um impedimento destacaacutevel agrave proliferaccedilatildeo de superstitiones inclusive entre as

classes elevadas agraves vezes Conforme Rohde485 argumenta a indignaccedilatildeo apaixonada de

filoacutesofos estoicos e epicureus que atacavam as crenccedilas que repousavam sobre os ensinos de

Homero natildeo poderiam ser explicadas exceto pela suposiccedilatildeo de que Homero e suas

representaccedilotildees permaneciam com uma significativa forccedila de orientaccedilatildeo entre as massas que

natildeo tinham conhecimento da filosofia O proacuteprio Justino indica que as ideias em torno da

crenccedila no Hades ainda eram fortes

O apologista toma o desafio de mostrar que a forma de pensar cristatilde natildeo era uma

novidade tatildeo descabida que natildeo pudesse ser aceita e ao mesmo tempo procura mostrar que

suas ideias apresentam um argumento razoaacutevel Comparando a crenccedila cristatilde na existecircncia de

uma consciecircncia apoacutes a morte do corpo agraves outras opiniotildees disseminadas pelo Impeacuterio

destaca-se tambeacutem que essa doutrina natildeo era demasiadamente estranha aos povos486 Os

elementos aparentemente comuns agrave cultura greco-romana e ao cristianismo nascente satildeo

alinhados na construccedilatildeo do argumento de que se os cristatildeos natildeo apresentavam uma doutrina

demasiadamente nova natildeo deveriam existir razotildees para serem incomodados ou combatidos

Neste caso os que apresentam doutrinas semelhantes agraves dos fieacuteis tambeacutem mereceriam ser

combatidos ou em uma melhor hipoacutetese ambos mereceriam ser deixados em paz

Outro refuacutegio apologeacutetico encontrado por Justino eacute recorrer ao fundamento cristatildeo na

tradiccedilatildeo judaica para assim alegar a antiguidade cristatilde Mas reconhecendo os elementos

semelhantes agrave cultura geral e agrave religiatildeo dos judeus o apologista abaixa a guarda para os

golpes da intelectualidade Por isso sua trama apologeacutetica precisa forjar um sentido

racionalizante desses elementos comuns a pagatildeos e a judeus e apresentar ao mesmo tempo a

doutrina cristatilde como um ensinamento superior agrave filosofia

484 Plutarco Romulus 287 485 ROHDE Erwin [1921] Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966 p 535 486 I186

98

Ele compara a crenccedila cristatilde na consumaccedilatildeo final de todas as coisas agraves noccedilotildees de

Sibila487 e Histapes488 (I201) sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo de tudo o que eacute corruptiacutevel A

funccedilatildeo do fogo no processo do ciclo coacutesmico dos filoacutesofos estoicos tambeacutem eacute elencado

destacando o renascimento do mundo pela transformaccedilatildeo489 Arquitetando seu argumento

apologeacutetico Justino questiona por que os cristatildeos satildeo ldquoperseguidosrdquo se existem algumas

correlaccedilotildees ou semelhanccedila entre as coisas ensinadas entre os fieacuteis e entre os filoacutesofos e

ldquopoetasrdquo estimados pelos romanos490 Essas correlaccedilotildees no entanto levaratildeo o apologista a

um aprofundamento dessas semelhanccedilas e dessemelhanccedilas Ele escreve

Assim quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus pareceraacute apenas que enunciamos um dogma de Platatildeo ao falar sobre conflagraccedilatildeo outro dogma dos estoicos ao dizer que satildeo castigadas as almas dos iniacutequos que ainda depois da morte conservaratildeo a consciecircncia e que as dos bons livres de todo castigo seratildeo felizes pareceraacute que falamos como vossos poetas e filoacutesofos que natildeo se devem adorar obras de matildeos humanas natildeo eacute senatildeo repetir o que disseram Menandro o

487 O substantivo feminino Sibulla pode significar uma ldquoprofetizardquo (PEREIRA Isidro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 516) Admite-se que essas elas profetizavam sob a influecircncia divina O primeiro escritor grego a fazer menccedilatildeo a Sibila eacute Heraacuteclito (Fragmento 92) No entanto Walter Burket (Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 p 116) escreve que mulheres em frenesi espiritual pelas quais os deuses falavam podiam ser encontradas muito antes no Oriente proacuteximo como em Mari no secundo milecircnio e na Assiacuteria no primeiro milecircnio Elas natildeo eram identificadas por um nome proacuteprio ficavam conhecidas apenas com o nome do local onde atuavam Uma coleccedilatildeo de anuacutencios profeacuteticos deu origem ao que ficou conhecido como Libri Sibyllini Acredita-se que a abra tenha sido obtida no reinado de Tarquinio Priscus (616 aC ndash 579 ac) por uma Sibila que protagoniza um mito em torno do livro Por vezes ela eacute chamada apenas de Sibila Os textos serviam de paracircmetro para a religiatildeo e eram guardados no Juacutepiter Captolino Com o incecircndio do templo em 82 aC os livros se perderam Deram iniacutecio a uma raacutepida busca por textos sibiliacutenicos por diversas regiotildees para compor uma nova coleccedilatildeo Poreacutem o caraacuteter e a pretensatildeo dos textos coletados desapontou esse objetivo Augustus determinou que os livros fossem destruiacutedos (Suetonio Vita cesarum Augustus 31 Tacito Anais VI12) Tibeacuterio voltou a examinar os Livros Sibilinos Muitos foram rejeitados como escritos espuacuterios (Cassius Dio LIV17) Pouco tempo mais tarde ainda sob seu governo um novo volume foi admitido (Taacutecito Anais VI12) (cf SMITH W (Ed) A Dictionary of Greek na Roman Antiquities London John Murray 1875 pp 1043-1044) Do primeiro para o segundo seacuteculo uma grande porccedilatildeo de escritos de cunho judaico-cristatildeos entram no paacutereo do textos sibiliacutenios (cf TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899) Eacute difiacutecil saber exatamente a qual ensino sibilino sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo Justino se refere MUNIER (op cit p 185) sugere que seja o trecho dos Oracles Sibyllins II196 MARCOVICH (Op cit p 62) aponta as passagens de Oracle Sibylline 2196ss 2286ss 3672ss 3689ss 4173ss 7120ss 8243ss O mesmo livro sibilino eacute mencionado em I4512 cuja leitura era vetada ao povo Cf ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997 PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988 A Greek-English Lexicon Edited by Henry Georg Liddell and Robert Scott OxfordNew York Clarendon PressOxford University Press 1996 488 U`stasphj eacute a forma grega de se escrever Vistaspa nome do pai de Dario o Grande e protetor de Zoroastro (KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945) Justino provavelmente estaacute se referindo ao escrito pseudoepiacutegrafo dos Oraacuteculos de Histaspes produzido provavelmente entre os seacuteculo II e I aC Essa obra heleniacutestica da Aacutesia menor apresentava fortes traccedilos do Zoroastrismo mas tambeacutem evidenciava aspectos poliacutetico-apocaliacutepticos relacionado ao domiacutenio de Roma sobre os demais povos (SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012 cf CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938) Histaspe e Sibila tambeacutem aparecem juntos nos escrito de Clemente de Alexandria (Stromata VI51) Lactacircncio (Divinae Institutiones VII1519 VII182) 489 I202 490 I203

99

poeta cocircmico e outros com ele que afirmaram que o artiacutefice eacute maior do que aquele que o fabrica (I204-5)

Tendo em vista a criacutetica dos filoacutesofos e letrados agraves crenccedilas gerais do povo as

semelhanccedilas e pontos de contato entre as doutrinas cristatildes e os mitos pagatildeos apontados por

Justino em defesa dos cristatildeos poderia se converter em uma nova dificuldade como algueacutem

que tenta sair de um abismo para cair em outro Por isso ele desenvolve uma explicaccedilatildeo para

essas semelhanccedilas elevando as doutrinas cristatildes a um niacutevel de primazia e evidenciando o seu

aspecto filosoacutefico

Segundo Viviana L Felix491 mesmo admitindo a semelhanccedila entre os ensinos de

Platatildeo e o dos cristatildeos uma posiccedilatildeo contraacuteria agrave doutrina platocircnica da alma eacute assumida

empenhando-se na construccedilatildeo de uma soteriologia e escatologia cristatildes conforme seratildeo

analisadas mais adiante O apologista combate como destaca Van Winden492 as correntes

filosoacuteficas que natildeo tecircm esperanccedila que Deus castigue ou premie em outra vida Seu interesse

estaacute ligado agrave vida eacutetica do homem e seu destino escatoloacutegico

A esperanccedila dos cristatildeos de terem os seus corpos restabelecidos mesmo depois de

mortos poderia representar algo ldquoimpossiacutevelrdquo na opiniatildeo de alguns Justino natildeo usa outro

argumento que natildeo seja o argumento da feacute Esse seu subterfuacutegio indica que muitas coisas que

parecem ser impossiacuteveis em um momento se demonstram possiacuteveis em outro surpreendendo

a muitos Ele usa o exemplo do secircmen humano para dizer que mostrado a algueacutem luacutecido

jamais se poderia supor imediatamente que uma soacute gota desse liacutequido seria capaz de se

transformar em um corpo humano De modo semelhante entatildeo se a princiacutepio pode parecer

estranho crer que um corpo ldquosemeadordquo na sepultura possa se transformar em um corpo

glorificado na ressurreiccedilatildeo depois se mostraraacute evidente493 Explanando esse argumento o

apologista explica que os cristatildeos sustentam que ldquoeacute melhor crer naquilo que estaacute acima da []

proacutepria natureza e que eacute impossiacutevel aos homens do que serem increacutedulosrdquo494 Tudo gira em

torno dos ensinamentos do seu mestre Jesus Cristo O mesmo que ensinou que o que eacute

impossiacutevel para os homens eacute possiacutevel para Deus495 Para um ouvinte alheio agrave mentalidade

judaico-cristatilde tal sentenccedila poderia parecer muito vaga Afinal os pagatildeos estavam

familiarizados com as limitaccedilotildees humanas e os poderes divinos que recheavam os mitos 491 FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa 492 WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 1975 pp 181-190 493 I191-4 494 I196 Kreitton de pisteuein kai tauta kai ta Th| e`autwn fusei kai avnqrwpoij avdunata hv o`moiwj toij alloij avpistein proseilhfamen MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 495 `Ta avdunata para avnqrwpoij dunata para qew|( MINNSPARVIS Op cit p 128 A citaccedilatildeo eacute de Lc 1827

100

Todavia Justino faraacute saber que o ponto chave desse misteacuterio eacute a feacute naquilo que eacute crido como a

ldquorevelaccedilatildeo divinardquo Essa revelaccedilatildeo mostra-se tambeacutem desafiadora pois ao mesmo tempo em

que traz luz sobre as accedilotildees humanas porta condenaccedilatildeo e temor ainda que estes sejam

contemplados pela mensagem da cruz496 de modo reparador Eacute no exato momento em que se

manifesta a necessidade de escolher aquilo que se revela como o correto verdadeiro e bom

que se deve temer pela escolha capaz de determinar o destino no poacutes-morte Essa advertecircncia

tambeacutem foi feita pelo mestre Natildeo temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais

podem fazer temei antes aquele que depois da morte pode lanccedilar alma e corpo no

inferno497 Ele mesmo define o ldquoinfernordquo como ldquoo lugar onde seratildeo castigados os que

tiverem vivido iniquamente e natildeo acreditaram que aconteceratildeo essas coisas ensinadas por

Deus atraveacutes de Cristordquo498 (I198) O Deus absoluto que tudo vecirc tudo conhece e do qual

nada se pode ocultar aparece tambeacutem como o grande juiz das accedilotildees humanas Assim

comunicada essa ldquoverdaderdquo cristatilde ela deve produzir temor e efetivar a sua funccedilatildeo em exigir

uma accedilatildeo positiva ou negativa de quem a ouve ou a lecirc

42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde

Seguindo o raciociacutenio do apologista deve ser a ldquorazatildeordquo a dirigir as escolhas humanas

No entanto a ldquorazatildeordquo ou seja o logos que estaacute em evidecircncia no pensamento de Justino eacute

produto da sua arguiccedilatildeo teoloacutegico-apologeacutetica Eacute possiacutevel identificar uma estrateacutegia literaacuteria

496 Mensagem da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo 497 lsquoMh Fobeisqe touj avnairountaj umaj kai meta tauta mh dunamenouj ti poihsai( fobhqhte de meta to Avpoqanein dunaMenon kai yuchn kai swma eivj geennan evmbalein)v MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 Cf Mt 1028 Lc 124-5 Geenna eacute uma transliteraccedilatildeo grega do termo aramaico ~ N h iy G e que corresponde ao ~oN h i a y G e hebraico e assumiu o sentido de ldquopuniccedilatildeo futurardquo (RUSCONI C Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 106 A primeira menccedilatildeo ao Vale de Hinnom na Biacuteblia aparece em Js 158 No entanto no texto dos LXX (LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]) satildeo empregadas as palavras faragga Onom para se referir ao ~ N Oh i- y g E) da Biacuteblia Hebraica (Biblia Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50]) Em II Cr 283 a LXX substitui ~ N O=h i- b a y g EaringB pela transliteraccedilatildeo Gaibenenom Esse lugar teria destinados primeiramente ao sacrifiacutecio de crianccedilas a Moloque e a Baal numa parte especiacutefica do vale chamada Tophet Depois do Exiacutelio com o intuito de mostrar a abominaccedilatildeo do local o judeus o transformaram no depoacutesito de lixo da cidade Para a destruiccedilatildeo dos resiacuteduos ali depositados o fogo era mantido sempre aceso Por isso os judeus associaram ao local a ideia de sofrimento e corrupccedilatildeo (Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998 p 457) A palavra geenna eacute sempre empregada nos discursos de Jesus (Mt 2333 Lu 125 Mt 522) como um lugar de puniccedilatildeo num julgamento futuro e Justino o emprega nesse mesmo sentido 498 h de geenna evsti topoj enqa kolaxesqai mellousin oi` avdikwn biwsantej kai mh pisteuontej tauta genhsesqai( o[as o` qeoj dia tou Cristou evdidaxe) MINNSPARVIS Op cit p 128 Cf Lc 125 Mt 1028

101

que ressignifica o conceito de ldquorazatildeordquo por meio da construccedilatildeo teoloacutegica em torno do logos

cristatildeo buscando atestar a racionalidade da ldquofilosofiardquo cristatilde

Considerar a religiatildeo cristatilde como uma ldquofilosofia divinardquo499 natildeo eacute apenas o reflexo da

sua trajetoacuteria filosoacutefica ateacute sua conversatildeo eacute tambeacutem uma estrateacutegia apologeacutetica que considera

normal existirem diferentes correntes de pensamento dentro do Impeacuterio sem que isso acarrete

automaticamente perseguiccedilotildees entre grupos distintos500 Segundo Justino eacute o logosrazatildeo que

orienta o curso da apologia em favor dos cristatildeos501 O apologista estaacute convencido de que suas

reivindicaccedilotildees satildeo ldquojustas e verdadeirasrdquo502 o que exige uma investigaccedilatildeo particular sobre o

sentido desses dois conceitos tambeacutem De outro modo a causa uacuteltima das accedilotildees anticristatildes eacute a

influecircncia dos democircnios que colocam o povo e as autoridades contra os fieacuteis Segundo seu

raciociacutenio os ldquomaus democircniosrdquo agiam por meio da promoccedilatildeo da ignoracircncia e da confusatildeo

Por isso ele se demonstra disposto a apresentar outros pontos sobre as crenccedilas cristatildes ldquoa fim

de persuadir os amantes da verdaderdquo503

Tendo em vista que o mecanismo de controle proporcionado pelo conteuacutedo das

doutrinas cristatildes eacute estabelecido fundamentalmente pelo temor diante do Deus que sonda todas

as coisas e que pode punir ou recompensar eternamente aqueles que agem virtuosamente nesta

vida o apologista escreve sobre a capacidade humana de agir racionalmente

Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e se recusem

outras como ldquoa pobreza o sofrimento e a desonra paternardquo504 A incompreensatildeo dessa

ldquoracionalidade cristatilderdquo fazia com que muitos se opusessem aos cristatildeos A falta de

conhecimento sobre as doutrinas cristatildes seria a responsaacutevel por exemplo por muitos

acusarem-lhes de ateiacutesmo505 Por ser uma religiatildeo nova e em processo de consolidaccedilatildeo natildeo eacute

nenhuma surpresa que muitos ainda estivessem confusos acerca das doutrinas cristatildes que por

vezes encabulavam os proacuteprios cristatildeos506

499 II Apol 125 500 II Apol 126 501 II Apol 128 502 I1211 tambeacutem em I683 ldquonatildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo 503 I1211 504 I128 505 I131 506 Os cristatildeos estavam longe de apresentarem unidade doutrinaacuteria Justino faz menccedilatildeo a cristatildeos divergentes como Helena Menandro e os marcionitas (I261-8)

102

421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios

Segundo a tese apresentada por Justino os democircnios se apoderam de todos aqueles

que de um ou outro modo natildeo trabalham por sua proacutepria salvaccedilatildeo O conceito de daiacute mwn

estava presente na cultura grega desde Homero e Hesiacuteodo507 Seu campo semacircntico eacute extenso

Deus conceito baacutesico que mais se aproxima da ideia que Justino sustenta eacute o de ldquoum ser

divinordquo ldquoo poder divinordquo ldquoum semideusrdquo ldquoser que interfere no destino humanordquo e poderia

ser ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo508

O conceito de ldquosalvaccedilatildeordquo natildeo estaacute claro nesses escritos mas estaacute relacionado agrave

recompensa positiva daqueles que creram e agiram conforme a revelaccedilatildeo dos desiacutegnios

divinos Isso tambeacutem significa associar-se ao logos e dissociar-se dos enganos demoniacuteacos

Desse modo ele escreve que ldquodepois de crer no logos noacutes nos afastamos deles [dos democircnios]

e por meio do Filho seguimos o uacutenico Deus unigecircnitordquo509

Esse distanciamento dos enganos destes seres malignos e pelo apego ao logos eacute o que

produz uma mudanccedila de conduta Seu testemunho em defesa da feacute eacute que os que antes se

compraziam na dissoluccedilatildeo agora abraccedilam apenas a temperanccedila os que antes se entregavam

agraves artes maacutegicas agora se consagram ao Deus bom e ingecircnito aqueles que antes eram

apegados aos bens materiais e agraves rendas agora compartilham do quem tecircm os que antes se

odiavam e se matavam mutuamente desprezando aqueles que natildeo pertenciam agrave mesma raccedila

pela diferenccedila de costumes agora vivem todos juntos rezam pelos seus inimigos e tratam de

persuadir os que os aborrecem injustamente a fim de que vivendo conforme conselhos de

Cristo tenham boas esperanccedilas de alcanccedilar uma recompensa de Deus (I Apol 141-3) Por

isso o filoacutesofo apologista critica as accedilotildees anticristatildes romanas que acatavam as caluacutenias

disseminadas dizendo ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e natildeo

tenhais a quem castigarrdquo510

A fonte da moralidade cristatilde estaacute primeiramente relacionada agrave mensagem do seu

mestre o Cristo por vezes tido como motivo de escacircndalo para os infieacuteis Essa moralidade eacute

destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e comentaacuterios ldquodisseminados

507 POPE Kyle Mark The concept of theDAIMWN in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 13-17 cf REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004 508 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 (Perseu Project) 509 I Apol 141 510 I Apol 124

103

entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso seu discurso sobressalta o

valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de temperanccedila511 Tambeacutem recebem

destaques a doutrina cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos

necessitados e a ausecircncia de valor da ostentaccedilatildeo512 Com o mesmo tom piedoso seguem as

afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico513 Desse

modo Justino contribui tambeacutem para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos

propondo uma identidade coletiva Nesse processo o apologista combate um conceito

estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que considera equiacutevocos e mal entendidos

ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja Essa sua atitude revela tambeacutem que o processo de construccedilatildeo da

identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada principalmente pela

necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os variados grupos

cristatildeos Pois as Igrejas em meados do seacuteculo II devem ser vistas ainda como manifestaccedilotildees

de ldquocristianismosrdquo514

No intuito de explicar o caraacuteter das crenccedilas cristatildes Justino faz referecircncia agrave recepccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo de escritos e doutrinas Ser cristatildeo em sua perspectiva natildeo eacute simplesmente

pertencer a um grupo eacute um ldquoidealrdquo o de aprender o que foi ensinado pelo Cristo e praticar

em suas obras Desse modo elege-se a praacutetica dos ensinamentos do Logos como o elemento

fundamental diferenciador entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos515 Justino defende a liberdade para

estes que ele tem por ldquocristatildeosrdquo aos outros espera-se que sejam mesmo perseguidos516

Dentre os ensinos do Cristo estaacute o pagamento dos tributos e contribuiccedilotildees517 mas o

apologista vai aleacutem Propondo-se a oferecer algumas das principais informaccedilotildees sobre o

conteuacutedo das crenccedilas cristatildes um paralelo entre a natureza desses ensinamentos e outras

arguiccedilotildees eacute traccedilado518

Jesus eacute descrito como u`ioj de Qeou [filho de Deus] aquele que ainda que parecesse

homem de modo comum por sua sabedoria mereceria chamar-se filho de Deus Haacute um

511 I151-7 512 I141-919 513 I161-6 514 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 515 ldquoAqueles poreacutem que se vecirc que natildeo vivem como ele ensinou sejam declarados como natildeo cristatildeos por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de Cristo pois ele disse que se salvariam natildeo os que apenas falassem mas que tambeacutem praticassem as obrasrdquo (I169) 516 ldquoAqueles que natildeo vivem conforme os ensinamentos de Cristo e satildeo cristatildeos apenas de nome noacutes somos os primeiros a vos pedir que sejam castigadosrdquo (I1614) 517 Justino recorre agrave passagem comum a Mt 221719-20 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo cf I172 518 I144

104

contraste entre o Cristo que nasceu como Logos de Deus e o que afirmavam sobre Hermes

chamado de Logos anunciador ou mensageiro de Deus519 Para rebater o desdeacutem pela

crucificaccedilatildeo de Cristo que poderia representar algo despreziacutevel aos olhos de muitos no

Impeacuterio o apologista aponta que tambeacutem os filhos de Zeus sofreram mortes terriacuteveis Sobre

ele haver nascido de uma virgem ele compara-o a Perseu Quanto agrave cura de coxos paraliacuteticos

e enfermos de nascimento e ateacute mesmo ressurreiccedilatildeo de mortos ele aponta que haacute alguma

semelhanccedila com Ascleacutepio520 As comparaccedilotildees tambeacutem envolvem Dioniso e Heacuteracles esta

uacuteltima ascendida depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos os Dioacutescoros filhos de

Leda Perseu de Dacircnae e Belerofonte nascido de homens que ascenderam sobre o cavalo

Peacutegaso O apologista fala tambeacutem dos imperadores mortos aos quais muitos consideravam

como dignos da imortalidade e alguns juravam terem visto Ceacutesar subir ao ceacuteu521 Mas ele

adverte ldquoNatildeo pedimos que se aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque

dizemos a verdaderdquo522

As doutrinas cristatildes satildeo apresentadas como a ldquouacutenica verdaderdquo e a mais antiga do que

todos os escritores que existiram Seu discurso busca demonstrar que Jesus Cristo eacute

propriamente o uacutenico Filho nascido de Deus como seu Logos seu Primogecircnito e sua

Potecircncia A encarnaccedilatildeo do Filho pelo seu designo deu-se para que ele ensinasse essas

verdades para a transformaccedilatildeo e conduccedilatildeo do ldquogecircnero humanordquo523 Poreacutem segundo sua teoria

apologeacutetica antes de tornar-se homem entre os homens houve alguns democircnios malvados

que se adiantaram a dizer por meio dos poetas terem acontecido os mitos que inventaram

Seriam esses os mitos gerais conhecidos por gregos e romanos Em oposiccedilatildeo ao

esclarecimento proposto pelo logos para a salvaccedilatildeo humana esta o obscurecimento de toda a

racionalidade proporcionado pelos democircnios

Os democircnios satildeo entatildeo reconceituados a partir de uma perspectiva cristatilde que toma por

base a tradiccedilatildeo judaica em intersecccedilatildeo com aspectos da cultura grega conforme analisou K

M Pope524 Sua imagem estaacute relacionada ao ldquopriacutencipe dos maus democircniosrdquo chamado de

ldquoserpente satanaacutes diabo ou caluniador Todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que

519 I221-2 520 I225-6 521 Cassius Dio (Hist Rom 56462 cf T Livio Histoacuteria de Roma (Ad urbe condita) I165-7) menciona a histoacuteria de que um senador e ex-pretor tinha jurado que ele tinha visto Augustus subindo aos ceacuteus Suetocircnio tambeacutem se refere a algo desse tipo Augustus 1004 Uma histoacuteria similar foi contada sobre Iulia Drusilla a irmatilde de Caliacutegula (Cassius Dio Hist Rom 59114) Secircneca zomba deste testemunho em Apocolocyntosis I 522 I231 523 I232 cf SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987 524 The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 52-53

105

o seguem seraacute enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de

antematildeo anunciada por Cristordquo525

Justino acredita ser possiacutevel demonstrar a veracidade da feacute cristatilde por meio do

cumprimento das Escrituras526 Ele explica que os profetas de Deus movidos pelo logos e sob

o Espiacuterito profeacutetico anunciaram antecipadamente os acontecimentos futuros Vem em

seguida uma seacuterie de ldquoprediccedilotildeesrdquo sobre a vinda de Cristo e sobre o que deveria acontecer tais

como a queda de Jerusaleacutem527 a cura das enfermidades e a morte de Cristo a ressurreiccedilatildeo dos

mortos e a prediccedilatildeo de Isaiacuteas528 sobre a expansatildeo para todas as naccedilotildees Ele tambeacutem procura

mostrar que ateacute o sofrimento e a humilhaccedilatildeo de Jesus estavam previstas nas profecias e que

ele chegou a ser abandonado ateacute pelos seus (I501ss) Seu raciociacutenio eacute o seguinte

Com efeito do mesmo modo que o acontecido antecipadamente anunciado por mais que natildeo tivesse sido compreendido aconteceu assim tambeacutem o que ainda falta para ser cumprido aconteceraacute por mais que natildeo se compreenda nem se creia Assim eacute que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo uma jaacute cumprida como homem desonrado e passiacutevel a segunda quando viraacute dos ceacuteus acompanhado de seu exeacutercito de anjos quando ressuscitaraacute tambeacutem os corpos de todos os homens que existiram revestiraacute de incorruptibilidade os que forem dignos e enviaraacute os iniacutequos com percepccedilatildeo eterna ao fogo eterno junto com os perversos democircnios (I521-3)

Com convicccedilatildeo sobre o cumprimento das profecias escreve ldquoDe fato por que motivo

haveriacuteamos de crer que um homem crucificado eacute o primogecircnito do Deus ingecircnito e que

julgaraacute todo o gecircnero humano se natildeo encontraacutessemos testemunhos sobre ele publicados

antes de ele ter nascido como homem e natildeo os viacutessemos literalmente cumpridosrdquo 529 E isso o

faz pensar que a apresentaccedilatildeo desse elevado nuacutemero de referecircncias a prediccedilotildees e seus

cumprimentos deveria razoavelmente convencer a seus leitores530

Os mitos dos pagatildeos satildeo comparados aos ldquoensinosrdquo cristatildeos sustentando que eles natildeo

apresentam nenhuma prova de sua veracidade Isso deveria demonstrar que foram ditos por

obra dos ldquodemocircnios perversosrdquo para enganar e extraviar o ldquogecircnero humanordquo Ouvindo os

profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens iacutempios seriam castigados atraveacutes do

fogo esses seres maleacutevolos teriam colocado agrave ldquofrente muitos que se disseram filhos de Zeus

crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo

como um conto de fada semelhante aos contados pelos poetasrdquo531 Assim eacute elencada uma

seacuterie de semelhanccedilas entre a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e a greco-romana para mostrar a distorccedilatildeo

525 I281 526 I301ss 527 I471ss 528 Is 651-15 520 529 I532 530 Justino escreve que seriam persuadidos os que ldquoamam a verdade que natildeo seguem a opiniatildeo nem se deixam dominar por suas paixotildeesrdquo (I5310-12) 531 I542

106

pagatilde que soacute podem ser identificadas atraveacutes de uma hermenecircutica bem peculiar532 As

comparaccedilotildees vatildeo desde o texto de Gn 4910-11 agrave vinha de Dioniso e sua ascensatildeo

semelhante agrave subida de Belerofonte montado no cavalo Peacutegaso ao ceacuteu o texto de Is 714 e a

lenda de Perseu Sl 186 e as narrativas sobre Heacutercules ateacute as ldquoprofeciasrdquo de curas a todas as

enfermidades e ressurreiccedilatildeo dos mortos533 ao mito de Ascleacutepio Mas a crucificaccedilatildeo eacute algo que

os pagatildeos natildeo poderiam imitar pois tudo ldquotudo o que se refere agrave cruz foi dito de forma

simboacutelicardquo534

Os judeus no entanto satildeo tidos como ignorantes sobre o cumprimento das profecias

de que Jesus deveria vir nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda

doenccedila toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e

crucificado que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus

que ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os

homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nele535

Ele recorre aos escritos do profeta Isaiacuteas536 para indicar que Cristo seria concebido por

uma virgem O logos eacute conceituado como o Filho a primeira virtude ou potecircncia depois de

Deus que eacute Pai e soberano de todas as coisas O logos entatildeo se tornou carne e nasceu homem

(I3210) Por Espiacuterito e forccedila que procede de Deus ele eacute reconhecido como o Logos que eacute o

primogecircnito de Deus O apologista sustenta que aqueles que profetizam satildeo inspirados pelo

logos divino

Em sua perspectiva os judeus detentores da tradiccedilatildeo e dos livros dos profetas poreacutem

aleacutem de natildeo reconhecerem a Cristo jaacute vindo tambeacutem odeiam aos cristatildeos Isso eacute destacado

na sua afirmaccedilatildeo de que na guerra dos judeus Bar Koseba o cabeccedila da rebeliatildeo mandava

submeter a terriacuteveis torturas somente os cristatildeos caso estes natildeo negassem e blasfemassem

Jesus Cristo (I316)

A mensagem cristatilde eacute um elemento apelativo que busca induzir os fieacuteis a uma conduta

diferente ldquoNoacutes que antes nos mataacutevamos mutuamente agora natildeo soacute natildeo fazemos guerra

contra os nossos inimigos mas tambeacutem por natildeo mentir nem enganar os juiacutezes que nos

interrogam morremos felizes de confessar a Cristordquo (I393) Justino considera ridiacuteculo que os

soldados que se arrolam e se alistam pusessem a lealdade para com o imperador ldquoacima de

sua proacutepria vida acima dos pais paacutetria e tudo o que lhes pertence embora nada de

532 BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 2009 pp 538-555 533 Is 355-6 Mt 115 534 I551 535 I317-8 536 Is 111-10

107

impereciacutevel lhes pudeacutesseis oferecerrdquo (I395) Por outro lado os cristatildeos que amam a

incorrupccedilatildeo suportam tudo a troco de receber daquele que confiam ter poder para lhes dar

(I395)

A superioridade do Deus judaico-cristatildeo sobre os deuses das outras naccedilotildees aparece

submetendo os demais deuses ao jugo dos ldquodemocircniosrdquo sob a sombra da ignoracircncia que esses

propagam Entretanto o Deus dos cristatildeos eacute o Deus que criou a racionalidade

Justino coloca que

no princiacutepio [Deus] criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma pedra Virtude e viacutecio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e iniquidade (I283-4)

Esse ser racional que Justino se refere eacute tambeacutem aquele cuja racionalidade pode ser ratificada

no reconhecimento e submissatildeo aos ensinos cristatildeos Haacute uma postura anti-estoica manifesta

em suas palavras que reduz o dogma do destino dessa corrente filosoacutefica a ldquoimpiedade e

iniquidaderdquo537

Ele sustenta que os cristatildeos aprenderam com os profetas que

os castigos e tormentos assim como as boas recompensas satildeo dadas a cada um conforme as suas obras Se natildeo fosse assim mas tudo acontecesse por destino natildeo haveria absolutamente livre-arbiacutetrio Com efeito se jaacute estaacute determinado que um seja bom e outro mau nem aquele merece elogio nem este vitupeacuterio Se o gecircnero humano natildeo tem poder de fugir por livre determinaccedilatildeo do que eacute vergonhoso e escolher o belo ele natildeo eacute irresponsaacutevel de nenhuma accedilatildeo que faccedila538 (I432-3)

Ele destaca que se por outro lado algueacutem

estivesse determinado [para] ser mau ou bom natildeo seria capaz de coisas contraacuterias nem mudaria com tanta frequumlecircncia Na realidade nem se poderia dizer que uns satildeo bons e outros maus desde o momento que afirmamos que o destino eacute a causa de bons e maus e que realiza coisas contraacuterias a si mesmo ou que se deveria tomar como verdade o que jaacute anteriormente insinuamos isto eacute que virtude e maldade satildeo puras palavras e que soacute por opiniatildeo se tem algo como bom ou mau Isso como demonstra a verdadeira razatildeo eacute o cuacutemulo da impiedade e da iniquidade (I436)

O ldquodestino iniludiacutevelrdquo reconhecido pelo apologista eacute que aqueles que escolheram o

bem tenham ldquodigna recompensardquo e os que escolheram o contraacuterio tenham igualmente ldquodigno

castigordquo (I437) Dentro do sistema de pensamento construiacutedo por Justino seria incoerente

com o sistema de controle social admitir que Deus tenha determinado as escolhas humanas

Nesse caso como ele escreve ldquonatildeo seria digno de recompensa e elogio pois natildeo teria

escolhido o bem por si mesmo mas nascido jaacute bom nem por ter sido mau seria castigado

537 avsebeia kai avdikia evsti I284 538 PLATAtildeO Repuacuteblica 617e

108

justamente pois natildeo o seria livremente mas por natildeo ter podido ser algo diferente do que foirdquo

(I438) Desse modo o apologista deixa clara sua oposiccedilatildeo ao estoicismo539

O pensamento de Justino sobre isso poderia ser resumido em ldquoDeus criou livres tanto

os anjos como o gecircnero humano e por isso receberam com justiccedila o castigo de seus pecados

no fogo eternordquo540 Tal alegaccedilatildeo estaria fundamentada na ideia de que tudo deve ser capaz de

viacutecio e de virtude pois ningueacutem seria digno de louvor se natildeo pudesse tambeacutem voltar-se para

um desses extremos541

Ele assume que esta doutrina foi ensinada pelo Espiacuterito profeacutetico que por meio de

Moiseacutes nos testemunha que falou ao primeiro homem que havia criado do seguinte modo

ldquoOlha que diante de tua face estaacute o bem e o mal escolhe o bemrdquo542 Ele cita tambeacutem Isaiacuteas543

e o proacuteprio Platatildeo544 ao dizer A culpa eacute de quem escolhe Deus natildeo tem culpa Justino

alega que Platatildeo falou isso por tecirc-lo tomado do profeta Moiseacutes desse modo ele diz que ldquopois

se sabe que este eacute mais antigo do que todos os escritores gregosrdquo (I441-8) Para explicar os

elementos semelhantes entre os escritos gregos e os judaico-cristatildeos o apologista alega que

tudo o que os filoacutesofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplaccedilatildeo das coisas celestes aproveitaram-se dos profetas natildeo soacute para poder entender mas tambeacutem para expressar isso Daiacute que parece haver em todos algo como germes de verdade Todavia demonstra-se que natildeo o entenderam exatamente pelo fato de que se contradizem uns aos outros (I449-10)

Deus conhece de antematildeo tudo o que seraacute feito por todos os homens e eacute decreto seu

recompensar cada um segundo o meacuterito de suas obras e por isso justamente prediz por meio

do Espiacuterito profeacutetico o que para cada um viraacute da parte dele conforme o que suas obras

mereccedilam545 Ele eacute aquele que constantemente conduz o gecircnero humano agrave reflexatildeo e agrave

lembranccedila demonstrando-lhe que cuida e usa de providecircncia para com os homens

Sobre a novidade da religiatildeo cristatilde Justino escreve ldquoAlguns sem motivo para rejeitar

o nosso ensinamento poderiam nos objetar que ao dizermos que Cristo nasceu somente haacute

cento e cinquumlenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio

Pilatos os homens que o precederam natildeo tecircm nenhuma responsabilidaderdquo (461) Ele entatildeo

responde

Noacutes recebemos o ensinamento de que Cristo eacute o primogecircnito de Deus e indicamos antes que ele eacute o Logos do qual todo o gecircnero humano participou Portanto aqueles

539 ldquohellipnoacutes dizemos que aconteceraacute a conflagraccedilatildeo universal mas natildeo como dizem os estoacuteicosrdquo II63 cf Alesandre de Aphrodisias On Fate 9 [17525] 540 II65 541 II66 542 Dt 301519 543 Is 116-20 544 Repuacuteblica X617e 545 I4411

109

que viveram conforme o Logos satildeo cristatildeos quando foram considerados ateus como sucedeu entre os gregos com Soacutecrates Heraacuteclito e outros semelhantes e entre os baacuterbaros com Abraatildeo Ananias Azarias e Misael e muitos outros cujos fatos e nomes omitimos agora pois seria longo enumerar De modo que tambeacutem os que antes viveram sem razatildeo [logos] se tornaram inuacuteteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razatildeo [logos] mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela satildeo cristatildeos e natildeo experimentam medo ou perturbaccedilatildeo O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma virgem pela virtude do Logos conforme o desiacutegnio de Deus Pai e soberano do universo e foi chamado Jesus e depois de crucificado e morto ressuscitou e subiu ao ceacuteu o leitor inteligente poderaacute perfeitamente compreendecirc-lo pelas longas explicaccedilotildees que foram dadas ateacute aqui (462-6)

O apologista usa de uma estrateacutegia semacircntica para literalmente ldquodar razatildeordquo agraves

doutrinas cristatildes

422 A razatildeo que julga

No mundo grego a palavra logoj jaacute assumira uma significacircncia para o pensamento

especulativo desde muito cedo Era um termo teacutecnico para as vaacuterias ldquociecircnciasrdquo que se

desenvolviam na Greacutecia do seacutec V aC A gramaacutetica a loacutegica a retoacuterica a psicologia a

metafiacutesica a teologia e a matemaacutetica deram-lhe sentidos diferentes ainda dentro do mesmo

campo da ciecircncia Seu campo semacircntico eacute vasto Pode significar razatildeo palavra discurso

menccedilatildeo declaraccedilatildeo afirmaccedilatildeo resposta promessa dito proveacuterbio ou maacutexima546 Alguns

destes significados podem parecer contraditoacuterios Ele eacute um termo comum que pode aparecer

em qualquer lugar Aparece nos textos de Homero Heroacutedoto Platatildeo Aristoacuteteles Tuciacutededes

Piacutendaro Aeschylus Xenoacutefanes Soacutefocles Aischines e outros547 mas eacute seu significado

filosoacutefico-religioso que importa A histoacuteria desse conceito eacute bastante complexa todavia eacute

suficiente abordar os principais aspectos do uso filosoacutefico-religioso do logoj

Justino sustenta que os gregos aprenderam muitos conceitos com as Escrituras

judaicas Segundo sua teoria Ptolomeu rei do Egito se preocupou em formar uma biblioteca

e nela reunir os escritos de todo o mundo tendo notiacutecia dessas profecias mandou uma

546 Significa ainda decisatildeo resoluccedilatildeo ordem proclamaccedilatildeo ensinamento doutrina parte de doutrina definiccedilatildeo hipoacutetese condiccedilatildeo pacto fama tradiccedilatildeo lenda reputaccedilatildeo boato opiniatildeo notiacutecia revelaccedilatildeo oraacuteculo resposta de oraacuteculo palavra revelada verbo assunto mateacuteria objeto questatildeo fato acontecimento coisa discurso frase prosa falar faculdade de falar e como logoj proforikoj discurso extriacutenseco palavra uso da palavra direito agrave palavra coloacutequio discussatildeo faacutebula narrativa imaginaacuteria lenda mito narrativa histoacuterica histoacuteria literatura conta caacutelculo soma explicaccedilatildeo avaliaccedilatildeo valor significado a razatildeo praacutetica (nouj especulativo) razatildeo divina personificada motivo causa fundamento justificaccedilatildeo plano projeto RUSCONI C (ed) DICIONAacuteRIO do grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 350 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001 547 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001

110

embaixada pedindo os livros dos judeus Ptolomeu providenciou que fossem traduzidos para o

grego Depois disso os livros permaneceram entre os egiacutepcios ateacute o presente e os judeus os

usam no mundo inteiro Assim os gregos teriam aprendido muitas coisas que teriam

ldquoenriquecidordquo seus mitos e pensamentos em geral548

Todavia foi Filon de Alexandria quem primeiro tomou as interrogaccedilotildees filosoacuteficas

estabelecendo correlaccedilotildees com os elementos da cultura religiosa judaica549 Era corrente no

judaiacutesmo a reflexatildeo sobre a ldquoPalavrardquo criadora e comunicadora da revelaccedilatildeo divina Mas foi o

contato com a cultura helecircnica e as proximidades semacircnticas ainda que muito limitadas entre

Escrituras judaicas e as palavras gregas que carregaram o teor filosoacutefico ou especulativo550

Conforme analisou Dax F P Nascimento551 eacute por intermeacutedio do Logos uma espeacutecie de

declaraccedilatildeo divina que se remete a si mesmo revelado que se obteacutem a educaccedilatildeo acerca da

verdade por meio da qual haacute o arrependimento ou conversatildeo dos prazeres e ciecircncias do

mundo sensiacutevel para a razatildeo e para a piedade

Entre os cristatildeos natildeo haacute evidecircncias de que a reflexatildeo sobre o logos tenha a princiacutepio

alguma conotaccedilatildeo filosoacutefica Teoacutelogos como R Bultmann552 G Kimmel553 O Culmann554

concordam que o logos mencionado no proacutelogo do Evangelho segundo Joatildeo eacute uma niacutetida

referecircncia agrave ldquoPalavrardquo comunicadora de Deus sobre a qual Fiacutelon refletiu Eacute possiacutevel que na

virada do I para o II seacuteculo a expansatildeo cristatilde comeccedilasse a exigir uma atenccedilatildeo maior tambeacutem

aos conceitos e questotildees pertinentes ao mundo greco-romano555

Com a conversatildeo de filoacutesofos como Atenaacutegoras Aristides e do proacuteprio Justino as

correlaccedilotildees entre essas correntes de pensamentos se manifestam principalmente na produccedilatildeo

apologeacutetica cristatilde556

Justino escreve que do logos que inspirou os profetas Platatildeo tomou o que disse sobre

Deus ter criado o mundo transformando uma mateacuteria informe557 Segundo Minns e Parvis558

548 I311-5 549 BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950 550 KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91 Cf COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp 1507-1562 551 O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia PUC Rio de Janeiro 2003 p 179 552 Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004 553 Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983 554 Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002 555 ARZANI A A teologia do logoj no Quarto Evangelho Orientador Dr Paulo Beniacutecio Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008 pp 52-60 556 Cf WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982 557 I591

111

suas comparaccedilotildees entre algumas passagens das Escrituras e dos textos de Platatildeo satildeo

interpretaccedilotildees difiacuteceis de serem compartilhadas pois apresentam uma hermenecircutica muito

particular e em alguns pontos chega a interpretar o platonismo segundo formas comuns ao

estoicismo Destacando os elementos semelhantes ao cristianismo e outras correntes de

pensamento Justino alega ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim

todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinasrdquo559 Mas esses pontos de contato satildeo

limitados Ele escreve que

natildeo satildeo totalmente semelhantes como tambeacutem as dos outros filoacutesofos os estoacuteicos por exemplo poetas e historiadores De fato cada um falou bem vendo o que tinha afinidade com ele pela parte que lhe coube do logos seminal divino Todavia eacute evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros natildeo alcanccedilaram uma ciecircncia infaliacutevel nem um conhecimento irrefutaacutevel Portanto tudo o que de bom foi dito por eles pertence a noacutes cristatildeos porque noacutes adoramos e amamos depois de Deus o logos que procede do mesmo Deus ingecircnito e inefaacutevel Ele por amor a noacutes se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curaacute-los Todos os escritores soacute puderam obscuramente ver a realidade graccedilas agrave semente do logos neles ingecircnita560

Enquanto algumas correlaccedilotildees entre o pensamento cristatildeo e a cultura greco-romana

satildeo fruto da accedilatildeo dos democircnios para causar confusatildeo uma porccedilatildeo do logos pode ser

identificada para aleacutem daqueles que deteacutem o logos pleno

Nesse sentido ele escreve

Sabemos que alguns que professaram a doutrina estoacuteica foram odiados e mortos Pelo menos na eacutetica eles se mostram moderados assim como os poetas em determinados pontos por causa da semente do Logos que se encontra ingecircnita em todo o gecircnero humano (II71)

Heraacuteclito que foi banido de Eacutefeso por causa de suas ideias e tambeacutem o filoacutesofo

Musonius que dentre outros que sofreram algum tipo de hostilidade nos tempos de Nero a

Vespasiano561 satildeo citados como exemplo Natildeo haacute nenhum motivo evidente para Justino

mencionar Heraacuteclito exceto pela sua teoria sobre o logos Quanto a Gaius Musonius Rufus

seu nome eacute lembrado pelo acento moral de sua filosofia de inspiraccedilatildeo estoica que o tornou

ridiacuteculo a muitos soldados562 Desse modo procura-se destacar que ldquoos democircnios sempre se

empenharam em tornar odiosos aqueles que de algum modo quiseram viver conforme o

Logos e fugir da maldade (II72)

O apologista ainda considera como uma investida dos democircnios a pena de morte

estabelecida contra aqueles que lessem os livros de Histaspes da Sibila e dos profetas a fim

558Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 236 559 I6010 560 II132-5 561 TACITO Histoacuterias III81 562 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 42

112

de impedir por meio do terror que os homens consigam lendo-os o conhecimento do bem e

retecirc-los como seus escravos563

Segundo o apologista muito mais odiado que aqueles que possuem o logos seminal

satildeo os que tecircm conhecimento e contemplaccedilatildeo do logos total Conforme suas proacuteprias

palavras ldquoO logos de Deus eacute seu Filho [] E tambeacutem se chama mensageiro e embaixador

porque ele anuncia o que se deve conhecer e eacute enviado para nos manifestar tudo o que o Pai

nos comunicardquo564 Sendo os cristatildeos os detentores do logos total e sendo o logos total aquele

que anuncia o que se deve conhecer para se proceder corretamente e receber a recompensa

futura tudo se resume agrave submissatildeo agraves ideias cristatildes565

A forma de controle empregada pelos romanos e que conduz os cristatildeos diante dos

tribunais satildeo pintadas como um sinal da ignoracircncia despreziacutevel daqueles que se submetem agrave

irracionalidade da obscuridade demoniacuteaca em exerciacutecio de uma falsa justiccedila

O julgamento segundo a ldquorazatildeordquo eacute o julgamento final estabelecido pelo Deus cristatildeo e

sobre o qual o apologista pretende convencer a todos ao seu redor566 Os democircnios no

entanto natildeo conseguem convencer de que natildeo haveraacute a conflagraccedilatildeo para castigar os iacutempios

do mesmo modo que natildeo conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu A uacutenica coisa

que conseguem eacute fazer com que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em

meio aos maus costumes entregues agraves suas paixotildees e seguindo a opiniatildeo vatilde procurem tirar a

vida dos cristatildeos e os odeiem Os cristatildeos por outro lado satildeo apresentados como aqueles que

por pura compaixatildeo por eles procuram persuadi-los a se converterem

Os maus haacutebitos dos deuses satildeo reprovados por essa medida cristatilde pois serviriam para

a corrupccedilatildeo dos que eram educados tendo em vista que muitos consideravam ldquobelordquo serem

imitadores dos deuses567 O apologista natildeo pode admitir que uma mente sensata aceite as

accedilotildees de Zeus e de Ganimedes como ldquodivinasrdquo (I215) Por isso ele relaciona a disseminaccedilatildeo

desses mitos agraves artimanhas dos democircnios que induzem os homens agrave imoralidade Em

oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo dos democircnios Justino sustenta que aos cristatildeos foi ensinado que soacute poderiam

alcanccedilar a imortalidade aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus assim como

tambeacutem se sustenta que seratildeo castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e

563 Cf Tacitus Annales II32 XII52 Historias I22 II62 Cassius Dio Hist Rom 57157-8 564 I634-5 565 Cf PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988 566 Cf KERESZTES P Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986 567 E um pensamento que estava relacionado aos epicureus pelo menos Philodemus Sobre a Piedade 71

113

natildeo se converteram (I216) Para os outros estaacute guardado o dia do juiacutezo descrito com grande

tormento em que se encontraratildeo os injustos568

A moralidade cristatilde eacute destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e

comentaacuterios ldquodisseminados entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso

seu discurso sobressalta o valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de

temperanccedila569 que crescia em nuacutemeros naquela eacutepoca Tambeacutem recebem destaques a doutrina

cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos necessitados e a ausecircncia de

valor da ostentaccedilatildeo570 Com o mesmo tom piedoso seguem as afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia

a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico571 Desse modo Justino contribui tambeacutem

para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos propondo uma identidade

coletiva

Um conceito estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que chama de equiacutevocos e mal

entendidos ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja satildeo combatidos Essa sua atitude revela que o

processo de construccedilatildeo da identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada

principalmente pela necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os

variados grupos cristatildeos572 Os outros grupos cristatildeos como o dos seguidores de Marciatildeo satildeo

tidos como instrumentos nas matildeos dos democircnios (I581) Seus discursos satildeo ldquoirracionaisrdquo e

satildeo presas de doutrinas ateiacutestas do democircnio573

Tendo em vista que as pessoas satildeo capazes de agir bem ou mal devido agrave liberdade

concedida por Deus considera-se que em todas as partes haacute tambeacutem os que ldquolegislaram e

filosofaram conforme a reta razatildeordquo ou aparte dela ao mandarem que se faccedilam algumas coisas

e se evitem outras574 A ldquoreta razatildeordquo agrave qual Justino se refere eacute aquela que deriva do Logos

cristatildeo que permeia a criaccedilatildeo revela a mensagem de Deus aos homens desde outros tempos

pelas Escrituras e no seacutec I pelo proacuteprio Cristo e que assim estabelece o padratildeo de conduta

aos que desejam a ldquorecompensa eternardquo Desse modo eacute identificado um padratildeo de justiccedila

baseado nas crenccedilas e valores cultivados pelos cristatildeos que estatildeo proacuteximos a Justino e que L

W Barnard575 chega a chamar de uma ldquoproto-ortodoxiardquo Natildeo eacute possiacutevel resumir ou descrever

568 Is 6624 569 I151-7 570 I141-919 571 I161-6 572 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 573 Avlla Avlogwj w`j upoacute Lukou arnej sunhrpasmenoi( bora Twn avqewn dogmatwn kai daiacutemonwn ginontai I582 574 II68 575 Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 1967

114

o conteuacutedo dessas crenccedilas e valores a partir da anaacutelise das Apologias sabe-se poreacutem que o

apologista se refere agrave forma de pensar dos cristatildeos que lhe satildeo proacuteximos e se distanciam do

modo de pensar por exemplo do grupo de Marciatildeo Helena e Menandro

Justino contempla tambeacutem as criacuteticas daqueles que segundo o seu parecer ldquose

consideram filoacutesofosrdquo e que alegariam que as ideias cristatildes sobre um julgamento universal

futuro ldquosatildeo apenas ruiacutedos espalhafatosos e alarmismosrdquo e diriam que a ameaccedila do castigo no

fogo eterno natildeo passa de um instrumento despreziacutevel para que a ldquohumanidade viva retamente

por medo e natildeo porque a virtude eacute bela e gratificanterdquo (II91) Haacute indiacutecios de que Chrysippus

de Solis dizia que Platatildeo errava em fazer do temor aos deuses um instrumento para a detenccedilatildeo

da injusticcedila e que o argumento do castigo divino natildeo eacute diferente das histoacuterias que as matildees

contam para assustar as criancinhas576 E ainda segundo Diogenes Laertius Crisipo

sustentava que a ldquovirtude [] eacute uma disposiccedilatildeo harmoniosa escolha digna para seu proacuteprio

bem e natildeo de esperanccedila medo ou qualquer outro motivo externordquo577 Em sua soluccedilatildeo Justino

toma emprestado o argumento de Alexandre de Afrodiacutesias578 que defendeu a responsabilidade

moral humana e diz ldquose isto natildeo eacute como dizemos entatildeo natildeo existe Deus ou se existe natildeo se

importa em nada com os homensrdquo579 Virtude e o viacutecio nada seriam e em consequecircncia nem

os legisladores castigariam com justiccedila os que transgridem as boas ordenaccedilotildees Segundo

Minns e Parvis580 a hipoacutetese de Deus natildeo se importar com os seres humanos parece refletir a

visatildeo estoica que estabelecia a teoria do bem e do mal ou virtude e infelicidade considerando

a proximidade com o universo natural e a administraccedilatildeo do mundo Assim quando

Chrysippus581 mantinha que a natureza universal e a administraccedilatildeo do mundo era o

fundamento da teoria estoica sobre o bem e o mal ele estava apelando agrave racional e

providencial atividade de deus cuja conformidade com o qual constitui o bem para o homem

e cuja carecircncia de conformidade constitui o mal

Todavia Justino pontua que os legisladores ldquonatildeo satildeo injustos e o Pai deles ensina

atraveacutes do Logos a fazer o que ele mesmo fazrdquo e neste sentido ldquonatildeo satildeo injustos os que

576 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1040b 577 Diogenes Laertius Vida dos filoacutesofos eminentes VII89 578 ldquopois se natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo e virtude e viacutecio eles argumentam tambeacutem natildeo haacuteacutelouvor ou reprovaccedilatildeo e sem estes natildeo haacute accedilotildees certas ou erradas e se natildeo haacute essas tambeacutem natildeo haacute virtude ou viacutecio e se natildeo haacute essas eles dizem natildeo haacute seque deuses Mas antes assim designadamente que natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo chega a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas vem a estar em concordacircncia com o destino como tem sido mostrado Desse modo a uacuteltima posiccedilatildeo segue tambeacutem mas isto eacute absurdo e impossiacutevel (Alexandre de Afrodisias De fato36) 579 II91 580 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 305 nota 1 581 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1035c-d

115

aderem a essas virtudesrdquo582 Assim o apologista constroacutei outro padratildeo ldquoracionalrdquo atraveacutes do

qual os juiacutezes deveriam julgar para natildeo serem julgados por Deus O novo fundamento da

justiccedila no cumprimento dos seus anseios apologeacuteticos se resume a deixar os cristatildeos em paz

pois segundo seu ponto de vista natildeo havia nenhuma evidecircncia de que os fieacuteis fossem inimigos

do Impeacuterio Ele busca convencer o Imperador e seus filhos a impedir que os governantes e

magistrados locais empreendam accedilotildees anticristatildes apontando as razotildees e a racionalidade cristatilde

43 O governo o controle e os governantes

Justino ndash nessas suas peticcedilotildees apologeticamente fundamentadas que tinham como

destinataacuterios especiais Antonino Pio e seus filhos583 reconhecidamente apreciadores da

filosofia ndash alega que natildeo havia nenhuma ldquorazatildeordquo [logos] para se perseguirem os cristatildeos pois

seria a proacutepria ldquorazatildeordquo [o Logos] quem exige que ldquoos amantes da piedade e da filosofiardquo584

natildeo faccedilam algo irracionalmente

No capiacutetulo anterior foi destacada a criacutetica de Justino sobre os governantes agora

poreacutem eacute oportuno notar o perfil do governante traccedilado pelo apologista dentro do seu

argumento da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem Segundo sua teoria os homens

revestidos de autoridade para governar natildeo devem valorizar nada aleacutem da ldquoverdaderdquo Aleacutem

disso a partir de sua inspiraccedilatildeo platocircnica nota-se sua exigecircncia agravequeles que satildeo ldquopiedosos e

filoacutesofosrdquo assim como satildeo chamados o Imperador e seus filhos que deveriam julgar com

retidatildeo para que todos gozem de bem estar Governar com retidatildeo eacute para Justino governar

segundo a ldquoreta razatildeordquo Esse conceito eacute cristianizado mas aleacutem disso um governante ideal

ldquosuperiorrdquo eacute reverenciado ldquoo logosrdquo A quem ele chama de ldquoo rei mais alto o governante

mais justo que conhecemos depois de Deus que o gerourdquo (I Apol 127) Manifesta-se um

jogo semioacutetico com a palavra logos ou razatildeo

582 II92 583 A I Apologia foi dirigida ao Imperador Antonino Pio e a seus filhos Veriacutessimo (Marco Aureacutelio) e Lucio Vero A II Apologia pode ser continuaccedilatildeo da primeira como sustentou C Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006) fragmentos de anotaccedilotildees de um segundo escrito que natildeo pode ser entregue quando Justino foi preso durante o iniacutecio do governo de Marco Aureacutelio por volta de 160 dC como sustentam Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 passim) A teoria mais tradicional eacute admitir que a II Apologia foi dirigida ao imperador Marco Aureacutelio mas como seraacute visto mais adiante haacute indiacutecios de que Justino tinha por destinataacuterios secundaacuterios todos os que pudessem ler o texto e se informar acerca da inocecircncia dos cristatildeos A soluccedilatildeo para a questatildeo dos destinataacuterios das Apologias exige uma investigaccedilatildeo agrave parte mas natildeo haacute duacutevidas de que Justino pretendia que se texto fosse conhecido por Antonino e seus filhos Marco e Lucio que desde cedo atuaram ao lado 584 I125

116

Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e recusem as

coisas maacutes e assim controlar os excessos humanos (I Apol 128) Do mesmo modo eacute o logos

quem deve orientar os governantes para que o bem ou a ldquosalvaccedilatildeordquo opere sobre o ldquogecircnero

humanordquo Por isso ele escreve ldquose os filoacutesofos e legisladores disseram e encontraram algo de

bom foi elaborado por eles pela investigaccedilatildeo e intuiccedilatildeo conforme a parte do logos que lhes

couberdquo585 Poreacutem por natildeo conheceram a integralidade do Logos que eacute Cristo ldquoeles

frequentemente se contradisseram uns aos outrosrdquo586 Aqueles que antes de Cristo tentaram

investigar e demonstrar as coisas pela razatildeo conforme as forccedilas humanas foram levados aos

tribunais como iacutempios e amigos de novidades Soacutecrates aparece como um exemplo que

ratifica a fala de Justino Segundo o apologista ele foi acusado ldquodos mesmos crimes que [os

cristatildeos]rdquo587 A condenaccedilatildeo seria em razatildeo da oposiccedilatildeo daquele filoacutesofo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica e

a outros poetas ensinando os homens a rejeitar ldquoos maus democircniosrdquo envolvidos com a

idolatria e ao mesmo tempo os exortando ao conhecimento de Deus para eles desconhecido

por meio de investigaccedilatildeo racional dizendo Natildeo eacute faacutecil encontrar o Pai e artiacutefice do universo

nem quando o tivermos encontrado eacute seguro dizecirc-lo a todos588 Todavia se ningueacutem deu

ouvidos a Soacutecrates ateacute que ele deu a sua vida por essa doutrina em Cristo acreditaram natildeo soacute

filoacutesofos e homens dos quais o proacuteprio Justino eacute um mas tambeacutem artesatildeos e pessoas

totalmente ignorantes que souberam desprezar a opiniatildeo o medo e a morte Justino pretende

assim apresentar o poder de abrangecircncia da mensagem cristatilde que deriva do Logos que em

parte foi conhecido por Soacutecrates pois como o apologista escreve ldquoele era e eacute o Logos que

estaacute em tudo e foi quem predisse o futuro atraveacutes dos profetas e feito de nossa natureza por

si mesmo nos ensinou essas coisasrdquo589

A partir desse tipo de comparaccedilatildeo retrata-se o caso que ocorreu sob Urbico na cidade

de Roma Eacute provaacutevel que outros casos como esse acontecessem em regiotildees diferentes590

Segundo Justino ldquoo fato eacute que em todas as partes haacute gente disposta a [] levar [os cristatildeos] agrave

morterdquo591 A reprovaccedilatildeo cristatilde das atitudes condenaacuteveis ou repreensiacuteveis de outras pessoas era

um dos motivos para que os cristatildeos fossem denunciados aos governantes ldquoendemoniadosrdquo592

Ele escreve especialmente sobre certa mulher cristatilde na eacutepoca do prefeito Urbico que

procurou persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e lhe 585 II102 586 II102 587 II105 588 II105-6 Citaccedilatildeo de Platatildeo Timeu 28c 589 II108 590 II11 591 II12 592 II13

117

anunciando o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme

a ldquoreta razatildeordquo Naquela ocasiatildeo a uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se

era cristatildeo Apoacutes confessar recebeu condenaccedilatildeo ao supliacutecio O mesmo aconteceu com Luacutecio

que tambeacutem advertiu a Urbico593 de que ele natildeo estava ldquojulgando de modo conveniente ao

imperador Pio nem ao Ceacutesar filoacutesofo nem ao filho de Ceacutesar amigo do saber nem ao sacro

Senadordquo (II216)

Justino procura persuadir o imperador seus filhos e demais autoridades a barrarem as

condenaccedilotildees dos cristatildeos num momento quando natildeo haacute indiacutecios do estabelecimento de uma

lei concreta sobre a puniccedilatildeo dos cristatildeos Em vaacuterias regiotildees e em situaccedilotildees variaacuteveis os atritos

ocasionados pela presenccedila e expansatildeo cristatilde ocasionavam denuacutencias tidas pelos proacuteprios

cristatildeos como ldquocaluniosasrdquo a respeito da nova religiatildeo As accedilotildees anticristatildes se refletiam

muitas vezes na busca por sua condenaccedilatildeo em discussotildees em praccedilas ou em denuacutencias

dirigidas aos magistrados Em meados do seacuteculo II as delaccedilotildees sobre os cristatildeos variavam

pois seus opositores procuravam brechas juriacutedicas para enquadraacute-los A superstitio cristatilde

poderia proporcionar o oacutedio de muitos que resistiam agraves suas implicaccedilotildees morais sociais ou

simplesmente religiosas Por isso as denuacutencias ou posicionamentos se contradiziam em

lugares e ocasiotildees diferentes Taacutecito identificou algumas flagitia nas praacuteticas religiosas cristatildes

ou nos comentaacuterios sobre elas mas essa natildeo foi a opiniatildeo de Pliacutenio Segundo que julgou os

cristatildeos dignos de condenaccedilatildeo somente pela contumaacutecia que apresentaram diante de um

magistrado Para outros deveriam ser rejeitados pelo seu ateiacutesmo Comer o corpo e o sangue

de Cristo tambeacutem poderia provocar suspeitas de canibalismo594

O apologista contrasta a imagem do ldquopiordquo e ldquosaacutebiordquo governante representada na figura

de Antonino e seus filhos agravequela do falso filoacutesofo ou seja aquele que estaacute contra a ldquorazatildeordquo A

sua morte em defesa da ldquorazatildeordquo cristatilde aparece como uma possiacutevel analogia a Soacutecrates

devido aos seus embates com Crescente em Roma O falso ldquofiloacutesofordquo eacute aquele que natildeo sabe

uma palavra sobre os cristatildeos mas os calunia publicamente como esses fossem ldquoateus e

iacutempiosrdquo595 Ele adapta a esse novo contexto Xenofonte596 que conta que em uma encruzilhada

vieram ao encontro de Heacuteracles597 a virtude e o viacutecio na forma de mulheres

O viacutecio estava vestido com roupas finas tinha rosto atraente e adornado com enfeites e disse a Heacuteracles que se ele a seguisse ela o faria viver sempre no prazer

593 II215 594 Cf MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 winter1994 pp 413-442 595 wj avlogoj kai avsebwn Cristianwn ontwn( (II82) 596 Memorabilia II121-34 597 Heraacutecles tambeacutem foi invocada por estoicos como exemplo de luta moral (Churniss em Plutarco De Communibbus Notitiis adversus stoicos 1065c em Moralia)

118

e enfeitado com o mais belo ornamento semelhante ao que ela usava Ao contraacuterio a virtude com rosto e veste severos lhe disse Se seguires a mim natildeo te enfeitarei com beleza ou adorno passageiro e corruptiacutevel mas com enfeites eternos e belos598

Semelhantemente Justino considera

estamos persuadidos de que alcanccedilam a felicidade todos aqueles que fazem dos bens aparentes e seguem o que parece duro e contra a razatildeo Porque a maldade veste as suas accedilotildees com as qualidades da virtude e do que eacute de fato bem remedando o incorruptiacutevel pois ela de si natildeo tem nada de incorruptiacutevel e nem eacute capaz de produzi-lo e torna escravos seus os homens que se arrastam pelo chatildeo atribuindo agrave virtude os males proacuteprios da maldade Contudo os que compreendem os bens verdadeiros proacuteprios da virtude tambeacutem se tornam incorruptiacuteveis pela virtude599

Desse modo Justino procura constranger o imperador a partir do seu argumento

apologeacutetico e do jogo semioacutetico em torno da ldquorazatildeordquo e da filosofia a ser favoraacutevel aos

cristatildeos pois natildeo seria de nenhum modo virtuoso combater ou permitir que sejam combatidos

aqueles que segundo seu ponto de vista tecircm muito a contribuir para a paz no Impeacuterio

A contribuiccedilatildeo da religiatildeo cristatilde eacute apresentada dentro do seu plano apologeacutetico que

busca convencer natildeo apenas dos efeitos positivos do caraacuteter de suas crenccedilas para a

manutenccedilatildeo da ordem mas tambeacutem na apresentaccedilatildeo de alguns pontos fundamentais do seu

conteuacutedo que rebatam as ldquocaluacuteniasrdquo dos acusadores e apresentem o seu aspecto ldquoracionalrdquo Ao

explicar alguns fundamentos da crenccedila cristatilde como o combate agrave idolatria eacute possiacutevel notar que

o apologista eacute sensiacutevel em sua anaacutelise agrave diversidade de ideias e crenccedilas que interagem e se

contradizem no Impeacuterio Essa contradiccedilatildeo aparece tambeacutem entre os intelectuais e as crenccedilas

do povo comum Segundo Paul Veyne600 ldquotodo erudito hesitava entre o ceticismo da alta

sociedade e o esoterismo cultivadordquo Isso leva Justino a formular um argumento que busque

apresentar os aspectos racionais das crenccedilas cristatildes ainda que isso se reduza a um jogo

semioacutetico e linguiacutestico em torno do logos De qualquer forma a religiatildeo cristatilde aparece como

uma opccedilatildeo de superaccedilatildeo tanto da religiatildeo pagatilde questionada pelos intelectuais em muitos

aspectos quanto como uma filosofia sublime ou superior601 que tem maior alcance e eficaacutecia

no controle das accedilotildees humanas602 Assim ele escreve ldquoem Cristo acreditaram natildeo soacute filoacutesofos

e homens cultos mas tambeacutem artesatildeos e pessoas totalmente ignorantes que souberam

598 II114-5 599 II116-8 600 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 280 601 ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Logos inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (II101) E tambeacutem ldquoas nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo (II152) 602 ldquoEntre noacutes tudo isso se pode ouvir e aprender ateacute daqueles que ignoram as formas das letras pessoas ignorantes e baacuterbaras de liacutengua mas saacutebias e fieacuteis de inteligecircncia e ateacute pessoas mutiladas e privadas de visatildeo De onde se pode entender que isso natildeo acontece pela sabedoria humana mas se diz que eacute pela forccedila de Deusrdquo (I6011)

119

desprezar a opiniatildeo o medo e a morte porque ele eacute a virtude do Pai inefaacutevel e natildeo um vaso

de humana razatildeordquo603

Apoacutes explicar os pontos fundamentais do pensamento cristatildeo Justino diz que ldquodaqui

por diante noacutes natildeo nos sentiremos irresponsaacuteveis mesmo que continueis increacutedulos pois o

que dependia de noacutes jaacute foi feito e chegou ao fimrdquo (558) Seguindo sua articulaccedilatildeo para

ratificar a fidelidade dos cristatildeos a Deus e ao Impeacuterio nota-se que o apologista faz uso do

proacuteprio efeito da doutrina cristatilde que sugere como instrumento de controle para persuadir o

imperador tambeacutem pelo possiacutevel temor Assim com um tom de advertecircncia ele escreve

[] se natildeo atendeis agraves nossas suacuteplicas nem esta exposiccedilatildeo puacuteblica que vos fazemos de todo o nosso modo de viver em nada ficaremos prejudicados pois cremos ou melhor estamos persuadidos de que cada um pagaraacute a pena conforme mereccedilam as suas obras pelo fogo eterno e que teraacute que prestar contas a Deus segundo as faculdades que recebeu do proacuteprio Deus conforme nos indicou Cristo dizendo A quem Deus deu mais mais seraacute exigido por Deusrdquo604 (I173-4)

Em outras palavras esse eacute um tipo de alerta ao imperador sobre a sua responsabilidade

diante de Deus devido a sua posiccedilatildeo de autoridade E como se deveria esperar de um

governante ldquopiordquo e ldquoamante da sabedoriardquo tal como foi idealizado no perfil construiacutedo por

Justino segundo sua leitura logocecircntrica Ou seja tendo a ideia do logos cristatildeo como

referecircncia o apologista escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da

verdade respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees

desprezai-as Natildeo decreteis poreacutem pena de morte como contra a inimigos contra aqueles

que nenhum crime cometemrdquo605 Sua peticcedilatildeo eacute seguida de outro alerta ldquoescatoloacutegicordquo ldquovos

avisamos de antematildeo que se vos obstinais em vossa iniquidade natildeo escapareis do futuro

julgamento de Deusrdquo606 Em outro ponto nesse mesmo sentido lecirc-se ldquose tambeacutem voacutes ledes

como inimigos estas nossas palavras aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis

fazer A noacutes isso nenhum dano causaraacute a voacutes poreacutem e a todos os que injustamente nos

odeiam e natildeo se convertem trar-vos-aacute castigo de fogo eternordquo (I456)

Aliada agrave ciecircncia dos benefiacutecios da religiatildeo cristatilde o apologista deixa claro o seu desejo

de que ldquotodos os homens de todo o mundordquo conheccedilam ldquoa verdaderdquo o que incluiacutea o imperador

e seus filhos Desses uacuteltimos deseja-se tambeacutem que julguem ldquocom justiccedila de acordo com [a]

piedade e filosofiardquo e que se possiacutevel publiquem esse escrito para o conhecimento de todos607

Natildeo eacute possiacutevel saber se as Apologias chegaram ateacute o imperador e eacute pouco provaacutevel

que ela tenha circulado amplamente conforme desejava Justino No entanto segundo Sara 603 II108 604 Fazendo menccedilatildeo a Lc 1248 605 I681 606 I681 607 II152

120

Parvis608 seu modo de escrever em defesa dos cristatildeos teria influenciado outros apologistas

As aproximaccedilotildees praticadas por esse pensador em sua manobra teoloacutegica buscam a conversatildeo

inclusive do imperador Em oposiccedilatildeo agrave forma controle que emerge dos clamores reativos

populares que estariam impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do nomen

Christianum o apologista acaba por formular uma reflexatildeo teoloacutegica da histoacuteria que

contempla a relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo Se por um lado estaacute a criacutetica agrave forma de

manutenccedilatildeo da ordem imposta pelos romanos que dava margem para que denuacutencias

decorrentes de atritos locais que conduziam os cristatildeos agrave morte por outro emerge a sua teoria

sobre a cooperaccedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo da sociedade devido ao caraacuteter de suas crenccedilas

Trata-se de um confronto de ideias cujos efeitos deveriam ser aguardados O modelo de

controle cristatildeo pode-se dizer eacute aquele que vem do alto ou de dentro Eacute fruto da assimilaccedilatildeo

da doutrina cristatilde que tem um Deus que zela pela justiccedila e pela moral e que exige uma

conduta impecaacutevel de todos os seus fieacuteis Os que creem e os que natildeo creem estatildeo sob a

condiccedilatildeo do seu juiacutezo O Deus cuja feacute os cristatildeos professam e procuram comunicar aos

demais natildeo tem nacionalidade Ele eacute o criador dos homens e da razatildeo [logos] Todo ser

humano recebeu uma semente dessa razatildeo mas os democircnios maleacutevolos satildeo os responsaacuteveis

por obscurecer o julgamento correto que conduz todo o genus humanus a uma vida reta justa

e virtuosa para a sua recompensa eterna Essa racionalidade humana eacute a responsaacutevel por fazer

com que os homens reconheccedilam e atentem para a mensagem pelo logos que revela Deus pelas

Escrituras ignoradas pelos judeus e examinas pelos cristatildeos Esse temor diante de Deus

entatildeo natildeo deveria ser rechaccedilado como uma superstitio despreziacutevel mas deveria ser acatada

como um mecanismo capaz de traduzir razoavelmente uma doutrina que agregue pontos de

aproximaccedilatildeo aos assuntos filosoacuteficos e a uma mensagem significativa para as pessoas sem

instruccedilatildeo Deve ser reconhecida natildeo como uma mensagem de odio humanus genus mas de

salvatio humanus genus609 sob o domiacutenio do Logos que se traduz na submissatildeo e conversatildeo

ao cristianismo

608 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 609 Isto eacute ldquosalvaccedilatildeo da humanidaderdquo

121

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A situaccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II era instaacutevel e

revelava condenaccedilotildees esporaacutedicas Gritarias e tumultos puacuteblicos agraves vezes pressionavam os

magistrados para que condenassem os cristatildeos sem que houvesse uma ideia clara sobre como

enquadraacute-los em uma lei comum Um pouco antes Adriano havia sido consultado por

governantes610 como Graniano sobre esses problemas Naquela eacutepoca o imperador

recomendou a Minuacutecio Fundano que examinasse de modo particular as denuacutencias formais e

que natildeo desse espaccedilo para a pressatildeo dos tumultos puacuteblicos

Ainda um pouco antes a forma como deviam ser conduzidos os processos contra os

cristatildeos despertava algumas duacutevidas em Pliacutenio Segundo no Ponto-Bitiacutenia A crenccedila cristatilde era

vista como uma superstitio cujo temor os faziam repudiar os deuses comuns o culto ao

Imperador e todos os aspectos da vida puacuteblica que apresentasse algum viacutenculo com outras

crenccedilas e com a ldquoimoralidaderdquo Esse afastamento das interaccedilotildees sociais e o desprezo pelos

deuses tradicionais causou a aversatildeo de muitos das camadas populares e a desconfianccedila das

autoridades A estranheza dessa superstitio favoreceu a disseminaccedilatildeo de caluacutenias como a de

que a celebraccedilatildeo da ceia fosse algum tipo de ritual antropofaacutegico e que as reuniotildees cristatildes

privadas constituiacuteam-se em orgias Desse modo o nonem christianum assumiu uma forte

conotaccedilatildeo negativa pelas regiotildees do Impeacuterio A condenaccedilatildeo dos membros dessa nova religiatildeo

tinha precedentes desde a culpa pelo incecircndio de Roma nos tempos de Nero embora nenhuma

evidecircncia concreta a uma lei que condenasse o crime de ldquocristianismordquo seja encontrada na

primeira metade do II seacuteculo Trajano ratificou o procedimento de Pliacutenio em condenar os

cristatildeos por confessarem-se ldquocristatildeosrdquo todavia essas condenaccedilotildees tinham caraacuteter

admoestativo para desestimular o crescimento do grupo As buscas ou perseguiccedilotildees de fato

natildeo deviam entrar em curso Visava-se minar o corpo estranho representado pelo grupo

antissocial dos cristatildeos da sociedade e garantir a sua reintegraccedilatildeo mediante o perdatildeo aos que

abandonassem a feacute Se para alguns como Taacutecito a superstitio incidia sobre flagitia para

outros como Pliacutenio nenhum flagitium era detectado provavelmente eram produto das

caluacutenias e rumores das massas

A religiatildeo e os deuses tinham diferentes conotaccedilotildees entre a classe letrada entre os

poetas e para o povo sem instruccedilatildeo Desde os tempos de Platatildeo e Soacutecrates a filosofia

610 Deve-se considerar que a ldquoCarta de Antonino ao conciacutelio da Aacutesiardquo citada por Euseacutebio na Histoacuteria Eclesiaacutestica IV131-8 estava correta

122

sustentou criacuteticas agrave religiatildeo tradicional No II seacuteculo dC a influecircncia do cultivo do saber e do

exerciacutecio filosoacutefico podia ser percebida nas correntes de pensamento tais como o estoicismo e

o neoplatonismo que aproximavam a religiatildeo da moral Justino recebeu educaccedilatildeo grega e

provavelmente era filho de um funcionaacuterio romano Priscus cuja famiacutelia pode ter atuado na

colonizaccedilatildeo de Flavia Neaacutepolis na Palestina De laacute partiu para sua jornada pelos caminhos da

filosofia ateacute conhecer as doutrinas cristatildes Como ldquofiloacutesofordquo eacute possiacutevel que sustentasse criacuteticas

agrave forma de pensar das pessoas comuns considerada expressatildeo de ldquoexcessos supersticiososrdquo

Na condiccedilatildeo de cristatildeo passou a pensar a religiatildeo a partir da filosofia Desse modo a feacute cristatilde

passou a representar em seu pensamento a ldquofilosofia verdadeirardquo e ldquodivinardquo Diante dos atritos

sofridos pelos cristatildeos em seu tempo recorreu ao poder da argumentaccedilatildeo e da conveniecircncia

da escrita para defender os cristatildeos da ldquoinjusticcedilardquo sofrida Em uma peticcedilatildeo apologeticamente

fundamenta escreveu a Antonino Pio e a seus filhos clamando para que os cristatildeos natildeo

fossem condenados apenas pela confissatildeo de ldquocristianismordquo Para alcanccedilar o favor do

imperador Justino procura desfazer a conotaccedilatildeo negativa em torno desse nomen christianum

por meio da explicaccedilatildeo dos principais toacutepicos das doutrinas cristatildes e da afirmaccedilatildeo da

submissatildeo dos cristatildeos

A partir da reflexatildeo sobre suas ideias compreende-se o paradoxo entre tipo de controle

social desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia a esses (ou seja

os cristatildeos) que satildeo tidos como ameaccedila agrave ordem e por outro lado o tipo de controle social

apontado nas Apologias que daacute razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos Justino tece uma criacutetica jaacute

conhecida sobre a imoralidade dos deuses pagatildeos Ele natildeo se sente nem um pouco intimidado

em sustentar que os deuses nada satildeo aleacutem de uma ilusatildeo criada pelos ldquomaus democircniosrdquo para o

desvirtuamento dos homens Os ldquomaus democircniosrdquo satildeo os responsaacuteveis pelo obscurecimento

de toda a ldquoverdaderdquo A ldquoverdaderdquo eacute o conhecimento superior que conduz a humanidade agrave

moralidade e eacute reconhecida pelo exerciacutecio da ldquorazatildeordquo A ldquorazatildeordquo eacute algo divino compartilhado

a todos os homens e encarnada na pessoa de Jesus Cristo o mestre dos cristatildeos Sua

encarnaccedilatildeo eacute o cumprimento das profecias das Escrituras sustentadas pelos judeus que por

natildeo a compreenderem corretamente natildeo satildeo capazes de reconhecer o cumprimento da

expectativa messiacircnica611 Por reconhecer mediante uma hermenecircutica que busca identificar

o maacuteximo de evidecircncias possiacuteveis sobre o cumprimento das Escrituras em Cristo612 o

611 ldquoExpectativa messiacircnicardquo expressatildeo teoloacutegica utilizada para se referir a esperanccedila de que o messias libertador de Israel chegaria conforme os profetas israelitas haviam predito 612 Tambeacutem chamada de ldquohermenecircutica cristocecircntricardquo ou no que se refere agrave comunicaccedilatildeo da mensagem divina pelo Logos uma ldquohermenecircutica logocecircntricardquo

123

cumprimento das profecias julga prudente reconhecer as advertecircncias divinas pelas escrituras

sobre o julgamento futuro

Justino desenvolve uma leitura teoloacutegica da histoacuteria contrastando o julgamento a que

satildeo submetidos os cristatildeos e o julgamento final de Deus O primeiro considerado um

julgamento ldquoirracionalrdquo e momentacircneo movido pela cegueira produzida pelos maus

democircnios enquanto o segundo eacute idealizado como um julgamento divinamente justo e eterno

A accedilatildeo dos primeiros governantes estaacute relacionada a uma preocupaccedilatildeo com a manutenccedilatildeo da

ordem que os leva a acatar as denuacutencias caluacutenias e mobilizaccedilotildees contra os cristatildeos Eacute um tipo

de controle social que emerge de baixo pela repulsa do povo por aqueles que representavam

uma ameaccedila a pax deorum devido agrave condenaccedilatildeo ao culto dos deuses Justino acredita que em

meio agrave variedade de ideias e crenccedilas que constituem o quadro social do Impeacuterio os cristatildeos

natildeo deveriam ser reprimidos pelas autoridades por pensarem diferente Desse modo ele se

empenha em mostrar as correlaccedilotildees existentes entre as coisas sustentadas pelos cristatildeos e

outros pontos da cultura greco-romana Enquanto algumas correlaccedilotildees satildeo consideradas

estrateacutegias do democircnio para enganar os homens outras satildeo consideradas a manifestaccedilatildeo da

accedilatildeo do logos que comunica a verdade quer seja pelo conhecimento que os gregos tiveram

pelas Escrituras judaicas ou pelo logos spermatikos comum ao gecircnero humano Tudo o que

foi dito escrito ou julgado corretamente segundo a razatildeo eacute considerado consonante com o

posicionamento dos cristatildeos Pois eacute a ldquorazatildeordquo ou logos que deve conduzir as accedilotildees humanas

para a salvaccedilatildeo Desse modo aleacutem de procurar investir as doutrinas cristatildes de aspectos

racionais Justino tambeacutem busca deixar claro que os cristatildeos natildeo satildeo nenhuma ameaccedila ao

Impeacuterio Os fieacuteis satildeo apresentados como os melhores cooperados do Impeacuterio na manutenccedilatildeo

da paz devido ao caraacuteter das suas doutrinas Contrastando em alguns pontos com o tipo de

controle exercido sobre os soldados que juram fidelidade sem esperarem algo duradouro em

troca Justino fala do tipo de controle que vem ldquodo altordquo A crenccedila no controle absoluto do

Deus cristatildeo eacute apresentada como uma alternativa para solapar a incoerecircncia manifestada na

reverecircncia a deuses tatildeo desregrados e impiedosos quanto aos seres humanos que natildeo

poderiam servir de exemplo de conduta Natildeo haacute muitos detalhes acerca da moralidade cristatilde

mas ela parece estar relacionada agrave moderaccedilatildeo a restriccedilotildees sexuais ao respeito agrave verdade e aos

outros Segundo essa crenccedila cristatilde toda pessoa eacute livre para escolher como deseja viver mas

um dia estaraacute diante do juiacutezo do Deus absoluto do qual ningueacutem pode esconder nada

Tambeacutem eacute nesse sentido que satildeo identificados os cristatildeos Os cristatildeos satildeo definidos como

praticantes de um ideal de vida a seguir fortemente caracterizado pelo moralismo estrito

124

Desse modo Justino acredita que a disseminaccedilatildeo das doutrinas cristatildes poderia servir para

controlar os excessos humanos e as injusticcedilas

Esse tipo de ferramenta de controle foi empregado inclusive para constranger o

imperador a ouvi-lo Aleacutem de considerar irracional desprezar a doutrina dos cristatildeos o

apologista faz uso dessa ferramenta de controle para destacar que a uacutenica coisa que os

romanos poderiam fazer pelos cristatildeos em sua oposiccedilatildeo era lhes tirar a vida algo que

ironicamente o apologista considera insignificante visto que todos um dia morreratildeo Todavia

sustentando que a vida natildeo termina no tuacutemulo Justino alerta que a injusticcedilas como essas

Deus retribuiraacute um dia o castigo eterno enquanto para os que satildeo piedosos e justos estaacute

guardada uma ldquorecompensa eternardquo

Talvez as Apologias de Justino nunca tenham chegado ao seu destinataacuterio

especificado E se chegaram natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que tenham surtido um efeito

positivo Justino morreu anos mais tarde Todavia seu martiacuterio nos tempos de Marco Aureacutelio

tornou-se inspiraccedilatildeo para outros escritores como Atenaacutegoras ou Teoacutefilo de Antioquia Ao

revelar uma relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo a partir das accedilotildees anticristatildes seus escritos

se tornam peccedila fundamental para se compreender como as suspeitas e caluacutenias que incidiam

sobre os cristatildeos despertaram pessoas como esse mestre para pensar a relaccedilatildeo entre a nova

religiatildeo e a estrutura social e poliacutetica existente Se em siacutentese o que suas Apologias

pretendiam de fato era a retirada dos empecilhos para a conversatildeo dos pagatildeos elas satildeo

tambeacutem a primeira manifestaccedilatildeo da ideia de que para proporcionar a conversatildeo dos ldquooutrosrdquo e

o abandono dos rituais religiosos que permeavam a vida puacuteblica e os eventos sociais no

Impeacuterio era preciso pensar a religiatildeo cristatilde como uma alternativa que oferecesse algum tipo

de vantagem social e poliacutetica

Quando se busca por exemplo compreender as vantagens identificadas pelos romanos

na autorizaccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no IV seacuteculo manifesta-se a necessidade de se

investigar sobre as raiacutezes da aproximaccedilatildeo entre religiatildeo cristatilde e o Impeacuterio Eacute pelo exame das

Apologias de Justino Maacutertir que se percebe que em grande medida tal aproximaccedilatildeo eacute fruto

da reflexatildeo apologeacutetica que procurar livrar os cristatildeos da condenaccedilatildeo das autoridades romanas

e ao mesmo tempo em sintonia com a orientaccedilatildeo missionaacuteria na propagaccedilatildeo da mensagem

cristatilde busca livrar os romanos da condenaccedilatildeo eterna de Deus por meio da conversatildeo A

condenaccedilatildeo do culto aos deuses pagatildeos e da religiatildeo ciacutevica associada agrave contumaacutecia cristatilde em

natildeo contradizer suas crenccedilas em funccedilatildeo das determinaccedilotildees romanas exigiu uma reflexatildeo

sobre a sua contribuiccedilatildeo social para o Impeacuterio que os isentasse da culpa de traiccedilatildeo falta de

civismo ou algum tipo de conspiraccedilatildeo do ldquoreino de Deusrdquo Ateacute meados do seacuteculo II as

125

acusaccedilotildees variavam em cada regiatildeo e um paralelo que proporcione uma anaacutelise entre cada

uma delas tambeacutem parece ser um tema digno de uma investigaccedilatildeo especiacutefica e um desafio que

ainda precisa ser encarado

126

REFEREcircNCIAS

Fontes principais

MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005

MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006

JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995

Referecircncas gerais

AGOSTINHO de Hipona A cidade de Deus Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2000

ALCINOOS Enseignement des doctrines de Platon Les Belles Lettres Paris 1990

APHRODISIAS Alexandre drsquo De fato ad Imperatores Ed Guilaume de Moerbek e Pierre Thillet Paris J Vrin 1963

APULEIO Lrsquoautodifesa (apologia di segrave e della magia) Ed Bruno Cassianelli Caserta Edizioni UTEM 1948

AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] vol29 n2 pp 341-356 2010 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019

ANDRESEN C Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft Berlin-New York v44 pp157-195 1952-1953

ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Walter de Gruyter und co Berliacuten 1955

ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris Librairie Alphonse Picard et Fils 1909

127

ARISTIDES Aelius Orationes In Aristides ex recensione Guilielmi Dindorfii Leipzig Weidmann 1829

ARZANI A A teologia do loacutegoj no Quarto Evangelho Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Escola Superior de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008

ATHENAGORAS A Plea for the Chrstians In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995

AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875

AYRES Lewis LOUTH Andrew YOUNG Francecircs M (org) The Cambridge history of early Christian life New York Cambridge 2007

BAGATTI B S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319

BARCELOgrave P Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002

BARNARD L W Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology v 22 n 2 pp 152-164 jun1969

________ Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967

BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 pp 30-50 1968

BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 pp 538-555 2009

BAUMGARTNER M Social control from below In D Black (ed) Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 Orlando Academic Press 1984

BAYET Jean La religion romaine histore politique et psychologique Paris Payot 1976

BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998

BENNET J Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005

BENOIcircT Simon Giudaismo e Cristianesimo una storia antica Bari Laterza 2005

128

BIBLIA Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50])

BIBLIA Sagrada ediccedilatildeo da CNBB 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2002

BLACK Donald The Behaviour of Law New York Academic Press 1976

_______ Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 New York Academic Press 1984

_______ Toward a General Theory of Social Control Selected Problems Vol 2 New York Academic Press 1984

BLANT E le Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373

_______ le Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373

BLUNT A W The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911

BOBICHON P lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 pp 157-158 2003

BOFFO Laura Iscrizioni greche e latine per lo Studio della Bibblia Brescia Paideia Editrice 1994

BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101

BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950

BRENT Allen A political history of Early Christianity London TampT Clark 2009

BUELL Denise K Why this new race ethnic reasoning in early Christianity New York Columbia University Press 2005

BULTMANN R Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004

BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985

BURNS Stacy Lee Ethnographies of law and social control Oxford Elsevier 2005

Carta a Diogneto In Padres Apologistas Satildeo Paulo Paulus 1995

CHADWICH H Early Christian Thought and the Classical Tradition Oxford Clarendon Press 2002

129

________ Introduction In ____ (Ed) Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi

________ Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 (v 47)

________ The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001

________ The gospel a Republication of the natural religion in Justin Martyr Illinois Classical Studies n 18 pp 237-247 1993

CLEMENT of Alexandria Protrepticus In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

________ Stromata In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832

CHROUST Anton-Hermann AristotleProtrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964

CICERO M Tullius De Natura Deorum Edited by O Plasberg Leipzig Teubner 1917 pp 136-137

_________ Tullius De Legibus Georges de Plinval (ed) Paris Belles Lettres 1959

CLARK Gillian Christianity and Roman Society Cambridge Cambridge University Press 2004

CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999

COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp1507-1562

COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985

COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987

COPETE Juan Manuel Corteacutes Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004

130

COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008

Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonnae E Webere 1832

CULMANN O Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002

CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938

DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000

DANIELOU J Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975

De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted- A Rejoinder Past and Present n27 pp28-33 1964

De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 pp6-38 1963

DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000

DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940

DIOGENES Laertius The life of the eminents philosophers Ed Robert Drew Hicks LondonNew York W HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1925

DION Cassius Histoire Romaine V 9 Editado por E Gros Paris Librairie de Firmin Didot Fregraveres Fil Et C Imprimeurs de LrsquoInstitut 1867

DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 p 24 2005

DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963

DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990

DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106

DURRY Marcel Durry Pline-le-juene Paris Le belle Lettre 1972 p 7071

131

ECK Werner The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 195-213

ENDSJO Dag Oistein Greek resurrection beliefs and the soccess of Christianity New York Palgrave Macmillan 2009

ESTRABAtildeO Geography London Heinemann 1949

EUSEBIO de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduzido por Wolfgang Fischer Satildeo Paulo Novo Seacuteculo 2002

EUSEBIUS Die Chronik des Hieronymus heraugegeben und in 2 Auflage bearbeitet von R Helm 3 unveraumlnderte Auflage mit einer Vorbemerkung von U Treu GCS 31 Berlin Akademie Verlag 1984

FARNELL R L Greek hero cult and ideas of immortality Oxford Carendon Press 1921

FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa

________ La relacioacuten entre razoacuten y revelacioacuten em la antropologiacutea de Justino Maacutertir Teologiacutea y Vida v LII pp 35-50 2011

FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006

FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967

FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012

FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11

GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52

GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995

GOFFMAN E Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006

__________ Relations in Public New York Basic Books 1971

GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946

132

GOODENOUGH E R Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923

GOODMAN R ROWLAND C Apologetics in the Roman Empire Oxford Oxford University Press 1999

GOODSPEED E Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914

GRABE J E SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703

__________ SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700

GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988

GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951

GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18--

HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010

__________ The appropriateness of the apologetical arguments of Justin Martyr Tesis submitted for the Master of Philosophy Australian Catholic University 2008

HARNACK A Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274

__________ Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882

__________ Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99

__________ The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962

HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844

HENTEN Jan Willem AVEMARIE Friedrich Martyrdom and noble death selected texts from Graeco-Roman Jewish and Christian Antiquity New York Routledge 2002

133

HIPPOLYTUS The refutation of all heresies Traduzido por Rev J H MacMahon In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 5 Fathers of the Third Century Hippolytus Cyprian Caius Novatian Appendix Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

Historiae Augustae v I text latin with english translation by David Magie London Harvard University Press 1921 (Loeb Classical Library)

HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885

HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897

HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931

HORWITZ E A The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990

HUNT Emily J Christianity in the second century a case of Tatian New York Routledge 2003

HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703

HYLDAHL N Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965)

Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998

INNES Martin Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003

Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386

Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355

IRINEO of Lyon Againt Heresies Traduzido por Rev Alexander Roberts e James Donaldson In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene Fathers v 1 The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

ISOCRATES Busiris with an English Translation in three volumes by George Norlin PhD LLD Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1980

JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 pp 131-159 jun1979

134

JEROME GENNADIUS Lives of illustrious men Traduzido por Ernest Cushing Richardson In SCHAFF Philip (ed) Nicene and Post-Nicene Fathers 2 v 3 Theodoret Jerome Gennadius amp Rufinus Historical Writings New York Grand Rapids MI Christian Literature Publishing Co Christian Classics Ethereal Library 1892

JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961

JOLY E MOORE D Corpus Inscriptionum Latinarum vol VI pars VII fasc IV Berolini De Gruyter p 4262

JOSEgravePHE F Contre Appion Trad Th Reinach Paris Les Belles Lettres 1930

JOSEPHUS Flavius Jewish antiquities books XVI-XVII (Loeb Classical Library) Translated by Ralph Marcus and Allen Wikgren New York Harvad Press 1963

JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991

JOUCE Cullan The seeds of dialogue in Justin Martyr Australian eJournal of Theology 7 jun2006

JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995

JUVENAL Satiras In Juvenal and Persius With An English Translation G G Ramsay London New York William Heinemann G P Putnams Son 1918

KEITH Graham Justin Martyr and religious exclusivism Tyndale Bulletin 431 pp 56-80 1992

KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945

KERESZTES P Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 pp 204-214 dec1964

_________ Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986

_________ Rome and Christians Church I ANRW II 23 1 pp 260 274ss (1979)

_________ The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965

KHORENATSrsquoI Moses History of Armenians Traduzido por Robert W Thomson Ann Arbor Caravan Books 2006

KIMMEL G Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983

135

KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91

KRUEGER Paul MOMMSEN Theodor (Ed) Corpus iuris civilis I Institutiones Dublin Weidmann 1920 passim

KRUumlGER G Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896

LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934

LACTANTIUS The divine institutes Washington Catholic University of America Press 1964

LEWIS Charlton Thomas KINGERY Hugh Macmaster (Ed) An elementary latin dictionary New York American Book Co 1918

LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940

_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999

_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001

LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 pp 2146-312 1986

LUCIAN De morte Peregrini In Works with an English Translation by A M Harmon Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1936

_______ Menippus In The Works of Lucian of Samosata Translated by Fowler H W and F G Oxford The Clarendon Press 1905

LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]

MACMULLEN Ramsay Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997

__________ Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966

__________ Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981

MAIR AW GR MAIR Callimachus Hymn and Epigrams Lycophron With an English Translation by AW Mair Revised Version Cambridge MA amp London Harvard University Press 2000

136

MARAN P TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius

MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005

_________ Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994

_________ Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997

_________ Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 (2) pp 322-335 1992

MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007

MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 pp 413-442 winter1994

MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology v 8 pp 35ndash55 1982

MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 161v

_________ (Org) Patrologiae cursus completus series latina Paris Garnier-Migne 1878 217v

MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 pp 392-399 1890

MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 pp 3-32 1953

MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956

MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975

MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006

137

__________ LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p

__________ Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995

NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002

NASCIMENTO DFP O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia Pontificia Universidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003

NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzene Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129

OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992

ORIGIN Against Celsus In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997

OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889

OTTO JCT von Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876

PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988

PARVIS Sara Justin Martyr and Apologetc Tradition In PARVIS Sara FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007

________ FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007

PAUSANIAS Description of Greece with an English Translation by WHS Jones LittD and HA Ormerod MA in 4 Volumes Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1918

PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998

PERION Joachin Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum

138

Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis

PERKINS Judith Roman Imperial Identities in the Early Christian Era New York Routledge 2009

PFAumlTTISCH Johannes M Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910

PLATO Apology In Plato in Twelve Volumes Vol 1 translated by Harold North Fowler Introduction by WRM Lamb Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1966

______ Republic In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903

______ Law In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903

PLINIUS Caecilius Secundus Gaius Lettres Paris Belle Lettres 1953

PLUTARCH Moralia with an English Translation by Frank Cole Babbitt Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1928

POLYBIUS The Histories V III Translated by W R Paton Cambridge MALondon Harvard University PressWilliam Heinemann LTD 1979

POPE M The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000

POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005

PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988

QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197

RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972

REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004

ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89

ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) Bible Work 5 Software 2002

139

ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995

ROHDE Erwin Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966

ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981

ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141

ROSS Robert C Superstitio The Classical Journal v 64 n 8 pp 354-358 mai1969

ROUCECK Joseph Social Control Westport CT Greenwood Press 1970

RUSCONI C DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005

RUSSELL D S The Method and Message of Jewish Apocalyptic Philadelphia Westminster Press 1964

SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961

SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958

SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 pp 190ss 1954

SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review N 82 p 72 Jan1982

SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004

SENECA Apocolocyntosis WHD Rouse MA Litt D London William Heinemann 1913

SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008

SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 pp 23-27 1964

___________ The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952

140

SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987

SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 p 412 setdez 2009

SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006

SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944

SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011

________ I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349

STARK Rodney Baindridge Religion deviance and social control New York Routledge 1996

SUETONIUS The lives of the CAESARS In ROLFE JC (ed) SUETONIUS v II LondonNew York William HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1928

SUETONII C T De Vita XII Caesarum Harvard Loeb Classical Library 1914

SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012

SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946

SYLBERG F TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953

TACITUS C Annais In Complete Works of Tacitus Edited by Alfred John Church William Jackson Brodribb Sara Bryant New York Random House Inc Random House Inc reprinted 1942

________ Historiae Ed Charles Dennis Fisher Clarendon Press Oxford 1911

TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984

TATIAN Address to the Greeks Traduzido por JE Ryland In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

141

TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899

TERTULLIAN Apology Traduzido por Rev S Thelwall In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

________ Apology With tradution of TRGlover In GOOLD G P TertullianMinucius Felix Cambridge MassachusettsLondon Harvard University PressWilliam Heinemann 1978 pp 112-113 (The Loeb Classical Library)

________ Against the Valentinians Traduzido por Dr Roberts In SCHAFF Philip MENZIES Allan (ed) Anti-nicene fathers v 3 Latin Christianity its Founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2006b

THIRLBY S Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722

TITUS Livius History of Rome Cambridge Mass Harvard University Press 1970

TUAN Yi-fu Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983

URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932

VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006

VALANTASIS Richard Demons Adversaries devils fishermen The Asceticism of authoritative teaching (NHLVI3) in context of Roman AscetismThe Journal of religion v 81 n 4 pp 549-565 out2001

VEYNE P Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197

VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009

XENOPHON Apology In ____ Xenophontis opera omnia 2nd ed Oxford Clarendon Press 1921

WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991

WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987

WHIGHT ED The History of Heaven New York Oxford University Press 2000

WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 pp 181-190 1975

142

WINDISCH Hans Die orakel des Hystaspes Amsterdam Koninklijke Akademie van Wetenschappen 1929

WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982

143

APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS

A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450

ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C

segundo a forma estabelecida por Otto613

O Parisinus Graecus 450 ndash A ndash eacute o mais antigo manuscrito das obras de Justino

consideradas autecircnticas Ele eacute descrito como um conjunto de 467 foacutelios de 285x215 cm

terminado em 11 de setembro de 1364 segundo seu colofatildeo (fol 461a)614 Presume-se que

tenha sido adquirido em Veneza por Guillaume Pellicier bispo de Montpellirer e embaixador

francecircs naquela cidade de 1539 a 1542615 Natildeo eacute possiacutevel saber onde o manuscrito esteve

entre 1364 e 1540 Miroslav Marcovich616 considera ateacute razoaacutevel a hipoacutetese de A ter sido

produzido na Mistra617 do Deacutespota Manuel Cantacuzenos O antigo imperador John VI

Cantacuzenos pai de Manuel teria vivido contente como monge ateacute seus uacuteltimos dias

conhecido como Joasaph Era um homem culto e interessado nos assuntos teoloacutegicos Esse foi

um periacuteodo de prosperidade cultural e material no despotado de Morea618 Minns e Davis

identificam outros pontos que contribuem razoavelmente para indicar um centro maior como

Mitra ou Constantinopla Os primeiros cinco foacutelios que introduzem a coleccedilatildeo das obras de

Justino no A satildeo extratos de Photius e Euseacutebio sobre esse apologista Especificamente no

primeiro foacutelio aparecem indiacutecios de que o texto foi copiado ou adaptado de outro exemplar

Isso levaria a crer que A foi escrito em um lugar onde fosse possiacutevel ter acesso a outros textos

que auxiliassem na adaptaccedilatildeo Ter acesso agraves relevantes passagens de Photius no seacuteculo XIV

pode ser considerado algo raro619

Outro manuscrito completo das Apologias eacute o Phillippicus 3081 chamado B A partir

da anaacutelise de Bobichon620 B eacute reconhecido como um apoacutegrafo de A Sua dataccedilatildeo eacute de 2 de

abril de 1541 e apresenta uma assinatura no nome de ldquoGeorgerdquo provavelmente Georgios

613 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 614 MINNS D PARVIS P Justin Philosopher and Martyr Apologies Oxford Oxfrod Press 2009 p 3 615 ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris 1909 616 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 Cf Id Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 2 1992 p 322-335 617 Apoacutes o ano de 1261 a cidade ao sul do Peloponeso teria passado por um periacuteodo de ascendente prosperidade No seacuteculo XIV tornou-se importante centro cultural que teria sido capaz de influenciar o Renascimento na Itaacutelia 618 NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzenos Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129 619 MINNS PARVIS Op cit p 5 620 lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 p 157-158

144

Kokolos que viveu em Veneza e trabalhou para Guillaume Pelicier621 Acredita-se que B

tenha pertencido sucessivamente a Pellicier Clausde Noulot du Val ao Coleacutegio Jesuiacuteta de

Clermont em Paris e com a expulsatildeo dos Jesuiacutetas da Franccedila agrave coleccedilatildeo de Meermann E entatildeo

passou para a coleccedilatildeo de Sir Thomas Phillipps622 dando origem ao seu nome Por alguns anos

esses escritos estiveram no depoacutesito da British Library identificado como ldquoLoan 3613rdquo mas

foi retirado e vendido ldquoby private treatyrdquo em Marccedilo de 2006623

O coacutedice Ottobonianus 274 chamado de C tambeacutem tem certo valor na tradiccedilatildeo

manuscrita das Apologias mesmo contendo apenas trecircs capiacutetulos das mesmas Minns e

Parvis624 Marcovich625 Otto626 Harnack627 Blunt628 e Munier629 concordam que sua

qualidade eacute bem inferior a de A Mas quando se trata de saber se C eacute paralelo e independente

de A ou se eacute simplesmente uma coacutepia as opiniotildees se dividem Harnack630 considerou-o um

escrito independente de A Blunt destacou que ele parecia representar uma tradiccedilatildeo diferente

de A Marcovich e Munier segundo Minns e Parvis contentaram-se em apontar o demeacuterito

do texto Sem dar muitos detalhes sobre tais caracteriacutesticas de C Minns e Parvis se

esforccedilaram para argumentar que se trata de uma coacutepia de A feita agraves pressas Uma hipoacutetese

razoaacutevel eacute a de que o trecho da I Apologia 65-67 teria sido copiado pelo escriba Giovanni

Onorio atuante no Vaticano e em outros lugares de Roma por nomeaccedilatildeo do papa Paulo III em

1535 ateacute sua morte em agosto de 1563631 O restante de C teve outros escritores de diferentes

datas632 Ainda segundo a anaacutelise de Minns e Parvis633 a junccedilatildeo da ediccedilatildeo de Petrus Nannius

do De Resurretione Mortuorum de Atenaacutegoras ao conjunto de escritos proacuteximos aos extratos

das Apologias aponta para uma data natildeo anterior a 1541 Semelhantemente a Legatio de

Atenaacutegoras impotildee uma data natildeo posterior a 1557 quando a edito princeps foi impressa por H

Stephanus A visatildeo de Justino sobre a eucaristia teria sido de grande interesse teoloacutegico no

621 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 6 Vide nota 14 622 Esta trajetoacuteria apontada por Minns e Parvis eacute traccedilada por Archambault (Op cit v I pp xxiv-xxviii) e sumarizada por Bobichon (Op cit p 160) 623 Conforme Minns e Parvis (Op cit p 6) indicam e o Newslatter of the Association for Manuscripts and Archives in Research Collectons 46 mai2006 p 13 atesta 624 Op cit p 6 625 Op cit p 7 626 Op cit p xxviii 627 Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882 628 The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911 p lii 629 Justin Apologie pour les Chreacutetiens Paris Les Eacuteditons du Cerf 2006 p 86 630 Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99 631 MINNS PARVIS Op cit p 7 Ele indaca tambeacutem RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972 632 Conforme mostram Minns e Parvis (Op cit p 7) 633 Ibid p 8

145

periacuteodo que antecedeu e aos redores do decreto da eucaristia na deacutecima terceira sessatildeo do

Conciacutelio de Trento em 11 de outubro de 1551 Esses trecircs capiacutetulos do texto de Justino teriam

sido citados por Thomas Cranmer e Stephen Gardiner em 1549 antes de aparecer a editio

princeps Uma data proacutexima a 1548 eacute sustentada para esses dois primeiros foacutelios de C

Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra Parallela634 e no Chronicon

Paschale635 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo menos que doze vezes Na

Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito passagens No Chronicon Paschale

aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4 Esse uacuteltimo deriva provavelmente da

tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)636

634 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 635 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 636 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 13

146

Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos

Agostinho de Hipona 86

Alexandre de Afrodiacutesias 113

Apuleio 24

Aristides 15 24 33 49 55 58 109

Ata do Martiacuterio de Justino 22

Atenaacutegoras 24 109 123 143

Carta a Diogneto 49

Cassius Dio 9 13 14 34 36 48 49 67 88 97 103 111

Chronicon Paschale 18 128 144

Chrysippus de Solis 113

Cicero 43 139

26 31 43 71 74 87

Clemente de Alexandria 74 97

Diogenes Laertius 113

Eacutelio Aristides 58

Estrabatildeo 94

Euseacutebio 18 19 22 23 30 31 32 33 34 40 44 45 48 49 50 53 54 56 57 58 68 69

120 142 144

Flaacutevio Josefo 24 80 93 129

Histoacuteria Augusta 9 48 51

Homero 92

Irineu de Lyon 21

Isoacutecrates 86

Jerocircnimo e Gennadius 21

Juvenal 74

Lactacircncio 97

Luciano 21 37 58 73 95

Meacuteliton de Sardes 24 45

Oraacuteculos de Histaspes 97

Oriacutegenes 95

Oroacutesio 60

147

Papyri Graecae Magicae 92

Pausacircnias 94

Platatildeo 11 24 26 27 28 29 67 78 86 87 91 92 93 94 95 97 98 107 108 109 113 115

120

Pliacutenio 9 14 26 35 36 37 38 39 40 41 42 44 46 47 52 53 55 62 76 77 79 116 120

Plutarco 73 86 91 94 95 96 113 116

Poliacutebio 86 87

Quadrato 15 24 33 49 55

Secircneca 26 72 103

Suetocircnio 13 37 44 103

Taciano 21 24 27

Taacutecito 13 14 26 34 37 44 49 88 97 116 120

Teoacutefilo de Antioquia 24 123

Tertuliano 9 12 21 27 34 35 45

Tito Liacutevio 9 74 75

Varratildeo 86

Xenofontes 24 26

148

Iacutendice remissivo

acusadores 30 56 88 125

Adriano 7 10 15 16 27 35 37 40 41

42 44 49 50 51 52 53 54 55 56 57

58 59 60 61 62 63 71 72 84 90

106 128 143

alma 24 46 81 93 98 99 101 102 104

105 114 125 137

Antonino Pio 7 10 15 16 26 33 59 60

61 62 64 121 129

antropofagia 39

asebeia 36

Aacutesia Menor 15 26 32 55 83

ateiacutesmo 30 38 56 62 84 107 124

avsebeia 38

Bar Koseba 112

24 51 52 55 136

boatos maliciosos 63

caluacutenias

caluacutenia 7 34 39 40 47 48 56 81 82

83 84 88 91 96 108 119 125 128

130 131

canibalismo 30 56 84 124

castigo 6 31 44 56 61 74 85 91 94 96

97 98 104 113 114 120 123 126

131

coercitio 37 44

cognitio extra ordinem 45

controle social 14 16 17 18 64 65 67

68 69 70 77 80 82 113 127 129

130 131 133

costumes judaicos

costume judaico 39

Crescente 23 26 29 34 63 124

crime 17 31 37 39 40 42 47 57 58 62

67 68 84 89 90 93 126 128 139

culto ao imperador

culto imperial 38 52 81

decreto 47 64 76 79 114 148

democircnios

democircnio 11 74 78 79 81 88 89 91

96 106 107 108 110 111 112 117

118 119 122 127 129 130

denuacutencias

denuacutencia 7 34 37 41 43 47 55 56

58 82 90 91 123 124 127 128

130

desordem social 17

destino 29 52 104 105 107 113 120

Domiciano 36 48

epicureus 100 102

escola peripateacutetica 22

escola platocircnica

platonismo 22

estigmas

estigma 84 88 89

estigmatizaccedilatildeo 11 74 83 87

estoicismo 22 114 117 129

estoicos 92 100 102 104 124

exclusivismo 74

fariseus

fariseu 99

149

filosofia 7 12 16 22 23 27 28 30 33

38 65 71 73 92 93 99 100 101 102

103 106 118 122 125 126 129

filosofia estoica 38

flagitia

flagitium 14 36 39 40 46 47 48 50

90 124 128

gecircnero apologeacutetico 10 25 28

Graniano 15 16 53 56 57 128

Hades 92 99 101 102

Helena 107 120

Heraacuteclito 103 115 117

hetaerias 41

Histapes 103

Homero 98 101 102 107 115

incesto 14 39 59 84

inferno 105

injusticcedilas

injusticcedila 15 47 91 131

institutum neronianum 12 15 36 37 48

ius coertionis 37 45 50

julgamento 7 23 28 30 35 36 42 45 55

58 86 106 118 120 126 127 130

justiccedila 11 29 30 31 64 70 71 74 82

90 91 97 98 106 114 118 120 121

126 127

laesea maiestatis 37 40 45

livre-arbiacutetrio 113

loacutegoj sperermatikoj 26

Logos

logos 12 26 73 109 110 112 115

116 117 118 120 121 122 123

125 127 130 133 142 143

Luacutecio Vero 33

maiestas 47 56

manutenccedilatildeo da ordem 7 10 11 15 16 17

64 70 71 92 95 96 122 125 127

130

Marciatildeo 24 119 120

Marco Aureacutelio

M Aureacutelio 10 16 33 35 48 59 60 62

63 72 73 121 131

Menandro 104 107 120

Minuacutecio Fundano 16 53 54 56 58 128

Moiseacutes 114

moral 15 61 66 87 91 92 94 96 118

121 124 127 129

moralidade 7 70 91 94 108 119 129

131

morte 16 24 29 42 52 62 63 70 72 78

82 83 85 89 90 91 96 97 98 99

100 101 102 104 105 111 118 123

124 125 126 127 144 147

neoplatonismo 129

Nero 12 36 47 48 50 77 83 117 128

Nerva 38

nome cristatildeo

nomen christianum 30

nomen christianum 7 43 47 50 55 57

129

nomen Christianum 84 95 127

opiniatildeo puacuteblica 39 50 59

Ottobonianus Graecus 274 9 19 146

Parisinus Graecus 450 5 9 19 24 146

pax deorum 13 39 46 62 65 66 76 130

perseguiccedilatildeo 7 8 13 15 35 36 37 47 53

59 62 64 66 83 88

150

perseguiccedilotildees 13 15 27 47 65 66 81 87

89 106 128

peticcedilatildeo

libellus 27 31 32 33 34 62 71 90

126 129

Phillipicus 3081 19 146

pitagoacuterico 22

preconceito 63 88

reino de Deus 6 74 91

religio licita 38 45 55

rescrito 16 27 33 40 43 53 54 55 56

57 58 60 61 62 90

rescrito de Adriano 54 57 61

ressurreiccedilatildeo 99 100 102 105 109 111

112 144

retoacuterica 10 26 27 29 72 115

revelaccedilatildeo 11 105 107 115 116

Rusticus 23

sacrifiacutecios

sacrifiacutecio 42 48 64 74 75 79 81

sacrilegium 37 40 45 47 50

saduceus

saduceu 99

senatus consultum 36 48

Sibila 103 118

Simatildeo Mago 24

Soacutecrates 9 25 28 29 30 73 97 101 115

122 124 129

superstitio 7 8 14 35 37 39 40 42 43

45 46 48 52 55 58 85 90 91 94

124 127 128

superstitiones 14 46 94 101 102

temor 40 62 92 93 94 97 105 107 120

126 127 128

Tibeacuterio 15 16 36 48 103 139

toleracircncia 17 35 37 42 47 129

Tolomeu 61

Trajano7 10 15 32 35 36 37 38 39 40

41 42 43 44 47 48 49 50 54 55 56

57 58 59 60 61 66 84 90 128 133

143

Tumultos

Tumulto 62

Urbico 16 34 35 61 63 84 85 123

verdade 22 23 26 28 29 30 31 65 70

74 78 83 88 90 106 108 110 111

113 114 116 119 122 126 129 130

Vespasiano 22 32 117

viacutecio 99 113 114 120 121 124

virtude 6 91 92 96 99 112 113 114

115 120 124 125

151

Page 4: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência

4

ALESSANDRO ARZANI

AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE

JUSTINO MAacuteRTIR

Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano

Aprovado em

BANCA EXAMINADORA

Profordf Drordf Monica Selvatici

Universidade Estadual de Londrina - UEL

Profordf Drordf Solange Ramos de Andrade

Universidade Estadual de Maringaacute - UEM

Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini

Universidade Estadual de Maringaacute - UEM

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria

5

Dedico este trabalho

ao senhor de todas as eras que natildeo pode ser submetido a qualquer estaticidade que se possa

imaginar no universo Ao que era desde o princiacutepio eacute agora e continuaraacute sendo

indefinidamente Ao que consola e agraves vezes oprime a qualquer que seja Ao que

cuidadosamente nos observa desde o primeiro instante de vida e que conta

cada batimento do nosso coraccedilatildeo Sem ele nossos dias natildeo poderiam

ser contados Dele depende o amanhatilde nossa existecircncia e nossa

histoacuteria Agravequele que acompanhou cada passo deste

desafio e que me fazia lembrar do valor de

cada instante Agravequele que muitos

simplesmente chamam de

ldquotempordquo

6

AGRADECIMENTOS

Agrave Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini minha querida orientadora pela confianccedila

incentivo amizade e paciecircncia durante essa jornada Eu confesso que nunca havia conhecido

algueacutem que carregasse em si de tal forma a franqueza e a doccedilura associadas ao rigor

acadecircmico como pude constatar em sua pessoa

Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) pelo

amparo financeiro para o desenvolvimento dessa pesquisa

Agrave Profordf Drordf Sara Parvis (University of Edinburgh) por sua gentileza em indicar

algumas informaccedilotildees importantes sobre o principal manuscrito das Apologias de Justino o

MS Parisinus Graecus 450

Agrave minha querida amiga Profordf Viviana L Felix (Universidad Catolica de Buenos

Aires) que generozamente compartilhou comigo artigos e momentos agradaacuteveis de fluecircncia de

ideias

Aos professores Drordm Mauro Pesce e Drordf Adriana Destro (Universitagrave di Bologna) pela

atenccedilatildeo em partilhar comigo algumas indicaccedilotildees bibliograacuteficas

Agraves professoras Drordf Maria Aparecida de Oliveria Silva (pesquisadora na UNESP-

Araraquara) e Drordf Giovanna Menci (Istituto Papirologico ldquoG Vitellirdquo dellrsquoUniversitagrave degli

Studi di Firenze) assim como tambeacutem ao nobre B Jobjorn Boman (Oumlrebro University) pelos

riquiacutessimos artigos compartilhados

Ao Profordm Me Deivid V Gaia (Universidade Federal de Pelotas) por haver gentilmente

compartilhado alguns documentos importantes conseguidos junto agrave Bibliothegraveque national de

France

Agraves professoras Drordf Monica Selvatici (Universidade Estadual de Londrina) e Drordf

Solange Ramos de Andrade (Universidade Estadual de Maringaacute) pelas ricas criacuteticas e

consideraccedilotildees que contribuiacuteram para o aprimoramento dessa pesquisa

Aos colegas Camila Santiago Luz Thiago Franccedila Thais Bassi Soares Profordm Drordm

Jaime Estevatildeo dos Reis e demais integrantes do Laboratoacuterio de Estudos Antigos e Medievais

(LEAM-UEM) pelo companheirismo e satisfaccedilatildeo proporcionada pela dedicaccedilatildeo conjunta aos

estudos histoacutericos

7

Ateacute voacutes apenas ouvindo que esperamos um reino logo supondes sem nenhuma averiguaccedilatildeo que se trata de

reino humano quando noacutes falamos do reino de Deus [] Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a

manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o

avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens

conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos os modos e se

adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos De fato aqueles que agora

por medo das leis e dos castigos por voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los porque

sabem que sois homens e que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutes se se inteirassem e se persuadissem de que

natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se

moderariam de todos os modos como voacutes mesmos haveis de convir

Justino Maacutertir I Apologia 111121

8

Resumo

A histoacuteria do cristianismo na primeira metade do II seacuteculo eacute marcada por atritos locais

denuacutencias em tribunais e caluacutenias que faziam do nome ldquocristatildeordquo um motivo de condenaccedilatildeo

Trajano Adriano e Antonino Pio fizeram suas recomendaccedilotildees aos governantes locais para

desestimular a expansatildeo da nova superstitio dos cristatildeos que demonstrava aversatildeo aos

deuses agraves tradiccedilotildees agraves celebraccedilotildees puacuteblicas e ao culto imperial Nenhuma perseguiccedilatildeo de

fato devia ser estabelecida denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas e os cristatildeos que

abandonassem a feacute deveriam ser perdoados os que se recusavam a abandonar a feacute eram

punidos com a pena capital segundo o julgamento de cada magistrado Nesse periacuteodo alguns

chamados apologistas produziram escritos em defesa dos fieacuteis Justino escreveu duas vezes

ao imperador Antonino e a seus filhos entre os anos de 154 e 161 Nas Apologias ele critica a

postura dos governantes por acatarem as caluacutenias das massas que acarretavam uma ideia

depreciativa ao nomen christianum A fidelidade cristatilde ao Impeacuterio eacute ratificada pelo

apologista que surpreende ao destacar a colaboraccedilatildeo dos fieacuteis na manutenccedilatildeo da ordem Por

meio desta pesquisa que tem por obejtivo analisar a relaccedilatildeo entre controle e religiatildeo a partir as

accedilotildees anticristatildes nesses escritos de Justino nota-se que esse tipo de accedilotildees foi fundamental

para que a funccedilatildeo social da religiatildeo dos cristatildeos fosse pensada no desenvolvimento desse

discurso apologeacutetico Nesse discurso procura-se justificar a rejeiccedilatildeo aos deuses e agrave

imoralidade por eles representada Atento agraves interrogaccedilotildees dos intelectuais e homens letrados

de sua eacutepoca satildeo destacados os aspectos tidos por ldquoirracionais e imoraisrdquo das crenccedilas pagatildes

enquanto a feacute cristatilde eacute apresentada em contornos racionais com o intuito de reconhececirc-la como

filosofia divina e superior agraves demais Nesse sentido a crenccedila num Deus absoluto justo e

onisciente aparece como um instrumento capaz de subter as pessoas agrave moralidade enquanto

aguardam a recompensa eterna e procuram se afastar da condenaccedilatildeo divina Eacute nesse momento

que a religiatildeo dos cristatildeos comeccedila a ser pensada como uma substituta agraves crenccedilas pagatildes

apontadas como incoerentes

Palavras-chave

Justino Maacutertir histoacuteria do cristianismo Impeacuterio Romano perseguiccedilatildeo aos cristatildeos

9

Abstract

The history of Christianity in the first half of the second century is marked by local clashes

accusations in court and slanders that made the name Christian reason for condemnation

Trajan Hadrian and Antoninus Pius made their recommendations to local governments to

discourage the expansion of new superstitio of the Christians who showed aversion to the

gods traditions public celebrations and the imperial cult No persecution in fact should have

been established anonymous reports should not have been accepted and if any Christian

abandoned the faith they should have been forgiven however those who refused to abandon

their faith were punished with the death penalty according to the judgment of each magistrate

During this period some Christians with high education produced writings in defense of their

faith Justin wrote twice to the Emperor Antoninus and his sons between the years 154 and

161 AD In ldquoApologiesrdquo he criticizes the attitudes of the rulers for accepting the slander of the

masses who were accusing the Christians The Christian fidelity to the Empire is ratified and

he highlights the collaboration of the faithful in the maintenance of order Through this

research on the relationship between religion and control as seen in the antichristian actions

reported in the writings of Justin it is noted that this type of action was essential to the social

function of the Christian religion to be thought in your apologetic discourse It seeks to justify

the condemnation of the gods and the immorality represented by them In attention to the

questions of intellectuals and men of letters of his age the irrational behaviors and immoral

aspects of the pagan beliefs are pointed by the apologist while the Christian faith is presented

in rational contours making it a divine philosophy and superior to the other In this sense the

Christian belief in an absolute God who is just and omniscient appears as an instrument with

the ability to teach and demand morality from its followers while they are awaiting the

eternal reward and actively trying to move away from divine condemnation It is then that

their religion begins to be thought of as a substitute for pagan beliefs which are pointed out as

incoherent with the order in the Empire

Key-words

Justin Martyr History of Christianity Roman Empire persecution of Christians

10

LISTA DE ABREVIATURAS

Hist Ecles Histoacuteria Eclesiaacutestica

Diaacutel Diaacutelogo com Trifatildeo

I Apol Primeira Apologia de Justino

II Apol Segunda Apologia de Justino

A Manuscrito Parisinus Graecus 450

B Manuscrito Phillipicus

C Manuscrito Ottobonianus Graecus 274

IGRR Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes

Apolog Apologeticus de Tertuliano

Hist Rom Histoacuteria Romana de Cassius Dio

Hist Aug Histoacuteria Augusta

ApS Apologia de Soacutecrates

PIR Prosopografia Imperii Romani

Ep Epiacutestolas de Pliacutenio

Hist Roma Histoacuteria de Roma de Tito Liacutevio

ANRW Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt

ZKG Zeitschrift fuumlr Kirchengeschichte

Ant Jud Antiguidades Judaicas

Guer Jud Guerras Judaicas

11

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 12

CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS 18

11 As principais ediccedilotildees das Apologias 18

12 A questatildeo da autoria Justino 22

13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino 25

131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica 26

132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino 27

14 Destinataacuterios 31

CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS 34

21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano 35

22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano 49

23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos 57

CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE

MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM 62

31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem 67

32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus 71

33 Sobre as leis e imoralidades 85

CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM

SOCIAL 91

41 O controle absoluto do controlador absoluto 91

42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde 100

421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios 102

422 A razatildeo que julga 109

43 O governo o controle e os governantes 115

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 121

REFEREcircNCIAS 126

APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS 143

Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos 146

Iacutendice remissivo 148

12

INTRODUCcedilAtildeO

Este que no dia 1 de junho eacute reverenciado pelas Igrejas Catoacutelica Ortodoxa Oriental e

Anglicana tem a apresentar um testemunho que vai aleacutem do seu martiacuterio Seus escritos

oferecem pistas importantes para o entendimento da condiccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no

Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II Muitos como o Papa Bento XVI o tecircm chamado

de ldquoo mais importante dos padres apologistas do segundo seacuteculordquo1 Poreacutem o que esta

pesquisa iraacute mostrar eacute que os escritos atribuiacutedos a esse ldquofiloacutesofo cristatildeordquo apresentam acima de

tudo os primeiros indiacutecios de uma efetiva reflexatildeo histoacuterico-teoloacutegica sobre a funccedilatildeo do

cristianismo na organizaccedilatildeo social

Dentre as pesquisas do seacuteculo XX sobre Justino recebe destaque primeiramente o

trabalho de Johannes M Pfaumlttisch2 em 1910 a respeito da influecircncia do pensamento de

Platatildeo sobre esse apologista Em 1923 foi publicada a obra de E R Goodenough3 que

apresentava uma sistematizaccedilatildeo do pensamento teoloacutegico desse que segundo seu ponto de

vista fazia jus ao nome de ldquomaacutertirrdquo ou seja algueacutem ldquoque daacute testemunhordquo mas que em

contrapartida estava longe de merecer o tiacutetulo de ldquofiloacutesofordquo Poucos anos mais tarde

destoando em alguns aspectos do pensamento de Goodenough empreendeu C Andresen4

uma anaacutelise sublinhando os traccedilos filosoacuteficos dos escritos de Justino em comparaccedilatildeo ao

meacutedio-platonismo que tinha um espaccedilo significativo no pano de fundo intelectual do II

seacuteculo dC A problemaacutetica da relaccedilatildeo entre as doutrinas cristatildes ganhou reforccedilo com a defesa

da tese de N Hyldahl5 em 1965 Na mesma deacutecada de 1960 eacute Lislie W Barnard6 quem

intersecciona os aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos e as ideias sobre o judaiacutesmo representados

nos escritos de Justino Aleacutem dos interesses teoloacutegico-filosoacuteficos em torno desses escritos haacute

tambeacutem uma busca por elementos que auxiliem a compreender a condiccedilatildeo dos cristatildeos no

1 PAPA BENTO XVI Audiecircncia geral Praccedila de Satildeo Pedro Vaticano 21 de marccedilo de 2007 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherbenedict_xviaudiences2007documentshf_ben-xvi_aud_20070321_pohtml acesso em 20 de dezembro de 2011 2 Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910 3 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 4 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf tambeacutem ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Berliacuten Walter de Gruyter und co 1955 5 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 6 Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967 cf tambeacutem id Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology V 22 n 2 jun1969 pp 152-164

13

Impeacuterio em meados do seacuteculo II Nesse sentido os escritos de Justino tecircm muito a contribuir

tanto para se pensar a influecircncia da cultura greco-romana sobre as ideias cristatildes quanto sobre

as accedilotildees anticristatildes

As conferecircncias de Henry Chadwich7 na The John Rylands Library em 1965

chamavam a atenccedilatildeo para a inter-relaccedilatildeo entre a filosofia e a teologia nascente percebidas nas

estrateacutegias de defesa argumentativa apresentadas por Justino contra a opressatildeo sobre os

cristatildeos Mas por que os cristatildeos foram perseguidos

As hipoacuteteses tecircm girado em torno de uma lei especial contra os cristatildeos instituiacuteda por

Nero institutum neronianum como chamou Tertuliano8 ou pelo enquadramento em crimes

comuns como maiestas ou pela livre accedilatildeo dos magistrados para manter a ordem ius

coertiones9 Na deacutecada de 1950 receberam destaque os trabalhos de Henry Gregoire10 A N

Sherwin-White11 e J Moreau12 Na deacutecada seguinte Geoffrey E M de Ste Croix13

estabeleceu um debate com Sherwin-White14 sobre essa questatildeo

GEM de Ste Croix sustentava que as perseguiccedilotildees aos cristatildeos baseavam-se na

recusa em reconhecer os deuses de Roma comportamento que era frequentemente

considerado perigoso e sedicioso Os deuses tradicionais do panteatildeo greco-romano eram as

divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma que exigiam culto para a estabilidade da

pax deorum15 Por essa perspectiva Ste Croix propunha que a perseguiccedilatildeo se relacionava ao

sentimento religioso da eacutepoca16 AN Sherwin-White por outro lado defendeu que as

perseguiccedilotildees aos cristatildeos natildeo se baseavam na questatildeo do rompimento da pax deorum mas na

aguda obstinaccedilatildeo dos cristatildeos em natildeo cometer apostasia nem sacrificar para os deuses do

Impeacuterio17 Tal postura dos cristatildeos desafiava as autoridades romanas e representavam uma

grave insubordinaccedilatildeo GEM Ste Croix deu uma treacuteplica a essa questatildeo em 196418 mas essa

problemaacutetica tem despertado pesquisadores ateacute hoje19

7 Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 8 Ad Nationis I78 9 BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 1968 pp 30-50 10 Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 1111 The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952 p 199 12 La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 13 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 pp 6-38 14 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 15 De Ste CROIX GEM Op cit 1963 p 24 16 Ste CROIX GEM Op cit 1963 pp 29-31 17 SHERWIN-WHITE AN Op cit 1964 pp 25 18 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 19 Cf BARNES Timothy D Constantine and Eusebius Cambridge MA Harvard University Press 1981 MacMULLEN Ramsay Christianizing the Roman Empire (AD 100-400) New HavenLondon Yale

14

A proclamaccedilatildeo cristatilde no I e II seacuteculos causava tanto conversotildees quanto reaccedilotildees

adversas entre os pagatildeos20 A religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio Romano era presente na vida dos

povos 21 Relembrando Marcel Simon e Andreacute Benoicirct22 eacute justo admitir que com a refutaccedilatildeo

de todos os compromissos e a sustentaccedilatildeo intransigente do monoteiacutesmo a Igreja parecia um

corpo estranho aos pagatildeos Distanciando-se dos eventos puacuteblicos normalmente envolvidos

com a idolatria condenada pela Igreja rejeitando o serviccedilo militar os jogos e as celebraccedilotildees

artiacutesticas os cristatildeos se autoexpunham agrave marginalizaccedilatildeo da sociedade

Entre o povo ou entre os intelectuais os cristatildeos eram vistos com estranheza ou

desconfianccedila23 Assim como foram caracterizados os judeus podia-se pensar que os cristatildeos

apresentavam um odio humani generis24 em parte devido aos comentaacuterios depreciativos que

se espalhavam entre o povo Foram caracterizados por Taacutecito como membros de uma

destrutiacutevel superstitio25 oriunda da Judeia Suetocircnio se referiu a eles como ldquoraccedila de homens de

uma superstitio nova e maleacuteficardquo26 As acusaccedilotildees ou suspeitas poderiam girar em torno de

delitos ou coisas consideradas repulsivas como infanticiacutedio incesto assembleias ilegais

introduccedilatildeo de cultos iliacutecitos e mais especialmente traiccedilatildeo sendo esta uacuteltima caracterizada pela

recusa em adorar a divindade do imperador27

As superstitiones e os cultos locais eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob

atenccedilatildeo Como destacam Mary Beard John North e Simon Price28 as controveacutersias poderiam

desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito

em 172 e 173 aC29 na incursatildeo da Traacutecia que foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que

University Press 1984 DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000 DRAKE Harold Allen Constantine and the Bishops the politics of intolerance BaltimoreLondon John Hopkins University Press 1999 CLARK Gillian Christianity and the Roman Society Cambridge Cambridge University press 2004 CHADWICK Henry The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001 FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006 20 GOODMAN Martin Mission and conversion proselytizing in the religous history of the Roman Empire Clarendon Press Oxford University Press 1994 p 12 21 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 Cf BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35 22 SIMON M BENOIcircT A Giudaismo e Cristianesimo una storia antica RomaBari LaterzaFigli Spa 2005 p 12 23 ldquoaqueles que por suas abominaccedilotildees eram mal vistosrdquo [quos per flagitia invisos] Taacutecito Annales 1544 24 ldquooacutedio agrave humanidaderdquo Ibid 25 exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo] Annales 1544 26 genus hominum superstitionis novae ac maleficae De Vita XII Caesarum Vita Neronis 162 27 MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 28 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 29 Cassius Dio Hist Rom LXXII4

15

conseguiu seguidores30 entre os druidas incitados por profecias sobre o fim de Roma da

Gaacutelia31 e nas revoltas judaicas do I e II seacuteculos dC Embora existisse um niacutevel significativo

de liberdades religiosa e individual os grupos e assembleias ficavam sob atenccedilatildeo das

autoridades Os baacutequicos os astroacutelogos e maacutegicos o culto de Iacutesis e a crenccedila dos druidas

tambeacutem enfrentaram a obstruccedilatildeo romana32

Paul Veyne faz diferenciaccedilatildeo entre os interesses dos homens letrados e das autoridades

preocupadas com a manutenccedilatildeo da ordem e o interesse da populaccedilatildeo pagatilde em geral Em sua

percepccedilatildeo a atitude de criacutetica dos romanos frente agraves comunidades cristatildes manifestava a

repulsa ao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguo33 Desse modo a rejeiccedilatildeo ao novo grupo religioso

do oriente deveria envolver um problema identitaacuterio tambeacutem relacionado agrave dificuldade de se

assimilar um grupo dotado de particularidades que pretendiam a superioridade diante dos

estabelecidos Justino tambeacutem sustenta uma tese em torno da questatildeo do ldquopor que os cristatildeos

eram perseguidosrdquo esforccedilando-se em convencer os romanos sobre as ldquoinjusticcedilasrdquo cometidas

contra os cristatildeos

Embora natildeo exista um consenso sobre o iniacutecio das perseguiccedilotildees no I seacuteculo34 eacute certo

que o estilo de vida e o conteuacutedo das crenccedilas cristatildes natildeo agradavam a muitos o que

culminava na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados

Natildeo haacute sinais de uma perseguiccedilatildeo generalizada no iniacutecio do II seacuteculo mas apareciam

atritos locais que por vezes culminavam na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados ou agredidos

pelo povo Pliacutenio Segundo natildeo sabia ao certo como proceder nos processos que julgavam os

cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia e chegou a pedir a orientaccedilatildeo de Trajano35 Sob Adriano36 o

governador da Aacutesia Menor Graniano tambeacutem levantou questotildees sobre esses processos

30 Cassius Dio Hist Rom LI255 LIV345-7 31 Taacutecito Historias IV546165 V2224 32 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 Cf AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 33 VEYNE Paul Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 pp 245-246 34 Marta Sordi (I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 15-29) por exemplo sustenta a tese de que a resposta negativa do Senado ao pedido de Tibeacuterio sobre o reconhecimento de Cristo entre os deuses oficiais teria tornado a feacute cristatilde em uma religio illicta Paul Keresztes defende que foi o institutum neronianum que primeiramente comprometeu a legalidade do grupo dos cristatildeos (Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214) 35 Governou de 98 a 117 dC 36 Governou de 117 a 138 dC

16

Nesse periacuteodo Quadrato e Aristides tambeacutem escreveram ao imperador em defesa dos cristatildeos

mas a situaccedilatildeo continuou a mesma sob o governo de Antonino Pio37

Justino que havia nascido em Flaacutevia Neaacutepolis38 atual Nablus uma cidade na antiga

regiatildeo da Samaria filho de pai latino e de um avocirc com nome grego estudou filosofia mas se

converteu ao cristianismo e se pocircs em defesa da feacute39 Escreveu suas Apologias entre os anos

de 154 e 161 aproximadamente em defesa dos cristatildeos levados aos tribunais e entatildeo

condenados agrave morte Aleacutem da previsatildeo de seu proacuteprio martiacuterio o apologista retrata ainda um

caso especiacutefico que ocorreu sob Urbico em Roma Seu discurso busca convencer o imperador

Antonino Pio40 de que os cristatildeos natildeo representavam nenhum tipo de ameaccedila e que seria

segundo seu ponto de vista uma grande injusticcedila condenar agrave morte aqueles que eram

colaboradores ldquoda pazrdquo no Impeacuterio41 Os problemas penais e de outros caraacuteteres juriacutedicos

abordados por Justino e comuns ao governo de Antonino Pio foram uma vez analisados por

Paul Keresztes42 que destacou a estrateacutegia desse apologista de interpretar o rescrito43 de

Adriano a Minuacutecio Fundano Todavia as Apologias desse pensador cristatildeo desafiam a

compreensatildeo de um capiacutetulo intrigante da histoacuteria das ideias religiosas cristatildes como esse

discurso em defesa dos cristatildeos apresenta em meio agraves proposiccedilotildees teoloacutegico-filosoacuteficas que

permeiam o texto uma leitura das accedilotildees anticristatildes conjuguando controle social e religiatildeo na

reprovaccedilatildeo da coaccedilatildeo imposta por Roma sobre os cristatildeos e na indicaccedilatildeo da funccedilatildeo

reguladora da religiatildeo cristatilde para a cooperaccedilatildeo na manutenccedilatildeo da ordem

Por isso essa pesquisa tem por objetivo principal compreender as relaccedilotildees entre

controle social e religiatildeo a partir da anaacutelise das accedilotildees anticristatildes praticadas ateacute meados do

seacuteculo II dC segundo as Apologias de Justino Maacutertir O exame de suas ideias deve

compreender o paradoxo construiacutedo em seu discurso entre o tipo de controle social

desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia aos cristatildeos que

tumultuam a ordem e por outro lado o tipo de controle social apontado nas Apologias que

37 Governou de 138 a 161 dC 38 I Apol 11 cf MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 127-129 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought New York Cambridge University Press 1967 pp 3-12 39 JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991 Cf mais informaccedilotildees no capiacutetulo I 40 E tambeacutem a seus filhos Marco Vero (que seria chamado Marco Aureacutelio) e Luacutecio Vero 41 I Apol 31ss I Apol 121ss 42 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129 Id Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214 Id The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 43 Rescrito em resposta aos questionamentos do governador anterior Graniano

17

daria razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos mediante um tipo de ordem derivado da proliferaccedilatildeo de

suas crenccedilas

Por ldquocontrole socialrdquo entende-se ldquoo conjunto dos recursos materiais e simboacutelicos de

que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de seus

membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo44 Ou ainda

seguindo a perspectiva de Martin Innes45 ldquocontrole socialrdquo refere aos mecanismos e

tecnologias empregados para manutenccedilatildeo da ordem social Esta por sua vez eacute composta de

diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais de alguma forma contribuem para a

constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social Nesse embate apologeacutetico do seacuteculo II satildeo

apresentados argumentos para convencer de que a feacute cristatilde natildeo estava propiacutecia a nenhum tipo

de desordem social e que pelo contraacuterio seria capaz de influenciar na formaccedilatildeo de suacuteditos

fieacuteis do Impeacuterio

Para o cumprimento do objetivo central dessa pesquisa as Apologias de Justino satildeo

estabelecidas como principal objeto e fonte de investigaccedilatildeo a serem submetidas agrave criacutetica

interna e externa segundo o desenvolvimento de uma anaacutelise histoacuterica46 Ao colocar as

Apologias de Justino no centro dessa anaacutelise busca-se delimitar um campo possiacutevel de anaacutelise

dentro do processo de expansatildeo do cristianismo pelos territoacuterios do Impeacuterio Romano tendo

em vista as vaacuterias formas de resistecircncias e aceitaccedilotildees Uma anaacutelise sobre Justino e a

sobrevivecircncia de suas Apologias eacute apresentada no capiacutetulo I e no Apecircndice I

44 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) Dicionaacuterio criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 45 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 46 TOPOLSKY Jersy Metodologia de la historia Madrid Ediciones Catedras 1992 pp 36-45

18

CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS

Para desenvolver uma investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre controle social e religiatildeo

nas accedilotildees anticristatildes de meados do seacuteculo II dC a partir das Apologias de Justino Maacutertir eacute

preciso responder a algumas perguntas baacutesicas sobre sua origem transmissatildeo e forma

Levando em consideraccedilatildeo que as Apologias foram redigidas originalmente haacute quase 1900

anos e passaram por diversos copistas e editores ateacute chegar agrave atualidade eacute necessaacuterio fazer um

raacutepido percurso analiacutetico sobre as ediccedilotildees e suportes materiais que garantiram a preservaccedilatildeo

do texto Isso deveraacute contribuir para a compreensatildeo de suas caracteriacutesticas atuais

Esse tipo de anaacutelise contempla as diferenccedilas entre as trecircs principais ediccedilotildees recentes

das Apologias Miroslav Marcovich47 (com a 1ordf ediccedilatildeo em 1995) por exemplo oferece uma

ediccedilatildeo seguindo o padratildeo apresentado no MS Parisinus Graecus enquanto Charles Munier48

(com ediccedilotildees em 1994 1996 e 2006) sustenta a teoria de que os dois textos seriam

originalmente uma mesma peccedila Denis Minns e Paul Parvis49 (2009) oferecem uma ediccedilatildeo

que aleacutem de considerar a II Apologia uma compilaccedilatildeo de fragmentos e anotaccedilotildees de Justino

transformadas em Apologia por terceiros ainda realoca partes da segunda peccedila para a

primeira fazendo-a ganhar dois capiacutetulos a mais do que as duas ediccedilotildees mencionadas

anteriormente

Assim seratildeo analisados a seguir alguns dos principais pontos sobre as ediccedilotildees o

tamanho original e os destinataacuterios das Apologias bem como as evidecircncias que apontam para

Justino como seu autor

11 As principais ediccedilotildees das Apologias

A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450

ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C

47 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 48 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 Id Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 49 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

19

segundo a forma estabelecida por T Otto50 Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar

com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra

Parallela51 e no Chronicon Paschale52 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo

menos que doze vezes Na Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito

passagens No Chronicon Paschale aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4

Esse uacuteltimo deriva provavelmente da tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)53

Em 1551 foi produzida a partir do MS A a editio princeps importante trabalho do

typographus regius Robert Estienne54 ou Robertus Stephanus Conforme a anaacutelise de Minns e

Parvis55 trata-se de um texto bem produzido Do mesmo modo que A a composiccedilatildeo de

Stephanus que foi dedicada a ldquoBiblioteca Realrdquo apresenta os extratos de Photius e Euseacutebio

sobre Justino A Apologia menor tambeacutem aparece antes da maior56 Natildeo haacute nenhuma divisatildeo

ou quebra de texto Apenas algumas variantes de A satildeo colocadas nas margens das paacuteginas

A primeira traduccedilatildeo das Apologias viria em 1554 por Joachim Peacuterion57 em Paris

Frederick Sylburg58 apresentou sua ediccedilatildeo em 1593 em Heidelberg seguindo rigorosamente

o texto de Robert Etienne Sabe-se tambeacutem que Feacutedeacuteric Morel publicou as Apologias de

Justino em 161559 As ediccedilotildees de Johann Ernst Grabe seguiram fieacuteis ao Stephanus mas

trouxeram duas inovaccedilotildees a ediccedilatildeo de 170060 em Oxford apresentou a Apologia maior como

50 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 51 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 52 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 53 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 13 54 Minns e Parvis oferecem a seguinte referecircncia TOU AGIOU FILOSOFOU KAI MARTUROS) ZHNA kai Serhnw|) LOGOS parainetikoj proj Hllhnaj) PROS TRUFWNA Ioudaion dialogoj) APOLOGIA uper Cristianwn proj thn Rwmaiwn Sugklhton) APOLOGIA b uper Cristianwn proj Antoninon ton euvsebh) EX BIBLIOTHECA REGIA LVTETIAE Ex officina Roberti Stephani typographi Regii Regiis typis MDLI Cum priuilegio Regis Devido agrave corrupccedilatildeo dos textos antigos nem sempre eacute possiacutevel identificar os tiacutetulos corretamente por isso satildeo apresentados aqui em letras maiuacutesculas As barras representam a separaccedilatildeo das linhas onde satildeo lidas as informaccedilotildees a respeito dos volumes referenciados 55 Op cit p 14 56 A I Apologia eacute a ldquoapologia maiorrdquo mas no MS A a ldquoapologia menorrdquo isto eacute a II Apologia vem primeiro 57 Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis 58 TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953 59 Minns e Parvis (Op cit p 15) mencionam que Feacutederic Morel tenha criado a categoria de ldquoApologistasrdquo lanccedilando uma coleccedilatildeo de texto Esta informaccedilatildeo pode ateacute estar correta mas os autores natildeo apontaram nenhuma referecircncia do tipoacutegrafo Sabe-se que ele publicou as Apologias devito as informaccedilotildees do seguinte cataacutelogo GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18-- 60 SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700

20

a primeira e a ediccedilatildeo de 170361 apresentou a obra menor como a II Apologia tal como satildeo

reconhecidas hoje e tambeacutem foram acrescentadas divisotildees de capiacutetulos diferentes das usuais

A ediccedilatildeo de Styan Thirlby de 172262 juntou as trecircs obras de Justino reconhecidas como

autecircnticas I e II Apologia e o Diaacutelogo com Trifatildeo O texto ainda era baseado em Stephanus

Em 1742 Prudentius Maran63 publicou sua obra com uma divisatildeo de capiacutetulos que se

tornaria a usual Segundo Minns e Parvis64 Maran teve acesso a A e B mas seu texto eacute

semelhante ao de Stephanus As Apologias da coleccedilatildeo Patrologia Graeca volume 6 de

185765 eacute a reproduccedilatildeo da sua ediccedilatildeo alocada na seacuterie de Jacques Paul Migne (1800-1875)

JCT von Otto66 publicou sua primeira ediccedilatildeo em 1842 e a terceira e definitiva em

1876 Ele natildeo ficou preso ao texto de Stephanus e apresenta o princiacutepio das ediccedilotildees criacuteticas

sugerindo modificaccedilotildees e melhoramentos do texto Em 1911 foi a vez de Alfred Blunt

Segundo Minns e Parvis67 a obra se baseou principalmente nos trabalhos de G Kruumlger68 que

se espelhou em Otto A ediccedilatildeo de Edgar Goodspeed69 em 1914 recorre a A C e agrave tradiccedilatildeo de

Euseacutebio e da Sacra Parallela poreacutem natildeo apresenta notas criacuteticas

Em 1994 Miroslav Marcovich70 publicou sua ediccedilatildeo criacutetica das Apologias Em 1997

publicou tambeacutem a ediccedilatildeo do Diaacutelogo71 A qualidade criacutetica destes textos passou a um alto

niacutevel Segundo a anaacutelise de Minns e Parvis72 as emendas de Marcovich satildeo de um teor

filoloacutegico tatildeo elevado e com intervenccedilotildees sobre o caraacuteter estiliacutestico de tal modo que eacute possiacutevel

duvidar que Justino tivesse um conhecimento tatildeo apurado de grego

61 SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703 62 Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722 63 TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius 64 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 16 65 MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 66 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 67 Op cit p 17 68 Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896 69 Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 70 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 71 MARCOVICH Miroslav Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997 72 Op cit p 18

21

Charles Munier tambeacutem apresentou em 199473 um volume simples das Apologias em

francecircs Em 199574 foi lanccedilada sua ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto grego Ele confessa natildeo ter tido

acesso agrave obra de Marcovich receacutem-publicada75 Sua ldquogrande obrardquo veio em 2006 uma ediccedilatildeo

criacutetica na coleccedilatildeo Sources Chreacutetiennes O ponto forte do texto de Munier satildeo os comentaacuterios

e a extensiva discussatildeo do contexto teoloacutegico e filosoacutefico76 As anaacutelises textuais natildeo satildeo

muito profundas mas contribuem significativamente com a indicaccedilatildeo de textos

correlacionados

A ediccedilatildeo criacutetica de Denis Minns e Paul Parvis77 ndash com texto grego traduccedilatildeo e notas ndash

foi publicada em 2009 Aleacutem da ampla revisatildeo das ediccedilotildees de outros autores o texto

apresenta um rico aparato criacutetico As interferecircncias no texto fazem a I Apologia chegar ateacute o

capiacutetulo 70

Em 1995 a editora Paulus preparou uma versatildeo das I e II Apologias e o Diaacutelogo com

Trifatildeo em um uacutenico volume78 O texto eacute problemaacutetico e muito simplista Natildeo haacute sinais de

criacutetica textual e podem ser encontrados alguns erros de portuguecircs A traduccedilatildeo foi feita por Ivo

Storniolo com introduccedilatildeo e notas de Roque Frangiotti mas natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo sobre

qual foi o texto base para a traduccedilatildeo Eacute evidente todavia que os editores natildeo contaram com

as ediccedilotildees de Marcovich Munier ou Minns e Parvis Por isso deixaremos este texto em

segundo plano

Nessa pesquisa as ediccedilotildees de Miroslav Marcovich79 Charles Munier80 e a de Denis

Minns e Paul Parvis81 satildeo lidas em conjunto comparando as divergecircncias sempre que for

necessaacuterio A interferecircncia na disposiccedilatildeo dos capiacutetulos adotada por Denis Minns e Paul Parvis

natildeo seraacute admitida A divisatildeo das Apologias seraacute tal qual a que apresenta Marcovich por ater-

se ao padratildeo comum agrave maioria dos estudiosos82 poreacutem a Apologia Maior seraacute chamada I

Apologia abreviado para I Apol ou simplesmente I quando jaacute houver uma citaccedilatildeo no

paraacutegrafo Semelhantemente a Apologia Menor seraacute chamada II Apologia abreviado para II

73 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p 74 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 75 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 90 76 Opiniatildeo tambeacutem compartilhada por MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 18 77 Ibid 346 p 78 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 79 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 80 Op cit 2006 81 Op cit 82 Cf MARCOVICH M Op cit 2005 p 10

22

Apol ou II nas mesmas condiccedilotildees que a primeira O texto de Munier segue a mesma

padronizaccedilatildeo de Marcovich no entanto ele prefere se referir a Apologia parte I e parte II

nomenclatura que natildeo seraacute seguida nesse texto O termo ldquoApologiasrdquo seraacute empregado como

referecircncia aos dois textos de Justino

12 A questatildeo da autoria Justino

A I Apologia (11) aponta explicitamente que seu autor eacute Justino homem oriundo de

Flaacutevia Neaacutepolis hoje conhecida como Nablus localizada na Siacuteria Palestina B Bagatti83

afirma que ela foi fundada por veteranos da conquista da Judeia sob Vespasiano por volta do

ano de 72 O avocirc de Justino Baquios pode ter participado da implantaccedilatildeo da cidade

O apologista se reconhece como conterracircneo dos samaritanos84 No Diaacutelogo com

Trifatildeo ele eacute identificado como ldquofiloacutesofordquo e nas Apologias fica evidente seu conhecimento da

filosofia Taciano chamou seu mestre apologista de ldquoo mais admiraacutevel85rdquo Irineu de Lyon fez

menccedilatildeo ao seu martiacuterio e carregou sua influecircncia em seu escrito86 Tertuliano87 atribuiu-lhe

dois tiacutetulos ldquofiloacutesofo e maacutertirrdquo O apologista tambeacutem recebeu um lugar no De viriis

illustribus de Satildeo Jerocircnimo e Gennadius88

Em seu Diaacutelogo com Trifatildeo89 ele eacute apresentado como um homem educado no estudo

da filosofia Segundo a narrativa do Diaacutelogo Justino conheceu o estoicismo frequentou a

escola peripateacutetica ficou junto a um filoacutesofo pitagoacuterico que lhe solicitou aprender muacutesica

astronomia e geometria Por uacuteltimo havia se aproximado da escola platocircnica quando entatildeo

conheceu os escritos dos profetas e a feacute cristatilde90 Segundo E R Goodenough91 Justino adota

uma dramatizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o cristianismo e a filosofia apresentando as passagens

por diversas escolas agraves quais critica rumo agrave ldquoverdaderdquo cristatilde Ele compara a narrativa de

Justino agrave de seu contemporacircneo Luciano em Menippus IVVI Em Menippus tambeacutem eacute

descrita a passagem por diversas escolas de pensamento chegando-se ao consentimento pelas

inuacutemeras contradiccedilotildees de que nenhuma delas tinha autoridade Goodenough tambeacutem vecirc a

83 S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319 84 Diaacutel 1206 II Apol 151 85 Discurso contra os gregos 191ss 86 Contra as heresias I281 cf IV62 V262 87 Contra os Valentinianos 51ss 88 Vida dos homens Ilustres 89 21ss 90 II Apol 81ss 91 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 pp 58-59

23

recorrecircncia dessa forma literaacuteria na descriccedilatildeo de verdadeiros proseacutelitos do judaiacutesmo Githro

Naaman e Rahab descritos na Tannaim92 N Hyldahl93 aleacutem de considerar a narrativa da

trajetoacuteria filosoacutefica de Justino mera ficccedilatildeo tambeacutem sustenta ser impossiacutevel determinar que

tipo de platonista esse pensador foi antes de sua conversatildeo e que a capa de filoacutesofo que usava

mencionada por Euseacutebio era um erro de interpretaccedilatildeo

Deve-se reconhecer como tambeacutem destacou L W Barnard que se por um lado havia

uma convenccedilatildeo literaacuteria grega ndash e que pudesse ser encontrada ocasionalmente ateacute no judaiacutesmo

ndash sobre as aventuras por diversas escolas a fim de criticaacute-las por outro lado isso natildeo contradiz

a admissatildeo da atual condiccedilatildeo de filoacutesofo cristatildeo assumida por Justino naquele momento Por

ldquofiloacutesofo cristatildeordquo natildeo se pretende dizer outra coisa senatildeo aquilo que ele mesmo confessa e

procura convencer os seus leitores a saber de que apoacutes conhecer diversas correntes

filosoacuteficas encontrou nas doutrinas cristatildes a ldquoverdaderdquo que o contentou94 Aleacutem disso o teor

apologeacutetico do discurso de Justino estaacute fundamentalmente relacionado a paralelos e

intersecccedilotildees com a filosofia C Andresen95 concorda que a trajetoacuteria filosoacutefica de Justino seja

mais do que um simples jogo literaacuterio Segundo Andresen e ele parece estar correto o meacutedio-

platonismo eacute a base da construccedilatildeo do pensamento cristatildeo de Justino

Em Roma Justino esteve engajado em debates com o filoacutesofo ciacutenico Crescente96

Segundo a Ata do Martiacuterio de Justino97 ele foi decapitado sob o julgamento de Rusticus

prefeito de Roma entre 162 e 168

A data e o local da conversatildeo de Justino satildeo imprecisos Eacutefeso tem sido cogitada como

uma boa hipoacutetese para o local de seu membramento ao cristianismo98 ou ainda algum ponto

na sua longa jornada da Palestina para Roma99 Minns e Parvis100 pensam que sua adesatildeo deve

ter ocorrido pelo menos uns 30 anos antes de sua morte Isso apontaria para uma data proacutexima

92 Ibid pp 58-59 93 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 94 Dial II1-6 95 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf FELIX Viviana Laura Elementos medioplatoacutenicos en la filosofiacutea de Justino IV JORNADAS NACIONALES DE FILOSOFIacuteA MEDIEVAL Academia Nacional de Ciencias de Ciencias de Buenos Aires Abril 2009 96 II Apol 31ss 97 Atti del Martiacuterio di San Giustino Caritone Caritoacute Evelpisto Ierace Peone e Liberiano Martirizzati a Roma In GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 Texto grego e traduccedilatildeo italiana a partir da obra de WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987 98 QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197 99 SKARSAUNE Oskar The proof from phophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provence theological profile Leiden EJBrill 1987 pp 245-246 100 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 33

24

agrave guerra judaica da deacutecada de 130 dC O Dialogo (1206) cita a I Apologia e desse modo

ambos os textos fazem referecircncia agrave revolta de Bar Kosiba entre os anos de 132 e 135101

Aleacutem das Apologias e do Diaacutelogo com Trifatildeo obras que satildeo reconhecidamente

proacuteprias a Justino Euseacutebio102 aponta que o apologista escreveu tambeacutem um livro contra os

gregos outro intitulado Elenchos um tratado sobre a soberania de Deus outro com o tiacutetulo

Psaltes e um escrito sobre a alma Um tratado contra Marciatildeo tambeacutem eacute citado mas essa

passagem corresponde a um trecho da I Apol 265-6103 Na sequecircncia dessa periacutecope da I

Apologia Justino disse que ele mesmo escreveu um ldquotratadordquo contra todas as heresias Esse

escrito poreacutem eacute dado por perdido No Dialogo 1206 o apologista diz ter aprestado um

escrito endereccedilado ao imperador no qual se refere a Simatildeo Mago104 o que eacute constatado na I

Apologia Eacute pertinente admitir que natildeo eacute possiacutevel saber se o texto que foi preservado ateacute agora

derivou daquele primeiro endereccedilado ao imperador Se seu trabalho foi entregue ao imperador

eacute provaacutevel que Justino tenha ficado com uma coacutepia

Minns e Parvis105 natildeo acreditam que seu texto tenha sido copiado com o intuito de ser

amplamente publicado Parece-lhes razoaacutevel sustentar a hipoacutetese de que o texto preservado

ateacute hoje pelo MS A deriva do documento que estava com Justino no momento de sua prisatildeo

Talvez tenha sido necessaacuteria uma reorganizaccedilatildeo do texto mais tarde com um propoacutesito

catequeacutetico ou apologeacutetico diferente do seu sentido original Entre sua emissatildeo original e o

teacutermino do trabalho do copista do Parisinus Graecus 450 em 11 de setembro de 1364106

muita coisa pode ter acontecido ao texto Todavia o principal obstaacuteculo a essa hipoacutetese eacute que

natildeo foram encontrados quaisquer vestiacutegios de um texto que ateste que o documento jaacute teve

outro formato sem os acreacutescimos catequeacuteticos Aleacutem disso as partes que tratam das crenccedilas

cristatildes estatildeo bem relacionadas agrave estrutura da obra e cumprem com seu propoacutesito

apologeacutetico107 Sua estrutura apresenta traccedilos comuns aos escritos de outros apologistas do II

101 Diaacutel 13 I Apol 316 102 Hist Ecles IV181-6 103 Hist Ecles IV118-9 104 Cf I Apol 262-3 105 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 34 106 Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005) calcula o ano de 1363 mas Bobichon ( lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 pp 157-158) apontou de forma mais satisfatoacuteria a data de 1364 com a qual Minns e Parvis (Op cit 34) e Munier (Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 84) concordam 107 A funccedilatildeo catequeacutetica da obra seraacute examinada mais propriamente no terceiro capiacutetulo parte 4 dessa dissertaccedilatildeo

25

seacuteculo induzindo Sara Parvis108 a pensar que Justino tenha sido o ldquopairdquo do gecircnero apologeacutetico

cristatildeo servindo de inspiraccedilatildeo para outros escritores da eacutepoca

Embora existam interrogaccedilotildees e divergecircncias sobre a unicidade ou biparticcedilatildeo das

Apologias haacute semelhanccedilas estiliacutesticas entre as duas partes que fazem com que Marcovich109

Munier110 Minns e Parvis111 concordem que os escritos procedam de Justino ainda que certas

modificaccedilotildees sejam admitidas durante o tempo conforme as irregularidades de alguns pontos

tecircm mostrado Eacute preciso ainda ter uma ideia clara sobre que tipo de escritos se estaacute

analisando tendo em vista que o conceito de ldquoapologiardquo como uma espeacutecie de gecircnero literaacuterio

eacute recente

13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino

Termo derivado da palavra grega avpologia significa basicamente ldquodiscurso de defesa

defesardquo Que tambeacutem deriva do verbo avpologeomai que representa o oposto de kathgoria

que significa ldquoacusaccedilatildeordquo112

No seacuteculo IV aC Platatildeo113 e Xenofontes114 cada um a seu modo narram a ldquoapologia

de Soacutecratesrdquo e proporcionam um tributo agrave valorizaccedilatildeo da razatildeo No I seacuteculo dC eacute Flaacutevio

Josefo115 quem eterniza um discurso desse tipo remetido a Aacutepion em prol dos judeus Josefo

defende a religiatildeo judaica salientando a sua antiguidade e contrastando a pretensatildeo grega agrave

superioridade no campo cultural O caraacuteter ldquoapologeacuteticordquo do texto como um ldquodiscurso de

defesardquo fica por conta da resposta a algumas alegaccedilotildees antijudaicas atribuiacutedas ao escritor

grego Aacutepion e os mitos acreditados por Manetho

No seacuteculo II dC Apuleio de Madura tambeacutem compocircs uma apologia pela qual se

defende das acusaccedilotildees de magia Eacute nesse mesmo seacuteculo que uma seacuterie de escritos como os de

Quadrato Aristides Justino Atenaacutegoras Meacuteliton de Sardes Teoacutefilo de Antioquia Taciano e

outros emerge em defesa dos cristatildeos que sofriam acusaccedilotildees principalmente na Aacutesia Menor

108 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 109 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 110 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 111 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 112 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 Cf RUSCONI C (Ed) DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 113

Apologia de Soacutecrates 114

Apologia 115 Contra Aacutepion

26

Para compreender os aspectos constitutivos das apologias de Justino eacute preciso analisar

as vaacuterias teorias sobre sua composiccedilatildeo e sua estrutura retoacuterica

131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica

As diferenccedilas estruturais de uma para a outra apologia de Justino exigem uma anaacutelise

especiacutefica Notadamente a II Apol eacute menor que a I Apol Minns e Parvis116 apresentam trecircs

teorias sobre o nuacutemero desses escritos de Justino

A forma como aparecem no MS A corrobora com a ideia de que sejam duas apologias

Mas enquanto a primeira eacute cheia de citaccedilotildees da escritura a segunda natildeo tem nenhuma citaccedilatildeo

desse tipo De modo bem peculiar eacute na II Apologia que aparece a reflexatildeo sobre o loacutegoj

sperermatikoj117 e o comprometimento de Justino no debate com Crescente A anaacutelise textual

da II Apologia eacute desfavorecida pelo tamanho do texto todavia as diferenccedilas proporcionais

entre os escritos satildeo somadas agrave hipoacutetese de que seriam de fato duas apologias

A segunda teoria sustenta a ideia de que originalmente a atual composiccedilatildeo dupla era

na verdade uma uacutenica Apologia Munier eacute aliado a essa proposta Ele considera que uma obra

uacutenica ndash um libellus ndash teria sido apresentada em Roma como requisiccedilatildeo pessoal endereccedilada ao

Imperador Antonino Pio e seus filhos para mudar a condiccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio118 O

principal argumento dessa hipoacutetese eacute que existe uma boa inclusio entre as referecircncias agrave

piedade e agrave filosofia no iniacutecio da primeira (I Apol 1 21-2 31) e os que aparecem no final da

segunda (II Apol 1213 e 14) As retomadas na segunda do tipo ldquoconforme dissemos

anteriormenterdquo seriam referecircncias ao que foi dito na parte imediatamente anterior e natildeo a

outro texto

De modo diverso Minns e Parvis119 consideram que a estrutura do texto ficaria muito

estranha se fosse pensada segundo essa teoria O cliacutemax da primeira parte estaria no rescrito

de Adriano quando o autor mostra a incoerecircncia das acusaccedilotildees e perseguiccedilotildees sofridas pelos

cristatildeos (I Apol 685-10) Isso tornaria incoerente recomeccedilar uma seccedilatildeo de defesa na parte

posterior Outro argumento desfavoraacutevel eacute que o escriba que picou o texto teria sido

demasiadamente astuto para escolher uma parte que marcaria precisamente a distinccedilatildeo de tons

entre os dois textos

116 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p22 117 Logos spermatikos que pode ser entendido de modo limitado com ldquosemente da razatildeordquo 118 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 119 Op cit p 22

27

Outra teoria sustenta que se trata de uma apologia e um apecircndice Minns e Parvis120

fazem saber que essa foi a teoria apresentada por Grabe121 em 1703 recebida por Harnack122

popularizada por Goodspeed123 em 1914 e ainda sustentada com entusiasmo por Marcovich124

em 1994 As correspondecircncias entre a primeira e a segunda estariam relacionadas ao material

deixado pelo proacuteprio Justino apoacutes concluir o texto definitivo A I Apologia pode ser

reconhecida como um libellus ou seja uma requisiccedilatildeo particular endereccedilada ao Imperador

mas a classificaccedilatildeo da II Apologia natildeo eacute muito precisa

Seguindo o raciociacutenio de Robert M Haddad125 qualquer peticcedilatildeo (libellus) apresentada

ao imperador buscava persuadi-lo a fazer alguma coisa De fato na Antiguidade a persuasatildeo

se tornou uma arte Desenvolvida pelos gregos a retoacuterica foi adaptada pelos romanos para

suas proacuteprias aspiraccedilotildees Ciacutecero Secircneca o Velho Taacutecito Pliacutenio o Jovem Quintiliano e

Fronto se tornaram nomes referenciais dessa habilidade Como foi apontado anteriormente

Justino era muito familiarizado com a filosofia mas natildeo se mostrou muito familiarizado com

a retoacuterica o que natildeo isentou seu texto de revelar uma estrutura comum agraves teacutecnicas dessa

disciplina126 No entanto esses aspectos ainda natildeo satildeo suficientes para oferecer uma

explicaccedilatildeo clara sobre o gecircnero das Apologias

132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino

Se a apologia de Soacutecrates diante do tribunal grego adaptada por Platatildeo127 e por

Xenofontes128 tornou-se um emblema da defesa da razatildeo no II seacuteculo dC foram as

120 Op cit p 23 121 HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703 Grabe atuou em parceria com Huntchim nessa ediccedilatildeo 122 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274 123

Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 passim 124 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 10 125 HADDAD Robert M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 Werner Eck escreve que o imperador romano era cercado por pessoas que procuravam influenciaacute-lo ou conseguir favores (Id The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000) 126 The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 21-28 127 Apologia de Soacutecrates 128 Apologia

28

acusaccedilotildees contras os cristatildeos que deram ldquorazatildeordquo agrave proliferaccedilatildeo de apologias em defesa da feacute

cristatilde que ainda natildeo apresentava uma sistematizaccedilatildeo coerente de suas ideias

Segundo a anaacutelise de Robert Grant a literatura apologeacutetica emerge de grupos

minoritaacuterios que estatildeo tentando desenvolver uma linguagem que seja compreensiacutevel agraves

culturas no Impeacuterio Romano para que por meio dela seja comunicada a mensagem cristatilde129

Satildeo vaacuterias as formas apresentadas para atestar a autenticidade das correntes religiosas

defendidas A apologia significaria algo mais do que uma simples defesa dos ataques sofridos

pela Igreja Seria uma forma baseada na defesa que Soacutecrates teria feito no seu julgamento

diante do povo de Atenas para mostrar a racionalidade de seu julgamento Os apologistas

cristatildeos teriam a ampla tarefa de estender possiacuteveis conexotildees entre as concepccedilotildees da filosofia

grega e aquela que para os cristatildeos era a ldquoverdade por excelecircnciardquo Mas esse processo

precisa ser analisado dentro do acircmbito missioloacutegico cristatildeo 130

A apreciaccedilatildeo helenizante estendida tambeacutem por Leslie W Barnard131 a todos os

apologistas eacute desajeitada O proacuteprio disciacutepulo de Justino Taciano opotildee-se agrave cultura grega

Poucos anos depois Tertuliano132 se mostraria o principal disseminador de um discurso que

estava longe de buscar os pontos comuns entre Jerusaleacutem e Atenas A comparaccedilatildeo com

Soacutecrates tambeacutem natildeo pode ser estendida a todos os apologistas

Justino poreacutem aleacutem de se referir positivamente a Soacutecrates como participante no logos

que autentica a racionalidade cristatilde proporciona uma analogia com a sua proacutepria condiccedilatildeo

enquanto prevecirc o seu martiacuterio em defesa da feacute cristatilde133

Em 1897 Th Wehofer em busca dos modelos literaacuterios de Justino observou que no

elogio dos mortos de Menexenus e na Apologia de Soacutecrates Platatildeo proporciona o modelo de

uma retoacuterica a serviccedilo da justiccedila e da verdade Sem duacutevida Justino conhecia os escritos de

Platatildeo Algumas correlaccedilotildees podem ser identificadas em trechos de suas Apologias I Apol

24 = ApS 30c 53 = 24b et 26c 82 = 30d 682 = 19a II102 = 24b Segundo Munier134

a exposiccedilatildeo temaacutetica progressiva encontrada nessa obra pode parecer uma desorganizaccedilatildeo

129 GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988 p 9 apud HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 31 130 Isso significa que as interconexotildees apologeacuteticas entre cultura greco-romana e cristianismo precisam ser contempladas como mecanismo dos discursos cristatildeos para proporcionar siginificaccedilotildees eficientes entre os povos de outras culturas cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990 131 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 2008 p 2(3) 132 Apolog passim 133 I Apol 51-3 II Apol 81ss 134 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 33

29

uma composiccedilatildeo aparentemente relaxada uma sucessatildeo aparentemente arbitraacuteria de

passagens dogmaacuteticas e pareneacuteticas que retoma abundantemente o mesmo tema abordando-o

sob uma perspectiva diversa Nota-se que um esquema preside a composiccedilatildeo geral das

Apologias

A estrutura essencial da Apologia de Soacutecrates por si soacute natildeo eacute suficiente para dar conta

do plano geral da obra de Justino As correlaccedilotildees entre o escrito de Platatildeo e o de Justino vatildeo

aleacutem do niacutevel estrutural Elas tambeacutem se mostram nos modelos de argumentaccedilatildeo De fato

este eacute o coraccedilatildeo mesmo da defesa que se funda sobre o exemplo de Soacutecrates condenado como

ldquoateu e iacutempiordquo135 Para Justino136 o destino traacutegico do filoacutesofo ateniense ilustra perfeitamente

a sorte dos cristatildeos ameaccedilados de morte

A diatribe de Justino contra Crescente toma uma funccedilatildeo analoacutegica Ela estaacute associada

agrave evocaccedilatildeo de Soacutecrates Assim como Meacuteletos tinha acusado Soacutecrates Crescente acusa os

cristatildeos de serem ldquoateus e iacutempiosrdquo a fim de agradar a multidatildeo insensata137 E como Soacutecrates

tinha oposto a seus acusadores sua indiferenccedila ao ldquotalento da palavra e sua uacutenica preocupaccedilatildeo

era dizer a verdaderdquo138 o desafio de Justino a Crescente se inspira na sentenccedila de Platatildeo139

ldquoDe modo nenhum se deve honrar mais a homens do que agrave verdaderdquo

Contudo a Apologia de Soacutecrates natildeo eacute um modelo literaacuterio estrito no qual Justino se

inspirou Segundo a anaacutelise de Munier140 o Protreacuteptico de Aristoacuteteles oferece tambeacutem

alguma correlaccedilatildeo mas isso natildeo deve significar que haja alguma dependecircncia intriacutenseca entre

esses escritos Aristoacuteteles se dedica a demonstrar que a filosofia converte todo seu valor agrave

vida em sociedade e que uma vida sem filosofia natildeo vale a pena de ser vivida Na medida em

que apresenta o cristianismo como uma ldquofilosofia divinardquo141 Justino poderia tirar o melhor

partido dos protreacutepticos142 de Aristoacuteteles de Isoacutecrate e de seus seguidores dedicados agrave

filosofia Mas essa semelhanccedila eacute apenas ocasional e natildeo intencional O apologista natildeo

esconde seu desejo de que o imperador se torne um filoacutesofo de Cristo Ele acreditava que se

seu pedido fosse aceito a feacute cristatilde espalharia benefiacutecios por todo o Impeacuterio143 Eacute nesse sentido

135 I Apol 53 136 II Apol 12 81-2 137 Cf WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991 138 Platatildeo ApS 17bc 139 Repuacuteblica X595c 607c 140 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 40 141 II125 142 Protreacuteptico exortaccedilatildeo Restam apenas fragmentos dos escritos protreacutepticos de Aristoacuteteles cf CHROUST Anton-Hermann Aristotle Protrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964 143 I 12 1-2 17 1-4

30

que ele recorre agrave maacutexima de Platatildeo144 ldquoSe governantes e governados natildeo satildeo filoacutesofos natildeo

pode haver felicidade nas cidadesrdquo

P Keresztes145 estava certo ao dizer que a caracteriacutestica marcante da Apologia eacute a

extensiva defesa dos cristatildeos contra as acusaccedilotildees de ateiacutesmo traiccedilatildeo canibalismo e agraves accedilotildees

caluniosas de modo geral Justino sustenta essa defesa tentando mostrar a exclusiva verdade

da religiatildeo cristatilde O principal propoacutesito das Apologias seria garantir que os cristatildeos tivessem

liberdade para professarem a feacute embora isso significasse a condenaccedilatildeo dos demais deuses

Tambeacutem fazia parte do propoacutesito chamar os pagatildeos a abraccedilarem o cristianismo Seus

conselhos retoacutericos no contexto servem ao propoacutesito de sugerir ao imperador que mude o

corrente curso da justiccedila Isso significa clamar por um julgamento comum que natildeo permitisse

a condenaccedilatildeo pelo ldquonome cristatildeordquo

Esses escritos do pensador de Flaacutevia Neaacutepolis satildeo dotados de certa particularidade em

sua composiccedilatildeo Mas se nota que a princiacutepio o apologista procurou valer-se do seu direito de

dirigir uma ldquopeticcedilatildeordquo ou libellus ao imperador

Na I Apol 74 ele faz sua requisiccedilatildeo usando o verbo normalmente empregado para

uma peticcedilatildeo em grego avxioun Assumindo a postura de um pensador compromissado com a

justiccedila e a verdade ele pede para que ldquosejam examinadas as accedilotildees de todos os que [] satildeo

denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por

outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo

ter cometido nenhum crimerdquo146 (I Apol 74) Uma requisiccedilatildeo desse tipo deveria ser

encaminhada ao escritoacuterio administrativo para ser ou natildeo subscrita e receber uma resposta O

equivalente grego para libellus eacute biblidion para subscribere o equivalente eacute u`pografein e

para postar uma resposta usa-se proqeiai no lugar de proponere147 Esta terminologia pode

ser precisamente encontrada na II Apol 141

Kai u`maj ou=n avxioumen u`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaj148148148148 to dokoun proqeinaiproqeinaiproqeinaiproqeinai touti to biblidionbiblidionbiblidionbiblidion( o[pwj kai toij alloij ta hmetera gnwsqh| kai dunwntai thj yeudodoxiaj kai avgnoiaj ton kalwn avpallaghvai( oi para thn

144 Repuacuteblica V 473de 145 The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965 p 109 146 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 pp 23-24 [Oqen pantwn twn kataggellomenwn umin taj praxeij krinesqai avxioumen( i[na o` evlegcqeij w`j adikoj kolazhtai( avlla mh wvj Cristianoj evan de tij avnelegktoj fanhtai( avpoluhtai w`j Cristianoj ouvden avdikon) MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 142-144 147 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 25 148 Grifos nossos

31

e`autwn aivtina u`peuqunoi taij timwriaij eivj to gnwsqhnai toij avnqrwpoij tauta(149

As proporccedilotildees desses textos ultrapassam os padrotildees de um libellus Para explicar essa

relativa incompatibilidade Minns e Parvis150 referindo-se apenas a I Apologia sustentam que

Justino usou de uma estrateacutegia por meio da qual ele adota esse tipo de documento

administrativo romano inserindo um material catequeacutetico e explanatoacuterio cristatildeo convertendo-

o em um dispositivo disseminador da mensagem de feacute Ou ainda traduzindo as palavras de

W R Schoedel151 trata-se de uma peticcedilatildeo apologeticamente fundamentada e sem precedentes

na tradiccedilatildeo literaacuteria greco-romana As diferenccedilas na estrutura da II Apologia natildeo permitem

dizer que se trata de um documento de outro autor pois as caracteriacutesticas do texto atestam sua

compatibilidade com a primeira peccedila O que faz multiplicar as interrogaccedilotildees sobre o segundo

texto eacute que mesmo apresentando traccedilos de uma segunda ldquopeticcedilatildeordquo ela eacute evidentemente menor

e dispensa um exordio bem formulado como o do primeiro escrito Mas essa propriedade da II

Apologia se tornaraacute mais clara a seguir na anaacutelise dos destinataacuterios

14 Destinataacuterios

Existem algumas variaccedilotildees entre a forma como a I Apologia eacute endereccedila no MS A e na

Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio A tabela a seguir foi construiacuteda seguindo as informaccedilotildees

apresentadas por Minns e Parvis152

MS A Euseacutebio HE IV12

a Antoninus Pius Augustus Caesar a Antoninus Pius Augustus Caesar

e a Verissimus seu filho e a Verissimus seu filho

Filoacutesofo Filoacutesofo

e a Lucius e a Lucius

Filoacutesofo do filoacutesofo

de Ceacutesar filho por natureza Ceacutesar filho por natureza

e de Pius por adoccedilatildeo e de Pius por adoccedilatildeo

149 MUNIER Op cit pp 364 366 TrldquoPortanto noacutes vos suplicamos que subscrevendo como vos pareccedila deis publicidade a este livro a fim de que tambeacutem os outros conheccedilam a nossa religiatildeo e se vejam livres da vatilde opiniatildeo e da ignoracircncia em relaccedilatildeo ao bem Por sua proacutepria culpa eles se tornam responsaacuteveis pelo castigordquo 150 Op cit p 25 151 SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72 152 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35

32

Eacute incluiacuteda ainda no manuscrito a expressatildeo ldquoao santo senado e a todo o povo dos

romanosrdquo entre os destinataacuterios da Apologia Minns e Parvis153 consideram esse uacuteltimo

trecho uma antiga adiccedilatildeo editorial Eles apontam que a expressatildeo ldquosanto senadordquo foi

comumente encontrada em moedas de bronze cunhadas na Aacutesia Menor154 Outras inscriccedilotildees

mostram essa expressatildeo vinculada agrave famiacutelia imperial e ao povo romano Vespasiano ldquoe toda

sua casa o santo senado e o povo dos romanosrdquo155 Trajano ldquoe toda sua casa o santo senado e

o povo dos romanosrdquo156 Marco Aureacutelio e Luacutecio Veroldquoe toda [sua] casa o mais santo senado e

o povo dos romanosrdquo157 Septimus Severus Caracalla Geta Julia Domna ldquoe toda a sua casa o

santo senado o povo dos romanos e os santos exeacutercitosrdquo158 Eacute possiacutevel indicar muitas outras

inscriccedilotildees mas o impasse identificado por Minns e Parvis estaacute relacionado ao fato de o

ldquosenadordquo e o ldquopovordquo aparecem no endereccedilamento de uma ldquopeticcedilatildeordquo como eacute caracterizada a

Apologia de Justino Entra na hipoacutetese a importaccedilatildeo da expressatildeo que ocorre na I Apol 563

ldquoPor isso noacutes vos suplicamos que o sacro senado e o povo romano conheccedilam este nosso

escrito []rdquo Ou ainda que a primeira ocorrecircncia do termo ldquosacro senadordquo seja a da fala de

Lucius a Urbicus na II Apol 216

Munier159 no entanto tem outra proposta Para ele eacute mais provaacutevel que tal expressatildeo

tenha assumido seu lugar em funccedilatildeo da necessaacuteria autorizaccedilatildeo do senado e do povo para o

estabelecimento de um novo culto puacuteblico Seu argumento eacute baseado no escrito de Ciacutecero

(Legibus II19-20) e parece mais seguro

Euseacutebio escreve que Justino tambeacutem endereccedilou uma Apologia ao imperador

ldquoAntonino Verordquo160 ou seja a Marco Aureacutelio A menccedilatildeo ao ldquoimperador Piordquo ao ldquofilho de

Ceacutesar amante do saberrdquo e ao ldquosacro senadordquo na II Apol 21ss pode significar para estudiosos

como M Marcovich161 que a II Apologia foi dirigida aos mesmos nomes que a primeira Essa

periacutecope do texto apresenta a narraccedilatildeo de um episoacutedio que se sucedeu nos dias de Antonino

153 Ibid 154 TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984 p 96 apud MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35 155 tan i`eran sunklhton kai ton damon ton R`wmaiwn Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386 Minns e Paris (op cit p35) citam o mesmo texto com algumas variaccedilotildees 156 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn (Cyrenis IGRR I-II 1037) Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355 157 i`erwtathj boulhj te kai dhmou tou Rwmaiwn (Serdicae IGRR I-II 1452) Ibid p 182 158 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn kai strateumatwn (Pizi IGRR I-II 766) Ibid p 251 159 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 278 160 Hist Ecles IV183 161 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 7

33

Pio mas eacute provaacutevel que a alusatildeo agrave piedade e agrave filosofia novamente seja proposital para

constranger seus destinataacuterios Euseacutebio se confunde com o nome de Antonino assim como o

faz quanto ao rescrito agrave comunidade da Aacutesia162

Considerando que Justino escreveu na I Apologia 462-3 que ldquoCristo nasceu cento e

cinquenta anos antes de nosso tempordquo A Harnack163 conclui que esse primeiro escrito foi

composto entre 147 e 154 dC Tambeacutem na I Apol 296 L Munatius Felix eacute mencionado

como prefeito do Egito Sabe-se que ele exerceu seu mandato de 150 a 154 dC164 A II Apol

11 faz referecircncia a Q Lollius Urbicus como prefeito de Roma cargo que ocupou de 146 a

160 dC165 Segundo a anaacutelise de Munier o Chronicon de Euseacutebio indica que o adversaacuterio de

Justino Crescente comeccedilou a denunciaacute-lo em Roma no segundo ano da 233ordf Olimpiacuteada que

corresponde ao ano de 153 ou 154 Desse modo seraacute acatada a uma data por volta do ano 153

ou 154 para a I Apologia e alguns anos depois para o segundo escrito ateacute no maacuteximo 161 dC

A I Apologia apresenta uma defesa geral dos cristatildeos O segundo escrito parte da

reprovaccedilatildeo das accedilotildees anticristatildes tendo em vista principalmente o que havia acontecido em

Roma sob Urbico e as investidas do ciacutenico Crescente Entranhado nessa ldquopeticcedilatildeo

apologeticamente fundamentadardquo166 estaacute o argumento de que os cristatildeos ao contraacuterio do que

era disseminado em algumas denuacutencias e caluacutenias natildeo seriam de nenhum modo uma ameaccedila

agrave ordem A seguir seratildeo examinadas as accedilotildees anticristatildes que compunham o contexto da

primeira metade do seacuteculo II dC

162 Hist Ecles IV131ss A confusatildeo com os nomes dos imperadores no rescrito da Aacutesia seraacute examinada mais adiante Pode-se admitir tambeacutem que essa confusatildeo tenha sido acarretada pela organizaccedilatildeo do texto em um periacuteodo posterior a Euseacutebio 163 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 227 164 Prosopografia Imperii Romani V 2 Berlim Walter de Gruyter 1983 (M 723) 165 PIR v1 1970 L 327 166 Usando novamente a expressatildeo de SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72

34

CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS

Justino se opotildee agraves investidas contra os cristatildeos167 por natildeo considerar vaacutelidas as

justificativas apresentadas para as condenaccedilotildees dos fieacuteis A confissatildeo de ldquocristianismordquo diante

de uma autoridade acaba sendo ironizada como uma condenaccedilatildeo do nome ldquocristatildeordquo Na II

Apologia (11) ele afirma que accedilotildees desse tipo estatildeo ocorrendo por todo o Impeacuterio O que natildeo

deve significar que existia uma busca exaustiva dos romanos pelos membros do novo

movimento No entanto eacute provaacutevel que esses atritos pudessem ser localizados em vaacuterias

regiotildees Um caso especiacutefico da execuccedilatildeo em Roma sob Urbico motivou-o a se manifestar

novamente168 As intimaccedilotildees por razotildees religiosas aos tribunais jaacute haviam movido outros

apologistas na primeira metade do II seacuteculo Euseacutebio169 faz saber que antes de Justino

Quadrato e Aristides jaacute clamavam em favor dos cristatildeos ao Imperador Adriano

Natildeo haacute nenhum indiacutecio de que o cerne da crenccedila cristatilde apresentasse alguma forma de

conspiraccedilatildeo contra os romanos Mas eacute preciso estabelecer uma visatildeo geral das accedilotildees

anticristatildes que se desenvolveram antes de Justino e em seu tempo para que se possa assimilar

o sentido de sua reflexatildeo

O II seacuteculo se inicia com um quadro indefinido a respeito dos cristatildeos A atividade

cristatilde de anunciaccedilatildeo da sua mensagem de feacute e conversatildeo dos pagatildeos alcanccedilava diversas

regiotildees do Impeacuterio Conversotildees e alguns atritos sempre ocorriam

A conversatildeo ao cristianismo implicava em uma mudanccedila que aleacutem de religiosa

poderia ser existencial social e ateacute poliacutetica Eacute provaacutevel que essa postura de resistecircncia agrave

associaccedilatildeo com a ldquoidolatriardquo identificada na vida ciacutevica fosse interpretada como ldquoineacuterciardquo ou

falta de vigor para se envolverem nos assuntos puacuteblicos jaacute despertasse preocupaccedilotildees na virada

do I seacuteculo Principalmente quando membros das classes dirigentes comeccedilam a aderir agrave feacute do

oriente A linha entre a toleracircncia e a intoleracircncia eacute indefinida Eacute preciso analisar os contornos

desde Trajano (governou de 98-117 dC) ateacute os primeiros anos de Marco Aureacutelio (governou

de 161-180 dC)

167 ldquopedimos sejam examinadas as acusaccedilotildees contra os cristatildeos Se for demonstrado que satildeo reais castiguem-nos como eacute conveniente que sejam castigados os reacuteus convictosrdquo I Apol 31 168 ldquo[] o que aconteceu ultimamente em vossa cidade sob Urbico e o que os governadores estatildeo fazendo sem razatildeo em todo o impeacuteriordquo II Apol 11 169 Hist Ecles IV1-3

35

21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano

Natildeo haacute indiacutecios de uma perseguiccedilatildeo generalizada aos cristatildeos no Impeacuterio Romano no

iniacutecio do seacuteculo II mas a expansatildeo cristatilde em curso proporcionava um nuacutemero significativo de

processos nos tribunais locais Se por um lado alguns estavam certos de que os membros

dessa superstitio illicita deveriam ser condenados por outro lado existiam algumas lacunas

sobre esse tipo de julgamento

A expansatildeo proporcionava atritos corriqueiros de resistecircncia agraves novas crenccedilas O

nuacutemero de cristatildeos era crescente170 Ateacute o governo de Nero171 os adeptos agrave nova religiatildeo que

se desenvolvia no seio do judaiacutesmo natildeo enfrentaram problemas significativos em relaccedilatildeo aos

romanos Taacutecito faz saber que esses que a seu ver jaacute eram impopulares pelas suas flagitia

foram incriminados por Nero pelo incecircndio de Roma em 64 dC172 Se Nero lanccedilou a culpa

do incecircndio de Roma sobre os cristatildeos fica aberta a questatildeo sobre a dimensatildeo dessa

perseguiccedilatildeo A accedilatildeo de Nero foi suficiente para que a tradiccedilatildeo cristatilde o transformasse no

ldquoprimeiro imperador perseguidorrdquo logo seguido por Domiciano173174 do qual natildeo se conhece

uma perseguiccedilatildeo direta contra os cristatildeos mas uma repressatildeo a asebeia e ao proselitismo

judaico175 que deve ter ocasionado transtornos inclusive agrave Igreja Isso foi suficiente para se

sustentar que a referecircncia de Tertuliano176 ao institutum neronianum fazia de Nero o primeiro

a lanccedilar as bases juriacutedicas para a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos177 Todavia a utilizaccedilatildeo dessa

referecircncia de Tertuliano para a identificaccedilatildeo das bases juriacutedicas da perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute

problemaacutetica Marta Sordi178 recorrendo ao mesmo Tertuliano sustenta a ideia de que houve

170 GOODMANN M Mission and conversion poselytizing in the Religious History of the Roman Empire New York Clarendon PressOxford 1994 p 91-108 Cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 171 Governou de 54 a 68 dC 172 Anais XV44 Flagitia poderia referir-se a algo vergonhoso ou inapropriado algo descabido cf LIDDEL H G SCOTT R (Ed) Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 173 Governou de 81 a 96 dC 174 Euseacutebio His Ecles III26 175 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3 176 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4 177 KERESZTES Paul Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 Segundo C G Roman as bases dessa teoria se encontram na obra de CALLEWAERD C La methode dans la recherrch de la base juridique des premiers persecutions Reviste dhistoire Ecclesiastique 12 1911 pp 5-16 e segue acompanhada por Cf DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106 MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 1953 pp 3-32 178 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968

36

um senatus consultum na eacutepoca de Tibeacuterio179 que teria desaprovado o reconhecimento de

Cristo como deus do panteatildeo a contragosto do Imperador

A incerteza sobre como proceder em julgamento de cristatildeos fez com que Pliacutenio o

Jovem escrevesse ao imperador Trajano no iniacutecio do II seacuteculo A resposta do imperador

confirma a accedilatildeo de Pliacutenio em condenar os cristatildeos confessos proiacutebe agrave perseguiccedilatildeo a esses

religiosos rejeita as denuacutencias anocircnimas e faz aumenta as interrogaccedilotildees sobre as bases

juriacutedicas processos desse tipo Uma hipoacutetese comum tal como sustentam Marcel Simon e

Andreacute Benoicirct180 eacute a de que neste periacuteodo natildeo existia nenhuma lei sobre os cristatildeos e que os

magistrados agiam mediante a ius coertionis181 Essa teoria que havia sido sustentada

originalmente por Mommsen arrebanhou alguns seguidores mas como aponta Giorgio

Jossa182 em alguns casos como na questatildeo dirigida por Pliacutenio a Trajano o uso da coercitio eacute

limitado pelas interrogaccedilotildees sobre como enquadrar judicialmente os processos Para ser mais

especiacutefico Pliacutenio deseja saber se os cristatildeos deveriam ser condenados simplesmente por

confessarem esse nomem ou por algum crime que esteja subentendido Com base nos

trabalhos de E Le Blant183 no seacuteculo XIX outra teoria sobre esse tipo de julgamento propotildee

que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais existentes dentro do

direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea maiestatis Segundo C

G Roman184 essa teoria teve muitos seguidores nos seacuteculos XIX e XX sendo favoraacutevel

agravequeles que como L Homo e Ch Saumagne185 consideram que o institutum neronianum186

natildeo pode ser compreendido como edito ou lei especial emanada do princeps

As maiores discrepacircncias quanto agraves razotildees juriacutedicas e populares para condenaccedilatildeo dos

cristatildeos eacute a proacutepria relaccedilatildeo desse grupo religioso com o Impeacuterio neste iniacutecio do II seacuteculo

aparecem em funccedilatildeo das supostas posturas diferentes assumidas por Trajano e Adriano diante

dessa superstitio As explicaccedilotildees atuais trilham caminhos que vatildeo desde diferentes niacuteveis de

toleracircncia atribuiacutedos a esses dois imperadores como sustenta Pedro Barcelograve187 ateacute a hipoacutetese

179 Governou de 14 a 37 dC 180 Giudaismo e cristianismo una storia antica RomaBari Gius Laterza Figli Spa 2005 p 97 181 MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-96 182 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 107-144 183 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 184 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 185 HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229 186 Tertuliano Ad nationes 17 187 Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim

37

de que Adriano tenha reconhecido o cristianismo como uma religio licita conforme sustentou

primeiramente Mommsen188

Trajano assumiu o poder no ano de 98 dC A estrateacutegia de Nerva189 em adotaacute-lo para

ser seu sucessor aproximou o senado do futuro priacutencipe190 originaacuterio da Itaacutelica cidade da

proviacutencia senatorial da Baetica no sul da Hispania Eacute provaacutevel que tenha recebido formaccedilatildeo

poliacutetica e puacuteblica razoaacutevel mas sua imagem de homem militar e popular entre as legiotildees eacute a

que prevaleceu para a posteridade Segundo Julien Bennett191 Trajano era de uma famiacutelia

provincial de status elevado Mas essa ascensatildeo natildeo era para qualquer um Pliacutenio192 destaca-o

como priacutencipe escolhido pelas divindades ndash o epiacuteteto optimum era especiacutefico de Juacutepiter ndash

respeitador de todas as tradiccedilotildees ancestrais e das instituiccedilotildees poliacuteticas entre elas o senado

Uma idealizaccedilatildeo que certamente contrapunha-se agrave realidade efetiva pois Trajano apoiado

pelas legiotildees e representado como escolhido de Juacutepiter era detentor de um poder autocraacutetico

tatildeo grande quanto ou maior que o dos mais proacuteximos conselheiros os amigos do priacutencipe

Pode-se considerar que as accedilotildees poliacuteticas de Trajano tinham um caraacuteter apaziguador nos

territoacuterios romanos Ampliou-se a poliacutetica urbana e a extensatildeo das vias romanas nas

proviacutencias favorecendo significativamente a atividade comercial193

Nesse periacuteodo a filosofia estoica encontrou grande honra Por outro lado tambeacutem

houve uma significativa propagaccedilatildeo dos cultos orientais e da magia Prodiacutegios e milagres

eram ansiosamente buscados desencadeando certo fervor religioso entre o povo A piedade

religiosa ancorada agrave velha tradiccedilatildeo grega e romana nutrida por fermento novo proveniente

dos misteacuterios egiacutepcios e dos oraacuteculos caldeus permeava ainda os escritos dos intelectuais O

culto ao imperador natildeo recebeu tanta ecircnfase mas a sacralidade do Impeacuterio eacute talvez um fato

adquirido por todos e a aceitaccedilatildeo praacutetica da forma de culto se juntou com a formaccedilatildeo estoica

da classe dominante194

No ano de 96 Nerva estipulou a requisiccedilatildeo dos relegados e o veto contra as acusaccedilotildees

de ldquoateiacutesmordquo ou mais precisamente de avsebeia e de ldquocostumes judaicosrdquo195 Se os cristatildeos

haviam sido incomodados por decretos que indiretamente insidiam sobre eles alguma

188 Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-399 189 Governou de 96 a 98 dC 190 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 38 191 Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005 pIX 192 Epistolas 1012 Panegiricus 27 884 passim 193 FRIGHETTO Renan Op cit 2012 p 38 194 Ibid p 38 195 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3

38

opressatildeo as mudanccedilas de Nerva teriam representado um aliacutevio196 Mas sob Trajano percebe-

se que os casos esporaacutedicos de condenaccedilotildees aos fieacuteis ainda satildeo identificados Natildeo se ouviraacute

mais falar sobre acusaccedilatildeo de costume judaico no II seacuteculo mas os cristatildeos continuaratildeo a

enfrentar repressotildees em alguns pontos do territoacuterio romano o que levanta uma obscura

questatildeo sobre por qual crime seriam culpados os cristatildeos e quais seriam os fundamentos

juriacutedicos de suas condenaccedilotildees

Como destacou Giorgio Jossa197 a apologeacutetica cristatilde desse periacuteodo distingue dois

tipos de criacuteticos Uma opiniatildeo puacuteblica grosseira e mal informada como as acusaccedilotildees de

cometerem delitos particularmente vergonhosos como incesto e antropofagia movida contra

os cristatildeos por meio de falatoacuterio e caluacutenias e a acusaccedilatildeo de serem a causa de todos os males

no Impeacuterio devido agrave ameaccedila que representavam agrave pax deorum Eacute difiacutecil dizer qual era

realmente a extensatildeo da hostilidade dos pagatildeos das diversas regiotildees mas essa hostilidade

existia e constituiacutea um terreno feacutertil para o desenvolvimento tanto das acusaccedilotildees poliacuteticas da

opiniatildeo culta quanto juriacutedicas por parte dos funcionaacuterios imperiais

O cristianismo natildeo se dirigiu apenas agraves classes humildes Rapidamente sua mensagem

chegou tambeacutem agraves classes elevadas A oposiccedilatildeo da classe culta era principalmente de caraacuteter

filosoacutefico e nesse periacuteodo foram sustentadas especialmente por Epiacuteteto Luciano e Galeno a

partir dos valores mais tradicionais da cultura helecircnica Por outro lado sustentando acusaccedilotildees

de caraacuteter social aparecem as consideraccedilotildees de Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio tendo em vista as

preocupaccedilotildees poliacuteticas do governo romano Taacutecito198 escreveu que os cristatildeos eram mal vistos

pela suas flagitia199 e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero humano] A

crenccedila desse grupo era considerada uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]

Suetocircnio200 os considerava homens de uma superstitionis novae ac maleficae [superstitio201

nova e maleacutefica] Frontatildeo202 em atenccedilatildeo agraves antigas caluacutenias de flagitia teria acusado os

196 Eusebio Hist Ecles III231 197 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 108 198 Anais XV44 199 O termo latino pode significar ldquocrime infacircmia ato vergonhoso etcrdquo LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) 200 genus hominum superstitionis novae ac maleficae [raccedila de homens de uma superstitio nova e maleacutefica] De Vita Caesarum Vita Neronis 162 201 A palavra latina superstitio significa basicamente ldquotemor distinto aos deusesrdquo ldquopavor pelo sobrenatualrdquo com possiacuteveis variaccedilotildees em contextos diferentes Sua traduccedilatildeo para ldquosupersticcedilatildeordquo pode ocasionar uma confusatildeo indesejada de conceitos LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) cf JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 jun1979 pp 131-159 MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007 SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002 202 apud Minucio Felix Octavius 96-7

39

cristatildeos de orgias incestuosas Pliacutenio203 vecirc nas novas crenccedilas uma superstitionem pravam et

immodicam A imagem dos cristatildeos diante desses homens educados era negativa Mas as

opiniotildees satildeo muito divergentes sobre as bases juriacutedicas da condenaccedilatildeo dos membros desse

novo grupo religioso

O governador do Ponto-Bitiacutenia diz nunca ter participado de julgamentos de cristatildeos e

por isso natildeo sabia quais eram as medidas e os procedimentos para castigar e inquirir204 Ele

levanta as seguintes questotildees a Trajano se as diferentes idades e condiccedilotildees fiacutesicas dos

acusados deveriam ser levadas em consideraccedilatildeo se os que se retratavam mereciam ser

perdoados e se deveriam ser punidos por serem cristatildeos sem qualquer crime ou

exclusivamente pelos delitos encobertos por este nome205 O rescrito de Trajano a Pliacutenio

tendo em vista a inscriccedilatildeo de Como (CIL V 5262206) pode ter sido escrito em 111 e 112 ou

112 e 113 anos que compreenderiam o governo de Pliacutenio no Ponto-Bitiacutenia

Sua interrogaccedilatildeo sobre se o ldquonomerdquo deveria ser punido mesmo sem significar uma

ofensa ou a ofensa subentendida pelo nome207 incide sobre que tipo de lei existia naquela

eacutepoca Segundo E Le Blant208 as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis

penais existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de

laesea maiestatis Todavia conforme propocircs C G Roman209 em seu estudo eacute provaacutevel que

os cristatildeos estivessem sendo denunciados naquela regiatildeo devido ao fato de se reunirem

semanalmente Isso contrariava as estipulaccedilotildees do edito promulgado pelo governador segundo

as instruccedilotildees de Trajano que proibia as assembleias ou hetaerias210 entre o povo para evitar

conspiraccedilotildees211 Assim pelo menos neste ponto eacute preciso concordar com Pedro Barcelograve no

203 [superstitio distorcida e desregrada] Ep X968 204 Cognitionibus de Christianis interfui nunquam ideo nescio quid et quatenus aut puniri soleat aut quaeri [ Nunca tomei parte em processos contra cristatildeos por esta razatildeo eu natildeo sei o que costumeiramente se deve punir e quais satildeo as extensotildees ou investigaccedilotildees] (Ep X97) 205 Ep X96 206 Corpus Inscripitionum Latinarum V Berolini Reimer 1959 207 nomen ipsu etiamsi flagitiis careat an flagita cohaerentia nomini puniantur [O proacuteprio nome mesmo sem nenhuma ofensa ou os crimes associados a esse nome devem ser punidos] (Ep X97) 208 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 209 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 passim 210 Assembleias civis comuns entre os gregos 211 Ep X97

40

reconhecimento de que se estaacute diante de um problema local212 Os cristatildeos estavam agrave mercecirc

de denuacutencias de desobediecircncia ao edito do governador mas tambeacutem por alguma

irregularidade identificada no tocante agrave nova religiatildeo

Pliacutenio consultou Trajano pelo menos duas vezes sobre como lidar com as heterias213

Ele havia questionado sobre a possibilidade de criar um coleacutegio de fabri composto por 150

homens na Nicomeacutedia214 Mas o imperador respondeu ldquoNatildeo esqueccedilamos que tua proviacutencia e

sobretudo esta vila eacute vitima de sociedades deste gecircnero Qualquer que seja seu nome

qualquer que seja a finalidade de que dermos a estes homens reunidos daraacute lugar rapidamente

a heteriasrdquo215 Natildeo seria razoaacutevel abrir uma exceccedilatildeo aos cristatildeos Mediante inuacutemeras

denuacutencias Pliacutenio resolveu investigar sobre o tipo de assembleia que constituiacuteam as reuniotildees

cuacutelticas cristatildes Os processos de acusaccedilatildeo cresceram e proporcionaram vaacuterios incidentes216

Denuacutencias anocircnimas por meio de libelus contendo o nome de pessoas que negavam ser cristatildes

estavam entre os inconvenientes Os cristatildeos alegavam que sua uacutenica culpa ou erro era se

reunirem antes de nascer o sol em um dia especiacutefico da semana para cantar hinos a Cristo E

tambeacutem de se ajuntarem para uma refeiccedilatildeo comum vista pelo governador como innoxium

[inocente] Praacutetica que havia sido abandonada devido ao edito de Pliacutenio O governador

procurou extrair informaccedilotildees sobre os cristatildeos mas ele escreve que natildeo encontrou nada aleacutem

de uma superstitionem pravam et immodicam Visto que o nuacutemero de acusados estava

provocando ldquoincidentesrdquo Pliacutenio decidiu consultar o imperador sobre o assunto Ele nota que

pessoas de todas as idades de todos os graus de ambos os sexos e de muitas cidades satildeo

citadas em juiacutezo A superstitio dos cristatildeos jaacute se estendia pelos campos e vilas mas ele eacute

otimista e acredita ser possiacutevel sanar esse problema217 Pliacutenio218 escreve que

muitos recomeccedilam a frequentar os templos que haviam ficado quase desertos tornando a se celebrarem os sacrifiacutecios solenes abandonados e a se venderem as viacutetimas das quais ateacute agora eram raros os compradores De modo que eacute faacutecil argumentar que muitas pessoas podem se emendar se existir lugar para arrependimento

Desse modo haacute uma evidente intenccedilatildeo de realocar os cristatildeos ao povo em geral que

participa da religiatildeo oficial Deve ser esta a razatildeo pela qual o governador concede o perdatildeo

212 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 p 69 213 Assembleias comuns aos gregos 214 Ep X33 215 Ep X341 216 mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species incierunt [Assim como seu suceder crescem os processos de acusaccedilatildeo ocasionando vaacuterios incidentes] (Ep X97) 217 quae videtur sisti et corrigi posse (Ep X97) 218 Ep X97

41

agravequeles que abandonam o cristianismo Mas baseado em relatos anteriores219 e em textos

posteriores sobre esse tipo de julgamento220 pode-se supor que os cristatildeos intimados

argumentavam e questionavam sobre a razatildeo da culpa que os condenava

Roman221 em certa medida seguindo o raciociacutenio de Marta Sordi222 sustenta que a

disposiccedilatildeo de Trajano estaacute voltada para a soluccedilatildeo de problemas sociais na regiatildeo do Ponto-

Bitiacutenia tendo em vista a sua recomendaccedilatildeo geral contra as heterias Proibindo as reuniotildees

puacuteblicas de qualquer caraacuteter os cristatildeos estariam indiretamente incluiacutedos Mas Roman

atribuindo um acentuado grau de toleracircncia a Trajano considera que o imperador estaacute

liberando os cristatildeos dessa condenaccedilatildeo recomendando que os mesmos natildeo sejam buscados

No entanto natildeo haacute qualquer razatildeo para supervalorizar a ldquotoleracircnciardquo desse imperador aos

cristatildeos

Se fossem acusados de violaccedilatildeo do edito das heterias defender-se-iam dizendo que

natildeo se reuniam mais Caso os problemas envolvendo cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia se ressumissem

a essa questatildeo o magistrado deveria soltaacute-los imediatamente Mas natildeo eacute isso que eacute descrito

por Pliacutenio Ele relata que insistia para que os acusados negassem ser ldquocristatildeosrdquo ameaccedilando-os

de morte Certamente um cristatildeo questionaria esse tipo de julgamento perguntando sobre qual

crime teria sido por eles cometido O governador sabia que esses religiosos eram acusados em

outros lugares e ao caracterizar as crenccedilas cristatildes como pravam et immodicam uma percepccedilatildeo

muito negativa se manifesta No entanto natildeo haacute referecircncia a nenhuma lei contra os cristatildeos

Pliacutenio decidiu punir os que confessavam essa superstitio procurando convencecirc-los a

mudarem de opiniatildeo quanto agrave feacute a que se apegavam ameaccedilando-os por ateacute trecircs vezes Seu

julgamento foi que independente da natureza dos credos dos cristatildeos a inflexibilidade e

obstinaccedilatildeo que os faziam natildeo negar o nomen christianum tornavam-lhes dignos de puniccedilatildeo223

Giorgio Jossa224 destacou ainda que nenhum dos crimes a eles imputados eram demonstados

ou pareciam dignos de serem cridos contudo os cristatildeos satildeo vistos como seguidores de

crenccedilas despresiacuteveis Embora natildeo exista nenhuma referecircncia a uma lei contra os fieacuteis natildeo haacute

nenhuma razatildeo para se pensar que Pliacutenio estivesse receoso de punir os cristatildeos exceto pelo

fato de que o nuacutemero de denuacutencias anocircnimas poderia provocar desordem Conforme apontou

219 Atos dos Apoacutestolospassim 220 Euseacutebio Hist Ecles passim Atas dos maacutertires passim 221 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-242 222 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 87-102 223 hellip qualecumque esset quod faterentur pervicaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri (Ep X97) 224 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 116

42

J Danieacutelou225 natildeo era uma lei especiacutefica que ocasionava a condenaccedilatildeo dos fieacuteis mas a

ausecircncia de uma lei que regulamentasse a nova religiatildeo como a que autorizava a religiatildeo

judaica

A resposta de Trajano natildeo demonstrou muita preocupaccedilatildeo com os cristatildeos O

imperador aprovou as medidas empregadas contra eles e para evitar o problema do excesso

de denuacutencias sem fundamento recomendou que natildeo fossem admitidas delaccedilotildees anocircnimas O

imperador tambeacutem estabeleceu que os fieacuteis natildeo deveriam ser perseguidos Ele escreveu

Agiste muito bem meu caro Pliacutenio ao instituir os processos contra esses que te foram denunciados como cristatildeos Natildeo se deve estabelecer regra dura e inflexiacutevel de aplicaccedilatildeo universal Natildeo os procure mas se surgirem outras denuacutencias que procedam puna-os Poreacutem com esta ressalva de que se algueacutem nega ser cristatildeo e mediante a adoraccedilatildeo dos deuses demonstra natildeo o ser atualmente deve ser perdoado em recompensa de sua emenda por muito que o acusem suspeitas relativas ao passado Natildeo merecem atenccedilatildeo panfletos anocircnimos em causa alguma aleacutem do dever de evitarem-se antecedentes iniacutequos panfletos anocircnimos natildeo condizem absolutamente com os nossos tempos226

O caraacuteter lacocircnico da resposta de Trajano poderia se justificar pelo menos de trecircs

formas Em primeiro lugar a autenticidade do rescrito de Trajano e a carta de Pliacutenio a esse

imperador foram questionadas por alguns estudiosos desde o seacuteculo XVIII Segundo

Cristobal G Roman a anaacutelise de J S Semler227 em 1788 contribuiu para desencadear uma

corrente de pensamento que foi bem representada ateacute longos anos do seacuteculo XX228 As

principais objeccedilotildees natildeo estariam diretamente relacionadas agrave inadequaccedilatildeo da descriccedilatildeo de

Pliacutenio sobre as comunidades cristatildes e a situaccedilatildeo real na qual se encontrariam As

discordacircncias incidiriam sobre o tipo de canto praticado nas reuniotildees cristatildes e sobre o nuacutemero

de cristatildeos existentes no Ponto-Bitiacutenia segundo o relato de Pliacutenio229 Os aspectos estruturais

satildeo analisados na criacutetica de L Hermann230 que aponta as repeticcedilotildees e as reiteradas alusotildees agrave

proacutepria ignoracircncia de Pliacutenio como elementos que induzem a pensar em interpolaccedilotildees ou 225 Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975 pp 13-15 226 Pliacutenio Ep X981ss 227 Novae observationes quibus studiosius illustrantur potiora capita historiae et religionis christianae usque ad Constantinum Halle Impensis Bibliopolii Hemmerdiani 1781 228 Marcel Durry (Pline-le-juene Paris Soc DrsquoEacuted Le belle Lettre 1972 p 7071) oferece uma lista dos pesquisadores que aponta a inautenticidade da correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano Entre as obras aparecem AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875 p 186 HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844 pp 426 HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885 LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934 pp 28-34 e GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946 p 585 229 VIDMAN L Etude sur la correspondance de Pline Le Jeune avec Trajan Roma LErma di Bretschneider 1972 pp 87 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 227 230 HERMANN L Les interpretations de la lettre de Pline sur les chretiens Latomus XIII 1954 p 343 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228

43

falsificaccedilotildees Dentro dessa mesma loacutegica estaria a resposta lacocircnica de Trajano agraves trecircs

questotildees que aparecem na carta de Pliacutenio a) se deveriam ser feitas distinccedilotildees tendo em vistas

as idades dos cristatildeos b) se deveria lhes permitir o arrependimento c) e se o roacutetulo de cristatildeo

deveria ser motivo de castigo por si mesmo ou apenas os delitos que aquele nome

implicava231 A resposta de Trajano contempla diretamente apenas a segunda questatildeo natildeo

dando provas de que a primeira e a terceira estivessem na carta por ele recebida Desse modo

Hermann deduz que as questotildees natildeo contempladas seriam interpolaccedilotildees

Entretanto a despreocupaccedilatildeo de Trajano em estabelecer uma norma riacutegida contra os

cristatildeos pode justificar o caraacuteter superficial de sua resposta Ele escreve que neque enim in

universum aliquid quod quase certam formam habeat constitui potest232 [natildeo se pode

constituir uma norma universal ou que seja invariaacutevel] Com isso nota-se tambeacutem a

liberdade do magistrado em avaliar os suspeitos e procurar enquadraacute-los sob uma lei

A tese mommseniana da coercitio eacute rebatida parcialmente por Jossa233 tendo em vista

que na maioria dos casos de condenaccedilatildeo dos cristatildeos nesse periacuteodo a atitude das autoridades

natildeo se reduz a uma simples atitude de poliacutecia para manter a ordem puacuteblica em uma proviacutencia

atingida pela desordem mas em um procedimento judiciaacuterio que tinha iniacutecio com uma

denuacutencia privada comporta uma acusaccedilatildeo precisa e se conclue com a condenaccedilatildeo formal Um

procedimento judiciaacuterio que corresponde perfeitamente a cognitio extra ordinem234 um

processo criminal de natureza inquisitorial afirmado durante o principado para crimes e que

tinha formas diversas daqueles previstos na ordo iudiciorum que nas proviacutencias eram tidos

pelos governadores delegados pelo princeps No entanto diante da ausecircncia de uma

legislaccedilatildeo clara sobre o que fazer com os cristatildeos Pliacutenio recorre a ius coertionis para

desestimular os adeptos dessa pravam et immodicam que desrespeitam o magistrado para

sustentarem seu credo Eacute preciso considerar com certo cuidado a teoria derivada da obra de E

Le Blant235 de que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais

existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea

maiestatis Pliacutenio primeiramente julgou os cristatildeos por meio da lei local que proibia as

assembleias entre o povo poreacutem diante da correccedilatildeo por parte dos cristatildeos apontada pelo

231 Pliacutenio Epistolas X962-3 232 Ep X98 233 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 122-123 234 Tido de processo que substitui o processo padratildeo Eacute provaacutevel que soacute tenha se oficializado com forma instituiacuteda de processo no seacuteculo IV O julgamento dos cristatildeos no seacuteculo II seria um processo semelhante 235 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229

44

proacuteprio governador em sua carta ele natildeo sabia exatamente como punir os que se negavam a

desprezar agravequela superstitio Para Jossa236 estaacute evidente que a condenaccedilatildeo se efetiva diante da

profissatildeo da feacute cristatilde natildeo aos delitos a esse nome associados

O cristianismo natildeo eacute condenado como superstitio externa Uma religiatildeo estrangeira

poderia ser socialmente suspeita mas isso natildeo faz com que seja judicialmente perseguida E

natildeo eacute o seu caraacuteter baacuterbaro que lhe rende ilicidade Superstio externa e barbara o judaiacutesmo

era de fato religio licita Os romanos consideravam superstitio toda forma religiosa e toda

praacutetica cultural que natildeo correspondia agravequela transmitida pelos seus antepassados e que natildeo

eram munidas de puacuteblico reconhecimento Todas as praacuteticas religiosas de caraacuteter privado

individuais ou enraizadas em certos grupos sociais como magos ou adivinhos eram dessa

forma rotuladas Religiotildees e cultos puacuteblicos estrangeiros ainda que constituiacutessem patrimocircnio

de um povo e fossem transmitidos desde os tempos mais antigos poderiam ser tachados de

superstitio237 Segundo Jossa238 exprime-se desse modo a diferenccedila instintiva dos ciacuterculos

romanos abastados de uma consciecircncia nacional diante das religiotildees estrangeiras para os

quais os cultos natildeo romanos eram ldquonatildeo religiotildeesrdquo ou seja apenas superstitiones Externa

superstitio vem a ser toda forma ou manifestaccedilatildeo religiosa que natildeo pertenccedila originalmente agrave

tradiccedilatildeo romana ou pelo menos ao puacuteblico reconhecimento e agrave apreciaccedilatildeo dos ritos e crenccedilas

religiosas da parte dos romanos

A partir de Cicero superstitio passa a indicar tambeacutem qualquer forma excesiva

fanaacutetica de religiosidade que se contrapunha agrave moderaccedilatildeo da religio aquela manifestaccedilatildeo

religiosa tiacutepica de uma alma deacutebil (imbecillis) ou velha (anilis) que derivam em particular de

uma anguacutestia inuacutetil e absurda dos deuses239 A superstitio natildeo eacute apenas diversa mas se opotildee

sendo uma corrupccedilatildeo da religio (De natura Deorum II72)

Diante da convicccedilatildeo dos romanos de serem muito religiosos entre todos os homens de

serem inclusive religiosamente superiores aos demais fica impliacutecito que toda e qualquer

religiatildeo estrangeira eacute excessiva ou fanaacutetica que todas as religiotildees estrangeiras satildeo tambeacutem

superstitio e assim toda externa superstitio eacute tambeacutem barbara superstitio no sentido

embrionaacuterio do termo pela falta de racionalidade e moderaccedilatildeo que sempre deixam a

desejar240

236 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 123 237 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 131-159 238 Op Cit p 115 239 Ciacutecero De natura Deorum I117 Cf SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 240 JANSEN L F Op cit pp 145

45

Como jaacute foi apontado anteriormente aleacutem do proacuteprio Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio

tambeacutem adjetivaram negativamente a superstitio cristatilde Taacutecito escreveu que os cristatildeos eram

mal vistos pelas suas flagitia e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero

humano] Flagitia por sinal que Pliacutenio natildeo detectou A crenccedila desse grupo eacute considerada

uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]241 Analisando as consideraccedilotildees de Taacutecito

nota-se que a provaacutevel ofensa que os cristatildeos causavam aos deuses combatendo-os com a

propagaccedilatildeo da sua mensagem evangeacutelica e com abstenccedilatildeo de participaccedilatildeo nas celebraccedilotildees

puacuteblicas responsabilizava-lhes pelo rompimento da pax deorum que havia fragilizado a

capital do Impeacuterio tornando-a vulneraacutevel a tamanha cataacutestrofe da eacutepoca de Nero Segundo L

F Jansen242 o odio humani generis visto por Taacutecito sobre os cristatildeos ndash como antes sobre os

judeus ndash era um elemento que condenava essa superstitionis novae ac maleficae como

escreveu Suetocircnio243 tornando-a exitiabilis No entanto apologistas como Justino244

sustentaram que as flagitia atribuiacutedas aos cristatildeos eram fruto de ldquocaluacuteniasrdquo o que natildeo

acarretaria isenccedilatildeo de serem relativamente enquadrados nos crimes de sacrilegium245 ou

maiestas

No entanto ao confirmar a accedilatildeo de Pliacutenio Trajano ratifica a condenaccedilatildeo do nomen

christianum Isso deve estar ligado ao fato de o governador do Ponto-Bitiacutenia ter confirmado

os resultados positivos desse tipo de condenaccedilatildeo que visava desestimular a aderecircncia ao grupo

cristatildeos garantindo a manutenccedilatildeo da religiatildeo tradicional a uma medida moderada que

impedisse falsas denuacutencias e o cometimento de injusticcedilas O que natildeo significa que Trajano

tenha empreendido uma poliacutetica de toleracircncia aos cristatildeos dificultando as denuacutencias como em

alguns momentos parece sugerir Pedro Barcelograve246

Euseacutebio247 explora o fato de Trajano ter determinado que os cristatildeos natildeo deveriam ser

buscados (conquirendi non sunt) para assim construir uma ldquotradiccedilatildeo favoraacutevelrdquo aos fieacuteis Ele

confirma que Trajano promulga um decreto para que os cristatildeos natildeo fossem perseguidos Tal

medida eacute interpretada como o fator importante para a reduccedilatildeo parcial da perseguiccedilatildeo naquela

241 Anais XV44 242 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 145 243 De Vita Caesarum Vita Neronis 162 244 II Apol 82 245 Este caso envolveria um crime especiacutefico contra o patrimocircnio religioso pagatildeo mas natildeo haacute sinais evidentes no na primeira metade do II seacuteculo cf ROBINSON OF The criminal Law of ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 passim 246 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim 247 Histoacuteria Eclesiaacutestica III231-3

46

eacutepoca Mas essas vantagens que Euseacutebio vecirc na recomendaccedilatildeo de Trajano se reduzem ao fato

de ele natildeo admitir que os cristatildeos sejam levados em juiacutezo mediante denuacutencias anocircnimas

Mesmo assim os incocircmodos locais permaneceram Euseacutebio escreve ldquoAlgumas vezes eram as

populaccedilotildees outras as proacuteprias autoridades locais que preparavam os asseacutedios contra noacutes de

forma que ainda que sem perseguiccedilotildees manifestas acenderam-se focos parciais segundo as

proviacutenciasrdquo248 Por outro lado em grande medida influenciado por Meacuteliton de Sardes249 que

escreveu a Marco Aureacutelio Euseacutebio ratifica a tradiccedilatildeo cristatilde que destaca Nero e Domiciano

como grandes perseguidores da Igreja250 Eacute interessante a tradiccedilatildeo cristatilde relacionar as accedilotildees

anticristatildes a ldquomaus imperadoresrdquo Com isso tenta-se reproduzir a ideia de que perseguir os

cristatildeos eacute seguir os passos de tiranos Todavia quando se procuram as raiacutezes das hostilidades

imperiais com os cristatildeos faz-se necessaacuterio ter em mente que por vaacuterias regiotildees do Impeacuterio os

atritos envolvendo o combate aos cristatildeos emergem do processo de expansatildeo da comunicaccedilatildeo

da mensagem apelativa cristatilde e das transformaccedilotildees reivindicadas e provocadas por ela nas

tradiccedilotildees e no comportamento das pessoas

Desse modo deixando de lado a hipoacutetese de Marta Sordi251 sobre um senatus

consultum na eacutepoca de Tibeacuterio que teria desaprovado o reconhecimento de Cristo a

contragosto do Imperador eacute preciso lidar com o institutum neronianum252 tambeacutem

mencionado por Tertuliano como a primeira hostilidade incisiva do Impeacuterio contra os

cristatildeos Mas esta peculiar expressatildeo empregada por Tertuliano natildeo se refere a uma lei e sim

a uma accedilatildeo de Nero E a accedilatildeo de Nero neste caso teria interesses particulares e usa os cristatildeos

como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo Mesmo que as flagitia cristatildes se fundamentem em caluacutenias

originaacuterias dos atritos populares a superstitio cristatilde natildeo poderia representar algo aceitaacutevel aos

olhos dos romanos devido ao seu caraacuteter exclusivista e seu desprezo pela vida puacuteblica ligada agrave

religiatildeo tradicional Em defesa dos cristatildeos poucos anos mais tarde Justino escreveu ldquoEsta eacute

a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo

oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos sepulcros nem

celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo (I Apol 242) Aleacutem disso seria uma incriacutevel contradiccedilatildeo

sustentar que existia uma lei geral em vigor que determinava a pena capital para os cristatildeos e

248 Hist EclesIII232 249 ldquoEntre todos somente Nero e Domiciano persuadidos por alguns homens maleacutevolos quiseram caluniar nossa doutrina e acontece que deles derivou por costume irracional a mentira caluniosa contra tais pessoasrdquo (apud Euseacutebio Hist EclesIV239) 250 Hist Ecles III171 201-9 221-8 251 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968 252 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4

47

ser necessaacuterio admitir que Trajano recomenda que os cristatildeos natildeo sejam perseguidos e que

apenas os casos mais precisos sejam examinados

A resposta de Trajano alegando ldquonatildeo eacute possiacutevel constituir por assim dizer algo

universal que possua forma fixardquo253 pode servir como evidecircncia de que natildeo existia uma lei

geral para julgar os cristatildeos Todavia Roman254 considera que a foacutermula neque enin

universum deve ser relativizada em funccedilatildeo de um marco geograacutefico concreto o da proviacutencia

Ponto-Bitiacutenia e em relaccedilatildeo agrave diversidade de status juriacutedico e de situaccedilotildees existentes nessa

regiatildeo que motivam a correspondecircncia entre Pliacutenio e o Imperador Um exemplo dessa

preocupaccedilatildeo aparece quando se fala da constituiccedilatildeo de um evranouj (sociedade de seguros

muacutetuos) em Amisos255 Trajano desaprovando a ideia responde

Se as leis de Amisos de acordo com as obrigaccedilotildees do tratado lhe datildeo direito a ter uma associaccedilatildeo de seguros muacutetuos natildeo podemos proibir que a tenham tanto mais se tal sociedade natildeo procede a organizar tumultos e reuniotildees iliacutecitas senatildeo para sustentar os mais pobres Nas cidades restantes que estatildeo submetidas a nosso direito praacuteticas desse tipo devem ser proibidas []256

Roman257 estaacute correto em considerar que Trajano potildee em praacutetica um tipo de

disposiccedilatildeo que tende a fazer frente aos problemas sociais provinciais que encontram uma

ampla expressatildeo na formaccedilatildeo de heterias Esta poliacutetica encontra uma limitaccedilatildeo na situaccedilatildeo da

proviacutencia Ponto-Bitiacutenia com a existecircncia de cidades livres e federadas que se autorregulam

Poreacutem a hipoacutetese de Roman apresenta limitaccedilotildees Ele considera que tal poliacutetica

administrativa com respeito aos cristatildeos constituiria uma exceccedilatildeo em suas disposiccedilotildees sobre

as associaccedilotildees no Ponto-Bitiacutenia Esta exceccedilatildeo natildeo se explica em funccedilatildeo da diversidade de

status juriacutedico das cidades existentes nessa proviacutencia mas estaacute relacionada ao caraacuteter peculiar

das reuniotildees das comunidades cristatildes que natildeo consistiam um perigo ao Impeacuterio Roman segue

a hipoacutetese de De Robertis258 e chega a alegar que as reuniotildees cristatildes eram consideradas licita

A proposiccedilatildeo de Roman falha basicamente em natildeo compreender que a aprovaccedilatildeo por

parte de Trajano dos atos de execuccedilatildeo da pena capital sobre os cristatildeos desempenhada por

Pliacutenio estaacute diametralmente oposta a uma hipoteacutetica licenccedila agrave religiatildeo cristatilde O que descarta

qualquer vestiacutegio de simpatia romana pelos cristatildeos Aleacutem disso Pliacutenio havia informado ao

imperador que os cristatildeos haviam deixado de se reunir tendo em vista as disposiccedilotildees do edito

253 neque enim in universum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest (Ep X98) 254 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 233-234 255 Ep X92 256 Pliacutenio Ep X94 257 Op cit pp 233-234 258 ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89

48

recente Quando Trajano aponta que seria inadequado estabelecer uma norma fixa para julgar

os cristatildeos ele estaacute se referindo agraves interrogaccedilotildees levantadas por Pliacutenio questionando sobre a

necessidade de se fazer distinccedilatildeo entre jovens e idosos satildeos e doentes romanos e natildeo

romanos Desse modo o imperador estaacute de acordo que o magistrado use de seus poderes

constituiacutedos para fazer as distinccedilotildees necessaacuterias sem que se fixe uma norma universal

Giorgio Jossa259 faz uma siacutentese das teorias baacutesicas sobre as accedilotildees anticristatildes no

periacuteodo de Trajano e desenvolve uma avaliaccedilatildeo que tem em vista a complexidade da situaccedilatildeo

poliacutetica da religiatildeo cristatilde e da peculiaridade do procedimento criminal do direito romano Esta

explicaccedilatildeo comporta certa mescla de todas as trecircs hipoacuteteses aceitaacuteveis Assim Jossa considera

que o cristianismo representa antes de tudo um problema de ordem puacuteblica que dependia em

parte da sensibilidade dos magistrados por meio do uso da ius coertionis num momento onde

jaacute existia uma legislaccedilatildeo especiacutefica contra os cristatildeos e onde o nomen christianum carregava

subentendido os crimes de sacrilegium e maiesta Exceto pela sua insistecircncia em admitir que

havia uma lei especiacutefica contra os cristatildeos sua anaacutelise torna-se proveitosa em funccedilatildeo de sua

sensibilidade agrave questatildeo da ordem puacuteblica enviesada nesse dilema juriacutedico Se o nomen

christianum carregava subentendido crimes comuns eles se manifestam com a pressatildeo civil

procurando expelir esse corpo estranho da sociedade pagatilde e obriga os magistrados a

procurarem um enquadramento que ratifique a condenaccedilatildeo daquilo que para muitos do povo

estava evidente que os cristatildeos deviam ser condenados

Em siacutentese eacute mais prudente admitir que as condenaccedilotildees de outrora sobre os cristatildeos

davam margem para que os magistrados em outras regiotildees do Impeacuterio eventualmente

condenassem os cristatildeos que lhes fossem entregues normalmente devido a atritos populares

Isso justificaria a incerteza de Pliacutenio em condenar os cristatildeos Eacute o uso de se condenar os

cristatildeos em decorrecircncia desde a eacutepoca de Nero da opiniatildeo puacuteblica somada agrave imagem

negativa que a classe culta tinha desses religiosos que atribui flagitia aos fieacuteis tornando o

nomen christianum razatildeo de condenaccedilatildeo Algo que eacute negado pelos apologistas com

veemecircncia no II seacuteculo e que seraacute avaliado por Adriano subsequentemente a Trajano

259 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125

49

22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano

A Histoacuteria Augusta (51) aponta que Adriano foi um imperador dedicado agrave

manutenccedilatildeo da paz no mundo mas tatildeo logo as revoltas estouraram em regiotildees variadas Os

samaritanos se envolveram em guerra os britacircnicos davam sinais de que natildeo permaneceriam

sob o domiacutenio romano o Egito foi jogado em desordem por distuacuterbios e finalmente a Liacutebia e

a Palestina mostraram espiacuterito de rebeliatildeo

Nos anos 130 e 131 Adriano partiu para o Oriente No plano das suas reformas estava

a revitalizaccedilatildeo da cidade de Jerusaleacutem que havia sido destruiacuteda na guerra judaica de 66 a 73

Natildeo eacute agrave toa que ficou reconhecido como promotor da vida urbana no Impeacuterio valorizando as

obras puacuteblicas (aacutegoras templos teatros anfiteatros aquedutos portos ou estradas) Os

investimentos na Judeia faziam parte de sua estrateacutegia de integraccedilatildeo e romanizaccedilatildeo

Os judeus sofreram em muitos aspectos os efeitos das transformaccedilotildees culturais Mas a

introduccedilatildeo de elementos estrangeiros e a construccedilatildeo de um templo a Juacutepiter na cidade sagrada

gerou protestos260 A proibiccedilatildeo da circuncisatildeo261 contribuiu para acirrar os acircnimos revoltosos

No entanto segundo a anaacutelise de J M C Copete262 se esse foi o estopim da guerra as causas

que levaram o povo judeu e alguns outros provincianos a lutar natildeo poderiam estar apenas na

devoccedilatildeo ao seu Deus tradicional Yahveacute A insensatez romana em ignorar os problemas

estruturais da regiatildeo tais como a pobreza endecircmica reinante e as proacuteprias rivalidades entre

sacerdotes e rabinos na regiatildeo proporcionaram as condiccedilotildees para esse movimento que se

levantou como uma ameaccedila agrave ordem

Euseacutebio escreve que

Rufo governador da Judeacuteia com o reforccedilo militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade marchou contra eles Aniquilou em massa milhares de homens de crianccedilas e de mulheres e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territoacuterios agrave escravidatildeo Mandava entatildeo sobre os judeus um chamado Bar Kosibas que significa ldquofilho da estrela263

A religiatildeo dos judeus era o elemento fundamental de sua identidade Havia interaccedilatildeo

com os demais povos do Impeacuterio mas qualquer tipo de resistecircncia em funccedilatildeo dessa

260 Cassius Dio His Rom 121-3 261 Hist Aug 142 262 Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 263 His Ecles IV61-2

50

identidade poderia deixar as autoridades romanas ressabiadas Taacutecito264 fala da diferenccedila de

ambos os mundos O judaiacutesmo parecia-lhe uma supersticcedilatildeo absurda soacuterdida e depravada que

gerava costumes contraacuterios aos dos outros povos A abstenccedilatildeo do culto ao imperador por parte

dos judeus poderia simbolizar sua rejeiccedilatildeo ao Impeacuterio e agrave cultura greco-romana mas natildeo se

deve pensar que os judeus estavam blindados agrave cultura helecircnica e que as oligarquias judaicas

se isolassem dos negoacutecios com as demais proviacutencias do Impeacuterio265

Uma das preocupaccedilotildees de Justino em sua I Apologia eacute deixar claro que os judeus

haviam se tornado os principais opositores dos cristatildeos e que muitos foram vitimados por Bar

Kosiba que os mandava ldquosubmeter a terriacuteveis torturasrdquo266 Natildeo haacute certeza sobre as razotildees

dessa oposiccedilatildeo e se ela diferia da rivalidade entre judeus e cristatildeos constatada no I seacuteculo

Todavia aleacutem desse tipo de accedilatildeo anticristatilde haacute indiacutecios de que os tribunais locais recebessem

queixas sobre os cristatildeos e um nuacutemero significativo de fieacuteis era levado agrave morte Tal como a feacute

dos judeus a religiatildeo dos cristatildeos era considerada uma superstitio reprovaacutevel que apresentava

resistecircncia agrave vida puacuteblica no Impeacuterio ou seja que natildeo se envolviam em teatros jogos e todo

tipo de reverecircncias aos deuses pagatildeos Para evitar quaisquer duacutevidas quanto agrave identidade entre

cristatildeos e judeus o apologista faz essa interpolaccedilatildeo

Em funccedilatildeo das condenaccedilotildees sofridas pelos cristatildeos durante o governo de Adriano

Quadrato e Aristides escreveram-lhe apologias267 Se a teoria de Paul Andriessen268 for

tomada por certa e a Carta a Diogneto for reconhecida como a apologia perdida de Quadrato

reconhecer-se-aacute a disposiccedilatildeo tanto nesse escrito quanto na Apologia de Aristides em

apresentar algumas das principais distinccedilotildees entre as crenccedilas dos cristatildeos dos judeus e dos

pagatildeos A principal queixa na Carta a Diogneto leva a crer que o ldquonomerdquo cristatildeo era um

elemento chave para a condenaccedilatildeo269 Sua queixa faz pensar que as variaccedilotildees nos julgamentos

nos tribunais locais pudessem proporcionar um destino distinto aos cristatildeos ldquoPor isso

condeno tambeacutem as vossas leis Deveria haver uma soacute constituiccedilatildeo poliacutetica comum para

todos agora haacute tantas legislaccedilotildees quantas cidades existem e assim acontece que o que entre

uns eacute vergonhoso entre outros eacute tido por honrosordquo270

264 Taacutecito Historia V 3-6 Cf Strabatildeo Geografia XVI237 Quintiliano Institutio Oratoria II7 Juvenal Satiras III 13-6 VI 541-7 96-106 Plutarco De Superstitione 8 Cassius Dio Hist Rom 37174 265 Josefo Antiguidades Judaicas XVIII 23 Guerras dos Judeus II118 266 I Apol 316 267 Euseacutebio His Ecles IV31-3 268 Lrsquoapologie de Quadratus conserve sous le nom drsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedievale 13 1946 pp 5-260 Id Lrsquoepilogue de lrsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedieacutevale 14 1947 pp 121-156 269 Carta a Diogneto 271ss 270 Carta a Diogneto 281ss

51

O rescrito de Adriano ao prococircnsul da Aacutesia a partir de 124125 dC Minuacutecio

Fundano oferece uma ideia sobre sua forma de lidar com os cristatildeos O texto foi conservado

na Apologia de Justino (I Apol 68) no texto de Euseacutebio271 e por Rufino na versatildeo latina

Adriano havia recebido a carta de Serecircncio Graniano272 antecessor de Minuacutecio e julgou ser

importante responder essa demanda a fim de ldquoevitar que se perturbem os homens e que os

delatores encontrem apoio para suas maldadesrdquo273 Adriano recomenda que

se os provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo que respondam a ela diante do tribunal deveratildeo ater-se a esse procedimento e natildeo a meras peticcedilotildees e gritarias Com efeito eacute muito mais conveniente que se algueacutem pretende fazer uma acusaccedilatildeo examines tu o assunto Em conclusatildeo se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delito Mas por Heacutercules se a acusaccedilatildeo eacute caluniosa castiga-o com maior severidade e cuida para que natildeo fique impune (I Apol 688-10)

As interpretaccedilotildees desse rescrito satildeo divergentes Em uma primeira linha interpretativa

representada por exemplo por B Orgeval H Gregoire L Regibus e M Sordi274 acredita-se

que esse rescrito assegurou a liberdade de algum tipo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos por

professarem sua religiatildeo e providenciou que fossem punidos apenas por crimes cometidos

contra as leis comuns Representantes de outro ponto de vista como C Callewaerd J Moreau

e W Schimid275 sustentam que o rescrito natildeo concede aos cristatildeos nenhuma liberdade

O rescrito foi lido por Justino de um modo favoraacutevel aos cristatildeos como se de fato o

Imperador tivesse agido decididamente a favor dos cristatildeos A esse documento fez alusatildeo

Meliton bispo de Sardes276 Euseacutebio agiu de modo semelhante em sua proacutepria leitura do

rescrito de Trajano e seguiu a Justino em sua interpretaccedilatildeo do rescrito de Adriano No entanto

como mostrou Paul Kereszts277 a interpretaccedilatildeo do apologista difere do sentido original do

rescrito Segundo a interpretaccedilatildeo de Justino Adriano teria proibido que os cristatildeos fossem

271 His Ecles IV 9 272 O nome correto eacute Q Licinio Silvano Graniano cocircnsul a partir de 106 dC e pro-cocircnsul da Aacutesia a paritir de 122123 dC MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 132 273 I Apol 687 Eus Hist Ecles IV9 274 ORGEVAL B LEmpereur Hadrien oeuvre leacutegislative et administrative ParisGrenoble Domat MontchrestienImpr De Allier 1950 pp 302-307 GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 pp 138-139 REGIBUS L de Storia e Diritto Romano negli Acta Martyrum Didascalos 1926 pp 147-148 SORDI M I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349 275 CALLEWAERT C Le Rescrit dHadrien a Minucius Fundanus Reviste dHistoire et de Litterature 6l 8 1903 pp 152-189 MOREAU J La Persecution du Christianism e dans lEmpire Romain Paris Presses Universitaires de France 1956 p 48 SCHIMID W The Christian Re-Interpretation of the Rescript of Hadrian Maia 71955 pp 5-13 276 Euseacutebio Hist EclesIV 2610 277 Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129

52

punidos simplesmente mediante a confissatildeo de que eram ldquocristatildeosrdquo e teriam recomendado

que fossem julgados pelos crimes como quaisquer outros e natildeo por suas crenccedilas

Segundo C G Roman278 a postura de Adriano em advertir a Minuacutecio Fundano a nada

julgar sem denuacutencia e acusaccedilatildeo formal contra os cristatildeos dava continuidade agrave poliacutetica de

Trajano Tomando essa perspectiva como exemplo deve-se destacar que a interpretaccedilatildeo do

rescrito de Adriano dependeraacute significativamente da interpretaccedilatildeo do rescrito de Trajano e

talvez deva remontar ateacute um pouco antes Roman interpretou as recomendaccedilotildees deste uacuteltimo

como sendo positivas para com os cristatildeos e sua tendecircncia eacute reconhecer o aprimoramento das

limitaccedilotildees das accedilotildees anticristatildes

J Beaujeu279 considera que Adriano procedeu a uma grande obra de restauraccedilatildeo

religiosa que obedecia aleacutem das necessidades religiosas a objetivos poliacuteticos agrave medida que

tendia a uma unificaccedilatildeo religiosa das distintas proviacutencias do Impeacuterio debaixo da eacutegide dos

cultos Greco-romanos mediante a criaccedilatildeo de uma religiatildeo do Estado siacutentese destes uacuteltimos

cultos com as religiotildees orientais com a originalidade dos diversos grupos sociais e eacutetnicos

que formavam o Impeacuterio

De fato Adriano foi um imperador interessado em conhecer a cultura do vasto

Impeacuterio Por volta do ano de 124 iniciou-se nos misteacuterios Eleusis importante oraacuteculo do

mundo grego revelando um interesse miacutestico que acabou por conduzi-lo tambeacutem ao

conhecimento misterioso da religiatildeo egiacutepcia Os cultos tradicionais de Roma natildeo receberam

menor atenccedilatildeo certamente para manter uma relaccedilatildeo amistosa com os integrantes do universo

senatorial Construiu um templo a Venus em Roma no Foro Romano no ano de 121 e mandou

reconstruir o Panteatildeo de Marco Agripa um dos mais importantes colaboradores de

Augusto280 No entanto isso natildeo permite ver em seu rescrito uma accedilatildeo proacute-cristatilde que

estivesse em consonacircncia com a ideia sustentada por Marta Sordi281 de que Adriano teve em

mente reconhecer a Cristo entre os outros deuses e lhe oferecer um templo conforme anota a

Histoacuteria Augusta (Alexandre Severus 436-7) Essa passagem se assemelha agrave lenda de que

antes de propor a construir a cidade de Elia Adriano havia empreendido um projeto de

reconstruccedilatildeo conjunta do templo de Jerusaleacutem com os judeus mas a oposiccedilatildeo dos samaritanos

278 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 230 279 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp150ss 280 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 43 281 I Cristiani e Lrsquoimpero Romano Ed rev e atual Milano Jaca Book 2011 p 98

53

fez com que os planos sofressem mudanccedilas draacutesticas282 Esse tipo de tendecircncia pode chegar a

ponto de admitir como sustentou T Mommsem283 que Adriano estava proacuteximo a elevar a feacute

cristatilde a uma religio licita

As comparaccedilotildees entre as accedilotildees de Trajano e Adriano satildeo muito importantes para o

desenvolvimento de uma teoria coerente que explique a condiccedilatildeo dos cristatildeos nesse iniacutecio do

II seacuteculo todavia natildeo eacute necessaacuterio admitir nenhuma continuidade entre ambos em razatildeo dos

rescritos G Jossa284 alerta que os rescritos natildeo satildeo ldquoleisrdquo mas recomendaccedilotildees a governantes

locais e nem um desses imperadores estabeleceu normas gerais sobre o julgamento dos

cristatildeos

Como foi visto anteriormente ao responder a demanda de Pliacutenio Trajano admitiu o

procedimento daquele governador em condenar os cristatildeos mediante a confissatildeo

recomendaccedilatildeo que fazia pressupor que o nomen christianum representava a razatildeo da

condenaccedilatildeo que visava desestimular a adesatildeo e expansatildeo dessa superstitio Naquela ocasiatildeo o

imperador fez questatildeo de lembrar que as denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas Pouco

tempo depois Adriano precisa admoestar os governantes da Aacutesia Menor a natildeo serem movidos

por ldquomeras peticcedilotildees e gritariasrdquo285 A condenaccedilatildeo aos cristatildeos provocou abusos nas

condenaccedilotildees Se bastasse estender o dedo para algueacutem e acusaacute-lo de cristianismo para

conseguir sua condenaccedilatildeo essa seria uma forma eficaz de eliminar qualquer pessoa

indesejada ainda que ela natildeo fosse cristatilde Adriano entatildeo reconhece que a questatildeo levantada

por Graniano natildeo poderia ficar sem resposta pois os efeitos da desordem seriam extensos

Embora a carta de Graniano natildeo tenha sido preservada eacute possiacutevel deduzir que se o imperador

recomenda a condenaccedilatildeo dos ldquomaleacutevolosrdquo delatores dos cristatildeos que indevidamente os

caluniavam visando agrave puniccedilatildeo isso significa que esse tipo de episoacutedio jaacute havia sido

constatado naquela regiatildeo Nenhuma norma universal eacute estabelecida ou mencionada O

governador eacute designado como o responsaacutevel por examinar as denuacutencias formais e averiguar os

casos

Fica evidenciada a obrigaccedilatildeo por parte de quem realiza a denuacutencia de apresentar ele

mesmo provas sobre seu testemunho diferenciando-se um pouco da medida de Trajano

segundo a qual o governador deveria se responsabilizar pela investigaccedilatildeo O castigo aos falsos

282 Midash Berersquoshit Babba 6410 e Epiacutestola de Barnabeacute 163-4 apud COPETE J M C Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII CONGRESSO INTERNACIONAL GIREA-ARYS IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 283 Der religonsfrevel nach der roumlmischen Recht Historische Zeitschrift 64 1890 pp 389-429 284 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125 285 I Apol 688

54

acusadores era praacutetica usual no direito romano286 Neste ponto surge a seguinte questatildeo Os

acusadores deveriam provar que os cristatildeos por eles acusados cometiam a infraccedilatildeo de serem

ldquocristatildeosrdquo ou que infringiam outras leis comuns subentendidas pelo seu nomen

A expressatildeo287 ei tij ou=n kathgorei kai deiknusi ti para touj nomouj prattontaj(

ou[twj Diorixw kata thn Dunamin tou a`marthmatoj( [ se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e

demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade

do delito ] (I Apol 6810) eacute entendida de modo positivo ou negativo dependendo da corrente

de interpretaccedilatildeo No entanto o proacuteprio rescrito tem algo a dizer em um delineamento mais

claro sobre essa questatildeo A especificaccedilatildeo de que os acusadores deveriam demonstrar que os

cristatildeos acusados agiam contra as leis [touj nomoj prattontaj] eacute uma medida para evitar as

sukofantiaj [caluacutenias] Por isso ele recomenda que Minuacutecio Fundano examine os casos e ldquose

a acusaccedilatildeo eacute caluniosa [castigue-o]288 com maior severidade e [cuide]289 para que natildeo fique

impunerdquo (I Apol 6810)

Uma nova questatildeo incide sobre o significado dessa acusaccedilatildeo ldquocaluniosardquo Justino

interpretou esse trecho como as acusaccedilotildees que maculavam injustamente a imagem dos

cristatildeos atribuindo-lhes canibalismo ateiacutesmo maiestas ou outras coisas desse tipo Segundo

esse tipo de interpretaccedilatildeo Adriano estaria reprovando a condenaccedilatildeo pelo nomen christianum

e recomendando que os governantes examinassem se existia de fato algum crime contra as

leis Ateacute esse ponto essa medida natildeo significaria nenhuma benevolecircncia para com os cristatildeos

apenas garantiria que fossem julgados como quaisquer outros no Impeacuterio sem que os

magistrados fossem movidos por gritarias puacuteblicas mas que se detivessem aos processos

formais Todavia uma segunda hipoacutetese eacute cogitada

Nessa hipoacutetese as acusaccedilotildees ldquocaluniosasrdquo agraves quais Adriano se refere poderiam natildeo ser

do mesmo tipo das que Justino tinha em mente em suas Apologias Elas poderiam se referir agrave

proacutepria acusaccedilatildeo de cristianismo lanccedilada sobre algueacutem com o intuito de levaacute-lo agrave condenaccedilatildeo

sob uma lei especiacutefica contra os cristatildeos Nessa perspectiva a exigecircncia de Adriano para que

se examinasse a comprovaccedilatildeo da denuacutencia seria uma medida semelhante agravequela tomada por

Pliacutenio exigindo que os acusados sacrificassem aos deuses e amaldiccediloassem a Cristo para que

assim se pudesse verificar se eram realmente cristatildeos A diferenccedila eacute que natildeo eacute possiacutevel

286 ROBINSON O F The criminal Law of ancient Rome Baltimore John Hopkins University Press 1996 pp 8100 287 O rescrito em latim que Euseacutebio dizia ter sido anexado originalmente por Justino foi substituiacutedo no MS Par Grae 450 pela traduccedilatildeo grega de Euseacutebio (MINNS D PARVIS P Justin philosopher and martyr apologies New York Oxford University Press 2009 p 265) 288 Adaptaccedilatildeo de ldquocastiga-ordquo para melhor leitura da frase 289 Originalmente ldquocuidardquo

55

conferir a carta de Graniano para fazer algum tipo de comparaccedilatildeo Desse modo natildeo haveria

nenhuma diferenccedila entre a posiccedilatildeo de Trajano e Adriano exceto a recomendaccedilatildeo desse uacuteltimo

para que os caluniadores fossem punidos Para sustentar essa teoria poreacutem torna-se

necessaacuterio admitir que o rescrito de Adriano foi sutilmente modificado pelos cristatildeos para

convertecirc-lo a favor da feacute cristatilde Se por um lado eacute faacutecil supor a modificaccedilatildeo desse documento

ndash o que poderia ter ocorrido ateacute em funccedilatildeo da sua traduccedilatildeo do latim para o grego ndash por outro

lado natildeo haacute outro documento desse tipo que comprove tal adulteraccedilatildeo e nem mesmo que

ratifique uma accedilatildeo intolerante de Adriano para com os cristatildeos Outra hipoacutetese deve ser

examinada e agora deveraacute levar em consideraccedilatildeo as leis agraves quais o rescrito se refere

No texto grego de Euseacutebio que agora aparece na I Apologia de Justino conforme o

MS A a conjugaccedilatildeo no particiacutepio plural presente ativo masculino do verbo prattontaj estaacute

relacionada agrave frase anterior Aproximando as frases o sentido que se tem eacute o seguinte ldquose os

provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo

que respondam a ela diante do tribunal [] faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam

alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delitordquo290 O texto

latino de Rufino eacute mais especiacutefico com essa associaccedilatildeo Si quis igitur accusat et probat

adversum leges quicquam agere memoratos homines pro merito peccatorum etiam suplicia

statues291 Nesse caso memoratos homines [homens mencionados] eacute uma expliacutecita referecircncia

aos Christianos Todavia tanto C Munier292 quanto D Minns e P Parvis293 ignoram a

palavra memoratos294 traduzindo o texto como se o rescrito se referisse ao modo geral de se

proceder em um julgamento ou seja a todos os homens cujos crimes fossem confirmados

Essa hipoacutetese forccedila o texto pois neste caso uma norma geral faria com que qualquer denuacutencia

precisasse ser provada pelo delator sob o risco de ser punido severamente caso natildeo fosse

confirmada pelas autoridades Desse modo esse tipo de sustentaccedilatildeo se converte em absurdo

Admitir que Adriano estivesse realmente orientando Minuacutecio Fundano a julgar

pessoalmente as denuacutencias contra os cristatildeos e exigir provas dos delatores que confirmassem

o descumprimento das leis natildeo significa que o imperador demonstrava simpatia pelo

cristianismo Sua preocupaccedilatildeo eacute manter a ordem e evitar os abusos Era preciso impedir que

290 I Apol 688-10 291 Apud MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 133 292 Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 pp 314-317 293 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 44264-267 294 Participio plural passado perfeito masculino acusativo que significa ldquotrazido agrave lembranccedilardquo ldquoditordquo ldquomencionadordquo ldquorelacionadordquo etc LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project)

56

as manifestaccedilotildees puacuteblicas solapassem o procedimento correto dos tribunais Haacute sim uma

diferenccedila significativa entre a postura de Trajano e a de Adriano mas ela natildeo torna o segundo

um amigo ou inimigo dos cristatildeos Cabe lembrar que uma das questotildees levantadas por Pliacutenio

a Trajano era se os cristatildeos deveriam ser punidos pela confissatildeo desse nome ou pelos crimes

subentendidos Naquele caso especiacutefico da Bitiacutenia uma das infraccedilotildees era quando os cristatildeos

se reuniam em seus cultos passar por cima da lei que impedia as reuniotildees e associaccedilotildees

gerais Abandonada essa praacutetica o governador natildeo via nenhum crime ou ameaccedila no modo de

ser dos cristatildeos e natildeo encontrou outra razatildeo para puni-los senatildeo pela contumaacutecia que

apresentavam diante de um magistrado em natildeo negar a feacute que era estranha aos olhos de Pliacutenio

A resposta de Trajano ainda que lacocircnica ratificou o procedimento de Pliacutenio e mesmo sem se

identificar um ldquocrimerdquo especiacutefico aprovou a condenaccedilatildeo dos cristatildeos pelo seu nomen para

desestimular a superstitio estranha e incentivar a retomada do culto puacuteblico pagatildeo Adriano

por outro lado tambeacutem sem fazer referecircncia a qualquer lei especiacutefica contra os cristatildeos

orienta os governantes a condenarem a todos aqueles que comprovadamente estivessem

infringindo a lei Tudo indica que a Aacutesia estava sendo agitada por mobilizaccedilotildees puacuteblicas que

impeliam os magistrados contra os cristatildeos Essa eacute a razatildeo para os apologistas Quadrato e

Aristides escreverem tambeacutem O nuacutemero dos cristatildeos ainda natildeo era muito significativo para o

estabelecimento de uma lei geral

Conforme destacou Jossa295 os cristatildeos se confrontavam com a opiniatildeo puacuteblica

Dentre o povo emergiram acusaccedilotildees de incesto infanticiacutedio e outras coisas do gecircnero A

rejeiccedilatildeo aos deuses e o estranhamento ao mos romanorum e o seu odio humanum generis

faziam com que os cristatildeos se tornassem a causa das desgraccedilas no Impeacuterio diante dos olhos de

uma boa parte dos pagatildeos No periacuteodo de Adriano a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos era apenas uma

questatildeo de ordem puacuteblica que constrangia o governo romano a uma difiacutecil obra de mediaccedilatildeo

entre os vaacuterios grupos locais Era um aspecto da poliacutetica de pacificaccedilatildeo das proviacutencias A sua

preocupaccedilatildeo estaacute relacionada exclusivamente a manter a ordem puacuteblica nas proviacutencias e a

garantir a observacircncia rigorosa do direito296 A hostilidade aos cristatildeos e os crescentes

confrontos obrigavam os governadores a intervirem e a consultarem o imperador em casos

como esse em que as coisas ameaccedilavam sair do controle

295 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125132 296 Na Digesta XXII53 o jurista Callistrato se reporta a uma seacuterie de rescritos dos quais cinco satildeo de Adriano a governadores das proviacutencias sobre o modo como escutar os textos nos processos e sobre o valor de dar a eles testemunho cf tambeacutem Dig XLVIII27

57

As respostas de Trajano e Adriano mostram que a repressatildeo puramente local do

cristianismo tinha um caraacuteter descontiacutenuo e excepcional que natildeo impedia a nova religiatildeo de

estender-se pelo Impeacuterio fazendo novos adeptos

23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos

Durante o governo de Antonino Pio (governou de 138-161) os tribunais continuavam

a receber queixas esporaacutedicas da populaccedilatildeo sobre os cristatildeos Marco Aureacutelio297 reconheceu

seu conservadorismo e o descreveu como algueacutem profundamente devoto aos deuses

romanos298 e sempre atento ao cumprimento do proacuteprio dever no culto puacuteblico

Segundo Meacuteliton que escreveu nos tempos de Marco Aureacutelio Antonino Pio natildeo

empreendeu nenhuma modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo que viesse a abater a Igreja e que

repetidamente nos rescritos dirigidos aos tessalonicenses aos atenienses e a todos os gregos

recomendou ldquonatildeo inovar nada sobre os cristatildeosrdquo299

Na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio (IV13) aparece um rescrito de Antonino ao

conselho da Aacutesia Satildeo levantados alguns argumentos contra a autenticidade desse documento

Destacam-se principalmente os erros de titulaccedilatildeo Tambeacutem se alega que suas caracteriacutesticas

formais natildeo sejam proacuteprias dos escritos de Antonino Pio Aleacutem disso o documento apresenta

uma exaltaccedilatildeo ao cristianismo Isso faz com que alguns rejeitem total300 ou parcialmente301

esse documento No entanto as condiccedilotildees da eacutepoca corroboram com a ideia de que o

imperador tenha de fato deliberado sobre essa questatildeo e J Beaujeu302 natildeo vecirc nenhuma razatildeo

para duvidar da existecircncia de um rescrito de Antonino Pio G Jossa303 e C G Roman304

297 Pensamentos I16 298 Marco Aureacutelio Pensamentos VI3014 299 apud Euseacutebio His EclesIV2610 300 Cf SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 1954 pp 190ss SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 301 Cf FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 302 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp 279-329 303 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 148 304 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 228

58

admitem-no com reservas e P Keresztes305 sustenta que por haver um comentaacuterio tanto

negativo quanto positivo sobre os cristatildeos natildeo deveria se tratar de uma falsificaccedilatildeo O modo

como tal texto foi preservado na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio eacute controverso e merece um

exame cauteloso

Pela sequecircncia do texto entende-se que Euseacutebio falaraacute de Antonino Pio Ele anuncia o

nome de Antonino que tambeacutem foi uma forma de se referir a Marco Aureacutelio mas comeccedila a

citaccedilatildeo do texto com ldquoO imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto Armecircnio

pontiacutefice maacuteximo tribuno da plebe pela deacutecima quinta vez cocircnsul por trecircs vezes ao conciacutelio

da Aacutesia saudaccedilotildeesrdquo306 A secccedilatildeo de IV82-5 apresenta um comentaacuterio que dificilmente

poderia ser admitido como autecircntico por isso esta eacute a parte que sofre maior oposiccedilatildeo Trata-se

de uma repreensatildeo moral do imperador aos provincianos O nuacutecleo seguinte do texto agraves vezes

eacute admitido como histoacuterico como sustenta C G Roman307 Lecirc-se

Em favor destes jaacute escreveram a nosso diviniacutessimo pai muitos governadores das proviacutencias aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados a natildeo ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder puacuteblico de Roma Tambeacutem a mim muitos me falaram sobre eles e tambeacutem respondi seguindo o parecer de meu pai Mas se algueacutem persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles fique o acusado livre de encargos ainda que seja evidente que eacute cristatildeo por outro lado o acusador ficaraacute sujeito a castigo Publicado em Eacutefeso no concilio da Aacutesia (Hist Ecles IV136-7)308

O contexto e as evidecircncias internas mostram que o rescrito pretende ser de Antonino

Pio Em siacutentese o texto afirma que sob seu governo natildeo se modificou em nada o que foi

estabelecido por Adriano A liberaccedilatildeo de um cristatildeo acusado em funccedilatildeo da denuacutencia de outro

cristatildeo que insiste em levaacute-lo ao tribunal natildeo faz muito sentido Pode-se imaginar que

desavenccedilas entre cristatildeos fizessem com que um cristatildeo procurasse se livrar do seu adversaacuterio

denunciando-o agraves autoridades para que fosse condenado mas eacute inimaginaacutevel que essa fosse

uma preocupaccedilatildeo de um imperador pagatildeo Eacute provaacutevel tenha sofrido uma adaptaccedilatildeo cristatilde

Mesmo despertando ceticismo sobre sua autenticidade esse rescrito pode traduzir com

reservas a situaccedilatildeo dos cristatildeos daquela eacutepoca Neste caso a compreensatildeo da condiccedilatildeo dos

cristatildeos nesse periacuteodo depende em parte da compreensatildeo da postura de Adriano diante dos

cristatildeos Euseacutebio havia interpretado o rescrito de Adriano como uma medida que beneficiava

os fieacuteis e consequentemente vecirc como positivo o rescrito de Antonino Pio No entanto

consideram as conclusotildees especificadas sobre o rescrito de Adriano nesta pesquisa se Pio natildeo

305 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 306 Euseacutebio Hist Ecles IV131 307 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 230-231 308 Ibid

59

adicionou em nada agravequela determinaccedilatildeo os cristatildeos continuavam a serem viacutetimas de

condenaccedilotildees locais e os governantes tinham liberdade para julgar cada caso

Nesse periacuteodo ocorre o martiacuterio do Papa Teleacutesforo e o processo contra Tolomeu e

Luacutecio sob o prefeito de Roma Lollio Urbico mencionados na II Apologia de Justino (21ss)

O repuacutedio da novidade e irracionalidade da feacute dos cristatildeos aparece nos escritos de Eacutelio

Aristides309 e nas vozes populares inferiores referidas por Luciano (De morte Peregrini 11)

Sobre o martiacuterio de Policarpo haacute divergecircncias Jossa310 sustenta que ele padeceu sob Marco

Aureacutelio mas o tipo de perseguiccedilatildeo recebida natildeo foi diferente daquela pela qual padeceram os

cristatildeos condenados sob Antonino Pio Tumultos e agitaccedilotildees puacuteblicas foram problemas que

Adriano havia procurado resolver

As acusaccedilotildees de ldquoateiacutesmordquo sofridas pelos cristatildeos que aparecem na primeira parte do

rescrito satildeo pertinentes ao periacuteodo311 Esse tipo de acusaccedilatildeo levou o proacuteprio Justino a incluir

esse tema nas suas Apologias312 Eacute certo como destaca Keresztes313 que ldquoateiacutesmordquo natildeo era

um crime de fato E em segundo lugar diante das cataacutestrofes aqueles que professavam

orgulhosamente a inexistecircncia dos deuses pagatildeos tornavam-se a explicaccedilatildeo mais provaacutevel

para o distuacuterbio da pax deorum314 Haacute indiacutecios no rescrito de Antonino que esse temor dos

pagatildeos diante das forccedilas da natureza tambeacutem corroborava com o combate aos cristatildeos315

A principal queixa de Justino na deacutecada de 150 dC era a de que natildeo seria justo

algueacutem ser condenado simplesmente por professar ser ldquocristatildeordquo316 O apologista tece sua

reivindicaccedilatildeo considerando o que pensa ser ldquojustordquo e assim tambeacutem apresenta uma peticcedilatildeo

309 Aristides (Orationes XLVI309) fala dos cristatildeos como ldquoos iacutempios da Palestinardquo que se distanciavam dos costumes gregos e natildeo honravam os deuses 310 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125132 311 ldquoA estes estais empurrando para a agitaccedilatildeo uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateusrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV133) 312 I62 313 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 p 17 314 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam e comparais nossa situaccedilatildeo agrave suardquo (Hist Ecles IV134) [Os seguintes infortuacutenios e prodiacutegios ocorridos em seu reino a fome a qual jaacute mencionamos o colapso do Circus e o terremoto por meio do qual as cidades de Rodes e da Aacutesia foram destruiacutedas] Adversa eius temporibus haec provenerunt fames de qua diximus Circi ruina terrae motus quo Rhodiorum et Asiae oppida conciderunt quae omnia mirifice instauravit et Romae incendium quod trecentas quadraginta insulas vel domos absumpsit (Hist Aug Vita Antoninus IX1) Dion Cassius escreveu que ldquoNos dias de Antonino tambeacutem um terriacutevel terremoto ocorreu na regiatildeo da Bitinia e de Helesponto Vaacuterias cidades foram severamente danificadas ou caiacuteram em ruiacutenas em particular Cizicus e o templo de laacute que era o maior e mais belo de todos os templo foi lanccedilado abaixordquo (Hist Rom LXX 4) Ἐπὶ τοῦ Ἀντωνίνου λέγεται καὶ φοβερώτατος περὶ τὰ microέρη τῆς Βιθυνίας καὶ τοῦ Ἑλλησπόντου σεισmicroὸς γενέσθαι καὶ ἄλλας τε πόλεις καmicroεῖν ἰσχυρῶς καὶ πεσεῖν ὁλοσχερῶς καὶ ἐξαιρέτως τὴν Κύζικον καὶ τὸν ἐν αὐτῇ ναὸν microέγιστόν τε καὶ κάλλιστον ναῶν ἁπάντων καταρριφῆναι 315 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegamrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV134) 316 I Apol 41-7

60

reinterpretando o rescrito de Adriano317 Desse modo em exigecircncia mediante o que chama de

ldquosatilde razatildeordquo ele sustenta ser justo que os cristatildeos sejam julgados quando porventura vierem a

cometer alguma falta contra a lei ou por algum delito mas nunca por se chamarem ldquocristatildeosrdquo

Eacute em funccedilatildeo do que representava ser ldquocristatildeordquo que o apologista se dedica a algumas

explicaccedilotildees Em sua anaacutelise era por causa do preconceito das crenccedilas pagatildes dos boatos

maliciosos e ainda por certo impulso irracional por parte dos ldquooutrosrdquo que os cristatildeos eram

ofendidos318 O caso de uma mulher que se divorciou do marido pagatildeo narrado na II Apologia

eacute outro exemplo dos atritos corriqueiros que poderiam chegar aos tribunais Segundo o

apologista ldquotodo aquele que eacute repreendido pelo pai vizinho filho amigo marido ou mulher

por causa de uma falta se volta contra [os cristatildeos] por sua obstinaccedilatildeo no mal por seu amor

ao prazer e por sua impotecircncia para seguir o que eacute bomrdquo319 Aleacutem desse caso emblemaacutetico

acontecido havia pouco tempo na cidade de Roma sob Urbico320 ele acrescenta que tais accedilotildees

tambeacutem eram comuns aos governadores em todo o Impeacuterio e que ldquoem todas as partesrdquo havia

quem estivesse disposto a levar os seguidores de Cristo agrave morte321 Em ambas as Apologias

Justino escreve como quem procura alertar o imperador sobre os abusos cometidos contra os

cristatildeos Devido agrave ausecircncia de uma lei geral contra os fieacuteis as accedilotildees anticristatildes aparecem

como fruto dos distuacuterbios locais que emergiam em resistecircncia agrave nova religiatildeo A I Apologia

parece se referir aos atritos gerais contra os cristatildeos enquanto a segunda comeccedila com um

clamor a partir de um caso especiacutefico ocorrido em Roma sob o prefeito Urbico A II Apologia

daacute sinais de que as disputas de Justino com Crescente na capital imperial levavam o

apologista a prever o seu martiacuterio que soacute viria a acontecer no iniacutecio do governo de Marco

Aureacutelio

Marta Sordi322 assim como Robert M Grant323 identifica trecircs fases na poliacutetica

imperial de Marco Aureacutelio mas as duas uacuteltimas extrapolam o contexto em que se insere

Justino A primeira fase se relaciona ao periacuteodo da corregecircncia entre Marco Aureacutelio e Lucio

Vero de 161 a 169 que corresponde em parte aos uacuteltimos anos de Justino Esta fase revela a

princiacutepio a mesma condiccedilatildeo do governo de Antonino Pio mas pode ter sofrido mudanccedilas no

final da deacutecada

317 I Apol 681-10 318 I Apol 23 319 II 12 320 Quintus Lollius Urbicus havia sido incumbido por Adriano na Guerra Judaica (133-135 dC) governou a Germania Menor (136-138 dC) e a Britania (139-142 dC) e foi prefeito de Roma de 146 a 160 dC (Historiae Augustae 54) 321 II 11-2 322 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103 323 Five apologists and Marcus Aurelius Vigiliae Christianae V 42 n 1 Mar1988 pp 1-17

61

Algumas fontes cristatildes (Atas do martiacuterio de Justino 58324 Oroacutesio Historiae Adversus

PaganusVII154325) vinculam a intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo a um edito sobre sacrifiacutecios

Natildeo se tratava de um decreto diretamente contra os cristatildeos A determinaccedilatildeo exigia sacrifiacutecios

aos deuses por todas as cidades do Impeacuterio nos anos de 166168 e devia estar relacionada aos

temores devido agrave peste agrave guerra na Partia e agrave pressatildeo germacircnica326 Justino foi provavelmente

condenado por se negar a obedecer ao novo decreto mas suas Apologias refletem a situaccedilatildeo

dos cristatildeos sob Antonino Pio

Por meio de uma leitura do seu tempo Justino contemplaraacute em seu discurso os

fundamentos desse tipo de accedilotildees Ele apresenta uma desconstruccedilatildeo da forma de controle que

proporciona agreccedilotildees aos cristatildeos e entatildeo oferece uma concepccedilatildeo cristatilde para fundamentar o

estabelecimento da ordem social

O apologista compotildee uma argumentaccedilatildeo para mostrar que a religiatildeo cristatilde poderia

contribuir para a estabilidade da ordem social no Impeacuterio e oferece uma reflexatildeo sobre os

fundamentos da noccedilatildeo de justiccedila na perspectiva cristatilde Por meio do exame do discurso de

Justino identificam-se dois aspectos da relaccedilatildeo entre religiatildeo e controle social no Impeacuterio

Romano contemplados nas accedilotildees anticristatildes de seu tempo O primeiro eacute representado na sua

anaacutelise da repressatildeo aos cristatildeos em funccedilatildeo da preservaccedilatildeo da ordem e o segundo na sua

proposta de contribuiccedilatildeo dos cristatildeos para a manutenccedilatildeo da ordem

324 ldquoAqueles que natildeo desejarem sacrificarem aos deuses e se submeterem ao decreto imperial satildeo condenados primeiro a serem castigados e depois agrave pena capital conforme a leirdquo (Tr A) kai ei=xai tw| tou auvtokragmati( mastigwqevtej avpacqhtwsan( kefalikhn avpotinnuntej dikhn( kata thn twn nomwn avkoluqian) cf Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 p152 325 Eo defuncto Marcus Antoninus solus reipublicae praefuit sed in diebus Parthici belli persecutiones Christianorum quarta iam post Neronem uice in Asia et in Gallia graues praecepto eius exstiterunt multique sanctorum martyrio coronati sunt Cf OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889 326 SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103

62

CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE

MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM

Ao escrever suas Apologias em defesa dos cristatildeos e endereccedilaacute-las ao imperador

Justino se posiciona tanto como um profeta da antiga monarquia de Israel quanto como um

filoacutesofo conselheiro que se prontifica a oferecer conselhos ao governante Eacute possiacutevel

estabelecer uma analogia entre essas duas posturas nesse caso pois para esse pensador o

cristianismo ndash que em certo sentido eacute para os cristatildeos o cumprimento das expectativas de

Israel ndash eacute a ldquoverdadeira filosofiardquo327 Eacute a partir dessa sua perspectiva cristatilde que ele analisa a

forma romana de garantir o estabelecimento da ordem no tocante agrave religiatildeo e que manifesta

suas razotildees para se opor agrave religiatildeo pagatilde

Sua construccedilatildeo apologeacutetica contrasta tal forma de controle romana que acaba por

vitimar os cristatildeos agrave contribuiccedilatildeo cristatilde para a ordem social Seus pronunciamentos agraves vezes

satildeo muito diretos aos governantes ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem

e natildeo tenhais a quem castigar coisa que conviria melhor a verdugos do que a priacutencipes

bonsrdquo328 Na verdade o problema central incide sobre as formas de controle sociais

empregadas para a repressatildeo da expansatildeo dessa nova religiatildeo Por isso os argumentos de

Justino tecircm por objetivo combater algumas das principais queixas sobre os cristatildeos e tambeacutem

informar sobre o caraacuteter de suas crenccedilas e estilo de vida

Nessa parte da pesquisa seraacute analisada a forma como o apologista tece suas criacuteticas ao

procedimento romano contra a religiatildeo cristatilde e agrave postura dos cristatildeos diante dessas outras

religiotildees A proposta de Justino sobre os fundamentos cristatildeos para o controle social seraacute

examinada no proacuteximo capiacutetulo Sua interrogaccedilatildeo eacute a mesma que ainda voltou agrave tona no

seacuteculo XX com G E M de Ste Croix329 em 1963 com A N Sherwin-White330 em 1964 e

com o proacuteprio Ste Croix331 em uma treacuteplica ldquoWhy were the Early Christians persecutedrdquo

Segundo GEM de Ste Croix as perseguiccedilotildees aos cristatildeos eram decorrentes

basicamente da recusa desse grupo em reconhecer os deuses de Roma acarretando uma

situaccedilatildeo de suspeitas de sediccedilatildeo e periculosidade social Os deuses tradicionais do panteatildeo

greco-romano eram as divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma e seus cultos eram

327 II Apol 152 328 I Apol 124 329 Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p6-38 330 Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 331 Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 p28-33

63

uma necessidade para a manutenccedilatildeo da pax deorum [paz dos deuses]332 A perseguiccedilatildeo se

relacionaria ao sentimento religioso da eacutepoca supersticiosa na qual eles viviam333

A N Sherwin-White334 de modo diverso desviou a tocircnica da perseguiccedilatildeo da questatildeo

da pax deorum e lanccedilou seu olhar agrave contumaacutecia dos cristatildeos em se manterem fieacuteis agraves suas

crenccedilas exclusivistas diante do panteatildeo greco-romano Tal postura teria sido interpretada em

muitos momentos como um desafio agraves autoridades romanas Desse modo atrairiam para si

mesmos acusaccedilotildees e suspeitas em decorrecircncia de sua potencial insubordinaccedilatildeo conforme

pode ser visto nas Cartas de Pliacutenio o Jovem a Trajano335

A treacuteplica de GEM Ste Croix336 natildeo colocou um ponto-final na questatildeo e

incomodou a outros estudiosos contemporacircneos Segundo Paul Veyne as comunidades cristatildes

enfrentaram resistecircncias devido agrave aversatildeo romana ldquoao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguordquo337

O fato de o grupo ser ainda pouco conhecido e sustentar a veneraccedilatildeo a um ldquoreirdquo na esperanccedila

de um reino torna a situaccedilatildeo ainda mais complicada Tal hibridez alegada seria notada tendo

em vista que embora possuindo as mesmas categorias de pensamentos dos demais cidadatildeos do

Impeacuterio Romano

os cristatildeos faziam parte do Impeacuterio mas sem os mesmos costumes evitavam conviver com os outros natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo veneravam os deuses nacionais seu Deus natildeo pertencia agrave determinada naccedilatildeo diferente do deus dos judeus Aleacutem de querer se isolar como uma legiacutetima diferenccedila nacional esse Deus pretendia superar os deuses nacionais338

Nesse sentido as perseguiccedilotildees teriam sido causadas pela rejeiccedilatildeo a algo pouco

definido anormal capaz de produzir inseguranccedilas e exigir uma medida cautelar E para

justificar as accedilotildees persecutoacuterias os romanos lanccedilavam matildeo de argumentos tradicionais como

o respeito ao mos maiorum [os costumes ancestrais] e o respeito agrave unidade religiosa e moral

da coletividade

Mesmo apresentando explicaccedilotildees diferentes sobre as perseguiccedilotildees as consideraccedilotildees

de Sherwin-White Ste Croix e Paul Veyne natildeo satildeo completamente opostas Se por um lado

observamos a posiccedilatildeo obstinada dos cristatildeos em manter a sua religiatildeo a ponto de se tornar

332 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p 24 333 Ibid 1963 pp 29-31 Cf DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963 334 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n 27 1964 pp 25 335 Pliacutenio Segundo Cartas X 96-97 336 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 337 VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 338 Ibid p 246

64

uma desobediecircncia contra as autoridades imperiais por outro a religiatildeo romana se baseava na

manutenccedilatildeo do equiliacutebrio das relaccedilotildees entre o Impeacuterio Romano e os deuses tradicionais

Essas explicaccedilotildees decorrem de uma anaacutelise geral das accedilotildees anticristatildes do I ao IV

seacuteculo Um exame mais localizado ndash e em niacuteveis menos oficiais ndash poderia multiplicar as

razotildees pelas quais os cristatildeos foram perseguidos ou chamar a atenccedilatildeo para o fator psicoloacutegico

desses atritos religiosos Essa pesquisa no entanto limitar-se aos aspectos que possibilitem

uma leitura das accedilotildees anticristatildes a partir das Apologias de Justino

O apologista tambeacutem se propotildee a responder a esta questatildeo ldquoPor que os cristatildeos satildeo

perseguidosrdquo Sua leitura teoloacutegica da histoacuteria procura chegar agrave causa uacuteltima motivadora das

accedilotildees anticristatildes desenvolvendo uma trama apologeacutetica que relaciona controle social e

religiatildeo Para compreender suas formulaccedilotildees conveacutem analisar esse conceito chave

ldquoControle socialrdquo pode ser definido como ldquoo conjunto dos recursos materiais e

simboacutelicos que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de

seus membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo339 O termo de

modo geral eacute frequentemente usado para se referir a alguma forma de reaccedilatildeo organizada ao

comportamento pervertido Essa abordagem eacute baseada o trabalho de Stan Cohen que definiu

controle social como ldquorespostas organizadas ao crime delinquecircncia e formas aliadas de

perversatildeo eou comportamento socialmente problemaacutetico os quais satildeo atualmente concebidos

se no reativo sentido (depois do putativo ato ter tomado espaccedilo ou o ator ter sido identificado)

ou no proativo sentido (para prever os atos)rdquo340

A definiccedilatildeo usada por Donald Black341 eacute muito semelhante Ele assinalou que

ldquocontrole social eacute o aspecto normativo da vida social ou a definiccedilatildeo de comportamento

pervertido e a resposta a ele tal como proibiccedilotildees acusaccedilotildees puniccedilotildees e compensaccedilatildeordquo

Segundo esta afirmaccedilatildeo controle social se refere aos mecanismos determinantes usados para

regular a conduta das pessoas que satildeo vistas como pervertidas criminosas preocupantes ou

problemaacuteticas em algum sentido para os outros Todo tempo os sentidos nos quais diferentes

culturas entendem e respondem a diferentes formas de mudanccedilas e ajustes de comportamentos

problemaacuteticos

A causa desses problemas pode ser atribuiacuteda agrave criminalidade perversatildeo imoralidade

maldade perversidade ou alguma combinaccedilatildeo desses Similarmente os mecanismos

empregados para alcanccedilar o controle podem incluir formas variadas de puniccedilatildeo tratamento

339 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 340 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 p 3 341 BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press 1976 pp 1-2

65

dissuasatildeo segregaccedilatildeo ou prevenccedilatildeo342 Desse modo se a combinaccedilatildeo de fatores eacute usada para

compreender e reatar o problema o objetivo eacute promulgar o controle sobre o comportamento

que eacute visto como pervertido em algum sentido

A complexidade do tema se manifesta ainda quando R Meier343 considera que

controle social pode ser encontrado em trecircs principais contextos a) como uma descriccedilatildeo da

condiccedilatildeo ou processo social baacutesico ndash definiccedilatildeo dominante na teoria socioloacutegica claacutessica ndash b)

como um mecanismo para assegurar o cumprimento das normas e c) como um meacutetodo pelo

qual estudar (ou interpretar dados sobre) a ordem social Cohen retoma Joseph Rouceck344

que escreveu em 1947 entendendo controle social como ldquoum termo coletivo para aqueles

processos planejados ou natildeo planejados pelos quais indiviacuteduos satildeo ensinados ou compelidos

a conformar os usos e valores vitais dos gruposrdquo E A Horwitz345 que considerava que o

ldquocontrole social emerge da vida e das praacuteticas sociais e serve para manter o sentido da vida e

das praacuteticas sociais dos gruposrdquo Muitos diriam que tal descriccedilatildeo se aproxima mais dos

processos de socializaccedilatildeo E natildeo eacute preciso ir muito longe para perceber que os dilemas desse

conceito podem vir a ser complexos Tatildeo logo manifesta-se a necessidade de estabeler os

limites desse termo de modo que natildeo seja tatildeo limitado e que tambeacutem natildeo seja tatildeo amplo a

ponto de natildeo ser reconhecido

Segundo a anaacutelise de Martin Innes346 a definiccedilatildeo de Cohen permanece muito flexiacutevel

para mostrar a promulgaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social pelo Estado ou por agentes

profissionais autocircnomos tais como funcionaacuterios de corporaccedilotildees privadas e psiquiatras As

pessoas tendem a usar outros meios antes de recorrer ao aparato formal estabelecido de

controle social subcolocados como satildeo pela lei Mais conflitos satildeo resolvidos sem recursos da

lei ou controle social formal Uma soluccedilatildeo eacute frequentemente negociada ou a perversatildeo

tolerada e a imposiccedilatildeo do controle social tende a ser uma funccedilatildeo de elevada distacircncia

relacional Por isso a extensatildeo do desempenho do controle social atinge tambeacutem um caraacuteter

informal na sociedade

A definiccedilatildeo de controle social como uma resposta organizada a comportamentos

pervertidos natildeo eacute consensual Mas na busca por uma definiccedilatildeo que se adapte aos objetivos

desse trabalho seratildeo levadas em consideraccedilatildeo as proposiccedilotildees de Martin Innes347 Ele sintetiza

342 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 passim 343 MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology 1982 8 pp 35ndash55 344 Social Control Westport CT Greenwood Press 1970 p 3 345 The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990 p 5 346 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 347 Ibid

66

os aspectos da definiccedilatildeo de Cohen em uma abordagem revisionista Seu argumento eacute que

controle social pode ser pensado como um conceito-mestre composto de uma raiz de

diferentes modos de controle e tecnologias

Para estabelecer os limites desse conceito de controle social tambeacutem eacute necessaacuterio

estabelecer conceitos paacutereos como ldquoordem socialrdquo Segundo Erwin Goffman348 as relaccedilotildees

regulares entre as pessoas os variados padrotildees de funcionamento variadamente motivados

de comportamento as rotinas associadas com regras baacutesicas juntos constituem o que pode ser

chamada de uma ldquoordem socialrdquo

Baseando-se nesta definiccedilatildeo pode-se distinguir entre o significado de ordem social e

controle social A promulgaccedilatildeo de controle social eacute frequentemente destinada a proteger a

ordem social mas ordem social natildeo eacute unicamente produto de controles sociais Ao contraacuterio

o conceito de ordem social se refere agraves condiccedilotildees de existecircncia de uma sociedade De fato

toda sociedade tem intrinsecamente um grau de organizaccedilatildeo e entatildeo uma ordem social Uma

ordem social natildeo eacute estaacutetica estaacute constantemente em processo sendo produzida e reproduzida

pela combinaccedilatildeo de atitudes valores praacuteticas instituiccedilotildees e accedilotildees de seus membros

Entatildeo a ordem social eacute composta de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees

as quais de alguma forma contribuem para a constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social As

fronteiras entre as praacuteticas de organizaccedilatildeo social e controles sociais natildeo satildeo fixas nem

estaacuteveis e ao longo do tempo mudam de equiliacutebrio Pois se ordem social se refere ao estado

da sociedade e ao arranjo organizado de seu essencial conhecimento valores accedilotildees

instituiccedilotildees e estabelecimentos controle social se refere aos processos pelos quais se busca

gerir desvios ou conflitos com a ordem social Essas formas de gerenciamento podem ser

formais ou seja institucionalizadas ou informais

Controle social formal se refere a alguma ocasiatildeo onde a imposiccedilatildeo do controle eacute

baseada sobre ou informada por a presenccedila da lei Outras atividades de controle podem ser

definidas como tipo informal349 Dentre essas formas de controle tambeacutem eacute possiacutevel distinguir

os modos reativos e os proativos O primeiro tipo eacute aquele usado para responder algumas

coisas depois que elas tecircm tomado espaccedilo O segundo envolve o caacutelculo da probabilidade de

um ato ocorrer no mesmo ponto no futuro e a manufatura de alguma forma de intervenccedilatildeo em

antecipaccedilatildeo deste Essa eacute uma forma preditiva de controle Tambeacutem eacute possiacutevel distinguir entre

formas de controle social ldquoverticalrdquo para falar sobre o poder diferencial que frequentemente

existe entre controladores e os controlados Controle social para baixo eacute mais comum

348 GOFFMAN E Relations in Public New York Basic Books 1971 p x 349 Cf BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press passim

67

envolvendo alguns com mais poder ou autoridade de regulaccedilatildeo do comportamento de

indiviacuteduos ou grupos menores Contudo o controle social tambeacutem pode ser ldquoupwardsrdquo [para

cima] envolvendo os menos poderosos moldando o comportamento de indiviacuteduos ou grupos

mais poderosos

Eacute numa perspectiva ldquode baixo para cimardquo que Justino questiona a forma de controle

empreendida pelos governantes romanos quando agem contra os cristatildeos Essa perspectiva

contempla as condiccedilotildees do grupo minoritaacuterio daqueles que satildeo considerados adeptos de uma

superstito digna de ser combatida por aqueles que detecircm os meios de controle e dessa forma

eacute produzido um instrumento de controle que busca ldquoconvencerrdquo e intimidar as autoridades e a

todos os demias a natildeo se oporem aos cristatildeos Embora reconheccedila que os governantes satildeo

constituiacutedos por Deus eacute aquilo que ele chama de ldquoreta razatildeordquo que lhe daacute o direito de se

pronunciar350 As autoridades romanas soacute satildeo buscadas porque os conflitos cotidianos quanto

agraves diferenccedilas religiosas produziram atritos e inquietaccedilotildees que abriram margem para que os

romanos aplicassem coaccedilotildees ldquoformaisrdquo Ao questionar a intervenccedilatildeo imperial para a

manutenccedilatildeo da ordem o apologista revela refugiar-se em um padratildeo de justiccedila distinto

daquele dos romanos Em seus escritos ele tambeacutem manifesta uma perspectiva cristatilde da

ordem que seraacute analisada no proacuteximo capiacutetulo

Para se compreender as proposiccedilotildees de Justino seratildeo examinados os seguintes

aspectos a criacutetica aos governantes no processo de manutenccedilatildeo da ordem no tocante aos

cristatildeos as diferenccedilas entre os cristatildeos e as outras religiotildees e sua criacutetica sobre as leis e a

moralidade

31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem

Na I Apologia logo apoacutes o exoacuterdio Justino procura justificar suas razotildees agraves

autoridades agraves quais se refere em peticcedilatildeo Ele escreve que

todo homem sensato manifestaraacute que a melhor exigecircncia ou ainda mais que a uacutenica exigecircncia justa eacute que os suacuteditos possam apresentar uma vida e um pensar irrepreensiacuteveis e que por outro lado igualmente os mandantes deem sua sentenccedila

350 ldquoA razatildeo exige dos que satildeo verdadeiramente piedosos e filoacutesofos que desprezando as opiniotildees dos antigos se estas satildeo maacutes estimem e amem apenas a verdade De fato o raciociacutenio sensato natildeo soacute exige que se abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente mas tambeacutem que o amante da verdade de todos os modos e acima da proacutepria vida mesmo que seja ameaccedilado de morte deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiccedilardquo (I Apol 12)

68

natildeo levados pela violecircncia e tirania mas segundo a piedade e a filosofia Soacute assim governantes e governados podem gozar de felicidade351

O bom procedimento dos suacuteditos conjugado agrave postura iacutentegra de justiccedila daqueles que

tecircm autoridade aparece como condiccedilatildeo para que ldquogovernantesrdquo e ldquogovernadosrdquo desfrutem da

felicidade O que mais chama atenccedilatildeo eacute a seguinte expressatildeo ldquoem algum lugar um dos

antigos disse lsquoSe os governantes e os governados natildeo forem filoacutesofos natildeo eacute possiacutevel os

Estados prosperaremrsquordquo352 Tanto Munier353 quanto Minns e Parvis354 identificam esse trecho

como uma citaccedilatildeo de Platatildeo (Repuacuteblica V 473) Na obra de Platatildeo fica claro o apontamento

da necessidade de que os governantes adiram ao cultivo da sabedoria numa junccedilatildeo de

δύναmicroίς τε πολιτικὴ καὶ φιλοσοφία [poder poliacutetico e filosofia] para que natildeo haja problemas

sociais

Justino ressignifica o conceito de ldquofilosofiardquo a partir da sua experiecircncia cristatilde Desse

modo aqueles que satildeo ldquopiedosos e filoacutesofosrdquo como satildeo chamados o imperador e seus filhos

deveriam julgar com retidatildeo para que todos gozem de bem estar

Haacute vaacuterias hipoacuteteses para justificar o tiacutetulo ldquoPiordquo de Antonino Uma hipoacutetese eacute que esse

nome lhe fora dado por ter defendido a deificaccedilatildeo dedicaccedilatildeo de um templo e concessatildeo de

inuacutemeras honras a Adriano Outras hipoacuteteses levam em conta seu caraacuteter e sua maneira de

ser355 ldquoVerissimusrdquo356 era uma denominaccedilatildeo de Marco Annio Vero que viria a ser o

Imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto O modo como esse apelido eacute empregado

no texto indica provavelmente uma estrateacutegia retoacuterica de Justino Marco era

reconhecidamente chamado de ldquofiloacutesofordquo357 Seus proacuteprios escritos eliminam qualquer

indagaccedilatildeo Poreacutem quando Luacutecio eacute chamado de ldquofiloacutesofordquo isso pode soar estranho Mas antes

de se rejeitar esse tiacutetulo eacute mais prudente tentar compreender se existe uma ligaccedilatildeo isotoacutepica

com a estrutura do texto Se os tiacutetulos ldquoPiordquo e ldquofiloacutesofordquo respectivamente de Antonino e de

Marco Aureacutelio apresentam um forte viacutenculo com a construccedilatildeo do cerne da obra haacute boa razatildeo 351 I Apol 32 Cf Kalhn de kai monhn dikaian proltsgtklhsin tauthn paj o` swfronwn avpofaneitai( to touj avrcomenouj thn euvqunhn tou eautwn biou kai logou alhpton parecein( o`moiwj drsquoauv kai touj arxontaj mh bia| mhde turannidi( avllrsquo euvsebeia| kai filosofia| avkolouqountaj thn yhfon tiqesqai ou[twj gar avrcontej kai oi` avrcomenoi avpolauoien tou avgaqou) MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 352 I Apol 33 Cf An mh oi` arcontej filosofhswsi [kai oi` avrcomenoi]( ouvk av eih taj poleij euvdaimonhsai) Cf MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 353 MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p 172 354 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 85 355 Hist Aug Antoninus Pius 21-10 356 Ele foi carinhosamente chamado ldquoVeriacutessimordquo [Ouvrissiacutemon] como apontou Cassius Dio (Hist Rom 69212) e como aparece tambeacutem na Hist Aug I41 357 Hist Aug Marcus Aurelius 15-9

69

para buscar uma hipoacutetese que aluda agrave possiacutevel relaccedilatildeo do tiacutetulo de Luacutecio com o restante do

texto

Luacutecio foi adotado por Antonino ao mesmo tempo em que Marco e se tornou Luacutecio

Aeacutelio Aureacutelio Commodo Com a morte de seu pai adotivo recebeu o tiacutetulo de Imperador

Ceacutesar como esse seu irmatildeo mas a dimensatildeo do seu poder eacute amplamente questionada Minns e

Parvis358 consideram que nos tempos de sua ldquosaiacutedardquo para as regiotildees do Impeacuterio em 153 ou

154 poderia ser mais prudente incluiacute-lo entre os destinataacuterios Ele eacute chamado de ldquofiloacutesofo

[filosofw|] filho natural de Ceacutesarrdquo no MS A e de filosofou kaisaroj fush| ui`w| [Filho

natural do filoacutesofo Ceacutesar] por Euseacutebio359 Esse tiacutetulo natildeo poderia ser atribuiacutedo ao pai

bioloacutegico de Luacutecio Segundo os registros da Historia Augusta seu pai Luacutecio Aeacutelio Vero

recebeu realmente o tiacutetulo de Ceacutesar do Imperador Adriano mas morreu sem chegar ao posto

elevado Por outro lado haacute evidecircncias suficientes para Justino chamar a Luacutecio filho natural

de Ceacutesar e filho de Pio por adoccedilatildeo de ldquoamante do saberrdquo o que equivaleria a dizer que tinha

uma formaccedilatildeo baacutesica

O tiacutetulo ldquofiloacutesofordquo natildeo se referia a apenas um exiacutemio pensador O filoacutesofo podia ser

algueacutem que se dedicava aos assuntos filosoacuteficos que frequentava alguma escola ou grupo de

discussatildeo ou algueacutem de reconhecido destaque intelectual podendo ser considerado ateacute um

embaixador em assuntos poliacuteticos360 Luacutecio poreacutem natildeo apresentou dons naturais para os

estudos literaacuterios Compocircs versos e oraccedilotildees mas suas habilidades poeacuteticas eram muito

limitadas Haacute quem diga que ele foi ajudado pela inteligecircncia de seus amigos e que muitas das

coisas creditadas a ele foram escritas por outros361 A despeito de Luacutecio ser ndash ou natildeo ndash

reconhecidamente um filoacutesofo essa denominaccedilatildeo podia render uma associaccedilatildeo desses nomes

ao cultivo do saber em geral e da piedade Se por outro lado o tiacutetulo de filoacutesofo viesse a ser

improacuteprio comparado agrave pertinecircncia da forma como Marco Aureacutelio eacute chamado abre-se espaccedilo

para uma nova hipoacutetese Seria esta uma estrateacutegia para chamar a atenccedilatildeo para as proacuteximas

colocaccedilotildees quando o apologista destaca aqueles que dizem ser filoacutesofos e natildeo o satildeo Mais do

que isso o apologista precisa de um elemento que viabilize a abertura de um espaccedilo textual

para a apresentaccedilatildeo do que ele considera ldquoa verdadeira filosofiardquo isto eacute o cristianismo

358 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 38-39 359 Hist Ecle IV121ss 360 DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940 361 Hist Aug Lucius Verus 21ss

70

Justino conheceu vaacuterias correntes filosoacuteficas Uma variedade de escolas poderia ser

encontrada pelo Impeacuterio Euseacutebio362 o chamou de ldquoamante da verdadeira filosofiardquo No

Diaacutelogo com Trifatildeo363 a filosofia eacute por ele reconhecida como ldquoo maior e mais precioso bem

diante de Deus para o qual somente ela conduz e nos associardquo Esses ensinamentos satildeo

considerados ldquosuperiores a toda filosofia humanardquo364 e reconhecidos como ldquoa filosofia segura

e proveitosardquo365 Dessa forma o pensamento cristatildeo eacute revestido de uma aacuteurea de

superioridade capaz de fundamentar sua teoria e sua criacutetica ao modo romano de repelir os

fieacuteis

Em sua leitura teoloacutegica da histoacuteria e dos problemas religiosos do seu tempo o

apologista procura a razatildeo uacuteltima que fundamenta a accedilatildeo humana para aquilo que eacute ldquobomrdquo e

para as accedilotildees de oposiccedilatildeo agrave feacute Eacute trabalhoso encontrar uma definiccedilatildeo para o que eacute ser ldquobomrdquo

segundo seu modo de pensar Sabe-se poreacutem que os cristatildeos satildeo tidos como os que buscam

aquilo que eacute ldquobomrdquo e que por isso natildeo haacute nenhuma razatildeo para persegui-los Aquilo que eacute

ldquobomrdquo pode ser experimentado de forma parcial por aqueles que natildeo satildeo cristatildeos mas essa

experiecircncia deriva de uma mesma fonte coacutesmica da ldquobondaderdquo Por isso ele sustenta que tudo

o que pode ser chamado ldquobomrdquo entre os filoacutesofos e legisladores elaborado por eles mediante

a investigaccedilatildeo e a instituiccedilatildeo foi comunicado pela parcela do Logos que lhes coube De outro

modo Justino afirma que por natildeo conhecerem plenamente o Logos que eacute Cristo eles

frequentemente se contradizem Em seu ponto de vista outrora muitos pensadores que

tentaram investigar e demonstrar as coisas por meio dessa ldquorazatildeordquo tambeacutem foram levados ao

tribunal como Soacutecrates

Em oposiccedilatildeo ao que eacute ldquobomrdquo uma forccedila oposta aparece como a propiciadora do

engano Eacute esse o elemento uacuteltimo responsaacutevel pelo desvirtuamento da sintonia com aquilo

que eacute ldquobomrdquo e que promove as accedilotildees ldquoinjustasrdquo das autoridades Ele escreve ldquoVoacutes poreacutem

natildeo examinais nossos juiacutezos mas movidos de paixatildeo irracional e aguilhoados por democircnios

perversos nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por issordquo366

Segundo sua teoria satildeo os democircnios os uacuteltimos responsaacuteveis por espalhar a ignoracircncia e

mover as autoridades contra os cristatildeos

Sob essa perspectiva ele destaca a transparecircncia cristatilde e a disposiccedilatildeo paciacutefica desse

grupo diante da autoridade imperial ao dever dos governantes

362 Hist Ecles IV83 363 Diaacutelogo com Trifatildeo 21 364 II Apol 153 365 Diaacutelogo com Trifatildeo 81 366 I Apol 51

71

Cabe a noacutes portanto expor ao exame de todos a nossa vida e os nossos ensinamentos para que natildeo nos tornemos responsaacuteveis pelo castigo daqueles que ignorando a nossa religiatildeo pecam por cegueira contra noacutes Contudo o vosso dever eacute tambeacutem ouvir-nos e mostrar-vos bons juiacutezes Com efeito daqui para frente informados como estais caso natildeo ajais com justiccedila natildeo tereis nenhuma desculpa diante de Deus367

A lealdade dos cristatildeos natildeo era algo evidente e por isso eacute uma das principais

preocupaccedilotildees do apologista ratificaacute-la Justino assinala que havia suposiccedilotildees inclusive de

que os cristatildeos arquitetavam algum tipo de irrupccedilatildeo de outro ldquoreinordquo quando de fato falavam

do ldquoreino de Deusrdquo em todos os seus aspectos espirituais (I Apol 111) A nova religiatildeo jaacute se

espalhava pelo Impeacuterio havia um seacuteculo mas eacute provaacutevel que natildeo tivesse alcanccedilado um

nuacutemero expressivo de fieacuteis Aleacutem disso ainda natildeo existia uma estrutura eclesiaacutestica bem

formada O marcionistas os valentinianos e outros grupos tornavam a questatildeo da identidade

cristatilde um assunto das apologias justinianas e de outros escritores e pregadores que pretendiam

definir quem eram os ldquocristatildeosrdquo

32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus

Na verdade o exclusivismo caracteriacutestico do monoteiacutesmo cristatildeo contrastava com a

religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio As accedilotildees importantes do Estado sempre envolviam rituais

sagrados Comemoraccedilotildees de vitoacuterias e triunfos do exeacutercito normalmente culminavam em

procissotildees e sacrifiacutecios E a proacutepria estabilidade social dependia de uma barganha feita com

os deuses para a manutenccedilatildeo da paz368

Os variados rituais produziam interaccedilotildees entre deuses e homens na religiatildeo romana

Por meio deles eram marcados todos os eventos puacuteblicos e celebraccedilotildees que envolviam

festivais anuais os juramentos ou aniversaacuterios das fundaccedilotildees de templos Tambeacutem podiam

estar relacionados aos jogos ou agraves performances dramaacuteticas que tinham elementos rituais em

seu programa ainda que incluiacutessem o entretenimento entre seus propoacutesitos Os jogos jamais

perderam seu aspecto ritual Cria-se que nessas ocasiotildees os deuses desciam para assisti-los e

entatildeo eram realizados rituais religiosos inclusive representados perfeitamente para que a

cerimocircnia fosse bem sucedida De modo geral tambeacutem os sacrifiacutecios eram feitos estritamente

367 I Apol 34 368 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35

72

segundo regras e tradiccedilotildees que necessariamente tinham de ser respeitadas369 Os prodiacutegios

envolviam quase todos os grupos de influecircncia nas decisotildees estatais ndash os coleacutegios sacerdotais

o senado os magistrados e ocasionalmente o povo nas comitia370

A criaccedilatildeo de novos lugares sagrados sejam templos propriamente ditos ou santuaacuterios

com um altar era tema de interesse puacuteblico e conflito potencial371 Alguns templos eram fruto

de promessas de generais em batalhas Com o tempo expandiram-se pelo espaccedilo urbano

representando uma imagem visiacutevel do domiacutenio romano sobre o Mediterracircneo e assinalando a

contribuiccedilatildeo de novos e antigos deuses em cada estaacutegio dessa conquista

Os rituais religiosos estavam intimamente ligados agraves demais atividades de guerra e

paz Desse modo a aprovaccedilatildeo de uma lei ou a eleiccedilatildeo de magistrado eram atos que envolviam

a tomada dos augures responsaacuteveis pelo sistema especial de regras que os controlavam o ius

augurale372 Os limites dessa religiosidade natildeo satildeo muito bem definidos Mas tanto o povo

quanto os magistrados demonstravam respeito pelas obrigaccedilotildees religiosas

A religiatildeo e os deuses estavam entre os fatores importantes na determinaccedilatildeo dos

eventos e na garantia de suas reivindicaccedilotildees de autoridade e comando dos agentes puacuteblicos

romanos Era tambeacutem uma das expressotildees da ideologia da elite romana e da manutenccedilatildeo do

poder E ainda como escreve Claudia B Rosa

ao mesmo tempo eram os rituais que garantiam as relaccedilotildees entre dois grupos homens e deuses Garantir os ritos representava a certeza da manutenccedilatildeo da sociedade como a queriam ordenada e segura Ao registrar as regras de comportamento como o respeito aos deuses sobretudo em seus espaccedilos ao curvar-se sob a autoridade dos rituais o cidadatildeo garantia a ordem social e a pax deorum e as praacuteticas que acarretavam a transgressatildeo agrave ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e agrave desagregaccedilatildeo A concoacuterdia entre homens e deuses eacute a garantia da ordem romana373

No I seacuteculo aC Augusto se tornou membro de todos os coleacutegios sacerdotais

assumindo o papel de pontifex maximus liderando os demais sacerdotes Se esta interpretaccedilatildeo

for correta ela representa a nova e revolucionaacuteria ordem religiosa do periacuteodo imperial e todos

os seus sucessores foram tambeacutem pontifices maximus ateacute o seacuteculo IV aC Desde entatildeo o

imperador se via responsaacutevel pela construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de templos O poder religioso e o

poder poliacutetico se assentaram sobre um mesmo indiviacuteduo no novo regime do Impeacuterio374

369 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 370 Assembleia dos cidadatildeos romanos 371 ROSA Claudia Beltratildeo Op cit p 144 Ciacutecero indica duas ocasiotildees em que tentativas de dedicaccedilotildees foram canceladas pelos pontiacutefices porque natildeo haviam sido aprovadas pelos comitia (De domo sua 136) 372 LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 1986 pp 2146-312 373 ROSA C B Op cit p 145-146 374 Ibid p 147

73

Conforme escreveu Paul Veyne375 ldquoO Estado com certeza exercia sua autoridade sobre os

cidadatildeos que lhe deviam tudo Mas mesmo assim apenas em circunstacircncias excepcionais

um decreto obrigaria cada cidadatildeo a tomar parte numa cerimocircnia puacuteblica []rdquo Devia-se no

entanto zelar pela pax deorum para a prosperidade e seguranccedila no Impeacuterio376

Natildeo havia uma ldquodependecircnciardquo humana em ralaccedilatildeo aos deuses o que existia era o

reconhecimento da superioridade daqueles seres que viviam entre os humanos Esse

reconhecimento cuacuteltico piedoso estava relacionado agrave barganha Esperava-se conhecer o

futuro escapar do perigo obter boas colheitas ter boa sauacutede sem que isso significasse que os

deuses estariam agrave disposiccedilatildeo a todo instante377

As accedilotildees de Augusto podem evidenciar uma estreita conexatildeo com episoacutedios de

restauraccedilatildeo e especialmente com as recorrentes observaccedilotildees de que as tradiccedilotildees ancestrais

estavam sendo perdidas ou abandonadas O ldquoculto imperialrdquo passa a representar uma novidade

no iniacutecio do Impeacuterio Se os apelos agrave restauraccedilatildeo das crenccedilas e tradiccedilotildees eram presentes nos

discursos natildeo se pode falar em uma nova forccedila religiosa ou uma nova religiatildeo no periacuteodo

imperial

Essas praacuteticas religiosas proporcionaram choques com judeus e depois com os

cristatildeos Sendo monoteiacutestas era impossiacutevel aceitar a inclusatildeo de deuses e cultos Os judeus

sacrificavam em prol do imperador e natildeo para o imperador jaacute os cristatildeos recusavam-se a

participar de qualquer sacrifiacutecio Considerando que os altares ao imperador eram colocados

muito proacuteximos ao tribunal do magistrado que ouvia os seus casos pode-se pensar que tal

sacrifiacutecio ao chefe do Impeacuterio era mais simboacutelico do que de adoraccedilatildeo e funcionava como sinal

de lealdade a Roma378 Secircneca em sua Apocolocyntosis do Divino Claacuteudio escrita

provavelmente no iniacutecio do reinado de Nero apresenta conotaccedilotildees negativas a respeito da

deificaccedilatildeo dos governantes em geral o que indica que existiam aqueles que natildeo viam com

bons olhos o processo de deificaccedilatildeo do governante Mas para a populaccedilatildeo geral do Impeacuterio

natildeo havia problemas em aceitar que o imperador pudesse ser tratado como um deus

A partir da sua expansatildeo e domiacutenio por um vasto territoacuterio o poder romano teve que

lidar com os problemas de integraccedilatildeo das regiotildees conquistadas Conforme tem destacado

375 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 244 376 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 p 15 377 MACMULLEN Ramsay Christianizatin the roman empire (AD 100-400) New Haven Yale University Press 1984 p 13 378 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 150

74

Claudia M Beltratildeo379 o mapa da peniacutensula Itaacutelica o Oriente Proacuteximo o norte da Aacutefrica e

Europa conformam uma rede que se aglutina em torno de Roma constituindo um espaccedilo

dinacircmico de interconexatildeo espaccedilo no qual se daratildeo variados modos de relaccedilatildeo Essa complexa

relaccedilatildeo exigia tambeacutem uma forma de lidar com os cultos estrangeiros

A cultura romana tornou-se sinteacutetica e sintetizante e relativamente favoraacutevel agrave

incorporaccedilatildeo de cultos estrangeiros Roma natildeo apenas se tornou o centro poliacutetico do mundo

por ela construiacutedo como tambeacutem passou a abrigar o nuacutecleo das religiotildees Segundo a anaacutelise

de Ceciacutelia Ames380 o caraacuteter sinteacutetico da religiatildeo romana que combina rito paacutetrio rito grego

e disciplina etrusca facilitou aos romanos a integraccedilatildeo de cultos estrangeiros e a difusatildeo de

seu proacuteprio sistema nos territoacuterios constituindo-se em um elemento chave na relaccedilatildeo destes

espaccedilos interconectados Sua toleracircncia e flexibilidade no entanto tambeacutem incluiacuteam

mecanismos para regular o fluxo de ideias e praacuteticas estrangeiras381 O senado era o oacutergatildeo

responsaacutevel por velar e vigiar da tradiccedilatildeo e da religiatildeo A necessidade de controle cresce junto

com a expansatildeo dos domiacutenios de Roma

Dentro da sua anaacutelise Justino se incomoda com o fato de que no meio de um universo

tatildeo vasto de culturas que se encontram no Impeacuterio Romano os cristatildeos sejam muitas vezes

odiados e levados agrave morte Para o apologista essa eacute mais uma evidecircncia da ignoracircncia

disseminada pelos maus democircnios que faz com que de algum modo as crenccedilas cristatildes sejam

tachadas de irracionais Enquanto isso ldquoalguns cultuam aacutervores rios382 ratos gatos

crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionaisrdquo de modo que todos satildeo iacutempios entre si por

natildeo terem a mesma religiatildeo (I Apol 241) O apologista na verdade aponta aquilo que

considera ser uma incoerecircncia nessa estrutura intercultural

Estaacute evidente que sua anaacutelise eacute dependente da sua loacutegica cristatilde mas Luciano de

Samosata tambeacutem apontava no seacuteculo II dC a ldquoconfusatildeordquo causada pelas diferentes opiniotildees

sobre os Deuses383 Plutarco um pouco antes anotara que a adoraccedilatildeo a diferentes formas de

379 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 151 380 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 p 342 381 Cf MACMULLEN R Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 382 Sextus Empiricus cita a afirmaccedilatildeo de Prodicus de que ldquoos antigos tinham como deus o sol a lua os rios e as primaveras [] assim como os Egiacutepicios deificavam o Nilordquo (Adversus Dogmaticos I18) apud MINNS PARVIS Op cit p 143 383 Juppiter Tragoedus 42

75

animais causava disputas entre seus adoradores384 Juvenal385 tambeacutem menciona que a

contenda se instalava na vizinhanccedila egiacutepcia quando um odiava o deus do outro e sustentava

que somente o seu deus predileto era o deus verdadeiro Essas diferenccedilas poderiam causar

ainda deboches sobre os deuses alheios entre os diferentes povos no Impeacuterio assim como

Clemente de Alexandria diz que os gregos faziam aos deuses e as crenccedilas egiacutepcias386 A

estranheza dos deuses dos outros povos tambeacutem chamou a atenccedilatildeo de Ciacutecero que indagava

Se existem divindades agraves quais adoramos e consideramos como tais por que natildeo Serapis e Isis localizadas no mesmo ranque E se eles satildeo admitidos que razatildeo temos noacutes para rejeitar os deuses dos baacuterbaros Entatildeo noacutes devemos deificar bois cavalos iacutebis gaviotildees viacuteboras crocodilos peixes cachorros lobos gatos e muitas outras bestas Se noacutes vamos de volta agraves fontes destas supersticcedilotildees devemos igualmente condenar todas as divindades das quais eles procedem [] Se vocecircs natildeo deificarem a um bem como o outro o que seraacute de Ino Pois todos esses deuses tem a mesma origem387

Diante desse universo de pensamentos e crenccedilas distintos os romanos tinham o

desafio de conceber formas para garantir a integraccedilatildeo desses grupos Justino acentua que

diante dessa variedade de ideias somente os cristatildeos satildeo perseguidos e vecirc nisso mais uma

evidecircncia de que as accedilotildees anticristatildes satildeo arquitetadas pelos maus democircnios Mas os cristatildeos

natildeo haviam sido os uacutenicos a serem cerceados pelas autoridades romanas

Nos anos 180 aC o culto a Baco despertou suspeitas e passou a ser tratado como uma

ameaccedila agrave ordem Infelizmente as fontes sobre essa questatildeo se resumem a um decreto do

Senado388 regulando o culto e um longo relato de Tito Liacutevio389

Natildeo eacute uma tarefa simples determinar qual foi o epicentro do problema Talvez natildeo se

referisse a uma crise religiosa propriamente dita representando um caso de accedilatildeo policial

contra uma conspiraccedilatildeo Mas o decreto do Senado preservado numa placa de bronze

endereccedilado a uma das cidades aliadas indica uma preocupaccedilatildeo em inviabilizar possiacuteveis

agrupamentos potencialmente conspiratoacuterios Proibia-se aos grupos ter liacutederes ou sacerdotes

masculinos tesouro juramentos ou fieacuteis Ele tambeacutem restringia o tamanho desses

aglomerados e a estrutura de seus membros390 De algum modo a organizaccedilatildeo dos baacutequicos

deve ter ameaccedilado aos romanos tambeacutem por trazer uma nova e perigosa forma de poder

384 De Iside et Osiride 72 385 Saacutetiras XV37-38 386 Protrepticus 2396 387 De natura deorum III19(47) 388 Senatus Consultum de Bacchanalibus In JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961 pp 26-27 389 Histoacuteria de Roma 398-19 390 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 152

76

Os seguidores de Baco no entanto natildeo eram hostis a nenhum deus do Impeacuterio

Tambeacutem natildeo rejeitavam os sacrifiacutecios nem viam os deuses como democircnios e natildeo tinham

nenhum problema com os rituais tradicionais Tito Liacutevio daacute sinais dessa suspeita num

discurso que atribuiu ao cocircnsul Postumio Albino numa contio391 quando falou ao povo da

ameaccedila de um poder rival

A menos que vocecircs se precavejam homens de Roma esta vossa assembleia diurna apropriadamente reunida pelo cocircnsul seraacute rivalizada por sua assembleia noturna Nesse momento eles separadamente temem a vocecircs agora reunidos em assembleia quando vocecircs retornarem agraves suas casas e fazendas eles se reuniratildeo para decidirem sobre sua proacutepria salvaccedilatildeo e a vossa ruiacutena Seraacute quando vocecircs separadamente teratildeo de temecirc-los reunidos (39164)

Segundo a anaacutelise de Clara Gallini os adeptos ao culto eram grupos marginais392 As

bacanais seriam lugares de evasatildeo para a massa de pobres e deserdados com graves

problemas econocircmicos e sociais devido agrave situaccedilatildeo que atravessava Roma A crise social teria

se manifestado em uma forma representativa de protesto religioso por meio dos quais se

buscaram respostas religiosas a problemas da sociedade pretendendo uma liberaccedilatildeo religiosa

Deste modo a repressatildeo dos cultos baacutequicos tambeacutem representaria a repressatildeo de uma

sociedade na qual uns poucos os membros da oligarquia romana decidem impotildeem as regras

e governam a maioria No entanto ainda que os problemas sociais fossem evidentes natildeo eacute

possiacutevel afirmar que atraacutes destes cultos se escondia uma revolta contra as estruturas vigentes

nem ver os rituais baacutequicos como uma espeacutecie de esperanccedila em uma nova liberdade pois

essas interpretaccedilotildees como bem sustentou C Ames393 sofrem de anacronismo

Outros grupos religiosos no periacuteodo posterior a Bacanalia tambeacutem foram objeto de

uma accedilatildeo hostil das autoridades romanas Os caldeus chamados presumivelmente de

astroacutelogos foram expulsos de Roma em 139 aC Depois os seguidores de Iacutesis em vaacuterias

ocasiotildees na Repuacuteblica Tardia e no primeiro principado Tambeacutem os judeus enfrentaram seacuterias

dificuldades com os romanos em certos momentos394

Com a viabilizaccedilatildeo de um maior nuacutemero de viagens e trocas comerciais e culturais no

Impeacuterio Romano o conhecimento das variadas religiotildees deuses e crenccedilas tambeacutem podia

viajar rapidamente E isso significou ter que lidar com atritos decorrentes dessas diferenccedilas

envolvendo inclusive o judaiacutesmo o cristianismo e o maniqueiacutesmo

391 Audiecircncia convocada 392 GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52 393 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 p 344 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 394 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Op cit pp 161 230 231

77

De um modo bem diferente desses monoteiacutesmos de caraacuteter exclusivista entre as outras

crenccedilas como nas religiotildees de misteacuterios os adeptos natildeo rejeitavam ou condenavam outros

deuses Tambeacutem natildeo era necessaacuterio evitar os festivais e rituais da cidade ou a praacutetica do culto

imperial Natildeo havia nada que os pusesse em conflito com as autoridades Ocasionalmente

recebiam o apoio de membros da elite romana

Justino todavia procura mostrar que natildeo havia nenhum motivo para os romanos se

preocuparem com os cristatildeos afinal eles reconheciam que toda autoridade eacute constituiacuteda por

Deus e por isso devia ser respeitada Eacute fazendo jus a certo sentido de transparecircncia que o

apologista julga indispensaacutevel nas relaccedilotildees entre governantes e governados que ele entatildeo se

prontifica em demonstrar as razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo se misturavam com outros

deuses Com confianccedila ele afirma ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo

veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo

colocamos coroas nos sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo395

O fato de os cristatildeos natildeo concordarem com os sacrifiacutecios pagatildeos natildeo faz sentido

isoladamente aos incocircmodos caluacutenias e perseguiccedilotildees sofridos Parece ser razoaacutevel que por ser

um grupo cujas crenccedilas natildeo estavam bem sistematizadas e que se espalhavam pelo Impeacuterio as

caluacutenias oriundas dos atritos culturais podem ter chegado agraves autoridades e despertado

desconfianccedila396 Calumnia era um crime condenado pelas leis romanas desde o I seacuteculo aC e

se exatamente agraves acusaccedilotildees falsas e maliciosas397 As accedilotildees anticristatildes todavia natildeo podem

ser analisadas em termos generalizantes e absolutos pois passam por diversos momentos

Embora os cristatildeos natildeo representem uma ameaccedila poliacutetica na perspectiva de Pliacutenio por

exemplo o fato de natildeo praticarem o culto ao imperador e a separaccedilatildeo das praacuteticas idoacutelatras da

esfera puacuteblica interseciona a questatildeo poliacutetica agrave religiosa

Seria essa uma boa razatildeo para Justino explicar em seu projeto apologeacutetico por que os

cristatildeos natildeo participavam de sacrifiacutecios a outros deuses e natildeo lhes ofereciam culto Seu

argumento eacute diametralmente oposto a ou]j anqrwpoi [esses homens] que oferecem sacrifiacutecios

aos que eles proacuteprios datildeo forma colocam nos templos e chamam de deuses Ele justifica a

crenccedila cristatilde apenas dizendo ldquosabemos que [esses deuses] satildeo coisas sem alma e mortas que

395 I Apol 242 396 Cf VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006 Passim URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932 397 ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 Passim BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 p 238 Cf I Apol 267

78

natildeo tem forma de Deusrdquo398 (I Apol 91) Afirma tambeacutem que os nomes e figuras que os

deuses assumem satildeo arquitetados pelos maus democircnios de modo que coisas corruptiacuteveis que

necessitam de cuidado recebem o nome de Deus Agrega-se ao seu argumento que os artesatildeos

dos deuses satildeo pessoas dissolutas e que eacute uma estupidez fazer guardas para os deuses nos

templos Na sequecircncia o autor introduz a justificativa cristatilde para esse distanciamento de tais

praacuteticas ldquo aprendemos que Deus natildeo tem necessidade de nenhuma oferta material dos

homens pois vemos que eacute ele quem nos concede tudordquo399 (I Apol 93) Em resposta a essa

benevolecircncia divina espera-se a gratidatildeo humana que soacute pode ser atestada atraveacutes do ldquobom

sensordquo [swfrosunhn] da ldquojusticcedilardquo [dikaiosunhn] do ldquoamor aos homensrdquo [filanqrwpian] e

numa expressatildeo pouco clara em ldquotudo que conveacutem a um Deus que natildeo pode ser chamado por

nenhum nome impostordquo400 (I Apol 101) Enquanto para o apologista os deuses pagatildeos satildeo

criados por matildeos humanas o Deus cristatildeo eacute apresentado como aquele que concederaacute a sua

presenccedila aos dignos Assim Justino demonstra estar certo de que os cristatildeos tecircm um

conhecimento superior ao dos que creem em outros deuses a ponto de se satisfazer em dizer

ldquosabemosrdquo ldquoaprendemosrdquo ou ldquocremosrdquo e isso basta

Se por um lado a perspectiva escatoloacutegica cristatilde do ldquoreinordquo natildeo implicava nenhuma

conspiraccedilatildeo poliacutetica contra os romanos seu iacutempeto proselitista causava tanto rumores quanto

um nuacutemero crescente de conversos Eacute por isso que ateacute meados do seacuteculo II quando Justino

escreve as accedilotildees anticristatildes tecircm suas raiacutezes nas relaccedilotildees interculturais travadas no proacuteprio

processo de expansatildeo da mensagem cristatilde Isso significa que os mecanismos de controle

social empregados contra os cristatildeos pelas autoridades imperiais satildeo requeridos mediante os

problemas locais E pode-se dizer que por ser uma religiatildeo emergente outros como Pliacutenio

natildeo sabiam como proceder diante das denuacutencias e caluacutenias contra esse novo grupo

Os cristatildeos formavam um grupo em expansatildeo que estava no Impeacuterio mas viviam de

modo diferente e procuravam evitar a participaccedilatildeo de todo tipo de praacuteticas contraacuterias agraves

prescriccedilotildees doutrinaacuterias cristatildes Natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo

veneravam os deuses nacionais e seu Deus natildeo pertencia a uma naccedilatildeo mas deveria ser

reconhecido como superior a todos os outros401

398 evpei ayuca kai nekra tauta ginwskomen kai qeou morfhn mh econta cf MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 96 399 Ouv deesqai thj para avnqrwpwn ulikhj prosforaj proseilhfamen ton qeon( auvton pareconta panta orwntej ibid p 96 400 o[as oivkeia qew| evsti( tw| mhdeni ovnomati qetw| kaloumenw| MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 401 Cf MACMULLEN Ramsay Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966 Id Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997

79

Justino insere o seu testemunho pessoal

Eu mesmo quando seguia a doutrina de Platatildeo ouvia as caluacutenias contra os cristatildeos Contudo ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que eacute considerado espantoso comecei a refletir que era impossiacutevel que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres Com efeito que homem amante do prazer intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas poderia abraccedilar alegremente a morte que vai privaacute-lo de seus bens402

Prossegue sua queixa ldquobuscando condenar agrave morte alguns cristatildeos fundados nas

caluacutenias contra noacutes arrastaram tambeacutem escravos meninos e mulheres e por meio de incriacuteveis

tormentos os forccedilam a repetir contra noacutes o que o povo inventardquo403 No entanto ele eacute enfaacutetico

contra esse tipo de opiniatildeo sustentada sobre os cristatildeos ldquonada disso nos diz respeitordquo404

Justino tambeacutem nega que os cristatildeos abusariam de homens e se uniriam destemidamente com

as mulheres Seguindo para o desfecho de seu escrito ele faz uma declaraccedilatildeo reveladora ldquoA

verdade eacute que nos fazem guerra de mil modos exatamente porque ensinamos a fugir de

semelhantes doutrinas e daqueles que praticam tais coisas ou imitam tais exemplos como

mesmo nesse discurso que vos dirigimosrdquo405 Tal declaraccedilatildeo de Justino daacute margem para a

reflexatildeo sobre esse processo de ldquonegativizaccedilatildeordquo da figura do ldquooutrordquo que condena as praacuteticas

que ldquoumrdquo pratica Segundo esse pensador os cristatildeos seriam muitas vezes caluniados por

condenarem as praacuteticas dos outros que em retaliaccedilatildeo se esforccedilariam por difamar os

seguidores do nazareno

Por isso tambeacutem parece significativo considerar que os atritos com os cristatildeos natildeo

satildeo decorrentes de uma preocupaccedilatildeo poliacutetica para minar um potencial grupo subversivo Satildeo

destacados alguns aspectos desses atritos que se remetem agraves caluacutenias e maus comentaacuterios

sobre os cristatildeos que desembocam na estigmatizaccedilatildeo desse grupo Eacute preciso lembrar que o

contexto no qual o discurso de Justino estaacute inserido se refere a meados do II seacuteculo quando o

impacto do estilo de vida dos cristatildeos era sentido apenas em niacuteveis locais ainda que em

diversas regiotildees Os cristatildeos jaacute se encontravam pela Siacuteria-Palestina Egito Aacutesia Menor

Peniacutensula Itaacutelica e outras regiotildees mas o nuacutemero de fieacuteis ainda era muito pequeno diante do

tamanho do Impeacuterio Romano406 O desprezo e o combate por parte dos cristatildeos aos deuses

pagatildeos provocavam ocasionalmente reaccedilotildees e mobilizaccedilotildees contra os proacuteprios cristatildeos Por se

tratar de um grupo distinto com praacuteticas pouco conhecidas as caluacutenias se propagaram como

402 II Apol 121-2 403 II Apol 124 404 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 405 II Apol 126 406 GIBBON Edward Number of Christians in the Empire under Diocletioan and Constantine In _____ The History of the Decline and Fall of the Roman Empire ed JB New York Fred de Fau and Co 1906 pp 337 341

80

uma forma de defesa dos pagatildeos A perseguiccedilatildeo de Nero no I seacuteculo havia aberto precedentes

para a condenaccedilatildeo dos cristatildeos mas sua determinaccedilatildeo foi limitada agrave execuccedilatildeo de seu plano de

acobertar as suspeitas de seu envolvimento no incecircndio de Roma Na primeira metade do II

seacuteculo alguns tumultos procuravam condenar os cristatildeos buscando sem um enquadramento

juriacutedico algo que foi condenado por Adriano na Aacutesia Em outros casos como o que relatou

Pliacutenio a Trajano procurava-se por um crime que condenasse os cristatildeos Desse modo as

acusaccedilotildees tais como canibalismo denuacutencia de ateiacutesmo imoralidades e inclusive de

infidelidade ganhavam forccedila Essas caluacutenias somadas ao precedente neroniano fizeram com

que para muitos como Trajano e Urbico o nomen Christianum assumisse um significado

negativo Essa conotaccedilatildeo negativa no entanto natildeo se instalou apenas em funccedilatildeo das caluacutenias

Conforme destacou Paul Veyne407 ldquoas autoridades natildeo acreditavam que os cristatildeos comiam

criancinhas ou praticavam incesto todos os domingos a atitude polecircmica de Celso a respeito

da nova religiatildeo natildeo fazia alusatildeo a essas praacuteticas considerando-as um fato socialrdquo Se para o

povo em geral o oacutedio e o medo pela estranheza dos cristatildeos faziam-lhes repulsivos para as

autoridades a ausecircncia de participaccedilatildeo nas praacuteticas puacuteblicas ou mesmo a contumaacutecia em natildeo

negar a feacute diante do magistrado faziam com que os pedidos de condenaccedilatildeo fossem acatados

Neste momento cabe destacar que entre os tipos de estigmas destacados por Erving

Goffman408 estatildeo os tribais de raccedila naccedilatildeo e religiatildeo considerados suscetiacuteveis de uma

transmissatildeo por heranccedila e decontaminar outros ao redor Nesses estigmas encontram-se os

seguintes traccedilos socioloacutegicos

un individuo que podiacutea haber sido faacutecilmente aceptado en un intercambio social corriente posee un rasgo que pude imponerse por la fuerza a nuestra atencioacuten u que nos lleva a alejarnos de eacutel cuando lo encontramos anulando el llamado que nos hacen sus restantes atributos Posee un estigma una indeseable diferencia que no habiacuteamos previsto

Essa diferenccedila se torna o elemento fundamental para a praacutetica de vaacuterios tipos de

discriminaccedilatildeo Consciente ou inconscientemente se constroacutei uma teoria do estigma uma

ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do perigo que representa essa pessoa

racionalizando agraves vezes uma animosidade que se baseia em outras diferenccedilas

Goffman409 natildeo deixa de contemplar em sua anaacutelise a possibilidade de sujeitos

estigmatizados permanecerem ilhados protegidos por suas crenccedilas proacuteprias sobre sua

identidade mas ao mesmo tempo em constante contato com os outros Nesse sentido os 407 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 408 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 16 Tr A ldquoum indiviacuteduo que podia ter sido facilmente aceito num intercacircmbio social corrente possui um traccedilo que pode impor-se agrave forccedila a nossa atenccedilatildeo e que nos leva a nos afastarmos dele quando o encontramos anulando a chamada que nos fazem seus ouros atributos Possui um estigma uma indesejaacutevel diferenccedila que natildeo haviacuteamos previstordquo 409 Ibid p 17

81

seguidores da Igreja dos disciacutepulos de Jesus de Nazareacute podiam refugiar-se em suas crenccedilas

proacuteprias a saber seu proacuteprio modo de se autodefinir como ldquocristatildeosrdquo Enquanto o termo

ldquocristatildeordquo eacute capaz de referir-se a algueacutem de uma superstitio ilicita que abusa das crianccedilas que

se une promiscuamente com homens e mulheres que acredita em lendas de um deus

encarnado e nascido de uma virgem cujos fieacuteis se reuacutenem para comer sua carne em reuniotildees

secretas e assim se torna estigma de algueacutem despreziacutevel por outro lado ganha outro

significado para os seguidores do Cristo

Os atritos entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos poderiam surgir em decorrecircncia do exerciacutecio da

anunciaccedilatildeo da mensagem cristatilde ou devido ao apelo agrave mudanccedila de conduta e implementaccedilatildeo

de novos haacutebitos O caso mais emblemaacutetico apontado por Justino eacute o que aparece na II

Apologia

Certa mulher vivia com o seu marido homem dissoluto e antes de se tornar cristatilde se entregara agrave vida licenciosa Todavia logo que conheceu os ensinamentos de Cristo natildeo soacute se tornou casta como procurava tambeacutem persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme a reta razatildeo Ele poreacutem obstinado na dissoluccedilatildeo com a sua conduta desanimou a sua mulher [] Depois disso para natildeo se tornar cuacutemplice de tais iniquidades e impiedades permanecendo no matrimocircnio e partilhando o leito e a mesa com tal homem ela [] separou-se [] Despeitado [] [] a acusou diante dos tribunais dizendo que ela era cristatilde [] natildeo podendo na ocasiatildeo fazer nada contra a mulher voltou-se contra Ptolomeu que Urbico chamara ao seu tribunal por ter sido mestre dela nos ensinamentos de Cristordquo410

A uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se era cristatildeo Apoacutes

confessar foi condenado ao supliacutecio Justino ainda conta que certo Luacutecio advertiu a Urbico e

do mesmo modo foi conduzido ao supliacutecio Um terceiro sobreveio mas tambeacutem foi

condenado agrave morte411

Se fosse um caso isolado esse episoacutedio jamais poderia servir como pista para

fundamentar a hipoacutetese de que significativamente os atritos com os cristatildeos podem surgir

tambeacutem devido agrave condenaccedilatildeo das praacuteticas dos natildeo-cristatildeos Mas outras evidecircncias se

mostram Os Evangelhos do Novo Testamento (Mt 1413-12 Mc 614-28 Lc 318-20 97-9)

afirmam que Joatildeo Batista foi para a prisatildeo por repreender ao rei Herodes que vivia com

Herodiacuteades a mulher de seu irmatildeo e por outros crimes cometidos pelo governante Flaacutevio

Josefo escreveu que Herodes temeu que o povo fosse influenciado para uma sublevaccedilatildeo e por

isso encaminhou Joatildeo Batista para o caacutercere412 Embora pareccedilam discrepantes pode haver

alguma convergecircncia nas duas versotildees O ldquoprofetardquo Joatildeo Batista devia fazer repreensotildees

410 II Apol 2 411 II Apol 216-20 412 Ant Jud II 52

82

puacuteblicas condenando os haacutebitos do rei Herodes e a sua uniatildeo com Herodiacuteades o que poderia

despertar alguma inseguranccedila quanto agrave reaccedilatildeo do povo

Outras ocorrecircncias podem ser identificadas Quando Paulo repreendeu um espiacuterito de

adivinhaccedilatildeo de uma jovem escrava quando estava em Filipos na Macedocircnia os patrotildees da

moccedila se irritaram pois exploravam aquela habilidade da jovem para lucrar Por isso levaram

Paulo e seu companheiro Silas aos magistrados e disseram ldquoEsses homens estatildeo provocando

desordem em nossa cidade satildeo judeus e pregam costumes que a noacutes romanos natildeo eacute

permitido aceitar nem seguirrdquo A multidatildeo se levantou contra Paulo e Silas e depois disso

foram accediloitados e presos sem julgamento formal 413 Em Eacutefeso os artesatildeos teriam visto na

doutrina de Paulo mais do que uma ofensa agrave religiatildeo uma ameaccedila a seus negoacutecios Conta-se

que um ourives chamado Demeacutetrio que fabricava miniaturas em prata no templo de Diana

reuniu alguns artesatildeos e outros profissionais do ramo e disse-lhes

Amigos sabeis que o nosso bem-estar proveacutem dessa nossa atividade [] esse tal de Paulo com sua propaganda desencaminha muita gente natildeo soacute em Eacutefeso mas em quase toda a Aacutesia Ele afirma que natildeo satildeo deuses os produtos de matildeos humanas Natildeo eacute soacute a nossa profissatildeo que corre o risco de cair em descreacutedito mas tambeacutem o templo da grande deusa Diana acabaraacute sendo desacreditado e assim ficaraacute despojada de majestade aquela que toda a Aacutesia e o mundo inteiro adoram414

Segundo o livro de Atos dos Apoacutestolos esses homens furiosos arrastaram os

companheiros de Paulo para o teatro da cidade O tumulto se espalhou

Esses tipos de atritos envolviam o encobrimento de uma praacutetica moralmente

condenada pelos seguidores da Igreja e manifestavam a defesa dos interesses pessoais ou de

determinados grupos que sofreriam com as possiacuteveis mudanccedilas nos costumes e tradiccedilotildees

Neste uacuteltimo caso aparece algo distinto a menccedilatildeo da representaccedilatildeo de uma divindade para

uma determinada regiatildeo Diana para a Aacutesia especialmente

Yi-Fu Tuan415 aponta que nas religiotildees que vinculam o povo a um lugar os deuses

parecem estimular nos seus fieacuteis um forte sentido do passado de linhagem e continuidade no

lugar O culto aos ancestrais eacute o fundamento de tal praacutetica religiosa Atraveacutes deste sentido

histoacuterico de continuidade busca-se algum tipo de ldquoseguranccedilardquo Entre o I e II seacuteculos dC

deuses romanos e gregos satildeo conhecidos por povos de culturas diferentes mas nenhum deles

exige exclusividade O Deus dos judeus figura nesse cenaacuterio de deuses e homens e agraves vezes

se confunde com deus nenhum Os seguidores de Cristo propagadores desse mesmo Deus

mediante a crenccedila no seu messias paradoxalmente tambeacutem satildeo tachados de ateus algumas

vezes Poreacutem enquanto os ldquooutrosrdquo natildeo veem o Deus cristatildeo os cristatildeos natildeo veem outro deus

413 At 1617-40 414 At 1923-27 415 Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983 p 168

83

aleacutem do seu proacuteprio Desse modo a negaccedilatildeo dos deuses alheios pode ser interpretada por

muitos como profunda agressatildeo agraves crenccedilas que por um periacuteodo indeterminado serviram para

explicar e inspirar a vida das pessoas que nasceram cresceram e morreram em determinado

local

A estigmatizaccedilatildeo dos ldquocristatildeosrdquo eacute portanto em grande medida uma reaccedilatildeo das

pessoas que satildeo alvo dos cristatildeos no exerciacutecio de sua feacute Pois esses cristatildeos ndash dos quais

Justino eacute um ndash manifestam o repuacutedio a tudo aquilo que se associa a uma moral que lhes seja

estranha e que se vincule agrave veneraccedilatildeo de outros deuses que natildeo sejam o Deus do seu Cristo

Diante das reaccedilotildees adversas que lhes satildeo imputadas sob a forma de duras penas e

condenaccedilotildees Justino teologiza o seu estigma Isso natildeo eacute uma invenccedilatildeo sua Talvez lhe caiba o

meacuterito de tecirc-lo feito habilidosamente poreacutem haacute indiacutecios desse procedimento anos antes de

seus escritos

Na I Epiacutestola de Pedro (413-1416) o autor frisa a gloacuteria do sofrimento dos cristatildeos

nas perseguiccedilotildees

alegrai-vos por participar dos sofrimentos de Cristo para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua gloacuteria Se sofreis injuacuterias por causa do nome de Cristo sois felizes pois o Espiacuterito da gloacuteria o Espiacuterito de Deus repousa sobre voacutes [] Se poreacutem algueacutem sofrer por ser cristatildeo natildeo se envergonhe Antes glorifique a Deus por este nome

Antes ainda eacute Paulo quem permitiraacute um trocadilho didaacutetico para que melhor se

compreenda essa formulaccedilatildeo teoloacutegica por traacutes do sofrimento dos fieacuteis da Igreja Ao finalizar

sua Epiacutestola aos Gaacutelatas (617) escreve ldquo eu trago em meu corpo as marcas [stigmata] de

Cristordquo416 Como o proacuteprio Goffman observou para os gregos estigma significava

basicamente algum tipo de signo ou marca na pele417 Paulo evidentemente se refere aos sinais

do sofrimento enfrentado devido agraves perseguiccedilotildees sofridas no exerciacutecio do seu apostolado Natildeo

existe nenhuma ligaccedilatildeo entre essa passagem e o discurso de Justino O que eacute preciso notar

atentamente eacute que assim como Paulo transforma seus estigmas em seu testemunho na

perspectiva de Justino a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute representada como ldquoas marcasrdquo de sua

identidade que se pretende afirmar Essa identidade por ele afirmada eacute distinta dos devaneios

caluniosos que lhes satildeo associados pelos seus opositores Ser cristatildeo para Justino eacute a razatildeo de

natildeo serem perseguidos e ao mesmo tempo o motivo pelo qual satildeo perseguidos A

416 Versatildeo grega evgw gar ta stigmata tou Kuriou VIhsou evn tw| swmati mou bastazw ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) [Bible Work 5 Software 2002] 417 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 11 Para maiores informaccedilotildees sobre o significado do termo estigma cf LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940

84

perseguiccedilatildeo seraacute interpretada como uma reaccedilatildeo dos ldquomaus democircniosrdquo contra os ldquoverdadeiros

cristatildeosrdquo como seraacute examinado no proacuteximo capiacutetulo

Seus acusadores estariam movidos por paixatildeo irracional e ldquoaguilhoados por democircnios

perversosrdquo418 por isso natildeo conseguiam enxergar a verdade anunciada por esses cristatildeos

Mesmo tendo grande responsabilidade na ocultaccedilatildeo dessa verdade os democircnios natildeo satildeo os

uacutenicos culpados Escreve Justino a respeito dos judeus

As outras naccedilotildees natildeo tecircm tanta culpa da iniquidade que se comete contra noacutes e contra Cristo como voacutes que sois causa do preconceito injusto que elas tecircm contra ele e contra noacutes que viemos dele [] escolhestes homens especiais de Jerusaleacutem e os mandastes por todo o mundo a fim de espalhar que havia aparecido uma iacutempia seita de cristatildeos e espalharam caluacutenias que todos aqueles que natildeo vos conhecem repetem contra noacutes419

Os judeus tecircm uma parcela de responsabilidade pelos preconceitos e caluacutenias herdados

pelos gentios Em vaacuterios episoacutedios no livro dos Atos dos Apoacutestolos haacute a mesma disposiccedilatildeo

cristatilde para atribuir aos judeus a culpa pelas delaccedilotildees agraves autoridades romanas para reclamar

dos cristatildeos No entanto eacute pouco provaacutevel que o apologista assim sintetize a causa das

caluacutenias e puniccedilotildees contra os cristatildeos Mas haacute uma disposiccedilatildeo por parte do apologista em

afastar os cristatildeos dos judeus Semelhantemente Justino tambeacutem natildeo demonstra nenhuma

simpatia por aqueles que ele chama de ldquocristatildeos soacute de nomerdquo

Sobre esses que natildeo viviam como Cristo teria ensinado o filoacutesofo orienta que ldquosejam

declarados como natildeo-cristatildeosrdquo420 por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de

Cristo Para os pagatildeos provavelmente natildeo haveria distinccedilatildeo entre esses grupos Justino

poreacutem chama a atenccedilatildeo para o fato de que esses satildeo denominados segundo o nome de quem

promoveu cada doutrina especiacutefica Eram eles os marcionistas valentinianos basilidianos

saturnilianos e com outros nomes421

Um dos argumentos de que a accedilatildeo dos ldquodemocircnios perversosrdquo move seus opositores

contra os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo eacute que os cristatildeos dessas outras ldquoheresiasrdquo natildeo satildeo perseguidos

pelas autoridades422 Quanto a esses ldquooutrosrdquo pelos quais o apologista natildeo demonstra

nenhuma simpatia sua recomendaccedilatildeo eacute que sejam punidos423

Os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo segundo Justino satildeo aqueles que estatildeo prontos a confessar

que satildeo cristatildeos a ponto de padecerem Desse modo recorrendo ao trocadilho didaacutetico

desenvolvido a partir da fala paulina esses homens de feacute colocam-se agrave disposiccedilatildeo para

418 I Apol 51ss 419 Diaacutelogo com Trifatildeo 171 420 I Apol 168 421 Diaacutelogo com Trifatildeo 355-6 422 I Apol 267 423 I Apol 1614

85

receber os ldquoestigmas de Cristordquo a saber as marcas das perseguiccedilotildees sobre seus corpos em

razatildeo de suas crenccedilas Satildeo persuadidos a crer que a verdadeira recompensa seraacute atribuiacuteda para

a vida eterna que em muito excede ao sofrimento transitoacuterio desse mundo Cabe-lhes

anunciar e testemunhar a feacute a todos mesmo sob a insiacutegnia das tribulaccedilotildees Por isso Justino

declara

Decapitam-nos pregam-nos em cruzes atiram-nos agraves feras agrave prisatildeo ao fogo e nos submetem a todo tipo de torturas Todavia estaacute agrave vista de todos que natildeo apostatamos de nossa feacute Ao contraacuterio quanto maiores satildeo os nossos sofrimentos mais ainda se multiplicam os que abraccedilam a feacute e a piedade pelo nome de Jesus424

Essa missatildeo cristatilde implica tambeacutem em buscar convencer aos seus opositores de que

os ldquocristatildeosrdquo natildeo deviam ser perseguidos simplesmente por denominarem-se ldquocristatildeosrdquo

33 Sobre as leis e imoralidades

Justino faz saber que a confissatildeo de cristianismo diante de um magistrado acarretava a

pena de morte425 Isto eacute ser ldquocristatildeordquo poderia implicar na condenaccedilatildeo agrave pena de morte426

Uma das interrogaccedilotildees centrais desses escritos de Justino eacute sobre o fato de os cristatildeos

serem condenados por confessarem esse nome Seria um absurdo pensar que os romanos

condenariam os membros dessa superstitio simplesmente por sustentarem um nome e eacute

justamente esse absurdo que o apologista busca destacar para ridicularizar o procedimento dos

magistrados Na verdade os acusados de cristianismo natildeo eram condenados apenas pelo

ldquonomerdquo mas sim pelo que ele representava uma superstitio nova maleacutefica depravada e

excessiva que envolvia os cristatildeos em flagitia que sustentava certo desprezo pela religiatildeo

tradicional Mas pelo fato de natildeo haver uma lei universal para este caso os governantes

tinham liberdade para julgar as ocorrecircncias de modo particular As recomendaccedilotildees de Trajano

e Adriano ao dispensarem a busca pelos cristatildeos limitaram os processos a apenas denuacutencias

formais A nova religiatildeo ainda natildeo se mostrava um problema seacuterio para o Impeacuterio Eacute provaacutevel

que essas medidas visem solucionar os atritos e inibir os conflitos locais ocasionados pelas

diferenccedilas religiosas O caraacuteter flexiacutevel do processo que permitia que o acusado mudasse de

ideia quanto a sua religiatildeo no meio do processo e recebesse a absolviccedilatildeo eacute o elemento

fundamental para se argumentar que os cristatildeos eram condenados pelo ldquonomerdquo

424 Dialogo com Trifatildeo 110 4 425 I Apol 81-2 No I111 lecirc-se ldquoconfessamos ser cristatildeos sabendo como sabemos que tal confissatildeo traz consigo a pena de morterdquo 426 ldquo e nos tiram a vida sem termos cometido crime algumrdquo (I241) Mas o consolo dos fieacuteis estaacute na feacute ldquo aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis fazerrdquo (I456)

86

Justino deseja que os romanos compreendam a maneira de pensar dos cristatildeos e que se

desvencilhem da ideia negativa sobre os fieacuteis Desse modo depois da exposiccedilatildeo da sua I

Apologia ele escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da verdade

respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees despreze-as Natildeo

decreteis poreacutem pena de morte como contra inimigos contra aqueles que nenhum crime

cometemrdquo427

Como jaacute foi mencionado no Capiacutetulo II dessa dissertaccedilatildeo Justino procura alinhar sua

Apologia ao rescrito de Adriano o qual ele interpreta convertendo-o sutilmente a favor dos

cristatildeos

Noacutes vos pedimos portanto que sejam examinadas accedilotildees de todos os que vos satildeo denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo ter cometido nenhum crime428

Mesmo assim o apologista sustenta que sua reclamaccedilatildeo natildeo estaacute fundamentada no rescrito de

Adriano mas em um senso de justiccedila que permeia sua peticcedilatildeo429

Sua interpretaccedilatildeo considera que mediante as obras dos democircnios perversos os cristatildeos

satildeo buscados e condenados agrave morte devido a caluacutenias O apologista aponta atentados contra

escravos meninos e mulheres obrigando-os a confessarem coisas falsas430 Segundo sua

leitura teoloacutegica desses eventos os cristatildeos eram acusados de tais praacuteticas justamente porque

as condenavam e assim fazendo incomodam aqueles que procediam dissolutamente431

Tendo em vista que a razatildeo para que as autoridades acatassem as denuacutencias dirigidas

contra os cristatildeos estava no fato de que esta superstitio era uma ameaccedila agrave ordem em funccedilatildeo da

sua expectativa sobre o ldquoreino de Deusrdquo Justino inclui no seu projeto apologeacutetico uma

explanaccedilatildeo sobre a contribuiccedilatildeo cristatilde ao estabelecimento da paz no Impeacuterio Natildeo se podia

esperar que uma religiatildeo estrangeira principalmente oriunda de uma naccedilatildeo problemaacutetica

como a dos judeus pudesse representar algum benefiacutecio A sua proacutepria indefiniccedilatildeo enquanto

religiatildeo dificultaria essa possibilidade e o seu caraacuteter exclusivista acentuaria os atritos sociais

Mas o pensador de Flaacutevia Neaacutepolis eacute direto em dizer

Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo e salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que

427 I651 428 I74 429 ldquo natildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo (I683) 430 II124 431 II12

87

caminharia para a sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos e se adornaria de virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos432

A proposta de Justino apresenta o valor das crenccedilas cristatildes O desenvolvimento da sua

teoria seraacute analisado com mais detalhes no proacuteximo capiacutetulo Neste momento analisar-se-aacute a

reprovaccedilatildeo da moralidade dos natildeo-cristatildeos Segundo Paul Veyne433 no mundo greco-romano

ldquomoral e religiatildeo estavam parcialmente ligadas porque se pedia aos deuses que protegessem

os bons e castigassem os maus Deuses e homens julgavam da mesma maneira os bons e

maus pois compartilhavam da mesma moralrdquo Para os deuses a moral dos mortais tambeacutem

natildeo interessava A opiniatildeo humana sobre os deuses tambeacutem variava desde a atribuiccedilatildeo de

virtudes ateacute a laacutestima por serem egoiacutestas e mercenaacuterios Natildeo era possiacutevel pensar nos deuses

como senhores vigilantes da justiccedila No entanto os deuses poderiam vingar as injusticcedilas434

Natildeo se deve pensar que a religiatildeo de gregos e romanos era estaacutetica Satildeo identificadas

transformaccedilotildees durante os seacuteculos A filosofia as mudanccedilas culturais e a paideia

relacionaram a divindade ao sumo bem e acentuou os contornos entre a religiosidade das

pessoas comuns e agrave dos membros das classes elevadas e dos letrados435

Varratildeo436 atribuiu trecircs concepccedilotildees para os deuses os deuses das cidades os deuses

vistos pelos filoacutesofos e os deuses das narrativas dos poetas Segundo Paul Veyne437

inspirados por Euriacutepides os estoicos estavam convencidos de que os deuses natildeo podiam se

portar mal Os deuses dos filoacutesofos se afastavam das narrativas mitoloacutegicas anteriores para

assumirem agraves vezes o aacutepice da virtude Para Platatildeo os deuses eram a medida de todas as

coisas e natildeo seria conveniente receberem oferendas de pessoas desonradas438 A relaccedilatildeo entre

moral e religiatildeo passou por transformaccedilatildeo mas essa mudanccedila ficou restrita a alguns ciacuterculos

sociais Para alguns criacuteticos e pensadores o temor religioso seria uacutetil para a contensatildeo

humana Mas essa natildeo era uma opiniatildeo comum Isoacutecrates (viveu de 436 a 338 aC) escreveu

que ldquoaqueles que creem que os favores dos deuses e suas puniccedilotildees satildeo maiores do que

realmente satildeo prestam um grande serviccedilo agrave sociedaderdquo439 Mais tarde Poliacutebio (viveu entre 203

aC ndash 120 aC) ao comparar os romanos aos gregos tambeacutem destacou o valor das crenccedilas

religiosas romanas no estabelecimento da ordem

432 I121-3 433 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 220 434 Ibid p 239 435 BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 pp 305-332 436 Apud Agostinho de Hipona Cidade de Deus IV311 Plutarco se referia a trecircs visotildees sobre os deuses a dos filoacutesofos poetas e legisladores (Amatorius XVIII10765c) 437 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 256 438 Leis IV716c717 439 Busires 1124

88

muitos poderiam pensar que isso eacute irresponsaacutevel mas [] seu objetivo eacute usar isso como forma de controle sobre as pessoas comuns Se era possiacutevel formar um Estado inteiro de filoacutesofos isso seria no entanto desnecessaacuterio Mas vendo que as multidotildees satildeo inconstantes cheios de desejos desregrados iras irracionais e paixatildeo violenta o uacutenico recurso eacute mantecirc-los sob controle pelo terror misterioso e efeitos cecircnicos desse tipo440

Ainda nesse sentido ele afirma que tambeacutem natildeo era sem sentido que os antigos

promoviam entre as pessoas simples diversas opiniotildees sobre os deuses e a crenccedila no Hades

Tendo em vista essa importante funccedilatildeo da religiatildeo na manutenccedilatildeo da ordem Poliacutebio pensa

que aqueles que em seu tempo abriam matildeo da religiatildeo agiram de forma precipitada e

insensata Assim ele destaca

Esta eacute a razatildeo por que aleacutem de tudo se aos estadistas gregos eacute confiada uma uacutenica moeda embora protegidos por dez funcionaacuterios de vigilacircncia muitos selos e o dobro de testemunhas jaacute natildeo podem ser induzidos a manter a feacute enquanto entre os romanos em suas magistraturas e embaixadas homens tecircm cuidado de grandes quantias de dinheiro e ainda por puro respeito a seus juramentos manteacutem a feacute intacta E em outras naccedilotildees eacute raro encontrar um homem que meta suas matildeos fora do eraacuterio puacuteblico e eacute inteiramente puro em tais assuntos Mas entre os romanos eacute raro encontrar um homem cometendo tal crime441

A necessidade de uma sociedade ter mecanismos para estabelecer a ldquoconfianccedilardquo ou a

ldquoboa feacuterdquo entre as relaccedilotildees humanas eacute sublinhada diante dos efeitos dos questionamentos

cultivados pela filosofia e do proacuteprio ideal poliacutetico-filosoacutefico que poderia diminuir o valor da

religiatildeo

No seacuteculo II dC eacute Justino quem olha as mais distintas crenccedilas do Impeacuterio com um

tom de superioridade proporcionada pela sua proacutepria religiatildeo Mas haacute um espaccedilo de

aproximadamente trecircs seacuteculos entre Poliacutebio por exemplo e Justino No II seacuteculo dC a

filosofia jaacute havia se tornado um elemento essencial da cultura romana e o fluxo das suas

interrogaccedilotildees e das suas performances puacuteblicas acarretavam algumas transformaccedilotildees de

caraacuteter ideoloacutegico na sociedade Como escreveu Paul Veyne

o povo nunca deixou de crer e rezar Mas em que um romano culto mdash um Ciacutecero um Horaacutecio um imperador um senador um notaacutevel mdash podia crer dentro dessa fantasmagoria dos deuses ancestrais A resposta eacute categoacuterica natildeo podia crer em nada leu Platatildeo e Aristoacuteteles que quatro seacuteculos antes tampouco acreditavam Virgiacutelio alma religiosa acredita na Providecircncia mas natildeo nos deuses de seus proacuteprios poemas mdash Vecircnus Juno ou Apolo442

Justino mostra algumas razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo compactuavam com os

demais deuses e com a religiatildeo tradicional romana e ainda aponta aquilo que considera ser o

caraacuteter racional da verdadeira filosofia isto eacute da religiatildeo cristatilde Por isso ele escreve ldquoas

440 Historias VI5614 441 Ibid 442 Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197

89

nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo443 Poreacutem

como ele proacuteprio diz ldquonos condenam sem saber se praticamos as coisas vergonhosas de que

nos acusam comprazem-se com deuses que as fizeram e ainda exigem dos homens coisas

semelhantesrdquo444 Desse modo o apologista destaca a incoerecircncia em se pensar que os povos

seriam contidos por temor a deuses tatildeo imoderados quanto os proacuteprios homens em suas

paixotildees Por outro lado tambeacutem o temor ao Imperador ou a fidelidade demonstrada por

meio do culto imperial satildeo apontados como algo que representa uma forma superficial de

controle pois como Justino escreve ldquoaqueles que agora por medo das leis e dos castigos por

voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los [] sabem que sois homens e

que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutesrdquo445 Esse ldquomedordquo das leis era um temor ao que eacute

humano Desse modo Justino sublinha que a ausecircncia de mecanismo superior de controle

como a absorccedilatildeo da crenccedila em um Deus onisciente como o Deus dos cristatildeos favorecia a

desobediecircncia agraves leis

O apologista apresenta um mecanismo de controle que julga ser muito mais eficiente

ldquose se inteirassem e se persuadissem de que natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma

accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os

modos como voacutes mesmos haveis de convirrdquo Por essa razatildeo ele considera que a expansatildeo do

cristianismo contribuiria para que as pessoas agissem de modo moderado e respeitoso de

acordo com a moral cultivada na comunidade e ainda em atentar fidelidade ao Impeacuterio

Esse ldquotemorrdquo religioso proveniente de uma crenccedila distinta da religiatildeo tradicional se

enquadra no que os romanos chamavam de superstitio As superstitiones e os cultos locais

eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob atenccedilatildeo com destacam Mary Beard John North e

Simon Price446 as controveacutersias poderiam desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade

romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito em 172 a 173 aC447 na incursatildeo da Traacutecia que

foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que conseguiu seguidores448 entre os druidas da

Gaacutelia profecias indicavam que o incecircndio de Roma era o sinal do fim do domiacutenio romano

sobre aquela regiatildeo fazendo com que uma revolta nas fronteiras do Reno fosse animada por

essas profecias449 e as revoltas judaicas contemporacircneas a Justino satildeo outro exemplo

443 II153 444 II142 445 I123 446 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 447 Cassius Dio Hist Rom LXXII4 448 Ibid LI255 LIV345-7 449 Taacutecito Historias IV546165 V2224

90

Todavia o apologista procura convencer de que os cristatildeos natildeo suportavam nenhum tipo de

ameaccedila agrave sociedade sob o domiacutenio romano

Sua estrateacutegia apologeacutetica portanto natildeo pode negar que as crenccedilas cristatildes reprovavam

uma seacuterie de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais caracterizam um

quadro da organizaccedilatildeo social No entanto essa nova religiatildeo deveria ser encarada como uma

dessemelhanccedila absoluta Vaacuterios pontos de contato entre a cultura pagatilde e a doutrina dos

cristatildeos satildeo estabelecidos para convencer sobre esse aspecto450 Os deuses e a religiatildeo pagatilde

deveriam ser rejeitados por serem incoerentes com a moralidade segundo as narrativas

antigas A feacute cristatilde eacute apresentada como um mecanismo eficaz de controle e de organizaccedilatildeo

social que exige uma mudanccedila subjetiva antes de um reflexo socialmente objetivo Por isso

segundo seu ponto de vista a condenaccedilatildeo dos cristatildeos acatada pelos governantes locais eacute uma

forma equivocada de manter a ordem Em grande medida essa forma de controle que emerge

dos clamores reativos populares estaria impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do

nomen Christianum sem conhecerem de fato a forma de pensar dos cristatildeos Por isso Justino

procura afirmar que os cristatildeos satildeo os melhores auxiliadores na manutenccedilatildeo da paz no

Impeacuterio

450 Esse ponto seraacute analisado no proacuteximo capiacutetulo

91

CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM SOCIAL

Justino combate agrave forma de controle que recrimina os cristatildeos e que segundo seu

ponto de vista tem fundamento nas accedilotildees dos democircnios Eacute dentro do seu objetivo apologeacutetico

que emerge sua tese da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem no Impeacuterio Eacute a

primeira vez que a religiatildeo emergente dos cristatildeos aparece assumidamente como um

instrumento a favor do Impeacuterio Natildeo havia nenhuma razatildeo para esse tipo de preocupaccedilatildeo por

parte dos cristatildeos A tese da contribuiccedilatildeo cristatilde agrave manutenccedilatildeo da ordem vem em oposiccedilatildeo agrave

ideia de que os cristatildeos seriam uma ameaccedila social Todavia eacute permitido supor que diante da

mira dos ldquoperseguidoresrdquo locais nesse periacuteodo natildeo era uacutetil jurar fidelidade ao Impeacuterio

As caluacutenias e a proacutepria inclinaccedilatildeo a repudiar as superstitones estrangeiras faziam com

que os cristatildeos fossem reprimidos em diferentes niacuteveis pelos pagatildeos do Impeacuterio Justino

apresenta uma forma de controle cristatilde que julga ser mais eficiente do que aquelas pagatildes

empregadas contra os proacuteprios cristatildeos A base de tal eficiecircncia estaacute no caraacuteter de sua

doutrina que quando absorvida deveria conduzir os crentes a uma conduta pautada por regras

morais que estabelecem precircmio ou castigo eterno a todos depois da morte de acordo com seu

meacuterito em vida A doutrina cristatilde eacute uma incentivadora da moral

Ao recorrer ao imperador o apologista natildeo apenas reafirma a fidelidade dos cristatildeos

mas expotildee o caraacuteter de sua doutrina e procura ser o mais convincente possiacutevel sobre a

razoabilidade de suas crenccedilas

41 O controle absoluto do controlador absoluto

Em primeiro lugar Justino sustenta que os cristatildeos satildeo os ldquomelhores ajudantes e

aliados para a manutenccedilatildeo da pazrdquo devido ao caraacuteter das suas doutrinas como a de que ldquonatildeo

eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que

cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildeesrdquo (I Apol

121) Segundo essa perspectiva a crenccedila em um Deus onisciente seria capaz de induzir os

que a deteacutem a se comedirem Nesse sentido ele destaca ldquoningueacutem escolheria por um

momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se

92

conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e

livrar-se dos castigosrdquo (I Apol 122) Esse mecanismo de controle apresenta uma estrutura

limitadora das accedilotildees humanas que eacute dependente do conhecimento das normas que determinam

a recompensa e o castigo O traccedilo marcante desse mecanismo eacute que existe um vigilante

constante de quem natildeo se pode esconder absolutamente nada nem mesmo as intenccedilotildees

Haacute certa dependecircncia do sentimento de temor pessoal diante da ideia de vigilacircncia

constante pelos olhos infaliacuteveis de um ser superior que julgaraacute com rigor as accedilotildees humanas de

uma vez por todas num momento aguardado mas desconhecido Todavia para que ele

funcione eacute preciso que exista um miacutenimo de plausibilidade nas ideias que sustentam o

controle absoluto de Deus Ou seja ningueacutem temeria algo que natildeo fizesse o miacutenimo sentido

Aqueles que combatiam os cristatildeos natildeo se intimidavam diante do Deus cristatildeo e em alguns

casos acreditavam estar sendo piedosos combatendo as crenccedilas descabidas desse novo grupo

Atentando para essas circunstacircncias Justino se empenha em mostrar correlaccedilotildees entre

elementos do pensamento cristatildeo e outros comuns agraves culturas no Impeacuterio

A ameaccedila do castigo no poacutes-morte eacute fundamental na estrutura da doutrina da justiccedila

divina Por isso para que sua estrateacutegia de persuasatildeo funcione ele se empenha em demonstrar

ldquoas evidecircnciasrdquo da vida eterna ou do poacutes-morte O apologista admite que ldquose a morte

terminasse na inconsciecircncia seria uma boa sorte para todos os malvadosrdquo (I181) uma

reflexatildeo comum tambeacutem a Plutarco (Consolatio ad Apollonium 11107c) Todavia Justino

manteacutem que a consciecircncia permanece e que a conduta humana eacute passiacutevel de puniccedilatildeo ou

precircmio em um momento aleacutem da vida451 Sua linha de pensamento sobre esse assunto

representa apenas uma das correntes de pensamento que emergiam entre os cristatildeos no seacuteculo

II452

Para minimizar qualquer exotismo no reconhecimento dessa doutrina cristatilde ele

menciona a necromancia453 as visotildees obtidas atraveacutes de crianccedilas puras454 os que satildeo

451 Como Platatildeo discorrendo sobre a vida apoacutes a morte em Phaedo 107c 452 Cf POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005 passim 453 Justino usa o termo nekuomanteiaj que deve ser entendido como ldquoconsulta aos mortosrdquo cf I183 454 Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p178) editou essa passagem da seguinte forma ai` avdiafqorwn paidwn evpopteuseij [les divinations faites sur les entrailles drsquoenfants innocents] Seu texto grego foi fiel ao MS A que sugere o termo avdiafqorwn no lugar de diafqorwn mas a versatildeo em francecircs se distanciou muito do significado estrito Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 59) observou a nota marginal do MS A e acrescentou tambeacutem a conjunccedilatildeo div proporcionando a seguinte frase ai` div avdiafqorwn paidwn evpopteuseij Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 123) apresentam uma correccedilatildeo que parece ser a mais convincente Em vez de substituir diafqorwn por avdiafqorwn eles simplesmente dividem a palavra que aparece no MS A em duas div avfqorwn paidwn evpopteuseij [visions obtained through uncorrupted children] Natildeo eacute possiacutevel dizer se se trata de uma

93

chamados entre os magos de espiacuteritos dos sonhos e espiacuteritos assistentes para assim tentar

estabelecer que mesmo depois da morte as almas conservam a consciecircncia Os casos de

possessatildeo ou loucura quando segundo sua concepccedilatildeo sobre o que se pensava naquela eacutepoca

alguns eram ldquoarrebatados e agitados pelas almas dos mortosrdquo tambeacutem satildeo alocados ao lado

dos oraacuteculos de Anfiloco de Dodona de Piton e outros semelhantes A descida de Ulisses ateacute

a regiatildeo dos mortos na obra de Homero (Odisseia10101 ndash 111ss) as doutrinas de escritores

como Empeacutedocles e Pitaacutegoras Platatildeo e outros que disseram coisas parecidas tambeacutem satildeo

destacadas

A ideia de uma consciecircncia apoacutes a morte fiacutesica natildeo era algo estranho no mundo greco-

romano da eacutepoca de Justino Mas o apologista apresenta uma elaboraccedilatildeo teoloacutegica sobre o

ldquocastigo ou salvaccedilatildeo eternardquo que deveria desempenhar uma funccedilatildeo coercitiva sobre as pessoas

em geral Essas ideias cristatildes satildeo herdeiras de elementos do pensamento judaico jaacute sob a

influecircncia do helenismo Desse modo satildeo encontrados aspectos comuns ao judaiacutesmo como o

da justiccedila divina e outros relativos a outras culturas como a existecircncia da alma455

Segundo Dag Oistein Endsjo456 os judeus sofreram a influecircncia da cultura grega sobre

as ideias do poacutes-morte sem que isso represente uma planificaccedilatildeo das duas culturas A

correspondecircncia entre alguns elementos aparece por exemplo na traduccedilatildeo de lw a v para avdej

na LXX proporcionando a associaccedilatildeo entre a ldquosepulturardquo e o ldquosubmundo dos mortosrdquo

Associaccedilatildeo que remonta a Odisseia de Homero e se estende para niacuteveis mais complexos

Conforme tambeacutem considerou E D Wright457 judeus e cristatildeos emprestaram alguns

elementos da cultura greco-romana para a elaboraccedilatildeo de suas cosmologias Mas as

consulta de crianccedilas vivas ou mortas mas poder haver alguma relaccedilatildeo com as passagens sobre as ldquocrianccedilas purasrdquo nos Papyri Graecae Magicae e principalmente com a Historia Eclesiaacutestica (III1311-12) de Soacutecrates 455 Devido aos objetivos desta pesquisa seraacute necessaacuterio ser bastante seletivo neste ponto A anaacutelise do desenvolvimento das ideias cristatildes sobre a vida apoacutes a morte exigiria uma anaacutelise de suas raiacutezes na cultura egeia entre os egiacutepcios mesopotacircmicos no zoroastrismo na cultura grega em geral e nas vaacuterias fases da religiatildeo dos judeus As correlaccedilotildees estabelecidas neste capiacutetulo satildeo aprofundamentos de toacutepicos sugeridos pelos proacuteprio Justino no decorrer de sua anaacutelises Para mais informaccedilotildees cf SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946 OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992 COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987 DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000 SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006 456 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 457 The History of Heaven New York Oxford University Press 2000 p 139

94

correlaccedilotildees se estendem tambeacutem para com a cultura persa que segundo Alan Segal458

apresentava aspectos muito atrativos ao povo simples

O desenvolvimento das ideias sobre o poacutes-morte entre os judeus eacute complexa Haacute

algum consenso entre os estudiosos de que a ideia de ldquoressurreiccedilatildeordquo tenha aparecido

tardiamente no judaiacutesmo Mas as Escrituras judaicas apresentam referecircncias a algum tipo de

existecircncia apoacutes a morte fiacutesica Um caso emblemaacutetico acontece quando o rei Saul procurou

uma b A a ecircb A a ecircb A a ecircb A a ecirc-t l[]B [evocadora de espiacuteritos] para poder falar com o falecido profeta Samuel (I

Samuel 281-7) praacutetica proibida pela Lei (Dt 189-12) No I seacutec dC a ressurreiccedilatildeo era

motivo de disputas entre saduceus e fariseus459 Os saduceus natildeo acreditavam na ressurreiccedilatildeo

dos mortos Sobre os fariseus Flaacutevio Josefo460 escreveu que ldquotoda alma [] eacute impereciacutevel

mas somente a alma dos bons passa a outro corpo Por outro lado a alma dos homens maus

estaacute sujeita agrave puniccedilatildeo eternardquo Os saduceus satildeo descritos como aqueles que ldquoacreditavam que

Deus natildeo estaacute interessado em se agimos bem ou mal [] agir bem ou mal eacute apenas uma

questatildeo de escolha humana e que uma ou outra pertence a cada um assim podem agir como

bem entendemrdquo461 Tambeacutem descartam a crenccedila ldquona duraccedilatildeo imortal da alma e na puniccedilatildeo e

recompensa no Hadesrdquo462 Na contramatildeo dessas ideias Josefo escreve que os fariseus

ldquotambeacutem acreditam que a alma tem o poder de sobreviver agrave morte em si e que embaixo da

terra haveraacute recompensa ou puniccedilatildeo para a vida de viacutecio ou virtude que se viveu nesta

vidardquo463

Natildeo passou despercebido a Vicente Dobroduka464 que o vocabulaacuterio empregado pelo

historiador judeu se assemelha razoavelmente ao de Platatildeo465 Quer seja por uma intenccedilatildeo do

autor em aproximar a doutrina farisaica agrave filosofia ou pela adaptaccedilatildeo de um editor posterior

os pontos de semelhanccedila entre essas doutrinas e a cultura helecircnica satildeo evidentes Mesmo sem

ser uma forma de pensar que atraiacutesse a todos os judeus naquela eacutepoca natildeo haacute razotildees para se

458 Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 p 394 Cf as noccedilotildees escatoloacutegicas persas que teriam influenciado a apocaliacuteptica judaica em RUSSELL D S The Method and Message of Jewish ApocalypticPhiladelphia Westminster Press 1964 p 19 e em SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008 p 314 Entre essas noccedilotildees esta a ideia da ressurreiccedilatildeo corporal Para uma visatildeo geral da escatologia do Avesta cf MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975 pp 177-207 459 Mt 2223-33 Josefo Ant Jud 1814 Guer Jud 28 460 Guer Jud 2162ss 461 Guer Jud 2162ss 462 Guer Jud 2162ss 463 Ant Jud 1814 464 DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 2005 p 24 465 Meno 81b5 Feacutedon 70a8 e 72a8

95

duvidar que a ideia de uma recompensa futura baseada nas accedilotildees humanas era amplamente

conhecida entre os judeus Como escreveu Elizacircngela A Sousa466

certos elementos nas ideias particulares de juiacutezo satildeo compartilhados por uma e outra cultura assinalando algum tipo de intercacircmbio existente entre elas o que ainda outra vez nos coloca de frente com o pressuposto de que certos aspectos culturais (e religiosos) se constituem se natildeo totalmente a partir de trocas simboacutelicas pelo menos em parte satildeo influenciados por elas

A tradiccedilatildeo aponta que Paulo era um fariseu467 e a sua crenccedila na ressurreiccedilatildeo se

desenvolveraacute entre os cristatildeos No entanto eacute preciso lembrar como destacou D O Sousa468

que entre os cristatildeos ldquonatildeo havia uma unicidade de pensamento em continuidade com a

escatologia judaicardquo No processo proselitista de comunicaccedilatildeo da mensagem cristatilde os fieacuteis

enfrentaram os questionamentos de outros grupos Segundo o relato de Atos dos Apoacutestolos

(1716-34) Paulo enfrentou a resistecircncia dos filoacutesofos epicureus e estoicos no areoacutepago em

Atenas e em outro episoacutedio precisou repreender os coriacutentios em carta porque alguns estavam

sustentando que natildeo existia ressurreiccedilatildeo (I Co 1512-33) Embora os relatos de ressurreiccedilatildeo

dos mortos e da existecircncia de uma consciecircncia apoacutes a morte fossem comuns ao mundo greco-

romano como destaca Dag Oistein Endsjo469 natildeo existia nenhum consenso e eacute possiacutevel

distinguir essas contraposiccedilotildees em pelo menos dois grupos os criacuteticos intelectuais que

incluiacuteam filoacutesofos oradores e escritores e por outro lado a maioria sem instruccedilatildeo

De acordo com Lewis Richard Farnell470 a especulaccedilatildeo filosoacutefica grega natildeo poderia

ser considerada uma testemunha plena da mentalidade e da feacute daquela eacutepoca da cultura greco-

romana Estrabatildeo471 escreveu provavelmente no iniacutecio do I seacuteculo dC que ldquofilosofia era

algo para poucos enquanto poesia era mais uacutetil para as pessoas em geralrdquo No mesmo sentido

Plutarco472 admite que em sua eacutepoca apenas poucos conheciam as Leis de Platatildeo enquanto os

escritos de Homero eram ainda amplamente disseminados Pausacircnias no seacuteculo II dC

escreveu que Platatildeo a quem ele chama de ldquoo maior dos filoacutesofosrdquo473 tinha suas ideias

recebidas somente ldquopor alguns dos gregosrdquo474 Tudo indica que a situaccedilatildeo no II seacuteculo era a

466 SOARES Elizangela A Variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte desenvolvimento de uma crenccedila no judaiacutesmo do segundo templo 127 f (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2006 p 104 467 At 223 468 SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 setdez 2009 p 412 469 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 passim 470 Ibid p 386 471 Geografia 128 472 Moralia 328de 473 Descriccedilatildeo da Greacutecia 4324 474 Ibid 1303

96

mesma que Oriacutegenes475 descreve no seacuteculo seguinte ldquoeacute faacutecil de fato observar que Platatildeo eacute

encontrado somente nas matildeos daqueles que professam serem homens das letrasrdquo

Conforme destacou Henry Chadwick476 o estudo da metafiacutesica platocircnica foi peculiar a

poucos de uma ldquoaristocracia intelectualrdquo Nesse sentido Ramsay MacMullen477 tambeacutem

apontou que a reflexatildeo filosoacutefica natildeo apresentou nenhuma influecircncia detectaacutevel agrave praacutetica

cuacuteltica da religiatildeo tradicional grega478 Por outro lado eacute possiacutevel encontrar criacuteticas da

intelectualidade agraves superstitiones e agrave religiatildeo tradicional Certamente para pensadores como

Plutarco Dio de Prusa e Luciano de Samoacutesata os deuses natildeo existiam conforme as formas

homeacutericas Segundo Ramsay MacMullen479 esses pensadores puristas sustentam que os

deuses estavam distantes demais de tais caracteriacutesticas humanas comuns tais como nascer

comer beber e fornicar como a maioria deles faz extensivamente em suas tradicionais

representaccedilotildees Tudo isso natildeo passa de deisidaimonia ou seja ldquosupersticcedilatildeordquo Muitas vezes os

filoacutesofos reinterpretavam ou racionalizavam os mitos antigos rejeitando acontecimentos

milagrosos recentes semelhantes agraves narrativas antigas

No mundo grego a morte foi usualmente definida como a separaccedilatildeo da alma do corpo

Isso eacute amplamente demonstrado nas representaccedilotildees da morte de muitos guerreiros de Homero

repetidamente descritas como a alma [yuch] deixando o corpo480 E mesmo Platatildeo poderia

concordar com isso tendo Soacutecrates proclamado que a morte em sua opiniatildeo ldquonatildeo eacute nada

aleacutem do que a separaccedilatildeo dessas duas coisas a alma e o corpordquo481 A alma homeacuterica no Hades

era sempre definida como ldquomorterdquo Eram ldquoespiacuteritos da morterdquo482 ldquoMorterdquo natildeo significava

inexistecircncia absoluta mas uma existecircncia deacutebil da alma sem o corpo Sem um corpo fiacutesico

ningueacutem era de fato uma ldquopessoa completardquo Para os gregos a natureza humana sempre

equivaleu a uma unidade psicossomaacutetica Como escreveu Michael Clarcke483 ldquoo homem

homeacuterico natildeo tinha uma mente pois seus pensamentos e consciecircncia eram partes constituintes

da sua vida corpoacuterea como eram os movimentos e o metabolismordquo

475 Contra Celso 62 476 Introduction In ____ Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi 477 Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 p77 478 Isso natildeo quer dizer que filosofia natildeo acarretou mudanccedilas na maneira de pensar a religiatildeo pelos letrados como se considerou no capiacutetulo anterior 479 Ibid p77 480 ENDSJO Dag Oistein Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 p 38 481 Platatildeo Gorgias 524b cf Platatildeo Feacutedon 64c 482 Odisseia 11541 cf Odisseia 10521 10536 1129 1149 483 CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999 p 115

97

Como filoacutesofo Plutarco natildeo acreditava em nenhuma dessas histoacuterias populares sobre

ressurreiccedilatildeo fiacutesica e imortalizaccedilatildeo Para ele somente a alma tinha a chance de alcanccedilar a

esfera divina ldquoquando ela definitivamente se separa e se torna livre do corpo tornando-se

pura descarnada e imaculadardquo484 Mas ele admite que a maioria das pessoas natildeo se importava

com isso

Essas especulaccedilotildees tinham consequecircncias apenas limitadas de modo que natildeo

apresentaram um impedimento destacaacutevel agrave proliferaccedilatildeo de superstitiones inclusive entre as

classes elevadas agraves vezes Conforme Rohde485 argumenta a indignaccedilatildeo apaixonada de

filoacutesofos estoicos e epicureus que atacavam as crenccedilas que repousavam sobre os ensinos de

Homero natildeo poderiam ser explicadas exceto pela suposiccedilatildeo de que Homero e suas

representaccedilotildees permaneciam com uma significativa forccedila de orientaccedilatildeo entre as massas que

natildeo tinham conhecimento da filosofia O proacuteprio Justino indica que as ideias em torno da

crenccedila no Hades ainda eram fortes

O apologista toma o desafio de mostrar que a forma de pensar cristatilde natildeo era uma

novidade tatildeo descabida que natildeo pudesse ser aceita e ao mesmo tempo procura mostrar que

suas ideias apresentam um argumento razoaacutevel Comparando a crenccedila cristatilde na existecircncia de

uma consciecircncia apoacutes a morte do corpo agraves outras opiniotildees disseminadas pelo Impeacuterio

destaca-se tambeacutem que essa doutrina natildeo era demasiadamente estranha aos povos486 Os

elementos aparentemente comuns agrave cultura greco-romana e ao cristianismo nascente satildeo

alinhados na construccedilatildeo do argumento de que se os cristatildeos natildeo apresentavam uma doutrina

demasiadamente nova natildeo deveriam existir razotildees para serem incomodados ou combatidos

Neste caso os que apresentam doutrinas semelhantes agraves dos fieacuteis tambeacutem mereceriam ser

combatidos ou em uma melhor hipoacutetese ambos mereceriam ser deixados em paz

Outro refuacutegio apologeacutetico encontrado por Justino eacute recorrer ao fundamento cristatildeo na

tradiccedilatildeo judaica para assim alegar a antiguidade cristatilde Mas reconhecendo os elementos

semelhantes agrave cultura geral e agrave religiatildeo dos judeus o apologista abaixa a guarda para os

golpes da intelectualidade Por isso sua trama apologeacutetica precisa forjar um sentido

racionalizante desses elementos comuns a pagatildeos e a judeus e apresentar ao mesmo tempo a

doutrina cristatilde como um ensinamento superior agrave filosofia

484 Plutarco Romulus 287 485 ROHDE Erwin [1921] Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966 p 535 486 I186

98

Ele compara a crenccedila cristatilde na consumaccedilatildeo final de todas as coisas agraves noccedilotildees de

Sibila487 e Histapes488 (I201) sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo de tudo o que eacute corruptiacutevel A

funccedilatildeo do fogo no processo do ciclo coacutesmico dos filoacutesofos estoicos tambeacutem eacute elencado

destacando o renascimento do mundo pela transformaccedilatildeo489 Arquitetando seu argumento

apologeacutetico Justino questiona por que os cristatildeos satildeo ldquoperseguidosrdquo se existem algumas

correlaccedilotildees ou semelhanccedila entre as coisas ensinadas entre os fieacuteis e entre os filoacutesofos e

ldquopoetasrdquo estimados pelos romanos490 Essas correlaccedilotildees no entanto levaratildeo o apologista a

um aprofundamento dessas semelhanccedilas e dessemelhanccedilas Ele escreve

Assim quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus pareceraacute apenas que enunciamos um dogma de Platatildeo ao falar sobre conflagraccedilatildeo outro dogma dos estoicos ao dizer que satildeo castigadas as almas dos iniacutequos que ainda depois da morte conservaratildeo a consciecircncia e que as dos bons livres de todo castigo seratildeo felizes pareceraacute que falamos como vossos poetas e filoacutesofos que natildeo se devem adorar obras de matildeos humanas natildeo eacute senatildeo repetir o que disseram Menandro o

487 O substantivo feminino Sibulla pode significar uma ldquoprofetizardquo (PEREIRA Isidro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 516) Admite-se que essas elas profetizavam sob a influecircncia divina O primeiro escritor grego a fazer menccedilatildeo a Sibila eacute Heraacuteclito (Fragmento 92) No entanto Walter Burket (Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 p 116) escreve que mulheres em frenesi espiritual pelas quais os deuses falavam podiam ser encontradas muito antes no Oriente proacuteximo como em Mari no secundo milecircnio e na Assiacuteria no primeiro milecircnio Elas natildeo eram identificadas por um nome proacuteprio ficavam conhecidas apenas com o nome do local onde atuavam Uma coleccedilatildeo de anuacutencios profeacuteticos deu origem ao que ficou conhecido como Libri Sibyllini Acredita-se que a abra tenha sido obtida no reinado de Tarquinio Priscus (616 aC ndash 579 ac) por uma Sibila que protagoniza um mito em torno do livro Por vezes ela eacute chamada apenas de Sibila Os textos serviam de paracircmetro para a religiatildeo e eram guardados no Juacutepiter Captolino Com o incecircndio do templo em 82 aC os livros se perderam Deram iniacutecio a uma raacutepida busca por textos sibiliacutenicos por diversas regiotildees para compor uma nova coleccedilatildeo Poreacutem o caraacuteter e a pretensatildeo dos textos coletados desapontou esse objetivo Augustus determinou que os livros fossem destruiacutedos (Suetonio Vita cesarum Augustus 31 Tacito Anais VI12) Tibeacuterio voltou a examinar os Livros Sibilinos Muitos foram rejeitados como escritos espuacuterios (Cassius Dio LIV17) Pouco tempo mais tarde ainda sob seu governo um novo volume foi admitido (Taacutecito Anais VI12) (cf SMITH W (Ed) A Dictionary of Greek na Roman Antiquities London John Murray 1875 pp 1043-1044) Do primeiro para o segundo seacuteculo uma grande porccedilatildeo de escritos de cunho judaico-cristatildeos entram no paacutereo do textos sibiliacutenios (cf TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899) Eacute difiacutecil saber exatamente a qual ensino sibilino sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo Justino se refere MUNIER (op cit p 185) sugere que seja o trecho dos Oracles Sibyllins II196 MARCOVICH (Op cit p 62) aponta as passagens de Oracle Sibylline 2196ss 2286ss 3672ss 3689ss 4173ss 7120ss 8243ss O mesmo livro sibilino eacute mencionado em I4512 cuja leitura era vetada ao povo Cf ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997 PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988 A Greek-English Lexicon Edited by Henry Georg Liddell and Robert Scott OxfordNew York Clarendon PressOxford University Press 1996 488 U`stasphj eacute a forma grega de se escrever Vistaspa nome do pai de Dario o Grande e protetor de Zoroastro (KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945) Justino provavelmente estaacute se referindo ao escrito pseudoepiacutegrafo dos Oraacuteculos de Histaspes produzido provavelmente entre os seacuteculo II e I aC Essa obra heleniacutestica da Aacutesia menor apresentava fortes traccedilos do Zoroastrismo mas tambeacutem evidenciava aspectos poliacutetico-apocaliacutepticos relacionado ao domiacutenio de Roma sobre os demais povos (SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012 cf CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938) Histaspe e Sibila tambeacutem aparecem juntos nos escrito de Clemente de Alexandria (Stromata VI51) Lactacircncio (Divinae Institutiones VII1519 VII182) 489 I202 490 I203

99

poeta cocircmico e outros com ele que afirmaram que o artiacutefice eacute maior do que aquele que o fabrica (I204-5)

Tendo em vista a criacutetica dos filoacutesofos e letrados agraves crenccedilas gerais do povo as

semelhanccedilas e pontos de contato entre as doutrinas cristatildes e os mitos pagatildeos apontados por

Justino em defesa dos cristatildeos poderia se converter em uma nova dificuldade como algueacutem

que tenta sair de um abismo para cair em outro Por isso ele desenvolve uma explicaccedilatildeo para

essas semelhanccedilas elevando as doutrinas cristatildes a um niacutevel de primazia e evidenciando o seu

aspecto filosoacutefico

Segundo Viviana L Felix491 mesmo admitindo a semelhanccedila entre os ensinos de

Platatildeo e o dos cristatildeos uma posiccedilatildeo contraacuteria agrave doutrina platocircnica da alma eacute assumida

empenhando-se na construccedilatildeo de uma soteriologia e escatologia cristatildes conforme seratildeo

analisadas mais adiante O apologista combate como destaca Van Winden492 as correntes

filosoacuteficas que natildeo tecircm esperanccedila que Deus castigue ou premie em outra vida Seu interesse

estaacute ligado agrave vida eacutetica do homem e seu destino escatoloacutegico

A esperanccedila dos cristatildeos de terem os seus corpos restabelecidos mesmo depois de

mortos poderia representar algo ldquoimpossiacutevelrdquo na opiniatildeo de alguns Justino natildeo usa outro

argumento que natildeo seja o argumento da feacute Esse seu subterfuacutegio indica que muitas coisas que

parecem ser impossiacuteveis em um momento se demonstram possiacuteveis em outro surpreendendo

a muitos Ele usa o exemplo do secircmen humano para dizer que mostrado a algueacutem luacutecido

jamais se poderia supor imediatamente que uma soacute gota desse liacutequido seria capaz de se

transformar em um corpo humano De modo semelhante entatildeo se a princiacutepio pode parecer

estranho crer que um corpo ldquosemeadordquo na sepultura possa se transformar em um corpo

glorificado na ressurreiccedilatildeo depois se mostraraacute evidente493 Explanando esse argumento o

apologista explica que os cristatildeos sustentam que ldquoeacute melhor crer naquilo que estaacute acima da []

proacutepria natureza e que eacute impossiacutevel aos homens do que serem increacutedulosrdquo494 Tudo gira em

torno dos ensinamentos do seu mestre Jesus Cristo O mesmo que ensinou que o que eacute

impossiacutevel para os homens eacute possiacutevel para Deus495 Para um ouvinte alheio agrave mentalidade

judaico-cristatilde tal sentenccedila poderia parecer muito vaga Afinal os pagatildeos estavam

familiarizados com as limitaccedilotildees humanas e os poderes divinos que recheavam os mitos 491 FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa 492 WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 1975 pp 181-190 493 I191-4 494 I196 Kreitton de pisteuein kai tauta kai ta Th| e`autwn fusei kai avnqrwpoij avdunata hv o`moiwj toij alloij avpistein proseilhfamen MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 495 `Ta avdunata para avnqrwpoij dunata para qew|( MINNSPARVIS Op cit p 128 A citaccedilatildeo eacute de Lc 1827

100

Todavia Justino faraacute saber que o ponto chave desse misteacuterio eacute a feacute naquilo que eacute crido como a

ldquorevelaccedilatildeo divinardquo Essa revelaccedilatildeo mostra-se tambeacutem desafiadora pois ao mesmo tempo em

que traz luz sobre as accedilotildees humanas porta condenaccedilatildeo e temor ainda que estes sejam

contemplados pela mensagem da cruz496 de modo reparador Eacute no exato momento em que se

manifesta a necessidade de escolher aquilo que se revela como o correto verdadeiro e bom

que se deve temer pela escolha capaz de determinar o destino no poacutes-morte Essa advertecircncia

tambeacutem foi feita pelo mestre Natildeo temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais

podem fazer temei antes aquele que depois da morte pode lanccedilar alma e corpo no

inferno497 Ele mesmo define o ldquoinfernordquo como ldquoo lugar onde seratildeo castigados os que

tiverem vivido iniquamente e natildeo acreditaram que aconteceratildeo essas coisas ensinadas por

Deus atraveacutes de Cristordquo498 (I198) O Deus absoluto que tudo vecirc tudo conhece e do qual

nada se pode ocultar aparece tambeacutem como o grande juiz das accedilotildees humanas Assim

comunicada essa ldquoverdaderdquo cristatilde ela deve produzir temor e efetivar a sua funccedilatildeo em exigir

uma accedilatildeo positiva ou negativa de quem a ouve ou a lecirc

42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde

Seguindo o raciociacutenio do apologista deve ser a ldquorazatildeordquo a dirigir as escolhas humanas

No entanto a ldquorazatildeordquo ou seja o logos que estaacute em evidecircncia no pensamento de Justino eacute

produto da sua arguiccedilatildeo teoloacutegico-apologeacutetica Eacute possiacutevel identificar uma estrateacutegia literaacuteria

496 Mensagem da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo 497 lsquoMh Fobeisqe touj avnairountaj umaj kai meta tauta mh dunamenouj ti poihsai( fobhqhte de meta to Avpoqanein dunaMenon kai yuchn kai swma eivj geennan evmbalein)v MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 Cf Mt 1028 Lc 124-5 Geenna eacute uma transliteraccedilatildeo grega do termo aramaico ~ N h iy G e que corresponde ao ~oN h i a y G e hebraico e assumiu o sentido de ldquopuniccedilatildeo futurardquo (RUSCONI C Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 106 A primeira menccedilatildeo ao Vale de Hinnom na Biacuteblia aparece em Js 158 No entanto no texto dos LXX (LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]) satildeo empregadas as palavras faragga Onom para se referir ao ~ N Oh i- y g E) da Biacuteblia Hebraica (Biblia Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50]) Em II Cr 283 a LXX substitui ~ N O=h i- b a y g EaringB pela transliteraccedilatildeo Gaibenenom Esse lugar teria destinados primeiramente ao sacrifiacutecio de crianccedilas a Moloque e a Baal numa parte especiacutefica do vale chamada Tophet Depois do Exiacutelio com o intuito de mostrar a abominaccedilatildeo do local o judeus o transformaram no depoacutesito de lixo da cidade Para a destruiccedilatildeo dos resiacuteduos ali depositados o fogo era mantido sempre aceso Por isso os judeus associaram ao local a ideia de sofrimento e corrupccedilatildeo (Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998 p 457) A palavra geenna eacute sempre empregada nos discursos de Jesus (Mt 2333 Lu 125 Mt 522) como um lugar de puniccedilatildeo num julgamento futuro e Justino o emprega nesse mesmo sentido 498 h de geenna evsti topoj enqa kolaxesqai mellousin oi` avdikwn biwsantej kai mh pisteuontej tauta genhsesqai( o[as o` qeoj dia tou Cristou evdidaxe) MINNSPARVIS Op cit p 128 Cf Lc 125 Mt 1028

101

que ressignifica o conceito de ldquorazatildeordquo por meio da construccedilatildeo teoloacutegica em torno do logos

cristatildeo buscando atestar a racionalidade da ldquofilosofiardquo cristatilde

Considerar a religiatildeo cristatilde como uma ldquofilosofia divinardquo499 natildeo eacute apenas o reflexo da

sua trajetoacuteria filosoacutefica ateacute sua conversatildeo eacute tambeacutem uma estrateacutegia apologeacutetica que considera

normal existirem diferentes correntes de pensamento dentro do Impeacuterio sem que isso acarrete

automaticamente perseguiccedilotildees entre grupos distintos500 Segundo Justino eacute o logosrazatildeo que

orienta o curso da apologia em favor dos cristatildeos501 O apologista estaacute convencido de que suas

reivindicaccedilotildees satildeo ldquojustas e verdadeirasrdquo502 o que exige uma investigaccedilatildeo particular sobre o

sentido desses dois conceitos tambeacutem De outro modo a causa uacuteltima das accedilotildees anticristatildes eacute a

influecircncia dos democircnios que colocam o povo e as autoridades contra os fieacuteis Segundo seu

raciociacutenio os ldquomaus democircniosrdquo agiam por meio da promoccedilatildeo da ignoracircncia e da confusatildeo

Por isso ele se demonstra disposto a apresentar outros pontos sobre as crenccedilas cristatildes ldquoa fim

de persuadir os amantes da verdaderdquo503

Tendo em vista que o mecanismo de controle proporcionado pelo conteuacutedo das

doutrinas cristatildes eacute estabelecido fundamentalmente pelo temor diante do Deus que sonda todas

as coisas e que pode punir ou recompensar eternamente aqueles que agem virtuosamente nesta

vida o apologista escreve sobre a capacidade humana de agir racionalmente

Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e se recusem

outras como ldquoa pobreza o sofrimento e a desonra paternardquo504 A incompreensatildeo dessa

ldquoracionalidade cristatilderdquo fazia com que muitos se opusessem aos cristatildeos A falta de

conhecimento sobre as doutrinas cristatildes seria a responsaacutevel por exemplo por muitos

acusarem-lhes de ateiacutesmo505 Por ser uma religiatildeo nova e em processo de consolidaccedilatildeo natildeo eacute

nenhuma surpresa que muitos ainda estivessem confusos acerca das doutrinas cristatildes que por

vezes encabulavam os proacuteprios cristatildeos506

499 II Apol 125 500 II Apol 126 501 II Apol 128 502 I1211 tambeacutem em I683 ldquonatildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo 503 I1211 504 I128 505 I131 506 Os cristatildeos estavam longe de apresentarem unidade doutrinaacuteria Justino faz menccedilatildeo a cristatildeos divergentes como Helena Menandro e os marcionitas (I261-8)

102

421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios

Segundo a tese apresentada por Justino os democircnios se apoderam de todos aqueles

que de um ou outro modo natildeo trabalham por sua proacutepria salvaccedilatildeo O conceito de daiacute mwn

estava presente na cultura grega desde Homero e Hesiacuteodo507 Seu campo semacircntico eacute extenso

Deus conceito baacutesico que mais se aproxima da ideia que Justino sustenta eacute o de ldquoum ser

divinordquo ldquoo poder divinordquo ldquoum semideusrdquo ldquoser que interfere no destino humanordquo e poderia

ser ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo508

O conceito de ldquosalvaccedilatildeordquo natildeo estaacute claro nesses escritos mas estaacute relacionado agrave

recompensa positiva daqueles que creram e agiram conforme a revelaccedilatildeo dos desiacutegnios

divinos Isso tambeacutem significa associar-se ao logos e dissociar-se dos enganos demoniacuteacos

Desse modo ele escreve que ldquodepois de crer no logos noacutes nos afastamos deles [dos democircnios]

e por meio do Filho seguimos o uacutenico Deus unigecircnitordquo509

Esse distanciamento dos enganos destes seres malignos e pelo apego ao logos eacute o que

produz uma mudanccedila de conduta Seu testemunho em defesa da feacute eacute que os que antes se

compraziam na dissoluccedilatildeo agora abraccedilam apenas a temperanccedila os que antes se entregavam

agraves artes maacutegicas agora se consagram ao Deus bom e ingecircnito aqueles que antes eram

apegados aos bens materiais e agraves rendas agora compartilham do quem tecircm os que antes se

odiavam e se matavam mutuamente desprezando aqueles que natildeo pertenciam agrave mesma raccedila

pela diferenccedila de costumes agora vivem todos juntos rezam pelos seus inimigos e tratam de

persuadir os que os aborrecem injustamente a fim de que vivendo conforme conselhos de

Cristo tenham boas esperanccedilas de alcanccedilar uma recompensa de Deus (I Apol 141-3) Por

isso o filoacutesofo apologista critica as accedilotildees anticristatildes romanas que acatavam as caluacutenias

disseminadas dizendo ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e natildeo

tenhais a quem castigarrdquo510

A fonte da moralidade cristatilde estaacute primeiramente relacionada agrave mensagem do seu

mestre o Cristo por vezes tido como motivo de escacircndalo para os infieacuteis Essa moralidade eacute

destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e comentaacuterios ldquodisseminados

507 POPE Kyle Mark The concept of theDAIMWN in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 13-17 cf REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004 508 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 (Perseu Project) 509 I Apol 141 510 I Apol 124

103

entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso seu discurso sobressalta o

valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de temperanccedila511 Tambeacutem recebem

destaques a doutrina cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos

necessitados e a ausecircncia de valor da ostentaccedilatildeo512 Com o mesmo tom piedoso seguem as

afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico513 Desse

modo Justino contribui tambeacutem para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos

propondo uma identidade coletiva Nesse processo o apologista combate um conceito

estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que considera equiacutevocos e mal entendidos

ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja Essa sua atitude revela tambeacutem que o processo de construccedilatildeo da

identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada principalmente pela

necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os variados grupos

cristatildeos Pois as Igrejas em meados do seacuteculo II devem ser vistas ainda como manifestaccedilotildees

de ldquocristianismosrdquo514

No intuito de explicar o caraacuteter das crenccedilas cristatildes Justino faz referecircncia agrave recepccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo de escritos e doutrinas Ser cristatildeo em sua perspectiva natildeo eacute simplesmente

pertencer a um grupo eacute um ldquoidealrdquo o de aprender o que foi ensinado pelo Cristo e praticar

em suas obras Desse modo elege-se a praacutetica dos ensinamentos do Logos como o elemento

fundamental diferenciador entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos515 Justino defende a liberdade para

estes que ele tem por ldquocristatildeosrdquo aos outros espera-se que sejam mesmo perseguidos516

Dentre os ensinos do Cristo estaacute o pagamento dos tributos e contribuiccedilotildees517 mas o

apologista vai aleacutem Propondo-se a oferecer algumas das principais informaccedilotildees sobre o

conteuacutedo das crenccedilas cristatildes um paralelo entre a natureza desses ensinamentos e outras

arguiccedilotildees eacute traccedilado518

Jesus eacute descrito como u`ioj de Qeou [filho de Deus] aquele que ainda que parecesse

homem de modo comum por sua sabedoria mereceria chamar-se filho de Deus Haacute um

511 I151-7 512 I141-919 513 I161-6 514 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 515 ldquoAqueles poreacutem que se vecirc que natildeo vivem como ele ensinou sejam declarados como natildeo cristatildeos por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de Cristo pois ele disse que se salvariam natildeo os que apenas falassem mas que tambeacutem praticassem as obrasrdquo (I169) 516 ldquoAqueles que natildeo vivem conforme os ensinamentos de Cristo e satildeo cristatildeos apenas de nome noacutes somos os primeiros a vos pedir que sejam castigadosrdquo (I1614) 517 Justino recorre agrave passagem comum a Mt 221719-20 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo cf I172 518 I144

104

contraste entre o Cristo que nasceu como Logos de Deus e o que afirmavam sobre Hermes

chamado de Logos anunciador ou mensageiro de Deus519 Para rebater o desdeacutem pela

crucificaccedilatildeo de Cristo que poderia representar algo despreziacutevel aos olhos de muitos no

Impeacuterio o apologista aponta que tambeacutem os filhos de Zeus sofreram mortes terriacuteveis Sobre

ele haver nascido de uma virgem ele compara-o a Perseu Quanto agrave cura de coxos paraliacuteticos

e enfermos de nascimento e ateacute mesmo ressurreiccedilatildeo de mortos ele aponta que haacute alguma

semelhanccedila com Ascleacutepio520 As comparaccedilotildees tambeacutem envolvem Dioniso e Heacuteracles esta

uacuteltima ascendida depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos os Dioacutescoros filhos de

Leda Perseu de Dacircnae e Belerofonte nascido de homens que ascenderam sobre o cavalo

Peacutegaso O apologista fala tambeacutem dos imperadores mortos aos quais muitos consideravam

como dignos da imortalidade e alguns juravam terem visto Ceacutesar subir ao ceacuteu521 Mas ele

adverte ldquoNatildeo pedimos que se aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque

dizemos a verdaderdquo522

As doutrinas cristatildes satildeo apresentadas como a ldquouacutenica verdaderdquo e a mais antiga do que

todos os escritores que existiram Seu discurso busca demonstrar que Jesus Cristo eacute

propriamente o uacutenico Filho nascido de Deus como seu Logos seu Primogecircnito e sua

Potecircncia A encarnaccedilatildeo do Filho pelo seu designo deu-se para que ele ensinasse essas

verdades para a transformaccedilatildeo e conduccedilatildeo do ldquogecircnero humanordquo523 Poreacutem segundo sua teoria

apologeacutetica antes de tornar-se homem entre os homens houve alguns democircnios malvados

que se adiantaram a dizer por meio dos poetas terem acontecido os mitos que inventaram

Seriam esses os mitos gerais conhecidos por gregos e romanos Em oposiccedilatildeo ao

esclarecimento proposto pelo logos para a salvaccedilatildeo humana esta o obscurecimento de toda a

racionalidade proporcionado pelos democircnios

Os democircnios satildeo entatildeo reconceituados a partir de uma perspectiva cristatilde que toma por

base a tradiccedilatildeo judaica em intersecccedilatildeo com aspectos da cultura grega conforme analisou K

M Pope524 Sua imagem estaacute relacionada ao ldquopriacutencipe dos maus democircniosrdquo chamado de

ldquoserpente satanaacutes diabo ou caluniador Todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que

519 I221-2 520 I225-6 521 Cassius Dio (Hist Rom 56462 cf T Livio Histoacuteria de Roma (Ad urbe condita) I165-7) menciona a histoacuteria de que um senador e ex-pretor tinha jurado que ele tinha visto Augustus subindo aos ceacuteus Suetocircnio tambeacutem se refere a algo desse tipo Augustus 1004 Uma histoacuteria similar foi contada sobre Iulia Drusilla a irmatilde de Caliacutegula (Cassius Dio Hist Rom 59114) Secircneca zomba deste testemunho em Apocolocyntosis I 522 I231 523 I232 cf SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987 524 The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 52-53

105

o seguem seraacute enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de

antematildeo anunciada por Cristordquo525

Justino acredita ser possiacutevel demonstrar a veracidade da feacute cristatilde por meio do

cumprimento das Escrituras526 Ele explica que os profetas de Deus movidos pelo logos e sob

o Espiacuterito profeacutetico anunciaram antecipadamente os acontecimentos futuros Vem em

seguida uma seacuterie de ldquoprediccedilotildeesrdquo sobre a vinda de Cristo e sobre o que deveria acontecer tais

como a queda de Jerusaleacutem527 a cura das enfermidades e a morte de Cristo a ressurreiccedilatildeo dos

mortos e a prediccedilatildeo de Isaiacuteas528 sobre a expansatildeo para todas as naccedilotildees Ele tambeacutem procura

mostrar que ateacute o sofrimento e a humilhaccedilatildeo de Jesus estavam previstas nas profecias e que

ele chegou a ser abandonado ateacute pelos seus (I501ss) Seu raciociacutenio eacute o seguinte

Com efeito do mesmo modo que o acontecido antecipadamente anunciado por mais que natildeo tivesse sido compreendido aconteceu assim tambeacutem o que ainda falta para ser cumprido aconteceraacute por mais que natildeo se compreenda nem se creia Assim eacute que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo uma jaacute cumprida como homem desonrado e passiacutevel a segunda quando viraacute dos ceacuteus acompanhado de seu exeacutercito de anjos quando ressuscitaraacute tambeacutem os corpos de todos os homens que existiram revestiraacute de incorruptibilidade os que forem dignos e enviaraacute os iniacutequos com percepccedilatildeo eterna ao fogo eterno junto com os perversos democircnios (I521-3)

Com convicccedilatildeo sobre o cumprimento das profecias escreve ldquoDe fato por que motivo

haveriacuteamos de crer que um homem crucificado eacute o primogecircnito do Deus ingecircnito e que

julgaraacute todo o gecircnero humano se natildeo encontraacutessemos testemunhos sobre ele publicados

antes de ele ter nascido como homem e natildeo os viacutessemos literalmente cumpridosrdquo 529 E isso o

faz pensar que a apresentaccedilatildeo desse elevado nuacutemero de referecircncias a prediccedilotildees e seus

cumprimentos deveria razoavelmente convencer a seus leitores530

Os mitos dos pagatildeos satildeo comparados aos ldquoensinosrdquo cristatildeos sustentando que eles natildeo

apresentam nenhuma prova de sua veracidade Isso deveria demonstrar que foram ditos por

obra dos ldquodemocircnios perversosrdquo para enganar e extraviar o ldquogecircnero humanordquo Ouvindo os

profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens iacutempios seriam castigados atraveacutes do

fogo esses seres maleacutevolos teriam colocado agrave ldquofrente muitos que se disseram filhos de Zeus

crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo

como um conto de fada semelhante aos contados pelos poetasrdquo531 Assim eacute elencada uma

seacuterie de semelhanccedilas entre a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e a greco-romana para mostrar a distorccedilatildeo

525 I281 526 I301ss 527 I471ss 528 Is 651-15 520 529 I532 530 Justino escreve que seriam persuadidos os que ldquoamam a verdade que natildeo seguem a opiniatildeo nem se deixam dominar por suas paixotildeesrdquo (I5310-12) 531 I542

106

pagatilde que soacute podem ser identificadas atraveacutes de uma hermenecircutica bem peculiar532 As

comparaccedilotildees vatildeo desde o texto de Gn 4910-11 agrave vinha de Dioniso e sua ascensatildeo

semelhante agrave subida de Belerofonte montado no cavalo Peacutegaso ao ceacuteu o texto de Is 714 e a

lenda de Perseu Sl 186 e as narrativas sobre Heacutercules ateacute as ldquoprofeciasrdquo de curas a todas as

enfermidades e ressurreiccedilatildeo dos mortos533 ao mito de Ascleacutepio Mas a crucificaccedilatildeo eacute algo que

os pagatildeos natildeo poderiam imitar pois tudo ldquotudo o que se refere agrave cruz foi dito de forma

simboacutelicardquo534

Os judeus no entanto satildeo tidos como ignorantes sobre o cumprimento das profecias

de que Jesus deveria vir nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda

doenccedila toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e

crucificado que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus

que ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os

homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nele535

Ele recorre aos escritos do profeta Isaiacuteas536 para indicar que Cristo seria concebido por

uma virgem O logos eacute conceituado como o Filho a primeira virtude ou potecircncia depois de

Deus que eacute Pai e soberano de todas as coisas O logos entatildeo se tornou carne e nasceu homem

(I3210) Por Espiacuterito e forccedila que procede de Deus ele eacute reconhecido como o Logos que eacute o

primogecircnito de Deus O apologista sustenta que aqueles que profetizam satildeo inspirados pelo

logos divino

Em sua perspectiva os judeus detentores da tradiccedilatildeo e dos livros dos profetas poreacutem

aleacutem de natildeo reconhecerem a Cristo jaacute vindo tambeacutem odeiam aos cristatildeos Isso eacute destacado

na sua afirmaccedilatildeo de que na guerra dos judeus Bar Koseba o cabeccedila da rebeliatildeo mandava

submeter a terriacuteveis torturas somente os cristatildeos caso estes natildeo negassem e blasfemassem

Jesus Cristo (I316)

A mensagem cristatilde eacute um elemento apelativo que busca induzir os fieacuteis a uma conduta

diferente ldquoNoacutes que antes nos mataacutevamos mutuamente agora natildeo soacute natildeo fazemos guerra

contra os nossos inimigos mas tambeacutem por natildeo mentir nem enganar os juiacutezes que nos

interrogam morremos felizes de confessar a Cristordquo (I393) Justino considera ridiacuteculo que os

soldados que se arrolam e se alistam pusessem a lealdade para com o imperador ldquoacima de

sua proacutepria vida acima dos pais paacutetria e tudo o que lhes pertence embora nada de

532 BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 2009 pp 538-555 533 Is 355-6 Mt 115 534 I551 535 I317-8 536 Is 111-10

107

impereciacutevel lhes pudeacutesseis oferecerrdquo (I395) Por outro lado os cristatildeos que amam a

incorrupccedilatildeo suportam tudo a troco de receber daquele que confiam ter poder para lhes dar

(I395)

A superioridade do Deus judaico-cristatildeo sobre os deuses das outras naccedilotildees aparece

submetendo os demais deuses ao jugo dos ldquodemocircniosrdquo sob a sombra da ignoracircncia que esses

propagam Entretanto o Deus dos cristatildeos eacute o Deus que criou a racionalidade

Justino coloca que

no princiacutepio [Deus] criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma pedra Virtude e viacutecio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e iniquidade (I283-4)

Esse ser racional que Justino se refere eacute tambeacutem aquele cuja racionalidade pode ser ratificada

no reconhecimento e submissatildeo aos ensinos cristatildeos Haacute uma postura anti-estoica manifesta

em suas palavras que reduz o dogma do destino dessa corrente filosoacutefica a ldquoimpiedade e

iniquidaderdquo537

Ele sustenta que os cristatildeos aprenderam com os profetas que

os castigos e tormentos assim como as boas recompensas satildeo dadas a cada um conforme as suas obras Se natildeo fosse assim mas tudo acontecesse por destino natildeo haveria absolutamente livre-arbiacutetrio Com efeito se jaacute estaacute determinado que um seja bom e outro mau nem aquele merece elogio nem este vitupeacuterio Se o gecircnero humano natildeo tem poder de fugir por livre determinaccedilatildeo do que eacute vergonhoso e escolher o belo ele natildeo eacute irresponsaacutevel de nenhuma accedilatildeo que faccedila538 (I432-3)

Ele destaca que se por outro lado algueacutem

estivesse determinado [para] ser mau ou bom natildeo seria capaz de coisas contraacuterias nem mudaria com tanta frequumlecircncia Na realidade nem se poderia dizer que uns satildeo bons e outros maus desde o momento que afirmamos que o destino eacute a causa de bons e maus e que realiza coisas contraacuterias a si mesmo ou que se deveria tomar como verdade o que jaacute anteriormente insinuamos isto eacute que virtude e maldade satildeo puras palavras e que soacute por opiniatildeo se tem algo como bom ou mau Isso como demonstra a verdadeira razatildeo eacute o cuacutemulo da impiedade e da iniquidade (I436)

O ldquodestino iniludiacutevelrdquo reconhecido pelo apologista eacute que aqueles que escolheram o

bem tenham ldquodigna recompensardquo e os que escolheram o contraacuterio tenham igualmente ldquodigno

castigordquo (I437) Dentro do sistema de pensamento construiacutedo por Justino seria incoerente

com o sistema de controle social admitir que Deus tenha determinado as escolhas humanas

Nesse caso como ele escreve ldquonatildeo seria digno de recompensa e elogio pois natildeo teria

escolhido o bem por si mesmo mas nascido jaacute bom nem por ter sido mau seria castigado

537 avsebeia kai avdikia evsti I284 538 PLATAtildeO Repuacuteblica 617e

108

justamente pois natildeo o seria livremente mas por natildeo ter podido ser algo diferente do que foirdquo

(I438) Desse modo o apologista deixa clara sua oposiccedilatildeo ao estoicismo539

O pensamento de Justino sobre isso poderia ser resumido em ldquoDeus criou livres tanto

os anjos como o gecircnero humano e por isso receberam com justiccedila o castigo de seus pecados

no fogo eternordquo540 Tal alegaccedilatildeo estaria fundamentada na ideia de que tudo deve ser capaz de

viacutecio e de virtude pois ningueacutem seria digno de louvor se natildeo pudesse tambeacutem voltar-se para

um desses extremos541

Ele assume que esta doutrina foi ensinada pelo Espiacuterito profeacutetico que por meio de

Moiseacutes nos testemunha que falou ao primeiro homem que havia criado do seguinte modo

ldquoOlha que diante de tua face estaacute o bem e o mal escolhe o bemrdquo542 Ele cita tambeacutem Isaiacuteas543

e o proacuteprio Platatildeo544 ao dizer A culpa eacute de quem escolhe Deus natildeo tem culpa Justino

alega que Platatildeo falou isso por tecirc-lo tomado do profeta Moiseacutes desse modo ele diz que ldquopois

se sabe que este eacute mais antigo do que todos os escritores gregosrdquo (I441-8) Para explicar os

elementos semelhantes entre os escritos gregos e os judaico-cristatildeos o apologista alega que

tudo o que os filoacutesofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplaccedilatildeo das coisas celestes aproveitaram-se dos profetas natildeo soacute para poder entender mas tambeacutem para expressar isso Daiacute que parece haver em todos algo como germes de verdade Todavia demonstra-se que natildeo o entenderam exatamente pelo fato de que se contradizem uns aos outros (I449-10)

Deus conhece de antematildeo tudo o que seraacute feito por todos os homens e eacute decreto seu

recompensar cada um segundo o meacuterito de suas obras e por isso justamente prediz por meio

do Espiacuterito profeacutetico o que para cada um viraacute da parte dele conforme o que suas obras

mereccedilam545 Ele eacute aquele que constantemente conduz o gecircnero humano agrave reflexatildeo e agrave

lembranccedila demonstrando-lhe que cuida e usa de providecircncia para com os homens

Sobre a novidade da religiatildeo cristatilde Justino escreve ldquoAlguns sem motivo para rejeitar

o nosso ensinamento poderiam nos objetar que ao dizermos que Cristo nasceu somente haacute

cento e cinquumlenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio

Pilatos os homens que o precederam natildeo tecircm nenhuma responsabilidaderdquo (461) Ele entatildeo

responde

Noacutes recebemos o ensinamento de que Cristo eacute o primogecircnito de Deus e indicamos antes que ele eacute o Logos do qual todo o gecircnero humano participou Portanto aqueles

539 ldquohellipnoacutes dizemos que aconteceraacute a conflagraccedilatildeo universal mas natildeo como dizem os estoacuteicosrdquo II63 cf Alesandre de Aphrodisias On Fate 9 [17525] 540 II65 541 II66 542 Dt 301519 543 Is 116-20 544 Repuacuteblica X617e 545 I4411

109

que viveram conforme o Logos satildeo cristatildeos quando foram considerados ateus como sucedeu entre os gregos com Soacutecrates Heraacuteclito e outros semelhantes e entre os baacuterbaros com Abraatildeo Ananias Azarias e Misael e muitos outros cujos fatos e nomes omitimos agora pois seria longo enumerar De modo que tambeacutem os que antes viveram sem razatildeo [logos] se tornaram inuacuteteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razatildeo [logos] mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela satildeo cristatildeos e natildeo experimentam medo ou perturbaccedilatildeo O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma virgem pela virtude do Logos conforme o desiacutegnio de Deus Pai e soberano do universo e foi chamado Jesus e depois de crucificado e morto ressuscitou e subiu ao ceacuteu o leitor inteligente poderaacute perfeitamente compreendecirc-lo pelas longas explicaccedilotildees que foram dadas ateacute aqui (462-6)

O apologista usa de uma estrateacutegia semacircntica para literalmente ldquodar razatildeordquo agraves

doutrinas cristatildes

422 A razatildeo que julga

No mundo grego a palavra logoj jaacute assumira uma significacircncia para o pensamento

especulativo desde muito cedo Era um termo teacutecnico para as vaacuterias ldquociecircnciasrdquo que se

desenvolviam na Greacutecia do seacutec V aC A gramaacutetica a loacutegica a retoacuterica a psicologia a

metafiacutesica a teologia e a matemaacutetica deram-lhe sentidos diferentes ainda dentro do mesmo

campo da ciecircncia Seu campo semacircntico eacute vasto Pode significar razatildeo palavra discurso

menccedilatildeo declaraccedilatildeo afirmaccedilatildeo resposta promessa dito proveacuterbio ou maacutexima546 Alguns

destes significados podem parecer contraditoacuterios Ele eacute um termo comum que pode aparecer

em qualquer lugar Aparece nos textos de Homero Heroacutedoto Platatildeo Aristoacuteteles Tuciacutededes

Piacutendaro Aeschylus Xenoacutefanes Soacutefocles Aischines e outros547 mas eacute seu significado

filosoacutefico-religioso que importa A histoacuteria desse conceito eacute bastante complexa todavia eacute

suficiente abordar os principais aspectos do uso filosoacutefico-religioso do logoj

Justino sustenta que os gregos aprenderam muitos conceitos com as Escrituras

judaicas Segundo sua teoria Ptolomeu rei do Egito se preocupou em formar uma biblioteca

e nela reunir os escritos de todo o mundo tendo notiacutecia dessas profecias mandou uma

546 Significa ainda decisatildeo resoluccedilatildeo ordem proclamaccedilatildeo ensinamento doutrina parte de doutrina definiccedilatildeo hipoacutetese condiccedilatildeo pacto fama tradiccedilatildeo lenda reputaccedilatildeo boato opiniatildeo notiacutecia revelaccedilatildeo oraacuteculo resposta de oraacuteculo palavra revelada verbo assunto mateacuteria objeto questatildeo fato acontecimento coisa discurso frase prosa falar faculdade de falar e como logoj proforikoj discurso extriacutenseco palavra uso da palavra direito agrave palavra coloacutequio discussatildeo faacutebula narrativa imaginaacuteria lenda mito narrativa histoacuterica histoacuteria literatura conta caacutelculo soma explicaccedilatildeo avaliaccedilatildeo valor significado a razatildeo praacutetica (nouj especulativo) razatildeo divina personificada motivo causa fundamento justificaccedilatildeo plano projeto RUSCONI C (ed) DICIONAacuteRIO do grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 350 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001 547 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001

110

embaixada pedindo os livros dos judeus Ptolomeu providenciou que fossem traduzidos para o

grego Depois disso os livros permaneceram entre os egiacutepcios ateacute o presente e os judeus os

usam no mundo inteiro Assim os gregos teriam aprendido muitas coisas que teriam

ldquoenriquecidordquo seus mitos e pensamentos em geral548

Todavia foi Filon de Alexandria quem primeiro tomou as interrogaccedilotildees filosoacuteficas

estabelecendo correlaccedilotildees com os elementos da cultura religiosa judaica549 Era corrente no

judaiacutesmo a reflexatildeo sobre a ldquoPalavrardquo criadora e comunicadora da revelaccedilatildeo divina Mas foi o

contato com a cultura helecircnica e as proximidades semacircnticas ainda que muito limitadas entre

Escrituras judaicas e as palavras gregas que carregaram o teor filosoacutefico ou especulativo550

Conforme analisou Dax F P Nascimento551 eacute por intermeacutedio do Logos uma espeacutecie de

declaraccedilatildeo divina que se remete a si mesmo revelado que se obteacutem a educaccedilatildeo acerca da

verdade por meio da qual haacute o arrependimento ou conversatildeo dos prazeres e ciecircncias do

mundo sensiacutevel para a razatildeo e para a piedade

Entre os cristatildeos natildeo haacute evidecircncias de que a reflexatildeo sobre o logos tenha a princiacutepio

alguma conotaccedilatildeo filosoacutefica Teoacutelogos como R Bultmann552 G Kimmel553 O Culmann554

concordam que o logos mencionado no proacutelogo do Evangelho segundo Joatildeo eacute uma niacutetida

referecircncia agrave ldquoPalavrardquo comunicadora de Deus sobre a qual Fiacutelon refletiu Eacute possiacutevel que na

virada do I para o II seacuteculo a expansatildeo cristatilde comeccedilasse a exigir uma atenccedilatildeo maior tambeacutem

aos conceitos e questotildees pertinentes ao mundo greco-romano555

Com a conversatildeo de filoacutesofos como Atenaacutegoras Aristides e do proacuteprio Justino as

correlaccedilotildees entre essas correntes de pensamentos se manifestam principalmente na produccedilatildeo

apologeacutetica cristatilde556

Justino escreve que do logos que inspirou os profetas Platatildeo tomou o que disse sobre

Deus ter criado o mundo transformando uma mateacuteria informe557 Segundo Minns e Parvis558

548 I311-5 549 BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950 550 KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91 Cf COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp 1507-1562 551 O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia PUC Rio de Janeiro 2003 p 179 552 Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004 553 Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983 554 Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002 555 ARZANI A A teologia do logoj no Quarto Evangelho Orientador Dr Paulo Beniacutecio Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008 pp 52-60 556 Cf WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982 557 I591

111

suas comparaccedilotildees entre algumas passagens das Escrituras e dos textos de Platatildeo satildeo

interpretaccedilotildees difiacuteceis de serem compartilhadas pois apresentam uma hermenecircutica muito

particular e em alguns pontos chega a interpretar o platonismo segundo formas comuns ao

estoicismo Destacando os elementos semelhantes ao cristianismo e outras correntes de

pensamento Justino alega ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim

todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinasrdquo559 Mas esses pontos de contato satildeo

limitados Ele escreve que

natildeo satildeo totalmente semelhantes como tambeacutem as dos outros filoacutesofos os estoacuteicos por exemplo poetas e historiadores De fato cada um falou bem vendo o que tinha afinidade com ele pela parte que lhe coube do logos seminal divino Todavia eacute evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros natildeo alcanccedilaram uma ciecircncia infaliacutevel nem um conhecimento irrefutaacutevel Portanto tudo o que de bom foi dito por eles pertence a noacutes cristatildeos porque noacutes adoramos e amamos depois de Deus o logos que procede do mesmo Deus ingecircnito e inefaacutevel Ele por amor a noacutes se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curaacute-los Todos os escritores soacute puderam obscuramente ver a realidade graccedilas agrave semente do logos neles ingecircnita560

Enquanto algumas correlaccedilotildees entre o pensamento cristatildeo e a cultura greco-romana

satildeo fruto da accedilatildeo dos democircnios para causar confusatildeo uma porccedilatildeo do logos pode ser

identificada para aleacutem daqueles que deteacutem o logos pleno

Nesse sentido ele escreve

Sabemos que alguns que professaram a doutrina estoacuteica foram odiados e mortos Pelo menos na eacutetica eles se mostram moderados assim como os poetas em determinados pontos por causa da semente do Logos que se encontra ingecircnita em todo o gecircnero humano (II71)

Heraacuteclito que foi banido de Eacutefeso por causa de suas ideias e tambeacutem o filoacutesofo

Musonius que dentre outros que sofreram algum tipo de hostilidade nos tempos de Nero a

Vespasiano561 satildeo citados como exemplo Natildeo haacute nenhum motivo evidente para Justino

mencionar Heraacuteclito exceto pela sua teoria sobre o logos Quanto a Gaius Musonius Rufus

seu nome eacute lembrado pelo acento moral de sua filosofia de inspiraccedilatildeo estoica que o tornou

ridiacuteculo a muitos soldados562 Desse modo procura-se destacar que ldquoos democircnios sempre se

empenharam em tornar odiosos aqueles que de algum modo quiseram viver conforme o

Logos e fugir da maldade (II72)

O apologista ainda considera como uma investida dos democircnios a pena de morte

estabelecida contra aqueles que lessem os livros de Histaspes da Sibila e dos profetas a fim

558Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 236 559 I6010 560 II132-5 561 TACITO Histoacuterias III81 562 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 42

112

de impedir por meio do terror que os homens consigam lendo-os o conhecimento do bem e

retecirc-los como seus escravos563

Segundo o apologista muito mais odiado que aqueles que possuem o logos seminal

satildeo os que tecircm conhecimento e contemplaccedilatildeo do logos total Conforme suas proacuteprias

palavras ldquoO logos de Deus eacute seu Filho [] E tambeacutem se chama mensageiro e embaixador

porque ele anuncia o que se deve conhecer e eacute enviado para nos manifestar tudo o que o Pai

nos comunicardquo564 Sendo os cristatildeos os detentores do logos total e sendo o logos total aquele

que anuncia o que se deve conhecer para se proceder corretamente e receber a recompensa

futura tudo se resume agrave submissatildeo agraves ideias cristatildes565

A forma de controle empregada pelos romanos e que conduz os cristatildeos diante dos

tribunais satildeo pintadas como um sinal da ignoracircncia despreziacutevel daqueles que se submetem agrave

irracionalidade da obscuridade demoniacuteaca em exerciacutecio de uma falsa justiccedila

O julgamento segundo a ldquorazatildeordquo eacute o julgamento final estabelecido pelo Deus cristatildeo e

sobre o qual o apologista pretende convencer a todos ao seu redor566 Os democircnios no

entanto natildeo conseguem convencer de que natildeo haveraacute a conflagraccedilatildeo para castigar os iacutempios

do mesmo modo que natildeo conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu A uacutenica coisa

que conseguem eacute fazer com que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em

meio aos maus costumes entregues agraves suas paixotildees e seguindo a opiniatildeo vatilde procurem tirar a

vida dos cristatildeos e os odeiem Os cristatildeos por outro lado satildeo apresentados como aqueles que

por pura compaixatildeo por eles procuram persuadi-los a se converterem

Os maus haacutebitos dos deuses satildeo reprovados por essa medida cristatilde pois serviriam para

a corrupccedilatildeo dos que eram educados tendo em vista que muitos consideravam ldquobelordquo serem

imitadores dos deuses567 O apologista natildeo pode admitir que uma mente sensata aceite as

accedilotildees de Zeus e de Ganimedes como ldquodivinasrdquo (I215) Por isso ele relaciona a disseminaccedilatildeo

desses mitos agraves artimanhas dos democircnios que induzem os homens agrave imoralidade Em

oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo dos democircnios Justino sustenta que aos cristatildeos foi ensinado que soacute poderiam

alcanccedilar a imortalidade aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus assim como

tambeacutem se sustenta que seratildeo castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e

563 Cf Tacitus Annales II32 XII52 Historias I22 II62 Cassius Dio Hist Rom 57157-8 564 I634-5 565 Cf PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988 566 Cf KERESZTES P Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986 567 E um pensamento que estava relacionado aos epicureus pelo menos Philodemus Sobre a Piedade 71

113

natildeo se converteram (I216) Para os outros estaacute guardado o dia do juiacutezo descrito com grande

tormento em que se encontraratildeo os injustos568

A moralidade cristatilde eacute destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e

comentaacuterios ldquodisseminados entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso

seu discurso sobressalta o valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de

temperanccedila569 que crescia em nuacutemeros naquela eacutepoca Tambeacutem recebem destaques a doutrina

cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos necessitados e a ausecircncia de

valor da ostentaccedilatildeo570 Com o mesmo tom piedoso seguem as afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia

a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico571 Desse modo Justino contribui tambeacutem

para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos propondo uma identidade

coletiva

Um conceito estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que chama de equiacutevocos e mal

entendidos ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja satildeo combatidos Essa sua atitude revela que o

processo de construccedilatildeo da identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada

principalmente pela necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os

variados grupos cristatildeos572 Os outros grupos cristatildeos como o dos seguidores de Marciatildeo satildeo

tidos como instrumentos nas matildeos dos democircnios (I581) Seus discursos satildeo ldquoirracionaisrdquo e

satildeo presas de doutrinas ateiacutestas do democircnio573

Tendo em vista que as pessoas satildeo capazes de agir bem ou mal devido agrave liberdade

concedida por Deus considera-se que em todas as partes haacute tambeacutem os que ldquolegislaram e

filosofaram conforme a reta razatildeordquo ou aparte dela ao mandarem que se faccedilam algumas coisas

e se evitem outras574 A ldquoreta razatildeordquo agrave qual Justino se refere eacute aquela que deriva do Logos

cristatildeo que permeia a criaccedilatildeo revela a mensagem de Deus aos homens desde outros tempos

pelas Escrituras e no seacutec I pelo proacuteprio Cristo e que assim estabelece o padratildeo de conduta

aos que desejam a ldquorecompensa eternardquo Desse modo eacute identificado um padratildeo de justiccedila

baseado nas crenccedilas e valores cultivados pelos cristatildeos que estatildeo proacuteximos a Justino e que L

W Barnard575 chega a chamar de uma ldquoproto-ortodoxiardquo Natildeo eacute possiacutevel resumir ou descrever

568 Is 6624 569 I151-7 570 I141-919 571 I161-6 572 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 573 Avlla Avlogwj w`j upoacute Lukou arnej sunhrpasmenoi( bora Twn avqewn dogmatwn kai daiacutemonwn ginontai I582 574 II68 575 Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 1967

114

o conteuacutedo dessas crenccedilas e valores a partir da anaacutelise das Apologias sabe-se poreacutem que o

apologista se refere agrave forma de pensar dos cristatildeos que lhe satildeo proacuteximos e se distanciam do

modo de pensar por exemplo do grupo de Marciatildeo Helena e Menandro

Justino contempla tambeacutem as criacuteticas daqueles que segundo o seu parecer ldquose

consideram filoacutesofosrdquo e que alegariam que as ideias cristatildes sobre um julgamento universal

futuro ldquosatildeo apenas ruiacutedos espalhafatosos e alarmismosrdquo e diriam que a ameaccedila do castigo no

fogo eterno natildeo passa de um instrumento despreziacutevel para que a ldquohumanidade viva retamente

por medo e natildeo porque a virtude eacute bela e gratificanterdquo (II91) Haacute indiacutecios de que Chrysippus

de Solis dizia que Platatildeo errava em fazer do temor aos deuses um instrumento para a detenccedilatildeo

da injusticcedila e que o argumento do castigo divino natildeo eacute diferente das histoacuterias que as matildees

contam para assustar as criancinhas576 E ainda segundo Diogenes Laertius Crisipo

sustentava que a ldquovirtude [] eacute uma disposiccedilatildeo harmoniosa escolha digna para seu proacuteprio

bem e natildeo de esperanccedila medo ou qualquer outro motivo externordquo577 Em sua soluccedilatildeo Justino

toma emprestado o argumento de Alexandre de Afrodiacutesias578 que defendeu a responsabilidade

moral humana e diz ldquose isto natildeo eacute como dizemos entatildeo natildeo existe Deus ou se existe natildeo se

importa em nada com os homensrdquo579 Virtude e o viacutecio nada seriam e em consequecircncia nem

os legisladores castigariam com justiccedila os que transgridem as boas ordenaccedilotildees Segundo

Minns e Parvis580 a hipoacutetese de Deus natildeo se importar com os seres humanos parece refletir a

visatildeo estoica que estabelecia a teoria do bem e do mal ou virtude e infelicidade considerando

a proximidade com o universo natural e a administraccedilatildeo do mundo Assim quando

Chrysippus581 mantinha que a natureza universal e a administraccedilatildeo do mundo era o

fundamento da teoria estoica sobre o bem e o mal ele estava apelando agrave racional e

providencial atividade de deus cuja conformidade com o qual constitui o bem para o homem

e cuja carecircncia de conformidade constitui o mal

Todavia Justino pontua que os legisladores ldquonatildeo satildeo injustos e o Pai deles ensina

atraveacutes do Logos a fazer o que ele mesmo fazrdquo e neste sentido ldquonatildeo satildeo injustos os que

576 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1040b 577 Diogenes Laertius Vida dos filoacutesofos eminentes VII89 578 ldquopois se natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo e virtude e viacutecio eles argumentam tambeacutem natildeo haacuteacutelouvor ou reprovaccedilatildeo e sem estes natildeo haacute accedilotildees certas ou erradas e se natildeo haacute essas tambeacutem natildeo haacute virtude ou viacutecio e se natildeo haacute essas eles dizem natildeo haacute seque deuses Mas antes assim designadamente que natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo chega a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas vem a estar em concordacircncia com o destino como tem sido mostrado Desse modo a uacuteltima posiccedilatildeo segue tambeacutem mas isto eacute absurdo e impossiacutevel (Alexandre de Afrodisias De fato36) 579 II91 580 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 305 nota 1 581 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1035c-d

115

aderem a essas virtudesrdquo582 Assim o apologista constroacutei outro padratildeo ldquoracionalrdquo atraveacutes do

qual os juiacutezes deveriam julgar para natildeo serem julgados por Deus O novo fundamento da

justiccedila no cumprimento dos seus anseios apologeacuteticos se resume a deixar os cristatildeos em paz

pois segundo seu ponto de vista natildeo havia nenhuma evidecircncia de que os fieacuteis fossem inimigos

do Impeacuterio Ele busca convencer o Imperador e seus filhos a impedir que os governantes e

magistrados locais empreendam accedilotildees anticristatildes apontando as razotildees e a racionalidade cristatilde

43 O governo o controle e os governantes

Justino ndash nessas suas peticcedilotildees apologeticamente fundamentadas que tinham como

destinataacuterios especiais Antonino Pio e seus filhos583 reconhecidamente apreciadores da

filosofia ndash alega que natildeo havia nenhuma ldquorazatildeordquo [logos] para se perseguirem os cristatildeos pois

seria a proacutepria ldquorazatildeordquo [o Logos] quem exige que ldquoos amantes da piedade e da filosofiardquo584

natildeo faccedilam algo irracionalmente

No capiacutetulo anterior foi destacada a criacutetica de Justino sobre os governantes agora

poreacutem eacute oportuno notar o perfil do governante traccedilado pelo apologista dentro do seu

argumento da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem Segundo sua teoria os homens

revestidos de autoridade para governar natildeo devem valorizar nada aleacutem da ldquoverdaderdquo Aleacutem

disso a partir de sua inspiraccedilatildeo platocircnica nota-se sua exigecircncia agravequeles que satildeo ldquopiedosos e

filoacutesofosrdquo assim como satildeo chamados o Imperador e seus filhos que deveriam julgar com

retidatildeo para que todos gozem de bem estar Governar com retidatildeo eacute para Justino governar

segundo a ldquoreta razatildeordquo Esse conceito eacute cristianizado mas aleacutem disso um governante ideal

ldquosuperiorrdquo eacute reverenciado ldquoo logosrdquo A quem ele chama de ldquoo rei mais alto o governante

mais justo que conhecemos depois de Deus que o gerourdquo (I Apol 127) Manifesta-se um

jogo semioacutetico com a palavra logos ou razatildeo

582 II92 583 A I Apologia foi dirigida ao Imperador Antonino Pio e a seus filhos Veriacutessimo (Marco Aureacutelio) e Lucio Vero A II Apologia pode ser continuaccedilatildeo da primeira como sustentou C Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006) fragmentos de anotaccedilotildees de um segundo escrito que natildeo pode ser entregue quando Justino foi preso durante o iniacutecio do governo de Marco Aureacutelio por volta de 160 dC como sustentam Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 passim) A teoria mais tradicional eacute admitir que a II Apologia foi dirigida ao imperador Marco Aureacutelio mas como seraacute visto mais adiante haacute indiacutecios de que Justino tinha por destinataacuterios secundaacuterios todos os que pudessem ler o texto e se informar acerca da inocecircncia dos cristatildeos A soluccedilatildeo para a questatildeo dos destinataacuterios das Apologias exige uma investigaccedilatildeo agrave parte mas natildeo haacute duacutevidas de que Justino pretendia que se texto fosse conhecido por Antonino e seus filhos Marco e Lucio que desde cedo atuaram ao lado 584 I125

116

Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e recusem as

coisas maacutes e assim controlar os excessos humanos (I Apol 128) Do mesmo modo eacute o logos

quem deve orientar os governantes para que o bem ou a ldquosalvaccedilatildeordquo opere sobre o ldquogecircnero

humanordquo Por isso ele escreve ldquose os filoacutesofos e legisladores disseram e encontraram algo de

bom foi elaborado por eles pela investigaccedilatildeo e intuiccedilatildeo conforme a parte do logos que lhes

couberdquo585 Poreacutem por natildeo conheceram a integralidade do Logos que eacute Cristo ldquoeles

frequentemente se contradisseram uns aos outrosrdquo586 Aqueles que antes de Cristo tentaram

investigar e demonstrar as coisas pela razatildeo conforme as forccedilas humanas foram levados aos

tribunais como iacutempios e amigos de novidades Soacutecrates aparece como um exemplo que

ratifica a fala de Justino Segundo o apologista ele foi acusado ldquodos mesmos crimes que [os

cristatildeos]rdquo587 A condenaccedilatildeo seria em razatildeo da oposiccedilatildeo daquele filoacutesofo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica e

a outros poetas ensinando os homens a rejeitar ldquoos maus democircniosrdquo envolvidos com a

idolatria e ao mesmo tempo os exortando ao conhecimento de Deus para eles desconhecido

por meio de investigaccedilatildeo racional dizendo Natildeo eacute faacutecil encontrar o Pai e artiacutefice do universo

nem quando o tivermos encontrado eacute seguro dizecirc-lo a todos588 Todavia se ningueacutem deu

ouvidos a Soacutecrates ateacute que ele deu a sua vida por essa doutrina em Cristo acreditaram natildeo soacute

filoacutesofos e homens dos quais o proacuteprio Justino eacute um mas tambeacutem artesatildeos e pessoas

totalmente ignorantes que souberam desprezar a opiniatildeo o medo e a morte Justino pretende

assim apresentar o poder de abrangecircncia da mensagem cristatilde que deriva do Logos que em

parte foi conhecido por Soacutecrates pois como o apologista escreve ldquoele era e eacute o Logos que

estaacute em tudo e foi quem predisse o futuro atraveacutes dos profetas e feito de nossa natureza por

si mesmo nos ensinou essas coisasrdquo589

A partir desse tipo de comparaccedilatildeo retrata-se o caso que ocorreu sob Urbico na cidade

de Roma Eacute provaacutevel que outros casos como esse acontecessem em regiotildees diferentes590

Segundo Justino ldquoo fato eacute que em todas as partes haacute gente disposta a [] levar [os cristatildeos] agrave

morterdquo591 A reprovaccedilatildeo cristatilde das atitudes condenaacuteveis ou repreensiacuteveis de outras pessoas era

um dos motivos para que os cristatildeos fossem denunciados aos governantes ldquoendemoniadosrdquo592

Ele escreve especialmente sobre certa mulher cristatilde na eacutepoca do prefeito Urbico que

procurou persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e lhe 585 II102 586 II102 587 II105 588 II105-6 Citaccedilatildeo de Platatildeo Timeu 28c 589 II108 590 II11 591 II12 592 II13

117

anunciando o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme

a ldquoreta razatildeordquo Naquela ocasiatildeo a uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se

era cristatildeo Apoacutes confessar recebeu condenaccedilatildeo ao supliacutecio O mesmo aconteceu com Luacutecio

que tambeacutem advertiu a Urbico593 de que ele natildeo estava ldquojulgando de modo conveniente ao

imperador Pio nem ao Ceacutesar filoacutesofo nem ao filho de Ceacutesar amigo do saber nem ao sacro

Senadordquo (II216)

Justino procura persuadir o imperador seus filhos e demais autoridades a barrarem as

condenaccedilotildees dos cristatildeos num momento quando natildeo haacute indiacutecios do estabelecimento de uma

lei concreta sobre a puniccedilatildeo dos cristatildeos Em vaacuterias regiotildees e em situaccedilotildees variaacuteveis os atritos

ocasionados pela presenccedila e expansatildeo cristatilde ocasionavam denuacutencias tidas pelos proacuteprios

cristatildeos como ldquocaluniosasrdquo a respeito da nova religiatildeo As accedilotildees anticristatildes se refletiam

muitas vezes na busca por sua condenaccedilatildeo em discussotildees em praccedilas ou em denuacutencias

dirigidas aos magistrados Em meados do seacuteculo II as delaccedilotildees sobre os cristatildeos variavam

pois seus opositores procuravam brechas juriacutedicas para enquadraacute-los A superstitio cristatilde

poderia proporcionar o oacutedio de muitos que resistiam agraves suas implicaccedilotildees morais sociais ou

simplesmente religiosas Por isso as denuacutencias ou posicionamentos se contradiziam em

lugares e ocasiotildees diferentes Taacutecito identificou algumas flagitia nas praacuteticas religiosas cristatildes

ou nos comentaacuterios sobre elas mas essa natildeo foi a opiniatildeo de Pliacutenio Segundo que julgou os

cristatildeos dignos de condenaccedilatildeo somente pela contumaacutecia que apresentaram diante de um

magistrado Para outros deveriam ser rejeitados pelo seu ateiacutesmo Comer o corpo e o sangue

de Cristo tambeacutem poderia provocar suspeitas de canibalismo594

O apologista contrasta a imagem do ldquopiordquo e ldquosaacutebiordquo governante representada na figura

de Antonino e seus filhos agravequela do falso filoacutesofo ou seja aquele que estaacute contra a ldquorazatildeordquo A

sua morte em defesa da ldquorazatildeordquo cristatilde aparece como uma possiacutevel analogia a Soacutecrates

devido aos seus embates com Crescente em Roma O falso ldquofiloacutesofordquo eacute aquele que natildeo sabe

uma palavra sobre os cristatildeos mas os calunia publicamente como esses fossem ldquoateus e

iacutempiosrdquo595 Ele adapta a esse novo contexto Xenofonte596 que conta que em uma encruzilhada

vieram ao encontro de Heacuteracles597 a virtude e o viacutecio na forma de mulheres

O viacutecio estava vestido com roupas finas tinha rosto atraente e adornado com enfeites e disse a Heacuteracles que se ele a seguisse ela o faria viver sempre no prazer

593 II215 594 Cf MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 winter1994 pp 413-442 595 wj avlogoj kai avsebwn Cristianwn ontwn( (II82) 596 Memorabilia II121-34 597 Heraacutecles tambeacutem foi invocada por estoicos como exemplo de luta moral (Churniss em Plutarco De Communibbus Notitiis adversus stoicos 1065c em Moralia)

118

e enfeitado com o mais belo ornamento semelhante ao que ela usava Ao contraacuterio a virtude com rosto e veste severos lhe disse Se seguires a mim natildeo te enfeitarei com beleza ou adorno passageiro e corruptiacutevel mas com enfeites eternos e belos598

Semelhantemente Justino considera

estamos persuadidos de que alcanccedilam a felicidade todos aqueles que fazem dos bens aparentes e seguem o que parece duro e contra a razatildeo Porque a maldade veste as suas accedilotildees com as qualidades da virtude e do que eacute de fato bem remedando o incorruptiacutevel pois ela de si natildeo tem nada de incorruptiacutevel e nem eacute capaz de produzi-lo e torna escravos seus os homens que se arrastam pelo chatildeo atribuindo agrave virtude os males proacuteprios da maldade Contudo os que compreendem os bens verdadeiros proacuteprios da virtude tambeacutem se tornam incorruptiacuteveis pela virtude599

Desse modo Justino procura constranger o imperador a partir do seu argumento

apologeacutetico e do jogo semioacutetico em torno da ldquorazatildeordquo e da filosofia a ser favoraacutevel aos

cristatildeos pois natildeo seria de nenhum modo virtuoso combater ou permitir que sejam combatidos

aqueles que segundo seu ponto de vista tecircm muito a contribuir para a paz no Impeacuterio

A contribuiccedilatildeo da religiatildeo cristatilde eacute apresentada dentro do seu plano apologeacutetico que

busca convencer natildeo apenas dos efeitos positivos do caraacuteter de suas crenccedilas para a

manutenccedilatildeo da ordem mas tambeacutem na apresentaccedilatildeo de alguns pontos fundamentais do seu

conteuacutedo que rebatam as ldquocaluacuteniasrdquo dos acusadores e apresentem o seu aspecto ldquoracionalrdquo Ao

explicar alguns fundamentos da crenccedila cristatilde como o combate agrave idolatria eacute possiacutevel notar que

o apologista eacute sensiacutevel em sua anaacutelise agrave diversidade de ideias e crenccedilas que interagem e se

contradizem no Impeacuterio Essa contradiccedilatildeo aparece tambeacutem entre os intelectuais e as crenccedilas

do povo comum Segundo Paul Veyne600 ldquotodo erudito hesitava entre o ceticismo da alta

sociedade e o esoterismo cultivadordquo Isso leva Justino a formular um argumento que busque

apresentar os aspectos racionais das crenccedilas cristatildes ainda que isso se reduza a um jogo

semioacutetico e linguiacutestico em torno do logos De qualquer forma a religiatildeo cristatilde aparece como

uma opccedilatildeo de superaccedilatildeo tanto da religiatildeo pagatilde questionada pelos intelectuais em muitos

aspectos quanto como uma filosofia sublime ou superior601 que tem maior alcance e eficaacutecia

no controle das accedilotildees humanas602 Assim ele escreve ldquoem Cristo acreditaram natildeo soacute filoacutesofos

e homens cultos mas tambeacutem artesatildeos e pessoas totalmente ignorantes que souberam

598 II114-5 599 II116-8 600 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 280 601 ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Logos inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (II101) E tambeacutem ldquoas nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo (II152) 602 ldquoEntre noacutes tudo isso se pode ouvir e aprender ateacute daqueles que ignoram as formas das letras pessoas ignorantes e baacuterbaras de liacutengua mas saacutebias e fieacuteis de inteligecircncia e ateacute pessoas mutiladas e privadas de visatildeo De onde se pode entender que isso natildeo acontece pela sabedoria humana mas se diz que eacute pela forccedila de Deusrdquo (I6011)

119

desprezar a opiniatildeo o medo e a morte porque ele eacute a virtude do Pai inefaacutevel e natildeo um vaso

de humana razatildeordquo603

Apoacutes explicar os pontos fundamentais do pensamento cristatildeo Justino diz que ldquodaqui

por diante noacutes natildeo nos sentiremos irresponsaacuteveis mesmo que continueis increacutedulos pois o

que dependia de noacutes jaacute foi feito e chegou ao fimrdquo (558) Seguindo sua articulaccedilatildeo para

ratificar a fidelidade dos cristatildeos a Deus e ao Impeacuterio nota-se que o apologista faz uso do

proacuteprio efeito da doutrina cristatilde que sugere como instrumento de controle para persuadir o

imperador tambeacutem pelo possiacutevel temor Assim com um tom de advertecircncia ele escreve

[] se natildeo atendeis agraves nossas suacuteplicas nem esta exposiccedilatildeo puacuteblica que vos fazemos de todo o nosso modo de viver em nada ficaremos prejudicados pois cremos ou melhor estamos persuadidos de que cada um pagaraacute a pena conforme mereccedilam as suas obras pelo fogo eterno e que teraacute que prestar contas a Deus segundo as faculdades que recebeu do proacuteprio Deus conforme nos indicou Cristo dizendo A quem Deus deu mais mais seraacute exigido por Deusrdquo604 (I173-4)

Em outras palavras esse eacute um tipo de alerta ao imperador sobre a sua responsabilidade

diante de Deus devido a sua posiccedilatildeo de autoridade E como se deveria esperar de um

governante ldquopiordquo e ldquoamante da sabedoriardquo tal como foi idealizado no perfil construiacutedo por

Justino segundo sua leitura logocecircntrica Ou seja tendo a ideia do logos cristatildeo como

referecircncia o apologista escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da

verdade respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees

desprezai-as Natildeo decreteis poreacutem pena de morte como contra a inimigos contra aqueles

que nenhum crime cometemrdquo605 Sua peticcedilatildeo eacute seguida de outro alerta ldquoescatoloacutegicordquo ldquovos

avisamos de antematildeo que se vos obstinais em vossa iniquidade natildeo escapareis do futuro

julgamento de Deusrdquo606 Em outro ponto nesse mesmo sentido lecirc-se ldquose tambeacutem voacutes ledes

como inimigos estas nossas palavras aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis

fazer A noacutes isso nenhum dano causaraacute a voacutes poreacutem e a todos os que injustamente nos

odeiam e natildeo se convertem trar-vos-aacute castigo de fogo eternordquo (I456)

Aliada agrave ciecircncia dos benefiacutecios da religiatildeo cristatilde o apologista deixa claro o seu desejo

de que ldquotodos os homens de todo o mundordquo conheccedilam ldquoa verdaderdquo o que incluiacutea o imperador

e seus filhos Desses uacuteltimos deseja-se tambeacutem que julguem ldquocom justiccedila de acordo com [a]

piedade e filosofiardquo e que se possiacutevel publiquem esse escrito para o conhecimento de todos607

Natildeo eacute possiacutevel saber se as Apologias chegaram ateacute o imperador e eacute pouco provaacutevel

que ela tenha circulado amplamente conforme desejava Justino No entanto segundo Sara 603 II108 604 Fazendo menccedilatildeo a Lc 1248 605 I681 606 I681 607 II152

120

Parvis608 seu modo de escrever em defesa dos cristatildeos teria influenciado outros apologistas

As aproximaccedilotildees praticadas por esse pensador em sua manobra teoloacutegica buscam a conversatildeo

inclusive do imperador Em oposiccedilatildeo agrave forma controle que emerge dos clamores reativos

populares que estariam impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do nomen

Christianum o apologista acaba por formular uma reflexatildeo teoloacutegica da histoacuteria que

contempla a relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo Se por um lado estaacute a criacutetica agrave forma de

manutenccedilatildeo da ordem imposta pelos romanos que dava margem para que denuacutencias

decorrentes de atritos locais que conduziam os cristatildeos agrave morte por outro emerge a sua teoria

sobre a cooperaccedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo da sociedade devido ao caraacuteter de suas crenccedilas

Trata-se de um confronto de ideias cujos efeitos deveriam ser aguardados O modelo de

controle cristatildeo pode-se dizer eacute aquele que vem do alto ou de dentro Eacute fruto da assimilaccedilatildeo

da doutrina cristatilde que tem um Deus que zela pela justiccedila e pela moral e que exige uma

conduta impecaacutevel de todos os seus fieacuteis Os que creem e os que natildeo creem estatildeo sob a

condiccedilatildeo do seu juiacutezo O Deus cuja feacute os cristatildeos professam e procuram comunicar aos

demais natildeo tem nacionalidade Ele eacute o criador dos homens e da razatildeo [logos] Todo ser

humano recebeu uma semente dessa razatildeo mas os democircnios maleacutevolos satildeo os responsaacuteveis

por obscurecer o julgamento correto que conduz todo o genus humanus a uma vida reta justa

e virtuosa para a sua recompensa eterna Essa racionalidade humana eacute a responsaacutevel por fazer

com que os homens reconheccedilam e atentem para a mensagem pelo logos que revela Deus pelas

Escrituras ignoradas pelos judeus e examinas pelos cristatildeos Esse temor diante de Deus

entatildeo natildeo deveria ser rechaccedilado como uma superstitio despreziacutevel mas deveria ser acatada

como um mecanismo capaz de traduzir razoavelmente uma doutrina que agregue pontos de

aproximaccedilatildeo aos assuntos filosoacuteficos e a uma mensagem significativa para as pessoas sem

instruccedilatildeo Deve ser reconhecida natildeo como uma mensagem de odio humanus genus mas de

salvatio humanus genus609 sob o domiacutenio do Logos que se traduz na submissatildeo e conversatildeo

ao cristianismo

608 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 609 Isto eacute ldquosalvaccedilatildeo da humanidaderdquo

121

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A situaccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II era instaacutevel e

revelava condenaccedilotildees esporaacutedicas Gritarias e tumultos puacuteblicos agraves vezes pressionavam os

magistrados para que condenassem os cristatildeos sem que houvesse uma ideia clara sobre como

enquadraacute-los em uma lei comum Um pouco antes Adriano havia sido consultado por

governantes610 como Graniano sobre esses problemas Naquela eacutepoca o imperador

recomendou a Minuacutecio Fundano que examinasse de modo particular as denuacutencias formais e

que natildeo desse espaccedilo para a pressatildeo dos tumultos puacuteblicos

Ainda um pouco antes a forma como deviam ser conduzidos os processos contra os

cristatildeos despertava algumas duacutevidas em Pliacutenio Segundo no Ponto-Bitiacutenia A crenccedila cristatilde era

vista como uma superstitio cujo temor os faziam repudiar os deuses comuns o culto ao

Imperador e todos os aspectos da vida puacuteblica que apresentasse algum viacutenculo com outras

crenccedilas e com a ldquoimoralidaderdquo Esse afastamento das interaccedilotildees sociais e o desprezo pelos

deuses tradicionais causou a aversatildeo de muitos das camadas populares e a desconfianccedila das

autoridades A estranheza dessa superstitio favoreceu a disseminaccedilatildeo de caluacutenias como a de

que a celebraccedilatildeo da ceia fosse algum tipo de ritual antropofaacutegico e que as reuniotildees cristatildes

privadas constituiacuteam-se em orgias Desse modo o nonem christianum assumiu uma forte

conotaccedilatildeo negativa pelas regiotildees do Impeacuterio A condenaccedilatildeo dos membros dessa nova religiatildeo

tinha precedentes desde a culpa pelo incecircndio de Roma nos tempos de Nero embora nenhuma

evidecircncia concreta a uma lei que condenasse o crime de ldquocristianismordquo seja encontrada na

primeira metade do II seacuteculo Trajano ratificou o procedimento de Pliacutenio em condenar os

cristatildeos por confessarem-se ldquocristatildeosrdquo todavia essas condenaccedilotildees tinham caraacuteter

admoestativo para desestimular o crescimento do grupo As buscas ou perseguiccedilotildees de fato

natildeo deviam entrar em curso Visava-se minar o corpo estranho representado pelo grupo

antissocial dos cristatildeos da sociedade e garantir a sua reintegraccedilatildeo mediante o perdatildeo aos que

abandonassem a feacute Se para alguns como Taacutecito a superstitio incidia sobre flagitia para

outros como Pliacutenio nenhum flagitium era detectado provavelmente eram produto das

caluacutenias e rumores das massas

A religiatildeo e os deuses tinham diferentes conotaccedilotildees entre a classe letrada entre os

poetas e para o povo sem instruccedilatildeo Desde os tempos de Platatildeo e Soacutecrates a filosofia

610 Deve-se considerar que a ldquoCarta de Antonino ao conciacutelio da Aacutesiardquo citada por Euseacutebio na Histoacuteria Eclesiaacutestica IV131-8 estava correta

122

sustentou criacuteticas agrave religiatildeo tradicional No II seacuteculo dC a influecircncia do cultivo do saber e do

exerciacutecio filosoacutefico podia ser percebida nas correntes de pensamento tais como o estoicismo e

o neoplatonismo que aproximavam a religiatildeo da moral Justino recebeu educaccedilatildeo grega e

provavelmente era filho de um funcionaacuterio romano Priscus cuja famiacutelia pode ter atuado na

colonizaccedilatildeo de Flavia Neaacutepolis na Palestina De laacute partiu para sua jornada pelos caminhos da

filosofia ateacute conhecer as doutrinas cristatildes Como ldquofiloacutesofordquo eacute possiacutevel que sustentasse criacuteticas

agrave forma de pensar das pessoas comuns considerada expressatildeo de ldquoexcessos supersticiososrdquo

Na condiccedilatildeo de cristatildeo passou a pensar a religiatildeo a partir da filosofia Desse modo a feacute cristatilde

passou a representar em seu pensamento a ldquofilosofia verdadeirardquo e ldquodivinardquo Diante dos atritos

sofridos pelos cristatildeos em seu tempo recorreu ao poder da argumentaccedilatildeo e da conveniecircncia

da escrita para defender os cristatildeos da ldquoinjusticcedilardquo sofrida Em uma peticcedilatildeo apologeticamente

fundamenta escreveu a Antonino Pio e a seus filhos clamando para que os cristatildeos natildeo

fossem condenados apenas pela confissatildeo de ldquocristianismordquo Para alcanccedilar o favor do

imperador Justino procura desfazer a conotaccedilatildeo negativa em torno desse nomen christianum

por meio da explicaccedilatildeo dos principais toacutepicos das doutrinas cristatildes e da afirmaccedilatildeo da

submissatildeo dos cristatildeos

A partir da reflexatildeo sobre suas ideias compreende-se o paradoxo entre tipo de controle

social desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia a esses (ou seja

os cristatildeos) que satildeo tidos como ameaccedila agrave ordem e por outro lado o tipo de controle social

apontado nas Apologias que daacute razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos Justino tece uma criacutetica jaacute

conhecida sobre a imoralidade dos deuses pagatildeos Ele natildeo se sente nem um pouco intimidado

em sustentar que os deuses nada satildeo aleacutem de uma ilusatildeo criada pelos ldquomaus democircniosrdquo para o

desvirtuamento dos homens Os ldquomaus democircniosrdquo satildeo os responsaacuteveis pelo obscurecimento

de toda a ldquoverdaderdquo A ldquoverdaderdquo eacute o conhecimento superior que conduz a humanidade agrave

moralidade e eacute reconhecida pelo exerciacutecio da ldquorazatildeordquo A ldquorazatildeordquo eacute algo divino compartilhado

a todos os homens e encarnada na pessoa de Jesus Cristo o mestre dos cristatildeos Sua

encarnaccedilatildeo eacute o cumprimento das profecias das Escrituras sustentadas pelos judeus que por

natildeo a compreenderem corretamente natildeo satildeo capazes de reconhecer o cumprimento da

expectativa messiacircnica611 Por reconhecer mediante uma hermenecircutica que busca identificar

o maacuteximo de evidecircncias possiacuteveis sobre o cumprimento das Escrituras em Cristo612 o

611 ldquoExpectativa messiacircnicardquo expressatildeo teoloacutegica utilizada para se referir a esperanccedila de que o messias libertador de Israel chegaria conforme os profetas israelitas haviam predito 612 Tambeacutem chamada de ldquohermenecircutica cristocecircntricardquo ou no que se refere agrave comunicaccedilatildeo da mensagem divina pelo Logos uma ldquohermenecircutica logocecircntricardquo

123

cumprimento das profecias julga prudente reconhecer as advertecircncias divinas pelas escrituras

sobre o julgamento futuro

Justino desenvolve uma leitura teoloacutegica da histoacuteria contrastando o julgamento a que

satildeo submetidos os cristatildeos e o julgamento final de Deus O primeiro considerado um

julgamento ldquoirracionalrdquo e momentacircneo movido pela cegueira produzida pelos maus

democircnios enquanto o segundo eacute idealizado como um julgamento divinamente justo e eterno

A accedilatildeo dos primeiros governantes estaacute relacionada a uma preocupaccedilatildeo com a manutenccedilatildeo da

ordem que os leva a acatar as denuacutencias caluacutenias e mobilizaccedilotildees contra os cristatildeos Eacute um tipo

de controle social que emerge de baixo pela repulsa do povo por aqueles que representavam

uma ameaccedila a pax deorum devido agrave condenaccedilatildeo ao culto dos deuses Justino acredita que em

meio agrave variedade de ideias e crenccedilas que constituem o quadro social do Impeacuterio os cristatildeos

natildeo deveriam ser reprimidos pelas autoridades por pensarem diferente Desse modo ele se

empenha em mostrar as correlaccedilotildees existentes entre as coisas sustentadas pelos cristatildeos e

outros pontos da cultura greco-romana Enquanto algumas correlaccedilotildees satildeo consideradas

estrateacutegias do democircnio para enganar os homens outras satildeo consideradas a manifestaccedilatildeo da

accedilatildeo do logos que comunica a verdade quer seja pelo conhecimento que os gregos tiveram

pelas Escrituras judaicas ou pelo logos spermatikos comum ao gecircnero humano Tudo o que

foi dito escrito ou julgado corretamente segundo a razatildeo eacute considerado consonante com o

posicionamento dos cristatildeos Pois eacute a ldquorazatildeordquo ou logos que deve conduzir as accedilotildees humanas

para a salvaccedilatildeo Desse modo aleacutem de procurar investir as doutrinas cristatildes de aspectos

racionais Justino tambeacutem busca deixar claro que os cristatildeos natildeo satildeo nenhuma ameaccedila ao

Impeacuterio Os fieacuteis satildeo apresentados como os melhores cooperados do Impeacuterio na manutenccedilatildeo

da paz devido ao caraacuteter das suas doutrinas Contrastando em alguns pontos com o tipo de

controle exercido sobre os soldados que juram fidelidade sem esperarem algo duradouro em

troca Justino fala do tipo de controle que vem ldquodo altordquo A crenccedila no controle absoluto do

Deus cristatildeo eacute apresentada como uma alternativa para solapar a incoerecircncia manifestada na

reverecircncia a deuses tatildeo desregrados e impiedosos quanto aos seres humanos que natildeo

poderiam servir de exemplo de conduta Natildeo haacute muitos detalhes acerca da moralidade cristatilde

mas ela parece estar relacionada agrave moderaccedilatildeo a restriccedilotildees sexuais ao respeito agrave verdade e aos

outros Segundo essa crenccedila cristatilde toda pessoa eacute livre para escolher como deseja viver mas

um dia estaraacute diante do juiacutezo do Deus absoluto do qual ningueacutem pode esconder nada

Tambeacutem eacute nesse sentido que satildeo identificados os cristatildeos Os cristatildeos satildeo definidos como

praticantes de um ideal de vida a seguir fortemente caracterizado pelo moralismo estrito

124

Desse modo Justino acredita que a disseminaccedilatildeo das doutrinas cristatildes poderia servir para

controlar os excessos humanos e as injusticcedilas

Esse tipo de ferramenta de controle foi empregado inclusive para constranger o

imperador a ouvi-lo Aleacutem de considerar irracional desprezar a doutrina dos cristatildeos o

apologista faz uso dessa ferramenta de controle para destacar que a uacutenica coisa que os

romanos poderiam fazer pelos cristatildeos em sua oposiccedilatildeo era lhes tirar a vida algo que

ironicamente o apologista considera insignificante visto que todos um dia morreratildeo Todavia

sustentando que a vida natildeo termina no tuacutemulo Justino alerta que a injusticcedilas como essas

Deus retribuiraacute um dia o castigo eterno enquanto para os que satildeo piedosos e justos estaacute

guardada uma ldquorecompensa eternardquo

Talvez as Apologias de Justino nunca tenham chegado ao seu destinataacuterio

especificado E se chegaram natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que tenham surtido um efeito

positivo Justino morreu anos mais tarde Todavia seu martiacuterio nos tempos de Marco Aureacutelio

tornou-se inspiraccedilatildeo para outros escritores como Atenaacutegoras ou Teoacutefilo de Antioquia Ao

revelar uma relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo a partir das accedilotildees anticristatildes seus escritos

se tornam peccedila fundamental para se compreender como as suspeitas e caluacutenias que incidiam

sobre os cristatildeos despertaram pessoas como esse mestre para pensar a relaccedilatildeo entre a nova

religiatildeo e a estrutura social e poliacutetica existente Se em siacutentese o que suas Apologias

pretendiam de fato era a retirada dos empecilhos para a conversatildeo dos pagatildeos elas satildeo

tambeacutem a primeira manifestaccedilatildeo da ideia de que para proporcionar a conversatildeo dos ldquooutrosrdquo e

o abandono dos rituais religiosos que permeavam a vida puacuteblica e os eventos sociais no

Impeacuterio era preciso pensar a religiatildeo cristatilde como uma alternativa que oferecesse algum tipo

de vantagem social e poliacutetica

Quando se busca por exemplo compreender as vantagens identificadas pelos romanos

na autorizaccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no IV seacuteculo manifesta-se a necessidade de se

investigar sobre as raiacutezes da aproximaccedilatildeo entre religiatildeo cristatilde e o Impeacuterio Eacute pelo exame das

Apologias de Justino Maacutertir que se percebe que em grande medida tal aproximaccedilatildeo eacute fruto

da reflexatildeo apologeacutetica que procurar livrar os cristatildeos da condenaccedilatildeo das autoridades romanas

e ao mesmo tempo em sintonia com a orientaccedilatildeo missionaacuteria na propagaccedilatildeo da mensagem

cristatilde busca livrar os romanos da condenaccedilatildeo eterna de Deus por meio da conversatildeo A

condenaccedilatildeo do culto aos deuses pagatildeos e da religiatildeo ciacutevica associada agrave contumaacutecia cristatilde em

natildeo contradizer suas crenccedilas em funccedilatildeo das determinaccedilotildees romanas exigiu uma reflexatildeo

sobre a sua contribuiccedilatildeo social para o Impeacuterio que os isentasse da culpa de traiccedilatildeo falta de

civismo ou algum tipo de conspiraccedilatildeo do ldquoreino de Deusrdquo Ateacute meados do seacuteculo II as

125

acusaccedilotildees variavam em cada regiatildeo e um paralelo que proporcione uma anaacutelise entre cada

uma delas tambeacutem parece ser um tema digno de uma investigaccedilatildeo especiacutefica e um desafio que

ainda precisa ser encarado

126

REFEREcircNCIAS

Fontes principais

MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005

MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006

JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995

Referecircncas gerais

AGOSTINHO de Hipona A cidade de Deus Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2000

ALCINOOS Enseignement des doctrines de Platon Les Belles Lettres Paris 1990

APHRODISIAS Alexandre drsquo De fato ad Imperatores Ed Guilaume de Moerbek e Pierre Thillet Paris J Vrin 1963

APULEIO Lrsquoautodifesa (apologia di segrave e della magia) Ed Bruno Cassianelli Caserta Edizioni UTEM 1948

AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] vol29 n2 pp 341-356 2010 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019

ANDRESEN C Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft Berlin-New York v44 pp157-195 1952-1953

ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Walter de Gruyter und co Berliacuten 1955

ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris Librairie Alphonse Picard et Fils 1909

127

ARISTIDES Aelius Orationes In Aristides ex recensione Guilielmi Dindorfii Leipzig Weidmann 1829

ARZANI A A teologia do loacutegoj no Quarto Evangelho Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Escola Superior de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008

ATHENAGORAS A Plea for the Chrstians In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995

AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875

AYRES Lewis LOUTH Andrew YOUNG Francecircs M (org) The Cambridge history of early Christian life New York Cambridge 2007

BAGATTI B S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319

BARCELOgrave P Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002

BARNARD L W Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology v 22 n 2 pp 152-164 jun1969

________ Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967

BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 pp 30-50 1968

BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 pp 538-555 2009

BAUMGARTNER M Social control from below In D Black (ed) Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 Orlando Academic Press 1984

BAYET Jean La religion romaine histore politique et psychologique Paris Payot 1976

BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998

BENNET J Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005

BENOIcircT Simon Giudaismo e Cristianesimo una storia antica Bari Laterza 2005

128

BIBLIA Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50])

BIBLIA Sagrada ediccedilatildeo da CNBB 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2002

BLACK Donald The Behaviour of Law New York Academic Press 1976

_______ Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 New York Academic Press 1984

_______ Toward a General Theory of Social Control Selected Problems Vol 2 New York Academic Press 1984

BLANT E le Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373

_______ le Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373

BLUNT A W The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911

BOBICHON P lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 pp 157-158 2003

BOFFO Laura Iscrizioni greche e latine per lo Studio della Bibblia Brescia Paideia Editrice 1994

BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101

BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950

BRENT Allen A political history of Early Christianity London TampT Clark 2009

BUELL Denise K Why this new race ethnic reasoning in early Christianity New York Columbia University Press 2005

BULTMANN R Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004

BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985

BURNS Stacy Lee Ethnographies of law and social control Oxford Elsevier 2005

Carta a Diogneto In Padres Apologistas Satildeo Paulo Paulus 1995

CHADWICH H Early Christian Thought and the Classical Tradition Oxford Clarendon Press 2002

129

________ Introduction In ____ (Ed) Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi

________ Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 (v 47)

________ The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001

________ The gospel a Republication of the natural religion in Justin Martyr Illinois Classical Studies n 18 pp 237-247 1993

CLEMENT of Alexandria Protrepticus In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

________ Stromata In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832

CHROUST Anton-Hermann AristotleProtrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964

CICERO M Tullius De Natura Deorum Edited by O Plasberg Leipzig Teubner 1917 pp 136-137

_________ Tullius De Legibus Georges de Plinval (ed) Paris Belles Lettres 1959

CLARK Gillian Christianity and Roman Society Cambridge Cambridge University Press 2004

CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999

COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp1507-1562

COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985

COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987

COPETE Juan Manuel Corteacutes Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004

130

COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008

Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonnae E Webere 1832

CULMANN O Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002

CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938

DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000

DANIELOU J Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975

De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted- A Rejoinder Past and Present n27 pp28-33 1964

De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 pp6-38 1963

DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000

DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940

DIOGENES Laertius The life of the eminents philosophers Ed Robert Drew Hicks LondonNew York W HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1925

DION Cassius Histoire Romaine V 9 Editado por E Gros Paris Librairie de Firmin Didot Fregraveres Fil Et C Imprimeurs de LrsquoInstitut 1867

DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 p 24 2005

DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963

DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990

DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106

DURRY Marcel Durry Pline-le-juene Paris Le belle Lettre 1972 p 7071

131

ECK Werner The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 195-213

ENDSJO Dag Oistein Greek resurrection beliefs and the soccess of Christianity New York Palgrave Macmillan 2009

ESTRABAtildeO Geography London Heinemann 1949

EUSEBIO de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduzido por Wolfgang Fischer Satildeo Paulo Novo Seacuteculo 2002

EUSEBIUS Die Chronik des Hieronymus heraugegeben und in 2 Auflage bearbeitet von R Helm 3 unveraumlnderte Auflage mit einer Vorbemerkung von U Treu GCS 31 Berlin Akademie Verlag 1984

FARNELL R L Greek hero cult and ideas of immortality Oxford Carendon Press 1921

FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa

________ La relacioacuten entre razoacuten y revelacioacuten em la antropologiacutea de Justino Maacutertir Teologiacutea y Vida v LII pp 35-50 2011

FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006

FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967

FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012

FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11

GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52

GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995

GOFFMAN E Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006

__________ Relations in Public New York Basic Books 1971

GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946

132

GOODENOUGH E R Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923

GOODMAN R ROWLAND C Apologetics in the Roman Empire Oxford Oxford University Press 1999

GOODSPEED E Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914

GRABE J E SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703

__________ SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700

GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988

GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951

GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18--

HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010

__________ The appropriateness of the apologetical arguments of Justin Martyr Tesis submitted for the Master of Philosophy Australian Catholic University 2008

HARNACK A Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274

__________ Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882

__________ Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99

__________ The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962

HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844

HENTEN Jan Willem AVEMARIE Friedrich Martyrdom and noble death selected texts from Graeco-Roman Jewish and Christian Antiquity New York Routledge 2002

133

HIPPOLYTUS The refutation of all heresies Traduzido por Rev J H MacMahon In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 5 Fathers of the Third Century Hippolytus Cyprian Caius Novatian Appendix Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

Historiae Augustae v I text latin with english translation by David Magie London Harvard University Press 1921 (Loeb Classical Library)

HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885

HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897

HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931

HORWITZ E A The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990

HUNT Emily J Christianity in the second century a case of Tatian New York Routledge 2003

HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703

HYLDAHL N Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965)

Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998

INNES Martin Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003

Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386

Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355

IRINEO of Lyon Againt Heresies Traduzido por Rev Alexander Roberts e James Donaldson In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene Fathers v 1 The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

ISOCRATES Busiris with an English Translation in three volumes by George Norlin PhD LLD Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1980

JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 pp 131-159 jun1979

134

JEROME GENNADIUS Lives of illustrious men Traduzido por Ernest Cushing Richardson In SCHAFF Philip (ed) Nicene and Post-Nicene Fathers 2 v 3 Theodoret Jerome Gennadius amp Rufinus Historical Writings New York Grand Rapids MI Christian Literature Publishing Co Christian Classics Ethereal Library 1892

JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961

JOLY E MOORE D Corpus Inscriptionum Latinarum vol VI pars VII fasc IV Berolini De Gruyter p 4262

JOSEgravePHE F Contre Appion Trad Th Reinach Paris Les Belles Lettres 1930

JOSEPHUS Flavius Jewish antiquities books XVI-XVII (Loeb Classical Library) Translated by Ralph Marcus and Allen Wikgren New York Harvad Press 1963

JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991

JOUCE Cullan The seeds of dialogue in Justin Martyr Australian eJournal of Theology 7 jun2006

JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995

JUVENAL Satiras In Juvenal and Persius With An English Translation G G Ramsay London New York William Heinemann G P Putnams Son 1918

KEITH Graham Justin Martyr and religious exclusivism Tyndale Bulletin 431 pp 56-80 1992

KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945

KERESZTES P Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 pp 204-214 dec1964

_________ Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986

_________ Rome and Christians Church I ANRW II 23 1 pp 260 274ss (1979)

_________ The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965

KHORENATSrsquoI Moses History of Armenians Traduzido por Robert W Thomson Ann Arbor Caravan Books 2006

KIMMEL G Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983

135

KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91

KRUEGER Paul MOMMSEN Theodor (Ed) Corpus iuris civilis I Institutiones Dublin Weidmann 1920 passim

KRUumlGER G Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896

LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934

LACTANTIUS The divine institutes Washington Catholic University of America Press 1964

LEWIS Charlton Thomas KINGERY Hugh Macmaster (Ed) An elementary latin dictionary New York American Book Co 1918

LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940

_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999

_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001

LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 pp 2146-312 1986

LUCIAN De morte Peregrini In Works with an English Translation by A M Harmon Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1936

_______ Menippus In The Works of Lucian of Samosata Translated by Fowler H W and F G Oxford The Clarendon Press 1905

LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]

MACMULLEN Ramsay Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997

__________ Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966

__________ Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981

MAIR AW GR MAIR Callimachus Hymn and Epigrams Lycophron With an English Translation by AW Mair Revised Version Cambridge MA amp London Harvard University Press 2000

136

MARAN P TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius

MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005

_________ Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994

_________ Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997

_________ Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 (2) pp 322-335 1992

MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007

MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 pp 413-442 winter1994

MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology v 8 pp 35ndash55 1982

MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 161v

_________ (Org) Patrologiae cursus completus series latina Paris Garnier-Migne 1878 217v

MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 pp 392-399 1890

MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 pp 3-32 1953

MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956

MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975

MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006

137

__________ LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p

__________ Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995

NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002

NASCIMENTO DFP O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia Pontificia Universidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003

NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzene Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129

OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992

ORIGIN Against Celsus In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997

OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889

OTTO JCT von Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876

PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988

PARVIS Sara Justin Martyr and Apologetc Tradition In PARVIS Sara FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007

________ FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007

PAUSANIAS Description of Greece with an English Translation by WHS Jones LittD and HA Ormerod MA in 4 Volumes Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1918

PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998

PERION Joachin Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum

138

Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis

PERKINS Judith Roman Imperial Identities in the Early Christian Era New York Routledge 2009

PFAumlTTISCH Johannes M Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910

PLATO Apology In Plato in Twelve Volumes Vol 1 translated by Harold North Fowler Introduction by WRM Lamb Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1966

______ Republic In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903

______ Law In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903

PLINIUS Caecilius Secundus Gaius Lettres Paris Belle Lettres 1953

PLUTARCH Moralia with an English Translation by Frank Cole Babbitt Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1928

POLYBIUS The Histories V III Translated by W R Paton Cambridge MALondon Harvard University PressWilliam Heinemann LTD 1979

POPE M The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000

POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005

PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988

QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197

RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972

REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004

ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89

ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) Bible Work 5 Software 2002

139

ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995

ROHDE Erwin Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966

ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981

ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141

ROSS Robert C Superstitio The Classical Journal v 64 n 8 pp 354-358 mai1969

ROUCECK Joseph Social Control Westport CT Greenwood Press 1970

RUSCONI C DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005

RUSSELL D S The Method and Message of Jewish Apocalyptic Philadelphia Westminster Press 1964

SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961

SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958

SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 pp 190ss 1954

SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review N 82 p 72 Jan1982

SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004

SENECA Apocolocyntosis WHD Rouse MA Litt D London William Heinemann 1913

SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008

SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 pp 23-27 1964

___________ The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952

140

SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987

SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 p 412 setdez 2009

SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006

SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944

SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011

________ I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349

STARK Rodney Baindridge Religion deviance and social control New York Routledge 1996

SUETONIUS The lives of the CAESARS In ROLFE JC (ed) SUETONIUS v II LondonNew York William HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1928

SUETONII C T De Vita XII Caesarum Harvard Loeb Classical Library 1914

SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012

SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946

SYLBERG F TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953

TACITUS C Annais In Complete Works of Tacitus Edited by Alfred John Church William Jackson Brodribb Sara Bryant New York Random House Inc Random House Inc reprinted 1942

________ Historiae Ed Charles Dennis Fisher Clarendon Press Oxford 1911

TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984

TATIAN Address to the Greeks Traduzido por JE Ryland In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

141

TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899

TERTULLIAN Apology Traduzido por Rev S Thelwall In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

________ Apology With tradution of TRGlover In GOOLD G P TertullianMinucius Felix Cambridge MassachusettsLondon Harvard University PressWilliam Heinemann 1978 pp 112-113 (The Loeb Classical Library)

________ Against the Valentinians Traduzido por Dr Roberts In SCHAFF Philip MENZIES Allan (ed) Anti-nicene fathers v 3 Latin Christianity its Founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2006b

THIRLBY S Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722

TITUS Livius History of Rome Cambridge Mass Harvard University Press 1970

TUAN Yi-fu Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983

URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932

VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006

VALANTASIS Richard Demons Adversaries devils fishermen The Asceticism of authoritative teaching (NHLVI3) in context of Roman AscetismThe Journal of religion v 81 n 4 pp 549-565 out2001

VEYNE P Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197

VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009

XENOPHON Apology In ____ Xenophontis opera omnia 2nd ed Oxford Clarendon Press 1921

WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991

WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987

WHIGHT ED The History of Heaven New York Oxford University Press 2000

WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 pp 181-190 1975

142

WINDISCH Hans Die orakel des Hystaspes Amsterdam Koninklijke Akademie van Wetenschappen 1929

WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982

143

APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS

A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450

ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C

segundo a forma estabelecida por Otto613

O Parisinus Graecus 450 ndash A ndash eacute o mais antigo manuscrito das obras de Justino

consideradas autecircnticas Ele eacute descrito como um conjunto de 467 foacutelios de 285x215 cm

terminado em 11 de setembro de 1364 segundo seu colofatildeo (fol 461a)614 Presume-se que

tenha sido adquirido em Veneza por Guillaume Pellicier bispo de Montpellirer e embaixador

francecircs naquela cidade de 1539 a 1542615 Natildeo eacute possiacutevel saber onde o manuscrito esteve

entre 1364 e 1540 Miroslav Marcovich616 considera ateacute razoaacutevel a hipoacutetese de A ter sido

produzido na Mistra617 do Deacutespota Manuel Cantacuzenos O antigo imperador John VI

Cantacuzenos pai de Manuel teria vivido contente como monge ateacute seus uacuteltimos dias

conhecido como Joasaph Era um homem culto e interessado nos assuntos teoloacutegicos Esse foi

um periacuteodo de prosperidade cultural e material no despotado de Morea618 Minns e Davis

identificam outros pontos que contribuem razoavelmente para indicar um centro maior como

Mitra ou Constantinopla Os primeiros cinco foacutelios que introduzem a coleccedilatildeo das obras de

Justino no A satildeo extratos de Photius e Euseacutebio sobre esse apologista Especificamente no

primeiro foacutelio aparecem indiacutecios de que o texto foi copiado ou adaptado de outro exemplar

Isso levaria a crer que A foi escrito em um lugar onde fosse possiacutevel ter acesso a outros textos

que auxiliassem na adaptaccedilatildeo Ter acesso agraves relevantes passagens de Photius no seacuteculo XIV

pode ser considerado algo raro619

Outro manuscrito completo das Apologias eacute o Phillippicus 3081 chamado B A partir

da anaacutelise de Bobichon620 B eacute reconhecido como um apoacutegrafo de A Sua dataccedilatildeo eacute de 2 de

abril de 1541 e apresenta uma assinatura no nome de ldquoGeorgerdquo provavelmente Georgios

613 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 614 MINNS D PARVIS P Justin Philosopher and Martyr Apologies Oxford Oxfrod Press 2009 p 3 615 ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris 1909 616 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 Cf Id Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 2 1992 p 322-335 617 Apoacutes o ano de 1261 a cidade ao sul do Peloponeso teria passado por um periacuteodo de ascendente prosperidade No seacuteculo XIV tornou-se importante centro cultural que teria sido capaz de influenciar o Renascimento na Itaacutelia 618 NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzenos Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129 619 MINNS PARVIS Op cit p 5 620 lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 p 157-158

144

Kokolos que viveu em Veneza e trabalhou para Guillaume Pelicier621 Acredita-se que B

tenha pertencido sucessivamente a Pellicier Clausde Noulot du Val ao Coleacutegio Jesuiacuteta de

Clermont em Paris e com a expulsatildeo dos Jesuiacutetas da Franccedila agrave coleccedilatildeo de Meermann E entatildeo

passou para a coleccedilatildeo de Sir Thomas Phillipps622 dando origem ao seu nome Por alguns anos

esses escritos estiveram no depoacutesito da British Library identificado como ldquoLoan 3613rdquo mas

foi retirado e vendido ldquoby private treatyrdquo em Marccedilo de 2006623

O coacutedice Ottobonianus 274 chamado de C tambeacutem tem certo valor na tradiccedilatildeo

manuscrita das Apologias mesmo contendo apenas trecircs capiacutetulos das mesmas Minns e

Parvis624 Marcovich625 Otto626 Harnack627 Blunt628 e Munier629 concordam que sua

qualidade eacute bem inferior a de A Mas quando se trata de saber se C eacute paralelo e independente

de A ou se eacute simplesmente uma coacutepia as opiniotildees se dividem Harnack630 considerou-o um

escrito independente de A Blunt destacou que ele parecia representar uma tradiccedilatildeo diferente

de A Marcovich e Munier segundo Minns e Parvis contentaram-se em apontar o demeacuterito

do texto Sem dar muitos detalhes sobre tais caracteriacutesticas de C Minns e Parvis se

esforccedilaram para argumentar que se trata de uma coacutepia de A feita agraves pressas Uma hipoacutetese

razoaacutevel eacute a de que o trecho da I Apologia 65-67 teria sido copiado pelo escriba Giovanni

Onorio atuante no Vaticano e em outros lugares de Roma por nomeaccedilatildeo do papa Paulo III em

1535 ateacute sua morte em agosto de 1563631 O restante de C teve outros escritores de diferentes

datas632 Ainda segundo a anaacutelise de Minns e Parvis633 a junccedilatildeo da ediccedilatildeo de Petrus Nannius

do De Resurretione Mortuorum de Atenaacutegoras ao conjunto de escritos proacuteximos aos extratos

das Apologias aponta para uma data natildeo anterior a 1541 Semelhantemente a Legatio de

Atenaacutegoras impotildee uma data natildeo posterior a 1557 quando a edito princeps foi impressa por H

Stephanus A visatildeo de Justino sobre a eucaristia teria sido de grande interesse teoloacutegico no

621 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 6 Vide nota 14 622 Esta trajetoacuteria apontada por Minns e Parvis eacute traccedilada por Archambault (Op cit v I pp xxiv-xxviii) e sumarizada por Bobichon (Op cit p 160) 623 Conforme Minns e Parvis (Op cit p 6) indicam e o Newslatter of the Association for Manuscripts and Archives in Research Collectons 46 mai2006 p 13 atesta 624 Op cit p 6 625 Op cit p 7 626 Op cit p xxviii 627 Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882 628 The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911 p lii 629 Justin Apologie pour les Chreacutetiens Paris Les Eacuteditons du Cerf 2006 p 86 630 Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99 631 MINNS PARVIS Op cit p 7 Ele indaca tambeacutem RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972 632 Conforme mostram Minns e Parvis (Op cit p 7) 633 Ibid p 8

145

periacuteodo que antecedeu e aos redores do decreto da eucaristia na deacutecima terceira sessatildeo do

Conciacutelio de Trento em 11 de outubro de 1551 Esses trecircs capiacutetulos do texto de Justino teriam

sido citados por Thomas Cranmer e Stephen Gardiner em 1549 antes de aparecer a editio

princeps Uma data proacutexima a 1548 eacute sustentada para esses dois primeiros foacutelios de C

Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra Parallela634 e no Chronicon

Paschale635 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo menos que doze vezes Na

Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito passagens No Chronicon Paschale

aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4 Esse uacuteltimo deriva provavelmente da

tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)636

634 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 635 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 636 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 13

146

Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos

Agostinho de Hipona 86

Alexandre de Afrodiacutesias 113

Apuleio 24

Aristides 15 24 33 49 55 58 109

Ata do Martiacuterio de Justino 22

Atenaacutegoras 24 109 123 143

Carta a Diogneto 49

Cassius Dio 9 13 14 34 36 48 49 67 88 97 103 111

Chronicon Paschale 18 128 144

Chrysippus de Solis 113

Cicero 43 139

26 31 43 71 74 87

Clemente de Alexandria 74 97

Diogenes Laertius 113

Eacutelio Aristides 58

Estrabatildeo 94

Euseacutebio 18 19 22 23 30 31 32 33 34 40 44 45 48 49 50 53 54 56 57 58 68 69

120 142 144

Flaacutevio Josefo 24 80 93 129

Histoacuteria Augusta 9 48 51

Homero 92

Irineu de Lyon 21

Isoacutecrates 86

Jerocircnimo e Gennadius 21

Juvenal 74

Lactacircncio 97

Luciano 21 37 58 73 95

Meacuteliton de Sardes 24 45

Oraacuteculos de Histaspes 97

Oriacutegenes 95

Oroacutesio 60

147

Papyri Graecae Magicae 92

Pausacircnias 94

Platatildeo 11 24 26 27 28 29 67 78 86 87 91 92 93 94 95 97 98 107 108 109 113 115

120

Pliacutenio 9 14 26 35 36 37 38 39 40 41 42 44 46 47 52 53 55 62 76 77 79 116 120

Plutarco 73 86 91 94 95 96 113 116

Poliacutebio 86 87

Quadrato 15 24 33 49 55

Secircneca 26 72 103

Suetocircnio 13 37 44 103

Taciano 21 24 27

Taacutecito 13 14 26 34 37 44 49 88 97 116 120

Teoacutefilo de Antioquia 24 123

Tertuliano 9 12 21 27 34 35 45

Tito Liacutevio 9 74 75

Varratildeo 86

Xenofontes 24 26

148

Iacutendice remissivo

acusadores 30 56 88 125

Adriano 7 10 15 16 27 35 37 40 41

42 44 49 50 51 52 53 54 55 56 57

58 59 60 61 62 63 71 72 84 90

106 128 143

alma 24 46 81 93 98 99 101 102 104

105 114 125 137

Antonino Pio 7 10 15 16 26 33 59 60

61 62 64 121 129

antropofagia 39

asebeia 36

Aacutesia Menor 15 26 32 55 83

ateiacutesmo 30 38 56 62 84 107 124

avsebeia 38

Bar Koseba 112

24 51 52 55 136

boatos maliciosos 63

caluacutenias

caluacutenia 7 34 39 40 47 48 56 81 82

83 84 88 91 96 108 119 125 128

130 131

canibalismo 30 56 84 124

castigo 6 31 44 56 61 74 85 91 94 96

97 98 104 113 114 120 123 126

131

coercitio 37 44

cognitio extra ordinem 45

controle social 14 16 17 18 64 65 67

68 69 70 77 80 82 113 127 129

130 131 133

costumes judaicos

costume judaico 39

Crescente 23 26 29 34 63 124

crime 17 31 37 39 40 42 47 57 58 62

67 68 84 89 90 93 126 128 139

culto ao imperador

culto imperial 38 52 81

decreto 47 64 76 79 114 148

democircnios

democircnio 11 74 78 79 81 88 89 91

96 106 107 108 110 111 112 117

118 119 122 127 129 130

denuacutencias

denuacutencia 7 34 37 41 43 47 55 56

58 82 90 91 123 124 127 128

130

desordem social 17

destino 29 52 104 105 107 113 120

Domiciano 36 48

epicureus 100 102

escola peripateacutetica 22

escola platocircnica

platonismo 22

estigmas

estigma 84 88 89

estigmatizaccedilatildeo 11 74 83 87

estoicismo 22 114 117 129

estoicos 92 100 102 104 124

exclusivismo 74

fariseus

fariseu 99

149

filosofia 7 12 16 22 23 27 28 30 33

38 65 71 73 92 93 99 100 101 102

103 106 118 122 125 126 129

filosofia estoica 38

flagitia

flagitium 14 36 39 40 46 47 48 50

90 124 128

gecircnero apologeacutetico 10 25 28

Graniano 15 16 53 56 57 128

Hades 92 99 101 102

Helena 107 120

Heraacuteclito 103 115 117

hetaerias 41

Histapes 103

Homero 98 101 102 107 115

incesto 14 39 59 84

inferno 105

injusticcedilas

injusticcedila 15 47 91 131

institutum neronianum 12 15 36 37 48

ius coertionis 37 45 50

julgamento 7 23 28 30 35 36 42 45 55

58 86 106 118 120 126 127 130

justiccedila 11 29 30 31 64 70 71 74 82

90 91 97 98 106 114 118 120 121

126 127

laesea maiestatis 37 40 45

livre-arbiacutetrio 113

loacutegoj sperermatikoj 26

Logos

logos 12 26 73 109 110 112 115

116 117 118 120 121 122 123

125 127 130 133 142 143

Luacutecio Vero 33

maiestas 47 56

manutenccedilatildeo da ordem 7 10 11 15 16 17

64 70 71 92 95 96 122 125 127

130

Marciatildeo 24 119 120

Marco Aureacutelio

M Aureacutelio 10 16 33 35 48 59 60 62

63 72 73 121 131

Menandro 104 107 120

Minuacutecio Fundano 16 53 54 56 58 128

Moiseacutes 114

moral 15 61 66 87 91 92 94 96 118

121 124 127 129

moralidade 7 70 91 94 108 119 129

131

morte 16 24 29 42 52 62 63 70 72 78

82 83 85 89 90 91 96 97 98 99

100 101 102 104 105 111 118 123

124 125 126 127 144 147

neoplatonismo 129

Nero 12 36 47 48 50 77 83 117 128

Nerva 38

nome cristatildeo

nomen christianum 30

nomen christianum 7 43 47 50 55 57

129

nomen Christianum 84 95 127

opiniatildeo puacuteblica 39 50 59

Ottobonianus Graecus 274 9 19 146

Parisinus Graecus 450 5 9 19 24 146

pax deorum 13 39 46 62 65 66 76 130

perseguiccedilatildeo 7 8 13 15 35 36 37 47 53

59 62 64 66 83 88

150

perseguiccedilotildees 13 15 27 47 65 66 81 87

89 106 128

peticcedilatildeo

libellus 27 31 32 33 34 62 71 90

126 129

Phillipicus 3081 19 146

pitagoacuterico 22

preconceito 63 88

reino de Deus 6 74 91

religio licita 38 45 55

rescrito 16 27 33 40 43 53 54 55 56

57 58 60 61 62 90

rescrito de Adriano 54 57 61

ressurreiccedilatildeo 99 100 102 105 109 111

112 144

retoacuterica 10 26 27 29 72 115

revelaccedilatildeo 11 105 107 115 116

Rusticus 23

sacrifiacutecios

sacrifiacutecio 42 48 64 74 75 79 81

sacrilegium 37 40 45 47 50

saduceus

saduceu 99

senatus consultum 36 48

Sibila 103 118

Simatildeo Mago 24

Soacutecrates 9 25 28 29 30 73 97 101 115

122 124 129

superstitio 7 8 14 35 37 39 40 42 43

45 46 48 52 55 58 85 90 91 94

124 127 128

superstitiones 14 46 94 101 102

temor 40 62 92 93 94 97 105 107 120

126 127 128

Tibeacuterio 15 16 36 48 103 139

toleracircncia 17 35 37 42 47 129

Tolomeu 61

Trajano7 10 15 32 35 36 37 38 39 40

41 42 43 44 47 48 49 50 54 55 56

57 58 59 60 61 66 84 90 128 133

143

Tumultos

Tumulto 62

Urbico 16 34 35 61 63 84 85 123

verdade 22 23 26 28 29 30 31 65 70

74 78 83 88 90 106 108 110 111

113 114 116 119 122 126 129 130

Vespasiano 22 32 117

viacutecio 99 113 114 120 121 124

virtude 6 91 92 96 99 112 113 114

115 120 124 125

151

Page 5: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência

5

Dedico este trabalho

ao senhor de todas as eras que natildeo pode ser submetido a qualquer estaticidade que se possa

imaginar no universo Ao que era desde o princiacutepio eacute agora e continuaraacute sendo

indefinidamente Ao que consola e agraves vezes oprime a qualquer que seja Ao que

cuidadosamente nos observa desde o primeiro instante de vida e que conta

cada batimento do nosso coraccedilatildeo Sem ele nossos dias natildeo poderiam

ser contados Dele depende o amanhatilde nossa existecircncia e nossa

histoacuteria Agravequele que acompanhou cada passo deste

desafio e que me fazia lembrar do valor de

cada instante Agravequele que muitos

simplesmente chamam de

ldquotempordquo

6

AGRADECIMENTOS

Agrave Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini minha querida orientadora pela confianccedila

incentivo amizade e paciecircncia durante essa jornada Eu confesso que nunca havia conhecido

algueacutem que carregasse em si de tal forma a franqueza e a doccedilura associadas ao rigor

acadecircmico como pude constatar em sua pessoa

Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) pelo

amparo financeiro para o desenvolvimento dessa pesquisa

Agrave Profordf Drordf Sara Parvis (University of Edinburgh) por sua gentileza em indicar

algumas informaccedilotildees importantes sobre o principal manuscrito das Apologias de Justino o

MS Parisinus Graecus 450

Agrave minha querida amiga Profordf Viviana L Felix (Universidad Catolica de Buenos

Aires) que generozamente compartilhou comigo artigos e momentos agradaacuteveis de fluecircncia de

ideias

Aos professores Drordm Mauro Pesce e Drordf Adriana Destro (Universitagrave di Bologna) pela

atenccedilatildeo em partilhar comigo algumas indicaccedilotildees bibliograacuteficas

Agraves professoras Drordf Maria Aparecida de Oliveria Silva (pesquisadora na UNESP-

Araraquara) e Drordf Giovanna Menci (Istituto Papirologico ldquoG Vitellirdquo dellrsquoUniversitagrave degli

Studi di Firenze) assim como tambeacutem ao nobre B Jobjorn Boman (Oumlrebro University) pelos

riquiacutessimos artigos compartilhados

Ao Profordm Me Deivid V Gaia (Universidade Federal de Pelotas) por haver gentilmente

compartilhado alguns documentos importantes conseguidos junto agrave Bibliothegraveque national de

France

Agraves professoras Drordf Monica Selvatici (Universidade Estadual de Londrina) e Drordf

Solange Ramos de Andrade (Universidade Estadual de Maringaacute) pelas ricas criacuteticas e

consideraccedilotildees que contribuiacuteram para o aprimoramento dessa pesquisa

Aos colegas Camila Santiago Luz Thiago Franccedila Thais Bassi Soares Profordm Drordm

Jaime Estevatildeo dos Reis e demais integrantes do Laboratoacuterio de Estudos Antigos e Medievais

(LEAM-UEM) pelo companheirismo e satisfaccedilatildeo proporcionada pela dedicaccedilatildeo conjunta aos

estudos histoacutericos

7

Ateacute voacutes apenas ouvindo que esperamos um reino logo supondes sem nenhuma averiguaccedilatildeo que se trata de

reino humano quando noacutes falamos do reino de Deus [] Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a

manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o

avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens

conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos os modos e se

adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos De fato aqueles que agora

por medo das leis e dos castigos por voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los porque

sabem que sois homens e que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutes se se inteirassem e se persuadissem de que

natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se

moderariam de todos os modos como voacutes mesmos haveis de convir

Justino Maacutertir I Apologia 111121

8

Resumo

A histoacuteria do cristianismo na primeira metade do II seacuteculo eacute marcada por atritos locais

denuacutencias em tribunais e caluacutenias que faziam do nome ldquocristatildeordquo um motivo de condenaccedilatildeo

Trajano Adriano e Antonino Pio fizeram suas recomendaccedilotildees aos governantes locais para

desestimular a expansatildeo da nova superstitio dos cristatildeos que demonstrava aversatildeo aos

deuses agraves tradiccedilotildees agraves celebraccedilotildees puacuteblicas e ao culto imperial Nenhuma perseguiccedilatildeo de

fato devia ser estabelecida denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas e os cristatildeos que

abandonassem a feacute deveriam ser perdoados os que se recusavam a abandonar a feacute eram

punidos com a pena capital segundo o julgamento de cada magistrado Nesse periacuteodo alguns

chamados apologistas produziram escritos em defesa dos fieacuteis Justino escreveu duas vezes

ao imperador Antonino e a seus filhos entre os anos de 154 e 161 Nas Apologias ele critica a

postura dos governantes por acatarem as caluacutenias das massas que acarretavam uma ideia

depreciativa ao nomen christianum A fidelidade cristatilde ao Impeacuterio eacute ratificada pelo

apologista que surpreende ao destacar a colaboraccedilatildeo dos fieacuteis na manutenccedilatildeo da ordem Por

meio desta pesquisa que tem por obejtivo analisar a relaccedilatildeo entre controle e religiatildeo a partir as

accedilotildees anticristatildes nesses escritos de Justino nota-se que esse tipo de accedilotildees foi fundamental

para que a funccedilatildeo social da religiatildeo dos cristatildeos fosse pensada no desenvolvimento desse

discurso apologeacutetico Nesse discurso procura-se justificar a rejeiccedilatildeo aos deuses e agrave

imoralidade por eles representada Atento agraves interrogaccedilotildees dos intelectuais e homens letrados

de sua eacutepoca satildeo destacados os aspectos tidos por ldquoirracionais e imoraisrdquo das crenccedilas pagatildes

enquanto a feacute cristatilde eacute apresentada em contornos racionais com o intuito de reconhececirc-la como

filosofia divina e superior agraves demais Nesse sentido a crenccedila num Deus absoluto justo e

onisciente aparece como um instrumento capaz de subter as pessoas agrave moralidade enquanto

aguardam a recompensa eterna e procuram se afastar da condenaccedilatildeo divina Eacute nesse momento

que a religiatildeo dos cristatildeos comeccedila a ser pensada como uma substituta agraves crenccedilas pagatildes

apontadas como incoerentes

Palavras-chave

Justino Maacutertir histoacuteria do cristianismo Impeacuterio Romano perseguiccedilatildeo aos cristatildeos

9

Abstract

The history of Christianity in the first half of the second century is marked by local clashes

accusations in court and slanders that made the name Christian reason for condemnation

Trajan Hadrian and Antoninus Pius made their recommendations to local governments to

discourage the expansion of new superstitio of the Christians who showed aversion to the

gods traditions public celebrations and the imperial cult No persecution in fact should have

been established anonymous reports should not have been accepted and if any Christian

abandoned the faith they should have been forgiven however those who refused to abandon

their faith were punished with the death penalty according to the judgment of each magistrate

During this period some Christians with high education produced writings in defense of their

faith Justin wrote twice to the Emperor Antoninus and his sons between the years 154 and

161 AD In ldquoApologiesrdquo he criticizes the attitudes of the rulers for accepting the slander of the

masses who were accusing the Christians The Christian fidelity to the Empire is ratified and

he highlights the collaboration of the faithful in the maintenance of order Through this

research on the relationship between religion and control as seen in the antichristian actions

reported in the writings of Justin it is noted that this type of action was essential to the social

function of the Christian religion to be thought in your apologetic discourse It seeks to justify

the condemnation of the gods and the immorality represented by them In attention to the

questions of intellectuals and men of letters of his age the irrational behaviors and immoral

aspects of the pagan beliefs are pointed by the apologist while the Christian faith is presented

in rational contours making it a divine philosophy and superior to the other In this sense the

Christian belief in an absolute God who is just and omniscient appears as an instrument with

the ability to teach and demand morality from its followers while they are awaiting the

eternal reward and actively trying to move away from divine condemnation It is then that

their religion begins to be thought of as a substitute for pagan beliefs which are pointed out as

incoherent with the order in the Empire

Key-words

Justin Martyr History of Christianity Roman Empire persecution of Christians

10

LISTA DE ABREVIATURAS

Hist Ecles Histoacuteria Eclesiaacutestica

Diaacutel Diaacutelogo com Trifatildeo

I Apol Primeira Apologia de Justino

II Apol Segunda Apologia de Justino

A Manuscrito Parisinus Graecus 450

B Manuscrito Phillipicus

C Manuscrito Ottobonianus Graecus 274

IGRR Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes

Apolog Apologeticus de Tertuliano

Hist Rom Histoacuteria Romana de Cassius Dio

Hist Aug Histoacuteria Augusta

ApS Apologia de Soacutecrates

PIR Prosopografia Imperii Romani

Ep Epiacutestolas de Pliacutenio

Hist Roma Histoacuteria de Roma de Tito Liacutevio

ANRW Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt

ZKG Zeitschrift fuumlr Kirchengeschichte

Ant Jud Antiguidades Judaicas

Guer Jud Guerras Judaicas

11

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 12

CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS 18

11 As principais ediccedilotildees das Apologias 18

12 A questatildeo da autoria Justino 22

13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino 25

131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica 26

132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino 27

14 Destinataacuterios 31

CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS 34

21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano 35

22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano 49

23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos 57

CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE

MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM 62

31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem 67

32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus 71

33 Sobre as leis e imoralidades 85

CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM

SOCIAL 91

41 O controle absoluto do controlador absoluto 91

42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde 100

421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios 102

422 A razatildeo que julga 109

43 O governo o controle e os governantes 115

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 121

REFEREcircNCIAS 126

APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS 143

Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos 146

Iacutendice remissivo 148

12

INTRODUCcedilAtildeO

Este que no dia 1 de junho eacute reverenciado pelas Igrejas Catoacutelica Ortodoxa Oriental e

Anglicana tem a apresentar um testemunho que vai aleacutem do seu martiacuterio Seus escritos

oferecem pistas importantes para o entendimento da condiccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no

Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II Muitos como o Papa Bento XVI o tecircm chamado

de ldquoo mais importante dos padres apologistas do segundo seacuteculordquo1 Poreacutem o que esta

pesquisa iraacute mostrar eacute que os escritos atribuiacutedos a esse ldquofiloacutesofo cristatildeordquo apresentam acima de

tudo os primeiros indiacutecios de uma efetiva reflexatildeo histoacuterico-teoloacutegica sobre a funccedilatildeo do

cristianismo na organizaccedilatildeo social

Dentre as pesquisas do seacuteculo XX sobre Justino recebe destaque primeiramente o

trabalho de Johannes M Pfaumlttisch2 em 1910 a respeito da influecircncia do pensamento de

Platatildeo sobre esse apologista Em 1923 foi publicada a obra de E R Goodenough3 que

apresentava uma sistematizaccedilatildeo do pensamento teoloacutegico desse que segundo seu ponto de

vista fazia jus ao nome de ldquomaacutertirrdquo ou seja algueacutem ldquoque daacute testemunhordquo mas que em

contrapartida estava longe de merecer o tiacutetulo de ldquofiloacutesofordquo Poucos anos mais tarde

destoando em alguns aspectos do pensamento de Goodenough empreendeu C Andresen4

uma anaacutelise sublinhando os traccedilos filosoacuteficos dos escritos de Justino em comparaccedilatildeo ao

meacutedio-platonismo que tinha um espaccedilo significativo no pano de fundo intelectual do II

seacuteculo dC A problemaacutetica da relaccedilatildeo entre as doutrinas cristatildes ganhou reforccedilo com a defesa

da tese de N Hyldahl5 em 1965 Na mesma deacutecada de 1960 eacute Lislie W Barnard6 quem

intersecciona os aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos e as ideias sobre o judaiacutesmo representados

nos escritos de Justino Aleacutem dos interesses teoloacutegico-filosoacuteficos em torno desses escritos haacute

tambeacutem uma busca por elementos que auxiliem a compreender a condiccedilatildeo dos cristatildeos no

1 PAPA BENTO XVI Audiecircncia geral Praccedila de Satildeo Pedro Vaticano 21 de marccedilo de 2007 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherbenedict_xviaudiences2007documentshf_ben-xvi_aud_20070321_pohtml acesso em 20 de dezembro de 2011 2 Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910 3 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 4 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf tambeacutem ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Berliacuten Walter de Gruyter und co 1955 5 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 6 Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967 cf tambeacutem id Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology V 22 n 2 jun1969 pp 152-164

13

Impeacuterio em meados do seacuteculo II Nesse sentido os escritos de Justino tecircm muito a contribuir

tanto para se pensar a influecircncia da cultura greco-romana sobre as ideias cristatildes quanto sobre

as accedilotildees anticristatildes

As conferecircncias de Henry Chadwich7 na The John Rylands Library em 1965

chamavam a atenccedilatildeo para a inter-relaccedilatildeo entre a filosofia e a teologia nascente percebidas nas

estrateacutegias de defesa argumentativa apresentadas por Justino contra a opressatildeo sobre os

cristatildeos Mas por que os cristatildeos foram perseguidos

As hipoacuteteses tecircm girado em torno de uma lei especial contra os cristatildeos instituiacuteda por

Nero institutum neronianum como chamou Tertuliano8 ou pelo enquadramento em crimes

comuns como maiestas ou pela livre accedilatildeo dos magistrados para manter a ordem ius

coertiones9 Na deacutecada de 1950 receberam destaque os trabalhos de Henry Gregoire10 A N

Sherwin-White11 e J Moreau12 Na deacutecada seguinte Geoffrey E M de Ste Croix13

estabeleceu um debate com Sherwin-White14 sobre essa questatildeo

GEM de Ste Croix sustentava que as perseguiccedilotildees aos cristatildeos baseavam-se na

recusa em reconhecer os deuses de Roma comportamento que era frequentemente

considerado perigoso e sedicioso Os deuses tradicionais do panteatildeo greco-romano eram as

divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma que exigiam culto para a estabilidade da

pax deorum15 Por essa perspectiva Ste Croix propunha que a perseguiccedilatildeo se relacionava ao

sentimento religioso da eacutepoca16 AN Sherwin-White por outro lado defendeu que as

perseguiccedilotildees aos cristatildeos natildeo se baseavam na questatildeo do rompimento da pax deorum mas na

aguda obstinaccedilatildeo dos cristatildeos em natildeo cometer apostasia nem sacrificar para os deuses do

Impeacuterio17 Tal postura dos cristatildeos desafiava as autoridades romanas e representavam uma

grave insubordinaccedilatildeo GEM Ste Croix deu uma treacuteplica a essa questatildeo em 196418 mas essa

problemaacutetica tem despertado pesquisadores ateacute hoje19

7 Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 8 Ad Nationis I78 9 BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 1968 pp 30-50 10 Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 1111 The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952 p 199 12 La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 13 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 pp 6-38 14 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 15 De Ste CROIX GEM Op cit 1963 p 24 16 Ste CROIX GEM Op cit 1963 pp 29-31 17 SHERWIN-WHITE AN Op cit 1964 pp 25 18 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 19 Cf BARNES Timothy D Constantine and Eusebius Cambridge MA Harvard University Press 1981 MacMULLEN Ramsay Christianizing the Roman Empire (AD 100-400) New HavenLondon Yale

14

A proclamaccedilatildeo cristatilde no I e II seacuteculos causava tanto conversotildees quanto reaccedilotildees

adversas entre os pagatildeos20 A religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio Romano era presente na vida dos

povos 21 Relembrando Marcel Simon e Andreacute Benoicirct22 eacute justo admitir que com a refutaccedilatildeo

de todos os compromissos e a sustentaccedilatildeo intransigente do monoteiacutesmo a Igreja parecia um

corpo estranho aos pagatildeos Distanciando-se dos eventos puacuteblicos normalmente envolvidos

com a idolatria condenada pela Igreja rejeitando o serviccedilo militar os jogos e as celebraccedilotildees

artiacutesticas os cristatildeos se autoexpunham agrave marginalizaccedilatildeo da sociedade

Entre o povo ou entre os intelectuais os cristatildeos eram vistos com estranheza ou

desconfianccedila23 Assim como foram caracterizados os judeus podia-se pensar que os cristatildeos

apresentavam um odio humani generis24 em parte devido aos comentaacuterios depreciativos que

se espalhavam entre o povo Foram caracterizados por Taacutecito como membros de uma

destrutiacutevel superstitio25 oriunda da Judeia Suetocircnio se referiu a eles como ldquoraccedila de homens de

uma superstitio nova e maleacuteficardquo26 As acusaccedilotildees ou suspeitas poderiam girar em torno de

delitos ou coisas consideradas repulsivas como infanticiacutedio incesto assembleias ilegais

introduccedilatildeo de cultos iliacutecitos e mais especialmente traiccedilatildeo sendo esta uacuteltima caracterizada pela

recusa em adorar a divindade do imperador27

As superstitiones e os cultos locais eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob

atenccedilatildeo Como destacam Mary Beard John North e Simon Price28 as controveacutersias poderiam

desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito

em 172 e 173 aC29 na incursatildeo da Traacutecia que foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que

University Press 1984 DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000 DRAKE Harold Allen Constantine and the Bishops the politics of intolerance BaltimoreLondon John Hopkins University Press 1999 CLARK Gillian Christianity and the Roman Society Cambridge Cambridge University press 2004 CHADWICK Henry The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001 FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006 20 GOODMAN Martin Mission and conversion proselytizing in the religous history of the Roman Empire Clarendon Press Oxford University Press 1994 p 12 21 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 Cf BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35 22 SIMON M BENOIcircT A Giudaismo e Cristianesimo una storia antica RomaBari LaterzaFigli Spa 2005 p 12 23 ldquoaqueles que por suas abominaccedilotildees eram mal vistosrdquo [quos per flagitia invisos] Taacutecito Annales 1544 24 ldquooacutedio agrave humanidaderdquo Ibid 25 exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo] Annales 1544 26 genus hominum superstitionis novae ac maleficae De Vita XII Caesarum Vita Neronis 162 27 MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 28 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 29 Cassius Dio Hist Rom LXXII4

15

conseguiu seguidores30 entre os druidas incitados por profecias sobre o fim de Roma da

Gaacutelia31 e nas revoltas judaicas do I e II seacuteculos dC Embora existisse um niacutevel significativo

de liberdades religiosa e individual os grupos e assembleias ficavam sob atenccedilatildeo das

autoridades Os baacutequicos os astroacutelogos e maacutegicos o culto de Iacutesis e a crenccedila dos druidas

tambeacutem enfrentaram a obstruccedilatildeo romana32

Paul Veyne faz diferenciaccedilatildeo entre os interesses dos homens letrados e das autoridades

preocupadas com a manutenccedilatildeo da ordem e o interesse da populaccedilatildeo pagatilde em geral Em sua

percepccedilatildeo a atitude de criacutetica dos romanos frente agraves comunidades cristatildes manifestava a

repulsa ao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguo33 Desse modo a rejeiccedilatildeo ao novo grupo religioso

do oriente deveria envolver um problema identitaacuterio tambeacutem relacionado agrave dificuldade de se

assimilar um grupo dotado de particularidades que pretendiam a superioridade diante dos

estabelecidos Justino tambeacutem sustenta uma tese em torno da questatildeo do ldquopor que os cristatildeos

eram perseguidosrdquo esforccedilando-se em convencer os romanos sobre as ldquoinjusticcedilasrdquo cometidas

contra os cristatildeos

Embora natildeo exista um consenso sobre o iniacutecio das perseguiccedilotildees no I seacuteculo34 eacute certo

que o estilo de vida e o conteuacutedo das crenccedilas cristatildes natildeo agradavam a muitos o que

culminava na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados

Natildeo haacute sinais de uma perseguiccedilatildeo generalizada no iniacutecio do II seacuteculo mas apareciam

atritos locais que por vezes culminavam na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados ou agredidos

pelo povo Pliacutenio Segundo natildeo sabia ao certo como proceder nos processos que julgavam os

cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia e chegou a pedir a orientaccedilatildeo de Trajano35 Sob Adriano36 o

governador da Aacutesia Menor Graniano tambeacutem levantou questotildees sobre esses processos

30 Cassius Dio Hist Rom LI255 LIV345-7 31 Taacutecito Historias IV546165 V2224 32 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 Cf AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 33 VEYNE Paul Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 pp 245-246 34 Marta Sordi (I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 15-29) por exemplo sustenta a tese de que a resposta negativa do Senado ao pedido de Tibeacuterio sobre o reconhecimento de Cristo entre os deuses oficiais teria tornado a feacute cristatilde em uma religio illicta Paul Keresztes defende que foi o institutum neronianum que primeiramente comprometeu a legalidade do grupo dos cristatildeos (Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214) 35 Governou de 98 a 117 dC 36 Governou de 117 a 138 dC

16

Nesse periacuteodo Quadrato e Aristides tambeacutem escreveram ao imperador em defesa dos cristatildeos

mas a situaccedilatildeo continuou a mesma sob o governo de Antonino Pio37

Justino que havia nascido em Flaacutevia Neaacutepolis38 atual Nablus uma cidade na antiga

regiatildeo da Samaria filho de pai latino e de um avocirc com nome grego estudou filosofia mas se

converteu ao cristianismo e se pocircs em defesa da feacute39 Escreveu suas Apologias entre os anos

de 154 e 161 aproximadamente em defesa dos cristatildeos levados aos tribunais e entatildeo

condenados agrave morte Aleacutem da previsatildeo de seu proacuteprio martiacuterio o apologista retrata ainda um

caso especiacutefico que ocorreu sob Urbico em Roma Seu discurso busca convencer o imperador

Antonino Pio40 de que os cristatildeos natildeo representavam nenhum tipo de ameaccedila e que seria

segundo seu ponto de vista uma grande injusticcedila condenar agrave morte aqueles que eram

colaboradores ldquoda pazrdquo no Impeacuterio41 Os problemas penais e de outros caraacuteteres juriacutedicos

abordados por Justino e comuns ao governo de Antonino Pio foram uma vez analisados por

Paul Keresztes42 que destacou a estrateacutegia desse apologista de interpretar o rescrito43 de

Adriano a Minuacutecio Fundano Todavia as Apologias desse pensador cristatildeo desafiam a

compreensatildeo de um capiacutetulo intrigante da histoacuteria das ideias religiosas cristatildes como esse

discurso em defesa dos cristatildeos apresenta em meio agraves proposiccedilotildees teoloacutegico-filosoacuteficas que

permeiam o texto uma leitura das accedilotildees anticristatildes conjuguando controle social e religiatildeo na

reprovaccedilatildeo da coaccedilatildeo imposta por Roma sobre os cristatildeos e na indicaccedilatildeo da funccedilatildeo

reguladora da religiatildeo cristatilde para a cooperaccedilatildeo na manutenccedilatildeo da ordem

Por isso essa pesquisa tem por objetivo principal compreender as relaccedilotildees entre

controle social e religiatildeo a partir da anaacutelise das accedilotildees anticristatildes praticadas ateacute meados do

seacuteculo II dC segundo as Apologias de Justino Maacutertir O exame de suas ideias deve

compreender o paradoxo construiacutedo em seu discurso entre o tipo de controle social

desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia aos cristatildeos que

tumultuam a ordem e por outro lado o tipo de controle social apontado nas Apologias que

37 Governou de 138 a 161 dC 38 I Apol 11 cf MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 127-129 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought New York Cambridge University Press 1967 pp 3-12 39 JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991 Cf mais informaccedilotildees no capiacutetulo I 40 E tambeacutem a seus filhos Marco Vero (que seria chamado Marco Aureacutelio) e Luacutecio Vero 41 I Apol 31ss I Apol 121ss 42 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129 Id Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214 Id The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 43 Rescrito em resposta aos questionamentos do governador anterior Graniano

17

daria razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos mediante um tipo de ordem derivado da proliferaccedilatildeo de

suas crenccedilas

Por ldquocontrole socialrdquo entende-se ldquoo conjunto dos recursos materiais e simboacutelicos de

que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de seus

membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo44 Ou ainda

seguindo a perspectiva de Martin Innes45 ldquocontrole socialrdquo refere aos mecanismos e

tecnologias empregados para manutenccedilatildeo da ordem social Esta por sua vez eacute composta de

diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais de alguma forma contribuem para a

constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social Nesse embate apologeacutetico do seacuteculo II satildeo

apresentados argumentos para convencer de que a feacute cristatilde natildeo estava propiacutecia a nenhum tipo

de desordem social e que pelo contraacuterio seria capaz de influenciar na formaccedilatildeo de suacuteditos

fieacuteis do Impeacuterio

Para o cumprimento do objetivo central dessa pesquisa as Apologias de Justino satildeo

estabelecidas como principal objeto e fonte de investigaccedilatildeo a serem submetidas agrave criacutetica

interna e externa segundo o desenvolvimento de uma anaacutelise histoacuterica46 Ao colocar as

Apologias de Justino no centro dessa anaacutelise busca-se delimitar um campo possiacutevel de anaacutelise

dentro do processo de expansatildeo do cristianismo pelos territoacuterios do Impeacuterio Romano tendo

em vista as vaacuterias formas de resistecircncias e aceitaccedilotildees Uma anaacutelise sobre Justino e a

sobrevivecircncia de suas Apologias eacute apresentada no capiacutetulo I e no Apecircndice I

44 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) Dicionaacuterio criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 45 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 46 TOPOLSKY Jersy Metodologia de la historia Madrid Ediciones Catedras 1992 pp 36-45

18

CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS

Para desenvolver uma investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre controle social e religiatildeo

nas accedilotildees anticristatildes de meados do seacuteculo II dC a partir das Apologias de Justino Maacutertir eacute

preciso responder a algumas perguntas baacutesicas sobre sua origem transmissatildeo e forma

Levando em consideraccedilatildeo que as Apologias foram redigidas originalmente haacute quase 1900

anos e passaram por diversos copistas e editores ateacute chegar agrave atualidade eacute necessaacuterio fazer um

raacutepido percurso analiacutetico sobre as ediccedilotildees e suportes materiais que garantiram a preservaccedilatildeo

do texto Isso deveraacute contribuir para a compreensatildeo de suas caracteriacutesticas atuais

Esse tipo de anaacutelise contempla as diferenccedilas entre as trecircs principais ediccedilotildees recentes

das Apologias Miroslav Marcovich47 (com a 1ordf ediccedilatildeo em 1995) por exemplo oferece uma

ediccedilatildeo seguindo o padratildeo apresentado no MS Parisinus Graecus enquanto Charles Munier48

(com ediccedilotildees em 1994 1996 e 2006) sustenta a teoria de que os dois textos seriam

originalmente uma mesma peccedila Denis Minns e Paul Parvis49 (2009) oferecem uma ediccedilatildeo

que aleacutem de considerar a II Apologia uma compilaccedilatildeo de fragmentos e anotaccedilotildees de Justino

transformadas em Apologia por terceiros ainda realoca partes da segunda peccedila para a

primeira fazendo-a ganhar dois capiacutetulos a mais do que as duas ediccedilotildees mencionadas

anteriormente

Assim seratildeo analisados a seguir alguns dos principais pontos sobre as ediccedilotildees o

tamanho original e os destinataacuterios das Apologias bem como as evidecircncias que apontam para

Justino como seu autor

11 As principais ediccedilotildees das Apologias

A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450

ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C

47 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 48 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 Id Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 49 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

19

segundo a forma estabelecida por T Otto50 Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar

com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra

Parallela51 e no Chronicon Paschale52 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo

menos que doze vezes Na Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito

passagens No Chronicon Paschale aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4

Esse uacuteltimo deriva provavelmente da tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)53

Em 1551 foi produzida a partir do MS A a editio princeps importante trabalho do

typographus regius Robert Estienne54 ou Robertus Stephanus Conforme a anaacutelise de Minns e

Parvis55 trata-se de um texto bem produzido Do mesmo modo que A a composiccedilatildeo de

Stephanus que foi dedicada a ldquoBiblioteca Realrdquo apresenta os extratos de Photius e Euseacutebio

sobre Justino A Apologia menor tambeacutem aparece antes da maior56 Natildeo haacute nenhuma divisatildeo

ou quebra de texto Apenas algumas variantes de A satildeo colocadas nas margens das paacuteginas

A primeira traduccedilatildeo das Apologias viria em 1554 por Joachim Peacuterion57 em Paris

Frederick Sylburg58 apresentou sua ediccedilatildeo em 1593 em Heidelberg seguindo rigorosamente

o texto de Robert Etienne Sabe-se tambeacutem que Feacutedeacuteric Morel publicou as Apologias de

Justino em 161559 As ediccedilotildees de Johann Ernst Grabe seguiram fieacuteis ao Stephanus mas

trouxeram duas inovaccedilotildees a ediccedilatildeo de 170060 em Oxford apresentou a Apologia maior como

50 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 51 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 52 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 53 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 13 54 Minns e Parvis oferecem a seguinte referecircncia TOU AGIOU FILOSOFOU KAI MARTUROS) ZHNA kai Serhnw|) LOGOS parainetikoj proj Hllhnaj) PROS TRUFWNA Ioudaion dialogoj) APOLOGIA uper Cristianwn proj thn Rwmaiwn Sugklhton) APOLOGIA b uper Cristianwn proj Antoninon ton euvsebh) EX BIBLIOTHECA REGIA LVTETIAE Ex officina Roberti Stephani typographi Regii Regiis typis MDLI Cum priuilegio Regis Devido agrave corrupccedilatildeo dos textos antigos nem sempre eacute possiacutevel identificar os tiacutetulos corretamente por isso satildeo apresentados aqui em letras maiuacutesculas As barras representam a separaccedilatildeo das linhas onde satildeo lidas as informaccedilotildees a respeito dos volumes referenciados 55 Op cit p 14 56 A I Apologia eacute a ldquoapologia maiorrdquo mas no MS A a ldquoapologia menorrdquo isto eacute a II Apologia vem primeiro 57 Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis 58 TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953 59 Minns e Parvis (Op cit p 15) mencionam que Feacutederic Morel tenha criado a categoria de ldquoApologistasrdquo lanccedilando uma coleccedilatildeo de texto Esta informaccedilatildeo pode ateacute estar correta mas os autores natildeo apontaram nenhuma referecircncia do tipoacutegrafo Sabe-se que ele publicou as Apologias devito as informaccedilotildees do seguinte cataacutelogo GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18-- 60 SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700

20

a primeira e a ediccedilatildeo de 170361 apresentou a obra menor como a II Apologia tal como satildeo

reconhecidas hoje e tambeacutem foram acrescentadas divisotildees de capiacutetulos diferentes das usuais

A ediccedilatildeo de Styan Thirlby de 172262 juntou as trecircs obras de Justino reconhecidas como

autecircnticas I e II Apologia e o Diaacutelogo com Trifatildeo O texto ainda era baseado em Stephanus

Em 1742 Prudentius Maran63 publicou sua obra com uma divisatildeo de capiacutetulos que se

tornaria a usual Segundo Minns e Parvis64 Maran teve acesso a A e B mas seu texto eacute

semelhante ao de Stephanus As Apologias da coleccedilatildeo Patrologia Graeca volume 6 de

185765 eacute a reproduccedilatildeo da sua ediccedilatildeo alocada na seacuterie de Jacques Paul Migne (1800-1875)

JCT von Otto66 publicou sua primeira ediccedilatildeo em 1842 e a terceira e definitiva em

1876 Ele natildeo ficou preso ao texto de Stephanus e apresenta o princiacutepio das ediccedilotildees criacuteticas

sugerindo modificaccedilotildees e melhoramentos do texto Em 1911 foi a vez de Alfred Blunt

Segundo Minns e Parvis67 a obra se baseou principalmente nos trabalhos de G Kruumlger68 que

se espelhou em Otto A ediccedilatildeo de Edgar Goodspeed69 em 1914 recorre a A C e agrave tradiccedilatildeo de

Euseacutebio e da Sacra Parallela poreacutem natildeo apresenta notas criacuteticas

Em 1994 Miroslav Marcovich70 publicou sua ediccedilatildeo criacutetica das Apologias Em 1997

publicou tambeacutem a ediccedilatildeo do Diaacutelogo71 A qualidade criacutetica destes textos passou a um alto

niacutevel Segundo a anaacutelise de Minns e Parvis72 as emendas de Marcovich satildeo de um teor

filoloacutegico tatildeo elevado e com intervenccedilotildees sobre o caraacuteter estiliacutestico de tal modo que eacute possiacutevel

duvidar que Justino tivesse um conhecimento tatildeo apurado de grego

61 SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703 62 Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722 63 TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius 64 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 16 65 MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 66 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 67 Op cit p 17 68 Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896 69 Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 70 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 71 MARCOVICH Miroslav Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997 72 Op cit p 18

21

Charles Munier tambeacutem apresentou em 199473 um volume simples das Apologias em

francecircs Em 199574 foi lanccedilada sua ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto grego Ele confessa natildeo ter tido

acesso agrave obra de Marcovich receacutem-publicada75 Sua ldquogrande obrardquo veio em 2006 uma ediccedilatildeo

criacutetica na coleccedilatildeo Sources Chreacutetiennes O ponto forte do texto de Munier satildeo os comentaacuterios

e a extensiva discussatildeo do contexto teoloacutegico e filosoacutefico76 As anaacutelises textuais natildeo satildeo

muito profundas mas contribuem significativamente com a indicaccedilatildeo de textos

correlacionados

A ediccedilatildeo criacutetica de Denis Minns e Paul Parvis77 ndash com texto grego traduccedilatildeo e notas ndash

foi publicada em 2009 Aleacutem da ampla revisatildeo das ediccedilotildees de outros autores o texto

apresenta um rico aparato criacutetico As interferecircncias no texto fazem a I Apologia chegar ateacute o

capiacutetulo 70

Em 1995 a editora Paulus preparou uma versatildeo das I e II Apologias e o Diaacutelogo com

Trifatildeo em um uacutenico volume78 O texto eacute problemaacutetico e muito simplista Natildeo haacute sinais de

criacutetica textual e podem ser encontrados alguns erros de portuguecircs A traduccedilatildeo foi feita por Ivo

Storniolo com introduccedilatildeo e notas de Roque Frangiotti mas natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo sobre

qual foi o texto base para a traduccedilatildeo Eacute evidente todavia que os editores natildeo contaram com

as ediccedilotildees de Marcovich Munier ou Minns e Parvis Por isso deixaremos este texto em

segundo plano

Nessa pesquisa as ediccedilotildees de Miroslav Marcovich79 Charles Munier80 e a de Denis

Minns e Paul Parvis81 satildeo lidas em conjunto comparando as divergecircncias sempre que for

necessaacuterio A interferecircncia na disposiccedilatildeo dos capiacutetulos adotada por Denis Minns e Paul Parvis

natildeo seraacute admitida A divisatildeo das Apologias seraacute tal qual a que apresenta Marcovich por ater-

se ao padratildeo comum agrave maioria dos estudiosos82 poreacutem a Apologia Maior seraacute chamada I

Apologia abreviado para I Apol ou simplesmente I quando jaacute houver uma citaccedilatildeo no

paraacutegrafo Semelhantemente a Apologia Menor seraacute chamada II Apologia abreviado para II

73 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p 74 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 75 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 90 76 Opiniatildeo tambeacutem compartilhada por MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 18 77 Ibid 346 p 78 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 79 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 80 Op cit 2006 81 Op cit 82 Cf MARCOVICH M Op cit 2005 p 10

22

Apol ou II nas mesmas condiccedilotildees que a primeira O texto de Munier segue a mesma

padronizaccedilatildeo de Marcovich no entanto ele prefere se referir a Apologia parte I e parte II

nomenclatura que natildeo seraacute seguida nesse texto O termo ldquoApologiasrdquo seraacute empregado como

referecircncia aos dois textos de Justino

12 A questatildeo da autoria Justino

A I Apologia (11) aponta explicitamente que seu autor eacute Justino homem oriundo de

Flaacutevia Neaacutepolis hoje conhecida como Nablus localizada na Siacuteria Palestina B Bagatti83

afirma que ela foi fundada por veteranos da conquista da Judeia sob Vespasiano por volta do

ano de 72 O avocirc de Justino Baquios pode ter participado da implantaccedilatildeo da cidade

O apologista se reconhece como conterracircneo dos samaritanos84 No Diaacutelogo com

Trifatildeo ele eacute identificado como ldquofiloacutesofordquo e nas Apologias fica evidente seu conhecimento da

filosofia Taciano chamou seu mestre apologista de ldquoo mais admiraacutevel85rdquo Irineu de Lyon fez

menccedilatildeo ao seu martiacuterio e carregou sua influecircncia em seu escrito86 Tertuliano87 atribuiu-lhe

dois tiacutetulos ldquofiloacutesofo e maacutertirrdquo O apologista tambeacutem recebeu um lugar no De viriis

illustribus de Satildeo Jerocircnimo e Gennadius88

Em seu Diaacutelogo com Trifatildeo89 ele eacute apresentado como um homem educado no estudo

da filosofia Segundo a narrativa do Diaacutelogo Justino conheceu o estoicismo frequentou a

escola peripateacutetica ficou junto a um filoacutesofo pitagoacuterico que lhe solicitou aprender muacutesica

astronomia e geometria Por uacuteltimo havia se aproximado da escola platocircnica quando entatildeo

conheceu os escritos dos profetas e a feacute cristatilde90 Segundo E R Goodenough91 Justino adota

uma dramatizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o cristianismo e a filosofia apresentando as passagens

por diversas escolas agraves quais critica rumo agrave ldquoverdaderdquo cristatilde Ele compara a narrativa de

Justino agrave de seu contemporacircneo Luciano em Menippus IVVI Em Menippus tambeacutem eacute

descrita a passagem por diversas escolas de pensamento chegando-se ao consentimento pelas

inuacutemeras contradiccedilotildees de que nenhuma delas tinha autoridade Goodenough tambeacutem vecirc a

83 S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319 84 Diaacutel 1206 II Apol 151 85 Discurso contra os gregos 191ss 86 Contra as heresias I281 cf IV62 V262 87 Contra os Valentinianos 51ss 88 Vida dos homens Ilustres 89 21ss 90 II Apol 81ss 91 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 pp 58-59

23

recorrecircncia dessa forma literaacuteria na descriccedilatildeo de verdadeiros proseacutelitos do judaiacutesmo Githro

Naaman e Rahab descritos na Tannaim92 N Hyldahl93 aleacutem de considerar a narrativa da

trajetoacuteria filosoacutefica de Justino mera ficccedilatildeo tambeacutem sustenta ser impossiacutevel determinar que

tipo de platonista esse pensador foi antes de sua conversatildeo e que a capa de filoacutesofo que usava

mencionada por Euseacutebio era um erro de interpretaccedilatildeo

Deve-se reconhecer como tambeacutem destacou L W Barnard que se por um lado havia

uma convenccedilatildeo literaacuteria grega ndash e que pudesse ser encontrada ocasionalmente ateacute no judaiacutesmo

ndash sobre as aventuras por diversas escolas a fim de criticaacute-las por outro lado isso natildeo contradiz

a admissatildeo da atual condiccedilatildeo de filoacutesofo cristatildeo assumida por Justino naquele momento Por

ldquofiloacutesofo cristatildeordquo natildeo se pretende dizer outra coisa senatildeo aquilo que ele mesmo confessa e

procura convencer os seus leitores a saber de que apoacutes conhecer diversas correntes

filosoacuteficas encontrou nas doutrinas cristatildes a ldquoverdaderdquo que o contentou94 Aleacutem disso o teor

apologeacutetico do discurso de Justino estaacute fundamentalmente relacionado a paralelos e

intersecccedilotildees com a filosofia C Andresen95 concorda que a trajetoacuteria filosoacutefica de Justino seja

mais do que um simples jogo literaacuterio Segundo Andresen e ele parece estar correto o meacutedio-

platonismo eacute a base da construccedilatildeo do pensamento cristatildeo de Justino

Em Roma Justino esteve engajado em debates com o filoacutesofo ciacutenico Crescente96

Segundo a Ata do Martiacuterio de Justino97 ele foi decapitado sob o julgamento de Rusticus

prefeito de Roma entre 162 e 168

A data e o local da conversatildeo de Justino satildeo imprecisos Eacutefeso tem sido cogitada como

uma boa hipoacutetese para o local de seu membramento ao cristianismo98 ou ainda algum ponto

na sua longa jornada da Palestina para Roma99 Minns e Parvis100 pensam que sua adesatildeo deve

ter ocorrido pelo menos uns 30 anos antes de sua morte Isso apontaria para uma data proacutexima

92 Ibid pp 58-59 93 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 94 Dial II1-6 95 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf FELIX Viviana Laura Elementos medioplatoacutenicos en la filosofiacutea de Justino IV JORNADAS NACIONALES DE FILOSOFIacuteA MEDIEVAL Academia Nacional de Ciencias de Ciencias de Buenos Aires Abril 2009 96 II Apol 31ss 97 Atti del Martiacuterio di San Giustino Caritone Caritoacute Evelpisto Ierace Peone e Liberiano Martirizzati a Roma In GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 Texto grego e traduccedilatildeo italiana a partir da obra de WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987 98 QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197 99 SKARSAUNE Oskar The proof from phophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provence theological profile Leiden EJBrill 1987 pp 245-246 100 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 33

24

agrave guerra judaica da deacutecada de 130 dC O Dialogo (1206) cita a I Apologia e desse modo

ambos os textos fazem referecircncia agrave revolta de Bar Kosiba entre os anos de 132 e 135101

Aleacutem das Apologias e do Diaacutelogo com Trifatildeo obras que satildeo reconhecidamente

proacuteprias a Justino Euseacutebio102 aponta que o apologista escreveu tambeacutem um livro contra os

gregos outro intitulado Elenchos um tratado sobre a soberania de Deus outro com o tiacutetulo

Psaltes e um escrito sobre a alma Um tratado contra Marciatildeo tambeacutem eacute citado mas essa

passagem corresponde a um trecho da I Apol 265-6103 Na sequecircncia dessa periacutecope da I

Apologia Justino disse que ele mesmo escreveu um ldquotratadordquo contra todas as heresias Esse

escrito poreacutem eacute dado por perdido No Dialogo 1206 o apologista diz ter aprestado um

escrito endereccedilado ao imperador no qual se refere a Simatildeo Mago104 o que eacute constatado na I

Apologia Eacute pertinente admitir que natildeo eacute possiacutevel saber se o texto que foi preservado ateacute agora

derivou daquele primeiro endereccedilado ao imperador Se seu trabalho foi entregue ao imperador

eacute provaacutevel que Justino tenha ficado com uma coacutepia

Minns e Parvis105 natildeo acreditam que seu texto tenha sido copiado com o intuito de ser

amplamente publicado Parece-lhes razoaacutevel sustentar a hipoacutetese de que o texto preservado

ateacute hoje pelo MS A deriva do documento que estava com Justino no momento de sua prisatildeo

Talvez tenha sido necessaacuteria uma reorganizaccedilatildeo do texto mais tarde com um propoacutesito

catequeacutetico ou apologeacutetico diferente do seu sentido original Entre sua emissatildeo original e o

teacutermino do trabalho do copista do Parisinus Graecus 450 em 11 de setembro de 1364106

muita coisa pode ter acontecido ao texto Todavia o principal obstaacuteculo a essa hipoacutetese eacute que

natildeo foram encontrados quaisquer vestiacutegios de um texto que ateste que o documento jaacute teve

outro formato sem os acreacutescimos catequeacuteticos Aleacutem disso as partes que tratam das crenccedilas

cristatildes estatildeo bem relacionadas agrave estrutura da obra e cumprem com seu propoacutesito

apologeacutetico107 Sua estrutura apresenta traccedilos comuns aos escritos de outros apologistas do II

101 Diaacutel 13 I Apol 316 102 Hist Ecles IV181-6 103 Hist Ecles IV118-9 104 Cf I Apol 262-3 105 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 34 106 Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005) calcula o ano de 1363 mas Bobichon ( lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 pp 157-158) apontou de forma mais satisfatoacuteria a data de 1364 com a qual Minns e Parvis (Op cit 34) e Munier (Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 84) concordam 107 A funccedilatildeo catequeacutetica da obra seraacute examinada mais propriamente no terceiro capiacutetulo parte 4 dessa dissertaccedilatildeo

25

seacuteculo induzindo Sara Parvis108 a pensar que Justino tenha sido o ldquopairdquo do gecircnero apologeacutetico

cristatildeo servindo de inspiraccedilatildeo para outros escritores da eacutepoca

Embora existam interrogaccedilotildees e divergecircncias sobre a unicidade ou biparticcedilatildeo das

Apologias haacute semelhanccedilas estiliacutesticas entre as duas partes que fazem com que Marcovich109

Munier110 Minns e Parvis111 concordem que os escritos procedam de Justino ainda que certas

modificaccedilotildees sejam admitidas durante o tempo conforme as irregularidades de alguns pontos

tecircm mostrado Eacute preciso ainda ter uma ideia clara sobre que tipo de escritos se estaacute

analisando tendo em vista que o conceito de ldquoapologiardquo como uma espeacutecie de gecircnero literaacuterio

eacute recente

13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino

Termo derivado da palavra grega avpologia significa basicamente ldquodiscurso de defesa

defesardquo Que tambeacutem deriva do verbo avpologeomai que representa o oposto de kathgoria

que significa ldquoacusaccedilatildeordquo112

No seacuteculo IV aC Platatildeo113 e Xenofontes114 cada um a seu modo narram a ldquoapologia

de Soacutecratesrdquo e proporcionam um tributo agrave valorizaccedilatildeo da razatildeo No I seacuteculo dC eacute Flaacutevio

Josefo115 quem eterniza um discurso desse tipo remetido a Aacutepion em prol dos judeus Josefo

defende a religiatildeo judaica salientando a sua antiguidade e contrastando a pretensatildeo grega agrave

superioridade no campo cultural O caraacuteter ldquoapologeacuteticordquo do texto como um ldquodiscurso de

defesardquo fica por conta da resposta a algumas alegaccedilotildees antijudaicas atribuiacutedas ao escritor

grego Aacutepion e os mitos acreditados por Manetho

No seacuteculo II dC Apuleio de Madura tambeacutem compocircs uma apologia pela qual se

defende das acusaccedilotildees de magia Eacute nesse mesmo seacuteculo que uma seacuterie de escritos como os de

Quadrato Aristides Justino Atenaacutegoras Meacuteliton de Sardes Teoacutefilo de Antioquia Taciano e

outros emerge em defesa dos cristatildeos que sofriam acusaccedilotildees principalmente na Aacutesia Menor

108 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 109 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 110 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 111 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 112 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 Cf RUSCONI C (Ed) DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 113

Apologia de Soacutecrates 114

Apologia 115 Contra Aacutepion

26

Para compreender os aspectos constitutivos das apologias de Justino eacute preciso analisar

as vaacuterias teorias sobre sua composiccedilatildeo e sua estrutura retoacuterica

131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica

As diferenccedilas estruturais de uma para a outra apologia de Justino exigem uma anaacutelise

especiacutefica Notadamente a II Apol eacute menor que a I Apol Minns e Parvis116 apresentam trecircs

teorias sobre o nuacutemero desses escritos de Justino

A forma como aparecem no MS A corrobora com a ideia de que sejam duas apologias

Mas enquanto a primeira eacute cheia de citaccedilotildees da escritura a segunda natildeo tem nenhuma citaccedilatildeo

desse tipo De modo bem peculiar eacute na II Apologia que aparece a reflexatildeo sobre o loacutegoj

sperermatikoj117 e o comprometimento de Justino no debate com Crescente A anaacutelise textual

da II Apologia eacute desfavorecida pelo tamanho do texto todavia as diferenccedilas proporcionais

entre os escritos satildeo somadas agrave hipoacutetese de que seriam de fato duas apologias

A segunda teoria sustenta a ideia de que originalmente a atual composiccedilatildeo dupla era

na verdade uma uacutenica Apologia Munier eacute aliado a essa proposta Ele considera que uma obra

uacutenica ndash um libellus ndash teria sido apresentada em Roma como requisiccedilatildeo pessoal endereccedilada ao

Imperador Antonino Pio e seus filhos para mudar a condiccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio118 O

principal argumento dessa hipoacutetese eacute que existe uma boa inclusio entre as referecircncias agrave

piedade e agrave filosofia no iniacutecio da primeira (I Apol 1 21-2 31) e os que aparecem no final da

segunda (II Apol 1213 e 14) As retomadas na segunda do tipo ldquoconforme dissemos

anteriormenterdquo seriam referecircncias ao que foi dito na parte imediatamente anterior e natildeo a

outro texto

De modo diverso Minns e Parvis119 consideram que a estrutura do texto ficaria muito

estranha se fosse pensada segundo essa teoria O cliacutemax da primeira parte estaria no rescrito

de Adriano quando o autor mostra a incoerecircncia das acusaccedilotildees e perseguiccedilotildees sofridas pelos

cristatildeos (I Apol 685-10) Isso tornaria incoerente recomeccedilar uma seccedilatildeo de defesa na parte

posterior Outro argumento desfavoraacutevel eacute que o escriba que picou o texto teria sido

demasiadamente astuto para escolher uma parte que marcaria precisamente a distinccedilatildeo de tons

entre os dois textos

116 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p22 117 Logos spermatikos que pode ser entendido de modo limitado com ldquosemente da razatildeordquo 118 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 119 Op cit p 22

27

Outra teoria sustenta que se trata de uma apologia e um apecircndice Minns e Parvis120

fazem saber que essa foi a teoria apresentada por Grabe121 em 1703 recebida por Harnack122

popularizada por Goodspeed123 em 1914 e ainda sustentada com entusiasmo por Marcovich124

em 1994 As correspondecircncias entre a primeira e a segunda estariam relacionadas ao material

deixado pelo proacuteprio Justino apoacutes concluir o texto definitivo A I Apologia pode ser

reconhecida como um libellus ou seja uma requisiccedilatildeo particular endereccedilada ao Imperador

mas a classificaccedilatildeo da II Apologia natildeo eacute muito precisa

Seguindo o raciociacutenio de Robert M Haddad125 qualquer peticcedilatildeo (libellus) apresentada

ao imperador buscava persuadi-lo a fazer alguma coisa De fato na Antiguidade a persuasatildeo

se tornou uma arte Desenvolvida pelos gregos a retoacuterica foi adaptada pelos romanos para

suas proacuteprias aspiraccedilotildees Ciacutecero Secircneca o Velho Taacutecito Pliacutenio o Jovem Quintiliano e

Fronto se tornaram nomes referenciais dessa habilidade Como foi apontado anteriormente

Justino era muito familiarizado com a filosofia mas natildeo se mostrou muito familiarizado com

a retoacuterica o que natildeo isentou seu texto de revelar uma estrutura comum agraves teacutecnicas dessa

disciplina126 No entanto esses aspectos ainda natildeo satildeo suficientes para oferecer uma

explicaccedilatildeo clara sobre o gecircnero das Apologias

132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino

Se a apologia de Soacutecrates diante do tribunal grego adaptada por Platatildeo127 e por

Xenofontes128 tornou-se um emblema da defesa da razatildeo no II seacuteculo dC foram as

120 Op cit p 23 121 HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703 Grabe atuou em parceria com Huntchim nessa ediccedilatildeo 122 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274 123

Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 passim 124 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 10 125 HADDAD Robert M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 Werner Eck escreve que o imperador romano era cercado por pessoas que procuravam influenciaacute-lo ou conseguir favores (Id The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000) 126 The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 21-28 127 Apologia de Soacutecrates 128 Apologia

28

acusaccedilotildees contras os cristatildeos que deram ldquorazatildeordquo agrave proliferaccedilatildeo de apologias em defesa da feacute

cristatilde que ainda natildeo apresentava uma sistematizaccedilatildeo coerente de suas ideias

Segundo a anaacutelise de Robert Grant a literatura apologeacutetica emerge de grupos

minoritaacuterios que estatildeo tentando desenvolver uma linguagem que seja compreensiacutevel agraves

culturas no Impeacuterio Romano para que por meio dela seja comunicada a mensagem cristatilde129

Satildeo vaacuterias as formas apresentadas para atestar a autenticidade das correntes religiosas

defendidas A apologia significaria algo mais do que uma simples defesa dos ataques sofridos

pela Igreja Seria uma forma baseada na defesa que Soacutecrates teria feito no seu julgamento

diante do povo de Atenas para mostrar a racionalidade de seu julgamento Os apologistas

cristatildeos teriam a ampla tarefa de estender possiacuteveis conexotildees entre as concepccedilotildees da filosofia

grega e aquela que para os cristatildeos era a ldquoverdade por excelecircnciardquo Mas esse processo

precisa ser analisado dentro do acircmbito missioloacutegico cristatildeo 130

A apreciaccedilatildeo helenizante estendida tambeacutem por Leslie W Barnard131 a todos os

apologistas eacute desajeitada O proacuteprio disciacutepulo de Justino Taciano opotildee-se agrave cultura grega

Poucos anos depois Tertuliano132 se mostraria o principal disseminador de um discurso que

estava longe de buscar os pontos comuns entre Jerusaleacutem e Atenas A comparaccedilatildeo com

Soacutecrates tambeacutem natildeo pode ser estendida a todos os apologistas

Justino poreacutem aleacutem de se referir positivamente a Soacutecrates como participante no logos

que autentica a racionalidade cristatilde proporciona uma analogia com a sua proacutepria condiccedilatildeo

enquanto prevecirc o seu martiacuterio em defesa da feacute cristatilde133

Em 1897 Th Wehofer em busca dos modelos literaacuterios de Justino observou que no

elogio dos mortos de Menexenus e na Apologia de Soacutecrates Platatildeo proporciona o modelo de

uma retoacuterica a serviccedilo da justiccedila e da verdade Sem duacutevida Justino conhecia os escritos de

Platatildeo Algumas correlaccedilotildees podem ser identificadas em trechos de suas Apologias I Apol

24 = ApS 30c 53 = 24b et 26c 82 = 30d 682 = 19a II102 = 24b Segundo Munier134

a exposiccedilatildeo temaacutetica progressiva encontrada nessa obra pode parecer uma desorganizaccedilatildeo

129 GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988 p 9 apud HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 31 130 Isso significa que as interconexotildees apologeacuteticas entre cultura greco-romana e cristianismo precisam ser contempladas como mecanismo dos discursos cristatildeos para proporcionar siginificaccedilotildees eficientes entre os povos de outras culturas cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990 131 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 2008 p 2(3) 132 Apolog passim 133 I Apol 51-3 II Apol 81ss 134 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 33

29

uma composiccedilatildeo aparentemente relaxada uma sucessatildeo aparentemente arbitraacuteria de

passagens dogmaacuteticas e pareneacuteticas que retoma abundantemente o mesmo tema abordando-o

sob uma perspectiva diversa Nota-se que um esquema preside a composiccedilatildeo geral das

Apologias

A estrutura essencial da Apologia de Soacutecrates por si soacute natildeo eacute suficiente para dar conta

do plano geral da obra de Justino As correlaccedilotildees entre o escrito de Platatildeo e o de Justino vatildeo

aleacutem do niacutevel estrutural Elas tambeacutem se mostram nos modelos de argumentaccedilatildeo De fato

este eacute o coraccedilatildeo mesmo da defesa que se funda sobre o exemplo de Soacutecrates condenado como

ldquoateu e iacutempiordquo135 Para Justino136 o destino traacutegico do filoacutesofo ateniense ilustra perfeitamente

a sorte dos cristatildeos ameaccedilados de morte

A diatribe de Justino contra Crescente toma uma funccedilatildeo analoacutegica Ela estaacute associada

agrave evocaccedilatildeo de Soacutecrates Assim como Meacuteletos tinha acusado Soacutecrates Crescente acusa os

cristatildeos de serem ldquoateus e iacutempiosrdquo a fim de agradar a multidatildeo insensata137 E como Soacutecrates

tinha oposto a seus acusadores sua indiferenccedila ao ldquotalento da palavra e sua uacutenica preocupaccedilatildeo

era dizer a verdaderdquo138 o desafio de Justino a Crescente se inspira na sentenccedila de Platatildeo139

ldquoDe modo nenhum se deve honrar mais a homens do que agrave verdaderdquo

Contudo a Apologia de Soacutecrates natildeo eacute um modelo literaacuterio estrito no qual Justino se

inspirou Segundo a anaacutelise de Munier140 o Protreacuteptico de Aristoacuteteles oferece tambeacutem

alguma correlaccedilatildeo mas isso natildeo deve significar que haja alguma dependecircncia intriacutenseca entre

esses escritos Aristoacuteteles se dedica a demonstrar que a filosofia converte todo seu valor agrave

vida em sociedade e que uma vida sem filosofia natildeo vale a pena de ser vivida Na medida em

que apresenta o cristianismo como uma ldquofilosofia divinardquo141 Justino poderia tirar o melhor

partido dos protreacutepticos142 de Aristoacuteteles de Isoacutecrate e de seus seguidores dedicados agrave

filosofia Mas essa semelhanccedila eacute apenas ocasional e natildeo intencional O apologista natildeo

esconde seu desejo de que o imperador se torne um filoacutesofo de Cristo Ele acreditava que se

seu pedido fosse aceito a feacute cristatilde espalharia benefiacutecios por todo o Impeacuterio143 Eacute nesse sentido

135 I Apol 53 136 II Apol 12 81-2 137 Cf WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991 138 Platatildeo ApS 17bc 139 Repuacuteblica X595c 607c 140 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 40 141 II125 142 Protreacuteptico exortaccedilatildeo Restam apenas fragmentos dos escritos protreacutepticos de Aristoacuteteles cf CHROUST Anton-Hermann Aristotle Protrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964 143 I 12 1-2 17 1-4

30

que ele recorre agrave maacutexima de Platatildeo144 ldquoSe governantes e governados natildeo satildeo filoacutesofos natildeo

pode haver felicidade nas cidadesrdquo

P Keresztes145 estava certo ao dizer que a caracteriacutestica marcante da Apologia eacute a

extensiva defesa dos cristatildeos contra as acusaccedilotildees de ateiacutesmo traiccedilatildeo canibalismo e agraves accedilotildees

caluniosas de modo geral Justino sustenta essa defesa tentando mostrar a exclusiva verdade

da religiatildeo cristatilde O principal propoacutesito das Apologias seria garantir que os cristatildeos tivessem

liberdade para professarem a feacute embora isso significasse a condenaccedilatildeo dos demais deuses

Tambeacutem fazia parte do propoacutesito chamar os pagatildeos a abraccedilarem o cristianismo Seus

conselhos retoacutericos no contexto servem ao propoacutesito de sugerir ao imperador que mude o

corrente curso da justiccedila Isso significa clamar por um julgamento comum que natildeo permitisse

a condenaccedilatildeo pelo ldquonome cristatildeordquo

Esses escritos do pensador de Flaacutevia Neaacutepolis satildeo dotados de certa particularidade em

sua composiccedilatildeo Mas se nota que a princiacutepio o apologista procurou valer-se do seu direito de

dirigir uma ldquopeticcedilatildeordquo ou libellus ao imperador

Na I Apol 74 ele faz sua requisiccedilatildeo usando o verbo normalmente empregado para

uma peticcedilatildeo em grego avxioun Assumindo a postura de um pensador compromissado com a

justiccedila e a verdade ele pede para que ldquosejam examinadas as accedilotildees de todos os que [] satildeo

denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por

outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo

ter cometido nenhum crimerdquo146 (I Apol 74) Uma requisiccedilatildeo desse tipo deveria ser

encaminhada ao escritoacuterio administrativo para ser ou natildeo subscrita e receber uma resposta O

equivalente grego para libellus eacute biblidion para subscribere o equivalente eacute u`pografein e

para postar uma resposta usa-se proqeiai no lugar de proponere147 Esta terminologia pode

ser precisamente encontrada na II Apol 141

Kai u`maj ou=n avxioumen u`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaj148148148148 to dokoun proqeinaiproqeinaiproqeinaiproqeinai touti to biblidionbiblidionbiblidionbiblidion( o[pwj kai toij alloij ta hmetera gnwsqh| kai dunwntai thj yeudodoxiaj kai avgnoiaj ton kalwn avpallaghvai( oi para thn

144 Repuacuteblica V 473de 145 The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965 p 109 146 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 pp 23-24 [Oqen pantwn twn kataggellomenwn umin taj praxeij krinesqai avxioumen( i[na o` evlegcqeij w`j adikoj kolazhtai( avlla mh wvj Cristianoj evan de tij avnelegktoj fanhtai( avpoluhtai w`j Cristianoj ouvden avdikon) MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 142-144 147 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 25 148 Grifos nossos

31

e`autwn aivtina u`peuqunoi taij timwriaij eivj to gnwsqhnai toij avnqrwpoij tauta(149

As proporccedilotildees desses textos ultrapassam os padrotildees de um libellus Para explicar essa

relativa incompatibilidade Minns e Parvis150 referindo-se apenas a I Apologia sustentam que

Justino usou de uma estrateacutegia por meio da qual ele adota esse tipo de documento

administrativo romano inserindo um material catequeacutetico e explanatoacuterio cristatildeo convertendo-

o em um dispositivo disseminador da mensagem de feacute Ou ainda traduzindo as palavras de

W R Schoedel151 trata-se de uma peticcedilatildeo apologeticamente fundamentada e sem precedentes

na tradiccedilatildeo literaacuteria greco-romana As diferenccedilas na estrutura da II Apologia natildeo permitem

dizer que se trata de um documento de outro autor pois as caracteriacutesticas do texto atestam sua

compatibilidade com a primeira peccedila O que faz multiplicar as interrogaccedilotildees sobre o segundo

texto eacute que mesmo apresentando traccedilos de uma segunda ldquopeticcedilatildeordquo ela eacute evidentemente menor

e dispensa um exordio bem formulado como o do primeiro escrito Mas essa propriedade da II

Apologia se tornaraacute mais clara a seguir na anaacutelise dos destinataacuterios

14 Destinataacuterios

Existem algumas variaccedilotildees entre a forma como a I Apologia eacute endereccedila no MS A e na

Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio A tabela a seguir foi construiacuteda seguindo as informaccedilotildees

apresentadas por Minns e Parvis152

MS A Euseacutebio HE IV12

a Antoninus Pius Augustus Caesar a Antoninus Pius Augustus Caesar

e a Verissimus seu filho e a Verissimus seu filho

Filoacutesofo Filoacutesofo

e a Lucius e a Lucius

Filoacutesofo do filoacutesofo

de Ceacutesar filho por natureza Ceacutesar filho por natureza

e de Pius por adoccedilatildeo e de Pius por adoccedilatildeo

149 MUNIER Op cit pp 364 366 TrldquoPortanto noacutes vos suplicamos que subscrevendo como vos pareccedila deis publicidade a este livro a fim de que tambeacutem os outros conheccedilam a nossa religiatildeo e se vejam livres da vatilde opiniatildeo e da ignoracircncia em relaccedilatildeo ao bem Por sua proacutepria culpa eles se tornam responsaacuteveis pelo castigordquo 150 Op cit p 25 151 SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72 152 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35

32

Eacute incluiacuteda ainda no manuscrito a expressatildeo ldquoao santo senado e a todo o povo dos

romanosrdquo entre os destinataacuterios da Apologia Minns e Parvis153 consideram esse uacuteltimo

trecho uma antiga adiccedilatildeo editorial Eles apontam que a expressatildeo ldquosanto senadordquo foi

comumente encontrada em moedas de bronze cunhadas na Aacutesia Menor154 Outras inscriccedilotildees

mostram essa expressatildeo vinculada agrave famiacutelia imperial e ao povo romano Vespasiano ldquoe toda

sua casa o santo senado e o povo dos romanosrdquo155 Trajano ldquoe toda sua casa o santo senado e

o povo dos romanosrdquo156 Marco Aureacutelio e Luacutecio Veroldquoe toda [sua] casa o mais santo senado e

o povo dos romanosrdquo157 Septimus Severus Caracalla Geta Julia Domna ldquoe toda a sua casa o

santo senado o povo dos romanos e os santos exeacutercitosrdquo158 Eacute possiacutevel indicar muitas outras

inscriccedilotildees mas o impasse identificado por Minns e Parvis estaacute relacionado ao fato de o

ldquosenadordquo e o ldquopovordquo aparecem no endereccedilamento de uma ldquopeticcedilatildeordquo como eacute caracterizada a

Apologia de Justino Entra na hipoacutetese a importaccedilatildeo da expressatildeo que ocorre na I Apol 563

ldquoPor isso noacutes vos suplicamos que o sacro senado e o povo romano conheccedilam este nosso

escrito []rdquo Ou ainda que a primeira ocorrecircncia do termo ldquosacro senadordquo seja a da fala de

Lucius a Urbicus na II Apol 216

Munier159 no entanto tem outra proposta Para ele eacute mais provaacutevel que tal expressatildeo

tenha assumido seu lugar em funccedilatildeo da necessaacuteria autorizaccedilatildeo do senado e do povo para o

estabelecimento de um novo culto puacuteblico Seu argumento eacute baseado no escrito de Ciacutecero

(Legibus II19-20) e parece mais seguro

Euseacutebio escreve que Justino tambeacutem endereccedilou uma Apologia ao imperador

ldquoAntonino Verordquo160 ou seja a Marco Aureacutelio A menccedilatildeo ao ldquoimperador Piordquo ao ldquofilho de

Ceacutesar amante do saberrdquo e ao ldquosacro senadordquo na II Apol 21ss pode significar para estudiosos

como M Marcovich161 que a II Apologia foi dirigida aos mesmos nomes que a primeira Essa

periacutecope do texto apresenta a narraccedilatildeo de um episoacutedio que se sucedeu nos dias de Antonino

153 Ibid 154 TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984 p 96 apud MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35 155 tan i`eran sunklhton kai ton damon ton R`wmaiwn Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386 Minns e Paris (op cit p35) citam o mesmo texto com algumas variaccedilotildees 156 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn (Cyrenis IGRR I-II 1037) Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355 157 i`erwtathj boulhj te kai dhmou tou Rwmaiwn (Serdicae IGRR I-II 1452) Ibid p 182 158 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn kai strateumatwn (Pizi IGRR I-II 766) Ibid p 251 159 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 278 160 Hist Ecles IV183 161 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 7

33

Pio mas eacute provaacutevel que a alusatildeo agrave piedade e agrave filosofia novamente seja proposital para

constranger seus destinataacuterios Euseacutebio se confunde com o nome de Antonino assim como o

faz quanto ao rescrito agrave comunidade da Aacutesia162

Considerando que Justino escreveu na I Apologia 462-3 que ldquoCristo nasceu cento e

cinquenta anos antes de nosso tempordquo A Harnack163 conclui que esse primeiro escrito foi

composto entre 147 e 154 dC Tambeacutem na I Apol 296 L Munatius Felix eacute mencionado

como prefeito do Egito Sabe-se que ele exerceu seu mandato de 150 a 154 dC164 A II Apol

11 faz referecircncia a Q Lollius Urbicus como prefeito de Roma cargo que ocupou de 146 a

160 dC165 Segundo a anaacutelise de Munier o Chronicon de Euseacutebio indica que o adversaacuterio de

Justino Crescente comeccedilou a denunciaacute-lo em Roma no segundo ano da 233ordf Olimpiacuteada que

corresponde ao ano de 153 ou 154 Desse modo seraacute acatada a uma data por volta do ano 153

ou 154 para a I Apologia e alguns anos depois para o segundo escrito ateacute no maacuteximo 161 dC

A I Apologia apresenta uma defesa geral dos cristatildeos O segundo escrito parte da

reprovaccedilatildeo das accedilotildees anticristatildes tendo em vista principalmente o que havia acontecido em

Roma sob Urbico e as investidas do ciacutenico Crescente Entranhado nessa ldquopeticcedilatildeo

apologeticamente fundamentadardquo166 estaacute o argumento de que os cristatildeos ao contraacuterio do que

era disseminado em algumas denuacutencias e caluacutenias natildeo seriam de nenhum modo uma ameaccedila

agrave ordem A seguir seratildeo examinadas as accedilotildees anticristatildes que compunham o contexto da

primeira metade do seacuteculo II dC

162 Hist Ecles IV131ss A confusatildeo com os nomes dos imperadores no rescrito da Aacutesia seraacute examinada mais adiante Pode-se admitir tambeacutem que essa confusatildeo tenha sido acarretada pela organizaccedilatildeo do texto em um periacuteodo posterior a Euseacutebio 163 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 227 164 Prosopografia Imperii Romani V 2 Berlim Walter de Gruyter 1983 (M 723) 165 PIR v1 1970 L 327 166 Usando novamente a expressatildeo de SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72

34

CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS

Justino se opotildee agraves investidas contra os cristatildeos167 por natildeo considerar vaacutelidas as

justificativas apresentadas para as condenaccedilotildees dos fieacuteis A confissatildeo de ldquocristianismordquo diante

de uma autoridade acaba sendo ironizada como uma condenaccedilatildeo do nome ldquocristatildeordquo Na II

Apologia (11) ele afirma que accedilotildees desse tipo estatildeo ocorrendo por todo o Impeacuterio O que natildeo

deve significar que existia uma busca exaustiva dos romanos pelos membros do novo

movimento No entanto eacute provaacutevel que esses atritos pudessem ser localizados em vaacuterias

regiotildees Um caso especiacutefico da execuccedilatildeo em Roma sob Urbico motivou-o a se manifestar

novamente168 As intimaccedilotildees por razotildees religiosas aos tribunais jaacute haviam movido outros

apologistas na primeira metade do II seacuteculo Euseacutebio169 faz saber que antes de Justino

Quadrato e Aristides jaacute clamavam em favor dos cristatildeos ao Imperador Adriano

Natildeo haacute nenhum indiacutecio de que o cerne da crenccedila cristatilde apresentasse alguma forma de

conspiraccedilatildeo contra os romanos Mas eacute preciso estabelecer uma visatildeo geral das accedilotildees

anticristatildes que se desenvolveram antes de Justino e em seu tempo para que se possa assimilar

o sentido de sua reflexatildeo

O II seacuteculo se inicia com um quadro indefinido a respeito dos cristatildeos A atividade

cristatilde de anunciaccedilatildeo da sua mensagem de feacute e conversatildeo dos pagatildeos alcanccedilava diversas

regiotildees do Impeacuterio Conversotildees e alguns atritos sempre ocorriam

A conversatildeo ao cristianismo implicava em uma mudanccedila que aleacutem de religiosa

poderia ser existencial social e ateacute poliacutetica Eacute provaacutevel que essa postura de resistecircncia agrave

associaccedilatildeo com a ldquoidolatriardquo identificada na vida ciacutevica fosse interpretada como ldquoineacuterciardquo ou

falta de vigor para se envolverem nos assuntos puacuteblicos jaacute despertasse preocupaccedilotildees na virada

do I seacuteculo Principalmente quando membros das classes dirigentes comeccedilam a aderir agrave feacute do

oriente A linha entre a toleracircncia e a intoleracircncia eacute indefinida Eacute preciso analisar os contornos

desde Trajano (governou de 98-117 dC) ateacute os primeiros anos de Marco Aureacutelio (governou

de 161-180 dC)

167 ldquopedimos sejam examinadas as acusaccedilotildees contra os cristatildeos Se for demonstrado que satildeo reais castiguem-nos como eacute conveniente que sejam castigados os reacuteus convictosrdquo I Apol 31 168 ldquo[] o que aconteceu ultimamente em vossa cidade sob Urbico e o que os governadores estatildeo fazendo sem razatildeo em todo o impeacuteriordquo II Apol 11 169 Hist Ecles IV1-3

35

21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano

Natildeo haacute indiacutecios de uma perseguiccedilatildeo generalizada aos cristatildeos no Impeacuterio Romano no

iniacutecio do seacuteculo II mas a expansatildeo cristatilde em curso proporcionava um nuacutemero significativo de

processos nos tribunais locais Se por um lado alguns estavam certos de que os membros

dessa superstitio illicita deveriam ser condenados por outro lado existiam algumas lacunas

sobre esse tipo de julgamento

A expansatildeo proporcionava atritos corriqueiros de resistecircncia agraves novas crenccedilas O

nuacutemero de cristatildeos era crescente170 Ateacute o governo de Nero171 os adeptos agrave nova religiatildeo que

se desenvolvia no seio do judaiacutesmo natildeo enfrentaram problemas significativos em relaccedilatildeo aos

romanos Taacutecito faz saber que esses que a seu ver jaacute eram impopulares pelas suas flagitia

foram incriminados por Nero pelo incecircndio de Roma em 64 dC172 Se Nero lanccedilou a culpa

do incecircndio de Roma sobre os cristatildeos fica aberta a questatildeo sobre a dimensatildeo dessa

perseguiccedilatildeo A accedilatildeo de Nero foi suficiente para que a tradiccedilatildeo cristatilde o transformasse no

ldquoprimeiro imperador perseguidorrdquo logo seguido por Domiciano173174 do qual natildeo se conhece

uma perseguiccedilatildeo direta contra os cristatildeos mas uma repressatildeo a asebeia e ao proselitismo

judaico175 que deve ter ocasionado transtornos inclusive agrave Igreja Isso foi suficiente para se

sustentar que a referecircncia de Tertuliano176 ao institutum neronianum fazia de Nero o primeiro

a lanccedilar as bases juriacutedicas para a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos177 Todavia a utilizaccedilatildeo dessa

referecircncia de Tertuliano para a identificaccedilatildeo das bases juriacutedicas da perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute

problemaacutetica Marta Sordi178 recorrendo ao mesmo Tertuliano sustenta a ideia de que houve

170 GOODMANN M Mission and conversion poselytizing in the Religious History of the Roman Empire New York Clarendon PressOxford 1994 p 91-108 Cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 171 Governou de 54 a 68 dC 172 Anais XV44 Flagitia poderia referir-se a algo vergonhoso ou inapropriado algo descabido cf LIDDEL H G SCOTT R (Ed) Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 173 Governou de 81 a 96 dC 174 Euseacutebio His Ecles III26 175 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3 176 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4 177 KERESZTES Paul Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 Segundo C G Roman as bases dessa teoria se encontram na obra de CALLEWAERD C La methode dans la recherrch de la base juridique des premiers persecutions Reviste dhistoire Ecclesiastique 12 1911 pp 5-16 e segue acompanhada por Cf DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106 MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 1953 pp 3-32 178 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968

36

um senatus consultum na eacutepoca de Tibeacuterio179 que teria desaprovado o reconhecimento de

Cristo como deus do panteatildeo a contragosto do Imperador

A incerteza sobre como proceder em julgamento de cristatildeos fez com que Pliacutenio o

Jovem escrevesse ao imperador Trajano no iniacutecio do II seacuteculo A resposta do imperador

confirma a accedilatildeo de Pliacutenio em condenar os cristatildeos confessos proiacutebe agrave perseguiccedilatildeo a esses

religiosos rejeita as denuacutencias anocircnimas e faz aumenta as interrogaccedilotildees sobre as bases

juriacutedicas processos desse tipo Uma hipoacutetese comum tal como sustentam Marcel Simon e

Andreacute Benoicirct180 eacute a de que neste periacuteodo natildeo existia nenhuma lei sobre os cristatildeos e que os

magistrados agiam mediante a ius coertionis181 Essa teoria que havia sido sustentada

originalmente por Mommsen arrebanhou alguns seguidores mas como aponta Giorgio

Jossa182 em alguns casos como na questatildeo dirigida por Pliacutenio a Trajano o uso da coercitio eacute

limitado pelas interrogaccedilotildees sobre como enquadrar judicialmente os processos Para ser mais

especiacutefico Pliacutenio deseja saber se os cristatildeos deveriam ser condenados simplesmente por

confessarem esse nomem ou por algum crime que esteja subentendido Com base nos

trabalhos de E Le Blant183 no seacuteculo XIX outra teoria sobre esse tipo de julgamento propotildee

que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais existentes dentro do

direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea maiestatis Segundo C

G Roman184 essa teoria teve muitos seguidores nos seacuteculos XIX e XX sendo favoraacutevel

agravequeles que como L Homo e Ch Saumagne185 consideram que o institutum neronianum186

natildeo pode ser compreendido como edito ou lei especial emanada do princeps

As maiores discrepacircncias quanto agraves razotildees juriacutedicas e populares para condenaccedilatildeo dos

cristatildeos eacute a proacutepria relaccedilatildeo desse grupo religioso com o Impeacuterio neste iniacutecio do II seacuteculo

aparecem em funccedilatildeo das supostas posturas diferentes assumidas por Trajano e Adriano diante

dessa superstitio As explicaccedilotildees atuais trilham caminhos que vatildeo desde diferentes niacuteveis de

toleracircncia atribuiacutedos a esses dois imperadores como sustenta Pedro Barcelograve187 ateacute a hipoacutetese

179 Governou de 14 a 37 dC 180 Giudaismo e cristianismo una storia antica RomaBari Gius Laterza Figli Spa 2005 p 97 181 MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-96 182 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 107-144 183 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 184 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 185 HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229 186 Tertuliano Ad nationes 17 187 Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim

37

de que Adriano tenha reconhecido o cristianismo como uma religio licita conforme sustentou

primeiramente Mommsen188

Trajano assumiu o poder no ano de 98 dC A estrateacutegia de Nerva189 em adotaacute-lo para

ser seu sucessor aproximou o senado do futuro priacutencipe190 originaacuterio da Itaacutelica cidade da

proviacutencia senatorial da Baetica no sul da Hispania Eacute provaacutevel que tenha recebido formaccedilatildeo

poliacutetica e puacuteblica razoaacutevel mas sua imagem de homem militar e popular entre as legiotildees eacute a

que prevaleceu para a posteridade Segundo Julien Bennett191 Trajano era de uma famiacutelia

provincial de status elevado Mas essa ascensatildeo natildeo era para qualquer um Pliacutenio192 destaca-o

como priacutencipe escolhido pelas divindades ndash o epiacuteteto optimum era especiacutefico de Juacutepiter ndash

respeitador de todas as tradiccedilotildees ancestrais e das instituiccedilotildees poliacuteticas entre elas o senado

Uma idealizaccedilatildeo que certamente contrapunha-se agrave realidade efetiva pois Trajano apoiado

pelas legiotildees e representado como escolhido de Juacutepiter era detentor de um poder autocraacutetico

tatildeo grande quanto ou maior que o dos mais proacuteximos conselheiros os amigos do priacutencipe

Pode-se considerar que as accedilotildees poliacuteticas de Trajano tinham um caraacuteter apaziguador nos

territoacuterios romanos Ampliou-se a poliacutetica urbana e a extensatildeo das vias romanas nas

proviacutencias favorecendo significativamente a atividade comercial193

Nesse periacuteodo a filosofia estoica encontrou grande honra Por outro lado tambeacutem

houve uma significativa propagaccedilatildeo dos cultos orientais e da magia Prodiacutegios e milagres

eram ansiosamente buscados desencadeando certo fervor religioso entre o povo A piedade

religiosa ancorada agrave velha tradiccedilatildeo grega e romana nutrida por fermento novo proveniente

dos misteacuterios egiacutepcios e dos oraacuteculos caldeus permeava ainda os escritos dos intelectuais O

culto ao imperador natildeo recebeu tanta ecircnfase mas a sacralidade do Impeacuterio eacute talvez um fato

adquirido por todos e a aceitaccedilatildeo praacutetica da forma de culto se juntou com a formaccedilatildeo estoica

da classe dominante194

No ano de 96 Nerva estipulou a requisiccedilatildeo dos relegados e o veto contra as acusaccedilotildees

de ldquoateiacutesmordquo ou mais precisamente de avsebeia e de ldquocostumes judaicosrdquo195 Se os cristatildeos

haviam sido incomodados por decretos que indiretamente insidiam sobre eles alguma

188 Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-399 189 Governou de 96 a 98 dC 190 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 38 191 Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005 pIX 192 Epistolas 1012 Panegiricus 27 884 passim 193 FRIGHETTO Renan Op cit 2012 p 38 194 Ibid p 38 195 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3

38

opressatildeo as mudanccedilas de Nerva teriam representado um aliacutevio196 Mas sob Trajano percebe-

se que os casos esporaacutedicos de condenaccedilotildees aos fieacuteis ainda satildeo identificados Natildeo se ouviraacute

mais falar sobre acusaccedilatildeo de costume judaico no II seacuteculo mas os cristatildeos continuaratildeo a

enfrentar repressotildees em alguns pontos do territoacuterio romano o que levanta uma obscura

questatildeo sobre por qual crime seriam culpados os cristatildeos e quais seriam os fundamentos

juriacutedicos de suas condenaccedilotildees

Como destacou Giorgio Jossa197 a apologeacutetica cristatilde desse periacuteodo distingue dois

tipos de criacuteticos Uma opiniatildeo puacuteblica grosseira e mal informada como as acusaccedilotildees de

cometerem delitos particularmente vergonhosos como incesto e antropofagia movida contra

os cristatildeos por meio de falatoacuterio e caluacutenias e a acusaccedilatildeo de serem a causa de todos os males

no Impeacuterio devido agrave ameaccedila que representavam agrave pax deorum Eacute difiacutecil dizer qual era

realmente a extensatildeo da hostilidade dos pagatildeos das diversas regiotildees mas essa hostilidade

existia e constituiacutea um terreno feacutertil para o desenvolvimento tanto das acusaccedilotildees poliacuteticas da

opiniatildeo culta quanto juriacutedicas por parte dos funcionaacuterios imperiais

O cristianismo natildeo se dirigiu apenas agraves classes humildes Rapidamente sua mensagem

chegou tambeacutem agraves classes elevadas A oposiccedilatildeo da classe culta era principalmente de caraacuteter

filosoacutefico e nesse periacuteodo foram sustentadas especialmente por Epiacuteteto Luciano e Galeno a

partir dos valores mais tradicionais da cultura helecircnica Por outro lado sustentando acusaccedilotildees

de caraacuteter social aparecem as consideraccedilotildees de Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio tendo em vista as

preocupaccedilotildees poliacuteticas do governo romano Taacutecito198 escreveu que os cristatildeos eram mal vistos

pela suas flagitia199 e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero humano] A

crenccedila desse grupo era considerada uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]

Suetocircnio200 os considerava homens de uma superstitionis novae ac maleficae [superstitio201

nova e maleacutefica] Frontatildeo202 em atenccedilatildeo agraves antigas caluacutenias de flagitia teria acusado os

196 Eusebio Hist Ecles III231 197 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 108 198 Anais XV44 199 O termo latino pode significar ldquocrime infacircmia ato vergonhoso etcrdquo LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) 200 genus hominum superstitionis novae ac maleficae [raccedila de homens de uma superstitio nova e maleacutefica] De Vita Caesarum Vita Neronis 162 201 A palavra latina superstitio significa basicamente ldquotemor distinto aos deusesrdquo ldquopavor pelo sobrenatualrdquo com possiacuteveis variaccedilotildees em contextos diferentes Sua traduccedilatildeo para ldquosupersticcedilatildeordquo pode ocasionar uma confusatildeo indesejada de conceitos LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) cf JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 jun1979 pp 131-159 MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007 SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002 202 apud Minucio Felix Octavius 96-7

39

cristatildeos de orgias incestuosas Pliacutenio203 vecirc nas novas crenccedilas uma superstitionem pravam et

immodicam A imagem dos cristatildeos diante desses homens educados era negativa Mas as

opiniotildees satildeo muito divergentes sobre as bases juriacutedicas da condenaccedilatildeo dos membros desse

novo grupo religioso

O governador do Ponto-Bitiacutenia diz nunca ter participado de julgamentos de cristatildeos e

por isso natildeo sabia quais eram as medidas e os procedimentos para castigar e inquirir204 Ele

levanta as seguintes questotildees a Trajano se as diferentes idades e condiccedilotildees fiacutesicas dos

acusados deveriam ser levadas em consideraccedilatildeo se os que se retratavam mereciam ser

perdoados e se deveriam ser punidos por serem cristatildeos sem qualquer crime ou

exclusivamente pelos delitos encobertos por este nome205 O rescrito de Trajano a Pliacutenio

tendo em vista a inscriccedilatildeo de Como (CIL V 5262206) pode ter sido escrito em 111 e 112 ou

112 e 113 anos que compreenderiam o governo de Pliacutenio no Ponto-Bitiacutenia

Sua interrogaccedilatildeo sobre se o ldquonomerdquo deveria ser punido mesmo sem significar uma

ofensa ou a ofensa subentendida pelo nome207 incide sobre que tipo de lei existia naquela

eacutepoca Segundo E Le Blant208 as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis

penais existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de

laesea maiestatis Todavia conforme propocircs C G Roman209 em seu estudo eacute provaacutevel que

os cristatildeos estivessem sendo denunciados naquela regiatildeo devido ao fato de se reunirem

semanalmente Isso contrariava as estipulaccedilotildees do edito promulgado pelo governador segundo

as instruccedilotildees de Trajano que proibia as assembleias ou hetaerias210 entre o povo para evitar

conspiraccedilotildees211 Assim pelo menos neste ponto eacute preciso concordar com Pedro Barcelograve no

203 [superstitio distorcida e desregrada] Ep X968 204 Cognitionibus de Christianis interfui nunquam ideo nescio quid et quatenus aut puniri soleat aut quaeri [ Nunca tomei parte em processos contra cristatildeos por esta razatildeo eu natildeo sei o que costumeiramente se deve punir e quais satildeo as extensotildees ou investigaccedilotildees] (Ep X97) 205 Ep X96 206 Corpus Inscripitionum Latinarum V Berolini Reimer 1959 207 nomen ipsu etiamsi flagitiis careat an flagita cohaerentia nomini puniantur [O proacuteprio nome mesmo sem nenhuma ofensa ou os crimes associados a esse nome devem ser punidos] (Ep X97) 208 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 209 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 passim 210 Assembleias civis comuns entre os gregos 211 Ep X97

40

reconhecimento de que se estaacute diante de um problema local212 Os cristatildeos estavam agrave mercecirc

de denuacutencias de desobediecircncia ao edito do governador mas tambeacutem por alguma

irregularidade identificada no tocante agrave nova religiatildeo

Pliacutenio consultou Trajano pelo menos duas vezes sobre como lidar com as heterias213

Ele havia questionado sobre a possibilidade de criar um coleacutegio de fabri composto por 150

homens na Nicomeacutedia214 Mas o imperador respondeu ldquoNatildeo esqueccedilamos que tua proviacutencia e

sobretudo esta vila eacute vitima de sociedades deste gecircnero Qualquer que seja seu nome

qualquer que seja a finalidade de que dermos a estes homens reunidos daraacute lugar rapidamente

a heteriasrdquo215 Natildeo seria razoaacutevel abrir uma exceccedilatildeo aos cristatildeos Mediante inuacutemeras

denuacutencias Pliacutenio resolveu investigar sobre o tipo de assembleia que constituiacuteam as reuniotildees

cuacutelticas cristatildes Os processos de acusaccedilatildeo cresceram e proporcionaram vaacuterios incidentes216

Denuacutencias anocircnimas por meio de libelus contendo o nome de pessoas que negavam ser cristatildes

estavam entre os inconvenientes Os cristatildeos alegavam que sua uacutenica culpa ou erro era se

reunirem antes de nascer o sol em um dia especiacutefico da semana para cantar hinos a Cristo E

tambeacutem de se ajuntarem para uma refeiccedilatildeo comum vista pelo governador como innoxium

[inocente] Praacutetica que havia sido abandonada devido ao edito de Pliacutenio O governador

procurou extrair informaccedilotildees sobre os cristatildeos mas ele escreve que natildeo encontrou nada aleacutem

de uma superstitionem pravam et immodicam Visto que o nuacutemero de acusados estava

provocando ldquoincidentesrdquo Pliacutenio decidiu consultar o imperador sobre o assunto Ele nota que

pessoas de todas as idades de todos os graus de ambos os sexos e de muitas cidades satildeo

citadas em juiacutezo A superstitio dos cristatildeos jaacute se estendia pelos campos e vilas mas ele eacute

otimista e acredita ser possiacutevel sanar esse problema217 Pliacutenio218 escreve que

muitos recomeccedilam a frequentar os templos que haviam ficado quase desertos tornando a se celebrarem os sacrifiacutecios solenes abandonados e a se venderem as viacutetimas das quais ateacute agora eram raros os compradores De modo que eacute faacutecil argumentar que muitas pessoas podem se emendar se existir lugar para arrependimento

Desse modo haacute uma evidente intenccedilatildeo de realocar os cristatildeos ao povo em geral que

participa da religiatildeo oficial Deve ser esta a razatildeo pela qual o governador concede o perdatildeo

212 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 p 69 213 Assembleias comuns aos gregos 214 Ep X33 215 Ep X341 216 mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species incierunt [Assim como seu suceder crescem os processos de acusaccedilatildeo ocasionando vaacuterios incidentes] (Ep X97) 217 quae videtur sisti et corrigi posse (Ep X97) 218 Ep X97

41

agravequeles que abandonam o cristianismo Mas baseado em relatos anteriores219 e em textos

posteriores sobre esse tipo de julgamento220 pode-se supor que os cristatildeos intimados

argumentavam e questionavam sobre a razatildeo da culpa que os condenava

Roman221 em certa medida seguindo o raciociacutenio de Marta Sordi222 sustenta que a

disposiccedilatildeo de Trajano estaacute voltada para a soluccedilatildeo de problemas sociais na regiatildeo do Ponto-

Bitiacutenia tendo em vista a sua recomendaccedilatildeo geral contra as heterias Proibindo as reuniotildees

puacuteblicas de qualquer caraacuteter os cristatildeos estariam indiretamente incluiacutedos Mas Roman

atribuindo um acentuado grau de toleracircncia a Trajano considera que o imperador estaacute

liberando os cristatildeos dessa condenaccedilatildeo recomendando que os mesmos natildeo sejam buscados

No entanto natildeo haacute qualquer razatildeo para supervalorizar a ldquotoleracircnciardquo desse imperador aos

cristatildeos

Se fossem acusados de violaccedilatildeo do edito das heterias defender-se-iam dizendo que

natildeo se reuniam mais Caso os problemas envolvendo cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia se ressumissem

a essa questatildeo o magistrado deveria soltaacute-los imediatamente Mas natildeo eacute isso que eacute descrito

por Pliacutenio Ele relata que insistia para que os acusados negassem ser ldquocristatildeosrdquo ameaccedilando-os

de morte Certamente um cristatildeo questionaria esse tipo de julgamento perguntando sobre qual

crime teria sido por eles cometido O governador sabia que esses religiosos eram acusados em

outros lugares e ao caracterizar as crenccedilas cristatildes como pravam et immodicam uma percepccedilatildeo

muito negativa se manifesta No entanto natildeo haacute referecircncia a nenhuma lei contra os cristatildeos

Pliacutenio decidiu punir os que confessavam essa superstitio procurando convencecirc-los a

mudarem de opiniatildeo quanto agrave feacute a que se apegavam ameaccedilando-os por ateacute trecircs vezes Seu

julgamento foi que independente da natureza dos credos dos cristatildeos a inflexibilidade e

obstinaccedilatildeo que os faziam natildeo negar o nomen christianum tornavam-lhes dignos de puniccedilatildeo223

Giorgio Jossa224 destacou ainda que nenhum dos crimes a eles imputados eram demonstados

ou pareciam dignos de serem cridos contudo os cristatildeos satildeo vistos como seguidores de

crenccedilas despresiacuteveis Embora natildeo exista nenhuma referecircncia a uma lei contra os fieacuteis natildeo haacute

nenhuma razatildeo para se pensar que Pliacutenio estivesse receoso de punir os cristatildeos exceto pelo

fato de que o nuacutemero de denuacutencias anocircnimas poderia provocar desordem Conforme apontou

219 Atos dos Apoacutestolospassim 220 Euseacutebio Hist Ecles passim Atas dos maacutertires passim 221 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-242 222 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 87-102 223 hellip qualecumque esset quod faterentur pervicaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri (Ep X97) 224 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 116

42

J Danieacutelou225 natildeo era uma lei especiacutefica que ocasionava a condenaccedilatildeo dos fieacuteis mas a

ausecircncia de uma lei que regulamentasse a nova religiatildeo como a que autorizava a religiatildeo

judaica

A resposta de Trajano natildeo demonstrou muita preocupaccedilatildeo com os cristatildeos O

imperador aprovou as medidas empregadas contra eles e para evitar o problema do excesso

de denuacutencias sem fundamento recomendou que natildeo fossem admitidas delaccedilotildees anocircnimas O

imperador tambeacutem estabeleceu que os fieacuteis natildeo deveriam ser perseguidos Ele escreveu

Agiste muito bem meu caro Pliacutenio ao instituir os processos contra esses que te foram denunciados como cristatildeos Natildeo se deve estabelecer regra dura e inflexiacutevel de aplicaccedilatildeo universal Natildeo os procure mas se surgirem outras denuacutencias que procedam puna-os Poreacutem com esta ressalva de que se algueacutem nega ser cristatildeo e mediante a adoraccedilatildeo dos deuses demonstra natildeo o ser atualmente deve ser perdoado em recompensa de sua emenda por muito que o acusem suspeitas relativas ao passado Natildeo merecem atenccedilatildeo panfletos anocircnimos em causa alguma aleacutem do dever de evitarem-se antecedentes iniacutequos panfletos anocircnimos natildeo condizem absolutamente com os nossos tempos226

O caraacuteter lacocircnico da resposta de Trajano poderia se justificar pelo menos de trecircs

formas Em primeiro lugar a autenticidade do rescrito de Trajano e a carta de Pliacutenio a esse

imperador foram questionadas por alguns estudiosos desde o seacuteculo XVIII Segundo

Cristobal G Roman a anaacutelise de J S Semler227 em 1788 contribuiu para desencadear uma

corrente de pensamento que foi bem representada ateacute longos anos do seacuteculo XX228 As

principais objeccedilotildees natildeo estariam diretamente relacionadas agrave inadequaccedilatildeo da descriccedilatildeo de

Pliacutenio sobre as comunidades cristatildes e a situaccedilatildeo real na qual se encontrariam As

discordacircncias incidiriam sobre o tipo de canto praticado nas reuniotildees cristatildes e sobre o nuacutemero

de cristatildeos existentes no Ponto-Bitiacutenia segundo o relato de Pliacutenio229 Os aspectos estruturais

satildeo analisados na criacutetica de L Hermann230 que aponta as repeticcedilotildees e as reiteradas alusotildees agrave

proacutepria ignoracircncia de Pliacutenio como elementos que induzem a pensar em interpolaccedilotildees ou 225 Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975 pp 13-15 226 Pliacutenio Ep X981ss 227 Novae observationes quibus studiosius illustrantur potiora capita historiae et religionis christianae usque ad Constantinum Halle Impensis Bibliopolii Hemmerdiani 1781 228 Marcel Durry (Pline-le-juene Paris Soc DrsquoEacuted Le belle Lettre 1972 p 7071) oferece uma lista dos pesquisadores que aponta a inautenticidade da correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano Entre as obras aparecem AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875 p 186 HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844 pp 426 HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885 LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934 pp 28-34 e GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946 p 585 229 VIDMAN L Etude sur la correspondance de Pline Le Jeune avec Trajan Roma LErma di Bretschneider 1972 pp 87 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 227 230 HERMANN L Les interpretations de la lettre de Pline sur les chretiens Latomus XIII 1954 p 343 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228

43

falsificaccedilotildees Dentro dessa mesma loacutegica estaria a resposta lacocircnica de Trajano agraves trecircs

questotildees que aparecem na carta de Pliacutenio a) se deveriam ser feitas distinccedilotildees tendo em vistas

as idades dos cristatildeos b) se deveria lhes permitir o arrependimento c) e se o roacutetulo de cristatildeo

deveria ser motivo de castigo por si mesmo ou apenas os delitos que aquele nome

implicava231 A resposta de Trajano contempla diretamente apenas a segunda questatildeo natildeo

dando provas de que a primeira e a terceira estivessem na carta por ele recebida Desse modo

Hermann deduz que as questotildees natildeo contempladas seriam interpolaccedilotildees

Entretanto a despreocupaccedilatildeo de Trajano em estabelecer uma norma riacutegida contra os

cristatildeos pode justificar o caraacuteter superficial de sua resposta Ele escreve que neque enim in

universum aliquid quod quase certam formam habeat constitui potest232 [natildeo se pode

constituir uma norma universal ou que seja invariaacutevel] Com isso nota-se tambeacutem a

liberdade do magistrado em avaliar os suspeitos e procurar enquadraacute-los sob uma lei

A tese mommseniana da coercitio eacute rebatida parcialmente por Jossa233 tendo em vista

que na maioria dos casos de condenaccedilatildeo dos cristatildeos nesse periacuteodo a atitude das autoridades

natildeo se reduz a uma simples atitude de poliacutecia para manter a ordem puacuteblica em uma proviacutencia

atingida pela desordem mas em um procedimento judiciaacuterio que tinha iniacutecio com uma

denuacutencia privada comporta uma acusaccedilatildeo precisa e se conclue com a condenaccedilatildeo formal Um

procedimento judiciaacuterio que corresponde perfeitamente a cognitio extra ordinem234 um

processo criminal de natureza inquisitorial afirmado durante o principado para crimes e que

tinha formas diversas daqueles previstos na ordo iudiciorum que nas proviacutencias eram tidos

pelos governadores delegados pelo princeps No entanto diante da ausecircncia de uma

legislaccedilatildeo clara sobre o que fazer com os cristatildeos Pliacutenio recorre a ius coertionis para

desestimular os adeptos dessa pravam et immodicam que desrespeitam o magistrado para

sustentarem seu credo Eacute preciso considerar com certo cuidado a teoria derivada da obra de E

Le Blant235 de que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais

existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea

maiestatis Pliacutenio primeiramente julgou os cristatildeos por meio da lei local que proibia as

assembleias entre o povo poreacutem diante da correccedilatildeo por parte dos cristatildeos apontada pelo

231 Pliacutenio Epistolas X962-3 232 Ep X98 233 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 122-123 234 Tido de processo que substitui o processo padratildeo Eacute provaacutevel que soacute tenha se oficializado com forma instituiacuteda de processo no seacuteculo IV O julgamento dos cristatildeos no seacuteculo II seria um processo semelhante 235 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229

44

proacuteprio governador em sua carta ele natildeo sabia exatamente como punir os que se negavam a

desprezar agravequela superstitio Para Jossa236 estaacute evidente que a condenaccedilatildeo se efetiva diante da

profissatildeo da feacute cristatilde natildeo aos delitos a esse nome associados

O cristianismo natildeo eacute condenado como superstitio externa Uma religiatildeo estrangeira

poderia ser socialmente suspeita mas isso natildeo faz com que seja judicialmente perseguida E

natildeo eacute o seu caraacuteter baacuterbaro que lhe rende ilicidade Superstio externa e barbara o judaiacutesmo

era de fato religio licita Os romanos consideravam superstitio toda forma religiosa e toda

praacutetica cultural que natildeo correspondia agravequela transmitida pelos seus antepassados e que natildeo

eram munidas de puacuteblico reconhecimento Todas as praacuteticas religiosas de caraacuteter privado

individuais ou enraizadas em certos grupos sociais como magos ou adivinhos eram dessa

forma rotuladas Religiotildees e cultos puacuteblicos estrangeiros ainda que constituiacutessem patrimocircnio

de um povo e fossem transmitidos desde os tempos mais antigos poderiam ser tachados de

superstitio237 Segundo Jossa238 exprime-se desse modo a diferenccedila instintiva dos ciacuterculos

romanos abastados de uma consciecircncia nacional diante das religiotildees estrangeiras para os

quais os cultos natildeo romanos eram ldquonatildeo religiotildeesrdquo ou seja apenas superstitiones Externa

superstitio vem a ser toda forma ou manifestaccedilatildeo religiosa que natildeo pertenccedila originalmente agrave

tradiccedilatildeo romana ou pelo menos ao puacuteblico reconhecimento e agrave apreciaccedilatildeo dos ritos e crenccedilas

religiosas da parte dos romanos

A partir de Cicero superstitio passa a indicar tambeacutem qualquer forma excesiva

fanaacutetica de religiosidade que se contrapunha agrave moderaccedilatildeo da religio aquela manifestaccedilatildeo

religiosa tiacutepica de uma alma deacutebil (imbecillis) ou velha (anilis) que derivam em particular de

uma anguacutestia inuacutetil e absurda dos deuses239 A superstitio natildeo eacute apenas diversa mas se opotildee

sendo uma corrupccedilatildeo da religio (De natura Deorum II72)

Diante da convicccedilatildeo dos romanos de serem muito religiosos entre todos os homens de

serem inclusive religiosamente superiores aos demais fica impliacutecito que toda e qualquer

religiatildeo estrangeira eacute excessiva ou fanaacutetica que todas as religiotildees estrangeiras satildeo tambeacutem

superstitio e assim toda externa superstitio eacute tambeacutem barbara superstitio no sentido

embrionaacuterio do termo pela falta de racionalidade e moderaccedilatildeo que sempre deixam a

desejar240

236 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 123 237 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 131-159 238 Op Cit p 115 239 Ciacutecero De natura Deorum I117 Cf SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 240 JANSEN L F Op cit pp 145

45

Como jaacute foi apontado anteriormente aleacutem do proacuteprio Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio

tambeacutem adjetivaram negativamente a superstitio cristatilde Taacutecito escreveu que os cristatildeos eram

mal vistos pelas suas flagitia e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero

humano] Flagitia por sinal que Pliacutenio natildeo detectou A crenccedila desse grupo eacute considerada

uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]241 Analisando as consideraccedilotildees de Taacutecito

nota-se que a provaacutevel ofensa que os cristatildeos causavam aos deuses combatendo-os com a

propagaccedilatildeo da sua mensagem evangeacutelica e com abstenccedilatildeo de participaccedilatildeo nas celebraccedilotildees

puacuteblicas responsabilizava-lhes pelo rompimento da pax deorum que havia fragilizado a

capital do Impeacuterio tornando-a vulneraacutevel a tamanha cataacutestrofe da eacutepoca de Nero Segundo L

F Jansen242 o odio humani generis visto por Taacutecito sobre os cristatildeos ndash como antes sobre os

judeus ndash era um elemento que condenava essa superstitionis novae ac maleficae como

escreveu Suetocircnio243 tornando-a exitiabilis No entanto apologistas como Justino244

sustentaram que as flagitia atribuiacutedas aos cristatildeos eram fruto de ldquocaluacuteniasrdquo o que natildeo

acarretaria isenccedilatildeo de serem relativamente enquadrados nos crimes de sacrilegium245 ou

maiestas

No entanto ao confirmar a accedilatildeo de Pliacutenio Trajano ratifica a condenaccedilatildeo do nomen

christianum Isso deve estar ligado ao fato de o governador do Ponto-Bitiacutenia ter confirmado

os resultados positivos desse tipo de condenaccedilatildeo que visava desestimular a aderecircncia ao grupo

cristatildeos garantindo a manutenccedilatildeo da religiatildeo tradicional a uma medida moderada que

impedisse falsas denuacutencias e o cometimento de injusticcedilas O que natildeo significa que Trajano

tenha empreendido uma poliacutetica de toleracircncia aos cristatildeos dificultando as denuacutencias como em

alguns momentos parece sugerir Pedro Barcelograve246

Euseacutebio247 explora o fato de Trajano ter determinado que os cristatildeos natildeo deveriam ser

buscados (conquirendi non sunt) para assim construir uma ldquotradiccedilatildeo favoraacutevelrdquo aos fieacuteis Ele

confirma que Trajano promulga um decreto para que os cristatildeos natildeo fossem perseguidos Tal

medida eacute interpretada como o fator importante para a reduccedilatildeo parcial da perseguiccedilatildeo naquela

241 Anais XV44 242 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 145 243 De Vita Caesarum Vita Neronis 162 244 II Apol 82 245 Este caso envolveria um crime especiacutefico contra o patrimocircnio religioso pagatildeo mas natildeo haacute sinais evidentes no na primeira metade do II seacuteculo cf ROBINSON OF The criminal Law of ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 passim 246 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim 247 Histoacuteria Eclesiaacutestica III231-3

46

eacutepoca Mas essas vantagens que Euseacutebio vecirc na recomendaccedilatildeo de Trajano se reduzem ao fato

de ele natildeo admitir que os cristatildeos sejam levados em juiacutezo mediante denuacutencias anocircnimas

Mesmo assim os incocircmodos locais permaneceram Euseacutebio escreve ldquoAlgumas vezes eram as

populaccedilotildees outras as proacuteprias autoridades locais que preparavam os asseacutedios contra noacutes de

forma que ainda que sem perseguiccedilotildees manifestas acenderam-se focos parciais segundo as

proviacutenciasrdquo248 Por outro lado em grande medida influenciado por Meacuteliton de Sardes249 que

escreveu a Marco Aureacutelio Euseacutebio ratifica a tradiccedilatildeo cristatilde que destaca Nero e Domiciano

como grandes perseguidores da Igreja250 Eacute interessante a tradiccedilatildeo cristatilde relacionar as accedilotildees

anticristatildes a ldquomaus imperadoresrdquo Com isso tenta-se reproduzir a ideia de que perseguir os

cristatildeos eacute seguir os passos de tiranos Todavia quando se procuram as raiacutezes das hostilidades

imperiais com os cristatildeos faz-se necessaacuterio ter em mente que por vaacuterias regiotildees do Impeacuterio os

atritos envolvendo o combate aos cristatildeos emergem do processo de expansatildeo da comunicaccedilatildeo

da mensagem apelativa cristatilde e das transformaccedilotildees reivindicadas e provocadas por ela nas

tradiccedilotildees e no comportamento das pessoas

Desse modo deixando de lado a hipoacutetese de Marta Sordi251 sobre um senatus

consultum na eacutepoca de Tibeacuterio que teria desaprovado o reconhecimento de Cristo a

contragosto do Imperador eacute preciso lidar com o institutum neronianum252 tambeacutem

mencionado por Tertuliano como a primeira hostilidade incisiva do Impeacuterio contra os

cristatildeos Mas esta peculiar expressatildeo empregada por Tertuliano natildeo se refere a uma lei e sim

a uma accedilatildeo de Nero E a accedilatildeo de Nero neste caso teria interesses particulares e usa os cristatildeos

como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo Mesmo que as flagitia cristatildes se fundamentem em caluacutenias

originaacuterias dos atritos populares a superstitio cristatilde natildeo poderia representar algo aceitaacutevel aos

olhos dos romanos devido ao seu caraacuteter exclusivista e seu desprezo pela vida puacuteblica ligada agrave

religiatildeo tradicional Em defesa dos cristatildeos poucos anos mais tarde Justino escreveu ldquoEsta eacute

a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo

oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos sepulcros nem

celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo (I Apol 242) Aleacutem disso seria uma incriacutevel contradiccedilatildeo

sustentar que existia uma lei geral em vigor que determinava a pena capital para os cristatildeos e

248 Hist EclesIII232 249 ldquoEntre todos somente Nero e Domiciano persuadidos por alguns homens maleacutevolos quiseram caluniar nossa doutrina e acontece que deles derivou por costume irracional a mentira caluniosa contra tais pessoasrdquo (apud Euseacutebio Hist EclesIV239) 250 Hist Ecles III171 201-9 221-8 251 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968 252 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4

47

ser necessaacuterio admitir que Trajano recomenda que os cristatildeos natildeo sejam perseguidos e que

apenas os casos mais precisos sejam examinados

A resposta de Trajano alegando ldquonatildeo eacute possiacutevel constituir por assim dizer algo

universal que possua forma fixardquo253 pode servir como evidecircncia de que natildeo existia uma lei

geral para julgar os cristatildeos Todavia Roman254 considera que a foacutermula neque enin

universum deve ser relativizada em funccedilatildeo de um marco geograacutefico concreto o da proviacutencia

Ponto-Bitiacutenia e em relaccedilatildeo agrave diversidade de status juriacutedico e de situaccedilotildees existentes nessa

regiatildeo que motivam a correspondecircncia entre Pliacutenio e o Imperador Um exemplo dessa

preocupaccedilatildeo aparece quando se fala da constituiccedilatildeo de um evranouj (sociedade de seguros

muacutetuos) em Amisos255 Trajano desaprovando a ideia responde

Se as leis de Amisos de acordo com as obrigaccedilotildees do tratado lhe datildeo direito a ter uma associaccedilatildeo de seguros muacutetuos natildeo podemos proibir que a tenham tanto mais se tal sociedade natildeo procede a organizar tumultos e reuniotildees iliacutecitas senatildeo para sustentar os mais pobres Nas cidades restantes que estatildeo submetidas a nosso direito praacuteticas desse tipo devem ser proibidas []256

Roman257 estaacute correto em considerar que Trajano potildee em praacutetica um tipo de

disposiccedilatildeo que tende a fazer frente aos problemas sociais provinciais que encontram uma

ampla expressatildeo na formaccedilatildeo de heterias Esta poliacutetica encontra uma limitaccedilatildeo na situaccedilatildeo da

proviacutencia Ponto-Bitiacutenia com a existecircncia de cidades livres e federadas que se autorregulam

Poreacutem a hipoacutetese de Roman apresenta limitaccedilotildees Ele considera que tal poliacutetica

administrativa com respeito aos cristatildeos constituiria uma exceccedilatildeo em suas disposiccedilotildees sobre

as associaccedilotildees no Ponto-Bitiacutenia Esta exceccedilatildeo natildeo se explica em funccedilatildeo da diversidade de

status juriacutedico das cidades existentes nessa proviacutencia mas estaacute relacionada ao caraacuteter peculiar

das reuniotildees das comunidades cristatildes que natildeo consistiam um perigo ao Impeacuterio Roman segue

a hipoacutetese de De Robertis258 e chega a alegar que as reuniotildees cristatildes eram consideradas licita

A proposiccedilatildeo de Roman falha basicamente em natildeo compreender que a aprovaccedilatildeo por

parte de Trajano dos atos de execuccedilatildeo da pena capital sobre os cristatildeos desempenhada por

Pliacutenio estaacute diametralmente oposta a uma hipoteacutetica licenccedila agrave religiatildeo cristatilde O que descarta

qualquer vestiacutegio de simpatia romana pelos cristatildeos Aleacutem disso Pliacutenio havia informado ao

imperador que os cristatildeos haviam deixado de se reunir tendo em vista as disposiccedilotildees do edito

253 neque enim in universum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest (Ep X98) 254 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 233-234 255 Ep X92 256 Pliacutenio Ep X94 257 Op cit pp 233-234 258 ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89

48

recente Quando Trajano aponta que seria inadequado estabelecer uma norma fixa para julgar

os cristatildeos ele estaacute se referindo agraves interrogaccedilotildees levantadas por Pliacutenio questionando sobre a

necessidade de se fazer distinccedilatildeo entre jovens e idosos satildeos e doentes romanos e natildeo

romanos Desse modo o imperador estaacute de acordo que o magistrado use de seus poderes

constituiacutedos para fazer as distinccedilotildees necessaacuterias sem que se fixe uma norma universal

Giorgio Jossa259 faz uma siacutentese das teorias baacutesicas sobre as accedilotildees anticristatildes no

periacuteodo de Trajano e desenvolve uma avaliaccedilatildeo que tem em vista a complexidade da situaccedilatildeo

poliacutetica da religiatildeo cristatilde e da peculiaridade do procedimento criminal do direito romano Esta

explicaccedilatildeo comporta certa mescla de todas as trecircs hipoacuteteses aceitaacuteveis Assim Jossa considera

que o cristianismo representa antes de tudo um problema de ordem puacuteblica que dependia em

parte da sensibilidade dos magistrados por meio do uso da ius coertionis num momento onde

jaacute existia uma legislaccedilatildeo especiacutefica contra os cristatildeos e onde o nomen christianum carregava

subentendido os crimes de sacrilegium e maiesta Exceto pela sua insistecircncia em admitir que

havia uma lei especiacutefica contra os cristatildeos sua anaacutelise torna-se proveitosa em funccedilatildeo de sua

sensibilidade agrave questatildeo da ordem puacuteblica enviesada nesse dilema juriacutedico Se o nomen

christianum carregava subentendido crimes comuns eles se manifestam com a pressatildeo civil

procurando expelir esse corpo estranho da sociedade pagatilde e obriga os magistrados a

procurarem um enquadramento que ratifique a condenaccedilatildeo daquilo que para muitos do povo

estava evidente que os cristatildeos deviam ser condenados

Em siacutentese eacute mais prudente admitir que as condenaccedilotildees de outrora sobre os cristatildeos

davam margem para que os magistrados em outras regiotildees do Impeacuterio eventualmente

condenassem os cristatildeos que lhes fossem entregues normalmente devido a atritos populares

Isso justificaria a incerteza de Pliacutenio em condenar os cristatildeos Eacute o uso de se condenar os

cristatildeos em decorrecircncia desde a eacutepoca de Nero da opiniatildeo puacuteblica somada agrave imagem

negativa que a classe culta tinha desses religiosos que atribui flagitia aos fieacuteis tornando o

nomen christianum razatildeo de condenaccedilatildeo Algo que eacute negado pelos apologistas com

veemecircncia no II seacuteculo e que seraacute avaliado por Adriano subsequentemente a Trajano

259 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125

49

22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano

A Histoacuteria Augusta (51) aponta que Adriano foi um imperador dedicado agrave

manutenccedilatildeo da paz no mundo mas tatildeo logo as revoltas estouraram em regiotildees variadas Os

samaritanos se envolveram em guerra os britacircnicos davam sinais de que natildeo permaneceriam

sob o domiacutenio romano o Egito foi jogado em desordem por distuacuterbios e finalmente a Liacutebia e

a Palestina mostraram espiacuterito de rebeliatildeo

Nos anos 130 e 131 Adriano partiu para o Oriente No plano das suas reformas estava

a revitalizaccedilatildeo da cidade de Jerusaleacutem que havia sido destruiacuteda na guerra judaica de 66 a 73

Natildeo eacute agrave toa que ficou reconhecido como promotor da vida urbana no Impeacuterio valorizando as

obras puacuteblicas (aacutegoras templos teatros anfiteatros aquedutos portos ou estradas) Os

investimentos na Judeia faziam parte de sua estrateacutegia de integraccedilatildeo e romanizaccedilatildeo

Os judeus sofreram em muitos aspectos os efeitos das transformaccedilotildees culturais Mas a

introduccedilatildeo de elementos estrangeiros e a construccedilatildeo de um templo a Juacutepiter na cidade sagrada

gerou protestos260 A proibiccedilatildeo da circuncisatildeo261 contribuiu para acirrar os acircnimos revoltosos

No entanto segundo a anaacutelise de J M C Copete262 se esse foi o estopim da guerra as causas

que levaram o povo judeu e alguns outros provincianos a lutar natildeo poderiam estar apenas na

devoccedilatildeo ao seu Deus tradicional Yahveacute A insensatez romana em ignorar os problemas

estruturais da regiatildeo tais como a pobreza endecircmica reinante e as proacuteprias rivalidades entre

sacerdotes e rabinos na regiatildeo proporcionaram as condiccedilotildees para esse movimento que se

levantou como uma ameaccedila agrave ordem

Euseacutebio escreve que

Rufo governador da Judeacuteia com o reforccedilo militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade marchou contra eles Aniquilou em massa milhares de homens de crianccedilas e de mulheres e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territoacuterios agrave escravidatildeo Mandava entatildeo sobre os judeus um chamado Bar Kosibas que significa ldquofilho da estrela263

A religiatildeo dos judeus era o elemento fundamental de sua identidade Havia interaccedilatildeo

com os demais povos do Impeacuterio mas qualquer tipo de resistecircncia em funccedilatildeo dessa

260 Cassius Dio His Rom 121-3 261 Hist Aug 142 262 Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 263 His Ecles IV61-2

50

identidade poderia deixar as autoridades romanas ressabiadas Taacutecito264 fala da diferenccedila de

ambos os mundos O judaiacutesmo parecia-lhe uma supersticcedilatildeo absurda soacuterdida e depravada que

gerava costumes contraacuterios aos dos outros povos A abstenccedilatildeo do culto ao imperador por parte

dos judeus poderia simbolizar sua rejeiccedilatildeo ao Impeacuterio e agrave cultura greco-romana mas natildeo se

deve pensar que os judeus estavam blindados agrave cultura helecircnica e que as oligarquias judaicas

se isolassem dos negoacutecios com as demais proviacutencias do Impeacuterio265

Uma das preocupaccedilotildees de Justino em sua I Apologia eacute deixar claro que os judeus

haviam se tornado os principais opositores dos cristatildeos e que muitos foram vitimados por Bar

Kosiba que os mandava ldquosubmeter a terriacuteveis torturasrdquo266 Natildeo haacute certeza sobre as razotildees

dessa oposiccedilatildeo e se ela diferia da rivalidade entre judeus e cristatildeos constatada no I seacuteculo

Todavia aleacutem desse tipo de accedilatildeo anticristatilde haacute indiacutecios de que os tribunais locais recebessem

queixas sobre os cristatildeos e um nuacutemero significativo de fieacuteis era levado agrave morte Tal como a feacute

dos judeus a religiatildeo dos cristatildeos era considerada uma superstitio reprovaacutevel que apresentava

resistecircncia agrave vida puacuteblica no Impeacuterio ou seja que natildeo se envolviam em teatros jogos e todo

tipo de reverecircncias aos deuses pagatildeos Para evitar quaisquer duacutevidas quanto agrave identidade entre

cristatildeos e judeus o apologista faz essa interpolaccedilatildeo

Em funccedilatildeo das condenaccedilotildees sofridas pelos cristatildeos durante o governo de Adriano

Quadrato e Aristides escreveram-lhe apologias267 Se a teoria de Paul Andriessen268 for

tomada por certa e a Carta a Diogneto for reconhecida como a apologia perdida de Quadrato

reconhecer-se-aacute a disposiccedilatildeo tanto nesse escrito quanto na Apologia de Aristides em

apresentar algumas das principais distinccedilotildees entre as crenccedilas dos cristatildeos dos judeus e dos

pagatildeos A principal queixa na Carta a Diogneto leva a crer que o ldquonomerdquo cristatildeo era um

elemento chave para a condenaccedilatildeo269 Sua queixa faz pensar que as variaccedilotildees nos julgamentos

nos tribunais locais pudessem proporcionar um destino distinto aos cristatildeos ldquoPor isso

condeno tambeacutem as vossas leis Deveria haver uma soacute constituiccedilatildeo poliacutetica comum para

todos agora haacute tantas legislaccedilotildees quantas cidades existem e assim acontece que o que entre

uns eacute vergonhoso entre outros eacute tido por honrosordquo270

264 Taacutecito Historia V 3-6 Cf Strabatildeo Geografia XVI237 Quintiliano Institutio Oratoria II7 Juvenal Satiras III 13-6 VI 541-7 96-106 Plutarco De Superstitione 8 Cassius Dio Hist Rom 37174 265 Josefo Antiguidades Judaicas XVIII 23 Guerras dos Judeus II118 266 I Apol 316 267 Euseacutebio His Ecles IV31-3 268 Lrsquoapologie de Quadratus conserve sous le nom drsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedievale 13 1946 pp 5-260 Id Lrsquoepilogue de lrsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedieacutevale 14 1947 pp 121-156 269 Carta a Diogneto 271ss 270 Carta a Diogneto 281ss

51

O rescrito de Adriano ao prococircnsul da Aacutesia a partir de 124125 dC Minuacutecio

Fundano oferece uma ideia sobre sua forma de lidar com os cristatildeos O texto foi conservado

na Apologia de Justino (I Apol 68) no texto de Euseacutebio271 e por Rufino na versatildeo latina

Adriano havia recebido a carta de Serecircncio Graniano272 antecessor de Minuacutecio e julgou ser

importante responder essa demanda a fim de ldquoevitar que se perturbem os homens e que os

delatores encontrem apoio para suas maldadesrdquo273 Adriano recomenda que

se os provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo que respondam a ela diante do tribunal deveratildeo ater-se a esse procedimento e natildeo a meras peticcedilotildees e gritarias Com efeito eacute muito mais conveniente que se algueacutem pretende fazer uma acusaccedilatildeo examines tu o assunto Em conclusatildeo se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delito Mas por Heacutercules se a acusaccedilatildeo eacute caluniosa castiga-o com maior severidade e cuida para que natildeo fique impune (I Apol 688-10)

As interpretaccedilotildees desse rescrito satildeo divergentes Em uma primeira linha interpretativa

representada por exemplo por B Orgeval H Gregoire L Regibus e M Sordi274 acredita-se

que esse rescrito assegurou a liberdade de algum tipo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos por

professarem sua religiatildeo e providenciou que fossem punidos apenas por crimes cometidos

contra as leis comuns Representantes de outro ponto de vista como C Callewaerd J Moreau

e W Schimid275 sustentam que o rescrito natildeo concede aos cristatildeos nenhuma liberdade

O rescrito foi lido por Justino de um modo favoraacutevel aos cristatildeos como se de fato o

Imperador tivesse agido decididamente a favor dos cristatildeos A esse documento fez alusatildeo

Meliton bispo de Sardes276 Euseacutebio agiu de modo semelhante em sua proacutepria leitura do

rescrito de Trajano e seguiu a Justino em sua interpretaccedilatildeo do rescrito de Adriano No entanto

como mostrou Paul Kereszts277 a interpretaccedilatildeo do apologista difere do sentido original do

rescrito Segundo a interpretaccedilatildeo de Justino Adriano teria proibido que os cristatildeos fossem

271 His Ecles IV 9 272 O nome correto eacute Q Licinio Silvano Graniano cocircnsul a partir de 106 dC e pro-cocircnsul da Aacutesia a paritir de 122123 dC MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 132 273 I Apol 687 Eus Hist Ecles IV9 274 ORGEVAL B LEmpereur Hadrien oeuvre leacutegislative et administrative ParisGrenoble Domat MontchrestienImpr De Allier 1950 pp 302-307 GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 pp 138-139 REGIBUS L de Storia e Diritto Romano negli Acta Martyrum Didascalos 1926 pp 147-148 SORDI M I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349 275 CALLEWAERT C Le Rescrit dHadrien a Minucius Fundanus Reviste dHistoire et de Litterature 6l 8 1903 pp 152-189 MOREAU J La Persecution du Christianism e dans lEmpire Romain Paris Presses Universitaires de France 1956 p 48 SCHIMID W The Christian Re-Interpretation of the Rescript of Hadrian Maia 71955 pp 5-13 276 Euseacutebio Hist EclesIV 2610 277 Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129

52

punidos simplesmente mediante a confissatildeo de que eram ldquocristatildeosrdquo e teriam recomendado

que fossem julgados pelos crimes como quaisquer outros e natildeo por suas crenccedilas

Segundo C G Roman278 a postura de Adriano em advertir a Minuacutecio Fundano a nada

julgar sem denuacutencia e acusaccedilatildeo formal contra os cristatildeos dava continuidade agrave poliacutetica de

Trajano Tomando essa perspectiva como exemplo deve-se destacar que a interpretaccedilatildeo do

rescrito de Adriano dependeraacute significativamente da interpretaccedilatildeo do rescrito de Trajano e

talvez deva remontar ateacute um pouco antes Roman interpretou as recomendaccedilotildees deste uacuteltimo

como sendo positivas para com os cristatildeos e sua tendecircncia eacute reconhecer o aprimoramento das

limitaccedilotildees das accedilotildees anticristatildes

J Beaujeu279 considera que Adriano procedeu a uma grande obra de restauraccedilatildeo

religiosa que obedecia aleacutem das necessidades religiosas a objetivos poliacuteticos agrave medida que

tendia a uma unificaccedilatildeo religiosa das distintas proviacutencias do Impeacuterio debaixo da eacutegide dos

cultos Greco-romanos mediante a criaccedilatildeo de uma religiatildeo do Estado siacutentese destes uacuteltimos

cultos com as religiotildees orientais com a originalidade dos diversos grupos sociais e eacutetnicos

que formavam o Impeacuterio

De fato Adriano foi um imperador interessado em conhecer a cultura do vasto

Impeacuterio Por volta do ano de 124 iniciou-se nos misteacuterios Eleusis importante oraacuteculo do

mundo grego revelando um interesse miacutestico que acabou por conduzi-lo tambeacutem ao

conhecimento misterioso da religiatildeo egiacutepcia Os cultos tradicionais de Roma natildeo receberam

menor atenccedilatildeo certamente para manter uma relaccedilatildeo amistosa com os integrantes do universo

senatorial Construiu um templo a Venus em Roma no Foro Romano no ano de 121 e mandou

reconstruir o Panteatildeo de Marco Agripa um dos mais importantes colaboradores de

Augusto280 No entanto isso natildeo permite ver em seu rescrito uma accedilatildeo proacute-cristatilde que

estivesse em consonacircncia com a ideia sustentada por Marta Sordi281 de que Adriano teve em

mente reconhecer a Cristo entre os outros deuses e lhe oferecer um templo conforme anota a

Histoacuteria Augusta (Alexandre Severus 436-7) Essa passagem se assemelha agrave lenda de que

antes de propor a construir a cidade de Elia Adriano havia empreendido um projeto de

reconstruccedilatildeo conjunta do templo de Jerusaleacutem com os judeus mas a oposiccedilatildeo dos samaritanos

278 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 230 279 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp150ss 280 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 43 281 I Cristiani e Lrsquoimpero Romano Ed rev e atual Milano Jaca Book 2011 p 98

53

fez com que os planos sofressem mudanccedilas draacutesticas282 Esse tipo de tendecircncia pode chegar a

ponto de admitir como sustentou T Mommsem283 que Adriano estava proacuteximo a elevar a feacute

cristatilde a uma religio licita

As comparaccedilotildees entre as accedilotildees de Trajano e Adriano satildeo muito importantes para o

desenvolvimento de uma teoria coerente que explique a condiccedilatildeo dos cristatildeos nesse iniacutecio do

II seacuteculo todavia natildeo eacute necessaacuterio admitir nenhuma continuidade entre ambos em razatildeo dos

rescritos G Jossa284 alerta que os rescritos natildeo satildeo ldquoleisrdquo mas recomendaccedilotildees a governantes

locais e nem um desses imperadores estabeleceu normas gerais sobre o julgamento dos

cristatildeos

Como foi visto anteriormente ao responder a demanda de Pliacutenio Trajano admitiu o

procedimento daquele governador em condenar os cristatildeos mediante a confissatildeo

recomendaccedilatildeo que fazia pressupor que o nomen christianum representava a razatildeo da

condenaccedilatildeo que visava desestimular a adesatildeo e expansatildeo dessa superstitio Naquela ocasiatildeo o

imperador fez questatildeo de lembrar que as denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas Pouco

tempo depois Adriano precisa admoestar os governantes da Aacutesia Menor a natildeo serem movidos

por ldquomeras peticcedilotildees e gritariasrdquo285 A condenaccedilatildeo aos cristatildeos provocou abusos nas

condenaccedilotildees Se bastasse estender o dedo para algueacutem e acusaacute-lo de cristianismo para

conseguir sua condenaccedilatildeo essa seria uma forma eficaz de eliminar qualquer pessoa

indesejada ainda que ela natildeo fosse cristatilde Adriano entatildeo reconhece que a questatildeo levantada

por Graniano natildeo poderia ficar sem resposta pois os efeitos da desordem seriam extensos

Embora a carta de Graniano natildeo tenha sido preservada eacute possiacutevel deduzir que se o imperador

recomenda a condenaccedilatildeo dos ldquomaleacutevolosrdquo delatores dos cristatildeos que indevidamente os

caluniavam visando agrave puniccedilatildeo isso significa que esse tipo de episoacutedio jaacute havia sido

constatado naquela regiatildeo Nenhuma norma universal eacute estabelecida ou mencionada O

governador eacute designado como o responsaacutevel por examinar as denuacutencias formais e averiguar os

casos

Fica evidenciada a obrigaccedilatildeo por parte de quem realiza a denuacutencia de apresentar ele

mesmo provas sobre seu testemunho diferenciando-se um pouco da medida de Trajano

segundo a qual o governador deveria se responsabilizar pela investigaccedilatildeo O castigo aos falsos

282 Midash Berersquoshit Babba 6410 e Epiacutestola de Barnabeacute 163-4 apud COPETE J M C Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII CONGRESSO INTERNACIONAL GIREA-ARYS IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 283 Der religonsfrevel nach der roumlmischen Recht Historische Zeitschrift 64 1890 pp 389-429 284 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125 285 I Apol 688

54

acusadores era praacutetica usual no direito romano286 Neste ponto surge a seguinte questatildeo Os

acusadores deveriam provar que os cristatildeos por eles acusados cometiam a infraccedilatildeo de serem

ldquocristatildeosrdquo ou que infringiam outras leis comuns subentendidas pelo seu nomen

A expressatildeo287 ei tij ou=n kathgorei kai deiknusi ti para touj nomouj prattontaj(

ou[twj Diorixw kata thn Dunamin tou a`marthmatoj( [ se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e

demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade

do delito ] (I Apol 6810) eacute entendida de modo positivo ou negativo dependendo da corrente

de interpretaccedilatildeo No entanto o proacuteprio rescrito tem algo a dizer em um delineamento mais

claro sobre essa questatildeo A especificaccedilatildeo de que os acusadores deveriam demonstrar que os

cristatildeos acusados agiam contra as leis [touj nomoj prattontaj] eacute uma medida para evitar as

sukofantiaj [caluacutenias] Por isso ele recomenda que Minuacutecio Fundano examine os casos e ldquose

a acusaccedilatildeo eacute caluniosa [castigue-o]288 com maior severidade e [cuide]289 para que natildeo fique

impunerdquo (I Apol 6810)

Uma nova questatildeo incide sobre o significado dessa acusaccedilatildeo ldquocaluniosardquo Justino

interpretou esse trecho como as acusaccedilotildees que maculavam injustamente a imagem dos

cristatildeos atribuindo-lhes canibalismo ateiacutesmo maiestas ou outras coisas desse tipo Segundo

esse tipo de interpretaccedilatildeo Adriano estaria reprovando a condenaccedilatildeo pelo nomen christianum

e recomendando que os governantes examinassem se existia de fato algum crime contra as

leis Ateacute esse ponto essa medida natildeo significaria nenhuma benevolecircncia para com os cristatildeos

apenas garantiria que fossem julgados como quaisquer outros no Impeacuterio sem que os

magistrados fossem movidos por gritarias puacuteblicas mas que se detivessem aos processos

formais Todavia uma segunda hipoacutetese eacute cogitada

Nessa hipoacutetese as acusaccedilotildees ldquocaluniosasrdquo agraves quais Adriano se refere poderiam natildeo ser

do mesmo tipo das que Justino tinha em mente em suas Apologias Elas poderiam se referir agrave

proacutepria acusaccedilatildeo de cristianismo lanccedilada sobre algueacutem com o intuito de levaacute-lo agrave condenaccedilatildeo

sob uma lei especiacutefica contra os cristatildeos Nessa perspectiva a exigecircncia de Adriano para que

se examinasse a comprovaccedilatildeo da denuacutencia seria uma medida semelhante agravequela tomada por

Pliacutenio exigindo que os acusados sacrificassem aos deuses e amaldiccediloassem a Cristo para que

assim se pudesse verificar se eram realmente cristatildeos A diferenccedila eacute que natildeo eacute possiacutevel

286 ROBINSON O F The criminal Law of ancient Rome Baltimore John Hopkins University Press 1996 pp 8100 287 O rescrito em latim que Euseacutebio dizia ter sido anexado originalmente por Justino foi substituiacutedo no MS Par Grae 450 pela traduccedilatildeo grega de Euseacutebio (MINNS D PARVIS P Justin philosopher and martyr apologies New York Oxford University Press 2009 p 265) 288 Adaptaccedilatildeo de ldquocastiga-ordquo para melhor leitura da frase 289 Originalmente ldquocuidardquo

55

conferir a carta de Graniano para fazer algum tipo de comparaccedilatildeo Desse modo natildeo haveria

nenhuma diferenccedila entre a posiccedilatildeo de Trajano e Adriano exceto a recomendaccedilatildeo desse uacuteltimo

para que os caluniadores fossem punidos Para sustentar essa teoria poreacutem torna-se

necessaacuterio admitir que o rescrito de Adriano foi sutilmente modificado pelos cristatildeos para

convertecirc-lo a favor da feacute cristatilde Se por um lado eacute faacutecil supor a modificaccedilatildeo desse documento

ndash o que poderia ter ocorrido ateacute em funccedilatildeo da sua traduccedilatildeo do latim para o grego ndash por outro

lado natildeo haacute outro documento desse tipo que comprove tal adulteraccedilatildeo e nem mesmo que

ratifique uma accedilatildeo intolerante de Adriano para com os cristatildeos Outra hipoacutetese deve ser

examinada e agora deveraacute levar em consideraccedilatildeo as leis agraves quais o rescrito se refere

No texto grego de Euseacutebio que agora aparece na I Apologia de Justino conforme o

MS A a conjugaccedilatildeo no particiacutepio plural presente ativo masculino do verbo prattontaj estaacute

relacionada agrave frase anterior Aproximando as frases o sentido que se tem eacute o seguinte ldquose os

provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo

que respondam a ela diante do tribunal [] faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam

alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delitordquo290 O texto

latino de Rufino eacute mais especiacutefico com essa associaccedilatildeo Si quis igitur accusat et probat

adversum leges quicquam agere memoratos homines pro merito peccatorum etiam suplicia

statues291 Nesse caso memoratos homines [homens mencionados] eacute uma expliacutecita referecircncia

aos Christianos Todavia tanto C Munier292 quanto D Minns e P Parvis293 ignoram a

palavra memoratos294 traduzindo o texto como se o rescrito se referisse ao modo geral de se

proceder em um julgamento ou seja a todos os homens cujos crimes fossem confirmados

Essa hipoacutetese forccedila o texto pois neste caso uma norma geral faria com que qualquer denuacutencia

precisasse ser provada pelo delator sob o risco de ser punido severamente caso natildeo fosse

confirmada pelas autoridades Desse modo esse tipo de sustentaccedilatildeo se converte em absurdo

Admitir que Adriano estivesse realmente orientando Minuacutecio Fundano a julgar

pessoalmente as denuacutencias contra os cristatildeos e exigir provas dos delatores que confirmassem

o descumprimento das leis natildeo significa que o imperador demonstrava simpatia pelo

cristianismo Sua preocupaccedilatildeo eacute manter a ordem e evitar os abusos Era preciso impedir que

290 I Apol 688-10 291 Apud MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 133 292 Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 pp 314-317 293 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 44264-267 294 Participio plural passado perfeito masculino acusativo que significa ldquotrazido agrave lembranccedilardquo ldquoditordquo ldquomencionadordquo ldquorelacionadordquo etc LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project)

56

as manifestaccedilotildees puacuteblicas solapassem o procedimento correto dos tribunais Haacute sim uma

diferenccedila significativa entre a postura de Trajano e a de Adriano mas ela natildeo torna o segundo

um amigo ou inimigo dos cristatildeos Cabe lembrar que uma das questotildees levantadas por Pliacutenio

a Trajano era se os cristatildeos deveriam ser punidos pela confissatildeo desse nome ou pelos crimes

subentendidos Naquele caso especiacutefico da Bitiacutenia uma das infraccedilotildees era quando os cristatildeos

se reuniam em seus cultos passar por cima da lei que impedia as reuniotildees e associaccedilotildees

gerais Abandonada essa praacutetica o governador natildeo via nenhum crime ou ameaccedila no modo de

ser dos cristatildeos e natildeo encontrou outra razatildeo para puni-los senatildeo pela contumaacutecia que

apresentavam diante de um magistrado em natildeo negar a feacute que era estranha aos olhos de Pliacutenio

A resposta de Trajano ainda que lacocircnica ratificou o procedimento de Pliacutenio e mesmo sem se

identificar um ldquocrimerdquo especiacutefico aprovou a condenaccedilatildeo dos cristatildeos pelo seu nomen para

desestimular a superstitio estranha e incentivar a retomada do culto puacuteblico pagatildeo Adriano

por outro lado tambeacutem sem fazer referecircncia a qualquer lei especiacutefica contra os cristatildeos

orienta os governantes a condenarem a todos aqueles que comprovadamente estivessem

infringindo a lei Tudo indica que a Aacutesia estava sendo agitada por mobilizaccedilotildees puacuteblicas que

impeliam os magistrados contra os cristatildeos Essa eacute a razatildeo para os apologistas Quadrato e

Aristides escreverem tambeacutem O nuacutemero dos cristatildeos ainda natildeo era muito significativo para o

estabelecimento de uma lei geral

Conforme destacou Jossa295 os cristatildeos se confrontavam com a opiniatildeo puacuteblica

Dentre o povo emergiram acusaccedilotildees de incesto infanticiacutedio e outras coisas do gecircnero A

rejeiccedilatildeo aos deuses e o estranhamento ao mos romanorum e o seu odio humanum generis

faziam com que os cristatildeos se tornassem a causa das desgraccedilas no Impeacuterio diante dos olhos de

uma boa parte dos pagatildeos No periacuteodo de Adriano a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos era apenas uma

questatildeo de ordem puacuteblica que constrangia o governo romano a uma difiacutecil obra de mediaccedilatildeo

entre os vaacuterios grupos locais Era um aspecto da poliacutetica de pacificaccedilatildeo das proviacutencias A sua

preocupaccedilatildeo estaacute relacionada exclusivamente a manter a ordem puacuteblica nas proviacutencias e a

garantir a observacircncia rigorosa do direito296 A hostilidade aos cristatildeos e os crescentes

confrontos obrigavam os governadores a intervirem e a consultarem o imperador em casos

como esse em que as coisas ameaccedilavam sair do controle

295 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125132 296 Na Digesta XXII53 o jurista Callistrato se reporta a uma seacuterie de rescritos dos quais cinco satildeo de Adriano a governadores das proviacutencias sobre o modo como escutar os textos nos processos e sobre o valor de dar a eles testemunho cf tambeacutem Dig XLVIII27

57

As respostas de Trajano e Adriano mostram que a repressatildeo puramente local do

cristianismo tinha um caraacuteter descontiacutenuo e excepcional que natildeo impedia a nova religiatildeo de

estender-se pelo Impeacuterio fazendo novos adeptos

23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos

Durante o governo de Antonino Pio (governou de 138-161) os tribunais continuavam

a receber queixas esporaacutedicas da populaccedilatildeo sobre os cristatildeos Marco Aureacutelio297 reconheceu

seu conservadorismo e o descreveu como algueacutem profundamente devoto aos deuses

romanos298 e sempre atento ao cumprimento do proacuteprio dever no culto puacuteblico

Segundo Meacuteliton que escreveu nos tempos de Marco Aureacutelio Antonino Pio natildeo

empreendeu nenhuma modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo que viesse a abater a Igreja e que

repetidamente nos rescritos dirigidos aos tessalonicenses aos atenienses e a todos os gregos

recomendou ldquonatildeo inovar nada sobre os cristatildeosrdquo299

Na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio (IV13) aparece um rescrito de Antonino ao

conselho da Aacutesia Satildeo levantados alguns argumentos contra a autenticidade desse documento

Destacam-se principalmente os erros de titulaccedilatildeo Tambeacutem se alega que suas caracteriacutesticas

formais natildeo sejam proacuteprias dos escritos de Antonino Pio Aleacutem disso o documento apresenta

uma exaltaccedilatildeo ao cristianismo Isso faz com que alguns rejeitem total300 ou parcialmente301

esse documento No entanto as condiccedilotildees da eacutepoca corroboram com a ideia de que o

imperador tenha de fato deliberado sobre essa questatildeo e J Beaujeu302 natildeo vecirc nenhuma razatildeo

para duvidar da existecircncia de um rescrito de Antonino Pio G Jossa303 e C G Roman304

297 Pensamentos I16 298 Marco Aureacutelio Pensamentos VI3014 299 apud Euseacutebio His EclesIV2610 300 Cf SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 1954 pp 190ss SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 301 Cf FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 302 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp 279-329 303 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 148 304 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 228

58

admitem-no com reservas e P Keresztes305 sustenta que por haver um comentaacuterio tanto

negativo quanto positivo sobre os cristatildeos natildeo deveria se tratar de uma falsificaccedilatildeo O modo

como tal texto foi preservado na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio eacute controverso e merece um

exame cauteloso

Pela sequecircncia do texto entende-se que Euseacutebio falaraacute de Antonino Pio Ele anuncia o

nome de Antonino que tambeacutem foi uma forma de se referir a Marco Aureacutelio mas comeccedila a

citaccedilatildeo do texto com ldquoO imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto Armecircnio

pontiacutefice maacuteximo tribuno da plebe pela deacutecima quinta vez cocircnsul por trecircs vezes ao conciacutelio

da Aacutesia saudaccedilotildeesrdquo306 A secccedilatildeo de IV82-5 apresenta um comentaacuterio que dificilmente

poderia ser admitido como autecircntico por isso esta eacute a parte que sofre maior oposiccedilatildeo Trata-se

de uma repreensatildeo moral do imperador aos provincianos O nuacutecleo seguinte do texto agraves vezes

eacute admitido como histoacuterico como sustenta C G Roman307 Lecirc-se

Em favor destes jaacute escreveram a nosso diviniacutessimo pai muitos governadores das proviacutencias aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados a natildeo ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder puacuteblico de Roma Tambeacutem a mim muitos me falaram sobre eles e tambeacutem respondi seguindo o parecer de meu pai Mas se algueacutem persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles fique o acusado livre de encargos ainda que seja evidente que eacute cristatildeo por outro lado o acusador ficaraacute sujeito a castigo Publicado em Eacutefeso no concilio da Aacutesia (Hist Ecles IV136-7)308

O contexto e as evidecircncias internas mostram que o rescrito pretende ser de Antonino

Pio Em siacutentese o texto afirma que sob seu governo natildeo se modificou em nada o que foi

estabelecido por Adriano A liberaccedilatildeo de um cristatildeo acusado em funccedilatildeo da denuacutencia de outro

cristatildeo que insiste em levaacute-lo ao tribunal natildeo faz muito sentido Pode-se imaginar que

desavenccedilas entre cristatildeos fizessem com que um cristatildeo procurasse se livrar do seu adversaacuterio

denunciando-o agraves autoridades para que fosse condenado mas eacute inimaginaacutevel que essa fosse

uma preocupaccedilatildeo de um imperador pagatildeo Eacute provaacutevel tenha sofrido uma adaptaccedilatildeo cristatilde

Mesmo despertando ceticismo sobre sua autenticidade esse rescrito pode traduzir com

reservas a situaccedilatildeo dos cristatildeos daquela eacutepoca Neste caso a compreensatildeo da condiccedilatildeo dos

cristatildeos nesse periacuteodo depende em parte da compreensatildeo da postura de Adriano diante dos

cristatildeos Euseacutebio havia interpretado o rescrito de Adriano como uma medida que beneficiava

os fieacuteis e consequentemente vecirc como positivo o rescrito de Antonino Pio No entanto

consideram as conclusotildees especificadas sobre o rescrito de Adriano nesta pesquisa se Pio natildeo

305 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 306 Euseacutebio Hist Ecles IV131 307 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 230-231 308 Ibid

59

adicionou em nada agravequela determinaccedilatildeo os cristatildeos continuavam a serem viacutetimas de

condenaccedilotildees locais e os governantes tinham liberdade para julgar cada caso

Nesse periacuteodo ocorre o martiacuterio do Papa Teleacutesforo e o processo contra Tolomeu e

Luacutecio sob o prefeito de Roma Lollio Urbico mencionados na II Apologia de Justino (21ss)

O repuacutedio da novidade e irracionalidade da feacute dos cristatildeos aparece nos escritos de Eacutelio

Aristides309 e nas vozes populares inferiores referidas por Luciano (De morte Peregrini 11)

Sobre o martiacuterio de Policarpo haacute divergecircncias Jossa310 sustenta que ele padeceu sob Marco

Aureacutelio mas o tipo de perseguiccedilatildeo recebida natildeo foi diferente daquela pela qual padeceram os

cristatildeos condenados sob Antonino Pio Tumultos e agitaccedilotildees puacuteblicas foram problemas que

Adriano havia procurado resolver

As acusaccedilotildees de ldquoateiacutesmordquo sofridas pelos cristatildeos que aparecem na primeira parte do

rescrito satildeo pertinentes ao periacuteodo311 Esse tipo de acusaccedilatildeo levou o proacuteprio Justino a incluir

esse tema nas suas Apologias312 Eacute certo como destaca Keresztes313 que ldquoateiacutesmordquo natildeo era

um crime de fato E em segundo lugar diante das cataacutestrofes aqueles que professavam

orgulhosamente a inexistecircncia dos deuses pagatildeos tornavam-se a explicaccedilatildeo mais provaacutevel

para o distuacuterbio da pax deorum314 Haacute indiacutecios no rescrito de Antonino que esse temor dos

pagatildeos diante das forccedilas da natureza tambeacutem corroborava com o combate aos cristatildeos315

A principal queixa de Justino na deacutecada de 150 dC era a de que natildeo seria justo

algueacutem ser condenado simplesmente por professar ser ldquocristatildeordquo316 O apologista tece sua

reivindicaccedilatildeo considerando o que pensa ser ldquojustordquo e assim tambeacutem apresenta uma peticcedilatildeo

309 Aristides (Orationes XLVI309) fala dos cristatildeos como ldquoos iacutempios da Palestinardquo que se distanciavam dos costumes gregos e natildeo honravam os deuses 310 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125132 311 ldquoA estes estais empurrando para a agitaccedilatildeo uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateusrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV133) 312 I62 313 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 p 17 314 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam e comparais nossa situaccedilatildeo agrave suardquo (Hist Ecles IV134) [Os seguintes infortuacutenios e prodiacutegios ocorridos em seu reino a fome a qual jaacute mencionamos o colapso do Circus e o terremoto por meio do qual as cidades de Rodes e da Aacutesia foram destruiacutedas] Adversa eius temporibus haec provenerunt fames de qua diximus Circi ruina terrae motus quo Rhodiorum et Asiae oppida conciderunt quae omnia mirifice instauravit et Romae incendium quod trecentas quadraginta insulas vel domos absumpsit (Hist Aug Vita Antoninus IX1) Dion Cassius escreveu que ldquoNos dias de Antonino tambeacutem um terriacutevel terremoto ocorreu na regiatildeo da Bitinia e de Helesponto Vaacuterias cidades foram severamente danificadas ou caiacuteram em ruiacutenas em particular Cizicus e o templo de laacute que era o maior e mais belo de todos os templo foi lanccedilado abaixordquo (Hist Rom LXX 4) Ἐπὶ τοῦ Ἀντωνίνου λέγεται καὶ φοβερώτατος περὶ τὰ microέρη τῆς Βιθυνίας καὶ τοῦ Ἑλλησπόντου σεισmicroὸς γενέσθαι καὶ ἄλλας τε πόλεις καmicroεῖν ἰσχυρῶς καὶ πεσεῖν ὁλοσχερῶς καὶ ἐξαιρέτως τὴν Κύζικον καὶ τὸν ἐν αὐτῇ ναὸν microέγιστόν τε καὶ κάλλιστον ναῶν ἁπάντων καταρριφῆναι 315 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegamrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV134) 316 I Apol 41-7

60

reinterpretando o rescrito de Adriano317 Desse modo em exigecircncia mediante o que chama de

ldquosatilde razatildeordquo ele sustenta ser justo que os cristatildeos sejam julgados quando porventura vierem a

cometer alguma falta contra a lei ou por algum delito mas nunca por se chamarem ldquocristatildeosrdquo

Eacute em funccedilatildeo do que representava ser ldquocristatildeordquo que o apologista se dedica a algumas

explicaccedilotildees Em sua anaacutelise era por causa do preconceito das crenccedilas pagatildes dos boatos

maliciosos e ainda por certo impulso irracional por parte dos ldquooutrosrdquo que os cristatildeos eram

ofendidos318 O caso de uma mulher que se divorciou do marido pagatildeo narrado na II Apologia

eacute outro exemplo dos atritos corriqueiros que poderiam chegar aos tribunais Segundo o

apologista ldquotodo aquele que eacute repreendido pelo pai vizinho filho amigo marido ou mulher

por causa de uma falta se volta contra [os cristatildeos] por sua obstinaccedilatildeo no mal por seu amor

ao prazer e por sua impotecircncia para seguir o que eacute bomrdquo319 Aleacutem desse caso emblemaacutetico

acontecido havia pouco tempo na cidade de Roma sob Urbico320 ele acrescenta que tais accedilotildees

tambeacutem eram comuns aos governadores em todo o Impeacuterio e que ldquoem todas as partesrdquo havia

quem estivesse disposto a levar os seguidores de Cristo agrave morte321 Em ambas as Apologias

Justino escreve como quem procura alertar o imperador sobre os abusos cometidos contra os

cristatildeos Devido agrave ausecircncia de uma lei geral contra os fieacuteis as accedilotildees anticristatildes aparecem

como fruto dos distuacuterbios locais que emergiam em resistecircncia agrave nova religiatildeo A I Apologia

parece se referir aos atritos gerais contra os cristatildeos enquanto a segunda comeccedila com um

clamor a partir de um caso especiacutefico ocorrido em Roma sob o prefeito Urbico A II Apologia

daacute sinais de que as disputas de Justino com Crescente na capital imperial levavam o

apologista a prever o seu martiacuterio que soacute viria a acontecer no iniacutecio do governo de Marco

Aureacutelio

Marta Sordi322 assim como Robert M Grant323 identifica trecircs fases na poliacutetica

imperial de Marco Aureacutelio mas as duas uacuteltimas extrapolam o contexto em que se insere

Justino A primeira fase se relaciona ao periacuteodo da corregecircncia entre Marco Aureacutelio e Lucio

Vero de 161 a 169 que corresponde em parte aos uacuteltimos anos de Justino Esta fase revela a

princiacutepio a mesma condiccedilatildeo do governo de Antonino Pio mas pode ter sofrido mudanccedilas no

final da deacutecada

317 I Apol 681-10 318 I Apol 23 319 II 12 320 Quintus Lollius Urbicus havia sido incumbido por Adriano na Guerra Judaica (133-135 dC) governou a Germania Menor (136-138 dC) e a Britania (139-142 dC) e foi prefeito de Roma de 146 a 160 dC (Historiae Augustae 54) 321 II 11-2 322 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103 323 Five apologists and Marcus Aurelius Vigiliae Christianae V 42 n 1 Mar1988 pp 1-17

61

Algumas fontes cristatildes (Atas do martiacuterio de Justino 58324 Oroacutesio Historiae Adversus

PaganusVII154325) vinculam a intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo a um edito sobre sacrifiacutecios

Natildeo se tratava de um decreto diretamente contra os cristatildeos A determinaccedilatildeo exigia sacrifiacutecios

aos deuses por todas as cidades do Impeacuterio nos anos de 166168 e devia estar relacionada aos

temores devido agrave peste agrave guerra na Partia e agrave pressatildeo germacircnica326 Justino foi provavelmente

condenado por se negar a obedecer ao novo decreto mas suas Apologias refletem a situaccedilatildeo

dos cristatildeos sob Antonino Pio

Por meio de uma leitura do seu tempo Justino contemplaraacute em seu discurso os

fundamentos desse tipo de accedilotildees Ele apresenta uma desconstruccedilatildeo da forma de controle que

proporciona agreccedilotildees aos cristatildeos e entatildeo oferece uma concepccedilatildeo cristatilde para fundamentar o

estabelecimento da ordem social

O apologista compotildee uma argumentaccedilatildeo para mostrar que a religiatildeo cristatilde poderia

contribuir para a estabilidade da ordem social no Impeacuterio e oferece uma reflexatildeo sobre os

fundamentos da noccedilatildeo de justiccedila na perspectiva cristatilde Por meio do exame do discurso de

Justino identificam-se dois aspectos da relaccedilatildeo entre religiatildeo e controle social no Impeacuterio

Romano contemplados nas accedilotildees anticristatildes de seu tempo O primeiro eacute representado na sua

anaacutelise da repressatildeo aos cristatildeos em funccedilatildeo da preservaccedilatildeo da ordem e o segundo na sua

proposta de contribuiccedilatildeo dos cristatildeos para a manutenccedilatildeo da ordem

324 ldquoAqueles que natildeo desejarem sacrificarem aos deuses e se submeterem ao decreto imperial satildeo condenados primeiro a serem castigados e depois agrave pena capital conforme a leirdquo (Tr A) kai ei=xai tw| tou auvtokragmati( mastigwqevtej avpacqhtwsan( kefalikhn avpotinnuntej dikhn( kata thn twn nomwn avkoluqian) cf Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 p152 325 Eo defuncto Marcus Antoninus solus reipublicae praefuit sed in diebus Parthici belli persecutiones Christianorum quarta iam post Neronem uice in Asia et in Gallia graues praecepto eius exstiterunt multique sanctorum martyrio coronati sunt Cf OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889 326 SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103

62

CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE

MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM

Ao escrever suas Apologias em defesa dos cristatildeos e endereccedilaacute-las ao imperador

Justino se posiciona tanto como um profeta da antiga monarquia de Israel quanto como um

filoacutesofo conselheiro que se prontifica a oferecer conselhos ao governante Eacute possiacutevel

estabelecer uma analogia entre essas duas posturas nesse caso pois para esse pensador o

cristianismo ndash que em certo sentido eacute para os cristatildeos o cumprimento das expectativas de

Israel ndash eacute a ldquoverdadeira filosofiardquo327 Eacute a partir dessa sua perspectiva cristatilde que ele analisa a

forma romana de garantir o estabelecimento da ordem no tocante agrave religiatildeo e que manifesta

suas razotildees para se opor agrave religiatildeo pagatilde

Sua construccedilatildeo apologeacutetica contrasta tal forma de controle romana que acaba por

vitimar os cristatildeos agrave contribuiccedilatildeo cristatilde para a ordem social Seus pronunciamentos agraves vezes

satildeo muito diretos aos governantes ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem

e natildeo tenhais a quem castigar coisa que conviria melhor a verdugos do que a priacutencipes

bonsrdquo328 Na verdade o problema central incide sobre as formas de controle sociais

empregadas para a repressatildeo da expansatildeo dessa nova religiatildeo Por isso os argumentos de

Justino tecircm por objetivo combater algumas das principais queixas sobre os cristatildeos e tambeacutem

informar sobre o caraacuteter de suas crenccedilas e estilo de vida

Nessa parte da pesquisa seraacute analisada a forma como o apologista tece suas criacuteticas ao

procedimento romano contra a religiatildeo cristatilde e agrave postura dos cristatildeos diante dessas outras

religiotildees A proposta de Justino sobre os fundamentos cristatildeos para o controle social seraacute

examinada no proacuteximo capiacutetulo Sua interrogaccedilatildeo eacute a mesma que ainda voltou agrave tona no

seacuteculo XX com G E M de Ste Croix329 em 1963 com A N Sherwin-White330 em 1964 e

com o proacuteprio Ste Croix331 em uma treacuteplica ldquoWhy were the Early Christians persecutedrdquo

Segundo GEM de Ste Croix as perseguiccedilotildees aos cristatildeos eram decorrentes

basicamente da recusa desse grupo em reconhecer os deuses de Roma acarretando uma

situaccedilatildeo de suspeitas de sediccedilatildeo e periculosidade social Os deuses tradicionais do panteatildeo

greco-romano eram as divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma e seus cultos eram

327 II Apol 152 328 I Apol 124 329 Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p6-38 330 Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 331 Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 p28-33

63

uma necessidade para a manutenccedilatildeo da pax deorum [paz dos deuses]332 A perseguiccedilatildeo se

relacionaria ao sentimento religioso da eacutepoca supersticiosa na qual eles viviam333

A N Sherwin-White334 de modo diverso desviou a tocircnica da perseguiccedilatildeo da questatildeo

da pax deorum e lanccedilou seu olhar agrave contumaacutecia dos cristatildeos em se manterem fieacuteis agraves suas

crenccedilas exclusivistas diante do panteatildeo greco-romano Tal postura teria sido interpretada em

muitos momentos como um desafio agraves autoridades romanas Desse modo atrairiam para si

mesmos acusaccedilotildees e suspeitas em decorrecircncia de sua potencial insubordinaccedilatildeo conforme

pode ser visto nas Cartas de Pliacutenio o Jovem a Trajano335

A treacuteplica de GEM Ste Croix336 natildeo colocou um ponto-final na questatildeo e

incomodou a outros estudiosos contemporacircneos Segundo Paul Veyne as comunidades cristatildes

enfrentaram resistecircncias devido agrave aversatildeo romana ldquoao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguordquo337

O fato de o grupo ser ainda pouco conhecido e sustentar a veneraccedilatildeo a um ldquoreirdquo na esperanccedila

de um reino torna a situaccedilatildeo ainda mais complicada Tal hibridez alegada seria notada tendo

em vista que embora possuindo as mesmas categorias de pensamentos dos demais cidadatildeos do

Impeacuterio Romano

os cristatildeos faziam parte do Impeacuterio mas sem os mesmos costumes evitavam conviver com os outros natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo veneravam os deuses nacionais seu Deus natildeo pertencia agrave determinada naccedilatildeo diferente do deus dos judeus Aleacutem de querer se isolar como uma legiacutetima diferenccedila nacional esse Deus pretendia superar os deuses nacionais338

Nesse sentido as perseguiccedilotildees teriam sido causadas pela rejeiccedilatildeo a algo pouco

definido anormal capaz de produzir inseguranccedilas e exigir uma medida cautelar E para

justificar as accedilotildees persecutoacuterias os romanos lanccedilavam matildeo de argumentos tradicionais como

o respeito ao mos maiorum [os costumes ancestrais] e o respeito agrave unidade religiosa e moral

da coletividade

Mesmo apresentando explicaccedilotildees diferentes sobre as perseguiccedilotildees as consideraccedilotildees

de Sherwin-White Ste Croix e Paul Veyne natildeo satildeo completamente opostas Se por um lado

observamos a posiccedilatildeo obstinada dos cristatildeos em manter a sua religiatildeo a ponto de se tornar

332 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p 24 333 Ibid 1963 pp 29-31 Cf DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963 334 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n 27 1964 pp 25 335 Pliacutenio Segundo Cartas X 96-97 336 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 337 VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 338 Ibid p 246

64

uma desobediecircncia contra as autoridades imperiais por outro a religiatildeo romana se baseava na

manutenccedilatildeo do equiliacutebrio das relaccedilotildees entre o Impeacuterio Romano e os deuses tradicionais

Essas explicaccedilotildees decorrem de uma anaacutelise geral das accedilotildees anticristatildes do I ao IV

seacuteculo Um exame mais localizado ndash e em niacuteveis menos oficiais ndash poderia multiplicar as

razotildees pelas quais os cristatildeos foram perseguidos ou chamar a atenccedilatildeo para o fator psicoloacutegico

desses atritos religiosos Essa pesquisa no entanto limitar-se aos aspectos que possibilitem

uma leitura das accedilotildees anticristatildes a partir das Apologias de Justino

O apologista tambeacutem se propotildee a responder a esta questatildeo ldquoPor que os cristatildeos satildeo

perseguidosrdquo Sua leitura teoloacutegica da histoacuteria procura chegar agrave causa uacuteltima motivadora das

accedilotildees anticristatildes desenvolvendo uma trama apologeacutetica que relaciona controle social e

religiatildeo Para compreender suas formulaccedilotildees conveacutem analisar esse conceito chave

ldquoControle socialrdquo pode ser definido como ldquoo conjunto dos recursos materiais e

simboacutelicos que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de

seus membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo339 O termo de

modo geral eacute frequentemente usado para se referir a alguma forma de reaccedilatildeo organizada ao

comportamento pervertido Essa abordagem eacute baseada o trabalho de Stan Cohen que definiu

controle social como ldquorespostas organizadas ao crime delinquecircncia e formas aliadas de

perversatildeo eou comportamento socialmente problemaacutetico os quais satildeo atualmente concebidos

se no reativo sentido (depois do putativo ato ter tomado espaccedilo ou o ator ter sido identificado)

ou no proativo sentido (para prever os atos)rdquo340

A definiccedilatildeo usada por Donald Black341 eacute muito semelhante Ele assinalou que

ldquocontrole social eacute o aspecto normativo da vida social ou a definiccedilatildeo de comportamento

pervertido e a resposta a ele tal como proibiccedilotildees acusaccedilotildees puniccedilotildees e compensaccedilatildeordquo

Segundo esta afirmaccedilatildeo controle social se refere aos mecanismos determinantes usados para

regular a conduta das pessoas que satildeo vistas como pervertidas criminosas preocupantes ou

problemaacuteticas em algum sentido para os outros Todo tempo os sentidos nos quais diferentes

culturas entendem e respondem a diferentes formas de mudanccedilas e ajustes de comportamentos

problemaacuteticos

A causa desses problemas pode ser atribuiacuteda agrave criminalidade perversatildeo imoralidade

maldade perversidade ou alguma combinaccedilatildeo desses Similarmente os mecanismos

empregados para alcanccedilar o controle podem incluir formas variadas de puniccedilatildeo tratamento

339 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 340 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 p 3 341 BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press 1976 pp 1-2

65

dissuasatildeo segregaccedilatildeo ou prevenccedilatildeo342 Desse modo se a combinaccedilatildeo de fatores eacute usada para

compreender e reatar o problema o objetivo eacute promulgar o controle sobre o comportamento

que eacute visto como pervertido em algum sentido

A complexidade do tema se manifesta ainda quando R Meier343 considera que

controle social pode ser encontrado em trecircs principais contextos a) como uma descriccedilatildeo da

condiccedilatildeo ou processo social baacutesico ndash definiccedilatildeo dominante na teoria socioloacutegica claacutessica ndash b)

como um mecanismo para assegurar o cumprimento das normas e c) como um meacutetodo pelo

qual estudar (ou interpretar dados sobre) a ordem social Cohen retoma Joseph Rouceck344

que escreveu em 1947 entendendo controle social como ldquoum termo coletivo para aqueles

processos planejados ou natildeo planejados pelos quais indiviacuteduos satildeo ensinados ou compelidos

a conformar os usos e valores vitais dos gruposrdquo E A Horwitz345 que considerava que o

ldquocontrole social emerge da vida e das praacuteticas sociais e serve para manter o sentido da vida e

das praacuteticas sociais dos gruposrdquo Muitos diriam que tal descriccedilatildeo se aproxima mais dos

processos de socializaccedilatildeo E natildeo eacute preciso ir muito longe para perceber que os dilemas desse

conceito podem vir a ser complexos Tatildeo logo manifesta-se a necessidade de estabeler os

limites desse termo de modo que natildeo seja tatildeo limitado e que tambeacutem natildeo seja tatildeo amplo a

ponto de natildeo ser reconhecido

Segundo a anaacutelise de Martin Innes346 a definiccedilatildeo de Cohen permanece muito flexiacutevel

para mostrar a promulgaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social pelo Estado ou por agentes

profissionais autocircnomos tais como funcionaacuterios de corporaccedilotildees privadas e psiquiatras As

pessoas tendem a usar outros meios antes de recorrer ao aparato formal estabelecido de

controle social subcolocados como satildeo pela lei Mais conflitos satildeo resolvidos sem recursos da

lei ou controle social formal Uma soluccedilatildeo eacute frequentemente negociada ou a perversatildeo

tolerada e a imposiccedilatildeo do controle social tende a ser uma funccedilatildeo de elevada distacircncia

relacional Por isso a extensatildeo do desempenho do controle social atinge tambeacutem um caraacuteter

informal na sociedade

A definiccedilatildeo de controle social como uma resposta organizada a comportamentos

pervertidos natildeo eacute consensual Mas na busca por uma definiccedilatildeo que se adapte aos objetivos

desse trabalho seratildeo levadas em consideraccedilatildeo as proposiccedilotildees de Martin Innes347 Ele sintetiza

342 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 passim 343 MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology 1982 8 pp 35ndash55 344 Social Control Westport CT Greenwood Press 1970 p 3 345 The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990 p 5 346 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 347 Ibid

66

os aspectos da definiccedilatildeo de Cohen em uma abordagem revisionista Seu argumento eacute que

controle social pode ser pensado como um conceito-mestre composto de uma raiz de

diferentes modos de controle e tecnologias

Para estabelecer os limites desse conceito de controle social tambeacutem eacute necessaacuterio

estabelecer conceitos paacutereos como ldquoordem socialrdquo Segundo Erwin Goffman348 as relaccedilotildees

regulares entre as pessoas os variados padrotildees de funcionamento variadamente motivados

de comportamento as rotinas associadas com regras baacutesicas juntos constituem o que pode ser

chamada de uma ldquoordem socialrdquo

Baseando-se nesta definiccedilatildeo pode-se distinguir entre o significado de ordem social e

controle social A promulgaccedilatildeo de controle social eacute frequentemente destinada a proteger a

ordem social mas ordem social natildeo eacute unicamente produto de controles sociais Ao contraacuterio

o conceito de ordem social se refere agraves condiccedilotildees de existecircncia de uma sociedade De fato

toda sociedade tem intrinsecamente um grau de organizaccedilatildeo e entatildeo uma ordem social Uma

ordem social natildeo eacute estaacutetica estaacute constantemente em processo sendo produzida e reproduzida

pela combinaccedilatildeo de atitudes valores praacuteticas instituiccedilotildees e accedilotildees de seus membros

Entatildeo a ordem social eacute composta de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees

as quais de alguma forma contribuem para a constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social As

fronteiras entre as praacuteticas de organizaccedilatildeo social e controles sociais natildeo satildeo fixas nem

estaacuteveis e ao longo do tempo mudam de equiliacutebrio Pois se ordem social se refere ao estado

da sociedade e ao arranjo organizado de seu essencial conhecimento valores accedilotildees

instituiccedilotildees e estabelecimentos controle social se refere aos processos pelos quais se busca

gerir desvios ou conflitos com a ordem social Essas formas de gerenciamento podem ser

formais ou seja institucionalizadas ou informais

Controle social formal se refere a alguma ocasiatildeo onde a imposiccedilatildeo do controle eacute

baseada sobre ou informada por a presenccedila da lei Outras atividades de controle podem ser

definidas como tipo informal349 Dentre essas formas de controle tambeacutem eacute possiacutevel distinguir

os modos reativos e os proativos O primeiro tipo eacute aquele usado para responder algumas

coisas depois que elas tecircm tomado espaccedilo O segundo envolve o caacutelculo da probabilidade de

um ato ocorrer no mesmo ponto no futuro e a manufatura de alguma forma de intervenccedilatildeo em

antecipaccedilatildeo deste Essa eacute uma forma preditiva de controle Tambeacutem eacute possiacutevel distinguir entre

formas de controle social ldquoverticalrdquo para falar sobre o poder diferencial que frequentemente

existe entre controladores e os controlados Controle social para baixo eacute mais comum

348 GOFFMAN E Relations in Public New York Basic Books 1971 p x 349 Cf BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press passim

67

envolvendo alguns com mais poder ou autoridade de regulaccedilatildeo do comportamento de

indiviacuteduos ou grupos menores Contudo o controle social tambeacutem pode ser ldquoupwardsrdquo [para

cima] envolvendo os menos poderosos moldando o comportamento de indiviacuteduos ou grupos

mais poderosos

Eacute numa perspectiva ldquode baixo para cimardquo que Justino questiona a forma de controle

empreendida pelos governantes romanos quando agem contra os cristatildeos Essa perspectiva

contempla as condiccedilotildees do grupo minoritaacuterio daqueles que satildeo considerados adeptos de uma

superstito digna de ser combatida por aqueles que detecircm os meios de controle e dessa forma

eacute produzido um instrumento de controle que busca ldquoconvencerrdquo e intimidar as autoridades e a

todos os demias a natildeo se oporem aos cristatildeos Embora reconheccedila que os governantes satildeo

constituiacutedos por Deus eacute aquilo que ele chama de ldquoreta razatildeordquo que lhe daacute o direito de se

pronunciar350 As autoridades romanas soacute satildeo buscadas porque os conflitos cotidianos quanto

agraves diferenccedilas religiosas produziram atritos e inquietaccedilotildees que abriram margem para que os

romanos aplicassem coaccedilotildees ldquoformaisrdquo Ao questionar a intervenccedilatildeo imperial para a

manutenccedilatildeo da ordem o apologista revela refugiar-se em um padratildeo de justiccedila distinto

daquele dos romanos Em seus escritos ele tambeacutem manifesta uma perspectiva cristatilde da

ordem que seraacute analisada no proacuteximo capiacutetulo

Para se compreender as proposiccedilotildees de Justino seratildeo examinados os seguintes

aspectos a criacutetica aos governantes no processo de manutenccedilatildeo da ordem no tocante aos

cristatildeos as diferenccedilas entre os cristatildeos e as outras religiotildees e sua criacutetica sobre as leis e a

moralidade

31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem

Na I Apologia logo apoacutes o exoacuterdio Justino procura justificar suas razotildees agraves

autoridades agraves quais se refere em peticcedilatildeo Ele escreve que

todo homem sensato manifestaraacute que a melhor exigecircncia ou ainda mais que a uacutenica exigecircncia justa eacute que os suacuteditos possam apresentar uma vida e um pensar irrepreensiacuteveis e que por outro lado igualmente os mandantes deem sua sentenccedila

350 ldquoA razatildeo exige dos que satildeo verdadeiramente piedosos e filoacutesofos que desprezando as opiniotildees dos antigos se estas satildeo maacutes estimem e amem apenas a verdade De fato o raciociacutenio sensato natildeo soacute exige que se abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente mas tambeacutem que o amante da verdade de todos os modos e acima da proacutepria vida mesmo que seja ameaccedilado de morte deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiccedilardquo (I Apol 12)

68

natildeo levados pela violecircncia e tirania mas segundo a piedade e a filosofia Soacute assim governantes e governados podem gozar de felicidade351

O bom procedimento dos suacuteditos conjugado agrave postura iacutentegra de justiccedila daqueles que

tecircm autoridade aparece como condiccedilatildeo para que ldquogovernantesrdquo e ldquogovernadosrdquo desfrutem da

felicidade O que mais chama atenccedilatildeo eacute a seguinte expressatildeo ldquoem algum lugar um dos

antigos disse lsquoSe os governantes e os governados natildeo forem filoacutesofos natildeo eacute possiacutevel os

Estados prosperaremrsquordquo352 Tanto Munier353 quanto Minns e Parvis354 identificam esse trecho

como uma citaccedilatildeo de Platatildeo (Repuacuteblica V 473) Na obra de Platatildeo fica claro o apontamento

da necessidade de que os governantes adiram ao cultivo da sabedoria numa junccedilatildeo de

δύναmicroίς τε πολιτικὴ καὶ φιλοσοφία [poder poliacutetico e filosofia] para que natildeo haja problemas

sociais

Justino ressignifica o conceito de ldquofilosofiardquo a partir da sua experiecircncia cristatilde Desse

modo aqueles que satildeo ldquopiedosos e filoacutesofosrdquo como satildeo chamados o imperador e seus filhos

deveriam julgar com retidatildeo para que todos gozem de bem estar

Haacute vaacuterias hipoacuteteses para justificar o tiacutetulo ldquoPiordquo de Antonino Uma hipoacutetese eacute que esse

nome lhe fora dado por ter defendido a deificaccedilatildeo dedicaccedilatildeo de um templo e concessatildeo de

inuacutemeras honras a Adriano Outras hipoacuteteses levam em conta seu caraacuteter e sua maneira de

ser355 ldquoVerissimusrdquo356 era uma denominaccedilatildeo de Marco Annio Vero que viria a ser o

Imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto O modo como esse apelido eacute empregado

no texto indica provavelmente uma estrateacutegia retoacuterica de Justino Marco era

reconhecidamente chamado de ldquofiloacutesofordquo357 Seus proacuteprios escritos eliminam qualquer

indagaccedilatildeo Poreacutem quando Luacutecio eacute chamado de ldquofiloacutesofordquo isso pode soar estranho Mas antes

de se rejeitar esse tiacutetulo eacute mais prudente tentar compreender se existe uma ligaccedilatildeo isotoacutepica

com a estrutura do texto Se os tiacutetulos ldquoPiordquo e ldquofiloacutesofordquo respectivamente de Antonino e de

Marco Aureacutelio apresentam um forte viacutenculo com a construccedilatildeo do cerne da obra haacute boa razatildeo 351 I Apol 32 Cf Kalhn de kai monhn dikaian proltsgtklhsin tauthn paj o` swfronwn avpofaneitai( to touj avrcomenouj thn euvqunhn tou eautwn biou kai logou alhpton parecein( o`moiwj drsquoauv kai touj arxontaj mh bia| mhde turannidi( avllrsquo euvsebeia| kai filosofia| avkolouqountaj thn yhfon tiqesqai ou[twj gar avrcontej kai oi` avrcomenoi avpolauoien tou avgaqou) MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 352 I Apol 33 Cf An mh oi` arcontej filosofhswsi [kai oi` avrcomenoi]( ouvk av eih taj poleij euvdaimonhsai) Cf MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 353 MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p 172 354 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 85 355 Hist Aug Antoninus Pius 21-10 356 Ele foi carinhosamente chamado ldquoVeriacutessimordquo [Ouvrissiacutemon] como apontou Cassius Dio (Hist Rom 69212) e como aparece tambeacutem na Hist Aug I41 357 Hist Aug Marcus Aurelius 15-9

69

para buscar uma hipoacutetese que aluda agrave possiacutevel relaccedilatildeo do tiacutetulo de Luacutecio com o restante do

texto

Luacutecio foi adotado por Antonino ao mesmo tempo em que Marco e se tornou Luacutecio

Aeacutelio Aureacutelio Commodo Com a morte de seu pai adotivo recebeu o tiacutetulo de Imperador

Ceacutesar como esse seu irmatildeo mas a dimensatildeo do seu poder eacute amplamente questionada Minns e

Parvis358 consideram que nos tempos de sua ldquosaiacutedardquo para as regiotildees do Impeacuterio em 153 ou

154 poderia ser mais prudente incluiacute-lo entre os destinataacuterios Ele eacute chamado de ldquofiloacutesofo

[filosofw|] filho natural de Ceacutesarrdquo no MS A e de filosofou kaisaroj fush| ui`w| [Filho

natural do filoacutesofo Ceacutesar] por Euseacutebio359 Esse tiacutetulo natildeo poderia ser atribuiacutedo ao pai

bioloacutegico de Luacutecio Segundo os registros da Historia Augusta seu pai Luacutecio Aeacutelio Vero

recebeu realmente o tiacutetulo de Ceacutesar do Imperador Adriano mas morreu sem chegar ao posto

elevado Por outro lado haacute evidecircncias suficientes para Justino chamar a Luacutecio filho natural

de Ceacutesar e filho de Pio por adoccedilatildeo de ldquoamante do saberrdquo o que equivaleria a dizer que tinha

uma formaccedilatildeo baacutesica

O tiacutetulo ldquofiloacutesofordquo natildeo se referia a apenas um exiacutemio pensador O filoacutesofo podia ser

algueacutem que se dedicava aos assuntos filosoacuteficos que frequentava alguma escola ou grupo de

discussatildeo ou algueacutem de reconhecido destaque intelectual podendo ser considerado ateacute um

embaixador em assuntos poliacuteticos360 Luacutecio poreacutem natildeo apresentou dons naturais para os

estudos literaacuterios Compocircs versos e oraccedilotildees mas suas habilidades poeacuteticas eram muito

limitadas Haacute quem diga que ele foi ajudado pela inteligecircncia de seus amigos e que muitas das

coisas creditadas a ele foram escritas por outros361 A despeito de Luacutecio ser ndash ou natildeo ndash

reconhecidamente um filoacutesofo essa denominaccedilatildeo podia render uma associaccedilatildeo desses nomes

ao cultivo do saber em geral e da piedade Se por outro lado o tiacutetulo de filoacutesofo viesse a ser

improacuteprio comparado agrave pertinecircncia da forma como Marco Aureacutelio eacute chamado abre-se espaccedilo

para uma nova hipoacutetese Seria esta uma estrateacutegia para chamar a atenccedilatildeo para as proacuteximas

colocaccedilotildees quando o apologista destaca aqueles que dizem ser filoacutesofos e natildeo o satildeo Mais do

que isso o apologista precisa de um elemento que viabilize a abertura de um espaccedilo textual

para a apresentaccedilatildeo do que ele considera ldquoa verdadeira filosofiardquo isto eacute o cristianismo

358 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 38-39 359 Hist Ecle IV121ss 360 DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940 361 Hist Aug Lucius Verus 21ss

70

Justino conheceu vaacuterias correntes filosoacuteficas Uma variedade de escolas poderia ser

encontrada pelo Impeacuterio Euseacutebio362 o chamou de ldquoamante da verdadeira filosofiardquo No

Diaacutelogo com Trifatildeo363 a filosofia eacute por ele reconhecida como ldquoo maior e mais precioso bem

diante de Deus para o qual somente ela conduz e nos associardquo Esses ensinamentos satildeo

considerados ldquosuperiores a toda filosofia humanardquo364 e reconhecidos como ldquoa filosofia segura

e proveitosardquo365 Dessa forma o pensamento cristatildeo eacute revestido de uma aacuteurea de

superioridade capaz de fundamentar sua teoria e sua criacutetica ao modo romano de repelir os

fieacuteis

Em sua leitura teoloacutegica da histoacuteria e dos problemas religiosos do seu tempo o

apologista procura a razatildeo uacuteltima que fundamenta a accedilatildeo humana para aquilo que eacute ldquobomrdquo e

para as accedilotildees de oposiccedilatildeo agrave feacute Eacute trabalhoso encontrar uma definiccedilatildeo para o que eacute ser ldquobomrdquo

segundo seu modo de pensar Sabe-se poreacutem que os cristatildeos satildeo tidos como os que buscam

aquilo que eacute ldquobomrdquo e que por isso natildeo haacute nenhuma razatildeo para persegui-los Aquilo que eacute

ldquobomrdquo pode ser experimentado de forma parcial por aqueles que natildeo satildeo cristatildeos mas essa

experiecircncia deriva de uma mesma fonte coacutesmica da ldquobondaderdquo Por isso ele sustenta que tudo

o que pode ser chamado ldquobomrdquo entre os filoacutesofos e legisladores elaborado por eles mediante

a investigaccedilatildeo e a instituiccedilatildeo foi comunicado pela parcela do Logos que lhes coube De outro

modo Justino afirma que por natildeo conhecerem plenamente o Logos que eacute Cristo eles

frequentemente se contradizem Em seu ponto de vista outrora muitos pensadores que

tentaram investigar e demonstrar as coisas por meio dessa ldquorazatildeordquo tambeacutem foram levados ao

tribunal como Soacutecrates

Em oposiccedilatildeo ao que eacute ldquobomrdquo uma forccedila oposta aparece como a propiciadora do

engano Eacute esse o elemento uacuteltimo responsaacutevel pelo desvirtuamento da sintonia com aquilo

que eacute ldquobomrdquo e que promove as accedilotildees ldquoinjustasrdquo das autoridades Ele escreve ldquoVoacutes poreacutem

natildeo examinais nossos juiacutezos mas movidos de paixatildeo irracional e aguilhoados por democircnios

perversos nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por issordquo366

Segundo sua teoria satildeo os democircnios os uacuteltimos responsaacuteveis por espalhar a ignoracircncia e

mover as autoridades contra os cristatildeos

Sob essa perspectiva ele destaca a transparecircncia cristatilde e a disposiccedilatildeo paciacutefica desse

grupo diante da autoridade imperial ao dever dos governantes

362 Hist Ecles IV83 363 Diaacutelogo com Trifatildeo 21 364 II Apol 153 365 Diaacutelogo com Trifatildeo 81 366 I Apol 51

71

Cabe a noacutes portanto expor ao exame de todos a nossa vida e os nossos ensinamentos para que natildeo nos tornemos responsaacuteveis pelo castigo daqueles que ignorando a nossa religiatildeo pecam por cegueira contra noacutes Contudo o vosso dever eacute tambeacutem ouvir-nos e mostrar-vos bons juiacutezes Com efeito daqui para frente informados como estais caso natildeo ajais com justiccedila natildeo tereis nenhuma desculpa diante de Deus367

A lealdade dos cristatildeos natildeo era algo evidente e por isso eacute uma das principais

preocupaccedilotildees do apologista ratificaacute-la Justino assinala que havia suposiccedilotildees inclusive de

que os cristatildeos arquitetavam algum tipo de irrupccedilatildeo de outro ldquoreinordquo quando de fato falavam

do ldquoreino de Deusrdquo em todos os seus aspectos espirituais (I Apol 111) A nova religiatildeo jaacute se

espalhava pelo Impeacuterio havia um seacuteculo mas eacute provaacutevel que natildeo tivesse alcanccedilado um

nuacutemero expressivo de fieacuteis Aleacutem disso ainda natildeo existia uma estrutura eclesiaacutestica bem

formada O marcionistas os valentinianos e outros grupos tornavam a questatildeo da identidade

cristatilde um assunto das apologias justinianas e de outros escritores e pregadores que pretendiam

definir quem eram os ldquocristatildeosrdquo

32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus

Na verdade o exclusivismo caracteriacutestico do monoteiacutesmo cristatildeo contrastava com a

religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio As accedilotildees importantes do Estado sempre envolviam rituais

sagrados Comemoraccedilotildees de vitoacuterias e triunfos do exeacutercito normalmente culminavam em

procissotildees e sacrifiacutecios E a proacutepria estabilidade social dependia de uma barganha feita com

os deuses para a manutenccedilatildeo da paz368

Os variados rituais produziam interaccedilotildees entre deuses e homens na religiatildeo romana

Por meio deles eram marcados todos os eventos puacuteblicos e celebraccedilotildees que envolviam

festivais anuais os juramentos ou aniversaacuterios das fundaccedilotildees de templos Tambeacutem podiam

estar relacionados aos jogos ou agraves performances dramaacuteticas que tinham elementos rituais em

seu programa ainda que incluiacutessem o entretenimento entre seus propoacutesitos Os jogos jamais

perderam seu aspecto ritual Cria-se que nessas ocasiotildees os deuses desciam para assisti-los e

entatildeo eram realizados rituais religiosos inclusive representados perfeitamente para que a

cerimocircnia fosse bem sucedida De modo geral tambeacutem os sacrifiacutecios eram feitos estritamente

367 I Apol 34 368 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35

72

segundo regras e tradiccedilotildees que necessariamente tinham de ser respeitadas369 Os prodiacutegios

envolviam quase todos os grupos de influecircncia nas decisotildees estatais ndash os coleacutegios sacerdotais

o senado os magistrados e ocasionalmente o povo nas comitia370

A criaccedilatildeo de novos lugares sagrados sejam templos propriamente ditos ou santuaacuterios

com um altar era tema de interesse puacuteblico e conflito potencial371 Alguns templos eram fruto

de promessas de generais em batalhas Com o tempo expandiram-se pelo espaccedilo urbano

representando uma imagem visiacutevel do domiacutenio romano sobre o Mediterracircneo e assinalando a

contribuiccedilatildeo de novos e antigos deuses em cada estaacutegio dessa conquista

Os rituais religiosos estavam intimamente ligados agraves demais atividades de guerra e

paz Desse modo a aprovaccedilatildeo de uma lei ou a eleiccedilatildeo de magistrado eram atos que envolviam

a tomada dos augures responsaacuteveis pelo sistema especial de regras que os controlavam o ius

augurale372 Os limites dessa religiosidade natildeo satildeo muito bem definidos Mas tanto o povo

quanto os magistrados demonstravam respeito pelas obrigaccedilotildees religiosas

A religiatildeo e os deuses estavam entre os fatores importantes na determinaccedilatildeo dos

eventos e na garantia de suas reivindicaccedilotildees de autoridade e comando dos agentes puacuteblicos

romanos Era tambeacutem uma das expressotildees da ideologia da elite romana e da manutenccedilatildeo do

poder E ainda como escreve Claudia B Rosa

ao mesmo tempo eram os rituais que garantiam as relaccedilotildees entre dois grupos homens e deuses Garantir os ritos representava a certeza da manutenccedilatildeo da sociedade como a queriam ordenada e segura Ao registrar as regras de comportamento como o respeito aos deuses sobretudo em seus espaccedilos ao curvar-se sob a autoridade dos rituais o cidadatildeo garantia a ordem social e a pax deorum e as praacuteticas que acarretavam a transgressatildeo agrave ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e agrave desagregaccedilatildeo A concoacuterdia entre homens e deuses eacute a garantia da ordem romana373

No I seacuteculo aC Augusto se tornou membro de todos os coleacutegios sacerdotais

assumindo o papel de pontifex maximus liderando os demais sacerdotes Se esta interpretaccedilatildeo

for correta ela representa a nova e revolucionaacuteria ordem religiosa do periacuteodo imperial e todos

os seus sucessores foram tambeacutem pontifices maximus ateacute o seacuteculo IV aC Desde entatildeo o

imperador se via responsaacutevel pela construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de templos O poder religioso e o

poder poliacutetico se assentaram sobre um mesmo indiviacuteduo no novo regime do Impeacuterio374

369 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 370 Assembleia dos cidadatildeos romanos 371 ROSA Claudia Beltratildeo Op cit p 144 Ciacutecero indica duas ocasiotildees em que tentativas de dedicaccedilotildees foram canceladas pelos pontiacutefices porque natildeo haviam sido aprovadas pelos comitia (De domo sua 136) 372 LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 1986 pp 2146-312 373 ROSA C B Op cit p 145-146 374 Ibid p 147

73

Conforme escreveu Paul Veyne375 ldquoO Estado com certeza exercia sua autoridade sobre os

cidadatildeos que lhe deviam tudo Mas mesmo assim apenas em circunstacircncias excepcionais

um decreto obrigaria cada cidadatildeo a tomar parte numa cerimocircnia puacuteblica []rdquo Devia-se no

entanto zelar pela pax deorum para a prosperidade e seguranccedila no Impeacuterio376

Natildeo havia uma ldquodependecircnciardquo humana em ralaccedilatildeo aos deuses o que existia era o

reconhecimento da superioridade daqueles seres que viviam entre os humanos Esse

reconhecimento cuacuteltico piedoso estava relacionado agrave barganha Esperava-se conhecer o

futuro escapar do perigo obter boas colheitas ter boa sauacutede sem que isso significasse que os

deuses estariam agrave disposiccedilatildeo a todo instante377

As accedilotildees de Augusto podem evidenciar uma estreita conexatildeo com episoacutedios de

restauraccedilatildeo e especialmente com as recorrentes observaccedilotildees de que as tradiccedilotildees ancestrais

estavam sendo perdidas ou abandonadas O ldquoculto imperialrdquo passa a representar uma novidade

no iniacutecio do Impeacuterio Se os apelos agrave restauraccedilatildeo das crenccedilas e tradiccedilotildees eram presentes nos

discursos natildeo se pode falar em uma nova forccedila religiosa ou uma nova religiatildeo no periacuteodo

imperial

Essas praacuteticas religiosas proporcionaram choques com judeus e depois com os

cristatildeos Sendo monoteiacutestas era impossiacutevel aceitar a inclusatildeo de deuses e cultos Os judeus

sacrificavam em prol do imperador e natildeo para o imperador jaacute os cristatildeos recusavam-se a

participar de qualquer sacrifiacutecio Considerando que os altares ao imperador eram colocados

muito proacuteximos ao tribunal do magistrado que ouvia os seus casos pode-se pensar que tal

sacrifiacutecio ao chefe do Impeacuterio era mais simboacutelico do que de adoraccedilatildeo e funcionava como sinal

de lealdade a Roma378 Secircneca em sua Apocolocyntosis do Divino Claacuteudio escrita

provavelmente no iniacutecio do reinado de Nero apresenta conotaccedilotildees negativas a respeito da

deificaccedilatildeo dos governantes em geral o que indica que existiam aqueles que natildeo viam com

bons olhos o processo de deificaccedilatildeo do governante Mas para a populaccedilatildeo geral do Impeacuterio

natildeo havia problemas em aceitar que o imperador pudesse ser tratado como um deus

A partir da sua expansatildeo e domiacutenio por um vasto territoacuterio o poder romano teve que

lidar com os problemas de integraccedilatildeo das regiotildees conquistadas Conforme tem destacado

375 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 244 376 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 p 15 377 MACMULLEN Ramsay Christianizatin the roman empire (AD 100-400) New Haven Yale University Press 1984 p 13 378 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 150

74

Claudia M Beltratildeo379 o mapa da peniacutensula Itaacutelica o Oriente Proacuteximo o norte da Aacutefrica e

Europa conformam uma rede que se aglutina em torno de Roma constituindo um espaccedilo

dinacircmico de interconexatildeo espaccedilo no qual se daratildeo variados modos de relaccedilatildeo Essa complexa

relaccedilatildeo exigia tambeacutem uma forma de lidar com os cultos estrangeiros

A cultura romana tornou-se sinteacutetica e sintetizante e relativamente favoraacutevel agrave

incorporaccedilatildeo de cultos estrangeiros Roma natildeo apenas se tornou o centro poliacutetico do mundo

por ela construiacutedo como tambeacutem passou a abrigar o nuacutecleo das religiotildees Segundo a anaacutelise

de Ceciacutelia Ames380 o caraacuteter sinteacutetico da religiatildeo romana que combina rito paacutetrio rito grego

e disciplina etrusca facilitou aos romanos a integraccedilatildeo de cultos estrangeiros e a difusatildeo de

seu proacuteprio sistema nos territoacuterios constituindo-se em um elemento chave na relaccedilatildeo destes

espaccedilos interconectados Sua toleracircncia e flexibilidade no entanto tambeacutem incluiacuteam

mecanismos para regular o fluxo de ideias e praacuteticas estrangeiras381 O senado era o oacutergatildeo

responsaacutevel por velar e vigiar da tradiccedilatildeo e da religiatildeo A necessidade de controle cresce junto

com a expansatildeo dos domiacutenios de Roma

Dentro da sua anaacutelise Justino se incomoda com o fato de que no meio de um universo

tatildeo vasto de culturas que se encontram no Impeacuterio Romano os cristatildeos sejam muitas vezes

odiados e levados agrave morte Para o apologista essa eacute mais uma evidecircncia da ignoracircncia

disseminada pelos maus democircnios que faz com que de algum modo as crenccedilas cristatildes sejam

tachadas de irracionais Enquanto isso ldquoalguns cultuam aacutervores rios382 ratos gatos

crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionaisrdquo de modo que todos satildeo iacutempios entre si por

natildeo terem a mesma religiatildeo (I Apol 241) O apologista na verdade aponta aquilo que

considera ser uma incoerecircncia nessa estrutura intercultural

Estaacute evidente que sua anaacutelise eacute dependente da sua loacutegica cristatilde mas Luciano de

Samosata tambeacutem apontava no seacuteculo II dC a ldquoconfusatildeordquo causada pelas diferentes opiniotildees

sobre os Deuses383 Plutarco um pouco antes anotara que a adoraccedilatildeo a diferentes formas de

379 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 151 380 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 p 342 381 Cf MACMULLEN R Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 382 Sextus Empiricus cita a afirmaccedilatildeo de Prodicus de que ldquoos antigos tinham como deus o sol a lua os rios e as primaveras [] assim como os Egiacutepicios deificavam o Nilordquo (Adversus Dogmaticos I18) apud MINNS PARVIS Op cit p 143 383 Juppiter Tragoedus 42

75

animais causava disputas entre seus adoradores384 Juvenal385 tambeacutem menciona que a

contenda se instalava na vizinhanccedila egiacutepcia quando um odiava o deus do outro e sustentava

que somente o seu deus predileto era o deus verdadeiro Essas diferenccedilas poderiam causar

ainda deboches sobre os deuses alheios entre os diferentes povos no Impeacuterio assim como

Clemente de Alexandria diz que os gregos faziam aos deuses e as crenccedilas egiacutepcias386 A

estranheza dos deuses dos outros povos tambeacutem chamou a atenccedilatildeo de Ciacutecero que indagava

Se existem divindades agraves quais adoramos e consideramos como tais por que natildeo Serapis e Isis localizadas no mesmo ranque E se eles satildeo admitidos que razatildeo temos noacutes para rejeitar os deuses dos baacuterbaros Entatildeo noacutes devemos deificar bois cavalos iacutebis gaviotildees viacuteboras crocodilos peixes cachorros lobos gatos e muitas outras bestas Se noacutes vamos de volta agraves fontes destas supersticcedilotildees devemos igualmente condenar todas as divindades das quais eles procedem [] Se vocecircs natildeo deificarem a um bem como o outro o que seraacute de Ino Pois todos esses deuses tem a mesma origem387

Diante desse universo de pensamentos e crenccedilas distintos os romanos tinham o

desafio de conceber formas para garantir a integraccedilatildeo desses grupos Justino acentua que

diante dessa variedade de ideias somente os cristatildeos satildeo perseguidos e vecirc nisso mais uma

evidecircncia de que as accedilotildees anticristatildes satildeo arquitetadas pelos maus democircnios Mas os cristatildeos

natildeo haviam sido os uacutenicos a serem cerceados pelas autoridades romanas

Nos anos 180 aC o culto a Baco despertou suspeitas e passou a ser tratado como uma

ameaccedila agrave ordem Infelizmente as fontes sobre essa questatildeo se resumem a um decreto do

Senado388 regulando o culto e um longo relato de Tito Liacutevio389

Natildeo eacute uma tarefa simples determinar qual foi o epicentro do problema Talvez natildeo se

referisse a uma crise religiosa propriamente dita representando um caso de accedilatildeo policial

contra uma conspiraccedilatildeo Mas o decreto do Senado preservado numa placa de bronze

endereccedilado a uma das cidades aliadas indica uma preocupaccedilatildeo em inviabilizar possiacuteveis

agrupamentos potencialmente conspiratoacuterios Proibia-se aos grupos ter liacutederes ou sacerdotes

masculinos tesouro juramentos ou fieacuteis Ele tambeacutem restringia o tamanho desses

aglomerados e a estrutura de seus membros390 De algum modo a organizaccedilatildeo dos baacutequicos

deve ter ameaccedilado aos romanos tambeacutem por trazer uma nova e perigosa forma de poder

384 De Iside et Osiride 72 385 Saacutetiras XV37-38 386 Protrepticus 2396 387 De natura deorum III19(47) 388 Senatus Consultum de Bacchanalibus In JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961 pp 26-27 389 Histoacuteria de Roma 398-19 390 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 152

76

Os seguidores de Baco no entanto natildeo eram hostis a nenhum deus do Impeacuterio

Tambeacutem natildeo rejeitavam os sacrifiacutecios nem viam os deuses como democircnios e natildeo tinham

nenhum problema com os rituais tradicionais Tito Liacutevio daacute sinais dessa suspeita num

discurso que atribuiu ao cocircnsul Postumio Albino numa contio391 quando falou ao povo da

ameaccedila de um poder rival

A menos que vocecircs se precavejam homens de Roma esta vossa assembleia diurna apropriadamente reunida pelo cocircnsul seraacute rivalizada por sua assembleia noturna Nesse momento eles separadamente temem a vocecircs agora reunidos em assembleia quando vocecircs retornarem agraves suas casas e fazendas eles se reuniratildeo para decidirem sobre sua proacutepria salvaccedilatildeo e a vossa ruiacutena Seraacute quando vocecircs separadamente teratildeo de temecirc-los reunidos (39164)

Segundo a anaacutelise de Clara Gallini os adeptos ao culto eram grupos marginais392 As

bacanais seriam lugares de evasatildeo para a massa de pobres e deserdados com graves

problemas econocircmicos e sociais devido agrave situaccedilatildeo que atravessava Roma A crise social teria

se manifestado em uma forma representativa de protesto religioso por meio dos quais se

buscaram respostas religiosas a problemas da sociedade pretendendo uma liberaccedilatildeo religiosa

Deste modo a repressatildeo dos cultos baacutequicos tambeacutem representaria a repressatildeo de uma

sociedade na qual uns poucos os membros da oligarquia romana decidem impotildeem as regras

e governam a maioria No entanto ainda que os problemas sociais fossem evidentes natildeo eacute

possiacutevel afirmar que atraacutes destes cultos se escondia uma revolta contra as estruturas vigentes

nem ver os rituais baacutequicos como uma espeacutecie de esperanccedila em uma nova liberdade pois

essas interpretaccedilotildees como bem sustentou C Ames393 sofrem de anacronismo

Outros grupos religiosos no periacuteodo posterior a Bacanalia tambeacutem foram objeto de

uma accedilatildeo hostil das autoridades romanas Os caldeus chamados presumivelmente de

astroacutelogos foram expulsos de Roma em 139 aC Depois os seguidores de Iacutesis em vaacuterias

ocasiotildees na Repuacuteblica Tardia e no primeiro principado Tambeacutem os judeus enfrentaram seacuterias

dificuldades com os romanos em certos momentos394

Com a viabilizaccedilatildeo de um maior nuacutemero de viagens e trocas comerciais e culturais no

Impeacuterio Romano o conhecimento das variadas religiotildees deuses e crenccedilas tambeacutem podia

viajar rapidamente E isso significou ter que lidar com atritos decorrentes dessas diferenccedilas

envolvendo inclusive o judaiacutesmo o cristianismo e o maniqueiacutesmo

391 Audiecircncia convocada 392 GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52 393 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 p 344 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 394 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Op cit pp 161 230 231

77

De um modo bem diferente desses monoteiacutesmos de caraacuteter exclusivista entre as outras

crenccedilas como nas religiotildees de misteacuterios os adeptos natildeo rejeitavam ou condenavam outros

deuses Tambeacutem natildeo era necessaacuterio evitar os festivais e rituais da cidade ou a praacutetica do culto

imperial Natildeo havia nada que os pusesse em conflito com as autoridades Ocasionalmente

recebiam o apoio de membros da elite romana

Justino todavia procura mostrar que natildeo havia nenhum motivo para os romanos se

preocuparem com os cristatildeos afinal eles reconheciam que toda autoridade eacute constituiacuteda por

Deus e por isso devia ser respeitada Eacute fazendo jus a certo sentido de transparecircncia que o

apologista julga indispensaacutevel nas relaccedilotildees entre governantes e governados que ele entatildeo se

prontifica em demonstrar as razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo se misturavam com outros

deuses Com confianccedila ele afirma ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo

veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo

colocamos coroas nos sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo395

O fato de os cristatildeos natildeo concordarem com os sacrifiacutecios pagatildeos natildeo faz sentido

isoladamente aos incocircmodos caluacutenias e perseguiccedilotildees sofridos Parece ser razoaacutevel que por ser

um grupo cujas crenccedilas natildeo estavam bem sistematizadas e que se espalhavam pelo Impeacuterio as

caluacutenias oriundas dos atritos culturais podem ter chegado agraves autoridades e despertado

desconfianccedila396 Calumnia era um crime condenado pelas leis romanas desde o I seacuteculo aC e

se exatamente agraves acusaccedilotildees falsas e maliciosas397 As accedilotildees anticristatildes todavia natildeo podem

ser analisadas em termos generalizantes e absolutos pois passam por diversos momentos

Embora os cristatildeos natildeo representem uma ameaccedila poliacutetica na perspectiva de Pliacutenio por

exemplo o fato de natildeo praticarem o culto ao imperador e a separaccedilatildeo das praacuteticas idoacutelatras da

esfera puacuteblica interseciona a questatildeo poliacutetica agrave religiosa

Seria essa uma boa razatildeo para Justino explicar em seu projeto apologeacutetico por que os

cristatildeos natildeo participavam de sacrifiacutecios a outros deuses e natildeo lhes ofereciam culto Seu

argumento eacute diametralmente oposto a ou]j anqrwpoi [esses homens] que oferecem sacrifiacutecios

aos que eles proacuteprios datildeo forma colocam nos templos e chamam de deuses Ele justifica a

crenccedila cristatilde apenas dizendo ldquosabemos que [esses deuses] satildeo coisas sem alma e mortas que

395 I Apol 242 396 Cf VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006 Passim URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932 397 ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 Passim BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 p 238 Cf I Apol 267

78

natildeo tem forma de Deusrdquo398 (I Apol 91) Afirma tambeacutem que os nomes e figuras que os

deuses assumem satildeo arquitetados pelos maus democircnios de modo que coisas corruptiacuteveis que

necessitam de cuidado recebem o nome de Deus Agrega-se ao seu argumento que os artesatildeos

dos deuses satildeo pessoas dissolutas e que eacute uma estupidez fazer guardas para os deuses nos

templos Na sequecircncia o autor introduz a justificativa cristatilde para esse distanciamento de tais

praacuteticas ldquo aprendemos que Deus natildeo tem necessidade de nenhuma oferta material dos

homens pois vemos que eacute ele quem nos concede tudordquo399 (I Apol 93) Em resposta a essa

benevolecircncia divina espera-se a gratidatildeo humana que soacute pode ser atestada atraveacutes do ldquobom

sensordquo [swfrosunhn] da ldquojusticcedilardquo [dikaiosunhn] do ldquoamor aos homensrdquo [filanqrwpian] e

numa expressatildeo pouco clara em ldquotudo que conveacutem a um Deus que natildeo pode ser chamado por

nenhum nome impostordquo400 (I Apol 101) Enquanto para o apologista os deuses pagatildeos satildeo

criados por matildeos humanas o Deus cristatildeo eacute apresentado como aquele que concederaacute a sua

presenccedila aos dignos Assim Justino demonstra estar certo de que os cristatildeos tecircm um

conhecimento superior ao dos que creem em outros deuses a ponto de se satisfazer em dizer

ldquosabemosrdquo ldquoaprendemosrdquo ou ldquocremosrdquo e isso basta

Se por um lado a perspectiva escatoloacutegica cristatilde do ldquoreinordquo natildeo implicava nenhuma

conspiraccedilatildeo poliacutetica contra os romanos seu iacutempeto proselitista causava tanto rumores quanto

um nuacutemero crescente de conversos Eacute por isso que ateacute meados do seacuteculo II quando Justino

escreve as accedilotildees anticristatildes tecircm suas raiacutezes nas relaccedilotildees interculturais travadas no proacuteprio

processo de expansatildeo da mensagem cristatilde Isso significa que os mecanismos de controle

social empregados contra os cristatildeos pelas autoridades imperiais satildeo requeridos mediante os

problemas locais E pode-se dizer que por ser uma religiatildeo emergente outros como Pliacutenio

natildeo sabiam como proceder diante das denuacutencias e caluacutenias contra esse novo grupo

Os cristatildeos formavam um grupo em expansatildeo que estava no Impeacuterio mas viviam de

modo diferente e procuravam evitar a participaccedilatildeo de todo tipo de praacuteticas contraacuterias agraves

prescriccedilotildees doutrinaacuterias cristatildes Natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo

veneravam os deuses nacionais e seu Deus natildeo pertencia a uma naccedilatildeo mas deveria ser

reconhecido como superior a todos os outros401

398 evpei ayuca kai nekra tauta ginwskomen kai qeou morfhn mh econta cf MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 96 399 Ouv deesqai thj para avnqrwpwn ulikhj prosforaj proseilhfamen ton qeon( auvton pareconta panta orwntej ibid p 96 400 o[as oivkeia qew| evsti( tw| mhdeni ovnomati qetw| kaloumenw| MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 401 Cf MACMULLEN Ramsay Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966 Id Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997

79

Justino insere o seu testemunho pessoal

Eu mesmo quando seguia a doutrina de Platatildeo ouvia as caluacutenias contra os cristatildeos Contudo ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que eacute considerado espantoso comecei a refletir que era impossiacutevel que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres Com efeito que homem amante do prazer intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas poderia abraccedilar alegremente a morte que vai privaacute-lo de seus bens402

Prossegue sua queixa ldquobuscando condenar agrave morte alguns cristatildeos fundados nas

caluacutenias contra noacutes arrastaram tambeacutem escravos meninos e mulheres e por meio de incriacuteveis

tormentos os forccedilam a repetir contra noacutes o que o povo inventardquo403 No entanto ele eacute enfaacutetico

contra esse tipo de opiniatildeo sustentada sobre os cristatildeos ldquonada disso nos diz respeitordquo404

Justino tambeacutem nega que os cristatildeos abusariam de homens e se uniriam destemidamente com

as mulheres Seguindo para o desfecho de seu escrito ele faz uma declaraccedilatildeo reveladora ldquoA

verdade eacute que nos fazem guerra de mil modos exatamente porque ensinamos a fugir de

semelhantes doutrinas e daqueles que praticam tais coisas ou imitam tais exemplos como

mesmo nesse discurso que vos dirigimosrdquo405 Tal declaraccedilatildeo de Justino daacute margem para a

reflexatildeo sobre esse processo de ldquonegativizaccedilatildeordquo da figura do ldquooutrordquo que condena as praacuteticas

que ldquoumrdquo pratica Segundo esse pensador os cristatildeos seriam muitas vezes caluniados por

condenarem as praacuteticas dos outros que em retaliaccedilatildeo se esforccedilariam por difamar os

seguidores do nazareno

Por isso tambeacutem parece significativo considerar que os atritos com os cristatildeos natildeo

satildeo decorrentes de uma preocupaccedilatildeo poliacutetica para minar um potencial grupo subversivo Satildeo

destacados alguns aspectos desses atritos que se remetem agraves caluacutenias e maus comentaacuterios

sobre os cristatildeos que desembocam na estigmatizaccedilatildeo desse grupo Eacute preciso lembrar que o

contexto no qual o discurso de Justino estaacute inserido se refere a meados do II seacuteculo quando o

impacto do estilo de vida dos cristatildeos era sentido apenas em niacuteveis locais ainda que em

diversas regiotildees Os cristatildeos jaacute se encontravam pela Siacuteria-Palestina Egito Aacutesia Menor

Peniacutensula Itaacutelica e outras regiotildees mas o nuacutemero de fieacuteis ainda era muito pequeno diante do

tamanho do Impeacuterio Romano406 O desprezo e o combate por parte dos cristatildeos aos deuses

pagatildeos provocavam ocasionalmente reaccedilotildees e mobilizaccedilotildees contra os proacuteprios cristatildeos Por se

tratar de um grupo distinto com praacuteticas pouco conhecidas as caluacutenias se propagaram como

402 II Apol 121-2 403 II Apol 124 404 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 405 II Apol 126 406 GIBBON Edward Number of Christians in the Empire under Diocletioan and Constantine In _____ The History of the Decline and Fall of the Roman Empire ed JB New York Fred de Fau and Co 1906 pp 337 341

80

uma forma de defesa dos pagatildeos A perseguiccedilatildeo de Nero no I seacuteculo havia aberto precedentes

para a condenaccedilatildeo dos cristatildeos mas sua determinaccedilatildeo foi limitada agrave execuccedilatildeo de seu plano de

acobertar as suspeitas de seu envolvimento no incecircndio de Roma Na primeira metade do II

seacuteculo alguns tumultos procuravam condenar os cristatildeos buscando sem um enquadramento

juriacutedico algo que foi condenado por Adriano na Aacutesia Em outros casos como o que relatou

Pliacutenio a Trajano procurava-se por um crime que condenasse os cristatildeos Desse modo as

acusaccedilotildees tais como canibalismo denuacutencia de ateiacutesmo imoralidades e inclusive de

infidelidade ganhavam forccedila Essas caluacutenias somadas ao precedente neroniano fizeram com

que para muitos como Trajano e Urbico o nomen Christianum assumisse um significado

negativo Essa conotaccedilatildeo negativa no entanto natildeo se instalou apenas em funccedilatildeo das caluacutenias

Conforme destacou Paul Veyne407 ldquoas autoridades natildeo acreditavam que os cristatildeos comiam

criancinhas ou praticavam incesto todos os domingos a atitude polecircmica de Celso a respeito

da nova religiatildeo natildeo fazia alusatildeo a essas praacuteticas considerando-as um fato socialrdquo Se para o

povo em geral o oacutedio e o medo pela estranheza dos cristatildeos faziam-lhes repulsivos para as

autoridades a ausecircncia de participaccedilatildeo nas praacuteticas puacuteblicas ou mesmo a contumaacutecia em natildeo

negar a feacute diante do magistrado faziam com que os pedidos de condenaccedilatildeo fossem acatados

Neste momento cabe destacar que entre os tipos de estigmas destacados por Erving

Goffman408 estatildeo os tribais de raccedila naccedilatildeo e religiatildeo considerados suscetiacuteveis de uma

transmissatildeo por heranccedila e decontaminar outros ao redor Nesses estigmas encontram-se os

seguintes traccedilos socioloacutegicos

un individuo que podiacutea haber sido faacutecilmente aceptado en un intercambio social corriente posee un rasgo que pude imponerse por la fuerza a nuestra atencioacuten u que nos lleva a alejarnos de eacutel cuando lo encontramos anulando el llamado que nos hacen sus restantes atributos Posee un estigma una indeseable diferencia que no habiacuteamos previsto

Essa diferenccedila se torna o elemento fundamental para a praacutetica de vaacuterios tipos de

discriminaccedilatildeo Consciente ou inconscientemente se constroacutei uma teoria do estigma uma

ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do perigo que representa essa pessoa

racionalizando agraves vezes uma animosidade que se baseia em outras diferenccedilas

Goffman409 natildeo deixa de contemplar em sua anaacutelise a possibilidade de sujeitos

estigmatizados permanecerem ilhados protegidos por suas crenccedilas proacuteprias sobre sua

identidade mas ao mesmo tempo em constante contato com os outros Nesse sentido os 407 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 408 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 16 Tr A ldquoum indiviacuteduo que podia ter sido facilmente aceito num intercacircmbio social corrente possui um traccedilo que pode impor-se agrave forccedila a nossa atenccedilatildeo e que nos leva a nos afastarmos dele quando o encontramos anulando a chamada que nos fazem seus ouros atributos Possui um estigma uma indesejaacutevel diferenccedila que natildeo haviacuteamos previstordquo 409 Ibid p 17

81

seguidores da Igreja dos disciacutepulos de Jesus de Nazareacute podiam refugiar-se em suas crenccedilas

proacuteprias a saber seu proacuteprio modo de se autodefinir como ldquocristatildeosrdquo Enquanto o termo

ldquocristatildeordquo eacute capaz de referir-se a algueacutem de uma superstitio ilicita que abusa das crianccedilas que

se une promiscuamente com homens e mulheres que acredita em lendas de um deus

encarnado e nascido de uma virgem cujos fieacuteis se reuacutenem para comer sua carne em reuniotildees

secretas e assim se torna estigma de algueacutem despreziacutevel por outro lado ganha outro

significado para os seguidores do Cristo

Os atritos entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos poderiam surgir em decorrecircncia do exerciacutecio da

anunciaccedilatildeo da mensagem cristatilde ou devido ao apelo agrave mudanccedila de conduta e implementaccedilatildeo

de novos haacutebitos O caso mais emblemaacutetico apontado por Justino eacute o que aparece na II

Apologia

Certa mulher vivia com o seu marido homem dissoluto e antes de se tornar cristatilde se entregara agrave vida licenciosa Todavia logo que conheceu os ensinamentos de Cristo natildeo soacute se tornou casta como procurava tambeacutem persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme a reta razatildeo Ele poreacutem obstinado na dissoluccedilatildeo com a sua conduta desanimou a sua mulher [] Depois disso para natildeo se tornar cuacutemplice de tais iniquidades e impiedades permanecendo no matrimocircnio e partilhando o leito e a mesa com tal homem ela [] separou-se [] Despeitado [] [] a acusou diante dos tribunais dizendo que ela era cristatilde [] natildeo podendo na ocasiatildeo fazer nada contra a mulher voltou-se contra Ptolomeu que Urbico chamara ao seu tribunal por ter sido mestre dela nos ensinamentos de Cristordquo410

A uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se era cristatildeo Apoacutes

confessar foi condenado ao supliacutecio Justino ainda conta que certo Luacutecio advertiu a Urbico e

do mesmo modo foi conduzido ao supliacutecio Um terceiro sobreveio mas tambeacutem foi

condenado agrave morte411

Se fosse um caso isolado esse episoacutedio jamais poderia servir como pista para

fundamentar a hipoacutetese de que significativamente os atritos com os cristatildeos podem surgir

tambeacutem devido agrave condenaccedilatildeo das praacuteticas dos natildeo-cristatildeos Mas outras evidecircncias se

mostram Os Evangelhos do Novo Testamento (Mt 1413-12 Mc 614-28 Lc 318-20 97-9)

afirmam que Joatildeo Batista foi para a prisatildeo por repreender ao rei Herodes que vivia com

Herodiacuteades a mulher de seu irmatildeo e por outros crimes cometidos pelo governante Flaacutevio

Josefo escreveu que Herodes temeu que o povo fosse influenciado para uma sublevaccedilatildeo e por

isso encaminhou Joatildeo Batista para o caacutercere412 Embora pareccedilam discrepantes pode haver

alguma convergecircncia nas duas versotildees O ldquoprofetardquo Joatildeo Batista devia fazer repreensotildees

410 II Apol 2 411 II Apol 216-20 412 Ant Jud II 52

82

puacuteblicas condenando os haacutebitos do rei Herodes e a sua uniatildeo com Herodiacuteades o que poderia

despertar alguma inseguranccedila quanto agrave reaccedilatildeo do povo

Outras ocorrecircncias podem ser identificadas Quando Paulo repreendeu um espiacuterito de

adivinhaccedilatildeo de uma jovem escrava quando estava em Filipos na Macedocircnia os patrotildees da

moccedila se irritaram pois exploravam aquela habilidade da jovem para lucrar Por isso levaram

Paulo e seu companheiro Silas aos magistrados e disseram ldquoEsses homens estatildeo provocando

desordem em nossa cidade satildeo judeus e pregam costumes que a noacutes romanos natildeo eacute

permitido aceitar nem seguirrdquo A multidatildeo se levantou contra Paulo e Silas e depois disso

foram accediloitados e presos sem julgamento formal 413 Em Eacutefeso os artesatildeos teriam visto na

doutrina de Paulo mais do que uma ofensa agrave religiatildeo uma ameaccedila a seus negoacutecios Conta-se

que um ourives chamado Demeacutetrio que fabricava miniaturas em prata no templo de Diana

reuniu alguns artesatildeos e outros profissionais do ramo e disse-lhes

Amigos sabeis que o nosso bem-estar proveacutem dessa nossa atividade [] esse tal de Paulo com sua propaganda desencaminha muita gente natildeo soacute em Eacutefeso mas em quase toda a Aacutesia Ele afirma que natildeo satildeo deuses os produtos de matildeos humanas Natildeo eacute soacute a nossa profissatildeo que corre o risco de cair em descreacutedito mas tambeacutem o templo da grande deusa Diana acabaraacute sendo desacreditado e assim ficaraacute despojada de majestade aquela que toda a Aacutesia e o mundo inteiro adoram414

Segundo o livro de Atos dos Apoacutestolos esses homens furiosos arrastaram os

companheiros de Paulo para o teatro da cidade O tumulto se espalhou

Esses tipos de atritos envolviam o encobrimento de uma praacutetica moralmente

condenada pelos seguidores da Igreja e manifestavam a defesa dos interesses pessoais ou de

determinados grupos que sofreriam com as possiacuteveis mudanccedilas nos costumes e tradiccedilotildees

Neste uacuteltimo caso aparece algo distinto a menccedilatildeo da representaccedilatildeo de uma divindade para

uma determinada regiatildeo Diana para a Aacutesia especialmente

Yi-Fu Tuan415 aponta que nas religiotildees que vinculam o povo a um lugar os deuses

parecem estimular nos seus fieacuteis um forte sentido do passado de linhagem e continuidade no

lugar O culto aos ancestrais eacute o fundamento de tal praacutetica religiosa Atraveacutes deste sentido

histoacuterico de continuidade busca-se algum tipo de ldquoseguranccedilardquo Entre o I e II seacuteculos dC

deuses romanos e gregos satildeo conhecidos por povos de culturas diferentes mas nenhum deles

exige exclusividade O Deus dos judeus figura nesse cenaacuterio de deuses e homens e agraves vezes

se confunde com deus nenhum Os seguidores de Cristo propagadores desse mesmo Deus

mediante a crenccedila no seu messias paradoxalmente tambeacutem satildeo tachados de ateus algumas

vezes Poreacutem enquanto os ldquooutrosrdquo natildeo veem o Deus cristatildeo os cristatildeos natildeo veem outro deus

413 At 1617-40 414 At 1923-27 415 Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983 p 168

83

aleacutem do seu proacuteprio Desse modo a negaccedilatildeo dos deuses alheios pode ser interpretada por

muitos como profunda agressatildeo agraves crenccedilas que por um periacuteodo indeterminado serviram para

explicar e inspirar a vida das pessoas que nasceram cresceram e morreram em determinado

local

A estigmatizaccedilatildeo dos ldquocristatildeosrdquo eacute portanto em grande medida uma reaccedilatildeo das

pessoas que satildeo alvo dos cristatildeos no exerciacutecio de sua feacute Pois esses cristatildeos ndash dos quais

Justino eacute um ndash manifestam o repuacutedio a tudo aquilo que se associa a uma moral que lhes seja

estranha e que se vincule agrave veneraccedilatildeo de outros deuses que natildeo sejam o Deus do seu Cristo

Diante das reaccedilotildees adversas que lhes satildeo imputadas sob a forma de duras penas e

condenaccedilotildees Justino teologiza o seu estigma Isso natildeo eacute uma invenccedilatildeo sua Talvez lhe caiba o

meacuterito de tecirc-lo feito habilidosamente poreacutem haacute indiacutecios desse procedimento anos antes de

seus escritos

Na I Epiacutestola de Pedro (413-1416) o autor frisa a gloacuteria do sofrimento dos cristatildeos

nas perseguiccedilotildees

alegrai-vos por participar dos sofrimentos de Cristo para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua gloacuteria Se sofreis injuacuterias por causa do nome de Cristo sois felizes pois o Espiacuterito da gloacuteria o Espiacuterito de Deus repousa sobre voacutes [] Se poreacutem algueacutem sofrer por ser cristatildeo natildeo se envergonhe Antes glorifique a Deus por este nome

Antes ainda eacute Paulo quem permitiraacute um trocadilho didaacutetico para que melhor se

compreenda essa formulaccedilatildeo teoloacutegica por traacutes do sofrimento dos fieacuteis da Igreja Ao finalizar

sua Epiacutestola aos Gaacutelatas (617) escreve ldquo eu trago em meu corpo as marcas [stigmata] de

Cristordquo416 Como o proacuteprio Goffman observou para os gregos estigma significava

basicamente algum tipo de signo ou marca na pele417 Paulo evidentemente se refere aos sinais

do sofrimento enfrentado devido agraves perseguiccedilotildees sofridas no exerciacutecio do seu apostolado Natildeo

existe nenhuma ligaccedilatildeo entre essa passagem e o discurso de Justino O que eacute preciso notar

atentamente eacute que assim como Paulo transforma seus estigmas em seu testemunho na

perspectiva de Justino a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute representada como ldquoas marcasrdquo de sua

identidade que se pretende afirmar Essa identidade por ele afirmada eacute distinta dos devaneios

caluniosos que lhes satildeo associados pelos seus opositores Ser cristatildeo para Justino eacute a razatildeo de

natildeo serem perseguidos e ao mesmo tempo o motivo pelo qual satildeo perseguidos A

416 Versatildeo grega evgw gar ta stigmata tou Kuriou VIhsou evn tw| swmati mou bastazw ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) [Bible Work 5 Software 2002] 417 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 11 Para maiores informaccedilotildees sobre o significado do termo estigma cf LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940

84

perseguiccedilatildeo seraacute interpretada como uma reaccedilatildeo dos ldquomaus democircniosrdquo contra os ldquoverdadeiros

cristatildeosrdquo como seraacute examinado no proacuteximo capiacutetulo

Seus acusadores estariam movidos por paixatildeo irracional e ldquoaguilhoados por democircnios

perversosrdquo418 por isso natildeo conseguiam enxergar a verdade anunciada por esses cristatildeos

Mesmo tendo grande responsabilidade na ocultaccedilatildeo dessa verdade os democircnios natildeo satildeo os

uacutenicos culpados Escreve Justino a respeito dos judeus

As outras naccedilotildees natildeo tecircm tanta culpa da iniquidade que se comete contra noacutes e contra Cristo como voacutes que sois causa do preconceito injusto que elas tecircm contra ele e contra noacutes que viemos dele [] escolhestes homens especiais de Jerusaleacutem e os mandastes por todo o mundo a fim de espalhar que havia aparecido uma iacutempia seita de cristatildeos e espalharam caluacutenias que todos aqueles que natildeo vos conhecem repetem contra noacutes419

Os judeus tecircm uma parcela de responsabilidade pelos preconceitos e caluacutenias herdados

pelos gentios Em vaacuterios episoacutedios no livro dos Atos dos Apoacutestolos haacute a mesma disposiccedilatildeo

cristatilde para atribuir aos judeus a culpa pelas delaccedilotildees agraves autoridades romanas para reclamar

dos cristatildeos No entanto eacute pouco provaacutevel que o apologista assim sintetize a causa das

caluacutenias e puniccedilotildees contra os cristatildeos Mas haacute uma disposiccedilatildeo por parte do apologista em

afastar os cristatildeos dos judeus Semelhantemente Justino tambeacutem natildeo demonstra nenhuma

simpatia por aqueles que ele chama de ldquocristatildeos soacute de nomerdquo

Sobre esses que natildeo viviam como Cristo teria ensinado o filoacutesofo orienta que ldquosejam

declarados como natildeo-cristatildeosrdquo420 por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de

Cristo Para os pagatildeos provavelmente natildeo haveria distinccedilatildeo entre esses grupos Justino

poreacutem chama a atenccedilatildeo para o fato de que esses satildeo denominados segundo o nome de quem

promoveu cada doutrina especiacutefica Eram eles os marcionistas valentinianos basilidianos

saturnilianos e com outros nomes421

Um dos argumentos de que a accedilatildeo dos ldquodemocircnios perversosrdquo move seus opositores

contra os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo eacute que os cristatildeos dessas outras ldquoheresiasrdquo natildeo satildeo perseguidos

pelas autoridades422 Quanto a esses ldquooutrosrdquo pelos quais o apologista natildeo demonstra

nenhuma simpatia sua recomendaccedilatildeo eacute que sejam punidos423

Os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo segundo Justino satildeo aqueles que estatildeo prontos a confessar

que satildeo cristatildeos a ponto de padecerem Desse modo recorrendo ao trocadilho didaacutetico

desenvolvido a partir da fala paulina esses homens de feacute colocam-se agrave disposiccedilatildeo para

418 I Apol 51ss 419 Diaacutelogo com Trifatildeo 171 420 I Apol 168 421 Diaacutelogo com Trifatildeo 355-6 422 I Apol 267 423 I Apol 1614

85

receber os ldquoestigmas de Cristordquo a saber as marcas das perseguiccedilotildees sobre seus corpos em

razatildeo de suas crenccedilas Satildeo persuadidos a crer que a verdadeira recompensa seraacute atribuiacuteda para

a vida eterna que em muito excede ao sofrimento transitoacuterio desse mundo Cabe-lhes

anunciar e testemunhar a feacute a todos mesmo sob a insiacutegnia das tribulaccedilotildees Por isso Justino

declara

Decapitam-nos pregam-nos em cruzes atiram-nos agraves feras agrave prisatildeo ao fogo e nos submetem a todo tipo de torturas Todavia estaacute agrave vista de todos que natildeo apostatamos de nossa feacute Ao contraacuterio quanto maiores satildeo os nossos sofrimentos mais ainda se multiplicam os que abraccedilam a feacute e a piedade pelo nome de Jesus424

Essa missatildeo cristatilde implica tambeacutem em buscar convencer aos seus opositores de que

os ldquocristatildeosrdquo natildeo deviam ser perseguidos simplesmente por denominarem-se ldquocristatildeosrdquo

33 Sobre as leis e imoralidades

Justino faz saber que a confissatildeo de cristianismo diante de um magistrado acarretava a

pena de morte425 Isto eacute ser ldquocristatildeordquo poderia implicar na condenaccedilatildeo agrave pena de morte426

Uma das interrogaccedilotildees centrais desses escritos de Justino eacute sobre o fato de os cristatildeos

serem condenados por confessarem esse nome Seria um absurdo pensar que os romanos

condenariam os membros dessa superstitio simplesmente por sustentarem um nome e eacute

justamente esse absurdo que o apologista busca destacar para ridicularizar o procedimento dos

magistrados Na verdade os acusados de cristianismo natildeo eram condenados apenas pelo

ldquonomerdquo mas sim pelo que ele representava uma superstitio nova maleacutefica depravada e

excessiva que envolvia os cristatildeos em flagitia que sustentava certo desprezo pela religiatildeo

tradicional Mas pelo fato de natildeo haver uma lei universal para este caso os governantes

tinham liberdade para julgar as ocorrecircncias de modo particular As recomendaccedilotildees de Trajano

e Adriano ao dispensarem a busca pelos cristatildeos limitaram os processos a apenas denuacutencias

formais A nova religiatildeo ainda natildeo se mostrava um problema seacuterio para o Impeacuterio Eacute provaacutevel

que essas medidas visem solucionar os atritos e inibir os conflitos locais ocasionados pelas

diferenccedilas religiosas O caraacuteter flexiacutevel do processo que permitia que o acusado mudasse de

ideia quanto a sua religiatildeo no meio do processo e recebesse a absolviccedilatildeo eacute o elemento

fundamental para se argumentar que os cristatildeos eram condenados pelo ldquonomerdquo

424 Dialogo com Trifatildeo 110 4 425 I Apol 81-2 No I111 lecirc-se ldquoconfessamos ser cristatildeos sabendo como sabemos que tal confissatildeo traz consigo a pena de morterdquo 426 ldquo e nos tiram a vida sem termos cometido crime algumrdquo (I241) Mas o consolo dos fieacuteis estaacute na feacute ldquo aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis fazerrdquo (I456)

86

Justino deseja que os romanos compreendam a maneira de pensar dos cristatildeos e que se

desvencilhem da ideia negativa sobre os fieacuteis Desse modo depois da exposiccedilatildeo da sua I

Apologia ele escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da verdade

respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees despreze-as Natildeo

decreteis poreacutem pena de morte como contra inimigos contra aqueles que nenhum crime

cometemrdquo427

Como jaacute foi mencionado no Capiacutetulo II dessa dissertaccedilatildeo Justino procura alinhar sua

Apologia ao rescrito de Adriano o qual ele interpreta convertendo-o sutilmente a favor dos

cristatildeos

Noacutes vos pedimos portanto que sejam examinadas accedilotildees de todos os que vos satildeo denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo ter cometido nenhum crime428

Mesmo assim o apologista sustenta que sua reclamaccedilatildeo natildeo estaacute fundamentada no rescrito de

Adriano mas em um senso de justiccedila que permeia sua peticcedilatildeo429

Sua interpretaccedilatildeo considera que mediante as obras dos democircnios perversos os cristatildeos

satildeo buscados e condenados agrave morte devido a caluacutenias O apologista aponta atentados contra

escravos meninos e mulheres obrigando-os a confessarem coisas falsas430 Segundo sua

leitura teoloacutegica desses eventos os cristatildeos eram acusados de tais praacuteticas justamente porque

as condenavam e assim fazendo incomodam aqueles que procediam dissolutamente431

Tendo em vista que a razatildeo para que as autoridades acatassem as denuacutencias dirigidas

contra os cristatildeos estava no fato de que esta superstitio era uma ameaccedila agrave ordem em funccedilatildeo da

sua expectativa sobre o ldquoreino de Deusrdquo Justino inclui no seu projeto apologeacutetico uma

explanaccedilatildeo sobre a contribuiccedilatildeo cristatilde ao estabelecimento da paz no Impeacuterio Natildeo se podia

esperar que uma religiatildeo estrangeira principalmente oriunda de uma naccedilatildeo problemaacutetica

como a dos judeus pudesse representar algum benefiacutecio A sua proacutepria indefiniccedilatildeo enquanto

religiatildeo dificultaria essa possibilidade e o seu caraacuteter exclusivista acentuaria os atritos sociais

Mas o pensador de Flaacutevia Neaacutepolis eacute direto em dizer

Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo e salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que

427 I651 428 I74 429 ldquo natildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo (I683) 430 II124 431 II12

87

caminharia para a sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos e se adornaria de virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos432

A proposta de Justino apresenta o valor das crenccedilas cristatildes O desenvolvimento da sua

teoria seraacute analisado com mais detalhes no proacuteximo capiacutetulo Neste momento analisar-se-aacute a

reprovaccedilatildeo da moralidade dos natildeo-cristatildeos Segundo Paul Veyne433 no mundo greco-romano

ldquomoral e religiatildeo estavam parcialmente ligadas porque se pedia aos deuses que protegessem

os bons e castigassem os maus Deuses e homens julgavam da mesma maneira os bons e

maus pois compartilhavam da mesma moralrdquo Para os deuses a moral dos mortais tambeacutem

natildeo interessava A opiniatildeo humana sobre os deuses tambeacutem variava desde a atribuiccedilatildeo de

virtudes ateacute a laacutestima por serem egoiacutestas e mercenaacuterios Natildeo era possiacutevel pensar nos deuses

como senhores vigilantes da justiccedila No entanto os deuses poderiam vingar as injusticcedilas434

Natildeo se deve pensar que a religiatildeo de gregos e romanos era estaacutetica Satildeo identificadas

transformaccedilotildees durante os seacuteculos A filosofia as mudanccedilas culturais e a paideia

relacionaram a divindade ao sumo bem e acentuou os contornos entre a religiosidade das

pessoas comuns e agrave dos membros das classes elevadas e dos letrados435

Varratildeo436 atribuiu trecircs concepccedilotildees para os deuses os deuses das cidades os deuses

vistos pelos filoacutesofos e os deuses das narrativas dos poetas Segundo Paul Veyne437

inspirados por Euriacutepides os estoicos estavam convencidos de que os deuses natildeo podiam se

portar mal Os deuses dos filoacutesofos se afastavam das narrativas mitoloacutegicas anteriores para

assumirem agraves vezes o aacutepice da virtude Para Platatildeo os deuses eram a medida de todas as

coisas e natildeo seria conveniente receberem oferendas de pessoas desonradas438 A relaccedilatildeo entre

moral e religiatildeo passou por transformaccedilatildeo mas essa mudanccedila ficou restrita a alguns ciacuterculos

sociais Para alguns criacuteticos e pensadores o temor religioso seria uacutetil para a contensatildeo

humana Mas essa natildeo era uma opiniatildeo comum Isoacutecrates (viveu de 436 a 338 aC) escreveu

que ldquoaqueles que creem que os favores dos deuses e suas puniccedilotildees satildeo maiores do que

realmente satildeo prestam um grande serviccedilo agrave sociedaderdquo439 Mais tarde Poliacutebio (viveu entre 203

aC ndash 120 aC) ao comparar os romanos aos gregos tambeacutem destacou o valor das crenccedilas

religiosas romanas no estabelecimento da ordem

432 I121-3 433 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 220 434 Ibid p 239 435 BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 pp 305-332 436 Apud Agostinho de Hipona Cidade de Deus IV311 Plutarco se referia a trecircs visotildees sobre os deuses a dos filoacutesofos poetas e legisladores (Amatorius XVIII10765c) 437 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 256 438 Leis IV716c717 439 Busires 1124

88

muitos poderiam pensar que isso eacute irresponsaacutevel mas [] seu objetivo eacute usar isso como forma de controle sobre as pessoas comuns Se era possiacutevel formar um Estado inteiro de filoacutesofos isso seria no entanto desnecessaacuterio Mas vendo que as multidotildees satildeo inconstantes cheios de desejos desregrados iras irracionais e paixatildeo violenta o uacutenico recurso eacute mantecirc-los sob controle pelo terror misterioso e efeitos cecircnicos desse tipo440

Ainda nesse sentido ele afirma que tambeacutem natildeo era sem sentido que os antigos

promoviam entre as pessoas simples diversas opiniotildees sobre os deuses e a crenccedila no Hades

Tendo em vista essa importante funccedilatildeo da religiatildeo na manutenccedilatildeo da ordem Poliacutebio pensa

que aqueles que em seu tempo abriam matildeo da religiatildeo agiram de forma precipitada e

insensata Assim ele destaca

Esta eacute a razatildeo por que aleacutem de tudo se aos estadistas gregos eacute confiada uma uacutenica moeda embora protegidos por dez funcionaacuterios de vigilacircncia muitos selos e o dobro de testemunhas jaacute natildeo podem ser induzidos a manter a feacute enquanto entre os romanos em suas magistraturas e embaixadas homens tecircm cuidado de grandes quantias de dinheiro e ainda por puro respeito a seus juramentos manteacutem a feacute intacta E em outras naccedilotildees eacute raro encontrar um homem que meta suas matildeos fora do eraacuterio puacuteblico e eacute inteiramente puro em tais assuntos Mas entre os romanos eacute raro encontrar um homem cometendo tal crime441

A necessidade de uma sociedade ter mecanismos para estabelecer a ldquoconfianccedilardquo ou a

ldquoboa feacuterdquo entre as relaccedilotildees humanas eacute sublinhada diante dos efeitos dos questionamentos

cultivados pela filosofia e do proacuteprio ideal poliacutetico-filosoacutefico que poderia diminuir o valor da

religiatildeo

No seacuteculo II dC eacute Justino quem olha as mais distintas crenccedilas do Impeacuterio com um

tom de superioridade proporcionada pela sua proacutepria religiatildeo Mas haacute um espaccedilo de

aproximadamente trecircs seacuteculos entre Poliacutebio por exemplo e Justino No II seacuteculo dC a

filosofia jaacute havia se tornado um elemento essencial da cultura romana e o fluxo das suas

interrogaccedilotildees e das suas performances puacuteblicas acarretavam algumas transformaccedilotildees de

caraacuteter ideoloacutegico na sociedade Como escreveu Paul Veyne

o povo nunca deixou de crer e rezar Mas em que um romano culto mdash um Ciacutecero um Horaacutecio um imperador um senador um notaacutevel mdash podia crer dentro dessa fantasmagoria dos deuses ancestrais A resposta eacute categoacuterica natildeo podia crer em nada leu Platatildeo e Aristoacuteteles que quatro seacuteculos antes tampouco acreditavam Virgiacutelio alma religiosa acredita na Providecircncia mas natildeo nos deuses de seus proacuteprios poemas mdash Vecircnus Juno ou Apolo442

Justino mostra algumas razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo compactuavam com os

demais deuses e com a religiatildeo tradicional romana e ainda aponta aquilo que considera ser o

caraacuteter racional da verdadeira filosofia isto eacute da religiatildeo cristatilde Por isso ele escreve ldquoas

440 Historias VI5614 441 Ibid 442 Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197

89

nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo443 Poreacutem

como ele proacuteprio diz ldquonos condenam sem saber se praticamos as coisas vergonhosas de que

nos acusam comprazem-se com deuses que as fizeram e ainda exigem dos homens coisas

semelhantesrdquo444 Desse modo o apologista destaca a incoerecircncia em se pensar que os povos

seriam contidos por temor a deuses tatildeo imoderados quanto os proacuteprios homens em suas

paixotildees Por outro lado tambeacutem o temor ao Imperador ou a fidelidade demonstrada por

meio do culto imperial satildeo apontados como algo que representa uma forma superficial de

controle pois como Justino escreve ldquoaqueles que agora por medo das leis e dos castigos por

voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los [] sabem que sois homens e

que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutesrdquo445 Esse ldquomedordquo das leis era um temor ao que eacute

humano Desse modo Justino sublinha que a ausecircncia de mecanismo superior de controle

como a absorccedilatildeo da crenccedila em um Deus onisciente como o Deus dos cristatildeos favorecia a

desobediecircncia agraves leis

O apologista apresenta um mecanismo de controle que julga ser muito mais eficiente

ldquose se inteirassem e se persuadissem de que natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma

accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os

modos como voacutes mesmos haveis de convirrdquo Por essa razatildeo ele considera que a expansatildeo do

cristianismo contribuiria para que as pessoas agissem de modo moderado e respeitoso de

acordo com a moral cultivada na comunidade e ainda em atentar fidelidade ao Impeacuterio

Esse ldquotemorrdquo religioso proveniente de uma crenccedila distinta da religiatildeo tradicional se

enquadra no que os romanos chamavam de superstitio As superstitiones e os cultos locais

eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob atenccedilatildeo com destacam Mary Beard John North e

Simon Price446 as controveacutersias poderiam desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade

romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito em 172 a 173 aC447 na incursatildeo da Traacutecia que

foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que conseguiu seguidores448 entre os druidas da

Gaacutelia profecias indicavam que o incecircndio de Roma era o sinal do fim do domiacutenio romano

sobre aquela regiatildeo fazendo com que uma revolta nas fronteiras do Reno fosse animada por

essas profecias449 e as revoltas judaicas contemporacircneas a Justino satildeo outro exemplo

443 II153 444 II142 445 I123 446 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 447 Cassius Dio Hist Rom LXXII4 448 Ibid LI255 LIV345-7 449 Taacutecito Historias IV546165 V2224

90

Todavia o apologista procura convencer de que os cristatildeos natildeo suportavam nenhum tipo de

ameaccedila agrave sociedade sob o domiacutenio romano

Sua estrateacutegia apologeacutetica portanto natildeo pode negar que as crenccedilas cristatildes reprovavam

uma seacuterie de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais caracterizam um

quadro da organizaccedilatildeo social No entanto essa nova religiatildeo deveria ser encarada como uma

dessemelhanccedila absoluta Vaacuterios pontos de contato entre a cultura pagatilde e a doutrina dos

cristatildeos satildeo estabelecidos para convencer sobre esse aspecto450 Os deuses e a religiatildeo pagatilde

deveriam ser rejeitados por serem incoerentes com a moralidade segundo as narrativas

antigas A feacute cristatilde eacute apresentada como um mecanismo eficaz de controle e de organizaccedilatildeo

social que exige uma mudanccedila subjetiva antes de um reflexo socialmente objetivo Por isso

segundo seu ponto de vista a condenaccedilatildeo dos cristatildeos acatada pelos governantes locais eacute uma

forma equivocada de manter a ordem Em grande medida essa forma de controle que emerge

dos clamores reativos populares estaria impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do

nomen Christianum sem conhecerem de fato a forma de pensar dos cristatildeos Por isso Justino

procura afirmar que os cristatildeos satildeo os melhores auxiliadores na manutenccedilatildeo da paz no

Impeacuterio

450 Esse ponto seraacute analisado no proacuteximo capiacutetulo

91

CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM SOCIAL

Justino combate agrave forma de controle que recrimina os cristatildeos e que segundo seu

ponto de vista tem fundamento nas accedilotildees dos democircnios Eacute dentro do seu objetivo apologeacutetico

que emerge sua tese da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem no Impeacuterio Eacute a

primeira vez que a religiatildeo emergente dos cristatildeos aparece assumidamente como um

instrumento a favor do Impeacuterio Natildeo havia nenhuma razatildeo para esse tipo de preocupaccedilatildeo por

parte dos cristatildeos A tese da contribuiccedilatildeo cristatilde agrave manutenccedilatildeo da ordem vem em oposiccedilatildeo agrave

ideia de que os cristatildeos seriam uma ameaccedila social Todavia eacute permitido supor que diante da

mira dos ldquoperseguidoresrdquo locais nesse periacuteodo natildeo era uacutetil jurar fidelidade ao Impeacuterio

As caluacutenias e a proacutepria inclinaccedilatildeo a repudiar as superstitones estrangeiras faziam com

que os cristatildeos fossem reprimidos em diferentes niacuteveis pelos pagatildeos do Impeacuterio Justino

apresenta uma forma de controle cristatilde que julga ser mais eficiente do que aquelas pagatildes

empregadas contra os proacuteprios cristatildeos A base de tal eficiecircncia estaacute no caraacuteter de sua

doutrina que quando absorvida deveria conduzir os crentes a uma conduta pautada por regras

morais que estabelecem precircmio ou castigo eterno a todos depois da morte de acordo com seu

meacuterito em vida A doutrina cristatilde eacute uma incentivadora da moral

Ao recorrer ao imperador o apologista natildeo apenas reafirma a fidelidade dos cristatildeos

mas expotildee o caraacuteter de sua doutrina e procura ser o mais convincente possiacutevel sobre a

razoabilidade de suas crenccedilas

41 O controle absoluto do controlador absoluto

Em primeiro lugar Justino sustenta que os cristatildeos satildeo os ldquomelhores ajudantes e

aliados para a manutenccedilatildeo da pazrdquo devido ao caraacuteter das suas doutrinas como a de que ldquonatildeo

eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que

cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildeesrdquo (I Apol

121) Segundo essa perspectiva a crenccedila em um Deus onisciente seria capaz de induzir os

que a deteacutem a se comedirem Nesse sentido ele destaca ldquoningueacutem escolheria por um

momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se

92

conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e

livrar-se dos castigosrdquo (I Apol 122) Esse mecanismo de controle apresenta uma estrutura

limitadora das accedilotildees humanas que eacute dependente do conhecimento das normas que determinam

a recompensa e o castigo O traccedilo marcante desse mecanismo eacute que existe um vigilante

constante de quem natildeo se pode esconder absolutamente nada nem mesmo as intenccedilotildees

Haacute certa dependecircncia do sentimento de temor pessoal diante da ideia de vigilacircncia

constante pelos olhos infaliacuteveis de um ser superior que julgaraacute com rigor as accedilotildees humanas de

uma vez por todas num momento aguardado mas desconhecido Todavia para que ele

funcione eacute preciso que exista um miacutenimo de plausibilidade nas ideias que sustentam o

controle absoluto de Deus Ou seja ningueacutem temeria algo que natildeo fizesse o miacutenimo sentido

Aqueles que combatiam os cristatildeos natildeo se intimidavam diante do Deus cristatildeo e em alguns

casos acreditavam estar sendo piedosos combatendo as crenccedilas descabidas desse novo grupo

Atentando para essas circunstacircncias Justino se empenha em mostrar correlaccedilotildees entre

elementos do pensamento cristatildeo e outros comuns agraves culturas no Impeacuterio

A ameaccedila do castigo no poacutes-morte eacute fundamental na estrutura da doutrina da justiccedila

divina Por isso para que sua estrateacutegia de persuasatildeo funcione ele se empenha em demonstrar

ldquoas evidecircnciasrdquo da vida eterna ou do poacutes-morte O apologista admite que ldquose a morte

terminasse na inconsciecircncia seria uma boa sorte para todos os malvadosrdquo (I181) uma

reflexatildeo comum tambeacutem a Plutarco (Consolatio ad Apollonium 11107c) Todavia Justino

manteacutem que a consciecircncia permanece e que a conduta humana eacute passiacutevel de puniccedilatildeo ou

precircmio em um momento aleacutem da vida451 Sua linha de pensamento sobre esse assunto

representa apenas uma das correntes de pensamento que emergiam entre os cristatildeos no seacuteculo

II452

Para minimizar qualquer exotismo no reconhecimento dessa doutrina cristatilde ele

menciona a necromancia453 as visotildees obtidas atraveacutes de crianccedilas puras454 os que satildeo

451 Como Platatildeo discorrendo sobre a vida apoacutes a morte em Phaedo 107c 452 Cf POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005 passim 453 Justino usa o termo nekuomanteiaj que deve ser entendido como ldquoconsulta aos mortosrdquo cf I183 454 Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p178) editou essa passagem da seguinte forma ai` avdiafqorwn paidwn evpopteuseij [les divinations faites sur les entrailles drsquoenfants innocents] Seu texto grego foi fiel ao MS A que sugere o termo avdiafqorwn no lugar de diafqorwn mas a versatildeo em francecircs se distanciou muito do significado estrito Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 59) observou a nota marginal do MS A e acrescentou tambeacutem a conjunccedilatildeo div proporcionando a seguinte frase ai` div avdiafqorwn paidwn evpopteuseij Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 123) apresentam uma correccedilatildeo que parece ser a mais convincente Em vez de substituir diafqorwn por avdiafqorwn eles simplesmente dividem a palavra que aparece no MS A em duas div avfqorwn paidwn evpopteuseij [visions obtained through uncorrupted children] Natildeo eacute possiacutevel dizer se se trata de uma

93

chamados entre os magos de espiacuteritos dos sonhos e espiacuteritos assistentes para assim tentar

estabelecer que mesmo depois da morte as almas conservam a consciecircncia Os casos de

possessatildeo ou loucura quando segundo sua concepccedilatildeo sobre o que se pensava naquela eacutepoca

alguns eram ldquoarrebatados e agitados pelas almas dos mortosrdquo tambeacutem satildeo alocados ao lado

dos oraacuteculos de Anfiloco de Dodona de Piton e outros semelhantes A descida de Ulisses ateacute

a regiatildeo dos mortos na obra de Homero (Odisseia10101 ndash 111ss) as doutrinas de escritores

como Empeacutedocles e Pitaacutegoras Platatildeo e outros que disseram coisas parecidas tambeacutem satildeo

destacadas

A ideia de uma consciecircncia apoacutes a morte fiacutesica natildeo era algo estranho no mundo greco-

romano da eacutepoca de Justino Mas o apologista apresenta uma elaboraccedilatildeo teoloacutegica sobre o

ldquocastigo ou salvaccedilatildeo eternardquo que deveria desempenhar uma funccedilatildeo coercitiva sobre as pessoas

em geral Essas ideias cristatildes satildeo herdeiras de elementos do pensamento judaico jaacute sob a

influecircncia do helenismo Desse modo satildeo encontrados aspectos comuns ao judaiacutesmo como o

da justiccedila divina e outros relativos a outras culturas como a existecircncia da alma455

Segundo Dag Oistein Endsjo456 os judeus sofreram a influecircncia da cultura grega sobre

as ideias do poacutes-morte sem que isso represente uma planificaccedilatildeo das duas culturas A

correspondecircncia entre alguns elementos aparece por exemplo na traduccedilatildeo de lw a v para avdej

na LXX proporcionando a associaccedilatildeo entre a ldquosepulturardquo e o ldquosubmundo dos mortosrdquo

Associaccedilatildeo que remonta a Odisseia de Homero e se estende para niacuteveis mais complexos

Conforme tambeacutem considerou E D Wright457 judeus e cristatildeos emprestaram alguns

elementos da cultura greco-romana para a elaboraccedilatildeo de suas cosmologias Mas as

consulta de crianccedilas vivas ou mortas mas poder haver alguma relaccedilatildeo com as passagens sobre as ldquocrianccedilas purasrdquo nos Papyri Graecae Magicae e principalmente com a Historia Eclesiaacutestica (III1311-12) de Soacutecrates 455 Devido aos objetivos desta pesquisa seraacute necessaacuterio ser bastante seletivo neste ponto A anaacutelise do desenvolvimento das ideias cristatildes sobre a vida apoacutes a morte exigiria uma anaacutelise de suas raiacutezes na cultura egeia entre os egiacutepcios mesopotacircmicos no zoroastrismo na cultura grega em geral e nas vaacuterias fases da religiatildeo dos judeus As correlaccedilotildees estabelecidas neste capiacutetulo satildeo aprofundamentos de toacutepicos sugeridos pelos proacuteprio Justino no decorrer de sua anaacutelises Para mais informaccedilotildees cf SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946 OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992 COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987 DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000 SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006 456 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 457 The History of Heaven New York Oxford University Press 2000 p 139

94

correlaccedilotildees se estendem tambeacutem para com a cultura persa que segundo Alan Segal458

apresentava aspectos muito atrativos ao povo simples

O desenvolvimento das ideias sobre o poacutes-morte entre os judeus eacute complexa Haacute

algum consenso entre os estudiosos de que a ideia de ldquoressurreiccedilatildeordquo tenha aparecido

tardiamente no judaiacutesmo Mas as Escrituras judaicas apresentam referecircncias a algum tipo de

existecircncia apoacutes a morte fiacutesica Um caso emblemaacutetico acontece quando o rei Saul procurou

uma b A a ecircb A a ecircb A a ecircb A a ecirc-t l[]B [evocadora de espiacuteritos] para poder falar com o falecido profeta Samuel (I

Samuel 281-7) praacutetica proibida pela Lei (Dt 189-12) No I seacutec dC a ressurreiccedilatildeo era

motivo de disputas entre saduceus e fariseus459 Os saduceus natildeo acreditavam na ressurreiccedilatildeo

dos mortos Sobre os fariseus Flaacutevio Josefo460 escreveu que ldquotoda alma [] eacute impereciacutevel

mas somente a alma dos bons passa a outro corpo Por outro lado a alma dos homens maus

estaacute sujeita agrave puniccedilatildeo eternardquo Os saduceus satildeo descritos como aqueles que ldquoacreditavam que

Deus natildeo estaacute interessado em se agimos bem ou mal [] agir bem ou mal eacute apenas uma

questatildeo de escolha humana e que uma ou outra pertence a cada um assim podem agir como

bem entendemrdquo461 Tambeacutem descartam a crenccedila ldquona duraccedilatildeo imortal da alma e na puniccedilatildeo e

recompensa no Hadesrdquo462 Na contramatildeo dessas ideias Josefo escreve que os fariseus

ldquotambeacutem acreditam que a alma tem o poder de sobreviver agrave morte em si e que embaixo da

terra haveraacute recompensa ou puniccedilatildeo para a vida de viacutecio ou virtude que se viveu nesta

vidardquo463

Natildeo passou despercebido a Vicente Dobroduka464 que o vocabulaacuterio empregado pelo

historiador judeu se assemelha razoavelmente ao de Platatildeo465 Quer seja por uma intenccedilatildeo do

autor em aproximar a doutrina farisaica agrave filosofia ou pela adaptaccedilatildeo de um editor posterior

os pontos de semelhanccedila entre essas doutrinas e a cultura helecircnica satildeo evidentes Mesmo sem

ser uma forma de pensar que atraiacutesse a todos os judeus naquela eacutepoca natildeo haacute razotildees para se

458 Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 p 394 Cf as noccedilotildees escatoloacutegicas persas que teriam influenciado a apocaliacuteptica judaica em RUSSELL D S The Method and Message of Jewish ApocalypticPhiladelphia Westminster Press 1964 p 19 e em SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008 p 314 Entre essas noccedilotildees esta a ideia da ressurreiccedilatildeo corporal Para uma visatildeo geral da escatologia do Avesta cf MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975 pp 177-207 459 Mt 2223-33 Josefo Ant Jud 1814 Guer Jud 28 460 Guer Jud 2162ss 461 Guer Jud 2162ss 462 Guer Jud 2162ss 463 Ant Jud 1814 464 DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 2005 p 24 465 Meno 81b5 Feacutedon 70a8 e 72a8

95

duvidar que a ideia de uma recompensa futura baseada nas accedilotildees humanas era amplamente

conhecida entre os judeus Como escreveu Elizacircngela A Sousa466

certos elementos nas ideias particulares de juiacutezo satildeo compartilhados por uma e outra cultura assinalando algum tipo de intercacircmbio existente entre elas o que ainda outra vez nos coloca de frente com o pressuposto de que certos aspectos culturais (e religiosos) se constituem se natildeo totalmente a partir de trocas simboacutelicas pelo menos em parte satildeo influenciados por elas

A tradiccedilatildeo aponta que Paulo era um fariseu467 e a sua crenccedila na ressurreiccedilatildeo se

desenvolveraacute entre os cristatildeos No entanto eacute preciso lembrar como destacou D O Sousa468

que entre os cristatildeos ldquonatildeo havia uma unicidade de pensamento em continuidade com a

escatologia judaicardquo No processo proselitista de comunicaccedilatildeo da mensagem cristatilde os fieacuteis

enfrentaram os questionamentos de outros grupos Segundo o relato de Atos dos Apoacutestolos

(1716-34) Paulo enfrentou a resistecircncia dos filoacutesofos epicureus e estoicos no areoacutepago em

Atenas e em outro episoacutedio precisou repreender os coriacutentios em carta porque alguns estavam

sustentando que natildeo existia ressurreiccedilatildeo (I Co 1512-33) Embora os relatos de ressurreiccedilatildeo

dos mortos e da existecircncia de uma consciecircncia apoacutes a morte fossem comuns ao mundo greco-

romano como destaca Dag Oistein Endsjo469 natildeo existia nenhum consenso e eacute possiacutevel

distinguir essas contraposiccedilotildees em pelo menos dois grupos os criacuteticos intelectuais que

incluiacuteam filoacutesofos oradores e escritores e por outro lado a maioria sem instruccedilatildeo

De acordo com Lewis Richard Farnell470 a especulaccedilatildeo filosoacutefica grega natildeo poderia

ser considerada uma testemunha plena da mentalidade e da feacute daquela eacutepoca da cultura greco-

romana Estrabatildeo471 escreveu provavelmente no iniacutecio do I seacuteculo dC que ldquofilosofia era

algo para poucos enquanto poesia era mais uacutetil para as pessoas em geralrdquo No mesmo sentido

Plutarco472 admite que em sua eacutepoca apenas poucos conheciam as Leis de Platatildeo enquanto os

escritos de Homero eram ainda amplamente disseminados Pausacircnias no seacuteculo II dC

escreveu que Platatildeo a quem ele chama de ldquoo maior dos filoacutesofosrdquo473 tinha suas ideias

recebidas somente ldquopor alguns dos gregosrdquo474 Tudo indica que a situaccedilatildeo no II seacuteculo era a

466 SOARES Elizangela A Variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte desenvolvimento de uma crenccedila no judaiacutesmo do segundo templo 127 f (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2006 p 104 467 At 223 468 SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 setdez 2009 p 412 469 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 passim 470 Ibid p 386 471 Geografia 128 472 Moralia 328de 473 Descriccedilatildeo da Greacutecia 4324 474 Ibid 1303

96

mesma que Oriacutegenes475 descreve no seacuteculo seguinte ldquoeacute faacutecil de fato observar que Platatildeo eacute

encontrado somente nas matildeos daqueles que professam serem homens das letrasrdquo

Conforme destacou Henry Chadwick476 o estudo da metafiacutesica platocircnica foi peculiar a

poucos de uma ldquoaristocracia intelectualrdquo Nesse sentido Ramsay MacMullen477 tambeacutem

apontou que a reflexatildeo filosoacutefica natildeo apresentou nenhuma influecircncia detectaacutevel agrave praacutetica

cuacuteltica da religiatildeo tradicional grega478 Por outro lado eacute possiacutevel encontrar criacuteticas da

intelectualidade agraves superstitiones e agrave religiatildeo tradicional Certamente para pensadores como

Plutarco Dio de Prusa e Luciano de Samoacutesata os deuses natildeo existiam conforme as formas

homeacutericas Segundo Ramsay MacMullen479 esses pensadores puristas sustentam que os

deuses estavam distantes demais de tais caracteriacutesticas humanas comuns tais como nascer

comer beber e fornicar como a maioria deles faz extensivamente em suas tradicionais

representaccedilotildees Tudo isso natildeo passa de deisidaimonia ou seja ldquosupersticcedilatildeordquo Muitas vezes os

filoacutesofos reinterpretavam ou racionalizavam os mitos antigos rejeitando acontecimentos

milagrosos recentes semelhantes agraves narrativas antigas

No mundo grego a morte foi usualmente definida como a separaccedilatildeo da alma do corpo

Isso eacute amplamente demonstrado nas representaccedilotildees da morte de muitos guerreiros de Homero

repetidamente descritas como a alma [yuch] deixando o corpo480 E mesmo Platatildeo poderia

concordar com isso tendo Soacutecrates proclamado que a morte em sua opiniatildeo ldquonatildeo eacute nada

aleacutem do que a separaccedilatildeo dessas duas coisas a alma e o corpordquo481 A alma homeacuterica no Hades

era sempre definida como ldquomorterdquo Eram ldquoespiacuteritos da morterdquo482 ldquoMorterdquo natildeo significava

inexistecircncia absoluta mas uma existecircncia deacutebil da alma sem o corpo Sem um corpo fiacutesico

ningueacutem era de fato uma ldquopessoa completardquo Para os gregos a natureza humana sempre

equivaleu a uma unidade psicossomaacutetica Como escreveu Michael Clarcke483 ldquoo homem

homeacuterico natildeo tinha uma mente pois seus pensamentos e consciecircncia eram partes constituintes

da sua vida corpoacuterea como eram os movimentos e o metabolismordquo

475 Contra Celso 62 476 Introduction In ____ Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi 477 Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 p77 478 Isso natildeo quer dizer que filosofia natildeo acarretou mudanccedilas na maneira de pensar a religiatildeo pelos letrados como se considerou no capiacutetulo anterior 479 Ibid p77 480 ENDSJO Dag Oistein Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 p 38 481 Platatildeo Gorgias 524b cf Platatildeo Feacutedon 64c 482 Odisseia 11541 cf Odisseia 10521 10536 1129 1149 483 CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999 p 115

97

Como filoacutesofo Plutarco natildeo acreditava em nenhuma dessas histoacuterias populares sobre

ressurreiccedilatildeo fiacutesica e imortalizaccedilatildeo Para ele somente a alma tinha a chance de alcanccedilar a

esfera divina ldquoquando ela definitivamente se separa e se torna livre do corpo tornando-se

pura descarnada e imaculadardquo484 Mas ele admite que a maioria das pessoas natildeo se importava

com isso

Essas especulaccedilotildees tinham consequecircncias apenas limitadas de modo que natildeo

apresentaram um impedimento destacaacutevel agrave proliferaccedilatildeo de superstitiones inclusive entre as

classes elevadas agraves vezes Conforme Rohde485 argumenta a indignaccedilatildeo apaixonada de

filoacutesofos estoicos e epicureus que atacavam as crenccedilas que repousavam sobre os ensinos de

Homero natildeo poderiam ser explicadas exceto pela suposiccedilatildeo de que Homero e suas

representaccedilotildees permaneciam com uma significativa forccedila de orientaccedilatildeo entre as massas que

natildeo tinham conhecimento da filosofia O proacuteprio Justino indica que as ideias em torno da

crenccedila no Hades ainda eram fortes

O apologista toma o desafio de mostrar que a forma de pensar cristatilde natildeo era uma

novidade tatildeo descabida que natildeo pudesse ser aceita e ao mesmo tempo procura mostrar que

suas ideias apresentam um argumento razoaacutevel Comparando a crenccedila cristatilde na existecircncia de

uma consciecircncia apoacutes a morte do corpo agraves outras opiniotildees disseminadas pelo Impeacuterio

destaca-se tambeacutem que essa doutrina natildeo era demasiadamente estranha aos povos486 Os

elementos aparentemente comuns agrave cultura greco-romana e ao cristianismo nascente satildeo

alinhados na construccedilatildeo do argumento de que se os cristatildeos natildeo apresentavam uma doutrina

demasiadamente nova natildeo deveriam existir razotildees para serem incomodados ou combatidos

Neste caso os que apresentam doutrinas semelhantes agraves dos fieacuteis tambeacutem mereceriam ser

combatidos ou em uma melhor hipoacutetese ambos mereceriam ser deixados em paz

Outro refuacutegio apologeacutetico encontrado por Justino eacute recorrer ao fundamento cristatildeo na

tradiccedilatildeo judaica para assim alegar a antiguidade cristatilde Mas reconhecendo os elementos

semelhantes agrave cultura geral e agrave religiatildeo dos judeus o apologista abaixa a guarda para os

golpes da intelectualidade Por isso sua trama apologeacutetica precisa forjar um sentido

racionalizante desses elementos comuns a pagatildeos e a judeus e apresentar ao mesmo tempo a

doutrina cristatilde como um ensinamento superior agrave filosofia

484 Plutarco Romulus 287 485 ROHDE Erwin [1921] Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966 p 535 486 I186

98

Ele compara a crenccedila cristatilde na consumaccedilatildeo final de todas as coisas agraves noccedilotildees de

Sibila487 e Histapes488 (I201) sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo de tudo o que eacute corruptiacutevel A

funccedilatildeo do fogo no processo do ciclo coacutesmico dos filoacutesofos estoicos tambeacutem eacute elencado

destacando o renascimento do mundo pela transformaccedilatildeo489 Arquitetando seu argumento

apologeacutetico Justino questiona por que os cristatildeos satildeo ldquoperseguidosrdquo se existem algumas

correlaccedilotildees ou semelhanccedila entre as coisas ensinadas entre os fieacuteis e entre os filoacutesofos e

ldquopoetasrdquo estimados pelos romanos490 Essas correlaccedilotildees no entanto levaratildeo o apologista a

um aprofundamento dessas semelhanccedilas e dessemelhanccedilas Ele escreve

Assim quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus pareceraacute apenas que enunciamos um dogma de Platatildeo ao falar sobre conflagraccedilatildeo outro dogma dos estoicos ao dizer que satildeo castigadas as almas dos iniacutequos que ainda depois da morte conservaratildeo a consciecircncia e que as dos bons livres de todo castigo seratildeo felizes pareceraacute que falamos como vossos poetas e filoacutesofos que natildeo se devem adorar obras de matildeos humanas natildeo eacute senatildeo repetir o que disseram Menandro o

487 O substantivo feminino Sibulla pode significar uma ldquoprofetizardquo (PEREIRA Isidro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 516) Admite-se que essas elas profetizavam sob a influecircncia divina O primeiro escritor grego a fazer menccedilatildeo a Sibila eacute Heraacuteclito (Fragmento 92) No entanto Walter Burket (Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 p 116) escreve que mulheres em frenesi espiritual pelas quais os deuses falavam podiam ser encontradas muito antes no Oriente proacuteximo como em Mari no secundo milecircnio e na Assiacuteria no primeiro milecircnio Elas natildeo eram identificadas por um nome proacuteprio ficavam conhecidas apenas com o nome do local onde atuavam Uma coleccedilatildeo de anuacutencios profeacuteticos deu origem ao que ficou conhecido como Libri Sibyllini Acredita-se que a abra tenha sido obtida no reinado de Tarquinio Priscus (616 aC ndash 579 ac) por uma Sibila que protagoniza um mito em torno do livro Por vezes ela eacute chamada apenas de Sibila Os textos serviam de paracircmetro para a religiatildeo e eram guardados no Juacutepiter Captolino Com o incecircndio do templo em 82 aC os livros se perderam Deram iniacutecio a uma raacutepida busca por textos sibiliacutenicos por diversas regiotildees para compor uma nova coleccedilatildeo Poreacutem o caraacuteter e a pretensatildeo dos textos coletados desapontou esse objetivo Augustus determinou que os livros fossem destruiacutedos (Suetonio Vita cesarum Augustus 31 Tacito Anais VI12) Tibeacuterio voltou a examinar os Livros Sibilinos Muitos foram rejeitados como escritos espuacuterios (Cassius Dio LIV17) Pouco tempo mais tarde ainda sob seu governo um novo volume foi admitido (Taacutecito Anais VI12) (cf SMITH W (Ed) A Dictionary of Greek na Roman Antiquities London John Murray 1875 pp 1043-1044) Do primeiro para o segundo seacuteculo uma grande porccedilatildeo de escritos de cunho judaico-cristatildeos entram no paacutereo do textos sibiliacutenios (cf TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899) Eacute difiacutecil saber exatamente a qual ensino sibilino sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo Justino se refere MUNIER (op cit p 185) sugere que seja o trecho dos Oracles Sibyllins II196 MARCOVICH (Op cit p 62) aponta as passagens de Oracle Sibylline 2196ss 2286ss 3672ss 3689ss 4173ss 7120ss 8243ss O mesmo livro sibilino eacute mencionado em I4512 cuja leitura era vetada ao povo Cf ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997 PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988 A Greek-English Lexicon Edited by Henry Georg Liddell and Robert Scott OxfordNew York Clarendon PressOxford University Press 1996 488 U`stasphj eacute a forma grega de se escrever Vistaspa nome do pai de Dario o Grande e protetor de Zoroastro (KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945) Justino provavelmente estaacute se referindo ao escrito pseudoepiacutegrafo dos Oraacuteculos de Histaspes produzido provavelmente entre os seacuteculo II e I aC Essa obra heleniacutestica da Aacutesia menor apresentava fortes traccedilos do Zoroastrismo mas tambeacutem evidenciava aspectos poliacutetico-apocaliacutepticos relacionado ao domiacutenio de Roma sobre os demais povos (SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012 cf CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938) Histaspe e Sibila tambeacutem aparecem juntos nos escrito de Clemente de Alexandria (Stromata VI51) Lactacircncio (Divinae Institutiones VII1519 VII182) 489 I202 490 I203

99

poeta cocircmico e outros com ele que afirmaram que o artiacutefice eacute maior do que aquele que o fabrica (I204-5)

Tendo em vista a criacutetica dos filoacutesofos e letrados agraves crenccedilas gerais do povo as

semelhanccedilas e pontos de contato entre as doutrinas cristatildes e os mitos pagatildeos apontados por

Justino em defesa dos cristatildeos poderia se converter em uma nova dificuldade como algueacutem

que tenta sair de um abismo para cair em outro Por isso ele desenvolve uma explicaccedilatildeo para

essas semelhanccedilas elevando as doutrinas cristatildes a um niacutevel de primazia e evidenciando o seu

aspecto filosoacutefico

Segundo Viviana L Felix491 mesmo admitindo a semelhanccedila entre os ensinos de

Platatildeo e o dos cristatildeos uma posiccedilatildeo contraacuteria agrave doutrina platocircnica da alma eacute assumida

empenhando-se na construccedilatildeo de uma soteriologia e escatologia cristatildes conforme seratildeo

analisadas mais adiante O apologista combate como destaca Van Winden492 as correntes

filosoacuteficas que natildeo tecircm esperanccedila que Deus castigue ou premie em outra vida Seu interesse

estaacute ligado agrave vida eacutetica do homem e seu destino escatoloacutegico

A esperanccedila dos cristatildeos de terem os seus corpos restabelecidos mesmo depois de

mortos poderia representar algo ldquoimpossiacutevelrdquo na opiniatildeo de alguns Justino natildeo usa outro

argumento que natildeo seja o argumento da feacute Esse seu subterfuacutegio indica que muitas coisas que

parecem ser impossiacuteveis em um momento se demonstram possiacuteveis em outro surpreendendo

a muitos Ele usa o exemplo do secircmen humano para dizer que mostrado a algueacutem luacutecido

jamais se poderia supor imediatamente que uma soacute gota desse liacutequido seria capaz de se

transformar em um corpo humano De modo semelhante entatildeo se a princiacutepio pode parecer

estranho crer que um corpo ldquosemeadordquo na sepultura possa se transformar em um corpo

glorificado na ressurreiccedilatildeo depois se mostraraacute evidente493 Explanando esse argumento o

apologista explica que os cristatildeos sustentam que ldquoeacute melhor crer naquilo que estaacute acima da []

proacutepria natureza e que eacute impossiacutevel aos homens do que serem increacutedulosrdquo494 Tudo gira em

torno dos ensinamentos do seu mestre Jesus Cristo O mesmo que ensinou que o que eacute

impossiacutevel para os homens eacute possiacutevel para Deus495 Para um ouvinte alheio agrave mentalidade

judaico-cristatilde tal sentenccedila poderia parecer muito vaga Afinal os pagatildeos estavam

familiarizados com as limitaccedilotildees humanas e os poderes divinos que recheavam os mitos 491 FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa 492 WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 1975 pp 181-190 493 I191-4 494 I196 Kreitton de pisteuein kai tauta kai ta Th| e`autwn fusei kai avnqrwpoij avdunata hv o`moiwj toij alloij avpistein proseilhfamen MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 495 `Ta avdunata para avnqrwpoij dunata para qew|( MINNSPARVIS Op cit p 128 A citaccedilatildeo eacute de Lc 1827

100

Todavia Justino faraacute saber que o ponto chave desse misteacuterio eacute a feacute naquilo que eacute crido como a

ldquorevelaccedilatildeo divinardquo Essa revelaccedilatildeo mostra-se tambeacutem desafiadora pois ao mesmo tempo em

que traz luz sobre as accedilotildees humanas porta condenaccedilatildeo e temor ainda que estes sejam

contemplados pela mensagem da cruz496 de modo reparador Eacute no exato momento em que se

manifesta a necessidade de escolher aquilo que se revela como o correto verdadeiro e bom

que se deve temer pela escolha capaz de determinar o destino no poacutes-morte Essa advertecircncia

tambeacutem foi feita pelo mestre Natildeo temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais

podem fazer temei antes aquele que depois da morte pode lanccedilar alma e corpo no

inferno497 Ele mesmo define o ldquoinfernordquo como ldquoo lugar onde seratildeo castigados os que

tiverem vivido iniquamente e natildeo acreditaram que aconteceratildeo essas coisas ensinadas por

Deus atraveacutes de Cristordquo498 (I198) O Deus absoluto que tudo vecirc tudo conhece e do qual

nada se pode ocultar aparece tambeacutem como o grande juiz das accedilotildees humanas Assim

comunicada essa ldquoverdaderdquo cristatilde ela deve produzir temor e efetivar a sua funccedilatildeo em exigir

uma accedilatildeo positiva ou negativa de quem a ouve ou a lecirc

42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde

Seguindo o raciociacutenio do apologista deve ser a ldquorazatildeordquo a dirigir as escolhas humanas

No entanto a ldquorazatildeordquo ou seja o logos que estaacute em evidecircncia no pensamento de Justino eacute

produto da sua arguiccedilatildeo teoloacutegico-apologeacutetica Eacute possiacutevel identificar uma estrateacutegia literaacuteria

496 Mensagem da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo 497 lsquoMh Fobeisqe touj avnairountaj umaj kai meta tauta mh dunamenouj ti poihsai( fobhqhte de meta to Avpoqanein dunaMenon kai yuchn kai swma eivj geennan evmbalein)v MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 Cf Mt 1028 Lc 124-5 Geenna eacute uma transliteraccedilatildeo grega do termo aramaico ~ N h iy G e que corresponde ao ~oN h i a y G e hebraico e assumiu o sentido de ldquopuniccedilatildeo futurardquo (RUSCONI C Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 106 A primeira menccedilatildeo ao Vale de Hinnom na Biacuteblia aparece em Js 158 No entanto no texto dos LXX (LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]) satildeo empregadas as palavras faragga Onom para se referir ao ~ N Oh i- y g E) da Biacuteblia Hebraica (Biblia Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50]) Em II Cr 283 a LXX substitui ~ N O=h i- b a y g EaringB pela transliteraccedilatildeo Gaibenenom Esse lugar teria destinados primeiramente ao sacrifiacutecio de crianccedilas a Moloque e a Baal numa parte especiacutefica do vale chamada Tophet Depois do Exiacutelio com o intuito de mostrar a abominaccedilatildeo do local o judeus o transformaram no depoacutesito de lixo da cidade Para a destruiccedilatildeo dos resiacuteduos ali depositados o fogo era mantido sempre aceso Por isso os judeus associaram ao local a ideia de sofrimento e corrupccedilatildeo (Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998 p 457) A palavra geenna eacute sempre empregada nos discursos de Jesus (Mt 2333 Lu 125 Mt 522) como um lugar de puniccedilatildeo num julgamento futuro e Justino o emprega nesse mesmo sentido 498 h de geenna evsti topoj enqa kolaxesqai mellousin oi` avdikwn biwsantej kai mh pisteuontej tauta genhsesqai( o[as o` qeoj dia tou Cristou evdidaxe) MINNSPARVIS Op cit p 128 Cf Lc 125 Mt 1028

101

que ressignifica o conceito de ldquorazatildeordquo por meio da construccedilatildeo teoloacutegica em torno do logos

cristatildeo buscando atestar a racionalidade da ldquofilosofiardquo cristatilde

Considerar a religiatildeo cristatilde como uma ldquofilosofia divinardquo499 natildeo eacute apenas o reflexo da

sua trajetoacuteria filosoacutefica ateacute sua conversatildeo eacute tambeacutem uma estrateacutegia apologeacutetica que considera

normal existirem diferentes correntes de pensamento dentro do Impeacuterio sem que isso acarrete

automaticamente perseguiccedilotildees entre grupos distintos500 Segundo Justino eacute o logosrazatildeo que

orienta o curso da apologia em favor dos cristatildeos501 O apologista estaacute convencido de que suas

reivindicaccedilotildees satildeo ldquojustas e verdadeirasrdquo502 o que exige uma investigaccedilatildeo particular sobre o

sentido desses dois conceitos tambeacutem De outro modo a causa uacuteltima das accedilotildees anticristatildes eacute a

influecircncia dos democircnios que colocam o povo e as autoridades contra os fieacuteis Segundo seu

raciociacutenio os ldquomaus democircniosrdquo agiam por meio da promoccedilatildeo da ignoracircncia e da confusatildeo

Por isso ele se demonstra disposto a apresentar outros pontos sobre as crenccedilas cristatildes ldquoa fim

de persuadir os amantes da verdaderdquo503

Tendo em vista que o mecanismo de controle proporcionado pelo conteuacutedo das

doutrinas cristatildes eacute estabelecido fundamentalmente pelo temor diante do Deus que sonda todas

as coisas e que pode punir ou recompensar eternamente aqueles que agem virtuosamente nesta

vida o apologista escreve sobre a capacidade humana de agir racionalmente

Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e se recusem

outras como ldquoa pobreza o sofrimento e a desonra paternardquo504 A incompreensatildeo dessa

ldquoracionalidade cristatilderdquo fazia com que muitos se opusessem aos cristatildeos A falta de

conhecimento sobre as doutrinas cristatildes seria a responsaacutevel por exemplo por muitos

acusarem-lhes de ateiacutesmo505 Por ser uma religiatildeo nova e em processo de consolidaccedilatildeo natildeo eacute

nenhuma surpresa que muitos ainda estivessem confusos acerca das doutrinas cristatildes que por

vezes encabulavam os proacuteprios cristatildeos506

499 II Apol 125 500 II Apol 126 501 II Apol 128 502 I1211 tambeacutem em I683 ldquonatildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo 503 I1211 504 I128 505 I131 506 Os cristatildeos estavam longe de apresentarem unidade doutrinaacuteria Justino faz menccedilatildeo a cristatildeos divergentes como Helena Menandro e os marcionitas (I261-8)

102

421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios

Segundo a tese apresentada por Justino os democircnios se apoderam de todos aqueles

que de um ou outro modo natildeo trabalham por sua proacutepria salvaccedilatildeo O conceito de daiacute mwn

estava presente na cultura grega desde Homero e Hesiacuteodo507 Seu campo semacircntico eacute extenso

Deus conceito baacutesico que mais se aproxima da ideia que Justino sustenta eacute o de ldquoum ser

divinordquo ldquoo poder divinordquo ldquoum semideusrdquo ldquoser que interfere no destino humanordquo e poderia

ser ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo508

O conceito de ldquosalvaccedilatildeordquo natildeo estaacute claro nesses escritos mas estaacute relacionado agrave

recompensa positiva daqueles que creram e agiram conforme a revelaccedilatildeo dos desiacutegnios

divinos Isso tambeacutem significa associar-se ao logos e dissociar-se dos enganos demoniacuteacos

Desse modo ele escreve que ldquodepois de crer no logos noacutes nos afastamos deles [dos democircnios]

e por meio do Filho seguimos o uacutenico Deus unigecircnitordquo509

Esse distanciamento dos enganos destes seres malignos e pelo apego ao logos eacute o que

produz uma mudanccedila de conduta Seu testemunho em defesa da feacute eacute que os que antes se

compraziam na dissoluccedilatildeo agora abraccedilam apenas a temperanccedila os que antes se entregavam

agraves artes maacutegicas agora se consagram ao Deus bom e ingecircnito aqueles que antes eram

apegados aos bens materiais e agraves rendas agora compartilham do quem tecircm os que antes se

odiavam e se matavam mutuamente desprezando aqueles que natildeo pertenciam agrave mesma raccedila

pela diferenccedila de costumes agora vivem todos juntos rezam pelos seus inimigos e tratam de

persuadir os que os aborrecem injustamente a fim de que vivendo conforme conselhos de

Cristo tenham boas esperanccedilas de alcanccedilar uma recompensa de Deus (I Apol 141-3) Por

isso o filoacutesofo apologista critica as accedilotildees anticristatildes romanas que acatavam as caluacutenias

disseminadas dizendo ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e natildeo

tenhais a quem castigarrdquo510

A fonte da moralidade cristatilde estaacute primeiramente relacionada agrave mensagem do seu

mestre o Cristo por vezes tido como motivo de escacircndalo para os infieacuteis Essa moralidade eacute

destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e comentaacuterios ldquodisseminados

507 POPE Kyle Mark The concept of theDAIMWN in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 13-17 cf REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004 508 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 (Perseu Project) 509 I Apol 141 510 I Apol 124

103

entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso seu discurso sobressalta o

valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de temperanccedila511 Tambeacutem recebem

destaques a doutrina cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos

necessitados e a ausecircncia de valor da ostentaccedilatildeo512 Com o mesmo tom piedoso seguem as

afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico513 Desse

modo Justino contribui tambeacutem para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos

propondo uma identidade coletiva Nesse processo o apologista combate um conceito

estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que considera equiacutevocos e mal entendidos

ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja Essa sua atitude revela tambeacutem que o processo de construccedilatildeo da

identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada principalmente pela

necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os variados grupos

cristatildeos Pois as Igrejas em meados do seacuteculo II devem ser vistas ainda como manifestaccedilotildees

de ldquocristianismosrdquo514

No intuito de explicar o caraacuteter das crenccedilas cristatildes Justino faz referecircncia agrave recepccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo de escritos e doutrinas Ser cristatildeo em sua perspectiva natildeo eacute simplesmente

pertencer a um grupo eacute um ldquoidealrdquo o de aprender o que foi ensinado pelo Cristo e praticar

em suas obras Desse modo elege-se a praacutetica dos ensinamentos do Logos como o elemento

fundamental diferenciador entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos515 Justino defende a liberdade para

estes que ele tem por ldquocristatildeosrdquo aos outros espera-se que sejam mesmo perseguidos516

Dentre os ensinos do Cristo estaacute o pagamento dos tributos e contribuiccedilotildees517 mas o

apologista vai aleacutem Propondo-se a oferecer algumas das principais informaccedilotildees sobre o

conteuacutedo das crenccedilas cristatildes um paralelo entre a natureza desses ensinamentos e outras

arguiccedilotildees eacute traccedilado518

Jesus eacute descrito como u`ioj de Qeou [filho de Deus] aquele que ainda que parecesse

homem de modo comum por sua sabedoria mereceria chamar-se filho de Deus Haacute um

511 I151-7 512 I141-919 513 I161-6 514 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 515 ldquoAqueles poreacutem que se vecirc que natildeo vivem como ele ensinou sejam declarados como natildeo cristatildeos por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de Cristo pois ele disse que se salvariam natildeo os que apenas falassem mas que tambeacutem praticassem as obrasrdquo (I169) 516 ldquoAqueles que natildeo vivem conforme os ensinamentos de Cristo e satildeo cristatildeos apenas de nome noacutes somos os primeiros a vos pedir que sejam castigadosrdquo (I1614) 517 Justino recorre agrave passagem comum a Mt 221719-20 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo cf I172 518 I144

104

contraste entre o Cristo que nasceu como Logos de Deus e o que afirmavam sobre Hermes

chamado de Logos anunciador ou mensageiro de Deus519 Para rebater o desdeacutem pela

crucificaccedilatildeo de Cristo que poderia representar algo despreziacutevel aos olhos de muitos no

Impeacuterio o apologista aponta que tambeacutem os filhos de Zeus sofreram mortes terriacuteveis Sobre

ele haver nascido de uma virgem ele compara-o a Perseu Quanto agrave cura de coxos paraliacuteticos

e enfermos de nascimento e ateacute mesmo ressurreiccedilatildeo de mortos ele aponta que haacute alguma

semelhanccedila com Ascleacutepio520 As comparaccedilotildees tambeacutem envolvem Dioniso e Heacuteracles esta

uacuteltima ascendida depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos os Dioacutescoros filhos de

Leda Perseu de Dacircnae e Belerofonte nascido de homens que ascenderam sobre o cavalo

Peacutegaso O apologista fala tambeacutem dos imperadores mortos aos quais muitos consideravam

como dignos da imortalidade e alguns juravam terem visto Ceacutesar subir ao ceacuteu521 Mas ele

adverte ldquoNatildeo pedimos que se aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque

dizemos a verdaderdquo522

As doutrinas cristatildes satildeo apresentadas como a ldquouacutenica verdaderdquo e a mais antiga do que

todos os escritores que existiram Seu discurso busca demonstrar que Jesus Cristo eacute

propriamente o uacutenico Filho nascido de Deus como seu Logos seu Primogecircnito e sua

Potecircncia A encarnaccedilatildeo do Filho pelo seu designo deu-se para que ele ensinasse essas

verdades para a transformaccedilatildeo e conduccedilatildeo do ldquogecircnero humanordquo523 Poreacutem segundo sua teoria

apologeacutetica antes de tornar-se homem entre os homens houve alguns democircnios malvados

que se adiantaram a dizer por meio dos poetas terem acontecido os mitos que inventaram

Seriam esses os mitos gerais conhecidos por gregos e romanos Em oposiccedilatildeo ao

esclarecimento proposto pelo logos para a salvaccedilatildeo humana esta o obscurecimento de toda a

racionalidade proporcionado pelos democircnios

Os democircnios satildeo entatildeo reconceituados a partir de uma perspectiva cristatilde que toma por

base a tradiccedilatildeo judaica em intersecccedilatildeo com aspectos da cultura grega conforme analisou K

M Pope524 Sua imagem estaacute relacionada ao ldquopriacutencipe dos maus democircniosrdquo chamado de

ldquoserpente satanaacutes diabo ou caluniador Todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que

519 I221-2 520 I225-6 521 Cassius Dio (Hist Rom 56462 cf T Livio Histoacuteria de Roma (Ad urbe condita) I165-7) menciona a histoacuteria de que um senador e ex-pretor tinha jurado que ele tinha visto Augustus subindo aos ceacuteus Suetocircnio tambeacutem se refere a algo desse tipo Augustus 1004 Uma histoacuteria similar foi contada sobre Iulia Drusilla a irmatilde de Caliacutegula (Cassius Dio Hist Rom 59114) Secircneca zomba deste testemunho em Apocolocyntosis I 522 I231 523 I232 cf SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987 524 The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 52-53

105

o seguem seraacute enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de

antematildeo anunciada por Cristordquo525

Justino acredita ser possiacutevel demonstrar a veracidade da feacute cristatilde por meio do

cumprimento das Escrituras526 Ele explica que os profetas de Deus movidos pelo logos e sob

o Espiacuterito profeacutetico anunciaram antecipadamente os acontecimentos futuros Vem em

seguida uma seacuterie de ldquoprediccedilotildeesrdquo sobre a vinda de Cristo e sobre o que deveria acontecer tais

como a queda de Jerusaleacutem527 a cura das enfermidades e a morte de Cristo a ressurreiccedilatildeo dos

mortos e a prediccedilatildeo de Isaiacuteas528 sobre a expansatildeo para todas as naccedilotildees Ele tambeacutem procura

mostrar que ateacute o sofrimento e a humilhaccedilatildeo de Jesus estavam previstas nas profecias e que

ele chegou a ser abandonado ateacute pelos seus (I501ss) Seu raciociacutenio eacute o seguinte

Com efeito do mesmo modo que o acontecido antecipadamente anunciado por mais que natildeo tivesse sido compreendido aconteceu assim tambeacutem o que ainda falta para ser cumprido aconteceraacute por mais que natildeo se compreenda nem se creia Assim eacute que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo uma jaacute cumprida como homem desonrado e passiacutevel a segunda quando viraacute dos ceacuteus acompanhado de seu exeacutercito de anjos quando ressuscitaraacute tambeacutem os corpos de todos os homens que existiram revestiraacute de incorruptibilidade os que forem dignos e enviaraacute os iniacutequos com percepccedilatildeo eterna ao fogo eterno junto com os perversos democircnios (I521-3)

Com convicccedilatildeo sobre o cumprimento das profecias escreve ldquoDe fato por que motivo

haveriacuteamos de crer que um homem crucificado eacute o primogecircnito do Deus ingecircnito e que

julgaraacute todo o gecircnero humano se natildeo encontraacutessemos testemunhos sobre ele publicados

antes de ele ter nascido como homem e natildeo os viacutessemos literalmente cumpridosrdquo 529 E isso o

faz pensar que a apresentaccedilatildeo desse elevado nuacutemero de referecircncias a prediccedilotildees e seus

cumprimentos deveria razoavelmente convencer a seus leitores530

Os mitos dos pagatildeos satildeo comparados aos ldquoensinosrdquo cristatildeos sustentando que eles natildeo

apresentam nenhuma prova de sua veracidade Isso deveria demonstrar que foram ditos por

obra dos ldquodemocircnios perversosrdquo para enganar e extraviar o ldquogecircnero humanordquo Ouvindo os

profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens iacutempios seriam castigados atraveacutes do

fogo esses seres maleacutevolos teriam colocado agrave ldquofrente muitos que se disseram filhos de Zeus

crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo

como um conto de fada semelhante aos contados pelos poetasrdquo531 Assim eacute elencada uma

seacuterie de semelhanccedilas entre a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e a greco-romana para mostrar a distorccedilatildeo

525 I281 526 I301ss 527 I471ss 528 Is 651-15 520 529 I532 530 Justino escreve que seriam persuadidos os que ldquoamam a verdade que natildeo seguem a opiniatildeo nem se deixam dominar por suas paixotildeesrdquo (I5310-12) 531 I542

106

pagatilde que soacute podem ser identificadas atraveacutes de uma hermenecircutica bem peculiar532 As

comparaccedilotildees vatildeo desde o texto de Gn 4910-11 agrave vinha de Dioniso e sua ascensatildeo

semelhante agrave subida de Belerofonte montado no cavalo Peacutegaso ao ceacuteu o texto de Is 714 e a

lenda de Perseu Sl 186 e as narrativas sobre Heacutercules ateacute as ldquoprofeciasrdquo de curas a todas as

enfermidades e ressurreiccedilatildeo dos mortos533 ao mito de Ascleacutepio Mas a crucificaccedilatildeo eacute algo que

os pagatildeos natildeo poderiam imitar pois tudo ldquotudo o que se refere agrave cruz foi dito de forma

simboacutelicardquo534

Os judeus no entanto satildeo tidos como ignorantes sobre o cumprimento das profecias

de que Jesus deveria vir nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda

doenccedila toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e

crucificado que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus

que ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os

homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nele535

Ele recorre aos escritos do profeta Isaiacuteas536 para indicar que Cristo seria concebido por

uma virgem O logos eacute conceituado como o Filho a primeira virtude ou potecircncia depois de

Deus que eacute Pai e soberano de todas as coisas O logos entatildeo se tornou carne e nasceu homem

(I3210) Por Espiacuterito e forccedila que procede de Deus ele eacute reconhecido como o Logos que eacute o

primogecircnito de Deus O apologista sustenta que aqueles que profetizam satildeo inspirados pelo

logos divino

Em sua perspectiva os judeus detentores da tradiccedilatildeo e dos livros dos profetas poreacutem

aleacutem de natildeo reconhecerem a Cristo jaacute vindo tambeacutem odeiam aos cristatildeos Isso eacute destacado

na sua afirmaccedilatildeo de que na guerra dos judeus Bar Koseba o cabeccedila da rebeliatildeo mandava

submeter a terriacuteveis torturas somente os cristatildeos caso estes natildeo negassem e blasfemassem

Jesus Cristo (I316)

A mensagem cristatilde eacute um elemento apelativo que busca induzir os fieacuteis a uma conduta

diferente ldquoNoacutes que antes nos mataacutevamos mutuamente agora natildeo soacute natildeo fazemos guerra

contra os nossos inimigos mas tambeacutem por natildeo mentir nem enganar os juiacutezes que nos

interrogam morremos felizes de confessar a Cristordquo (I393) Justino considera ridiacuteculo que os

soldados que se arrolam e se alistam pusessem a lealdade para com o imperador ldquoacima de

sua proacutepria vida acima dos pais paacutetria e tudo o que lhes pertence embora nada de

532 BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 2009 pp 538-555 533 Is 355-6 Mt 115 534 I551 535 I317-8 536 Is 111-10

107

impereciacutevel lhes pudeacutesseis oferecerrdquo (I395) Por outro lado os cristatildeos que amam a

incorrupccedilatildeo suportam tudo a troco de receber daquele que confiam ter poder para lhes dar

(I395)

A superioridade do Deus judaico-cristatildeo sobre os deuses das outras naccedilotildees aparece

submetendo os demais deuses ao jugo dos ldquodemocircniosrdquo sob a sombra da ignoracircncia que esses

propagam Entretanto o Deus dos cristatildeos eacute o Deus que criou a racionalidade

Justino coloca que

no princiacutepio [Deus] criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma pedra Virtude e viacutecio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e iniquidade (I283-4)

Esse ser racional que Justino se refere eacute tambeacutem aquele cuja racionalidade pode ser ratificada

no reconhecimento e submissatildeo aos ensinos cristatildeos Haacute uma postura anti-estoica manifesta

em suas palavras que reduz o dogma do destino dessa corrente filosoacutefica a ldquoimpiedade e

iniquidaderdquo537

Ele sustenta que os cristatildeos aprenderam com os profetas que

os castigos e tormentos assim como as boas recompensas satildeo dadas a cada um conforme as suas obras Se natildeo fosse assim mas tudo acontecesse por destino natildeo haveria absolutamente livre-arbiacutetrio Com efeito se jaacute estaacute determinado que um seja bom e outro mau nem aquele merece elogio nem este vitupeacuterio Se o gecircnero humano natildeo tem poder de fugir por livre determinaccedilatildeo do que eacute vergonhoso e escolher o belo ele natildeo eacute irresponsaacutevel de nenhuma accedilatildeo que faccedila538 (I432-3)

Ele destaca que se por outro lado algueacutem

estivesse determinado [para] ser mau ou bom natildeo seria capaz de coisas contraacuterias nem mudaria com tanta frequumlecircncia Na realidade nem se poderia dizer que uns satildeo bons e outros maus desde o momento que afirmamos que o destino eacute a causa de bons e maus e que realiza coisas contraacuterias a si mesmo ou que se deveria tomar como verdade o que jaacute anteriormente insinuamos isto eacute que virtude e maldade satildeo puras palavras e que soacute por opiniatildeo se tem algo como bom ou mau Isso como demonstra a verdadeira razatildeo eacute o cuacutemulo da impiedade e da iniquidade (I436)

O ldquodestino iniludiacutevelrdquo reconhecido pelo apologista eacute que aqueles que escolheram o

bem tenham ldquodigna recompensardquo e os que escolheram o contraacuterio tenham igualmente ldquodigno

castigordquo (I437) Dentro do sistema de pensamento construiacutedo por Justino seria incoerente

com o sistema de controle social admitir que Deus tenha determinado as escolhas humanas

Nesse caso como ele escreve ldquonatildeo seria digno de recompensa e elogio pois natildeo teria

escolhido o bem por si mesmo mas nascido jaacute bom nem por ter sido mau seria castigado

537 avsebeia kai avdikia evsti I284 538 PLATAtildeO Repuacuteblica 617e

108

justamente pois natildeo o seria livremente mas por natildeo ter podido ser algo diferente do que foirdquo

(I438) Desse modo o apologista deixa clara sua oposiccedilatildeo ao estoicismo539

O pensamento de Justino sobre isso poderia ser resumido em ldquoDeus criou livres tanto

os anjos como o gecircnero humano e por isso receberam com justiccedila o castigo de seus pecados

no fogo eternordquo540 Tal alegaccedilatildeo estaria fundamentada na ideia de que tudo deve ser capaz de

viacutecio e de virtude pois ningueacutem seria digno de louvor se natildeo pudesse tambeacutem voltar-se para

um desses extremos541

Ele assume que esta doutrina foi ensinada pelo Espiacuterito profeacutetico que por meio de

Moiseacutes nos testemunha que falou ao primeiro homem que havia criado do seguinte modo

ldquoOlha que diante de tua face estaacute o bem e o mal escolhe o bemrdquo542 Ele cita tambeacutem Isaiacuteas543

e o proacuteprio Platatildeo544 ao dizer A culpa eacute de quem escolhe Deus natildeo tem culpa Justino

alega que Platatildeo falou isso por tecirc-lo tomado do profeta Moiseacutes desse modo ele diz que ldquopois

se sabe que este eacute mais antigo do que todos os escritores gregosrdquo (I441-8) Para explicar os

elementos semelhantes entre os escritos gregos e os judaico-cristatildeos o apologista alega que

tudo o que os filoacutesofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplaccedilatildeo das coisas celestes aproveitaram-se dos profetas natildeo soacute para poder entender mas tambeacutem para expressar isso Daiacute que parece haver em todos algo como germes de verdade Todavia demonstra-se que natildeo o entenderam exatamente pelo fato de que se contradizem uns aos outros (I449-10)

Deus conhece de antematildeo tudo o que seraacute feito por todos os homens e eacute decreto seu

recompensar cada um segundo o meacuterito de suas obras e por isso justamente prediz por meio

do Espiacuterito profeacutetico o que para cada um viraacute da parte dele conforme o que suas obras

mereccedilam545 Ele eacute aquele que constantemente conduz o gecircnero humano agrave reflexatildeo e agrave

lembranccedila demonstrando-lhe que cuida e usa de providecircncia para com os homens

Sobre a novidade da religiatildeo cristatilde Justino escreve ldquoAlguns sem motivo para rejeitar

o nosso ensinamento poderiam nos objetar que ao dizermos que Cristo nasceu somente haacute

cento e cinquumlenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio

Pilatos os homens que o precederam natildeo tecircm nenhuma responsabilidaderdquo (461) Ele entatildeo

responde

Noacutes recebemos o ensinamento de que Cristo eacute o primogecircnito de Deus e indicamos antes que ele eacute o Logos do qual todo o gecircnero humano participou Portanto aqueles

539 ldquohellipnoacutes dizemos que aconteceraacute a conflagraccedilatildeo universal mas natildeo como dizem os estoacuteicosrdquo II63 cf Alesandre de Aphrodisias On Fate 9 [17525] 540 II65 541 II66 542 Dt 301519 543 Is 116-20 544 Repuacuteblica X617e 545 I4411

109

que viveram conforme o Logos satildeo cristatildeos quando foram considerados ateus como sucedeu entre os gregos com Soacutecrates Heraacuteclito e outros semelhantes e entre os baacuterbaros com Abraatildeo Ananias Azarias e Misael e muitos outros cujos fatos e nomes omitimos agora pois seria longo enumerar De modo que tambeacutem os que antes viveram sem razatildeo [logos] se tornaram inuacuteteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razatildeo [logos] mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela satildeo cristatildeos e natildeo experimentam medo ou perturbaccedilatildeo O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma virgem pela virtude do Logos conforme o desiacutegnio de Deus Pai e soberano do universo e foi chamado Jesus e depois de crucificado e morto ressuscitou e subiu ao ceacuteu o leitor inteligente poderaacute perfeitamente compreendecirc-lo pelas longas explicaccedilotildees que foram dadas ateacute aqui (462-6)

O apologista usa de uma estrateacutegia semacircntica para literalmente ldquodar razatildeordquo agraves

doutrinas cristatildes

422 A razatildeo que julga

No mundo grego a palavra logoj jaacute assumira uma significacircncia para o pensamento

especulativo desde muito cedo Era um termo teacutecnico para as vaacuterias ldquociecircnciasrdquo que se

desenvolviam na Greacutecia do seacutec V aC A gramaacutetica a loacutegica a retoacuterica a psicologia a

metafiacutesica a teologia e a matemaacutetica deram-lhe sentidos diferentes ainda dentro do mesmo

campo da ciecircncia Seu campo semacircntico eacute vasto Pode significar razatildeo palavra discurso

menccedilatildeo declaraccedilatildeo afirmaccedilatildeo resposta promessa dito proveacuterbio ou maacutexima546 Alguns

destes significados podem parecer contraditoacuterios Ele eacute um termo comum que pode aparecer

em qualquer lugar Aparece nos textos de Homero Heroacutedoto Platatildeo Aristoacuteteles Tuciacutededes

Piacutendaro Aeschylus Xenoacutefanes Soacutefocles Aischines e outros547 mas eacute seu significado

filosoacutefico-religioso que importa A histoacuteria desse conceito eacute bastante complexa todavia eacute

suficiente abordar os principais aspectos do uso filosoacutefico-religioso do logoj

Justino sustenta que os gregos aprenderam muitos conceitos com as Escrituras

judaicas Segundo sua teoria Ptolomeu rei do Egito se preocupou em formar uma biblioteca

e nela reunir os escritos de todo o mundo tendo notiacutecia dessas profecias mandou uma

546 Significa ainda decisatildeo resoluccedilatildeo ordem proclamaccedilatildeo ensinamento doutrina parte de doutrina definiccedilatildeo hipoacutetese condiccedilatildeo pacto fama tradiccedilatildeo lenda reputaccedilatildeo boato opiniatildeo notiacutecia revelaccedilatildeo oraacuteculo resposta de oraacuteculo palavra revelada verbo assunto mateacuteria objeto questatildeo fato acontecimento coisa discurso frase prosa falar faculdade de falar e como logoj proforikoj discurso extriacutenseco palavra uso da palavra direito agrave palavra coloacutequio discussatildeo faacutebula narrativa imaginaacuteria lenda mito narrativa histoacuterica histoacuteria literatura conta caacutelculo soma explicaccedilatildeo avaliaccedilatildeo valor significado a razatildeo praacutetica (nouj especulativo) razatildeo divina personificada motivo causa fundamento justificaccedilatildeo plano projeto RUSCONI C (ed) DICIONAacuteRIO do grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 350 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001 547 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001

110

embaixada pedindo os livros dos judeus Ptolomeu providenciou que fossem traduzidos para o

grego Depois disso os livros permaneceram entre os egiacutepcios ateacute o presente e os judeus os

usam no mundo inteiro Assim os gregos teriam aprendido muitas coisas que teriam

ldquoenriquecidordquo seus mitos e pensamentos em geral548

Todavia foi Filon de Alexandria quem primeiro tomou as interrogaccedilotildees filosoacuteficas

estabelecendo correlaccedilotildees com os elementos da cultura religiosa judaica549 Era corrente no

judaiacutesmo a reflexatildeo sobre a ldquoPalavrardquo criadora e comunicadora da revelaccedilatildeo divina Mas foi o

contato com a cultura helecircnica e as proximidades semacircnticas ainda que muito limitadas entre

Escrituras judaicas e as palavras gregas que carregaram o teor filosoacutefico ou especulativo550

Conforme analisou Dax F P Nascimento551 eacute por intermeacutedio do Logos uma espeacutecie de

declaraccedilatildeo divina que se remete a si mesmo revelado que se obteacutem a educaccedilatildeo acerca da

verdade por meio da qual haacute o arrependimento ou conversatildeo dos prazeres e ciecircncias do

mundo sensiacutevel para a razatildeo e para a piedade

Entre os cristatildeos natildeo haacute evidecircncias de que a reflexatildeo sobre o logos tenha a princiacutepio

alguma conotaccedilatildeo filosoacutefica Teoacutelogos como R Bultmann552 G Kimmel553 O Culmann554

concordam que o logos mencionado no proacutelogo do Evangelho segundo Joatildeo eacute uma niacutetida

referecircncia agrave ldquoPalavrardquo comunicadora de Deus sobre a qual Fiacutelon refletiu Eacute possiacutevel que na

virada do I para o II seacuteculo a expansatildeo cristatilde comeccedilasse a exigir uma atenccedilatildeo maior tambeacutem

aos conceitos e questotildees pertinentes ao mundo greco-romano555

Com a conversatildeo de filoacutesofos como Atenaacutegoras Aristides e do proacuteprio Justino as

correlaccedilotildees entre essas correntes de pensamentos se manifestam principalmente na produccedilatildeo

apologeacutetica cristatilde556

Justino escreve que do logos que inspirou os profetas Platatildeo tomou o que disse sobre

Deus ter criado o mundo transformando uma mateacuteria informe557 Segundo Minns e Parvis558

548 I311-5 549 BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950 550 KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91 Cf COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp 1507-1562 551 O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia PUC Rio de Janeiro 2003 p 179 552 Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004 553 Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983 554 Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002 555 ARZANI A A teologia do logoj no Quarto Evangelho Orientador Dr Paulo Beniacutecio Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008 pp 52-60 556 Cf WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982 557 I591

111

suas comparaccedilotildees entre algumas passagens das Escrituras e dos textos de Platatildeo satildeo

interpretaccedilotildees difiacuteceis de serem compartilhadas pois apresentam uma hermenecircutica muito

particular e em alguns pontos chega a interpretar o platonismo segundo formas comuns ao

estoicismo Destacando os elementos semelhantes ao cristianismo e outras correntes de

pensamento Justino alega ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim

todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinasrdquo559 Mas esses pontos de contato satildeo

limitados Ele escreve que

natildeo satildeo totalmente semelhantes como tambeacutem as dos outros filoacutesofos os estoacuteicos por exemplo poetas e historiadores De fato cada um falou bem vendo o que tinha afinidade com ele pela parte que lhe coube do logos seminal divino Todavia eacute evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros natildeo alcanccedilaram uma ciecircncia infaliacutevel nem um conhecimento irrefutaacutevel Portanto tudo o que de bom foi dito por eles pertence a noacutes cristatildeos porque noacutes adoramos e amamos depois de Deus o logos que procede do mesmo Deus ingecircnito e inefaacutevel Ele por amor a noacutes se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curaacute-los Todos os escritores soacute puderam obscuramente ver a realidade graccedilas agrave semente do logos neles ingecircnita560

Enquanto algumas correlaccedilotildees entre o pensamento cristatildeo e a cultura greco-romana

satildeo fruto da accedilatildeo dos democircnios para causar confusatildeo uma porccedilatildeo do logos pode ser

identificada para aleacutem daqueles que deteacutem o logos pleno

Nesse sentido ele escreve

Sabemos que alguns que professaram a doutrina estoacuteica foram odiados e mortos Pelo menos na eacutetica eles se mostram moderados assim como os poetas em determinados pontos por causa da semente do Logos que se encontra ingecircnita em todo o gecircnero humano (II71)

Heraacuteclito que foi banido de Eacutefeso por causa de suas ideias e tambeacutem o filoacutesofo

Musonius que dentre outros que sofreram algum tipo de hostilidade nos tempos de Nero a

Vespasiano561 satildeo citados como exemplo Natildeo haacute nenhum motivo evidente para Justino

mencionar Heraacuteclito exceto pela sua teoria sobre o logos Quanto a Gaius Musonius Rufus

seu nome eacute lembrado pelo acento moral de sua filosofia de inspiraccedilatildeo estoica que o tornou

ridiacuteculo a muitos soldados562 Desse modo procura-se destacar que ldquoos democircnios sempre se

empenharam em tornar odiosos aqueles que de algum modo quiseram viver conforme o

Logos e fugir da maldade (II72)

O apologista ainda considera como uma investida dos democircnios a pena de morte

estabelecida contra aqueles que lessem os livros de Histaspes da Sibila e dos profetas a fim

558Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 236 559 I6010 560 II132-5 561 TACITO Histoacuterias III81 562 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 42

112

de impedir por meio do terror que os homens consigam lendo-os o conhecimento do bem e

retecirc-los como seus escravos563

Segundo o apologista muito mais odiado que aqueles que possuem o logos seminal

satildeo os que tecircm conhecimento e contemplaccedilatildeo do logos total Conforme suas proacuteprias

palavras ldquoO logos de Deus eacute seu Filho [] E tambeacutem se chama mensageiro e embaixador

porque ele anuncia o que se deve conhecer e eacute enviado para nos manifestar tudo o que o Pai

nos comunicardquo564 Sendo os cristatildeos os detentores do logos total e sendo o logos total aquele

que anuncia o que se deve conhecer para se proceder corretamente e receber a recompensa

futura tudo se resume agrave submissatildeo agraves ideias cristatildes565

A forma de controle empregada pelos romanos e que conduz os cristatildeos diante dos

tribunais satildeo pintadas como um sinal da ignoracircncia despreziacutevel daqueles que se submetem agrave

irracionalidade da obscuridade demoniacuteaca em exerciacutecio de uma falsa justiccedila

O julgamento segundo a ldquorazatildeordquo eacute o julgamento final estabelecido pelo Deus cristatildeo e

sobre o qual o apologista pretende convencer a todos ao seu redor566 Os democircnios no

entanto natildeo conseguem convencer de que natildeo haveraacute a conflagraccedilatildeo para castigar os iacutempios

do mesmo modo que natildeo conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu A uacutenica coisa

que conseguem eacute fazer com que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em

meio aos maus costumes entregues agraves suas paixotildees e seguindo a opiniatildeo vatilde procurem tirar a

vida dos cristatildeos e os odeiem Os cristatildeos por outro lado satildeo apresentados como aqueles que

por pura compaixatildeo por eles procuram persuadi-los a se converterem

Os maus haacutebitos dos deuses satildeo reprovados por essa medida cristatilde pois serviriam para

a corrupccedilatildeo dos que eram educados tendo em vista que muitos consideravam ldquobelordquo serem

imitadores dos deuses567 O apologista natildeo pode admitir que uma mente sensata aceite as

accedilotildees de Zeus e de Ganimedes como ldquodivinasrdquo (I215) Por isso ele relaciona a disseminaccedilatildeo

desses mitos agraves artimanhas dos democircnios que induzem os homens agrave imoralidade Em

oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo dos democircnios Justino sustenta que aos cristatildeos foi ensinado que soacute poderiam

alcanccedilar a imortalidade aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus assim como

tambeacutem se sustenta que seratildeo castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e

563 Cf Tacitus Annales II32 XII52 Historias I22 II62 Cassius Dio Hist Rom 57157-8 564 I634-5 565 Cf PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988 566 Cf KERESZTES P Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986 567 E um pensamento que estava relacionado aos epicureus pelo menos Philodemus Sobre a Piedade 71

113

natildeo se converteram (I216) Para os outros estaacute guardado o dia do juiacutezo descrito com grande

tormento em que se encontraratildeo os injustos568

A moralidade cristatilde eacute destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e

comentaacuterios ldquodisseminados entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso

seu discurso sobressalta o valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de

temperanccedila569 que crescia em nuacutemeros naquela eacutepoca Tambeacutem recebem destaques a doutrina

cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos necessitados e a ausecircncia de

valor da ostentaccedilatildeo570 Com o mesmo tom piedoso seguem as afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia

a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico571 Desse modo Justino contribui tambeacutem

para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos propondo uma identidade

coletiva

Um conceito estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que chama de equiacutevocos e mal

entendidos ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja satildeo combatidos Essa sua atitude revela que o

processo de construccedilatildeo da identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada

principalmente pela necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os

variados grupos cristatildeos572 Os outros grupos cristatildeos como o dos seguidores de Marciatildeo satildeo

tidos como instrumentos nas matildeos dos democircnios (I581) Seus discursos satildeo ldquoirracionaisrdquo e

satildeo presas de doutrinas ateiacutestas do democircnio573

Tendo em vista que as pessoas satildeo capazes de agir bem ou mal devido agrave liberdade

concedida por Deus considera-se que em todas as partes haacute tambeacutem os que ldquolegislaram e

filosofaram conforme a reta razatildeordquo ou aparte dela ao mandarem que se faccedilam algumas coisas

e se evitem outras574 A ldquoreta razatildeordquo agrave qual Justino se refere eacute aquela que deriva do Logos

cristatildeo que permeia a criaccedilatildeo revela a mensagem de Deus aos homens desde outros tempos

pelas Escrituras e no seacutec I pelo proacuteprio Cristo e que assim estabelece o padratildeo de conduta

aos que desejam a ldquorecompensa eternardquo Desse modo eacute identificado um padratildeo de justiccedila

baseado nas crenccedilas e valores cultivados pelos cristatildeos que estatildeo proacuteximos a Justino e que L

W Barnard575 chega a chamar de uma ldquoproto-ortodoxiardquo Natildeo eacute possiacutevel resumir ou descrever

568 Is 6624 569 I151-7 570 I141-919 571 I161-6 572 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 573 Avlla Avlogwj w`j upoacute Lukou arnej sunhrpasmenoi( bora Twn avqewn dogmatwn kai daiacutemonwn ginontai I582 574 II68 575 Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 1967

114

o conteuacutedo dessas crenccedilas e valores a partir da anaacutelise das Apologias sabe-se poreacutem que o

apologista se refere agrave forma de pensar dos cristatildeos que lhe satildeo proacuteximos e se distanciam do

modo de pensar por exemplo do grupo de Marciatildeo Helena e Menandro

Justino contempla tambeacutem as criacuteticas daqueles que segundo o seu parecer ldquose

consideram filoacutesofosrdquo e que alegariam que as ideias cristatildes sobre um julgamento universal

futuro ldquosatildeo apenas ruiacutedos espalhafatosos e alarmismosrdquo e diriam que a ameaccedila do castigo no

fogo eterno natildeo passa de um instrumento despreziacutevel para que a ldquohumanidade viva retamente

por medo e natildeo porque a virtude eacute bela e gratificanterdquo (II91) Haacute indiacutecios de que Chrysippus

de Solis dizia que Platatildeo errava em fazer do temor aos deuses um instrumento para a detenccedilatildeo

da injusticcedila e que o argumento do castigo divino natildeo eacute diferente das histoacuterias que as matildees

contam para assustar as criancinhas576 E ainda segundo Diogenes Laertius Crisipo

sustentava que a ldquovirtude [] eacute uma disposiccedilatildeo harmoniosa escolha digna para seu proacuteprio

bem e natildeo de esperanccedila medo ou qualquer outro motivo externordquo577 Em sua soluccedilatildeo Justino

toma emprestado o argumento de Alexandre de Afrodiacutesias578 que defendeu a responsabilidade

moral humana e diz ldquose isto natildeo eacute como dizemos entatildeo natildeo existe Deus ou se existe natildeo se

importa em nada com os homensrdquo579 Virtude e o viacutecio nada seriam e em consequecircncia nem

os legisladores castigariam com justiccedila os que transgridem as boas ordenaccedilotildees Segundo

Minns e Parvis580 a hipoacutetese de Deus natildeo se importar com os seres humanos parece refletir a

visatildeo estoica que estabelecia a teoria do bem e do mal ou virtude e infelicidade considerando

a proximidade com o universo natural e a administraccedilatildeo do mundo Assim quando

Chrysippus581 mantinha que a natureza universal e a administraccedilatildeo do mundo era o

fundamento da teoria estoica sobre o bem e o mal ele estava apelando agrave racional e

providencial atividade de deus cuja conformidade com o qual constitui o bem para o homem

e cuja carecircncia de conformidade constitui o mal

Todavia Justino pontua que os legisladores ldquonatildeo satildeo injustos e o Pai deles ensina

atraveacutes do Logos a fazer o que ele mesmo fazrdquo e neste sentido ldquonatildeo satildeo injustos os que

576 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1040b 577 Diogenes Laertius Vida dos filoacutesofos eminentes VII89 578 ldquopois se natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo e virtude e viacutecio eles argumentam tambeacutem natildeo haacuteacutelouvor ou reprovaccedilatildeo e sem estes natildeo haacute accedilotildees certas ou erradas e se natildeo haacute essas tambeacutem natildeo haacute virtude ou viacutecio e se natildeo haacute essas eles dizem natildeo haacute seque deuses Mas antes assim designadamente que natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo chega a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas vem a estar em concordacircncia com o destino como tem sido mostrado Desse modo a uacuteltima posiccedilatildeo segue tambeacutem mas isto eacute absurdo e impossiacutevel (Alexandre de Afrodisias De fato36) 579 II91 580 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 305 nota 1 581 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1035c-d

115

aderem a essas virtudesrdquo582 Assim o apologista constroacutei outro padratildeo ldquoracionalrdquo atraveacutes do

qual os juiacutezes deveriam julgar para natildeo serem julgados por Deus O novo fundamento da

justiccedila no cumprimento dos seus anseios apologeacuteticos se resume a deixar os cristatildeos em paz

pois segundo seu ponto de vista natildeo havia nenhuma evidecircncia de que os fieacuteis fossem inimigos

do Impeacuterio Ele busca convencer o Imperador e seus filhos a impedir que os governantes e

magistrados locais empreendam accedilotildees anticristatildes apontando as razotildees e a racionalidade cristatilde

43 O governo o controle e os governantes

Justino ndash nessas suas peticcedilotildees apologeticamente fundamentadas que tinham como

destinataacuterios especiais Antonino Pio e seus filhos583 reconhecidamente apreciadores da

filosofia ndash alega que natildeo havia nenhuma ldquorazatildeordquo [logos] para se perseguirem os cristatildeos pois

seria a proacutepria ldquorazatildeordquo [o Logos] quem exige que ldquoos amantes da piedade e da filosofiardquo584

natildeo faccedilam algo irracionalmente

No capiacutetulo anterior foi destacada a criacutetica de Justino sobre os governantes agora

poreacutem eacute oportuno notar o perfil do governante traccedilado pelo apologista dentro do seu

argumento da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem Segundo sua teoria os homens

revestidos de autoridade para governar natildeo devem valorizar nada aleacutem da ldquoverdaderdquo Aleacutem

disso a partir de sua inspiraccedilatildeo platocircnica nota-se sua exigecircncia agravequeles que satildeo ldquopiedosos e

filoacutesofosrdquo assim como satildeo chamados o Imperador e seus filhos que deveriam julgar com

retidatildeo para que todos gozem de bem estar Governar com retidatildeo eacute para Justino governar

segundo a ldquoreta razatildeordquo Esse conceito eacute cristianizado mas aleacutem disso um governante ideal

ldquosuperiorrdquo eacute reverenciado ldquoo logosrdquo A quem ele chama de ldquoo rei mais alto o governante

mais justo que conhecemos depois de Deus que o gerourdquo (I Apol 127) Manifesta-se um

jogo semioacutetico com a palavra logos ou razatildeo

582 II92 583 A I Apologia foi dirigida ao Imperador Antonino Pio e a seus filhos Veriacutessimo (Marco Aureacutelio) e Lucio Vero A II Apologia pode ser continuaccedilatildeo da primeira como sustentou C Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006) fragmentos de anotaccedilotildees de um segundo escrito que natildeo pode ser entregue quando Justino foi preso durante o iniacutecio do governo de Marco Aureacutelio por volta de 160 dC como sustentam Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 passim) A teoria mais tradicional eacute admitir que a II Apologia foi dirigida ao imperador Marco Aureacutelio mas como seraacute visto mais adiante haacute indiacutecios de que Justino tinha por destinataacuterios secundaacuterios todos os que pudessem ler o texto e se informar acerca da inocecircncia dos cristatildeos A soluccedilatildeo para a questatildeo dos destinataacuterios das Apologias exige uma investigaccedilatildeo agrave parte mas natildeo haacute duacutevidas de que Justino pretendia que se texto fosse conhecido por Antonino e seus filhos Marco e Lucio que desde cedo atuaram ao lado 584 I125

116

Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e recusem as

coisas maacutes e assim controlar os excessos humanos (I Apol 128) Do mesmo modo eacute o logos

quem deve orientar os governantes para que o bem ou a ldquosalvaccedilatildeordquo opere sobre o ldquogecircnero

humanordquo Por isso ele escreve ldquose os filoacutesofos e legisladores disseram e encontraram algo de

bom foi elaborado por eles pela investigaccedilatildeo e intuiccedilatildeo conforme a parte do logos que lhes

couberdquo585 Poreacutem por natildeo conheceram a integralidade do Logos que eacute Cristo ldquoeles

frequentemente se contradisseram uns aos outrosrdquo586 Aqueles que antes de Cristo tentaram

investigar e demonstrar as coisas pela razatildeo conforme as forccedilas humanas foram levados aos

tribunais como iacutempios e amigos de novidades Soacutecrates aparece como um exemplo que

ratifica a fala de Justino Segundo o apologista ele foi acusado ldquodos mesmos crimes que [os

cristatildeos]rdquo587 A condenaccedilatildeo seria em razatildeo da oposiccedilatildeo daquele filoacutesofo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica e

a outros poetas ensinando os homens a rejeitar ldquoos maus democircniosrdquo envolvidos com a

idolatria e ao mesmo tempo os exortando ao conhecimento de Deus para eles desconhecido

por meio de investigaccedilatildeo racional dizendo Natildeo eacute faacutecil encontrar o Pai e artiacutefice do universo

nem quando o tivermos encontrado eacute seguro dizecirc-lo a todos588 Todavia se ningueacutem deu

ouvidos a Soacutecrates ateacute que ele deu a sua vida por essa doutrina em Cristo acreditaram natildeo soacute

filoacutesofos e homens dos quais o proacuteprio Justino eacute um mas tambeacutem artesatildeos e pessoas

totalmente ignorantes que souberam desprezar a opiniatildeo o medo e a morte Justino pretende

assim apresentar o poder de abrangecircncia da mensagem cristatilde que deriva do Logos que em

parte foi conhecido por Soacutecrates pois como o apologista escreve ldquoele era e eacute o Logos que

estaacute em tudo e foi quem predisse o futuro atraveacutes dos profetas e feito de nossa natureza por

si mesmo nos ensinou essas coisasrdquo589

A partir desse tipo de comparaccedilatildeo retrata-se o caso que ocorreu sob Urbico na cidade

de Roma Eacute provaacutevel que outros casos como esse acontecessem em regiotildees diferentes590

Segundo Justino ldquoo fato eacute que em todas as partes haacute gente disposta a [] levar [os cristatildeos] agrave

morterdquo591 A reprovaccedilatildeo cristatilde das atitudes condenaacuteveis ou repreensiacuteveis de outras pessoas era

um dos motivos para que os cristatildeos fossem denunciados aos governantes ldquoendemoniadosrdquo592

Ele escreve especialmente sobre certa mulher cristatilde na eacutepoca do prefeito Urbico que

procurou persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e lhe 585 II102 586 II102 587 II105 588 II105-6 Citaccedilatildeo de Platatildeo Timeu 28c 589 II108 590 II11 591 II12 592 II13

117

anunciando o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme

a ldquoreta razatildeordquo Naquela ocasiatildeo a uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se

era cristatildeo Apoacutes confessar recebeu condenaccedilatildeo ao supliacutecio O mesmo aconteceu com Luacutecio

que tambeacutem advertiu a Urbico593 de que ele natildeo estava ldquojulgando de modo conveniente ao

imperador Pio nem ao Ceacutesar filoacutesofo nem ao filho de Ceacutesar amigo do saber nem ao sacro

Senadordquo (II216)

Justino procura persuadir o imperador seus filhos e demais autoridades a barrarem as

condenaccedilotildees dos cristatildeos num momento quando natildeo haacute indiacutecios do estabelecimento de uma

lei concreta sobre a puniccedilatildeo dos cristatildeos Em vaacuterias regiotildees e em situaccedilotildees variaacuteveis os atritos

ocasionados pela presenccedila e expansatildeo cristatilde ocasionavam denuacutencias tidas pelos proacuteprios

cristatildeos como ldquocaluniosasrdquo a respeito da nova religiatildeo As accedilotildees anticristatildes se refletiam

muitas vezes na busca por sua condenaccedilatildeo em discussotildees em praccedilas ou em denuacutencias

dirigidas aos magistrados Em meados do seacuteculo II as delaccedilotildees sobre os cristatildeos variavam

pois seus opositores procuravam brechas juriacutedicas para enquadraacute-los A superstitio cristatilde

poderia proporcionar o oacutedio de muitos que resistiam agraves suas implicaccedilotildees morais sociais ou

simplesmente religiosas Por isso as denuacutencias ou posicionamentos se contradiziam em

lugares e ocasiotildees diferentes Taacutecito identificou algumas flagitia nas praacuteticas religiosas cristatildes

ou nos comentaacuterios sobre elas mas essa natildeo foi a opiniatildeo de Pliacutenio Segundo que julgou os

cristatildeos dignos de condenaccedilatildeo somente pela contumaacutecia que apresentaram diante de um

magistrado Para outros deveriam ser rejeitados pelo seu ateiacutesmo Comer o corpo e o sangue

de Cristo tambeacutem poderia provocar suspeitas de canibalismo594

O apologista contrasta a imagem do ldquopiordquo e ldquosaacutebiordquo governante representada na figura

de Antonino e seus filhos agravequela do falso filoacutesofo ou seja aquele que estaacute contra a ldquorazatildeordquo A

sua morte em defesa da ldquorazatildeordquo cristatilde aparece como uma possiacutevel analogia a Soacutecrates

devido aos seus embates com Crescente em Roma O falso ldquofiloacutesofordquo eacute aquele que natildeo sabe

uma palavra sobre os cristatildeos mas os calunia publicamente como esses fossem ldquoateus e

iacutempiosrdquo595 Ele adapta a esse novo contexto Xenofonte596 que conta que em uma encruzilhada

vieram ao encontro de Heacuteracles597 a virtude e o viacutecio na forma de mulheres

O viacutecio estava vestido com roupas finas tinha rosto atraente e adornado com enfeites e disse a Heacuteracles que se ele a seguisse ela o faria viver sempre no prazer

593 II215 594 Cf MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 winter1994 pp 413-442 595 wj avlogoj kai avsebwn Cristianwn ontwn( (II82) 596 Memorabilia II121-34 597 Heraacutecles tambeacutem foi invocada por estoicos como exemplo de luta moral (Churniss em Plutarco De Communibbus Notitiis adversus stoicos 1065c em Moralia)

118

e enfeitado com o mais belo ornamento semelhante ao que ela usava Ao contraacuterio a virtude com rosto e veste severos lhe disse Se seguires a mim natildeo te enfeitarei com beleza ou adorno passageiro e corruptiacutevel mas com enfeites eternos e belos598

Semelhantemente Justino considera

estamos persuadidos de que alcanccedilam a felicidade todos aqueles que fazem dos bens aparentes e seguem o que parece duro e contra a razatildeo Porque a maldade veste as suas accedilotildees com as qualidades da virtude e do que eacute de fato bem remedando o incorruptiacutevel pois ela de si natildeo tem nada de incorruptiacutevel e nem eacute capaz de produzi-lo e torna escravos seus os homens que se arrastam pelo chatildeo atribuindo agrave virtude os males proacuteprios da maldade Contudo os que compreendem os bens verdadeiros proacuteprios da virtude tambeacutem se tornam incorruptiacuteveis pela virtude599

Desse modo Justino procura constranger o imperador a partir do seu argumento

apologeacutetico e do jogo semioacutetico em torno da ldquorazatildeordquo e da filosofia a ser favoraacutevel aos

cristatildeos pois natildeo seria de nenhum modo virtuoso combater ou permitir que sejam combatidos

aqueles que segundo seu ponto de vista tecircm muito a contribuir para a paz no Impeacuterio

A contribuiccedilatildeo da religiatildeo cristatilde eacute apresentada dentro do seu plano apologeacutetico que

busca convencer natildeo apenas dos efeitos positivos do caraacuteter de suas crenccedilas para a

manutenccedilatildeo da ordem mas tambeacutem na apresentaccedilatildeo de alguns pontos fundamentais do seu

conteuacutedo que rebatam as ldquocaluacuteniasrdquo dos acusadores e apresentem o seu aspecto ldquoracionalrdquo Ao

explicar alguns fundamentos da crenccedila cristatilde como o combate agrave idolatria eacute possiacutevel notar que

o apologista eacute sensiacutevel em sua anaacutelise agrave diversidade de ideias e crenccedilas que interagem e se

contradizem no Impeacuterio Essa contradiccedilatildeo aparece tambeacutem entre os intelectuais e as crenccedilas

do povo comum Segundo Paul Veyne600 ldquotodo erudito hesitava entre o ceticismo da alta

sociedade e o esoterismo cultivadordquo Isso leva Justino a formular um argumento que busque

apresentar os aspectos racionais das crenccedilas cristatildes ainda que isso se reduza a um jogo

semioacutetico e linguiacutestico em torno do logos De qualquer forma a religiatildeo cristatilde aparece como

uma opccedilatildeo de superaccedilatildeo tanto da religiatildeo pagatilde questionada pelos intelectuais em muitos

aspectos quanto como uma filosofia sublime ou superior601 que tem maior alcance e eficaacutecia

no controle das accedilotildees humanas602 Assim ele escreve ldquoem Cristo acreditaram natildeo soacute filoacutesofos

e homens cultos mas tambeacutem artesatildeos e pessoas totalmente ignorantes que souberam

598 II114-5 599 II116-8 600 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 280 601 ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Logos inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (II101) E tambeacutem ldquoas nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo (II152) 602 ldquoEntre noacutes tudo isso se pode ouvir e aprender ateacute daqueles que ignoram as formas das letras pessoas ignorantes e baacuterbaras de liacutengua mas saacutebias e fieacuteis de inteligecircncia e ateacute pessoas mutiladas e privadas de visatildeo De onde se pode entender que isso natildeo acontece pela sabedoria humana mas se diz que eacute pela forccedila de Deusrdquo (I6011)

119

desprezar a opiniatildeo o medo e a morte porque ele eacute a virtude do Pai inefaacutevel e natildeo um vaso

de humana razatildeordquo603

Apoacutes explicar os pontos fundamentais do pensamento cristatildeo Justino diz que ldquodaqui

por diante noacutes natildeo nos sentiremos irresponsaacuteveis mesmo que continueis increacutedulos pois o

que dependia de noacutes jaacute foi feito e chegou ao fimrdquo (558) Seguindo sua articulaccedilatildeo para

ratificar a fidelidade dos cristatildeos a Deus e ao Impeacuterio nota-se que o apologista faz uso do

proacuteprio efeito da doutrina cristatilde que sugere como instrumento de controle para persuadir o

imperador tambeacutem pelo possiacutevel temor Assim com um tom de advertecircncia ele escreve

[] se natildeo atendeis agraves nossas suacuteplicas nem esta exposiccedilatildeo puacuteblica que vos fazemos de todo o nosso modo de viver em nada ficaremos prejudicados pois cremos ou melhor estamos persuadidos de que cada um pagaraacute a pena conforme mereccedilam as suas obras pelo fogo eterno e que teraacute que prestar contas a Deus segundo as faculdades que recebeu do proacuteprio Deus conforme nos indicou Cristo dizendo A quem Deus deu mais mais seraacute exigido por Deusrdquo604 (I173-4)

Em outras palavras esse eacute um tipo de alerta ao imperador sobre a sua responsabilidade

diante de Deus devido a sua posiccedilatildeo de autoridade E como se deveria esperar de um

governante ldquopiordquo e ldquoamante da sabedoriardquo tal como foi idealizado no perfil construiacutedo por

Justino segundo sua leitura logocecircntrica Ou seja tendo a ideia do logos cristatildeo como

referecircncia o apologista escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da

verdade respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees

desprezai-as Natildeo decreteis poreacutem pena de morte como contra a inimigos contra aqueles

que nenhum crime cometemrdquo605 Sua peticcedilatildeo eacute seguida de outro alerta ldquoescatoloacutegicordquo ldquovos

avisamos de antematildeo que se vos obstinais em vossa iniquidade natildeo escapareis do futuro

julgamento de Deusrdquo606 Em outro ponto nesse mesmo sentido lecirc-se ldquose tambeacutem voacutes ledes

como inimigos estas nossas palavras aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis

fazer A noacutes isso nenhum dano causaraacute a voacutes poreacutem e a todos os que injustamente nos

odeiam e natildeo se convertem trar-vos-aacute castigo de fogo eternordquo (I456)

Aliada agrave ciecircncia dos benefiacutecios da religiatildeo cristatilde o apologista deixa claro o seu desejo

de que ldquotodos os homens de todo o mundordquo conheccedilam ldquoa verdaderdquo o que incluiacutea o imperador

e seus filhos Desses uacuteltimos deseja-se tambeacutem que julguem ldquocom justiccedila de acordo com [a]

piedade e filosofiardquo e que se possiacutevel publiquem esse escrito para o conhecimento de todos607

Natildeo eacute possiacutevel saber se as Apologias chegaram ateacute o imperador e eacute pouco provaacutevel

que ela tenha circulado amplamente conforme desejava Justino No entanto segundo Sara 603 II108 604 Fazendo menccedilatildeo a Lc 1248 605 I681 606 I681 607 II152

120

Parvis608 seu modo de escrever em defesa dos cristatildeos teria influenciado outros apologistas

As aproximaccedilotildees praticadas por esse pensador em sua manobra teoloacutegica buscam a conversatildeo

inclusive do imperador Em oposiccedilatildeo agrave forma controle que emerge dos clamores reativos

populares que estariam impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do nomen

Christianum o apologista acaba por formular uma reflexatildeo teoloacutegica da histoacuteria que

contempla a relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo Se por um lado estaacute a criacutetica agrave forma de

manutenccedilatildeo da ordem imposta pelos romanos que dava margem para que denuacutencias

decorrentes de atritos locais que conduziam os cristatildeos agrave morte por outro emerge a sua teoria

sobre a cooperaccedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo da sociedade devido ao caraacuteter de suas crenccedilas

Trata-se de um confronto de ideias cujos efeitos deveriam ser aguardados O modelo de

controle cristatildeo pode-se dizer eacute aquele que vem do alto ou de dentro Eacute fruto da assimilaccedilatildeo

da doutrina cristatilde que tem um Deus que zela pela justiccedila e pela moral e que exige uma

conduta impecaacutevel de todos os seus fieacuteis Os que creem e os que natildeo creem estatildeo sob a

condiccedilatildeo do seu juiacutezo O Deus cuja feacute os cristatildeos professam e procuram comunicar aos

demais natildeo tem nacionalidade Ele eacute o criador dos homens e da razatildeo [logos] Todo ser

humano recebeu uma semente dessa razatildeo mas os democircnios maleacutevolos satildeo os responsaacuteveis

por obscurecer o julgamento correto que conduz todo o genus humanus a uma vida reta justa

e virtuosa para a sua recompensa eterna Essa racionalidade humana eacute a responsaacutevel por fazer

com que os homens reconheccedilam e atentem para a mensagem pelo logos que revela Deus pelas

Escrituras ignoradas pelos judeus e examinas pelos cristatildeos Esse temor diante de Deus

entatildeo natildeo deveria ser rechaccedilado como uma superstitio despreziacutevel mas deveria ser acatada

como um mecanismo capaz de traduzir razoavelmente uma doutrina que agregue pontos de

aproximaccedilatildeo aos assuntos filosoacuteficos e a uma mensagem significativa para as pessoas sem

instruccedilatildeo Deve ser reconhecida natildeo como uma mensagem de odio humanus genus mas de

salvatio humanus genus609 sob o domiacutenio do Logos que se traduz na submissatildeo e conversatildeo

ao cristianismo

608 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 609 Isto eacute ldquosalvaccedilatildeo da humanidaderdquo

121

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

A situaccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II era instaacutevel e

revelava condenaccedilotildees esporaacutedicas Gritarias e tumultos puacuteblicos agraves vezes pressionavam os

magistrados para que condenassem os cristatildeos sem que houvesse uma ideia clara sobre como

enquadraacute-los em uma lei comum Um pouco antes Adriano havia sido consultado por

governantes610 como Graniano sobre esses problemas Naquela eacutepoca o imperador

recomendou a Minuacutecio Fundano que examinasse de modo particular as denuacutencias formais e

que natildeo desse espaccedilo para a pressatildeo dos tumultos puacuteblicos

Ainda um pouco antes a forma como deviam ser conduzidos os processos contra os

cristatildeos despertava algumas duacutevidas em Pliacutenio Segundo no Ponto-Bitiacutenia A crenccedila cristatilde era

vista como uma superstitio cujo temor os faziam repudiar os deuses comuns o culto ao

Imperador e todos os aspectos da vida puacuteblica que apresentasse algum viacutenculo com outras

crenccedilas e com a ldquoimoralidaderdquo Esse afastamento das interaccedilotildees sociais e o desprezo pelos

deuses tradicionais causou a aversatildeo de muitos das camadas populares e a desconfianccedila das

autoridades A estranheza dessa superstitio favoreceu a disseminaccedilatildeo de caluacutenias como a de

que a celebraccedilatildeo da ceia fosse algum tipo de ritual antropofaacutegico e que as reuniotildees cristatildes

privadas constituiacuteam-se em orgias Desse modo o nonem christianum assumiu uma forte

conotaccedilatildeo negativa pelas regiotildees do Impeacuterio A condenaccedilatildeo dos membros dessa nova religiatildeo

tinha precedentes desde a culpa pelo incecircndio de Roma nos tempos de Nero embora nenhuma

evidecircncia concreta a uma lei que condenasse o crime de ldquocristianismordquo seja encontrada na

primeira metade do II seacuteculo Trajano ratificou o procedimento de Pliacutenio em condenar os

cristatildeos por confessarem-se ldquocristatildeosrdquo todavia essas condenaccedilotildees tinham caraacuteter

admoestativo para desestimular o crescimento do grupo As buscas ou perseguiccedilotildees de fato

natildeo deviam entrar em curso Visava-se minar o corpo estranho representado pelo grupo

antissocial dos cristatildeos da sociedade e garantir a sua reintegraccedilatildeo mediante o perdatildeo aos que

abandonassem a feacute Se para alguns como Taacutecito a superstitio incidia sobre flagitia para

outros como Pliacutenio nenhum flagitium era detectado provavelmente eram produto das

caluacutenias e rumores das massas

A religiatildeo e os deuses tinham diferentes conotaccedilotildees entre a classe letrada entre os

poetas e para o povo sem instruccedilatildeo Desde os tempos de Platatildeo e Soacutecrates a filosofia

610 Deve-se considerar que a ldquoCarta de Antonino ao conciacutelio da Aacutesiardquo citada por Euseacutebio na Histoacuteria Eclesiaacutestica IV131-8 estava correta

122

sustentou criacuteticas agrave religiatildeo tradicional No II seacuteculo dC a influecircncia do cultivo do saber e do

exerciacutecio filosoacutefico podia ser percebida nas correntes de pensamento tais como o estoicismo e

o neoplatonismo que aproximavam a religiatildeo da moral Justino recebeu educaccedilatildeo grega e

provavelmente era filho de um funcionaacuterio romano Priscus cuja famiacutelia pode ter atuado na

colonizaccedilatildeo de Flavia Neaacutepolis na Palestina De laacute partiu para sua jornada pelos caminhos da

filosofia ateacute conhecer as doutrinas cristatildes Como ldquofiloacutesofordquo eacute possiacutevel que sustentasse criacuteticas

agrave forma de pensar das pessoas comuns considerada expressatildeo de ldquoexcessos supersticiososrdquo

Na condiccedilatildeo de cristatildeo passou a pensar a religiatildeo a partir da filosofia Desse modo a feacute cristatilde

passou a representar em seu pensamento a ldquofilosofia verdadeirardquo e ldquodivinardquo Diante dos atritos

sofridos pelos cristatildeos em seu tempo recorreu ao poder da argumentaccedilatildeo e da conveniecircncia

da escrita para defender os cristatildeos da ldquoinjusticcedilardquo sofrida Em uma peticcedilatildeo apologeticamente

fundamenta escreveu a Antonino Pio e a seus filhos clamando para que os cristatildeos natildeo

fossem condenados apenas pela confissatildeo de ldquocristianismordquo Para alcanccedilar o favor do

imperador Justino procura desfazer a conotaccedilatildeo negativa em torno desse nomen christianum

por meio da explicaccedilatildeo dos principais toacutepicos das doutrinas cristatildes e da afirmaccedilatildeo da

submissatildeo dos cristatildeos

A partir da reflexatildeo sobre suas ideias compreende-se o paradoxo entre tipo de controle

social desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia a esses (ou seja

os cristatildeos) que satildeo tidos como ameaccedila agrave ordem e por outro lado o tipo de controle social

apontado nas Apologias que daacute razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos Justino tece uma criacutetica jaacute

conhecida sobre a imoralidade dos deuses pagatildeos Ele natildeo se sente nem um pouco intimidado

em sustentar que os deuses nada satildeo aleacutem de uma ilusatildeo criada pelos ldquomaus democircniosrdquo para o

desvirtuamento dos homens Os ldquomaus democircniosrdquo satildeo os responsaacuteveis pelo obscurecimento

de toda a ldquoverdaderdquo A ldquoverdaderdquo eacute o conhecimento superior que conduz a humanidade agrave

moralidade e eacute reconhecida pelo exerciacutecio da ldquorazatildeordquo A ldquorazatildeordquo eacute algo divino compartilhado

a todos os homens e encarnada na pessoa de Jesus Cristo o mestre dos cristatildeos Sua

encarnaccedilatildeo eacute o cumprimento das profecias das Escrituras sustentadas pelos judeus que por

natildeo a compreenderem corretamente natildeo satildeo capazes de reconhecer o cumprimento da

expectativa messiacircnica611 Por reconhecer mediante uma hermenecircutica que busca identificar

o maacuteximo de evidecircncias possiacuteveis sobre o cumprimento das Escrituras em Cristo612 o

611 ldquoExpectativa messiacircnicardquo expressatildeo teoloacutegica utilizada para se referir a esperanccedila de que o messias libertador de Israel chegaria conforme os profetas israelitas haviam predito 612 Tambeacutem chamada de ldquohermenecircutica cristocecircntricardquo ou no que se refere agrave comunicaccedilatildeo da mensagem divina pelo Logos uma ldquohermenecircutica logocecircntricardquo

123

cumprimento das profecias julga prudente reconhecer as advertecircncias divinas pelas escrituras

sobre o julgamento futuro

Justino desenvolve uma leitura teoloacutegica da histoacuteria contrastando o julgamento a que

satildeo submetidos os cristatildeos e o julgamento final de Deus O primeiro considerado um

julgamento ldquoirracionalrdquo e momentacircneo movido pela cegueira produzida pelos maus

democircnios enquanto o segundo eacute idealizado como um julgamento divinamente justo e eterno

A accedilatildeo dos primeiros governantes estaacute relacionada a uma preocupaccedilatildeo com a manutenccedilatildeo da

ordem que os leva a acatar as denuacutencias caluacutenias e mobilizaccedilotildees contra os cristatildeos Eacute um tipo

de controle social que emerge de baixo pela repulsa do povo por aqueles que representavam

uma ameaccedila a pax deorum devido agrave condenaccedilatildeo ao culto dos deuses Justino acredita que em

meio agrave variedade de ideias e crenccedilas que constituem o quadro social do Impeacuterio os cristatildeos

natildeo deveriam ser reprimidos pelas autoridades por pensarem diferente Desse modo ele se

empenha em mostrar as correlaccedilotildees existentes entre as coisas sustentadas pelos cristatildeos e

outros pontos da cultura greco-romana Enquanto algumas correlaccedilotildees satildeo consideradas

estrateacutegias do democircnio para enganar os homens outras satildeo consideradas a manifestaccedilatildeo da

accedilatildeo do logos que comunica a verdade quer seja pelo conhecimento que os gregos tiveram

pelas Escrituras judaicas ou pelo logos spermatikos comum ao gecircnero humano Tudo o que

foi dito escrito ou julgado corretamente segundo a razatildeo eacute considerado consonante com o

posicionamento dos cristatildeos Pois eacute a ldquorazatildeordquo ou logos que deve conduzir as accedilotildees humanas

para a salvaccedilatildeo Desse modo aleacutem de procurar investir as doutrinas cristatildes de aspectos

racionais Justino tambeacutem busca deixar claro que os cristatildeos natildeo satildeo nenhuma ameaccedila ao

Impeacuterio Os fieacuteis satildeo apresentados como os melhores cooperados do Impeacuterio na manutenccedilatildeo

da paz devido ao caraacuteter das suas doutrinas Contrastando em alguns pontos com o tipo de

controle exercido sobre os soldados que juram fidelidade sem esperarem algo duradouro em

troca Justino fala do tipo de controle que vem ldquodo altordquo A crenccedila no controle absoluto do

Deus cristatildeo eacute apresentada como uma alternativa para solapar a incoerecircncia manifestada na

reverecircncia a deuses tatildeo desregrados e impiedosos quanto aos seres humanos que natildeo

poderiam servir de exemplo de conduta Natildeo haacute muitos detalhes acerca da moralidade cristatilde

mas ela parece estar relacionada agrave moderaccedilatildeo a restriccedilotildees sexuais ao respeito agrave verdade e aos

outros Segundo essa crenccedila cristatilde toda pessoa eacute livre para escolher como deseja viver mas

um dia estaraacute diante do juiacutezo do Deus absoluto do qual ningueacutem pode esconder nada

Tambeacutem eacute nesse sentido que satildeo identificados os cristatildeos Os cristatildeos satildeo definidos como

praticantes de um ideal de vida a seguir fortemente caracterizado pelo moralismo estrito

124

Desse modo Justino acredita que a disseminaccedilatildeo das doutrinas cristatildes poderia servir para

controlar os excessos humanos e as injusticcedilas

Esse tipo de ferramenta de controle foi empregado inclusive para constranger o

imperador a ouvi-lo Aleacutem de considerar irracional desprezar a doutrina dos cristatildeos o

apologista faz uso dessa ferramenta de controle para destacar que a uacutenica coisa que os

romanos poderiam fazer pelos cristatildeos em sua oposiccedilatildeo era lhes tirar a vida algo que

ironicamente o apologista considera insignificante visto que todos um dia morreratildeo Todavia

sustentando que a vida natildeo termina no tuacutemulo Justino alerta que a injusticcedilas como essas

Deus retribuiraacute um dia o castigo eterno enquanto para os que satildeo piedosos e justos estaacute

guardada uma ldquorecompensa eternardquo

Talvez as Apologias de Justino nunca tenham chegado ao seu destinataacuterio

especificado E se chegaram natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que tenham surtido um efeito

positivo Justino morreu anos mais tarde Todavia seu martiacuterio nos tempos de Marco Aureacutelio

tornou-se inspiraccedilatildeo para outros escritores como Atenaacutegoras ou Teoacutefilo de Antioquia Ao

revelar uma relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo a partir das accedilotildees anticristatildes seus escritos

se tornam peccedila fundamental para se compreender como as suspeitas e caluacutenias que incidiam

sobre os cristatildeos despertaram pessoas como esse mestre para pensar a relaccedilatildeo entre a nova

religiatildeo e a estrutura social e poliacutetica existente Se em siacutentese o que suas Apologias

pretendiam de fato era a retirada dos empecilhos para a conversatildeo dos pagatildeos elas satildeo

tambeacutem a primeira manifestaccedilatildeo da ideia de que para proporcionar a conversatildeo dos ldquooutrosrdquo e

o abandono dos rituais religiosos que permeavam a vida puacuteblica e os eventos sociais no

Impeacuterio era preciso pensar a religiatildeo cristatilde como uma alternativa que oferecesse algum tipo

de vantagem social e poliacutetica

Quando se busca por exemplo compreender as vantagens identificadas pelos romanos

na autorizaccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no IV seacuteculo manifesta-se a necessidade de se

investigar sobre as raiacutezes da aproximaccedilatildeo entre religiatildeo cristatilde e o Impeacuterio Eacute pelo exame das

Apologias de Justino Maacutertir que se percebe que em grande medida tal aproximaccedilatildeo eacute fruto

da reflexatildeo apologeacutetica que procurar livrar os cristatildeos da condenaccedilatildeo das autoridades romanas

e ao mesmo tempo em sintonia com a orientaccedilatildeo missionaacuteria na propagaccedilatildeo da mensagem

cristatilde busca livrar os romanos da condenaccedilatildeo eterna de Deus por meio da conversatildeo A

condenaccedilatildeo do culto aos deuses pagatildeos e da religiatildeo ciacutevica associada agrave contumaacutecia cristatilde em

natildeo contradizer suas crenccedilas em funccedilatildeo das determinaccedilotildees romanas exigiu uma reflexatildeo

sobre a sua contribuiccedilatildeo social para o Impeacuterio que os isentasse da culpa de traiccedilatildeo falta de

civismo ou algum tipo de conspiraccedilatildeo do ldquoreino de Deusrdquo Ateacute meados do seacuteculo II as

125

acusaccedilotildees variavam em cada regiatildeo e um paralelo que proporcione uma anaacutelise entre cada

uma delas tambeacutem parece ser um tema digno de uma investigaccedilatildeo especiacutefica e um desafio que

ainda precisa ser encarado

126

REFEREcircNCIAS

Fontes principais

MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005

MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006

JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995

Referecircncas gerais

AGOSTINHO de Hipona A cidade de Deus Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2000

ALCINOOS Enseignement des doctrines de Platon Les Belles Lettres Paris 1990

APHRODISIAS Alexandre drsquo De fato ad Imperatores Ed Guilaume de Moerbek e Pierre Thillet Paris J Vrin 1963

APULEIO Lrsquoautodifesa (apologia di segrave e della magia) Ed Bruno Cassianelli Caserta Edizioni UTEM 1948

AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] vol29 n2 pp 341-356 2010 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019

ANDRESEN C Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft Berlin-New York v44 pp157-195 1952-1953

ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Walter de Gruyter und co Berliacuten 1955

ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris Librairie Alphonse Picard et Fils 1909

127

ARISTIDES Aelius Orationes In Aristides ex recensione Guilielmi Dindorfii Leipzig Weidmann 1829

ARZANI A A teologia do loacutegoj no Quarto Evangelho Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Escola Superior de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008

ATHENAGORAS A Plea for the Chrstians In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995

AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875

AYRES Lewis LOUTH Andrew YOUNG Francecircs M (org) The Cambridge history of early Christian life New York Cambridge 2007

BAGATTI B S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319

BARCELOgrave P Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002

BARNARD L W Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology v 22 n 2 pp 152-164 jun1969

________ Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967

BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 pp 30-50 1968

BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 pp 538-555 2009

BAUMGARTNER M Social control from below In D Black (ed) Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 Orlando Academic Press 1984

BAYET Jean La religion romaine histore politique et psychologique Paris Payot 1976

BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998

BENNET J Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005

BENOIcircT Simon Giudaismo e Cristianesimo una storia antica Bari Laterza 2005

128

BIBLIA Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50])

BIBLIA Sagrada ediccedilatildeo da CNBB 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2002

BLACK Donald The Behaviour of Law New York Academic Press 1976

_______ Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 New York Academic Press 1984

_______ Toward a General Theory of Social Control Selected Problems Vol 2 New York Academic Press 1984

BLANT E le Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373

_______ le Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373

BLUNT A W The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911

BOBICHON P lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 pp 157-158 2003

BOFFO Laura Iscrizioni greche e latine per lo Studio della Bibblia Brescia Paideia Editrice 1994

BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101

BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950

BRENT Allen A political history of Early Christianity London TampT Clark 2009

BUELL Denise K Why this new race ethnic reasoning in early Christianity New York Columbia University Press 2005

BULTMANN R Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004

BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985

BURNS Stacy Lee Ethnographies of law and social control Oxford Elsevier 2005

Carta a Diogneto In Padres Apologistas Satildeo Paulo Paulus 1995

CHADWICH H Early Christian Thought and the Classical Tradition Oxford Clarendon Press 2002

129

________ Introduction In ____ (Ed) Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi

________ Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 (v 47)

________ The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001

________ The gospel a Republication of the natural religion in Justin Martyr Illinois Classical Studies n 18 pp 237-247 1993

CLEMENT of Alexandria Protrepticus In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

________ Stromata In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832

CHROUST Anton-Hermann AristotleProtrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964

CICERO M Tullius De Natura Deorum Edited by O Plasberg Leipzig Teubner 1917 pp 136-137

_________ Tullius De Legibus Georges de Plinval (ed) Paris Belles Lettres 1959

CLARK Gillian Christianity and Roman Society Cambridge Cambridge University Press 2004

CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999

COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp1507-1562

COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985

COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987

COPETE Juan Manuel Corteacutes Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004

130

COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008

Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonnae E Webere 1832

CULMANN O Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002

CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938

DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000

DANIELOU J Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975

De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted- A Rejoinder Past and Present n27 pp28-33 1964

De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 pp6-38 1963

DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000

DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940

DIOGENES Laertius The life of the eminents philosophers Ed Robert Drew Hicks LondonNew York W HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1925

DION Cassius Histoire Romaine V 9 Editado por E Gros Paris Librairie de Firmin Didot Fregraveres Fil Et C Imprimeurs de LrsquoInstitut 1867

DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 p 24 2005

DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963

DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990

DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106

DURRY Marcel Durry Pline-le-juene Paris Le belle Lettre 1972 p 7071

131

ECK Werner The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 195-213

ENDSJO Dag Oistein Greek resurrection beliefs and the soccess of Christianity New York Palgrave Macmillan 2009

ESTRABAtildeO Geography London Heinemann 1949

EUSEBIO de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduzido por Wolfgang Fischer Satildeo Paulo Novo Seacuteculo 2002

EUSEBIUS Die Chronik des Hieronymus heraugegeben und in 2 Auflage bearbeitet von R Helm 3 unveraumlnderte Auflage mit einer Vorbemerkung von U Treu GCS 31 Berlin Akademie Verlag 1984

FARNELL R L Greek hero cult and ideas of immortality Oxford Carendon Press 1921

FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa

________ La relacioacuten entre razoacuten y revelacioacuten em la antropologiacutea de Justino Maacutertir Teologiacutea y Vida v LII pp 35-50 2011

FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006

FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967

FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012

FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11

GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52

GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995

GOFFMAN E Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006

__________ Relations in Public New York Basic Books 1971

GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946

132

GOODENOUGH E R Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923

GOODMAN R ROWLAND C Apologetics in the Roman Empire Oxford Oxford University Press 1999

GOODSPEED E Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914

GRABE J E SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703

__________ SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700

GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988

GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951

GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18--

HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010

__________ The appropriateness of the apologetical arguments of Justin Martyr Tesis submitted for the Master of Philosophy Australian Catholic University 2008

HARNACK A Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274

__________ Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882

__________ Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99

__________ The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962

HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844

HENTEN Jan Willem AVEMARIE Friedrich Martyrdom and noble death selected texts from Graeco-Roman Jewish and Christian Antiquity New York Routledge 2002

133

HIPPOLYTUS The refutation of all heresies Traduzido por Rev J H MacMahon In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 5 Fathers of the Third Century Hippolytus Cyprian Caius Novatian Appendix Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

Historiae Augustae v I text latin with english translation by David Magie London Harvard University Press 1921 (Loeb Classical Library)

HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885

HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897

HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931

HORWITZ E A The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990

HUNT Emily J Christianity in the second century a case of Tatian New York Routledge 2003

HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703

HYLDAHL N Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965)

Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998

INNES Martin Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003

Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386

Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355

IRINEO of Lyon Againt Heresies Traduzido por Rev Alexander Roberts e James Donaldson In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene Fathers v 1 The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

ISOCRATES Busiris with an English Translation in three volumes by George Norlin PhD LLD Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1980

JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 pp 131-159 jun1979

134

JEROME GENNADIUS Lives of illustrious men Traduzido por Ernest Cushing Richardson In SCHAFF Philip (ed) Nicene and Post-Nicene Fathers 2 v 3 Theodoret Jerome Gennadius amp Rufinus Historical Writings New York Grand Rapids MI Christian Literature Publishing Co Christian Classics Ethereal Library 1892

JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961

JOLY E MOORE D Corpus Inscriptionum Latinarum vol VI pars VII fasc IV Berolini De Gruyter p 4262

JOSEgravePHE F Contre Appion Trad Th Reinach Paris Les Belles Lettres 1930

JOSEPHUS Flavius Jewish antiquities books XVI-XVII (Loeb Classical Library) Translated by Ralph Marcus and Allen Wikgren New York Harvad Press 1963

JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991

JOUCE Cullan The seeds of dialogue in Justin Martyr Australian eJournal of Theology 7 jun2006

JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995

JUVENAL Satiras In Juvenal and Persius With An English Translation G G Ramsay London New York William Heinemann G P Putnams Son 1918

KEITH Graham Justin Martyr and religious exclusivism Tyndale Bulletin 431 pp 56-80 1992

KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945

KERESZTES P Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 pp 204-214 dec1964

_________ Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986

_________ Rome and Christians Church I ANRW II 23 1 pp 260 274ss (1979)

_________ The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965

KHORENATSrsquoI Moses History of Armenians Traduzido por Robert W Thomson Ann Arbor Caravan Books 2006

KIMMEL G Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983

135

KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91

KRUEGER Paul MOMMSEN Theodor (Ed) Corpus iuris civilis I Institutiones Dublin Weidmann 1920 passim

KRUumlGER G Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896

LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934

LACTANTIUS The divine institutes Washington Catholic University of America Press 1964

LEWIS Charlton Thomas KINGERY Hugh Macmaster (Ed) An elementary latin dictionary New York American Book Co 1918

LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940

_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999

_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001

LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 pp 2146-312 1986

LUCIAN De morte Peregrini In Works with an English Translation by A M Harmon Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1936

_______ Menippus In The Works of Lucian of Samosata Translated by Fowler H W and F G Oxford The Clarendon Press 1905

LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]

MACMULLEN Ramsay Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997

__________ Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966

__________ Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981

MAIR AW GR MAIR Callimachus Hymn and Epigrams Lycophron With an English Translation by AW Mair Revised Version Cambridge MA amp London Harvard University Press 2000

136

MARAN P TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius

MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005

_________ Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994

_________ Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997

_________ Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 (2) pp 322-335 1992

MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007

MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 pp 413-442 winter1994

MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology v 8 pp 35ndash55 1982

MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 161v

_________ (Org) Patrologiae cursus completus series latina Paris Garnier-Migne 1878 217v

MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009

MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 pp 392-399 1890

MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 pp 3-32 1953

MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956

MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975

MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006

137

__________ LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p

__________ Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995

NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002

NASCIMENTO DFP O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia Pontificia Universidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003

NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzene Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129

OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992

ORIGIN Against Celsus In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997

OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889

OTTO JCT von Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876

PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988

PARVIS Sara Justin Martyr and Apologetc Tradition In PARVIS Sara FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007

________ FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007

PAUSANIAS Description of Greece with an English Translation by WHS Jones LittD and HA Ormerod MA in 4 Volumes Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1918

PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998

PERION Joachin Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum

138

Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis

PERKINS Judith Roman Imperial Identities in the Early Christian Era New York Routledge 2009

PFAumlTTISCH Johannes M Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910

PLATO Apology In Plato in Twelve Volumes Vol 1 translated by Harold North Fowler Introduction by WRM Lamb Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1966

______ Republic In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903

______ Law In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903

PLINIUS Caecilius Secundus Gaius Lettres Paris Belle Lettres 1953

PLUTARCH Moralia with an English Translation by Frank Cole Babbitt Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1928

POLYBIUS The Histories V III Translated by W R Paton Cambridge MALondon Harvard University PressWilliam Heinemann LTD 1979

POPE M The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000

POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005

PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988

QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197

RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972

REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004

ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89

ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) Bible Work 5 Software 2002

139

ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995

ROHDE Erwin Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966

ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981

ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141

ROSS Robert C Superstitio The Classical Journal v 64 n 8 pp 354-358 mai1969

ROUCECK Joseph Social Control Westport CT Greenwood Press 1970

RUSCONI C DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005

RUSSELL D S The Method and Message of Jewish Apocalyptic Philadelphia Westminster Press 1964

SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961

SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958

SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 pp 190ss 1954

SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review N 82 p 72 Jan1982

SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004

SENECA Apocolocyntosis WHD Rouse MA Litt D London William Heinemann 1913

SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008

SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 pp 23-27 1964

___________ The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952

140

SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987

SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 p 412 setdez 2009

SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006

SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944

SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011

________ I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349

STARK Rodney Baindridge Religion deviance and social control New York Routledge 1996

SUETONIUS The lives of the CAESARS In ROLFE JC (ed) SUETONIUS v II LondonNew York William HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1928

SUETONII C T De Vita XII Caesarum Harvard Loeb Classical Library 1914

SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012

SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946

SYLBERG F TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953

TACITUS C Annais In Complete Works of Tacitus Edited by Alfred John Church William Jackson Brodribb Sara Bryant New York Random House Inc Random House Inc reprinted 1942

________ Historiae Ed Charles Dennis Fisher Clarendon Press Oxford 1911

TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984

TATIAN Address to the Greeks Traduzido por JE Ryland In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004

141

TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899

TERTULLIAN Apology Traduzido por Rev S Thelwall In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001

________ Apology With tradution of TRGlover In GOOLD G P TertullianMinucius Felix Cambridge MassachusettsLondon Harvard University PressWilliam Heinemann 1978 pp 112-113 (The Loeb Classical Library)

________ Against the Valentinians Traduzido por Dr Roberts In SCHAFF Philip MENZIES Allan (ed) Anti-nicene fathers v 3 Latin Christianity its Founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2006b

THIRLBY S Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722

TITUS Livius History of Rome Cambridge Mass Harvard University Press 1970

TUAN Yi-fu Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983

URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932

VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006

VALANTASIS Richard Demons Adversaries devils fishermen The Asceticism of authoritative teaching (NHLVI3) in context of Roman AscetismThe Journal of religion v 81 n 4 pp 549-565 out2001

VEYNE P Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197

VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009

XENOPHON Apology In ____ Xenophontis opera omnia 2nd ed Oxford Clarendon Press 1921

WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991

WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987

WHIGHT ED The History of Heaven New York Oxford University Press 2000

WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 pp 181-190 1975

142

WINDISCH Hans Die orakel des Hystaspes Amsterdam Koninklijke Akademie van Wetenschappen 1929

WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982

143

APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS

A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450

ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C

segundo a forma estabelecida por Otto613

O Parisinus Graecus 450 ndash A ndash eacute o mais antigo manuscrito das obras de Justino

consideradas autecircnticas Ele eacute descrito como um conjunto de 467 foacutelios de 285x215 cm

terminado em 11 de setembro de 1364 segundo seu colofatildeo (fol 461a)614 Presume-se que

tenha sido adquirido em Veneza por Guillaume Pellicier bispo de Montpellirer e embaixador

francecircs naquela cidade de 1539 a 1542615 Natildeo eacute possiacutevel saber onde o manuscrito esteve

entre 1364 e 1540 Miroslav Marcovich616 considera ateacute razoaacutevel a hipoacutetese de A ter sido

produzido na Mistra617 do Deacutespota Manuel Cantacuzenos O antigo imperador John VI

Cantacuzenos pai de Manuel teria vivido contente como monge ateacute seus uacuteltimos dias

conhecido como Joasaph Era um homem culto e interessado nos assuntos teoloacutegicos Esse foi

um periacuteodo de prosperidade cultural e material no despotado de Morea618 Minns e Davis

identificam outros pontos que contribuem razoavelmente para indicar um centro maior como

Mitra ou Constantinopla Os primeiros cinco foacutelios que introduzem a coleccedilatildeo das obras de

Justino no A satildeo extratos de Photius e Euseacutebio sobre esse apologista Especificamente no

primeiro foacutelio aparecem indiacutecios de que o texto foi copiado ou adaptado de outro exemplar

Isso levaria a crer que A foi escrito em um lugar onde fosse possiacutevel ter acesso a outros textos

que auxiliassem na adaptaccedilatildeo Ter acesso agraves relevantes passagens de Photius no seacuteculo XIV

pode ser considerado algo raro619

Outro manuscrito completo das Apologias eacute o Phillippicus 3081 chamado B A partir

da anaacutelise de Bobichon620 B eacute reconhecido como um apoacutegrafo de A Sua dataccedilatildeo eacute de 2 de

abril de 1541 e apresenta uma assinatura no nome de ldquoGeorgerdquo provavelmente Georgios

613 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 614 MINNS D PARVIS P Justin Philosopher and Martyr Apologies Oxford Oxfrod Press 2009 p 3 615 ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris 1909 616 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 Cf Id Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 2 1992 p 322-335 617 Apoacutes o ano de 1261 a cidade ao sul do Peloponeso teria passado por um periacuteodo de ascendente prosperidade No seacuteculo XIV tornou-se importante centro cultural que teria sido capaz de influenciar o Renascimento na Itaacutelia 618 NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzenos Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129 619 MINNS PARVIS Op cit p 5 620 lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 p 157-158

144

Kokolos que viveu em Veneza e trabalhou para Guillaume Pelicier621 Acredita-se que B

tenha pertencido sucessivamente a Pellicier Clausde Noulot du Val ao Coleacutegio Jesuiacuteta de

Clermont em Paris e com a expulsatildeo dos Jesuiacutetas da Franccedila agrave coleccedilatildeo de Meermann E entatildeo

passou para a coleccedilatildeo de Sir Thomas Phillipps622 dando origem ao seu nome Por alguns anos

esses escritos estiveram no depoacutesito da British Library identificado como ldquoLoan 3613rdquo mas

foi retirado e vendido ldquoby private treatyrdquo em Marccedilo de 2006623

O coacutedice Ottobonianus 274 chamado de C tambeacutem tem certo valor na tradiccedilatildeo

manuscrita das Apologias mesmo contendo apenas trecircs capiacutetulos das mesmas Minns e

Parvis624 Marcovich625 Otto626 Harnack627 Blunt628 e Munier629 concordam que sua

qualidade eacute bem inferior a de A Mas quando se trata de saber se C eacute paralelo e independente

de A ou se eacute simplesmente uma coacutepia as opiniotildees se dividem Harnack630 considerou-o um

escrito independente de A Blunt destacou que ele parecia representar uma tradiccedilatildeo diferente

de A Marcovich e Munier segundo Minns e Parvis contentaram-se em apontar o demeacuterito

do texto Sem dar muitos detalhes sobre tais caracteriacutesticas de C Minns e Parvis se

esforccedilaram para argumentar que se trata de uma coacutepia de A feita agraves pressas Uma hipoacutetese

razoaacutevel eacute a de que o trecho da I Apologia 65-67 teria sido copiado pelo escriba Giovanni

Onorio atuante no Vaticano e em outros lugares de Roma por nomeaccedilatildeo do papa Paulo III em

1535 ateacute sua morte em agosto de 1563631 O restante de C teve outros escritores de diferentes

datas632 Ainda segundo a anaacutelise de Minns e Parvis633 a junccedilatildeo da ediccedilatildeo de Petrus Nannius

do De Resurretione Mortuorum de Atenaacutegoras ao conjunto de escritos proacuteximos aos extratos

das Apologias aponta para uma data natildeo anterior a 1541 Semelhantemente a Legatio de

Atenaacutegoras impotildee uma data natildeo posterior a 1557 quando a edito princeps foi impressa por H

Stephanus A visatildeo de Justino sobre a eucaristia teria sido de grande interesse teoloacutegico no

621 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 6 Vide nota 14 622 Esta trajetoacuteria apontada por Minns e Parvis eacute traccedilada por Archambault (Op cit v I pp xxiv-xxviii) e sumarizada por Bobichon (Op cit p 160) 623 Conforme Minns e Parvis (Op cit p 6) indicam e o Newslatter of the Association for Manuscripts and Archives in Research Collectons 46 mai2006 p 13 atesta 624 Op cit p 6 625 Op cit p 7 626 Op cit p xxviii 627 Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882 628 The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911 p lii 629 Justin Apologie pour les Chreacutetiens Paris Les Eacuteditons du Cerf 2006 p 86 630 Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99 631 MINNS PARVIS Op cit p 7 Ele indaca tambeacutem RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972 632 Conforme mostram Minns e Parvis (Op cit p 7) 633 Ibid p 8

145

periacuteodo que antecedeu e aos redores do decreto da eucaristia na deacutecima terceira sessatildeo do

Conciacutelio de Trento em 11 de outubro de 1551 Esses trecircs capiacutetulos do texto de Justino teriam

sido citados por Thomas Cranmer e Stephen Gardiner em 1549 antes de aparecer a editio

princeps Uma data proacutexima a 1548 eacute sustentada para esses dois primeiros foacutelios de C

Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra Parallela634 e no Chronicon

Paschale635 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo menos que doze vezes Na

Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito passagens No Chronicon Paschale

aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4 Esse uacuteltimo deriva provavelmente da

tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)636

634 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 635 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 636 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 13

146

Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos

Agostinho de Hipona 86

Alexandre de Afrodiacutesias 113

Apuleio 24

Aristides 15 24 33 49 55 58 109

Ata do Martiacuterio de Justino 22

Atenaacutegoras 24 109 123 143

Carta a Diogneto 49

Cassius Dio 9 13 14 34 36 48 49 67 88 97 103 111

Chronicon Paschale 18 128 144

Chrysippus de Solis 113

Cicero 43 139

26 31 43 71 74 87

Clemente de Alexandria 74 97

Diogenes Laertius 113

Eacutelio Aristides 58

Estrabatildeo 94

Euseacutebio 18 19 22 23 30 31 32 33 34 40 44 45 48 49 50 53 54 56 57 58 68 69

120 142 144

Flaacutevio Josefo 24 80 93 129

Histoacuteria Augusta 9 48 51

Homero 92

Irineu de Lyon 21

Isoacutecrates 86

Jerocircnimo e Gennadius 21

Juvenal 74

Lactacircncio 97

Luciano 21 37 58 73 95

Meacuteliton de Sardes 24 45

Oraacuteculos de Histaspes 97

Oriacutegenes 95

Oroacutesio 60

147

Papyri Graecae Magicae 92

Pausacircnias 94

Platatildeo 11 24 26 27 28 29 67 78 86 87 91 92 93 94 95 97 98 107 108 109 113 115

120

Pliacutenio 9 14 26 35 36 37 38 39 40 41 42 44 46 47 52 53 55 62 76 77 79 116 120

Plutarco 73 86 91 94 95 96 113 116

Poliacutebio 86 87

Quadrato 15 24 33 49 55

Secircneca 26 72 103

Suetocircnio 13 37 44 103

Taciano 21 24 27

Taacutecito 13 14 26 34 37 44 49 88 97 116 120

Teoacutefilo de Antioquia 24 123

Tertuliano 9 12 21 27 34 35 45

Tito Liacutevio 9 74 75

Varratildeo 86

Xenofontes 24 26

148

Iacutendice remissivo

acusadores 30 56 88 125

Adriano 7 10 15 16 27 35 37 40 41

42 44 49 50 51 52 53 54 55 56 57

58 59 60 61 62 63 71 72 84 90

106 128 143

alma 24 46 81 93 98 99 101 102 104

105 114 125 137

Antonino Pio 7 10 15 16 26 33 59 60

61 62 64 121 129

antropofagia 39

asebeia 36

Aacutesia Menor 15 26 32 55 83

ateiacutesmo 30 38 56 62 84 107 124

avsebeia 38

Bar Koseba 112

24 51 52 55 136

boatos maliciosos 63

caluacutenias

caluacutenia 7 34 39 40 47 48 56 81 82

83 84 88 91 96 108 119 125 128

130 131

canibalismo 30 56 84 124

castigo 6 31 44 56 61 74 85 91 94 96

97 98 104 113 114 120 123 126

131

coercitio 37 44

cognitio extra ordinem 45

controle social 14 16 17 18 64 65 67

68 69 70 77 80 82 113 127 129

130 131 133

costumes judaicos

costume judaico 39

Crescente 23 26 29 34 63 124

crime 17 31 37 39 40 42 47 57 58 62

67 68 84 89 90 93 126 128 139

culto ao imperador

culto imperial 38 52 81

decreto 47 64 76 79 114 148

democircnios

democircnio 11 74 78 79 81 88 89 91

96 106 107 108 110 111 112 117

118 119 122 127 129 130

denuacutencias

denuacutencia 7 34 37 41 43 47 55 56

58 82 90 91 123 124 127 128

130

desordem social 17

destino 29 52 104 105 107 113 120

Domiciano 36 48

epicureus 100 102

escola peripateacutetica 22

escola platocircnica

platonismo 22

estigmas

estigma 84 88 89

estigmatizaccedilatildeo 11 74 83 87

estoicismo 22 114 117 129

estoicos 92 100 102 104 124

exclusivismo 74

fariseus

fariseu 99

149

filosofia 7 12 16 22 23 27 28 30 33

38 65 71 73 92 93 99 100 101 102

103 106 118 122 125 126 129

filosofia estoica 38

flagitia

flagitium 14 36 39 40 46 47 48 50

90 124 128

gecircnero apologeacutetico 10 25 28

Graniano 15 16 53 56 57 128

Hades 92 99 101 102

Helena 107 120

Heraacuteclito 103 115 117

hetaerias 41

Histapes 103

Homero 98 101 102 107 115

incesto 14 39 59 84

inferno 105

injusticcedilas

injusticcedila 15 47 91 131

institutum neronianum 12 15 36 37 48

ius coertionis 37 45 50

julgamento 7 23 28 30 35 36 42 45 55

58 86 106 118 120 126 127 130

justiccedila 11 29 30 31 64 70 71 74 82

90 91 97 98 106 114 118 120 121

126 127

laesea maiestatis 37 40 45

livre-arbiacutetrio 113

loacutegoj sperermatikoj 26

Logos

logos 12 26 73 109 110 112 115

116 117 118 120 121 122 123

125 127 130 133 142 143

Luacutecio Vero 33

maiestas 47 56

manutenccedilatildeo da ordem 7 10 11 15 16 17

64 70 71 92 95 96 122 125 127

130

Marciatildeo 24 119 120

Marco Aureacutelio

M Aureacutelio 10 16 33 35 48 59 60 62

63 72 73 121 131

Menandro 104 107 120

Minuacutecio Fundano 16 53 54 56 58 128

Moiseacutes 114

moral 15 61 66 87 91 92 94 96 118

121 124 127 129

moralidade 7 70 91 94 108 119 129

131

morte 16 24 29 42 52 62 63 70 72 78

82 83 85 89 90 91 96 97 98 99

100 101 102 104 105 111 118 123

124 125 126 127 144 147

neoplatonismo 129

Nero 12 36 47 48 50 77 83 117 128

Nerva 38

nome cristatildeo

nomen christianum 30

nomen christianum 7 43 47 50 55 57

129

nomen Christianum 84 95 127

opiniatildeo puacuteblica 39 50 59

Ottobonianus Graecus 274 9 19 146

Parisinus Graecus 450 5 9 19 24 146

pax deorum 13 39 46 62 65 66 76 130

perseguiccedilatildeo 7 8 13 15 35 36 37 47 53

59 62 64 66 83 88

150

perseguiccedilotildees 13 15 27 47 65 66 81 87

89 106 128

peticcedilatildeo

libellus 27 31 32 33 34 62 71 90

126 129

Phillipicus 3081 19 146

pitagoacuterico 22

preconceito 63 88

reino de Deus 6 74 91

religio licita 38 45 55

rescrito 16 27 33 40 43 53 54 55 56

57 58 60 61 62 90

rescrito de Adriano 54 57 61

ressurreiccedilatildeo 99 100 102 105 109 111

112 144

retoacuterica 10 26 27 29 72 115

revelaccedilatildeo 11 105 107 115 116

Rusticus 23

sacrifiacutecios

sacrifiacutecio 42 48 64 74 75 79 81

sacrilegium 37 40 45 47 50

saduceus

saduceu 99

senatus consultum 36 48

Sibila 103 118

Simatildeo Mago 24

Soacutecrates 9 25 28 29 30 73 97 101 115

122 124 129

superstitio 7 8 14 35 37 39 40 42 43

45 46 48 52 55 58 85 90 91 94

124 127 128

superstitiones 14 46 94 101 102

temor 40 62 92 93 94 97 105 107 120

126 127 128

Tibeacuterio 15 16 36 48 103 139

toleracircncia 17 35 37 42 47 129

Tolomeu 61

Trajano7 10 15 32 35 36 37 38 39 40

41 42 43 44 47 48 49 50 54 55 56

57 58 59 60 61 66 84 90 128 133

143

Tumultos

Tumulto 62

Urbico 16 34 35 61 63 84 85 123

verdade 22 23 26 28 29 30 31 65 70

74 78 83 88 90 106 108 110 111

113 114 116 119 122 126 129 130

Vespasiano 22 32 117

viacutecio 99 113 114 120 121 124

virtude 6 91 92 96 99 112 113 114

115 120 124 125

151

Page 6: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 7: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 8: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 9: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 10: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 11: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 12: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 13: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 14: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 15: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 16: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 17: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 18: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 19: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 20: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 21: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 22: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 23: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 24: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 25: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 26: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 27: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 28: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 29: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 30: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 31: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 32: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 33: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 34: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 35: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 36: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 37: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 38: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 39: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 40: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 41: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 42: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 43: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 44: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 45: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 46: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 47: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 48: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 49: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 50: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 51: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 52: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 53: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 54: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 55: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 56: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 57: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 58: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 59: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 60: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 61: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 62: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 63: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 64: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 65: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 66: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 67: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 68: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 69: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 70: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 71: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 72: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 73: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 74: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 75: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 76: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 77: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 78: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 79: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 80: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 81: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 82: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 83: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 84: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 85: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 86: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 87: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 88: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 89: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 90: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 91: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 92: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 93: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 94: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 95: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 96: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 97: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 98: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 99: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 100: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 101: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 102: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 103: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 104: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 105: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 106: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 107: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 108: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 109: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 110: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 111: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 112: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 113: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 114: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 115: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 116: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 117: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 118: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 119: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 120: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 121: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 122: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 123: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 124: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 125: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 126: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 127: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 128: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 129: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 130: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 131: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 132: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 133: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 134: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 135: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 136: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 137: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 138: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 139: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 140: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 141: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 142: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 143: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 144: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 145: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 146: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 147: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 148: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 149: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 150: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência
Page 151: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS … · cada batimento do nosso coração. Sem ele nossos dias não poderiam ser contados. Dele depende o amanhã, nossa existência