universidade estadual de maringÁ programa de pÓs … · cada batimento do nosso coração. sem...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGAacute PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA
Aacuterea de Concentraccedilatildeo Instituiccedilotildees e Histoacuteria das Ideias
ALESSANDRO ARZANI
AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE
JUSTINO MAacuteRTIR
Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano
Maringaacute 2013
2
ALESSANDRO ARZANI
AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE
JUSTINO MAacuteRTIR
Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano
Orientadora Profordf Drordf Renata Lopes Biazotto Venturini
Maringaacute 2013
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria
3
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)
A797a Arzani Alessandro
As accedilotildees anticristatildes segundo as Apologias de Justino Maacutertir controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano Alessandro Arzani Maringaacute [sn] 2013
149p
Orientador Profordf Dra Renata Lopes Biazotto Venturini
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria ndash Universidade Estadual de Maringaacute
1 Histoacuteria do cristianismo 2 Perseguiccedilatildeo aos cristatildeos 3 Impeacuterio Romano 4 Justino Maacutertir I Venturini Renata Lopes Biazotto II Universidade Estadual de Maringaacute
Ficha Catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Mara R Colafatti - CRB 91272
4
ALESSANDRO ARZANI
AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE
JUSTINO MAacuteRTIR
Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
Profordf Drordf Monica Selvatici
Universidade Estadual de Londrina - UEL
Profordf Drordf Solange Ramos de Andrade
Universidade Estadual de Maringaacute - UEM
Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini
Universidade Estadual de Maringaacute - UEM
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria
5
Dedico este trabalho
ao senhor de todas as eras que natildeo pode ser submetido a qualquer estaticidade que se possa
imaginar no universo Ao que era desde o princiacutepio eacute agora e continuaraacute sendo
indefinidamente Ao que consola e agraves vezes oprime a qualquer que seja Ao que
cuidadosamente nos observa desde o primeiro instante de vida e que conta
cada batimento do nosso coraccedilatildeo Sem ele nossos dias natildeo poderiam
ser contados Dele depende o amanhatilde nossa existecircncia e nossa
histoacuteria Agravequele que acompanhou cada passo deste
desafio e que me fazia lembrar do valor de
cada instante Agravequele que muitos
simplesmente chamam de
ldquotempordquo
6
AGRADECIMENTOS
Agrave Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini minha querida orientadora pela confianccedila
incentivo amizade e paciecircncia durante essa jornada Eu confesso que nunca havia conhecido
algueacutem que carregasse em si de tal forma a franqueza e a doccedilura associadas ao rigor
acadecircmico como pude constatar em sua pessoa
Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) pelo
amparo financeiro para o desenvolvimento dessa pesquisa
Agrave Profordf Drordf Sara Parvis (University of Edinburgh) por sua gentileza em indicar
algumas informaccedilotildees importantes sobre o principal manuscrito das Apologias de Justino o
MS Parisinus Graecus 450
Agrave minha querida amiga Profordf Viviana L Felix (Universidad Catolica de Buenos
Aires) que generozamente compartilhou comigo artigos e momentos agradaacuteveis de fluecircncia de
ideias
Aos professores Drordm Mauro Pesce e Drordf Adriana Destro (Universitagrave di Bologna) pela
atenccedilatildeo em partilhar comigo algumas indicaccedilotildees bibliograacuteficas
Agraves professoras Drordf Maria Aparecida de Oliveria Silva (pesquisadora na UNESP-
Araraquara) e Drordf Giovanna Menci (Istituto Papirologico ldquoG Vitellirdquo dellrsquoUniversitagrave degli
Studi di Firenze) assim como tambeacutem ao nobre B Jobjorn Boman (Oumlrebro University) pelos
riquiacutessimos artigos compartilhados
Ao Profordm Me Deivid V Gaia (Universidade Federal de Pelotas) por haver gentilmente
compartilhado alguns documentos importantes conseguidos junto agrave Bibliothegraveque national de
France
Agraves professoras Drordf Monica Selvatici (Universidade Estadual de Londrina) e Drordf
Solange Ramos de Andrade (Universidade Estadual de Maringaacute) pelas ricas criacuteticas e
consideraccedilotildees que contribuiacuteram para o aprimoramento dessa pesquisa
Aos colegas Camila Santiago Luz Thiago Franccedila Thais Bassi Soares Profordm Drordm
Jaime Estevatildeo dos Reis e demais integrantes do Laboratoacuterio de Estudos Antigos e Medievais
(LEAM-UEM) pelo companheirismo e satisfaccedilatildeo proporcionada pela dedicaccedilatildeo conjunta aos
estudos histoacutericos
7
Ateacute voacutes apenas ouvindo que esperamos um reino logo supondes sem nenhuma averiguaccedilatildeo que se trata de
reino humano quando noacutes falamos do reino de Deus [] Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a
manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o
avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens
conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos os modos e se
adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos De fato aqueles que agora
por medo das leis e dos castigos por voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los porque
sabem que sois homens e que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutes se se inteirassem e se persuadissem de que
natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se
moderariam de todos os modos como voacutes mesmos haveis de convir
Justino Maacutertir I Apologia 111121
8
Resumo
A histoacuteria do cristianismo na primeira metade do II seacuteculo eacute marcada por atritos locais
denuacutencias em tribunais e caluacutenias que faziam do nome ldquocristatildeordquo um motivo de condenaccedilatildeo
Trajano Adriano e Antonino Pio fizeram suas recomendaccedilotildees aos governantes locais para
desestimular a expansatildeo da nova superstitio dos cristatildeos que demonstrava aversatildeo aos
deuses agraves tradiccedilotildees agraves celebraccedilotildees puacuteblicas e ao culto imperial Nenhuma perseguiccedilatildeo de
fato devia ser estabelecida denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas e os cristatildeos que
abandonassem a feacute deveriam ser perdoados os que se recusavam a abandonar a feacute eram
punidos com a pena capital segundo o julgamento de cada magistrado Nesse periacuteodo alguns
chamados apologistas produziram escritos em defesa dos fieacuteis Justino escreveu duas vezes
ao imperador Antonino e a seus filhos entre os anos de 154 e 161 Nas Apologias ele critica a
postura dos governantes por acatarem as caluacutenias das massas que acarretavam uma ideia
depreciativa ao nomen christianum A fidelidade cristatilde ao Impeacuterio eacute ratificada pelo
apologista que surpreende ao destacar a colaboraccedilatildeo dos fieacuteis na manutenccedilatildeo da ordem Por
meio desta pesquisa que tem por obejtivo analisar a relaccedilatildeo entre controle e religiatildeo a partir as
accedilotildees anticristatildes nesses escritos de Justino nota-se que esse tipo de accedilotildees foi fundamental
para que a funccedilatildeo social da religiatildeo dos cristatildeos fosse pensada no desenvolvimento desse
discurso apologeacutetico Nesse discurso procura-se justificar a rejeiccedilatildeo aos deuses e agrave
imoralidade por eles representada Atento agraves interrogaccedilotildees dos intelectuais e homens letrados
de sua eacutepoca satildeo destacados os aspectos tidos por ldquoirracionais e imoraisrdquo das crenccedilas pagatildes
enquanto a feacute cristatilde eacute apresentada em contornos racionais com o intuito de reconhececirc-la como
filosofia divina e superior agraves demais Nesse sentido a crenccedila num Deus absoluto justo e
onisciente aparece como um instrumento capaz de subter as pessoas agrave moralidade enquanto
aguardam a recompensa eterna e procuram se afastar da condenaccedilatildeo divina Eacute nesse momento
que a religiatildeo dos cristatildeos comeccedila a ser pensada como uma substituta agraves crenccedilas pagatildes
apontadas como incoerentes
Palavras-chave
Justino Maacutertir histoacuteria do cristianismo Impeacuterio Romano perseguiccedilatildeo aos cristatildeos
9
Abstract
The history of Christianity in the first half of the second century is marked by local clashes
accusations in court and slanders that made the name Christian reason for condemnation
Trajan Hadrian and Antoninus Pius made their recommendations to local governments to
discourage the expansion of new superstitio of the Christians who showed aversion to the
gods traditions public celebrations and the imperial cult No persecution in fact should have
been established anonymous reports should not have been accepted and if any Christian
abandoned the faith they should have been forgiven however those who refused to abandon
their faith were punished with the death penalty according to the judgment of each magistrate
During this period some Christians with high education produced writings in defense of their
faith Justin wrote twice to the Emperor Antoninus and his sons between the years 154 and
161 AD In ldquoApologiesrdquo he criticizes the attitudes of the rulers for accepting the slander of the
masses who were accusing the Christians The Christian fidelity to the Empire is ratified and
he highlights the collaboration of the faithful in the maintenance of order Through this
research on the relationship between religion and control as seen in the antichristian actions
reported in the writings of Justin it is noted that this type of action was essential to the social
function of the Christian religion to be thought in your apologetic discourse It seeks to justify
the condemnation of the gods and the immorality represented by them In attention to the
questions of intellectuals and men of letters of his age the irrational behaviors and immoral
aspects of the pagan beliefs are pointed by the apologist while the Christian faith is presented
in rational contours making it a divine philosophy and superior to the other In this sense the
Christian belief in an absolute God who is just and omniscient appears as an instrument with
the ability to teach and demand morality from its followers while they are awaiting the
eternal reward and actively trying to move away from divine condemnation It is then that
their religion begins to be thought of as a substitute for pagan beliefs which are pointed out as
incoherent with the order in the Empire
Key-words
Justin Martyr History of Christianity Roman Empire persecution of Christians
10
LISTA DE ABREVIATURAS
Hist Ecles Histoacuteria Eclesiaacutestica
Diaacutel Diaacutelogo com Trifatildeo
I Apol Primeira Apologia de Justino
II Apol Segunda Apologia de Justino
A Manuscrito Parisinus Graecus 450
B Manuscrito Phillipicus
C Manuscrito Ottobonianus Graecus 274
IGRR Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes
Apolog Apologeticus de Tertuliano
Hist Rom Histoacuteria Romana de Cassius Dio
Hist Aug Histoacuteria Augusta
ApS Apologia de Soacutecrates
PIR Prosopografia Imperii Romani
Ep Epiacutestolas de Pliacutenio
Hist Roma Histoacuteria de Roma de Tito Liacutevio
ANRW Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt
ZKG Zeitschrift fuumlr Kirchengeschichte
Ant Jud Antiguidades Judaicas
Guer Jud Guerras Judaicas
11
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 12
CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS 18
11 As principais ediccedilotildees das Apologias 18
12 A questatildeo da autoria Justino 22
13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino 25
131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica 26
132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino 27
14 Destinataacuterios 31
CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS 34
21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano 35
22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano 49
23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos 57
CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE
MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM 62
31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem 67
32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus 71
33 Sobre as leis e imoralidades 85
CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM
SOCIAL 91
41 O controle absoluto do controlador absoluto 91
42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde 100
421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios 102
422 A razatildeo que julga 109
43 O governo o controle e os governantes 115
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 121
REFEREcircNCIAS 126
APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS 143
Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos 146
Iacutendice remissivo 148
12
INTRODUCcedilAtildeO
Este que no dia 1 de junho eacute reverenciado pelas Igrejas Catoacutelica Ortodoxa Oriental e
Anglicana tem a apresentar um testemunho que vai aleacutem do seu martiacuterio Seus escritos
oferecem pistas importantes para o entendimento da condiccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no
Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II Muitos como o Papa Bento XVI o tecircm chamado
de ldquoo mais importante dos padres apologistas do segundo seacuteculordquo1 Poreacutem o que esta
pesquisa iraacute mostrar eacute que os escritos atribuiacutedos a esse ldquofiloacutesofo cristatildeordquo apresentam acima de
tudo os primeiros indiacutecios de uma efetiva reflexatildeo histoacuterico-teoloacutegica sobre a funccedilatildeo do
cristianismo na organizaccedilatildeo social
Dentre as pesquisas do seacuteculo XX sobre Justino recebe destaque primeiramente o
trabalho de Johannes M Pfaumlttisch2 em 1910 a respeito da influecircncia do pensamento de
Platatildeo sobre esse apologista Em 1923 foi publicada a obra de E R Goodenough3 que
apresentava uma sistematizaccedilatildeo do pensamento teoloacutegico desse que segundo seu ponto de
vista fazia jus ao nome de ldquomaacutertirrdquo ou seja algueacutem ldquoque daacute testemunhordquo mas que em
contrapartida estava longe de merecer o tiacutetulo de ldquofiloacutesofordquo Poucos anos mais tarde
destoando em alguns aspectos do pensamento de Goodenough empreendeu C Andresen4
uma anaacutelise sublinhando os traccedilos filosoacuteficos dos escritos de Justino em comparaccedilatildeo ao
meacutedio-platonismo que tinha um espaccedilo significativo no pano de fundo intelectual do II
seacuteculo dC A problemaacutetica da relaccedilatildeo entre as doutrinas cristatildes ganhou reforccedilo com a defesa
da tese de N Hyldahl5 em 1965 Na mesma deacutecada de 1960 eacute Lislie W Barnard6 quem
intersecciona os aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos e as ideias sobre o judaiacutesmo representados
nos escritos de Justino Aleacutem dos interesses teoloacutegico-filosoacuteficos em torno desses escritos haacute
tambeacutem uma busca por elementos que auxiliem a compreender a condiccedilatildeo dos cristatildeos no
1 PAPA BENTO XVI Audiecircncia geral Praccedila de Satildeo Pedro Vaticano 21 de marccedilo de 2007 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherbenedict_xviaudiences2007documentshf_ben-xvi_aud_20070321_pohtml acesso em 20 de dezembro de 2011 2 Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910 3 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 4 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf tambeacutem ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Berliacuten Walter de Gruyter und co 1955 5 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 6 Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967 cf tambeacutem id Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology V 22 n 2 jun1969 pp 152-164
13
Impeacuterio em meados do seacuteculo II Nesse sentido os escritos de Justino tecircm muito a contribuir
tanto para se pensar a influecircncia da cultura greco-romana sobre as ideias cristatildes quanto sobre
as accedilotildees anticristatildes
As conferecircncias de Henry Chadwich7 na The John Rylands Library em 1965
chamavam a atenccedilatildeo para a inter-relaccedilatildeo entre a filosofia e a teologia nascente percebidas nas
estrateacutegias de defesa argumentativa apresentadas por Justino contra a opressatildeo sobre os
cristatildeos Mas por que os cristatildeos foram perseguidos
As hipoacuteteses tecircm girado em torno de uma lei especial contra os cristatildeos instituiacuteda por
Nero institutum neronianum como chamou Tertuliano8 ou pelo enquadramento em crimes
comuns como maiestas ou pela livre accedilatildeo dos magistrados para manter a ordem ius
coertiones9 Na deacutecada de 1950 receberam destaque os trabalhos de Henry Gregoire10 A N
Sherwin-White11 e J Moreau12 Na deacutecada seguinte Geoffrey E M de Ste Croix13
estabeleceu um debate com Sherwin-White14 sobre essa questatildeo
GEM de Ste Croix sustentava que as perseguiccedilotildees aos cristatildeos baseavam-se na
recusa em reconhecer os deuses de Roma comportamento que era frequentemente
considerado perigoso e sedicioso Os deuses tradicionais do panteatildeo greco-romano eram as
divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma que exigiam culto para a estabilidade da
pax deorum15 Por essa perspectiva Ste Croix propunha que a perseguiccedilatildeo se relacionava ao
sentimento religioso da eacutepoca16 AN Sherwin-White por outro lado defendeu que as
perseguiccedilotildees aos cristatildeos natildeo se baseavam na questatildeo do rompimento da pax deorum mas na
aguda obstinaccedilatildeo dos cristatildeos em natildeo cometer apostasia nem sacrificar para os deuses do
Impeacuterio17 Tal postura dos cristatildeos desafiava as autoridades romanas e representavam uma
grave insubordinaccedilatildeo GEM Ste Croix deu uma treacuteplica a essa questatildeo em 196418 mas essa
problemaacutetica tem despertado pesquisadores ateacute hoje19
7 Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 8 Ad Nationis I78 9 BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 1968 pp 30-50 10 Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 1111 The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952 p 199 12 La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 13 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 pp 6-38 14 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 15 De Ste CROIX GEM Op cit 1963 p 24 16 Ste CROIX GEM Op cit 1963 pp 29-31 17 SHERWIN-WHITE AN Op cit 1964 pp 25 18 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 19 Cf BARNES Timothy D Constantine and Eusebius Cambridge MA Harvard University Press 1981 MacMULLEN Ramsay Christianizing the Roman Empire (AD 100-400) New HavenLondon Yale
14
A proclamaccedilatildeo cristatilde no I e II seacuteculos causava tanto conversotildees quanto reaccedilotildees
adversas entre os pagatildeos20 A religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio Romano era presente na vida dos
povos 21 Relembrando Marcel Simon e Andreacute Benoicirct22 eacute justo admitir que com a refutaccedilatildeo
de todos os compromissos e a sustentaccedilatildeo intransigente do monoteiacutesmo a Igreja parecia um
corpo estranho aos pagatildeos Distanciando-se dos eventos puacuteblicos normalmente envolvidos
com a idolatria condenada pela Igreja rejeitando o serviccedilo militar os jogos e as celebraccedilotildees
artiacutesticas os cristatildeos se autoexpunham agrave marginalizaccedilatildeo da sociedade
Entre o povo ou entre os intelectuais os cristatildeos eram vistos com estranheza ou
desconfianccedila23 Assim como foram caracterizados os judeus podia-se pensar que os cristatildeos
apresentavam um odio humani generis24 em parte devido aos comentaacuterios depreciativos que
se espalhavam entre o povo Foram caracterizados por Taacutecito como membros de uma
destrutiacutevel superstitio25 oriunda da Judeia Suetocircnio se referiu a eles como ldquoraccedila de homens de
uma superstitio nova e maleacuteficardquo26 As acusaccedilotildees ou suspeitas poderiam girar em torno de
delitos ou coisas consideradas repulsivas como infanticiacutedio incesto assembleias ilegais
introduccedilatildeo de cultos iliacutecitos e mais especialmente traiccedilatildeo sendo esta uacuteltima caracterizada pela
recusa em adorar a divindade do imperador27
As superstitiones e os cultos locais eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob
atenccedilatildeo Como destacam Mary Beard John North e Simon Price28 as controveacutersias poderiam
desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito
em 172 e 173 aC29 na incursatildeo da Traacutecia que foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que
University Press 1984 DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000 DRAKE Harold Allen Constantine and the Bishops the politics of intolerance BaltimoreLondon John Hopkins University Press 1999 CLARK Gillian Christianity and the Roman Society Cambridge Cambridge University press 2004 CHADWICK Henry The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001 FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006 20 GOODMAN Martin Mission and conversion proselytizing in the religous history of the Roman Empire Clarendon Press Oxford University Press 1994 p 12 21 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 Cf BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35 22 SIMON M BENOIcircT A Giudaismo e Cristianesimo una storia antica RomaBari LaterzaFigli Spa 2005 p 12 23 ldquoaqueles que por suas abominaccedilotildees eram mal vistosrdquo [quos per flagitia invisos] Taacutecito Annales 1544 24 ldquooacutedio agrave humanidaderdquo Ibid 25 exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo] Annales 1544 26 genus hominum superstitionis novae ac maleficae De Vita XII Caesarum Vita Neronis 162 27 MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 28 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 29 Cassius Dio Hist Rom LXXII4
15
conseguiu seguidores30 entre os druidas incitados por profecias sobre o fim de Roma da
Gaacutelia31 e nas revoltas judaicas do I e II seacuteculos dC Embora existisse um niacutevel significativo
de liberdades religiosa e individual os grupos e assembleias ficavam sob atenccedilatildeo das
autoridades Os baacutequicos os astroacutelogos e maacutegicos o culto de Iacutesis e a crenccedila dos druidas
tambeacutem enfrentaram a obstruccedilatildeo romana32
Paul Veyne faz diferenciaccedilatildeo entre os interesses dos homens letrados e das autoridades
preocupadas com a manutenccedilatildeo da ordem e o interesse da populaccedilatildeo pagatilde em geral Em sua
percepccedilatildeo a atitude de criacutetica dos romanos frente agraves comunidades cristatildes manifestava a
repulsa ao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguo33 Desse modo a rejeiccedilatildeo ao novo grupo religioso
do oriente deveria envolver um problema identitaacuterio tambeacutem relacionado agrave dificuldade de se
assimilar um grupo dotado de particularidades que pretendiam a superioridade diante dos
estabelecidos Justino tambeacutem sustenta uma tese em torno da questatildeo do ldquopor que os cristatildeos
eram perseguidosrdquo esforccedilando-se em convencer os romanos sobre as ldquoinjusticcedilasrdquo cometidas
contra os cristatildeos
Embora natildeo exista um consenso sobre o iniacutecio das perseguiccedilotildees no I seacuteculo34 eacute certo
que o estilo de vida e o conteuacutedo das crenccedilas cristatildes natildeo agradavam a muitos o que
culminava na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados
Natildeo haacute sinais de uma perseguiccedilatildeo generalizada no iniacutecio do II seacuteculo mas apareciam
atritos locais que por vezes culminavam na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados ou agredidos
pelo povo Pliacutenio Segundo natildeo sabia ao certo como proceder nos processos que julgavam os
cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia e chegou a pedir a orientaccedilatildeo de Trajano35 Sob Adriano36 o
governador da Aacutesia Menor Graniano tambeacutem levantou questotildees sobre esses processos
30 Cassius Dio Hist Rom LI255 LIV345-7 31 Taacutecito Historias IV546165 V2224 32 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 Cf AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 33 VEYNE Paul Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 pp 245-246 34 Marta Sordi (I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 15-29) por exemplo sustenta a tese de que a resposta negativa do Senado ao pedido de Tibeacuterio sobre o reconhecimento de Cristo entre os deuses oficiais teria tornado a feacute cristatilde em uma religio illicta Paul Keresztes defende que foi o institutum neronianum que primeiramente comprometeu a legalidade do grupo dos cristatildeos (Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214) 35 Governou de 98 a 117 dC 36 Governou de 117 a 138 dC
16
Nesse periacuteodo Quadrato e Aristides tambeacutem escreveram ao imperador em defesa dos cristatildeos
mas a situaccedilatildeo continuou a mesma sob o governo de Antonino Pio37
Justino que havia nascido em Flaacutevia Neaacutepolis38 atual Nablus uma cidade na antiga
regiatildeo da Samaria filho de pai latino e de um avocirc com nome grego estudou filosofia mas se
converteu ao cristianismo e se pocircs em defesa da feacute39 Escreveu suas Apologias entre os anos
de 154 e 161 aproximadamente em defesa dos cristatildeos levados aos tribunais e entatildeo
condenados agrave morte Aleacutem da previsatildeo de seu proacuteprio martiacuterio o apologista retrata ainda um
caso especiacutefico que ocorreu sob Urbico em Roma Seu discurso busca convencer o imperador
Antonino Pio40 de que os cristatildeos natildeo representavam nenhum tipo de ameaccedila e que seria
segundo seu ponto de vista uma grande injusticcedila condenar agrave morte aqueles que eram
colaboradores ldquoda pazrdquo no Impeacuterio41 Os problemas penais e de outros caraacuteteres juriacutedicos
abordados por Justino e comuns ao governo de Antonino Pio foram uma vez analisados por
Paul Keresztes42 que destacou a estrateacutegia desse apologista de interpretar o rescrito43 de
Adriano a Minuacutecio Fundano Todavia as Apologias desse pensador cristatildeo desafiam a
compreensatildeo de um capiacutetulo intrigante da histoacuteria das ideias religiosas cristatildes como esse
discurso em defesa dos cristatildeos apresenta em meio agraves proposiccedilotildees teoloacutegico-filosoacuteficas que
permeiam o texto uma leitura das accedilotildees anticristatildes conjuguando controle social e religiatildeo na
reprovaccedilatildeo da coaccedilatildeo imposta por Roma sobre os cristatildeos e na indicaccedilatildeo da funccedilatildeo
reguladora da religiatildeo cristatilde para a cooperaccedilatildeo na manutenccedilatildeo da ordem
Por isso essa pesquisa tem por objetivo principal compreender as relaccedilotildees entre
controle social e religiatildeo a partir da anaacutelise das accedilotildees anticristatildes praticadas ateacute meados do
seacuteculo II dC segundo as Apologias de Justino Maacutertir O exame de suas ideias deve
compreender o paradoxo construiacutedo em seu discurso entre o tipo de controle social
desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia aos cristatildeos que
tumultuam a ordem e por outro lado o tipo de controle social apontado nas Apologias que
37 Governou de 138 a 161 dC 38 I Apol 11 cf MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 127-129 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought New York Cambridge University Press 1967 pp 3-12 39 JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991 Cf mais informaccedilotildees no capiacutetulo I 40 E tambeacutem a seus filhos Marco Vero (que seria chamado Marco Aureacutelio) e Luacutecio Vero 41 I Apol 31ss I Apol 121ss 42 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129 Id Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214 Id The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 43 Rescrito em resposta aos questionamentos do governador anterior Graniano
17
daria razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos mediante um tipo de ordem derivado da proliferaccedilatildeo de
suas crenccedilas
Por ldquocontrole socialrdquo entende-se ldquoo conjunto dos recursos materiais e simboacutelicos de
que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de seus
membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo44 Ou ainda
seguindo a perspectiva de Martin Innes45 ldquocontrole socialrdquo refere aos mecanismos e
tecnologias empregados para manutenccedilatildeo da ordem social Esta por sua vez eacute composta de
diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais de alguma forma contribuem para a
constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social Nesse embate apologeacutetico do seacuteculo II satildeo
apresentados argumentos para convencer de que a feacute cristatilde natildeo estava propiacutecia a nenhum tipo
de desordem social e que pelo contraacuterio seria capaz de influenciar na formaccedilatildeo de suacuteditos
fieacuteis do Impeacuterio
Para o cumprimento do objetivo central dessa pesquisa as Apologias de Justino satildeo
estabelecidas como principal objeto e fonte de investigaccedilatildeo a serem submetidas agrave criacutetica
interna e externa segundo o desenvolvimento de uma anaacutelise histoacuterica46 Ao colocar as
Apologias de Justino no centro dessa anaacutelise busca-se delimitar um campo possiacutevel de anaacutelise
dentro do processo de expansatildeo do cristianismo pelos territoacuterios do Impeacuterio Romano tendo
em vista as vaacuterias formas de resistecircncias e aceitaccedilotildees Uma anaacutelise sobre Justino e a
sobrevivecircncia de suas Apologias eacute apresentada no capiacutetulo I e no Apecircndice I
44 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) Dicionaacuterio criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 45 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 46 TOPOLSKY Jersy Metodologia de la historia Madrid Ediciones Catedras 1992 pp 36-45
18
CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS
Para desenvolver uma investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre controle social e religiatildeo
nas accedilotildees anticristatildes de meados do seacuteculo II dC a partir das Apologias de Justino Maacutertir eacute
preciso responder a algumas perguntas baacutesicas sobre sua origem transmissatildeo e forma
Levando em consideraccedilatildeo que as Apologias foram redigidas originalmente haacute quase 1900
anos e passaram por diversos copistas e editores ateacute chegar agrave atualidade eacute necessaacuterio fazer um
raacutepido percurso analiacutetico sobre as ediccedilotildees e suportes materiais que garantiram a preservaccedilatildeo
do texto Isso deveraacute contribuir para a compreensatildeo de suas caracteriacutesticas atuais
Esse tipo de anaacutelise contempla as diferenccedilas entre as trecircs principais ediccedilotildees recentes
das Apologias Miroslav Marcovich47 (com a 1ordf ediccedilatildeo em 1995) por exemplo oferece uma
ediccedilatildeo seguindo o padratildeo apresentado no MS Parisinus Graecus enquanto Charles Munier48
(com ediccedilotildees em 1994 1996 e 2006) sustenta a teoria de que os dois textos seriam
originalmente uma mesma peccedila Denis Minns e Paul Parvis49 (2009) oferecem uma ediccedilatildeo
que aleacutem de considerar a II Apologia uma compilaccedilatildeo de fragmentos e anotaccedilotildees de Justino
transformadas em Apologia por terceiros ainda realoca partes da segunda peccedila para a
primeira fazendo-a ganhar dois capiacutetulos a mais do que as duas ediccedilotildees mencionadas
anteriormente
Assim seratildeo analisados a seguir alguns dos principais pontos sobre as ediccedilotildees o
tamanho original e os destinataacuterios das Apologias bem como as evidecircncias que apontam para
Justino como seu autor
11 As principais ediccedilotildees das Apologias
A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450
ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C
47 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 48 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 Id Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 49 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
19
segundo a forma estabelecida por T Otto50 Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar
com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra
Parallela51 e no Chronicon Paschale52 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo
menos que doze vezes Na Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito
passagens No Chronicon Paschale aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4
Esse uacuteltimo deriva provavelmente da tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)53
Em 1551 foi produzida a partir do MS A a editio princeps importante trabalho do
typographus regius Robert Estienne54 ou Robertus Stephanus Conforme a anaacutelise de Minns e
Parvis55 trata-se de um texto bem produzido Do mesmo modo que A a composiccedilatildeo de
Stephanus que foi dedicada a ldquoBiblioteca Realrdquo apresenta os extratos de Photius e Euseacutebio
sobre Justino A Apologia menor tambeacutem aparece antes da maior56 Natildeo haacute nenhuma divisatildeo
ou quebra de texto Apenas algumas variantes de A satildeo colocadas nas margens das paacuteginas
A primeira traduccedilatildeo das Apologias viria em 1554 por Joachim Peacuterion57 em Paris
Frederick Sylburg58 apresentou sua ediccedilatildeo em 1593 em Heidelberg seguindo rigorosamente
o texto de Robert Etienne Sabe-se tambeacutem que Feacutedeacuteric Morel publicou as Apologias de
Justino em 161559 As ediccedilotildees de Johann Ernst Grabe seguiram fieacuteis ao Stephanus mas
trouxeram duas inovaccedilotildees a ediccedilatildeo de 170060 em Oxford apresentou a Apologia maior como
50 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 51 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 52 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 53 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 13 54 Minns e Parvis oferecem a seguinte referecircncia TOU AGIOU FILOSOFOU KAI MARTUROS) ZHNA kai Serhnw|) LOGOS parainetikoj proj Hllhnaj) PROS TRUFWNA Ioudaion dialogoj) APOLOGIA uper Cristianwn proj thn Rwmaiwn Sugklhton) APOLOGIA b uper Cristianwn proj Antoninon ton euvsebh) EX BIBLIOTHECA REGIA LVTETIAE Ex officina Roberti Stephani typographi Regii Regiis typis MDLI Cum priuilegio Regis Devido agrave corrupccedilatildeo dos textos antigos nem sempre eacute possiacutevel identificar os tiacutetulos corretamente por isso satildeo apresentados aqui em letras maiuacutesculas As barras representam a separaccedilatildeo das linhas onde satildeo lidas as informaccedilotildees a respeito dos volumes referenciados 55 Op cit p 14 56 A I Apologia eacute a ldquoapologia maiorrdquo mas no MS A a ldquoapologia menorrdquo isto eacute a II Apologia vem primeiro 57 Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis 58 TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953 59 Minns e Parvis (Op cit p 15) mencionam que Feacutederic Morel tenha criado a categoria de ldquoApologistasrdquo lanccedilando uma coleccedilatildeo de texto Esta informaccedilatildeo pode ateacute estar correta mas os autores natildeo apontaram nenhuma referecircncia do tipoacutegrafo Sabe-se que ele publicou as Apologias devito as informaccedilotildees do seguinte cataacutelogo GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18-- 60 SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700
20
a primeira e a ediccedilatildeo de 170361 apresentou a obra menor como a II Apologia tal como satildeo
reconhecidas hoje e tambeacutem foram acrescentadas divisotildees de capiacutetulos diferentes das usuais
A ediccedilatildeo de Styan Thirlby de 172262 juntou as trecircs obras de Justino reconhecidas como
autecircnticas I e II Apologia e o Diaacutelogo com Trifatildeo O texto ainda era baseado em Stephanus
Em 1742 Prudentius Maran63 publicou sua obra com uma divisatildeo de capiacutetulos que se
tornaria a usual Segundo Minns e Parvis64 Maran teve acesso a A e B mas seu texto eacute
semelhante ao de Stephanus As Apologias da coleccedilatildeo Patrologia Graeca volume 6 de
185765 eacute a reproduccedilatildeo da sua ediccedilatildeo alocada na seacuterie de Jacques Paul Migne (1800-1875)
JCT von Otto66 publicou sua primeira ediccedilatildeo em 1842 e a terceira e definitiva em
1876 Ele natildeo ficou preso ao texto de Stephanus e apresenta o princiacutepio das ediccedilotildees criacuteticas
sugerindo modificaccedilotildees e melhoramentos do texto Em 1911 foi a vez de Alfred Blunt
Segundo Minns e Parvis67 a obra se baseou principalmente nos trabalhos de G Kruumlger68 que
se espelhou em Otto A ediccedilatildeo de Edgar Goodspeed69 em 1914 recorre a A C e agrave tradiccedilatildeo de
Euseacutebio e da Sacra Parallela poreacutem natildeo apresenta notas criacuteticas
Em 1994 Miroslav Marcovich70 publicou sua ediccedilatildeo criacutetica das Apologias Em 1997
publicou tambeacutem a ediccedilatildeo do Diaacutelogo71 A qualidade criacutetica destes textos passou a um alto
niacutevel Segundo a anaacutelise de Minns e Parvis72 as emendas de Marcovich satildeo de um teor
filoloacutegico tatildeo elevado e com intervenccedilotildees sobre o caraacuteter estiliacutestico de tal modo que eacute possiacutevel
duvidar que Justino tivesse um conhecimento tatildeo apurado de grego
61 SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703 62 Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722 63 TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius 64 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 16 65 MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 66 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 67 Op cit p 17 68 Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896 69 Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 70 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 71 MARCOVICH Miroslav Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997 72 Op cit p 18
21
Charles Munier tambeacutem apresentou em 199473 um volume simples das Apologias em
francecircs Em 199574 foi lanccedilada sua ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto grego Ele confessa natildeo ter tido
acesso agrave obra de Marcovich receacutem-publicada75 Sua ldquogrande obrardquo veio em 2006 uma ediccedilatildeo
criacutetica na coleccedilatildeo Sources Chreacutetiennes O ponto forte do texto de Munier satildeo os comentaacuterios
e a extensiva discussatildeo do contexto teoloacutegico e filosoacutefico76 As anaacutelises textuais natildeo satildeo
muito profundas mas contribuem significativamente com a indicaccedilatildeo de textos
correlacionados
A ediccedilatildeo criacutetica de Denis Minns e Paul Parvis77 ndash com texto grego traduccedilatildeo e notas ndash
foi publicada em 2009 Aleacutem da ampla revisatildeo das ediccedilotildees de outros autores o texto
apresenta um rico aparato criacutetico As interferecircncias no texto fazem a I Apologia chegar ateacute o
capiacutetulo 70
Em 1995 a editora Paulus preparou uma versatildeo das I e II Apologias e o Diaacutelogo com
Trifatildeo em um uacutenico volume78 O texto eacute problemaacutetico e muito simplista Natildeo haacute sinais de
criacutetica textual e podem ser encontrados alguns erros de portuguecircs A traduccedilatildeo foi feita por Ivo
Storniolo com introduccedilatildeo e notas de Roque Frangiotti mas natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo sobre
qual foi o texto base para a traduccedilatildeo Eacute evidente todavia que os editores natildeo contaram com
as ediccedilotildees de Marcovich Munier ou Minns e Parvis Por isso deixaremos este texto em
segundo plano
Nessa pesquisa as ediccedilotildees de Miroslav Marcovich79 Charles Munier80 e a de Denis
Minns e Paul Parvis81 satildeo lidas em conjunto comparando as divergecircncias sempre que for
necessaacuterio A interferecircncia na disposiccedilatildeo dos capiacutetulos adotada por Denis Minns e Paul Parvis
natildeo seraacute admitida A divisatildeo das Apologias seraacute tal qual a que apresenta Marcovich por ater-
se ao padratildeo comum agrave maioria dos estudiosos82 poreacutem a Apologia Maior seraacute chamada I
Apologia abreviado para I Apol ou simplesmente I quando jaacute houver uma citaccedilatildeo no
paraacutegrafo Semelhantemente a Apologia Menor seraacute chamada II Apologia abreviado para II
73 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p 74 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 75 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 90 76 Opiniatildeo tambeacutem compartilhada por MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 18 77 Ibid 346 p 78 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 79 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 80 Op cit 2006 81 Op cit 82 Cf MARCOVICH M Op cit 2005 p 10
22
Apol ou II nas mesmas condiccedilotildees que a primeira O texto de Munier segue a mesma
padronizaccedilatildeo de Marcovich no entanto ele prefere se referir a Apologia parte I e parte II
nomenclatura que natildeo seraacute seguida nesse texto O termo ldquoApologiasrdquo seraacute empregado como
referecircncia aos dois textos de Justino
12 A questatildeo da autoria Justino
A I Apologia (11) aponta explicitamente que seu autor eacute Justino homem oriundo de
Flaacutevia Neaacutepolis hoje conhecida como Nablus localizada na Siacuteria Palestina B Bagatti83
afirma que ela foi fundada por veteranos da conquista da Judeia sob Vespasiano por volta do
ano de 72 O avocirc de Justino Baquios pode ter participado da implantaccedilatildeo da cidade
O apologista se reconhece como conterracircneo dos samaritanos84 No Diaacutelogo com
Trifatildeo ele eacute identificado como ldquofiloacutesofordquo e nas Apologias fica evidente seu conhecimento da
filosofia Taciano chamou seu mestre apologista de ldquoo mais admiraacutevel85rdquo Irineu de Lyon fez
menccedilatildeo ao seu martiacuterio e carregou sua influecircncia em seu escrito86 Tertuliano87 atribuiu-lhe
dois tiacutetulos ldquofiloacutesofo e maacutertirrdquo O apologista tambeacutem recebeu um lugar no De viriis
illustribus de Satildeo Jerocircnimo e Gennadius88
Em seu Diaacutelogo com Trifatildeo89 ele eacute apresentado como um homem educado no estudo
da filosofia Segundo a narrativa do Diaacutelogo Justino conheceu o estoicismo frequentou a
escola peripateacutetica ficou junto a um filoacutesofo pitagoacuterico que lhe solicitou aprender muacutesica
astronomia e geometria Por uacuteltimo havia se aproximado da escola platocircnica quando entatildeo
conheceu os escritos dos profetas e a feacute cristatilde90 Segundo E R Goodenough91 Justino adota
uma dramatizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o cristianismo e a filosofia apresentando as passagens
por diversas escolas agraves quais critica rumo agrave ldquoverdaderdquo cristatilde Ele compara a narrativa de
Justino agrave de seu contemporacircneo Luciano em Menippus IVVI Em Menippus tambeacutem eacute
descrita a passagem por diversas escolas de pensamento chegando-se ao consentimento pelas
inuacutemeras contradiccedilotildees de que nenhuma delas tinha autoridade Goodenough tambeacutem vecirc a
83 S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319 84 Diaacutel 1206 II Apol 151 85 Discurso contra os gregos 191ss 86 Contra as heresias I281 cf IV62 V262 87 Contra os Valentinianos 51ss 88 Vida dos homens Ilustres 89 21ss 90 II Apol 81ss 91 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 pp 58-59
23
recorrecircncia dessa forma literaacuteria na descriccedilatildeo de verdadeiros proseacutelitos do judaiacutesmo Githro
Naaman e Rahab descritos na Tannaim92 N Hyldahl93 aleacutem de considerar a narrativa da
trajetoacuteria filosoacutefica de Justino mera ficccedilatildeo tambeacutem sustenta ser impossiacutevel determinar que
tipo de platonista esse pensador foi antes de sua conversatildeo e que a capa de filoacutesofo que usava
mencionada por Euseacutebio era um erro de interpretaccedilatildeo
Deve-se reconhecer como tambeacutem destacou L W Barnard que se por um lado havia
uma convenccedilatildeo literaacuteria grega ndash e que pudesse ser encontrada ocasionalmente ateacute no judaiacutesmo
ndash sobre as aventuras por diversas escolas a fim de criticaacute-las por outro lado isso natildeo contradiz
a admissatildeo da atual condiccedilatildeo de filoacutesofo cristatildeo assumida por Justino naquele momento Por
ldquofiloacutesofo cristatildeordquo natildeo se pretende dizer outra coisa senatildeo aquilo que ele mesmo confessa e
procura convencer os seus leitores a saber de que apoacutes conhecer diversas correntes
filosoacuteficas encontrou nas doutrinas cristatildes a ldquoverdaderdquo que o contentou94 Aleacutem disso o teor
apologeacutetico do discurso de Justino estaacute fundamentalmente relacionado a paralelos e
intersecccedilotildees com a filosofia C Andresen95 concorda que a trajetoacuteria filosoacutefica de Justino seja
mais do que um simples jogo literaacuterio Segundo Andresen e ele parece estar correto o meacutedio-
platonismo eacute a base da construccedilatildeo do pensamento cristatildeo de Justino
Em Roma Justino esteve engajado em debates com o filoacutesofo ciacutenico Crescente96
Segundo a Ata do Martiacuterio de Justino97 ele foi decapitado sob o julgamento de Rusticus
prefeito de Roma entre 162 e 168
A data e o local da conversatildeo de Justino satildeo imprecisos Eacutefeso tem sido cogitada como
uma boa hipoacutetese para o local de seu membramento ao cristianismo98 ou ainda algum ponto
na sua longa jornada da Palestina para Roma99 Minns e Parvis100 pensam que sua adesatildeo deve
ter ocorrido pelo menos uns 30 anos antes de sua morte Isso apontaria para uma data proacutexima
92 Ibid pp 58-59 93 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 94 Dial II1-6 95 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf FELIX Viviana Laura Elementos medioplatoacutenicos en la filosofiacutea de Justino IV JORNADAS NACIONALES DE FILOSOFIacuteA MEDIEVAL Academia Nacional de Ciencias de Ciencias de Buenos Aires Abril 2009 96 II Apol 31ss 97 Atti del Martiacuterio di San Giustino Caritone Caritoacute Evelpisto Ierace Peone e Liberiano Martirizzati a Roma In GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 Texto grego e traduccedilatildeo italiana a partir da obra de WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987 98 QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197 99 SKARSAUNE Oskar The proof from phophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provence theological profile Leiden EJBrill 1987 pp 245-246 100 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 33
24
agrave guerra judaica da deacutecada de 130 dC O Dialogo (1206) cita a I Apologia e desse modo
ambos os textos fazem referecircncia agrave revolta de Bar Kosiba entre os anos de 132 e 135101
Aleacutem das Apologias e do Diaacutelogo com Trifatildeo obras que satildeo reconhecidamente
proacuteprias a Justino Euseacutebio102 aponta que o apologista escreveu tambeacutem um livro contra os
gregos outro intitulado Elenchos um tratado sobre a soberania de Deus outro com o tiacutetulo
Psaltes e um escrito sobre a alma Um tratado contra Marciatildeo tambeacutem eacute citado mas essa
passagem corresponde a um trecho da I Apol 265-6103 Na sequecircncia dessa periacutecope da I
Apologia Justino disse que ele mesmo escreveu um ldquotratadordquo contra todas as heresias Esse
escrito poreacutem eacute dado por perdido No Dialogo 1206 o apologista diz ter aprestado um
escrito endereccedilado ao imperador no qual se refere a Simatildeo Mago104 o que eacute constatado na I
Apologia Eacute pertinente admitir que natildeo eacute possiacutevel saber se o texto que foi preservado ateacute agora
derivou daquele primeiro endereccedilado ao imperador Se seu trabalho foi entregue ao imperador
eacute provaacutevel que Justino tenha ficado com uma coacutepia
Minns e Parvis105 natildeo acreditam que seu texto tenha sido copiado com o intuito de ser
amplamente publicado Parece-lhes razoaacutevel sustentar a hipoacutetese de que o texto preservado
ateacute hoje pelo MS A deriva do documento que estava com Justino no momento de sua prisatildeo
Talvez tenha sido necessaacuteria uma reorganizaccedilatildeo do texto mais tarde com um propoacutesito
catequeacutetico ou apologeacutetico diferente do seu sentido original Entre sua emissatildeo original e o
teacutermino do trabalho do copista do Parisinus Graecus 450 em 11 de setembro de 1364106
muita coisa pode ter acontecido ao texto Todavia o principal obstaacuteculo a essa hipoacutetese eacute que
natildeo foram encontrados quaisquer vestiacutegios de um texto que ateste que o documento jaacute teve
outro formato sem os acreacutescimos catequeacuteticos Aleacutem disso as partes que tratam das crenccedilas
cristatildes estatildeo bem relacionadas agrave estrutura da obra e cumprem com seu propoacutesito
apologeacutetico107 Sua estrutura apresenta traccedilos comuns aos escritos de outros apologistas do II
101 Diaacutel 13 I Apol 316 102 Hist Ecles IV181-6 103 Hist Ecles IV118-9 104 Cf I Apol 262-3 105 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 34 106 Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005) calcula o ano de 1363 mas Bobichon ( lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 pp 157-158) apontou de forma mais satisfatoacuteria a data de 1364 com a qual Minns e Parvis (Op cit 34) e Munier (Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 84) concordam 107 A funccedilatildeo catequeacutetica da obra seraacute examinada mais propriamente no terceiro capiacutetulo parte 4 dessa dissertaccedilatildeo
25
seacuteculo induzindo Sara Parvis108 a pensar que Justino tenha sido o ldquopairdquo do gecircnero apologeacutetico
cristatildeo servindo de inspiraccedilatildeo para outros escritores da eacutepoca
Embora existam interrogaccedilotildees e divergecircncias sobre a unicidade ou biparticcedilatildeo das
Apologias haacute semelhanccedilas estiliacutesticas entre as duas partes que fazem com que Marcovich109
Munier110 Minns e Parvis111 concordem que os escritos procedam de Justino ainda que certas
modificaccedilotildees sejam admitidas durante o tempo conforme as irregularidades de alguns pontos
tecircm mostrado Eacute preciso ainda ter uma ideia clara sobre que tipo de escritos se estaacute
analisando tendo em vista que o conceito de ldquoapologiardquo como uma espeacutecie de gecircnero literaacuterio
eacute recente
13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino
Termo derivado da palavra grega avpologia significa basicamente ldquodiscurso de defesa
defesardquo Que tambeacutem deriva do verbo avpologeomai que representa o oposto de kathgoria
que significa ldquoacusaccedilatildeordquo112
No seacuteculo IV aC Platatildeo113 e Xenofontes114 cada um a seu modo narram a ldquoapologia
de Soacutecratesrdquo e proporcionam um tributo agrave valorizaccedilatildeo da razatildeo No I seacuteculo dC eacute Flaacutevio
Josefo115 quem eterniza um discurso desse tipo remetido a Aacutepion em prol dos judeus Josefo
defende a religiatildeo judaica salientando a sua antiguidade e contrastando a pretensatildeo grega agrave
superioridade no campo cultural O caraacuteter ldquoapologeacuteticordquo do texto como um ldquodiscurso de
defesardquo fica por conta da resposta a algumas alegaccedilotildees antijudaicas atribuiacutedas ao escritor
grego Aacutepion e os mitos acreditados por Manetho
No seacuteculo II dC Apuleio de Madura tambeacutem compocircs uma apologia pela qual se
defende das acusaccedilotildees de magia Eacute nesse mesmo seacuteculo que uma seacuterie de escritos como os de
Quadrato Aristides Justino Atenaacutegoras Meacuteliton de Sardes Teoacutefilo de Antioquia Taciano e
outros emerge em defesa dos cristatildeos que sofriam acusaccedilotildees principalmente na Aacutesia Menor
108 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 109 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 110 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 111 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 112 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 Cf RUSCONI C (Ed) DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 113
Apologia de Soacutecrates 114
Apologia 115 Contra Aacutepion
26
Para compreender os aspectos constitutivos das apologias de Justino eacute preciso analisar
as vaacuterias teorias sobre sua composiccedilatildeo e sua estrutura retoacuterica
131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica
As diferenccedilas estruturais de uma para a outra apologia de Justino exigem uma anaacutelise
especiacutefica Notadamente a II Apol eacute menor que a I Apol Minns e Parvis116 apresentam trecircs
teorias sobre o nuacutemero desses escritos de Justino
A forma como aparecem no MS A corrobora com a ideia de que sejam duas apologias
Mas enquanto a primeira eacute cheia de citaccedilotildees da escritura a segunda natildeo tem nenhuma citaccedilatildeo
desse tipo De modo bem peculiar eacute na II Apologia que aparece a reflexatildeo sobre o loacutegoj
sperermatikoj117 e o comprometimento de Justino no debate com Crescente A anaacutelise textual
da II Apologia eacute desfavorecida pelo tamanho do texto todavia as diferenccedilas proporcionais
entre os escritos satildeo somadas agrave hipoacutetese de que seriam de fato duas apologias
A segunda teoria sustenta a ideia de que originalmente a atual composiccedilatildeo dupla era
na verdade uma uacutenica Apologia Munier eacute aliado a essa proposta Ele considera que uma obra
uacutenica ndash um libellus ndash teria sido apresentada em Roma como requisiccedilatildeo pessoal endereccedilada ao
Imperador Antonino Pio e seus filhos para mudar a condiccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio118 O
principal argumento dessa hipoacutetese eacute que existe uma boa inclusio entre as referecircncias agrave
piedade e agrave filosofia no iniacutecio da primeira (I Apol 1 21-2 31) e os que aparecem no final da
segunda (II Apol 1213 e 14) As retomadas na segunda do tipo ldquoconforme dissemos
anteriormenterdquo seriam referecircncias ao que foi dito na parte imediatamente anterior e natildeo a
outro texto
De modo diverso Minns e Parvis119 consideram que a estrutura do texto ficaria muito
estranha se fosse pensada segundo essa teoria O cliacutemax da primeira parte estaria no rescrito
de Adriano quando o autor mostra a incoerecircncia das acusaccedilotildees e perseguiccedilotildees sofridas pelos
cristatildeos (I Apol 685-10) Isso tornaria incoerente recomeccedilar uma seccedilatildeo de defesa na parte
posterior Outro argumento desfavoraacutevel eacute que o escriba que picou o texto teria sido
demasiadamente astuto para escolher uma parte que marcaria precisamente a distinccedilatildeo de tons
entre os dois textos
116 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p22 117 Logos spermatikos que pode ser entendido de modo limitado com ldquosemente da razatildeordquo 118 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 119 Op cit p 22
27
Outra teoria sustenta que se trata de uma apologia e um apecircndice Minns e Parvis120
fazem saber que essa foi a teoria apresentada por Grabe121 em 1703 recebida por Harnack122
popularizada por Goodspeed123 em 1914 e ainda sustentada com entusiasmo por Marcovich124
em 1994 As correspondecircncias entre a primeira e a segunda estariam relacionadas ao material
deixado pelo proacuteprio Justino apoacutes concluir o texto definitivo A I Apologia pode ser
reconhecida como um libellus ou seja uma requisiccedilatildeo particular endereccedilada ao Imperador
mas a classificaccedilatildeo da II Apologia natildeo eacute muito precisa
Seguindo o raciociacutenio de Robert M Haddad125 qualquer peticcedilatildeo (libellus) apresentada
ao imperador buscava persuadi-lo a fazer alguma coisa De fato na Antiguidade a persuasatildeo
se tornou uma arte Desenvolvida pelos gregos a retoacuterica foi adaptada pelos romanos para
suas proacuteprias aspiraccedilotildees Ciacutecero Secircneca o Velho Taacutecito Pliacutenio o Jovem Quintiliano e
Fronto se tornaram nomes referenciais dessa habilidade Como foi apontado anteriormente
Justino era muito familiarizado com a filosofia mas natildeo se mostrou muito familiarizado com
a retoacuterica o que natildeo isentou seu texto de revelar uma estrutura comum agraves teacutecnicas dessa
disciplina126 No entanto esses aspectos ainda natildeo satildeo suficientes para oferecer uma
explicaccedilatildeo clara sobre o gecircnero das Apologias
132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino
Se a apologia de Soacutecrates diante do tribunal grego adaptada por Platatildeo127 e por
Xenofontes128 tornou-se um emblema da defesa da razatildeo no II seacuteculo dC foram as
120 Op cit p 23 121 HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703 Grabe atuou em parceria com Huntchim nessa ediccedilatildeo 122 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274 123
Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 passim 124 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 10 125 HADDAD Robert M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 Werner Eck escreve que o imperador romano era cercado por pessoas que procuravam influenciaacute-lo ou conseguir favores (Id The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000) 126 The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 21-28 127 Apologia de Soacutecrates 128 Apologia
28
acusaccedilotildees contras os cristatildeos que deram ldquorazatildeordquo agrave proliferaccedilatildeo de apologias em defesa da feacute
cristatilde que ainda natildeo apresentava uma sistematizaccedilatildeo coerente de suas ideias
Segundo a anaacutelise de Robert Grant a literatura apologeacutetica emerge de grupos
minoritaacuterios que estatildeo tentando desenvolver uma linguagem que seja compreensiacutevel agraves
culturas no Impeacuterio Romano para que por meio dela seja comunicada a mensagem cristatilde129
Satildeo vaacuterias as formas apresentadas para atestar a autenticidade das correntes religiosas
defendidas A apologia significaria algo mais do que uma simples defesa dos ataques sofridos
pela Igreja Seria uma forma baseada na defesa que Soacutecrates teria feito no seu julgamento
diante do povo de Atenas para mostrar a racionalidade de seu julgamento Os apologistas
cristatildeos teriam a ampla tarefa de estender possiacuteveis conexotildees entre as concepccedilotildees da filosofia
grega e aquela que para os cristatildeos era a ldquoverdade por excelecircnciardquo Mas esse processo
precisa ser analisado dentro do acircmbito missioloacutegico cristatildeo 130
A apreciaccedilatildeo helenizante estendida tambeacutem por Leslie W Barnard131 a todos os
apologistas eacute desajeitada O proacuteprio disciacutepulo de Justino Taciano opotildee-se agrave cultura grega
Poucos anos depois Tertuliano132 se mostraria o principal disseminador de um discurso que
estava longe de buscar os pontos comuns entre Jerusaleacutem e Atenas A comparaccedilatildeo com
Soacutecrates tambeacutem natildeo pode ser estendida a todos os apologistas
Justino poreacutem aleacutem de se referir positivamente a Soacutecrates como participante no logos
que autentica a racionalidade cristatilde proporciona uma analogia com a sua proacutepria condiccedilatildeo
enquanto prevecirc o seu martiacuterio em defesa da feacute cristatilde133
Em 1897 Th Wehofer em busca dos modelos literaacuterios de Justino observou que no
elogio dos mortos de Menexenus e na Apologia de Soacutecrates Platatildeo proporciona o modelo de
uma retoacuterica a serviccedilo da justiccedila e da verdade Sem duacutevida Justino conhecia os escritos de
Platatildeo Algumas correlaccedilotildees podem ser identificadas em trechos de suas Apologias I Apol
24 = ApS 30c 53 = 24b et 26c 82 = 30d 682 = 19a II102 = 24b Segundo Munier134
a exposiccedilatildeo temaacutetica progressiva encontrada nessa obra pode parecer uma desorganizaccedilatildeo
129 GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988 p 9 apud HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 31 130 Isso significa que as interconexotildees apologeacuteticas entre cultura greco-romana e cristianismo precisam ser contempladas como mecanismo dos discursos cristatildeos para proporcionar siginificaccedilotildees eficientes entre os povos de outras culturas cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990 131 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 2008 p 2(3) 132 Apolog passim 133 I Apol 51-3 II Apol 81ss 134 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 33
29
uma composiccedilatildeo aparentemente relaxada uma sucessatildeo aparentemente arbitraacuteria de
passagens dogmaacuteticas e pareneacuteticas que retoma abundantemente o mesmo tema abordando-o
sob uma perspectiva diversa Nota-se que um esquema preside a composiccedilatildeo geral das
Apologias
A estrutura essencial da Apologia de Soacutecrates por si soacute natildeo eacute suficiente para dar conta
do plano geral da obra de Justino As correlaccedilotildees entre o escrito de Platatildeo e o de Justino vatildeo
aleacutem do niacutevel estrutural Elas tambeacutem se mostram nos modelos de argumentaccedilatildeo De fato
este eacute o coraccedilatildeo mesmo da defesa que se funda sobre o exemplo de Soacutecrates condenado como
ldquoateu e iacutempiordquo135 Para Justino136 o destino traacutegico do filoacutesofo ateniense ilustra perfeitamente
a sorte dos cristatildeos ameaccedilados de morte
A diatribe de Justino contra Crescente toma uma funccedilatildeo analoacutegica Ela estaacute associada
agrave evocaccedilatildeo de Soacutecrates Assim como Meacuteletos tinha acusado Soacutecrates Crescente acusa os
cristatildeos de serem ldquoateus e iacutempiosrdquo a fim de agradar a multidatildeo insensata137 E como Soacutecrates
tinha oposto a seus acusadores sua indiferenccedila ao ldquotalento da palavra e sua uacutenica preocupaccedilatildeo
era dizer a verdaderdquo138 o desafio de Justino a Crescente se inspira na sentenccedila de Platatildeo139
ldquoDe modo nenhum se deve honrar mais a homens do que agrave verdaderdquo
Contudo a Apologia de Soacutecrates natildeo eacute um modelo literaacuterio estrito no qual Justino se
inspirou Segundo a anaacutelise de Munier140 o Protreacuteptico de Aristoacuteteles oferece tambeacutem
alguma correlaccedilatildeo mas isso natildeo deve significar que haja alguma dependecircncia intriacutenseca entre
esses escritos Aristoacuteteles se dedica a demonstrar que a filosofia converte todo seu valor agrave
vida em sociedade e que uma vida sem filosofia natildeo vale a pena de ser vivida Na medida em
que apresenta o cristianismo como uma ldquofilosofia divinardquo141 Justino poderia tirar o melhor
partido dos protreacutepticos142 de Aristoacuteteles de Isoacutecrate e de seus seguidores dedicados agrave
filosofia Mas essa semelhanccedila eacute apenas ocasional e natildeo intencional O apologista natildeo
esconde seu desejo de que o imperador se torne um filoacutesofo de Cristo Ele acreditava que se
seu pedido fosse aceito a feacute cristatilde espalharia benefiacutecios por todo o Impeacuterio143 Eacute nesse sentido
135 I Apol 53 136 II Apol 12 81-2 137 Cf WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991 138 Platatildeo ApS 17bc 139 Repuacuteblica X595c 607c 140 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 40 141 II125 142 Protreacuteptico exortaccedilatildeo Restam apenas fragmentos dos escritos protreacutepticos de Aristoacuteteles cf CHROUST Anton-Hermann Aristotle Protrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964 143 I 12 1-2 17 1-4
30
que ele recorre agrave maacutexima de Platatildeo144 ldquoSe governantes e governados natildeo satildeo filoacutesofos natildeo
pode haver felicidade nas cidadesrdquo
P Keresztes145 estava certo ao dizer que a caracteriacutestica marcante da Apologia eacute a
extensiva defesa dos cristatildeos contra as acusaccedilotildees de ateiacutesmo traiccedilatildeo canibalismo e agraves accedilotildees
caluniosas de modo geral Justino sustenta essa defesa tentando mostrar a exclusiva verdade
da religiatildeo cristatilde O principal propoacutesito das Apologias seria garantir que os cristatildeos tivessem
liberdade para professarem a feacute embora isso significasse a condenaccedilatildeo dos demais deuses
Tambeacutem fazia parte do propoacutesito chamar os pagatildeos a abraccedilarem o cristianismo Seus
conselhos retoacutericos no contexto servem ao propoacutesito de sugerir ao imperador que mude o
corrente curso da justiccedila Isso significa clamar por um julgamento comum que natildeo permitisse
a condenaccedilatildeo pelo ldquonome cristatildeordquo
Esses escritos do pensador de Flaacutevia Neaacutepolis satildeo dotados de certa particularidade em
sua composiccedilatildeo Mas se nota que a princiacutepio o apologista procurou valer-se do seu direito de
dirigir uma ldquopeticcedilatildeordquo ou libellus ao imperador
Na I Apol 74 ele faz sua requisiccedilatildeo usando o verbo normalmente empregado para
uma peticcedilatildeo em grego avxioun Assumindo a postura de um pensador compromissado com a
justiccedila e a verdade ele pede para que ldquosejam examinadas as accedilotildees de todos os que [] satildeo
denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por
outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo
ter cometido nenhum crimerdquo146 (I Apol 74) Uma requisiccedilatildeo desse tipo deveria ser
encaminhada ao escritoacuterio administrativo para ser ou natildeo subscrita e receber uma resposta O
equivalente grego para libellus eacute biblidion para subscribere o equivalente eacute u`pografein e
para postar uma resposta usa-se proqeiai no lugar de proponere147 Esta terminologia pode
ser precisamente encontrada na II Apol 141
Kai u`maj ou=n avxioumen u`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaj148148148148 to dokoun proqeinaiproqeinaiproqeinaiproqeinai touti to biblidionbiblidionbiblidionbiblidion( o[pwj kai toij alloij ta hmetera gnwsqh| kai dunwntai thj yeudodoxiaj kai avgnoiaj ton kalwn avpallaghvai( oi para thn
144 Repuacuteblica V 473de 145 The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965 p 109 146 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 pp 23-24 [Oqen pantwn twn kataggellomenwn umin taj praxeij krinesqai avxioumen( i[na o` evlegcqeij w`j adikoj kolazhtai( avlla mh wvj Cristianoj evan de tij avnelegktoj fanhtai( avpoluhtai w`j Cristianoj ouvden avdikon) MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 142-144 147 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 25 148 Grifos nossos
31
e`autwn aivtina u`peuqunoi taij timwriaij eivj to gnwsqhnai toij avnqrwpoij tauta(149
As proporccedilotildees desses textos ultrapassam os padrotildees de um libellus Para explicar essa
relativa incompatibilidade Minns e Parvis150 referindo-se apenas a I Apologia sustentam que
Justino usou de uma estrateacutegia por meio da qual ele adota esse tipo de documento
administrativo romano inserindo um material catequeacutetico e explanatoacuterio cristatildeo convertendo-
o em um dispositivo disseminador da mensagem de feacute Ou ainda traduzindo as palavras de
W R Schoedel151 trata-se de uma peticcedilatildeo apologeticamente fundamentada e sem precedentes
na tradiccedilatildeo literaacuteria greco-romana As diferenccedilas na estrutura da II Apologia natildeo permitem
dizer que se trata de um documento de outro autor pois as caracteriacutesticas do texto atestam sua
compatibilidade com a primeira peccedila O que faz multiplicar as interrogaccedilotildees sobre o segundo
texto eacute que mesmo apresentando traccedilos de uma segunda ldquopeticcedilatildeordquo ela eacute evidentemente menor
e dispensa um exordio bem formulado como o do primeiro escrito Mas essa propriedade da II
Apologia se tornaraacute mais clara a seguir na anaacutelise dos destinataacuterios
14 Destinataacuterios
Existem algumas variaccedilotildees entre a forma como a I Apologia eacute endereccedila no MS A e na
Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio A tabela a seguir foi construiacuteda seguindo as informaccedilotildees
apresentadas por Minns e Parvis152
MS A Euseacutebio HE IV12
a Antoninus Pius Augustus Caesar a Antoninus Pius Augustus Caesar
e a Verissimus seu filho e a Verissimus seu filho
Filoacutesofo Filoacutesofo
e a Lucius e a Lucius
Filoacutesofo do filoacutesofo
de Ceacutesar filho por natureza Ceacutesar filho por natureza
e de Pius por adoccedilatildeo e de Pius por adoccedilatildeo
149 MUNIER Op cit pp 364 366 TrldquoPortanto noacutes vos suplicamos que subscrevendo como vos pareccedila deis publicidade a este livro a fim de que tambeacutem os outros conheccedilam a nossa religiatildeo e se vejam livres da vatilde opiniatildeo e da ignoracircncia em relaccedilatildeo ao bem Por sua proacutepria culpa eles se tornam responsaacuteveis pelo castigordquo 150 Op cit p 25 151 SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72 152 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35
32
Eacute incluiacuteda ainda no manuscrito a expressatildeo ldquoao santo senado e a todo o povo dos
romanosrdquo entre os destinataacuterios da Apologia Minns e Parvis153 consideram esse uacuteltimo
trecho uma antiga adiccedilatildeo editorial Eles apontam que a expressatildeo ldquosanto senadordquo foi
comumente encontrada em moedas de bronze cunhadas na Aacutesia Menor154 Outras inscriccedilotildees
mostram essa expressatildeo vinculada agrave famiacutelia imperial e ao povo romano Vespasiano ldquoe toda
sua casa o santo senado e o povo dos romanosrdquo155 Trajano ldquoe toda sua casa o santo senado e
o povo dos romanosrdquo156 Marco Aureacutelio e Luacutecio Veroldquoe toda [sua] casa o mais santo senado e
o povo dos romanosrdquo157 Septimus Severus Caracalla Geta Julia Domna ldquoe toda a sua casa o
santo senado o povo dos romanos e os santos exeacutercitosrdquo158 Eacute possiacutevel indicar muitas outras
inscriccedilotildees mas o impasse identificado por Minns e Parvis estaacute relacionado ao fato de o
ldquosenadordquo e o ldquopovordquo aparecem no endereccedilamento de uma ldquopeticcedilatildeordquo como eacute caracterizada a
Apologia de Justino Entra na hipoacutetese a importaccedilatildeo da expressatildeo que ocorre na I Apol 563
ldquoPor isso noacutes vos suplicamos que o sacro senado e o povo romano conheccedilam este nosso
escrito []rdquo Ou ainda que a primeira ocorrecircncia do termo ldquosacro senadordquo seja a da fala de
Lucius a Urbicus na II Apol 216
Munier159 no entanto tem outra proposta Para ele eacute mais provaacutevel que tal expressatildeo
tenha assumido seu lugar em funccedilatildeo da necessaacuteria autorizaccedilatildeo do senado e do povo para o
estabelecimento de um novo culto puacuteblico Seu argumento eacute baseado no escrito de Ciacutecero
(Legibus II19-20) e parece mais seguro
Euseacutebio escreve que Justino tambeacutem endereccedilou uma Apologia ao imperador
ldquoAntonino Verordquo160 ou seja a Marco Aureacutelio A menccedilatildeo ao ldquoimperador Piordquo ao ldquofilho de
Ceacutesar amante do saberrdquo e ao ldquosacro senadordquo na II Apol 21ss pode significar para estudiosos
como M Marcovich161 que a II Apologia foi dirigida aos mesmos nomes que a primeira Essa
periacutecope do texto apresenta a narraccedilatildeo de um episoacutedio que se sucedeu nos dias de Antonino
153 Ibid 154 TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984 p 96 apud MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35 155 tan i`eran sunklhton kai ton damon ton R`wmaiwn Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386 Minns e Paris (op cit p35) citam o mesmo texto com algumas variaccedilotildees 156 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn (Cyrenis IGRR I-II 1037) Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355 157 i`erwtathj boulhj te kai dhmou tou Rwmaiwn (Serdicae IGRR I-II 1452) Ibid p 182 158 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn kai strateumatwn (Pizi IGRR I-II 766) Ibid p 251 159 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 278 160 Hist Ecles IV183 161 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 7
33
Pio mas eacute provaacutevel que a alusatildeo agrave piedade e agrave filosofia novamente seja proposital para
constranger seus destinataacuterios Euseacutebio se confunde com o nome de Antonino assim como o
faz quanto ao rescrito agrave comunidade da Aacutesia162
Considerando que Justino escreveu na I Apologia 462-3 que ldquoCristo nasceu cento e
cinquenta anos antes de nosso tempordquo A Harnack163 conclui que esse primeiro escrito foi
composto entre 147 e 154 dC Tambeacutem na I Apol 296 L Munatius Felix eacute mencionado
como prefeito do Egito Sabe-se que ele exerceu seu mandato de 150 a 154 dC164 A II Apol
11 faz referecircncia a Q Lollius Urbicus como prefeito de Roma cargo que ocupou de 146 a
160 dC165 Segundo a anaacutelise de Munier o Chronicon de Euseacutebio indica que o adversaacuterio de
Justino Crescente comeccedilou a denunciaacute-lo em Roma no segundo ano da 233ordf Olimpiacuteada que
corresponde ao ano de 153 ou 154 Desse modo seraacute acatada a uma data por volta do ano 153
ou 154 para a I Apologia e alguns anos depois para o segundo escrito ateacute no maacuteximo 161 dC
A I Apologia apresenta uma defesa geral dos cristatildeos O segundo escrito parte da
reprovaccedilatildeo das accedilotildees anticristatildes tendo em vista principalmente o que havia acontecido em
Roma sob Urbico e as investidas do ciacutenico Crescente Entranhado nessa ldquopeticcedilatildeo
apologeticamente fundamentadardquo166 estaacute o argumento de que os cristatildeos ao contraacuterio do que
era disseminado em algumas denuacutencias e caluacutenias natildeo seriam de nenhum modo uma ameaccedila
agrave ordem A seguir seratildeo examinadas as accedilotildees anticristatildes que compunham o contexto da
primeira metade do seacuteculo II dC
162 Hist Ecles IV131ss A confusatildeo com os nomes dos imperadores no rescrito da Aacutesia seraacute examinada mais adiante Pode-se admitir tambeacutem que essa confusatildeo tenha sido acarretada pela organizaccedilatildeo do texto em um periacuteodo posterior a Euseacutebio 163 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 227 164 Prosopografia Imperii Romani V 2 Berlim Walter de Gruyter 1983 (M 723) 165 PIR v1 1970 L 327 166 Usando novamente a expressatildeo de SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72
34
CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS
Justino se opotildee agraves investidas contra os cristatildeos167 por natildeo considerar vaacutelidas as
justificativas apresentadas para as condenaccedilotildees dos fieacuteis A confissatildeo de ldquocristianismordquo diante
de uma autoridade acaba sendo ironizada como uma condenaccedilatildeo do nome ldquocristatildeordquo Na II
Apologia (11) ele afirma que accedilotildees desse tipo estatildeo ocorrendo por todo o Impeacuterio O que natildeo
deve significar que existia uma busca exaustiva dos romanos pelos membros do novo
movimento No entanto eacute provaacutevel que esses atritos pudessem ser localizados em vaacuterias
regiotildees Um caso especiacutefico da execuccedilatildeo em Roma sob Urbico motivou-o a se manifestar
novamente168 As intimaccedilotildees por razotildees religiosas aos tribunais jaacute haviam movido outros
apologistas na primeira metade do II seacuteculo Euseacutebio169 faz saber que antes de Justino
Quadrato e Aristides jaacute clamavam em favor dos cristatildeos ao Imperador Adriano
Natildeo haacute nenhum indiacutecio de que o cerne da crenccedila cristatilde apresentasse alguma forma de
conspiraccedilatildeo contra os romanos Mas eacute preciso estabelecer uma visatildeo geral das accedilotildees
anticristatildes que se desenvolveram antes de Justino e em seu tempo para que se possa assimilar
o sentido de sua reflexatildeo
O II seacuteculo se inicia com um quadro indefinido a respeito dos cristatildeos A atividade
cristatilde de anunciaccedilatildeo da sua mensagem de feacute e conversatildeo dos pagatildeos alcanccedilava diversas
regiotildees do Impeacuterio Conversotildees e alguns atritos sempre ocorriam
A conversatildeo ao cristianismo implicava em uma mudanccedila que aleacutem de religiosa
poderia ser existencial social e ateacute poliacutetica Eacute provaacutevel que essa postura de resistecircncia agrave
associaccedilatildeo com a ldquoidolatriardquo identificada na vida ciacutevica fosse interpretada como ldquoineacuterciardquo ou
falta de vigor para se envolverem nos assuntos puacuteblicos jaacute despertasse preocupaccedilotildees na virada
do I seacuteculo Principalmente quando membros das classes dirigentes comeccedilam a aderir agrave feacute do
oriente A linha entre a toleracircncia e a intoleracircncia eacute indefinida Eacute preciso analisar os contornos
desde Trajano (governou de 98-117 dC) ateacute os primeiros anos de Marco Aureacutelio (governou
de 161-180 dC)
167 ldquopedimos sejam examinadas as acusaccedilotildees contra os cristatildeos Se for demonstrado que satildeo reais castiguem-nos como eacute conveniente que sejam castigados os reacuteus convictosrdquo I Apol 31 168 ldquo[] o que aconteceu ultimamente em vossa cidade sob Urbico e o que os governadores estatildeo fazendo sem razatildeo em todo o impeacuteriordquo II Apol 11 169 Hist Ecles IV1-3
35
21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano
Natildeo haacute indiacutecios de uma perseguiccedilatildeo generalizada aos cristatildeos no Impeacuterio Romano no
iniacutecio do seacuteculo II mas a expansatildeo cristatilde em curso proporcionava um nuacutemero significativo de
processos nos tribunais locais Se por um lado alguns estavam certos de que os membros
dessa superstitio illicita deveriam ser condenados por outro lado existiam algumas lacunas
sobre esse tipo de julgamento
A expansatildeo proporcionava atritos corriqueiros de resistecircncia agraves novas crenccedilas O
nuacutemero de cristatildeos era crescente170 Ateacute o governo de Nero171 os adeptos agrave nova religiatildeo que
se desenvolvia no seio do judaiacutesmo natildeo enfrentaram problemas significativos em relaccedilatildeo aos
romanos Taacutecito faz saber que esses que a seu ver jaacute eram impopulares pelas suas flagitia
foram incriminados por Nero pelo incecircndio de Roma em 64 dC172 Se Nero lanccedilou a culpa
do incecircndio de Roma sobre os cristatildeos fica aberta a questatildeo sobre a dimensatildeo dessa
perseguiccedilatildeo A accedilatildeo de Nero foi suficiente para que a tradiccedilatildeo cristatilde o transformasse no
ldquoprimeiro imperador perseguidorrdquo logo seguido por Domiciano173174 do qual natildeo se conhece
uma perseguiccedilatildeo direta contra os cristatildeos mas uma repressatildeo a asebeia e ao proselitismo
judaico175 que deve ter ocasionado transtornos inclusive agrave Igreja Isso foi suficiente para se
sustentar que a referecircncia de Tertuliano176 ao institutum neronianum fazia de Nero o primeiro
a lanccedilar as bases juriacutedicas para a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos177 Todavia a utilizaccedilatildeo dessa
referecircncia de Tertuliano para a identificaccedilatildeo das bases juriacutedicas da perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute
problemaacutetica Marta Sordi178 recorrendo ao mesmo Tertuliano sustenta a ideia de que houve
170 GOODMANN M Mission and conversion poselytizing in the Religious History of the Roman Empire New York Clarendon PressOxford 1994 p 91-108 Cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 171 Governou de 54 a 68 dC 172 Anais XV44 Flagitia poderia referir-se a algo vergonhoso ou inapropriado algo descabido cf LIDDEL H G SCOTT R (Ed) Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 173 Governou de 81 a 96 dC 174 Euseacutebio His Ecles III26 175 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3 176 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4 177 KERESZTES Paul Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 Segundo C G Roman as bases dessa teoria se encontram na obra de CALLEWAERD C La methode dans la recherrch de la base juridique des premiers persecutions Reviste dhistoire Ecclesiastique 12 1911 pp 5-16 e segue acompanhada por Cf DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106 MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 1953 pp 3-32 178 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968
36
um senatus consultum na eacutepoca de Tibeacuterio179 que teria desaprovado o reconhecimento de
Cristo como deus do panteatildeo a contragosto do Imperador
A incerteza sobre como proceder em julgamento de cristatildeos fez com que Pliacutenio o
Jovem escrevesse ao imperador Trajano no iniacutecio do II seacuteculo A resposta do imperador
confirma a accedilatildeo de Pliacutenio em condenar os cristatildeos confessos proiacutebe agrave perseguiccedilatildeo a esses
religiosos rejeita as denuacutencias anocircnimas e faz aumenta as interrogaccedilotildees sobre as bases
juriacutedicas processos desse tipo Uma hipoacutetese comum tal como sustentam Marcel Simon e
Andreacute Benoicirct180 eacute a de que neste periacuteodo natildeo existia nenhuma lei sobre os cristatildeos e que os
magistrados agiam mediante a ius coertionis181 Essa teoria que havia sido sustentada
originalmente por Mommsen arrebanhou alguns seguidores mas como aponta Giorgio
Jossa182 em alguns casos como na questatildeo dirigida por Pliacutenio a Trajano o uso da coercitio eacute
limitado pelas interrogaccedilotildees sobre como enquadrar judicialmente os processos Para ser mais
especiacutefico Pliacutenio deseja saber se os cristatildeos deveriam ser condenados simplesmente por
confessarem esse nomem ou por algum crime que esteja subentendido Com base nos
trabalhos de E Le Blant183 no seacuteculo XIX outra teoria sobre esse tipo de julgamento propotildee
que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais existentes dentro do
direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea maiestatis Segundo C
G Roman184 essa teoria teve muitos seguidores nos seacuteculos XIX e XX sendo favoraacutevel
agravequeles que como L Homo e Ch Saumagne185 consideram que o institutum neronianum186
natildeo pode ser compreendido como edito ou lei especial emanada do princeps
As maiores discrepacircncias quanto agraves razotildees juriacutedicas e populares para condenaccedilatildeo dos
cristatildeos eacute a proacutepria relaccedilatildeo desse grupo religioso com o Impeacuterio neste iniacutecio do II seacuteculo
aparecem em funccedilatildeo das supostas posturas diferentes assumidas por Trajano e Adriano diante
dessa superstitio As explicaccedilotildees atuais trilham caminhos que vatildeo desde diferentes niacuteveis de
toleracircncia atribuiacutedos a esses dois imperadores como sustenta Pedro Barcelograve187 ateacute a hipoacutetese
179 Governou de 14 a 37 dC 180 Giudaismo e cristianismo una storia antica RomaBari Gius Laterza Figli Spa 2005 p 97 181 MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-96 182 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 107-144 183 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 184 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 185 HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229 186 Tertuliano Ad nationes 17 187 Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim
37
de que Adriano tenha reconhecido o cristianismo como uma religio licita conforme sustentou
primeiramente Mommsen188
Trajano assumiu o poder no ano de 98 dC A estrateacutegia de Nerva189 em adotaacute-lo para
ser seu sucessor aproximou o senado do futuro priacutencipe190 originaacuterio da Itaacutelica cidade da
proviacutencia senatorial da Baetica no sul da Hispania Eacute provaacutevel que tenha recebido formaccedilatildeo
poliacutetica e puacuteblica razoaacutevel mas sua imagem de homem militar e popular entre as legiotildees eacute a
que prevaleceu para a posteridade Segundo Julien Bennett191 Trajano era de uma famiacutelia
provincial de status elevado Mas essa ascensatildeo natildeo era para qualquer um Pliacutenio192 destaca-o
como priacutencipe escolhido pelas divindades ndash o epiacuteteto optimum era especiacutefico de Juacutepiter ndash
respeitador de todas as tradiccedilotildees ancestrais e das instituiccedilotildees poliacuteticas entre elas o senado
Uma idealizaccedilatildeo que certamente contrapunha-se agrave realidade efetiva pois Trajano apoiado
pelas legiotildees e representado como escolhido de Juacutepiter era detentor de um poder autocraacutetico
tatildeo grande quanto ou maior que o dos mais proacuteximos conselheiros os amigos do priacutencipe
Pode-se considerar que as accedilotildees poliacuteticas de Trajano tinham um caraacuteter apaziguador nos
territoacuterios romanos Ampliou-se a poliacutetica urbana e a extensatildeo das vias romanas nas
proviacutencias favorecendo significativamente a atividade comercial193
Nesse periacuteodo a filosofia estoica encontrou grande honra Por outro lado tambeacutem
houve uma significativa propagaccedilatildeo dos cultos orientais e da magia Prodiacutegios e milagres
eram ansiosamente buscados desencadeando certo fervor religioso entre o povo A piedade
religiosa ancorada agrave velha tradiccedilatildeo grega e romana nutrida por fermento novo proveniente
dos misteacuterios egiacutepcios e dos oraacuteculos caldeus permeava ainda os escritos dos intelectuais O
culto ao imperador natildeo recebeu tanta ecircnfase mas a sacralidade do Impeacuterio eacute talvez um fato
adquirido por todos e a aceitaccedilatildeo praacutetica da forma de culto se juntou com a formaccedilatildeo estoica
da classe dominante194
No ano de 96 Nerva estipulou a requisiccedilatildeo dos relegados e o veto contra as acusaccedilotildees
de ldquoateiacutesmordquo ou mais precisamente de avsebeia e de ldquocostumes judaicosrdquo195 Se os cristatildeos
haviam sido incomodados por decretos que indiretamente insidiam sobre eles alguma
188 Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-399 189 Governou de 96 a 98 dC 190 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 38 191 Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005 pIX 192 Epistolas 1012 Panegiricus 27 884 passim 193 FRIGHETTO Renan Op cit 2012 p 38 194 Ibid p 38 195 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3
38
opressatildeo as mudanccedilas de Nerva teriam representado um aliacutevio196 Mas sob Trajano percebe-
se que os casos esporaacutedicos de condenaccedilotildees aos fieacuteis ainda satildeo identificados Natildeo se ouviraacute
mais falar sobre acusaccedilatildeo de costume judaico no II seacuteculo mas os cristatildeos continuaratildeo a
enfrentar repressotildees em alguns pontos do territoacuterio romano o que levanta uma obscura
questatildeo sobre por qual crime seriam culpados os cristatildeos e quais seriam os fundamentos
juriacutedicos de suas condenaccedilotildees
Como destacou Giorgio Jossa197 a apologeacutetica cristatilde desse periacuteodo distingue dois
tipos de criacuteticos Uma opiniatildeo puacuteblica grosseira e mal informada como as acusaccedilotildees de
cometerem delitos particularmente vergonhosos como incesto e antropofagia movida contra
os cristatildeos por meio de falatoacuterio e caluacutenias e a acusaccedilatildeo de serem a causa de todos os males
no Impeacuterio devido agrave ameaccedila que representavam agrave pax deorum Eacute difiacutecil dizer qual era
realmente a extensatildeo da hostilidade dos pagatildeos das diversas regiotildees mas essa hostilidade
existia e constituiacutea um terreno feacutertil para o desenvolvimento tanto das acusaccedilotildees poliacuteticas da
opiniatildeo culta quanto juriacutedicas por parte dos funcionaacuterios imperiais
O cristianismo natildeo se dirigiu apenas agraves classes humildes Rapidamente sua mensagem
chegou tambeacutem agraves classes elevadas A oposiccedilatildeo da classe culta era principalmente de caraacuteter
filosoacutefico e nesse periacuteodo foram sustentadas especialmente por Epiacuteteto Luciano e Galeno a
partir dos valores mais tradicionais da cultura helecircnica Por outro lado sustentando acusaccedilotildees
de caraacuteter social aparecem as consideraccedilotildees de Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio tendo em vista as
preocupaccedilotildees poliacuteticas do governo romano Taacutecito198 escreveu que os cristatildeos eram mal vistos
pela suas flagitia199 e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero humano] A
crenccedila desse grupo era considerada uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]
Suetocircnio200 os considerava homens de uma superstitionis novae ac maleficae [superstitio201
nova e maleacutefica] Frontatildeo202 em atenccedilatildeo agraves antigas caluacutenias de flagitia teria acusado os
196 Eusebio Hist Ecles III231 197 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 108 198 Anais XV44 199 O termo latino pode significar ldquocrime infacircmia ato vergonhoso etcrdquo LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) 200 genus hominum superstitionis novae ac maleficae [raccedila de homens de uma superstitio nova e maleacutefica] De Vita Caesarum Vita Neronis 162 201 A palavra latina superstitio significa basicamente ldquotemor distinto aos deusesrdquo ldquopavor pelo sobrenatualrdquo com possiacuteveis variaccedilotildees em contextos diferentes Sua traduccedilatildeo para ldquosupersticcedilatildeordquo pode ocasionar uma confusatildeo indesejada de conceitos LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) cf JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 jun1979 pp 131-159 MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007 SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002 202 apud Minucio Felix Octavius 96-7
39
cristatildeos de orgias incestuosas Pliacutenio203 vecirc nas novas crenccedilas uma superstitionem pravam et
immodicam A imagem dos cristatildeos diante desses homens educados era negativa Mas as
opiniotildees satildeo muito divergentes sobre as bases juriacutedicas da condenaccedilatildeo dos membros desse
novo grupo religioso
O governador do Ponto-Bitiacutenia diz nunca ter participado de julgamentos de cristatildeos e
por isso natildeo sabia quais eram as medidas e os procedimentos para castigar e inquirir204 Ele
levanta as seguintes questotildees a Trajano se as diferentes idades e condiccedilotildees fiacutesicas dos
acusados deveriam ser levadas em consideraccedilatildeo se os que se retratavam mereciam ser
perdoados e se deveriam ser punidos por serem cristatildeos sem qualquer crime ou
exclusivamente pelos delitos encobertos por este nome205 O rescrito de Trajano a Pliacutenio
tendo em vista a inscriccedilatildeo de Como (CIL V 5262206) pode ter sido escrito em 111 e 112 ou
112 e 113 anos que compreenderiam o governo de Pliacutenio no Ponto-Bitiacutenia
Sua interrogaccedilatildeo sobre se o ldquonomerdquo deveria ser punido mesmo sem significar uma
ofensa ou a ofensa subentendida pelo nome207 incide sobre que tipo de lei existia naquela
eacutepoca Segundo E Le Blant208 as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis
penais existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de
laesea maiestatis Todavia conforme propocircs C G Roman209 em seu estudo eacute provaacutevel que
os cristatildeos estivessem sendo denunciados naquela regiatildeo devido ao fato de se reunirem
semanalmente Isso contrariava as estipulaccedilotildees do edito promulgado pelo governador segundo
as instruccedilotildees de Trajano que proibia as assembleias ou hetaerias210 entre o povo para evitar
conspiraccedilotildees211 Assim pelo menos neste ponto eacute preciso concordar com Pedro Barcelograve no
203 [superstitio distorcida e desregrada] Ep X968 204 Cognitionibus de Christianis interfui nunquam ideo nescio quid et quatenus aut puniri soleat aut quaeri [ Nunca tomei parte em processos contra cristatildeos por esta razatildeo eu natildeo sei o que costumeiramente se deve punir e quais satildeo as extensotildees ou investigaccedilotildees] (Ep X97) 205 Ep X96 206 Corpus Inscripitionum Latinarum V Berolini Reimer 1959 207 nomen ipsu etiamsi flagitiis careat an flagita cohaerentia nomini puniantur [O proacuteprio nome mesmo sem nenhuma ofensa ou os crimes associados a esse nome devem ser punidos] (Ep X97) 208 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 209 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 passim 210 Assembleias civis comuns entre os gregos 211 Ep X97
40
reconhecimento de que se estaacute diante de um problema local212 Os cristatildeos estavam agrave mercecirc
de denuacutencias de desobediecircncia ao edito do governador mas tambeacutem por alguma
irregularidade identificada no tocante agrave nova religiatildeo
Pliacutenio consultou Trajano pelo menos duas vezes sobre como lidar com as heterias213
Ele havia questionado sobre a possibilidade de criar um coleacutegio de fabri composto por 150
homens na Nicomeacutedia214 Mas o imperador respondeu ldquoNatildeo esqueccedilamos que tua proviacutencia e
sobretudo esta vila eacute vitima de sociedades deste gecircnero Qualquer que seja seu nome
qualquer que seja a finalidade de que dermos a estes homens reunidos daraacute lugar rapidamente
a heteriasrdquo215 Natildeo seria razoaacutevel abrir uma exceccedilatildeo aos cristatildeos Mediante inuacutemeras
denuacutencias Pliacutenio resolveu investigar sobre o tipo de assembleia que constituiacuteam as reuniotildees
cuacutelticas cristatildes Os processos de acusaccedilatildeo cresceram e proporcionaram vaacuterios incidentes216
Denuacutencias anocircnimas por meio de libelus contendo o nome de pessoas que negavam ser cristatildes
estavam entre os inconvenientes Os cristatildeos alegavam que sua uacutenica culpa ou erro era se
reunirem antes de nascer o sol em um dia especiacutefico da semana para cantar hinos a Cristo E
tambeacutem de se ajuntarem para uma refeiccedilatildeo comum vista pelo governador como innoxium
[inocente] Praacutetica que havia sido abandonada devido ao edito de Pliacutenio O governador
procurou extrair informaccedilotildees sobre os cristatildeos mas ele escreve que natildeo encontrou nada aleacutem
de uma superstitionem pravam et immodicam Visto que o nuacutemero de acusados estava
provocando ldquoincidentesrdquo Pliacutenio decidiu consultar o imperador sobre o assunto Ele nota que
pessoas de todas as idades de todos os graus de ambos os sexos e de muitas cidades satildeo
citadas em juiacutezo A superstitio dos cristatildeos jaacute se estendia pelos campos e vilas mas ele eacute
otimista e acredita ser possiacutevel sanar esse problema217 Pliacutenio218 escreve que
muitos recomeccedilam a frequentar os templos que haviam ficado quase desertos tornando a se celebrarem os sacrifiacutecios solenes abandonados e a se venderem as viacutetimas das quais ateacute agora eram raros os compradores De modo que eacute faacutecil argumentar que muitas pessoas podem se emendar se existir lugar para arrependimento
Desse modo haacute uma evidente intenccedilatildeo de realocar os cristatildeos ao povo em geral que
participa da religiatildeo oficial Deve ser esta a razatildeo pela qual o governador concede o perdatildeo
212 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 p 69 213 Assembleias comuns aos gregos 214 Ep X33 215 Ep X341 216 mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species incierunt [Assim como seu suceder crescem os processos de acusaccedilatildeo ocasionando vaacuterios incidentes] (Ep X97) 217 quae videtur sisti et corrigi posse (Ep X97) 218 Ep X97
41
agravequeles que abandonam o cristianismo Mas baseado em relatos anteriores219 e em textos
posteriores sobre esse tipo de julgamento220 pode-se supor que os cristatildeos intimados
argumentavam e questionavam sobre a razatildeo da culpa que os condenava
Roman221 em certa medida seguindo o raciociacutenio de Marta Sordi222 sustenta que a
disposiccedilatildeo de Trajano estaacute voltada para a soluccedilatildeo de problemas sociais na regiatildeo do Ponto-
Bitiacutenia tendo em vista a sua recomendaccedilatildeo geral contra as heterias Proibindo as reuniotildees
puacuteblicas de qualquer caraacuteter os cristatildeos estariam indiretamente incluiacutedos Mas Roman
atribuindo um acentuado grau de toleracircncia a Trajano considera que o imperador estaacute
liberando os cristatildeos dessa condenaccedilatildeo recomendando que os mesmos natildeo sejam buscados
No entanto natildeo haacute qualquer razatildeo para supervalorizar a ldquotoleracircnciardquo desse imperador aos
cristatildeos
Se fossem acusados de violaccedilatildeo do edito das heterias defender-se-iam dizendo que
natildeo se reuniam mais Caso os problemas envolvendo cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia se ressumissem
a essa questatildeo o magistrado deveria soltaacute-los imediatamente Mas natildeo eacute isso que eacute descrito
por Pliacutenio Ele relata que insistia para que os acusados negassem ser ldquocristatildeosrdquo ameaccedilando-os
de morte Certamente um cristatildeo questionaria esse tipo de julgamento perguntando sobre qual
crime teria sido por eles cometido O governador sabia que esses religiosos eram acusados em
outros lugares e ao caracterizar as crenccedilas cristatildes como pravam et immodicam uma percepccedilatildeo
muito negativa se manifesta No entanto natildeo haacute referecircncia a nenhuma lei contra os cristatildeos
Pliacutenio decidiu punir os que confessavam essa superstitio procurando convencecirc-los a
mudarem de opiniatildeo quanto agrave feacute a que se apegavam ameaccedilando-os por ateacute trecircs vezes Seu
julgamento foi que independente da natureza dos credos dos cristatildeos a inflexibilidade e
obstinaccedilatildeo que os faziam natildeo negar o nomen christianum tornavam-lhes dignos de puniccedilatildeo223
Giorgio Jossa224 destacou ainda que nenhum dos crimes a eles imputados eram demonstados
ou pareciam dignos de serem cridos contudo os cristatildeos satildeo vistos como seguidores de
crenccedilas despresiacuteveis Embora natildeo exista nenhuma referecircncia a uma lei contra os fieacuteis natildeo haacute
nenhuma razatildeo para se pensar que Pliacutenio estivesse receoso de punir os cristatildeos exceto pelo
fato de que o nuacutemero de denuacutencias anocircnimas poderia provocar desordem Conforme apontou
219 Atos dos Apoacutestolospassim 220 Euseacutebio Hist Ecles passim Atas dos maacutertires passim 221 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-242 222 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 87-102 223 hellip qualecumque esset quod faterentur pervicaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri (Ep X97) 224 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 116
42
J Danieacutelou225 natildeo era uma lei especiacutefica que ocasionava a condenaccedilatildeo dos fieacuteis mas a
ausecircncia de uma lei que regulamentasse a nova religiatildeo como a que autorizava a religiatildeo
judaica
A resposta de Trajano natildeo demonstrou muita preocupaccedilatildeo com os cristatildeos O
imperador aprovou as medidas empregadas contra eles e para evitar o problema do excesso
de denuacutencias sem fundamento recomendou que natildeo fossem admitidas delaccedilotildees anocircnimas O
imperador tambeacutem estabeleceu que os fieacuteis natildeo deveriam ser perseguidos Ele escreveu
Agiste muito bem meu caro Pliacutenio ao instituir os processos contra esses que te foram denunciados como cristatildeos Natildeo se deve estabelecer regra dura e inflexiacutevel de aplicaccedilatildeo universal Natildeo os procure mas se surgirem outras denuacutencias que procedam puna-os Poreacutem com esta ressalva de que se algueacutem nega ser cristatildeo e mediante a adoraccedilatildeo dos deuses demonstra natildeo o ser atualmente deve ser perdoado em recompensa de sua emenda por muito que o acusem suspeitas relativas ao passado Natildeo merecem atenccedilatildeo panfletos anocircnimos em causa alguma aleacutem do dever de evitarem-se antecedentes iniacutequos panfletos anocircnimos natildeo condizem absolutamente com os nossos tempos226
O caraacuteter lacocircnico da resposta de Trajano poderia se justificar pelo menos de trecircs
formas Em primeiro lugar a autenticidade do rescrito de Trajano e a carta de Pliacutenio a esse
imperador foram questionadas por alguns estudiosos desde o seacuteculo XVIII Segundo
Cristobal G Roman a anaacutelise de J S Semler227 em 1788 contribuiu para desencadear uma
corrente de pensamento que foi bem representada ateacute longos anos do seacuteculo XX228 As
principais objeccedilotildees natildeo estariam diretamente relacionadas agrave inadequaccedilatildeo da descriccedilatildeo de
Pliacutenio sobre as comunidades cristatildes e a situaccedilatildeo real na qual se encontrariam As
discordacircncias incidiriam sobre o tipo de canto praticado nas reuniotildees cristatildes e sobre o nuacutemero
de cristatildeos existentes no Ponto-Bitiacutenia segundo o relato de Pliacutenio229 Os aspectos estruturais
satildeo analisados na criacutetica de L Hermann230 que aponta as repeticcedilotildees e as reiteradas alusotildees agrave
proacutepria ignoracircncia de Pliacutenio como elementos que induzem a pensar em interpolaccedilotildees ou 225 Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975 pp 13-15 226 Pliacutenio Ep X981ss 227 Novae observationes quibus studiosius illustrantur potiora capita historiae et religionis christianae usque ad Constantinum Halle Impensis Bibliopolii Hemmerdiani 1781 228 Marcel Durry (Pline-le-juene Paris Soc DrsquoEacuted Le belle Lettre 1972 p 7071) oferece uma lista dos pesquisadores que aponta a inautenticidade da correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano Entre as obras aparecem AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875 p 186 HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844 pp 426 HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885 LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934 pp 28-34 e GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946 p 585 229 VIDMAN L Etude sur la correspondance de Pline Le Jeune avec Trajan Roma LErma di Bretschneider 1972 pp 87 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 227 230 HERMANN L Les interpretations de la lettre de Pline sur les chretiens Latomus XIII 1954 p 343 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228
43
falsificaccedilotildees Dentro dessa mesma loacutegica estaria a resposta lacocircnica de Trajano agraves trecircs
questotildees que aparecem na carta de Pliacutenio a) se deveriam ser feitas distinccedilotildees tendo em vistas
as idades dos cristatildeos b) se deveria lhes permitir o arrependimento c) e se o roacutetulo de cristatildeo
deveria ser motivo de castigo por si mesmo ou apenas os delitos que aquele nome
implicava231 A resposta de Trajano contempla diretamente apenas a segunda questatildeo natildeo
dando provas de que a primeira e a terceira estivessem na carta por ele recebida Desse modo
Hermann deduz que as questotildees natildeo contempladas seriam interpolaccedilotildees
Entretanto a despreocupaccedilatildeo de Trajano em estabelecer uma norma riacutegida contra os
cristatildeos pode justificar o caraacuteter superficial de sua resposta Ele escreve que neque enim in
universum aliquid quod quase certam formam habeat constitui potest232 [natildeo se pode
constituir uma norma universal ou que seja invariaacutevel] Com isso nota-se tambeacutem a
liberdade do magistrado em avaliar os suspeitos e procurar enquadraacute-los sob uma lei
A tese mommseniana da coercitio eacute rebatida parcialmente por Jossa233 tendo em vista
que na maioria dos casos de condenaccedilatildeo dos cristatildeos nesse periacuteodo a atitude das autoridades
natildeo se reduz a uma simples atitude de poliacutecia para manter a ordem puacuteblica em uma proviacutencia
atingida pela desordem mas em um procedimento judiciaacuterio que tinha iniacutecio com uma
denuacutencia privada comporta uma acusaccedilatildeo precisa e se conclue com a condenaccedilatildeo formal Um
procedimento judiciaacuterio que corresponde perfeitamente a cognitio extra ordinem234 um
processo criminal de natureza inquisitorial afirmado durante o principado para crimes e que
tinha formas diversas daqueles previstos na ordo iudiciorum que nas proviacutencias eram tidos
pelos governadores delegados pelo princeps No entanto diante da ausecircncia de uma
legislaccedilatildeo clara sobre o que fazer com os cristatildeos Pliacutenio recorre a ius coertionis para
desestimular os adeptos dessa pravam et immodicam que desrespeitam o magistrado para
sustentarem seu credo Eacute preciso considerar com certo cuidado a teoria derivada da obra de E
Le Blant235 de que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais
existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea
maiestatis Pliacutenio primeiramente julgou os cristatildeos por meio da lei local que proibia as
assembleias entre o povo poreacutem diante da correccedilatildeo por parte dos cristatildeos apontada pelo
231 Pliacutenio Epistolas X962-3 232 Ep X98 233 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 122-123 234 Tido de processo que substitui o processo padratildeo Eacute provaacutevel que soacute tenha se oficializado com forma instituiacuteda de processo no seacuteculo IV O julgamento dos cristatildeos no seacuteculo II seria um processo semelhante 235 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229
44
proacuteprio governador em sua carta ele natildeo sabia exatamente como punir os que se negavam a
desprezar agravequela superstitio Para Jossa236 estaacute evidente que a condenaccedilatildeo se efetiva diante da
profissatildeo da feacute cristatilde natildeo aos delitos a esse nome associados
O cristianismo natildeo eacute condenado como superstitio externa Uma religiatildeo estrangeira
poderia ser socialmente suspeita mas isso natildeo faz com que seja judicialmente perseguida E
natildeo eacute o seu caraacuteter baacuterbaro que lhe rende ilicidade Superstio externa e barbara o judaiacutesmo
era de fato religio licita Os romanos consideravam superstitio toda forma religiosa e toda
praacutetica cultural que natildeo correspondia agravequela transmitida pelos seus antepassados e que natildeo
eram munidas de puacuteblico reconhecimento Todas as praacuteticas religiosas de caraacuteter privado
individuais ou enraizadas em certos grupos sociais como magos ou adivinhos eram dessa
forma rotuladas Religiotildees e cultos puacuteblicos estrangeiros ainda que constituiacutessem patrimocircnio
de um povo e fossem transmitidos desde os tempos mais antigos poderiam ser tachados de
superstitio237 Segundo Jossa238 exprime-se desse modo a diferenccedila instintiva dos ciacuterculos
romanos abastados de uma consciecircncia nacional diante das religiotildees estrangeiras para os
quais os cultos natildeo romanos eram ldquonatildeo religiotildeesrdquo ou seja apenas superstitiones Externa
superstitio vem a ser toda forma ou manifestaccedilatildeo religiosa que natildeo pertenccedila originalmente agrave
tradiccedilatildeo romana ou pelo menos ao puacuteblico reconhecimento e agrave apreciaccedilatildeo dos ritos e crenccedilas
religiosas da parte dos romanos
A partir de Cicero superstitio passa a indicar tambeacutem qualquer forma excesiva
fanaacutetica de religiosidade que se contrapunha agrave moderaccedilatildeo da religio aquela manifestaccedilatildeo
religiosa tiacutepica de uma alma deacutebil (imbecillis) ou velha (anilis) que derivam em particular de
uma anguacutestia inuacutetil e absurda dos deuses239 A superstitio natildeo eacute apenas diversa mas se opotildee
sendo uma corrupccedilatildeo da religio (De natura Deorum II72)
Diante da convicccedilatildeo dos romanos de serem muito religiosos entre todos os homens de
serem inclusive religiosamente superiores aos demais fica impliacutecito que toda e qualquer
religiatildeo estrangeira eacute excessiva ou fanaacutetica que todas as religiotildees estrangeiras satildeo tambeacutem
superstitio e assim toda externa superstitio eacute tambeacutem barbara superstitio no sentido
embrionaacuterio do termo pela falta de racionalidade e moderaccedilatildeo que sempre deixam a
desejar240
236 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 123 237 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 131-159 238 Op Cit p 115 239 Ciacutecero De natura Deorum I117 Cf SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 240 JANSEN L F Op cit pp 145
45
Como jaacute foi apontado anteriormente aleacutem do proacuteprio Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio
tambeacutem adjetivaram negativamente a superstitio cristatilde Taacutecito escreveu que os cristatildeos eram
mal vistos pelas suas flagitia e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero
humano] Flagitia por sinal que Pliacutenio natildeo detectou A crenccedila desse grupo eacute considerada
uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]241 Analisando as consideraccedilotildees de Taacutecito
nota-se que a provaacutevel ofensa que os cristatildeos causavam aos deuses combatendo-os com a
propagaccedilatildeo da sua mensagem evangeacutelica e com abstenccedilatildeo de participaccedilatildeo nas celebraccedilotildees
puacuteblicas responsabilizava-lhes pelo rompimento da pax deorum que havia fragilizado a
capital do Impeacuterio tornando-a vulneraacutevel a tamanha cataacutestrofe da eacutepoca de Nero Segundo L
F Jansen242 o odio humani generis visto por Taacutecito sobre os cristatildeos ndash como antes sobre os
judeus ndash era um elemento que condenava essa superstitionis novae ac maleficae como
escreveu Suetocircnio243 tornando-a exitiabilis No entanto apologistas como Justino244
sustentaram que as flagitia atribuiacutedas aos cristatildeos eram fruto de ldquocaluacuteniasrdquo o que natildeo
acarretaria isenccedilatildeo de serem relativamente enquadrados nos crimes de sacrilegium245 ou
maiestas
No entanto ao confirmar a accedilatildeo de Pliacutenio Trajano ratifica a condenaccedilatildeo do nomen
christianum Isso deve estar ligado ao fato de o governador do Ponto-Bitiacutenia ter confirmado
os resultados positivos desse tipo de condenaccedilatildeo que visava desestimular a aderecircncia ao grupo
cristatildeos garantindo a manutenccedilatildeo da religiatildeo tradicional a uma medida moderada que
impedisse falsas denuacutencias e o cometimento de injusticcedilas O que natildeo significa que Trajano
tenha empreendido uma poliacutetica de toleracircncia aos cristatildeos dificultando as denuacutencias como em
alguns momentos parece sugerir Pedro Barcelograve246
Euseacutebio247 explora o fato de Trajano ter determinado que os cristatildeos natildeo deveriam ser
buscados (conquirendi non sunt) para assim construir uma ldquotradiccedilatildeo favoraacutevelrdquo aos fieacuteis Ele
confirma que Trajano promulga um decreto para que os cristatildeos natildeo fossem perseguidos Tal
medida eacute interpretada como o fator importante para a reduccedilatildeo parcial da perseguiccedilatildeo naquela
241 Anais XV44 242 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 145 243 De Vita Caesarum Vita Neronis 162 244 II Apol 82 245 Este caso envolveria um crime especiacutefico contra o patrimocircnio religioso pagatildeo mas natildeo haacute sinais evidentes no na primeira metade do II seacuteculo cf ROBINSON OF The criminal Law of ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 passim 246 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim 247 Histoacuteria Eclesiaacutestica III231-3
46
eacutepoca Mas essas vantagens que Euseacutebio vecirc na recomendaccedilatildeo de Trajano se reduzem ao fato
de ele natildeo admitir que os cristatildeos sejam levados em juiacutezo mediante denuacutencias anocircnimas
Mesmo assim os incocircmodos locais permaneceram Euseacutebio escreve ldquoAlgumas vezes eram as
populaccedilotildees outras as proacuteprias autoridades locais que preparavam os asseacutedios contra noacutes de
forma que ainda que sem perseguiccedilotildees manifestas acenderam-se focos parciais segundo as
proviacutenciasrdquo248 Por outro lado em grande medida influenciado por Meacuteliton de Sardes249 que
escreveu a Marco Aureacutelio Euseacutebio ratifica a tradiccedilatildeo cristatilde que destaca Nero e Domiciano
como grandes perseguidores da Igreja250 Eacute interessante a tradiccedilatildeo cristatilde relacionar as accedilotildees
anticristatildes a ldquomaus imperadoresrdquo Com isso tenta-se reproduzir a ideia de que perseguir os
cristatildeos eacute seguir os passos de tiranos Todavia quando se procuram as raiacutezes das hostilidades
imperiais com os cristatildeos faz-se necessaacuterio ter em mente que por vaacuterias regiotildees do Impeacuterio os
atritos envolvendo o combate aos cristatildeos emergem do processo de expansatildeo da comunicaccedilatildeo
da mensagem apelativa cristatilde e das transformaccedilotildees reivindicadas e provocadas por ela nas
tradiccedilotildees e no comportamento das pessoas
Desse modo deixando de lado a hipoacutetese de Marta Sordi251 sobre um senatus
consultum na eacutepoca de Tibeacuterio que teria desaprovado o reconhecimento de Cristo a
contragosto do Imperador eacute preciso lidar com o institutum neronianum252 tambeacutem
mencionado por Tertuliano como a primeira hostilidade incisiva do Impeacuterio contra os
cristatildeos Mas esta peculiar expressatildeo empregada por Tertuliano natildeo se refere a uma lei e sim
a uma accedilatildeo de Nero E a accedilatildeo de Nero neste caso teria interesses particulares e usa os cristatildeos
como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo Mesmo que as flagitia cristatildes se fundamentem em caluacutenias
originaacuterias dos atritos populares a superstitio cristatilde natildeo poderia representar algo aceitaacutevel aos
olhos dos romanos devido ao seu caraacuteter exclusivista e seu desprezo pela vida puacuteblica ligada agrave
religiatildeo tradicional Em defesa dos cristatildeos poucos anos mais tarde Justino escreveu ldquoEsta eacute
a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo
oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos sepulcros nem
celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo (I Apol 242) Aleacutem disso seria uma incriacutevel contradiccedilatildeo
sustentar que existia uma lei geral em vigor que determinava a pena capital para os cristatildeos e
248 Hist EclesIII232 249 ldquoEntre todos somente Nero e Domiciano persuadidos por alguns homens maleacutevolos quiseram caluniar nossa doutrina e acontece que deles derivou por costume irracional a mentira caluniosa contra tais pessoasrdquo (apud Euseacutebio Hist EclesIV239) 250 Hist Ecles III171 201-9 221-8 251 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968 252 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4
47
ser necessaacuterio admitir que Trajano recomenda que os cristatildeos natildeo sejam perseguidos e que
apenas os casos mais precisos sejam examinados
A resposta de Trajano alegando ldquonatildeo eacute possiacutevel constituir por assim dizer algo
universal que possua forma fixardquo253 pode servir como evidecircncia de que natildeo existia uma lei
geral para julgar os cristatildeos Todavia Roman254 considera que a foacutermula neque enin
universum deve ser relativizada em funccedilatildeo de um marco geograacutefico concreto o da proviacutencia
Ponto-Bitiacutenia e em relaccedilatildeo agrave diversidade de status juriacutedico e de situaccedilotildees existentes nessa
regiatildeo que motivam a correspondecircncia entre Pliacutenio e o Imperador Um exemplo dessa
preocupaccedilatildeo aparece quando se fala da constituiccedilatildeo de um evranouj (sociedade de seguros
muacutetuos) em Amisos255 Trajano desaprovando a ideia responde
Se as leis de Amisos de acordo com as obrigaccedilotildees do tratado lhe datildeo direito a ter uma associaccedilatildeo de seguros muacutetuos natildeo podemos proibir que a tenham tanto mais se tal sociedade natildeo procede a organizar tumultos e reuniotildees iliacutecitas senatildeo para sustentar os mais pobres Nas cidades restantes que estatildeo submetidas a nosso direito praacuteticas desse tipo devem ser proibidas []256
Roman257 estaacute correto em considerar que Trajano potildee em praacutetica um tipo de
disposiccedilatildeo que tende a fazer frente aos problemas sociais provinciais que encontram uma
ampla expressatildeo na formaccedilatildeo de heterias Esta poliacutetica encontra uma limitaccedilatildeo na situaccedilatildeo da
proviacutencia Ponto-Bitiacutenia com a existecircncia de cidades livres e federadas que se autorregulam
Poreacutem a hipoacutetese de Roman apresenta limitaccedilotildees Ele considera que tal poliacutetica
administrativa com respeito aos cristatildeos constituiria uma exceccedilatildeo em suas disposiccedilotildees sobre
as associaccedilotildees no Ponto-Bitiacutenia Esta exceccedilatildeo natildeo se explica em funccedilatildeo da diversidade de
status juriacutedico das cidades existentes nessa proviacutencia mas estaacute relacionada ao caraacuteter peculiar
das reuniotildees das comunidades cristatildes que natildeo consistiam um perigo ao Impeacuterio Roman segue
a hipoacutetese de De Robertis258 e chega a alegar que as reuniotildees cristatildes eram consideradas licita
A proposiccedilatildeo de Roman falha basicamente em natildeo compreender que a aprovaccedilatildeo por
parte de Trajano dos atos de execuccedilatildeo da pena capital sobre os cristatildeos desempenhada por
Pliacutenio estaacute diametralmente oposta a uma hipoteacutetica licenccedila agrave religiatildeo cristatilde O que descarta
qualquer vestiacutegio de simpatia romana pelos cristatildeos Aleacutem disso Pliacutenio havia informado ao
imperador que os cristatildeos haviam deixado de se reunir tendo em vista as disposiccedilotildees do edito
253 neque enim in universum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest (Ep X98) 254 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 233-234 255 Ep X92 256 Pliacutenio Ep X94 257 Op cit pp 233-234 258 ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89
48
recente Quando Trajano aponta que seria inadequado estabelecer uma norma fixa para julgar
os cristatildeos ele estaacute se referindo agraves interrogaccedilotildees levantadas por Pliacutenio questionando sobre a
necessidade de se fazer distinccedilatildeo entre jovens e idosos satildeos e doentes romanos e natildeo
romanos Desse modo o imperador estaacute de acordo que o magistrado use de seus poderes
constituiacutedos para fazer as distinccedilotildees necessaacuterias sem que se fixe uma norma universal
Giorgio Jossa259 faz uma siacutentese das teorias baacutesicas sobre as accedilotildees anticristatildes no
periacuteodo de Trajano e desenvolve uma avaliaccedilatildeo que tem em vista a complexidade da situaccedilatildeo
poliacutetica da religiatildeo cristatilde e da peculiaridade do procedimento criminal do direito romano Esta
explicaccedilatildeo comporta certa mescla de todas as trecircs hipoacuteteses aceitaacuteveis Assim Jossa considera
que o cristianismo representa antes de tudo um problema de ordem puacuteblica que dependia em
parte da sensibilidade dos magistrados por meio do uso da ius coertionis num momento onde
jaacute existia uma legislaccedilatildeo especiacutefica contra os cristatildeos e onde o nomen christianum carregava
subentendido os crimes de sacrilegium e maiesta Exceto pela sua insistecircncia em admitir que
havia uma lei especiacutefica contra os cristatildeos sua anaacutelise torna-se proveitosa em funccedilatildeo de sua
sensibilidade agrave questatildeo da ordem puacuteblica enviesada nesse dilema juriacutedico Se o nomen
christianum carregava subentendido crimes comuns eles se manifestam com a pressatildeo civil
procurando expelir esse corpo estranho da sociedade pagatilde e obriga os magistrados a
procurarem um enquadramento que ratifique a condenaccedilatildeo daquilo que para muitos do povo
estava evidente que os cristatildeos deviam ser condenados
Em siacutentese eacute mais prudente admitir que as condenaccedilotildees de outrora sobre os cristatildeos
davam margem para que os magistrados em outras regiotildees do Impeacuterio eventualmente
condenassem os cristatildeos que lhes fossem entregues normalmente devido a atritos populares
Isso justificaria a incerteza de Pliacutenio em condenar os cristatildeos Eacute o uso de se condenar os
cristatildeos em decorrecircncia desde a eacutepoca de Nero da opiniatildeo puacuteblica somada agrave imagem
negativa que a classe culta tinha desses religiosos que atribui flagitia aos fieacuteis tornando o
nomen christianum razatildeo de condenaccedilatildeo Algo que eacute negado pelos apologistas com
veemecircncia no II seacuteculo e que seraacute avaliado por Adriano subsequentemente a Trajano
259 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125
49
22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano
A Histoacuteria Augusta (51) aponta que Adriano foi um imperador dedicado agrave
manutenccedilatildeo da paz no mundo mas tatildeo logo as revoltas estouraram em regiotildees variadas Os
samaritanos se envolveram em guerra os britacircnicos davam sinais de que natildeo permaneceriam
sob o domiacutenio romano o Egito foi jogado em desordem por distuacuterbios e finalmente a Liacutebia e
a Palestina mostraram espiacuterito de rebeliatildeo
Nos anos 130 e 131 Adriano partiu para o Oriente No plano das suas reformas estava
a revitalizaccedilatildeo da cidade de Jerusaleacutem que havia sido destruiacuteda na guerra judaica de 66 a 73
Natildeo eacute agrave toa que ficou reconhecido como promotor da vida urbana no Impeacuterio valorizando as
obras puacuteblicas (aacutegoras templos teatros anfiteatros aquedutos portos ou estradas) Os
investimentos na Judeia faziam parte de sua estrateacutegia de integraccedilatildeo e romanizaccedilatildeo
Os judeus sofreram em muitos aspectos os efeitos das transformaccedilotildees culturais Mas a
introduccedilatildeo de elementos estrangeiros e a construccedilatildeo de um templo a Juacutepiter na cidade sagrada
gerou protestos260 A proibiccedilatildeo da circuncisatildeo261 contribuiu para acirrar os acircnimos revoltosos
No entanto segundo a anaacutelise de J M C Copete262 se esse foi o estopim da guerra as causas
que levaram o povo judeu e alguns outros provincianos a lutar natildeo poderiam estar apenas na
devoccedilatildeo ao seu Deus tradicional Yahveacute A insensatez romana em ignorar os problemas
estruturais da regiatildeo tais como a pobreza endecircmica reinante e as proacuteprias rivalidades entre
sacerdotes e rabinos na regiatildeo proporcionaram as condiccedilotildees para esse movimento que se
levantou como uma ameaccedila agrave ordem
Euseacutebio escreve que
Rufo governador da Judeacuteia com o reforccedilo militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade marchou contra eles Aniquilou em massa milhares de homens de crianccedilas e de mulheres e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territoacuterios agrave escravidatildeo Mandava entatildeo sobre os judeus um chamado Bar Kosibas que significa ldquofilho da estrela263
A religiatildeo dos judeus era o elemento fundamental de sua identidade Havia interaccedilatildeo
com os demais povos do Impeacuterio mas qualquer tipo de resistecircncia em funccedilatildeo dessa
260 Cassius Dio His Rom 121-3 261 Hist Aug 142 262 Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 263 His Ecles IV61-2
50
identidade poderia deixar as autoridades romanas ressabiadas Taacutecito264 fala da diferenccedila de
ambos os mundos O judaiacutesmo parecia-lhe uma supersticcedilatildeo absurda soacuterdida e depravada que
gerava costumes contraacuterios aos dos outros povos A abstenccedilatildeo do culto ao imperador por parte
dos judeus poderia simbolizar sua rejeiccedilatildeo ao Impeacuterio e agrave cultura greco-romana mas natildeo se
deve pensar que os judeus estavam blindados agrave cultura helecircnica e que as oligarquias judaicas
se isolassem dos negoacutecios com as demais proviacutencias do Impeacuterio265
Uma das preocupaccedilotildees de Justino em sua I Apologia eacute deixar claro que os judeus
haviam se tornado os principais opositores dos cristatildeos e que muitos foram vitimados por Bar
Kosiba que os mandava ldquosubmeter a terriacuteveis torturasrdquo266 Natildeo haacute certeza sobre as razotildees
dessa oposiccedilatildeo e se ela diferia da rivalidade entre judeus e cristatildeos constatada no I seacuteculo
Todavia aleacutem desse tipo de accedilatildeo anticristatilde haacute indiacutecios de que os tribunais locais recebessem
queixas sobre os cristatildeos e um nuacutemero significativo de fieacuteis era levado agrave morte Tal como a feacute
dos judeus a religiatildeo dos cristatildeos era considerada uma superstitio reprovaacutevel que apresentava
resistecircncia agrave vida puacuteblica no Impeacuterio ou seja que natildeo se envolviam em teatros jogos e todo
tipo de reverecircncias aos deuses pagatildeos Para evitar quaisquer duacutevidas quanto agrave identidade entre
cristatildeos e judeus o apologista faz essa interpolaccedilatildeo
Em funccedilatildeo das condenaccedilotildees sofridas pelos cristatildeos durante o governo de Adriano
Quadrato e Aristides escreveram-lhe apologias267 Se a teoria de Paul Andriessen268 for
tomada por certa e a Carta a Diogneto for reconhecida como a apologia perdida de Quadrato
reconhecer-se-aacute a disposiccedilatildeo tanto nesse escrito quanto na Apologia de Aristides em
apresentar algumas das principais distinccedilotildees entre as crenccedilas dos cristatildeos dos judeus e dos
pagatildeos A principal queixa na Carta a Diogneto leva a crer que o ldquonomerdquo cristatildeo era um
elemento chave para a condenaccedilatildeo269 Sua queixa faz pensar que as variaccedilotildees nos julgamentos
nos tribunais locais pudessem proporcionar um destino distinto aos cristatildeos ldquoPor isso
condeno tambeacutem as vossas leis Deveria haver uma soacute constituiccedilatildeo poliacutetica comum para
todos agora haacute tantas legislaccedilotildees quantas cidades existem e assim acontece que o que entre
uns eacute vergonhoso entre outros eacute tido por honrosordquo270
264 Taacutecito Historia V 3-6 Cf Strabatildeo Geografia XVI237 Quintiliano Institutio Oratoria II7 Juvenal Satiras III 13-6 VI 541-7 96-106 Plutarco De Superstitione 8 Cassius Dio Hist Rom 37174 265 Josefo Antiguidades Judaicas XVIII 23 Guerras dos Judeus II118 266 I Apol 316 267 Euseacutebio His Ecles IV31-3 268 Lrsquoapologie de Quadratus conserve sous le nom drsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedievale 13 1946 pp 5-260 Id Lrsquoepilogue de lrsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedieacutevale 14 1947 pp 121-156 269 Carta a Diogneto 271ss 270 Carta a Diogneto 281ss
51
O rescrito de Adriano ao prococircnsul da Aacutesia a partir de 124125 dC Minuacutecio
Fundano oferece uma ideia sobre sua forma de lidar com os cristatildeos O texto foi conservado
na Apologia de Justino (I Apol 68) no texto de Euseacutebio271 e por Rufino na versatildeo latina
Adriano havia recebido a carta de Serecircncio Graniano272 antecessor de Minuacutecio e julgou ser
importante responder essa demanda a fim de ldquoevitar que se perturbem os homens e que os
delatores encontrem apoio para suas maldadesrdquo273 Adriano recomenda que
se os provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo que respondam a ela diante do tribunal deveratildeo ater-se a esse procedimento e natildeo a meras peticcedilotildees e gritarias Com efeito eacute muito mais conveniente que se algueacutem pretende fazer uma acusaccedilatildeo examines tu o assunto Em conclusatildeo se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delito Mas por Heacutercules se a acusaccedilatildeo eacute caluniosa castiga-o com maior severidade e cuida para que natildeo fique impune (I Apol 688-10)
As interpretaccedilotildees desse rescrito satildeo divergentes Em uma primeira linha interpretativa
representada por exemplo por B Orgeval H Gregoire L Regibus e M Sordi274 acredita-se
que esse rescrito assegurou a liberdade de algum tipo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos por
professarem sua religiatildeo e providenciou que fossem punidos apenas por crimes cometidos
contra as leis comuns Representantes de outro ponto de vista como C Callewaerd J Moreau
e W Schimid275 sustentam que o rescrito natildeo concede aos cristatildeos nenhuma liberdade
O rescrito foi lido por Justino de um modo favoraacutevel aos cristatildeos como se de fato o
Imperador tivesse agido decididamente a favor dos cristatildeos A esse documento fez alusatildeo
Meliton bispo de Sardes276 Euseacutebio agiu de modo semelhante em sua proacutepria leitura do
rescrito de Trajano e seguiu a Justino em sua interpretaccedilatildeo do rescrito de Adriano No entanto
como mostrou Paul Kereszts277 a interpretaccedilatildeo do apologista difere do sentido original do
rescrito Segundo a interpretaccedilatildeo de Justino Adriano teria proibido que os cristatildeos fossem
271 His Ecles IV 9 272 O nome correto eacute Q Licinio Silvano Graniano cocircnsul a partir de 106 dC e pro-cocircnsul da Aacutesia a paritir de 122123 dC MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 132 273 I Apol 687 Eus Hist Ecles IV9 274 ORGEVAL B LEmpereur Hadrien oeuvre leacutegislative et administrative ParisGrenoble Domat MontchrestienImpr De Allier 1950 pp 302-307 GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 pp 138-139 REGIBUS L de Storia e Diritto Romano negli Acta Martyrum Didascalos 1926 pp 147-148 SORDI M I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349 275 CALLEWAERT C Le Rescrit dHadrien a Minucius Fundanus Reviste dHistoire et de Litterature 6l 8 1903 pp 152-189 MOREAU J La Persecution du Christianism e dans lEmpire Romain Paris Presses Universitaires de France 1956 p 48 SCHIMID W The Christian Re-Interpretation of the Rescript of Hadrian Maia 71955 pp 5-13 276 Euseacutebio Hist EclesIV 2610 277 Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129
52
punidos simplesmente mediante a confissatildeo de que eram ldquocristatildeosrdquo e teriam recomendado
que fossem julgados pelos crimes como quaisquer outros e natildeo por suas crenccedilas
Segundo C G Roman278 a postura de Adriano em advertir a Minuacutecio Fundano a nada
julgar sem denuacutencia e acusaccedilatildeo formal contra os cristatildeos dava continuidade agrave poliacutetica de
Trajano Tomando essa perspectiva como exemplo deve-se destacar que a interpretaccedilatildeo do
rescrito de Adriano dependeraacute significativamente da interpretaccedilatildeo do rescrito de Trajano e
talvez deva remontar ateacute um pouco antes Roman interpretou as recomendaccedilotildees deste uacuteltimo
como sendo positivas para com os cristatildeos e sua tendecircncia eacute reconhecer o aprimoramento das
limitaccedilotildees das accedilotildees anticristatildes
J Beaujeu279 considera que Adriano procedeu a uma grande obra de restauraccedilatildeo
religiosa que obedecia aleacutem das necessidades religiosas a objetivos poliacuteticos agrave medida que
tendia a uma unificaccedilatildeo religiosa das distintas proviacutencias do Impeacuterio debaixo da eacutegide dos
cultos Greco-romanos mediante a criaccedilatildeo de uma religiatildeo do Estado siacutentese destes uacuteltimos
cultos com as religiotildees orientais com a originalidade dos diversos grupos sociais e eacutetnicos
que formavam o Impeacuterio
De fato Adriano foi um imperador interessado em conhecer a cultura do vasto
Impeacuterio Por volta do ano de 124 iniciou-se nos misteacuterios Eleusis importante oraacuteculo do
mundo grego revelando um interesse miacutestico que acabou por conduzi-lo tambeacutem ao
conhecimento misterioso da religiatildeo egiacutepcia Os cultos tradicionais de Roma natildeo receberam
menor atenccedilatildeo certamente para manter uma relaccedilatildeo amistosa com os integrantes do universo
senatorial Construiu um templo a Venus em Roma no Foro Romano no ano de 121 e mandou
reconstruir o Panteatildeo de Marco Agripa um dos mais importantes colaboradores de
Augusto280 No entanto isso natildeo permite ver em seu rescrito uma accedilatildeo proacute-cristatilde que
estivesse em consonacircncia com a ideia sustentada por Marta Sordi281 de que Adriano teve em
mente reconhecer a Cristo entre os outros deuses e lhe oferecer um templo conforme anota a
Histoacuteria Augusta (Alexandre Severus 436-7) Essa passagem se assemelha agrave lenda de que
antes de propor a construir a cidade de Elia Adriano havia empreendido um projeto de
reconstruccedilatildeo conjunta do templo de Jerusaleacutem com os judeus mas a oposiccedilatildeo dos samaritanos
278 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 230 279 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp150ss 280 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 43 281 I Cristiani e Lrsquoimpero Romano Ed rev e atual Milano Jaca Book 2011 p 98
53
fez com que os planos sofressem mudanccedilas draacutesticas282 Esse tipo de tendecircncia pode chegar a
ponto de admitir como sustentou T Mommsem283 que Adriano estava proacuteximo a elevar a feacute
cristatilde a uma religio licita
As comparaccedilotildees entre as accedilotildees de Trajano e Adriano satildeo muito importantes para o
desenvolvimento de uma teoria coerente que explique a condiccedilatildeo dos cristatildeos nesse iniacutecio do
II seacuteculo todavia natildeo eacute necessaacuterio admitir nenhuma continuidade entre ambos em razatildeo dos
rescritos G Jossa284 alerta que os rescritos natildeo satildeo ldquoleisrdquo mas recomendaccedilotildees a governantes
locais e nem um desses imperadores estabeleceu normas gerais sobre o julgamento dos
cristatildeos
Como foi visto anteriormente ao responder a demanda de Pliacutenio Trajano admitiu o
procedimento daquele governador em condenar os cristatildeos mediante a confissatildeo
recomendaccedilatildeo que fazia pressupor que o nomen christianum representava a razatildeo da
condenaccedilatildeo que visava desestimular a adesatildeo e expansatildeo dessa superstitio Naquela ocasiatildeo o
imperador fez questatildeo de lembrar que as denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas Pouco
tempo depois Adriano precisa admoestar os governantes da Aacutesia Menor a natildeo serem movidos
por ldquomeras peticcedilotildees e gritariasrdquo285 A condenaccedilatildeo aos cristatildeos provocou abusos nas
condenaccedilotildees Se bastasse estender o dedo para algueacutem e acusaacute-lo de cristianismo para
conseguir sua condenaccedilatildeo essa seria uma forma eficaz de eliminar qualquer pessoa
indesejada ainda que ela natildeo fosse cristatilde Adriano entatildeo reconhece que a questatildeo levantada
por Graniano natildeo poderia ficar sem resposta pois os efeitos da desordem seriam extensos
Embora a carta de Graniano natildeo tenha sido preservada eacute possiacutevel deduzir que se o imperador
recomenda a condenaccedilatildeo dos ldquomaleacutevolosrdquo delatores dos cristatildeos que indevidamente os
caluniavam visando agrave puniccedilatildeo isso significa que esse tipo de episoacutedio jaacute havia sido
constatado naquela regiatildeo Nenhuma norma universal eacute estabelecida ou mencionada O
governador eacute designado como o responsaacutevel por examinar as denuacutencias formais e averiguar os
casos
Fica evidenciada a obrigaccedilatildeo por parte de quem realiza a denuacutencia de apresentar ele
mesmo provas sobre seu testemunho diferenciando-se um pouco da medida de Trajano
segundo a qual o governador deveria se responsabilizar pela investigaccedilatildeo O castigo aos falsos
282 Midash Berersquoshit Babba 6410 e Epiacutestola de Barnabeacute 163-4 apud COPETE J M C Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII CONGRESSO INTERNACIONAL GIREA-ARYS IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 283 Der religonsfrevel nach der roumlmischen Recht Historische Zeitschrift 64 1890 pp 389-429 284 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125 285 I Apol 688
54
acusadores era praacutetica usual no direito romano286 Neste ponto surge a seguinte questatildeo Os
acusadores deveriam provar que os cristatildeos por eles acusados cometiam a infraccedilatildeo de serem
ldquocristatildeosrdquo ou que infringiam outras leis comuns subentendidas pelo seu nomen
A expressatildeo287 ei tij ou=n kathgorei kai deiknusi ti para touj nomouj prattontaj(
ou[twj Diorixw kata thn Dunamin tou a`marthmatoj( [ se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e
demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade
do delito ] (I Apol 6810) eacute entendida de modo positivo ou negativo dependendo da corrente
de interpretaccedilatildeo No entanto o proacuteprio rescrito tem algo a dizer em um delineamento mais
claro sobre essa questatildeo A especificaccedilatildeo de que os acusadores deveriam demonstrar que os
cristatildeos acusados agiam contra as leis [touj nomoj prattontaj] eacute uma medida para evitar as
sukofantiaj [caluacutenias] Por isso ele recomenda que Minuacutecio Fundano examine os casos e ldquose
a acusaccedilatildeo eacute caluniosa [castigue-o]288 com maior severidade e [cuide]289 para que natildeo fique
impunerdquo (I Apol 6810)
Uma nova questatildeo incide sobre o significado dessa acusaccedilatildeo ldquocaluniosardquo Justino
interpretou esse trecho como as acusaccedilotildees que maculavam injustamente a imagem dos
cristatildeos atribuindo-lhes canibalismo ateiacutesmo maiestas ou outras coisas desse tipo Segundo
esse tipo de interpretaccedilatildeo Adriano estaria reprovando a condenaccedilatildeo pelo nomen christianum
e recomendando que os governantes examinassem se existia de fato algum crime contra as
leis Ateacute esse ponto essa medida natildeo significaria nenhuma benevolecircncia para com os cristatildeos
apenas garantiria que fossem julgados como quaisquer outros no Impeacuterio sem que os
magistrados fossem movidos por gritarias puacuteblicas mas que se detivessem aos processos
formais Todavia uma segunda hipoacutetese eacute cogitada
Nessa hipoacutetese as acusaccedilotildees ldquocaluniosasrdquo agraves quais Adriano se refere poderiam natildeo ser
do mesmo tipo das que Justino tinha em mente em suas Apologias Elas poderiam se referir agrave
proacutepria acusaccedilatildeo de cristianismo lanccedilada sobre algueacutem com o intuito de levaacute-lo agrave condenaccedilatildeo
sob uma lei especiacutefica contra os cristatildeos Nessa perspectiva a exigecircncia de Adriano para que
se examinasse a comprovaccedilatildeo da denuacutencia seria uma medida semelhante agravequela tomada por
Pliacutenio exigindo que os acusados sacrificassem aos deuses e amaldiccediloassem a Cristo para que
assim se pudesse verificar se eram realmente cristatildeos A diferenccedila eacute que natildeo eacute possiacutevel
286 ROBINSON O F The criminal Law of ancient Rome Baltimore John Hopkins University Press 1996 pp 8100 287 O rescrito em latim que Euseacutebio dizia ter sido anexado originalmente por Justino foi substituiacutedo no MS Par Grae 450 pela traduccedilatildeo grega de Euseacutebio (MINNS D PARVIS P Justin philosopher and martyr apologies New York Oxford University Press 2009 p 265) 288 Adaptaccedilatildeo de ldquocastiga-ordquo para melhor leitura da frase 289 Originalmente ldquocuidardquo
55
conferir a carta de Graniano para fazer algum tipo de comparaccedilatildeo Desse modo natildeo haveria
nenhuma diferenccedila entre a posiccedilatildeo de Trajano e Adriano exceto a recomendaccedilatildeo desse uacuteltimo
para que os caluniadores fossem punidos Para sustentar essa teoria poreacutem torna-se
necessaacuterio admitir que o rescrito de Adriano foi sutilmente modificado pelos cristatildeos para
convertecirc-lo a favor da feacute cristatilde Se por um lado eacute faacutecil supor a modificaccedilatildeo desse documento
ndash o que poderia ter ocorrido ateacute em funccedilatildeo da sua traduccedilatildeo do latim para o grego ndash por outro
lado natildeo haacute outro documento desse tipo que comprove tal adulteraccedilatildeo e nem mesmo que
ratifique uma accedilatildeo intolerante de Adriano para com os cristatildeos Outra hipoacutetese deve ser
examinada e agora deveraacute levar em consideraccedilatildeo as leis agraves quais o rescrito se refere
No texto grego de Euseacutebio que agora aparece na I Apologia de Justino conforme o
MS A a conjugaccedilatildeo no particiacutepio plural presente ativo masculino do verbo prattontaj estaacute
relacionada agrave frase anterior Aproximando as frases o sentido que se tem eacute o seguinte ldquose os
provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo
que respondam a ela diante do tribunal [] faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam
alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delitordquo290 O texto
latino de Rufino eacute mais especiacutefico com essa associaccedilatildeo Si quis igitur accusat et probat
adversum leges quicquam agere memoratos homines pro merito peccatorum etiam suplicia
statues291 Nesse caso memoratos homines [homens mencionados] eacute uma expliacutecita referecircncia
aos Christianos Todavia tanto C Munier292 quanto D Minns e P Parvis293 ignoram a
palavra memoratos294 traduzindo o texto como se o rescrito se referisse ao modo geral de se
proceder em um julgamento ou seja a todos os homens cujos crimes fossem confirmados
Essa hipoacutetese forccedila o texto pois neste caso uma norma geral faria com que qualquer denuacutencia
precisasse ser provada pelo delator sob o risco de ser punido severamente caso natildeo fosse
confirmada pelas autoridades Desse modo esse tipo de sustentaccedilatildeo se converte em absurdo
Admitir que Adriano estivesse realmente orientando Minuacutecio Fundano a julgar
pessoalmente as denuacutencias contra os cristatildeos e exigir provas dos delatores que confirmassem
o descumprimento das leis natildeo significa que o imperador demonstrava simpatia pelo
cristianismo Sua preocupaccedilatildeo eacute manter a ordem e evitar os abusos Era preciso impedir que
290 I Apol 688-10 291 Apud MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 133 292 Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 pp 314-317 293 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 44264-267 294 Participio plural passado perfeito masculino acusativo que significa ldquotrazido agrave lembranccedilardquo ldquoditordquo ldquomencionadordquo ldquorelacionadordquo etc LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project)
56
as manifestaccedilotildees puacuteblicas solapassem o procedimento correto dos tribunais Haacute sim uma
diferenccedila significativa entre a postura de Trajano e a de Adriano mas ela natildeo torna o segundo
um amigo ou inimigo dos cristatildeos Cabe lembrar que uma das questotildees levantadas por Pliacutenio
a Trajano era se os cristatildeos deveriam ser punidos pela confissatildeo desse nome ou pelos crimes
subentendidos Naquele caso especiacutefico da Bitiacutenia uma das infraccedilotildees era quando os cristatildeos
se reuniam em seus cultos passar por cima da lei que impedia as reuniotildees e associaccedilotildees
gerais Abandonada essa praacutetica o governador natildeo via nenhum crime ou ameaccedila no modo de
ser dos cristatildeos e natildeo encontrou outra razatildeo para puni-los senatildeo pela contumaacutecia que
apresentavam diante de um magistrado em natildeo negar a feacute que era estranha aos olhos de Pliacutenio
A resposta de Trajano ainda que lacocircnica ratificou o procedimento de Pliacutenio e mesmo sem se
identificar um ldquocrimerdquo especiacutefico aprovou a condenaccedilatildeo dos cristatildeos pelo seu nomen para
desestimular a superstitio estranha e incentivar a retomada do culto puacuteblico pagatildeo Adriano
por outro lado tambeacutem sem fazer referecircncia a qualquer lei especiacutefica contra os cristatildeos
orienta os governantes a condenarem a todos aqueles que comprovadamente estivessem
infringindo a lei Tudo indica que a Aacutesia estava sendo agitada por mobilizaccedilotildees puacuteblicas que
impeliam os magistrados contra os cristatildeos Essa eacute a razatildeo para os apologistas Quadrato e
Aristides escreverem tambeacutem O nuacutemero dos cristatildeos ainda natildeo era muito significativo para o
estabelecimento de uma lei geral
Conforme destacou Jossa295 os cristatildeos se confrontavam com a opiniatildeo puacuteblica
Dentre o povo emergiram acusaccedilotildees de incesto infanticiacutedio e outras coisas do gecircnero A
rejeiccedilatildeo aos deuses e o estranhamento ao mos romanorum e o seu odio humanum generis
faziam com que os cristatildeos se tornassem a causa das desgraccedilas no Impeacuterio diante dos olhos de
uma boa parte dos pagatildeos No periacuteodo de Adriano a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos era apenas uma
questatildeo de ordem puacuteblica que constrangia o governo romano a uma difiacutecil obra de mediaccedilatildeo
entre os vaacuterios grupos locais Era um aspecto da poliacutetica de pacificaccedilatildeo das proviacutencias A sua
preocupaccedilatildeo estaacute relacionada exclusivamente a manter a ordem puacuteblica nas proviacutencias e a
garantir a observacircncia rigorosa do direito296 A hostilidade aos cristatildeos e os crescentes
confrontos obrigavam os governadores a intervirem e a consultarem o imperador em casos
como esse em que as coisas ameaccedilavam sair do controle
295 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125132 296 Na Digesta XXII53 o jurista Callistrato se reporta a uma seacuterie de rescritos dos quais cinco satildeo de Adriano a governadores das proviacutencias sobre o modo como escutar os textos nos processos e sobre o valor de dar a eles testemunho cf tambeacutem Dig XLVIII27
57
As respostas de Trajano e Adriano mostram que a repressatildeo puramente local do
cristianismo tinha um caraacuteter descontiacutenuo e excepcional que natildeo impedia a nova religiatildeo de
estender-se pelo Impeacuterio fazendo novos adeptos
23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos
Durante o governo de Antonino Pio (governou de 138-161) os tribunais continuavam
a receber queixas esporaacutedicas da populaccedilatildeo sobre os cristatildeos Marco Aureacutelio297 reconheceu
seu conservadorismo e o descreveu como algueacutem profundamente devoto aos deuses
romanos298 e sempre atento ao cumprimento do proacuteprio dever no culto puacuteblico
Segundo Meacuteliton que escreveu nos tempos de Marco Aureacutelio Antonino Pio natildeo
empreendeu nenhuma modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo que viesse a abater a Igreja e que
repetidamente nos rescritos dirigidos aos tessalonicenses aos atenienses e a todos os gregos
recomendou ldquonatildeo inovar nada sobre os cristatildeosrdquo299
Na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio (IV13) aparece um rescrito de Antonino ao
conselho da Aacutesia Satildeo levantados alguns argumentos contra a autenticidade desse documento
Destacam-se principalmente os erros de titulaccedilatildeo Tambeacutem se alega que suas caracteriacutesticas
formais natildeo sejam proacuteprias dos escritos de Antonino Pio Aleacutem disso o documento apresenta
uma exaltaccedilatildeo ao cristianismo Isso faz com que alguns rejeitem total300 ou parcialmente301
esse documento No entanto as condiccedilotildees da eacutepoca corroboram com a ideia de que o
imperador tenha de fato deliberado sobre essa questatildeo e J Beaujeu302 natildeo vecirc nenhuma razatildeo
para duvidar da existecircncia de um rescrito de Antonino Pio G Jossa303 e C G Roman304
297 Pensamentos I16 298 Marco Aureacutelio Pensamentos VI3014 299 apud Euseacutebio His EclesIV2610 300 Cf SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 1954 pp 190ss SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 301 Cf FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 302 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp 279-329 303 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 148 304 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 228
58
admitem-no com reservas e P Keresztes305 sustenta que por haver um comentaacuterio tanto
negativo quanto positivo sobre os cristatildeos natildeo deveria se tratar de uma falsificaccedilatildeo O modo
como tal texto foi preservado na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio eacute controverso e merece um
exame cauteloso
Pela sequecircncia do texto entende-se que Euseacutebio falaraacute de Antonino Pio Ele anuncia o
nome de Antonino que tambeacutem foi uma forma de se referir a Marco Aureacutelio mas comeccedila a
citaccedilatildeo do texto com ldquoO imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto Armecircnio
pontiacutefice maacuteximo tribuno da plebe pela deacutecima quinta vez cocircnsul por trecircs vezes ao conciacutelio
da Aacutesia saudaccedilotildeesrdquo306 A secccedilatildeo de IV82-5 apresenta um comentaacuterio que dificilmente
poderia ser admitido como autecircntico por isso esta eacute a parte que sofre maior oposiccedilatildeo Trata-se
de uma repreensatildeo moral do imperador aos provincianos O nuacutecleo seguinte do texto agraves vezes
eacute admitido como histoacuterico como sustenta C G Roman307 Lecirc-se
Em favor destes jaacute escreveram a nosso diviniacutessimo pai muitos governadores das proviacutencias aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados a natildeo ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder puacuteblico de Roma Tambeacutem a mim muitos me falaram sobre eles e tambeacutem respondi seguindo o parecer de meu pai Mas se algueacutem persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles fique o acusado livre de encargos ainda que seja evidente que eacute cristatildeo por outro lado o acusador ficaraacute sujeito a castigo Publicado em Eacutefeso no concilio da Aacutesia (Hist Ecles IV136-7)308
O contexto e as evidecircncias internas mostram que o rescrito pretende ser de Antonino
Pio Em siacutentese o texto afirma que sob seu governo natildeo se modificou em nada o que foi
estabelecido por Adriano A liberaccedilatildeo de um cristatildeo acusado em funccedilatildeo da denuacutencia de outro
cristatildeo que insiste em levaacute-lo ao tribunal natildeo faz muito sentido Pode-se imaginar que
desavenccedilas entre cristatildeos fizessem com que um cristatildeo procurasse se livrar do seu adversaacuterio
denunciando-o agraves autoridades para que fosse condenado mas eacute inimaginaacutevel que essa fosse
uma preocupaccedilatildeo de um imperador pagatildeo Eacute provaacutevel tenha sofrido uma adaptaccedilatildeo cristatilde
Mesmo despertando ceticismo sobre sua autenticidade esse rescrito pode traduzir com
reservas a situaccedilatildeo dos cristatildeos daquela eacutepoca Neste caso a compreensatildeo da condiccedilatildeo dos
cristatildeos nesse periacuteodo depende em parte da compreensatildeo da postura de Adriano diante dos
cristatildeos Euseacutebio havia interpretado o rescrito de Adriano como uma medida que beneficiava
os fieacuteis e consequentemente vecirc como positivo o rescrito de Antonino Pio No entanto
consideram as conclusotildees especificadas sobre o rescrito de Adriano nesta pesquisa se Pio natildeo
305 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 306 Euseacutebio Hist Ecles IV131 307 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 230-231 308 Ibid
59
adicionou em nada agravequela determinaccedilatildeo os cristatildeos continuavam a serem viacutetimas de
condenaccedilotildees locais e os governantes tinham liberdade para julgar cada caso
Nesse periacuteodo ocorre o martiacuterio do Papa Teleacutesforo e o processo contra Tolomeu e
Luacutecio sob o prefeito de Roma Lollio Urbico mencionados na II Apologia de Justino (21ss)
O repuacutedio da novidade e irracionalidade da feacute dos cristatildeos aparece nos escritos de Eacutelio
Aristides309 e nas vozes populares inferiores referidas por Luciano (De morte Peregrini 11)
Sobre o martiacuterio de Policarpo haacute divergecircncias Jossa310 sustenta que ele padeceu sob Marco
Aureacutelio mas o tipo de perseguiccedilatildeo recebida natildeo foi diferente daquela pela qual padeceram os
cristatildeos condenados sob Antonino Pio Tumultos e agitaccedilotildees puacuteblicas foram problemas que
Adriano havia procurado resolver
As acusaccedilotildees de ldquoateiacutesmordquo sofridas pelos cristatildeos que aparecem na primeira parte do
rescrito satildeo pertinentes ao periacuteodo311 Esse tipo de acusaccedilatildeo levou o proacuteprio Justino a incluir
esse tema nas suas Apologias312 Eacute certo como destaca Keresztes313 que ldquoateiacutesmordquo natildeo era
um crime de fato E em segundo lugar diante das cataacutestrofes aqueles que professavam
orgulhosamente a inexistecircncia dos deuses pagatildeos tornavam-se a explicaccedilatildeo mais provaacutevel
para o distuacuterbio da pax deorum314 Haacute indiacutecios no rescrito de Antonino que esse temor dos
pagatildeos diante das forccedilas da natureza tambeacutem corroborava com o combate aos cristatildeos315
A principal queixa de Justino na deacutecada de 150 dC era a de que natildeo seria justo
algueacutem ser condenado simplesmente por professar ser ldquocristatildeordquo316 O apologista tece sua
reivindicaccedilatildeo considerando o que pensa ser ldquojustordquo e assim tambeacutem apresenta uma peticcedilatildeo
309 Aristides (Orationes XLVI309) fala dos cristatildeos como ldquoos iacutempios da Palestinardquo que se distanciavam dos costumes gregos e natildeo honravam os deuses 310 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125132 311 ldquoA estes estais empurrando para a agitaccedilatildeo uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateusrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV133) 312 I62 313 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 p 17 314 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam e comparais nossa situaccedilatildeo agrave suardquo (Hist Ecles IV134) [Os seguintes infortuacutenios e prodiacutegios ocorridos em seu reino a fome a qual jaacute mencionamos o colapso do Circus e o terremoto por meio do qual as cidades de Rodes e da Aacutesia foram destruiacutedas] Adversa eius temporibus haec provenerunt fames de qua diximus Circi ruina terrae motus quo Rhodiorum et Asiae oppida conciderunt quae omnia mirifice instauravit et Romae incendium quod trecentas quadraginta insulas vel domos absumpsit (Hist Aug Vita Antoninus IX1) Dion Cassius escreveu que ldquoNos dias de Antonino tambeacutem um terriacutevel terremoto ocorreu na regiatildeo da Bitinia e de Helesponto Vaacuterias cidades foram severamente danificadas ou caiacuteram em ruiacutenas em particular Cizicus e o templo de laacute que era o maior e mais belo de todos os templo foi lanccedilado abaixordquo (Hist Rom LXX 4) Ἐπὶ τοῦ Ἀντωνίνου λέγεται καὶ φοβερώτατος περὶ τὰ microέρη τῆς Βιθυνίας καὶ τοῦ Ἑλλησπόντου σεισmicroὸς γενέσθαι καὶ ἄλλας τε πόλεις καmicroεῖν ἰσχυρῶς καὶ πεσεῖν ὁλοσχερῶς καὶ ἐξαιρέτως τὴν Κύζικον καὶ τὸν ἐν αὐτῇ ναὸν microέγιστόν τε καὶ κάλλιστον ναῶν ἁπάντων καταρριφῆναι 315 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegamrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV134) 316 I Apol 41-7
60
reinterpretando o rescrito de Adriano317 Desse modo em exigecircncia mediante o que chama de
ldquosatilde razatildeordquo ele sustenta ser justo que os cristatildeos sejam julgados quando porventura vierem a
cometer alguma falta contra a lei ou por algum delito mas nunca por se chamarem ldquocristatildeosrdquo
Eacute em funccedilatildeo do que representava ser ldquocristatildeordquo que o apologista se dedica a algumas
explicaccedilotildees Em sua anaacutelise era por causa do preconceito das crenccedilas pagatildes dos boatos
maliciosos e ainda por certo impulso irracional por parte dos ldquooutrosrdquo que os cristatildeos eram
ofendidos318 O caso de uma mulher que se divorciou do marido pagatildeo narrado na II Apologia
eacute outro exemplo dos atritos corriqueiros que poderiam chegar aos tribunais Segundo o
apologista ldquotodo aquele que eacute repreendido pelo pai vizinho filho amigo marido ou mulher
por causa de uma falta se volta contra [os cristatildeos] por sua obstinaccedilatildeo no mal por seu amor
ao prazer e por sua impotecircncia para seguir o que eacute bomrdquo319 Aleacutem desse caso emblemaacutetico
acontecido havia pouco tempo na cidade de Roma sob Urbico320 ele acrescenta que tais accedilotildees
tambeacutem eram comuns aos governadores em todo o Impeacuterio e que ldquoem todas as partesrdquo havia
quem estivesse disposto a levar os seguidores de Cristo agrave morte321 Em ambas as Apologias
Justino escreve como quem procura alertar o imperador sobre os abusos cometidos contra os
cristatildeos Devido agrave ausecircncia de uma lei geral contra os fieacuteis as accedilotildees anticristatildes aparecem
como fruto dos distuacuterbios locais que emergiam em resistecircncia agrave nova religiatildeo A I Apologia
parece se referir aos atritos gerais contra os cristatildeos enquanto a segunda comeccedila com um
clamor a partir de um caso especiacutefico ocorrido em Roma sob o prefeito Urbico A II Apologia
daacute sinais de que as disputas de Justino com Crescente na capital imperial levavam o
apologista a prever o seu martiacuterio que soacute viria a acontecer no iniacutecio do governo de Marco
Aureacutelio
Marta Sordi322 assim como Robert M Grant323 identifica trecircs fases na poliacutetica
imperial de Marco Aureacutelio mas as duas uacuteltimas extrapolam o contexto em que se insere
Justino A primeira fase se relaciona ao periacuteodo da corregecircncia entre Marco Aureacutelio e Lucio
Vero de 161 a 169 que corresponde em parte aos uacuteltimos anos de Justino Esta fase revela a
princiacutepio a mesma condiccedilatildeo do governo de Antonino Pio mas pode ter sofrido mudanccedilas no
final da deacutecada
317 I Apol 681-10 318 I Apol 23 319 II 12 320 Quintus Lollius Urbicus havia sido incumbido por Adriano na Guerra Judaica (133-135 dC) governou a Germania Menor (136-138 dC) e a Britania (139-142 dC) e foi prefeito de Roma de 146 a 160 dC (Historiae Augustae 54) 321 II 11-2 322 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103 323 Five apologists and Marcus Aurelius Vigiliae Christianae V 42 n 1 Mar1988 pp 1-17
61
Algumas fontes cristatildes (Atas do martiacuterio de Justino 58324 Oroacutesio Historiae Adversus
PaganusVII154325) vinculam a intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo a um edito sobre sacrifiacutecios
Natildeo se tratava de um decreto diretamente contra os cristatildeos A determinaccedilatildeo exigia sacrifiacutecios
aos deuses por todas as cidades do Impeacuterio nos anos de 166168 e devia estar relacionada aos
temores devido agrave peste agrave guerra na Partia e agrave pressatildeo germacircnica326 Justino foi provavelmente
condenado por se negar a obedecer ao novo decreto mas suas Apologias refletem a situaccedilatildeo
dos cristatildeos sob Antonino Pio
Por meio de uma leitura do seu tempo Justino contemplaraacute em seu discurso os
fundamentos desse tipo de accedilotildees Ele apresenta uma desconstruccedilatildeo da forma de controle que
proporciona agreccedilotildees aos cristatildeos e entatildeo oferece uma concepccedilatildeo cristatilde para fundamentar o
estabelecimento da ordem social
O apologista compotildee uma argumentaccedilatildeo para mostrar que a religiatildeo cristatilde poderia
contribuir para a estabilidade da ordem social no Impeacuterio e oferece uma reflexatildeo sobre os
fundamentos da noccedilatildeo de justiccedila na perspectiva cristatilde Por meio do exame do discurso de
Justino identificam-se dois aspectos da relaccedilatildeo entre religiatildeo e controle social no Impeacuterio
Romano contemplados nas accedilotildees anticristatildes de seu tempo O primeiro eacute representado na sua
anaacutelise da repressatildeo aos cristatildeos em funccedilatildeo da preservaccedilatildeo da ordem e o segundo na sua
proposta de contribuiccedilatildeo dos cristatildeos para a manutenccedilatildeo da ordem
324 ldquoAqueles que natildeo desejarem sacrificarem aos deuses e se submeterem ao decreto imperial satildeo condenados primeiro a serem castigados e depois agrave pena capital conforme a leirdquo (Tr A) kai ei=xai tw| tou auvtokragmati( mastigwqevtej avpacqhtwsan( kefalikhn avpotinnuntej dikhn( kata thn twn nomwn avkoluqian) cf Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 p152 325 Eo defuncto Marcus Antoninus solus reipublicae praefuit sed in diebus Parthici belli persecutiones Christianorum quarta iam post Neronem uice in Asia et in Gallia graues praecepto eius exstiterunt multique sanctorum martyrio coronati sunt Cf OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889 326 SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103
62
CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE
MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM
Ao escrever suas Apologias em defesa dos cristatildeos e endereccedilaacute-las ao imperador
Justino se posiciona tanto como um profeta da antiga monarquia de Israel quanto como um
filoacutesofo conselheiro que se prontifica a oferecer conselhos ao governante Eacute possiacutevel
estabelecer uma analogia entre essas duas posturas nesse caso pois para esse pensador o
cristianismo ndash que em certo sentido eacute para os cristatildeos o cumprimento das expectativas de
Israel ndash eacute a ldquoverdadeira filosofiardquo327 Eacute a partir dessa sua perspectiva cristatilde que ele analisa a
forma romana de garantir o estabelecimento da ordem no tocante agrave religiatildeo e que manifesta
suas razotildees para se opor agrave religiatildeo pagatilde
Sua construccedilatildeo apologeacutetica contrasta tal forma de controle romana que acaba por
vitimar os cristatildeos agrave contribuiccedilatildeo cristatilde para a ordem social Seus pronunciamentos agraves vezes
satildeo muito diretos aos governantes ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem
e natildeo tenhais a quem castigar coisa que conviria melhor a verdugos do que a priacutencipes
bonsrdquo328 Na verdade o problema central incide sobre as formas de controle sociais
empregadas para a repressatildeo da expansatildeo dessa nova religiatildeo Por isso os argumentos de
Justino tecircm por objetivo combater algumas das principais queixas sobre os cristatildeos e tambeacutem
informar sobre o caraacuteter de suas crenccedilas e estilo de vida
Nessa parte da pesquisa seraacute analisada a forma como o apologista tece suas criacuteticas ao
procedimento romano contra a religiatildeo cristatilde e agrave postura dos cristatildeos diante dessas outras
religiotildees A proposta de Justino sobre os fundamentos cristatildeos para o controle social seraacute
examinada no proacuteximo capiacutetulo Sua interrogaccedilatildeo eacute a mesma que ainda voltou agrave tona no
seacuteculo XX com G E M de Ste Croix329 em 1963 com A N Sherwin-White330 em 1964 e
com o proacuteprio Ste Croix331 em uma treacuteplica ldquoWhy were the Early Christians persecutedrdquo
Segundo GEM de Ste Croix as perseguiccedilotildees aos cristatildeos eram decorrentes
basicamente da recusa desse grupo em reconhecer os deuses de Roma acarretando uma
situaccedilatildeo de suspeitas de sediccedilatildeo e periculosidade social Os deuses tradicionais do panteatildeo
greco-romano eram as divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma e seus cultos eram
327 II Apol 152 328 I Apol 124 329 Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p6-38 330 Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 331 Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 p28-33
63
uma necessidade para a manutenccedilatildeo da pax deorum [paz dos deuses]332 A perseguiccedilatildeo se
relacionaria ao sentimento religioso da eacutepoca supersticiosa na qual eles viviam333
A N Sherwin-White334 de modo diverso desviou a tocircnica da perseguiccedilatildeo da questatildeo
da pax deorum e lanccedilou seu olhar agrave contumaacutecia dos cristatildeos em se manterem fieacuteis agraves suas
crenccedilas exclusivistas diante do panteatildeo greco-romano Tal postura teria sido interpretada em
muitos momentos como um desafio agraves autoridades romanas Desse modo atrairiam para si
mesmos acusaccedilotildees e suspeitas em decorrecircncia de sua potencial insubordinaccedilatildeo conforme
pode ser visto nas Cartas de Pliacutenio o Jovem a Trajano335
A treacuteplica de GEM Ste Croix336 natildeo colocou um ponto-final na questatildeo e
incomodou a outros estudiosos contemporacircneos Segundo Paul Veyne as comunidades cristatildes
enfrentaram resistecircncias devido agrave aversatildeo romana ldquoao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguordquo337
O fato de o grupo ser ainda pouco conhecido e sustentar a veneraccedilatildeo a um ldquoreirdquo na esperanccedila
de um reino torna a situaccedilatildeo ainda mais complicada Tal hibridez alegada seria notada tendo
em vista que embora possuindo as mesmas categorias de pensamentos dos demais cidadatildeos do
Impeacuterio Romano
os cristatildeos faziam parte do Impeacuterio mas sem os mesmos costumes evitavam conviver com os outros natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo veneravam os deuses nacionais seu Deus natildeo pertencia agrave determinada naccedilatildeo diferente do deus dos judeus Aleacutem de querer se isolar como uma legiacutetima diferenccedila nacional esse Deus pretendia superar os deuses nacionais338
Nesse sentido as perseguiccedilotildees teriam sido causadas pela rejeiccedilatildeo a algo pouco
definido anormal capaz de produzir inseguranccedilas e exigir uma medida cautelar E para
justificar as accedilotildees persecutoacuterias os romanos lanccedilavam matildeo de argumentos tradicionais como
o respeito ao mos maiorum [os costumes ancestrais] e o respeito agrave unidade religiosa e moral
da coletividade
Mesmo apresentando explicaccedilotildees diferentes sobre as perseguiccedilotildees as consideraccedilotildees
de Sherwin-White Ste Croix e Paul Veyne natildeo satildeo completamente opostas Se por um lado
observamos a posiccedilatildeo obstinada dos cristatildeos em manter a sua religiatildeo a ponto de se tornar
332 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p 24 333 Ibid 1963 pp 29-31 Cf DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963 334 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n 27 1964 pp 25 335 Pliacutenio Segundo Cartas X 96-97 336 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 337 VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 338 Ibid p 246
64
uma desobediecircncia contra as autoridades imperiais por outro a religiatildeo romana se baseava na
manutenccedilatildeo do equiliacutebrio das relaccedilotildees entre o Impeacuterio Romano e os deuses tradicionais
Essas explicaccedilotildees decorrem de uma anaacutelise geral das accedilotildees anticristatildes do I ao IV
seacuteculo Um exame mais localizado ndash e em niacuteveis menos oficiais ndash poderia multiplicar as
razotildees pelas quais os cristatildeos foram perseguidos ou chamar a atenccedilatildeo para o fator psicoloacutegico
desses atritos religiosos Essa pesquisa no entanto limitar-se aos aspectos que possibilitem
uma leitura das accedilotildees anticristatildes a partir das Apologias de Justino
O apologista tambeacutem se propotildee a responder a esta questatildeo ldquoPor que os cristatildeos satildeo
perseguidosrdquo Sua leitura teoloacutegica da histoacuteria procura chegar agrave causa uacuteltima motivadora das
accedilotildees anticristatildes desenvolvendo uma trama apologeacutetica que relaciona controle social e
religiatildeo Para compreender suas formulaccedilotildees conveacutem analisar esse conceito chave
ldquoControle socialrdquo pode ser definido como ldquoo conjunto dos recursos materiais e
simboacutelicos que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de
seus membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo339 O termo de
modo geral eacute frequentemente usado para se referir a alguma forma de reaccedilatildeo organizada ao
comportamento pervertido Essa abordagem eacute baseada o trabalho de Stan Cohen que definiu
controle social como ldquorespostas organizadas ao crime delinquecircncia e formas aliadas de
perversatildeo eou comportamento socialmente problemaacutetico os quais satildeo atualmente concebidos
se no reativo sentido (depois do putativo ato ter tomado espaccedilo ou o ator ter sido identificado)
ou no proativo sentido (para prever os atos)rdquo340
A definiccedilatildeo usada por Donald Black341 eacute muito semelhante Ele assinalou que
ldquocontrole social eacute o aspecto normativo da vida social ou a definiccedilatildeo de comportamento
pervertido e a resposta a ele tal como proibiccedilotildees acusaccedilotildees puniccedilotildees e compensaccedilatildeordquo
Segundo esta afirmaccedilatildeo controle social se refere aos mecanismos determinantes usados para
regular a conduta das pessoas que satildeo vistas como pervertidas criminosas preocupantes ou
problemaacuteticas em algum sentido para os outros Todo tempo os sentidos nos quais diferentes
culturas entendem e respondem a diferentes formas de mudanccedilas e ajustes de comportamentos
problemaacuteticos
A causa desses problemas pode ser atribuiacuteda agrave criminalidade perversatildeo imoralidade
maldade perversidade ou alguma combinaccedilatildeo desses Similarmente os mecanismos
empregados para alcanccedilar o controle podem incluir formas variadas de puniccedilatildeo tratamento
339 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 340 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 p 3 341 BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press 1976 pp 1-2
65
dissuasatildeo segregaccedilatildeo ou prevenccedilatildeo342 Desse modo se a combinaccedilatildeo de fatores eacute usada para
compreender e reatar o problema o objetivo eacute promulgar o controle sobre o comportamento
que eacute visto como pervertido em algum sentido
A complexidade do tema se manifesta ainda quando R Meier343 considera que
controle social pode ser encontrado em trecircs principais contextos a) como uma descriccedilatildeo da
condiccedilatildeo ou processo social baacutesico ndash definiccedilatildeo dominante na teoria socioloacutegica claacutessica ndash b)
como um mecanismo para assegurar o cumprimento das normas e c) como um meacutetodo pelo
qual estudar (ou interpretar dados sobre) a ordem social Cohen retoma Joseph Rouceck344
que escreveu em 1947 entendendo controle social como ldquoum termo coletivo para aqueles
processos planejados ou natildeo planejados pelos quais indiviacuteduos satildeo ensinados ou compelidos
a conformar os usos e valores vitais dos gruposrdquo E A Horwitz345 que considerava que o
ldquocontrole social emerge da vida e das praacuteticas sociais e serve para manter o sentido da vida e
das praacuteticas sociais dos gruposrdquo Muitos diriam que tal descriccedilatildeo se aproxima mais dos
processos de socializaccedilatildeo E natildeo eacute preciso ir muito longe para perceber que os dilemas desse
conceito podem vir a ser complexos Tatildeo logo manifesta-se a necessidade de estabeler os
limites desse termo de modo que natildeo seja tatildeo limitado e que tambeacutem natildeo seja tatildeo amplo a
ponto de natildeo ser reconhecido
Segundo a anaacutelise de Martin Innes346 a definiccedilatildeo de Cohen permanece muito flexiacutevel
para mostrar a promulgaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social pelo Estado ou por agentes
profissionais autocircnomos tais como funcionaacuterios de corporaccedilotildees privadas e psiquiatras As
pessoas tendem a usar outros meios antes de recorrer ao aparato formal estabelecido de
controle social subcolocados como satildeo pela lei Mais conflitos satildeo resolvidos sem recursos da
lei ou controle social formal Uma soluccedilatildeo eacute frequentemente negociada ou a perversatildeo
tolerada e a imposiccedilatildeo do controle social tende a ser uma funccedilatildeo de elevada distacircncia
relacional Por isso a extensatildeo do desempenho do controle social atinge tambeacutem um caraacuteter
informal na sociedade
A definiccedilatildeo de controle social como uma resposta organizada a comportamentos
pervertidos natildeo eacute consensual Mas na busca por uma definiccedilatildeo que se adapte aos objetivos
desse trabalho seratildeo levadas em consideraccedilatildeo as proposiccedilotildees de Martin Innes347 Ele sintetiza
342 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 passim 343 MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology 1982 8 pp 35ndash55 344 Social Control Westport CT Greenwood Press 1970 p 3 345 The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990 p 5 346 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 347 Ibid
66
os aspectos da definiccedilatildeo de Cohen em uma abordagem revisionista Seu argumento eacute que
controle social pode ser pensado como um conceito-mestre composto de uma raiz de
diferentes modos de controle e tecnologias
Para estabelecer os limites desse conceito de controle social tambeacutem eacute necessaacuterio
estabelecer conceitos paacutereos como ldquoordem socialrdquo Segundo Erwin Goffman348 as relaccedilotildees
regulares entre as pessoas os variados padrotildees de funcionamento variadamente motivados
de comportamento as rotinas associadas com regras baacutesicas juntos constituem o que pode ser
chamada de uma ldquoordem socialrdquo
Baseando-se nesta definiccedilatildeo pode-se distinguir entre o significado de ordem social e
controle social A promulgaccedilatildeo de controle social eacute frequentemente destinada a proteger a
ordem social mas ordem social natildeo eacute unicamente produto de controles sociais Ao contraacuterio
o conceito de ordem social se refere agraves condiccedilotildees de existecircncia de uma sociedade De fato
toda sociedade tem intrinsecamente um grau de organizaccedilatildeo e entatildeo uma ordem social Uma
ordem social natildeo eacute estaacutetica estaacute constantemente em processo sendo produzida e reproduzida
pela combinaccedilatildeo de atitudes valores praacuteticas instituiccedilotildees e accedilotildees de seus membros
Entatildeo a ordem social eacute composta de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees
as quais de alguma forma contribuem para a constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social As
fronteiras entre as praacuteticas de organizaccedilatildeo social e controles sociais natildeo satildeo fixas nem
estaacuteveis e ao longo do tempo mudam de equiliacutebrio Pois se ordem social se refere ao estado
da sociedade e ao arranjo organizado de seu essencial conhecimento valores accedilotildees
instituiccedilotildees e estabelecimentos controle social se refere aos processos pelos quais se busca
gerir desvios ou conflitos com a ordem social Essas formas de gerenciamento podem ser
formais ou seja institucionalizadas ou informais
Controle social formal se refere a alguma ocasiatildeo onde a imposiccedilatildeo do controle eacute
baseada sobre ou informada por a presenccedila da lei Outras atividades de controle podem ser
definidas como tipo informal349 Dentre essas formas de controle tambeacutem eacute possiacutevel distinguir
os modos reativos e os proativos O primeiro tipo eacute aquele usado para responder algumas
coisas depois que elas tecircm tomado espaccedilo O segundo envolve o caacutelculo da probabilidade de
um ato ocorrer no mesmo ponto no futuro e a manufatura de alguma forma de intervenccedilatildeo em
antecipaccedilatildeo deste Essa eacute uma forma preditiva de controle Tambeacutem eacute possiacutevel distinguir entre
formas de controle social ldquoverticalrdquo para falar sobre o poder diferencial que frequentemente
existe entre controladores e os controlados Controle social para baixo eacute mais comum
348 GOFFMAN E Relations in Public New York Basic Books 1971 p x 349 Cf BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press passim
67
envolvendo alguns com mais poder ou autoridade de regulaccedilatildeo do comportamento de
indiviacuteduos ou grupos menores Contudo o controle social tambeacutem pode ser ldquoupwardsrdquo [para
cima] envolvendo os menos poderosos moldando o comportamento de indiviacuteduos ou grupos
mais poderosos
Eacute numa perspectiva ldquode baixo para cimardquo que Justino questiona a forma de controle
empreendida pelos governantes romanos quando agem contra os cristatildeos Essa perspectiva
contempla as condiccedilotildees do grupo minoritaacuterio daqueles que satildeo considerados adeptos de uma
superstito digna de ser combatida por aqueles que detecircm os meios de controle e dessa forma
eacute produzido um instrumento de controle que busca ldquoconvencerrdquo e intimidar as autoridades e a
todos os demias a natildeo se oporem aos cristatildeos Embora reconheccedila que os governantes satildeo
constituiacutedos por Deus eacute aquilo que ele chama de ldquoreta razatildeordquo que lhe daacute o direito de se
pronunciar350 As autoridades romanas soacute satildeo buscadas porque os conflitos cotidianos quanto
agraves diferenccedilas religiosas produziram atritos e inquietaccedilotildees que abriram margem para que os
romanos aplicassem coaccedilotildees ldquoformaisrdquo Ao questionar a intervenccedilatildeo imperial para a
manutenccedilatildeo da ordem o apologista revela refugiar-se em um padratildeo de justiccedila distinto
daquele dos romanos Em seus escritos ele tambeacutem manifesta uma perspectiva cristatilde da
ordem que seraacute analisada no proacuteximo capiacutetulo
Para se compreender as proposiccedilotildees de Justino seratildeo examinados os seguintes
aspectos a criacutetica aos governantes no processo de manutenccedilatildeo da ordem no tocante aos
cristatildeos as diferenccedilas entre os cristatildeos e as outras religiotildees e sua criacutetica sobre as leis e a
moralidade
31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem
Na I Apologia logo apoacutes o exoacuterdio Justino procura justificar suas razotildees agraves
autoridades agraves quais se refere em peticcedilatildeo Ele escreve que
todo homem sensato manifestaraacute que a melhor exigecircncia ou ainda mais que a uacutenica exigecircncia justa eacute que os suacuteditos possam apresentar uma vida e um pensar irrepreensiacuteveis e que por outro lado igualmente os mandantes deem sua sentenccedila
350 ldquoA razatildeo exige dos que satildeo verdadeiramente piedosos e filoacutesofos que desprezando as opiniotildees dos antigos se estas satildeo maacutes estimem e amem apenas a verdade De fato o raciociacutenio sensato natildeo soacute exige que se abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente mas tambeacutem que o amante da verdade de todos os modos e acima da proacutepria vida mesmo que seja ameaccedilado de morte deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiccedilardquo (I Apol 12)
68
natildeo levados pela violecircncia e tirania mas segundo a piedade e a filosofia Soacute assim governantes e governados podem gozar de felicidade351
O bom procedimento dos suacuteditos conjugado agrave postura iacutentegra de justiccedila daqueles que
tecircm autoridade aparece como condiccedilatildeo para que ldquogovernantesrdquo e ldquogovernadosrdquo desfrutem da
felicidade O que mais chama atenccedilatildeo eacute a seguinte expressatildeo ldquoem algum lugar um dos
antigos disse lsquoSe os governantes e os governados natildeo forem filoacutesofos natildeo eacute possiacutevel os
Estados prosperaremrsquordquo352 Tanto Munier353 quanto Minns e Parvis354 identificam esse trecho
como uma citaccedilatildeo de Platatildeo (Repuacuteblica V 473) Na obra de Platatildeo fica claro o apontamento
da necessidade de que os governantes adiram ao cultivo da sabedoria numa junccedilatildeo de
δύναmicroίς τε πολιτικὴ καὶ φιλοσοφία [poder poliacutetico e filosofia] para que natildeo haja problemas
sociais
Justino ressignifica o conceito de ldquofilosofiardquo a partir da sua experiecircncia cristatilde Desse
modo aqueles que satildeo ldquopiedosos e filoacutesofosrdquo como satildeo chamados o imperador e seus filhos
deveriam julgar com retidatildeo para que todos gozem de bem estar
Haacute vaacuterias hipoacuteteses para justificar o tiacutetulo ldquoPiordquo de Antonino Uma hipoacutetese eacute que esse
nome lhe fora dado por ter defendido a deificaccedilatildeo dedicaccedilatildeo de um templo e concessatildeo de
inuacutemeras honras a Adriano Outras hipoacuteteses levam em conta seu caraacuteter e sua maneira de
ser355 ldquoVerissimusrdquo356 era uma denominaccedilatildeo de Marco Annio Vero que viria a ser o
Imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto O modo como esse apelido eacute empregado
no texto indica provavelmente uma estrateacutegia retoacuterica de Justino Marco era
reconhecidamente chamado de ldquofiloacutesofordquo357 Seus proacuteprios escritos eliminam qualquer
indagaccedilatildeo Poreacutem quando Luacutecio eacute chamado de ldquofiloacutesofordquo isso pode soar estranho Mas antes
de se rejeitar esse tiacutetulo eacute mais prudente tentar compreender se existe uma ligaccedilatildeo isotoacutepica
com a estrutura do texto Se os tiacutetulos ldquoPiordquo e ldquofiloacutesofordquo respectivamente de Antonino e de
Marco Aureacutelio apresentam um forte viacutenculo com a construccedilatildeo do cerne da obra haacute boa razatildeo 351 I Apol 32 Cf Kalhn de kai monhn dikaian proltsgtklhsin tauthn paj o` swfronwn avpofaneitai( to touj avrcomenouj thn euvqunhn tou eautwn biou kai logou alhpton parecein( o`moiwj drsquoauv kai touj arxontaj mh bia| mhde turannidi( avllrsquo euvsebeia| kai filosofia| avkolouqountaj thn yhfon tiqesqai ou[twj gar avrcontej kai oi` avrcomenoi avpolauoien tou avgaqou) MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 352 I Apol 33 Cf An mh oi` arcontej filosofhswsi [kai oi` avrcomenoi]( ouvk av eih taj poleij euvdaimonhsai) Cf MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 353 MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p 172 354 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 85 355 Hist Aug Antoninus Pius 21-10 356 Ele foi carinhosamente chamado ldquoVeriacutessimordquo [Ouvrissiacutemon] como apontou Cassius Dio (Hist Rom 69212) e como aparece tambeacutem na Hist Aug I41 357 Hist Aug Marcus Aurelius 15-9
69
para buscar uma hipoacutetese que aluda agrave possiacutevel relaccedilatildeo do tiacutetulo de Luacutecio com o restante do
texto
Luacutecio foi adotado por Antonino ao mesmo tempo em que Marco e se tornou Luacutecio
Aeacutelio Aureacutelio Commodo Com a morte de seu pai adotivo recebeu o tiacutetulo de Imperador
Ceacutesar como esse seu irmatildeo mas a dimensatildeo do seu poder eacute amplamente questionada Minns e
Parvis358 consideram que nos tempos de sua ldquosaiacutedardquo para as regiotildees do Impeacuterio em 153 ou
154 poderia ser mais prudente incluiacute-lo entre os destinataacuterios Ele eacute chamado de ldquofiloacutesofo
[filosofw|] filho natural de Ceacutesarrdquo no MS A e de filosofou kaisaroj fush| ui`w| [Filho
natural do filoacutesofo Ceacutesar] por Euseacutebio359 Esse tiacutetulo natildeo poderia ser atribuiacutedo ao pai
bioloacutegico de Luacutecio Segundo os registros da Historia Augusta seu pai Luacutecio Aeacutelio Vero
recebeu realmente o tiacutetulo de Ceacutesar do Imperador Adriano mas morreu sem chegar ao posto
elevado Por outro lado haacute evidecircncias suficientes para Justino chamar a Luacutecio filho natural
de Ceacutesar e filho de Pio por adoccedilatildeo de ldquoamante do saberrdquo o que equivaleria a dizer que tinha
uma formaccedilatildeo baacutesica
O tiacutetulo ldquofiloacutesofordquo natildeo se referia a apenas um exiacutemio pensador O filoacutesofo podia ser
algueacutem que se dedicava aos assuntos filosoacuteficos que frequentava alguma escola ou grupo de
discussatildeo ou algueacutem de reconhecido destaque intelectual podendo ser considerado ateacute um
embaixador em assuntos poliacuteticos360 Luacutecio poreacutem natildeo apresentou dons naturais para os
estudos literaacuterios Compocircs versos e oraccedilotildees mas suas habilidades poeacuteticas eram muito
limitadas Haacute quem diga que ele foi ajudado pela inteligecircncia de seus amigos e que muitas das
coisas creditadas a ele foram escritas por outros361 A despeito de Luacutecio ser ndash ou natildeo ndash
reconhecidamente um filoacutesofo essa denominaccedilatildeo podia render uma associaccedilatildeo desses nomes
ao cultivo do saber em geral e da piedade Se por outro lado o tiacutetulo de filoacutesofo viesse a ser
improacuteprio comparado agrave pertinecircncia da forma como Marco Aureacutelio eacute chamado abre-se espaccedilo
para uma nova hipoacutetese Seria esta uma estrateacutegia para chamar a atenccedilatildeo para as proacuteximas
colocaccedilotildees quando o apologista destaca aqueles que dizem ser filoacutesofos e natildeo o satildeo Mais do
que isso o apologista precisa de um elemento que viabilize a abertura de um espaccedilo textual
para a apresentaccedilatildeo do que ele considera ldquoa verdadeira filosofiardquo isto eacute o cristianismo
358 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 38-39 359 Hist Ecle IV121ss 360 DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940 361 Hist Aug Lucius Verus 21ss
70
Justino conheceu vaacuterias correntes filosoacuteficas Uma variedade de escolas poderia ser
encontrada pelo Impeacuterio Euseacutebio362 o chamou de ldquoamante da verdadeira filosofiardquo No
Diaacutelogo com Trifatildeo363 a filosofia eacute por ele reconhecida como ldquoo maior e mais precioso bem
diante de Deus para o qual somente ela conduz e nos associardquo Esses ensinamentos satildeo
considerados ldquosuperiores a toda filosofia humanardquo364 e reconhecidos como ldquoa filosofia segura
e proveitosardquo365 Dessa forma o pensamento cristatildeo eacute revestido de uma aacuteurea de
superioridade capaz de fundamentar sua teoria e sua criacutetica ao modo romano de repelir os
fieacuteis
Em sua leitura teoloacutegica da histoacuteria e dos problemas religiosos do seu tempo o
apologista procura a razatildeo uacuteltima que fundamenta a accedilatildeo humana para aquilo que eacute ldquobomrdquo e
para as accedilotildees de oposiccedilatildeo agrave feacute Eacute trabalhoso encontrar uma definiccedilatildeo para o que eacute ser ldquobomrdquo
segundo seu modo de pensar Sabe-se poreacutem que os cristatildeos satildeo tidos como os que buscam
aquilo que eacute ldquobomrdquo e que por isso natildeo haacute nenhuma razatildeo para persegui-los Aquilo que eacute
ldquobomrdquo pode ser experimentado de forma parcial por aqueles que natildeo satildeo cristatildeos mas essa
experiecircncia deriva de uma mesma fonte coacutesmica da ldquobondaderdquo Por isso ele sustenta que tudo
o que pode ser chamado ldquobomrdquo entre os filoacutesofos e legisladores elaborado por eles mediante
a investigaccedilatildeo e a instituiccedilatildeo foi comunicado pela parcela do Logos que lhes coube De outro
modo Justino afirma que por natildeo conhecerem plenamente o Logos que eacute Cristo eles
frequentemente se contradizem Em seu ponto de vista outrora muitos pensadores que
tentaram investigar e demonstrar as coisas por meio dessa ldquorazatildeordquo tambeacutem foram levados ao
tribunal como Soacutecrates
Em oposiccedilatildeo ao que eacute ldquobomrdquo uma forccedila oposta aparece como a propiciadora do
engano Eacute esse o elemento uacuteltimo responsaacutevel pelo desvirtuamento da sintonia com aquilo
que eacute ldquobomrdquo e que promove as accedilotildees ldquoinjustasrdquo das autoridades Ele escreve ldquoVoacutes poreacutem
natildeo examinais nossos juiacutezos mas movidos de paixatildeo irracional e aguilhoados por democircnios
perversos nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por issordquo366
Segundo sua teoria satildeo os democircnios os uacuteltimos responsaacuteveis por espalhar a ignoracircncia e
mover as autoridades contra os cristatildeos
Sob essa perspectiva ele destaca a transparecircncia cristatilde e a disposiccedilatildeo paciacutefica desse
grupo diante da autoridade imperial ao dever dos governantes
362 Hist Ecles IV83 363 Diaacutelogo com Trifatildeo 21 364 II Apol 153 365 Diaacutelogo com Trifatildeo 81 366 I Apol 51
71
Cabe a noacutes portanto expor ao exame de todos a nossa vida e os nossos ensinamentos para que natildeo nos tornemos responsaacuteveis pelo castigo daqueles que ignorando a nossa religiatildeo pecam por cegueira contra noacutes Contudo o vosso dever eacute tambeacutem ouvir-nos e mostrar-vos bons juiacutezes Com efeito daqui para frente informados como estais caso natildeo ajais com justiccedila natildeo tereis nenhuma desculpa diante de Deus367
A lealdade dos cristatildeos natildeo era algo evidente e por isso eacute uma das principais
preocupaccedilotildees do apologista ratificaacute-la Justino assinala que havia suposiccedilotildees inclusive de
que os cristatildeos arquitetavam algum tipo de irrupccedilatildeo de outro ldquoreinordquo quando de fato falavam
do ldquoreino de Deusrdquo em todos os seus aspectos espirituais (I Apol 111) A nova religiatildeo jaacute se
espalhava pelo Impeacuterio havia um seacuteculo mas eacute provaacutevel que natildeo tivesse alcanccedilado um
nuacutemero expressivo de fieacuteis Aleacutem disso ainda natildeo existia uma estrutura eclesiaacutestica bem
formada O marcionistas os valentinianos e outros grupos tornavam a questatildeo da identidade
cristatilde um assunto das apologias justinianas e de outros escritores e pregadores que pretendiam
definir quem eram os ldquocristatildeosrdquo
32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus
Na verdade o exclusivismo caracteriacutestico do monoteiacutesmo cristatildeo contrastava com a
religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio As accedilotildees importantes do Estado sempre envolviam rituais
sagrados Comemoraccedilotildees de vitoacuterias e triunfos do exeacutercito normalmente culminavam em
procissotildees e sacrifiacutecios E a proacutepria estabilidade social dependia de uma barganha feita com
os deuses para a manutenccedilatildeo da paz368
Os variados rituais produziam interaccedilotildees entre deuses e homens na religiatildeo romana
Por meio deles eram marcados todos os eventos puacuteblicos e celebraccedilotildees que envolviam
festivais anuais os juramentos ou aniversaacuterios das fundaccedilotildees de templos Tambeacutem podiam
estar relacionados aos jogos ou agraves performances dramaacuteticas que tinham elementos rituais em
seu programa ainda que incluiacutessem o entretenimento entre seus propoacutesitos Os jogos jamais
perderam seu aspecto ritual Cria-se que nessas ocasiotildees os deuses desciam para assisti-los e
entatildeo eram realizados rituais religiosos inclusive representados perfeitamente para que a
cerimocircnia fosse bem sucedida De modo geral tambeacutem os sacrifiacutecios eram feitos estritamente
367 I Apol 34 368 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35
72
segundo regras e tradiccedilotildees que necessariamente tinham de ser respeitadas369 Os prodiacutegios
envolviam quase todos os grupos de influecircncia nas decisotildees estatais ndash os coleacutegios sacerdotais
o senado os magistrados e ocasionalmente o povo nas comitia370
A criaccedilatildeo de novos lugares sagrados sejam templos propriamente ditos ou santuaacuterios
com um altar era tema de interesse puacuteblico e conflito potencial371 Alguns templos eram fruto
de promessas de generais em batalhas Com o tempo expandiram-se pelo espaccedilo urbano
representando uma imagem visiacutevel do domiacutenio romano sobre o Mediterracircneo e assinalando a
contribuiccedilatildeo de novos e antigos deuses em cada estaacutegio dessa conquista
Os rituais religiosos estavam intimamente ligados agraves demais atividades de guerra e
paz Desse modo a aprovaccedilatildeo de uma lei ou a eleiccedilatildeo de magistrado eram atos que envolviam
a tomada dos augures responsaacuteveis pelo sistema especial de regras que os controlavam o ius
augurale372 Os limites dessa religiosidade natildeo satildeo muito bem definidos Mas tanto o povo
quanto os magistrados demonstravam respeito pelas obrigaccedilotildees religiosas
A religiatildeo e os deuses estavam entre os fatores importantes na determinaccedilatildeo dos
eventos e na garantia de suas reivindicaccedilotildees de autoridade e comando dos agentes puacuteblicos
romanos Era tambeacutem uma das expressotildees da ideologia da elite romana e da manutenccedilatildeo do
poder E ainda como escreve Claudia B Rosa
ao mesmo tempo eram os rituais que garantiam as relaccedilotildees entre dois grupos homens e deuses Garantir os ritos representava a certeza da manutenccedilatildeo da sociedade como a queriam ordenada e segura Ao registrar as regras de comportamento como o respeito aos deuses sobretudo em seus espaccedilos ao curvar-se sob a autoridade dos rituais o cidadatildeo garantia a ordem social e a pax deorum e as praacuteticas que acarretavam a transgressatildeo agrave ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e agrave desagregaccedilatildeo A concoacuterdia entre homens e deuses eacute a garantia da ordem romana373
No I seacuteculo aC Augusto se tornou membro de todos os coleacutegios sacerdotais
assumindo o papel de pontifex maximus liderando os demais sacerdotes Se esta interpretaccedilatildeo
for correta ela representa a nova e revolucionaacuteria ordem religiosa do periacuteodo imperial e todos
os seus sucessores foram tambeacutem pontifices maximus ateacute o seacuteculo IV aC Desde entatildeo o
imperador se via responsaacutevel pela construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de templos O poder religioso e o
poder poliacutetico se assentaram sobre um mesmo indiviacuteduo no novo regime do Impeacuterio374
369 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 370 Assembleia dos cidadatildeos romanos 371 ROSA Claudia Beltratildeo Op cit p 144 Ciacutecero indica duas ocasiotildees em que tentativas de dedicaccedilotildees foram canceladas pelos pontiacutefices porque natildeo haviam sido aprovadas pelos comitia (De domo sua 136) 372 LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 1986 pp 2146-312 373 ROSA C B Op cit p 145-146 374 Ibid p 147
73
Conforme escreveu Paul Veyne375 ldquoO Estado com certeza exercia sua autoridade sobre os
cidadatildeos que lhe deviam tudo Mas mesmo assim apenas em circunstacircncias excepcionais
um decreto obrigaria cada cidadatildeo a tomar parte numa cerimocircnia puacuteblica []rdquo Devia-se no
entanto zelar pela pax deorum para a prosperidade e seguranccedila no Impeacuterio376
Natildeo havia uma ldquodependecircnciardquo humana em ralaccedilatildeo aos deuses o que existia era o
reconhecimento da superioridade daqueles seres que viviam entre os humanos Esse
reconhecimento cuacuteltico piedoso estava relacionado agrave barganha Esperava-se conhecer o
futuro escapar do perigo obter boas colheitas ter boa sauacutede sem que isso significasse que os
deuses estariam agrave disposiccedilatildeo a todo instante377
As accedilotildees de Augusto podem evidenciar uma estreita conexatildeo com episoacutedios de
restauraccedilatildeo e especialmente com as recorrentes observaccedilotildees de que as tradiccedilotildees ancestrais
estavam sendo perdidas ou abandonadas O ldquoculto imperialrdquo passa a representar uma novidade
no iniacutecio do Impeacuterio Se os apelos agrave restauraccedilatildeo das crenccedilas e tradiccedilotildees eram presentes nos
discursos natildeo se pode falar em uma nova forccedila religiosa ou uma nova religiatildeo no periacuteodo
imperial
Essas praacuteticas religiosas proporcionaram choques com judeus e depois com os
cristatildeos Sendo monoteiacutestas era impossiacutevel aceitar a inclusatildeo de deuses e cultos Os judeus
sacrificavam em prol do imperador e natildeo para o imperador jaacute os cristatildeos recusavam-se a
participar de qualquer sacrifiacutecio Considerando que os altares ao imperador eram colocados
muito proacuteximos ao tribunal do magistrado que ouvia os seus casos pode-se pensar que tal
sacrifiacutecio ao chefe do Impeacuterio era mais simboacutelico do que de adoraccedilatildeo e funcionava como sinal
de lealdade a Roma378 Secircneca em sua Apocolocyntosis do Divino Claacuteudio escrita
provavelmente no iniacutecio do reinado de Nero apresenta conotaccedilotildees negativas a respeito da
deificaccedilatildeo dos governantes em geral o que indica que existiam aqueles que natildeo viam com
bons olhos o processo de deificaccedilatildeo do governante Mas para a populaccedilatildeo geral do Impeacuterio
natildeo havia problemas em aceitar que o imperador pudesse ser tratado como um deus
A partir da sua expansatildeo e domiacutenio por um vasto territoacuterio o poder romano teve que
lidar com os problemas de integraccedilatildeo das regiotildees conquistadas Conforme tem destacado
375 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 244 376 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 p 15 377 MACMULLEN Ramsay Christianizatin the roman empire (AD 100-400) New Haven Yale University Press 1984 p 13 378 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 150
74
Claudia M Beltratildeo379 o mapa da peniacutensula Itaacutelica o Oriente Proacuteximo o norte da Aacutefrica e
Europa conformam uma rede que se aglutina em torno de Roma constituindo um espaccedilo
dinacircmico de interconexatildeo espaccedilo no qual se daratildeo variados modos de relaccedilatildeo Essa complexa
relaccedilatildeo exigia tambeacutem uma forma de lidar com os cultos estrangeiros
A cultura romana tornou-se sinteacutetica e sintetizante e relativamente favoraacutevel agrave
incorporaccedilatildeo de cultos estrangeiros Roma natildeo apenas se tornou o centro poliacutetico do mundo
por ela construiacutedo como tambeacutem passou a abrigar o nuacutecleo das religiotildees Segundo a anaacutelise
de Ceciacutelia Ames380 o caraacuteter sinteacutetico da religiatildeo romana que combina rito paacutetrio rito grego
e disciplina etrusca facilitou aos romanos a integraccedilatildeo de cultos estrangeiros e a difusatildeo de
seu proacuteprio sistema nos territoacuterios constituindo-se em um elemento chave na relaccedilatildeo destes
espaccedilos interconectados Sua toleracircncia e flexibilidade no entanto tambeacutem incluiacuteam
mecanismos para regular o fluxo de ideias e praacuteticas estrangeiras381 O senado era o oacutergatildeo
responsaacutevel por velar e vigiar da tradiccedilatildeo e da religiatildeo A necessidade de controle cresce junto
com a expansatildeo dos domiacutenios de Roma
Dentro da sua anaacutelise Justino se incomoda com o fato de que no meio de um universo
tatildeo vasto de culturas que se encontram no Impeacuterio Romano os cristatildeos sejam muitas vezes
odiados e levados agrave morte Para o apologista essa eacute mais uma evidecircncia da ignoracircncia
disseminada pelos maus democircnios que faz com que de algum modo as crenccedilas cristatildes sejam
tachadas de irracionais Enquanto isso ldquoalguns cultuam aacutervores rios382 ratos gatos
crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionaisrdquo de modo que todos satildeo iacutempios entre si por
natildeo terem a mesma religiatildeo (I Apol 241) O apologista na verdade aponta aquilo que
considera ser uma incoerecircncia nessa estrutura intercultural
Estaacute evidente que sua anaacutelise eacute dependente da sua loacutegica cristatilde mas Luciano de
Samosata tambeacutem apontava no seacuteculo II dC a ldquoconfusatildeordquo causada pelas diferentes opiniotildees
sobre os Deuses383 Plutarco um pouco antes anotara que a adoraccedilatildeo a diferentes formas de
379 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 151 380 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 p 342 381 Cf MACMULLEN R Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 382 Sextus Empiricus cita a afirmaccedilatildeo de Prodicus de que ldquoos antigos tinham como deus o sol a lua os rios e as primaveras [] assim como os Egiacutepicios deificavam o Nilordquo (Adversus Dogmaticos I18) apud MINNS PARVIS Op cit p 143 383 Juppiter Tragoedus 42
75
animais causava disputas entre seus adoradores384 Juvenal385 tambeacutem menciona que a
contenda se instalava na vizinhanccedila egiacutepcia quando um odiava o deus do outro e sustentava
que somente o seu deus predileto era o deus verdadeiro Essas diferenccedilas poderiam causar
ainda deboches sobre os deuses alheios entre os diferentes povos no Impeacuterio assim como
Clemente de Alexandria diz que os gregos faziam aos deuses e as crenccedilas egiacutepcias386 A
estranheza dos deuses dos outros povos tambeacutem chamou a atenccedilatildeo de Ciacutecero que indagava
Se existem divindades agraves quais adoramos e consideramos como tais por que natildeo Serapis e Isis localizadas no mesmo ranque E se eles satildeo admitidos que razatildeo temos noacutes para rejeitar os deuses dos baacuterbaros Entatildeo noacutes devemos deificar bois cavalos iacutebis gaviotildees viacuteboras crocodilos peixes cachorros lobos gatos e muitas outras bestas Se noacutes vamos de volta agraves fontes destas supersticcedilotildees devemos igualmente condenar todas as divindades das quais eles procedem [] Se vocecircs natildeo deificarem a um bem como o outro o que seraacute de Ino Pois todos esses deuses tem a mesma origem387
Diante desse universo de pensamentos e crenccedilas distintos os romanos tinham o
desafio de conceber formas para garantir a integraccedilatildeo desses grupos Justino acentua que
diante dessa variedade de ideias somente os cristatildeos satildeo perseguidos e vecirc nisso mais uma
evidecircncia de que as accedilotildees anticristatildes satildeo arquitetadas pelos maus democircnios Mas os cristatildeos
natildeo haviam sido os uacutenicos a serem cerceados pelas autoridades romanas
Nos anos 180 aC o culto a Baco despertou suspeitas e passou a ser tratado como uma
ameaccedila agrave ordem Infelizmente as fontes sobre essa questatildeo se resumem a um decreto do
Senado388 regulando o culto e um longo relato de Tito Liacutevio389
Natildeo eacute uma tarefa simples determinar qual foi o epicentro do problema Talvez natildeo se
referisse a uma crise religiosa propriamente dita representando um caso de accedilatildeo policial
contra uma conspiraccedilatildeo Mas o decreto do Senado preservado numa placa de bronze
endereccedilado a uma das cidades aliadas indica uma preocupaccedilatildeo em inviabilizar possiacuteveis
agrupamentos potencialmente conspiratoacuterios Proibia-se aos grupos ter liacutederes ou sacerdotes
masculinos tesouro juramentos ou fieacuteis Ele tambeacutem restringia o tamanho desses
aglomerados e a estrutura de seus membros390 De algum modo a organizaccedilatildeo dos baacutequicos
deve ter ameaccedilado aos romanos tambeacutem por trazer uma nova e perigosa forma de poder
384 De Iside et Osiride 72 385 Saacutetiras XV37-38 386 Protrepticus 2396 387 De natura deorum III19(47) 388 Senatus Consultum de Bacchanalibus In JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961 pp 26-27 389 Histoacuteria de Roma 398-19 390 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 152
76
Os seguidores de Baco no entanto natildeo eram hostis a nenhum deus do Impeacuterio
Tambeacutem natildeo rejeitavam os sacrifiacutecios nem viam os deuses como democircnios e natildeo tinham
nenhum problema com os rituais tradicionais Tito Liacutevio daacute sinais dessa suspeita num
discurso que atribuiu ao cocircnsul Postumio Albino numa contio391 quando falou ao povo da
ameaccedila de um poder rival
A menos que vocecircs se precavejam homens de Roma esta vossa assembleia diurna apropriadamente reunida pelo cocircnsul seraacute rivalizada por sua assembleia noturna Nesse momento eles separadamente temem a vocecircs agora reunidos em assembleia quando vocecircs retornarem agraves suas casas e fazendas eles se reuniratildeo para decidirem sobre sua proacutepria salvaccedilatildeo e a vossa ruiacutena Seraacute quando vocecircs separadamente teratildeo de temecirc-los reunidos (39164)
Segundo a anaacutelise de Clara Gallini os adeptos ao culto eram grupos marginais392 As
bacanais seriam lugares de evasatildeo para a massa de pobres e deserdados com graves
problemas econocircmicos e sociais devido agrave situaccedilatildeo que atravessava Roma A crise social teria
se manifestado em uma forma representativa de protesto religioso por meio dos quais se
buscaram respostas religiosas a problemas da sociedade pretendendo uma liberaccedilatildeo religiosa
Deste modo a repressatildeo dos cultos baacutequicos tambeacutem representaria a repressatildeo de uma
sociedade na qual uns poucos os membros da oligarquia romana decidem impotildeem as regras
e governam a maioria No entanto ainda que os problemas sociais fossem evidentes natildeo eacute
possiacutevel afirmar que atraacutes destes cultos se escondia uma revolta contra as estruturas vigentes
nem ver os rituais baacutequicos como uma espeacutecie de esperanccedila em uma nova liberdade pois
essas interpretaccedilotildees como bem sustentou C Ames393 sofrem de anacronismo
Outros grupos religiosos no periacuteodo posterior a Bacanalia tambeacutem foram objeto de
uma accedilatildeo hostil das autoridades romanas Os caldeus chamados presumivelmente de
astroacutelogos foram expulsos de Roma em 139 aC Depois os seguidores de Iacutesis em vaacuterias
ocasiotildees na Repuacuteblica Tardia e no primeiro principado Tambeacutem os judeus enfrentaram seacuterias
dificuldades com os romanos em certos momentos394
Com a viabilizaccedilatildeo de um maior nuacutemero de viagens e trocas comerciais e culturais no
Impeacuterio Romano o conhecimento das variadas religiotildees deuses e crenccedilas tambeacutem podia
viajar rapidamente E isso significou ter que lidar com atritos decorrentes dessas diferenccedilas
envolvendo inclusive o judaiacutesmo o cristianismo e o maniqueiacutesmo
391 Audiecircncia convocada 392 GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52 393 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 p 344 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 394 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Op cit pp 161 230 231
77
De um modo bem diferente desses monoteiacutesmos de caraacuteter exclusivista entre as outras
crenccedilas como nas religiotildees de misteacuterios os adeptos natildeo rejeitavam ou condenavam outros
deuses Tambeacutem natildeo era necessaacuterio evitar os festivais e rituais da cidade ou a praacutetica do culto
imperial Natildeo havia nada que os pusesse em conflito com as autoridades Ocasionalmente
recebiam o apoio de membros da elite romana
Justino todavia procura mostrar que natildeo havia nenhum motivo para os romanos se
preocuparem com os cristatildeos afinal eles reconheciam que toda autoridade eacute constituiacuteda por
Deus e por isso devia ser respeitada Eacute fazendo jus a certo sentido de transparecircncia que o
apologista julga indispensaacutevel nas relaccedilotildees entre governantes e governados que ele entatildeo se
prontifica em demonstrar as razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo se misturavam com outros
deuses Com confianccedila ele afirma ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo
veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo
colocamos coroas nos sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo395
O fato de os cristatildeos natildeo concordarem com os sacrifiacutecios pagatildeos natildeo faz sentido
isoladamente aos incocircmodos caluacutenias e perseguiccedilotildees sofridos Parece ser razoaacutevel que por ser
um grupo cujas crenccedilas natildeo estavam bem sistematizadas e que se espalhavam pelo Impeacuterio as
caluacutenias oriundas dos atritos culturais podem ter chegado agraves autoridades e despertado
desconfianccedila396 Calumnia era um crime condenado pelas leis romanas desde o I seacuteculo aC e
se exatamente agraves acusaccedilotildees falsas e maliciosas397 As accedilotildees anticristatildes todavia natildeo podem
ser analisadas em termos generalizantes e absolutos pois passam por diversos momentos
Embora os cristatildeos natildeo representem uma ameaccedila poliacutetica na perspectiva de Pliacutenio por
exemplo o fato de natildeo praticarem o culto ao imperador e a separaccedilatildeo das praacuteticas idoacutelatras da
esfera puacuteblica interseciona a questatildeo poliacutetica agrave religiosa
Seria essa uma boa razatildeo para Justino explicar em seu projeto apologeacutetico por que os
cristatildeos natildeo participavam de sacrifiacutecios a outros deuses e natildeo lhes ofereciam culto Seu
argumento eacute diametralmente oposto a ou]j anqrwpoi [esses homens] que oferecem sacrifiacutecios
aos que eles proacuteprios datildeo forma colocam nos templos e chamam de deuses Ele justifica a
crenccedila cristatilde apenas dizendo ldquosabemos que [esses deuses] satildeo coisas sem alma e mortas que
395 I Apol 242 396 Cf VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006 Passim URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932 397 ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 Passim BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 p 238 Cf I Apol 267
78
natildeo tem forma de Deusrdquo398 (I Apol 91) Afirma tambeacutem que os nomes e figuras que os
deuses assumem satildeo arquitetados pelos maus democircnios de modo que coisas corruptiacuteveis que
necessitam de cuidado recebem o nome de Deus Agrega-se ao seu argumento que os artesatildeos
dos deuses satildeo pessoas dissolutas e que eacute uma estupidez fazer guardas para os deuses nos
templos Na sequecircncia o autor introduz a justificativa cristatilde para esse distanciamento de tais
praacuteticas ldquo aprendemos que Deus natildeo tem necessidade de nenhuma oferta material dos
homens pois vemos que eacute ele quem nos concede tudordquo399 (I Apol 93) Em resposta a essa
benevolecircncia divina espera-se a gratidatildeo humana que soacute pode ser atestada atraveacutes do ldquobom
sensordquo [swfrosunhn] da ldquojusticcedilardquo [dikaiosunhn] do ldquoamor aos homensrdquo [filanqrwpian] e
numa expressatildeo pouco clara em ldquotudo que conveacutem a um Deus que natildeo pode ser chamado por
nenhum nome impostordquo400 (I Apol 101) Enquanto para o apologista os deuses pagatildeos satildeo
criados por matildeos humanas o Deus cristatildeo eacute apresentado como aquele que concederaacute a sua
presenccedila aos dignos Assim Justino demonstra estar certo de que os cristatildeos tecircm um
conhecimento superior ao dos que creem em outros deuses a ponto de se satisfazer em dizer
ldquosabemosrdquo ldquoaprendemosrdquo ou ldquocremosrdquo e isso basta
Se por um lado a perspectiva escatoloacutegica cristatilde do ldquoreinordquo natildeo implicava nenhuma
conspiraccedilatildeo poliacutetica contra os romanos seu iacutempeto proselitista causava tanto rumores quanto
um nuacutemero crescente de conversos Eacute por isso que ateacute meados do seacuteculo II quando Justino
escreve as accedilotildees anticristatildes tecircm suas raiacutezes nas relaccedilotildees interculturais travadas no proacuteprio
processo de expansatildeo da mensagem cristatilde Isso significa que os mecanismos de controle
social empregados contra os cristatildeos pelas autoridades imperiais satildeo requeridos mediante os
problemas locais E pode-se dizer que por ser uma religiatildeo emergente outros como Pliacutenio
natildeo sabiam como proceder diante das denuacutencias e caluacutenias contra esse novo grupo
Os cristatildeos formavam um grupo em expansatildeo que estava no Impeacuterio mas viviam de
modo diferente e procuravam evitar a participaccedilatildeo de todo tipo de praacuteticas contraacuterias agraves
prescriccedilotildees doutrinaacuterias cristatildes Natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo
veneravam os deuses nacionais e seu Deus natildeo pertencia a uma naccedilatildeo mas deveria ser
reconhecido como superior a todos os outros401
398 evpei ayuca kai nekra tauta ginwskomen kai qeou morfhn mh econta cf MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 96 399 Ouv deesqai thj para avnqrwpwn ulikhj prosforaj proseilhfamen ton qeon( auvton pareconta panta orwntej ibid p 96 400 o[as oivkeia qew| evsti( tw| mhdeni ovnomati qetw| kaloumenw| MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 401 Cf MACMULLEN Ramsay Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966 Id Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997
79
Justino insere o seu testemunho pessoal
Eu mesmo quando seguia a doutrina de Platatildeo ouvia as caluacutenias contra os cristatildeos Contudo ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que eacute considerado espantoso comecei a refletir que era impossiacutevel que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres Com efeito que homem amante do prazer intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas poderia abraccedilar alegremente a morte que vai privaacute-lo de seus bens402
Prossegue sua queixa ldquobuscando condenar agrave morte alguns cristatildeos fundados nas
caluacutenias contra noacutes arrastaram tambeacutem escravos meninos e mulheres e por meio de incriacuteveis
tormentos os forccedilam a repetir contra noacutes o que o povo inventardquo403 No entanto ele eacute enfaacutetico
contra esse tipo de opiniatildeo sustentada sobre os cristatildeos ldquonada disso nos diz respeitordquo404
Justino tambeacutem nega que os cristatildeos abusariam de homens e se uniriam destemidamente com
as mulheres Seguindo para o desfecho de seu escrito ele faz uma declaraccedilatildeo reveladora ldquoA
verdade eacute que nos fazem guerra de mil modos exatamente porque ensinamos a fugir de
semelhantes doutrinas e daqueles que praticam tais coisas ou imitam tais exemplos como
mesmo nesse discurso que vos dirigimosrdquo405 Tal declaraccedilatildeo de Justino daacute margem para a
reflexatildeo sobre esse processo de ldquonegativizaccedilatildeordquo da figura do ldquooutrordquo que condena as praacuteticas
que ldquoumrdquo pratica Segundo esse pensador os cristatildeos seriam muitas vezes caluniados por
condenarem as praacuteticas dos outros que em retaliaccedilatildeo se esforccedilariam por difamar os
seguidores do nazareno
Por isso tambeacutem parece significativo considerar que os atritos com os cristatildeos natildeo
satildeo decorrentes de uma preocupaccedilatildeo poliacutetica para minar um potencial grupo subversivo Satildeo
destacados alguns aspectos desses atritos que se remetem agraves caluacutenias e maus comentaacuterios
sobre os cristatildeos que desembocam na estigmatizaccedilatildeo desse grupo Eacute preciso lembrar que o
contexto no qual o discurso de Justino estaacute inserido se refere a meados do II seacuteculo quando o
impacto do estilo de vida dos cristatildeos era sentido apenas em niacuteveis locais ainda que em
diversas regiotildees Os cristatildeos jaacute se encontravam pela Siacuteria-Palestina Egito Aacutesia Menor
Peniacutensula Itaacutelica e outras regiotildees mas o nuacutemero de fieacuteis ainda era muito pequeno diante do
tamanho do Impeacuterio Romano406 O desprezo e o combate por parte dos cristatildeos aos deuses
pagatildeos provocavam ocasionalmente reaccedilotildees e mobilizaccedilotildees contra os proacuteprios cristatildeos Por se
tratar de um grupo distinto com praacuteticas pouco conhecidas as caluacutenias se propagaram como
402 II Apol 121-2 403 II Apol 124 404 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 405 II Apol 126 406 GIBBON Edward Number of Christians in the Empire under Diocletioan and Constantine In _____ The History of the Decline and Fall of the Roman Empire ed JB New York Fred de Fau and Co 1906 pp 337 341
80
uma forma de defesa dos pagatildeos A perseguiccedilatildeo de Nero no I seacuteculo havia aberto precedentes
para a condenaccedilatildeo dos cristatildeos mas sua determinaccedilatildeo foi limitada agrave execuccedilatildeo de seu plano de
acobertar as suspeitas de seu envolvimento no incecircndio de Roma Na primeira metade do II
seacuteculo alguns tumultos procuravam condenar os cristatildeos buscando sem um enquadramento
juriacutedico algo que foi condenado por Adriano na Aacutesia Em outros casos como o que relatou
Pliacutenio a Trajano procurava-se por um crime que condenasse os cristatildeos Desse modo as
acusaccedilotildees tais como canibalismo denuacutencia de ateiacutesmo imoralidades e inclusive de
infidelidade ganhavam forccedila Essas caluacutenias somadas ao precedente neroniano fizeram com
que para muitos como Trajano e Urbico o nomen Christianum assumisse um significado
negativo Essa conotaccedilatildeo negativa no entanto natildeo se instalou apenas em funccedilatildeo das caluacutenias
Conforme destacou Paul Veyne407 ldquoas autoridades natildeo acreditavam que os cristatildeos comiam
criancinhas ou praticavam incesto todos os domingos a atitude polecircmica de Celso a respeito
da nova religiatildeo natildeo fazia alusatildeo a essas praacuteticas considerando-as um fato socialrdquo Se para o
povo em geral o oacutedio e o medo pela estranheza dos cristatildeos faziam-lhes repulsivos para as
autoridades a ausecircncia de participaccedilatildeo nas praacuteticas puacuteblicas ou mesmo a contumaacutecia em natildeo
negar a feacute diante do magistrado faziam com que os pedidos de condenaccedilatildeo fossem acatados
Neste momento cabe destacar que entre os tipos de estigmas destacados por Erving
Goffman408 estatildeo os tribais de raccedila naccedilatildeo e religiatildeo considerados suscetiacuteveis de uma
transmissatildeo por heranccedila e decontaminar outros ao redor Nesses estigmas encontram-se os
seguintes traccedilos socioloacutegicos
un individuo que podiacutea haber sido faacutecilmente aceptado en un intercambio social corriente posee un rasgo que pude imponerse por la fuerza a nuestra atencioacuten u que nos lleva a alejarnos de eacutel cuando lo encontramos anulando el llamado que nos hacen sus restantes atributos Posee un estigma una indeseable diferencia que no habiacuteamos previsto
Essa diferenccedila se torna o elemento fundamental para a praacutetica de vaacuterios tipos de
discriminaccedilatildeo Consciente ou inconscientemente se constroacutei uma teoria do estigma uma
ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do perigo que representa essa pessoa
racionalizando agraves vezes uma animosidade que se baseia em outras diferenccedilas
Goffman409 natildeo deixa de contemplar em sua anaacutelise a possibilidade de sujeitos
estigmatizados permanecerem ilhados protegidos por suas crenccedilas proacuteprias sobre sua
identidade mas ao mesmo tempo em constante contato com os outros Nesse sentido os 407 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 408 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 16 Tr A ldquoum indiviacuteduo que podia ter sido facilmente aceito num intercacircmbio social corrente possui um traccedilo que pode impor-se agrave forccedila a nossa atenccedilatildeo e que nos leva a nos afastarmos dele quando o encontramos anulando a chamada que nos fazem seus ouros atributos Possui um estigma uma indesejaacutevel diferenccedila que natildeo haviacuteamos previstordquo 409 Ibid p 17
81
seguidores da Igreja dos disciacutepulos de Jesus de Nazareacute podiam refugiar-se em suas crenccedilas
proacuteprias a saber seu proacuteprio modo de se autodefinir como ldquocristatildeosrdquo Enquanto o termo
ldquocristatildeordquo eacute capaz de referir-se a algueacutem de uma superstitio ilicita que abusa das crianccedilas que
se une promiscuamente com homens e mulheres que acredita em lendas de um deus
encarnado e nascido de uma virgem cujos fieacuteis se reuacutenem para comer sua carne em reuniotildees
secretas e assim se torna estigma de algueacutem despreziacutevel por outro lado ganha outro
significado para os seguidores do Cristo
Os atritos entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos poderiam surgir em decorrecircncia do exerciacutecio da
anunciaccedilatildeo da mensagem cristatilde ou devido ao apelo agrave mudanccedila de conduta e implementaccedilatildeo
de novos haacutebitos O caso mais emblemaacutetico apontado por Justino eacute o que aparece na II
Apologia
Certa mulher vivia com o seu marido homem dissoluto e antes de se tornar cristatilde se entregara agrave vida licenciosa Todavia logo que conheceu os ensinamentos de Cristo natildeo soacute se tornou casta como procurava tambeacutem persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme a reta razatildeo Ele poreacutem obstinado na dissoluccedilatildeo com a sua conduta desanimou a sua mulher [] Depois disso para natildeo se tornar cuacutemplice de tais iniquidades e impiedades permanecendo no matrimocircnio e partilhando o leito e a mesa com tal homem ela [] separou-se [] Despeitado [] [] a acusou diante dos tribunais dizendo que ela era cristatilde [] natildeo podendo na ocasiatildeo fazer nada contra a mulher voltou-se contra Ptolomeu que Urbico chamara ao seu tribunal por ter sido mestre dela nos ensinamentos de Cristordquo410
A uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se era cristatildeo Apoacutes
confessar foi condenado ao supliacutecio Justino ainda conta que certo Luacutecio advertiu a Urbico e
do mesmo modo foi conduzido ao supliacutecio Um terceiro sobreveio mas tambeacutem foi
condenado agrave morte411
Se fosse um caso isolado esse episoacutedio jamais poderia servir como pista para
fundamentar a hipoacutetese de que significativamente os atritos com os cristatildeos podem surgir
tambeacutem devido agrave condenaccedilatildeo das praacuteticas dos natildeo-cristatildeos Mas outras evidecircncias se
mostram Os Evangelhos do Novo Testamento (Mt 1413-12 Mc 614-28 Lc 318-20 97-9)
afirmam que Joatildeo Batista foi para a prisatildeo por repreender ao rei Herodes que vivia com
Herodiacuteades a mulher de seu irmatildeo e por outros crimes cometidos pelo governante Flaacutevio
Josefo escreveu que Herodes temeu que o povo fosse influenciado para uma sublevaccedilatildeo e por
isso encaminhou Joatildeo Batista para o caacutercere412 Embora pareccedilam discrepantes pode haver
alguma convergecircncia nas duas versotildees O ldquoprofetardquo Joatildeo Batista devia fazer repreensotildees
410 II Apol 2 411 II Apol 216-20 412 Ant Jud II 52
82
puacuteblicas condenando os haacutebitos do rei Herodes e a sua uniatildeo com Herodiacuteades o que poderia
despertar alguma inseguranccedila quanto agrave reaccedilatildeo do povo
Outras ocorrecircncias podem ser identificadas Quando Paulo repreendeu um espiacuterito de
adivinhaccedilatildeo de uma jovem escrava quando estava em Filipos na Macedocircnia os patrotildees da
moccedila se irritaram pois exploravam aquela habilidade da jovem para lucrar Por isso levaram
Paulo e seu companheiro Silas aos magistrados e disseram ldquoEsses homens estatildeo provocando
desordem em nossa cidade satildeo judeus e pregam costumes que a noacutes romanos natildeo eacute
permitido aceitar nem seguirrdquo A multidatildeo se levantou contra Paulo e Silas e depois disso
foram accediloitados e presos sem julgamento formal 413 Em Eacutefeso os artesatildeos teriam visto na
doutrina de Paulo mais do que uma ofensa agrave religiatildeo uma ameaccedila a seus negoacutecios Conta-se
que um ourives chamado Demeacutetrio que fabricava miniaturas em prata no templo de Diana
reuniu alguns artesatildeos e outros profissionais do ramo e disse-lhes
Amigos sabeis que o nosso bem-estar proveacutem dessa nossa atividade [] esse tal de Paulo com sua propaganda desencaminha muita gente natildeo soacute em Eacutefeso mas em quase toda a Aacutesia Ele afirma que natildeo satildeo deuses os produtos de matildeos humanas Natildeo eacute soacute a nossa profissatildeo que corre o risco de cair em descreacutedito mas tambeacutem o templo da grande deusa Diana acabaraacute sendo desacreditado e assim ficaraacute despojada de majestade aquela que toda a Aacutesia e o mundo inteiro adoram414
Segundo o livro de Atos dos Apoacutestolos esses homens furiosos arrastaram os
companheiros de Paulo para o teatro da cidade O tumulto se espalhou
Esses tipos de atritos envolviam o encobrimento de uma praacutetica moralmente
condenada pelos seguidores da Igreja e manifestavam a defesa dos interesses pessoais ou de
determinados grupos que sofreriam com as possiacuteveis mudanccedilas nos costumes e tradiccedilotildees
Neste uacuteltimo caso aparece algo distinto a menccedilatildeo da representaccedilatildeo de uma divindade para
uma determinada regiatildeo Diana para a Aacutesia especialmente
Yi-Fu Tuan415 aponta que nas religiotildees que vinculam o povo a um lugar os deuses
parecem estimular nos seus fieacuteis um forte sentido do passado de linhagem e continuidade no
lugar O culto aos ancestrais eacute o fundamento de tal praacutetica religiosa Atraveacutes deste sentido
histoacuterico de continuidade busca-se algum tipo de ldquoseguranccedilardquo Entre o I e II seacuteculos dC
deuses romanos e gregos satildeo conhecidos por povos de culturas diferentes mas nenhum deles
exige exclusividade O Deus dos judeus figura nesse cenaacuterio de deuses e homens e agraves vezes
se confunde com deus nenhum Os seguidores de Cristo propagadores desse mesmo Deus
mediante a crenccedila no seu messias paradoxalmente tambeacutem satildeo tachados de ateus algumas
vezes Poreacutem enquanto os ldquooutrosrdquo natildeo veem o Deus cristatildeo os cristatildeos natildeo veem outro deus
413 At 1617-40 414 At 1923-27 415 Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983 p 168
83
aleacutem do seu proacuteprio Desse modo a negaccedilatildeo dos deuses alheios pode ser interpretada por
muitos como profunda agressatildeo agraves crenccedilas que por um periacuteodo indeterminado serviram para
explicar e inspirar a vida das pessoas que nasceram cresceram e morreram em determinado
local
A estigmatizaccedilatildeo dos ldquocristatildeosrdquo eacute portanto em grande medida uma reaccedilatildeo das
pessoas que satildeo alvo dos cristatildeos no exerciacutecio de sua feacute Pois esses cristatildeos ndash dos quais
Justino eacute um ndash manifestam o repuacutedio a tudo aquilo que se associa a uma moral que lhes seja
estranha e que se vincule agrave veneraccedilatildeo de outros deuses que natildeo sejam o Deus do seu Cristo
Diante das reaccedilotildees adversas que lhes satildeo imputadas sob a forma de duras penas e
condenaccedilotildees Justino teologiza o seu estigma Isso natildeo eacute uma invenccedilatildeo sua Talvez lhe caiba o
meacuterito de tecirc-lo feito habilidosamente poreacutem haacute indiacutecios desse procedimento anos antes de
seus escritos
Na I Epiacutestola de Pedro (413-1416) o autor frisa a gloacuteria do sofrimento dos cristatildeos
nas perseguiccedilotildees
alegrai-vos por participar dos sofrimentos de Cristo para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua gloacuteria Se sofreis injuacuterias por causa do nome de Cristo sois felizes pois o Espiacuterito da gloacuteria o Espiacuterito de Deus repousa sobre voacutes [] Se poreacutem algueacutem sofrer por ser cristatildeo natildeo se envergonhe Antes glorifique a Deus por este nome
Antes ainda eacute Paulo quem permitiraacute um trocadilho didaacutetico para que melhor se
compreenda essa formulaccedilatildeo teoloacutegica por traacutes do sofrimento dos fieacuteis da Igreja Ao finalizar
sua Epiacutestola aos Gaacutelatas (617) escreve ldquo eu trago em meu corpo as marcas [stigmata] de
Cristordquo416 Como o proacuteprio Goffman observou para os gregos estigma significava
basicamente algum tipo de signo ou marca na pele417 Paulo evidentemente se refere aos sinais
do sofrimento enfrentado devido agraves perseguiccedilotildees sofridas no exerciacutecio do seu apostolado Natildeo
existe nenhuma ligaccedilatildeo entre essa passagem e o discurso de Justino O que eacute preciso notar
atentamente eacute que assim como Paulo transforma seus estigmas em seu testemunho na
perspectiva de Justino a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute representada como ldquoas marcasrdquo de sua
identidade que se pretende afirmar Essa identidade por ele afirmada eacute distinta dos devaneios
caluniosos que lhes satildeo associados pelos seus opositores Ser cristatildeo para Justino eacute a razatildeo de
natildeo serem perseguidos e ao mesmo tempo o motivo pelo qual satildeo perseguidos A
416 Versatildeo grega evgw gar ta stigmata tou Kuriou VIhsou evn tw| swmati mou bastazw ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) [Bible Work 5 Software 2002] 417 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 11 Para maiores informaccedilotildees sobre o significado do termo estigma cf LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940
84
perseguiccedilatildeo seraacute interpretada como uma reaccedilatildeo dos ldquomaus democircniosrdquo contra os ldquoverdadeiros
cristatildeosrdquo como seraacute examinado no proacuteximo capiacutetulo
Seus acusadores estariam movidos por paixatildeo irracional e ldquoaguilhoados por democircnios
perversosrdquo418 por isso natildeo conseguiam enxergar a verdade anunciada por esses cristatildeos
Mesmo tendo grande responsabilidade na ocultaccedilatildeo dessa verdade os democircnios natildeo satildeo os
uacutenicos culpados Escreve Justino a respeito dos judeus
As outras naccedilotildees natildeo tecircm tanta culpa da iniquidade que se comete contra noacutes e contra Cristo como voacutes que sois causa do preconceito injusto que elas tecircm contra ele e contra noacutes que viemos dele [] escolhestes homens especiais de Jerusaleacutem e os mandastes por todo o mundo a fim de espalhar que havia aparecido uma iacutempia seita de cristatildeos e espalharam caluacutenias que todos aqueles que natildeo vos conhecem repetem contra noacutes419
Os judeus tecircm uma parcela de responsabilidade pelos preconceitos e caluacutenias herdados
pelos gentios Em vaacuterios episoacutedios no livro dos Atos dos Apoacutestolos haacute a mesma disposiccedilatildeo
cristatilde para atribuir aos judeus a culpa pelas delaccedilotildees agraves autoridades romanas para reclamar
dos cristatildeos No entanto eacute pouco provaacutevel que o apologista assim sintetize a causa das
caluacutenias e puniccedilotildees contra os cristatildeos Mas haacute uma disposiccedilatildeo por parte do apologista em
afastar os cristatildeos dos judeus Semelhantemente Justino tambeacutem natildeo demonstra nenhuma
simpatia por aqueles que ele chama de ldquocristatildeos soacute de nomerdquo
Sobre esses que natildeo viviam como Cristo teria ensinado o filoacutesofo orienta que ldquosejam
declarados como natildeo-cristatildeosrdquo420 por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de
Cristo Para os pagatildeos provavelmente natildeo haveria distinccedilatildeo entre esses grupos Justino
poreacutem chama a atenccedilatildeo para o fato de que esses satildeo denominados segundo o nome de quem
promoveu cada doutrina especiacutefica Eram eles os marcionistas valentinianos basilidianos
saturnilianos e com outros nomes421
Um dos argumentos de que a accedilatildeo dos ldquodemocircnios perversosrdquo move seus opositores
contra os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo eacute que os cristatildeos dessas outras ldquoheresiasrdquo natildeo satildeo perseguidos
pelas autoridades422 Quanto a esses ldquooutrosrdquo pelos quais o apologista natildeo demonstra
nenhuma simpatia sua recomendaccedilatildeo eacute que sejam punidos423
Os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo segundo Justino satildeo aqueles que estatildeo prontos a confessar
que satildeo cristatildeos a ponto de padecerem Desse modo recorrendo ao trocadilho didaacutetico
desenvolvido a partir da fala paulina esses homens de feacute colocam-se agrave disposiccedilatildeo para
418 I Apol 51ss 419 Diaacutelogo com Trifatildeo 171 420 I Apol 168 421 Diaacutelogo com Trifatildeo 355-6 422 I Apol 267 423 I Apol 1614
85
receber os ldquoestigmas de Cristordquo a saber as marcas das perseguiccedilotildees sobre seus corpos em
razatildeo de suas crenccedilas Satildeo persuadidos a crer que a verdadeira recompensa seraacute atribuiacuteda para
a vida eterna que em muito excede ao sofrimento transitoacuterio desse mundo Cabe-lhes
anunciar e testemunhar a feacute a todos mesmo sob a insiacutegnia das tribulaccedilotildees Por isso Justino
declara
Decapitam-nos pregam-nos em cruzes atiram-nos agraves feras agrave prisatildeo ao fogo e nos submetem a todo tipo de torturas Todavia estaacute agrave vista de todos que natildeo apostatamos de nossa feacute Ao contraacuterio quanto maiores satildeo os nossos sofrimentos mais ainda se multiplicam os que abraccedilam a feacute e a piedade pelo nome de Jesus424
Essa missatildeo cristatilde implica tambeacutem em buscar convencer aos seus opositores de que
os ldquocristatildeosrdquo natildeo deviam ser perseguidos simplesmente por denominarem-se ldquocristatildeosrdquo
33 Sobre as leis e imoralidades
Justino faz saber que a confissatildeo de cristianismo diante de um magistrado acarretava a
pena de morte425 Isto eacute ser ldquocristatildeordquo poderia implicar na condenaccedilatildeo agrave pena de morte426
Uma das interrogaccedilotildees centrais desses escritos de Justino eacute sobre o fato de os cristatildeos
serem condenados por confessarem esse nome Seria um absurdo pensar que os romanos
condenariam os membros dessa superstitio simplesmente por sustentarem um nome e eacute
justamente esse absurdo que o apologista busca destacar para ridicularizar o procedimento dos
magistrados Na verdade os acusados de cristianismo natildeo eram condenados apenas pelo
ldquonomerdquo mas sim pelo que ele representava uma superstitio nova maleacutefica depravada e
excessiva que envolvia os cristatildeos em flagitia que sustentava certo desprezo pela religiatildeo
tradicional Mas pelo fato de natildeo haver uma lei universal para este caso os governantes
tinham liberdade para julgar as ocorrecircncias de modo particular As recomendaccedilotildees de Trajano
e Adriano ao dispensarem a busca pelos cristatildeos limitaram os processos a apenas denuacutencias
formais A nova religiatildeo ainda natildeo se mostrava um problema seacuterio para o Impeacuterio Eacute provaacutevel
que essas medidas visem solucionar os atritos e inibir os conflitos locais ocasionados pelas
diferenccedilas religiosas O caraacuteter flexiacutevel do processo que permitia que o acusado mudasse de
ideia quanto a sua religiatildeo no meio do processo e recebesse a absolviccedilatildeo eacute o elemento
fundamental para se argumentar que os cristatildeos eram condenados pelo ldquonomerdquo
424 Dialogo com Trifatildeo 110 4 425 I Apol 81-2 No I111 lecirc-se ldquoconfessamos ser cristatildeos sabendo como sabemos que tal confissatildeo traz consigo a pena de morterdquo 426 ldquo e nos tiram a vida sem termos cometido crime algumrdquo (I241) Mas o consolo dos fieacuteis estaacute na feacute ldquo aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis fazerrdquo (I456)
86
Justino deseja que os romanos compreendam a maneira de pensar dos cristatildeos e que se
desvencilhem da ideia negativa sobre os fieacuteis Desse modo depois da exposiccedilatildeo da sua I
Apologia ele escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da verdade
respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees despreze-as Natildeo
decreteis poreacutem pena de morte como contra inimigos contra aqueles que nenhum crime
cometemrdquo427
Como jaacute foi mencionado no Capiacutetulo II dessa dissertaccedilatildeo Justino procura alinhar sua
Apologia ao rescrito de Adriano o qual ele interpreta convertendo-o sutilmente a favor dos
cristatildeos
Noacutes vos pedimos portanto que sejam examinadas accedilotildees de todos os que vos satildeo denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo ter cometido nenhum crime428
Mesmo assim o apologista sustenta que sua reclamaccedilatildeo natildeo estaacute fundamentada no rescrito de
Adriano mas em um senso de justiccedila que permeia sua peticcedilatildeo429
Sua interpretaccedilatildeo considera que mediante as obras dos democircnios perversos os cristatildeos
satildeo buscados e condenados agrave morte devido a caluacutenias O apologista aponta atentados contra
escravos meninos e mulheres obrigando-os a confessarem coisas falsas430 Segundo sua
leitura teoloacutegica desses eventos os cristatildeos eram acusados de tais praacuteticas justamente porque
as condenavam e assim fazendo incomodam aqueles que procediam dissolutamente431
Tendo em vista que a razatildeo para que as autoridades acatassem as denuacutencias dirigidas
contra os cristatildeos estava no fato de que esta superstitio era uma ameaccedila agrave ordem em funccedilatildeo da
sua expectativa sobre o ldquoreino de Deusrdquo Justino inclui no seu projeto apologeacutetico uma
explanaccedilatildeo sobre a contribuiccedilatildeo cristatilde ao estabelecimento da paz no Impeacuterio Natildeo se podia
esperar que uma religiatildeo estrangeira principalmente oriunda de uma naccedilatildeo problemaacutetica
como a dos judeus pudesse representar algum benefiacutecio A sua proacutepria indefiniccedilatildeo enquanto
religiatildeo dificultaria essa possibilidade e o seu caraacuteter exclusivista acentuaria os atritos sociais
Mas o pensador de Flaacutevia Neaacutepolis eacute direto em dizer
Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo e salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que
427 I651 428 I74 429 ldquo natildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo (I683) 430 II124 431 II12
87
caminharia para a sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos e se adornaria de virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos432
A proposta de Justino apresenta o valor das crenccedilas cristatildes O desenvolvimento da sua
teoria seraacute analisado com mais detalhes no proacuteximo capiacutetulo Neste momento analisar-se-aacute a
reprovaccedilatildeo da moralidade dos natildeo-cristatildeos Segundo Paul Veyne433 no mundo greco-romano
ldquomoral e religiatildeo estavam parcialmente ligadas porque se pedia aos deuses que protegessem
os bons e castigassem os maus Deuses e homens julgavam da mesma maneira os bons e
maus pois compartilhavam da mesma moralrdquo Para os deuses a moral dos mortais tambeacutem
natildeo interessava A opiniatildeo humana sobre os deuses tambeacutem variava desde a atribuiccedilatildeo de
virtudes ateacute a laacutestima por serem egoiacutestas e mercenaacuterios Natildeo era possiacutevel pensar nos deuses
como senhores vigilantes da justiccedila No entanto os deuses poderiam vingar as injusticcedilas434
Natildeo se deve pensar que a religiatildeo de gregos e romanos era estaacutetica Satildeo identificadas
transformaccedilotildees durante os seacuteculos A filosofia as mudanccedilas culturais e a paideia
relacionaram a divindade ao sumo bem e acentuou os contornos entre a religiosidade das
pessoas comuns e agrave dos membros das classes elevadas e dos letrados435
Varratildeo436 atribuiu trecircs concepccedilotildees para os deuses os deuses das cidades os deuses
vistos pelos filoacutesofos e os deuses das narrativas dos poetas Segundo Paul Veyne437
inspirados por Euriacutepides os estoicos estavam convencidos de que os deuses natildeo podiam se
portar mal Os deuses dos filoacutesofos se afastavam das narrativas mitoloacutegicas anteriores para
assumirem agraves vezes o aacutepice da virtude Para Platatildeo os deuses eram a medida de todas as
coisas e natildeo seria conveniente receberem oferendas de pessoas desonradas438 A relaccedilatildeo entre
moral e religiatildeo passou por transformaccedilatildeo mas essa mudanccedila ficou restrita a alguns ciacuterculos
sociais Para alguns criacuteticos e pensadores o temor religioso seria uacutetil para a contensatildeo
humana Mas essa natildeo era uma opiniatildeo comum Isoacutecrates (viveu de 436 a 338 aC) escreveu
que ldquoaqueles que creem que os favores dos deuses e suas puniccedilotildees satildeo maiores do que
realmente satildeo prestam um grande serviccedilo agrave sociedaderdquo439 Mais tarde Poliacutebio (viveu entre 203
aC ndash 120 aC) ao comparar os romanos aos gregos tambeacutem destacou o valor das crenccedilas
religiosas romanas no estabelecimento da ordem
432 I121-3 433 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 220 434 Ibid p 239 435 BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 pp 305-332 436 Apud Agostinho de Hipona Cidade de Deus IV311 Plutarco se referia a trecircs visotildees sobre os deuses a dos filoacutesofos poetas e legisladores (Amatorius XVIII10765c) 437 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 256 438 Leis IV716c717 439 Busires 1124
88
muitos poderiam pensar que isso eacute irresponsaacutevel mas [] seu objetivo eacute usar isso como forma de controle sobre as pessoas comuns Se era possiacutevel formar um Estado inteiro de filoacutesofos isso seria no entanto desnecessaacuterio Mas vendo que as multidotildees satildeo inconstantes cheios de desejos desregrados iras irracionais e paixatildeo violenta o uacutenico recurso eacute mantecirc-los sob controle pelo terror misterioso e efeitos cecircnicos desse tipo440
Ainda nesse sentido ele afirma que tambeacutem natildeo era sem sentido que os antigos
promoviam entre as pessoas simples diversas opiniotildees sobre os deuses e a crenccedila no Hades
Tendo em vista essa importante funccedilatildeo da religiatildeo na manutenccedilatildeo da ordem Poliacutebio pensa
que aqueles que em seu tempo abriam matildeo da religiatildeo agiram de forma precipitada e
insensata Assim ele destaca
Esta eacute a razatildeo por que aleacutem de tudo se aos estadistas gregos eacute confiada uma uacutenica moeda embora protegidos por dez funcionaacuterios de vigilacircncia muitos selos e o dobro de testemunhas jaacute natildeo podem ser induzidos a manter a feacute enquanto entre os romanos em suas magistraturas e embaixadas homens tecircm cuidado de grandes quantias de dinheiro e ainda por puro respeito a seus juramentos manteacutem a feacute intacta E em outras naccedilotildees eacute raro encontrar um homem que meta suas matildeos fora do eraacuterio puacuteblico e eacute inteiramente puro em tais assuntos Mas entre os romanos eacute raro encontrar um homem cometendo tal crime441
A necessidade de uma sociedade ter mecanismos para estabelecer a ldquoconfianccedilardquo ou a
ldquoboa feacuterdquo entre as relaccedilotildees humanas eacute sublinhada diante dos efeitos dos questionamentos
cultivados pela filosofia e do proacuteprio ideal poliacutetico-filosoacutefico que poderia diminuir o valor da
religiatildeo
No seacuteculo II dC eacute Justino quem olha as mais distintas crenccedilas do Impeacuterio com um
tom de superioridade proporcionada pela sua proacutepria religiatildeo Mas haacute um espaccedilo de
aproximadamente trecircs seacuteculos entre Poliacutebio por exemplo e Justino No II seacuteculo dC a
filosofia jaacute havia se tornado um elemento essencial da cultura romana e o fluxo das suas
interrogaccedilotildees e das suas performances puacuteblicas acarretavam algumas transformaccedilotildees de
caraacuteter ideoloacutegico na sociedade Como escreveu Paul Veyne
o povo nunca deixou de crer e rezar Mas em que um romano culto mdash um Ciacutecero um Horaacutecio um imperador um senador um notaacutevel mdash podia crer dentro dessa fantasmagoria dos deuses ancestrais A resposta eacute categoacuterica natildeo podia crer em nada leu Platatildeo e Aristoacuteteles que quatro seacuteculos antes tampouco acreditavam Virgiacutelio alma religiosa acredita na Providecircncia mas natildeo nos deuses de seus proacuteprios poemas mdash Vecircnus Juno ou Apolo442
Justino mostra algumas razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo compactuavam com os
demais deuses e com a religiatildeo tradicional romana e ainda aponta aquilo que considera ser o
caraacuteter racional da verdadeira filosofia isto eacute da religiatildeo cristatilde Por isso ele escreve ldquoas
440 Historias VI5614 441 Ibid 442 Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197
89
nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo443 Poreacutem
como ele proacuteprio diz ldquonos condenam sem saber se praticamos as coisas vergonhosas de que
nos acusam comprazem-se com deuses que as fizeram e ainda exigem dos homens coisas
semelhantesrdquo444 Desse modo o apologista destaca a incoerecircncia em se pensar que os povos
seriam contidos por temor a deuses tatildeo imoderados quanto os proacuteprios homens em suas
paixotildees Por outro lado tambeacutem o temor ao Imperador ou a fidelidade demonstrada por
meio do culto imperial satildeo apontados como algo que representa uma forma superficial de
controle pois como Justino escreve ldquoaqueles que agora por medo das leis e dos castigos por
voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los [] sabem que sois homens e
que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutesrdquo445 Esse ldquomedordquo das leis era um temor ao que eacute
humano Desse modo Justino sublinha que a ausecircncia de mecanismo superior de controle
como a absorccedilatildeo da crenccedila em um Deus onisciente como o Deus dos cristatildeos favorecia a
desobediecircncia agraves leis
O apologista apresenta um mecanismo de controle que julga ser muito mais eficiente
ldquose se inteirassem e se persuadissem de que natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma
accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os
modos como voacutes mesmos haveis de convirrdquo Por essa razatildeo ele considera que a expansatildeo do
cristianismo contribuiria para que as pessoas agissem de modo moderado e respeitoso de
acordo com a moral cultivada na comunidade e ainda em atentar fidelidade ao Impeacuterio
Esse ldquotemorrdquo religioso proveniente de uma crenccedila distinta da religiatildeo tradicional se
enquadra no que os romanos chamavam de superstitio As superstitiones e os cultos locais
eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob atenccedilatildeo com destacam Mary Beard John North e
Simon Price446 as controveacutersias poderiam desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade
romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito em 172 a 173 aC447 na incursatildeo da Traacutecia que
foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que conseguiu seguidores448 entre os druidas da
Gaacutelia profecias indicavam que o incecircndio de Roma era o sinal do fim do domiacutenio romano
sobre aquela regiatildeo fazendo com que uma revolta nas fronteiras do Reno fosse animada por
essas profecias449 e as revoltas judaicas contemporacircneas a Justino satildeo outro exemplo
443 II153 444 II142 445 I123 446 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 447 Cassius Dio Hist Rom LXXII4 448 Ibid LI255 LIV345-7 449 Taacutecito Historias IV546165 V2224
90
Todavia o apologista procura convencer de que os cristatildeos natildeo suportavam nenhum tipo de
ameaccedila agrave sociedade sob o domiacutenio romano
Sua estrateacutegia apologeacutetica portanto natildeo pode negar que as crenccedilas cristatildes reprovavam
uma seacuterie de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais caracterizam um
quadro da organizaccedilatildeo social No entanto essa nova religiatildeo deveria ser encarada como uma
dessemelhanccedila absoluta Vaacuterios pontos de contato entre a cultura pagatilde e a doutrina dos
cristatildeos satildeo estabelecidos para convencer sobre esse aspecto450 Os deuses e a religiatildeo pagatilde
deveriam ser rejeitados por serem incoerentes com a moralidade segundo as narrativas
antigas A feacute cristatilde eacute apresentada como um mecanismo eficaz de controle e de organizaccedilatildeo
social que exige uma mudanccedila subjetiva antes de um reflexo socialmente objetivo Por isso
segundo seu ponto de vista a condenaccedilatildeo dos cristatildeos acatada pelos governantes locais eacute uma
forma equivocada de manter a ordem Em grande medida essa forma de controle que emerge
dos clamores reativos populares estaria impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do
nomen Christianum sem conhecerem de fato a forma de pensar dos cristatildeos Por isso Justino
procura afirmar que os cristatildeos satildeo os melhores auxiliadores na manutenccedilatildeo da paz no
Impeacuterio
450 Esse ponto seraacute analisado no proacuteximo capiacutetulo
91
CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM SOCIAL
Justino combate agrave forma de controle que recrimina os cristatildeos e que segundo seu
ponto de vista tem fundamento nas accedilotildees dos democircnios Eacute dentro do seu objetivo apologeacutetico
que emerge sua tese da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem no Impeacuterio Eacute a
primeira vez que a religiatildeo emergente dos cristatildeos aparece assumidamente como um
instrumento a favor do Impeacuterio Natildeo havia nenhuma razatildeo para esse tipo de preocupaccedilatildeo por
parte dos cristatildeos A tese da contribuiccedilatildeo cristatilde agrave manutenccedilatildeo da ordem vem em oposiccedilatildeo agrave
ideia de que os cristatildeos seriam uma ameaccedila social Todavia eacute permitido supor que diante da
mira dos ldquoperseguidoresrdquo locais nesse periacuteodo natildeo era uacutetil jurar fidelidade ao Impeacuterio
As caluacutenias e a proacutepria inclinaccedilatildeo a repudiar as superstitones estrangeiras faziam com
que os cristatildeos fossem reprimidos em diferentes niacuteveis pelos pagatildeos do Impeacuterio Justino
apresenta uma forma de controle cristatilde que julga ser mais eficiente do que aquelas pagatildes
empregadas contra os proacuteprios cristatildeos A base de tal eficiecircncia estaacute no caraacuteter de sua
doutrina que quando absorvida deveria conduzir os crentes a uma conduta pautada por regras
morais que estabelecem precircmio ou castigo eterno a todos depois da morte de acordo com seu
meacuterito em vida A doutrina cristatilde eacute uma incentivadora da moral
Ao recorrer ao imperador o apologista natildeo apenas reafirma a fidelidade dos cristatildeos
mas expotildee o caraacuteter de sua doutrina e procura ser o mais convincente possiacutevel sobre a
razoabilidade de suas crenccedilas
41 O controle absoluto do controlador absoluto
Em primeiro lugar Justino sustenta que os cristatildeos satildeo os ldquomelhores ajudantes e
aliados para a manutenccedilatildeo da pazrdquo devido ao caraacuteter das suas doutrinas como a de que ldquonatildeo
eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que
cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildeesrdquo (I Apol
121) Segundo essa perspectiva a crenccedila em um Deus onisciente seria capaz de induzir os
que a deteacutem a se comedirem Nesse sentido ele destaca ldquoningueacutem escolheria por um
momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se
92
conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e
livrar-se dos castigosrdquo (I Apol 122) Esse mecanismo de controle apresenta uma estrutura
limitadora das accedilotildees humanas que eacute dependente do conhecimento das normas que determinam
a recompensa e o castigo O traccedilo marcante desse mecanismo eacute que existe um vigilante
constante de quem natildeo se pode esconder absolutamente nada nem mesmo as intenccedilotildees
Haacute certa dependecircncia do sentimento de temor pessoal diante da ideia de vigilacircncia
constante pelos olhos infaliacuteveis de um ser superior que julgaraacute com rigor as accedilotildees humanas de
uma vez por todas num momento aguardado mas desconhecido Todavia para que ele
funcione eacute preciso que exista um miacutenimo de plausibilidade nas ideias que sustentam o
controle absoluto de Deus Ou seja ningueacutem temeria algo que natildeo fizesse o miacutenimo sentido
Aqueles que combatiam os cristatildeos natildeo se intimidavam diante do Deus cristatildeo e em alguns
casos acreditavam estar sendo piedosos combatendo as crenccedilas descabidas desse novo grupo
Atentando para essas circunstacircncias Justino se empenha em mostrar correlaccedilotildees entre
elementos do pensamento cristatildeo e outros comuns agraves culturas no Impeacuterio
A ameaccedila do castigo no poacutes-morte eacute fundamental na estrutura da doutrina da justiccedila
divina Por isso para que sua estrateacutegia de persuasatildeo funcione ele se empenha em demonstrar
ldquoas evidecircnciasrdquo da vida eterna ou do poacutes-morte O apologista admite que ldquose a morte
terminasse na inconsciecircncia seria uma boa sorte para todos os malvadosrdquo (I181) uma
reflexatildeo comum tambeacutem a Plutarco (Consolatio ad Apollonium 11107c) Todavia Justino
manteacutem que a consciecircncia permanece e que a conduta humana eacute passiacutevel de puniccedilatildeo ou
precircmio em um momento aleacutem da vida451 Sua linha de pensamento sobre esse assunto
representa apenas uma das correntes de pensamento que emergiam entre os cristatildeos no seacuteculo
II452
Para minimizar qualquer exotismo no reconhecimento dessa doutrina cristatilde ele
menciona a necromancia453 as visotildees obtidas atraveacutes de crianccedilas puras454 os que satildeo
451 Como Platatildeo discorrendo sobre a vida apoacutes a morte em Phaedo 107c 452 Cf POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005 passim 453 Justino usa o termo nekuomanteiaj que deve ser entendido como ldquoconsulta aos mortosrdquo cf I183 454 Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p178) editou essa passagem da seguinte forma ai` avdiafqorwn paidwn evpopteuseij [les divinations faites sur les entrailles drsquoenfants innocents] Seu texto grego foi fiel ao MS A que sugere o termo avdiafqorwn no lugar de diafqorwn mas a versatildeo em francecircs se distanciou muito do significado estrito Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 59) observou a nota marginal do MS A e acrescentou tambeacutem a conjunccedilatildeo div proporcionando a seguinte frase ai` div avdiafqorwn paidwn evpopteuseij Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 123) apresentam uma correccedilatildeo que parece ser a mais convincente Em vez de substituir diafqorwn por avdiafqorwn eles simplesmente dividem a palavra que aparece no MS A em duas div avfqorwn paidwn evpopteuseij [visions obtained through uncorrupted children] Natildeo eacute possiacutevel dizer se se trata de uma
93
chamados entre os magos de espiacuteritos dos sonhos e espiacuteritos assistentes para assim tentar
estabelecer que mesmo depois da morte as almas conservam a consciecircncia Os casos de
possessatildeo ou loucura quando segundo sua concepccedilatildeo sobre o que se pensava naquela eacutepoca
alguns eram ldquoarrebatados e agitados pelas almas dos mortosrdquo tambeacutem satildeo alocados ao lado
dos oraacuteculos de Anfiloco de Dodona de Piton e outros semelhantes A descida de Ulisses ateacute
a regiatildeo dos mortos na obra de Homero (Odisseia10101 ndash 111ss) as doutrinas de escritores
como Empeacutedocles e Pitaacutegoras Platatildeo e outros que disseram coisas parecidas tambeacutem satildeo
destacadas
A ideia de uma consciecircncia apoacutes a morte fiacutesica natildeo era algo estranho no mundo greco-
romano da eacutepoca de Justino Mas o apologista apresenta uma elaboraccedilatildeo teoloacutegica sobre o
ldquocastigo ou salvaccedilatildeo eternardquo que deveria desempenhar uma funccedilatildeo coercitiva sobre as pessoas
em geral Essas ideias cristatildes satildeo herdeiras de elementos do pensamento judaico jaacute sob a
influecircncia do helenismo Desse modo satildeo encontrados aspectos comuns ao judaiacutesmo como o
da justiccedila divina e outros relativos a outras culturas como a existecircncia da alma455
Segundo Dag Oistein Endsjo456 os judeus sofreram a influecircncia da cultura grega sobre
as ideias do poacutes-morte sem que isso represente uma planificaccedilatildeo das duas culturas A
correspondecircncia entre alguns elementos aparece por exemplo na traduccedilatildeo de lw a v para avdej
na LXX proporcionando a associaccedilatildeo entre a ldquosepulturardquo e o ldquosubmundo dos mortosrdquo
Associaccedilatildeo que remonta a Odisseia de Homero e se estende para niacuteveis mais complexos
Conforme tambeacutem considerou E D Wright457 judeus e cristatildeos emprestaram alguns
elementos da cultura greco-romana para a elaboraccedilatildeo de suas cosmologias Mas as
consulta de crianccedilas vivas ou mortas mas poder haver alguma relaccedilatildeo com as passagens sobre as ldquocrianccedilas purasrdquo nos Papyri Graecae Magicae e principalmente com a Historia Eclesiaacutestica (III1311-12) de Soacutecrates 455 Devido aos objetivos desta pesquisa seraacute necessaacuterio ser bastante seletivo neste ponto A anaacutelise do desenvolvimento das ideias cristatildes sobre a vida apoacutes a morte exigiria uma anaacutelise de suas raiacutezes na cultura egeia entre os egiacutepcios mesopotacircmicos no zoroastrismo na cultura grega em geral e nas vaacuterias fases da religiatildeo dos judeus As correlaccedilotildees estabelecidas neste capiacutetulo satildeo aprofundamentos de toacutepicos sugeridos pelos proacuteprio Justino no decorrer de sua anaacutelises Para mais informaccedilotildees cf SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946 OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992 COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987 DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000 SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006 456 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 457 The History of Heaven New York Oxford University Press 2000 p 139
94
correlaccedilotildees se estendem tambeacutem para com a cultura persa que segundo Alan Segal458
apresentava aspectos muito atrativos ao povo simples
O desenvolvimento das ideias sobre o poacutes-morte entre os judeus eacute complexa Haacute
algum consenso entre os estudiosos de que a ideia de ldquoressurreiccedilatildeordquo tenha aparecido
tardiamente no judaiacutesmo Mas as Escrituras judaicas apresentam referecircncias a algum tipo de
existecircncia apoacutes a morte fiacutesica Um caso emblemaacutetico acontece quando o rei Saul procurou
uma b A a ecircb A a ecircb A a ecircb A a ecirc-t l[]B [evocadora de espiacuteritos] para poder falar com o falecido profeta Samuel (I
Samuel 281-7) praacutetica proibida pela Lei (Dt 189-12) No I seacutec dC a ressurreiccedilatildeo era
motivo de disputas entre saduceus e fariseus459 Os saduceus natildeo acreditavam na ressurreiccedilatildeo
dos mortos Sobre os fariseus Flaacutevio Josefo460 escreveu que ldquotoda alma [] eacute impereciacutevel
mas somente a alma dos bons passa a outro corpo Por outro lado a alma dos homens maus
estaacute sujeita agrave puniccedilatildeo eternardquo Os saduceus satildeo descritos como aqueles que ldquoacreditavam que
Deus natildeo estaacute interessado em se agimos bem ou mal [] agir bem ou mal eacute apenas uma
questatildeo de escolha humana e que uma ou outra pertence a cada um assim podem agir como
bem entendemrdquo461 Tambeacutem descartam a crenccedila ldquona duraccedilatildeo imortal da alma e na puniccedilatildeo e
recompensa no Hadesrdquo462 Na contramatildeo dessas ideias Josefo escreve que os fariseus
ldquotambeacutem acreditam que a alma tem o poder de sobreviver agrave morte em si e que embaixo da
terra haveraacute recompensa ou puniccedilatildeo para a vida de viacutecio ou virtude que se viveu nesta
vidardquo463
Natildeo passou despercebido a Vicente Dobroduka464 que o vocabulaacuterio empregado pelo
historiador judeu se assemelha razoavelmente ao de Platatildeo465 Quer seja por uma intenccedilatildeo do
autor em aproximar a doutrina farisaica agrave filosofia ou pela adaptaccedilatildeo de um editor posterior
os pontos de semelhanccedila entre essas doutrinas e a cultura helecircnica satildeo evidentes Mesmo sem
ser uma forma de pensar que atraiacutesse a todos os judeus naquela eacutepoca natildeo haacute razotildees para se
458 Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 p 394 Cf as noccedilotildees escatoloacutegicas persas que teriam influenciado a apocaliacuteptica judaica em RUSSELL D S The Method and Message of Jewish ApocalypticPhiladelphia Westminster Press 1964 p 19 e em SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008 p 314 Entre essas noccedilotildees esta a ideia da ressurreiccedilatildeo corporal Para uma visatildeo geral da escatologia do Avesta cf MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975 pp 177-207 459 Mt 2223-33 Josefo Ant Jud 1814 Guer Jud 28 460 Guer Jud 2162ss 461 Guer Jud 2162ss 462 Guer Jud 2162ss 463 Ant Jud 1814 464 DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 2005 p 24 465 Meno 81b5 Feacutedon 70a8 e 72a8
95
duvidar que a ideia de uma recompensa futura baseada nas accedilotildees humanas era amplamente
conhecida entre os judeus Como escreveu Elizacircngela A Sousa466
certos elementos nas ideias particulares de juiacutezo satildeo compartilhados por uma e outra cultura assinalando algum tipo de intercacircmbio existente entre elas o que ainda outra vez nos coloca de frente com o pressuposto de que certos aspectos culturais (e religiosos) se constituem se natildeo totalmente a partir de trocas simboacutelicas pelo menos em parte satildeo influenciados por elas
A tradiccedilatildeo aponta que Paulo era um fariseu467 e a sua crenccedila na ressurreiccedilatildeo se
desenvolveraacute entre os cristatildeos No entanto eacute preciso lembrar como destacou D O Sousa468
que entre os cristatildeos ldquonatildeo havia uma unicidade de pensamento em continuidade com a
escatologia judaicardquo No processo proselitista de comunicaccedilatildeo da mensagem cristatilde os fieacuteis
enfrentaram os questionamentos de outros grupos Segundo o relato de Atos dos Apoacutestolos
(1716-34) Paulo enfrentou a resistecircncia dos filoacutesofos epicureus e estoicos no areoacutepago em
Atenas e em outro episoacutedio precisou repreender os coriacutentios em carta porque alguns estavam
sustentando que natildeo existia ressurreiccedilatildeo (I Co 1512-33) Embora os relatos de ressurreiccedilatildeo
dos mortos e da existecircncia de uma consciecircncia apoacutes a morte fossem comuns ao mundo greco-
romano como destaca Dag Oistein Endsjo469 natildeo existia nenhum consenso e eacute possiacutevel
distinguir essas contraposiccedilotildees em pelo menos dois grupos os criacuteticos intelectuais que
incluiacuteam filoacutesofos oradores e escritores e por outro lado a maioria sem instruccedilatildeo
De acordo com Lewis Richard Farnell470 a especulaccedilatildeo filosoacutefica grega natildeo poderia
ser considerada uma testemunha plena da mentalidade e da feacute daquela eacutepoca da cultura greco-
romana Estrabatildeo471 escreveu provavelmente no iniacutecio do I seacuteculo dC que ldquofilosofia era
algo para poucos enquanto poesia era mais uacutetil para as pessoas em geralrdquo No mesmo sentido
Plutarco472 admite que em sua eacutepoca apenas poucos conheciam as Leis de Platatildeo enquanto os
escritos de Homero eram ainda amplamente disseminados Pausacircnias no seacuteculo II dC
escreveu que Platatildeo a quem ele chama de ldquoo maior dos filoacutesofosrdquo473 tinha suas ideias
recebidas somente ldquopor alguns dos gregosrdquo474 Tudo indica que a situaccedilatildeo no II seacuteculo era a
466 SOARES Elizangela A Variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte desenvolvimento de uma crenccedila no judaiacutesmo do segundo templo 127 f (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2006 p 104 467 At 223 468 SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 setdez 2009 p 412 469 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 passim 470 Ibid p 386 471 Geografia 128 472 Moralia 328de 473 Descriccedilatildeo da Greacutecia 4324 474 Ibid 1303
96
mesma que Oriacutegenes475 descreve no seacuteculo seguinte ldquoeacute faacutecil de fato observar que Platatildeo eacute
encontrado somente nas matildeos daqueles que professam serem homens das letrasrdquo
Conforme destacou Henry Chadwick476 o estudo da metafiacutesica platocircnica foi peculiar a
poucos de uma ldquoaristocracia intelectualrdquo Nesse sentido Ramsay MacMullen477 tambeacutem
apontou que a reflexatildeo filosoacutefica natildeo apresentou nenhuma influecircncia detectaacutevel agrave praacutetica
cuacuteltica da religiatildeo tradicional grega478 Por outro lado eacute possiacutevel encontrar criacuteticas da
intelectualidade agraves superstitiones e agrave religiatildeo tradicional Certamente para pensadores como
Plutarco Dio de Prusa e Luciano de Samoacutesata os deuses natildeo existiam conforme as formas
homeacutericas Segundo Ramsay MacMullen479 esses pensadores puristas sustentam que os
deuses estavam distantes demais de tais caracteriacutesticas humanas comuns tais como nascer
comer beber e fornicar como a maioria deles faz extensivamente em suas tradicionais
representaccedilotildees Tudo isso natildeo passa de deisidaimonia ou seja ldquosupersticcedilatildeordquo Muitas vezes os
filoacutesofos reinterpretavam ou racionalizavam os mitos antigos rejeitando acontecimentos
milagrosos recentes semelhantes agraves narrativas antigas
No mundo grego a morte foi usualmente definida como a separaccedilatildeo da alma do corpo
Isso eacute amplamente demonstrado nas representaccedilotildees da morte de muitos guerreiros de Homero
repetidamente descritas como a alma [yuch] deixando o corpo480 E mesmo Platatildeo poderia
concordar com isso tendo Soacutecrates proclamado que a morte em sua opiniatildeo ldquonatildeo eacute nada
aleacutem do que a separaccedilatildeo dessas duas coisas a alma e o corpordquo481 A alma homeacuterica no Hades
era sempre definida como ldquomorterdquo Eram ldquoespiacuteritos da morterdquo482 ldquoMorterdquo natildeo significava
inexistecircncia absoluta mas uma existecircncia deacutebil da alma sem o corpo Sem um corpo fiacutesico
ningueacutem era de fato uma ldquopessoa completardquo Para os gregos a natureza humana sempre
equivaleu a uma unidade psicossomaacutetica Como escreveu Michael Clarcke483 ldquoo homem
homeacuterico natildeo tinha uma mente pois seus pensamentos e consciecircncia eram partes constituintes
da sua vida corpoacuterea como eram os movimentos e o metabolismordquo
475 Contra Celso 62 476 Introduction In ____ Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi 477 Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 p77 478 Isso natildeo quer dizer que filosofia natildeo acarretou mudanccedilas na maneira de pensar a religiatildeo pelos letrados como se considerou no capiacutetulo anterior 479 Ibid p77 480 ENDSJO Dag Oistein Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 p 38 481 Platatildeo Gorgias 524b cf Platatildeo Feacutedon 64c 482 Odisseia 11541 cf Odisseia 10521 10536 1129 1149 483 CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999 p 115
97
Como filoacutesofo Plutarco natildeo acreditava em nenhuma dessas histoacuterias populares sobre
ressurreiccedilatildeo fiacutesica e imortalizaccedilatildeo Para ele somente a alma tinha a chance de alcanccedilar a
esfera divina ldquoquando ela definitivamente se separa e se torna livre do corpo tornando-se
pura descarnada e imaculadardquo484 Mas ele admite que a maioria das pessoas natildeo se importava
com isso
Essas especulaccedilotildees tinham consequecircncias apenas limitadas de modo que natildeo
apresentaram um impedimento destacaacutevel agrave proliferaccedilatildeo de superstitiones inclusive entre as
classes elevadas agraves vezes Conforme Rohde485 argumenta a indignaccedilatildeo apaixonada de
filoacutesofos estoicos e epicureus que atacavam as crenccedilas que repousavam sobre os ensinos de
Homero natildeo poderiam ser explicadas exceto pela suposiccedilatildeo de que Homero e suas
representaccedilotildees permaneciam com uma significativa forccedila de orientaccedilatildeo entre as massas que
natildeo tinham conhecimento da filosofia O proacuteprio Justino indica que as ideias em torno da
crenccedila no Hades ainda eram fortes
O apologista toma o desafio de mostrar que a forma de pensar cristatilde natildeo era uma
novidade tatildeo descabida que natildeo pudesse ser aceita e ao mesmo tempo procura mostrar que
suas ideias apresentam um argumento razoaacutevel Comparando a crenccedila cristatilde na existecircncia de
uma consciecircncia apoacutes a morte do corpo agraves outras opiniotildees disseminadas pelo Impeacuterio
destaca-se tambeacutem que essa doutrina natildeo era demasiadamente estranha aos povos486 Os
elementos aparentemente comuns agrave cultura greco-romana e ao cristianismo nascente satildeo
alinhados na construccedilatildeo do argumento de que se os cristatildeos natildeo apresentavam uma doutrina
demasiadamente nova natildeo deveriam existir razotildees para serem incomodados ou combatidos
Neste caso os que apresentam doutrinas semelhantes agraves dos fieacuteis tambeacutem mereceriam ser
combatidos ou em uma melhor hipoacutetese ambos mereceriam ser deixados em paz
Outro refuacutegio apologeacutetico encontrado por Justino eacute recorrer ao fundamento cristatildeo na
tradiccedilatildeo judaica para assim alegar a antiguidade cristatilde Mas reconhecendo os elementos
semelhantes agrave cultura geral e agrave religiatildeo dos judeus o apologista abaixa a guarda para os
golpes da intelectualidade Por isso sua trama apologeacutetica precisa forjar um sentido
racionalizante desses elementos comuns a pagatildeos e a judeus e apresentar ao mesmo tempo a
doutrina cristatilde como um ensinamento superior agrave filosofia
484 Plutarco Romulus 287 485 ROHDE Erwin [1921] Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966 p 535 486 I186
98
Ele compara a crenccedila cristatilde na consumaccedilatildeo final de todas as coisas agraves noccedilotildees de
Sibila487 e Histapes488 (I201) sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo de tudo o que eacute corruptiacutevel A
funccedilatildeo do fogo no processo do ciclo coacutesmico dos filoacutesofos estoicos tambeacutem eacute elencado
destacando o renascimento do mundo pela transformaccedilatildeo489 Arquitetando seu argumento
apologeacutetico Justino questiona por que os cristatildeos satildeo ldquoperseguidosrdquo se existem algumas
correlaccedilotildees ou semelhanccedila entre as coisas ensinadas entre os fieacuteis e entre os filoacutesofos e
ldquopoetasrdquo estimados pelos romanos490 Essas correlaccedilotildees no entanto levaratildeo o apologista a
um aprofundamento dessas semelhanccedilas e dessemelhanccedilas Ele escreve
Assim quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus pareceraacute apenas que enunciamos um dogma de Platatildeo ao falar sobre conflagraccedilatildeo outro dogma dos estoicos ao dizer que satildeo castigadas as almas dos iniacutequos que ainda depois da morte conservaratildeo a consciecircncia e que as dos bons livres de todo castigo seratildeo felizes pareceraacute que falamos como vossos poetas e filoacutesofos que natildeo se devem adorar obras de matildeos humanas natildeo eacute senatildeo repetir o que disseram Menandro o
487 O substantivo feminino Sibulla pode significar uma ldquoprofetizardquo (PEREIRA Isidro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 516) Admite-se que essas elas profetizavam sob a influecircncia divina O primeiro escritor grego a fazer menccedilatildeo a Sibila eacute Heraacuteclito (Fragmento 92) No entanto Walter Burket (Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 p 116) escreve que mulheres em frenesi espiritual pelas quais os deuses falavam podiam ser encontradas muito antes no Oriente proacuteximo como em Mari no secundo milecircnio e na Assiacuteria no primeiro milecircnio Elas natildeo eram identificadas por um nome proacuteprio ficavam conhecidas apenas com o nome do local onde atuavam Uma coleccedilatildeo de anuacutencios profeacuteticos deu origem ao que ficou conhecido como Libri Sibyllini Acredita-se que a abra tenha sido obtida no reinado de Tarquinio Priscus (616 aC ndash 579 ac) por uma Sibila que protagoniza um mito em torno do livro Por vezes ela eacute chamada apenas de Sibila Os textos serviam de paracircmetro para a religiatildeo e eram guardados no Juacutepiter Captolino Com o incecircndio do templo em 82 aC os livros se perderam Deram iniacutecio a uma raacutepida busca por textos sibiliacutenicos por diversas regiotildees para compor uma nova coleccedilatildeo Poreacutem o caraacuteter e a pretensatildeo dos textos coletados desapontou esse objetivo Augustus determinou que os livros fossem destruiacutedos (Suetonio Vita cesarum Augustus 31 Tacito Anais VI12) Tibeacuterio voltou a examinar os Livros Sibilinos Muitos foram rejeitados como escritos espuacuterios (Cassius Dio LIV17) Pouco tempo mais tarde ainda sob seu governo um novo volume foi admitido (Taacutecito Anais VI12) (cf SMITH W (Ed) A Dictionary of Greek na Roman Antiquities London John Murray 1875 pp 1043-1044) Do primeiro para o segundo seacuteculo uma grande porccedilatildeo de escritos de cunho judaico-cristatildeos entram no paacutereo do textos sibiliacutenios (cf TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899) Eacute difiacutecil saber exatamente a qual ensino sibilino sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo Justino se refere MUNIER (op cit p 185) sugere que seja o trecho dos Oracles Sibyllins II196 MARCOVICH (Op cit p 62) aponta as passagens de Oracle Sibylline 2196ss 2286ss 3672ss 3689ss 4173ss 7120ss 8243ss O mesmo livro sibilino eacute mencionado em I4512 cuja leitura era vetada ao povo Cf ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997 PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988 A Greek-English Lexicon Edited by Henry Georg Liddell and Robert Scott OxfordNew York Clarendon PressOxford University Press 1996 488 U`stasphj eacute a forma grega de se escrever Vistaspa nome do pai de Dario o Grande e protetor de Zoroastro (KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945) Justino provavelmente estaacute se referindo ao escrito pseudoepiacutegrafo dos Oraacuteculos de Histaspes produzido provavelmente entre os seacuteculo II e I aC Essa obra heleniacutestica da Aacutesia menor apresentava fortes traccedilos do Zoroastrismo mas tambeacutem evidenciava aspectos poliacutetico-apocaliacutepticos relacionado ao domiacutenio de Roma sobre os demais povos (SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012 cf CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938) Histaspe e Sibila tambeacutem aparecem juntos nos escrito de Clemente de Alexandria (Stromata VI51) Lactacircncio (Divinae Institutiones VII1519 VII182) 489 I202 490 I203
99
poeta cocircmico e outros com ele que afirmaram que o artiacutefice eacute maior do que aquele que o fabrica (I204-5)
Tendo em vista a criacutetica dos filoacutesofos e letrados agraves crenccedilas gerais do povo as
semelhanccedilas e pontos de contato entre as doutrinas cristatildes e os mitos pagatildeos apontados por
Justino em defesa dos cristatildeos poderia se converter em uma nova dificuldade como algueacutem
que tenta sair de um abismo para cair em outro Por isso ele desenvolve uma explicaccedilatildeo para
essas semelhanccedilas elevando as doutrinas cristatildes a um niacutevel de primazia e evidenciando o seu
aspecto filosoacutefico
Segundo Viviana L Felix491 mesmo admitindo a semelhanccedila entre os ensinos de
Platatildeo e o dos cristatildeos uma posiccedilatildeo contraacuteria agrave doutrina platocircnica da alma eacute assumida
empenhando-se na construccedilatildeo de uma soteriologia e escatologia cristatildes conforme seratildeo
analisadas mais adiante O apologista combate como destaca Van Winden492 as correntes
filosoacuteficas que natildeo tecircm esperanccedila que Deus castigue ou premie em outra vida Seu interesse
estaacute ligado agrave vida eacutetica do homem e seu destino escatoloacutegico
A esperanccedila dos cristatildeos de terem os seus corpos restabelecidos mesmo depois de
mortos poderia representar algo ldquoimpossiacutevelrdquo na opiniatildeo de alguns Justino natildeo usa outro
argumento que natildeo seja o argumento da feacute Esse seu subterfuacutegio indica que muitas coisas que
parecem ser impossiacuteveis em um momento se demonstram possiacuteveis em outro surpreendendo
a muitos Ele usa o exemplo do secircmen humano para dizer que mostrado a algueacutem luacutecido
jamais se poderia supor imediatamente que uma soacute gota desse liacutequido seria capaz de se
transformar em um corpo humano De modo semelhante entatildeo se a princiacutepio pode parecer
estranho crer que um corpo ldquosemeadordquo na sepultura possa se transformar em um corpo
glorificado na ressurreiccedilatildeo depois se mostraraacute evidente493 Explanando esse argumento o
apologista explica que os cristatildeos sustentam que ldquoeacute melhor crer naquilo que estaacute acima da []
proacutepria natureza e que eacute impossiacutevel aos homens do que serem increacutedulosrdquo494 Tudo gira em
torno dos ensinamentos do seu mestre Jesus Cristo O mesmo que ensinou que o que eacute
impossiacutevel para os homens eacute possiacutevel para Deus495 Para um ouvinte alheio agrave mentalidade
judaico-cristatilde tal sentenccedila poderia parecer muito vaga Afinal os pagatildeos estavam
familiarizados com as limitaccedilotildees humanas e os poderes divinos que recheavam os mitos 491 FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa 492 WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 1975 pp 181-190 493 I191-4 494 I196 Kreitton de pisteuein kai tauta kai ta Th| e`autwn fusei kai avnqrwpoij avdunata hv o`moiwj toij alloij avpistein proseilhfamen MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 495 `Ta avdunata para avnqrwpoij dunata para qew|( MINNSPARVIS Op cit p 128 A citaccedilatildeo eacute de Lc 1827
100
Todavia Justino faraacute saber que o ponto chave desse misteacuterio eacute a feacute naquilo que eacute crido como a
ldquorevelaccedilatildeo divinardquo Essa revelaccedilatildeo mostra-se tambeacutem desafiadora pois ao mesmo tempo em
que traz luz sobre as accedilotildees humanas porta condenaccedilatildeo e temor ainda que estes sejam
contemplados pela mensagem da cruz496 de modo reparador Eacute no exato momento em que se
manifesta a necessidade de escolher aquilo que se revela como o correto verdadeiro e bom
que se deve temer pela escolha capaz de determinar o destino no poacutes-morte Essa advertecircncia
tambeacutem foi feita pelo mestre Natildeo temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais
podem fazer temei antes aquele que depois da morte pode lanccedilar alma e corpo no
inferno497 Ele mesmo define o ldquoinfernordquo como ldquoo lugar onde seratildeo castigados os que
tiverem vivido iniquamente e natildeo acreditaram que aconteceratildeo essas coisas ensinadas por
Deus atraveacutes de Cristordquo498 (I198) O Deus absoluto que tudo vecirc tudo conhece e do qual
nada se pode ocultar aparece tambeacutem como o grande juiz das accedilotildees humanas Assim
comunicada essa ldquoverdaderdquo cristatilde ela deve produzir temor e efetivar a sua funccedilatildeo em exigir
uma accedilatildeo positiva ou negativa de quem a ouve ou a lecirc
42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde
Seguindo o raciociacutenio do apologista deve ser a ldquorazatildeordquo a dirigir as escolhas humanas
No entanto a ldquorazatildeordquo ou seja o logos que estaacute em evidecircncia no pensamento de Justino eacute
produto da sua arguiccedilatildeo teoloacutegico-apologeacutetica Eacute possiacutevel identificar uma estrateacutegia literaacuteria
496 Mensagem da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo 497 lsquoMh Fobeisqe touj avnairountaj umaj kai meta tauta mh dunamenouj ti poihsai( fobhqhte de meta to Avpoqanein dunaMenon kai yuchn kai swma eivj geennan evmbalein)v MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 Cf Mt 1028 Lc 124-5 Geenna eacute uma transliteraccedilatildeo grega do termo aramaico ~ N h iy G e que corresponde ao ~oN h i a y G e hebraico e assumiu o sentido de ldquopuniccedilatildeo futurardquo (RUSCONI C Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 106 A primeira menccedilatildeo ao Vale de Hinnom na Biacuteblia aparece em Js 158 No entanto no texto dos LXX (LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]) satildeo empregadas as palavras faragga Onom para se referir ao ~ N Oh i- y g E) da Biacuteblia Hebraica (Biblia Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50]) Em II Cr 283 a LXX substitui ~ N O=h i- b a y g EaringB pela transliteraccedilatildeo Gaibenenom Esse lugar teria destinados primeiramente ao sacrifiacutecio de crianccedilas a Moloque e a Baal numa parte especiacutefica do vale chamada Tophet Depois do Exiacutelio com o intuito de mostrar a abominaccedilatildeo do local o judeus o transformaram no depoacutesito de lixo da cidade Para a destruiccedilatildeo dos resiacuteduos ali depositados o fogo era mantido sempre aceso Por isso os judeus associaram ao local a ideia de sofrimento e corrupccedilatildeo (Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998 p 457) A palavra geenna eacute sempre empregada nos discursos de Jesus (Mt 2333 Lu 125 Mt 522) como um lugar de puniccedilatildeo num julgamento futuro e Justino o emprega nesse mesmo sentido 498 h de geenna evsti topoj enqa kolaxesqai mellousin oi` avdikwn biwsantej kai mh pisteuontej tauta genhsesqai( o[as o` qeoj dia tou Cristou evdidaxe) MINNSPARVIS Op cit p 128 Cf Lc 125 Mt 1028
101
que ressignifica o conceito de ldquorazatildeordquo por meio da construccedilatildeo teoloacutegica em torno do logos
cristatildeo buscando atestar a racionalidade da ldquofilosofiardquo cristatilde
Considerar a religiatildeo cristatilde como uma ldquofilosofia divinardquo499 natildeo eacute apenas o reflexo da
sua trajetoacuteria filosoacutefica ateacute sua conversatildeo eacute tambeacutem uma estrateacutegia apologeacutetica que considera
normal existirem diferentes correntes de pensamento dentro do Impeacuterio sem que isso acarrete
automaticamente perseguiccedilotildees entre grupos distintos500 Segundo Justino eacute o logosrazatildeo que
orienta o curso da apologia em favor dos cristatildeos501 O apologista estaacute convencido de que suas
reivindicaccedilotildees satildeo ldquojustas e verdadeirasrdquo502 o que exige uma investigaccedilatildeo particular sobre o
sentido desses dois conceitos tambeacutem De outro modo a causa uacuteltima das accedilotildees anticristatildes eacute a
influecircncia dos democircnios que colocam o povo e as autoridades contra os fieacuteis Segundo seu
raciociacutenio os ldquomaus democircniosrdquo agiam por meio da promoccedilatildeo da ignoracircncia e da confusatildeo
Por isso ele se demonstra disposto a apresentar outros pontos sobre as crenccedilas cristatildes ldquoa fim
de persuadir os amantes da verdaderdquo503
Tendo em vista que o mecanismo de controle proporcionado pelo conteuacutedo das
doutrinas cristatildes eacute estabelecido fundamentalmente pelo temor diante do Deus que sonda todas
as coisas e que pode punir ou recompensar eternamente aqueles que agem virtuosamente nesta
vida o apologista escreve sobre a capacidade humana de agir racionalmente
Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e se recusem
outras como ldquoa pobreza o sofrimento e a desonra paternardquo504 A incompreensatildeo dessa
ldquoracionalidade cristatilderdquo fazia com que muitos se opusessem aos cristatildeos A falta de
conhecimento sobre as doutrinas cristatildes seria a responsaacutevel por exemplo por muitos
acusarem-lhes de ateiacutesmo505 Por ser uma religiatildeo nova e em processo de consolidaccedilatildeo natildeo eacute
nenhuma surpresa que muitos ainda estivessem confusos acerca das doutrinas cristatildes que por
vezes encabulavam os proacuteprios cristatildeos506
499 II Apol 125 500 II Apol 126 501 II Apol 128 502 I1211 tambeacutem em I683 ldquonatildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo 503 I1211 504 I128 505 I131 506 Os cristatildeos estavam longe de apresentarem unidade doutrinaacuteria Justino faz menccedilatildeo a cristatildeos divergentes como Helena Menandro e os marcionitas (I261-8)
102
421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios
Segundo a tese apresentada por Justino os democircnios se apoderam de todos aqueles
que de um ou outro modo natildeo trabalham por sua proacutepria salvaccedilatildeo O conceito de daiacute mwn
estava presente na cultura grega desde Homero e Hesiacuteodo507 Seu campo semacircntico eacute extenso
Deus conceito baacutesico que mais se aproxima da ideia que Justino sustenta eacute o de ldquoum ser
divinordquo ldquoo poder divinordquo ldquoum semideusrdquo ldquoser que interfere no destino humanordquo e poderia
ser ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo508
O conceito de ldquosalvaccedilatildeordquo natildeo estaacute claro nesses escritos mas estaacute relacionado agrave
recompensa positiva daqueles que creram e agiram conforme a revelaccedilatildeo dos desiacutegnios
divinos Isso tambeacutem significa associar-se ao logos e dissociar-se dos enganos demoniacuteacos
Desse modo ele escreve que ldquodepois de crer no logos noacutes nos afastamos deles [dos democircnios]
e por meio do Filho seguimos o uacutenico Deus unigecircnitordquo509
Esse distanciamento dos enganos destes seres malignos e pelo apego ao logos eacute o que
produz uma mudanccedila de conduta Seu testemunho em defesa da feacute eacute que os que antes se
compraziam na dissoluccedilatildeo agora abraccedilam apenas a temperanccedila os que antes se entregavam
agraves artes maacutegicas agora se consagram ao Deus bom e ingecircnito aqueles que antes eram
apegados aos bens materiais e agraves rendas agora compartilham do quem tecircm os que antes se
odiavam e se matavam mutuamente desprezando aqueles que natildeo pertenciam agrave mesma raccedila
pela diferenccedila de costumes agora vivem todos juntos rezam pelos seus inimigos e tratam de
persuadir os que os aborrecem injustamente a fim de que vivendo conforme conselhos de
Cristo tenham boas esperanccedilas de alcanccedilar uma recompensa de Deus (I Apol 141-3) Por
isso o filoacutesofo apologista critica as accedilotildees anticristatildes romanas que acatavam as caluacutenias
disseminadas dizendo ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e natildeo
tenhais a quem castigarrdquo510
A fonte da moralidade cristatilde estaacute primeiramente relacionada agrave mensagem do seu
mestre o Cristo por vezes tido como motivo de escacircndalo para os infieacuteis Essa moralidade eacute
destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e comentaacuterios ldquodisseminados
507 POPE Kyle Mark The concept of theDAIMWN in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 13-17 cf REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004 508 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 (Perseu Project) 509 I Apol 141 510 I Apol 124
103
entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso seu discurso sobressalta o
valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de temperanccedila511 Tambeacutem recebem
destaques a doutrina cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos
necessitados e a ausecircncia de valor da ostentaccedilatildeo512 Com o mesmo tom piedoso seguem as
afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico513 Desse
modo Justino contribui tambeacutem para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos
propondo uma identidade coletiva Nesse processo o apologista combate um conceito
estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que considera equiacutevocos e mal entendidos
ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja Essa sua atitude revela tambeacutem que o processo de construccedilatildeo da
identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada principalmente pela
necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os variados grupos
cristatildeos Pois as Igrejas em meados do seacuteculo II devem ser vistas ainda como manifestaccedilotildees
de ldquocristianismosrdquo514
No intuito de explicar o caraacuteter das crenccedilas cristatildes Justino faz referecircncia agrave recepccedilatildeo e
interpretaccedilatildeo de escritos e doutrinas Ser cristatildeo em sua perspectiva natildeo eacute simplesmente
pertencer a um grupo eacute um ldquoidealrdquo o de aprender o que foi ensinado pelo Cristo e praticar
em suas obras Desse modo elege-se a praacutetica dos ensinamentos do Logos como o elemento
fundamental diferenciador entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos515 Justino defende a liberdade para
estes que ele tem por ldquocristatildeosrdquo aos outros espera-se que sejam mesmo perseguidos516
Dentre os ensinos do Cristo estaacute o pagamento dos tributos e contribuiccedilotildees517 mas o
apologista vai aleacutem Propondo-se a oferecer algumas das principais informaccedilotildees sobre o
conteuacutedo das crenccedilas cristatildes um paralelo entre a natureza desses ensinamentos e outras
arguiccedilotildees eacute traccedilado518
Jesus eacute descrito como u`ioj de Qeou [filho de Deus] aquele que ainda que parecesse
homem de modo comum por sua sabedoria mereceria chamar-se filho de Deus Haacute um
511 I151-7 512 I141-919 513 I161-6 514 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 515 ldquoAqueles poreacutem que se vecirc que natildeo vivem como ele ensinou sejam declarados como natildeo cristatildeos por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de Cristo pois ele disse que se salvariam natildeo os que apenas falassem mas que tambeacutem praticassem as obrasrdquo (I169) 516 ldquoAqueles que natildeo vivem conforme os ensinamentos de Cristo e satildeo cristatildeos apenas de nome noacutes somos os primeiros a vos pedir que sejam castigadosrdquo (I1614) 517 Justino recorre agrave passagem comum a Mt 221719-20 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo cf I172 518 I144
104
contraste entre o Cristo que nasceu como Logos de Deus e o que afirmavam sobre Hermes
chamado de Logos anunciador ou mensageiro de Deus519 Para rebater o desdeacutem pela
crucificaccedilatildeo de Cristo que poderia representar algo despreziacutevel aos olhos de muitos no
Impeacuterio o apologista aponta que tambeacutem os filhos de Zeus sofreram mortes terriacuteveis Sobre
ele haver nascido de uma virgem ele compara-o a Perseu Quanto agrave cura de coxos paraliacuteticos
e enfermos de nascimento e ateacute mesmo ressurreiccedilatildeo de mortos ele aponta que haacute alguma
semelhanccedila com Ascleacutepio520 As comparaccedilotildees tambeacutem envolvem Dioniso e Heacuteracles esta
uacuteltima ascendida depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos os Dioacutescoros filhos de
Leda Perseu de Dacircnae e Belerofonte nascido de homens que ascenderam sobre o cavalo
Peacutegaso O apologista fala tambeacutem dos imperadores mortos aos quais muitos consideravam
como dignos da imortalidade e alguns juravam terem visto Ceacutesar subir ao ceacuteu521 Mas ele
adverte ldquoNatildeo pedimos que se aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque
dizemos a verdaderdquo522
As doutrinas cristatildes satildeo apresentadas como a ldquouacutenica verdaderdquo e a mais antiga do que
todos os escritores que existiram Seu discurso busca demonstrar que Jesus Cristo eacute
propriamente o uacutenico Filho nascido de Deus como seu Logos seu Primogecircnito e sua
Potecircncia A encarnaccedilatildeo do Filho pelo seu designo deu-se para que ele ensinasse essas
verdades para a transformaccedilatildeo e conduccedilatildeo do ldquogecircnero humanordquo523 Poreacutem segundo sua teoria
apologeacutetica antes de tornar-se homem entre os homens houve alguns democircnios malvados
que se adiantaram a dizer por meio dos poetas terem acontecido os mitos que inventaram
Seriam esses os mitos gerais conhecidos por gregos e romanos Em oposiccedilatildeo ao
esclarecimento proposto pelo logos para a salvaccedilatildeo humana esta o obscurecimento de toda a
racionalidade proporcionado pelos democircnios
Os democircnios satildeo entatildeo reconceituados a partir de uma perspectiva cristatilde que toma por
base a tradiccedilatildeo judaica em intersecccedilatildeo com aspectos da cultura grega conforme analisou K
M Pope524 Sua imagem estaacute relacionada ao ldquopriacutencipe dos maus democircniosrdquo chamado de
ldquoserpente satanaacutes diabo ou caluniador Todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que
519 I221-2 520 I225-6 521 Cassius Dio (Hist Rom 56462 cf T Livio Histoacuteria de Roma (Ad urbe condita) I165-7) menciona a histoacuteria de que um senador e ex-pretor tinha jurado que ele tinha visto Augustus subindo aos ceacuteus Suetocircnio tambeacutem se refere a algo desse tipo Augustus 1004 Uma histoacuteria similar foi contada sobre Iulia Drusilla a irmatilde de Caliacutegula (Cassius Dio Hist Rom 59114) Secircneca zomba deste testemunho em Apocolocyntosis I 522 I231 523 I232 cf SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987 524 The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 52-53
105
o seguem seraacute enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de
antematildeo anunciada por Cristordquo525
Justino acredita ser possiacutevel demonstrar a veracidade da feacute cristatilde por meio do
cumprimento das Escrituras526 Ele explica que os profetas de Deus movidos pelo logos e sob
o Espiacuterito profeacutetico anunciaram antecipadamente os acontecimentos futuros Vem em
seguida uma seacuterie de ldquoprediccedilotildeesrdquo sobre a vinda de Cristo e sobre o que deveria acontecer tais
como a queda de Jerusaleacutem527 a cura das enfermidades e a morte de Cristo a ressurreiccedilatildeo dos
mortos e a prediccedilatildeo de Isaiacuteas528 sobre a expansatildeo para todas as naccedilotildees Ele tambeacutem procura
mostrar que ateacute o sofrimento e a humilhaccedilatildeo de Jesus estavam previstas nas profecias e que
ele chegou a ser abandonado ateacute pelos seus (I501ss) Seu raciociacutenio eacute o seguinte
Com efeito do mesmo modo que o acontecido antecipadamente anunciado por mais que natildeo tivesse sido compreendido aconteceu assim tambeacutem o que ainda falta para ser cumprido aconteceraacute por mais que natildeo se compreenda nem se creia Assim eacute que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo uma jaacute cumprida como homem desonrado e passiacutevel a segunda quando viraacute dos ceacuteus acompanhado de seu exeacutercito de anjos quando ressuscitaraacute tambeacutem os corpos de todos os homens que existiram revestiraacute de incorruptibilidade os que forem dignos e enviaraacute os iniacutequos com percepccedilatildeo eterna ao fogo eterno junto com os perversos democircnios (I521-3)
Com convicccedilatildeo sobre o cumprimento das profecias escreve ldquoDe fato por que motivo
haveriacuteamos de crer que um homem crucificado eacute o primogecircnito do Deus ingecircnito e que
julgaraacute todo o gecircnero humano se natildeo encontraacutessemos testemunhos sobre ele publicados
antes de ele ter nascido como homem e natildeo os viacutessemos literalmente cumpridosrdquo 529 E isso o
faz pensar que a apresentaccedilatildeo desse elevado nuacutemero de referecircncias a prediccedilotildees e seus
cumprimentos deveria razoavelmente convencer a seus leitores530
Os mitos dos pagatildeos satildeo comparados aos ldquoensinosrdquo cristatildeos sustentando que eles natildeo
apresentam nenhuma prova de sua veracidade Isso deveria demonstrar que foram ditos por
obra dos ldquodemocircnios perversosrdquo para enganar e extraviar o ldquogecircnero humanordquo Ouvindo os
profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens iacutempios seriam castigados atraveacutes do
fogo esses seres maleacutevolos teriam colocado agrave ldquofrente muitos que se disseram filhos de Zeus
crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo
como um conto de fada semelhante aos contados pelos poetasrdquo531 Assim eacute elencada uma
seacuterie de semelhanccedilas entre a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e a greco-romana para mostrar a distorccedilatildeo
525 I281 526 I301ss 527 I471ss 528 Is 651-15 520 529 I532 530 Justino escreve que seriam persuadidos os que ldquoamam a verdade que natildeo seguem a opiniatildeo nem se deixam dominar por suas paixotildeesrdquo (I5310-12) 531 I542
106
pagatilde que soacute podem ser identificadas atraveacutes de uma hermenecircutica bem peculiar532 As
comparaccedilotildees vatildeo desde o texto de Gn 4910-11 agrave vinha de Dioniso e sua ascensatildeo
semelhante agrave subida de Belerofonte montado no cavalo Peacutegaso ao ceacuteu o texto de Is 714 e a
lenda de Perseu Sl 186 e as narrativas sobre Heacutercules ateacute as ldquoprofeciasrdquo de curas a todas as
enfermidades e ressurreiccedilatildeo dos mortos533 ao mito de Ascleacutepio Mas a crucificaccedilatildeo eacute algo que
os pagatildeos natildeo poderiam imitar pois tudo ldquotudo o que se refere agrave cruz foi dito de forma
simboacutelicardquo534
Os judeus no entanto satildeo tidos como ignorantes sobre o cumprimento das profecias
de que Jesus deveria vir nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda
doenccedila toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e
crucificado que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus
que ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os
homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nele535
Ele recorre aos escritos do profeta Isaiacuteas536 para indicar que Cristo seria concebido por
uma virgem O logos eacute conceituado como o Filho a primeira virtude ou potecircncia depois de
Deus que eacute Pai e soberano de todas as coisas O logos entatildeo se tornou carne e nasceu homem
(I3210) Por Espiacuterito e forccedila que procede de Deus ele eacute reconhecido como o Logos que eacute o
primogecircnito de Deus O apologista sustenta que aqueles que profetizam satildeo inspirados pelo
logos divino
Em sua perspectiva os judeus detentores da tradiccedilatildeo e dos livros dos profetas poreacutem
aleacutem de natildeo reconhecerem a Cristo jaacute vindo tambeacutem odeiam aos cristatildeos Isso eacute destacado
na sua afirmaccedilatildeo de que na guerra dos judeus Bar Koseba o cabeccedila da rebeliatildeo mandava
submeter a terriacuteveis torturas somente os cristatildeos caso estes natildeo negassem e blasfemassem
Jesus Cristo (I316)
A mensagem cristatilde eacute um elemento apelativo que busca induzir os fieacuteis a uma conduta
diferente ldquoNoacutes que antes nos mataacutevamos mutuamente agora natildeo soacute natildeo fazemos guerra
contra os nossos inimigos mas tambeacutem por natildeo mentir nem enganar os juiacutezes que nos
interrogam morremos felizes de confessar a Cristordquo (I393) Justino considera ridiacuteculo que os
soldados que se arrolam e se alistam pusessem a lealdade para com o imperador ldquoacima de
sua proacutepria vida acima dos pais paacutetria e tudo o que lhes pertence embora nada de
532 BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 2009 pp 538-555 533 Is 355-6 Mt 115 534 I551 535 I317-8 536 Is 111-10
107
impereciacutevel lhes pudeacutesseis oferecerrdquo (I395) Por outro lado os cristatildeos que amam a
incorrupccedilatildeo suportam tudo a troco de receber daquele que confiam ter poder para lhes dar
(I395)
A superioridade do Deus judaico-cristatildeo sobre os deuses das outras naccedilotildees aparece
submetendo os demais deuses ao jugo dos ldquodemocircniosrdquo sob a sombra da ignoracircncia que esses
propagam Entretanto o Deus dos cristatildeos eacute o Deus que criou a racionalidade
Justino coloca que
no princiacutepio [Deus] criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma pedra Virtude e viacutecio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e iniquidade (I283-4)
Esse ser racional que Justino se refere eacute tambeacutem aquele cuja racionalidade pode ser ratificada
no reconhecimento e submissatildeo aos ensinos cristatildeos Haacute uma postura anti-estoica manifesta
em suas palavras que reduz o dogma do destino dessa corrente filosoacutefica a ldquoimpiedade e
iniquidaderdquo537
Ele sustenta que os cristatildeos aprenderam com os profetas que
os castigos e tormentos assim como as boas recompensas satildeo dadas a cada um conforme as suas obras Se natildeo fosse assim mas tudo acontecesse por destino natildeo haveria absolutamente livre-arbiacutetrio Com efeito se jaacute estaacute determinado que um seja bom e outro mau nem aquele merece elogio nem este vitupeacuterio Se o gecircnero humano natildeo tem poder de fugir por livre determinaccedilatildeo do que eacute vergonhoso e escolher o belo ele natildeo eacute irresponsaacutevel de nenhuma accedilatildeo que faccedila538 (I432-3)
Ele destaca que se por outro lado algueacutem
estivesse determinado [para] ser mau ou bom natildeo seria capaz de coisas contraacuterias nem mudaria com tanta frequumlecircncia Na realidade nem se poderia dizer que uns satildeo bons e outros maus desde o momento que afirmamos que o destino eacute a causa de bons e maus e que realiza coisas contraacuterias a si mesmo ou que se deveria tomar como verdade o que jaacute anteriormente insinuamos isto eacute que virtude e maldade satildeo puras palavras e que soacute por opiniatildeo se tem algo como bom ou mau Isso como demonstra a verdadeira razatildeo eacute o cuacutemulo da impiedade e da iniquidade (I436)
O ldquodestino iniludiacutevelrdquo reconhecido pelo apologista eacute que aqueles que escolheram o
bem tenham ldquodigna recompensardquo e os que escolheram o contraacuterio tenham igualmente ldquodigno
castigordquo (I437) Dentro do sistema de pensamento construiacutedo por Justino seria incoerente
com o sistema de controle social admitir que Deus tenha determinado as escolhas humanas
Nesse caso como ele escreve ldquonatildeo seria digno de recompensa e elogio pois natildeo teria
escolhido o bem por si mesmo mas nascido jaacute bom nem por ter sido mau seria castigado
537 avsebeia kai avdikia evsti I284 538 PLATAtildeO Repuacuteblica 617e
108
justamente pois natildeo o seria livremente mas por natildeo ter podido ser algo diferente do que foirdquo
(I438) Desse modo o apologista deixa clara sua oposiccedilatildeo ao estoicismo539
O pensamento de Justino sobre isso poderia ser resumido em ldquoDeus criou livres tanto
os anjos como o gecircnero humano e por isso receberam com justiccedila o castigo de seus pecados
no fogo eternordquo540 Tal alegaccedilatildeo estaria fundamentada na ideia de que tudo deve ser capaz de
viacutecio e de virtude pois ningueacutem seria digno de louvor se natildeo pudesse tambeacutem voltar-se para
um desses extremos541
Ele assume que esta doutrina foi ensinada pelo Espiacuterito profeacutetico que por meio de
Moiseacutes nos testemunha que falou ao primeiro homem que havia criado do seguinte modo
ldquoOlha que diante de tua face estaacute o bem e o mal escolhe o bemrdquo542 Ele cita tambeacutem Isaiacuteas543
e o proacuteprio Platatildeo544 ao dizer A culpa eacute de quem escolhe Deus natildeo tem culpa Justino
alega que Platatildeo falou isso por tecirc-lo tomado do profeta Moiseacutes desse modo ele diz que ldquopois
se sabe que este eacute mais antigo do que todos os escritores gregosrdquo (I441-8) Para explicar os
elementos semelhantes entre os escritos gregos e os judaico-cristatildeos o apologista alega que
tudo o que os filoacutesofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplaccedilatildeo das coisas celestes aproveitaram-se dos profetas natildeo soacute para poder entender mas tambeacutem para expressar isso Daiacute que parece haver em todos algo como germes de verdade Todavia demonstra-se que natildeo o entenderam exatamente pelo fato de que se contradizem uns aos outros (I449-10)
Deus conhece de antematildeo tudo o que seraacute feito por todos os homens e eacute decreto seu
recompensar cada um segundo o meacuterito de suas obras e por isso justamente prediz por meio
do Espiacuterito profeacutetico o que para cada um viraacute da parte dele conforme o que suas obras
mereccedilam545 Ele eacute aquele que constantemente conduz o gecircnero humano agrave reflexatildeo e agrave
lembranccedila demonstrando-lhe que cuida e usa de providecircncia para com os homens
Sobre a novidade da religiatildeo cristatilde Justino escreve ldquoAlguns sem motivo para rejeitar
o nosso ensinamento poderiam nos objetar que ao dizermos que Cristo nasceu somente haacute
cento e cinquumlenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio
Pilatos os homens que o precederam natildeo tecircm nenhuma responsabilidaderdquo (461) Ele entatildeo
responde
Noacutes recebemos o ensinamento de que Cristo eacute o primogecircnito de Deus e indicamos antes que ele eacute o Logos do qual todo o gecircnero humano participou Portanto aqueles
539 ldquohellipnoacutes dizemos que aconteceraacute a conflagraccedilatildeo universal mas natildeo como dizem os estoacuteicosrdquo II63 cf Alesandre de Aphrodisias On Fate 9 [17525] 540 II65 541 II66 542 Dt 301519 543 Is 116-20 544 Repuacuteblica X617e 545 I4411
109
que viveram conforme o Logos satildeo cristatildeos quando foram considerados ateus como sucedeu entre os gregos com Soacutecrates Heraacuteclito e outros semelhantes e entre os baacuterbaros com Abraatildeo Ananias Azarias e Misael e muitos outros cujos fatos e nomes omitimos agora pois seria longo enumerar De modo que tambeacutem os que antes viveram sem razatildeo [logos] se tornaram inuacuteteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razatildeo [logos] mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela satildeo cristatildeos e natildeo experimentam medo ou perturbaccedilatildeo O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma virgem pela virtude do Logos conforme o desiacutegnio de Deus Pai e soberano do universo e foi chamado Jesus e depois de crucificado e morto ressuscitou e subiu ao ceacuteu o leitor inteligente poderaacute perfeitamente compreendecirc-lo pelas longas explicaccedilotildees que foram dadas ateacute aqui (462-6)
O apologista usa de uma estrateacutegia semacircntica para literalmente ldquodar razatildeordquo agraves
doutrinas cristatildes
422 A razatildeo que julga
No mundo grego a palavra logoj jaacute assumira uma significacircncia para o pensamento
especulativo desde muito cedo Era um termo teacutecnico para as vaacuterias ldquociecircnciasrdquo que se
desenvolviam na Greacutecia do seacutec V aC A gramaacutetica a loacutegica a retoacuterica a psicologia a
metafiacutesica a teologia e a matemaacutetica deram-lhe sentidos diferentes ainda dentro do mesmo
campo da ciecircncia Seu campo semacircntico eacute vasto Pode significar razatildeo palavra discurso
menccedilatildeo declaraccedilatildeo afirmaccedilatildeo resposta promessa dito proveacuterbio ou maacutexima546 Alguns
destes significados podem parecer contraditoacuterios Ele eacute um termo comum que pode aparecer
em qualquer lugar Aparece nos textos de Homero Heroacutedoto Platatildeo Aristoacuteteles Tuciacutededes
Piacutendaro Aeschylus Xenoacutefanes Soacutefocles Aischines e outros547 mas eacute seu significado
filosoacutefico-religioso que importa A histoacuteria desse conceito eacute bastante complexa todavia eacute
suficiente abordar os principais aspectos do uso filosoacutefico-religioso do logoj
Justino sustenta que os gregos aprenderam muitos conceitos com as Escrituras
judaicas Segundo sua teoria Ptolomeu rei do Egito se preocupou em formar uma biblioteca
e nela reunir os escritos de todo o mundo tendo notiacutecia dessas profecias mandou uma
546 Significa ainda decisatildeo resoluccedilatildeo ordem proclamaccedilatildeo ensinamento doutrina parte de doutrina definiccedilatildeo hipoacutetese condiccedilatildeo pacto fama tradiccedilatildeo lenda reputaccedilatildeo boato opiniatildeo notiacutecia revelaccedilatildeo oraacuteculo resposta de oraacuteculo palavra revelada verbo assunto mateacuteria objeto questatildeo fato acontecimento coisa discurso frase prosa falar faculdade de falar e como logoj proforikoj discurso extriacutenseco palavra uso da palavra direito agrave palavra coloacutequio discussatildeo faacutebula narrativa imaginaacuteria lenda mito narrativa histoacuterica histoacuteria literatura conta caacutelculo soma explicaccedilatildeo avaliaccedilatildeo valor significado a razatildeo praacutetica (nouj especulativo) razatildeo divina personificada motivo causa fundamento justificaccedilatildeo plano projeto RUSCONI C (ed) DICIONAacuteRIO do grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 350 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001 547 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001
110
embaixada pedindo os livros dos judeus Ptolomeu providenciou que fossem traduzidos para o
grego Depois disso os livros permaneceram entre os egiacutepcios ateacute o presente e os judeus os
usam no mundo inteiro Assim os gregos teriam aprendido muitas coisas que teriam
ldquoenriquecidordquo seus mitos e pensamentos em geral548
Todavia foi Filon de Alexandria quem primeiro tomou as interrogaccedilotildees filosoacuteficas
estabelecendo correlaccedilotildees com os elementos da cultura religiosa judaica549 Era corrente no
judaiacutesmo a reflexatildeo sobre a ldquoPalavrardquo criadora e comunicadora da revelaccedilatildeo divina Mas foi o
contato com a cultura helecircnica e as proximidades semacircnticas ainda que muito limitadas entre
Escrituras judaicas e as palavras gregas que carregaram o teor filosoacutefico ou especulativo550
Conforme analisou Dax F P Nascimento551 eacute por intermeacutedio do Logos uma espeacutecie de
declaraccedilatildeo divina que se remete a si mesmo revelado que se obteacutem a educaccedilatildeo acerca da
verdade por meio da qual haacute o arrependimento ou conversatildeo dos prazeres e ciecircncias do
mundo sensiacutevel para a razatildeo e para a piedade
Entre os cristatildeos natildeo haacute evidecircncias de que a reflexatildeo sobre o logos tenha a princiacutepio
alguma conotaccedilatildeo filosoacutefica Teoacutelogos como R Bultmann552 G Kimmel553 O Culmann554
concordam que o logos mencionado no proacutelogo do Evangelho segundo Joatildeo eacute uma niacutetida
referecircncia agrave ldquoPalavrardquo comunicadora de Deus sobre a qual Fiacutelon refletiu Eacute possiacutevel que na
virada do I para o II seacuteculo a expansatildeo cristatilde comeccedilasse a exigir uma atenccedilatildeo maior tambeacutem
aos conceitos e questotildees pertinentes ao mundo greco-romano555
Com a conversatildeo de filoacutesofos como Atenaacutegoras Aristides e do proacuteprio Justino as
correlaccedilotildees entre essas correntes de pensamentos se manifestam principalmente na produccedilatildeo
apologeacutetica cristatilde556
Justino escreve que do logos que inspirou os profetas Platatildeo tomou o que disse sobre
Deus ter criado o mundo transformando uma mateacuteria informe557 Segundo Minns e Parvis558
548 I311-5 549 BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950 550 KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91 Cf COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp 1507-1562 551 O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia PUC Rio de Janeiro 2003 p 179 552 Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004 553 Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983 554 Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002 555 ARZANI A A teologia do logoj no Quarto Evangelho Orientador Dr Paulo Beniacutecio Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008 pp 52-60 556 Cf WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982 557 I591
111
suas comparaccedilotildees entre algumas passagens das Escrituras e dos textos de Platatildeo satildeo
interpretaccedilotildees difiacuteceis de serem compartilhadas pois apresentam uma hermenecircutica muito
particular e em alguns pontos chega a interpretar o platonismo segundo formas comuns ao
estoicismo Destacando os elementos semelhantes ao cristianismo e outras correntes de
pensamento Justino alega ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim
todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinasrdquo559 Mas esses pontos de contato satildeo
limitados Ele escreve que
natildeo satildeo totalmente semelhantes como tambeacutem as dos outros filoacutesofos os estoacuteicos por exemplo poetas e historiadores De fato cada um falou bem vendo o que tinha afinidade com ele pela parte que lhe coube do logos seminal divino Todavia eacute evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros natildeo alcanccedilaram uma ciecircncia infaliacutevel nem um conhecimento irrefutaacutevel Portanto tudo o que de bom foi dito por eles pertence a noacutes cristatildeos porque noacutes adoramos e amamos depois de Deus o logos que procede do mesmo Deus ingecircnito e inefaacutevel Ele por amor a noacutes se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curaacute-los Todos os escritores soacute puderam obscuramente ver a realidade graccedilas agrave semente do logos neles ingecircnita560
Enquanto algumas correlaccedilotildees entre o pensamento cristatildeo e a cultura greco-romana
satildeo fruto da accedilatildeo dos democircnios para causar confusatildeo uma porccedilatildeo do logos pode ser
identificada para aleacutem daqueles que deteacutem o logos pleno
Nesse sentido ele escreve
Sabemos que alguns que professaram a doutrina estoacuteica foram odiados e mortos Pelo menos na eacutetica eles se mostram moderados assim como os poetas em determinados pontos por causa da semente do Logos que se encontra ingecircnita em todo o gecircnero humano (II71)
Heraacuteclito que foi banido de Eacutefeso por causa de suas ideias e tambeacutem o filoacutesofo
Musonius que dentre outros que sofreram algum tipo de hostilidade nos tempos de Nero a
Vespasiano561 satildeo citados como exemplo Natildeo haacute nenhum motivo evidente para Justino
mencionar Heraacuteclito exceto pela sua teoria sobre o logos Quanto a Gaius Musonius Rufus
seu nome eacute lembrado pelo acento moral de sua filosofia de inspiraccedilatildeo estoica que o tornou
ridiacuteculo a muitos soldados562 Desse modo procura-se destacar que ldquoos democircnios sempre se
empenharam em tornar odiosos aqueles que de algum modo quiseram viver conforme o
Logos e fugir da maldade (II72)
O apologista ainda considera como uma investida dos democircnios a pena de morte
estabelecida contra aqueles que lessem os livros de Histaspes da Sibila e dos profetas a fim
558Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 236 559 I6010 560 II132-5 561 TACITO Histoacuterias III81 562 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 42
112
de impedir por meio do terror que os homens consigam lendo-os o conhecimento do bem e
retecirc-los como seus escravos563
Segundo o apologista muito mais odiado que aqueles que possuem o logos seminal
satildeo os que tecircm conhecimento e contemplaccedilatildeo do logos total Conforme suas proacuteprias
palavras ldquoO logos de Deus eacute seu Filho [] E tambeacutem se chama mensageiro e embaixador
porque ele anuncia o que se deve conhecer e eacute enviado para nos manifestar tudo o que o Pai
nos comunicardquo564 Sendo os cristatildeos os detentores do logos total e sendo o logos total aquele
que anuncia o que se deve conhecer para se proceder corretamente e receber a recompensa
futura tudo se resume agrave submissatildeo agraves ideias cristatildes565
A forma de controle empregada pelos romanos e que conduz os cristatildeos diante dos
tribunais satildeo pintadas como um sinal da ignoracircncia despreziacutevel daqueles que se submetem agrave
irracionalidade da obscuridade demoniacuteaca em exerciacutecio de uma falsa justiccedila
O julgamento segundo a ldquorazatildeordquo eacute o julgamento final estabelecido pelo Deus cristatildeo e
sobre o qual o apologista pretende convencer a todos ao seu redor566 Os democircnios no
entanto natildeo conseguem convencer de que natildeo haveraacute a conflagraccedilatildeo para castigar os iacutempios
do mesmo modo que natildeo conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu A uacutenica coisa
que conseguem eacute fazer com que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em
meio aos maus costumes entregues agraves suas paixotildees e seguindo a opiniatildeo vatilde procurem tirar a
vida dos cristatildeos e os odeiem Os cristatildeos por outro lado satildeo apresentados como aqueles que
por pura compaixatildeo por eles procuram persuadi-los a se converterem
Os maus haacutebitos dos deuses satildeo reprovados por essa medida cristatilde pois serviriam para
a corrupccedilatildeo dos que eram educados tendo em vista que muitos consideravam ldquobelordquo serem
imitadores dos deuses567 O apologista natildeo pode admitir que uma mente sensata aceite as
accedilotildees de Zeus e de Ganimedes como ldquodivinasrdquo (I215) Por isso ele relaciona a disseminaccedilatildeo
desses mitos agraves artimanhas dos democircnios que induzem os homens agrave imoralidade Em
oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo dos democircnios Justino sustenta que aos cristatildeos foi ensinado que soacute poderiam
alcanccedilar a imortalidade aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus assim como
tambeacutem se sustenta que seratildeo castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e
563 Cf Tacitus Annales II32 XII52 Historias I22 II62 Cassius Dio Hist Rom 57157-8 564 I634-5 565 Cf PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988 566 Cf KERESZTES P Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986 567 E um pensamento que estava relacionado aos epicureus pelo menos Philodemus Sobre a Piedade 71
113
natildeo se converteram (I216) Para os outros estaacute guardado o dia do juiacutezo descrito com grande
tormento em que se encontraratildeo os injustos568
A moralidade cristatilde eacute destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e
comentaacuterios ldquodisseminados entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso
seu discurso sobressalta o valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de
temperanccedila569 que crescia em nuacutemeros naquela eacutepoca Tambeacutem recebem destaques a doutrina
cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos necessitados e a ausecircncia de
valor da ostentaccedilatildeo570 Com o mesmo tom piedoso seguem as afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia
a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico571 Desse modo Justino contribui tambeacutem
para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos propondo uma identidade
coletiva
Um conceito estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que chama de equiacutevocos e mal
entendidos ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja satildeo combatidos Essa sua atitude revela que o
processo de construccedilatildeo da identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada
principalmente pela necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os
variados grupos cristatildeos572 Os outros grupos cristatildeos como o dos seguidores de Marciatildeo satildeo
tidos como instrumentos nas matildeos dos democircnios (I581) Seus discursos satildeo ldquoirracionaisrdquo e
satildeo presas de doutrinas ateiacutestas do democircnio573
Tendo em vista que as pessoas satildeo capazes de agir bem ou mal devido agrave liberdade
concedida por Deus considera-se que em todas as partes haacute tambeacutem os que ldquolegislaram e
filosofaram conforme a reta razatildeordquo ou aparte dela ao mandarem que se faccedilam algumas coisas
e se evitem outras574 A ldquoreta razatildeordquo agrave qual Justino se refere eacute aquela que deriva do Logos
cristatildeo que permeia a criaccedilatildeo revela a mensagem de Deus aos homens desde outros tempos
pelas Escrituras e no seacutec I pelo proacuteprio Cristo e que assim estabelece o padratildeo de conduta
aos que desejam a ldquorecompensa eternardquo Desse modo eacute identificado um padratildeo de justiccedila
baseado nas crenccedilas e valores cultivados pelos cristatildeos que estatildeo proacuteximos a Justino e que L
W Barnard575 chega a chamar de uma ldquoproto-ortodoxiardquo Natildeo eacute possiacutevel resumir ou descrever
568 Is 6624 569 I151-7 570 I141-919 571 I161-6 572 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 573 Avlla Avlogwj w`j upoacute Lukou arnej sunhrpasmenoi( bora Twn avqewn dogmatwn kai daiacutemonwn ginontai I582 574 II68 575 Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 1967
114
o conteuacutedo dessas crenccedilas e valores a partir da anaacutelise das Apologias sabe-se poreacutem que o
apologista se refere agrave forma de pensar dos cristatildeos que lhe satildeo proacuteximos e se distanciam do
modo de pensar por exemplo do grupo de Marciatildeo Helena e Menandro
Justino contempla tambeacutem as criacuteticas daqueles que segundo o seu parecer ldquose
consideram filoacutesofosrdquo e que alegariam que as ideias cristatildes sobre um julgamento universal
futuro ldquosatildeo apenas ruiacutedos espalhafatosos e alarmismosrdquo e diriam que a ameaccedila do castigo no
fogo eterno natildeo passa de um instrumento despreziacutevel para que a ldquohumanidade viva retamente
por medo e natildeo porque a virtude eacute bela e gratificanterdquo (II91) Haacute indiacutecios de que Chrysippus
de Solis dizia que Platatildeo errava em fazer do temor aos deuses um instrumento para a detenccedilatildeo
da injusticcedila e que o argumento do castigo divino natildeo eacute diferente das histoacuterias que as matildees
contam para assustar as criancinhas576 E ainda segundo Diogenes Laertius Crisipo
sustentava que a ldquovirtude [] eacute uma disposiccedilatildeo harmoniosa escolha digna para seu proacuteprio
bem e natildeo de esperanccedila medo ou qualquer outro motivo externordquo577 Em sua soluccedilatildeo Justino
toma emprestado o argumento de Alexandre de Afrodiacutesias578 que defendeu a responsabilidade
moral humana e diz ldquose isto natildeo eacute como dizemos entatildeo natildeo existe Deus ou se existe natildeo se
importa em nada com os homensrdquo579 Virtude e o viacutecio nada seriam e em consequecircncia nem
os legisladores castigariam com justiccedila os que transgridem as boas ordenaccedilotildees Segundo
Minns e Parvis580 a hipoacutetese de Deus natildeo se importar com os seres humanos parece refletir a
visatildeo estoica que estabelecia a teoria do bem e do mal ou virtude e infelicidade considerando
a proximidade com o universo natural e a administraccedilatildeo do mundo Assim quando
Chrysippus581 mantinha que a natureza universal e a administraccedilatildeo do mundo era o
fundamento da teoria estoica sobre o bem e o mal ele estava apelando agrave racional e
providencial atividade de deus cuja conformidade com o qual constitui o bem para o homem
e cuja carecircncia de conformidade constitui o mal
Todavia Justino pontua que os legisladores ldquonatildeo satildeo injustos e o Pai deles ensina
atraveacutes do Logos a fazer o que ele mesmo fazrdquo e neste sentido ldquonatildeo satildeo injustos os que
576 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1040b 577 Diogenes Laertius Vida dos filoacutesofos eminentes VII89 578 ldquopois se natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo e virtude e viacutecio eles argumentam tambeacutem natildeo haacuteacutelouvor ou reprovaccedilatildeo e sem estes natildeo haacute accedilotildees certas ou erradas e se natildeo haacute essas tambeacutem natildeo haacute virtude ou viacutecio e se natildeo haacute essas eles dizem natildeo haacute seque deuses Mas antes assim designadamente que natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo chega a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas vem a estar em concordacircncia com o destino como tem sido mostrado Desse modo a uacuteltima posiccedilatildeo segue tambeacutem mas isto eacute absurdo e impossiacutevel (Alexandre de Afrodisias De fato36) 579 II91 580 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 305 nota 1 581 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1035c-d
115
aderem a essas virtudesrdquo582 Assim o apologista constroacutei outro padratildeo ldquoracionalrdquo atraveacutes do
qual os juiacutezes deveriam julgar para natildeo serem julgados por Deus O novo fundamento da
justiccedila no cumprimento dos seus anseios apologeacuteticos se resume a deixar os cristatildeos em paz
pois segundo seu ponto de vista natildeo havia nenhuma evidecircncia de que os fieacuteis fossem inimigos
do Impeacuterio Ele busca convencer o Imperador e seus filhos a impedir que os governantes e
magistrados locais empreendam accedilotildees anticristatildes apontando as razotildees e a racionalidade cristatilde
43 O governo o controle e os governantes
Justino ndash nessas suas peticcedilotildees apologeticamente fundamentadas que tinham como
destinataacuterios especiais Antonino Pio e seus filhos583 reconhecidamente apreciadores da
filosofia ndash alega que natildeo havia nenhuma ldquorazatildeordquo [logos] para se perseguirem os cristatildeos pois
seria a proacutepria ldquorazatildeordquo [o Logos] quem exige que ldquoos amantes da piedade e da filosofiardquo584
natildeo faccedilam algo irracionalmente
No capiacutetulo anterior foi destacada a criacutetica de Justino sobre os governantes agora
poreacutem eacute oportuno notar o perfil do governante traccedilado pelo apologista dentro do seu
argumento da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem Segundo sua teoria os homens
revestidos de autoridade para governar natildeo devem valorizar nada aleacutem da ldquoverdaderdquo Aleacutem
disso a partir de sua inspiraccedilatildeo platocircnica nota-se sua exigecircncia agravequeles que satildeo ldquopiedosos e
filoacutesofosrdquo assim como satildeo chamados o Imperador e seus filhos que deveriam julgar com
retidatildeo para que todos gozem de bem estar Governar com retidatildeo eacute para Justino governar
segundo a ldquoreta razatildeordquo Esse conceito eacute cristianizado mas aleacutem disso um governante ideal
ldquosuperiorrdquo eacute reverenciado ldquoo logosrdquo A quem ele chama de ldquoo rei mais alto o governante
mais justo que conhecemos depois de Deus que o gerourdquo (I Apol 127) Manifesta-se um
jogo semioacutetico com a palavra logos ou razatildeo
582 II92 583 A I Apologia foi dirigida ao Imperador Antonino Pio e a seus filhos Veriacutessimo (Marco Aureacutelio) e Lucio Vero A II Apologia pode ser continuaccedilatildeo da primeira como sustentou C Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006) fragmentos de anotaccedilotildees de um segundo escrito que natildeo pode ser entregue quando Justino foi preso durante o iniacutecio do governo de Marco Aureacutelio por volta de 160 dC como sustentam Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 passim) A teoria mais tradicional eacute admitir que a II Apologia foi dirigida ao imperador Marco Aureacutelio mas como seraacute visto mais adiante haacute indiacutecios de que Justino tinha por destinataacuterios secundaacuterios todos os que pudessem ler o texto e se informar acerca da inocecircncia dos cristatildeos A soluccedilatildeo para a questatildeo dos destinataacuterios das Apologias exige uma investigaccedilatildeo agrave parte mas natildeo haacute duacutevidas de que Justino pretendia que se texto fosse conhecido por Antonino e seus filhos Marco e Lucio que desde cedo atuaram ao lado 584 I125
116
Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e recusem as
coisas maacutes e assim controlar os excessos humanos (I Apol 128) Do mesmo modo eacute o logos
quem deve orientar os governantes para que o bem ou a ldquosalvaccedilatildeordquo opere sobre o ldquogecircnero
humanordquo Por isso ele escreve ldquose os filoacutesofos e legisladores disseram e encontraram algo de
bom foi elaborado por eles pela investigaccedilatildeo e intuiccedilatildeo conforme a parte do logos que lhes
couberdquo585 Poreacutem por natildeo conheceram a integralidade do Logos que eacute Cristo ldquoeles
frequentemente se contradisseram uns aos outrosrdquo586 Aqueles que antes de Cristo tentaram
investigar e demonstrar as coisas pela razatildeo conforme as forccedilas humanas foram levados aos
tribunais como iacutempios e amigos de novidades Soacutecrates aparece como um exemplo que
ratifica a fala de Justino Segundo o apologista ele foi acusado ldquodos mesmos crimes que [os
cristatildeos]rdquo587 A condenaccedilatildeo seria em razatildeo da oposiccedilatildeo daquele filoacutesofo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica e
a outros poetas ensinando os homens a rejeitar ldquoos maus democircniosrdquo envolvidos com a
idolatria e ao mesmo tempo os exortando ao conhecimento de Deus para eles desconhecido
por meio de investigaccedilatildeo racional dizendo Natildeo eacute faacutecil encontrar o Pai e artiacutefice do universo
nem quando o tivermos encontrado eacute seguro dizecirc-lo a todos588 Todavia se ningueacutem deu
ouvidos a Soacutecrates ateacute que ele deu a sua vida por essa doutrina em Cristo acreditaram natildeo soacute
filoacutesofos e homens dos quais o proacuteprio Justino eacute um mas tambeacutem artesatildeos e pessoas
totalmente ignorantes que souberam desprezar a opiniatildeo o medo e a morte Justino pretende
assim apresentar o poder de abrangecircncia da mensagem cristatilde que deriva do Logos que em
parte foi conhecido por Soacutecrates pois como o apologista escreve ldquoele era e eacute o Logos que
estaacute em tudo e foi quem predisse o futuro atraveacutes dos profetas e feito de nossa natureza por
si mesmo nos ensinou essas coisasrdquo589
A partir desse tipo de comparaccedilatildeo retrata-se o caso que ocorreu sob Urbico na cidade
de Roma Eacute provaacutevel que outros casos como esse acontecessem em regiotildees diferentes590
Segundo Justino ldquoo fato eacute que em todas as partes haacute gente disposta a [] levar [os cristatildeos] agrave
morterdquo591 A reprovaccedilatildeo cristatilde das atitudes condenaacuteveis ou repreensiacuteveis de outras pessoas era
um dos motivos para que os cristatildeos fossem denunciados aos governantes ldquoendemoniadosrdquo592
Ele escreve especialmente sobre certa mulher cristatilde na eacutepoca do prefeito Urbico que
procurou persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e lhe 585 II102 586 II102 587 II105 588 II105-6 Citaccedilatildeo de Platatildeo Timeu 28c 589 II108 590 II11 591 II12 592 II13
117
anunciando o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme
a ldquoreta razatildeordquo Naquela ocasiatildeo a uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se
era cristatildeo Apoacutes confessar recebeu condenaccedilatildeo ao supliacutecio O mesmo aconteceu com Luacutecio
que tambeacutem advertiu a Urbico593 de que ele natildeo estava ldquojulgando de modo conveniente ao
imperador Pio nem ao Ceacutesar filoacutesofo nem ao filho de Ceacutesar amigo do saber nem ao sacro
Senadordquo (II216)
Justino procura persuadir o imperador seus filhos e demais autoridades a barrarem as
condenaccedilotildees dos cristatildeos num momento quando natildeo haacute indiacutecios do estabelecimento de uma
lei concreta sobre a puniccedilatildeo dos cristatildeos Em vaacuterias regiotildees e em situaccedilotildees variaacuteveis os atritos
ocasionados pela presenccedila e expansatildeo cristatilde ocasionavam denuacutencias tidas pelos proacuteprios
cristatildeos como ldquocaluniosasrdquo a respeito da nova religiatildeo As accedilotildees anticristatildes se refletiam
muitas vezes na busca por sua condenaccedilatildeo em discussotildees em praccedilas ou em denuacutencias
dirigidas aos magistrados Em meados do seacuteculo II as delaccedilotildees sobre os cristatildeos variavam
pois seus opositores procuravam brechas juriacutedicas para enquadraacute-los A superstitio cristatilde
poderia proporcionar o oacutedio de muitos que resistiam agraves suas implicaccedilotildees morais sociais ou
simplesmente religiosas Por isso as denuacutencias ou posicionamentos se contradiziam em
lugares e ocasiotildees diferentes Taacutecito identificou algumas flagitia nas praacuteticas religiosas cristatildes
ou nos comentaacuterios sobre elas mas essa natildeo foi a opiniatildeo de Pliacutenio Segundo que julgou os
cristatildeos dignos de condenaccedilatildeo somente pela contumaacutecia que apresentaram diante de um
magistrado Para outros deveriam ser rejeitados pelo seu ateiacutesmo Comer o corpo e o sangue
de Cristo tambeacutem poderia provocar suspeitas de canibalismo594
O apologista contrasta a imagem do ldquopiordquo e ldquosaacutebiordquo governante representada na figura
de Antonino e seus filhos agravequela do falso filoacutesofo ou seja aquele que estaacute contra a ldquorazatildeordquo A
sua morte em defesa da ldquorazatildeordquo cristatilde aparece como uma possiacutevel analogia a Soacutecrates
devido aos seus embates com Crescente em Roma O falso ldquofiloacutesofordquo eacute aquele que natildeo sabe
uma palavra sobre os cristatildeos mas os calunia publicamente como esses fossem ldquoateus e
iacutempiosrdquo595 Ele adapta a esse novo contexto Xenofonte596 que conta que em uma encruzilhada
vieram ao encontro de Heacuteracles597 a virtude e o viacutecio na forma de mulheres
O viacutecio estava vestido com roupas finas tinha rosto atraente e adornado com enfeites e disse a Heacuteracles que se ele a seguisse ela o faria viver sempre no prazer
593 II215 594 Cf MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 winter1994 pp 413-442 595 wj avlogoj kai avsebwn Cristianwn ontwn( (II82) 596 Memorabilia II121-34 597 Heraacutecles tambeacutem foi invocada por estoicos como exemplo de luta moral (Churniss em Plutarco De Communibbus Notitiis adversus stoicos 1065c em Moralia)
118
e enfeitado com o mais belo ornamento semelhante ao que ela usava Ao contraacuterio a virtude com rosto e veste severos lhe disse Se seguires a mim natildeo te enfeitarei com beleza ou adorno passageiro e corruptiacutevel mas com enfeites eternos e belos598
Semelhantemente Justino considera
estamos persuadidos de que alcanccedilam a felicidade todos aqueles que fazem dos bens aparentes e seguem o que parece duro e contra a razatildeo Porque a maldade veste as suas accedilotildees com as qualidades da virtude e do que eacute de fato bem remedando o incorruptiacutevel pois ela de si natildeo tem nada de incorruptiacutevel e nem eacute capaz de produzi-lo e torna escravos seus os homens que se arrastam pelo chatildeo atribuindo agrave virtude os males proacuteprios da maldade Contudo os que compreendem os bens verdadeiros proacuteprios da virtude tambeacutem se tornam incorruptiacuteveis pela virtude599
Desse modo Justino procura constranger o imperador a partir do seu argumento
apologeacutetico e do jogo semioacutetico em torno da ldquorazatildeordquo e da filosofia a ser favoraacutevel aos
cristatildeos pois natildeo seria de nenhum modo virtuoso combater ou permitir que sejam combatidos
aqueles que segundo seu ponto de vista tecircm muito a contribuir para a paz no Impeacuterio
A contribuiccedilatildeo da religiatildeo cristatilde eacute apresentada dentro do seu plano apologeacutetico que
busca convencer natildeo apenas dos efeitos positivos do caraacuteter de suas crenccedilas para a
manutenccedilatildeo da ordem mas tambeacutem na apresentaccedilatildeo de alguns pontos fundamentais do seu
conteuacutedo que rebatam as ldquocaluacuteniasrdquo dos acusadores e apresentem o seu aspecto ldquoracionalrdquo Ao
explicar alguns fundamentos da crenccedila cristatilde como o combate agrave idolatria eacute possiacutevel notar que
o apologista eacute sensiacutevel em sua anaacutelise agrave diversidade de ideias e crenccedilas que interagem e se
contradizem no Impeacuterio Essa contradiccedilatildeo aparece tambeacutem entre os intelectuais e as crenccedilas
do povo comum Segundo Paul Veyne600 ldquotodo erudito hesitava entre o ceticismo da alta
sociedade e o esoterismo cultivadordquo Isso leva Justino a formular um argumento que busque
apresentar os aspectos racionais das crenccedilas cristatildes ainda que isso se reduza a um jogo
semioacutetico e linguiacutestico em torno do logos De qualquer forma a religiatildeo cristatilde aparece como
uma opccedilatildeo de superaccedilatildeo tanto da religiatildeo pagatilde questionada pelos intelectuais em muitos
aspectos quanto como uma filosofia sublime ou superior601 que tem maior alcance e eficaacutecia
no controle das accedilotildees humanas602 Assim ele escreve ldquoem Cristo acreditaram natildeo soacute filoacutesofos
e homens cultos mas tambeacutem artesatildeos e pessoas totalmente ignorantes que souberam
598 II114-5 599 II116-8 600 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 280 601 ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Logos inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (II101) E tambeacutem ldquoas nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo (II152) 602 ldquoEntre noacutes tudo isso se pode ouvir e aprender ateacute daqueles que ignoram as formas das letras pessoas ignorantes e baacuterbaras de liacutengua mas saacutebias e fieacuteis de inteligecircncia e ateacute pessoas mutiladas e privadas de visatildeo De onde se pode entender que isso natildeo acontece pela sabedoria humana mas se diz que eacute pela forccedila de Deusrdquo (I6011)
119
desprezar a opiniatildeo o medo e a morte porque ele eacute a virtude do Pai inefaacutevel e natildeo um vaso
de humana razatildeordquo603
Apoacutes explicar os pontos fundamentais do pensamento cristatildeo Justino diz que ldquodaqui
por diante noacutes natildeo nos sentiremos irresponsaacuteveis mesmo que continueis increacutedulos pois o
que dependia de noacutes jaacute foi feito e chegou ao fimrdquo (558) Seguindo sua articulaccedilatildeo para
ratificar a fidelidade dos cristatildeos a Deus e ao Impeacuterio nota-se que o apologista faz uso do
proacuteprio efeito da doutrina cristatilde que sugere como instrumento de controle para persuadir o
imperador tambeacutem pelo possiacutevel temor Assim com um tom de advertecircncia ele escreve
[] se natildeo atendeis agraves nossas suacuteplicas nem esta exposiccedilatildeo puacuteblica que vos fazemos de todo o nosso modo de viver em nada ficaremos prejudicados pois cremos ou melhor estamos persuadidos de que cada um pagaraacute a pena conforme mereccedilam as suas obras pelo fogo eterno e que teraacute que prestar contas a Deus segundo as faculdades que recebeu do proacuteprio Deus conforme nos indicou Cristo dizendo A quem Deus deu mais mais seraacute exigido por Deusrdquo604 (I173-4)
Em outras palavras esse eacute um tipo de alerta ao imperador sobre a sua responsabilidade
diante de Deus devido a sua posiccedilatildeo de autoridade E como se deveria esperar de um
governante ldquopiordquo e ldquoamante da sabedoriardquo tal como foi idealizado no perfil construiacutedo por
Justino segundo sua leitura logocecircntrica Ou seja tendo a ideia do logos cristatildeo como
referecircncia o apologista escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da
verdade respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees
desprezai-as Natildeo decreteis poreacutem pena de morte como contra a inimigos contra aqueles
que nenhum crime cometemrdquo605 Sua peticcedilatildeo eacute seguida de outro alerta ldquoescatoloacutegicordquo ldquovos
avisamos de antematildeo que se vos obstinais em vossa iniquidade natildeo escapareis do futuro
julgamento de Deusrdquo606 Em outro ponto nesse mesmo sentido lecirc-se ldquose tambeacutem voacutes ledes
como inimigos estas nossas palavras aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis
fazer A noacutes isso nenhum dano causaraacute a voacutes poreacutem e a todos os que injustamente nos
odeiam e natildeo se convertem trar-vos-aacute castigo de fogo eternordquo (I456)
Aliada agrave ciecircncia dos benefiacutecios da religiatildeo cristatilde o apologista deixa claro o seu desejo
de que ldquotodos os homens de todo o mundordquo conheccedilam ldquoa verdaderdquo o que incluiacutea o imperador
e seus filhos Desses uacuteltimos deseja-se tambeacutem que julguem ldquocom justiccedila de acordo com [a]
piedade e filosofiardquo e que se possiacutevel publiquem esse escrito para o conhecimento de todos607
Natildeo eacute possiacutevel saber se as Apologias chegaram ateacute o imperador e eacute pouco provaacutevel
que ela tenha circulado amplamente conforme desejava Justino No entanto segundo Sara 603 II108 604 Fazendo menccedilatildeo a Lc 1248 605 I681 606 I681 607 II152
120
Parvis608 seu modo de escrever em defesa dos cristatildeos teria influenciado outros apologistas
As aproximaccedilotildees praticadas por esse pensador em sua manobra teoloacutegica buscam a conversatildeo
inclusive do imperador Em oposiccedilatildeo agrave forma controle que emerge dos clamores reativos
populares que estariam impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do nomen
Christianum o apologista acaba por formular uma reflexatildeo teoloacutegica da histoacuteria que
contempla a relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo Se por um lado estaacute a criacutetica agrave forma de
manutenccedilatildeo da ordem imposta pelos romanos que dava margem para que denuacutencias
decorrentes de atritos locais que conduziam os cristatildeos agrave morte por outro emerge a sua teoria
sobre a cooperaccedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo da sociedade devido ao caraacuteter de suas crenccedilas
Trata-se de um confronto de ideias cujos efeitos deveriam ser aguardados O modelo de
controle cristatildeo pode-se dizer eacute aquele que vem do alto ou de dentro Eacute fruto da assimilaccedilatildeo
da doutrina cristatilde que tem um Deus que zela pela justiccedila e pela moral e que exige uma
conduta impecaacutevel de todos os seus fieacuteis Os que creem e os que natildeo creem estatildeo sob a
condiccedilatildeo do seu juiacutezo O Deus cuja feacute os cristatildeos professam e procuram comunicar aos
demais natildeo tem nacionalidade Ele eacute o criador dos homens e da razatildeo [logos] Todo ser
humano recebeu uma semente dessa razatildeo mas os democircnios maleacutevolos satildeo os responsaacuteveis
por obscurecer o julgamento correto que conduz todo o genus humanus a uma vida reta justa
e virtuosa para a sua recompensa eterna Essa racionalidade humana eacute a responsaacutevel por fazer
com que os homens reconheccedilam e atentem para a mensagem pelo logos que revela Deus pelas
Escrituras ignoradas pelos judeus e examinas pelos cristatildeos Esse temor diante de Deus
entatildeo natildeo deveria ser rechaccedilado como uma superstitio despreziacutevel mas deveria ser acatada
como um mecanismo capaz de traduzir razoavelmente uma doutrina que agregue pontos de
aproximaccedilatildeo aos assuntos filosoacuteficos e a uma mensagem significativa para as pessoas sem
instruccedilatildeo Deve ser reconhecida natildeo como uma mensagem de odio humanus genus mas de
salvatio humanus genus609 sob o domiacutenio do Logos que se traduz na submissatildeo e conversatildeo
ao cristianismo
608 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 609 Isto eacute ldquosalvaccedilatildeo da humanidaderdquo
121
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A situaccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II era instaacutevel e
revelava condenaccedilotildees esporaacutedicas Gritarias e tumultos puacuteblicos agraves vezes pressionavam os
magistrados para que condenassem os cristatildeos sem que houvesse uma ideia clara sobre como
enquadraacute-los em uma lei comum Um pouco antes Adriano havia sido consultado por
governantes610 como Graniano sobre esses problemas Naquela eacutepoca o imperador
recomendou a Minuacutecio Fundano que examinasse de modo particular as denuacutencias formais e
que natildeo desse espaccedilo para a pressatildeo dos tumultos puacuteblicos
Ainda um pouco antes a forma como deviam ser conduzidos os processos contra os
cristatildeos despertava algumas duacutevidas em Pliacutenio Segundo no Ponto-Bitiacutenia A crenccedila cristatilde era
vista como uma superstitio cujo temor os faziam repudiar os deuses comuns o culto ao
Imperador e todos os aspectos da vida puacuteblica que apresentasse algum viacutenculo com outras
crenccedilas e com a ldquoimoralidaderdquo Esse afastamento das interaccedilotildees sociais e o desprezo pelos
deuses tradicionais causou a aversatildeo de muitos das camadas populares e a desconfianccedila das
autoridades A estranheza dessa superstitio favoreceu a disseminaccedilatildeo de caluacutenias como a de
que a celebraccedilatildeo da ceia fosse algum tipo de ritual antropofaacutegico e que as reuniotildees cristatildes
privadas constituiacuteam-se em orgias Desse modo o nonem christianum assumiu uma forte
conotaccedilatildeo negativa pelas regiotildees do Impeacuterio A condenaccedilatildeo dos membros dessa nova religiatildeo
tinha precedentes desde a culpa pelo incecircndio de Roma nos tempos de Nero embora nenhuma
evidecircncia concreta a uma lei que condenasse o crime de ldquocristianismordquo seja encontrada na
primeira metade do II seacuteculo Trajano ratificou o procedimento de Pliacutenio em condenar os
cristatildeos por confessarem-se ldquocristatildeosrdquo todavia essas condenaccedilotildees tinham caraacuteter
admoestativo para desestimular o crescimento do grupo As buscas ou perseguiccedilotildees de fato
natildeo deviam entrar em curso Visava-se minar o corpo estranho representado pelo grupo
antissocial dos cristatildeos da sociedade e garantir a sua reintegraccedilatildeo mediante o perdatildeo aos que
abandonassem a feacute Se para alguns como Taacutecito a superstitio incidia sobre flagitia para
outros como Pliacutenio nenhum flagitium era detectado provavelmente eram produto das
caluacutenias e rumores das massas
A religiatildeo e os deuses tinham diferentes conotaccedilotildees entre a classe letrada entre os
poetas e para o povo sem instruccedilatildeo Desde os tempos de Platatildeo e Soacutecrates a filosofia
610 Deve-se considerar que a ldquoCarta de Antonino ao conciacutelio da Aacutesiardquo citada por Euseacutebio na Histoacuteria Eclesiaacutestica IV131-8 estava correta
122
sustentou criacuteticas agrave religiatildeo tradicional No II seacuteculo dC a influecircncia do cultivo do saber e do
exerciacutecio filosoacutefico podia ser percebida nas correntes de pensamento tais como o estoicismo e
o neoplatonismo que aproximavam a religiatildeo da moral Justino recebeu educaccedilatildeo grega e
provavelmente era filho de um funcionaacuterio romano Priscus cuja famiacutelia pode ter atuado na
colonizaccedilatildeo de Flavia Neaacutepolis na Palestina De laacute partiu para sua jornada pelos caminhos da
filosofia ateacute conhecer as doutrinas cristatildes Como ldquofiloacutesofordquo eacute possiacutevel que sustentasse criacuteticas
agrave forma de pensar das pessoas comuns considerada expressatildeo de ldquoexcessos supersticiososrdquo
Na condiccedilatildeo de cristatildeo passou a pensar a religiatildeo a partir da filosofia Desse modo a feacute cristatilde
passou a representar em seu pensamento a ldquofilosofia verdadeirardquo e ldquodivinardquo Diante dos atritos
sofridos pelos cristatildeos em seu tempo recorreu ao poder da argumentaccedilatildeo e da conveniecircncia
da escrita para defender os cristatildeos da ldquoinjusticcedilardquo sofrida Em uma peticcedilatildeo apologeticamente
fundamenta escreveu a Antonino Pio e a seus filhos clamando para que os cristatildeos natildeo
fossem condenados apenas pela confissatildeo de ldquocristianismordquo Para alcanccedilar o favor do
imperador Justino procura desfazer a conotaccedilatildeo negativa em torno desse nomen christianum
por meio da explicaccedilatildeo dos principais toacutepicos das doutrinas cristatildes e da afirmaccedilatildeo da
submissatildeo dos cristatildeos
A partir da reflexatildeo sobre suas ideias compreende-se o paradoxo entre tipo de controle
social desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia a esses (ou seja
os cristatildeos) que satildeo tidos como ameaccedila agrave ordem e por outro lado o tipo de controle social
apontado nas Apologias que daacute razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos Justino tece uma criacutetica jaacute
conhecida sobre a imoralidade dos deuses pagatildeos Ele natildeo se sente nem um pouco intimidado
em sustentar que os deuses nada satildeo aleacutem de uma ilusatildeo criada pelos ldquomaus democircniosrdquo para o
desvirtuamento dos homens Os ldquomaus democircniosrdquo satildeo os responsaacuteveis pelo obscurecimento
de toda a ldquoverdaderdquo A ldquoverdaderdquo eacute o conhecimento superior que conduz a humanidade agrave
moralidade e eacute reconhecida pelo exerciacutecio da ldquorazatildeordquo A ldquorazatildeordquo eacute algo divino compartilhado
a todos os homens e encarnada na pessoa de Jesus Cristo o mestre dos cristatildeos Sua
encarnaccedilatildeo eacute o cumprimento das profecias das Escrituras sustentadas pelos judeus que por
natildeo a compreenderem corretamente natildeo satildeo capazes de reconhecer o cumprimento da
expectativa messiacircnica611 Por reconhecer mediante uma hermenecircutica que busca identificar
o maacuteximo de evidecircncias possiacuteveis sobre o cumprimento das Escrituras em Cristo612 o
611 ldquoExpectativa messiacircnicardquo expressatildeo teoloacutegica utilizada para se referir a esperanccedila de que o messias libertador de Israel chegaria conforme os profetas israelitas haviam predito 612 Tambeacutem chamada de ldquohermenecircutica cristocecircntricardquo ou no que se refere agrave comunicaccedilatildeo da mensagem divina pelo Logos uma ldquohermenecircutica logocecircntricardquo
123
cumprimento das profecias julga prudente reconhecer as advertecircncias divinas pelas escrituras
sobre o julgamento futuro
Justino desenvolve uma leitura teoloacutegica da histoacuteria contrastando o julgamento a que
satildeo submetidos os cristatildeos e o julgamento final de Deus O primeiro considerado um
julgamento ldquoirracionalrdquo e momentacircneo movido pela cegueira produzida pelos maus
democircnios enquanto o segundo eacute idealizado como um julgamento divinamente justo e eterno
A accedilatildeo dos primeiros governantes estaacute relacionada a uma preocupaccedilatildeo com a manutenccedilatildeo da
ordem que os leva a acatar as denuacutencias caluacutenias e mobilizaccedilotildees contra os cristatildeos Eacute um tipo
de controle social que emerge de baixo pela repulsa do povo por aqueles que representavam
uma ameaccedila a pax deorum devido agrave condenaccedilatildeo ao culto dos deuses Justino acredita que em
meio agrave variedade de ideias e crenccedilas que constituem o quadro social do Impeacuterio os cristatildeos
natildeo deveriam ser reprimidos pelas autoridades por pensarem diferente Desse modo ele se
empenha em mostrar as correlaccedilotildees existentes entre as coisas sustentadas pelos cristatildeos e
outros pontos da cultura greco-romana Enquanto algumas correlaccedilotildees satildeo consideradas
estrateacutegias do democircnio para enganar os homens outras satildeo consideradas a manifestaccedilatildeo da
accedilatildeo do logos que comunica a verdade quer seja pelo conhecimento que os gregos tiveram
pelas Escrituras judaicas ou pelo logos spermatikos comum ao gecircnero humano Tudo o que
foi dito escrito ou julgado corretamente segundo a razatildeo eacute considerado consonante com o
posicionamento dos cristatildeos Pois eacute a ldquorazatildeordquo ou logos que deve conduzir as accedilotildees humanas
para a salvaccedilatildeo Desse modo aleacutem de procurar investir as doutrinas cristatildes de aspectos
racionais Justino tambeacutem busca deixar claro que os cristatildeos natildeo satildeo nenhuma ameaccedila ao
Impeacuterio Os fieacuteis satildeo apresentados como os melhores cooperados do Impeacuterio na manutenccedilatildeo
da paz devido ao caraacuteter das suas doutrinas Contrastando em alguns pontos com o tipo de
controle exercido sobre os soldados que juram fidelidade sem esperarem algo duradouro em
troca Justino fala do tipo de controle que vem ldquodo altordquo A crenccedila no controle absoluto do
Deus cristatildeo eacute apresentada como uma alternativa para solapar a incoerecircncia manifestada na
reverecircncia a deuses tatildeo desregrados e impiedosos quanto aos seres humanos que natildeo
poderiam servir de exemplo de conduta Natildeo haacute muitos detalhes acerca da moralidade cristatilde
mas ela parece estar relacionada agrave moderaccedilatildeo a restriccedilotildees sexuais ao respeito agrave verdade e aos
outros Segundo essa crenccedila cristatilde toda pessoa eacute livre para escolher como deseja viver mas
um dia estaraacute diante do juiacutezo do Deus absoluto do qual ningueacutem pode esconder nada
Tambeacutem eacute nesse sentido que satildeo identificados os cristatildeos Os cristatildeos satildeo definidos como
praticantes de um ideal de vida a seguir fortemente caracterizado pelo moralismo estrito
124
Desse modo Justino acredita que a disseminaccedilatildeo das doutrinas cristatildes poderia servir para
controlar os excessos humanos e as injusticcedilas
Esse tipo de ferramenta de controle foi empregado inclusive para constranger o
imperador a ouvi-lo Aleacutem de considerar irracional desprezar a doutrina dos cristatildeos o
apologista faz uso dessa ferramenta de controle para destacar que a uacutenica coisa que os
romanos poderiam fazer pelos cristatildeos em sua oposiccedilatildeo era lhes tirar a vida algo que
ironicamente o apologista considera insignificante visto que todos um dia morreratildeo Todavia
sustentando que a vida natildeo termina no tuacutemulo Justino alerta que a injusticcedilas como essas
Deus retribuiraacute um dia o castigo eterno enquanto para os que satildeo piedosos e justos estaacute
guardada uma ldquorecompensa eternardquo
Talvez as Apologias de Justino nunca tenham chegado ao seu destinataacuterio
especificado E se chegaram natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que tenham surtido um efeito
positivo Justino morreu anos mais tarde Todavia seu martiacuterio nos tempos de Marco Aureacutelio
tornou-se inspiraccedilatildeo para outros escritores como Atenaacutegoras ou Teoacutefilo de Antioquia Ao
revelar uma relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo a partir das accedilotildees anticristatildes seus escritos
se tornam peccedila fundamental para se compreender como as suspeitas e caluacutenias que incidiam
sobre os cristatildeos despertaram pessoas como esse mestre para pensar a relaccedilatildeo entre a nova
religiatildeo e a estrutura social e poliacutetica existente Se em siacutentese o que suas Apologias
pretendiam de fato era a retirada dos empecilhos para a conversatildeo dos pagatildeos elas satildeo
tambeacutem a primeira manifestaccedilatildeo da ideia de que para proporcionar a conversatildeo dos ldquooutrosrdquo e
o abandono dos rituais religiosos que permeavam a vida puacuteblica e os eventos sociais no
Impeacuterio era preciso pensar a religiatildeo cristatilde como uma alternativa que oferecesse algum tipo
de vantagem social e poliacutetica
Quando se busca por exemplo compreender as vantagens identificadas pelos romanos
na autorizaccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no IV seacuteculo manifesta-se a necessidade de se
investigar sobre as raiacutezes da aproximaccedilatildeo entre religiatildeo cristatilde e o Impeacuterio Eacute pelo exame das
Apologias de Justino Maacutertir que se percebe que em grande medida tal aproximaccedilatildeo eacute fruto
da reflexatildeo apologeacutetica que procurar livrar os cristatildeos da condenaccedilatildeo das autoridades romanas
e ao mesmo tempo em sintonia com a orientaccedilatildeo missionaacuteria na propagaccedilatildeo da mensagem
cristatilde busca livrar os romanos da condenaccedilatildeo eterna de Deus por meio da conversatildeo A
condenaccedilatildeo do culto aos deuses pagatildeos e da religiatildeo ciacutevica associada agrave contumaacutecia cristatilde em
natildeo contradizer suas crenccedilas em funccedilatildeo das determinaccedilotildees romanas exigiu uma reflexatildeo
sobre a sua contribuiccedilatildeo social para o Impeacuterio que os isentasse da culpa de traiccedilatildeo falta de
civismo ou algum tipo de conspiraccedilatildeo do ldquoreino de Deusrdquo Ateacute meados do seacuteculo II as
125
acusaccedilotildees variavam em cada regiatildeo e um paralelo que proporcione uma anaacutelise entre cada
uma delas tambeacutem parece ser um tema digno de uma investigaccedilatildeo especiacutefica e um desafio que
ainda precisa ser encarado
126
REFEREcircNCIAS
Fontes principais
MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005
MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006
JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995
Referecircncas gerais
AGOSTINHO de Hipona A cidade de Deus Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2000
ALCINOOS Enseignement des doctrines de Platon Les Belles Lettres Paris 1990
APHRODISIAS Alexandre drsquo De fato ad Imperatores Ed Guilaume de Moerbek e Pierre Thillet Paris J Vrin 1963
APULEIO Lrsquoautodifesa (apologia di segrave e della magia) Ed Bruno Cassianelli Caserta Edizioni UTEM 1948
AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] vol29 n2 pp 341-356 2010 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019
ANDRESEN C Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft Berlin-New York v44 pp157-195 1952-1953
ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Walter de Gruyter und co Berliacuten 1955
ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris Librairie Alphonse Picard et Fils 1909
127
ARISTIDES Aelius Orationes In Aristides ex recensione Guilielmi Dindorfii Leipzig Weidmann 1829
ARZANI A A teologia do loacutegoj no Quarto Evangelho Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Escola Superior de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008
ATHENAGORAS A Plea for the Chrstians In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995
AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875
AYRES Lewis LOUTH Andrew YOUNG Francecircs M (org) The Cambridge history of early Christian life New York Cambridge 2007
BAGATTI B S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319
BARCELOgrave P Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002
BARNARD L W Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology v 22 n 2 pp 152-164 jun1969
________ Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967
BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 pp 30-50 1968
BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 pp 538-555 2009
BAUMGARTNER M Social control from below In D Black (ed) Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 Orlando Academic Press 1984
BAYET Jean La religion romaine histore politique et psychologique Paris Payot 1976
BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998
BENNET J Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005
BENOIcircT Simon Giudaismo e Cristianesimo una storia antica Bari Laterza 2005
128
BIBLIA Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50])
BIBLIA Sagrada ediccedilatildeo da CNBB 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2002
BLACK Donald The Behaviour of Law New York Academic Press 1976
_______ Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 New York Academic Press 1984
_______ Toward a General Theory of Social Control Selected Problems Vol 2 New York Academic Press 1984
BLANT E le Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373
_______ le Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373
BLUNT A W The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911
BOBICHON P lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 pp 157-158 2003
BOFFO Laura Iscrizioni greche e latine per lo Studio della Bibblia Brescia Paideia Editrice 1994
BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101
BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950
BRENT Allen A political history of Early Christianity London TampT Clark 2009
BUELL Denise K Why this new race ethnic reasoning in early Christianity New York Columbia University Press 2005
BULTMANN R Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004
BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985
BURNS Stacy Lee Ethnographies of law and social control Oxford Elsevier 2005
Carta a Diogneto In Padres Apologistas Satildeo Paulo Paulus 1995
CHADWICH H Early Christian Thought and the Classical Tradition Oxford Clarendon Press 2002
129
________ Introduction In ____ (Ed) Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi
________ Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 (v 47)
________ The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001
________ The gospel a Republication of the natural religion in Justin Martyr Illinois Classical Studies n 18 pp 237-247 1993
CLEMENT of Alexandria Protrepticus In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
________ Stromata In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832
CHROUST Anton-Hermann AristotleProtrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964
CICERO M Tullius De Natura Deorum Edited by O Plasberg Leipzig Teubner 1917 pp 136-137
_________ Tullius De Legibus Georges de Plinval (ed) Paris Belles Lettres 1959
CLARK Gillian Christianity and Roman Society Cambridge Cambridge University Press 2004
CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999
COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp1507-1562
COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985
COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987
COPETE Juan Manuel Corteacutes Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004
130
COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008
Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonnae E Webere 1832
CULMANN O Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002
CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938
DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000
DANIELOU J Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975
De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted- A Rejoinder Past and Present n27 pp28-33 1964
De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 pp6-38 1963
DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000
DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940
DIOGENES Laertius The life of the eminents philosophers Ed Robert Drew Hicks LondonNew York W HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1925
DION Cassius Histoire Romaine V 9 Editado por E Gros Paris Librairie de Firmin Didot Fregraveres Fil Et C Imprimeurs de LrsquoInstitut 1867
DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 p 24 2005
DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963
DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990
DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106
DURRY Marcel Durry Pline-le-juene Paris Le belle Lettre 1972 p 7071
131
ECK Werner The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 195-213
ENDSJO Dag Oistein Greek resurrection beliefs and the soccess of Christianity New York Palgrave Macmillan 2009
ESTRABAtildeO Geography London Heinemann 1949
EUSEBIO de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduzido por Wolfgang Fischer Satildeo Paulo Novo Seacuteculo 2002
EUSEBIUS Die Chronik des Hieronymus heraugegeben und in 2 Auflage bearbeitet von R Helm 3 unveraumlnderte Auflage mit einer Vorbemerkung von U Treu GCS 31 Berlin Akademie Verlag 1984
FARNELL R L Greek hero cult and ideas of immortality Oxford Carendon Press 1921
FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa
________ La relacioacuten entre razoacuten y revelacioacuten em la antropologiacutea de Justino Maacutertir Teologiacutea y Vida v LII pp 35-50 2011
FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006
FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967
FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012
FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11
GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52
GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995
GOFFMAN E Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006
__________ Relations in Public New York Basic Books 1971
GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946
132
GOODENOUGH E R Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923
GOODMAN R ROWLAND C Apologetics in the Roman Empire Oxford Oxford University Press 1999
GOODSPEED E Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914
GRABE J E SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703
__________ SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700
GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988
GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951
GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18--
HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010
__________ The appropriateness of the apologetical arguments of Justin Martyr Tesis submitted for the Master of Philosophy Australian Catholic University 2008
HARNACK A Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274
__________ Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882
__________ Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99
__________ The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962
HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844
HENTEN Jan Willem AVEMARIE Friedrich Martyrdom and noble death selected texts from Graeco-Roman Jewish and Christian Antiquity New York Routledge 2002
133
HIPPOLYTUS The refutation of all heresies Traduzido por Rev J H MacMahon In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 5 Fathers of the Third Century Hippolytus Cyprian Caius Novatian Appendix Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
Historiae Augustae v I text latin with english translation by David Magie London Harvard University Press 1921 (Loeb Classical Library)
HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885
HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897
HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931
HORWITZ E A The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990
HUNT Emily J Christianity in the second century a case of Tatian New York Routledge 2003
HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703
HYLDAHL N Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965)
Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998
INNES Martin Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003
Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386
Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355
IRINEO of Lyon Againt Heresies Traduzido por Rev Alexander Roberts e James Donaldson In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene Fathers v 1 The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
ISOCRATES Busiris with an English Translation in three volumes by George Norlin PhD LLD Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1980
JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 pp 131-159 jun1979
134
JEROME GENNADIUS Lives of illustrious men Traduzido por Ernest Cushing Richardson In SCHAFF Philip (ed) Nicene and Post-Nicene Fathers 2 v 3 Theodoret Jerome Gennadius amp Rufinus Historical Writings New York Grand Rapids MI Christian Literature Publishing Co Christian Classics Ethereal Library 1892
JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961
JOLY E MOORE D Corpus Inscriptionum Latinarum vol VI pars VII fasc IV Berolini De Gruyter p 4262
JOSEgravePHE F Contre Appion Trad Th Reinach Paris Les Belles Lettres 1930
JOSEPHUS Flavius Jewish antiquities books XVI-XVII (Loeb Classical Library) Translated by Ralph Marcus and Allen Wikgren New York Harvad Press 1963
JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991
JOUCE Cullan The seeds of dialogue in Justin Martyr Australian eJournal of Theology 7 jun2006
JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995
JUVENAL Satiras In Juvenal and Persius With An English Translation G G Ramsay London New York William Heinemann G P Putnams Son 1918
KEITH Graham Justin Martyr and religious exclusivism Tyndale Bulletin 431 pp 56-80 1992
KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945
KERESZTES P Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 pp 204-214 dec1964
_________ Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986
_________ Rome and Christians Church I ANRW II 23 1 pp 260 274ss (1979)
_________ The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965
KHORENATSrsquoI Moses History of Armenians Traduzido por Robert W Thomson Ann Arbor Caravan Books 2006
KIMMEL G Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983
135
KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91
KRUEGER Paul MOMMSEN Theodor (Ed) Corpus iuris civilis I Institutiones Dublin Weidmann 1920 passim
KRUumlGER G Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896
LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934
LACTANTIUS The divine institutes Washington Catholic University of America Press 1964
LEWIS Charlton Thomas KINGERY Hugh Macmaster (Ed) An elementary latin dictionary New York American Book Co 1918
LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940
_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999
_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001
LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 pp 2146-312 1986
LUCIAN De morte Peregrini In Works with an English Translation by A M Harmon Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1936
_______ Menippus In The Works of Lucian of Samosata Translated by Fowler H W and F G Oxford The Clarendon Press 1905
LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]
MACMULLEN Ramsay Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997
__________ Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966
__________ Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981
MAIR AW GR MAIR Callimachus Hymn and Epigrams Lycophron With an English Translation by AW Mair Revised Version Cambridge MA amp London Harvard University Press 2000
136
MARAN P TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius
MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005
_________ Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994
_________ Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997
_________ Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 (2) pp 322-335 1992
MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007
MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 pp 413-442 winter1994
MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology v 8 pp 35ndash55 1982
MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 161v
_________ (Org) Patrologiae cursus completus series latina Paris Garnier-Migne 1878 217v
MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 pp 392-399 1890
MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 pp 3-32 1953
MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956
MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975
MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006
137
__________ LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p
__________ Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995
NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002
NASCIMENTO DFP O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia Pontificia Universidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003
NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzene Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129
OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992
ORIGIN Against Celsus In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997
OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889
OTTO JCT von Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876
PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988
PARVIS Sara Justin Martyr and Apologetc Tradition In PARVIS Sara FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007
________ FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007
PAUSANIAS Description of Greece with an English Translation by WHS Jones LittD and HA Ormerod MA in 4 Volumes Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1918
PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998
PERION Joachin Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum
138
Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis
PERKINS Judith Roman Imperial Identities in the Early Christian Era New York Routledge 2009
PFAumlTTISCH Johannes M Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910
PLATO Apology In Plato in Twelve Volumes Vol 1 translated by Harold North Fowler Introduction by WRM Lamb Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1966
______ Republic In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903
______ Law In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903
PLINIUS Caecilius Secundus Gaius Lettres Paris Belle Lettres 1953
PLUTARCH Moralia with an English Translation by Frank Cole Babbitt Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1928
POLYBIUS The Histories V III Translated by W R Paton Cambridge MALondon Harvard University PressWilliam Heinemann LTD 1979
POPE M The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000
POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005
PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988
QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197
RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972
REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004
ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89
ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) Bible Work 5 Software 2002
139
ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995
ROHDE Erwin Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966
ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981
ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141
ROSS Robert C Superstitio The Classical Journal v 64 n 8 pp 354-358 mai1969
ROUCECK Joseph Social Control Westport CT Greenwood Press 1970
RUSCONI C DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005
RUSSELL D S The Method and Message of Jewish Apocalyptic Philadelphia Westminster Press 1964
SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961
SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958
SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 pp 190ss 1954
SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review N 82 p 72 Jan1982
SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004
SENECA Apocolocyntosis WHD Rouse MA Litt D London William Heinemann 1913
SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008
SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 pp 23-27 1964
___________ The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952
140
SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987
SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 p 412 setdez 2009
SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006
SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944
SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011
________ I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349
STARK Rodney Baindridge Religion deviance and social control New York Routledge 1996
SUETONIUS The lives of the CAESARS In ROLFE JC (ed) SUETONIUS v II LondonNew York William HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1928
SUETONII C T De Vita XII Caesarum Harvard Loeb Classical Library 1914
SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012
SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946
SYLBERG F TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953
TACITUS C Annais In Complete Works of Tacitus Edited by Alfred John Church William Jackson Brodribb Sara Bryant New York Random House Inc Random House Inc reprinted 1942
________ Historiae Ed Charles Dennis Fisher Clarendon Press Oxford 1911
TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984
TATIAN Address to the Greeks Traduzido por JE Ryland In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
141
TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899
TERTULLIAN Apology Traduzido por Rev S Thelwall In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
________ Apology With tradution of TRGlover In GOOLD G P TertullianMinucius Felix Cambridge MassachusettsLondon Harvard University PressWilliam Heinemann 1978 pp 112-113 (The Loeb Classical Library)
________ Against the Valentinians Traduzido por Dr Roberts In SCHAFF Philip MENZIES Allan (ed) Anti-nicene fathers v 3 Latin Christianity its Founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2006b
THIRLBY S Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722
TITUS Livius History of Rome Cambridge Mass Harvard University Press 1970
TUAN Yi-fu Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983
URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932
VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006
VALANTASIS Richard Demons Adversaries devils fishermen The Asceticism of authoritative teaching (NHLVI3) in context of Roman AscetismThe Journal of religion v 81 n 4 pp 549-565 out2001
VEYNE P Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197
VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009
XENOPHON Apology In ____ Xenophontis opera omnia 2nd ed Oxford Clarendon Press 1921
WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991
WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987
WHIGHT ED The History of Heaven New York Oxford University Press 2000
WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 pp 181-190 1975
142
WINDISCH Hans Die orakel des Hystaspes Amsterdam Koninklijke Akademie van Wetenschappen 1929
WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982
143
APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS
A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450
ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C
segundo a forma estabelecida por Otto613
O Parisinus Graecus 450 ndash A ndash eacute o mais antigo manuscrito das obras de Justino
consideradas autecircnticas Ele eacute descrito como um conjunto de 467 foacutelios de 285x215 cm
terminado em 11 de setembro de 1364 segundo seu colofatildeo (fol 461a)614 Presume-se que
tenha sido adquirido em Veneza por Guillaume Pellicier bispo de Montpellirer e embaixador
francecircs naquela cidade de 1539 a 1542615 Natildeo eacute possiacutevel saber onde o manuscrito esteve
entre 1364 e 1540 Miroslav Marcovich616 considera ateacute razoaacutevel a hipoacutetese de A ter sido
produzido na Mistra617 do Deacutespota Manuel Cantacuzenos O antigo imperador John VI
Cantacuzenos pai de Manuel teria vivido contente como monge ateacute seus uacuteltimos dias
conhecido como Joasaph Era um homem culto e interessado nos assuntos teoloacutegicos Esse foi
um periacuteodo de prosperidade cultural e material no despotado de Morea618 Minns e Davis
identificam outros pontos que contribuem razoavelmente para indicar um centro maior como
Mitra ou Constantinopla Os primeiros cinco foacutelios que introduzem a coleccedilatildeo das obras de
Justino no A satildeo extratos de Photius e Euseacutebio sobre esse apologista Especificamente no
primeiro foacutelio aparecem indiacutecios de que o texto foi copiado ou adaptado de outro exemplar
Isso levaria a crer que A foi escrito em um lugar onde fosse possiacutevel ter acesso a outros textos
que auxiliassem na adaptaccedilatildeo Ter acesso agraves relevantes passagens de Photius no seacuteculo XIV
pode ser considerado algo raro619
Outro manuscrito completo das Apologias eacute o Phillippicus 3081 chamado B A partir
da anaacutelise de Bobichon620 B eacute reconhecido como um apoacutegrafo de A Sua dataccedilatildeo eacute de 2 de
abril de 1541 e apresenta uma assinatura no nome de ldquoGeorgerdquo provavelmente Georgios
613 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 614 MINNS D PARVIS P Justin Philosopher and Martyr Apologies Oxford Oxfrod Press 2009 p 3 615 ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris 1909 616 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 Cf Id Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 2 1992 p 322-335 617 Apoacutes o ano de 1261 a cidade ao sul do Peloponeso teria passado por um periacuteodo de ascendente prosperidade No seacuteculo XIV tornou-se importante centro cultural que teria sido capaz de influenciar o Renascimento na Itaacutelia 618 NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzenos Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129 619 MINNS PARVIS Op cit p 5 620 lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 p 157-158
144
Kokolos que viveu em Veneza e trabalhou para Guillaume Pelicier621 Acredita-se que B
tenha pertencido sucessivamente a Pellicier Clausde Noulot du Val ao Coleacutegio Jesuiacuteta de
Clermont em Paris e com a expulsatildeo dos Jesuiacutetas da Franccedila agrave coleccedilatildeo de Meermann E entatildeo
passou para a coleccedilatildeo de Sir Thomas Phillipps622 dando origem ao seu nome Por alguns anos
esses escritos estiveram no depoacutesito da British Library identificado como ldquoLoan 3613rdquo mas
foi retirado e vendido ldquoby private treatyrdquo em Marccedilo de 2006623
O coacutedice Ottobonianus 274 chamado de C tambeacutem tem certo valor na tradiccedilatildeo
manuscrita das Apologias mesmo contendo apenas trecircs capiacutetulos das mesmas Minns e
Parvis624 Marcovich625 Otto626 Harnack627 Blunt628 e Munier629 concordam que sua
qualidade eacute bem inferior a de A Mas quando se trata de saber se C eacute paralelo e independente
de A ou se eacute simplesmente uma coacutepia as opiniotildees se dividem Harnack630 considerou-o um
escrito independente de A Blunt destacou que ele parecia representar uma tradiccedilatildeo diferente
de A Marcovich e Munier segundo Minns e Parvis contentaram-se em apontar o demeacuterito
do texto Sem dar muitos detalhes sobre tais caracteriacutesticas de C Minns e Parvis se
esforccedilaram para argumentar que se trata de uma coacutepia de A feita agraves pressas Uma hipoacutetese
razoaacutevel eacute a de que o trecho da I Apologia 65-67 teria sido copiado pelo escriba Giovanni
Onorio atuante no Vaticano e em outros lugares de Roma por nomeaccedilatildeo do papa Paulo III em
1535 ateacute sua morte em agosto de 1563631 O restante de C teve outros escritores de diferentes
datas632 Ainda segundo a anaacutelise de Minns e Parvis633 a junccedilatildeo da ediccedilatildeo de Petrus Nannius
do De Resurretione Mortuorum de Atenaacutegoras ao conjunto de escritos proacuteximos aos extratos
das Apologias aponta para uma data natildeo anterior a 1541 Semelhantemente a Legatio de
Atenaacutegoras impotildee uma data natildeo posterior a 1557 quando a edito princeps foi impressa por H
Stephanus A visatildeo de Justino sobre a eucaristia teria sido de grande interesse teoloacutegico no
621 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 6 Vide nota 14 622 Esta trajetoacuteria apontada por Minns e Parvis eacute traccedilada por Archambault (Op cit v I pp xxiv-xxviii) e sumarizada por Bobichon (Op cit p 160) 623 Conforme Minns e Parvis (Op cit p 6) indicam e o Newslatter of the Association for Manuscripts and Archives in Research Collectons 46 mai2006 p 13 atesta 624 Op cit p 6 625 Op cit p 7 626 Op cit p xxviii 627 Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882 628 The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911 p lii 629 Justin Apologie pour les Chreacutetiens Paris Les Eacuteditons du Cerf 2006 p 86 630 Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99 631 MINNS PARVIS Op cit p 7 Ele indaca tambeacutem RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972 632 Conforme mostram Minns e Parvis (Op cit p 7) 633 Ibid p 8
145
periacuteodo que antecedeu e aos redores do decreto da eucaristia na deacutecima terceira sessatildeo do
Conciacutelio de Trento em 11 de outubro de 1551 Esses trecircs capiacutetulos do texto de Justino teriam
sido citados por Thomas Cranmer e Stephen Gardiner em 1549 antes de aparecer a editio
princeps Uma data proacutexima a 1548 eacute sustentada para esses dois primeiros foacutelios de C
Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra Parallela634 e no Chronicon
Paschale635 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo menos que doze vezes Na
Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito passagens No Chronicon Paschale
aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4 Esse uacuteltimo deriva provavelmente da
tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)636
634 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 635 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 636 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 13
146
Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos
Agostinho de Hipona 86
Alexandre de Afrodiacutesias 113
Apuleio 24
Aristides 15 24 33 49 55 58 109
Ata do Martiacuterio de Justino 22
Atenaacutegoras 24 109 123 143
Carta a Diogneto 49
Cassius Dio 9 13 14 34 36 48 49 67 88 97 103 111
Chronicon Paschale 18 128 144
Chrysippus de Solis 113
Cicero 43 139
26 31 43 71 74 87
Clemente de Alexandria 74 97
Diogenes Laertius 113
Eacutelio Aristides 58
Estrabatildeo 94
Euseacutebio 18 19 22 23 30 31 32 33 34 40 44 45 48 49 50 53 54 56 57 58 68 69
120 142 144
Flaacutevio Josefo 24 80 93 129
Histoacuteria Augusta 9 48 51
Homero 92
Irineu de Lyon 21
Isoacutecrates 86
Jerocircnimo e Gennadius 21
Juvenal 74
Lactacircncio 97
Luciano 21 37 58 73 95
Meacuteliton de Sardes 24 45
Oraacuteculos de Histaspes 97
Oriacutegenes 95
Oroacutesio 60
147
Papyri Graecae Magicae 92
Pausacircnias 94
Platatildeo 11 24 26 27 28 29 67 78 86 87 91 92 93 94 95 97 98 107 108 109 113 115
120
Pliacutenio 9 14 26 35 36 37 38 39 40 41 42 44 46 47 52 53 55 62 76 77 79 116 120
Plutarco 73 86 91 94 95 96 113 116
Poliacutebio 86 87
Quadrato 15 24 33 49 55
Secircneca 26 72 103
Suetocircnio 13 37 44 103
Taciano 21 24 27
Taacutecito 13 14 26 34 37 44 49 88 97 116 120
Teoacutefilo de Antioquia 24 123
Tertuliano 9 12 21 27 34 35 45
Tito Liacutevio 9 74 75
Varratildeo 86
Xenofontes 24 26
148
Iacutendice remissivo
acusadores 30 56 88 125
Adriano 7 10 15 16 27 35 37 40 41
42 44 49 50 51 52 53 54 55 56 57
58 59 60 61 62 63 71 72 84 90
106 128 143
alma 24 46 81 93 98 99 101 102 104
105 114 125 137
Antonino Pio 7 10 15 16 26 33 59 60
61 62 64 121 129
antropofagia 39
asebeia 36
Aacutesia Menor 15 26 32 55 83
ateiacutesmo 30 38 56 62 84 107 124
avsebeia 38
Bar Koseba 112
24 51 52 55 136
boatos maliciosos 63
caluacutenias
caluacutenia 7 34 39 40 47 48 56 81 82
83 84 88 91 96 108 119 125 128
130 131
canibalismo 30 56 84 124
castigo 6 31 44 56 61 74 85 91 94 96
97 98 104 113 114 120 123 126
131
coercitio 37 44
cognitio extra ordinem 45
controle social 14 16 17 18 64 65 67
68 69 70 77 80 82 113 127 129
130 131 133
costumes judaicos
costume judaico 39
Crescente 23 26 29 34 63 124
crime 17 31 37 39 40 42 47 57 58 62
67 68 84 89 90 93 126 128 139
culto ao imperador
culto imperial 38 52 81
decreto 47 64 76 79 114 148
democircnios
democircnio 11 74 78 79 81 88 89 91
96 106 107 108 110 111 112 117
118 119 122 127 129 130
denuacutencias
denuacutencia 7 34 37 41 43 47 55 56
58 82 90 91 123 124 127 128
130
desordem social 17
destino 29 52 104 105 107 113 120
Domiciano 36 48
epicureus 100 102
escola peripateacutetica 22
escola platocircnica
platonismo 22
estigmas
estigma 84 88 89
estigmatizaccedilatildeo 11 74 83 87
estoicismo 22 114 117 129
estoicos 92 100 102 104 124
exclusivismo 74
fariseus
fariseu 99
149
filosofia 7 12 16 22 23 27 28 30 33
38 65 71 73 92 93 99 100 101 102
103 106 118 122 125 126 129
filosofia estoica 38
flagitia
flagitium 14 36 39 40 46 47 48 50
90 124 128
gecircnero apologeacutetico 10 25 28
Graniano 15 16 53 56 57 128
Hades 92 99 101 102
Helena 107 120
Heraacuteclito 103 115 117
hetaerias 41
Histapes 103
Homero 98 101 102 107 115
incesto 14 39 59 84
inferno 105
injusticcedilas
injusticcedila 15 47 91 131
institutum neronianum 12 15 36 37 48
ius coertionis 37 45 50
julgamento 7 23 28 30 35 36 42 45 55
58 86 106 118 120 126 127 130
justiccedila 11 29 30 31 64 70 71 74 82
90 91 97 98 106 114 118 120 121
126 127
laesea maiestatis 37 40 45
livre-arbiacutetrio 113
loacutegoj sperermatikoj 26
Logos
logos 12 26 73 109 110 112 115
116 117 118 120 121 122 123
125 127 130 133 142 143
Luacutecio Vero 33
maiestas 47 56
manutenccedilatildeo da ordem 7 10 11 15 16 17
64 70 71 92 95 96 122 125 127
130
Marciatildeo 24 119 120
Marco Aureacutelio
M Aureacutelio 10 16 33 35 48 59 60 62
63 72 73 121 131
Menandro 104 107 120
Minuacutecio Fundano 16 53 54 56 58 128
Moiseacutes 114
moral 15 61 66 87 91 92 94 96 118
121 124 127 129
moralidade 7 70 91 94 108 119 129
131
morte 16 24 29 42 52 62 63 70 72 78
82 83 85 89 90 91 96 97 98 99
100 101 102 104 105 111 118 123
124 125 126 127 144 147
neoplatonismo 129
Nero 12 36 47 48 50 77 83 117 128
Nerva 38
nome cristatildeo
nomen christianum 30
nomen christianum 7 43 47 50 55 57
129
nomen Christianum 84 95 127
opiniatildeo puacuteblica 39 50 59
Ottobonianus Graecus 274 9 19 146
Parisinus Graecus 450 5 9 19 24 146
pax deorum 13 39 46 62 65 66 76 130
perseguiccedilatildeo 7 8 13 15 35 36 37 47 53
59 62 64 66 83 88
150
perseguiccedilotildees 13 15 27 47 65 66 81 87
89 106 128
peticcedilatildeo
libellus 27 31 32 33 34 62 71 90
126 129
Phillipicus 3081 19 146
pitagoacuterico 22
preconceito 63 88
reino de Deus 6 74 91
religio licita 38 45 55
rescrito 16 27 33 40 43 53 54 55 56
57 58 60 61 62 90
rescrito de Adriano 54 57 61
ressurreiccedilatildeo 99 100 102 105 109 111
112 144
retoacuterica 10 26 27 29 72 115
revelaccedilatildeo 11 105 107 115 116
Rusticus 23
sacrifiacutecios
sacrifiacutecio 42 48 64 74 75 79 81
sacrilegium 37 40 45 47 50
saduceus
saduceu 99
senatus consultum 36 48
Sibila 103 118
Simatildeo Mago 24
Soacutecrates 9 25 28 29 30 73 97 101 115
122 124 129
superstitio 7 8 14 35 37 39 40 42 43
45 46 48 52 55 58 85 90 91 94
124 127 128
superstitiones 14 46 94 101 102
temor 40 62 92 93 94 97 105 107 120
126 127 128
Tibeacuterio 15 16 36 48 103 139
toleracircncia 17 35 37 42 47 129
Tolomeu 61
Trajano7 10 15 32 35 36 37 38 39 40
41 42 43 44 47 48 49 50 54 55 56
57 58 59 60 61 66 84 90 128 133
143
Tumultos
Tumulto 62
Urbico 16 34 35 61 63 84 85 123
verdade 22 23 26 28 29 30 31 65 70
74 78 83 88 90 106 108 110 111
113 114 116 119 122 126 129 130
Vespasiano 22 32 117
viacutecio 99 113 114 120 121 124
virtude 6 91 92 96 99 112 113 114
115 120 124 125
151
2
ALESSANDRO ARZANI
AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE
JUSTINO MAacuteRTIR
Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano
Orientadora Profordf Drordf Renata Lopes Biazotto Venturini
Maringaacute 2013
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria
3
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)
A797a Arzani Alessandro
As accedilotildees anticristatildes segundo as Apologias de Justino Maacutertir controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano Alessandro Arzani Maringaacute [sn] 2013
149p
Orientador Profordf Dra Renata Lopes Biazotto Venturini
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria ndash Universidade Estadual de Maringaacute
1 Histoacuteria do cristianismo 2 Perseguiccedilatildeo aos cristatildeos 3 Impeacuterio Romano 4 Justino Maacutertir I Venturini Renata Lopes Biazotto II Universidade Estadual de Maringaacute
Ficha Catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Mara R Colafatti - CRB 91272
4
ALESSANDRO ARZANI
AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE
JUSTINO MAacuteRTIR
Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
Profordf Drordf Monica Selvatici
Universidade Estadual de Londrina - UEL
Profordf Drordf Solange Ramos de Andrade
Universidade Estadual de Maringaacute - UEM
Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini
Universidade Estadual de Maringaacute - UEM
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria
5
Dedico este trabalho
ao senhor de todas as eras que natildeo pode ser submetido a qualquer estaticidade que se possa
imaginar no universo Ao que era desde o princiacutepio eacute agora e continuaraacute sendo
indefinidamente Ao que consola e agraves vezes oprime a qualquer que seja Ao que
cuidadosamente nos observa desde o primeiro instante de vida e que conta
cada batimento do nosso coraccedilatildeo Sem ele nossos dias natildeo poderiam
ser contados Dele depende o amanhatilde nossa existecircncia e nossa
histoacuteria Agravequele que acompanhou cada passo deste
desafio e que me fazia lembrar do valor de
cada instante Agravequele que muitos
simplesmente chamam de
ldquotempordquo
6
AGRADECIMENTOS
Agrave Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini minha querida orientadora pela confianccedila
incentivo amizade e paciecircncia durante essa jornada Eu confesso que nunca havia conhecido
algueacutem que carregasse em si de tal forma a franqueza e a doccedilura associadas ao rigor
acadecircmico como pude constatar em sua pessoa
Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) pelo
amparo financeiro para o desenvolvimento dessa pesquisa
Agrave Profordf Drordf Sara Parvis (University of Edinburgh) por sua gentileza em indicar
algumas informaccedilotildees importantes sobre o principal manuscrito das Apologias de Justino o
MS Parisinus Graecus 450
Agrave minha querida amiga Profordf Viviana L Felix (Universidad Catolica de Buenos
Aires) que generozamente compartilhou comigo artigos e momentos agradaacuteveis de fluecircncia de
ideias
Aos professores Drordm Mauro Pesce e Drordf Adriana Destro (Universitagrave di Bologna) pela
atenccedilatildeo em partilhar comigo algumas indicaccedilotildees bibliograacuteficas
Agraves professoras Drordf Maria Aparecida de Oliveria Silva (pesquisadora na UNESP-
Araraquara) e Drordf Giovanna Menci (Istituto Papirologico ldquoG Vitellirdquo dellrsquoUniversitagrave degli
Studi di Firenze) assim como tambeacutem ao nobre B Jobjorn Boman (Oumlrebro University) pelos
riquiacutessimos artigos compartilhados
Ao Profordm Me Deivid V Gaia (Universidade Federal de Pelotas) por haver gentilmente
compartilhado alguns documentos importantes conseguidos junto agrave Bibliothegraveque national de
France
Agraves professoras Drordf Monica Selvatici (Universidade Estadual de Londrina) e Drordf
Solange Ramos de Andrade (Universidade Estadual de Maringaacute) pelas ricas criacuteticas e
consideraccedilotildees que contribuiacuteram para o aprimoramento dessa pesquisa
Aos colegas Camila Santiago Luz Thiago Franccedila Thais Bassi Soares Profordm Drordm
Jaime Estevatildeo dos Reis e demais integrantes do Laboratoacuterio de Estudos Antigos e Medievais
(LEAM-UEM) pelo companheirismo e satisfaccedilatildeo proporcionada pela dedicaccedilatildeo conjunta aos
estudos histoacutericos
7
Ateacute voacutes apenas ouvindo que esperamos um reino logo supondes sem nenhuma averiguaccedilatildeo que se trata de
reino humano quando noacutes falamos do reino de Deus [] Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a
manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o
avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens
conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos os modos e se
adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos De fato aqueles que agora
por medo das leis e dos castigos por voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los porque
sabem que sois homens e que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutes se se inteirassem e se persuadissem de que
natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se
moderariam de todos os modos como voacutes mesmos haveis de convir
Justino Maacutertir I Apologia 111121
8
Resumo
A histoacuteria do cristianismo na primeira metade do II seacuteculo eacute marcada por atritos locais
denuacutencias em tribunais e caluacutenias que faziam do nome ldquocristatildeordquo um motivo de condenaccedilatildeo
Trajano Adriano e Antonino Pio fizeram suas recomendaccedilotildees aos governantes locais para
desestimular a expansatildeo da nova superstitio dos cristatildeos que demonstrava aversatildeo aos
deuses agraves tradiccedilotildees agraves celebraccedilotildees puacuteblicas e ao culto imperial Nenhuma perseguiccedilatildeo de
fato devia ser estabelecida denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas e os cristatildeos que
abandonassem a feacute deveriam ser perdoados os que se recusavam a abandonar a feacute eram
punidos com a pena capital segundo o julgamento de cada magistrado Nesse periacuteodo alguns
chamados apologistas produziram escritos em defesa dos fieacuteis Justino escreveu duas vezes
ao imperador Antonino e a seus filhos entre os anos de 154 e 161 Nas Apologias ele critica a
postura dos governantes por acatarem as caluacutenias das massas que acarretavam uma ideia
depreciativa ao nomen christianum A fidelidade cristatilde ao Impeacuterio eacute ratificada pelo
apologista que surpreende ao destacar a colaboraccedilatildeo dos fieacuteis na manutenccedilatildeo da ordem Por
meio desta pesquisa que tem por obejtivo analisar a relaccedilatildeo entre controle e religiatildeo a partir as
accedilotildees anticristatildes nesses escritos de Justino nota-se que esse tipo de accedilotildees foi fundamental
para que a funccedilatildeo social da religiatildeo dos cristatildeos fosse pensada no desenvolvimento desse
discurso apologeacutetico Nesse discurso procura-se justificar a rejeiccedilatildeo aos deuses e agrave
imoralidade por eles representada Atento agraves interrogaccedilotildees dos intelectuais e homens letrados
de sua eacutepoca satildeo destacados os aspectos tidos por ldquoirracionais e imoraisrdquo das crenccedilas pagatildes
enquanto a feacute cristatilde eacute apresentada em contornos racionais com o intuito de reconhececirc-la como
filosofia divina e superior agraves demais Nesse sentido a crenccedila num Deus absoluto justo e
onisciente aparece como um instrumento capaz de subter as pessoas agrave moralidade enquanto
aguardam a recompensa eterna e procuram se afastar da condenaccedilatildeo divina Eacute nesse momento
que a religiatildeo dos cristatildeos comeccedila a ser pensada como uma substituta agraves crenccedilas pagatildes
apontadas como incoerentes
Palavras-chave
Justino Maacutertir histoacuteria do cristianismo Impeacuterio Romano perseguiccedilatildeo aos cristatildeos
9
Abstract
The history of Christianity in the first half of the second century is marked by local clashes
accusations in court and slanders that made the name Christian reason for condemnation
Trajan Hadrian and Antoninus Pius made their recommendations to local governments to
discourage the expansion of new superstitio of the Christians who showed aversion to the
gods traditions public celebrations and the imperial cult No persecution in fact should have
been established anonymous reports should not have been accepted and if any Christian
abandoned the faith they should have been forgiven however those who refused to abandon
their faith were punished with the death penalty according to the judgment of each magistrate
During this period some Christians with high education produced writings in defense of their
faith Justin wrote twice to the Emperor Antoninus and his sons between the years 154 and
161 AD In ldquoApologiesrdquo he criticizes the attitudes of the rulers for accepting the slander of the
masses who were accusing the Christians The Christian fidelity to the Empire is ratified and
he highlights the collaboration of the faithful in the maintenance of order Through this
research on the relationship between religion and control as seen in the antichristian actions
reported in the writings of Justin it is noted that this type of action was essential to the social
function of the Christian religion to be thought in your apologetic discourse It seeks to justify
the condemnation of the gods and the immorality represented by them In attention to the
questions of intellectuals and men of letters of his age the irrational behaviors and immoral
aspects of the pagan beliefs are pointed by the apologist while the Christian faith is presented
in rational contours making it a divine philosophy and superior to the other In this sense the
Christian belief in an absolute God who is just and omniscient appears as an instrument with
the ability to teach and demand morality from its followers while they are awaiting the
eternal reward and actively trying to move away from divine condemnation It is then that
their religion begins to be thought of as a substitute for pagan beliefs which are pointed out as
incoherent with the order in the Empire
Key-words
Justin Martyr History of Christianity Roman Empire persecution of Christians
10
LISTA DE ABREVIATURAS
Hist Ecles Histoacuteria Eclesiaacutestica
Diaacutel Diaacutelogo com Trifatildeo
I Apol Primeira Apologia de Justino
II Apol Segunda Apologia de Justino
A Manuscrito Parisinus Graecus 450
B Manuscrito Phillipicus
C Manuscrito Ottobonianus Graecus 274
IGRR Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes
Apolog Apologeticus de Tertuliano
Hist Rom Histoacuteria Romana de Cassius Dio
Hist Aug Histoacuteria Augusta
ApS Apologia de Soacutecrates
PIR Prosopografia Imperii Romani
Ep Epiacutestolas de Pliacutenio
Hist Roma Histoacuteria de Roma de Tito Liacutevio
ANRW Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt
ZKG Zeitschrift fuumlr Kirchengeschichte
Ant Jud Antiguidades Judaicas
Guer Jud Guerras Judaicas
11
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 12
CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS 18
11 As principais ediccedilotildees das Apologias 18
12 A questatildeo da autoria Justino 22
13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino 25
131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica 26
132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino 27
14 Destinataacuterios 31
CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS 34
21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano 35
22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano 49
23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos 57
CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE
MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM 62
31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem 67
32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus 71
33 Sobre as leis e imoralidades 85
CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM
SOCIAL 91
41 O controle absoluto do controlador absoluto 91
42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde 100
421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios 102
422 A razatildeo que julga 109
43 O governo o controle e os governantes 115
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 121
REFEREcircNCIAS 126
APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS 143
Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos 146
Iacutendice remissivo 148
12
INTRODUCcedilAtildeO
Este que no dia 1 de junho eacute reverenciado pelas Igrejas Catoacutelica Ortodoxa Oriental e
Anglicana tem a apresentar um testemunho que vai aleacutem do seu martiacuterio Seus escritos
oferecem pistas importantes para o entendimento da condiccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no
Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II Muitos como o Papa Bento XVI o tecircm chamado
de ldquoo mais importante dos padres apologistas do segundo seacuteculordquo1 Poreacutem o que esta
pesquisa iraacute mostrar eacute que os escritos atribuiacutedos a esse ldquofiloacutesofo cristatildeordquo apresentam acima de
tudo os primeiros indiacutecios de uma efetiva reflexatildeo histoacuterico-teoloacutegica sobre a funccedilatildeo do
cristianismo na organizaccedilatildeo social
Dentre as pesquisas do seacuteculo XX sobre Justino recebe destaque primeiramente o
trabalho de Johannes M Pfaumlttisch2 em 1910 a respeito da influecircncia do pensamento de
Platatildeo sobre esse apologista Em 1923 foi publicada a obra de E R Goodenough3 que
apresentava uma sistematizaccedilatildeo do pensamento teoloacutegico desse que segundo seu ponto de
vista fazia jus ao nome de ldquomaacutertirrdquo ou seja algueacutem ldquoque daacute testemunhordquo mas que em
contrapartida estava longe de merecer o tiacutetulo de ldquofiloacutesofordquo Poucos anos mais tarde
destoando em alguns aspectos do pensamento de Goodenough empreendeu C Andresen4
uma anaacutelise sublinhando os traccedilos filosoacuteficos dos escritos de Justino em comparaccedilatildeo ao
meacutedio-platonismo que tinha um espaccedilo significativo no pano de fundo intelectual do II
seacuteculo dC A problemaacutetica da relaccedilatildeo entre as doutrinas cristatildes ganhou reforccedilo com a defesa
da tese de N Hyldahl5 em 1965 Na mesma deacutecada de 1960 eacute Lislie W Barnard6 quem
intersecciona os aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos e as ideias sobre o judaiacutesmo representados
nos escritos de Justino Aleacutem dos interesses teoloacutegico-filosoacuteficos em torno desses escritos haacute
tambeacutem uma busca por elementos que auxiliem a compreender a condiccedilatildeo dos cristatildeos no
1 PAPA BENTO XVI Audiecircncia geral Praccedila de Satildeo Pedro Vaticano 21 de marccedilo de 2007 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherbenedict_xviaudiences2007documentshf_ben-xvi_aud_20070321_pohtml acesso em 20 de dezembro de 2011 2 Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910 3 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 4 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf tambeacutem ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Berliacuten Walter de Gruyter und co 1955 5 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 6 Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967 cf tambeacutem id Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology V 22 n 2 jun1969 pp 152-164
13
Impeacuterio em meados do seacuteculo II Nesse sentido os escritos de Justino tecircm muito a contribuir
tanto para se pensar a influecircncia da cultura greco-romana sobre as ideias cristatildes quanto sobre
as accedilotildees anticristatildes
As conferecircncias de Henry Chadwich7 na The John Rylands Library em 1965
chamavam a atenccedilatildeo para a inter-relaccedilatildeo entre a filosofia e a teologia nascente percebidas nas
estrateacutegias de defesa argumentativa apresentadas por Justino contra a opressatildeo sobre os
cristatildeos Mas por que os cristatildeos foram perseguidos
As hipoacuteteses tecircm girado em torno de uma lei especial contra os cristatildeos instituiacuteda por
Nero institutum neronianum como chamou Tertuliano8 ou pelo enquadramento em crimes
comuns como maiestas ou pela livre accedilatildeo dos magistrados para manter a ordem ius
coertiones9 Na deacutecada de 1950 receberam destaque os trabalhos de Henry Gregoire10 A N
Sherwin-White11 e J Moreau12 Na deacutecada seguinte Geoffrey E M de Ste Croix13
estabeleceu um debate com Sherwin-White14 sobre essa questatildeo
GEM de Ste Croix sustentava que as perseguiccedilotildees aos cristatildeos baseavam-se na
recusa em reconhecer os deuses de Roma comportamento que era frequentemente
considerado perigoso e sedicioso Os deuses tradicionais do panteatildeo greco-romano eram as
divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma que exigiam culto para a estabilidade da
pax deorum15 Por essa perspectiva Ste Croix propunha que a perseguiccedilatildeo se relacionava ao
sentimento religioso da eacutepoca16 AN Sherwin-White por outro lado defendeu que as
perseguiccedilotildees aos cristatildeos natildeo se baseavam na questatildeo do rompimento da pax deorum mas na
aguda obstinaccedilatildeo dos cristatildeos em natildeo cometer apostasia nem sacrificar para os deuses do
Impeacuterio17 Tal postura dos cristatildeos desafiava as autoridades romanas e representavam uma
grave insubordinaccedilatildeo GEM Ste Croix deu uma treacuteplica a essa questatildeo em 196418 mas essa
problemaacutetica tem despertado pesquisadores ateacute hoje19
7 Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 8 Ad Nationis I78 9 BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 1968 pp 30-50 10 Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 1111 The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952 p 199 12 La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 13 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 pp 6-38 14 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 15 De Ste CROIX GEM Op cit 1963 p 24 16 Ste CROIX GEM Op cit 1963 pp 29-31 17 SHERWIN-WHITE AN Op cit 1964 pp 25 18 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 19 Cf BARNES Timothy D Constantine and Eusebius Cambridge MA Harvard University Press 1981 MacMULLEN Ramsay Christianizing the Roman Empire (AD 100-400) New HavenLondon Yale
14
A proclamaccedilatildeo cristatilde no I e II seacuteculos causava tanto conversotildees quanto reaccedilotildees
adversas entre os pagatildeos20 A religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio Romano era presente na vida dos
povos 21 Relembrando Marcel Simon e Andreacute Benoicirct22 eacute justo admitir que com a refutaccedilatildeo
de todos os compromissos e a sustentaccedilatildeo intransigente do monoteiacutesmo a Igreja parecia um
corpo estranho aos pagatildeos Distanciando-se dos eventos puacuteblicos normalmente envolvidos
com a idolatria condenada pela Igreja rejeitando o serviccedilo militar os jogos e as celebraccedilotildees
artiacutesticas os cristatildeos se autoexpunham agrave marginalizaccedilatildeo da sociedade
Entre o povo ou entre os intelectuais os cristatildeos eram vistos com estranheza ou
desconfianccedila23 Assim como foram caracterizados os judeus podia-se pensar que os cristatildeos
apresentavam um odio humani generis24 em parte devido aos comentaacuterios depreciativos que
se espalhavam entre o povo Foram caracterizados por Taacutecito como membros de uma
destrutiacutevel superstitio25 oriunda da Judeia Suetocircnio se referiu a eles como ldquoraccedila de homens de
uma superstitio nova e maleacuteficardquo26 As acusaccedilotildees ou suspeitas poderiam girar em torno de
delitos ou coisas consideradas repulsivas como infanticiacutedio incesto assembleias ilegais
introduccedilatildeo de cultos iliacutecitos e mais especialmente traiccedilatildeo sendo esta uacuteltima caracterizada pela
recusa em adorar a divindade do imperador27
As superstitiones e os cultos locais eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob
atenccedilatildeo Como destacam Mary Beard John North e Simon Price28 as controveacutersias poderiam
desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito
em 172 e 173 aC29 na incursatildeo da Traacutecia que foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que
University Press 1984 DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000 DRAKE Harold Allen Constantine and the Bishops the politics of intolerance BaltimoreLondon John Hopkins University Press 1999 CLARK Gillian Christianity and the Roman Society Cambridge Cambridge University press 2004 CHADWICK Henry The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001 FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006 20 GOODMAN Martin Mission and conversion proselytizing in the religous history of the Roman Empire Clarendon Press Oxford University Press 1994 p 12 21 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 Cf BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35 22 SIMON M BENOIcircT A Giudaismo e Cristianesimo una storia antica RomaBari LaterzaFigli Spa 2005 p 12 23 ldquoaqueles que por suas abominaccedilotildees eram mal vistosrdquo [quos per flagitia invisos] Taacutecito Annales 1544 24 ldquooacutedio agrave humanidaderdquo Ibid 25 exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo] Annales 1544 26 genus hominum superstitionis novae ac maleficae De Vita XII Caesarum Vita Neronis 162 27 MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 28 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 29 Cassius Dio Hist Rom LXXII4
15
conseguiu seguidores30 entre os druidas incitados por profecias sobre o fim de Roma da
Gaacutelia31 e nas revoltas judaicas do I e II seacuteculos dC Embora existisse um niacutevel significativo
de liberdades religiosa e individual os grupos e assembleias ficavam sob atenccedilatildeo das
autoridades Os baacutequicos os astroacutelogos e maacutegicos o culto de Iacutesis e a crenccedila dos druidas
tambeacutem enfrentaram a obstruccedilatildeo romana32
Paul Veyne faz diferenciaccedilatildeo entre os interesses dos homens letrados e das autoridades
preocupadas com a manutenccedilatildeo da ordem e o interesse da populaccedilatildeo pagatilde em geral Em sua
percepccedilatildeo a atitude de criacutetica dos romanos frente agraves comunidades cristatildes manifestava a
repulsa ao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguo33 Desse modo a rejeiccedilatildeo ao novo grupo religioso
do oriente deveria envolver um problema identitaacuterio tambeacutem relacionado agrave dificuldade de se
assimilar um grupo dotado de particularidades que pretendiam a superioridade diante dos
estabelecidos Justino tambeacutem sustenta uma tese em torno da questatildeo do ldquopor que os cristatildeos
eram perseguidosrdquo esforccedilando-se em convencer os romanos sobre as ldquoinjusticcedilasrdquo cometidas
contra os cristatildeos
Embora natildeo exista um consenso sobre o iniacutecio das perseguiccedilotildees no I seacuteculo34 eacute certo
que o estilo de vida e o conteuacutedo das crenccedilas cristatildes natildeo agradavam a muitos o que
culminava na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados
Natildeo haacute sinais de uma perseguiccedilatildeo generalizada no iniacutecio do II seacuteculo mas apareciam
atritos locais que por vezes culminavam na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados ou agredidos
pelo povo Pliacutenio Segundo natildeo sabia ao certo como proceder nos processos que julgavam os
cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia e chegou a pedir a orientaccedilatildeo de Trajano35 Sob Adriano36 o
governador da Aacutesia Menor Graniano tambeacutem levantou questotildees sobre esses processos
30 Cassius Dio Hist Rom LI255 LIV345-7 31 Taacutecito Historias IV546165 V2224 32 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 Cf AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 33 VEYNE Paul Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 pp 245-246 34 Marta Sordi (I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 15-29) por exemplo sustenta a tese de que a resposta negativa do Senado ao pedido de Tibeacuterio sobre o reconhecimento de Cristo entre os deuses oficiais teria tornado a feacute cristatilde em uma religio illicta Paul Keresztes defende que foi o institutum neronianum que primeiramente comprometeu a legalidade do grupo dos cristatildeos (Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214) 35 Governou de 98 a 117 dC 36 Governou de 117 a 138 dC
16
Nesse periacuteodo Quadrato e Aristides tambeacutem escreveram ao imperador em defesa dos cristatildeos
mas a situaccedilatildeo continuou a mesma sob o governo de Antonino Pio37
Justino que havia nascido em Flaacutevia Neaacutepolis38 atual Nablus uma cidade na antiga
regiatildeo da Samaria filho de pai latino e de um avocirc com nome grego estudou filosofia mas se
converteu ao cristianismo e se pocircs em defesa da feacute39 Escreveu suas Apologias entre os anos
de 154 e 161 aproximadamente em defesa dos cristatildeos levados aos tribunais e entatildeo
condenados agrave morte Aleacutem da previsatildeo de seu proacuteprio martiacuterio o apologista retrata ainda um
caso especiacutefico que ocorreu sob Urbico em Roma Seu discurso busca convencer o imperador
Antonino Pio40 de que os cristatildeos natildeo representavam nenhum tipo de ameaccedila e que seria
segundo seu ponto de vista uma grande injusticcedila condenar agrave morte aqueles que eram
colaboradores ldquoda pazrdquo no Impeacuterio41 Os problemas penais e de outros caraacuteteres juriacutedicos
abordados por Justino e comuns ao governo de Antonino Pio foram uma vez analisados por
Paul Keresztes42 que destacou a estrateacutegia desse apologista de interpretar o rescrito43 de
Adriano a Minuacutecio Fundano Todavia as Apologias desse pensador cristatildeo desafiam a
compreensatildeo de um capiacutetulo intrigante da histoacuteria das ideias religiosas cristatildes como esse
discurso em defesa dos cristatildeos apresenta em meio agraves proposiccedilotildees teoloacutegico-filosoacuteficas que
permeiam o texto uma leitura das accedilotildees anticristatildes conjuguando controle social e religiatildeo na
reprovaccedilatildeo da coaccedilatildeo imposta por Roma sobre os cristatildeos e na indicaccedilatildeo da funccedilatildeo
reguladora da religiatildeo cristatilde para a cooperaccedilatildeo na manutenccedilatildeo da ordem
Por isso essa pesquisa tem por objetivo principal compreender as relaccedilotildees entre
controle social e religiatildeo a partir da anaacutelise das accedilotildees anticristatildes praticadas ateacute meados do
seacuteculo II dC segundo as Apologias de Justino Maacutertir O exame de suas ideias deve
compreender o paradoxo construiacutedo em seu discurso entre o tipo de controle social
desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia aos cristatildeos que
tumultuam a ordem e por outro lado o tipo de controle social apontado nas Apologias que
37 Governou de 138 a 161 dC 38 I Apol 11 cf MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 127-129 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought New York Cambridge University Press 1967 pp 3-12 39 JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991 Cf mais informaccedilotildees no capiacutetulo I 40 E tambeacutem a seus filhos Marco Vero (que seria chamado Marco Aureacutelio) e Luacutecio Vero 41 I Apol 31ss I Apol 121ss 42 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129 Id Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214 Id The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 43 Rescrito em resposta aos questionamentos do governador anterior Graniano
17
daria razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos mediante um tipo de ordem derivado da proliferaccedilatildeo de
suas crenccedilas
Por ldquocontrole socialrdquo entende-se ldquoo conjunto dos recursos materiais e simboacutelicos de
que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de seus
membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo44 Ou ainda
seguindo a perspectiva de Martin Innes45 ldquocontrole socialrdquo refere aos mecanismos e
tecnologias empregados para manutenccedilatildeo da ordem social Esta por sua vez eacute composta de
diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais de alguma forma contribuem para a
constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social Nesse embate apologeacutetico do seacuteculo II satildeo
apresentados argumentos para convencer de que a feacute cristatilde natildeo estava propiacutecia a nenhum tipo
de desordem social e que pelo contraacuterio seria capaz de influenciar na formaccedilatildeo de suacuteditos
fieacuteis do Impeacuterio
Para o cumprimento do objetivo central dessa pesquisa as Apologias de Justino satildeo
estabelecidas como principal objeto e fonte de investigaccedilatildeo a serem submetidas agrave criacutetica
interna e externa segundo o desenvolvimento de uma anaacutelise histoacuterica46 Ao colocar as
Apologias de Justino no centro dessa anaacutelise busca-se delimitar um campo possiacutevel de anaacutelise
dentro do processo de expansatildeo do cristianismo pelos territoacuterios do Impeacuterio Romano tendo
em vista as vaacuterias formas de resistecircncias e aceitaccedilotildees Uma anaacutelise sobre Justino e a
sobrevivecircncia de suas Apologias eacute apresentada no capiacutetulo I e no Apecircndice I
44 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) Dicionaacuterio criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 45 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 46 TOPOLSKY Jersy Metodologia de la historia Madrid Ediciones Catedras 1992 pp 36-45
18
CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS
Para desenvolver uma investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre controle social e religiatildeo
nas accedilotildees anticristatildes de meados do seacuteculo II dC a partir das Apologias de Justino Maacutertir eacute
preciso responder a algumas perguntas baacutesicas sobre sua origem transmissatildeo e forma
Levando em consideraccedilatildeo que as Apologias foram redigidas originalmente haacute quase 1900
anos e passaram por diversos copistas e editores ateacute chegar agrave atualidade eacute necessaacuterio fazer um
raacutepido percurso analiacutetico sobre as ediccedilotildees e suportes materiais que garantiram a preservaccedilatildeo
do texto Isso deveraacute contribuir para a compreensatildeo de suas caracteriacutesticas atuais
Esse tipo de anaacutelise contempla as diferenccedilas entre as trecircs principais ediccedilotildees recentes
das Apologias Miroslav Marcovich47 (com a 1ordf ediccedilatildeo em 1995) por exemplo oferece uma
ediccedilatildeo seguindo o padratildeo apresentado no MS Parisinus Graecus enquanto Charles Munier48
(com ediccedilotildees em 1994 1996 e 2006) sustenta a teoria de que os dois textos seriam
originalmente uma mesma peccedila Denis Minns e Paul Parvis49 (2009) oferecem uma ediccedilatildeo
que aleacutem de considerar a II Apologia uma compilaccedilatildeo de fragmentos e anotaccedilotildees de Justino
transformadas em Apologia por terceiros ainda realoca partes da segunda peccedila para a
primeira fazendo-a ganhar dois capiacutetulos a mais do que as duas ediccedilotildees mencionadas
anteriormente
Assim seratildeo analisados a seguir alguns dos principais pontos sobre as ediccedilotildees o
tamanho original e os destinataacuterios das Apologias bem como as evidecircncias que apontam para
Justino como seu autor
11 As principais ediccedilotildees das Apologias
A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450
ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C
47 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 48 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 Id Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 49 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
19
segundo a forma estabelecida por T Otto50 Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar
com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra
Parallela51 e no Chronicon Paschale52 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo
menos que doze vezes Na Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito
passagens No Chronicon Paschale aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4
Esse uacuteltimo deriva provavelmente da tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)53
Em 1551 foi produzida a partir do MS A a editio princeps importante trabalho do
typographus regius Robert Estienne54 ou Robertus Stephanus Conforme a anaacutelise de Minns e
Parvis55 trata-se de um texto bem produzido Do mesmo modo que A a composiccedilatildeo de
Stephanus que foi dedicada a ldquoBiblioteca Realrdquo apresenta os extratos de Photius e Euseacutebio
sobre Justino A Apologia menor tambeacutem aparece antes da maior56 Natildeo haacute nenhuma divisatildeo
ou quebra de texto Apenas algumas variantes de A satildeo colocadas nas margens das paacuteginas
A primeira traduccedilatildeo das Apologias viria em 1554 por Joachim Peacuterion57 em Paris
Frederick Sylburg58 apresentou sua ediccedilatildeo em 1593 em Heidelberg seguindo rigorosamente
o texto de Robert Etienne Sabe-se tambeacutem que Feacutedeacuteric Morel publicou as Apologias de
Justino em 161559 As ediccedilotildees de Johann Ernst Grabe seguiram fieacuteis ao Stephanus mas
trouxeram duas inovaccedilotildees a ediccedilatildeo de 170060 em Oxford apresentou a Apologia maior como
50 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 51 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 52 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 53 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 13 54 Minns e Parvis oferecem a seguinte referecircncia TOU AGIOU FILOSOFOU KAI MARTUROS) ZHNA kai Serhnw|) LOGOS parainetikoj proj Hllhnaj) PROS TRUFWNA Ioudaion dialogoj) APOLOGIA uper Cristianwn proj thn Rwmaiwn Sugklhton) APOLOGIA b uper Cristianwn proj Antoninon ton euvsebh) EX BIBLIOTHECA REGIA LVTETIAE Ex officina Roberti Stephani typographi Regii Regiis typis MDLI Cum priuilegio Regis Devido agrave corrupccedilatildeo dos textos antigos nem sempre eacute possiacutevel identificar os tiacutetulos corretamente por isso satildeo apresentados aqui em letras maiuacutesculas As barras representam a separaccedilatildeo das linhas onde satildeo lidas as informaccedilotildees a respeito dos volumes referenciados 55 Op cit p 14 56 A I Apologia eacute a ldquoapologia maiorrdquo mas no MS A a ldquoapologia menorrdquo isto eacute a II Apologia vem primeiro 57 Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis 58 TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953 59 Minns e Parvis (Op cit p 15) mencionam que Feacutederic Morel tenha criado a categoria de ldquoApologistasrdquo lanccedilando uma coleccedilatildeo de texto Esta informaccedilatildeo pode ateacute estar correta mas os autores natildeo apontaram nenhuma referecircncia do tipoacutegrafo Sabe-se que ele publicou as Apologias devito as informaccedilotildees do seguinte cataacutelogo GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18-- 60 SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700
20
a primeira e a ediccedilatildeo de 170361 apresentou a obra menor como a II Apologia tal como satildeo
reconhecidas hoje e tambeacutem foram acrescentadas divisotildees de capiacutetulos diferentes das usuais
A ediccedilatildeo de Styan Thirlby de 172262 juntou as trecircs obras de Justino reconhecidas como
autecircnticas I e II Apologia e o Diaacutelogo com Trifatildeo O texto ainda era baseado em Stephanus
Em 1742 Prudentius Maran63 publicou sua obra com uma divisatildeo de capiacutetulos que se
tornaria a usual Segundo Minns e Parvis64 Maran teve acesso a A e B mas seu texto eacute
semelhante ao de Stephanus As Apologias da coleccedilatildeo Patrologia Graeca volume 6 de
185765 eacute a reproduccedilatildeo da sua ediccedilatildeo alocada na seacuterie de Jacques Paul Migne (1800-1875)
JCT von Otto66 publicou sua primeira ediccedilatildeo em 1842 e a terceira e definitiva em
1876 Ele natildeo ficou preso ao texto de Stephanus e apresenta o princiacutepio das ediccedilotildees criacuteticas
sugerindo modificaccedilotildees e melhoramentos do texto Em 1911 foi a vez de Alfred Blunt
Segundo Minns e Parvis67 a obra se baseou principalmente nos trabalhos de G Kruumlger68 que
se espelhou em Otto A ediccedilatildeo de Edgar Goodspeed69 em 1914 recorre a A C e agrave tradiccedilatildeo de
Euseacutebio e da Sacra Parallela poreacutem natildeo apresenta notas criacuteticas
Em 1994 Miroslav Marcovich70 publicou sua ediccedilatildeo criacutetica das Apologias Em 1997
publicou tambeacutem a ediccedilatildeo do Diaacutelogo71 A qualidade criacutetica destes textos passou a um alto
niacutevel Segundo a anaacutelise de Minns e Parvis72 as emendas de Marcovich satildeo de um teor
filoloacutegico tatildeo elevado e com intervenccedilotildees sobre o caraacuteter estiliacutestico de tal modo que eacute possiacutevel
duvidar que Justino tivesse um conhecimento tatildeo apurado de grego
61 SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703 62 Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722 63 TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius 64 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 16 65 MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 66 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 67 Op cit p 17 68 Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896 69 Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 70 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 71 MARCOVICH Miroslav Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997 72 Op cit p 18
21
Charles Munier tambeacutem apresentou em 199473 um volume simples das Apologias em
francecircs Em 199574 foi lanccedilada sua ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto grego Ele confessa natildeo ter tido
acesso agrave obra de Marcovich receacutem-publicada75 Sua ldquogrande obrardquo veio em 2006 uma ediccedilatildeo
criacutetica na coleccedilatildeo Sources Chreacutetiennes O ponto forte do texto de Munier satildeo os comentaacuterios
e a extensiva discussatildeo do contexto teoloacutegico e filosoacutefico76 As anaacutelises textuais natildeo satildeo
muito profundas mas contribuem significativamente com a indicaccedilatildeo de textos
correlacionados
A ediccedilatildeo criacutetica de Denis Minns e Paul Parvis77 ndash com texto grego traduccedilatildeo e notas ndash
foi publicada em 2009 Aleacutem da ampla revisatildeo das ediccedilotildees de outros autores o texto
apresenta um rico aparato criacutetico As interferecircncias no texto fazem a I Apologia chegar ateacute o
capiacutetulo 70
Em 1995 a editora Paulus preparou uma versatildeo das I e II Apologias e o Diaacutelogo com
Trifatildeo em um uacutenico volume78 O texto eacute problemaacutetico e muito simplista Natildeo haacute sinais de
criacutetica textual e podem ser encontrados alguns erros de portuguecircs A traduccedilatildeo foi feita por Ivo
Storniolo com introduccedilatildeo e notas de Roque Frangiotti mas natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo sobre
qual foi o texto base para a traduccedilatildeo Eacute evidente todavia que os editores natildeo contaram com
as ediccedilotildees de Marcovich Munier ou Minns e Parvis Por isso deixaremos este texto em
segundo plano
Nessa pesquisa as ediccedilotildees de Miroslav Marcovich79 Charles Munier80 e a de Denis
Minns e Paul Parvis81 satildeo lidas em conjunto comparando as divergecircncias sempre que for
necessaacuterio A interferecircncia na disposiccedilatildeo dos capiacutetulos adotada por Denis Minns e Paul Parvis
natildeo seraacute admitida A divisatildeo das Apologias seraacute tal qual a que apresenta Marcovich por ater-
se ao padratildeo comum agrave maioria dos estudiosos82 poreacutem a Apologia Maior seraacute chamada I
Apologia abreviado para I Apol ou simplesmente I quando jaacute houver uma citaccedilatildeo no
paraacutegrafo Semelhantemente a Apologia Menor seraacute chamada II Apologia abreviado para II
73 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p 74 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 75 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 90 76 Opiniatildeo tambeacutem compartilhada por MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 18 77 Ibid 346 p 78 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 79 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 80 Op cit 2006 81 Op cit 82 Cf MARCOVICH M Op cit 2005 p 10
22
Apol ou II nas mesmas condiccedilotildees que a primeira O texto de Munier segue a mesma
padronizaccedilatildeo de Marcovich no entanto ele prefere se referir a Apologia parte I e parte II
nomenclatura que natildeo seraacute seguida nesse texto O termo ldquoApologiasrdquo seraacute empregado como
referecircncia aos dois textos de Justino
12 A questatildeo da autoria Justino
A I Apologia (11) aponta explicitamente que seu autor eacute Justino homem oriundo de
Flaacutevia Neaacutepolis hoje conhecida como Nablus localizada na Siacuteria Palestina B Bagatti83
afirma que ela foi fundada por veteranos da conquista da Judeia sob Vespasiano por volta do
ano de 72 O avocirc de Justino Baquios pode ter participado da implantaccedilatildeo da cidade
O apologista se reconhece como conterracircneo dos samaritanos84 No Diaacutelogo com
Trifatildeo ele eacute identificado como ldquofiloacutesofordquo e nas Apologias fica evidente seu conhecimento da
filosofia Taciano chamou seu mestre apologista de ldquoo mais admiraacutevel85rdquo Irineu de Lyon fez
menccedilatildeo ao seu martiacuterio e carregou sua influecircncia em seu escrito86 Tertuliano87 atribuiu-lhe
dois tiacutetulos ldquofiloacutesofo e maacutertirrdquo O apologista tambeacutem recebeu um lugar no De viriis
illustribus de Satildeo Jerocircnimo e Gennadius88
Em seu Diaacutelogo com Trifatildeo89 ele eacute apresentado como um homem educado no estudo
da filosofia Segundo a narrativa do Diaacutelogo Justino conheceu o estoicismo frequentou a
escola peripateacutetica ficou junto a um filoacutesofo pitagoacuterico que lhe solicitou aprender muacutesica
astronomia e geometria Por uacuteltimo havia se aproximado da escola platocircnica quando entatildeo
conheceu os escritos dos profetas e a feacute cristatilde90 Segundo E R Goodenough91 Justino adota
uma dramatizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o cristianismo e a filosofia apresentando as passagens
por diversas escolas agraves quais critica rumo agrave ldquoverdaderdquo cristatilde Ele compara a narrativa de
Justino agrave de seu contemporacircneo Luciano em Menippus IVVI Em Menippus tambeacutem eacute
descrita a passagem por diversas escolas de pensamento chegando-se ao consentimento pelas
inuacutemeras contradiccedilotildees de que nenhuma delas tinha autoridade Goodenough tambeacutem vecirc a
83 S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319 84 Diaacutel 1206 II Apol 151 85 Discurso contra os gregos 191ss 86 Contra as heresias I281 cf IV62 V262 87 Contra os Valentinianos 51ss 88 Vida dos homens Ilustres 89 21ss 90 II Apol 81ss 91 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 pp 58-59
23
recorrecircncia dessa forma literaacuteria na descriccedilatildeo de verdadeiros proseacutelitos do judaiacutesmo Githro
Naaman e Rahab descritos na Tannaim92 N Hyldahl93 aleacutem de considerar a narrativa da
trajetoacuteria filosoacutefica de Justino mera ficccedilatildeo tambeacutem sustenta ser impossiacutevel determinar que
tipo de platonista esse pensador foi antes de sua conversatildeo e que a capa de filoacutesofo que usava
mencionada por Euseacutebio era um erro de interpretaccedilatildeo
Deve-se reconhecer como tambeacutem destacou L W Barnard que se por um lado havia
uma convenccedilatildeo literaacuteria grega ndash e que pudesse ser encontrada ocasionalmente ateacute no judaiacutesmo
ndash sobre as aventuras por diversas escolas a fim de criticaacute-las por outro lado isso natildeo contradiz
a admissatildeo da atual condiccedilatildeo de filoacutesofo cristatildeo assumida por Justino naquele momento Por
ldquofiloacutesofo cristatildeordquo natildeo se pretende dizer outra coisa senatildeo aquilo que ele mesmo confessa e
procura convencer os seus leitores a saber de que apoacutes conhecer diversas correntes
filosoacuteficas encontrou nas doutrinas cristatildes a ldquoverdaderdquo que o contentou94 Aleacutem disso o teor
apologeacutetico do discurso de Justino estaacute fundamentalmente relacionado a paralelos e
intersecccedilotildees com a filosofia C Andresen95 concorda que a trajetoacuteria filosoacutefica de Justino seja
mais do que um simples jogo literaacuterio Segundo Andresen e ele parece estar correto o meacutedio-
platonismo eacute a base da construccedilatildeo do pensamento cristatildeo de Justino
Em Roma Justino esteve engajado em debates com o filoacutesofo ciacutenico Crescente96
Segundo a Ata do Martiacuterio de Justino97 ele foi decapitado sob o julgamento de Rusticus
prefeito de Roma entre 162 e 168
A data e o local da conversatildeo de Justino satildeo imprecisos Eacutefeso tem sido cogitada como
uma boa hipoacutetese para o local de seu membramento ao cristianismo98 ou ainda algum ponto
na sua longa jornada da Palestina para Roma99 Minns e Parvis100 pensam que sua adesatildeo deve
ter ocorrido pelo menos uns 30 anos antes de sua morte Isso apontaria para uma data proacutexima
92 Ibid pp 58-59 93 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 94 Dial II1-6 95 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf FELIX Viviana Laura Elementos medioplatoacutenicos en la filosofiacutea de Justino IV JORNADAS NACIONALES DE FILOSOFIacuteA MEDIEVAL Academia Nacional de Ciencias de Ciencias de Buenos Aires Abril 2009 96 II Apol 31ss 97 Atti del Martiacuterio di San Giustino Caritone Caritoacute Evelpisto Ierace Peone e Liberiano Martirizzati a Roma In GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 Texto grego e traduccedilatildeo italiana a partir da obra de WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987 98 QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197 99 SKARSAUNE Oskar The proof from phophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provence theological profile Leiden EJBrill 1987 pp 245-246 100 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 33
24
agrave guerra judaica da deacutecada de 130 dC O Dialogo (1206) cita a I Apologia e desse modo
ambos os textos fazem referecircncia agrave revolta de Bar Kosiba entre os anos de 132 e 135101
Aleacutem das Apologias e do Diaacutelogo com Trifatildeo obras que satildeo reconhecidamente
proacuteprias a Justino Euseacutebio102 aponta que o apologista escreveu tambeacutem um livro contra os
gregos outro intitulado Elenchos um tratado sobre a soberania de Deus outro com o tiacutetulo
Psaltes e um escrito sobre a alma Um tratado contra Marciatildeo tambeacutem eacute citado mas essa
passagem corresponde a um trecho da I Apol 265-6103 Na sequecircncia dessa periacutecope da I
Apologia Justino disse que ele mesmo escreveu um ldquotratadordquo contra todas as heresias Esse
escrito poreacutem eacute dado por perdido No Dialogo 1206 o apologista diz ter aprestado um
escrito endereccedilado ao imperador no qual se refere a Simatildeo Mago104 o que eacute constatado na I
Apologia Eacute pertinente admitir que natildeo eacute possiacutevel saber se o texto que foi preservado ateacute agora
derivou daquele primeiro endereccedilado ao imperador Se seu trabalho foi entregue ao imperador
eacute provaacutevel que Justino tenha ficado com uma coacutepia
Minns e Parvis105 natildeo acreditam que seu texto tenha sido copiado com o intuito de ser
amplamente publicado Parece-lhes razoaacutevel sustentar a hipoacutetese de que o texto preservado
ateacute hoje pelo MS A deriva do documento que estava com Justino no momento de sua prisatildeo
Talvez tenha sido necessaacuteria uma reorganizaccedilatildeo do texto mais tarde com um propoacutesito
catequeacutetico ou apologeacutetico diferente do seu sentido original Entre sua emissatildeo original e o
teacutermino do trabalho do copista do Parisinus Graecus 450 em 11 de setembro de 1364106
muita coisa pode ter acontecido ao texto Todavia o principal obstaacuteculo a essa hipoacutetese eacute que
natildeo foram encontrados quaisquer vestiacutegios de um texto que ateste que o documento jaacute teve
outro formato sem os acreacutescimos catequeacuteticos Aleacutem disso as partes que tratam das crenccedilas
cristatildes estatildeo bem relacionadas agrave estrutura da obra e cumprem com seu propoacutesito
apologeacutetico107 Sua estrutura apresenta traccedilos comuns aos escritos de outros apologistas do II
101 Diaacutel 13 I Apol 316 102 Hist Ecles IV181-6 103 Hist Ecles IV118-9 104 Cf I Apol 262-3 105 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 34 106 Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005) calcula o ano de 1363 mas Bobichon ( lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 pp 157-158) apontou de forma mais satisfatoacuteria a data de 1364 com a qual Minns e Parvis (Op cit 34) e Munier (Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 84) concordam 107 A funccedilatildeo catequeacutetica da obra seraacute examinada mais propriamente no terceiro capiacutetulo parte 4 dessa dissertaccedilatildeo
25
seacuteculo induzindo Sara Parvis108 a pensar que Justino tenha sido o ldquopairdquo do gecircnero apologeacutetico
cristatildeo servindo de inspiraccedilatildeo para outros escritores da eacutepoca
Embora existam interrogaccedilotildees e divergecircncias sobre a unicidade ou biparticcedilatildeo das
Apologias haacute semelhanccedilas estiliacutesticas entre as duas partes que fazem com que Marcovich109
Munier110 Minns e Parvis111 concordem que os escritos procedam de Justino ainda que certas
modificaccedilotildees sejam admitidas durante o tempo conforme as irregularidades de alguns pontos
tecircm mostrado Eacute preciso ainda ter uma ideia clara sobre que tipo de escritos se estaacute
analisando tendo em vista que o conceito de ldquoapologiardquo como uma espeacutecie de gecircnero literaacuterio
eacute recente
13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino
Termo derivado da palavra grega avpologia significa basicamente ldquodiscurso de defesa
defesardquo Que tambeacutem deriva do verbo avpologeomai que representa o oposto de kathgoria
que significa ldquoacusaccedilatildeordquo112
No seacuteculo IV aC Platatildeo113 e Xenofontes114 cada um a seu modo narram a ldquoapologia
de Soacutecratesrdquo e proporcionam um tributo agrave valorizaccedilatildeo da razatildeo No I seacuteculo dC eacute Flaacutevio
Josefo115 quem eterniza um discurso desse tipo remetido a Aacutepion em prol dos judeus Josefo
defende a religiatildeo judaica salientando a sua antiguidade e contrastando a pretensatildeo grega agrave
superioridade no campo cultural O caraacuteter ldquoapologeacuteticordquo do texto como um ldquodiscurso de
defesardquo fica por conta da resposta a algumas alegaccedilotildees antijudaicas atribuiacutedas ao escritor
grego Aacutepion e os mitos acreditados por Manetho
No seacuteculo II dC Apuleio de Madura tambeacutem compocircs uma apologia pela qual se
defende das acusaccedilotildees de magia Eacute nesse mesmo seacuteculo que uma seacuterie de escritos como os de
Quadrato Aristides Justino Atenaacutegoras Meacuteliton de Sardes Teoacutefilo de Antioquia Taciano e
outros emerge em defesa dos cristatildeos que sofriam acusaccedilotildees principalmente na Aacutesia Menor
108 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 109 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 110 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 111 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 112 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 Cf RUSCONI C (Ed) DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 113
Apologia de Soacutecrates 114
Apologia 115 Contra Aacutepion
26
Para compreender os aspectos constitutivos das apologias de Justino eacute preciso analisar
as vaacuterias teorias sobre sua composiccedilatildeo e sua estrutura retoacuterica
131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica
As diferenccedilas estruturais de uma para a outra apologia de Justino exigem uma anaacutelise
especiacutefica Notadamente a II Apol eacute menor que a I Apol Minns e Parvis116 apresentam trecircs
teorias sobre o nuacutemero desses escritos de Justino
A forma como aparecem no MS A corrobora com a ideia de que sejam duas apologias
Mas enquanto a primeira eacute cheia de citaccedilotildees da escritura a segunda natildeo tem nenhuma citaccedilatildeo
desse tipo De modo bem peculiar eacute na II Apologia que aparece a reflexatildeo sobre o loacutegoj
sperermatikoj117 e o comprometimento de Justino no debate com Crescente A anaacutelise textual
da II Apologia eacute desfavorecida pelo tamanho do texto todavia as diferenccedilas proporcionais
entre os escritos satildeo somadas agrave hipoacutetese de que seriam de fato duas apologias
A segunda teoria sustenta a ideia de que originalmente a atual composiccedilatildeo dupla era
na verdade uma uacutenica Apologia Munier eacute aliado a essa proposta Ele considera que uma obra
uacutenica ndash um libellus ndash teria sido apresentada em Roma como requisiccedilatildeo pessoal endereccedilada ao
Imperador Antonino Pio e seus filhos para mudar a condiccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio118 O
principal argumento dessa hipoacutetese eacute que existe uma boa inclusio entre as referecircncias agrave
piedade e agrave filosofia no iniacutecio da primeira (I Apol 1 21-2 31) e os que aparecem no final da
segunda (II Apol 1213 e 14) As retomadas na segunda do tipo ldquoconforme dissemos
anteriormenterdquo seriam referecircncias ao que foi dito na parte imediatamente anterior e natildeo a
outro texto
De modo diverso Minns e Parvis119 consideram que a estrutura do texto ficaria muito
estranha se fosse pensada segundo essa teoria O cliacutemax da primeira parte estaria no rescrito
de Adriano quando o autor mostra a incoerecircncia das acusaccedilotildees e perseguiccedilotildees sofridas pelos
cristatildeos (I Apol 685-10) Isso tornaria incoerente recomeccedilar uma seccedilatildeo de defesa na parte
posterior Outro argumento desfavoraacutevel eacute que o escriba que picou o texto teria sido
demasiadamente astuto para escolher uma parte que marcaria precisamente a distinccedilatildeo de tons
entre os dois textos
116 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p22 117 Logos spermatikos que pode ser entendido de modo limitado com ldquosemente da razatildeordquo 118 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 119 Op cit p 22
27
Outra teoria sustenta que se trata de uma apologia e um apecircndice Minns e Parvis120
fazem saber que essa foi a teoria apresentada por Grabe121 em 1703 recebida por Harnack122
popularizada por Goodspeed123 em 1914 e ainda sustentada com entusiasmo por Marcovich124
em 1994 As correspondecircncias entre a primeira e a segunda estariam relacionadas ao material
deixado pelo proacuteprio Justino apoacutes concluir o texto definitivo A I Apologia pode ser
reconhecida como um libellus ou seja uma requisiccedilatildeo particular endereccedilada ao Imperador
mas a classificaccedilatildeo da II Apologia natildeo eacute muito precisa
Seguindo o raciociacutenio de Robert M Haddad125 qualquer peticcedilatildeo (libellus) apresentada
ao imperador buscava persuadi-lo a fazer alguma coisa De fato na Antiguidade a persuasatildeo
se tornou uma arte Desenvolvida pelos gregos a retoacuterica foi adaptada pelos romanos para
suas proacuteprias aspiraccedilotildees Ciacutecero Secircneca o Velho Taacutecito Pliacutenio o Jovem Quintiliano e
Fronto se tornaram nomes referenciais dessa habilidade Como foi apontado anteriormente
Justino era muito familiarizado com a filosofia mas natildeo se mostrou muito familiarizado com
a retoacuterica o que natildeo isentou seu texto de revelar uma estrutura comum agraves teacutecnicas dessa
disciplina126 No entanto esses aspectos ainda natildeo satildeo suficientes para oferecer uma
explicaccedilatildeo clara sobre o gecircnero das Apologias
132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino
Se a apologia de Soacutecrates diante do tribunal grego adaptada por Platatildeo127 e por
Xenofontes128 tornou-se um emblema da defesa da razatildeo no II seacuteculo dC foram as
120 Op cit p 23 121 HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703 Grabe atuou em parceria com Huntchim nessa ediccedilatildeo 122 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274 123
Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 passim 124 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 10 125 HADDAD Robert M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 Werner Eck escreve que o imperador romano era cercado por pessoas que procuravam influenciaacute-lo ou conseguir favores (Id The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000) 126 The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 21-28 127 Apologia de Soacutecrates 128 Apologia
28
acusaccedilotildees contras os cristatildeos que deram ldquorazatildeordquo agrave proliferaccedilatildeo de apologias em defesa da feacute
cristatilde que ainda natildeo apresentava uma sistematizaccedilatildeo coerente de suas ideias
Segundo a anaacutelise de Robert Grant a literatura apologeacutetica emerge de grupos
minoritaacuterios que estatildeo tentando desenvolver uma linguagem que seja compreensiacutevel agraves
culturas no Impeacuterio Romano para que por meio dela seja comunicada a mensagem cristatilde129
Satildeo vaacuterias as formas apresentadas para atestar a autenticidade das correntes religiosas
defendidas A apologia significaria algo mais do que uma simples defesa dos ataques sofridos
pela Igreja Seria uma forma baseada na defesa que Soacutecrates teria feito no seu julgamento
diante do povo de Atenas para mostrar a racionalidade de seu julgamento Os apologistas
cristatildeos teriam a ampla tarefa de estender possiacuteveis conexotildees entre as concepccedilotildees da filosofia
grega e aquela que para os cristatildeos era a ldquoverdade por excelecircnciardquo Mas esse processo
precisa ser analisado dentro do acircmbito missioloacutegico cristatildeo 130
A apreciaccedilatildeo helenizante estendida tambeacutem por Leslie W Barnard131 a todos os
apologistas eacute desajeitada O proacuteprio disciacutepulo de Justino Taciano opotildee-se agrave cultura grega
Poucos anos depois Tertuliano132 se mostraria o principal disseminador de um discurso que
estava longe de buscar os pontos comuns entre Jerusaleacutem e Atenas A comparaccedilatildeo com
Soacutecrates tambeacutem natildeo pode ser estendida a todos os apologistas
Justino poreacutem aleacutem de se referir positivamente a Soacutecrates como participante no logos
que autentica a racionalidade cristatilde proporciona uma analogia com a sua proacutepria condiccedilatildeo
enquanto prevecirc o seu martiacuterio em defesa da feacute cristatilde133
Em 1897 Th Wehofer em busca dos modelos literaacuterios de Justino observou que no
elogio dos mortos de Menexenus e na Apologia de Soacutecrates Platatildeo proporciona o modelo de
uma retoacuterica a serviccedilo da justiccedila e da verdade Sem duacutevida Justino conhecia os escritos de
Platatildeo Algumas correlaccedilotildees podem ser identificadas em trechos de suas Apologias I Apol
24 = ApS 30c 53 = 24b et 26c 82 = 30d 682 = 19a II102 = 24b Segundo Munier134
a exposiccedilatildeo temaacutetica progressiva encontrada nessa obra pode parecer uma desorganizaccedilatildeo
129 GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988 p 9 apud HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 31 130 Isso significa que as interconexotildees apologeacuteticas entre cultura greco-romana e cristianismo precisam ser contempladas como mecanismo dos discursos cristatildeos para proporcionar siginificaccedilotildees eficientes entre os povos de outras culturas cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990 131 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 2008 p 2(3) 132 Apolog passim 133 I Apol 51-3 II Apol 81ss 134 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 33
29
uma composiccedilatildeo aparentemente relaxada uma sucessatildeo aparentemente arbitraacuteria de
passagens dogmaacuteticas e pareneacuteticas que retoma abundantemente o mesmo tema abordando-o
sob uma perspectiva diversa Nota-se que um esquema preside a composiccedilatildeo geral das
Apologias
A estrutura essencial da Apologia de Soacutecrates por si soacute natildeo eacute suficiente para dar conta
do plano geral da obra de Justino As correlaccedilotildees entre o escrito de Platatildeo e o de Justino vatildeo
aleacutem do niacutevel estrutural Elas tambeacutem se mostram nos modelos de argumentaccedilatildeo De fato
este eacute o coraccedilatildeo mesmo da defesa que se funda sobre o exemplo de Soacutecrates condenado como
ldquoateu e iacutempiordquo135 Para Justino136 o destino traacutegico do filoacutesofo ateniense ilustra perfeitamente
a sorte dos cristatildeos ameaccedilados de morte
A diatribe de Justino contra Crescente toma uma funccedilatildeo analoacutegica Ela estaacute associada
agrave evocaccedilatildeo de Soacutecrates Assim como Meacuteletos tinha acusado Soacutecrates Crescente acusa os
cristatildeos de serem ldquoateus e iacutempiosrdquo a fim de agradar a multidatildeo insensata137 E como Soacutecrates
tinha oposto a seus acusadores sua indiferenccedila ao ldquotalento da palavra e sua uacutenica preocupaccedilatildeo
era dizer a verdaderdquo138 o desafio de Justino a Crescente se inspira na sentenccedila de Platatildeo139
ldquoDe modo nenhum se deve honrar mais a homens do que agrave verdaderdquo
Contudo a Apologia de Soacutecrates natildeo eacute um modelo literaacuterio estrito no qual Justino se
inspirou Segundo a anaacutelise de Munier140 o Protreacuteptico de Aristoacuteteles oferece tambeacutem
alguma correlaccedilatildeo mas isso natildeo deve significar que haja alguma dependecircncia intriacutenseca entre
esses escritos Aristoacuteteles se dedica a demonstrar que a filosofia converte todo seu valor agrave
vida em sociedade e que uma vida sem filosofia natildeo vale a pena de ser vivida Na medida em
que apresenta o cristianismo como uma ldquofilosofia divinardquo141 Justino poderia tirar o melhor
partido dos protreacutepticos142 de Aristoacuteteles de Isoacutecrate e de seus seguidores dedicados agrave
filosofia Mas essa semelhanccedila eacute apenas ocasional e natildeo intencional O apologista natildeo
esconde seu desejo de que o imperador se torne um filoacutesofo de Cristo Ele acreditava que se
seu pedido fosse aceito a feacute cristatilde espalharia benefiacutecios por todo o Impeacuterio143 Eacute nesse sentido
135 I Apol 53 136 II Apol 12 81-2 137 Cf WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991 138 Platatildeo ApS 17bc 139 Repuacuteblica X595c 607c 140 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 40 141 II125 142 Protreacuteptico exortaccedilatildeo Restam apenas fragmentos dos escritos protreacutepticos de Aristoacuteteles cf CHROUST Anton-Hermann Aristotle Protrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964 143 I 12 1-2 17 1-4
30
que ele recorre agrave maacutexima de Platatildeo144 ldquoSe governantes e governados natildeo satildeo filoacutesofos natildeo
pode haver felicidade nas cidadesrdquo
P Keresztes145 estava certo ao dizer que a caracteriacutestica marcante da Apologia eacute a
extensiva defesa dos cristatildeos contra as acusaccedilotildees de ateiacutesmo traiccedilatildeo canibalismo e agraves accedilotildees
caluniosas de modo geral Justino sustenta essa defesa tentando mostrar a exclusiva verdade
da religiatildeo cristatilde O principal propoacutesito das Apologias seria garantir que os cristatildeos tivessem
liberdade para professarem a feacute embora isso significasse a condenaccedilatildeo dos demais deuses
Tambeacutem fazia parte do propoacutesito chamar os pagatildeos a abraccedilarem o cristianismo Seus
conselhos retoacutericos no contexto servem ao propoacutesito de sugerir ao imperador que mude o
corrente curso da justiccedila Isso significa clamar por um julgamento comum que natildeo permitisse
a condenaccedilatildeo pelo ldquonome cristatildeordquo
Esses escritos do pensador de Flaacutevia Neaacutepolis satildeo dotados de certa particularidade em
sua composiccedilatildeo Mas se nota que a princiacutepio o apologista procurou valer-se do seu direito de
dirigir uma ldquopeticcedilatildeordquo ou libellus ao imperador
Na I Apol 74 ele faz sua requisiccedilatildeo usando o verbo normalmente empregado para
uma peticcedilatildeo em grego avxioun Assumindo a postura de um pensador compromissado com a
justiccedila e a verdade ele pede para que ldquosejam examinadas as accedilotildees de todos os que [] satildeo
denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por
outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo
ter cometido nenhum crimerdquo146 (I Apol 74) Uma requisiccedilatildeo desse tipo deveria ser
encaminhada ao escritoacuterio administrativo para ser ou natildeo subscrita e receber uma resposta O
equivalente grego para libellus eacute biblidion para subscribere o equivalente eacute u`pografein e
para postar uma resposta usa-se proqeiai no lugar de proponere147 Esta terminologia pode
ser precisamente encontrada na II Apol 141
Kai u`maj ou=n avxioumen u`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaj148148148148 to dokoun proqeinaiproqeinaiproqeinaiproqeinai touti to biblidionbiblidionbiblidionbiblidion( o[pwj kai toij alloij ta hmetera gnwsqh| kai dunwntai thj yeudodoxiaj kai avgnoiaj ton kalwn avpallaghvai( oi para thn
144 Repuacuteblica V 473de 145 The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965 p 109 146 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 pp 23-24 [Oqen pantwn twn kataggellomenwn umin taj praxeij krinesqai avxioumen( i[na o` evlegcqeij w`j adikoj kolazhtai( avlla mh wvj Cristianoj evan de tij avnelegktoj fanhtai( avpoluhtai w`j Cristianoj ouvden avdikon) MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 142-144 147 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 25 148 Grifos nossos
31
e`autwn aivtina u`peuqunoi taij timwriaij eivj to gnwsqhnai toij avnqrwpoij tauta(149
As proporccedilotildees desses textos ultrapassam os padrotildees de um libellus Para explicar essa
relativa incompatibilidade Minns e Parvis150 referindo-se apenas a I Apologia sustentam que
Justino usou de uma estrateacutegia por meio da qual ele adota esse tipo de documento
administrativo romano inserindo um material catequeacutetico e explanatoacuterio cristatildeo convertendo-
o em um dispositivo disseminador da mensagem de feacute Ou ainda traduzindo as palavras de
W R Schoedel151 trata-se de uma peticcedilatildeo apologeticamente fundamentada e sem precedentes
na tradiccedilatildeo literaacuteria greco-romana As diferenccedilas na estrutura da II Apologia natildeo permitem
dizer que se trata de um documento de outro autor pois as caracteriacutesticas do texto atestam sua
compatibilidade com a primeira peccedila O que faz multiplicar as interrogaccedilotildees sobre o segundo
texto eacute que mesmo apresentando traccedilos de uma segunda ldquopeticcedilatildeordquo ela eacute evidentemente menor
e dispensa um exordio bem formulado como o do primeiro escrito Mas essa propriedade da II
Apologia se tornaraacute mais clara a seguir na anaacutelise dos destinataacuterios
14 Destinataacuterios
Existem algumas variaccedilotildees entre a forma como a I Apologia eacute endereccedila no MS A e na
Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio A tabela a seguir foi construiacuteda seguindo as informaccedilotildees
apresentadas por Minns e Parvis152
MS A Euseacutebio HE IV12
a Antoninus Pius Augustus Caesar a Antoninus Pius Augustus Caesar
e a Verissimus seu filho e a Verissimus seu filho
Filoacutesofo Filoacutesofo
e a Lucius e a Lucius
Filoacutesofo do filoacutesofo
de Ceacutesar filho por natureza Ceacutesar filho por natureza
e de Pius por adoccedilatildeo e de Pius por adoccedilatildeo
149 MUNIER Op cit pp 364 366 TrldquoPortanto noacutes vos suplicamos que subscrevendo como vos pareccedila deis publicidade a este livro a fim de que tambeacutem os outros conheccedilam a nossa religiatildeo e se vejam livres da vatilde opiniatildeo e da ignoracircncia em relaccedilatildeo ao bem Por sua proacutepria culpa eles se tornam responsaacuteveis pelo castigordquo 150 Op cit p 25 151 SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72 152 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35
32
Eacute incluiacuteda ainda no manuscrito a expressatildeo ldquoao santo senado e a todo o povo dos
romanosrdquo entre os destinataacuterios da Apologia Minns e Parvis153 consideram esse uacuteltimo
trecho uma antiga adiccedilatildeo editorial Eles apontam que a expressatildeo ldquosanto senadordquo foi
comumente encontrada em moedas de bronze cunhadas na Aacutesia Menor154 Outras inscriccedilotildees
mostram essa expressatildeo vinculada agrave famiacutelia imperial e ao povo romano Vespasiano ldquoe toda
sua casa o santo senado e o povo dos romanosrdquo155 Trajano ldquoe toda sua casa o santo senado e
o povo dos romanosrdquo156 Marco Aureacutelio e Luacutecio Veroldquoe toda [sua] casa o mais santo senado e
o povo dos romanosrdquo157 Septimus Severus Caracalla Geta Julia Domna ldquoe toda a sua casa o
santo senado o povo dos romanos e os santos exeacutercitosrdquo158 Eacute possiacutevel indicar muitas outras
inscriccedilotildees mas o impasse identificado por Minns e Parvis estaacute relacionado ao fato de o
ldquosenadordquo e o ldquopovordquo aparecem no endereccedilamento de uma ldquopeticcedilatildeordquo como eacute caracterizada a
Apologia de Justino Entra na hipoacutetese a importaccedilatildeo da expressatildeo que ocorre na I Apol 563
ldquoPor isso noacutes vos suplicamos que o sacro senado e o povo romano conheccedilam este nosso
escrito []rdquo Ou ainda que a primeira ocorrecircncia do termo ldquosacro senadordquo seja a da fala de
Lucius a Urbicus na II Apol 216
Munier159 no entanto tem outra proposta Para ele eacute mais provaacutevel que tal expressatildeo
tenha assumido seu lugar em funccedilatildeo da necessaacuteria autorizaccedilatildeo do senado e do povo para o
estabelecimento de um novo culto puacuteblico Seu argumento eacute baseado no escrito de Ciacutecero
(Legibus II19-20) e parece mais seguro
Euseacutebio escreve que Justino tambeacutem endereccedilou uma Apologia ao imperador
ldquoAntonino Verordquo160 ou seja a Marco Aureacutelio A menccedilatildeo ao ldquoimperador Piordquo ao ldquofilho de
Ceacutesar amante do saberrdquo e ao ldquosacro senadordquo na II Apol 21ss pode significar para estudiosos
como M Marcovich161 que a II Apologia foi dirigida aos mesmos nomes que a primeira Essa
periacutecope do texto apresenta a narraccedilatildeo de um episoacutedio que se sucedeu nos dias de Antonino
153 Ibid 154 TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984 p 96 apud MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35 155 tan i`eran sunklhton kai ton damon ton R`wmaiwn Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386 Minns e Paris (op cit p35) citam o mesmo texto com algumas variaccedilotildees 156 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn (Cyrenis IGRR I-II 1037) Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355 157 i`erwtathj boulhj te kai dhmou tou Rwmaiwn (Serdicae IGRR I-II 1452) Ibid p 182 158 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn kai strateumatwn (Pizi IGRR I-II 766) Ibid p 251 159 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 278 160 Hist Ecles IV183 161 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 7
33
Pio mas eacute provaacutevel que a alusatildeo agrave piedade e agrave filosofia novamente seja proposital para
constranger seus destinataacuterios Euseacutebio se confunde com o nome de Antonino assim como o
faz quanto ao rescrito agrave comunidade da Aacutesia162
Considerando que Justino escreveu na I Apologia 462-3 que ldquoCristo nasceu cento e
cinquenta anos antes de nosso tempordquo A Harnack163 conclui que esse primeiro escrito foi
composto entre 147 e 154 dC Tambeacutem na I Apol 296 L Munatius Felix eacute mencionado
como prefeito do Egito Sabe-se que ele exerceu seu mandato de 150 a 154 dC164 A II Apol
11 faz referecircncia a Q Lollius Urbicus como prefeito de Roma cargo que ocupou de 146 a
160 dC165 Segundo a anaacutelise de Munier o Chronicon de Euseacutebio indica que o adversaacuterio de
Justino Crescente comeccedilou a denunciaacute-lo em Roma no segundo ano da 233ordf Olimpiacuteada que
corresponde ao ano de 153 ou 154 Desse modo seraacute acatada a uma data por volta do ano 153
ou 154 para a I Apologia e alguns anos depois para o segundo escrito ateacute no maacuteximo 161 dC
A I Apologia apresenta uma defesa geral dos cristatildeos O segundo escrito parte da
reprovaccedilatildeo das accedilotildees anticristatildes tendo em vista principalmente o que havia acontecido em
Roma sob Urbico e as investidas do ciacutenico Crescente Entranhado nessa ldquopeticcedilatildeo
apologeticamente fundamentadardquo166 estaacute o argumento de que os cristatildeos ao contraacuterio do que
era disseminado em algumas denuacutencias e caluacutenias natildeo seriam de nenhum modo uma ameaccedila
agrave ordem A seguir seratildeo examinadas as accedilotildees anticristatildes que compunham o contexto da
primeira metade do seacuteculo II dC
162 Hist Ecles IV131ss A confusatildeo com os nomes dos imperadores no rescrito da Aacutesia seraacute examinada mais adiante Pode-se admitir tambeacutem que essa confusatildeo tenha sido acarretada pela organizaccedilatildeo do texto em um periacuteodo posterior a Euseacutebio 163 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 227 164 Prosopografia Imperii Romani V 2 Berlim Walter de Gruyter 1983 (M 723) 165 PIR v1 1970 L 327 166 Usando novamente a expressatildeo de SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72
34
CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS
Justino se opotildee agraves investidas contra os cristatildeos167 por natildeo considerar vaacutelidas as
justificativas apresentadas para as condenaccedilotildees dos fieacuteis A confissatildeo de ldquocristianismordquo diante
de uma autoridade acaba sendo ironizada como uma condenaccedilatildeo do nome ldquocristatildeordquo Na II
Apologia (11) ele afirma que accedilotildees desse tipo estatildeo ocorrendo por todo o Impeacuterio O que natildeo
deve significar que existia uma busca exaustiva dos romanos pelos membros do novo
movimento No entanto eacute provaacutevel que esses atritos pudessem ser localizados em vaacuterias
regiotildees Um caso especiacutefico da execuccedilatildeo em Roma sob Urbico motivou-o a se manifestar
novamente168 As intimaccedilotildees por razotildees religiosas aos tribunais jaacute haviam movido outros
apologistas na primeira metade do II seacuteculo Euseacutebio169 faz saber que antes de Justino
Quadrato e Aristides jaacute clamavam em favor dos cristatildeos ao Imperador Adriano
Natildeo haacute nenhum indiacutecio de que o cerne da crenccedila cristatilde apresentasse alguma forma de
conspiraccedilatildeo contra os romanos Mas eacute preciso estabelecer uma visatildeo geral das accedilotildees
anticristatildes que se desenvolveram antes de Justino e em seu tempo para que se possa assimilar
o sentido de sua reflexatildeo
O II seacuteculo se inicia com um quadro indefinido a respeito dos cristatildeos A atividade
cristatilde de anunciaccedilatildeo da sua mensagem de feacute e conversatildeo dos pagatildeos alcanccedilava diversas
regiotildees do Impeacuterio Conversotildees e alguns atritos sempre ocorriam
A conversatildeo ao cristianismo implicava em uma mudanccedila que aleacutem de religiosa
poderia ser existencial social e ateacute poliacutetica Eacute provaacutevel que essa postura de resistecircncia agrave
associaccedilatildeo com a ldquoidolatriardquo identificada na vida ciacutevica fosse interpretada como ldquoineacuterciardquo ou
falta de vigor para se envolverem nos assuntos puacuteblicos jaacute despertasse preocupaccedilotildees na virada
do I seacuteculo Principalmente quando membros das classes dirigentes comeccedilam a aderir agrave feacute do
oriente A linha entre a toleracircncia e a intoleracircncia eacute indefinida Eacute preciso analisar os contornos
desde Trajano (governou de 98-117 dC) ateacute os primeiros anos de Marco Aureacutelio (governou
de 161-180 dC)
167 ldquopedimos sejam examinadas as acusaccedilotildees contra os cristatildeos Se for demonstrado que satildeo reais castiguem-nos como eacute conveniente que sejam castigados os reacuteus convictosrdquo I Apol 31 168 ldquo[] o que aconteceu ultimamente em vossa cidade sob Urbico e o que os governadores estatildeo fazendo sem razatildeo em todo o impeacuteriordquo II Apol 11 169 Hist Ecles IV1-3
35
21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano
Natildeo haacute indiacutecios de uma perseguiccedilatildeo generalizada aos cristatildeos no Impeacuterio Romano no
iniacutecio do seacuteculo II mas a expansatildeo cristatilde em curso proporcionava um nuacutemero significativo de
processos nos tribunais locais Se por um lado alguns estavam certos de que os membros
dessa superstitio illicita deveriam ser condenados por outro lado existiam algumas lacunas
sobre esse tipo de julgamento
A expansatildeo proporcionava atritos corriqueiros de resistecircncia agraves novas crenccedilas O
nuacutemero de cristatildeos era crescente170 Ateacute o governo de Nero171 os adeptos agrave nova religiatildeo que
se desenvolvia no seio do judaiacutesmo natildeo enfrentaram problemas significativos em relaccedilatildeo aos
romanos Taacutecito faz saber que esses que a seu ver jaacute eram impopulares pelas suas flagitia
foram incriminados por Nero pelo incecircndio de Roma em 64 dC172 Se Nero lanccedilou a culpa
do incecircndio de Roma sobre os cristatildeos fica aberta a questatildeo sobre a dimensatildeo dessa
perseguiccedilatildeo A accedilatildeo de Nero foi suficiente para que a tradiccedilatildeo cristatilde o transformasse no
ldquoprimeiro imperador perseguidorrdquo logo seguido por Domiciano173174 do qual natildeo se conhece
uma perseguiccedilatildeo direta contra os cristatildeos mas uma repressatildeo a asebeia e ao proselitismo
judaico175 que deve ter ocasionado transtornos inclusive agrave Igreja Isso foi suficiente para se
sustentar que a referecircncia de Tertuliano176 ao institutum neronianum fazia de Nero o primeiro
a lanccedilar as bases juriacutedicas para a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos177 Todavia a utilizaccedilatildeo dessa
referecircncia de Tertuliano para a identificaccedilatildeo das bases juriacutedicas da perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute
problemaacutetica Marta Sordi178 recorrendo ao mesmo Tertuliano sustenta a ideia de que houve
170 GOODMANN M Mission and conversion poselytizing in the Religious History of the Roman Empire New York Clarendon PressOxford 1994 p 91-108 Cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 171 Governou de 54 a 68 dC 172 Anais XV44 Flagitia poderia referir-se a algo vergonhoso ou inapropriado algo descabido cf LIDDEL H G SCOTT R (Ed) Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 173 Governou de 81 a 96 dC 174 Euseacutebio His Ecles III26 175 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3 176 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4 177 KERESZTES Paul Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 Segundo C G Roman as bases dessa teoria se encontram na obra de CALLEWAERD C La methode dans la recherrch de la base juridique des premiers persecutions Reviste dhistoire Ecclesiastique 12 1911 pp 5-16 e segue acompanhada por Cf DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106 MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 1953 pp 3-32 178 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968
36
um senatus consultum na eacutepoca de Tibeacuterio179 que teria desaprovado o reconhecimento de
Cristo como deus do panteatildeo a contragosto do Imperador
A incerteza sobre como proceder em julgamento de cristatildeos fez com que Pliacutenio o
Jovem escrevesse ao imperador Trajano no iniacutecio do II seacuteculo A resposta do imperador
confirma a accedilatildeo de Pliacutenio em condenar os cristatildeos confessos proiacutebe agrave perseguiccedilatildeo a esses
religiosos rejeita as denuacutencias anocircnimas e faz aumenta as interrogaccedilotildees sobre as bases
juriacutedicas processos desse tipo Uma hipoacutetese comum tal como sustentam Marcel Simon e
Andreacute Benoicirct180 eacute a de que neste periacuteodo natildeo existia nenhuma lei sobre os cristatildeos e que os
magistrados agiam mediante a ius coertionis181 Essa teoria que havia sido sustentada
originalmente por Mommsen arrebanhou alguns seguidores mas como aponta Giorgio
Jossa182 em alguns casos como na questatildeo dirigida por Pliacutenio a Trajano o uso da coercitio eacute
limitado pelas interrogaccedilotildees sobre como enquadrar judicialmente os processos Para ser mais
especiacutefico Pliacutenio deseja saber se os cristatildeos deveriam ser condenados simplesmente por
confessarem esse nomem ou por algum crime que esteja subentendido Com base nos
trabalhos de E Le Blant183 no seacuteculo XIX outra teoria sobre esse tipo de julgamento propotildee
que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais existentes dentro do
direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea maiestatis Segundo C
G Roman184 essa teoria teve muitos seguidores nos seacuteculos XIX e XX sendo favoraacutevel
agravequeles que como L Homo e Ch Saumagne185 consideram que o institutum neronianum186
natildeo pode ser compreendido como edito ou lei especial emanada do princeps
As maiores discrepacircncias quanto agraves razotildees juriacutedicas e populares para condenaccedilatildeo dos
cristatildeos eacute a proacutepria relaccedilatildeo desse grupo religioso com o Impeacuterio neste iniacutecio do II seacuteculo
aparecem em funccedilatildeo das supostas posturas diferentes assumidas por Trajano e Adriano diante
dessa superstitio As explicaccedilotildees atuais trilham caminhos que vatildeo desde diferentes niacuteveis de
toleracircncia atribuiacutedos a esses dois imperadores como sustenta Pedro Barcelograve187 ateacute a hipoacutetese
179 Governou de 14 a 37 dC 180 Giudaismo e cristianismo una storia antica RomaBari Gius Laterza Figli Spa 2005 p 97 181 MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-96 182 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 107-144 183 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 184 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 185 HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229 186 Tertuliano Ad nationes 17 187 Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim
37
de que Adriano tenha reconhecido o cristianismo como uma religio licita conforme sustentou
primeiramente Mommsen188
Trajano assumiu o poder no ano de 98 dC A estrateacutegia de Nerva189 em adotaacute-lo para
ser seu sucessor aproximou o senado do futuro priacutencipe190 originaacuterio da Itaacutelica cidade da
proviacutencia senatorial da Baetica no sul da Hispania Eacute provaacutevel que tenha recebido formaccedilatildeo
poliacutetica e puacuteblica razoaacutevel mas sua imagem de homem militar e popular entre as legiotildees eacute a
que prevaleceu para a posteridade Segundo Julien Bennett191 Trajano era de uma famiacutelia
provincial de status elevado Mas essa ascensatildeo natildeo era para qualquer um Pliacutenio192 destaca-o
como priacutencipe escolhido pelas divindades ndash o epiacuteteto optimum era especiacutefico de Juacutepiter ndash
respeitador de todas as tradiccedilotildees ancestrais e das instituiccedilotildees poliacuteticas entre elas o senado
Uma idealizaccedilatildeo que certamente contrapunha-se agrave realidade efetiva pois Trajano apoiado
pelas legiotildees e representado como escolhido de Juacutepiter era detentor de um poder autocraacutetico
tatildeo grande quanto ou maior que o dos mais proacuteximos conselheiros os amigos do priacutencipe
Pode-se considerar que as accedilotildees poliacuteticas de Trajano tinham um caraacuteter apaziguador nos
territoacuterios romanos Ampliou-se a poliacutetica urbana e a extensatildeo das vias romanas nas
proviacutencias favorecendo significativamente a atividade comercial193
Nesse periacuteodo a filosofia estoica encontrou grande honra Por outro lado tambeacutem
houve uma significativa propagaccedilatildeo dos cultos orientais e da magia Prodiacutegios e milagres
eram ansiosamente buscados desencadeando certo fervor religioso entre o povo A piedade
religiosa ancorada agrave velha tradiccedilatildeo grega e romana nutrida por fermento novo proveniente
dos misteacuterios egiacutepcios e dos oraacuteculos caldeus permeava ainda os escritos dos intelectuais O
culto ao imperador natildeo recebeu tanta ecircnfase mas a sacralidade do Impeacuterio eacute talvez um fato
adquirido por todos e a aceitaccedilatildeo praacutetica da forma de culto se juntou com a formaccedilatildeo estoica
da classe dominante194
No ano de 96 Nerva estipulou a requisiccedilatildeo dos relegados e o veto contra as acusaccedilotildees
de ldquoateiacutesmordquo ou mais precisamente de avsebeia e de ldquocostumes judaicosrdquo195 Se os cristatildeos
haviam sido incomodados por decretos que indiretamente insidiam sobre eles alguma
188 Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-399 189 Governou de 96 a 98 dC 190 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 38 191 Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005 pIX 192 Epistolas 1012 Panegiricus 27 884 passim 193 FRIGHETTO Renan Op cit 2012 p 38 194 Ibid p 38 195 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3
38
opressatildeo as mudanccedilas de Nerva teriam representado um aliacutevio196 Mas sob Trajano percebe-
se que os casos esporaacutedicos de condenaccedilotildees aos fieacuteis ainda satildeo identificados Natildeo se ouviraacute
mais falar sobre acusaccedilatildeo de costume judaico no II seacuteculo mas os cristatildeos continuaratildeo a
enfrentar repressotildees em alguns pontos do territoacuterio romano o que levanta uma obscura
questatildeo sobre por qual crime seriam culpados os cristatildeos e quais seriam os fundamentos
juriacutedicos de suas condenaccedilotildees
Como destacou Giorgio Jossa197 a apologeacutetica cristatilde desse periacuteodo distingue dois
tipos de criacuteticos Uma opiniatildeo puacuteblica grosseira e mal informada como as acusaccedilotildees de
cometerem delitos particularmente vergonhosos como incesto e antropofagia movida contra
os cristatildeos por meio de falatoacuterio e caluacutenias e a acusaccedilatildeo de serem a causa de todos os males
no Impeacuterio devido agrave ameaccedila que representavam agrave pax deorum Eacute difiacutecil dizer qual era
realmente a extensatildeo da hostilidade dos pagatildeos das diversas regiotildees mas essa hostilidade
existia e constituiacutea um terreno feacutertil para o desenvolvimento tanto das acusaccedilotildees poliacuteticas da
opiniatildeo culta quanto juriacutedicas por parte dos funcionaacuterios imperiais
O cristianismo natildeo se dirigiu apenas agraves classes humildes Rapidamente sua mensagem
chegou tambeacutem agraves classes elevadas A oposiccedilatildeo da classe culta era principalmente de caraacuteter
filosoacutefico e nesse periacuteodo foram sustentadas especialmente por Epiacuteteto Luciano e Galeno a
partir dos valores mais tradicionais da cultura helecircnica Por outro lado sustentando acusaccedilotildees
de caraacuteter social aparecem as consideraccedilotildees de Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio tendo em vista as
preocupaccedilotildees poliacuteticas do governo romano Taacutecito198 escreveu que os cristatildeos eram mal vistos
pela suas flagitia199 e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero humano] A
crenccedila desse grupo era considerada uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]
Suetocircnio200 os considerava homens de uma superstitionis novae ac maleficae [superstitio201
nova e maleacutefica] Frontatildeo202 em atenccedilatildeo agraves antigas caluacutenias de flagitia teria acusado os
196 Eusebio Hist Ecles III231 197 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 108 198 Anais XV44 199 O termo latino pode significar ldquocrime infacircmia ato vergonhoso etcrdquo LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) 200 genus hominum superstitionis novae ac maleficae [raccedila de homens de uma superstitio nova e maleacutefica] De Vita Caesarum Vita Neronis 162 201 A palavra latina superstitio significa basicamente ldquotemor distinto aos deusesrdquo ldquopavor pelo sobrenatualrdquo com possiacuteveis variaccedilotildees em contextos diferentes Sua traduccedilatildeo para ldquosupersticcedilatildeordquo pode ocasionar uma confusatildeo indesejada de conceitos LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) cf JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 jun1979 pp 131-159 MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007 SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002 202 apud Minucio Felix Octavius 96-7
39
cristatildeos de orgias incestuosas Pliacutenio203 vecirc nas novas crenccedilas uma superstitionem pravam et
immodicam A imagem dos cristatildeos diante desses homens educados era negativa Mas as
opiniotildees satildeo muito divergentes sobre as bases juriacutedicas da condenaccedilatildeo dos membros desse
novo grupo religioso
O governador do Ponto-Bitiacutenia diz nunca ter participado de julgamentos de cristatildeos e
por isso natildeo sabia quais eram as medidas e os procedimentos para castigar e inquirir204 Ele
levanta as seguintes questotildees a Trajano se as diferentes idades e condiccedilotildees fiacutesicas dos
acusados deveriam ser levadas em consideraccedilatildeo se os que se retratavam mereciam ser
perdoados e se deveriam ser punidos por serem cristatildeos sem qualquer crime ou
exclusivamente pelos delitos encobertos por este nome205 O rescrito de Trajano a Pliacutenio
tendo em vista a inscriccedilatildeo de Como (CIL V 5262206) pode ter sido escrito em 111 e 112 ou
112 e 113 anos que compreenderiam o governo de Pliacutenio no Ponto-Bitiacutenia
Sua interrogaccedilatildeo sobre se o ldquonomerdquo deveria ser punido mesmo sem significar uma
ofensa ou a ofensa subentendida pelo nome207 incide sobre que tipo de lei existia naquela
eacutepoca Segundo E Le Blant208 as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis
penais existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de
laesea maiestatis Todavia conforme propocircs C G Roman209 em seu estudo eacute provaacutevel que
os cristatildeos estivessem sendo denunciados naquela regiatildeo devido ao fato de se reunirem
semanalmente Isso contrariava as estipulaccedilotildees do edito promulgado pelo governador segundo
as instruccedilotildees de Trajano que proibia as assembleias ou hetaerias210 entre o povo para evitar
conspiraccedilotildees211 Assim pelo menos neste ponto eacute preciso concordar com Pedro Barcelograve no
203 [superstitio distorcida e desregrada] Ep X968 204 Cognitionibus de Christianis interfui nunquam ideo nescio quid et quatenus aut puniri soleat aut quaeri [ Nunca tomei parte em processos contra cristatildeos por esta razatildeo eu natildeo sei o que costumeiramente se deve punir e quais satildeo as extensotildees ou investigaccedilotildees] (Ep X97) 205 Ep X96 206 Corpus Inscripitionum Latinarum V Berolini Reimer 1959 207 nomen ipsu etiamsi flagitiis careat an flagita cohaerentia nomini puniantur [O proacuteprio nome mesmo sem nenhuma ofensa ou os crimes associados a esse nome devem ser punidos] (Ep X97) 208 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 209 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 passim 210 Assembleias civis comuns entre os gregos 211 Ep X97
40
reconhecimento de que se estaacute diante de um problema local212 Os cristatildeos estavam agrave mercecirc
de denuacutencias de desobediecircncia ao edito do governador mas tambeacutem por alguma
irregularidade identificada no tocante agrave nova religiatildeo
Pliacutenio consultou Trajano pelo menos duas vezes sobre como lidar com as heterias213
Ele havia questionado sobre a possibilidade de criar um coleacutegio de fabri composto por 150
homens na Nicomeacutedia214 Mas o imperador respondeu ldquoNatildeo esqueccedilamos que tua proviacutencia e
sobretudo esta vila eacute vitima de sociedades deste gecircnero Qualquer que seja seu nome
qualquer que seja a finalidade de que dermos a estes homens reunidos daraacute lugar rapidamente
a heteriasrdquo215 Natildeo seria razoaacutevel abrir uma exceccedilatildeo aos cristatildeos Mediante inuacutemeras
denuacutencias Pliacutenio resolveu investigar sobre o tipo de assembleia que constituiacuteam as reuniotildees
cuacutelticas cristatildes Os processos de acusaccedilatildeo cresceram e proporcionaram vaacuterios incidentes216
Denuacutencias anocircnimas por meio de libelus contendo o nome de pessoas que negavam ser cristatildes
estavam entre os inconvenientes Os cristatildeos alegavam que sua uacutenica culpa ou erro era se
reunirem antes de nascer o sol em um dia especiacutefico da semana para cantar hinos a Cristo E
tambeacutem de se ajuntarem para uma refeiccedilatildeo comum vista pelo governador como innoxium
[inocente] Praacutetica que havia sido abandonada devido ao edito de Pliacutenio O governador
procurou extrair informaccedilotildees sobre os cristatildeos mas ele escreve que natildeo encontrou nada aleacutem
de uma superstitionem pravam et immodicam Visto que o nuacutemero de acusados estava
provocando ldquoincidentesrdquo Pliacutenio decidiu consultar o imperador sobre o assunto Ele nota que
pessoas de todas as idades de todos os graus de ambos os sexos e de muitas cidades satildeo
citadas em juiacutezo A superstitio dos cristatildeos jaacute se estendia pelos campos e vilas mas ele eacute
otimista e acredita ser possiacutevel sanar esse problema217 Pliacutenio218 escreve que
muitos recomeccedilam a frequentar os templos que haviam ficado quase desertos tornando a se celebrarem os sacrifiacutecios solenes abandonados e a se venderem as viacutetimas das quais ateacute agora eram raros os compradores De modo que eacute faacutecil argumentar que muitas pessoas podem se emendar se existir lugar para arrependimento
Desse modo haacute uma evidente intenccedilatildeo de realocar os cristatildeos ao povo em geral que
participa da religiatildeo oficial Deve ser esta a razatildeo pela qual o governador concede o perdatildeo
212 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 p 69 213 Assembleias comuns aos gregos 214 Ep X33 215 Ep X341 216 mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species incierunt [Assim como seu suceder crescem os processos de acusaccedilatildeo ocasionando vaacuterios incidentes] (Ep X97) 217 quae videtur sisti et corrigi posse (Ep X97) 218 Ep X97
41
agravequeles que abandonam o cristianismo Mas baseado em relatos anteriores219 e em textos
posteriores sobre esse tipo de julgamento220 pode-se supor que os cristatildeos intimados
argumentavam e questionavam sobre a razatildeo da culpa que os condenava
Roman221 em certa medida seguindo o raciociacutenio de Marta Sordi222 sustenta que a
disposiccedilatildeo de Trajano estaacute voltada para a soluccedilatildeo de problemas sociais na regiatildeo do Ponto-
Bitiacutenia tendo em vista a sua recomendaccedilatildeo geral contra as heterias Proibindo as reuniotildees
puacuteblicas de qualquer caraacuteter os cristatildeos estariam indiretamente incluiacutedos Mas Roman
atribuindo um acentuado grau de toleracircncia a Trajano considera que o imperador estaacute
liberando os cristatildeos dessa condenaccedilatildeo recomendando que os mesmos natildeo sejam buscados
No entanto natildeo haacute qualquer razatildeo para supervalorizar a ldquotoleracircnciardquo desse imperador aos
cristatildeos
Se fossem acusados de violaccedilatildeo do edito das heterias defender-se-iam dizendo que
natildeo se reuniam mais Caso os problemas envolvendo cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia se ressumissem
a essa questatildeo o magistrado deveria soltaacute-los imediatamente Mas natildeo eacute isso que eacute descrito
por Pliacutenio Ele relata que insistia para que os acusados negassem ser ldquocristatildeosrdquo ameaccedilando-os
de morte Certamente um cristatildeo questionaria esse tipo de julgamento perguntando sobre qual
crime teria sido por eles cometido O governador sabia que esses religiosos eram acusados em
outros lugares e ao caracterizar as crenccedilas cristatildes como pravam et immodicam uma percepccedilatildeo
muito negativa se manifesta No entanto natildeo haacute referecircncia a nenhuma lei contra os cristatildeos
Pliacutenio decidiu punir os que confessavam essa superstitio procurando convencecirc-los a
mudarem de opiniatildeo quanto agrave feacute a que se apegavam ameaccedilando-os por ateacute trecircs vezes Seu
julgamento foi que independente da natureza dos credos dos cristatildeos a inflexibilidade e
obstinaccedilatildeo que os faziam natildeo negar o nomen christianum tornavam-lhes dignos de puniccedilatildeo223
Giorgio Jossa224 destacou ainda que nenhum dos crimes a eles imputados eram demonstados
ou pareciam dignos de serem cridos contudo os cristatildeos satildeo vistos como seguidores de
crenccedilas despresiacuteveis Embora natildeo exista nenhuma referecircncia a uma lei contra os fieacuteis natildeo haacute
nenhuma razatildeo para se pensar que Pliacutenio estivesse receoso de punir os cristatildeos exceto pelo
fato de que o nuacutemero de denuacutencias anocircnimas poderia provocar desordem Conforme apontou
219 Atos dos Apoacutestolospassim 220 Euseacutebio Hist Ecles passim Atas dos maacutertires passim 221 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-242 222 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 87-102 223 hellip qualecumque esset quod faterentur pervicaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri (Ep X97) 224 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 116
42
J Danieacutelou225 natildeo era uma lei especiacutefica que ocasionava a condenaccedilatildeo dos fieacuteis mas a
ausecircncia de uma lei que regulamentasse a nova religiatildeo como a que autorizava a religiatildeo
judaica
A resposta de Trajano natildeo demonstrou muita preocupaccedilatildeo com os cristatildeos O
imperador aprovou as medidas empregadas contra eles e para evitar o problema do excesso
de denuacutencias sem fundamento recomendou que natildeo fossem admitidas delaccedilotildees anocircnimas O
imperador tambeacutem estabeleceu que os fieacuteis natildeo deveriam ser perseguidos Ele escreveu
Agiste muito bem meu caro Pliacutenio ao instituir os processos contra esses que te foram denunciados como cristatildeos Natildeo se deve estabelecer regra dura e inflexiacutevel de aplicaccedilatildeo universal Natildeo os procure mas se surgirem outras denuacutencias que procedam puna-os Poreacutem com esta ressalva de que se algueacutem nega ser cristatildeo e mediante a adoraccedilatildeo dos deuses demonstra natildeo o ser atualmente deve ser perdoado em recompensa de sua emenda por muito que o acusem suspeitas relativas ao passado Natildeo merecem atenccedilatildeo panfletos anocircnimos em causa alguma aleacutem do dever de evitarem-se antecedentes iniacutequos panfletos anocircnimos natildeo condizem absolutamente com os nossos tempos226
O caraacuteter lacocircnico da resposta de Trajano poderia se justificar pelo menos de trecircs
formas Em primeiro lugar a autenticidade do rescrito de Trajano e a carta de Pliacutenio a esse
imperador foram questionadas por alguns estudiosos desde o seacuteculo XVIII Segundo
Cristobal G Roman a anaacutelise de J S Semler227 em 1788 contribuiu para desencadear uma
corrente de pensamento que foi bem representada ateacute longos anos do seacuteculo XX228 As
principais objeccedilotildees natildeo estariam diretamente relacionadas agrave inadequaccedilatildeo da descriccedilatildeo de
Pliacutenio sobre as comunidades cristatildes e a situaccedilatildeo real na qual se encontrariam As
discordacircncias incidiriam sobre o tipo de canto praticado nas reuniotildees cristatildes e sobre o nuacutemero
de cristatildeos existentes no Ponto-Bitiacutenia segundo o relato de Pliacutenio229 Os aspectos estruturais
satildeo analisados na criacutetica de L Hermann230 que aponta as repeticcedilotildees e as reiteradas alusotildees agrave
proacutepria ignoracircncia de Pliacutenio como elementos que induzem a pensar em interpolaccedilotildees ou 225 Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975 pp 13-15 226 Pliacutenio Ep X981ss 227 Novae observationes quibus studiosius illustrantur potiora capita historiae et religionis christianae usque ad Constantinum Halle Impensis Bibliopolii Hemmerdiani 1781 228 Marcel Durry (Pline-le-juene Paris Soc DrsquoEacuted Le belle Lettre 1972 p 7071) oferece uma lista dos pesquisadores que aponta a inautenticidade da correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano Entre as obras aparecem AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875 p 186 HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844 pp 426 HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885 LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934 pp 28-34 e GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946 p 585 229 VIDMAN L Etude sur la correspondance de Pline Le Jeune avec Trajan Roma LErma di Bretschneider 1972 pp 87 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 227 230 HERMANN L Les interpretations de la lettre de Pline sur les chretiens Latomus XIII 1954 p 343 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228
43
falsificaccedilotildees Dentro dessa mesma loacutegica estaria a resposta lacocircnica de Trajano agraves trecircs
questotildees que aparecem na carta de Pliacutenio a) se deveriam ser feitas distinccedilotildees tendo em vistas
as idades dos cristatildeos b) se deveria lhes permitir o arrependimento c) e se o roacutetulo de cristatildeo
deveria ser motivo de castigo por si mesmo ou apenas os delitos que aquele nome
implicava231 A resposta de Trajano contempla diretamente apenas a segunda questatildeo natildeo
dando provas de que a primeira e a terceira estivessem na carta por ele recebida Desse modo
Hermann deduz que as questotildees natildeo contempladas seriam interpolaccedilotildees
Entretanto a despreocupaccedilatildeo de Trajano em estabelecer uma norma riacutegida contra os
cristatildeos pode justificar o caraacuteter superficial de sua resposta Ele escreve que neque enim in
universum aliquid quod quase certam formam habeat constitui potest232 [natildeo se pode
constituir uma norma universal ou que seja invariaacutevel] Com isso nota-se tambeacutem a
liberdade do magistrado em avaliar os suspeitos e procurar enquadraacute-los sob uma lei
A tese mommseniana da coercitio eacute rebatida parcialmente por Jossa233 tendo em vista
que na maioria dos casos de condenaccedilatildeo dos cristatildeos nesse periacuteodo a atitude das autoridades
natildeo se reduz a uma simples atitude de poliacutecia para manter a ordem puacuteblica em uma proviacutencia
atingida pela desordem mas em um procedimento judiciaacuterio que tinha iniacutecio com uma
denuacutencia privada comporta uma acusaccedilatildeo precisa e se conclue com a condenaccedilatildeo formal Um
procedimento judiciaacuterio que corresponde perfeitamente a cognitio extra ordinem234 um
processo criminal de natureza inquisitorial afirmado durante o principado para crimes e que
tinha formas diversas daqueles previstos na ordo iudiciorum que nas proviacutencias eram tidos
pelos governadores delegados pelo princeps No entanto diante da ausecircncia de uma
legislaccedilatildeo clara sobre o que fazer com os cristatildeos Pliacutenio recorre a ius coertionis para
desestimular os adeptos dessa pravam et immodicam que desrespeitam o magistrado para
sustentarem seu credo Eacute preciso considerar com certo cuidado a teoria derivada da obra de E
Le Blant235 de que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais
existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea
maiestatis Pliacutenio primeiramente julgou os cristatildeos por meio da lei local que proibia as
assembleias entre o povo poreacutem diante da correccedilatildeo por parte dos cristatildeos apontada pelo
231 Pliacutenio Epistolas X962-3 232 Ep X98 233 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 122-123 234 Tido de processo que substitui o processo padratildeo Eacute provaacutevel que soacute tenha se oficializado com forma instituiacuteda de processo no seacuteculo IV O julgamento dos cristatildeos no seacuteculo II seria um processo semelhante 235 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229
44
proacuteprio governador em sua carta ele natildeo sabia exatamente como punir os que se negavam a
desprezar agravequela superstitio Para Jossa236 estaacute evidente que a condenaccedilatildeo se efetiva diante da
profissatildeo da feacute cristatilde natildeo aos delitos a esse nome associados
O cristianismo natildeo eacute condenado como superstitio externa Uma religiatildeo estrangeira
poderia ser socialmente suspeita mas isso natildeo faz com que seja judicialmente perseguida E
natildeo eacute o seu caraacuteter baacuterbaro que lhe rende ilicidade Superstio externa e barbara o judaiacutesmo
era de fato religio licita Os romanos consideravam superstitio toda forma religiosa e toda
praacutetica cultural que natildeo correspondia agravequela transmitida pelos seus antepassados e que natildeo
eram munidas de puacuteblico reconhecimento Todas as praacuteticas religiosas de caraacuteter privado
individuais ou enraizadas em certos grupos sociais como magos ou adivinhos eram dessa
forma rotuladas Religiotildees e cultos puacuteblicos estrangeiros ainda que constituiacutessem patrimocircnio
de um povo e fossem transmitidos desde os tempos mais antigos poderiam ser tachados de
superstitio237 Segundo Jossa238 exprime-se desse modo a diferenccedila instintiva dos ciacuterculos
romanos abastados de uma consciecircncia nacional diante das religiotildees estrangeiras para os
quais os cultos natildeo romanos eram ldquonatildeo religiotildeesrdquo ou seja apenas superstitiones Externa
superstitio vem a ser toda forma ou manifestaccedilatildeo religiosa que natildeo pertenccedila originalmente agrave
tradiccedilatildeo romana ou pelo menos ao puacuteblico reconhecimento e agrave apreciaccedilatildeo dos ritos e crenccedilas
religiosas da parte dos romanos
A partir de Cicero superstitio passa a indicar tambeacutem qualquer forma excesiva
fanaacutetica de religiosidade que se contrapunha agrave moderaccedilatildeo da religio aquela manifestaccedilatildeo
religiosa tiacutepica de uma alma deacutebil (imbecillis) ou velha (anilis) que derivam em particular de
uma anguacutestia inuacutetil e absurda dos deuses239 A superstitio natildeo eacute apenas diversa mas se opotildee
sendo uma corrupccedilatildeo da religio (De natura Deorum II72)
Diante da convicccedilatildeo dos romanos de serem muito religiosos entre todos os homens de
serem inclusive religiosamente superiores aos demais fica impliacutecito que toda e qualquer
religiatildeo estrangeira eacute excessiva ou fanaacutetica que todas as religiotildees estrangeiras satildeo tambeacutem
superstitio e assim toda externa superstitio eacute tambeacutem barbara superstitio no sentido
embrionaacuterio do termo pela falta de racionalidade e moderaccedilatildeo que sempre deixam a
desejar240
236 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 123 237 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 131-159 238 Op Cit p 115 239 Ciacutecero De natura Deorum I117 Cf SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 240 JANSEN L F Op cit pp 145
45
Como jaacute foi apontado anteriormente aleacutem do proacuteprio Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio
tambeacutem adjetivaram negativamente a superstitio cristatilde Taacutecito escreveu que os cristatildeos eram
mal vistos pelas suas flagitia e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero
humano] Flagitia por sinal que Pliacutenio natildeo detectou A crenccedila desse grupo eacute considerada
uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]241 Analisando as consideraccedilotildees de Taacutecito
nota-se que a provaacutevel ofensa que os cristatildeos causavam aos deuses combatendo-os com a
propagaccedilatildeo da sua mensagem evangeacutelica e com abstenccedilatildeo de participaccedilatildeo nas celebraccedilotildees
puacuteblicas responsabilizava-lhes pelo rompimento da pax deorum que havia fragilizado a
capital do Impeacuterio tornando-a vulneraacutevel a tamanha cataacutestrofe da eacutepoca de Nero Segundo L
F Jansen242 o odio humani generis visto por Taacutecito sobre os cristatildeos ndash como antes sobre os
judeus ndash era um elemento que condenava essa superstitionis novae ac maleficae como
escreveu Suetocircnio243 tornando-a exitiabilis No entanto apologistas como Justino244
sustentaram que as flagitia atribuiacutedas aos cristatildeos eram fruto de ldquocaluacuteniasrdquo o que natildeo
acarretaria isenccedilatildeo de serem relativamente enquadrados nos crimes de sacrilegium245 ou
maiestas
No entanto ao confirmar a accedilatildeo de Pliacutenio Trajano ratifica a condenaccedilatildeo do nomen
christianum Isso deve estar ligado ao fato de o governador do Ponto-Bitiacutenia ter confirmado
os resultados positivos desse tipo de condenaccedilatildeo que visava desestimular a aderecircncia ao grupo
cristatildeos garantindo a manutenccedilatildeo da religiatildeo tradicional a uma medida moderada que
impedisse falsas denuacutencias e o cometimento de injusticcedilas O que natildeo significa que Trajano
tenha empreendido uma poliacutetica de toleracircncia aos cristatildeos dificultando as denuacutencias como em
alguns momentos parece sugerir Pedro Barcelograve246
Euseacutebio247 explora o fato de Trajano ter determinado que os cristatildeos natildeo deveriam ser
buscados (conquirendi non sunt) para assim construir uma ldquotradiccedilatildeo favoraacutevelrdquo aos fieacuteis Ele
confirma que Trajano promulga um decreto para que os cristatildeos natildeo fossem perseguidos Tal
medida eacute interpretada como o fator importante para a reduccedilatildeo parcial da perseguiccedilatildeo naquela
241 Anais XV44 242 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 145 243 De Vita Caesarum Vita Neronis 162 244 II Apol 82 245 Este caso envolveria um crime especiacutefico contra o patrimocircnio religioso pagatildeo mas natildeo haacute sinais evidentes no na primeira metade do II seacuteculo cf ROBINSON OF The criminal Law of ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 passim 246 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim 247 Histoacuteria Eclesiaacutestica III231-3
46
eacutepoca Mas essas vantagens que Euseacutebio vecirc na recomendaccedilatildeo de Trajano se reduzem ao fato
de ele natildeo admitir que os cristatildeos sejam levados em juiacutezo mediante denuacutencias anocircnimas
Mesmo assim os incocircmodos locais permaneceram Euseacutebio escreve ldquoAlgumas vezes eram as
populaccedilotildees outras as proacuteprias autoridades locais que preparavam os asseacutedios contra noacutes de
forma que ainda que sem perseguiccedilotildees manifestas acenderam-se focos parciais segundo as
proviacutenciasrdquo248 Por outro lado em grande medida influenciado por Meacuteliton de Sardes249 que
escreveu a Marco Aureacutelio Euseacutebio ratifica a tradiccedilatildeo cristatilde que destaca Nero e Domiciano
como grandes perseguidores da Igreja250 Eacute interessante a tradiccedilatildeo cristatilde relacionar as accedilotildees
anticristatildes a ldquomaus imperadoresrdquo Com isso tenta-se reproduzir a ideia de que perseguir os
cristatildeos eacute seguir os passos de tiranos Todavia quando se procuram as raiacutezes das hostilidades
imperiais com os cristatildeos faz-se necessaacuterio ter em mente que por vaacuterias regiotildees do Impeacuterio os
atritos envolvendo o combate aos cristatildeos emergem do processo de expansatildeo da comunicaccedilatildeo
da mensagem apelativa cristatilde e das transformaccedilotildees reivindicadas e provocadas por ela nas
tradiccedilotildees e no comportamento das pessoas
Desse modo deixando de lado a hipoacutetese de Marta Sordi251 sobre um senatus
consultum na eacutepoca de Tibeacuterio que teria desaprovado o reconhecimento de Cristo a
contragosto do Imperador eacute preciso lidar com o institutum neronianum252 tambeacutem
mencionado por Tertuliano como a primeira hostilidade incisiva do Impeacuterio contra os
cristatildeos Mas esta peculiar expressatildeo empregada por Tertuliano natildeo se refere a uma lei e sim
a uma accedilatildeo de Nero E a accedilatildeo de Nero neste caso teria interesses particulares e usa os cristatildeos
como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo Mesmo que as flagitia cristatildes se fundamentem em caluacutenias
originaacuterias dos atritos populares a superstitio cristatilde natildeo poderia representar algo aceitaacutevel aos
olhos dos romanos devido ao seu caraacuteter exclusivista e seu desprezo pela vida puacuteblica ligada agrave
religiatildeo tradicional Em defesa dos cristatildeos poucos anos mais tarde Justino escreveu ldquoEsta eacute
a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo
oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos sepulcros nem
celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo (I Apol 242) Aleacutem disso seria uma incriacutevel contradiccedilatildeo
sustentar que existia uma lei geral em vigor que determinava a pena capital para os cristatildeos e
248 Hist EclesIII232 249 ldquoEntre todos somente Nero e Domiciano persuadidos por alguns homens maleacutevolos quiseram caluniar nossa doutrina e acontece que deles derivou por costume irracional a mentira caluniosa contra tais pessoasrdquo (apud Euseacutebio Hist EclesIV239) 250 Hist Ecles III171 201-9 221-8 251 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968 252 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4
47
ser necessaacuterio admitir que Trajano recomenda que os cristatildeos natildeo sejam perseguidos e que
apenas os casos mais precisos sejam examinados
A resposta de Trajano alegando ldquonatildeo eacute possiacutevel constituir por assim dizer algo
universal que possua forma fixardquo253 pode servir como evidecircncia de que natildeo existia uma lei
geral para julgar os cristatildeos Todavia Roman254 considera que a foacutermula neque enin
universum deve ser relativizada em funccedilatildeo de um marco geograacutefico concreto o da proviacutencia
Ponto-Bitiacutenia e em relaccedilatildeo agrave diversidade de status juriacutedico e de situaccedilotildees existentes nessa
regiatildeo que motivam a correspondecircncia entre Pliacutenio e o Imperador Um exemplo dessa
preocupaccedilatildeo aparece quando se fala da constituiccedilatildeo de um evranouj (sociedade de seguros
muacutetuos) em Amisos255 Trajano desaprovando a ideia responde
Se as leis de Amisos de acordo com as obrigaccedilotildees do tratado lhe datildeo direito a ter uma associaccedilatildeo de seguros muacutetuos natildeo podemos proibir que a tenham tanto mais se tal sociedade natildeo procede a organizar tumultos e reuniotildees iliacutecitas senatildeo para sustentar os mais pobres Nas cidades restantes que estatildeo submetidas a nosso direito praacuteticas desse tipo devem ser proibidas []256
Roman257 estaacute correto em considerar que Trajano potildee em praacutetica um tipo de
disposiccedilatildeo que tende a fazer frente aos problemas sociais provinciais que encontram uma
ampla expressatildeo na formaccedilatildeo de heterias Esta poliacutetica encontra uma limitaccedilatildeo na situaccedilatildeo da
proviacutencia Ponto-Bitiacutenia com a existecircncia de cidades livres e federadas que se autorregulam
Poreacutem a hipoacutetese de Roman apresenta limitaccedilotildees Ele considera que tal poliacutetica
administrativa com respeito aos cristatildeos constituiria uma exceccedilatildeo em suas disposiccedilotildees sobre
as associaccedilotildees no Ponto-Bitiacutenia Esta exceccedilatildeo natildeo se explica em funccedilatildeo da diversidade de
status juriacutedico das cidades existentes nessa proviacutencia mas estaacute relacionada ao caraacuteter peculiar
das reuniotildees das comunidades cristatildes que natildeo consistiam um perigo ao Impeacuterio Roman segue
a hipoacutetese de De Robertis258 e chega a alegar que as reuniotildees cristatildes eram consideradas licita
A proposiccedilatildeo de Roman falha basicamente em natildeo compreender que a aprovaccedilatildeo por
parte de Trajano dos atos de execuccedilatildeo da pena capital sobre os cristatildeos desempenhada por
Pliacutenio estaacute diametralmente oposta a uma hipoteacutetica licenccedila agrave religiatildeo cristatilde O que descarta
qualquer vestiacutegio de simpatia romana pelos cristatildeos Aleacutem disso Pliacutenio havia informado ao
imperador que os cristatildeos haviam deixado de se reunir tendo em vista as disposiccedilotildees do edito
253 neque enim in universum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest (Ep X98) 254 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 233-234 255 Ep X92 256 Pliacutenio Ep X94 257 Op cit pp 233-234 258 ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89
48
recente Quando Trajano aponta que seria inadequado estabelecer uma norma fixa para julgar
os cristatildeos ele estaacute se referindo agraves interrogaccedilotildees levantadas por Pliacutenio questionando sobre a
necessidade de se fazer distinccedilatildeo entre jovens e idosos satildeos e doentes romanos e natildeo
romanos Desse modo o imperador estaacute de acordo que o magistrado use de seus poderes
constituiacutedos para fazer as distinccedilotildees necessaacuterias sem que se fixe uma norma universal
Giorgio Jossa259 faz uma siacutentese das teorias baacutesicas sobre as accedilotildees anticristatildes no
periacuteodo de Trajano e desenvolve uma avaliaccedilatildeo que tem em vista a complexidade da situaccedilatildeo
poliacutetica da religiatildeo cristatilde e da peculiaridade do procedimento criminal do direito romano Esta
explicaccedilatildeo comporta certa mescla de todas as trecircs hipoacuteteses aceitaacuteveis Assim Jossa considera
que o cristianismo representa antes de tudo um problema de ordem puacuteblica que dependia em
parte da sensibilidade dos magistrados por meio do uso da ius coertionis num momento onde
jaacute existia uma legislaccedilatildeo especiacutefica contra os cristatildeos e onde o nomen christianum carregava
subentendido os crimes de sacrilegium e maiesta Exceto pela sua insistecircncia em admitir que
havia uma lei especiacutefica contra os cristatildeos sua anaacutelise torna-se proveitosa em funccedilatildeo de sua
sensibilidade agrave questatildeo da ordem puacuteblica enviesada nesse dilema juriacutedico Se o nomen
christianum carregava subentendido crimes comuns eles se manifestam com a pressatildeo civil
procurando expelir esse corpo estranho da sociedade pagatilde e obriga os magistrados a
procurarem um enquadramento que ratifique a condenaccedilatildeo daquilo que para muitos do povo
estava evidente que os cristatildeos deviam ser condenados
Em siacutentese eacute mais prudente admitir que as condenaccedilotildees de outrora sobre os cristatildeos
davam margem para que os magistrados em outras regiotildees do Impeacuterio eventualmente
condenassem os cristatildeos que lhes fossem entregues normalmente devido a atritos populares
Isso justificaria a incerteza de Pliacutenio em condenar os cristatildeos Eacute o uso de se condenar os
cristatildeos em decorrecircncia desde a eacutepoca de Nero da opiniatildeo puacuteblica somada agrave imagem
negativa que a classe culta tinha desses religiosos que atribui flagitia aos fieacuteis tornando o
nomen christianum razatildeo de condenaccedilatildeo Algo que eacute negado pelos apologistas com
veemecircncia no II seacuteculo e que seraacute avaliado por Adriano subsequentemente a Trajano
259 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125
49
22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano
A Histoacuteria Augusta (51) aponta que Adriano foi um imperador dedicado agrave
manutenccedilatildeo da paz no mundo mas tatildeo logo as revoltas estouraram em regiotildees variadas Os
samaritanos se envolveram em guerra os britacircnicos davam sinais de que natildeo permaneceriam
sob o domiacutenio romano o Egito foi jogado em desordem por distuacuterbios e finalmente a Liacutebia e
a Palestina mostraram espiacuterito de rebeliatildeo
Nos anos 130 e 131 Adriano partiu para o Oriente No plano das suas reformas estava
a revitalizaccedilatildeo da cidade de Jerusaleacutem que havia sido destruiacuteda na guerra judaica de 66 a 73
Natildeo eacute agrave toa que ficou reconhecido como promotor da vida urbana no Impeacuterio valorizando as
obras puacuteblicas (aacutegoras templos teatros anfiteatros aquedutos portos ou estradas) Os
investimentos na Judeia faziam parte de sua estrateacutegia de integraccedilatildeo e romanizaccedilatildeo
Os judeus sofreram em muitos aspectos os efeitos das transformaccedilotildees culturais Mas a
introduccedilatildeo de elementos estrangeiros e a construccedilatildeo de um templo a Juacutepiter na cidade sagrada
gerou protestos260 A proibiccedilatildeo da circuncisatildeo261 contribuiu para acirrar os acircnimos revoltosos
No entanto segundo a anaacutelise de J M C Copete262 se esse foi o estopim da guerra as causas
que levaram o povo judeu e alguns outros provincianos a lutar natildeo poderiam estar apenas na
devoccedilatildeo ao seu Deus tradicional Yahveacute A insensatez romana em ignorar os problemas
estruturais da regiatildeo tais como a pobreza endecircmica reinante e as proacuteprias rivalidades entre
sacerdotes e rabinos na regiatildeo proporcionaram as condiccedilotildees para esse movimento que se
levantou como uma ameaccedila agrave ordem
Euseacutebio escreve que
Rufo governador da Judeacuteia com o reforccedilo militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade marchou contra eles Aniquilou em massa milhares de homens de crianccedilas e de mulheres e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territoacuterios agrave escravidatildeo Mandava entatildeo sobre os judeus um chamado Bar Kosibas que significa ldquofilho da estrela263
A religiatildeo dos judeus era o elemento fundamental de sua identidade Havia interaccedilatildeo
com os demais povos do Impeacuterio mas qualquer tipo de resistecircncia em funccedilatildeo dessa
260 Cassius Dio His Rom 121-3 261 Hist Aug 142 262 Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 263 His Ecles IV61-2
50
identidade poderia deixar as autoridades romanas ressabiadas Taacutecito264 fala da diferenccedila de
ambos os mundos O judaiacutesmo parecia-lhe uma supersticcedilatildeo absurda soacuterdida e depravada que
gerava costumes contraacuterios aos dos outros povos A abstenccedilatildeo do culto ao imperador por parte
dos judeus poderia simbolizar sua rejeiccedilatildeo ao Impeacuterio e agrave cultura greco-romana mas natildeo se
deve pensar que os judeus estavam blindados agrave cultura helecircnica e que as oligarquias judaicas
se isolassem dos negoacutecios com as demais proviacutencias do Impeacuterio265
Uma das preocupaccedilotildees de Justino em sua I Apologia eacute deixar claro que os judeus
haviam se tornado os principais opositores dos cristatildeos e que muitos foram vitimados por Bar
Kosiba que os mandava ldquosubmeter a terriacuteveis torturasrdquo266 Natildeo haacute certeza sobre as razotildees
dessa oposiccedilatildeo e se ela diferia da rivalidade entre judeus e cristatildeos constatada no I seacuteculo
Todavia aleacutem desse tipo de accedilatildeo anticristatilde haacute indiacutecios de que os tribunais locais recebessem
queixas sobre os cristatildeos e um nuacutemero significativo de fieacuteis era levado agrave morte Tal como a feacute
dos judeus a religiatildeo dos cristatildeos era considerada uma superstitio reprovaacutevel que apresentava
resistecircncia agrave vida puacuteblica no Impeacuterio ou seja que natildeo se envolviam em teatros jogos e todo
tipo de reverecircncias aos deuses pagatildeos Para evitar quaisquer duacutevidas quanto agrave identidade entre
cristatildeos e judeus o apologista faz essa interpolaccedilatildeo
Em funccedilatildeo das condenaccedilotildees sofridas pelos cristatildeos durante o governo de Adriano
Quadrato e Aristides escreveram-lhe apologias267 Se a teoria de Paul Andriessen268 for
tomada por certa e a Carta a Diogneto for reconhecida como a apologia perdida de Quadrato
reconhecer-se-aacute a disposiccedilatildeo tanto nesse escrito quanto na Apologia de Aristides em
apresentar algumas das principais distinccedilotildees entre as crenccedilas dos cristatildeos dos judeus e dos
pagatildeos A principal queixa na Carta a Diogneto leva a crer que o ldquonomerdquo cristatildeo era um
elemento chave para a condenaccedilatildeo269 Sua queixa faz pensar que as variaccedilotildees nos julgamentos
nos tribunais locais pudessem proporcionar um destino distinto aos cristatildeos ldquoPor isso
condeno tambeacutem as vossas leis Deveria haver uma soacute constituiccedilatildeo poliacutetica comum para
todos agora haacute tantas legislaccedilotildees quantas cidades existem e assim acontece que o que entre
uns eacute vergonhoso entre outros eacute tido por honrosordquo270
264 Taacutecito Historia V 3-6 Cf Strabatildeo Geografia XVI237 Quintiliano Institutio Oratoria II7 Juvenal Satiras III 13-6 VI 541-7 96-106 Plutarco De Superstitione 8 Cassius Dio Hist Rom 37174 265 Josefo Antiguidades Judaicas XVIII 23 Guerras dos Judeus II118 266 I Apol 316 267 Euseacutebio His Ecles IV31-3 268 Lrsquoapologie de Quadratus conserve sous le nom drsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedievale 13 1946 pp 5-260 Id Lrsquoepilogue de lrsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedieacutevale 14 1947 pp 121-156 269 Carta a Diogneto 271ss 270 Carta a Diogneto 281ss
51
O rescrito de Adriano ao prococircnsul da Aacutesia a partir de 124125 dC Minuacutecio
Fundano oferece uma ideia sobre sua forma de lidar com os cristatildeos O texto foi conservado
na Apologia de Justino (I Apol 68) no texto de Euseacutebio271 e por Rufino na versatildeo latina
Adriano havia recebido a carta de Serecircncio Graniano272 antecessor de Minuacutecio e julgou ser
importante responder essa demanda a fim de ldquoevitar que se perturbem os homens e que os
delatores encontrem apoio para suas maldadesrdquo273 Adriano recomenda que
se os provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo que respondam a ela diante do tribunal deveratildeo ater-se a esse procedimento e natildeo a meras peticcedilotildees e gritarias Com efeito eacute muito mais conveniente que se algueacutem pretende fazer uma acusaccedilatildeo examines tu o assunto Em conclusatildeo se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delito Mas por Heacutercules se a acusaccedilatildeo eacute caluniosa castiga-o com maior severidade e cuida para que natildeo fique impune (I Apol 688-10)
As interpretaccedilotildees desse rescrito satildeo divergentes Em uma primeira linha interpretativa
representada por exemplo por B Orgeval H Gregoire L Regibus e M Sordi274 acredita-se
que esse rescrito assegurou a liberdade de algum tipo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos por
professarem sua religiatildeo e providenciou que fossem punidos apenas por crimes cometidos
contra as leis comuns Representantes de outro ponto de vista como C Callewaerd J Moreau
e W Schimid275 sustentam que o rescrito natildeo concede aos cristatildeos nenhuma liberdade
O rescrito foi lido por Justino de um modo favoraacutevel aos cristatildeos como se de fato o
Imperador tivesse agido decididamente a favor dos cristatildeos A esse documento fez alusatildeo
Meliton bispo de Sardes276 Euseacutebio agiu de modo semelhante em sua proacutepria leitura do
rescrito de Trajano e seguiu a Justino em sua interpretaccedilatildeo do rescrito de Adriano No entanto
como mostrou Paul Kereszts277 a interpretaccedilatildeo do apologista difere do sentido original do
rescrito Segundo a interpretaccedilatildeo de Justino Adriano teria proibido que os cristatildeos fossem
271 His Ecles IV 9 272 O nome correto eacute Q Licinio Silvano Graniano cocircnsul a partir de 106 dC e pro-cocircnsul da Aacutesia a paritir de 122123 dC MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 132 273 I Apol 687 Eus Hist Ecles IV9 274 ORGEVAL B LEmpereur Hadrien oeuvre leacutegislative et administrative ParisGrenoble Domat MontchrestienImpr De Allier 1950 pp 302-307 GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 pp 138-139 REGIBUS L de Storia e Diritto Romano negli Acta Martyrum Didascalos 1926 pp 147-148 SORDI M I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349 275 CALLEWAERT C Le Rescrit dHadrien a Minucius Fundanus Reviste dHistoire et de Litterature 6l 8 1903 pp 152-189 MOREAU J La Persecution du Christianism e dans lEmpire Romain Paris Presses Universitaires de France 1956 p 48 SCHIMID W The Christian Re-Interpretation of the Rescript of Hadrian Maia 71955 pp 5-13 276 Euseacutebio Hist EclesIV 2610 277 Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129
52
punidos simplesmente mediante a confissatildeo de que eram ldquocristatildeosrdquo e teriam recomendado
que fossem julgados pelos crimes como quaisquer outros e natildeo por suas crenccedilas
Segundo C G Roman278 a postura de Adriano em advertir a Minuacutecio Fundano a nada
julgar sem denuacutencia e acusaccedilatildeo formal contra os cristatildeos dava continuidade agrave poliacutetica de
Trajano Tomando essa perspectiva como exemplo deve-se destacar que a interpretaccedilatildeo do
rescrito de Adriano dependeraacute significativamente da interpretaccedilatildeo do rescrito de Trajano e
talvez deva remontar ateacute um pouco antes Roman interpretou as recomendaccedilotildees deste uacuteltimo
como sendo positivas para com os cristatildeos e sua tendecircncia eacute reconhecer o aprimoramento das
limitaccedilotildees das accedilotildees anticristatildes
J Beaujeu279 considera que Adriano procedeu a uma grande obra de restauraccedilatildeo
religiosa que obedecia aleacutem das necessidades religiosas a objetivos poliacuteticos agrave medida que
tendia a uma unificaccedilatildeo religiosa das distintas proviacutencias do Impeacuterio debaixo da eacutegide dos
cultos Greco-romanos mediante a criaccedilatildeo de uma religiatildeo do Estado siacutentese destes uacuteltimos
cultos com as religiotildees orientais com a originalidade dos diversos grupos sociais e eacutetnicos
que formavam o Impeacuterio
De fato Adriano foi um imperador interessado em conhecer a cultura do vasto
Impeacuterio Por volta do ano de 124 iniciou-se nos misteacuterios Eleusis importante oraacuteculo do
mundo grego revelando um interesse miacutestico que acabou por conduzi-lo tambeacutem ao
conhecimento misterioso da religiatildeo egiacutepcia Os cultos tradicionais de Roma natildeo receberam
menor atenccedilatildeo certamente para manter uma relaccedilatildeo amistosa com os integrantes do universo
senatorial Construiu um templo a Venus em Roma no Foro Romano no ano de 121 e mandou
reconstruir o Panteatildeo de Marco Agripa um dos mais importantes colaboradores de
Augusto280 No entanto isso natildeo permite ver em seu rescrito uma accedilatildeo proacute-cristatilde que
estivesse em consonacircncia com a ideia sustentada por Marta Sordi281 de que Adriano teve em
mente reconhecer a Cristo entre os outros deuses e lhe oferecer um templo conforme anota a
Histoacuteria Augusta (Alexandre Severus 436-7) Essa passagem se assemelha agrave lenda de que
antes de propor a construir a cidade de Elia Adriano havia empreendido um projeto de
reconstruccedilatildeo conjunta do templo de Jerusaleacutem com os judeus mas a oposiccedilatildeo dos samaritanos
278 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 230 279 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp150ss 280 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 43 281 I Cristiani e Lrsquoimpero Romano Ed rev e atual Milano Jaca Book 2011 p 98
53
fez com que os planos sofressem mudanccedilas draacutesticas282 Esse tipo de tendecircncia pode chegar a
ponto de admitir como sustentou T Mommsem283 que Adriano estava proacuteximo a elevar a feacute
cristatilde a uma religio licita
As comparaccedilotildees entre as accedilotildees de Trajano e Adriano satildeo muito importantes para o
desenvolvimento de uma teoria coerente que explique a condiccedilatildeo dos cristatildeos nesse iniacutecio do
II seacuteculo todavia natildeo eacute necessaacuterio admitir nenhuma continuidade entre ambos em razatildeo dos
rescritos G Jossa284 alerta que os rescritos natildeo satildeo ldquoleisrdquo mas recomendaccedilotildees a governantes
locais e nem um desses imperadores estabeleceu normas gerais sobre o julgamento dos
cristatildeos
Como foi visto anteriormente ao responder a demanda de Pliacutenio Trajano admitiu o
procedimento daquele governador em condenar os cristatildeos mediante a confissatildeo
recomendaccedilatildeo que fazia pressupor que o nomen christianum representava a razatildeo da
condenaccedilatildeo que visava desestimular a adesatildeo e expansatildeo dessa superstitio Naquela ocasiatildeo o
imperador fez questatildeo de lembrar que as denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas Pouco
tempo depois Adriano precisa admoestar os governantes da Aacutesia Menor a natildeo serem movidos
por ldquomeras peticcedilotildees e gritariasrdquo285 A condenaccedilatildeo aos cristatildeos provocou abusos nas
condenaccedilotildees Se bastasse estender o dedo para algueacutem e acusaacute-lo de cristianismo para
conseguir sua condenaccedilatildeo essa seria uma forma eficaz de eliminar qualquer pessoa
indesejada ainda que ela natildeo fosse cristatilde Adriano entatildeo reconhece que a questatildeo levantada
por Graniano natildeo poderia ficar sem resposta pois os efeitos da desordem seriam extensos
Embora a carta de Graniano natildeo tenha sido preservada eacute possiacutevel deduzir que se o imperador
recomenda a condenaccedilatildeo dos ldquomaleacutevolosrdquo delatores dos cristatildeos que indevidamente os
caluniavam visando agrave puniccedilatildeo isso significa que esse tipo de episoacutedio jaacute havia sido
constatado naquela regiatildeo Nenhuma norma universal eacute estabelecida ou mencionada O
governador eacute designado como o responsaacutevel por examinar as denuacutencias formais e averiguar os
casos
Fica evidenciada a obrigaccedilatildeo por parte de quem realiza a denuacutencia de apresentar ele
mesmo provas sobre seu testemunho diferenciando-se um pouco da medida de Trajano
segundo a qual o governador deveria se responsabilizar pela investigaccedilatildeo O castigo aos falsos
282 Midash Berersquoshit Babba 6410 e Epiacutestola de Barnabeacute 163-4 apud COPETE J M C Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII CONGRESSO INTERNACIONAL GIREA-ARYS IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 283 Der religonsfrevel nach der roumlmischen Recht Historische Zeitschrift 64 1890 pp 389-429 284 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125 285 I Apol 688
54
acusadores era praacutetica usual no direito romano286 Neste ponto surge a seguinte questatildeo Os
acusadores deveriam provar que os cristatildeos por eles acusados cometiam a infraccedilatildeo de serem
ldquocristatildeosrdquo ou que infringiam outras leis comuns subentendidas pelo seu nomen
A expressatildeo287 ei tij ou=n kathgorei kai deiknusi ti para touj nomouj prattontaj(
ou[twj Diorixw kata thn Dunamin tou a`marthmatoj( [ se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e
demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade
do delito ] (I Apol 6810) eacute entendida de modo positivo ou negativo dependendo da corrente
de interpretaccedilatildeo No entanto o proacuteprio rescrito tem algo a dizer em um delineamento mais
claro sobre essa questatildeo A especificaccedilatildeo de que os acusadores deveriam demonstrar que os
cristatildeos acusados agiam contra as leis [touj nomoj prattontaj] eacute uma medida para evitar as
sukofantiaj [caluacutenias] Por isso ele recomenda que Minuacutecio Fundano examine os casos e ldquose
a acusaccedilatildeo eacute caluniosa [castigue-o]288 com maior severidade e [cuide]289 para que natildeo fique
impunerdquo (I Apol 6810)
Uma nova questatildeo incide sobre o significado dessa acusaccedilatildeo ldquocaluniosardquo Justino
interpretou esse trecho como as acusaccedilotildees que maculavam injustamente a imagem dos
cristatildeos atribuindo-lhes canibalismo ateiacutesmo maiestas ou outras coisas desse tipo Segundo
esse tipo de interpretaccedilatildeo Adriano estaria reprovando a condenaccedilatildeo pelo nomen christianum
e recomendando que os governantes examinassem se existia de fato algum crime contra as
leis Ateacute esse ponto essa medida natildeo significaria nenhuma benevolecircncia para com os cristatildeos
apenas garantiria que fossem julgados como quaisquer outros no Impeacuterio sem que os
magistrados fossem movidos por gritarias puacuteblicas mas que se detivessem aos processos
formais Todavia uma segunda hipoacutetese eacute cogitada
Nessa hipoacutetese as acusaccedilotildees ldquocaluniosasrdquo agraves quais Adriano se refere poderiam natildeo ser
do mesmo tipo das que Justino tinha em mente em suas Apologias Elas poderiam se referir agrave
proacutepria acusaccedilatildeo de cristianismo lanccedilada sobre algueacutem com o intuito de levaacute-lo agrave condenaccedilatildeo
sob uma lei especiacutefica contra os cristatildeos Nessa perspectiva a exigecircncia de Adriano para que
se examinasse a comprovaccedilatildeo da denuacutencia seria uma medida semelhante agravequela tomada por
Pliacutenio exigindo que os acusados sacrificassem aos deuses e amaldiccediloassem a Cristo para que
assim se pudesse verificar se eram realmente cristatildeos A diferenccedila eacute que natildeo eacute possiacutevel
286 ROBINSON O F The criminal Law of ancient Rome Baltimore John Hopkins University Press 1996 pp 8100 287 O rescrito em latim que Euseacutebio dizia ter sido anexado originalmente por Justino foi substituiacutedo no MS Par Grae 450 pela traduccedilatildeo grega de Euseacutebio (MINNS D PARVIS P Justin philosopher and martyr apologies New York Oxford University Press 2009 p 265) 288 Adaptaccedilatildeo de ldquocastiga-ordquo para melhor leitura da frase 289 Originalmente ldquocuidardquo
55
conferir a carta de Graniano para fazer algum tipo de comparaccedilatildeo Desse modo natildeo haveria
nenhuma diferenccedila entre a posiccedilatildeo de Trajano e Adriano exceto a recomendaccedilatildeo desse uacuteltimo
para que os caluniadores fossem punidos Para sustentar essa teoria poreacutem torna-se
necessaacuterio admitir que o rescrito de Adriano foi sutilmente modificado pelos cristatildeos para
convertecirc-lo a favor da feacute cristatilde Se por um lado eacute faacutecil supor a modificaccedilatildeo desse documento
ndash o que poderia ter ocorrido ateacute em funccedilatildeo da sua traduccedilatildeo do latim para o grego ndash por outro
lado natildeo haacute outro documento desse tipo que comprove tal adulteraccedilatildeo e nem mesmo que
ratifique uma accedilatildeo intolerante de Adriano para com os cristatildeos Outra hipoacutetese deve ser
examinada e agora deveraacute levar em consideraccedilatildeo as leis agraves quais o rescrito se refere
No texto grego de Euseacutebio que agora aparece na I Apologia de Justino conforme o
MS A a conjugaccedilatildeo no particiacutepio plural presente ativo masculino do verbo prattontaj estaacute
relacionada agrave frase anterior Aproximando as frases o sentido que se tem eacute o seguinte ldquose os
provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo
que respondam a ela diante do tribunal [] faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam
alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delitordquo290 O texto
latino de Rufino eacute mais especiacutefico com essa associaccedilatildeo Si quis igitur accusat et probat
adversum leges quicquam agere memoratos homines pro merito peccatorum etiam suplicia
statues291 Nesse caso memoratos homines [homens mencionados] eacute uma expliacutecita referecircncia
aos Christianos Todavia tanto C Munier292 quanto D Minns e P Parvis293 ignoram a
palavra memoratos294 traduzindo o texto como se o rescrito se referisse ao modo geral de se
proceder em um julgamento ou seja a todos os homens cujos crimes fossem confirmados
Essa hipoacutetese forccedila o texto pois neste caso uma norma geral faria com que qualquer denuacutencia
precisasse ser provada pelo delator sob o risco de ser punido severamente caso natildeo fosse
confirmada pelas autoridades Desse modo esse tipo de sustentaccedilatildeo se converte em absurdo
Admitir que Adriano estivesse realmente orientando Minuacutecio Fundano a julgar
pessoalmente as denuacutencias contra os cristatildeos e exigir provas dos delatores que confirmassem
o descumprimento das leis natildeo significa que o imperador demonstrava simpatia pelo
cristianismo Sua preocupaccedilatildeo eacute manter a ordem e evitar os abusos Era preciso impedir que
290 I Apol 688-10 291 Apud MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 133 292 Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 pp 314-317 293 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 44264-267 294 Participio plural passado perfeito masculino acusativo que significa ldquotrazido agrave lembranccedilardquo ldquoditordquo ldquomencionadordquo ldquorelacionadordquo etc LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project)
56
as manifestaccedilotildees puacuteblicas solapassem o procedimento correto dos tribunais Haacute sim uma
diferenccedila significativa entre a postura de Trajano e a de Adriano mas ela natildeo torna o segundo
um amigo ou inimigo dos cristatildeos Cabe lembrar que uma das questotildees levantadas por Pliacutenio
a Trajano era se os cristatildeos deveriam ser punidos pela confissatildeo desse nome ou pelos crimes
subentendidos Naquele caso especiacutefico da Bitiacutenia uma das infraccedilotildees era quando os cristatildeos
se reuniam em seus cultos passar por cima da lei que impedia as reuniotildees e associaccedilotildees
gerais Abandonada essa praacutetica o governador natildeo via nenhum crime ou ameaccedila no modo de
ser dos cristatildeos e natildeo encontrou outra razatildeo para puni-los senatildeo pela contumaacutecia que
apresentavam diante de um magistrado em natildeo negar a feacute que era estranha aos olhos de Pliacutenio
A resposta de Trajano ainda que lacocircnica ratificou o procedimento de Pliacutenio e mesmo sem se
identificar um ldquocrimerdquo especiacutefico aprovou a condenaccedilatildeo dos cristatildeos pelo seu nomen para
desestimular a superstitio estranha e incentivar a retomada do culto puacuteblico pagatildeo Adriano
por outro lado tambeacutem sem fazer referecircncia a qualquer lei especiacutefica contra os cristatildeos
orienta os governantes a condenarem a todos aqueles que comprovadamente estivessem
infringindo a lei Tudo indica que a Aacutesia estava sendo agitada por mobilizaccedilotildees puacuteblicas que
impeliam os magistrados contra os cristatildeos Essa eacute a razatildeo para os apologistas Quadrato e
Aristides escreverem tambeacutem O nuacutemero dos cristatildeos ainda natildeo era muito significativo para o
estabelecimento de uma lei geral
Conforme destacou Jossa295 os cristatildeos se confrontavam com a opiniatildeo puacuteblica
Dentre o povo emergiram acusaccedilotildees de incesto infanticiacutedio e outras coisas do gecircnero A
rejeiccedilatildeo aos deuses e o estranhamento ao mos romanorum e o seu odio humanum generis
faziam com que os cristatildeos se tornassem a causa das desgraccedilas no Impeacuterio diante dos olhos de
uma boa parte dos pagatildeos No periacuteodo de Adriano a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos era apenas uma
questatildeo de ordem puacuteblica que constrangia o governo romano a uma difiacutecil obra de mediaccedilatildeo
entre os vaacuterios grupos locais Era um aspecto da poliacutetica de pacificaccedilatildeo das proviacutencias A sua
preocupaccedilatildeo estaacute relacionada exclusivamente a manter a ordem puacuteblica nas proviacutencias e a
garantir a observacircncia rigorosa do direito296 A hostilidade aos cristatildeos e os crescentes
confrontos obrigavam os governadores a intervirem e a consultarem o imperador em casos
como esse em que as coisas ameaccedilavam sair do controle
295 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125132 296 Na Digesta XXII53 o jurista Callistrato se reporta a uma seacuterie de rescritos dos quais cinco satildeo de Adriano a governadores das proviacutencias sobre o modo como escutar os textos nos processos e sobre o valor de dar a eles testemunho cf tambeacutem Dig XLVIII27
57
As respostas de Trajano e Adriano mostram que a repressatildeo puramente local do
cristianismo tinha um caraacuteter descontiacutenuo e excepcional que natildeo impedia a nova religiatildeo de
estender-se pelo Impeacuterio fazendo novos adeptos
23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos
Durante o governo de Antonino Pio (governou de 138-161) os tribunais continuavam
a receber queixas esporaacutedicas da populaccedilatildeo sobre os cristatildeos Marco Aureacutelio297 reconheceu
seu conservadorismo e o descreveu como algueacutem profundamente devoto aos deuses
romanos298 e sempre atento ao cumprimento do proacuteprio dever no culto puacuteblico
Segundo Meacuteliton que escreveu nos tempos de Marco Aureacutelio Antonino Pio natildeo
empreendeu nenhuma modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo que viesse a abater a Igreja e que
repetidamente nos rescritos dirigidos aos tessalonicenses aos atenienses e a todos os gregos
recomendou ldquonatildeo inovar nada sobre os cristatildeosrdquo299
Na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio (IV13) aparece um rescrito de Antonino ao
conselho da Aacutesia Satildeo levantados alguns argumentos contra a autenticidade desse documento
Destacam-se principalmente os erros de titulaccedilatildeo Tambeacutem se alega que suas caracteriacutesticas
formais natildeo sejam proacuteprias dos escritos de Antonino Pio Aleacutem disso o documento apresenta
uma exaltaccedilatildeo ao cristianismo Isso faz com que alguns rejeitem total300 ou parcialmente301
esse documento No entanto as condiccedilotildees da eacutepoca corroboram com a ideia de que o
imperador tenha de fato deliberado sobre essa questatildeo e J Beaujeu302 natildeo vecirc nenhuma razatildeo
para duvidar da existecircncia de um rescrito de Antonino Pio G Jossa303 e C G Roman304
297 Pensamentos I16 298 Marco Aureacutelio Pensamentos VI3014 299 apud Euseacutebio His EclesIV2610 300 Cf SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 1954 pp 190ss SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 301 Cf FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 302 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp 279-329 303 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 148 304 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 228
58
admitem-no com reservas e P Keresztes305 sustenta que por haver um comentaacuterio tanto
negativo quanto positivo sobre os cristatildeos natildeo deveria se tratar de uma falsificaccedilatildeo O modo
como tal texto foi preservado na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio eacute controverso e merece um
exame cauteloso
Pela sequecircncia do texto entende-se que Euseacutebio falaraacute de Antonino Pio Ele anuncia o
nome de Antonino que tambeacutem foi uma forma de se referir a Marco Aureacutelio mas comeccedila a
citaccedilatildeo do texto com ldquoO imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto Armecircnio
pontiacutefice maacuteximo tribuno da plebe pela deacutecima quinta vez cocircnsul por trecircs vezes ao conciacutelio
da Aacutesia saudaccedilotildeesrdquo306 A secccedilatildeo de IV82-5 apresenta um comentaacuterio que dificilmente
poderia ser admitido como autecircntico por isso esta eacute a parte que sofre maior oposiccedilatildeo Trata-se
de uma repreensatildeo moral do imperador aos provincianos O nuacutecleo seguinte do texto agraves vezes
eacute admitido como histoacuterico como sustenta C G Roman307 Lecirc-se
Em favor destes jaacute escreveram a nosso diviniacutessimo pai muitos governadores das proviacutencias aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados a natildeo ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder puacuteblico de Roma Tambeacutem a mim muitos me falaram sobre eles e tambeacutem respondi seguindo o parecer de meu pai Mas se algueacutem persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles fique o acusado livre de encargos ainda que seja evidente que eacute cristatildeo por outro lado o acusador ficaraacute sujeito a castigo Publicado em Eacutefeso no concilio da Aacutesia (Hist Ecles IV136-7)308
O contexto e as evidecircncias internas mostram que o rescrito pretende ser de Antonino
Pio Em siacutentese o texto afirma que sob seu governo natildeo se modificou em nada o que foi
estabelecido por Adriano A liberaccedilatildeo de um cristatildeo acusado em funccedilatildeo da denuacutencia de outro
cristatildeo que insiste em levaacute-lo ao tribunal natildeo faz muito sentido Pode-se imaginar que
desavenccedilas entre cristatildeos fizessem com que um cristatildeo procurasse se livrar do seu adversaacuterio
denunciando-o agraves autoridades para que fosse condenado mas eacute inimaginaacutevel que essa fosse
uma preocupaccedilatildeo de um imperador pagatildeo Eacute provaacutevel tenha sofrido uma adaptaccedilatildeo cristatilde
Mesmo despertando ceticismo sobre sua autenticidade esse rescrito pode traduzir com
reservas a situaccedilatildeo dos cristatildeos daquela eacutepoca Neste caso a compreensatildeo da condiccedilatildeo dos
cristatildeos nesse periacuteodo depende em parte da compreensatildeo da postura de Adriano diante dos
cristatildeos Euseacutebio havia interpretado o rescrito de Adriano como uma medida que beneficiava
os fieacuteis e consequentemente vecirc como positivo o rescrito de Antonino Pio No entanto
consideram as conclusotildees especificadas sobre o rescrito de Adriano nesta pesquisa se Pio natildeo
305 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 306 Euseacutebio Hist Ecles IV131 307 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 230-231 308 Ibid
59
adicionou em nada agravequela determinaccedilatildeo os cristatildeos continuavam a serem viacutetimas de
condenaccedilotildees locais e os governantes tinham liberdade para julgar cada caso
Nesse periacuteodo ocorre o martiacuterio do Papa Teleacutesforo e o processo contra Tolomeu e
Luacutecio sob o prefeito de Roma Lollio Urbico mencionados na II Apologia de Justino (21ss)
O repuacutedio da novidade e irracionalidade da feacute dos cristatildeos aparece nos escritos de Eacutelio
Aristides309 e nas vozes populares inferiores referidas por Luciano (De morte Peregrini 11)
Sobre o martiacuterio de Policarpo haacute divergecircncias Jossa310 sustenta que ele padeceu sob Marco
Aureacutelio mas o tipo de perseguiccedilatildeo recebida natildeo foi diferente daquela pela qual padeceram os
cristatildeos condenados sob Antonino Pio Tumultos e agitaccedilotildees puacuteblicas foram problemas que
Adriano havia procurado resolver
As acusaccedilotildees de ldquoateiacutesmordquo sofridas pelos cristatildeos que aparecem na primeira parte do
rescrito satildeo pertinentes ao periacuteodo311 Esse tipo de acusaccedilatildeo levou o proacuteprio Justino a incluir
esse tema nas suas Apologias312 Eacute certo como destaca Keresztes313 que ldquoateiacutesmordquo natildeo era
um crime de fato E em segundo lugar diante das cataacutestrofes aqueles que professavam
orgulhosamente a inexistecircncia dos deuses pagatildeos tornavam-se a explicaccedilatildeo mais provaacutevel
para o distuacuterbio da pax deorum314 Haacute indiacutecios no rescrito de Antonino que esse temor dos
pagatildeos diante das forccedilas da natureza tambeacutem corroborava com o combate aos cristatildeos315
A principal queixa de Justino na deacutecada de 150 dC era a de que natildeo seria justo
algueacutem ser condenado simplesmente por professar ser ldquocristatildeordquo316 O apologista tece sua
reivindicaccedilatildeo considerando o que pensa ser ldquojustordquo e assim tambeacutem apresenta uma peticcedilatildeo
309 Aristides (Orationes XLVI309) fala dos cristatildeos como ldquoos iacutempios da Palestinardquo que se distanciavam dos costumes gregos e natildeo honravam os deuses 310 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125132 311 ldquoA estes estais empurrando para a agitaccedilatildeo uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateusrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV133) 312 I62 313 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 p 17 314 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam e comparais nossa situaccedilatildeo agrave suardquo (Hist Ecles IV134) [Os seguintes infortuacutenios e prodiacutegios ocorridos em seu reino a fome a qual jaacute mencionamos o colapso do Circus e o terremoto por meio do qual as cidades de Rodes e da Aacutesia foram destruiacutedas] Adversa eius temporibus haec provenerunt fames de qua diximus Circi ruina terrae motus quo Rhodiorum et Asiae oppida conciderunt quae omnia mirifice instauravit et Romae incendium quod trecentas quadraginta insulas vel domos absumpsit (Hist Aug Vita Antoninus IX1) Dion Cassius escreveu que ldquoNos dias de Antonino tambeacutem um terriacutevel terremoto ocorreu na regiatildeo da Bitinia e de Helesponto Vaacuterias cidades foram severamente danificadas ou caiacuteram em ruiacutenas em particular Cizicus e o templo de laacute que era o maior e mais belo de todos os templo foi lanccedilado abaixordquo (Hist Rom LXX 4) Ἐπὶ τοῦ Ἀντωνίνου λέγεται καὶ φοβερώτατος περὶ τὰ microέρη τῆς Βιθυνίας καὶ τοῦ Ἑλλησπόντου σεισmicroὸς γενέσθαι καὶ ἄλλας τε πόλεις καmicroεῖν ἰσχυρῶς καὶ πεσεῖν ὁλοσχερῶς καὶ ἐξαιρέτως τὴν Κύζικον καὶ τὸν ἐν αὐτῇ ναὸν microέγιστόν τε καὶ κάλλιστον ναῶν ἁπάντων καταρριφῆναι 315 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegamrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV134) 316 I Apol 41-7
60
reinterpretando o rescrito de Adriano317 Desse modo em exigecircncia mediante o que chama de
ldquosatilde razatildeordquo ele sustenta ser justo que os cristatildeos sejam julgados quando porventura vierem a
cometer alguma falta contra a lei ou por algum delito mas nunca por se chamarem ldquocristatildeosrdquo
Eacute em funccedilatildeo do que representava ser ldquocristatildeordquo que o apologista se dedica a algumas
explicaccedilotildees Em sua anaacutelise era por causa do preconceito das crenccedilas pagatildes dos boatos
maliciosos e ainda por certo impulso irracional por parte dos ldquooutrosrdquo que os cristatildeos eram
ofendidos318 O caso de uma mulher que se divorciou do marido pagatildeo narrado na II Apologia
eacute outro exemplo dos atritos corriqueiros que poderiam chegar aos tribunais Segundo o
apologista ldquotodo aquele que eacute repreendido pelo pai vizinho filho amigo marido ou mulher
por causa de uma falta se volta contra [os cristatildeos] por sua obstinaccedilatildeo no mal por seu amor
ao prazer e por sua impotecircncia para seguir o que eacute bomrdquo319 Aleacutem desse caso emblemaacutetico
acontecido havia pouco tempo na cidade de Roma sob Urbico320 ele acrescenta que tais accedilotildees
tambeacutem eram comuns aos governadores em todo o Impeacuterio e que ldquoem todas as partesrdquo havia
quem estivesse disposto a levar os seguidores de Cristo agrave morte321 Em ambas as Apologias
Justino escreve como quem procura alertar o imperador sobre os abusos cometidos contra os
cristatildeos Devido agrave ausecircncia de uma lei geral contra os fieacuteis as accedilotildees anticristatildes aparecem
como fruto dos distuacuterbios locais que emergiam em resistecircncia agrave nova religiatildeo A I Apologia
parece se referir aos atritos gerais contra os cristatildeos enquanto a segunda comeccedila com um
clamor a partir de um caso especiacutefico ocorrido em Roma sob o prefeito Urbico A II Apologia
daacute sinais de que as disputas de Justino com Crescente na capital imperial levavam o
apologista a prever o seu martiacuterio que soacute viria a acontecer no iniacutecio do governo de Marco
Aureacutelio
Marta Sordi322 assim como Robert M Grant323 identifica trecircs fases na poliacutetica
imperial de Marco Aureacutelio mas as duas uacuteltimas extrapolam o contexto em que se insere
Justino A primeira fase se relaciona ao periacuteodo da corregecircncia entre Marco Aureacutelio e Lucio
Vero de 161 a 169 que corresponde em parte aos uacuteltimos anos de Justino Esta fase revela a
princiacutepio a mesma condiccedilatildeo do governo de Antonino Pio mas pode ter sofrido mudanccedilas no
final da deacutecada
317 I Apol 681-10 318 I Apol 23 319 II 12 320 Quintus Lollius Urbicus havia sido incumbido por Adriano na Guerra Judaica (133-135 dC) governou a Germania Menor (136-138 dC) e a Britania (139-142 dC) e foi prefeito de Roma de 146 a 160 dC (Historiae Augustae 54) 321 II 11-2 322 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103 323 Five apologists and Marcus Aurelius Vigiliae Christianae V 42 n 1 Mar1988 pp 1-17
61
Algumas fontes cristatildes (Atas do martiacuterio de Justino 58324 Oroacutesio Historiae Adversus
PaganusVII154325) vinculam a intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo a um edito sobre sacrifiacutecios
Natildeo se tratava de um decreto diretamente contra os cristatildeos A determinaccedilatildeo exigia sacrifiacutecios
aos deuses por todas as cidades do Impeacuterio nos anos de 166168 e devia estar relacionada aos
temores devido agrave peste agrave guerra na Partia e agrave pressatildeo germacircnica326 Justino foi provavelmente
condenado por se negar a obedecer ao novo decreto mas suas Apologias refletem a situaccedilatildeo
dos cristatildeos sob Antonino Pio
Por meio de uma leitura do seu tempo Justino contemplaraacute em seu discurso os
fundamentos desse tipo de accedilotildees Ele apresenta uma desconstruccedilatildeo da forma de controle que
proporciona agreccedilotildees aos cristatildeos e entatildeo oferece uma concepccedilatildeo cristatilde para fundamentar o
estabelecimento da ordem social
O apologista compotildee uma argumentaccedilatildeo para mostrar que a religiatildeo cristatilde poderia
contribuir para a estabilidade da ordem social no Impeacuterio e oferece uma reflexatildeo sobre os
fundamentos da noccedilatildeo de justiccedila na perspectiva cristatilde Por meio do exame do discurso de
Justino identificam-se dois aspectos da relaccedilatildeo entre religiatildeo e controle social no Impeacuterio
Romano contemplados nas accedilotildees anticristatildes de seu tempo O primeiro eacute representado na sua
anaacutelise da repressatildeo aos cristatildeos em funccedilatildeo da preservaccedilatildeo da ordem e o segundo na sua
proposta de contribuiccedilatildeo dos cristatildeos para a manutenccedilatildeo da ordem
324 ldquoAqueles que natildeo desejarem sacrificarem aos deuses e se submeterem ao decreto imperial satildeo condenados primeiro a serem castigados e depois agrave pena capital conforme a leirdquo (Tr A) kai ei=xai tw| tou auvtokragmati( mastigwqevtej avpacqhtwsan( kefalikhn avpotinnuntej dikhn( kata thn twn nomwn avkoluqian) cf Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 p152 325 Eo defuncto Marcus Antoninus solus reipublicae praefuit sed in diebus Parthici belli persecutiones Christianorum quarta iam post Neronem uice in Asia et in Gallia graues praecepto eius exstiterunt multique sanctorum martyrio coronati sunt Cf OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889 326 SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103
62
CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE
MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM
Ao escrever suas Apologias em defesa dos cristatildeos e endereccedilaacute-las ao imperador
Justino se posiciona tanto como um profeta da antiga monarquia de Israel quanto como um
filoacutesofo conselheiro que se prontifica a oferecer conselhos ao governante Eacute possiacutevel
estabelecer uma analogia entre essas duas posturas nesse caso pois para esse pensador o
cristianismo ndash que em certo sentido eacute para os cristatildeos o cumprimento das expectativas de
Israel ndash eacute a ldquoverdadeira filosofiardquo327 Eacute a partir dessa sua perspectiva cristatilde que ele analisa a
forma romana de garantir o estabelecimento da ordem no tocante agrave religiatildeo e que manifesta
suas razotildees para se opor agrave religiatildeo pagatilde
Sua construccedilatildeo apologeacutetica contrasta tal forma de controle romana que acaba por
vitimar os cristatildeos agrave contribuiccedilatildeo cristatilde para a ordem social Seus pronunciamentos agraves vezes
satildeo muito diretos aos governantes ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem
e natildeo tenhais a quem castigar coisa que conviria melhor a verdugos do que a priacutencipes
bonsrdquo328 Na verdade o problema central incide sobre as formas de controle sociais
empregadas para a repressatildeo da expansatildeo dessa nova religiatildeo Por isso os argumentos de
Justino tecircm por objetivo combater algumas das principais queixas sobre os cristatildeos e tambeacutem
informar sobre o caraacuteter de suas crenccedilas e estilo de vida
Nessa parte da pesquisa seraacute analisada a forma como o apologista tece suas criacuteticas ao
procedimento romano contra a religiatildeo cristatilde e agrave postura dos cristatildeos diante dessas outras
religiotildees A proposta de Justino sobre os fundamentos cristatildeos para o controle social seraacute
examinada no proacuteximo capiacutetulo Sua interrogaccedilatildeo eacute a mesma que ainda voltou agrave tona no
seacuteculo XX com G E M de Ste Croix329 em 1963 com A N Sherwin-White330 em 1964 e
com o proacuteprio Ste Croix331 em uma treacuteplica ldquoWhy were the Early Christians persecutedrdquo
Segundo GEM de Ste Croix as perseguiccedilotildees aos cristatildeos eram decorrentes
basicamente da recusa desse grupo em reconhecer os deuses de Roma acarretando uma
situaccedilatildeo de suspeitas de sediccedilatildeo e periculosidade social Os deuses tradicionais do panteatildeo
greco-romano eram as divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma e seus cultos eram
327 II Apol 152 328 I Apol 124 329 Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p6-38 330 Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 331 Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 p28-33
63
uma necessidade para a manutenccedilatildeo da pax deorum [paz dos deuses]332 A perseguiccedilatildeo se
relacionaria ao sentimento religioso da eacutepoca supersticiosa na qual eles viviam333
A N Sherwin-White334 de modo diverso desviou a tocircnica da perseguiccedilatildeo da questatildeo
da pax deorum e lanccedilou seu olhar agrave contumaacutecia dos cristatildeos em se manterem fieacuteis agraves suas
crenccedilas exclusivistas diante do panteatildeo greco-romano Tal postura teria sido interpretada em
muitos momentos como um desafio agraves autoridades romanas Desse modo atrairiam para si
mesmos acusaccedilotildees e suspeitas em decorrecircncia de sua potencial insubordinaccedilatildeo conforme
pode ser visto nas Cartas de Pliacutenio o Jovem a Trajano335
A treacuteplica de GEM Ste Croix336 natildeo colocou um ponto-final na questatildeo e
incomodou a outros estudiosos contemporacircneos Segundo Paul Veyne as comunidades cristatildes
enfrentaram resistecircncias devido agrave aversatildeo romana ldquoao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguordquo337
O fato de o grupo ser ainda pouco conhecido e sustentar a veneraccedilatildeo a um ldquoreirdquo na esperanccedila
de um reino torna a situaccedilatildeo ainda mais complicada Tal hibridez alegada seria notada tendo
em vista que embora possuindo as mesmas categorias de pensamentos dos demais cidadatildeos do
Impeacuterio Romano
os cristatildeos faziam parte do Impeacuterio mas sem os mesmos costumes evitavam conviver com os outros natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo veneravam os deuses nacionais seu Deus natildeo pertencia agrave determinada naccedilatildeo diferente do deus dos judeus Aleacutem de querer se isolar como uma legiacutetima diferenccedila nacional esse Deus pretendia superar os deuses nacionais338
Nesse sentido as perseguiccedilotildees teriam sido causadas pela rejeiccedilatildeo a algo pouco
definido anormal capaz de produzir inseguranccedilas e exigir uma medida cautelar E para
justificar as accedilotildees persecutoacuterias os romanos lanccedilavam matildeo de argumentos tradicionais como
o respeito ao mos maiorum [os costumes ancestrais] e o respeito agrave unidade religiosa e moral
da coletividade
Mesmo apresentando explicaccedilotildees diferentes sobre as perseguiccedilotildees as consideraccedilotildees
de Sherwin-White Ste Croix e Paul Veyne natildeo satildeo completamente opostas Se por um lado
observamos a posiccedilatildeo obstinada dos cristatildeos em manter a sua religiatildeo a ponto de se tornar
332 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p 24 333 Ibid 1963 pp 29-31 Cf DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963 334 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n 27 1964 pp 25 335 Pliacutenio Segundo Cartas X 96-97 336 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 337 VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 338 Ibid p 246
64
uma desobediecircncia contra as autoridades imperiais por outro a religiatildeo romana se baseava na
manutenccedilatildeo do equiliacutebrio das relaccedilotildees entre o Impeacuterio Romano e os deuses tradicionais
Essas explicaccedilotildees decorrem de uma anaacutelise geral das accedilotildees anticristatildes do I ao IV
seacuteculo Um exame mais localizado ndash e em niacuteveis menos oficiais ndash poderia multiplicar as
razotildees pelas quais os cristatildeos foram perseguidos ou chamar a atenccedilatildeo para o fator psicoloacutegico
desses atritos religiosos Essa pesquisa no entanto limitar-se aos aspectos que possibilitem
uma leitura das accedilotildees anticristatildes a partir das Apologias de Justino
O apologista tambeacutem se propotildee a responder a esta questatildeo ldquoPor que os cristatildeos satildeo
perseguidosrdquo Sua leitura teoloacutegica da histoacuteria procura chegar agrave causa uacuteltima motivadora das
accedilotildees anticristatildes desenvolvendo uma trama apologeacutetica que relaciona controle social e
religiatildeo Para compreender suas formulaccedilotildees conveacutem analisar esse conceito chave
ldquoControle socialrdquo pode ser definido como ldquoo conjunto dos recursos materiais e
simboacutelicos que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de
seus membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo339 O termo de
modo geral eacute frequentemente usado para se referir a alguma forma de reaccedilatildeo organizada ao
comportamento pervertido Essa abordagem eacute baseada o trabalho de Stan Cohen que definiu
controle social como ldquorespostas organizadas ao crime delinquecircncia e formas aliadas de
perversatildeo eou comportamento socialmente problemaacutetico os quais satildeo atualmente concebidos
se no reativo sentido (depois do putativo ato ter tomado espaccedilo ou o ator ter sido identificado)
ou no proativo sentido (para prever os atos)rdquo340
A definiccedilatildeo usada por Donald Black341 eacute muito semelhante Ele assinalou que
ldquocontrole social eacute o aspecto normativo da vida social ou a definiccedilatildeo de comportamento
pervertido e a resposta a ele tal como proibiccedilotildees acusaccedilotildees puniccedilotildees e compensaccedilatildeordquo
Segundo esta afirmaccedilatildeo controle social se refere aos mecanismos determinantes usados para
regular a conduta das pessoas que satildeo vistas como pervertidas criminosas preocupantes ou
problemaacuteticas em algum sentido para os outros Todo tempo os sentidos nos quais diferentes
culturas entendem e respondem a diferentes formas de mudanccedilas e ajustes de comportamentos
problemaacuteticos
A causa desses problemas pode ser atribuiacuteda agrave criminalidade perversatildeo imoralidade
maldade perversidade ou alguma combinaccedilatildeo desses Similarmente os mecanismos
empregados para alcanccedilar o controle podem incluir formas variadas de puniccedilatildeo tratamento
339 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 340 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 p 3 341 BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press 1976 pp 1-2
65
dissuasatildeo segregaccedilatildeo ou prevenccedilatildeo342 Desse modo se a combinaccedilatildeo de fatores eacute usada para
compreender e reatar o problema o objetivo eacute promulgar o controle sobre o comportamento
que eacute visto como pervertido em algum sentido
A complexidade do tema se manifesta ainda quando R Meier343 considera que
controle social pode ser encontrado em trecircs principais contextos a) como uma descriccedilatildeo da
condiccedilatildeo ou processo social baacutesico ndash definiccedilatildeo dominante na teoria socioloacutegica claacutessica ndash b)
como um mecanismo para assegurar o cumprimento das normas e c) como um meacutetodo pelo
qual estudar (ou interpretar dados sobre) a ordem social Cohen retoma Joseph Rouceck344
que escreveu em 1947 entendendo controle social como ldquoum termo coletivo para aqueles
processos planejados ou natildeo planejados pelos quais indiviacuteduos satildeo ensinados ou compelidos
a conformar os usos e valores vitais dos gruposrdquo E A Horwitz345 que considerava que o
ldquocontrole social emerge da vida e das praacuteticas sociais e serve para manter o sentido da vida e
das praacuteticas sociais dos gruposrdquo Muitos diriam que tal descriccedilatildeo se aproxima mais dos
processos de socializaccedilatildeo E natildeo eacute preciso ir muito longe para perceber que os dilemas desse
conceito podem vir a ser complexos Tatildeo logo manifesta-se a necessidade de estabeler os
limites desse termo de modo que natildeo seja tatildeo limitado e que tambeacutem natildeo seja tatildeo amplo a
ponto de natildeo ser reconhecido
Segundo a anaacutelise de Martin Innes346 a definiccedilatildeo de Cohen permanece muito flexiacutevel
para mostrar a promulgaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social pelo Estado ou por agentes
profissionais autocircnomos tais como funcionaacuterios de corporaccedilotildees privadas e psiquiatras As
pessoas tendem a usar outros meios antes de recorrer ao aparato formal estabelecido de
controle social subcolocados como satildeo pela lei Mais conflitos satildeo resolvidos sem recursos da
lei ou controle social formal Uma soluccedilatildeo eacute frequentemente negociada ou a perversatildeo
tolerada e a imposiccedilatildeo do controle social tende a ser uma funccedilatildeo de elevada distacircncia
relacional Por isso a extensatildeo do desempenho do controle social atinge tambeacutem um caraacuteter
informal na sociedade
A definiccedilatildeo de controle social como uma resposta organizada a comportamentos
pervertidos natildeo eacute consensual Mas na busca por uma definiccedilatildeo que se adapte aos objetivos
desse trabalho seratildeo levadas em consideraccedilatildeo as proposiccedilotildees de Martin Innes347 Ele sintetiza
342 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 passim 343 MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology 1982 8 pp 35ndash55 344 Social Control Westport CT Greenwood Press 1970 p 3 345 The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990 p 5 346 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 347 Ibid
66
os aspectos da definiccedilatildeo de Cohen em uma abordagem revisionista Seu argumento eacute que
controle social pode ser pensado como um conceito-mestre composto de uma raiz de
diferentes modos de controle e tecnologias
Para estabelecer os limites desse conceito de controle social tambeacutem eacute necessaacuterio
estabelecer conceitos paacutereos como ldquoordem socialrdquo Segundo Erwin Goffman348 as relaccedilotildees
regulares entre as pessoas os variados padrotildees de funcionamento variadamente motivados
de comportamento as rotinas associadas com regras baacutesicas juntos constituem o que pode ser
chamada de uma ldquoordem socialrdquo
Baseando-se nesta definiccedilatildeo pode-se distinguir entre o significado de ordem social e
controle social A promulgaccedilatildeo de controle social eacute frequentemente destinada a proteger a
ordem social mas ordem social natildeo eacute unicamente produto de controles sociais Ao contraacuterio
o conceito de ordem social se refere agraves condiccedilotildees de existecircncia de uma sociedade De fato
toda sociedade tem intrinsecamente um grau de organizaccedilatildeo e entatildeo uma ordem social Uma
ordem social natildeo eacute estaacutetica estaacute constantemente em processo sendo produzida e reproduzida
pela combinaccedilatildeo de atitudes valores praacuteticas instituiccedilotildees e accedilotildees de seus membros
Entatildeo a ordem social eacute composta de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees
as quais de alguma forma contribuem para a constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social As
fronteiras entre as praacuteticas de organizaccedilatildeo social e controles sociais natildeo satildeo fixas nem
estaacuteveis e ao longo do tempo mudam de equiliacutebrio Pois se ordem social se refere ao estado
da sociedade e ao arranjo organizado de seu essencial conhecimento valores accedilotildees
instituiccedilotildees e estabelecimentos controle social se refere aos processos pelos quais se busca
gerir desvios ou conflitos com a ordem social Essas formas de gerenciamento podem ser
formais ou seja institucionalizadas ou informais
Controle social formal se refere a alguma ocasiatildeo onde a imposiccedilatildeo do controle eacute
baseada sobre ou informada por a presenccedila da lei Outras atividades de controle podem ser
definidas como tipo informal349 Dentre essas formas de controle tambeacutem eacute possiacutevel distinguir
os modos reativos e os proativos O primeiro tipo eacute aquele usado para responder algumas
coisas depois que elas tecircm tomado espaccedilo O segundo envolve o caacutelculo da probabilidade de
um ato ocorrer no mesmo ponto no futuro e a manufatura de alguma forma de intervenccedilatildeo em
antecipaccedilatildeo deste Essa eacute uma forma preditiva de controle Tambeacutem eacute possiacutevel distinguir entre
formas de controle social ldquoverticalrdquo para falar sobre o poder diferencial que frequentemente
existe entre controladores e os controlados Controle social para baixo eacute mais comum
348 GOFFMAN E Relations in Public New York Basic Books 1971 p x 349 Cf BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press passim
67
envolvendo alguns com mais poder ou autoridade de regulaccedilatildeo do comportamento de
indiviacuteduos ou grupos menores Contudo o controle social tambeacutem pode ser ldquoupwardsrdquo [para
cima] envolvendo os menos poderosos moldando o comportamento de indiviacuteduos ou grupos
mais poderosos
Eacute numa perspectiva ldquode baixo para cimardquo que Justino questiona a forma de controle
empreendida pelos governantes romanos quando agem contra os cristatildeos Essa perspectiva
contempla as condiccedilotildees do grupo minoritaacuterio daqueles que satildeo considerados adeptos de uma
superstito digna de ser combatida por aqueles que detecircm os meios de controle e dessa forma
eacute produzido um instrumento de controle que busca ldquoconvencerrdquo e intimidar as autoridades e a
todos os demias a natildeo se oporem aos cristatildeos Embora reconheccedila que os governantes satildeo
constituiacutedos por Deus eacute aquilo que ele chama de ldquoreta razatildeordquo que lhe daacute o direito de se
pronunciar350 As autoridades romanas soacute satildeo buscadas porque os conflitos cotidianos quanto
agraves diferenccedilas religiosas produziram atritos e inquietaccedilotildees que abriram margem para que os
romanos aplicassem coaccedilotildees ldquoformaisrdquo Ao questionar a intervenccedilatildeo imperial para a
manutenccedilatildeo da ordem o apologista revela refugiar-se em um padratildeo de justiccedila distinto
daquele dos romanos Em seus escritos ele tambeacutem manifesta uma perspectiva cristatilde da
ordem que seraacute analisada no proacuteximo capiacutetulo
Para se compreender as proposiccedilotildees de Justino seratildeo examinados os seguintes
aspectos a criacutetica aos governantes no processo de manutenccedilatildeo da ordem no tocante aos
cristatildeos as diferenccedilas entre os cristatildeos e as outras religiotildees e sua criacutetica sobre as leis e a
moralidade
31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem
Na I Apologia logo apoacutes o exoacuterdio Justino procura justificar suas razotildees agraves
autoridades agraves quais se refere em peticcedilatildeo Ele escreve que
todo homem sensato manifestaraacute que a melhor exigecircncia ou ainda mais que a uacutenica exigecircncia justa eacute que os suacuteditos possam apresentar uma vida e um pensar irrepreensiacuteveis e que por outro lado igualmente os mandantes deem sua sentenccedila
350 ldquoA razatildeo exige dos que satildeo verdadeiramente piedosos e filoacutesofos que desprezando as opiniotildees dos antigos se estas satildeo maacutes estimem e amem apenas a verdade De fato o raciociacutenio sensato natildeo soacute exige que se abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente mas tambeacutem que o amante da verdade de todos os modos e acima da proacutepria vida mesmo que seja ameaccedilado de morte deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiccedilardquo (I Apol 12)
68
natildeo levados pela violecircncia e tirania mas segundo a piedade e a filosofia Soacute assim governantes e governados podem gozar de felicidade351
O bom procedimento dos suacuteditos conjugado agrave postura iacutentegra de justiccedila daqueles que
tecircm autoridade aparece como condiccedilatildeo para que ldquogovernantesrdquo e ldquogovernadosrdquo desfrutem da
felicidade O que mais chama atenccedilatildeo eacute a seguinte expressatildeo ldquoem algum lugar um dos
antigos disse lsquoSe os governantes e os governados natildeo forem filoacutesofos natildeo eacute possiacutevel os
Estados prosperaremrsquordquo352 Tanto Munier353 quanto Minns e Parvis354 identificam esse trecho
como uma citaccedilatildeo de Platatildeo (Repuacuteblica V 473) Na obra de Platatildeo fica claro o apontamento
da necessidade de que os governantes adiram ao cultivo da sabedoria numa junccedilatildeo de
δύναmicroίς τε πολιτικὴ καὶ φιλοσοφία [poder poliacutetico e filosofia] para que natildeo haja problemas
sociais
Justino ressignifica o conceito de ldquofilosofiardquo a partir da sua experiecircncia cristatilde Desse
modo aqueles que satildeo ldquopiedosos e filoacutesofosrdquo como satildeo chamados o imperador e seus filhos
deveriam julgar com retidatildeo para que todos gozem de bem estar
Haacute vaacuterias hipoacuteteses para justificar o tiacutetulo ldquoPiordquo de Antonino Uma hipoacutetese eacute que esse
nome lhe fora dado por ter defendido a deificaccedilatildeo dedicaccedilatildeo de um templo e concessatildeo de
inuacutemeras honras a Adriano Outras hipoacuteteses levam em conta seu caraacuteter e sua maneira de
ser355 ldquoVerissimusrdquo356 era uma denominaccedilatildeo de Marco Annio Vero que viria a ser o
Imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto O modo como esse apelido eacute empregado
no texto indica provavelmente uma estrateacutegia retoacuterica de Justino Marco era
reconhecidamente chamado de ldquofiloacutesofordquo357 Seus proacuteprios escritos eliminam qualquer
indagaccedilatildeo Poreacutem quando Luacutecio eacute chamado de ldquofiloacutesofordquo isso pode soar estranho Mas antes
de se rejeitar esse tiacutetulo eacute mais prudente tentar compreender se existe uma ligaccedilatildeo isotoacutepica
com a estrutura do texto Se os tiacutetulos ldquoPiordquo e ldquofiloacutesofordquo respectivamente de Antonino e de
Marco Aureacutelio apresentam um forte viacutenculo com a construccedilatildeo do cerne da obra haacute boa razatildeo 351 I Apol 32 Cf Kalhn de kai monhn dikaian proltsgtklhsin tauthn paj o` swfronwn avpofaneitai( to touj avrcomenouj thn euvqunhn tou eautwn biou kai logou alhpton parecein( o`moiwj drsquoauv kai touj arxontaj mh bia| mhde turannidi( avllrsquo euvsebeia| kai filosofia| avkolouqountaj thn yhfon tiqesqai ou[twj gar avrcontej kai oi` avrcomenoi avpolauoien tou avgaqou) MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 352 I Apol 33 Cf An mh oi` arcontej filosofhswsi [kai oi` avrcomenoi]( ouvk av eih taj poleij euvdaimonhsai) Cf MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 353 MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p 172 354 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 85 355 Hist Aug Antoninus Pius 21-10 356 Ele foi carinhosamente chamado ldquoVeriacutessimordquo [Ouvrissiacutemon] como apontou Cassius Dio (Hist Rom 69212) e como aparece tambeacutem na Hist Aug I41 357 Hist Aug Marcus Aurelius 15-9
69
para buscar uma hipoacutetese que aluda agrave possiacutevel relaccedilatildeo do tiacutetulo de Luacutecio com o restante do
texto
Luacutecio foi adotado por Antonino ao mesmo tempo em que Marco e se tornou Luacutecio
Aeacutelio Aureacutelio Commodo Com a morte de seu pai adotivo recebeu o tiacutetulo de Imperador
Ceacutesar como esse seu irmatildeo mas a dimensatildeo do seu poder eacute amplamente questionada Minns e
Parvis358 consideram que nos tempos de sua ldquosaiacutedardquo para as regiotildees do Impeacuterio em 153 ou
154 poderia ser mais prudente incluiacute-lo entre os destinataacuterios Ele eacute chamado de ldquofiloacutesofo
[filosofw|] filho natural de Ceacutesarrdquo no MS A e de filosofou kaisaroj fush| ui`w| [Filho
natural do filoacutesofo Ceacutesar] por Euseacutebio359 Esse tiacutetulo natildeo poderia ser atribuiacutedo ao pai
bioloacutegico de Luacutecio Segundo os registros da Historia Augusta seu pai Luacutecio Aeacutelio Vero
recebeu realmente o tiacutetulo de Ceacutesar do Imperador Adriano mas morreu sem chegar ao posto
elevado Por outro lado haacute evidecircncias suficientes para Justino chamar a Luacutecio filho natural
de Ceacutesar e filho de Pio por adoccedilatildeo de ldquoamante do saberrdquo o que equivaleria a dizer que tinha
uma formaccedilatildeo baacutesica
O tiacutetulo ldquofiloacutesofordquo natildeo se referia a apenas um exiacutemio pensador O filoacutesofo podia ser
algueacutem que se dedicava aos assuntos filosoacuteficos que frequentava alguma escola ou grupo de
discussatildeo ou algueacutem de reconhecido destaque intelectual podendo ser considerado ateacute um
embaixador em assuntos poliacuteticos360 Luacutecio poreacutem natildeo apresentou dons naturais para os
estudos literaacuterios Compocircs versos e oraccedilotildees mas suas habilidades poeacuteticas eram muito
limitadas Haacute quem diga que ele foi ajudado pela inteligecircncia de seus amigos e que muitas das
coisas creditadas a ele foram escritas por outros361 A despeito de Luacutecio ser ndash ou natildeo ndash
reconhecidamente um filoacutesofo essa denominaccedilatildeo podia render uma associaccedilatildeo desses nomes
ao cultivo do saber em geral e da piedade Se por outro lado o tiacutetulo de filoacutesofo viesse a ser
improacuteprio comparado agrave pertinecircncia da forma como Marco Aureacutelio eacute chamado abre-se espaccedilo
para uma nova hipoacutetese Seria esta uma estrateacutegia para chamar a atenccedilatildeo para as proacuteximas
colocaccedilotildees quando o apologista destaca aqueles que dizem ser filoacutesofos e natildeo o satildeo Mais do
que isso o apologista precisa de um elemento que viabilize a abertura de um espaccedilo textual
para a apresentaccedilatildeo do que ele considera ldquoa verdadeira filosofiardquo isto eacute o cristianismo
358 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 38-39 359 Hist Ecle IV121ss 360 DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940 361 Hist Aug Lucius Verus 21ss
70
Justino conheceu vaacuterias correntes filosoacuteficas Uma variedade de escolas poderia ser
encontrada pelo Impeacuterio Euseacutebio362 o chamou de ldquoamante da verdadeira filosofiardquo No
Diaacutelogo com Trifatildeo363 a filosofia eacute por ele reconhecida como ldquoo maior e mais precioso bem
diante de Deus para o qual somente ela conduz e nos associardquo Esses ensinamentos satildeo
considerados ldquosuperiores a toda filosofia humanardquo364 e reconhecidos como ldquoa filosofia segura
e proveitosardquo365 Dessa forma o pensamento cristatildeo eacute revestido de uma aacuteurea de
superioridade capaz de fundamentar sua teoria e sua criacutetica ao modo romano de repelir os
fieacuteis
Em sua leitura teoloacutegica da histoacuteria e dos problemas religiosos do seu tempo o
apologista procura a razatildeo uacuteltima que fundamenta a accedilatildeo humana para aquilo que eacute ldquobomrdquo e
para as accedilotildees de oposiccedilatildeo agrave feacute Eacute trabalhoso encontrar uma definiccedilatildeo para o que eacute ser ldquobomrdquo
segundo seu modo de pensar Sabe-se poreacutem que os cristatildeos satildeo tidos como os que buscam
aquilo que eacute ldquobomrdquo e que por isso natildeo haacute nenhuma razatildeo para persegui-los Aquilo que eacute
ldquobomrdquo pode ser experimentado de forma parcial por aqueles que natildeo satildeo cristatildeos mas essa
experiecircncia deriva de uma mesma fonte coacutesmica da ldquobondaderdquo Por isso ele sustenta que tudo
o que pode ser chamado ldquobomrdquo entre os filoacutesofos e legisladores elaborado por eles mediante
a investigaccedilatildeo e a instituiccedilatildeo foi comunicado pela parcela do Logos que lhes coube De outro
modo Justino afirma que por natildeo conhecerem plenamente o Logos que eacute Cristo eles
frequentemente se contradizem Em seu ponto de vista outrora muitos pensadores que
tentaram investigar e demonstrar as coisas por meio dessa ldquorazatildeordquo tambeacutem foram levados ao
tribunal como Soacutecrates
Em oposiccedilatildeo ao que eacute ldquobomrdquo uma forccedila oposta aparece como a propiciadora do
engano Eacute esse o elemento uacuteltimo responsaacutevel pelo desvirtuamento da sintonia com aquilo
que eacute ldquobomrdquo e que promove as accedilotildees ldquoinjustasrdquo das autoridades Ele escreve ldquoVoacutes poreacutem
natildeo examinais nossos juiacutezos mas movidos de paixatildeo irracional e aguilhoados por democircnios
perversos nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por issordquo366
Segundo sua teoria satildeo os democircnios os uacuteltimos responsaacuteveis por espalhar a ignoracircncia e
mover as autoridades contra os cristatildeos
Sob essa perspectiva ele destaca a transparecircncia cristatilde e a disposiccedilatildeo paciacutefica desse
grupo diante da autoridade imperial ao dever dos governantes
362 Hist Ecles IV83 363 Diaacutelogo com Trifatildeo 21 364 II Apol 153 365 Diaacutelogo com Trifatildeo 81 366 I Apol 51
71
Cabe a noacutes portanto expor ao exame de todos a nossa vida e os nossos ensinamentos para que natildeo nos tornemos responsaacuteveis pelo castigo daqueles que ignorando a nossa religiatildeo pecam por cegueira contra noacutes Contudo o vosso dever eacute tambeacutem ouvir-nos e mostrar-vos bons juiacutezes Com efeito daqui para frente informados como estais caso natildeo ajais com justiccedila natildeo tereis nenhuma desculpa diante de Deus367
A lealdade dos cristatildeos natildeo era algo evidente e por isso eacute uma das principais
preocupaccedilotildees do apologista ratificaacute-la Justino assinala que havia suposiccedilotildees inclusive de
que os cristatildeos arquitetavam algum tipo de irrupccedilatildeo de outro ldquoreinordquo quando de fato falavam
do ldquoreino de Deusrdquo em todos os seus aspectos espirituais (I Apol 111) A nova religiatildeo jaacute se
espalhava pelo Impeacuterio havia um seacuteculo mas eacute provaacutevel que natildeo tivesse alcanccedilado um
nuacutemero expressivo de fieacuteis Aleacutem disso ainda natildeo existia uma estrutura eclesiaacutestica bem
formada O marcionistas os valentinianos e outros grupos tornavam a questatildeo da identidade
cristatilde um assunto das apologias justinianas e de outros escritores e pregadores que pretendiam
definir quem eram os ldquocristatildeosrdquo
32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus
Na verdade o exclusivismo caracteriacutestico do monoteiacutesmo cristatildeo contrastava com a
religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio As accedilotildees importantes do Estado sempre envolviam rituais
sagrados Comemoraccedilotildees de vitoacuterias e triunfos do exeacutercito normalmente culminavam em
procissotildees e sacrifiacutecios E a proacutepria estabilidade social dependia de uma barganha feita com
os deuses para a manutenccedilatildeo da paz368
Os variados rituais produziam interaccedilotildees entre deuses e homens na religiatildeo romana
Por meio deles eram marcados todos os eventos puacuteblicos e celebraccedilotildees que envolviam
festivais anuais os juramentos ou aniversaacuterios das fundaccedilotildees de templos Tambeacutem podiam
estar relacionados aos jogos ou agraves performances dramaacuteticas que tinham elementos rituais em
seu programa ainda que incluiacutessem o entretenimento entre seus propoacutesitos Os jogos jamais
perderam seu aspecto ritual Cria-se que nessas ocasiotildees os deuses desciam para assisti-los e
entatildeo eram realizados rituais religiosos inclusive representados perfeitamente para que a
cerimocircnia fosse bem sucedida De modo geral tambeacutem os sacrifiacutecios eram feitos estritamente
367 I Apol 34 368 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35
72
segundo regras e tradiccedilotildees que necessariamente tinham de ser respeitadas369 Os prodiacutegios
envolviam quase todos os grupos de influecircncia nas decisotildees estatais ndash os coleacutegios sacerdotais
o senado os magistrados e ocasionalmente o povo nas comitia370
A criaccedilatildeo de novos lugares sagrados sejam templos propriamente ditos ou santuaacuterios
com um altar era tema de interesse puacuteblico e conflito potencial371 Alguns templos eram fruto
de promessas de generais em batalhas Com o tempo expandiram-se pelo espaccedilo urbano
representando uma imagem visiacutevel do domiacutenio romano sobre o Mediterracircneo e assinalando a
contribuiccedilatildeo de novos e antigos deuses em cada estaacutegio dessa conquista
Os rituais religiosos estavam intimamente ligados agraves demais atividades de guerra e
paz Desse modo a aprovaccedilatildeo de uma lei ou a eleiccedilatildeo de magistrado eram atos que envolviam
a tomada dos augures responsaacuteveis pelo sistema especial de regras que os controlavam o ius
augurale372 Os limites dessa religiosidade natildeo satildeo muito bem definidos Mas tanto o povo
quanto os magistrados demonstravam respeito pelas obrigaccedilotildees religiosas
A religiatildeo e os deuses estavam entre os fatores importantes na determinaccedilatildeo dos
eventos e na garantia de suas reivindicaccedilotildees de autoridade e comando dos agentes puacuteblicos
romanos Era tambeacutem uma das expressotildees da ideologia da elite romana e da manutenccedilatildeo do
poder E ainda como escreve Claudia B Rosa
ao mesmo tempo eram os rituais que garantiam as relaccedilotildees entre dois grupos homens e deuses Garantir os ritos representava a certeza da manutenccedilatildeo da sociedade como a queriam ordenada e segura Ao registrar as regras de comportamento como o respeito aos deuses sobretudo em seus espaccedilos ao curvar-se sob a autoridade dos rituais o cidadatildeo garantia a ordem social e a pax deorum e as praacuteticas que acarretavam a transgressatildeo agrave ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e agrave desagregaccedilatildeo A concoacuterdia entre homens e deuses eacute a garantia da ordem romana373
No I seacuteculo aC Augusto se tornou membro de todos os coleacutegios sacerdotais
assumindo o papel de pontifex maximus liderando os demais sacerdotes Se esta interpretaccedilatildeo
for correta ela representa a nova e revolucionaacuteria ordem religiosa do periacuteodo imperial e todos
os seus sucessores foram tambeacutem pontifices maximus ateacute o seacuteculo IV aC Desde entatildeo o
imperador se via responsaacutevel pela construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de templos O poder religioso e o
poder poliacutetico se assentaram sobre um mesmo indiviacuteduo no novo regime do Impeacuterio374
369 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 370 Assembleia dos cidadatildeos romanos 371 ROSA Claudia Beltratildeo Op cit p 144 Ciacutecero indica duas ocasiotildees em que tentativas de dedicaccedilotildees foram canceladas pelos pontiacutefices porque natildeo haviam sido aprovadas pelos comitia (De domo sua 136) 372 LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 1986 pp 2146-312 373 ROSA C B Op cit p 145-146 374 Ibid p 147
73
Conforme escreveu Paul Veyne375 ldquoO Estado com certeza exercia sua autoridade sobre os
cidadatildeos que lhe deviam tudo Mas mesmo assim apenas em circunstacircncias excepcionais
um decreto obrigaria cada cidadatildeo a tomar parte numa cerimocircnia puacuteblica []rdquo Devia-se no
entanto zelar pela pax deorum para a prosperidade e seguranccedila no Impeacuterio376
Natildeo havia uma ldquodependecircnciardquo humana em ralaccedilatildeo aos deuses o que existia era o
reconhecimento da superioridade daqueles seres que viviam entre os humanos Esse
reconhecimento cuacuteltico piedoso estava relacionado agrave barganha Esperava-se conhecer o
futuro escapar do perigo obter boas colheitas ter boa sauacutede sem que isso significasse que os
deuses estariam agrave disposiccedilatildeo a todo instante377
As accedilotildees de Augusto podem evidenciar uma estreita conexatildeo com episoacutedios de
restauraccedilatildeo e especialmente com as recorrentes observaccedilotildees de que as tradiccedilotildees ancestrais
estavam sendo perdidas ou abandonadas O ldquoculto imperialrdquo passa a representar uma novidade
no iniacutecio do Impeacuterio Se os apelos agrave restauraccedilatildeo das crenccedilas e tradiccedilotildees eram presentes nos
discursos natildeo se pode falar em uma nova forccedila religiosa ou uma nova religiatildeo no periacuteodo
imperial
Essas praacuteticas religiosas proporcionaram choques com judeus e depois com os
cristatildeos Sendo monoteiacutestas era impossiacutevel aceitar a inclusatildeo de deuses e cultos Os judeus
sacrificavam em prol do imperador e natildeo para o imperador jaacute os cristatildeos recusavam-se a
participar de qualquer sacrifiacutecio Considerando que os altares ao imperador eram colocados
muito proacuteximos ao tribunal do magistrado que ouvia os seus casos pode-se pensar que tal
sacrifiacutecio ao chefe do Impeacuterio era mais simboacutelico do que de adoraccedilatildeo e funcionava como sinal
de lealdade a Roma378 Secircneca em sua Apocolocyntosis do Divino Claacuteudio escrita
provavelmente no iniacutecio do reinado de Nero apresenta conotaccedilotildees negativas a respeito da
deificaccedilatildeo dos governantes em geral o que indica que existiam aqueles que natildeo viam com
bons olhos o processo de deificaccedilatildeo do governante Mas para a populaccedilatildeo geral do Impeacuterio
natildeo havia problemas em aceitar que o imperador pudesse ser tratado como um deus
A partir da sua expansatildeo e domiacutenio por um vasto territoacuterio o poder romano teve que
lidar com os problemas de integraccedilatildeo das regiotildees conquistadas Conforme tem destacado
375 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 244 376 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 p 15 377 MACMULLEN Ramsay Christianizatin the roman empire (AD 100-400) New Haven Yale University Press 1984 p 13 378 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 150
74
Claudia M Beltratildeo379 o mapa da peniacutensula Itaacutelica o Oriente Proacuteximo o norte da Aacutefrica e
Europa conformam uma rede que se aglutina em torno de Roma constituindo um espaccedilo
dinacircmico de interconexatildeo espaccedilo no qual se daratildeo variados modos de relaccedilatildeo Essa complexa
relaccedilatildeo exigia tambeacutem uma forma de lidar com os cultos estrangeiros
A cultura romana tornou-se sinteacutetica e sintetizante e relativamente favoraacutevel agrave
incorporaccedilatildeo de cultos estrangeiros Roma natildeo apenas se tornou o centro poliacutetico do mundo
por ela construiacutedo como tambeacutem passou a abrigar o nuacutecleo das religiotildees Segundo a anaacutelise
de Ceciacutelia Ames380 o caraacuteter sinteacutetico da religiatildeo romana que combina rito paacutetrio rito grego
e disciplina etrusca facilitou aos romanos a integraccedilatildeo de cultos estrangeiros e a difusatildeo de
seu proacuteprio sistema nos territoacuterios constituindo-se em um elemento chave na relaccedilatildeo destes
espaccedilos interconectados Sua toleracircncia e flexibilidade no entanto tambeacutem incluiacuteam
mecanismos para regular o fluxo de ideias e praacuteticas estrangeiras381 O senado era o oacutergatildeo
responsaacutevel por velar e vigiar da tradiccedilatildeo e da religiatildeo A necessidade de controle cresce junto
com a expansatildeo dos domiacutenios de Roma
Dentro da sua anaacutelise Justino se incomoda com o fato de que no meio de um universo
tatildeo vasto de culturas que se encontram no Impeacuterio Romano os cristatildeos sejam muitas vezes
odiados e levados agrave morte Para o apologista essa eacute mais uma evidecircncia da ignoracircncia
disseminada pelos maus democircnios que faz com que de algum modo as crenccedilas cristatildes sejam
tachadas de irracionais Enquanto isso ldquoalguns cultuam aacutervores rios382 ratos gatos
crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionaisrdquo de modo que todos satildeo iacutempios entre si por
natildeo terem a mesma religiatildeo (I Apol 241) O apologista na verdade aponta aquilo que
considera ser uma incoerecircncia nessa estrutura intercultural
Estaacute evidente que sua anaacutelise eacute dependente da sua loacutegica cristatilde mas Luciano de
Samosata tambeacutem apontava no seacuteculo II dC a ldquoconfusatildeordquo causada pelas diferentes opiniotildees
sobre os Deuses383 Plutarco um pouco antes anotara que a adoraccedilatildeo a diferentes formas de
379 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 151 380 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 p 342 381 Cf MACMULLEN R Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 382 Sextus Empiricus cita a afirmaccedilatildeo de Prodicus de que ldquoos antigos tinham como deus o sol a lua os rios e as primaveras [] assim como os Egiacutepicios deificavam o Nilordquo (Adversus Dogmaticos I18) apud MINNS PARVIS Op cit p 143 383 Juppiter Tragoedus 42
75
animais causava disputas entre seus adoradores384 Juvenal385 tambeacutem menciona que a
contenda se instalava na vizinhanccedila egiacutepcia quando um odiava o deus do outro e sustentava
que somente o seu deus predileto era o deus verdadeiro Essas diferenccedilas poderiam causar
ainda deboches sobre os deuses alheios entre os diferentes povos no Impeacuterio assim como
Clemente de Alexandria diz que os gregos faziam aos deuses e as crenccedilas egiacutepcias386 A
estranheza dos deuses dos outros povos tambeacutem chamou a atenccedilatildeo de Ciacutecero que indagava
Se existem divindades agraves quais adoramos e consideramos como tais por que natildeo Serapis e Isis localizadas no mesmo ranque E se eles satildeo admitidos que razatildeo temos noacutes para rejeitar os deuses dos baacuterbaros Entatildeo noacutes devemos deificar bois cavalos iacutebis gaviotildees viacuteboras crocodilos peixes cachorros lobos gatos e muitas outras bestas Se noacutes vamos de volta agraves fontes destas supersticcedilotildees devemos igualmente condenar todas as divindades das quais eles procedem [] Se vocecircs natildeo deificarem a um bem como o outro o que seraacute de Ino Pois todos esses deuses tem a mesma origem387
Diante desse universo de pensamentos e crenccedilas distintos os romanos tinham o
desafio de conceber formas para garantir a integraccedilatildeo desses grupos Justino acentua que
diante dessa variedade de ideias somente os cristatildeos satildeo perseguidos e vecirc nisso mais uma
evidecircncia de que as accedilotildees anticristatildes satildeo arquitetadas pelos maus democircnios Mas os cristatildeos
natildeo haviam sido os uacutenicos a serem cerceados pelas autoridades romanas
Nos anos 180 aC o culto a Baco despertou suspeitas e passou a ser tratado como uma
ameaccedila agrave ordem Infelizmente as fontes sobre essa questatildeo se resumem a um decreto do
Senado388 regulando o culto e um longo relato de Tito Liacutevio389
Natildeo eacute uma tarefa simples determinar qual foi o epicentro do problema Talvez natildeo se
referisse a uma crise religiosa propriamente dita representando um caso de accedilatildeo policial
contra uma conspiraccedilatildeo Mas o decreto do Senado preservado numa placa de bronze
endereccedilado a uma das cidades aliadas indica uma preocupaccedilatildeo em inviabilizar possiacuteveis
agrupamentos potencialmente conspiratoacuterios Proibia-se aos grupos ter liacutederes ou sacerdotes
masculinos tesouro juramentos ou fieacuteis Ele tambeacutem restringia o tamanho desses
aglomerados e a estrutura de seus membros390 De algum modo a organizaccedilatildeo dos baacutequicos
deve ter ameaccedilado aos romanos tambeacutem por trazer uma nova e perigosa forma de poder
384 De Iside et Osiride 72 385 Saacutetiras XV37-38 386 Protrepticus 2396 387 De natura deorum III19(47) 388 Senatus Consultum de Bacchanalibus In JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961 pp 26-27 389 Histoacuteria de Roma 398-19 390 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 152
76
Os seguidores de Baco no entanto natildeo eram hostis a nenhum deus do Impeacuterio
Tambeacutem natildeo rejeitavam os sacrifiacutecios nem viam os deuses como democircnios e natildeo tinham
nenhum problema com os rituais tradicionais Tito Liacutevio daacute sinais dessa suspeita num
discurso que atribuiu ao cocircnsul Postumio Albino numa contio391 quando falou ao povo da
ameaccedila de um poder rival
A menos que vocecircs se precavejam homens de Roma esta vossa assembleia diurna apropriadamente reunida pelo cocircnsul seraacute rivalizada por sua assembleia noturna Nesse momento eles separadamente temem a vocecircs agora reunidos em assembleia quando vocecircs retornarem agraves suas casas e fazendas eles se reuniratildeo para decidirem sobre sua proacutepria salvaccedilatildeo e a vossa ruiacutena Seraacute quando vocecircs separadamente teratildeo de temecirc-los reunidos (39164)
Segundo a anaacutelise de Clara Gallini os adeptos ao culto eram grupos marginais392 As
bacanais seriam lugares de evasatildeo para a massa de pobres e deserdados com graves
problemas econocircmicos e sociais devido agrave situaccedilatildeo que atravessava Roma A crise social teria
se manifestado em uma forma representativa de protesto religioso por meio dos quais se
buscaram respostas religiosas a problemas da sociedade pretendendo uma liberaccedilatildeo religiosa
Deste modo a repressatildeo dos cultos baacutequicos tambeacutem representaria a repressatildeo de uma
sociedade na qual uns poucos os membros da oligarquia romana decidem impotildeem as regras
e governam a maioria No entanto ainda que os problemas sociais fossem evidentes natildeo eacute
possiacutevel afirmar que atraacutes destes cultos se escondia uma revolta contra as estruturas vigentes
nem ver os rituais baacutequicos como uma espeacutecie de esperanccedila em uma nova liberdade pois
essas interpretaccedilotildees como bem sustentou C Ames393 sofrem de anacronismo
Outros grupos religiosos no periacuteodo posterior a Bacanalia tambeacutem foram objeto de
uma accedilatildeo hostil das autoridades romanas Os caldeus chamados presumivelmente de
astroacutelogos foram expulsos de Roma em 139 aC Depois os seguidores de Iacutesis em vaacuterias
ocasiotildees na Repuacuteblica Tardia e no primeiro principado Tambeacutem os judeus enfrentaram seacuterias
dificuldades com os romanos em certos momentos394
Com a viabilizaccedilatildeo de um maior nuacutemero de viagens e trocas comerciais e culturais no
Impeacuterio Romano o conhecimento das variadas religiotildees deuses e crenccedilas tambeacutem podia
viajar rapidamente E isso significou ter que lidar com atritos decorrentes dessas diferenccedilas
envolvendo inclusive o judaiacutesmo o cristianismo e o maniqueiacutesmo
391 Audiecircncia convocada 392 GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52 393 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 p 344 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 394 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Op cit pp 161 230 231
77
De um modo bem diferente desses monoteiacutesmos de caraacuteter exclusivista entre as outras
crenccedilas como nas religiotildees de misteacuterios os adeptos natildeo rejeitavam ou condenavam outros
deuses Tambeacutem natildeo era necessaacuterio evitar os festivais e rituais da cidade ou a praacutetica do culto
imperial Natildeo havia nada que os pusesse em conflito com as autoridades Ocasionalmente
recebiam o apoio de membros da elite romana
Justino todavia procura mostrar que natildeo havia nenhum motivo para os romanos se
preocuparem com os cristatildeos afinal eles reconheciam que toda autoridade eacute constituiacuteda por
Deus e por isso devia ser respeitada Eacute fazendo jus a certo sentido de transparecircncia que o
apologista julga indispensaacutevel nas relaccedilotildees entre governantes e governados que ele entatildeo se
prontifica em demonstrar as razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo se misturavam com outros
deuses Com confianccedila ele afirma ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo
veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo
colocamos coroas nos sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo395
O fato de os cristatildeos natildeo concordarem com os sacrifiacutecios pagatildeos natildeo faz sentido
isoladamente aos incocircmodos caluacutenias e perseguiccedilotildees sofridos Parece ser razoaacutevel que por ser
um grupo cujas crenccedilas natildeo estavam bem sistematizadas e que se espalhavam pelo Impeacuterio as
caluacutenias oriundas dos atritos culturais podem ter chegado agraves autoridades e despertado
desconfianccedila396 Calumnia era um crime condenado pelas leis romanas desde o I seacuteculo aC e
se exatamente agraves acusaccedilotildees falsas e maliciosas397 As accedilotildees anticristatildes todavia natildeo podem
ser analisadas em termos generalizantes e absolutos pois passam por diversos momentos
Embora os cristatildeos natildeo representem uma ameaccedila poliacutetica na perspectiva de Pliacutenio por
exemplo o fato de natildeo praticarem o culto ao imperador e a separaccedilatildeo das praacuteticas idoacutelatras da
esfera puacuteblica interseciona a questatildeo poliacutetica agrave religiosa
Seria essa uma boa razatildeo para Justino explicar em seu projeto apologeacutetico por que os
cristatildeos natildeo participavam de sacrifiacutecios a outros deuses e natildeo lhes ofereciam culto Seu
argumento eacute diametralmente oposto a ou]j anqrwpoi [esses homens] que oferecem sacrifiacutecios
aos que eles proacuteprios datildeo forma colocam nos templos e chamam de deuses Ele justifica a
crenccedila cristatilde apenas dizendo ldquosabemos que [esses deuses] satildeo coisas sem alma e mortas que
395 I Apol 242 396 Cf VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006 Passim URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932 397 ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 Passim BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 p 238 Cf I Apol 267
78
natildeo tem forma de Deusrdquo398 (I Apol 91) Afirma tambeacutem que os nomes e figuras que os
deuses assumem satildeo arquitetados pelos maus democircnios de modo que coisas corruptiacuteveis que
necessitam de cuidado recebem o nome de Deus Agrega-se ao seu argumento que os artesatildeos
dos deuses satildeo pessoas dissolutas e que eacute uma estupidez fazer guardas para os deuses nos
templos Na sequecircncia o autor introduz a justificativa cristatilde para esse distanciamento de tais
praacuteticas ldquo aprendemos que Deus natildeo tem necessidade de nenhuma oferta material dos
homens pois vemos que eacute ele quem nos concede tudordquo399 (I Apol 93) Em resposta a essa
benevolecircncia divina espera-se a gratidatildeo humana que soacute pode ser atestada atraveacutes do ldquobom
sensordquo [swfrosunhn] da ldquojusticcedilardquo [dikaiosunhn] do ldquoamor aos homensrdquo [filanqrwpian] e
numa expressatildeo pouco clara em ldquotudo que conveacutem a um Deus que natildeo pode ser chamado por
nenhum nome impostordquo400 (I Apol 101) Enquanto para o apologista os deuses pagatildeos satildeo
criados por matildeos humanas o Deus cristatildeo eacute apresentado como aquele que concederaacute a sua
presenccedila aos dignos Assim Justino demonstra estar certo de que os cristatildeos tecircm um
conhecimento superior ao dos que creem em outros deuses a ponto de se satisfazer em dizer
ldquosabemosrdquo ldquoaprendemosrdquo ou ldquocremosrdquo e isso basta
Se por um lado a perspectiva escatoloacutegica cristatilde do ldquoreinordquo natildeo implicava nenhuma
conspiraccedilatildeo poliacutetica contra os romanos seu iacutempeto proselitista causava tanto rumores quanto
um nuacutemero crescente de conversos Eacute por isso que ateacute meados do seacuteculo II quando Justino
escreve as accedilotildees anticristatildes tecircm suas raiacutezes nas relaccedilotildees interculturais travadas no proacuteprio
processo de expansatildeo da mensagem cristatilde Isso significa que os mecanismos de controle
social empregados contra os cristatildeos pelas autoridades imperiais satildeo requeridos mediante os
problemas locais E pode-se dizer que por ser uma religiatildeo emergente outros como Pliacutenio
natildeo sabiam como proceder diante das denuacutencias e caluacutenias contra esse novo grupo
Os cristatildeos formavam um grupo em expansatildeo que estava no Impeacuterio mas viviam de
modo diferente e procuravam evitar a participaccedilatildeo de todo tipo de praacuteticas contraacuterias agraves
prescriccedilotildees doutrinaacuterias cristatildes Natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo
veneravam os deuses nacionais e seu Deus natildeo pertencia a uma naccedilatildeo mas deveria ser
reconhecido como superior a todos os outros401
398 evpei ayuca kai nekra tauta ginwskomen kai qeou morfhn mh econta cf MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 96 399 Ouv deesqai thj para avnqrwpwn ulikhj prosforaj proseilhfamen ton qeon( auvton pareconta panta orwntej ibid p 96 400 o[as oivkeia qew| evsti( tw| mhdeni ovnomati qetw| kaloumenw| MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 401 Cf MACMULLEN Ramsay Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966 Id Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997
79
Justino insere o seu testemunho pessoal
Eu mesmo quando seguia a doutrina de Platatildeo ouvia as caluacutenias contra os cristatildeos Contudo ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que eacute considerado espantoso comecei a refletir que era impossiacutevel que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres Com efeito que homem amante do prazer intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas poderia abraccedilar alegremente a morte que vai privaacute-lo de seus bens402
Prossegue sua queixa ldquobuscando condenar agrave morte alguns cristatildeos fundados nas
caluacutenias contra noacutes arrastaram tambeacutem escravos meninos e mulheres e por meio de incriacuteveis
tormentos os forccedilam a repetir contra noacutes o que o povo inventardquo403 No entanto ele eacute enfaacutetico
contra esse tipo de opiniatildeo sustentada sobre os cristatildeos ldquonada disso nos diz respeitordquo404
Justino tambeacutem nega que os cristatildeos abusariam de homens e se uniriam destemidamente com
as mulheres Seguindo para o desfecho de seu escrito ele faz uma declaraccedilatildeo reveladora ldquoA
verdade eacute que nos fazem guerra de mil modos exatamente porque ensinamos a fugir de
semelhantes doutrinas e daqueles que praticam tais coisas ou imitam tais exemplos como
mesmo nesse discurso que vos dirigimosrdquo405 Tal declaraccedilatildeo de Justino daacute margem para a
reflexatildeo sobre esse processo de ldquonegativizaccedilatildeordquo da figura do ldquooutrordquo que condena as praacuteticas
que ldquoumrdquo pratica Segundo esse pensador os cristatildeos seriam muitas vezes caluniados por
condenarem as praacuteticas dos outros que em retaliaccedilatildeo se esforccedilariam por difamar os
seguidores do nazareno
Por isso tambeacutem parece significativo considerar que os atritos com os cristatildeos natildeo
satildeo decorrentes de uma preocupaccedilatildeo poliacutetica para minar um potencial grupo subversivo Satildeo
destacados alguns aspectos desses atritos que se remetem agraves caluacutenias e maus comentaacuterios
sobre os cristatildeos que desembocam na estigmatizaccedilatildeo desse grupo Eacute preciso lembrar que o
contexto no qual o discurso de Justino estaacute inserido se refere a meados do II seacuteculo quando o
impacto do estilo de vida dos cristatildeos era sentido apenas em niacuteveis locais ainda que em
diversas regiotildees Os cristatildeos jaacute se encontravam pela Siacuteria-Palestina Egito Aacutesia Menor
Peniacutensula Itaacutelica e outras regiotildees mas o nuacutemero de fieacuteis ainda era muito pequeno diante do
tamanho do Impeacuterio Romano406 O desprezo e o combate por parte dos cristatildeos aos deuses
pagatildeos provocavam ocasionalmente reaccedilotildees e mobilizaccedilotildees contra os proacuteprios cristatildeos Por se
tratar de um grupo distinto com praacuteticas pouco conhecidas as caluacutenias se propagaram como
402 II Apol 121-2 403 II Apol 124 404 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 405 II Apol 126 406 GIBBON Edward Number of Christians in the Empire under Diocletioan and Constantine In _____ The History of the Decline and Fall of the Roman Empire ed JB New York Fred de Fau and Co 1906 pp 337 341
80
uma forma de defesa dos pagatildeos A perseguiccedilatildeo de Nero no I seacuteculo havia aberto precedentes
para a condenaccedilatildeo dos cristatildeos mas sua determinaccedilatildeo foi limitada agrave execuccedilatildeo de seu plano de
acobertar as suspeitas de seu envolvimento no incecircndio de Roma Na primeira metade do II
seacuteculo alguns tumultos procuravam condenar os cristatildeos buscando sem um enquadramento
juriacutedico algo que foi condenado por Adriano na Aacutesia Em outros casos como o que relatou
Pliacutenio a Trajano procurava-se por um crime que condenasse os cristatildeos Desse modo as
acusaccedilotildees tais como canibalismo denuacutencia de ateiacutesmo imoralidades e inclusive de
infidelidade ganhavam forccedila Essas caluacutenias somadas ao precedente neroniano fizeram com
que para muitos como Trajano e Urbico o nomen Christianum assumisse um significado
negativo Essa conotaccedilatildeo negativa no entanto natildeo se instalou apenas em funccedilatildeo das caluacutenias
Conforme destacou Paul Veyne407 ldquoas autoridades natildeo acreditavam que os cristatildeos comiam
criancinhas ou praticavam incesto todos os domingos a atitude polecircmica de Celso a respeito
da nova religiatildeo natildeo fazia alusatildeo a essas praacuteticas considerando-as um fato socialrdquo Se para o
povo em geral o oacutedio e o medo pela estranheza dos cristatildeos faziam-lhes repulsivos para as
autoridades a ausecircncia de participaccedilatildeo nas praacuteticas puacuteblicas ou mesmo a contumaacutecia em natildeo
negar a feacute diante do magistrado faziam com que os pedidos de condenaccedilatildeo fossem acatados
Neste momento cabe destacar que entre os tipos de estigmas destacados por Erving
Goffman408 estatildeo os tribais de raccedila naccedilatildeo e religiatildeo considerados suscetiacuteveis de uma
transmissatildeo por heranccedila e decontaminar outros ao redor Nesses estigmas encontram-se os
seguintes traccedilos socioloacutegicos
un individuo que podiacutea haber sido faacutecilmente aceptado en un intercambio social corriente posee un rasgo que pude imponerse por la fuerza a nuestra atencioacuten u que nos lleva a alejarnos de eacutel cuando lo encontramos anulando el llamado que nos hacen sus restantes atributos Posee un estigma una indeseable diferencia que no habiacuteamos previsto
Essa diferenccedila se torna o elemento fundamental para a praacutetica de vaacuterios tipos de
discriminaccedilatildeo Consciente ou inconscientemente se constroacutei uma teoria do estigma uma
ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do perigo que representa essa pessoa
racionalizando agraves vezes uma animosidade que se baseia em outras diferenccedilas
Goffman409 natildeo deixa de contemplar em sua anaacutelise a possibilidade de sujeitos
estigmatizados permanecerem ilhados protegidos por suas crenccedilas proacuteprias sobre sua
identidade mas ao mesmo tempo em constante contato com os outros Nesse sentido os 407 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 408 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 16 Tr A ldquoum indiviacuteduo que podia ter sido facilmente aceito num intercacircmbio social corrente possui um traccedilo que pode impor-se agrave forccedila a nossa atenccedilatildeo e que nos leva a nos afastarmos dele quando o encontramos anulando a chamada que nos fazem seus ouros atributos Possui um estigma uma indesejaacutevel diferenccedila que natildeo haviacuteamos previstordquo 409 Ibid p 17
81
seguidores da Igreja dos disciacutepulos de Jesus de Nazareacute podiam refugiar-se em suas crenccedilas
proacuteprias a saber seu proacuteprio modo de se autodefinir como ldquocristatildeosrdquo Enquanto o termo
ldquocristatildeordquo eacute capaz de referir-se a algueacutem de uma superstitio ilicita que abusa das crianccedilas que
se une promiscuamente com homens e mulheres que acredita em lendas de um deus
encarnado e nascido de uma virgem cujos fieacuteis se reuacutenem para comer sua carne em reuniotildees
secretas e assim se torna estigma de algueacutem despreziacutevel por outro lado ganha outro
significado para os seguidores do Cristo
Os atritos entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos poderiam surgir em decorrecircncia do exerciacutecio da
anunciaccedilatildeo da mensagem cristatilde ou devido ao apelo agrave mudanccedila de conduta e implementaccedilatildeo
de novos haacutebitos O caso mais emblemaacutetico apontado por Justino eacute o que aparece na II
Apologia
Certa mulher vivia com o seu marido homem dissoluto e antes de se tornar cristatilde se entregara agrave vida licenciosa Todavia logo que conheceu os ensinamentos de Cristo natildeo soacute se tornou casta como procurava tambeacutem persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme a reta razatildeo Ele poreacutem obstinado na dissoluccedilatildeo com a sua conduta desanimou a sua mulher [] Depois disso para natildeo se tornar cuacutemplice de tais iniquidades e impiedades permanecendo no matrimocircnio e partilhando o leito e a mesa com tal homem ela [] separou-se [] Despeitado [] [] a acusou diante dos tribunais dizendo que ela era cristatilde [] natildeo podendo na ocasiatildeo fazer nada contra a mulher voltou-se contra Ptolomeu que Urbico chamara ao seu tribunal por ter sido mestre dela nos ensinamentos de Cristordquo410
A uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se era cristatildeo Apoacutes
confessar foi condenado ao supliacutecio Justino ainda conta que certo Luacutecio advertiu a Urbico e
do mesmo modo foi conduzido ao supliacutecio Um terceiro sobreveio mas tambeacutem foi
condenado agrave morte411
Se fosse um caso isolado esse episoacutedio jamais poderia servir como pista para
fundamentar a hipoacutetese de que significativamente os atritos com os cristatildeos podem surgir
tambeacutem devido agrave condenaccedilatildeo das praacuteticas dos natildeo-cristatildeos Mas outras evidecircncias se
mostram Os Evangelhos do Novo Testamento (Mt 1413-12 Mc 614-28 Lc 318-20 97-9)
afirmam que Joatildeo Batista foi para a prisatildeo por repreender ao rei Herodes que vivia com
Herodiacuteades a mulher de seu irmatildeo e por outros crimes cometidos pelo governante Flaacutevio
Josefo escreveu que Herodes temeu que o povo fosse influenciado para uma sublevaccedilatildeo e por
isso encaminhou Joatildeo Batista para o caacutercere412 Embora pareccedilam discrepantes pode haver
alguma convergecircncia nas duas versotildees O ldquoprofetardquo Joatildeo Batista devia fazer repreensotildees
410 II Apol 2 411 II Apol 216-20 412 Ant Jud II 52
82
puacuteblicas condenando os haacutebitos do rei Herodes e a sua uniatildeo com Herodiacuteades o que poderia
despertar alguma inseguranccedila quanto agrave reaccedilatildeo do povo
Outras ocorrecircncias podem ser identificadas Quando Paulo repreendeu um espiacuterito de
adivinhaccedilatildeo de uma jovem escrava quando estava em Filipos na Macedocircnia os patrotildees da
moccedila se irritaram pois exploravam aquela habilidade da jovem para lucrar Por isso levaram
Paulo e seu companheiro Silas aos magistrados e disseram ldquoEsses homens estatildeo provocando
desordem em nossa cidade satildeo judeus e pregam costumes que a noacutes romanos natildeo eacute
permitido aceitar nem seguirrdquo A multidatildeo se levantou contra Paulo e Silas e depois disso
foram accediloitados e presos sem julgamento formal 413 Em Eacutefeso os artesatildeos teriam visto na
doutrina de Paulo mais do que uma ofensa agrave religiatildeo uma ameaccedila a seus negoacutecios Conta-se
que um ourives chamado Demeacutetrio que fabricava miniaturas em prata no templo de Diana
reuniu alguns artesatildeos e outros profissionais do ramo e disse-lhes
Amigos sabeis que o nosso bem-estar proveacutem dessa nossa atividade [] esse tal de Paulo com sua propaganda desencaminha muita gente natildeo soacute em Eacutefeso mas em quase toda a Aacutesia Ele afirma que natildeo satildeo deuses os produtos de matildeos humanas Natildeo eacute soacute a nossa profissatildeo que corre o risco de cair em descreacutedito mas tambeacutem o templo da grande deusa Diana acabaraacute sendo desacreditado e assim ficaraacute despojada de majestade aquela que toda a Aacutesia e o mundo inteiro adoram414
Segundo o livro de Atos dos Apoacutestolos esses homens furiosos arrastaram os
companheiros de Paulo para o teatro da cidade O tumulto se espalhou
Esses tipos de atritos envolviam o encobrimento de uma praacutetica moralmente
condenada pelos seguidores da Igreja e manifestavam a defesa dos interesses pessoais ou de
determinados grupos que sofreriam com as possiacuteveis mudanccedilas nos costumes e tradiccedilotildees
Neste uacuteltimo caso aparece algo distinto a menccedilatildeo da representaccedilatildeo de uma divindade para
uma determinada regiatildeo Diana para a Aacutesia especialmente
Yi-Fu Tuan415 aponta que nas religiotildees que vinculam o povo a um lugar os deuses
parecem estimular nos seus fieacuteis um forte sentido do passado de linhagem e continuidade no
lugar O culto aos ancestrais eacute o fundamento de tal praacutetica religiosa Atraveacutes deste sentido
histoacuterico de continuidade busca-se algum tipo de ldquoseguranccedilardquo Entre o I e II seacuteculos dC
deuses romanos e gregos satildeo conhecidos por povos de culturas diferentes mas nenhum deles
exige exclusividade O Deus dos judeus figura nesse cenaacuterio de deuses e homens e agraves vezes
se confunde com deus nenhum Os seguidores de Cristo propagadores desse mesmo Deus
mediante a crenccedila no seu messias paradoxalmente tambeacutem satildeo tachados de ateus algumas
vezes Poreacutem enquanto os ldquooutrosrdquo natildeo veem o Deus cristatildeo os cristatildeos natildeo veem outro deus
413 At 1617-40 414 At 1923-27 415 Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983 p 168
83
aleacutem do seu proacuteprio Desse modo a negaccedilatildeo dos deuses alheios pode ser interpretada por
muitos como profunda agressatildeo agraves crenccedilas que por um periacuteodo indeterminado serviram para
explicar e inspirar a vida das pessoas que nasceram cresceram e morreram em determinado
local
A estigmatizaccedilatildeo dos ldquocristatildeosrdquo eacute portanto em grande medida uma reaccedilatildeo das
pessoas que satildeo alvo dos cristatildeos no exerciacutecio de sua feacute Pois esses cristatildeos ndash dos quais
Justino eacute um ndash manifestam o repuacutedio a tudo aquilo que se associa a uma moral que lhes seja
estranha e que se vincule agrave veneraccedilatildeo de outros deuses que natildeo sejam o Deus do seu Cristo
Diante das reaccedilotildees adversas que lhes satildeo imputadas sob a forma de duras penas e
condenaccedilotildees Justino teologiza o seu estigma Isso natildeo eacute uma invenccedilatildeo sua Talvez lhe caiba o
meacuterito de tecirc-lo feito habilidosamente poreacutem haacute indiacutecios desse procedimento anos antes de
seus escritos
Na I Epiacutestola de Pedro (413-1416) o autor frisa a gloacuteria do sofrimento dos cristatildeos
nas perseguiccedilotildees
alegrai-vos por participar dos sofrimentos de Cristo para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua gloacuteria Se sofreis injuacuterias por causa do nome de Cristo sois felizes pois o Espiacuterito da gloacuteria o Espiacuterito de Deus repousa sobre voacutes [] Se poreacutem algueacutem sofrer por ser cristatildeo natildeo se envergonhe Antes glorifique a Deus por este nome
Antes ainda eacute Paulo quem permitiraacute um trocadilho didaacutetico para que melhor se
compreenda essa formulaccedilatildeo teoloacutegica por traacutes do sofrimento dos fieacuteis da Igreja Ao finalizar
sua Epiacutestola aos Gaacutelatas (617) escreve ldquo eu trago em meu corpo as marcas [stigmata] de
Cristordquo416 Como o proacuteprio Goffman observou para os gregos estigma significava
basicamente algum tipo de signo ou marca na pele417 Paulo evidentemente se refere aos sinais
do sofrimento enfrentado devido agraves perseguiccedilotildees sofridas no exerciacutecio do seu apostolado Natildeo
existe nenhuma ligaccedilatildeo entre essa passagem e o discurso de Justino O que eacute preciso notar
atentamente eacute que assim como Paulo transforma seus estigmas em seu testemunho na
perspectiva de Justino a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute representada como ldquoas marcasrdquo de sua
identidade que se pretende afirmar Essa identidade por ele afirmada eacute distinta dos devaneios
caluniosos que lhes satildeo associados pelos seus opositores Ser cristatildeo para Justino eacute a razatildeo de
natildeo serem perseguidos e ao mesmo tempo o motivo pelo qual satildeo perseguidos A
416 Versatildeo grega evgw gar ta stigmata tou Kuriou VIhsou evn tw| swmati mou bastazw ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) [Bible Work 5 Software 2002] 417 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 11 Para maiores informaccedilotildees sobre o significado do termo estigma cf LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940
84
perseguiccedilatildeo seraacute interpretada como uma reaccedilatildeo dos ldquomaus democircniosrdquo contra os ldquoverdadeiros
cristatildeosrdquo como seraacute examinado no proacuteximo capiacutetulo
Seus acusadores estariam movidos por paixatildeo irracional e ldquoaguilhoados por democircnios
perversosrdquo418 por isso natildeo conseguiam enxergar a verdade anunciada por esses cristatildeos
Mesmo tendo grande responsabilidade na ocultaccedilatildeo dessa verdade os democircnios natildeo satildeo os
uacutenicos culpados Escreve Justino a respeito dos judeus
As outras naccedilotildees natildeo tecircm tanta culpa da iniquidade que se comete contra noacutes e contra Cristo como voacutes que sois causa do preconceito injusto que elas tecircm contra ele e contra noacutes que viemos dele [] escolhestes homens especiais de Jerusaleacutem e os mandastes por todo o mundo a fim de espalhar que havia aparecido uma iacutempia seita de cristatildeos e espalharam caluacutenias que todos aqueles que natildeo vos conhecem repetem contra noacutes419
Os judeus tecircm uma parcela de responsabilidade pelos preconceitos e caluacutenias herdados
pelos gentios Em vaacuterios episoacutedios no livro dos Atos dos Apoacutestolos haacute a mesma disposiccedilatildeo
cristatilde para atribuir aos judeus a culpa pelas delaccedilotildees agraves autoridades romanas para reclamar
dos cristatildeos No entanto eacute pouco provaacutevel que o apologista assim sintetize a causa das
caluacutenias e puniccedilotildees contra os cristatildeos Mas haacute uma disposiccedilatildeo por parte do apologista em
afastar os cristatildeos dos judeus Semelhantemente Justino tambeacutem natildeo demonstra nenhuma
simpatia por aqueles que ele chama de ldquocristatildeos soacute de nomerdquo
Sobre esses que natildeo viviam como Cristo teria ensinado o filoacutesofo orienta que ldquosejam
declarados como natildeo-cristatildeosrdquo420 por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de
Cristo Para os pagatildeos provavelmente natildeo haveria distinccedilatildeo entre esses grupos Justino
poreacutem chama a atenccedilatildeo para o fato de que esses satildeo denominados segundo o nome de quem
promoveu cada doutrina especiacutefica Eram eles os marcionistas valentinianos basilidianos
saturnilianos e com outros nomes421
Um dos argumentos de que a accedilatildeo dos ldquodemocircnios perversosrdquo move seus opositores
contra os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo eacute que os cristatildeos dessas outras ldquoheresiasrdquo natildeo satildeo perseguidos
pelas autoridades422 Quanto a esses ldquooutrosrdquo pelos quais o apologista natildeo demonstra
nenhuma simpatia sua recomendaccedilatildeo eacute que sejam punidos423
Os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo segundo Justino satildeo aqueles que estatildeo prontos a confessar
que satildeo cristatildeos a ponto de padecerem Desse modo recorrendo ao trocadilho didaacutetico
desenvolvido a partir da fala paulina esses homens de feacute colocam-se agrave disposiccedilatildeo para
418 I Apol 51ss 419 Diaacutelogo com Trifatildeo 171 420 I Apol 168 421 Diaacutelogo com Trifatildeo 355-6 422 I Apol 267 423 I Apol 1614
85
receber os ldquoestigmas de Cristordquo a saber as marcas das perseguiccedilotildees sobre seus corpos em
razatildeo de suas crenccedilas Satildeo persuadidos a crer que a verdadeira recompensa seraacute atribuiacuteda para
a vida eterna que em muito excede ao sofrimento transitoacuterio desse mundo Cabe-lhes
anunciar e testemunhar a feacute a todos mesmo sob a insiacutegnia das tribulaccedilotildees Por isso Justino
declara
Decapitam-nos pregam-nos em cruzes atiram-nos agraves feras agrave prisatildeo ao fogo e nos submetem a todo tipo de torturas Todavia estaacute agrave vista de todos que natildeo apostatamos de nossa feacute Ao contraacuterio quanto maiores satildeo os nossos sofrimentos mais ainda se multiplicam os que abraccedilam a feacute e a piedade pelo nome de Jesus424
Essa missatildeo cristatilde implica tambeacutem em buscar convencer aos seus opositores de que
os ldquocristatildeosrdquo natildeo deviam ser perseguidos simplesmente por denominarem-se ldquocristatildeosrdquo
33 Sobre as leis e imoralidades
Justino faz saber que a confissatildeo de cristianismo diante de um magistrado acarretava a
pena de morte425 Isto eacute ser ldquocristatildeordquo poderia implicar na condenaccedilatildeo agrave pena de morte426
Uma das interrogaccedilotildees centrais desses escritos de Justino eacute sobre o fato de os cristatildeos
serem condenados por confessarem esse nome Seria um absurdo pensar que os romanos
condenariam os membros dessa superstitio simplesmente por sustentarem um nome e eacute
justamente esse absurdo que o apologista busca destacar para ridicularizar o procedimento dos
magistrados Na verdade os acusados de cristianismo natildeo eram condenados apenas pelo
ldquonomerdquo mas sim pelo que ele representava uma superstitio nova maleacutefica depravada e
excessiva que envolvia os cristatildeos em flagitia que sustentava certo desprezo pela religiatildeo
tradicional Mas pelo fato de natildeo haver uma lei universal para este caso os governantes
tinham liberdade para julgar as ocorrecircncias de modo particular As recomendaccedilotildees de Trajano
e Adriano ao dispensarem a busca pelos cristatildeos limitaram os processos a apenas denuacutencias
formais A nova religiatildeo ainda natildeo se mostrava um problema seacuterio para o Impeacuterio Eacute provaacutevel
que essas medidas visem solucionar os atritos e inibir os conflitos locais ocasionados pelas
diferenccedilas religiosas O caraacuteter flexiacutevel do processo que permitia que o acusado mudasse de
ideia quanto a sua religiatildeo no meio do processo e recebesse a absolviccedilatildeo eacute o elemento
fundamental para se argumentar que os cristatildeos eram condenados pelo ldquonomerdquo
424 Dialogo com Trifatildeo 110 4 425 I Apol 81-2 No I111 lecirc-se ldquoconfessamos ser cristatildeos sabendo como sabemos que tal confissatildeo traz consigo a pena de morterdquo 426 ldquo e nos tiram a vida sem termos cometido crime algumrdquo (I241) Mas o consolo dos fieacuteis estaacute na feacute ldquo aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis fazerrdquo (I456)
86
Justino deseja que os romanos compreendam a maneira de pensar dos cristatildeos e que se
desvencilhem da ideia negativa sobre os fieacuteis Desse modo depois da exposiccedilatildeo da sua I
Apologia ele escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da verdade
respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees despreze-as Natildeo
decreteis poreacutem pena de morte como contra inimigos contra aqueles que nenhum crime
cometemrdquo427
Como jaacute foi mencionado no Capiacutetulo II dessa dissertaccedilatildeo Justino procura alinhar sua
Apologia ao rescrito de Adriano o qual ele interpreta convertendo-o sutilmente a favor dos
cristatildeos
Noacutes vos pedimos portanto que sejam examinadas accedilotildees de todos os que vos satildeo denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo ter cometido nenhum crime428
Mesmo assim o apologista sustenta que sua reclamaccedilatildeo natildeo estaacute fundamentada no rescrito de
Adriano mas em um senso de justiccedila que permeia sua peticcedilatildeo429
Sua interpretaccedilatildeo considera que mediante as obras dos democircnios perversos os cristatildeos
satildeo buscados e condenados agrave morte devido a caluacutenias O apologista aponta atentados contra
escravos meninos e mulheres obrigando-os a confessarem coisas falsas430 Segundo sua
leitura teoloacutegica desses eventos os cristatildeos eram acusados de tais praacuteticas justamente porque
as condenavam e assim fazendo incomodam aqueles que procediam dissolutamente431
Tendo em vista que a razatildeo para que as autoridades acatassem as denuacutencias dirigidas
contra os cristatildeos estava no fato de que esta superstitio era uma ameaccedila agrave ordem em funccedilatildeo da
sua expectativa sobre o ldquoreino de Deusrdquo Justino inclui no seu projeto apologeacutetico uma
explanaccedilatildeo sobre a contribuiccedilatildeo cristatilde ao estabelecimento da paz no Impeacuterio Natildeo se podia
esperar que uma religiatildeo estrangeira principalmente oriunda de uma naccedilatildeo problemaacutetica
como a dos judeus pudesse representar algum benefiacutecio A sua proacutepria indefiniccedilatildeo enquanto
religiatildeo dificultaria essa possibilidade e o seu caraacuteter exclusivista acentuaria os atritos sociais
Mas o pensador de Flaacutevia Neaacutepolis eacute direto em dizer
Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo e salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que
427 I651 428 I74 429 ldquo natildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo (I683) 430 II124 431 II12
87
caminharia para a sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos e se adornaria de virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos432
A proposta de Justino apresenta o valor das crenccedilas cristatildes O desenvolvimento da sua
teoria seraacute analisado com mais detalhes no proacuteximo capiacutetulo Neste momento analisar-se-aacute a
reprovaccedilatildeo da moralidade dos natildeo-cristatildeos Segundo Paul Veyne433 no mundo greco-romano
ldquomoral e religiatildeo estavam parcialmente ligadas porque se pedia aos deuses que protegessem
os bons e castigassem os maus Deuses e homens julgavam da mesma maneira os bons e
maus pois compartilhavam da mesma moralrdquo Para os deuses a moral dos mortais tambeacutem
natildeo interessava A opiniatildeo humana sobre os deuses tambeacutem variava desde a atribuiccedilatildeo de
virtudes ateacute a laacutestima por serem egoiacutestas e mercenaacuterios Natildeo era possiacutevel pensar nos deuses
como senhores vigilantes da justiccedila No entanto os deuses poderiam vingar as injusticcedilas434
Natildeo se deve pensar que a religiatildeo de gregos e romanos era estaacutetica Satildeo identificadas
transformaccedilotildees durante os seacuteculos A filosofia as mudanccedilas culturais e a paideia
relacionaram a divindade ao sumo bem e acentuou os contornos entre a religiosidade das
pessoas comuns e agrave dos membros das classes elevadas e dos letrados435
Varratildeo436 atribuiu trecircs concepccedilotildees para os deuses os deuses das cidades os deuses
vistos pelos filoacutesofos e os deuses das narrativas dos poetas Segundo Paul Veyne437
inspirados por Euriacutepides os estoicos estavam convencidos de que os deuses natildeo podiam se
portar mal Os deuses dos filoacutesofos se afastavam das narrativas mitoloacutegicas anteriores para
assumirem agraves vezes o aacutepice da virtude Para Platatildeo os deuses eram a medida de todas as
coisas e natildeo seria conveniente receberem oferendas de pessoas desonradas438 A relaccedilatildeo entre
moral e religiatildeo passou por transformaccedilatildeo mas essa mudanccedila ficou restrita a alguns ciacuterculos
sociais Para alguns criacuteticos e pensadores o temor religioso seria uacutetil para a contensatildeo
humana Mas essa natildeo era uma opiniatildeo comum Isoacutecrates (viveu de 436 a 338 aC) escreveu
que ldquoaqueles que creem que os favores dos deuses e suas puniccedilotildees satildeo maiores do que
realmente satildeo prestam um grande serviccedilo agrave sociedaderdquo439 Mais tarde Poliacutebio (viveu entre 203
aC ndash 120 aC) ao comparar os romanos aos gregos tambeacutem destacou o valor das crenccedilas
religiosas romanas no estabelecimento da ordem
432 I121-3 433 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 220 434 Ibid p 239 435 BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 pp 305-332 436 Apud Agostinho de Hipona Cidade de Deus IV311 Plutarco se referia a trecircs visotildees sobre os deuses a dos filoacutesofos poetas e legisladores (Amatorius XVIII10765c) 437 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 256 438 Leis IV716c717 439 Busires 1124
88
muitos poderiam pensar que isso eacute irresponsaacutevel mas [] seu objetivo eacute usar isso como forma de controle sobre as pessoas comuns Se era possiacutevel formar um Estado inteiro de filoacutesofos isso seria no entanto desnecessaacuterio Mas vendo que as multidotildees satildeo inconstantes cheios de desejos desregrados iras irracionais e paixatildeo violenta o uacutenico recurso eacute mantecirc-los sob controle pelo terror misterioso e efeitos cecircnicos desse tipo440
Ainda nesse sentido ele afirma que tambeacutem natildeo era sem sentido que os antigos
promoviam entre as pessoas simples diversas opiniotildees sobre os deuses e a crenccedila no Hades
Tendo em vista essa importante funccedilatildeo da religiatildeo na manutenccedilatildeo da ordem Poliacutebio pensa
que aqueles que em seu tempo abriam matildeo da religiatildeo agiram de forma precipitada e
insensata Assim ele destaca
Esta eacute a razatildeo por que aleacutem de tudo se aos estadistas gregos eacute confiada uma uacutenica moeda embora protegidos por dez funcionaacuterios de vigilacircncia muitos selos e o dobro de testemunhas jaacute natildeo podem ser induzidos a manter a feacute enquanto entre os romanos em suas magistraturas e embaixadas homens tecircm cuidado de grandes quantias de dinheiro e ainda por puro respeito a seus juramentos manteacutem a feacute intacta E em outras naccedilotildees eacute raro encontrar um homem que meta suas matildeos fora do eraacuterio puacuteblico e eacute inteiramente puro em tais assuntos Mas entre os romanos eacute raro encontrar um homem cometendo tal crime441
A necessidade de uma sociedade ter mecanismos para estabelecer a ldquoconfianccedilardquo ou a
ldquoboa feacuterdquo entre as relaccedilotildees humanas eacute sublinhada diante dos efeitos dos questionamentos
cultivados pela filosofia e do proacuteprio ideal poliacutetico-filosoacutefico que poderia diminuir o valor da
religiatildeo
No seacuteculo II dC eacute Justino quem olha as mais distintas crenccedilas do Impeacuterio com um
tom de superioridade proporcionada pela sua proacutepria religiatildeo Mas haacute um espaccedilo de
aproximadamente trecircs seacuteculos entre Poliacutebio por exemplo e Justino No II seacuteculo dC a
filosofia jaacute havia se tornado um elemento essencial da cultura romana e o fluxo das suas
interrogaccedilotildees e das suas performances puacuteblicas acarretavam algumas transformaccedilotildees de
caraacuteter ideoloacutegico na sociedade Como escreveu Paul Veyne
o povo nunca deixou de crer e rezar Mas em que um romano culto mdash um Ciacutecero um Horaacutecio um imperador um senador um notaacutevel mdash podia crer dentro dessa fantasmagoria dos deuses ancestrais A resposta eacute categoacuterica natildeo podia crer em nada leu Platatildeo e Aristoacuteteles que quatro seacuteculos antes tampouco acreditavam Virgiacutelio alma religiosa acredita na Providecircncia mas natildeo nos deuses de seus proacuteprios poemas mdash Vecircnus Juno ou Apolo442
Justino mostra algumas razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo compactuavam com os
demais deuses e com a religiatildeo tradicional romana e ainda aponta aquilo que considera ser o
caraacuteter racional da verdadeira filosofia isto eacute da religiatildeo cristatilde Por isso ele escreve ldquoas
440 Historias VI5614 441 Ibid 442 Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197
89
nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo443 Poreacutem
como ele proacuteprio diz ldquonos condenam sem saber se praticamos as coisas vergonhosas de que
nos acusam comprazem-se com deuses que as fizeram e ainda exigem dos homens coisas
semelhantesrdquo444 Desse modo o apologista destaca a incoerecircncia em se pensar que os povos
seriam contidos por temor a deuses tatildeo imoderados quanto os proacuteprios homens em suas
paixotildees Por outro lado tambeacutem o temor ao Imperador ou a fidelidade demonstrada por
meio do culto imperial satildeo apontados como algo que representa uma forma superficial de
controle pois como Justino escreve ldquoaqueles que agora por medo das leis e dos castigos por
voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los [] sabem que sois homens e
que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutesrdquo445 Esse ldquomedordquo das leis era um temor ao que eacute
humano Desse modo Justino sublinha que a ausecircncia de mecanismo superior de controle
como a absorccedilatildeo da crenccedila em um Deus onisciente como o Deus dos cristatildeos favorecia a
desobediecircncia agraves leis
O apologista apresenta um mecanismo de controle que julga ser muito mais eficiente
ldquose se inteirassem e se persuadissem de que natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma
accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os
modos como voacutes mesmos haveis de convirrdquo Por essa razatildeo ele considera que a expansatildeo do
cristianismo contribuiria para que as pessoas agissem de modo moderado e respeitoso de
acordo com a moral cultivada na comunidade e ainda em atentar fidelidade ao Impeacuterio
Esse ldquotemorrdquo religioso proveniente de uma crenccedila distinta da religiatildeo tradicional se
enquadra no que os romanos chamavam de superstitio As superstitiones e os cultos locais
eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob atenccedilatildeo com destacam Mary Beard John North e
Simon Price446 as controveacutersias poderiam desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade
romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito em 172 a 173 aC447 na incursatildeo da Traacutecia que
foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que conseguiu seguidores448 entre os druidas da
Gaacutelia profecias indicavam que o incecircndio de Roma era o sinal do fim do domiacutenio romano
sobre aquela regiatildeo fazendo com que uma revolta nas fronteiras do Reno fosse animada por
essas profecias449 e as revoltas judaicas contemporacircneas a Justino satildeo outro exemplo
443 II153 444 II142 445 I123 446 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 447 Cassius Dio Hist Rom LXXII4 448 Ibid LI255 LIV345-7 449 Taacutecito Historias IV546165 V2224
90
Todavia o apologista procura convencer de que os cristatildeos natildeo suportavam nenhum tipo de
ameaccedila agrave sociedade sob o domiacutenio romano
Sua estrateacutegia apologeacutetica portanto natildeo pode negar que as crenccedilas cristatildes reprovavam
uma seacuterie de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais caracterizam um
quadro da organizaccedilatildeo social No entanto essa nova religiatildeo deveria ser encarada como uma
dessemelhanccedila absoluta Vaacuterios pontos de contato entre a cultura pagatilde e a doutrina dos
cristatildeos satildeo estabelecidos para convencer sobre esse aspecto450 Os deuses e a religiatildeo pagatilde
deveriam ser rejeitados por serem incoerentes com a moralidade segundo as narrativas
antigas A feacute cristatilde eacute apresentada como um mecanismo eficaz de controle e de organizaccedilatildeo
social que exige uma mudanccedila subjetiva antes de um reflexo socialmente objetivo Por isso
segundo seu ponto de vista a condenaccedilatildeo dos cristatildeos acatada pelos governantes locais eacute uma
forma equivocada de manter a ordem Em grande medida essa forma de controle que emerge
dos clamores reativos populares estaria impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do
nomen Christianum sem conhecerem de fato a forma de pensar dos cristatildeos Por isso Justino
procura afirmar que os cristatildeos satildeo os melhores auxiliadores na manutenccedilatildeo da paz no
Impeacuterio
450 Esse ponto seraacute analisado no proacuteximo capiacutetulo
91
CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM SOCIAL
Justino combate agrave forma de controle que recrimina os cristatildeos e que segundo seu
ponto de vista tem fundamento nas accedilotildees dos democircnios Eacute dentro do seu objetivo apologeacutetico
que emerge sua tese da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem no Impeacuterio Eacute a
primeira vez que a religiatildeo emergente dos cristatildeos aparece assumidamente como um
instrumento a favor do Impeacuterio Natildeo havia nenhuma razatildeo para esse tipo de preocupaccedilatildeo por
parte dos cristatildeos A tese da contribuiccedilatildeo cristatilde agrave manutenccedilatildeo da ordem vem em oposiccedilatildeo agrave
ideia de que os cristatildeos seriam uma ameaccedila social Todavia eacute permitido supor que diante da
mira dos ldquoperseguidoresrdquo locais nesse periacuteodo natildeo era uacutetil jurar fidelidade ao Impeacuterio
As caluacutenias e a proacutepria inclinaccedilatildeo a repudiar as superstitones estrangeiras faziam com
que os cristatildeos fossem reprimidos em diferentes niacuteveis pelos pagatildeos do Impeacuterio Justino
apresenta uma forma de controle cristatilde que julga ser mais eficiente do que aquelas pagatildes
empregadas contra os proacuteprios cristatildeos A base de tal eficiecircncia estaacute no caraacuteter de sua
doutrina que quando absorvida deveria conduzir os crentes a uma conduta pautada por regras
morais que estabelecem precircmio ou castigo eterno a todos depois da morte de acordo com seu
meacuterito em vida A doutrina cristatilde eacute uma incentivadora da moral
Ao recorrer ao imperador o apologista natildeo apenas reafirma a fidelidade dos cristatildeos
mas expotildee o caraacuteter de sua doutrina e procura ser o mais convincente possiacutevel sobre a
razoabilidade de suas crenccedilas
41 O controle absoluto do controlador absoluto
Em primeiro lugar Justino sustenta que os cristatildeos satildeo os ldquomelhores ajudantes e
aliados para a manutenccedilatildeo da pazrdquo devido ao caraacuteter das suas doutrinas como a de que ldquonatildeo
eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que
cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildeesrdquo (I Apol
121) Segundo essa perspectiva a crenccedila em um Deus onisciente seria capaz de induzir os
que a deteacutem a se comedirem Nesse sentido ele destaca ldquoningueacutem escolheria por um
momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se
92
conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e
livrar-se dos castigosrdquo (I Apol 122) Esse mecanismo de controle apresenta uma estrutura
limitadora das accedilotildees humanas que eacute dependente do conhecimento das normas que determinam
a recompensa e o castigo O traccedilo marcante desse mecanismo eacute que existe um vigilante
constante de quem natildeo se pode esconder absolutamente nada nem mesmo as intenccedilotildees
Haacute certa dependecircncia do sentimento de temor pessoal diante da ideia de vigilacircncia
constante pelos olhos infaliacuteveis de um ser superior que julgaraacute com rigor as accedilotildees humanas de
uma vez por todas num momento aguardado mas desconhecido Todavia para que ele
funcione eacute preciso que exista um miacutenimo de plausibilidade nas ideias que sustentam o
controle absoluto de Deus Ou seja ningueacutem temeria algo que natildeo fizesse o miacutenimo sentido
Aqueles que combatiam os cristatildeos natildeo se intimidavam diante do Deus cristatildeo e em alguns
casos acreditavam estar sendo piedosos combatendo as crenccedilas descabidas desse novo grupo
Atentando para essas circunstacircncias Justino se empenha em mostrar correlaccedilotildees entre
elementos do pensamento cristatildeo e outros comuns agraves culturas no Impeacuterio
A ameaccedila do castigo no poacutes-morte eacute fundamental na estrutura da doutrina da justiccedila
divina Por isso para que sua estrateacutegia de persuasatildeo funcione ele se empenha em demonstrar
ldquoas evidecircnciasrdquo da vida eterna ou do poacutes-morte O apologista admite que ldquose a morte
terminasse na inconsciecircncia seria uma boa sorte para todos os malvadosrdquo (I181) uma
reflexatildeo comum tambeacutem a Plutarco (Consolatio ad Apollonium 11107c) Todavia Justino
manteacutem que a consciecircncia permanece e que a conduta humana eacute passiacutevel de puniccedilatildeo ou
precircmio em um momento aleacutem da vida451 Sua linha de pensamento sobre esse assunto
representa apenas uma das correntes de pensamento que emergiam entre os cristatildeos no seacuteculo
II452
Para minimizar qualquer exotismo no reconhecimento dessa doutrina cristatilde ele
menciona a necromancia453 as visotildees obtidas atraveacutes de crianccedilas puras454 os que satildeo
451 Como Platatildeo discorrendo sobre a vida apoacutes a morte em Phaedo 107c 452 Cf POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005 passim 453 Justino usa o termo nekuomanteiaj que deve ser entendido como ldquoconsulta aos mortosrdquo cf I183 454 Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p178) editou essa passagem da seguinte forma ai` avdiafqorwn paidwn evpopteuseij [les divinations faites sur les entrailles drsquoenfants innocents] Seu texto grego foi fiel ao MS A que sugere o termo avdiafqorwn no lugar de diafqorwn mas a versatildeo em francecircs se distanciou muito do significado estrito Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 59) observou a nota marginal do MS A e acrescentou tambeacutem a conjunccedilatildeo div proporcionando a seguinte frase ai` div avdiafqorwn paidwn evpopteuseij Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 123) apresentam uma correccedilatildeo que parece ser a mais convincente Em vez de substituir diafqorwn por avdiafqorwn eles simplesmente dividem a palavra que aparece no MS A em duas div avfqorwn paidwn evpopteuseij [visions obtained through uncorrupted children] Natildeo eacute possiacutevel dizer se se trata de uma
93
chamados entre os magos de espiacuteritos dos sonhos e espiacuteritos assistentes para assim tentar
estabelecer que mesmo depois da morte as almas conservam a consciecircncia Os casos de
possessatildeo ou loucura quando segundo sua concepccedilatildeo sobre o que se pensava naquela eacutepoca
alguns eram ldquoarrebatados e agitados pelas almas dos mortosrdquo tambeacutem satildeo alocados ao lado
dos oraacuteculos de Anfiloco de Dodona de Piton e outros semelhantes A descida de Ulisses ateacute
a regiatildeo dos mortos na obra de Homero (Odisseia10101 ndash 111ss) as doutrinas de escritores
como Empeacutedocles e Pitaacutegoras Platatildeo e outros que disseram coisas parecidas tambeacutem satildeo
destacadas
A ideia de uma consciecircncia apoacutes a morte fiacutesica natildeo era algo estranho no mundo greco-
romano da eacutepoca de Justino Mas o apologista apresenta uma elaboraccedilatildeo teoloacutegica sobre o
ldquocastigo ou salvaccedilatildeo eternardquo que deveria desempenhar uma funccedilatildeo coercitiva sobre as pessoas
em geral Essas ideias cristatildes satildeo herdeiras de elementos do pensamento judaico jaacute sob a
influecircncia do helenismo Desse modo satildeo encontrados aspectos comuns ao judaiacutesmo como o
da justiccedila divina e outros relativos a outras culturas como a existecircncia da alma455
Segundo Dag Oistein Endsjo456 os judeus sofreram a influecircncia da cultura grega sobre
as ideias do poacutes-morte sem que isso represente uma planificaccedilatildeo das duas culturas A
correspondecircncia entre alguns elementos aparece por exemplo na traduccedilatildeo de lw a v para avdej
na LXX proporcionando a associaccedilatildeo entre a ldquosepulturardquo e o ldquosubmundo dos mortosrdquo
Associaccedilatildeo que remonta a Odisseia de Homero e se estende para niacuteveis mais complexos
Conforme tambeacutem considerou E D Wright457 judeus e cristatildeos emprestaram alguns
elementos da cultura greco-romana para a elaboraccedilatildeo de suas cosmologias Mas as
consulta de crianccedilas vivas ou mortas mas poder haver alguma relaccedilatildeo com as passagens sobre as ldquocrianccedilas purasrdquo nos Papyri Graecae Magicae e principalmente com a Historia Eclesiaacutestica (III1311-12) de Soacutecrates 455 Devido aos objetivos desta pesquisa seraacute necessaacuterio ser bastante seletivo neste ponto A anaacutelise do desenvolvimento das ideias cristatildes sobre a vida apoacutes a morte exigiria uma anaacutelise de suas raiacutezes na cultura egeia entre os egiacutepcios mesopotacircmicos no zoroastrismo na cultura grega em geral e nas vaacuterias fases da religiatildeo dos judeus As correlaccedilotildees estabelecidas neste capiacutetulo satildeo aprofundamentos de toacutepicos sugeridos pelos proacuteprio Justino no decorrer de sua anaacutelises Para mais informaccedilotildees cf SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946 OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992 COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987 DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000 SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006 456 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 457 The History of Heaven New York Oxford University Press 2000 p 139
94
correlaccedilotildees se estendem tambeacutem para com a cultura persa que segundo Alan Segal458
apresentava aspectos muito atrativos ao povo simples
O desenvolvimento das ideias sobre o poacutes-morte entre os judeus eacute complexa Haacute
algum consenso entre os estudiosos de que a ideia de ldquoressurreiccedilatildeordquo tenha aparecido
tardiamente no judaiacutesmo Mas as Escrituras judaicas apresentam referecircncias a algum tipo de
existecircncia apoacutes a morte fiacutesica Um caso emblemaacutetico acontece quando o rei Saul procurou
uma b A a ecircb A a ecircb A a ecircb A a ecirc-t l[]B [evocadora de espiacuteritos] para poder falar com o falecido profeta Samuel (I
Samuel 281-7) praacutetica proibida pela Lei (Dt 189-12) No I seacutec dC a ressurreiccedilatildeo era
motivo de disputas entre saduceus e fariseus459 Os saduceus natildeo acreditavam na ressurreiccedilatildeo
dos mortos Sobre os fariseus Flaacutevio Josefo460 escreveu que ldquotoda alma [] eacute impereciacutevel
mas somente a alma dos bons passa a outro corpo Por outro lado a alma dos homens maus
estaacute sujeita agrave puniccedilatildeo eternardquo Os saduceus satildeo descritos como aqueles que ldquoacreditavam que
Deus natildeo estaacute interessado em se agimos bem ou mal [] agir bem ou mal eacute apenas uma
questatildeo de escolha humana e que uma ou outra pertence a cada um assim podem agir como
bem entendemrdquo461 Tambeacutem descartam a crenccedila ldquona duraccedilatildeo imortal da alma e na puniccedilatildeo e
recompensa no Hadesrdquo462 Na contramatildeo dessas ideias Josefo escreve que os fariseus
ldquotambeacutem acreditam que a alma tem o poder de sobreviver agrave morte em si e que embaixo da
terra haveraacute recompensa ou puniccedilatildeo para a vida de viacutecio ou virtude que se viveu nesta
vidardquo463
Natildeo passou despercebido a Vicente Dobroduka464 que o vocabulaacuterio empregado pelo
historiador judeu se assemelha razoavelmente ao de Platatildeo465 Quer seja por uma intenccedilatildeo do
autor em aproximar a doutrina farisaica agrave filosofia ou pela adaptaccedilatildeo de um editor posterior
os pontos de semelhanccedila entre essas doutrinas e a cultura helecircnica satildeo evidentes Mesmo sem
ser uma forma de pensar que atraiacutesse a todos os judeus naquela eacutepoca natildeo haacute razotildees para se
458 Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 p 394 Cf as noccedilotildees escatoloacutegicas persas que teriam influenciado a apocaliacuteptica judaica em RUSSELL D S The Method and Message of Jewish ApocalypticPhiladelphia Westminster Press 1964 p 19 e em SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008 p 314 Entre essas noccedilotildees esta a ideia da ressurreiccedilatildeo corporal Para uma visatildeo geral da escatologia do Avesta cf MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975 pp 177-207 459 Mt 2223-33 Josefo Ant Jud 1814 Guer Jud 28 460 Guer Jud 2162ss 461 Guer Jud 2162ss 462 Guer Jud 2162ss 463 Ant Jud 1814 464 DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 2005 p 24 465 Meno 81b5 Feacutedon 70a8 e 72a8
95
duvidar que a ideia de uma recompensa futura baseada nas accedilotildees humanas era amplamente
conhecida entre os judeus Como escreveu Elizacircngela A Sousa466
certos elementos nas ideias particulares de juiacutezo satildeo compartilhados por uma e outra cultura assinalando algum tipo de intercacircmbio existente entre elas o que ainda outra vez nos coloca de frente com o pressuposto de que certos aspectos culturais (e religiosos) se constituem se natildeo totalmente a partir de trocas simboacutelicas pelo menos em parte satildeo influenciados por elas
A tradiccedilatildeo aponta que Paulo era um fariseu467 e a sua crenccedila na ressurreiccedilatildeo se
desenvolveraacute entre os cristatildeos No entanto eacute preciso lembrar como destacou D O Sousa468
que entre os cristatildeos ldquonatildeo havia uma unicidade de pensamento em continuidade com a
escatologia judaicardquo No processo proselitista de comunicaccedilatildeo da mensagem cristatilde os fieacuteis
enfrentaram os questionamentos de outros grupos Segundo o relato de Atos dos Apoacutestolos
(1716-34) Paulo enfrentou a resistecircncia dos filoacutesofos epicureus e estoicos no areoacutepago em
Atenas e em outro episoacutedio precisou repreender os coriacutentios em carta porque alguns estavam
sustentando que natildeo existia ressurreiccedilatildeo (I Co 1512-33) Embora os relatos de ressurreiccedilatildeo
dos mortos e da existecircncia de uma consciecircncia apoacutes a morte fossem comuns ao mundo greco-
romano como destaca Dag Oistein Endsjo469 natildeo existia nenhum consenso e eacute possiacutevel
distinguir essas contraposiccedilotildees em pelo menos dois grupos os criacuteticos intelectuais que
incluiacuteam filoacutesofos oradores e escritores e por outro lado a maioria sem instruccedilatildeo
De acordo com Lewis Richard Farnell470 a especulaccedilatildeo filosoacutefica grega natildeo poderia
ser considerada uma testemunha plena da mentalidade e da feacute daquela eacutepoca da cultura greco-
romana Estrabatildeo471 escreveu provavelmente no iniacutecio do I seacuteculo dC que ldquofilosofia era
algo para poucos enquanto poesia era mais uacutetil para as pessoas em geralrdquo No mesmo sentido
Plutarco472 admite que em sua eacutepoca apenas poucos conheciam as Leis de Platatildeo enquanto os
escritos de Homero eram ainda amplamente disseminados Pausacircnias no seacuteculo II dC
escreveu que Platatildeo a quem ele chama de ldquoo maior dos filoacutesofosrdquo473 tinha suas ideias
recebidas somente ldquopor alguns dos gregosrdquo474 Tudo indica que a situaccedilatildeo no II seacuteculo era a
466 SOARES Elizangela A Variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte desenvolvimento de uma crenccedila no judaiacutesmo do segundo templo 127 f (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2006 p 104 467 At 223 468 SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 setdez 2009 p 412 469 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 passim 470 Ibid p 386 471 Geografia 128 472 Moralia 328de 473 Descriccedilatildeo da Greacutecia 4324 474 Ibid 1303
96
mesma que Oriacutegenes475 descreve no seacuteculo seguinte ldquoeacute faacutecil de fato observar que Platatildeo eacute
encontrado somente nas matildeos daqueles que professam serem homens das letrasrdquo
Conforme destacou Henry Chadwick476 o estudo da metafiacutesica platocircnica foi peculiar a
poucos de uma ldquoaristocracia intelectualrdquo Nesse sentido Ramsay MacMullen477 tambeacutem
apontou que a reflexatildeo filosoacutefica natildeo apresentou nenhuma influecircncia detectaacutevel agrave praacutetica
cuacuteltica da religiatildeo tradicional grega478 Por outro lado eacute possiacutevel encontrar criacuteticas da
intelectualidade agraves superstitiones e agrave religiatildeo tradicional Certamente para pensadores como
Plutarco Dio de Prusa e Luciano de Samoacutesata os deuses natildeo existiam conforme as formas
homeacutericas Segundo Ramsay MacMullen479 esses pensadores puristas sustentam que os
deuses estavam distantes demais de tais caracteriacutesticas humanas comuns tais como nascer
comer beber e fornicar como a maioria deles faz extensivamente em suas tradicionais
representaccedilotildees Tudo isso natildeo passa de deisidaimonia ou seja ldquosupersticcedilatildeordquo Muitas vezes os
filoacutesofos reinterpretavam ou racionalizavam os mitos antigos rejeitando acontecimentos
milagrosos recentes semelhantes agraves narrativas antigas
No mundo grego a morte foi usualmente definida como a separaccedilatildeo da alma do corpo
Isso eacute amplamente demonstrado nas representaccedilotildees da morte de muitos guerreiros de Homero
repetidamente descritas como a alma [yuch] deixando o corpo480 E mesmo Platatildeo poderia
concordar com isso tendo Soacutecrates proclamado que a morte em sua opiniatildeo ldquonatildeo eacute nada
aleacutem do que a separaccedilatildeo dessas duas coisas a alma e o corpordquo481 A alma homeacuterica no Hades
era sempre definida como ldquomorterdquo Eram ldquoespiacuteritos da morterdquo482 ldquoMorterdquo natildeo significava
inexistecircncia absoluta mas uma existecircncia deacutebil da alma sem o corpo Sem um corpo fiacutesico
ningueacutem era de fato uma ldquopessoa completardquo Para os gregos a natureza humana sempre
equivaleu a uma unidade psicossomaacutetica Como escreveu Michael Clarcke483 ldquoo homem
homeacuterico natildeo tinha uma mente pois seus pensamentos e consciecircncia eram partes constituintes
da sua vida corpoacuterea como eram os movimentos e o metabolismordquo
475 Contra Celso 62 476 Introduction In ____ Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi 477 Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 p77 478 Isso natildeo quer dizer que filosofia natildeo acarretou mudanccedilas na maneira de pensar a religiatildeo pelos letrados como se considerou no capiacutetulo anterior 479 Ibid p77 480 ENDSJO Dag Oistein Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 p 38 481 Platatildeo Gorgias 524b cf Platatildeo Feacutedon 64c 482 Odisseia 11541 cf Odisseia 10521 10536 1129 1149 483 CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999 p 115
97
Como filoacutesofo Plutarco natildeo acreditava em nenhuma dessas histoacuterias populares sobre
ressurreiccedilatildeo fiacutesica e imortalizaccedilatildeo Para ele somente a alma tinha a chance de alcanccedilar a
esfera divina ldquoquando ela definitivamente se separa e se torna livre do corpo tornando-se
pura descarnada e imaculadardquo484 Mas ele admite que a maioria das pessoas natildeo se importava
com isso
Essas especulaccedilotildees tinham consequecircncias apenas limitadas de modo que natildeo
apresentaram um impedimento destacaacutevel agrave proliferaccedilatildeo de superstitiones inclusive entre as
classes elevadas agraves vezes Conforme Rohde485 argumenta a indignaccedilatildeo apaixonada de
filoacutesofos estoicos e epicureus que atacavam as crenccedilas que repousavam sobre os ensinos de
Homero natildeo poderiam ser explicadas exceto pela suposiccedilatildeo de que Homero e suas
representaccedilotildees permaneciam com uma significativa forccedila de orientaccedilatildeo entre as massas que
natildeo tinham conhecimento da filosofia O proacuteprio Justino indica que as ideias em torno da
crenccedila no Hades ainda eram fortes
O apologista toma o desafio de mostrar que a forma de pensar cristatilde natildeo era uma
novidade tatildeo descabida que natildeo pudesse ser aceita e ao mesmo tempo procura mostrar que
suas ideias apresentam um argumento razoaacutevel Comparando a crenccedila cristatilde na existecircncia de
uma consciecircncia apoacutes a morte do corpo agraves outras opiniotildees disseminadas pelo Impeacuterio
destaca-se tambeacutem que essa doutrina natildeo era demasiadamente estranha aos povos486 Os
elementos aparentemente comuns agrave cultura greco-romana e ao cristianismo nascente satildeo
alinhados na construccedilatildeo do argumento de que se os cristatildeos natildeo apresentavam uma doutrina
demasiadamente nova natildeo deveriam existir razotildees para serem incomodados ou combatidos
Neste caso os que apresentam doutrinas semelhantes agraves dos fieacuteis tambeacutem mereceriam ser
combatidos ou em uma melhor hipoacutetese ambos mereceriam ser deixados em paz
Outro refuacutegio apologeacutetico encontrado por Justino eacute recorrer ao fundamento cristatildeo na
tradiccedilatildeo judaica para assim alegar a antiguidade cristatilde Mas reconhecendo os elementos
semelhantes agrave cultura geral e agrave religiatildeo dos judeus o apologista abaixa a guarda para os
golpes da intelectualidade Por isso sua trama apologeacutetica precisa forjar um sentido
racionalizante desses elementos comuns a pagatildeos e a judeus e apresentar ao mesmo tempo a
doutrina cristatilde como um ensinamento superior agrave filosofia
484 Plutarco Romulus 287 485 ROHDE Erwin [1921] Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966 p 535 486 I186
98
Ele compara a crenccedila cristatilde na consumaccedilatildeo final de todas as coisas agraves noccedilotildees de
Sibila487 e Histapes488 (I201) sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo de tudo o que eacute corruptiacutevel A
funccedilatildeo do fogo no processo do ciclo coacutesmico dos filoacutesofos estoicos tambeacutem eacute elencado
destacando o renascimento do mundo pela transformaccedilatildeo489 Arquitetando seu argumento
apologeacutetico Justino questiona por que os cristatildeos satildeo ldquoperseguidosrdquo se existem algumas
correlaccedilotildees ou semelhanccedila entre as coisas ensinadas entre os fieacuteis e entre os filoacutesofos e
ldquopoetasrdquo estimados pelos romanos490 Essas correlaccedilotildees no entanto levaratildeo o apologista a
um aprofundamento dessas semelhanccedilas e dessemelhanccedilas Ele escreve
Assim quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus pareceraacute apenas que enunciamos um dogma de Platatildeo ao falar sobre conflagraccedilatildeo outro dogma dos estoicos ao dizer que satildeo castigadas as almas dos iniacutequos que ainda depois da morte conservaratildeo a consciecircncia e que as dos bons livres de todo castigo seratildeo felizes pareceraacute que falamos como vossos poetas e filoacutesofos que natildeo se devem adorar obras de matildeos humanas natildeo eacute senatildeo repetir o que disseram Menandro o
487 O substantivo feminino Sibulla pode significar uma ldquoprofetizardquo (PEREIRA Isidro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 516) Admite-se que essas elas profetizavam sob a influecircncia divina O primeiro escritor grego a fazer menccedilatildeo a Sibila eacute Heraacuteclito (Fragmento 92) No entanto Walter Burket (Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 p 116) escreve que mulheres em frenesi espiritual pelas quais os deuses falavam podiam ser encontradas muito antes no Oriente proacuteximo como em Mari no secundo milecircnio e na Assiacuteria no primeiro milecircnio Elas natildeo eram identificadas por um nome proacuteprio ficavam conhecidas apenas com o nome do local onde atuavam Uma coleccedilatildeo de anuacutencios profeacuteticos deu origem ao que ficou conhecido como Libri Sibyllini Acredita-se que a abra tenha sido obtida no reinado de Tarquinio Priscus (616 aC ndash 579 ac) por uma Sibila que protagoniza um mito em torno do livro Por vezes ela eacute chamada apenas de Sibila Os textos serviam de paracircmetro para a religiatildeo e eram guardados no Juacutepiter Captolino Com o incecircndio do templo em 82 aC os livros se perderam Deram iniacutecio a uma raacutepida busca por textos sibiliacutenicos por diversas regiotildees para compor uma nova coleccedilatildeo Poreacutem o caraacuteter e a pretensatildeo dos textos coletados desapontou esse objetivo Augustus determinou que os livros fossem destruiacutedos (Suetonio Vita cesarum Augustus 31 Tacito Anais VI12) Tibeacuterio voltou a examinar os Livros Sibilinos Muitos foram rejeitados como escritos espuacuterios (Cassius Dio LIV17) Pouco tempo mais tarde ainda sob seu governo um novo volume foi admitido (Taacutecito Anais VI12) (cf SMITH W (Ed) A Dictionary of Greek na Roman Antiquities London John Murray 1875 pp 1043-1044) Do primeiro para o segundo seacuteculo uma grande porccedilatildeo de escritos de cunho judaico-cristatildeos entram no paacutereo do textos sibiliacutenios (cf TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899) Eacute difiacutecil saber exatamente a qual ensino sibilino sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo Justino se refere MUNIER (op cit p 185) sugere que seja o trecho dos Oracles Sibyllins II196 MARCOVICH (Op cit p 62) aponta as passagens de Oracle Sibylline 2196ss 2286ss 3672ss 3689ss 4173ss 7120ss 8243ss O mesmo livro sibilino eacute mencionado em I4512 cuja leitura era vetada ao povo Cf ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997 PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988 A Greek-English Lexicon Edited by Henry Georg Liddell and Robert Scott OxfordNew York Clarendon PressOxford University Press 1996 488 U`stasphj eacute a forma grega de se escrever Vistaspa nome do pai de Dario o Grande e protetor de Zoroastro (KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945) Justino provavelmente estaacute se referindo ao escrito pseudoepiacutegrafo dos Oraacuteculos de Histaspes produzido provavelmente entre os seacuteculo II e I aC Essa obra heleniacutestica da Aacutesia menor apresentava fortes traccedilos do Zoroastrismo mas tambeacutem evidenciava aspectos poliacutetico-apocaliacutepticos relacionado ao domiacutenio de Roma sobre os demais povos (SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012 cf CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938) Histaspe e Sibila tambeacutem aparecem juntos nos escrito de Clemente de Alexandria (Stromata VI51) Lactacircncio (Divinae Institutiones VII1519 VII182) 489 I202 490 I203
99
poeta cocircmico e outros com ele que afirmaram que o artiacutefice eacute maior do que aquele que o fabrica (I204-5)
Tendo em vista a criacutetica dos filoacutesofos e letrados agraves crenccedilas gerais do povo as
semelhanccedilas e pontos de contato entre as doutrinas cristatildes e os mitos pagatildeos apontados por
Justino em defesa dos cristatildeos poderia se converter em uma nova dificuldade como algueacutem
que tenta sair de um abismo para cair em outro Por isso ele desenvolve uma explicaccedilatildeo para
essas semelhanccedilas elevando as doutrinas cristatildes a um niacutevel de primazia e evidenciando o seu
aspecto filosoacutefico
Segundo Viviana L Felix491 mesmo admitindo a semelhanccedila entre os ensinos de
Platatildeo e o dos cristatildeos uma posiccedilatildeo contraacuteria agrave doutrina platocircnica da alma eacute assumida
empenhando-se na construccedilatildeo de uma soteriologia e escatologia cristatildes conforme seratildeo
analisadas mais adiante O apologista combate como destaca Van Winden492 as correntes
filosoacuteficas que natildeo tecircm esperanccedila que Deus castigue ou premie em outra vida Seu interesse
estaacute ligado agrave vida eacutetica do homem e seu destino escatoloacutegico
A esperanccedila dos cristatildeos de terem os seus corpos restabelecidos mesmo depois de
mortos poderia representar algo ldquoimpossiacutevelrdquo na opiniatildeo de alguns Justino natildeo usa outro
argumento que natildeo seja o argumento da feacute Esse seu subterfuacutegio indica que muitas coisas que
parecem ser impossiacuteveis em um momento se demonstram possiacuteveis em outro surpreendendo
a muitos Ele usa o exemplo do secircmen humano para dizer que mostrado a algueacutem luacutecido
jamais se poderia supor imediatamente que uma soacute gota desse liacutequido seria capaz de se
transformar em um corpo humano De modo semelhante entatildeo se a princiacutepio pode parecer
estranho crer que um corpo ldquosemeadordquo na sepultura possa se transformar em um corpo
glorificado na ressurreiccedilatildeo depois se mostraraacute evidente493 Explanando esse argumento o
apologista explica que os cristatildeos sustentam que ldquoeacute melhor crer naquilo que estaacute acima da []
proacutepria natureza e que eacute impossiacutevel aos homens do que serem increacutedulosrdquo494 Tudo gira em
torno dos ensinamentos do seu mestre Jesus Cristo O mesmo que ensinou que o que eacute
impossiacutevel para os homens eacute possiacutevel para Deus495 Para um ouvinte alheio agrave mentalidade
judaico-cristatilde tal sentenccedila poderia parecer muito vaga Afinal os pagatildeos estavam
familiarizados com as limitaccedilotildees humanas e os poderes divinos que recheavam os mitos 491 FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa 492 WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 1975 pp 181-190 493 I191-4 494 I196 Kreitton de pisteuein kai tauta kai ta Th| e`autwn fusei kai avnqrwpoij avdunata hv o`moiwj toij alloij avpistein proseilhfamen MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 495 `Ta avdunata para avnqrwpoij dunata para qew|( MINNSPARVIS Op cit p 128 A citaccedilatildeo eacute de Lc 1827
100
Todavia Justino faraacute saber que o ponto chave desse misteacuterio eacute a feacute naquilo que eacute crido como a
ldquorevelaccedilatildeo divinardquo Essa revelaccedilatildeo mostra-se tambeacutem desafiadora pois ao mesmo tempo em
que traz luz sobre as accedilotildees humanas porta condenaccedilatildeo e temor ainda que estes sejam
contemplados pela mensagem da cruz496 de modo reparador Eacute no exato momento em que se
manifesta a necessidade de escolher aquilo que se revela como o correto verdadeiro e bom
que se deve temer pela escolha capaz de determinar o destino no poacutes-morte Essa advertecircncia
tambeacutem foi feita pelo mestre Natildeo temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais
podem fazer temei antes aquele que depois da morte pode lanccedilar alma e corpo no
inferno497 Ele mesmo define o ldquoinfernordquo como ldquoo lugar onde seratildeo castigados os que
tiverem vivido iniquamente e natildeo acreditaram que aconteceratildeo essas coisas ensinadas por
Deus atraveacutes de Cristordquo498 (I198) O Deus absoluto que tudo vecirc tudo conhece e do qual
nada se pode ocultar aparece tambeacutem como o grande juiz das accedilotildees humanas Assim
comunicada essa ldquoverdaderdquo cristatilde ela deve produzir temor e efetivar a sua funccedilatildeo em exigir
uma accedilatildeo positiva ou negativa de quem a ouve ou a lecirc
42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde
Seguindo o raciociacutenio do apologista deve ser a ldquorazatildeordquo a dirigir as escolhas humanas
No entanto a ldquorazatildeordquo ou seja o logos que estaacute em evidecircncia no pensamento de Justino eacute
produto da sua arguiccedilatildeo teoloacutegico-apologeacutetica Eacute possiacutevel identificar uma estrateacutegia literaacuteria
496 Mensagem da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo 497 lsquoMh Fobeisqe touj avnairountaj umaj kai meta tauta mh dunamenouj ti poihsai( fobhqhte de meta to Avpoqanein dunaMenon kai yuchn kai swma eivj geennan evmbalein)v MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 Cf Mt 1028 Lc 124-5 Geenna eacute uma transliteraccedilatildeo grega do termo aramaico ~ N h iy G e que corresponde ao ~oN h i a y G e hebraico e assumiu o sentido de ldquopuniccedilatildeo futurardquo (RUSCONI C Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 106 A primeira menccedilatildeo ao Vale de Hinnom na Biacuteblia aparece em Js 158 No entanto no texto dos LXX (LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]) satildeo empregadas as palavras faragga Onom para se referir ao ~ N Oh i- y g E) da Biacuteblia Hebraica (Biblia Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50]) Em II Cr 283 a LXX substitui ~ N O=h i- b a y g EaringB pela transliteraccedilatildeo Gaibenenom Esse lugar teria destinados primeiramente ao sacrifiacutecio de crianccedilas a Moloque e a Baal numa parte especiacutefica do vale chamada Tophet Depois do Exiacutelio com o intuito de mostrar a abominaccedilatildeo do local o judeus o transformaram no depoacutesito de lixo da cidade Para a destruiccedilatildeo dos resiacuteduos ali depositados o fogo era mantido sempre aceso Por isso os judeus associaram ao local a ideia de sofrimento e corrupccedilatildeo (Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998 p 457) A palavra geenna eacute sempre empregada nos discursos de Jesus (Mt 2333 Lu 125 Mt 522) como um lugar de puniccedilatildeo num julgamento futuro e Justino o emprega nesse mesmo sentido 498 h de geenna evsti topoj enqa kolaxesqai mellousin oi` avdikwn biwsantej kai mh pisteuontej tauta genhsesqai( o[as o` qeoj dia tou Cristou evdidaxe) MINNSPARVIS Op cit p 128 Cf Lc 125 Mt 1028
101
que ressignifica o conceito de ldquorazatildeordquo por meio da construccedilatildeo teoloacutegica em torno do logos
cristatildeo buscando atestar a racionalidade da ldquofilosofiardquo cristatilde
Considerar a religiatildeo cristatilde como uma ldquofilosofia divinardquo499 natildeo eacute apenas o reflexo da
sua trajetoacuteria filosoacutefica ateacute sua conversatildeo eacute tambeacutem uma estrateacutegia apologeacutetica que considera
normal existirem diferentes correntes de pensamento dentro do Impeacuterio sem que isso acarrete
automaticamente perseguiccedilotildees entre grupos distintos500 Segundo Justino eacute o logosrazatildeo que
orienta o curso da apologia em favor dos cristatildeos501 O apologista estaacute convencido de que suas
reivindicaccedilotildees satildeo ldquojustas e verdadeirasrdquo502 o que exige uma investigaccedilatildeo particular sobre o
sentido desses dois conceitos tambeacutem De outro modo a causa uacuteltima das accedilotildees anticristatildes eacute a
influecircncia dos democircnios que colocam o povo e as autoridades contra os fieacuteis Segundo seu
raciociacutenio os ldquomaus democircniosrdquo agiam por meio da promoccedilatildeo da ignoracircncia e da confusatildeo
Por isso ele se demonstra disposto a apresentar outros pontos sobre as crenccedilas cristatildes ldquoa fim
de persuadir os amantes da verdaderdquo503
Tendo em vista que o mecanismo de controle proporcionado pelo conteuacutedo das
doutrinas cristatildes eacute estabelecido fundamentalmente pelo temor diante do Deus que sonda todas
as coisas e que pode punir ou recompensar eternamente aqueles que agem virtuosamente nesta
vida o apologista escreve sobre a capacidade humana de agir racionalmente
Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e se recusem
outras como ldquoa pobreza o sofrimento e a desonra paternardquo504 A incompreensatildeo dessa
ldquoracionalidade cristatilderdquo fazia com que muitos se opusessem aos cristatildeos A falta de
conhecimento sobre as doutrinas cristatildes seria a responsaacutevel por exemplo por muitos
acusarem-lhes de ateiacutesmo505 Por ser uma religiatildeo nova e em processo de consolidaccedilatildeo natildeo eacute
nenhuma surpresa que muitos ainda estivessem confusos acerca das doutrinas cristatildes que por
vezes encabulavam os proacuteprios cristatildeos506
499 II Apol 125 500 II Apol 126 501 II Apol 128 502 I1211 tambeacutem em I683 ldquonatildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo 503 I1211 504 I128 505 I131 506 Os cristatildeos estavam longe de apresentarem unidade doutrinaacuteria Justino faz menccedilatildeo a cristatildeos divergentes como Helena Menandro e os marcionitas (I261-8)
102
421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios
Segundo a tese apresentada por Justino os democircnios se apoderam de todos aqueles
que de um ou outro modo natildeo trabalham por sua proacutepria salvaccedilatildeo O conceito de daiacute mwn
estava presente na cultura grega desde Homero e Hesiacuteodo507 Seu campo semacircntico eacute extenso
Deus conceito baacutesico que mais se aproxima da ideia que Justino sustenta eacute o de ldquoum ser
divinordquo ldquoo poder divinordquo ldquoum semideusrdquo ldquoser que interfere no destino humanordquo e poderia
ser ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo508
O conceito de ldquosalvaccedilatildeordquo natildeo estaacute claro nesses escritos mas estaacute relacionado agrave
recompensa positiva daqueles que creram e agiram conforme a revelaccedilatildeo dos desiacutegnios
divinos Isso tambeacutem significa associar-se ao logos e dissociar-se dos enganos demoniacuteacos
Desse modo ele escreve que ldquodepois de crer no logos noacutes nos afastamos deles [dos democircnios]
e por meio do Filho seguimos o uacutenico Deus unigecircnitordquo509
Esse distanciamento dos enganos destes seres malignos e pelo apego ao logos eacute o que
produz uma mudanccedila de conduta Seu testemunho em defesa da feacute eacute que os que antes se
compraziam na dissoluccedilatildeo agora abraccedilam apenas a temperanccedila os que antes se entregavam
agraves artes maacutegicas agora se consagram ao Deus bom e ingecircnito aqueles que antes eram
apegados aos bens materiais e agraves rendas agora compartilham do quem tecircm os que antes se
odiavam e se matavam mutuamente desprezando aqueles que natildeo pertenciam agrave mesma raccedila
pela diferenccedila de costumes agora vivem todos juntos rezam pelos seus inimigos e tratam de
persuadir os que os aborrecem injustamente a fim de que vivendo conforme conselhos de
Cristo tenham boas esperanccedilas de alcanccedilar uma recompensa de Deus (I Apol 141-3) Por
isso o filoacutesofo apologista critica as accedilotildees anticristatildes romanas que acatavam as caluacutenias
disseminadas dizendo ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e natildeo
tenhais a quem castigarrdquo510
A fonte da moralidade cristatilde estaacute primeiramente relacionada agrave mensagem do seu
mestre o Cristo por vezes tido como motivo de escacircndalo para os infieacuteis Essa moralidade eacute
destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e comentaacuterios ldquodisseminados
507 POPE Kyle Mark The concept of theDAIMWN in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 13-17 cf REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004 508 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 (Perseu Project) 509 I Apol 141 510 I Apol 124
103
entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso seu discurso sobressalta o
valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de temperanccedila511 Tambeacutem recebem
destaques a doutrina cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos
necessitados e a ausecircncia de valor da ostentaccedilatildeo512 Com o mesmo tom piedoso seguem as
afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico513 Desse
modo Justino contribui tambeacutem para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos
propondo uma identidade coletiva Nesse processo o apologista combate um conceito
estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que considera equiacutevocos e mal entendidos
ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja Essa sua atitude revela tambeacutem que o processo de construccedilatildeo da
identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada principalmente pela
necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os variados grupos
cristatildeos Pois as Igrejas em meados do seacuteculo II devem ser vistas ainda como manifestaccedilotildees
de ldquocristianismosrdquo514
No intuito de explicar o caraacuteter das crenccedilas cristatildes Justino faz referecircncia agrave recepccedilatildeo e
interpretaccedilatildeo de escritos e doutrinas Ser cristatildeo em sua perspectiva natildeo eacute simplesmente
pertencer a um grupo eacute um ldquoidealrdquo o de aprender o que foi ensinado pelo Cristo e praticar
em suas obras Desse modo elege-se a praacutetica dos ensinamentos do Logos como o elemento
fundamental diferenciador entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos515 Justino defende a liberdade para
estes que ele tem por ldquocristatildeosrdquo aos outros espera-se que sejam mesmo perseguidos516
Dentre os ensinos do Cristo estaacute o pagamento dos tributos e contribuiccedilotildees517 mas o
apologista vai aleacutem Propondo-se a oferecer algumas das principais informaccedilotildees sobre o
conteuacutedo das crenccedilas cristatildes um paralelo entre a natureza desses ensinamentos e outras
arguiccedilotildees eacute traccedilado518
Jesus eacute descrito como u`ioj de Qeou [filho de Deus] aquele que ainda que parecesse
homem de modo comum por sua sabedoria mereceria chamar-se filho de Deus Haacute um
511 I151-7 512 I141-919 513 I161-6 514 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 515 ldquoAqueles poreacutem que se vecirc que natildeo vivem como ele ensinou sejam declarados como natildeo cristatildeos por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de Cristo pois ele disse que se salvariam natildeo os que apenas falassem mas que tambeacutem praticassem as obrasrdquo (I169) 516 ldquoAqueles que natildeo vivem conforme os ensinamentos de Cristo e satildeo cristatildeos apenas de nome noacutes somos os primeiros a vos pedir que sejam castigadosrdquo (I1614) 517 Justino recorre agrave passagem comum a Mt 221719-20 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo cf I172 518 I144
104
contraste entre o Cristo que nasceu como Logos de Deus e o que afirmavam sobre Hermes
chamado de Logos anunciador ou mensageiro de Deus519 Para rebater o desdeacutem pela
crucificaccedilatildeo de Cristo que poderia representar algo despreziacutevel aos olhos de muitos no
Impeacuterio o apologista aponta que tambeacutem os filhos de Zeus sofreram mortes terriacuteveis Sobre
ele haver nascido de uma virgem ele compara-o a Perseu Quanto agrave cura de coxos paraliacuteticos
e enfermos de nascimento e ateacute mesmo ressurreiccedilatildeo de mortos ele aponta que haacute alguma
semelhanccedila com Ascleacutepio520 As comparaccedilotildees tambeacutem envolvem Dioniso e Heacuteracles esta
uacuteltima ascendida depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos os Dioacutescoros filhos de
Leda Perseu de Dacircnae e Belerofonte nascido de homens que ascenderam sobre o cavalo
Peacutegaso O apologista fala tambeacutem dos imperadores mortos aos quais muitos consideravam
como dignos da imortalidade e alguns juravam terem visto Ceacutesar subir ao ceacuteu521 Mas ele
adverte ldquoNatildeo pedimos que se aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque
dizemos a verdaderdquo522
As doutrinas cristatildes satildeo apresentadas como a ldquouacutenica verdaderdquo e a mais antiga do que
todos os escritores que existiram Seu discurso busca demonstrar que Jesus Cristo eacute
propriamente o uacutenico Filho nascido de Deus como seu Logos seu Primogecircnito e sua
Potecircncia A encarnaccedilatildeo do Filho pelo seu designo deu-se para que ele ensinasse essas
verdades para a transformaccedilatildeo e conduccedilatildeo do ldquogecircnero humanordquo523 Poreacutem segundo sua teoria
apologeacutetica antes de tornar-se homem entre os homens houve alguns democircnios malvados
que se adiantaram a dizer por meio dos poetas terem acontecido os mitos que inventaram
Seriam esses os mitos gerais conhecidos por gregos e romanos Em oposiccedilatildeo ao
esclarecimento proposto pelo logos para a salvaccedilatildeo humana esta o obscurecimento de toda a
racionalidade proporcionado pelos democircnios
Os democircnios satildeo entatildeo reconceituados a partir de uma perspectiva cristatilde que toma por
base a tradiccedilatildeo judaica em intersecccedilatildeo com aspectos da cultura grega conforme analisou K
M Pope524 Sua imagem estaacute relacionada ao ldquopriacutencipe dos maus democircniosrdquo chamado de
ldquoserpente satanaacutes diabo ou caluniador Todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que
519 I221-2 520 I225-6 521 Cassius Dio (Hist Rom 56462 cf T Livio Histoacuteria de Roma (Ad urbe condita) I165-7) menciona a histoacuteria de que um senador e ex-pretor tinha jurado que ele tinha visto Augustus subindo aos ceacuteus Suetocircnio tambeacutem se refere a algo desse tipo Augustus 1004 Uma histoacuteria similar foi contada sobre Iulia Drusilla a irmatilde de Caliacutegula (Cassius Dio Hist Rom 59114) Secircneca zomba deste testemunho em Apocolocyntosis I 522 I231 523 I232 cf SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987 524 The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 52-53
105
o seguem seraacute enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de
antematildeo anunciada por Cristordquo525
Justino acredita ser possiacutevel demonstrar a veracidade da feacute cristatilde por meio do
cumprimento das Escrituras526 Ele explica que os profetas de Deus movidos pelo logos e sob
o Espiacuterito profeacutetico anunciaram antecipadamente os acontecimentos futuros Vem em
seguida uma seacuterie de ldquoprediccedilotildeesrdquo sobre a vinda de Cristo e sobre o que deveria acontecer tais
como a queda de Jerusaleacutem527 a cura das enfermidades e a morte de Cristo a ressurreiccedilatildeo dos
mortos e a prediccedilatildeo de Isaiacuteas528 sobre a expansatildeo para todas as naccedilotildees Ele tambeacutem procura
mostrar que ateacute o sofrimento e a humilhaccedilatildeo de Jesus estavam previstas nas profecias e que
ele chegou a ser abandonado ateacute pelos seus (I501ss) Seu raciociacutenio eacute o seguinte
Com efeito do mesmo modo que o acontecido antecipadamente anunciado por mais que natildeo tivesse sido compreendido aconteceu assim tambeacutem o que ainda falta para ser cumprido aconteceraacute por mais que natildeo se compreenda nem se creia Assim eacute que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo uma jaacute cumprida como homem desonrado e passiacutevel a segunda quando viraacute dos ceacuteus acompanhado de seu exeacutercito de anjos quando ressuscitaraacute tambeacutem os corpos de todos os homens que existiram revestiraacute de incorruptibilidade os que forem dignos e enviaraacute os iniacutequos com percepccedilatildeo eterna ao fogo eterno junto com os perversos democircnios (I521-3)
Com convicccedilatildeo sobre o cumprimento das profecias escreve ldquoDe fato por que motivo
haveriacuteamos de crer que um homem crucificado eacute o primogecircnito do Deus ingecircnito e que
julgaraacute todo o gecircnero humano se natildeo encontraacutessemos testemunhos sobre ele publicados
antes de ele ter nascido como homem e natildeo os viacutessemos literalmente cumpridosrdquo 529 E isso o
faz pensar que a apresentaccedilatildeo desse elevado nuacutemero de referecircncias a prediccedilotildees e seus
cumprimentos deveria razoavelmente convencer a seus leitores530
Os mitos dos pagatildeos satildeo comparados aos ldquoensinosrdquo cristatildeos sustentando que eles natildeo
apresentam nenhuma prova de sua veracidade Isso deveria demonstrar que foram ditos por
obra dos ldquodemocircnios perversosrdquo para enganar e extraviar o ldquogecircnero humanordquo Ouvindo os
profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens iacutempios seriam castigados atraveacutes do
fogo esses seres maleacutevolos teriam colocado agrave ldquofrente muitos que se disseram filhos de Zeus
crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo
como um conto de fada semelhante aos contados pelos poetasrdquo531 Assim eacute elencada uma
seacuterie de semelhanccedilas entre a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e a greco-romana para mostrar a distorccedilatildeo
525 I281 526 I301ss 527 I471ss 528 Is 651-15 520 529 I532 530 Justino escreve que seriam persuadidos os que ldquoamam a verdade que natildeo seguem a opiniatildeo nem se deixam dominar por suas paixotildeesrdquo (I5310-12) 531 I542
106
pagatilde que soacute podem ser identificadas atraveacutes de uma hermenecircutica bem peculiar532 As
comparaccedilotildees vatildeo desde o texto de Gn 4910-11 agrave vinha de Dioniso e sua ascensatildeo
semelhante agrave subida de Belerofonte montado no cavalo Peacutegaso ao ceacuteu o texto de Is 714 e a
lenda de Perseu Sl 186 e as narrativas sobre Heacutercules ateacute as ldquoprofeciasrdquo de curas a todas as
enfermidades e ressurreiccedilatildeo dos mortos533 ao mito de Ascleacutepio Mas a crucificaccedilatildeo eacute algo que
os pagatildeos natildeo poderiam imitar pois tudo ldquotudo o que se refere agrave cruz foi dito de forma
simboacutelicardquo534
Os judeus no entanto satildeo tidos como ignorantes sobre o cumprimento das profecias
de que Jesus deveria vir nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda
doenccedila toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e
crucificado que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus
que ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os
homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nele535
Ele recorre aos escritos do profeta Isaiacuteas536 para indicar que Cristo seria concebido por
uma virgem O logos eacute conceituado como o Filho a primeira virtude ou potecircncia depois de
Deus que eacute Pai e soberano de todas as coisas O logos entatildeo se tornou carne e nasceu homem
(I3210) Por Espiacuterito e forccedila que procede de Deus ele eacute reconhecido como o Logos que eacute o
primogecircnito de Deus O apologista sustenta que aqueles que profetizam satildeo inspirados pelo
logos divino
Em sua perspectiva os judeus detentores da tradiccedilatildeo e dos livros dos profetas poreacutem
aleacutem de natildeo reconhecerem a Cristo jaacute vindo tambeacutem odeiam aos cristatildeos Isso eacute destacado
na sua afirmaccedilatildeo de que na guerra dos judeus Bar Koseba o cabeccedila da rebeliatildeo mandava
submeter a terriacuteveis torturas somente os cristatildeos caso estes natildeo negassem e blasfemassem
Jesus Cristo (I316)
A mensagem cristatilde eacute um elemento apelativo que busca induzir os fieacuteis a uma conduta
diferente ldquoNoacutes que antes nos mataacutevamos mutuamente agora natildeo soacute natildeo fazemos guerra
contra os nossos inimigos mas tambeacutem por natildeo mentir nem enganar os juiacutezes que nos
interrogam morremos felizes de confessar a Cristordquo (I393) Justino considera ridiacuteculo que os
soldados que se arrolam e se alistam pusessem a lealdade para com o imperador ldquoacima de
sua proacutepria vida acima dos pais paacutetria e tudo o que lhes pertence embora nada de
532 BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 2009 pp 538-555 533 Is 355-6 Mt 115 534 I551 535 I317-8 536 Is 111-10
107
impereciacutevel lhes pudeacutesseis oferecerrdquo (I395) Por outro lado os cristatildeos que amam a
incorrupccedilatildeo suportam tudo a troco de receber daquele que confiam ter poder para lhes dar
(I395)
A superioridade do Deus judaico-cristatildeo sobre os deuses das outras naccedilotildees aparece
submetendo os demais deuses ao jugo dos ldquodemocircniosrdquo sob a sombra da ignoracircncia que esses
propagam Entretanto o Deus dos cristatildeos eacute o Deus que criou a racionalidade
Justino coloca que
no princiacutepio [Deus] criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma pedra Virtude e viacutecio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e iniquidade (I283-4)
Esse ser racional que Justino se refere eacute tambeacutem aquele cuja racionalidade pode ser ratificada
no reconhecimento e submissatildeo aos ensinos cristatildeos Haacute uma postura anti-estoica manifesta
em suas palavras que reduz o dogma do destino dessa corrente filosoacutefica a ldquoimpiedade e
iniquidaderdquo537
Ele sustenta que os cristatildeos aprenderam com os profetas que
os castigos e tormentos assim como as boas recompensas satildeo dadas a cada um conforme as suas obras Se natildeo fosse assim mas tudo acontecesse por destino natildeo haveria absolutamente livre-arbiacutetrio Com efeito se jaacute estaacute determinado que um seja bom e outro mau nem aquele merece elogio nem este vitupeacuterio Se o gecircnero humano natildeo tem poder de fugir por livre determinaccedilatildeo do que eacute vergonhoso e escolher o belo ele natildeo eacute irresponsaacutevel de nenhuma accedilatildeo que faccedila538 (I432-3)
Ele destaca que se por outro lado algueacutem
estivesse determinado [para] ser mau ou bom natildeo seria capaz de coisas contraacuterias nem mudaria com tanta frequumlecircncia Na realidade nem se poderia dizer que uns satildeo bons e outros maus desde o momento que afirmamos que o destino eacute a causa de bons e maus e que realiza coisas contraacuterias a si mesmo ou que se deveria tomar como verdade o que jaacute anteriormente insinuamos isto eacute que virtude e maldade satildeo puras palavras e que soacute por opiniatildeo se tem algo como bom ou mau Isso como demonstra a verdadeira razatildeo eacute o cuacutemulo da impiedade e da iniquidade (I436)
O ldquodestino iniludiacutevelrdquo reconhecido pelo apologista eacute que aqueles que escolheram o
bem tenham ldquodigna recompensardquo e os que escolheram o contraacuterio tenham igualmente ldquodigno
castigordquo (I437) Dentro do sistema de pensamento construiacutedo por Justino seria incoerente
com o sistema de controle social admitir que Deus tenha determinado as escolhas humanas
Nesse caso como ele escreve ldquonatildeo seria digno de recompensa e elogio pois natildeo teria
escolhido o bem por si mesmo mas nascido jaacute bom nem por ter sido mau seria castigado
537 avsebeia kai avdikia evsti I284 538 PLATAtildeO Repuacuteblica 617e
108
justamente pois natildeo o seria livremente mas por natildeo ter podido ser algo diferente do que foirdquo
(I438) Desse modo o apologista deixa clara sua oposiccedilatildeo ao estoicismo539
O pensamento de Justino sobre isso poderia ser resumido em ldquoDeus criou livres tanto
os anjos como o gecircnero humano e por isso receberam com justiccedila o castigo de seus pecados
no fogo eternordquo540 Tal alegaccedilatildeo estaria fundamentada na ideia de que tudo deve ser capaz de
viacutecio e de virtude pois ningueacutem seria digno de louvor se natildeo pudesse tambeacutem voltar-se para
um desses extremos541
Ele assume que esta doutrina foi ensinada pelo Espiacuterito profeacutetico que por meio de
Moiseacutes nos testemunha que falou ao primeiro homem que havia criado do seguinte modo
ldquoOlha que diante de tua face estaacute o bem e o mal escolhe o bemrdquo542 Ele cita tambeacutem Isaiacuteas543
e o proacuteprio Platatildeo544 ao dizer A culpa eacute de quem escolhe Deus natildeo tem culpa Justino
alega que Platatildeo falou isso por tecirc-lo tomado do profeta Moiseacutes desse modo ele diz que ldquopois
se sabe que este eacute mais antigo do que todos os escritores gregosrdquo (I441-8) Para explicar os
elementos semelhantes entre os escritos gregos e os judaico-cristatildeos o apologista alega que
tudo o que os filoacutesofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplaccedilatildeo das coisas celestes aproveitaram-se dos profetas natildeo soacute para poder entender mas tambeacutem para expressar isso Daiacute que parece haver em todos algo como germes de verdade Todavia demonstra-se que natildeo o entenderam exatamente pelo fato de que se contradizem uns aos outros (I449-10)
Deus conhece de antematildeo tudo o que seraacute feito por todos os homens e eacute decreto seu
recompensar cada um segundo o meacuterito de suas obras e por isso justamente prediz por meio
do Espiacuterito profeacutetico o que para cada um viraacute da parte dele conforme o que suas obras
mereccedilam545 Ele eacute aquele que constantemente conduz o gecircnero humano agrave reflexatildeo e agrave
lembranccedila demonstrando-lhe que cuida e usa de providecircncia para com os homens
Sobre a novidade da religiatildeo cristatilde Justino escreve ldquoAlguns sem motivo para rejeitar
o nosso ensinamento poderiam nos objetar que ao dizermos que Cristo nasceu somente haacute
cento e cinquumlenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio
Pilatos os homens que o precederam natildeo tecircm nenhuma responsabilidaderdquo (461) Ele entatildeo
responde
Noacutes recebemos o ensinamento de que Cristo eacute o primogecircnito de Deus e indicamos antes que ele eacute o Logos do qual todo o gecircnero humano participou Portanto aqueles
539 ldquohellipnoacutes dizemos que aconteceraacute a conflagraccedilatildeo universal mas natildeo como dizem os estoacuteicosrdquo II63 cf Alesandre de Aphrodisias On Fate 9 [17525] 540 II65 541 II66 542 Dt 301519 543 Is 116-20 544 Repuacuteblica X617e 545 I4411
109
que viveram conforme o Logos satildeo cristatildeos quando foram considerados ateus como sucedeu entre os gregos com Soacutecrates Heraacuteclito e outros semelhantes e entre os baacuterbaros com Abraatildeo Ananias Azarias e Misael e muitos outros cujos fatos e nomes omitimos agora pois seria longo enumerar De modo que tambeacutem os que antes viveram sem razatildeo [logos] se tornaram inuacuteteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razatildeo [logos] mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela satildeo cristatildeos e natildeo experimentam medo ou perturbaccedilatildeo O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma virgem pela virtude do Logos conforme o desiacutegnio de Deus Pai e soberano do universo e foi chamado Jesus e depois de crucificado e morto ressuscitou e subiu ao ceacuteu o leitor inteligente poderaacute perfeitamente compreendecirc-lo pelas longas explicaccedilotildees que foram dadas ateacute aqui (462-6)
O apologista usa de uma estrateacutegia semacircntica para literalmente ldquodar razatildeordquo agraves
doutrinas cristatildes
422 A razatildeo que julga
No mundo grego a palavra logoj jaacute assumira uma significacircncia para o pensamento
especulativo desde muito cedo Era um termo teacutecnico para as vaacuterias ldquociecircnciasrdquo que se
desenvolviam na Greacutecia do seacutec V aC A gramaacutetica a loacutegica a retoacuterica a psicologia a
metafiacutesica a teologia e a matemaacutetica deram-lhe sentidos diferentes ainda dentro do mesmo
campo da ciecircncia Seu campo semacircntico eacute vasto Pode significar razatildeo palavra discurso
menccedilatildeo declaraccedilatildeo afirmaccedilatildeo resposta promessa dito proveacuterbio ou maacutexima546 Alguns
destes significados podem parecer contraditoacuterios Ele eacute um termo comum que pode aparecer
em qualquer lugar Aparece nos textos de Homero Heroacutedoto Platatildeo Aristoacuteteles Tuciacutededes
Piacutendaro Aeschylus Xenoacutefanes Soacutefocles Aischines e outros547 mas eacute seu significado
filosoacutefico-religioso que importa A histoacuteria desse conceito eacute bastante complexa todavia eacute
suficiente abordar os principais aspectos do uso filosoacutefico-religioso do logoj
Justino sustenta que os gregos aprenderam muitos conceitos com as Escrituras
judaicas Segundo sua teoria Ptolomeu rei do Egito se preocupou em formar uma biblioteca
e nela reunir os escritos de todo o mundo tendo notiacutecia dessas profecias mandou uma
546 Significa ainda decisatildeo resoluccedilatildeo ordem proclamaccedilatildeo ensinamento doutrina parte de doutrina definiccedilatildeo hipoacutetese condiccedilatildeo pacto fama tradiccedilatildeo lenda reputaccedilatildeo boato opiniatildeo notiacutecia revelaccedilatildeo oraacuteculo resposta de oraacuteculo palavra revelada verbo assunto mateacuteria objeto questatildeo fato acontecimento coisa discurso frase prosa falar faculdade de falar e como logoj proforikoj discurso extriacutenseco palavra uso da palavra direito agrave palavra coloacutequio discussatildeo faacutebula narrativa imaginaacuteria lenda mito narrativa histoacuterica histoacuteria literatura conta caacutelculo soma explicaccedilatildeo avaliaccedilatildeo valor significado a razatildeo praacutetica (nouj especulativo) razatildeo divina personificada motivo causa fundamento justificaccedilatildeo plano projeto RUSCONI C (ed) DICIONAacuteRIO do grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 350 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001 547 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001
110
embaixada pedindo os livros dos judeus Ptolomeu providenciou que fossem traduzidos para o
grego Depois disso os livros permaneceram entre os egiacutepcios ateacute o presente e os judeus os
usam no mundo inteiro Assim os gregos teriam aprendido muitas coisas que teriam
ldquoenriquecidordquo seus mitos e pensamentos em geral548
Todavia foi Filon de Alexandria quem primeiro tomou as interrogaccedilotildees filosoacuteficas
estabelecendo correlaccedilotildees com os elementos da cultura religiosa judaica549 Era corrente no
judaiacutesmo a reflexatildeo sobre a ldquoPalavrardquo criadora e comunicadora da revelaccedilatildeo divina Mas foi o
contato com a cultura helecircnica e as proximidades semacircnticas ainda que muito limitadas entre
Escrituras judaicas e as palavras gregas que carregaram o teor filosoacutefico ou especulativo550
Conforme analisou Dax F P Nascimento551 eacute por intermeacutedio do Logos uma espeacutecie de
declaraccedilatildeo divina que se remete a si mesmo revelado que se obteacutem a educaccedilatildeo acerca da
verdade por meio da qual haacute o arrependimento ou conversatildeo dos prazeres e ciecircncias do
mundo sensiacutevel para a razatildeo e para a piedade
Entre os cristatildeos natildeo haacute evidecircncias de que a reflexatildeo sobre o logos tenha a princiacutepio
alguma conotaccedilatildeo filosoacutefica Teoacutelogos como R Bultmann552 G Kimmel553 O Culmann554
concordam que o logos mencionado no proacutelogo do Evangelho segundo Joatildeo eacute uma niacutetida
referecircncia agrave ldquoPalavrardquo comunicadora de Deus sobre a qual Fiacutelon refletiu Eacute possiacutevel que na
virada do I para o II seacuteculo a expansatildeo cristatilde comeccedilasse a exigir uma atenccedilatildeo maior tambeacutem
aos conceitos e questotildees pertinentes ao mundo greco-romano555
Com a conversatildeo de filoacutesofos como Atenaacutegoras Aristides e do proacuteprio Justino as
correlaccedilotildees entre essas correntes de pensamentos se manifestam principalmente na produccedilatildeo
apologeacutetica cristatilde556
Justino escreve que do logos que inspirou os profetas Platatildeo tomou o que disse sobre
Deus ter criado o mundo transformando uma mateacuteria informe557 Segundo Minns e Parvis558
548 I311-5 549 BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950 550 KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91 Cf COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp 1507-1562 551 O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia PUC Rio de Janeiro 2003 p 179 552 Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004 553 Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983 554 Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002 555 ARZANI A A teologia do logoj no Quarto Evangelho Orientador Dr Paulo Beniacutecio Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008 pp 52-60 556 Cf WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982 557 I591
111
suas comparaccedilotildees entre algumas passagens das Escrituras e dos textos de Platatildeo satildeo
interpretaccedilotildees difiacuteceis de serem compartilhadas pois apresentam uma hermenecircutica muito
particular e em alguns pontos chega a interpretar o platonismo segundo formas comuns ao
estoicismo Destacando os elementos semelhantes ao cristianismo e outras correntes de
pensamento Justino alega ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim
todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinasrdquo559 Mas esses pontos de contato satildeo
limitados Ele escreve que
natildeo satildeo totalmente semelhantes como tambeacutem as dos outros filoacutesofos os estoacuteicos por exemplo poetas e historiadores De fato cada um falou bem vendo o que tinha afinidade com ele pela parte que lhe coube do logos seminal divino Todavia eacute evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros natildeo alcanccedilaram uma ciecircncia infaliacutevel nem um conhecimento irrefutaacutevel Portanto tudo o que de bom foi dito por eles pertence a noacutes cristatildeos porque noacutes adoramos e amamos depois de Deus o logos que procede do mesmo Deus ingecircnito e inefaacutevel Ele por amor a noacutes se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curaacute-los Todos os escritores soacute puderam obscuramente ver a realidade graccedilas agrave semente do logos neles ingecircnita560
Enquanto algumas correlaccedilotildees entre o pensamento cristatildeo e a cultura greco-romana
satildeo fruto da accedilatildeo dos democircnios para causar confusatildeo uma porccedilatildeo do logos pode ser
identificada para aleacutem daqueles que deteacutem o logos pleno
Nesse sentido ele escreve
Sabemos que alguns que professaram a doutrina estoacuteica foram odiados e mortos Pelo menos na eacutetica eles se mostram moderados assim como os poetas em determinados pontos por causa da semente do Logos que se encontra ingecircnita em todo o gecircnero humano (II71)
Heraacuteclito que foi banido de Eacutefeso por causa de suas ideias e tambeacutem o filoacutesofo
Musonius que dentre outros que sofreram algum tipo de hostilidade nos tempos de Nero a
Vespasiano561 satildeo citados como exemplo Natildeo haacute nenhum motivo evidente para Justino
mencionar Heraacuteclito exceto pela sua teoria sobre o logos Quanto a Gaius Musonius Rufus
seu nome eacute lembrado pelo acento moral de sua filosofia de inspiraccedilatildeo estoica que o tornou
ridiacuteculo a muitos soldados562 Desse modo procura-se destacar que ldquoos democircnios sempre se
empenharam em tornar odiosos aqueles que de algum modo quiseram viver conforme o
Logos e fugir da maldade (II72)
O apologista ainda considera como uma investida dos democircnios a pena de morte
estabelecida contra aqueles que lessem os livros de Histaspes da Sibila e dos profetas a fim
558Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 236 559 I6010 560 II132-5 561 TACITO Histoacuterias III81 562 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 42
112
de impedir por meio do terror que os homens consigam lendo-os o conhecimento do bem e
retecirc-los como seus escravos563
Segundo o apologista muito mais odiado que aqueles que possuem o logos seminal
satildeo os que tecircm conhecimento e contemplaccedilatildeo do logos total Conforme suas proacuteprias
palavras ldquoO logos de Deus eacute seu Filho [] E tambeacutem se chama mensageiro e embaixador
porque ele anuncia o que se deve conhecer e eacute enviado para nos manifestar tudo o que o Pai
nos comunicardquo564 Sendo os cristatildeos os detentores do logos total e sendo o logos total aquele
que anuncia o que se deve conhecer para se proceder corretamente e receber a recompensa
futura tudo se resume agrave submissatildeo agraves ideias cristatildes565
A forma de controle empregada pelos romanos e que conduz os cristatildeos diante dos
tribunais satildeo pintadas como um sinal da ignoracircncia despreziacutevel daqueles que se submetem agrave
irracionalidade da obscuridade demoniacuteaca em exerciacutecio de uma falsa justiccedila
O julgamento segundo a ldquorazatildeordquo eacute o julgamento final estabelecido pelo Deus cristatildeo e
sobre o qual o apologista pretende convencer a todos ao seu redor566 Os democircnios no
entanto natildeo conseguem convencer de que natildeo haveraacute a conflagraccedilatildeo para castigar os iacutempios
do mesmo modo que natildeo conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu A uacutenica coisa
que conseguem eacute fazer com que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em
meio aos maus costumes entregues agraves suas paixotildees e seguindo a opiniatildeo vatilde procurem tirar a
vida dos cristatildeos e os odeiem Os cristatildeos por outro lado satildeo apresentados como aqueles que
por pura compaixatildeo por eles procuram persuadi-los a se converterem
Os maus haacutebitos dos deuses satildeo reprovados por essa medida cristatilde pois serviriam para
a corrupccedilatildeo dos que eram educados tendo em vista que muitos consideravam ldquobelordquo serem
imitadores dos deuses567 O apologista natildeo pode admitir que uma mente sensata aceite as
accedilotildees de Zeus e de Ganimedes como ldquodivinasrdquo (I215) Por isso ele relaciona a disseminaccedilatildeo
desses mitos agraves artimanhas dos democircnios que induzem os homens agrave imoralidade Em
oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo dos democircnios Justino sustenta que aos cristatildeos foi ensinado que soacute poderiam
alcanccedilar a imortalidade aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus assim como
tambeacutem se sustenta que seratildeo castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e
563 Cf Tacitus Annales II32 XII52 Historias I22 II62 Cassius Dio Hist Rom 57157-8 564 I634-5 565 Cf PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988 566 Cf KERESZTES P Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986 567 E um pensamento que estava relacionado aos epicureus pelo menos Philodemus Sobre a Piedade 71
113
natildeo se converteram (I216) Para os outros estaacute guardado o dia do juiacutezo descrito com grande
tormento em que se encontraratildeo os injustos568
A moralidade cristatilde eacute destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e
comentaacuterios ldquodisseminados entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso
seu discurso sobressalta o valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de
temperanccedila569 que crescia em nuacutemeros naquela eacutepoca Tambeacutem recebem destaques a doutrina
cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos necessitados e a ausecircncia de
valor da ostentaccedilatildeo570 Com o mesmo tom piedoso seguem as afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia
a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico571 Desse modo Justino contribui tambeacutem
para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos propondo uma identidade
coletiva
Um conceito estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que chama de equiacutevocos e mal
entendidos ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja satildeo combatidos Essa sua atitude revela que o
processo de construccedilatildeo da identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada
principalmente pela necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os
variados grupos cristatildeos572 Os outros grupos cristatildeos como o dos seguidores de Marciatildeo satildeo
tidos como instrumentos nas matildeos dos democircnios (I581) Seus discursos satildeo ldquoirracionaisrdquo e
satildeo presas de doutrinas ateiacutestas do democircnio573
Tendo em vista que as pessoas satildeo capazes de agir bem ou mal devido agrave liberdade
concedida por Deus considera-se que em todas as partes haacute tambeacutem os que ldquolegislaram e
filosofaram conforme a reta razatildeordquo ou aparte dela ao mandarem que se faccedilam algumas coisas
e se evitem outras574 A ldquoreta razatildeordquo agrave qual Justino se refere eacute aquela que deriva do Logos
cristatildeo que permeia a criaccedilatildeo revela a mensagem de Deus aos homens desde outros tempos
pelas Escrituras e no seacutec I pelo proacuteprio Cristo e que assim estabelece o padratildeo de conduta
aos que desejam a ldquorecompensa eternardquo Desse modo eacute identificado um padratildeo de justiccedila
baseado nas crenccedilas e valores cultivados pelos cristatildeos que estatildeo proacuteximos a Justino e que L
W Barnard575 chega a chamar de uma ldquoproto-ortodoxiardquo Natildeo eacute possiacutevel resumir ou descrever
568 Is 6624 569 I151-7 570 I141-919 571 I161-6 572 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 573 Avlla Avlogwj w`j upoacute Lukou arnej sunhrpasmenoi( bora Twn avqewn dogmatwn kai daiacutemonwn ginontai I582 574 II68 575 Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 1967
114
o conteuacutedo dessas crenccedilas e valores a partir da anaacutelise das Apologias sabe-se poreacutem que o
apologista se refere agrave forma de pensar dos cristatildeos que lhe satildeo proacuteximos e se distanciam do
modo de pensar por exemplo do grupo de Marciatildeo Helena e Menandro
Justino contempla tambeacutem as criacuteticas daqueles que segundo o seu parecer ldquose
consideram filoacutesofosrdquo e que alegariam que as ideias cristatildes sobre um julgamento universal
futuro ldquosatildeo apenas ruiacutedos espalhafatosos e alarmismosrdquo e diriam que a ameaccedila do castigo no
fogo eterno natildeo passa de um instrumento despreziacutevel para que a ldquohumanidade viva retamente
por medo e natildeo porque a virtude eacute bela e gratificanterdquo (II91) Haacute indiacutecios de que Chrysippus
de Solis dizia que Platatildeo errava em fazer do temor aos deuses um instrumento para a detenccedilatildeo
da injusticcedila e que o argumento do castigo divino natildeo eacute diferente das histoacuterias que as matildees
contam para assustar as criancinhas576 E ainda segundo Diogenes Laertius Crisipo
sustentava que a ldquovirtude [] eacute uma disposiccedilatildeo harmoniosa escolha digna para seu proacuteprio
bem e natildeo de esperanccedila medo ou qualquer outro motivo externordquo577 Em sua soluccedilatildeo Justino
toma emprestado o argumento de Alexandre de Afrodiacutesias578 que defendeu a responsabilidade
moral humana e diz ldquose isto natildeo eacute como dizemos entatildeo natildeo existe Deus ou se existe natildeo se
importa em nada com os homensrdquo579 Virtude e o viacutecio nada seriam e em consequecircncia nem
os legisladores castigariam com justiccedila os que transgridem as boas ordenaccedilotildees Segundo
Minns e Parvis580 a hipoacutetese de Deus natildeo se importar com os seres humanos parece refletir a
visatildeo estoica que estabelecia a teoria do bem e do mal ou virtude e infelicidade considerando
a proximidade com o universo natural e a administraccedilatildeo do mundo Assim quando
Chrysippus581 mantinha que a natureza universal e a administraccedilatildeo do mundo era o
fundamento da teoria estoica sobre o bem e o mal ele estava apelando agrave racional e
providencial atividade de deus cuja conformidade com o qual constitui o bem para o homem
e cuja carecircncia de conformidade constitui o mal
Todavia Justino pontua que os legisladores ldquonatildeo satildeo injustos e o Pai deles ensina
atraveacutes do Logos a fazer o que ele mesmo fazrdquo e neste sentido ldquonatildeo satildeo injustos os que
576 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1040b 577 Diogenes Laertius Vida dos filoacutesofos eminentes VII89 578 ldquopois se natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo e virtude e viacutecio eles argumentam tambeacutem natildeo haacuteacutelouvor ou reprovaccedilatildeo e sem estes natildeo haacute accedilotildees certas ou erradas e se natildeo haacute essas tambeacutem natildeo haacute virtude ou viacutecio e se natildeo haacute essas eles dizem natildeo haacute seque deuses Mas antes assim designadamente que natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo chega a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas vem a estar em concordacircncia com o destino como tem sido mostrado Desse modo a uacuteltima posiccedilatildeo segue tambeacutem mas isto eacute absurdo e impossiacutevel (Alexandre de Afrodisias De fato36) 579 II91 580 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 305 nota 1 581 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1035c-d
115
aderem a essas virtudesrdquo582 Assim o apologista constroacutei outro padratildeo ldquoracionalrdquo atraveacutes do
qual os juiacutezes deveriam julgar para natildeo serem julgados por Deus O novo fundamento da
justiccedila no cumprimento dos seus anseios apologeacuteticos se resume a deixar os cristatildeos em paz
pois segundo seu ponto de vista natildeo havia nenhuma evidecircncia de que os fieacuteis fossem inimigos
do Impeacuterio Ele busca convencer o Imperador e seus filhos a impedir que os governantes e
magistrados locais empreendam accedilotildees anticristatildes apontando as razotildees e a racionalidade cristatilde
43 O governo o controle e os governantes
Justino ndash nessas suas peticcedilotildees apologeticamente fundamentadas que tinham como
destinataacuterios especiais Antonino Pio e seus filhos583 reconhecidamente apreciadores da
filosofia ndash alega que natildeo havia nenhuma ldquorazatildeordquo [logos] para se perseguirem os cristatildeos pois
seria a proacutepria ldquorazatildeordquo [o Logos] quem exige que ldquoos amantes da piedade e da filosofiardquo584
natildeo faccedilam algo irracionalmente
No capiacutetulo anterior foi destacada a criacutetica de Justino sobre os governantes agora
poreacutem eacute oportuno notar o perfil do governante traccedilado pelo apologista dentro do seu
argumento da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem Segundo sua teoria os homens
revestidos de autoridade para governar natildeo devem valorizar nada aleacutem da ldquoverdaderdquo Aleacutem
disso a partir de sua inspiraccedilatildeo platocircnica nota-se sua exigecircncia agravequeles que satildeo ldquopiedosos e
filoacutesofosrdquo assim como satildeo chamados o Imperador e seus filhos que deveriam julgar com
retidatildeo para que todos gozem de bem estar Governar com retidatildeo eacute para Justino governar
segundo a ldquoreta razatildeordquo Esse conceito eacute cristianizado mas aleacutem disso um governante ideal
ldquosuperiorrdquo eacute reverenciado ldquoo logosrdquo A quem ele chama de ldquoo rei mais alto o governante
mais justo que conhecemos depois de Deus que o gerourdquo (I Apol 127) Manifesta-se um
jogo semioacutetico com a palavra logos ou razatildeo
582 II92 583 A I Apologia foi dirigida ao Imperador Antonino Pio e a seus filhos Veriacutessimo (Marco Aureacutelio) e Lucio Vero A II Apologia pode ser continuaccedilatildeo da primeira como sustentou C Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006) fragmentos de anotaccedilotildees de um segundo escrito que natildeo pode ser entregue quando Justino foi preso durante o iniacutecio do governo de Marco Aureacutelio por volta de 160 dC como sustentam Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 passim) A teoria mais tradicional eacute admitir que a II Apologia foi dirigida ao imperador Marco Aureacutelio mas como seraacute visto mais adiante haacute indiacutecios de que Justino tinha por destinataacuterios secundaacuterios todos os que pudessem ler o texto e se informar acerca da inocecircncia dos cristatildeos A soluccedilatildeo para a questatildeo dos destinataacuterios das Apologias exige uma investigaccedilatildeo agrave parte mas natildeo haacute duacutevidas de que Justino pretendia que se texto fosse conhecido por Antonino e seus filhos Marco e Lucio que desde cedo atuaram ao lado 584 I125
116
Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e recusem as
coisas maacutes e assim controlar os excessos humanos (I Apol 128) Do mesmo modo eacute o logos
quem deve orientar os governantes para que o bem ou a ldquosalvaccedilatildeordquo opere sobre o ldquogecircnero
humanordquo Por isso ele escreve ldquose os filoacutesofos e legisladores disseram e encontraram algo de
bom foi elaborado por eles pela investigaccedilatildeo e intuiccedilatildeo conforme a parte do logos que lhes
couberdquo585 Poreacutem por natildeo conheceram a integralidade do Logos que eacute Cristo ldquoeles
frequentemente se contradisseram uns aos outrosrdquo586 Aqueles que antes de Cristo tentaram
investigar e demonstrar as coisas pela razatildeo conforme as forccedilas humanas foram levados aos
tribunais como iacutempios e amigos de novidades Soacutecrates aparece como um exemplo que
ratifica a fala de Justino Segundo o apologista ele foi acusado ldquodos mesmos crimes que [os
cristatildeos]rdquo587 A condenaccedilatildeo seria em razatildeo da oposiccedilatildeo daquele filoacutesofo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica e
a outros poetas ensinando os homens a rejeitar ldquoos maus democircniosrdquo envolvidos com a
idolatria e ao mesmo tempo os exortando ao conhecimento de Deus para eles desconhecido
por meio de investigaccedilatildeo racional dizendo Natildeo eacute faacutecil encontrar o Pai e artiacutefice do universo
nem quando o tivermos encontrado eacute seguro dizecirc-lo a todos588 Todavia se ningueacutem deu
ouvidos a Soacutecrates ateacute que ele deu a sua vida por essa doutrina em Cristo acreditaram natildeo soacute
filoacutesofos e homens dos quais o proacuteprio Justino eacute um mas tambeacutem artesatildeos e pessoas
totalmente ignorantes que souberam desprezar a opiniatildeo o medo e a morte Justino pretende
assim apresentar o poder de abrangecircncia da mensagem cristatilde que deriva do Logos que em
parte foi conhecido por Soacutecrates pois como o apologista escreve ldquoele era e eacute o Logos que
estaacute em tudo e foi quem predisse o futuro atraveacutes dos profetas e feito de nossa natureza por
si mesmo nos ensinou essas coisasrdquo589
A partir desse tipo de comparaccedilatildeo retrata-se o caso que ocorreu sob Urbico na cidade
de Roma Eacute provaacutevel que outros casos como esse acontecessem em regiotildees diferentes590
Segundo Justino ldquoo fato eacute que em todas as partes haacute gente disposta a [] levar [os cristatildeos] agrave
morterdquo591 A reprovaccedilatildeo cristatilde das atitudes condenaacuteveis ou repreensiacuteveis de outras pessoas era
um dos motivos para que os cristatildeos fossem denunciados aos governantes ldquoendemoniadosrdquo592
Ele escreve especialmente sobre certa mulher cristatilde na eacutepoca do prefeito Urbico que
procurou persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e lhe 585 II102 586 II102 587 II105 588 II105-6 Citaccedilatildeo de Platatildeo Timeu 28c 589 II108 590 II11 591 II12 592 II13
117
anunciando o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme
a ldquoreta razatildeordquo Naquela ocasiatildeo a uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se
era cristatildeo Apoacutes confessar recebeu condenaccedilatildeo ao supliacutecio O mesmo aconteceu com Luacutecio
que tambeacutem advertiu a Urbico593 de que ele natildeo estava ldquojulgando de modo conveniente ao
imperador Pio nem ao Ceacutesar filoacutesofo nem ao filho de Ceacutesar amigo do saber nem ao sacro
Senadordquo (II216)
Justino procura persuadir o imperador seus filhos e demais autoridades a barrarem as
condenaccedilotildees dos cristatildeos num momento quando natildeo haacute indiacutecios do estabelecimento de uma
lei concreta sobre a puniccedilatildeo dos cristatildeos Em vaacuterias regiotildees e em situaccedilotildees variaacuteveis os atritos
ocasionados pela presenccedila e expansatildeo cristatilde ocasionavam denuacutencias tidas pelos proacuteprios
cristatildeos como ldquocaluniosasrdquo a respeito da nova religiatildeo As accedilotildees anticristatildes se refletiam
muitas vezes na busca por sua condenaccedilatildeo em discussotildees em praccedilas ou em denuacutencias
dirigidas aos magistrados Em meados do seacuteculo II as delaccedilotildees sobre os cristatildeos variavam
pois seus opositores procuravam brechas juriacutedicas para enquadraacute-los A superstitio cristatilde
poderia proporcionar o oacutedio de muitos que resistiam agraves suas implicaccedilotildees morais sociais ou
simplesmente religiosas Por isso as denuacutencias ou posicionamentos se contradiziam em
lugares e ocasiotildees diferentes Taacutecito identificou algumas flagitia nas praacuteticas religiosas cristatildes
ou nos comentaacuterios sobre elas mas essa natildeo foi a opiniatildeo de Pliacutenio Segundo que julgou os
cristatildeos dignos de condenaccedilatildeo somente pela contumaacutecia que apresentaram diante de um
magistrado Para outros deveriam ser rejeitados pelo seu ateiacutesmo Comer o corpo e o sangue
de Cristo tambeacutem poderia provocar suspeitas de canibalismo594
O apologista contrasta a imagem do ldquopiordquo e ldquosaacutebiordquo governante representada na figura
de Antonino e seus filhos agravequela do falso filoacutesofo ou seja aquele que estaacute contra a ldquorazatildeordquo A
sua morte em defesa da ldquorazatildeordquo cristatilde aparece como uma possiacutevel analogia a Soacutecrates
devido aos seus embates com Crescente em Roma O falso ldquofiloacutesofordquo eacute aquele que natildeo sabe
uma palavra sobre os cristatildeos mas os calunia publicamente como esses fossem ldquoateus e
iacutempiosrdquo595 Ele adapta a esse novo contexto Xenofonte596 que conta que em uma encruzilhada
vieram ao encontro de Heacuteracles597 a virtude e o viacutecio na forma de mulheres
O viacutecio estava vestido com roupas finas tinha rosto atraente e adornado com enfeites e disse a Heacuteracles que se ele a seguisse ela o faria viver sempre no prazer
593 II215 594 Cf MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 winter1994 pp 413-442 595 wj avlogoj kai avsebwn Cristianwn ontwn( (II82) 596 Memorabilia II121-34 597 Heraacutecles tambeacutem foi invocada por estoicos como exemplo de luta moral (Churniss em Plutarco De Communibbus Notitiis adversus stoicos 1065c em Moralia)
118
e enfeitado com o mais belo ornamento semelhante ao que ela usava Ao contraacuterio a virtude com rosto e veste severos lhe disse Se seguires a mim natildeo te enfeitarei com beleza ou adorno passageiro e corruptiacutevel mas com enfeites eternos e belos598
Semelhantemente Justino considera
estamos persuadidos de que alcanccedilam a felicidade todos aqueles que fazem dos bens aparentes e seguem o que parece duro e contra a razatildeo Porque a maldade veste as suas accedilotildees com as qualidades da virtude e do que eacute de fato bem remedando o incorruptiacutevel pois ela de si natildeo tem nada de incorruptiacutevel e nem eacute capaz de produzi-lo e torna escravos seus os homens que se arrastam pelo chatildeo atribuindo agrave virtude os males proacuteprios da maldade Contudo os que compreendem os bens verdadeiros proacuteprios da virtude tambeacutem se tornam incorruptiacuteveis pela virtude599
Desse modo Justino procura constranger o imperador a partir do seu argumento
apologeacutetico e do jogo semioacutetico em torno da ldquorazatildeordquo e da filosofia a ser favoraacutevel aos
cristatildeos pois natildeo seria de nenhum modo virtuoso combater ou permitir que sejam combatidos
aqueles que segundo seu ponto de vista tecircm muito a contribuir para a paz no Impeacuterio
A contribuiccedilatildeo da religiatildeo cristatilde eacute apresentada dentro do seu plano apologeacutetico que
busca convencer natildeo apenas dos efeitos positivos do caraacuteter de suas crenccedilas para a
manutenccedilatildeo da ordem mas tambeacutem na apresentaccedilatildeo de alguns pontos fundamentais do seu
conteuacutedo que rebatam as ldquocaluacuteniasrdquo dos acusadores e apresentem o seu aspecto ldquoracionalrdquo Ao
explicar alguns fundamentos da crenccedila cristatilde como o combate agrave idolatria eacute possiacutevel notar que
o apologista eacute sensiacutevel em sua anaacutelise agrave diversidade de ideias e crenccedilas que interagem e se
contradizem no Impeacuterio Essa contradiccedilatildeo aparece tambeacutem entre os intelectuais e as crenccedilas
do povo comum Segundo Paul Veyne600 ldquotodo erudito hesitava entre o ceticismo da alta
sociedade e o esoterismo cultivadordquo Isso leva Justino a formular um argumento que busque
apresentar os aspectos racionais das crenccedilas cristatildes ainda que isso se reduza a um jogo
semioacutetico e linguiacutestico em torno do logos De qualquer forma a religiatildeo cristatilde aparece como
uma opccedilatildeo de superaccedilatildeo tanto da religiatildeo pagatilde questionada pelos intelectuais em muitos
aspectos quanto como uma filosofia sublime ou superior601 que tem maior alcance e eficaacutecia
no controle das accedilotildees humanas602 Assim ele escreve ldquoem Cristo acreditaram natildeo soacute filoacutesofos
e homens cultos mas tambeacutem artesatildeos e pessoas totalmente ignorantes que souberam
598 II114-5 599 II116-8 600 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 280 601 ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Logos inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (II101) E tambeacutem ldquoas nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo (II152) 602 ldquoEntre noacutes tudo isso se pode ouvir e aprender ateacute daqueles que ignoram as formas das letras pessoas ignorantes e baacuterbaras de liacutengua mas saacutebias e fieacuteis de inteligecircncia e ateacute pessoas mutiladas e privadas de visatildeo De onde se pode entender que isso natildeo acontece pela sabedoria humana mas se diz que eacute pela forccedila de Deusrdquo (I6011)
119
desprezar a opiniatildeo o medo e a morte porque ele eacute a virtude do Pai inefaacutevel e natildeo um vaso
de humana razatildeordquo603
Apoacutes explicar os pontos fundamentais do pensamento cristatildeo Justino diz que ldquodaqui
por diante noacutes natildeo nos sentiremos irresponsaacuteveis mesmo que continueis increacutedulos pois o
que dependia de noacutes jaacute foi feito e chegou ao fimrdquo (558) Seguindo sua articulaccedilatildeo para
ratificar a fidelidade dos cristatildeos a Deus e ao Impeacuterio nota-se que o apologista faz uso do
proacuteprio efeito da doutrina cristatilde que sugere como instrumento de controle para persuadir o
imperador tambeacutem pelo possiacutevel temor Assim com um tom de advertecircncia ele escreve
[] se natildeo atendeis agraves nossas suacuteplicas nem esta exposiccedilatildeo puacuteblica que vos fazemos de todo o nosso modo de viver em nada ficaremos prejudicados pois cremos ou melhor estamos persuadidos de que cada um pagaraacute a pena conforme mereccedilam as suas obras pelo fogo eterno e que teraacute que prestar contas a Deus segundo as faculdades que recebeu do proacuteprio Deus conforme nos indicou Cristo dizendo A quem Deus deu mais mais seraacute exigido por Deusrdquo604 (I173-4)
Em outras palavras esse eacute um tipo de alerta ao imperador sobre a sua responsabilidade
diante de Deus devido a sua posiccedilatildeo de autoridade E como se deveria esperar de um
governante ldquopiordquo e ldquoamante da sabedoriardquo tal como foi idealizado no perfil construiacutedo por
Justino segundo sua leitura logocecircntrica Ou seja tendo a ideia do logos cristatildeo como
referecircncia o apologista escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da
verdade respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees
desprezai-as Natildeo decreteis poreacutem pena de morte como contra a inimigos contra aqueles
que nenhum crime cometemrdquo605 Sua peticcedilatildeo eacute seguida de outro alerta ldquoescatoloacutegicordquo ldquovos
avisamos de antematildeo que se vos obstinais em vossa iniquidade natildeo escapareis do futuro
julgamento de Deusrdquo606 Em outro ponto nesse mesmo sentido lecirc-se ldquose tambeacutem voacutes ledes
como inimigos estas nossas palavras aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis
fazer A noacutes isso nenhum dano causaraacute a voacutes poreacutem e a todos os que injustamente nos
odeiam e natildeo se convertem trar-vos-aacute castigo de fogo eternordquo (I456)
Aliada agrave ciecircncia dos benefiacutecios da religiatildeo cristatilde o apologista deixa claro o seu desejo
de que ldquotodos os homens de todo o mundordquo conheccedilam ldquoa verdaderdquo o que incluiacutea o imperador
e seus filhos Desses uacuteltimos deseja-se tambeacutem que julguem ldquocom justiccedila de acordo com [a]
piedade e filosofiardquo e que se possiacutevel publiquem esse escrito para o conhecimento de todos607
Natildeo eacute possiacutevel saber se as Apologias chegaram ateacute o imperador e eacute pouco provaacutevel
que ela tenha circulado amplamente conforme desejava Justino No entanto segundo Sara 603 II108 604 Fazendo menccedilatildeo a Lc 1248 605 I681 606 I681 607 II152
120
Parvis608 seu modo de escrever em defesa dos cristatildeos teria influenciado outros apologistas
As aproximaccedilotildees praticadas por esse pensador em sua manobra teoloacutegica buscam a conversatildeo
inclusive do imperador Em oposiccedilatildeo agrave forma controle que emerge dos clamores reativos
populares que estariam impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do nomen
Christianum o apologista acaba por formular uma reflexatildeo teoloacutegica da histoacuteria que
contempla a relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo Se por um lado estaacute a criacutetica agrave forma de
manutenccedilatildeo da ordem imposta pelos romanos que dava margem para que denuacutencias
decorrentes de atritos locais que conduziam os cristatildeos agrave morte por outro emerge a sua teoria
sobre a cooperaccedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo da sociedade devido ao caraacuteter de suas crenccedilas
Trata-se de um confronto de ideias cujos efeitos deveriam ser aguardados O modelo de
controle cristatildeo pode-se dizer eacute aquele que vem do alto ou de dentro Eacute fruto da assimilaccedilatildeo
da doutrina cristatilde que tem um Deus que zela pela justiccedila e pela moral e que exige uma
conduta impecaacutevel de todos os seus fieacuteis Os que creem e os que natildeo creem estatildeo sob a
condiccedilatildeo do seu juiacutezo O Deus cuja feacute os cristatildeos professam e procuram comunicar aos
demais natildeo tem nacionalidade Ele eacute o criador dos homens e da razatildeo [logos] Todo ser
humano recebeu uma semente dessa razatildeo mas os democircnios maleacutevolos satildeo os responsaacuteveis
por obscurecer o julgamento correto que conduz todo o genus humanus a uma vida reta justa
e virtuosa para a sua recompensa eterna Essa racionalidade humana eacute a responsaacutevel por fazer
com que os homens reconheccedilam e atentem para a mensagem pelo logos que revela Deus pelas
Escrituras ignoradas pelos judeus e examinas pelos cristatildeos Esse temor diante de Deus
entatildeo natildeo deveria ser rechaccedilado como uma superstitio despreziacutevel mas deveria ser acatada
como um mecanismo capaz de traduzir razoavelmente uma doutrina que agregue pontos de
aproximaccedilatildeo aos assuntos filosoacuteficos e a uma mensagem significativa para as pessoas sem
instruccedilatildeo Deve ser reconhecida natildeo como uma mensagem de odio humanus genus mas de
salvatio humanus genus609 sob o domiacutenio do Logos que se traduz na submissatildeo e conversatildeo
ao cristianismo
608 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 609 Isto eacute ldquosalvaccedilatildeo da humanidaderdquo
121
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A situaccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II era instaacutevel e
revelava condenaccedilotildees esporaacutedicas Gritarias e tumultos puacuteblicos agraves vezes pressionavam os
magistrados para que condenassem os cristatildeos sem que houvesse uma ideia clara sobre como
enquadraacute-los em uma lei comum Um pouco antes Adriano havia sido consultado por
governantes610 como Graniano sobre esses problemas Naquela eacutepoca o imperador
recomendou a Minuacutecio Fundano que examinasse de modo particular as denuacutencias formais e
que natildeo desse espaccedilo para a pressatildeo dos tumultos puacuteblicos
Ainda um pouco antes a forma como deviam ser conduzidos os processos contra os
cristatildeos despertava algumas duacutevidas em Pliacutenio Segundo no Ponto-Bitiacutenia A crenccedila cristatilde era
vista como uma superstitio cujo temor os faziam repudiar os deuses comuns o culto ao
Imperador e todos os aspectos da vida puacuteblica que apresentasse algum viacutenculo com outras
crenccedilas e com a ldquoimoralidaderdquo Esse afastamento das interaccedilotildees sociais e o desprezo pelos
deuses tradicionais causou a aversatildeo de muitos das camadas populares e a desconfianccedila das
autoridades A estranheza dessa superstitio favoreceu a disseminaccedilatildeo de caluacutenias como a de
que a celebraccedilatildeo da ceia fosse algum tipo de ritual antropofaacutegico e que as reuniotildees cristatildes
privadas constituiacuteam-se em orgias Desse modo o nonem christianum assumiu uma forte
conotaccedilatildeo negativa pelas regiotildees do Impeacuterio A condenaccedilatildeo dos membros dessa nova religiatildeo
tinha precedentes desde a culpa pelo incecircndio de Roma nos tempos de Nero embora nenhuma
evidecircncia concreta a uma lei que condenasse o crime de ldquocristianismordquo seja encontrada na
primeira metade do II seacuteculo Trajano ratificou o procedimento de Pliacutenio em condenar os
cristatildeos por confessarem-se ldquocristatildeosrdquo todavia essas condenaccedilotildees tinham caraacuteter
admoestativo para desestimular o crescimento do grupo As buscas ou perseguiccedilotildees de fato
natildeo deviam entrar em curso Visava-se minar o corpo estranho representado pelo grupo
antissocial dos cristatildeos da sociedade e garantir a sua reintegraccedilatildeo mediante o perdatildeo aos que
abandonassem a feacute Se para alguns como Taacutecito a superstitio incidia sobre flagitia para
outros como Pliacutenio nenhum flagitium era detectado provavelmente eram produto das
caluacutenias e rumores das massas
A religiatildeo e os deuses tinham diferentes conotaccedilotildees entre a classe letrada entre os
poetas e para o povo sem instruccedilatildeo Desde os tempos de Platatildeo e Soacutecrates a filosofia
610 Deve-se considerar que a ldquoCarta de Antonino ao conciacutelio da Aacutesiardquo citada por Euseacutebio na Histoacuteria Eclesiaacutestica IV131-8 estava correta
122
sustentou criacuteticas agrave religiatildeo tradicional No II seacuteculo dC a influecircncia do cultivo do saber e do
exerciacutecio filosoacutefico podia ser percebida nas correntes de pensamento tais como o estoicismo e
o neoplatonismo que aproximavam a religiatildeo da moral Justino recebeu educaccedilatildeo grega e
provavelmente era filho de um funcionaacuterio romano Priscus cuja famiacutelia pode ter atuado na
colonizaccedilatildeo de Flavia Neaacutepolis na Palestina De laacute partiu para sua jornada pelos caminhos da
filosofia ateacute conhecer as doutrinas cristatildes Como ldquofiloacutesofordquo eacute possiacutevel que sustentasse criacuteticas
agrave forma de pensar das pessoas comuns considerada expressatildeo de ldquoexcessos supersticiososrdquo
Na condiccedilatildeo de cristatildeo passou a pensar a religiatildeo a partir da filosofia Desse modo a feacute cristatilde
passou a representar em seu pensamento a ldquofilosofia verdadeirardquo e ldquodivinardquo Diante dos atritos
sofridos pelos cristatildeos em seu tempo recorreu ao poder da argumentaccedilatildeo e da conveniecircncia
da escrita para defender os cristatildeos da ldquoinjusticcedilardquo sofrida Em uma peticcedilatildeo apologeticamente
fundamenta escreveu a Antonino Pio e a seus filhos clamando para que os cristatildeos natildeo
fossem condenados apenas pela confissatildeo de ldquocristianismordquo Para alcanccedilar o favor do
imperador Justino procura desfazer a conotaccedilatildeo negativa em torno desse nomen christianum
por meio da explicaccedilatildeo dos principais toacutepicos das doutrinas cristatildes e da afirmaccedilatildeo da
submissatildeo dos cristatildeos
A partir da reflexatildeo sobre suas ideias compreende-se o paradoxo entre tipo de controle
social desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia a esses (ou seja
os cristatildeos) que satildeo tidos como ameaccedila agrave ordem e por outro lado o tipo de controle social
apontado nas Apologias que daacute razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos Justino tece uma criacutetica jaacute
conhecida sobre a imoralidade dos deuses pagatildeos Ele natildeo se sente nem um pouco intimidado
em sustentar que os deuses nada satildeo aleacutem de uma ilusatildeo criada pelos ldquomaus democircniosrdquo para o
desvirtuamento dos homens Os ldquomaus democircniosrdquo satildeo os responsaacuteveis pelo obscurecimento
de toda a ldquoverdaderdquo A ldquoverdaderdquo eacute o conhecimento superior que conduz a humanidade agrave
moralidade e eacute reconhecida pelo exerciacutecio da ldquorazatildeordquo A ldquorazatildeordquo eacute algo divino compartilhado
a todos os homens e encarnada na pessoa de Jesus Cristo o mestre dos cristatildeos Sua
encarnaccedilatildeo eacute o cumprimento das profecias das Escrituras sustentadas pelos judeus que por
natildeo a compreenderem corretamente natildeo satildeo capazes de reconhecer o cumprimento da
expectativa messiacircnica611 Por reconhecer mediante uma hermenecircutica que busca identificar
o maacuteximo de evidecircncias possiacuteveis sobre o cumprimento das Escrituras em Cristo612 o
611 ldquoExpectativa messiacircnicardquo expressatildeo teoloacutegica utilizada para se referir a esperanccedila de que o messias libertador de Israel chegaria conforme os profetas israelitas haviam predito 612 Tambeacutem chamada de ldquohermenecircutica cristocecircntricardquo ou no que se refere agrave comunicaccedilatildeo da mensagem divina pelo Logos uma ldquohermenecircutica logocecircntricardquo
123
cumprimento das profecias julga prudente reconhecer as advertecircncias divinas pelas escrituras
sobre o julgamento futuro
Justino desenvolve uma leitura teoloacutegica da histoacuteria contrastando o julgamento a que
satildeo submetidos os cristatildeos e o julgamento final de Deus O primeiro considerado um
julgamento ldquoirracionalrdquo e momentacircneo movido pela cegueira produzida pelos maus
democircnios enquanto o segundo eacute idealizado como um julgamento divinamente justo e eterno
A accedilatildeo dos primeiros governantes estaacute relacionada a uma preocupaccedilatildeo com a manutenccedilatildeo da
ordem que os leva a acatar as denuacutencias caluacutenias e mobilizaccedilotildees contra os cristatildeos Eacute um tipo
de controle social que emerge de baixo pela repulsa do povo por aqueles que representavam
uma ameaccedila a pax deorum devido agrave condenaccedilatildeo ao culto dos deuses Justino acredita que em
meio agrave variedade de ideias e crenccedilas que constituem o quadro social do Impeacuterio os cristatildeos
natildeo deveriam ser reprimidos pelas autoridades por pensarem diferente Desse modo ele se
empenha em mostrar as correlaccedilotildees existentes entre as coisas sustentadas pelos cristatildeos e
outros pontos da cultura greco-romana Enquanto algumas correlaccedilotildees satildeo consideradas
estrateacutegias do democircnio para enganar os homens outras satildeo consideradas a manifestaccedilatildeo da
accedilatildeo do logos que comunica a verdade quer seja pelo conhecimento que os gregos tiveram
pelas Escrituras judaicas ou pelo logos spermatikos comum ao gecircnero humano Tudo o que
foi dito escrito ou julgado corretamente segundo a razatildeo eacute considerado consonante com o
posicionamento dos cristatildeos Pois eacute a ldquorazatildeordquo ou logos que deve conduzir as accedilotildees humanas
para a salvaccedilatildeo Desse modo aleacutem de procurar investir as doutrinas cristatildes de aspectos
racionais Justino tambeacutem busca deixar claro que os cristatildeos natildeo satildeo nenhuma ameaccedila ao
Impeacuterio Os fieacuteis satildeo apresentados como os melhores cooperados do Impeacuterio na manutenccedilatildeo
da paz devido ao caraacuteter das suas doutrinas Contrastando em alguns pontos com o tipo de
controle exercido sobre os soldados que juram fidelidade sem esperarem algo duradouro em
troca Justino fala do tipo de controle que vem ldquodo altordquo A crenccedila no controle absoluto do
Deus cristatildeo eacute apresentada como uma alternativa para solapar a incoerecircncia manifestada na
reverecircncia a deuses tatildeo desregrados e impiedosos quanto aos seres humanos que natildeo
poderiam servir de exemplo de conduta Natildeo haacute muitos detalhes acerca da moralidade cristatilde
mas ela parece estar relacionada agrave moderaccedilatildeo a restriccedilotildees sexuais ao respeito agrave verdade e aos
outros Segundo essa crenccedila cristatilde toda pessoa eacute livre para escolher como deseja viver mas
um dia estaraacute diante do juiacutezo do Deus absoluto do qual ningueacutem pode esconder nada
Tambeacutem eacute nesse sentido que satildeo identificados os cristatildeos Os cristatildeos satildeo definidos como
praticantes de um ideal de vida a seguir fortemente caracterizado pelo moralismo estrito
124
Desse modo Justino acredita que a disseminaccedilatildeo das doutrinas cristatildes poderia servir para
controlar os excessos humanos e as injusticcedilas
Esse tipo de ferramenta de controle foi empregado inclusive para constranger o
imperador a ouvi-lo Aleacutem de considerar irracional desprezar a doutrina dos cristatildeos o
apologista faz uso dessa ferramenta de controle para destacar que a uacutenica coisa que os
romanos poderiam fazer pelos cristatildeos em sua oposiccedilatildeo era lhes tirar a vida algo que
ironicamente o apologista considera insignificante visto que todos um dia morreratildeo Todavia
sustentando que a vida natildeo termina no tuacutemulo Justino alerta que a injusticcedilas como essas
Deus retribuiraacute um dia o castigo eterno enquanto para os que satildeo piedosos e justos estaacute
guardada uma ldquorecompensa eternardquo
Talvez as Apologias de Justino nunca tenham chegado ao seu destinataacuterio
especificado E se chegaram natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que tenham surtido um efeito
positivo Justino morreu anos mais tarde Todavia seu martiacuterio nos tempos de Marco Aureacutelio
tornou-se inspiraccedilatildeo para outros escritores como Atenaacutegoras ou Teoacutefilo de Antioquia Ao
revelar uma relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo a partir das accedilotildees anticristatildes seus escritos
se tornam peccedila fundamental para se compreender como as suspeitas e caluacutenias que incidiam
sobre os cristatildeos despertaram pessoas como esse mestre para pensar a relaccedilatildeo entre a nova
religiatildeo e a estrutura social e poliacutetica existente Se em siacutentese o que suas Apologias
pretendiam de fato era a retirada dos empecilhos para a conversatildeo dos pagatildeos elas satildeo
tambeacutem a primeira manifestaccedilatildeo da ideia de que para proporcionar a conversatildeo dos ldquooutrosrdquo e
o abandono dos rituais religiosos que permeavam a vida puacuteblica e os eventos sociais no
Impeacuterio era preciso pensar a religiatildeo cristatilde como uma alternativa que oferecesse algum tipo
de vantagem social e poliacutetica
Quando se busca por exemplo compreender as vantagens identificadas pelos romanos
na autorizaccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no IV seacuteculo manifesta-se a necessidade de se
investigar sobre as raiacutezes da aproximaccedilatildeo entre religiatildeo cristatilde e o Impeacuterio Eacute pelo exame das
Apologias de Justino Maacutertir que se percebe que em grande medida tal aproximaccedilatildeo eacute fruto
da reflexatildeo apologeacutetica que procurar livrar os cristatildeos da condenaccedilatildeo das autoridades romanas
e ao mesmo tempo em sintonia com a orientaccedilatildeo missionaacuteria na propagaccedilatildeo da mensagem
cristatilde busca livrar os romanos da condenaccedilatildeo eterna de Deus por meio da conversatildeo A
condenaccedilatildeo do culto aos deuses pagatildeos e da religiatildeo ciacutevica associada agrave contumaacutecia cristatilde em
natildeo contradizer suas crenccedilas em funccedilatildeo das determinaccedilotildees romanas exigiu uma reflexatildeo
sobre a sua contribuiccedilatildeo social para o Impeacuterio que os isentasse da culpa de traiccedilatildeo falta de
civismo ou algum tipo de conspiraccedilatildeo do ldquoreino de Deusrdquo Ateacute meados do seacuteculo II as
125
acusaccedilotildees variavam em cada regiatildeo e um paralelo que proporcione uma anaacutelise entre cada
uma delas tambeacutem parece ser um tema digno de uma investigaccedilatildeo especiacutefica e um desafio que
ainda precisa ser encarado
126
REFEREcircNCIAS
Fontes principais
MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005
MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006
JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995
Referecircncas gerais
AGOSTINHO de Hipona A cidade de Deus Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2000
ALCINOOS Enseignement des doctrines de Platon Les Belles Lettres Paris 1990
APHRODISIAS Alexandre drsquo De fato ad Imperatores Ed Guilaume de Moerbek e Pierre Thillet Paris J Vrin 1963
APULEIO Lrsquoautodifesa (apologia di segrave e della magia) Ed Bruno Cassianelli Caserta Edizioni UTEM 1948
AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] vol29 n2 pp 341-356 2010 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019
ANDRESEN C Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft Berlin-New York v44 pp157-195 1952-1953
ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Walter de Gruyter und co Berliacuten 1955
ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris Librairie Alphonse Picard et Fils 1909
127
ARISTIDES Aelius Orationes In Aristides ex recensione Guilielmi Dindorfii Leipzig Weidmann 1829
ARZANI A A teologia do loacutegoj no Quarto Evangelho Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Escola Superior de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008
ATHENAGORAS A Plea for the Chrstians In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995
AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875
AYRES Lewis LOUTH Andrew YOUNG Francecircs M (org) The Cambridge history of early Christian life New York Cambridge 2007
BAGATTI B S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319
BARCELOgrave P Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002
BARNARD L W Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology v 22 n 2 pp 152-164 jun1969
________ Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967
BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 pp 30-50 1968
BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 pp 538-555 2009
BAUMGARTNER M Social control from below In D Black (ed) Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 Orlando Academic Press 1984
BAYET Jean La religion romaine histore politique et psychologique Paris Payot 1976
BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998
BENNET J Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005
BENOIcircT Simon Giudaismo e Cristianesimo una storia antica Bari Laterza 2005
128
BIBLIA Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50])
BIBLIA Sagrada ediccedilatildeo da CNBB 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2002
BLACK Donald The Behaviour of Law New York Academic Press 1976
_______ Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 New York Academic Press 1984
_______ Toward a General Theory of Social Control Selected Problems Vol 2 New York Academic Press 1984
BLANT E le Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373
_______ le Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373
BLUNT A W The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911
BOBICHON P lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 pp 157-158 2003
BOFFO Laura Iscrizioni greche e latine per lo Studio della Bibblia Brescia Paideia Editrice 1994
BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101
BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950
BRENT Allen A political history of Early Christianity London TampT Clark 2009
BUELL Denise K Why this new race ethnic reasoning in early Christianity New York Columbia University Press 2005
BULTMANN R Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004
BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985
BURNS Stacy Lee Ethnographies of law and social control Oxford Elsevier 2005
Carta a Diogneto In Padres Apologistas Satildeo Paulo Paulus 1995
CHADWICH H Early Christian Thought and the Classical Tradition Oxford Clarendon Press 2002
129
________ Introduction In ____ (Ed) Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi
________ Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 (v 47)
________ The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001
________ The gospel a Republication of the natural religion in Justin Martyr Illinois Classical Studies n 18 pp 237-247 1993
CLEMENT of Alexandria Protrepticus In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
________ Stromata In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832
CHROUST Anton-Hermann AristotleProtrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964
CICERO M Tullius De Natura Deorum Edited by O Plasberg Leipzig Teubner 1917 pp 136-137
_________ Tullius De Legibus Georges de Plinval (ed) Paris Belles Lettres 1959
CLARK Gillian Christianity and Roman Society Cambridge Cambridge University Press 2004
CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999
COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp1507-1562
COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985
COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987
COPETE Juan Manuel Corteacutes Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004
130
COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008
Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonnae E Webere 1832
CULMANN O Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002
CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938
DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000
DANIELOU J Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975
De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted- A Rejoinder Past and Present n27 pp28-33 1964
De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 pp6-38 1963
DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000
DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940
DIOGENES Laertius The life of the eminents philosophers Ed Robert Drew Hicks LondonNew York W HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1925
DION Cassius Histoire Romaine V 9 Editado por E Gros Paris Librairie de Firmin Didot Fregraveres Fil Et C Imprimeurs de LrsquoInstitut 1867
DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 p 24 2005
DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963
DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990
DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106
DURRY Marcel Durry Pline-le-juene Paris Le belle Lettre 1972 p 7071
131
ECK Werner The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 195-213
ENDSJO Dag Oistein Greek resurrection beliefs and the soccess of Christianity New York Palgrave Macmillan 2009
ESTRABAtildeO Geography London Heinemann 1949
EUSEBIO de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduzido por Wolfgang Fischer Satildeo Paulo Novo Seacuteculo 2002
EUSEBIUS Die Chronik des Hieronymus heraugegeben und in 2 Auflage bearbeitet von R Helm 3 unveraumlnderte Auflage mit einer Vorbemerkung von U Treu GCS 31 Berlin Akademie Verlag 1984
FARNELL R L Greek hero cult and ideas of immortality Oxford Carendon Press 1921
FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa
________ La relacioacuten entre razoacuten y revelacioacuten em la antropologiacutea de Justino Maacutertir Teologiacutea y Vida v LII pp 35-50 2011
FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006
FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967
FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012
FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11
GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52
GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995
GOFFMAN E Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006
__________ Relations in Public New York Basic Books 1971
GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946
132
GOODENOUGH E R Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923
GOODMAN R ROWLAND C Apologetics in the Roman Empire Oxford Oxford University Press 1999
GOODSPEED E Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914
GRABE J E SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703
__________ SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700
GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988
GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951
GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18--
HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010
__________ The appropriateness of the apologetical arguments of Justin Martyr Tesis submitted for the Master of Philosophy Australian Catholic University 2008
HARNACK A Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274
__________ Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882
__________ Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99
__________ The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962
HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844
HENTEN Jan Willem AVEMARIE Friedrich Martyrdom and noble death selected texts from Graeco-Roman Jewish and Christian Antiquity New York Routledge 2002
133
HIPPOLYTUS The refutation of all heresies Traduzido por Rev J H MacMahon In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 5 Fathers of the Third Century Hippolytus Cyprian Caius Novatian Appendix Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
Historiae Augustae v I text latin with english translation by David Magie London Harvard University Press 1921 (Loeb Classical Library)
HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885
HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897
HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931
HORWITZ E A The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990
HUNT Emily J Christianity in the second century a case of Tatian New York Routledge 2003
HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703
HYLDAHL N Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965)
Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998
INNES Martin Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003
Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386
Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355
IRINEO of Lyon Againt Heresies Traduzido por Rev Alexander Roberts e James Donaldson In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene Fathers v 1 The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
ISOCRATES Busiris with an English Translation in three volumes by George Norlin PhD LLD Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1980
JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 pp 131-159 jun1979
134
JEROME GENNADIUS Lives of illustrious men Traduzido por Ernest Cushing Richardson In SCHAFF Philip (ed) Nicene and Post-Nicene Fathers 2 v 3 Theodoret Jerome Gennadius amp Rufinus Historical Writings New York Grand Rapids MI Christian Literature Publishing Co Christian Classics Ethereal Library 1892
JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961
JOLY E MOORE D Corpus Inscriptionum Latinarum vol VI pars VII fasc IV Berolini De Gruyter p 4262
JOSEgravePHE F Contre Appion Trad Th Reinach Paris Les Belles Lettres 1930
JOSEPHUS Flavius Jewish antiquities books XVI-XVII (Loeb Classical Library) Translated by Ralph Marcus and Allen Wikgren New York Harvad Press 1963
JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991
JOUCE Cullan The seeds of dialogue in Justin Martyr Australian eJournal of Theology 7 jun2006
JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995
JUVENAL Satiras In Juvenal and Persius With An English Translation G G Ramsay London New York William Heinemann G P Putnams Son 1918
KEITH Graham Justin Martyr and religious exclusivism Tyndale Bulletin 431 pp 56-80 1992
KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945
KERESZTES P Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 pp 204-214 dec1964
_________ Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986
_________ Rome and Christians Church I ANRW II 23 1 pp 260 274ss (1979)
_________ The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965
KHORENATSrsquoI Moses History of Armenians Traduzido por Robert W Thomson Ann Arbor Caravan Books 2006
KIMMEL G Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983
135
KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91
KRUEGER Paul MOMMSEN Theodor (Ed) Corpus iuris civilis I Institutiones Dublin Weidmann 1920 passim
KRUumlGER G Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896
LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934
LACTANTIUS The divine institutes Washington Catholic University of America Press 1964
LEWIS Charlton Thomas KINGERY Hugh Macmaster (Ed) An elementary latin dictionary New York American Book Co 1918
LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940
_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999
_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001
LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 pp 2146-312 1986
LUCIAN De morte Peregrini In Works with an English Translation by A M Harmon Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1936
_______ Menippus In The Works of Lucian of Samosata Translated by Fowler H W and F G Oxford The Clarendon Press 1905
LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]
MACMULLEN Ramsay Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997
__________ Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966
__________ Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981
MAIR AW GR MAIR Callimachus Hymn and Epigrams Lycophron With an English Translation by AW Mair Revised Version Cambridge MA amp London Harvard University Press 2000
136
MARAN P TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius
MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005
_________ Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994
_________ Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997
_________ Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 (2) pp 322-335 1992
MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007
MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 pp 413-442 winter1994
MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology v 8 pp 35ndash55 1982
MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 161v
_________ (Org) Patrologiae cursus completus series latina Paris Garnier-Migne 1878 217v
MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 pp 392-399 1890
MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 pp 3-32 1953
MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956
MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975
MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006
137
__________ LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p
__________ Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995
NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002
NASCIMENTO DFP O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia Pontificia Universidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003
NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzene Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129
OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992
ORIGIN Against Celsus In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997
OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889
OTTO JCT von Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876
PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988
PARVIS Sara Justin Martyr and Apologetc Tradition In PARVIS Sara FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007
________ FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007
PAUSANIAS Description of Greece with an English Translation by WHS Jones LittD and HA Ormerod MA in 4 Volumes Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1918
PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998
PERION Joachin Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum
138
Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis
PERKINS Judith Roman Imperial Identities in the Early Christian Era New York Routledge 2009
PFAumlTTISCH Johannes M Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910
PLATO Apology In Plato in Twelve Volumes Vol 1 translated by Harold North Fowler Introduction by WRM Lamb Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1966
______ Republic In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903
______ Law In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903
PLINIUS Caecilius Secundus Gaius Lettres Paris Belle Lettres 1953
PLUTARCH Moralia with an English Translation by Frank Cole Babbitt Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1928
POLYBIUS The Histories V III Translated by W R Paton Cambridge MALondon Harvard University PressWilliam Heinemann LTD 1979
POPE M The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000
POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005
PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988
QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197
RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972
REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004
ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89
ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) Bible Work 5 Software 2002
139
ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995
ROHDE Erwin Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966
ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981
ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141
ROSS Robert C Superstitio The Classical Journal v 64 n 8 pp 354-358 mai1969
ROUCECK Joseph Social Control Westport CT Greenwood Press 1970
RUSCONI C DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005
RUSSELL D S The Method and Message of Jewish Apocalyptic Philadelphia Westminster Press 1964
SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961
SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958
SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 pp 190ss 1954
SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review N 82 p 72 Jan1982
SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004
SENECA Apocolocyntosis WHD Rouse MA Litt D London William Heinemann 1913
SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008
SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 pp 23-27 1964
___________ The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952
140
SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987
SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 p 412 setdez 2009
SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006
SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944
SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011
________ I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349
STARK Rodney Baindridge Religion deviance and social control New York Routledge 1996
SUETONIUS The lives of the CAESARS In ROLFE JC (ed) SUETONIUS v II LondonNew York William HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1928
SUETONII C T De Vita XII Caesarum Harvard Loeb Classical Library 1914
SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012
SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946
SYLBERG F TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953
TACITUS C Annais In Complete Works of Tacitus Edited by Alfred John Church William Jackson Brodribb Sara Bryant New York Random House Inc Random House Inc reprinted 1942
________ Historiae Ed Charles Dennis Fisher Clarendon Press Oxford 1911
TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984
TATIAN Address to the Greeks Traduzido por JE Ryland In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
141
TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899
TERTULLIAN Apology Traduzido por Rev S Thelwall In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
________ Apology With tradution of TRGlover In GOOLD G P TertullianMinucius Felix Cambridge MassachusettsLondon Harvard University PressWilliam Heinemann 1978 pp 112-113 (The Loeb Classical Library)
________ Against the Valentinians Traduzido por Dr Roberts In SCHAFF Philip MENZIES Allan (ed) Anti-nicene fathers v 3 Latin Christianity its Founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2006b
THIRLBY S Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722
TITUS Livius History of Rome Cambridge Mass Harvard University Press 1970
TUAN Yi-fu Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983
URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932
VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006
VALANTASIS Richard Demons Adversaries devils fishermen The Asceticism of authoritative teaching (NHLVI3) in context of Roman AscetismThe Journal of religion v 81 n 4 pp 549-565 out2001
VEYNE P Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197
VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009
XENOPHON Apology In ____ Xenophontis opera omnia 2nd ed Oxford Clarendon Press 1921
WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991
WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987
WHIGHT ED The History of Heaven New York Oxford University Press 2000
WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 pp 181-190 1975
142
WINDISCH Hans Die orakel des Hystaspes Amsterdam Koninklijke Akademie van Wetenschappen 1929
WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982
143
APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS
A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450
ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C
segundo a forma estabelecida por Otto613
O Parisinus Graecus 450 ndash A ndash eacute o mais antigo manuscrito das obras de Justino
consideradas autecircnticas Ele eacute descrito como um conjunto de 467 foacutelios de 285x215 cm
terminado em 11 de setembro de 1364 segundo seu colofatildeo (fol 461a)614 Presume-se que
tenha sido adquirido em Veneza por Guillaume Pellicier bispo de Montpellirer e embaixador
francecircs naquela cidade de 1539 a 1542615 Natildeo eacute possiacutevel saber onde o manuscrito esteve
entre 1364 e 1540 Miroslav Marcovich616 considera ateacute razoaacutevel a hipoacutetese de A ter sido
produzido na Mistra617 do Deacutespota Manuel Cantacuzenos O antigo imperador John VI
Cantacuzenos pai de Manuel teria vivido contente como monge ateacute seus uacuteltimos dias
conhecido como Joasaph Era um homem culto e interessado nos assuntos teoloacutegicos Esse foi
um periacuteodo de prosperidade cultural e material no despotado de Morea618 Minns e Davis
identificam outros pontos que contribuem razoavelmente para indicar um centro maior como
Mitra ou Constantinopla Os primeiros cinco foacutelios que introduzem a coleccedilatildeo das obras de
Justino no A satildeo extratos de Photius e Euseacutebio sobre esse apologista Especificamente no
primeiro foacutelio aparecem indiacutecios de que o texto foi copiado ou adaptado de outro exemplar
Isso levaria a crer que A foi escrito em um lugar onde fosse possiacutevel ter acesso a outros textos
que auxiliassem na adaptaccedilatildeo Ter acesso agraves relevantes passagens de Photius no seacuteculo XIV
pode ser considerado algo raro619
Outro manuscrito completo das Apologias eacute o Phillippicus 3081 chamado B A partir
da anaacutelise de Bobichon620 B eacute reconhecido como um apoacutegrafo de A Sua dataccedilatildeo eacute de 2 de
abril de 1541 e apresenta uma assinatura no nome de ldquoGeorgerdquo provavelmente Georgios
613 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 614 MINNS D PARVIS P Justin Philosopher and Martyr Apologies Oxford Oxfrod Press 2009 p 3 615 ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris 1909 616 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 Cf Id Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 2 1992 p 322-335 617 Apoacutes o ano de 1261 a cidade ao sul do Peloponeso teria passado por um periacuteodo de ascendente prosperidade No seacuteculo XIV tornou-se importante centro cultural que teria sido capaz de influenciar o Renascimento na Itaacutelia 618 NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzenos Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129 619 MINNS PARVIS Op cit p 5 620 lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 p 157-158
144
Kokolos que viveu em Veneza e trabalhou para Guillaume Pelicier621 Acredita-se que B
tenha pertencido sucessivamente a Pellicier Clausde Noulot du Val ao Coleacutegio Jesuiacuteta de
Clermont em Paris e com a expulsatildeo dos Jesuiacutetas da Franccedila agrave coleccedilatildeo de Meermann E entatildeo
passou para a coleccedilatildeo de Sir Thomas Phillipps622 dando origem ao seu nome Por alguns anos
esses escritos estiveram no depoacutesito da British Library identificado como ldquoLoan 3613rdquo mas
foi retirado e vendido ldquoby private treatyrdquo em Marccedilo de 2006623
O coacutedice Ottobonianus 274 chamado de C tambeacutem tem certo valor na tradiccedilatildeo
manuscrita das Apologias mesmo contendo apenas trecircs capiacutetulos das mesmas Minns e
Parvis624 Marcovich625 Otto626 Harnack627 Blunt628 e Munier629 concordam que sua
qualidade eacute bem inferior a de A Mas quando se trata de saber se C eacute paralelo e independente
de A ou se eacute simplesmente uma coacutepia as opiniotildees se dividem Harnack630 considerou-o um
escrito independente de A Blunt destacou que ele parecia representar uma tradiccedilatildeo diferente
de A Marcovich e Munier segundo Minns e Parvis contentaram-se em apontar o demeacuterito
do texto Sem dar muitos detalhes sobre tais caracteriacutesticas de C Minns e Parvis se
esforccedilaram para argumentar que se trata de uma coacutepia de A feita agraves pressas Uma hipoacutetese
razoaacutevel eacute a de que o trecho da I Apologia 65-67 teria sido copiado pelo escriba Giovanni
Onorio atuante no Vaticano e em outros lugares de Roma por nomeaccedilatildeo do papa Paulo III em
1535 ateacute sua morte em agosto de 1563631 O restante de C teve outros escritores de diferentes
datas632 Ainda segundo a anaacutelise de Minns e Parvis633 a junccedilatildeo da ediccedilatildeo de Petrus Nannius
do De Resurretione Mortuorum de Atenaacutegoras ao conjunto de escritos proacuteximos aos extratos
das Apologias aponta para uma data natildeo anterior a 1541 Semelhantemente a Legatio de
Atenaacutegoras impotildee uma data natildeo posterior a 1557 quando a edito princeps foi impressa por H
Stephanus A visatildeo de Justino sobre a eucaristia teria sido de grande interesse teoloacutegico no
621 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 6 Vide nota 14 622 Esta trajetoacuteria apontada por Minns e Parvis eacute traccedilada por Archambault (Op cit v I pp xxiv-xxviii) e sumarizada por Bobichon (Op cit p 160) 623 Conforme Minns e Parvis (Op cit p 6) indicam e o Newslatter of the Association for Manuscripts and Archives in Research Collectons 46 mai2006 p 13 atesta 624 Op cit p 6 625 Op cit p 7 626 Op cit p xxviii 627 Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882 628 The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911 p lii 629 Justin Apologie pour les Chreacutetiens Paris Les Eacuteditons du Cerf 2006 p 86 630 Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99 631 MINNS PARVIS Op cit p 7 Ele indaca tambeacutem RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972 632 Conforme mostram Minns e Parvis (Op cit p 7) 633 Ibid p 8
145
periacuteodo que antecedeu e aos redores do decreto da eucaristia na deacutecima terceira sessatildeo do
Conciacutelio de Trento em 11 de outubro de 1551 Esses trecircs capiacutetulos do texto de Justino teriam
sido citados por Thomas Cranmer e Stephen Gardiner em 1549 antes de aparecer a editio
princeps Uma data proacutexima a 1548 eacute sustentada para esses dois primeiros foacutelios de C
Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra Parallela634 e no Chronicon
Paschale635 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo menos que doze vezes Na
Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito passagens No Chronicon Paschale
aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4 Esse uacuteltimo deriva provavelmente da
tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)636
634 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 635 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 636 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 13
146
Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos
Agostinho de Hipona 86
Alexandre de Afrodiacutesias 113
Apuleio 24
Aristides 15 24 33 49 55 58 109
Ata do Martiacuterio de Justino 22
Atenaacutegoras 24 109 123 143
Carta a Diogneto 49
Cassius Dio 9 13 14 34 36 48 49 67 88 97 103 111
Chronicon Paschale 18 128 144
Chrysippus de Solis 113
Cicero 43 139
26 31 43 71 74 87
Clemente de Alexandria 74 97
Diogenes Laertius 113
Eacutelio Aristides 58
Estrabatildeo 94
Euseacutebio 18 19 22 23 30 31 32 33 34 40 44 45 48 49 50 53 54 56 57 58 68 69
120 142 144
Flaacutevio Josefo 24 80 93 129
Histoacuteria Augusta 9 48 51
Homero 92
Irineu de Lyon 21
Isoacutecrates 86
Jerocircnimo e Gennadius 21
Juvenal 74
Lactacircncio 97
Luciano 21 37 58 73 95
Meacuteliton de Sardes 24 45
Oraacuteculos de Histaspes 97
Oriacutegenes 95
Oroacutesio 60
147
Papyri Graecae Magicae 92
Pausacircnias 94
Platatildeo 11 24 26 27 28 29 67 78 86 87 91 92 93 94 95 97 98 107 108 109 113 115
120
Pliacutenio 9 14 26 35 36 37 38 39 40 41 42 44 46 47 52 53 55 62 76 77 79 116 120
Plutarco 73 86 91 94 95 96 113 116
Poliacutebio 86 87
Quadrato 15 24 33 49 55
Secircneca 26 72 103
Suetocircnio 13 37 44 103
Taciano 21 24 27
Taacutecito 13 14 26 34 37 44 49 88 97 116 120
Teoacutefilo de Antioquia 24 123
Tertuliano 9 12 21 27 34 35 45
Tito Liacutevio 9 74 75
Varratildeo 86
Xenofontes 24 26
148
Iacutendice remissivo
acusadores 30 56 88 125
Adriano 7 10 15 16 27 35 37 40 41
42 44 49 50 51 52 53 54 55 56 57
58 59 60 61 62 63 71 72 84 90
106 128 143
alma 24 46 81 93 98 99 101 102 104
105 114 125 137
Antonino Pio 7 10 15 16 26 33 59 60
61 62 64 121 129
antropofagia 39
asebeia 36
Aacutesia Menor 15 26 32 55 83
ateiacutesmo 30 38 56 62 84 107 124
avsebeia 38
Bar Koseba 112
24 51 52 55 136
boatos maliciosos 63
caluacutenias
caluacutenia 7 34 39 40 47 48 56 81 82
83 84 88 91 96 108 119 125 128
130 131
canibalismo 30 56 84 124
castigo 6 31 44 56 61 74 85 91 94 96
97 98 104 113 114 120 123 126
131
coercitio 37 44
cognitio extra ordinem 45
controle social 14 16 17 18 64 65 67
68 69 70 77 80 82 113 127 129
130 131 133
costumes judaicos
costume judaico 39
Crescente 23 26 29 34 63 124
crime 17 31 37 39 40 42 47 57 58 62
67 68 84 89 90 93 126 128 139
culto ao imperador
culto imperial 38 52 81
decreto 47 64 76 79 114 148
democircnios
democircnio 11 74 78 79 81 88 89 91
96 106 107 108 110 111 112 117
118 119 122 127 129 130
denuacutencias
denuacutencia 7 34 37 41 43 47 55 56
58 82 90 91 123 124 127 128
130
desordem social 17
destino 29 52 104 105 107 113 120
Domiciano 36 48
epicureus 100 102
escola peripateacutetica 22
escola platocircnica
platonismo 22
estigmas
estigma 84 88 89
estigmatizaccedilatildeo 11 74 83 87
estoicismo 22 114 117 129
estoicos 92 100 102 104 124
exclusivismo 74
fariseus
fariseu 99
149
filosofia 7 12 16 22 23 27 28 30 33
38 65 71 73 92 93 99 100 101 102
103 106 118 122 125 126 129
filosofia estoica 38
flagitia
flagitium 14 36 39 40 46 47 48 50
90 124 128
gecircnero apologeacutetico 10 25 28
Graniano 15 16 53 56 57 128
Hades 92 99 101 102
Helena 107 120
Heraacuteclito 103 115 117
hetaerias 41
Histapes 103
Homero 98 101 102 107 115
incesto 14 39 59 84
inferno 105
injusticcedilas
injusticcedila 15 47 91 131
institutum neronianum 12 15 36 37 48
ius coertionis 37 45 50
julgamento 7 23 28 30 35 36 42 45 55
58 86 106 118 120 126 127 130
justiccedila 11 29 30 31 64 70 71 74 82
90 91 97 98 106 114 118 120 121
126 127
laesea maiestatis 37 40 45
livre-arbiacutetrio 113
loacutegoj sperermatikoj 26
Logos
logos 12 26 73 109 110 112 115
116 117 118 120 121 122 123
125 127 130 133 142 143
Luacutecio Vero 33
maiestas 47 56
manutenccedilatildeo da ordem 7 10 11 15 16 17
64 70 71 92 95 96 122 125 127
130
Marciatildeo 24 119 120
Marco Aureacutelio
M Aureacutelio 10 16 33 35 48 59 60 62
63 72 73 121 131
Menandro 104 107 120
Minuacutecio Fundano 16 53 54 56 58 128
Moiseacutes 114
moral 15 61 66 87 91 92 94 96 118
121 124 127 129
moralidade 7 70 91 94 108 119 129
131
morte 16 24 29 42 52 62 63 70 72 78
82 83 85 89 90 91 96 97 98 99
100 101 102 104 105 111 118 123
124 125 126 127 144 147
neoplatonismo 129
Nero 12 36 47 48 50 77 83 117 128
Nerva 38
nome cristatildeo
nomen christianum 30
nomen christianum 7 43 47 50 55 57
129
nomen Christianum 84 95 127
opiniatildeo puacuteblica 39 50 59
Ottobonianus Graecus 274 9 19 146
Parisinus Graecus 450 5 9 19 24 146
pax deorum 13 39 46 62 65 66 76 130
perseguiccedilatildeo 7 8 13 15 35 36 37 47 53
59 62 64 66 83 88
150
perseguiccedilotildees 13 15 27 47 65 66 81 87
89 106 128
peticcedilatildeo
libellus 27 31 32 33 34 62 71 90
126 129
Phillipicus 3081 19 146
pitagoacuterico 22
preconceito 63 88
reino de Deus 6 74 91
religio licita 38 45 55
rescrito 16 27 33 40 43 53 54 55 56
57 58 60 61 62 90
rescrito de Adriano 54 57 61
ressurreiccedilatildeo 99 100 102 105 109 111
112 144
retoacuterica 10 26 27 29 72 115
revelaccedilatildeo 11 105 107 115 116
Rusticus 23
sacrifiacutecios
sacrifiacutecio 42 48 64 74 75 79 81
sacrilegium 37 40 45 47 50
saduceus
saduceu 99
senatus consultum 36 48
Sibila 103 118
Simatildeo Mago 24
Soacutecrates 9 25 28 29 30 73 97 101 115
122 124 129
superstitio 7 8 14 35 37 39 40 42 43
45 46 48 52 55 58 85 90 91 94
124 127 128
superstitiones 14 46 94 101 102
temor 40 62 92 93 94 97 105 107 120
126 127 128
Tibeacuterio 15 16 36 48 103 139
toleracircncia 17 35 37 42 47 129
Tolomeu 61
Trajano7 10 15 32 35 36 37 38 39 40
41 42 43 44 47 48 49 50 54 55 56
57 58 59 60 61 66 84 90 128 133
143
Tumultos
Tumulto 62
Urbico 16 34 35 61 63 84 85 123
verdade 22 23 26 28 29 30 31 65 70
74 78 83 88 90 106 108 110 111
113 114 116 119 122 126 129 130
Vespasiano 22 32 117
viacutecio 99 113 114 120 121 124
virtude 6 91 92 96 99 112 113 114
115 120 124 125
151
3
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)
A797a Arzani Alessandro
As accedilotildees anticristatildes segundo as Apologias de Justino Maacutertir controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano Alessandro Arzani Maringaacute [sn] 2013
149p
Orientador Profordf Dra Renata Lopes Biazotto Venturini
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria ndash Universidade Estadual de Maringaacute
1 Histoacuteria do cristianismo 2 Perseguiccedilatildeo aos cristatildeos 3 Impeacuterio Romano 4 Justino Maacutertir I Venturini Renata Lopes Biazotto II Universidade Estadual de Maringaacute
Ficha Catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Mara R Colafatti - CRB 91272
4
ALESSANDRO ARZANI
AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE
JUSTINO MAacuteRTIR
Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
Profordf Drordf Monica Selvatici
Universidade Estadual de Londrina - UEL
Profordf Drordf Solange Ramos de Andrade
Universidade Estadual de Maringaacute - UEM
Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini
Universidade Estadual de Maringaacute - UEM
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria
5
Dedico este trabalho
ao senhor de todas as eras que natildeo pode ser submetido a qualquer estaticidade que se possa
imaginar no universo Ao que era desde o princiacutepio eacute agora e continuaraacute sendo
indefinidamente Ao que consola e agraves vezes oprime a qualquer que seja Ao que
cuidadosamente nos observa desde o primeiro instante de vida e que conta
cada batimento do nosso coraccedilatildeo Sem ele nossos dias natildeo poderiam
ser contados Dele depende o amanhatilde nossa existecircncia e nossa
histoacuteria Agravequele que acompanhou cada passo deste
desafio e que me fazia lembrar do valor de
cada instante Agravequele que muitos
simplesmente chamam de
ldquotempordquo
6
AGRADECIMENTOS
Agrave Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini minha querida orientadora pela confianccedila
incentivo amizade e paciecircncia durante essa jornada Eu confesso que nunca havia conhecido
algueacutem que carregasse em si de tal forma a franqueza e a doccedilura associadas ao rigor
acadecircmico como pude constatar em sua pessoa
Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) pelo
amparo financeiro para o desenvolvimento dessa pesquisa
Agrave Profordf Drordf Sara Parvis (University of Edinburgh) por sua gentileza em indicar
algumas informaccedilotildees importantes sobre o principal manuscrito das Apologias de Justino o
MS Parisinus Graecus 450
Agrave minha querida amiga Profordf Viviana L Felix (Universidad Catolica de Buenos
Aires) que generozamente compartilhou comigo artigos e momentos agradaacuteveis de fluecircncia de
ideias
Aos professores Drordm Mauro Pesce e Drordf Adriana Destro (Universitagrave di Bologna) pela
atenccedilatildeo em partilhar comigo algumas indicaccedilotildees bibliograacuteficas
Agraves professoras Drordf Maria Aparecida de Oliveria Silva (pesquisadora na UNESP-
Araraquara) e Drordf Giovanna Menci (Istituto Papirologico ldquoG Vitellirdquo dellrsquoUniversitagrave degli
Studi di Firenze) assim como tambeacutem ao nobre B Jobjorn Boman (Oumlrebro University) pelos
riquiacutessimos artigos compartilhados
Ao Profordm Me Deivid V Gaia (Universidade Federal de Pelotas) por haver gentilmente
compartilhado alguns documentos importantes conseguidos junto agrave Bibliothegraveque national de
France
Agraves professoras Drordf Monica Selvatici (Universidade Estadual de Londrina) e Drordf
Solange Ramos de Andrade (Universidade Estadual de Maringaacute) pelas ricas criacuteticas e
consideraccedilotildees que contribuiacuteram para o aprimoramento dessa pesquisa
Aos colegas Camila Santiago Luz Thiago Franccedila Thais Bassi Soares Profordm Drordm
Jaime Estevatildeo dos Reis e demais integrantes do Laboratoacuterio de Estudos Antigos e Medievais
(LEAM-UEM) pelo companheirismo e satisfaccedilatildeo proporcionada pela dedicaccedilatildeo conjunta aos
estudos histoacutericos
7
Ateacute voacutes apenas ouvindo que esperamos um reino logo supondes sem nenhuma averiguaccedilatildeo que se trata de
reino humano quando noacutes falamos do reino de Deus [] Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a
manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o
avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens
conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos os modos e se
adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos De fato aqueles que agora
por medo das leis e dos castigos por voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los porque
sabem que sois homens e que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutes se se inteirassem e se persuadissem de que
natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se
moderariam de todos os modos como voacutes mesmos haveis de convir
Justino Maacutertir I Apologia 111121
8
Resumo
A histoacuteria do cristianismo na primeira metade do II seacuteculo eacute marcada por atritos locais
denuacutencias em tribunais e caluacutenias que faziam do nome ldquocristatildeordquo um motivo de condenaccedilatildeo
Trajano Adriano e Antonino Pio fizeram suas recomendaccedilotildees aos governantes locais para
desestimular a expansatildeo da nova superstitio dos cristatildeos que demonstrava aversatildeo aos
deuses agraves tradiccedilotildees agraves celebraccedilotildees puacuteblicas e ao culto imperial Nenhuma perseguiccedilatildeo de
fato devia ser estabelecida denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas e os cristatildeos que
abandonassem a feacute deveriam ser perdoados os que se recusavam a abandonar a feacute eram
punidos com a pena capital segundo o julgamento de cada magistrado Nesse periacuteodo alguns
chamados apologistas produziram escritos em defesa dos fieacuteis Justino escreveu duas vezes
ao imperador Antonino e a seus filhos entre os anos de 154 e 161 Nas Apologias ele critica a
postura dos governantes por acatarem as caluacutenias das massas que acarretavam uma ideia
depreciativa ao nomen christianum A fidelidade cristatilde ao Impeacuterio eacute ratificada pelo
apologista que surpreende ao destacar a colaboraccedilatildeo dos fieacuteis na manutenccedilatildeo da ordem Por
meio desta pesquisa que tem por obejtivo analisar a relaccedilatildeo entre controle e religiatildeo a partir as
accedilotildees anticristatildes nesses escritos de Justino nota-se que esse tipo de accedilotildees foi fundamental
para que a funccedilatildeo social da religiatildeo dos cristatildeos fosse pensada no desenvolvimento desse
discurso apologeacutetico Nesse discurso procura-se justificar a rejeiccedilatildeo aos deuses e agrave
imoralidade por eles representada Atento agraves interrogaccedilotildees dos intelectuais e homens letrados
de sua eacutepoca satildeo destacados os aspectos tidos por ldquoirracionais e imoraisrdquo das crenccedilas pagatildes
enquanto a feacute cristatilde eacute apresentada em contornos racionais com o intuito de reconhececirc-la como
filosofia divina e superior agraves demais Nesse sentido a crenccedila num Deus absoluto justo e
onisciente aparece como um instrumento capaz de subter as pessoas agrave moralidade enquanto
aguardam a recompensa eterna e procuram se afastar da condenaccedilatildeo divina Eacute nesse momento
que a religiatildeo dos cristatildeos comeccedila a ser pensada como uma substituta agraves crenccedilas pagatildes
apontadas como incoerentes
Palavras-chave
Justino Maacutertir histoacuteria do cristianismo Impeacuterio Romano perseguiccedilatildeo aos cristatildeos
9
Abstract
The history of Christianity in the first half of the second century is marked by local clashes
accusations in court and slanders that made the name Christian reason for condemnation
Trajan Hadrian and Antoninus Pius made their recommendations to local governments to
discourage the expansion of new superstitio of the Christians who showed aversion to the
gods traditions public celebrations and the imperial cult No persecution in fact should have
been established anonymous reports should not have been accepted and if any Christian
abandoned the faith they should have been forgiven however those who refused to abandon
their faith were punished with the death penalty according to the judgment of each magistrate
During this period some Christians with high education produced writings in defense of their
faith Justin wrote twice to the Emperor Antoninus and his sons between the years 154 and
161 AD In ldquoApologiesrdquo he criticizes the attitudes of the rulers for accepting the slander of the
masses who were accusing the Christians The Christian fidelity to the Empire is ratified and
he highlights the collaboration of the faithful in the maintenance of order Through this
research on the relationship between religion and control as seen in the antichristian actions
reported in the writings of Justin it is noted that this type of action was essential to the social
function of the Christian religion to be thought in your apologetic discourse It seeks to justify
the condemnation of the gods and the immorality represented by them In attention to the
questions of intellectuals and men of letters of his age the irrational behaviors and immoral
aspects of the pagan beliefs are pointed by the apologist while the Christian faith is presented
in rational contours making it a divine philosophy and superior to the other In this sense the
Christian belief in an absolute God who is just and omniscient appears as an instrument with
the ability to teach and demand morality from its followers while they are awaiting the
eternal reward and actively trying to move away from divine condemnation It is then that
their religion begins to be thought of as a substitute for pagan beliefs which are pointed out as
incoherent with the order in the Empire
Key-words
Justin Martyr History of Christianity Roman Empire persecution of Christians
10
LISTA DE ABREVIATURAS
Hist Ecles Histoacuteria Eclesiaacutestica
Diaacutel Diaacutelogo com Trifatildeo
I Apol Primeira Apologia de Justino
II Apol Segunda Apologia de Justino
A Manuscrito Parisinus Graecus 450
B Manuscrito Phillipicus
C Manuscrito Ottobonianus Graecus 274
IGRR Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes
Apolog Apologeticus de Tertuliano
Hist Rom Histoacuteria Romana de Cassius Dio
Hist Aug Histoacuteria Augusta
ApS Apologia de Soacutecrates
PIR Prosopografia Imperii Romani
Ep Epiacutestolas de Pliacutenio
Hist Roma Histoacuteria de Roma de Tito Liacutevio
ANRW Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt
ZKG Zeitschrift fuumlr Kirchengeschichte
Ant Jud Antiguidades Judaicas
Guer Jud Guerras Judaicas
11
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 12
CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS 18
11 As principais ediccedilotildees das Apologias 18
12 A questatildeo da autoria Justino 22
13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino 25
131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica 26
132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino 27
14 Destinataacuterios 31
CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS 34
21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano 35
22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano 49
23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos 57
CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE
MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM 62
31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem 67
32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus 71
33 Sobre as leis e imoralidades 85
CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM
SOCIAL 91
41 O controle absoluto do controlador absoluto 91
42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde 100
421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios 102
422 A razatildeo que julga 109
43 O governo o controle e os governantes 115
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 121
REFEREcircNCIAS 126
APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS 143
Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos 146
Iacutendice remissivo 148
12
INTRODUCcedilAtildeO
Este que no dia 1 de junho eacute reverenciado pelas Igrejas Catoacutelica Ortodoxa Oriental e
Anglicana tem a apresentar um testemunho que vai aleacutem do seu martiacuterio Seus escritos
oferecem pistas importantes para o entendimento da condiccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no
Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II Muitos como o Papa Bento XVI o tecircm chamado
de ldquoo mais importante dos padres apologistas do segundo seacuteculordquo1 Poreacutem o que esta
pesquisa iraacute mostrar eacute que os escritos atribuiacutedos a esse ldquofiloacutesofo cristatildeordquo apresentam acima de
tudo os primeiros indiacutecios de uma efetiva reflexatildeo histoacuterico-teoloacutegica sobre a funccedilatildeo do
cristianismo na organizaccedilatildeo social
Dentre as pesquisas do seacuteculo XX sobre Justino recebe destaque primeiramente o
trabalho de Johannes M Pfaumlttisch2 em 1910 a respeito da influecircncia do pensamento de
Platatildeo sobre esse apologista Em 1923 foi publicada a obra de E R Goodenough3 que
apresentava uma sistematizaccedilatildeo do pensamento teoloacutegico desse que segundo seu ponto de
vista fazia jus ao nome de ldquomaacutertirrdquo ou seja algueacutem ldquoque daacute testemunhordquo mas que em
contrapartida estava longe de merecer o tiacutetulo de ldquofiloacutesofordquo Poucos anos mais tarde
destoando em alguns aspectos do pensamento de Goodenough empreendeu C Andresen4
uma anaacutelise sublinhando os traccedilos filosoacuteficos dos escritos de Justino em comparaccedilatildeo ao
meacutedio-platonismo que tinha um espaccedilo significativo no pano de fundo intelectual do II
seacuteculo dC A problemaacutetica da relaccedilatildeo entre as doutrinas cristatildes ganhou reforccedilo com a defesa
da tese de N Hyldahl5 em 1965 Na mesma deacutecada de 1960 eacute Lislie W Barnard6 quem
intersecciona os aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos e as ideias sobre o judaiacutesmo representados
nos escritos de Justino Aleacutem dos interesses teoloacutegico-filosoacuteficos em torno desses escritos haacute
tambeacutem uma busca por elementos que auxiliem a compreender a condiccedilatildeo dos cristatildeos no
1 PAPA BENTO XVI Audiecircncia geral Praccedila de Satildeo Pedro Vaticano 21 de marccedilo de 2007 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherbenedict_xviaudiences2007documentshf_ben-xvi_aud_20070321_pohtml acesso em 20 de dezembro de 2011 2 Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910 3 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 4 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf tambeacutem ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Berliacuten Walter de Gruyter und co 1955 5 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 6 Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967 cf tambeacutem id Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology V 22 n 2 jun1969 pp 152-164
13
Impeacuterio em meados do seacuteculo II Nesse sentido os escritos de Justino tecircm muito a contribuir
tanto para se pensar a influecircncia da cultura greco-romana sobre as ideias cristatildes quanto sobre
as accedilotildees anticristatildes
As conferecircncias de Henry Chadwich7 na The John Rylands Library em 1965
chamavam a atenccedilatildeo para a inter-relaccedilatildeo entre a filosofia e a teologia nascente percebidas nas
estrateacutegias de defesa argumentativa apresentadas por Justino contra a opressatildeo sobre os
cristatildeos Mas por que os cristatildeos foram perseguidos
As hipoacuteteses tecircm girado em torno de uma lei especial contra os cristatildeos instituiacuteda por
Nero institutum neronianum como chamou Tertuliano8 ou pelo enquadramento em crimes
comuns como maiestas ou pela livre accedilatildeo dos magistrados para manter a ordem ius
coertiones9 Na deacutecada de 1950 receberam destaque os trabalhos de Henry Gregoire10 A N
Sherwin-White11 e J Moreau12 Na deacutecada seguinte Geoffrey E M de Ste Croix13
estabeleceu um debate com Sherwin-White14 sobre essa questatildeo
GEM de Ste Croix sustentava que as perseguiccedilotildees aos cristatildeos baseavam-se na
recusa em reconhecer os deuses de Roma comportamento que era frequentemente
considerado perigoso e sedicioso Os deuses tradicionais do panteatildeo greco-romano eram as
divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma que exigiam culto para a estabilidade da
pax deorum15 Por essa perspectiva Ste Croix propunha que a perseguiccedilatildeo se relacionava ao
sentimento religioso da eacutepoca16 AN Sherwin-White por outro lado defendeu que as
perseguiccedilotildees aos cristatildeos natildeo se baseavam na questatildeo do rompimento da pax deorum mas na
aguda obstinaccedilatildeo dos cristatildeos em natildeo cometer apostasia nem sacrificar para os deuses do
Impeacuterio17 Tal postura dos cristatildeos desafiava as autoridades romanas e representavam uma
grave insubordinaccedilatildeo GEM Ste Croix deu uma treacuteplica a essa questatildeo em 196418 mas essa
problemaacutetica tem despertado pesquisadores ateacute hoje19
7 Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 8 Ad Nationis I78 9 BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 1968 pp 30-50 10 Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 1111 The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952 p 199 12 La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 13 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 pp 6-38 14 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 15 De Ste CROIX GEM Op cit 1963 p 24 16 Ste CROIX GEM Op cit 1963 pp 29-31 17 SHERWIN-WHITE AN Op cit 1964 pp 25 18 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 19 Cf BARNES Timothy D Constantine and Eusebius Cambridge MA Harvard University Press 1981 MacMULLEN Ramsay Christianizing the Roman Empire (AD 100-400) New HavenLondon Yale
14
A proclamaccedilatildeo cristatilde no I e II seacuteculos causava tanto conversotildees quanto reaccedilotildees
adversas entre os pagatildeos20 A religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio Romano era presente na vida dos
povos 21 Relembrando Marcel Simon e Andreacute Benoicirct22 eacute justo admitir que com a refutaccedilatildeo
de todos os compromissos e a sustentaccedilatildeo intransigente do monoteiacutesmo a Igreja parecia um
corpo estranho aos pagatildeos Distanciando-se dos eventos puacuteblicos normalmente envolvidos
com a idolatria condenada pela Igreja rejeitando o serviccedilo militar os jogos e as celebraccedilotildees
artiacutesticas os cristatildeos se autoexpunham agrave marginalizaccedilatildeo da sociedade
Entre o povo ou entre os intelectuais os cristatildeos eram vistos com estranheza ou
desconfianccedila23 Assim como foram caracterizados os judeus podia-se pensar que os cristatildeos
apresentavam um odio humani generis24 em parte devido aos comentaacuterios depreciativos que
se espalhavam entre o povo Foram caracterizados por Taacutecito como membros de uma
destrutiacutevel superstitio25 oriunda da Judeia Suetocircnio se referiu a eles como ldquoraccedila de homens de
uma superstitio nova e maleacuteficardquo26 As acusaccedilotildees ou suspeitas poderiam girar em torno de
delitos ou coisas consideradas repulsivas como infanticiacutedio incesto assembleias ilegais
introduccedilatildeo de cultos iliacutecitos e mais especialmente traiccedilatildeo sendo esta uacuteltima caracterizada pela
recusa em adorar a divindade do imperador27
As superstitiones e os cultos locais eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob
atenccedilatildeo Como destacam Mary Beard John North e Simon Price28 as controveacutersias poderiam
desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito
em 172 e 173 aC29 na incursatildeo da Traacutecia que foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que
University Press 1984 DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000 DRAKE Harold Allen Constantine and the Bishops the politics of intolerance BaltimoreLondon John Hopkins University Press 1999 CLARK Gillian Christianity and the Roman Society Cambridge Cambridge University press 2004 CHADWICK Henry The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001 FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006 20 GOODMAN Martin Mission and conversion proselytizing in the religous history of the Roman Empire Clarendon Press Oxford University Press 1994 p 12 21 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 Cf BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35 22 SIMON M BENOIcircT A Giudaismo e Cristianesimo una storia antica RomaBari LaterzaFigli Spa 2005 p 12 23 ldquoaqueles que por suas abominaccedilotildees eram mal vistosrdquo [quos per flagitia invisos] Taacutecito Annales 1544 24 ldquooacutedio agrave humanidaderdquo Ibid 25 exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo] Annales 1544 26 genus hominum superstitionis novae ac maleficae De Vita XII Caesarum Vita Neronis 162 27 MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 28 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 29 Cassius Dio Hist Rom LXXII4
15
conseguiu seguidores30 entre os druidas incitados por profecias sobre o fim de Roma da
Gaacutelia31 e nas revoltas judaicas do I e II seacuteculos dC Embora existisse um niacutevel significativo
de liberdades religiosa e individual os grupos e assembleias ficavam sob atenccedilatildeo das
autoridades Os baacutequicos os astroacutelogos e maacutegicos o culto de Iacutesis e a crenccedila dos druidas
tambeacutem enfrentaram a obstruccedilatildeo romana32
Paul Veyne faz diferenciaccedilatildeo entre os interesses dos homens letrados e das autoridades
preocupadas com a manutenccedilatildeo da ordem e o interesse da populaccedilatildeo pagatilde em geral Em sua
percepccedilatildeo a atitude de criacutetica dos romanos frente agraves comunidades cristatildes manifestava a
repulsa ao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguo33 Desse modo a rejeiccedilatildeo ao novo grupo religioso
do oriente deveria envolver um problema identitaacuterio tambeacutem relacionado agrave dificuldade de se
assimilar um grupo dotado de particularidades que pretendiam a superioridade diante dos
estabelecidos Justino tambeacutem sustenta uma tese em torno da questatildeo do ldquopor que os cristatildeos
eram perseguidosrdquo esforccedilando-se em convencer os romanos sobre as ldquoinjusticcedilasrdquo cometidas
contra os cristatildeos
Embora natildeo exista um consenso sobre o iniacutecio das perseguiccedilotildees no I seacuteculo34 eacute certo
que o estilo de vida e o conteuacutedo das crenccedilas cristatildes natildeo agradavam a muitos o que
culminava na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados
Natildeo haacute sinais de uma perseguiccedilatildeo generalizada no iniacutecio do II seacuteculo mas apareciam
atritos locais que por vezes culminavam na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados ou agredidos
pelo povo Pliacutenio Segundo natildeo sabia ao certo como proceder nos processos que julgavam os
cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia e chegou a pedir a orientaccedilatildeo de Trajano35 Sob Adriano36 o
governador da Aacutesia Menor Graniano tambeacutem levantou questotildees sobre esses processos
30 Cassius Dio Hist Rom LI255 LIV345-7 31 Taacutecito Historias IV546165 V2224 32 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 Cf AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 33 VEYNE Paul Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 pp 245-246 34 Marta Sordi (I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 15-29) por exemplo sustenta a tese de que a resposta negativa do Senado ao pedido de Tibeacuterio sobre o reconhecimento de Cristo entre os deuses oficiais teria tornado a feacute cristatilde em uma religio illicta Paul Keresztes defende que foi o institutum neronianum que primeiramente comprometeu a legalidade do grupo dos cristatildeos (Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214) 35 Governou de 98 a 117 dC 36 Governou de 117 a 138 dC
16
Nesse periacuteodo Quadrato e Aristides tambeacutem escreveram ao imperador em defesa dos cristatildeos
mas a situaccedilatildeo continuou a mesma sob o governo de Antonino Pio37
Justino que havia nascido em Flaacutevia Neaacutepolis38 atual Nablus uma cidade na antiga
regiatildeo da Samaria filho de pai latino e de um avocirc com nome grego estudou filosofia mas se
converteu ao cristianismo e se pocircs em defesa da feacute39 Escreveu suas Apologias entre os anos
de 154 e 161 aproximadamente em defesa dos cristatildeos levados aos tribunais e entatildeo
condenados agrave morte Aleacutem da previsatildeo de seu proacuteprio martiacuterio o apologista retrata ainda um
caso especiacutefico que ocorreu sob Urbico em Roma Seu discurso busca convencer o imperador
Antonino Pio40 de que os cristatildeos natildeo representavam nenhum tipo de ameaccedila e que seria
segundo seu ponto de vista uma grande injusticcedila condenar agrave morte aqueles que eram
colaboradores ldquoda pazrdquo no Impeacuterio41 Os problemas penais e de outros caraacuteteres juriacutedicos
abordados por Justino e comuns ao governo de Antonino Pio foram uma vez analisados por
Paul Keresztes42 que destacou a estrateacutegia desse apologista de interpretar o rescrito43 de
Adriano a Minuacutecio Fundano Todavia as Apologias desse pensador cristatildeo desafiam a
compreensatildeo de um capiacutetulo intrigante da histoacuteria das ideias religiosas cristatildes como esse
discurso em defesa dos cristatildeos apresenta em meio agraves proposiccedilotildees teoloacutegico-filosoacuteficas que
permeiam o texto uma leitura das accedilotildees anticristatildes conjuguando controle social e religiatildeo na
reprovaccedilatildeo da coaccedilatildeo imposta por Roma sobre os cristatildeos e na indicaccedilatildeo da funccedilatildeo
reguladora da religiatildeo cristatilde para a cooperaccedilatildeo na manutenccedilatildeo da ordem
Por isso essa pesquisa tem por objetivo principal compreender as relaccedilotildees entre
controle social e religiatildeo a partir da anaacutelise das accedilotildees anticristatildes praticadas ateacute meados do
seacuteculo II dC segundo as Apologias de Justino Maacutertir O exame de suas ideias deve
compreender o paradoxo construiacutedo em seu discurso entre o tipo de controle social
desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia aos cristatildeos que
tumultuam a ordem e por outro lado o tipo de controle social apontado nas Apologias que
37 Governou de 138 a 161 dC 38 I Apol 11 cf MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 127-129 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought New York Cambridge University Press 1967 pp 3-12 39 JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991 Cf mais informaccedilotildees no capiacutetulo I 40 E tambeacutem a seus filhos Marco Vero (que seria chamado Marco Aureacutelio) e Luacutecio Vero 41 I Apol 31ss I Apol 121ss 42 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129 Id Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214 Id The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 43 Rescrito em resposta aos questionamentos do governador anterior Graniano
17
daria razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos mediante um tipo de ordem derivado da proliferaccedilatildeo de
suas crenccedilas
Por ldquocontrole socialrdquo entende-se ldquoo conjunto dos recursos materiais e simboacutelicos de
que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de seus
membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo44 Ou ainda
seguindo a perspectiva de Martin Innes45 ldquocontrole socialrdquo refere aos mecanismos e
tecnologias empregados para manutenccedilatildeo da ordem social Esta por sua vez eacute composta de
diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais de alguma forma contribuem para a
constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social Nesse embate apologeacutetico do seacuteculo II satildeo
apresentados argumentos para convencer de que a feacute cristatilde natildeo estava propiacutecia a nenhum tipo
de desordem social e que pelo contraacuterio seria capaz de influenciar na formaccedilatildeo de suacuteditos
fieacuteis do Impeacuterio
Para o cumprimento do objetivo central dessa pesquisa as Apologias de Justino satildeo
estabelecidas como principal objeto e fonte de investigaccedilatildeo a serem submetidas agrave criacutetica
interna e externa segundo o desenvolvimento de uma anaacutelise histoacuterica46 Ao colocar as
Apologias de Justino no centro dessa anaacutelise busca-se delimitar um campo possiacutevel de anaacutelise
dentro do processo de expansatildeo do cristianismo pelos territoacuterios do Impeacuterio Romano tendo
em vista as vaacuterias formas de resistecircncias e aceitaccedilotildees Uma anaacutelise sobre Justino e a
sobrevivecircncia de suas Apologias eacute apresentada no capiacutetulo I e no Apecircndice I
44 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) Dicionaacuterio criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 45 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 46 TOPOLSKY Jersy Metodologia de la historia Madrid Ediciones Catedras 1992 pp 36-45
18
CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS
Para desenvolver uma investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre controle social e religiatildeo
nas accedilotildees anticristatildes de meados do seacuteculo II dC a partir das Apologias de Justino Maacutertir eacute
preciso responder a algumas perguntas baacutesicas sobre sua origem transmissatildeo e forma
Levando em consideraccedilatildeo que as Apologias foram redigidas originalmente haacute quase 1900
anos e passaram por diversos copistas e editores ateacute chegar agrave atualidade eacute necessaacuterio fazer um
raacutepido percurso analiacutetico sobre as ediccedilotildees e suportes materiais que garantiram a preservaccedilatildeo
do texto Isso deveraacute contribuir para a compreensatildeo de suas caracteriacutesticas atuais
Esse tipo de anaacutelise contempla as diferenccedilas entre as trecircs principais ediccedilotildees recentes
das Apologias Miroslav Marcovich47 (com a 1ordf ediccedilatildeo em 1995) por exemplo oferece uma
ediccedilatildeo seguindo o padratildeo apresentado no MS Parisinus Graecus enquanto Charles Munier48
(com ediccedilotildees em 1994 1996 e 2006) sustenta a teoria de que os dois textos seriam
originalmente uma mesma peccedila Denis Minns e Paul Parvis49 (2009) oferecem uma ediccedilatildeo
que aleacutem de considerar a II Apologia uma compilaccedilatildeo de fragmentos e anotaccedilotildees de Justino
transformadas em Apologia por terceiros ainda realoca partes da segunda peccedila para a
primeira fazendo-a ganhar dois capiacutetulos a mais do que as duas ediccedilotildees mencionadas
anteriormente
Assim seratildeo analisados a seguir alguns dos principais pontos sobre as ediccedilotildees o
tamanho original e os destinataacuterios das Apologias bem como as evidecircncias que apontam para
Justino como seu autor
11 As principais ediccedilotildees das Apologias
A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450
ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C
47 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 48 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 Id Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 49 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
19
segundo a forma estabelecida por T Otto50 Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar
com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra
Parallela51 e no Chronicon Paschale52 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo
menos que doze vezes Na Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito
passagens No Chronicon Paschale aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4
Esse uacuteltimo deriva provavelmente da tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)53
Em 1551 foi produzida a partir do MS A a editio princeps importante trabalho do
typographus regius Robert Estienne54 ou Robertus Stephanus Conforme a anaacutelise de Minns e
Parvis55 trata-se de um texto bem produzido Do mesmo modo que A a composiccedilatildeo de
Stephanus que foi dedicada a ldquoBiblioteca Realrdquo apresenta os extratos de Photius e Euseacutebio
sobre Justino A Apologia menor tambeacutem aparece antes da maior56 Natildeo haacute nenhuma divisatildeo
ou quebra de texto Apenas algumas variantes de A satildeo colocadas nas margens das paacuteginas
A primeira traduccedilatildeo das Apologias viria em 1554 por Joachim Peacuterion57 em Paris
Frederick Sylburg58 apresentou sua ediccedilatildeo em 1593 em Heidelberg seguindo rigorosamente
o texto de Robert Etienne Sabe-se tambeacutem que Feacutedeacuteric Morel publicou as Apologias de
Justino em 161559 As ediccedilotildees de Johann Ernst Grabe seguiram fieacuteis ao Stephanus mas
trouxeram duas inovaccedilotildees a ediccedilatildeo de 170060 em Oxford apresentou a Apologia maior como
50 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 51 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 52 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 53 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 13 54 Minns e Parvis oferecem a seguinte referecircncia TOU AGIOU FILOSOFOU KAI MARTUROS) ZHNA kai Serhnw|) LOGOS parainetikoj proj Hllhnaj) PROS TRUFWNA Ioudaion dialogoj) APOLOGIA uper Cristianwn proj thn Rwmaiwn Sugklhton) APOLOGIA b uper Cristianwn proj Antoninon ton euvsebh) EX BIBLIOTHECA REGIA LVTETIAE Ex officina Roberti Stephani typographi Regii Regiis typis MDLI Cum priuilegio Regis Devido agrave corrupccedilatildeo dos textos antigos nem sempre eacute possiacutevel identificar os tiacutetulos corretamente por isso satildeo apresentados aqui em letras maiuacutesculas As barras representam a separaccedilatildeo das linhas onde satildeo lidas as informaccedilotildees a respeito dos volumes referenciados 55 Op cit p 14 56 A I Apologia eacute a ldquoapologia maiorrdquo mas no MS A a ldquoapologia menorrdquo isto eacute a II Apologia vem primeiro 57 Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis 58 TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953 59 Minns e Parvis (Op cit p 15) mencionam que Feacutederic Morel tenha criado a categoria de ldquoApologistasrdquo lanccedilando uma coleccedilatildeo de texto Esta informaccedilatildeo pode ateacute estar correta mas os autores natildeo apontaram nenhuma referecircncia do tipoacutegrafo Sabe-se que ele publicou as Apologias devito as informaccedilotildees do seguinte cataacutelogo GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18-- 60 SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700
20
a primeira e a ediccedilatildeo de 170361 apresentou a obra menor como a II Apologia tal como satildeo
reconhecidas hoje e tambeacutem foram acrescentadas divisotildees de capiacutetulos diferentes das usuais
A ediccedilatildeo de Styan Thirlby de 172262 juntou as trecircs obras de Justino reconhecidas como
autecircnticas I e II Apologia e o Diaacutelogo com Trifatildeo O texto ainda era baseado em Stephanus
Em 1742 Prudentius Maran63 publicou sua obra com uma divisatildeo de capiacutetulos que se
tornaria a usual Segundo Minns e Parvis64 Maran teve acesso a A e B mas seu texto eacute
semelhante ao de Stephanus As Apologias da coleccedilatildeo Patrologia Graeca volume 6 de
185765 eacute a reproduccedilatildeo da sua ediccedilatildeo alocada na seacuterie de Jacques Paul Migne (1800-1875)
JCT von Otto66 publicou sua primeira ediccedilatildeo em 1842 e a terceira e definitiva em
1876 Ele natildeo ficou preso ao texto de Stephanus e apresenta o princiacutepio das ediccedilotildees criacuteticas
sugerindo modificaccedilotildees e melhoramentos do texto Em 1911 foi a vez de Alfred Blunt
Segundo Minns e Parvis67 a obra se baseou principalmente nos trabalhos de G Kruumlger68 que
se espelhou em Otto A ediccedilatildeo de Edgar Goodspeed69 em 1914 recorre a A C e agrave tradiccedilatildeo de
Euseacutebio e da Sacra Parallela poreacutem natildeo apresenta notas criacuteticas
Em 1994 Miroslav Marcovich70 publicou sua ediccedilatildeo criacutetica das Apologias Em 1997
publicou tambeacutem a ediccedilatildeo do Diaacutelogo71 A qualidade criacutetica destes textos passou a um alto
niacutevel Segundo a anaacutelise de Minns e Parvis72 as emendas de Marcovich satildeo de um teor
filoloacutegico tatildeo elevado e com intervenccedilotildees sobre o caraacuteter estiliacutestico de tal modo que eacute possiacutevel
duvidar que Justino tivesse um conhecimento tatildeo apurado de grego
61 SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703 62 Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722 63 TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius 64 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 16 65 MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 66 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 67 Op cit p 17 68 Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896 69 Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 70 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 71 MARCOVICH Miroslav Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997 72 Op cit p 18
21
Charles Munier tambeacutem apresentou em 199473 um volume simples das Apologias em
francecircs Em 199574 foi lanccedilada sua ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto grego Ele confessa natildeo ter tido
acesso agrave obra de Marcovich receacutem-publicada75 Sua ldquogrande obrardquo veio em 2006 uma ediccedilatildeo
criacutetica na coleccedilatildeo Sources Chreacutetiennes O ponto forte do texto de Munier satildeo os comentaacuterios
e a extensiva discussatildeo do contexto teoloacutegico e filosoacutefico76 As anaacutelises textuais natildeo satildeo
muito profundas mas contribuem significativamente com a indicaccedilatildeo de textos
correlacionados
A ediccedilatildeo criacutetica de Denis Minns e Paul Parvis77 ndash com texto grego traduccedilatildeo e notas ndash
foi publicada em 2009 Aleacutem da ampla revisatildeo das ediccedilotildees de outros autores o texto
apresenta um rico aparato criacutetico As interferecircncias no texto fazem a I Apologia chegar ateacute o
capiacutetulo 70
Em 1995 a editora Paulus preparou uma versatildeo das I e II Apologias e o Diaacutelogo com
Trifatildeo em um uacutenico volume78 O texto eacute problemaacutetico e muito simplista Natildeo haacute sinais de
criacutetica textual e podem ser encontrados alguns erros de portuguecircs A traduccedilatildeo foi feita por Ivo
Storniolo com introduccedilatildeo e notas de Roque Frangiotti mas natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo sobre
qual foi o texto base para a traduccedilatildeo Eacute evidente todavia que os editores natildeo contaram com
as ediccedilotildees de Marcovich Munier ou Minns e Parvis Por isso deixaremos este texto em
segundo plano
Nessa pesquisa as ediccedilotildees de Miroslav Marcovich79 Charles Munier80 e a de Denis
Minns e Paul Parvis81 satildeo lidas em conjunto comparando as divergecircncias sempre que for
necessaacuterio A interferecircncia na disposiccedilatildeo dos capiacutetulos adotada por Denis Minns e Paul Parvis
natildeo seraacute admitida A divisatildeo das Apologias seraacute tal qual a que apresenta Marcovich por ater-
se ao padratildeo comum agrave maioria dos estudiosos82 poreacutem a Apologia Maior seraacute chamada I
Apologia abreviado para I Apol ou simplesmente I quando jaacute houver uma citaccedilatildeo no
paraacutegrafo Semelhantemente a Apologia Menor seraacute chamada II Apologia abreviado para II
73 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p 74 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 75 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 90 76 Opiniatildeo tambeacutem compartilhada por MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 18 77 Ibid 346 p 78 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 79 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 80 Op cit 2006 81 Op cit 82 Cf MARCOVICH M Op cit 2005 p 10
22
Apol ou II nas mesmas condiccedilotildees que a primeira O texto de Munier segue a mesma
padronizaccedilatildeo de Marcovich no entanto ele prefere se referir a Apologia parte I e parte II
nomenclatura que natildeo seraacute seguida nesse texto O termo ldquoApologiasrdquo seraacute empregado como
referecircncia aos dois textos de Justino
12 A questatildeo da autoria Justino
A I Apologia (11) aponta explicitamente que seu autor eacute Justino homem oriundo de
Flaacutevia Neaacutepolis hoje conhecida como Nablus localizada na Siacuteria Palestina B Bagatti83
afirma que ela foi fundada por veteranos da conquista da Judeia sob Vespasiano por volta do
ano de 72 O avocirc de Justino Baquios pode ter participado da implantaccedilatildeo da cidade
O apologista se reconhece como conterracircneo dos samaritanos84 No Diaacutelogo com
Trifatildeo ele eacute identificado como ldquofiloacutesofordquo e nas Apologias fica evidente seu conhecimento da
filosofia Taciano chamou seu mestre apologista de ldquoo mais admiraacutevel85rdquo Irineu de Lyon fez
menccedilatildeo ao seu martiacuterio e carregou sua influecircncia em seu escrito86 Tertuliano87 atribuiu-lhe
dois tiacutetulos ldquofiloacutesofo e maacutertirrdquo O apologista tambeacutem recebeu um lugar no De viriis
illustribus de Satildeo Jerocircnimo e Gennadius88
Em seu Diaacutelogo com Trifatildeo89 ele eacute apresentado como um homem educado no estudo
da filosofia Segundo a narrativa do Diaacutelogo Justino conheceu o estoicismo frequentou a
escola peripateacutetica ficou junto a um filoacutesofo pitagoacuterico que lhe solicitou aprender muacutesica
astronomia e geometria Por uacuteltimo havia se aproximado da escola platocircnica quando entatildeo
conheceu os escritos dos profetas e a feacute cristatilde90 Segundo E R Goodenough91 Justino adota
uma dramatizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o cristianismo e a filosofia apresentando as passagens
por diversas escolas agraves quais critica rumo agrave ldquoverdaderdquo cristatilde Ele compara a narrativa de
Justino agrave de seu contemporacircneo Luciano em Menippus IVVI Em Menippus tambeacutem eacute
descrita a passagem por diversas escolas de pensamento chegando-se ao consentimento pelas
inuacutemeras contradiccedilotildees de que nenhuma delas tinha autoridade Goodenough tambeacutem vecirc a
83 S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319 84 Diaacutel 1206 II Apol 151 85 Discurso contra os gregos 191ss 86 Contra as heresias I281 cf IV62 V262 87 Contra os Valentinianos 51ss 88 Vida dos homens Ilustres 89 21ss 90 II Apol 81ss 91 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 pp 58-59
23
recorrecircncia dessa forma literaacuteria na descriccedilatildeo de verdadeiros proseacutelitos do judaiacutesmo Githro
Naaman e Rahab descritos na Tannaim92 N Hyldahl93 aleacutem de considerar a narrativa da
trajetoacuteria filosoacutefica de Justino mera ficccedilatildeo tambeacutem sustenta ser impossiacutevel determinar que
tipo de platonista esse pensador foi antes de sua conversatildeo e que a capa de filoacutesofo que usava
mencionada por Euseacutebio era um erro de interpretaccedilatildeo
Deve-se reconhecer como tambeacutem destacou L W Barnard que se por um lado havia
uma convenccedilatildeo literaacuteria grega ndash e que pudesse ser encontrada ocasionalmente ateacute no judaiacutesmo
ndash sobre as aventuras por diversas escolas a fim de criticaacute-las por outro lado isso natildeo contradiz
a admissatildeo da atual condiccedilatildeo de filoacutesofo cristatildeo assumida por Justino naquele momento Por
ldquofiloacutesofo cristatildeordquo natildeo se pretende dizer outra coisa senatildeo aquilo que ele mesmo confessa e
procura convencer os seus leitores a saber de que apoacutes conhecer diversas correntes
filosoacuteficas encontrou nas doutrinas cristatildes a ldquoverdaderdquo que o contentou94 Aleacutem disso o teor
apologeacutetico do discurso de Justino estaacute fundamentalmente relacionado a paralelos e
intersecccedilotildees com a filosofia C Andresen95 concorda que a trajetoacuteria filosoacutefica de Justino seja
mais do que um simples jogo literaacuterio Segundo Andresen e ele parece estar correto o meacutedio-
platonismo eacute a base da construccedilatildeo do pensamento cristatildeo de Justino
Em Roma Justino esteve engajado em debates com o filoacutesofo ciacutenico Crescente96
Segundo a Ata do Martiacuterio de Justino97 ele foi decapitado sob o julgamento de Rusticus
prefeito de Roma entre 162 e 168
A data e o local da conversatildeo de Justino satildeo imprecisos Eacutefeso tem sido cogitada como
uma boa hipoacutetese para o local de seu membramento ao cristianismo98 ou ainda algum ponto
na sua longa jornada da Palestina para Roma99 Minns e Parvis100 pensam que sua adesatildeo deve
ter ocorrido pelo menos uns 30 anos antes de sua morte Isso apontaria para uma data proacutexima
92 Ibid pp 58-59 93 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 94 Dial II1-6 95 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf FELIX Viviana Laura Elementos medioplatoacutenicos en la filosofiacutea de Justino IV JORNADAS NACIONALES DE FILOSOFIacuteA MEDIEVAL Academia Nacional de Ciencias de Ciencias de Buenos Aires Abril 2009 96 II Apol 31ss 97 Atti del Martiacuterio di San Giustino Caritone Caritoacute Evelpisto Ierace Peone e Liberiano Martirizzati a Roma In GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 Texto grego e traduccedilatildeo italiana a partir da obra de WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987 98 QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197 99 SKARSAUNE Oskar The proof from phophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provence theological profile Leiden EJBrill 1987 pp 245-246 100 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 33
24
agrave guerra judaica da deacutecada de 130 dC O Dialogo (1206) cita a I Apologia e desse modo
ambos os textos fazem referecircncia agrave revolta de Bar Kosiba entre os anos de 132 e 135101
Aleacutem das Apologias e do Diaacutelogo com Trifatildeo obras que satildeo reconhecidamente
proacuteprias a Justino Euseacutebio102 aponta que o apologista escreveu tambeacutem um livro contra os
gregos outro intitulado Elenchos um tratado sobre a soberania de Deus outro com o tiacutetulo
Psaltes e um escrito sobre a alma Um tratado contra Marciatildeo tambeacutem eacute citado mas essa
passagem corresponde a um trecho da I Apol 265-6103 Na sequecircncia dessa periacutecope da I
Apologia Justino disse que ele mesmo escreveu um ldquotratadordquo contra todas as heresias Esse
escrito poreacutem eacute dado por perdido No Dialogo 1206 o apologista diz ter aprestado um
escrito endereccedilado ao imperador no qual se refere a Simatildeo Mago104 o que eacute constatado na I
Apologia Eacute pertinente admitir que natildeo eacute possiacutevel saber se o texto que foi preservado ateacute agora
derivou daquele primeiro endereccedilado ao imperador Se seu trabalho foi entregue ao imperador
eacute provaacutevel que Justino tenha ficado com uma coacutepia
Minns e Parvis105 natildeo acreditam que seu texto tenha sido copiado com o intuito de ser
amplamente publicado Parece-lhes razoaacutevel sustentar a hipoacutetese de que o texto preservado
ateacute hoje pelo MS A deriva do documento que estava com Justino no momento de sua prisatildeo
Talvez tenha sido necessaacuteria uma reorganizaccedilatildeo do texto mais tarde com um propoacutesito
catequeacutetico ou apologeacutetico diferente do seu sentido original Entre sua emissatildeo original e o
teacutermino do trabalho do copista do Parisinus Graecus 450 em 11 de setembro de 1364106
muita coisa pode ter acontecido ao texto Todavia o principal obstaacuteculo a essa hipoacutetese eacute que
natildeo foram encontrados quaisquer vestiacutegios de um texto que ateste que o documento jaacute teve
outro formato sem os acreacutescimos catequeacuteticos Aleacutem disso as partes que tratam das crenccedilas
cristatildes estatildeo bem relacionadas agrave estrutura da obra e cumprem com seu propoacutesito
apologeacutetico107 Sua estrutura apresenta traccedilos comuns aos escritos de outros apologistas do II
101 Diaacutel 13 I Apol 316 102 Hist Ecles IV181-6 103 Hist Ecles IV118-9 104 Cf I Apol 262-3 105 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 34 106 Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005) calcula o ano de 1363 mas Bobichon ( lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 pp 157-158) apontou de forma mais satisfatoacuteria a data de 1364 com a qual Minns e Parvis (Op cit 34) e Munier (Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 84) concordam 107 A funccedilatildeo catequeacutetica da obra seraacute examinada mais propriamente no terceiro capiacutetulo parte 4 dessa dissertaccedilatildeo
25
seacuteculo induzindo Sara Parvis108 a pensar que Justino tenha sido o ldquopairdquo do gecircnero apologeacutetico
cristatildeo servindo de inspiraccedilatildeo para outros escritores da eacutepoca
Embora existam interrogaccedilotildees e divergecircncias sobre a unicidade ou biparticcedilatildeo das
Apologias haacute semelhanccedilas estiliacutesticas entre as duas partes que fazem com que Marcovich109
Munier110 Minns e Parvis111 concordem que os escritos procedam de Justino ainda que certas
modificaccedilotildees sejam admitidas durante o tempo conforme as irregularidades de alguns pontos
tecircm mostrado Eacute preciso ainda ter uma ideia clara sobre que tipo de escritos se estaacute
analisando tendo em vista que o conceito de ldquoapologiardquo como uma espeacutecie de gecircnero literaacuterio
eacute recente
13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino
Termo derivado da palavra grega avpologia significa basicamente ldquodiscurso de defesa
defesardquo Que tambeacutem deriva do verbo avpologeomai que representa o oposto de kathgoria
que significa ldquoacusaccedilatildeordquo112
No seacuteculo IV aC Platatildeo113 e Xenofontes114 cada um a seu modo narram a ldquoapologia
de Soacutecratesrdquo e proporcionam um tributo agrave valorizaccedilatildeo da razatildeo No I seacuteculo dC eacute Flaacutevio
Josefo115 quem eterniza um discurso desse tipo remetido a Aacutepion em prol dos judeus Josefo
defende a religiatildeo judaica salientando a sua antiguidade e contrastando a pretensatildeo grega agrave
superioridade no campo cultural O caraacuteter ldquoapologeacuteticordquo do texto como um ldquodiscurso de
defesardquo fica por conta da resposta a algumas alegaccedilotildees antijudaicas atribuiacutedas ao escritor
grego Aacutepion e os mitos acreditados por Manetho
No seacuteculo II dC Apuleio de Madura tambeacutem compocircs uma apologia pela qual se
defende das acusaccedilotildees de magia Eacute nesse mesmo seacuteculo que uma seacuterie de escritos como os de
Quadrato Aristides Justino Atenaacutegoras Meacuteliton de Sardes Teoacutefilo de Antioquia Taciano e
outros emerge em defesa dos cristatildeos que sofriam acusaccedilotildees principalmente na Aacutesia Menor
108 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 109 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 110 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 111 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 112 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 Cf RUSCONI C (Ed) DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 113
Apologia de Soacutecrates 114
Apologia 115 Contra Aacutepion
26
Para compreender os aspectos constitutivos das apologias de Justino eacute preciso analisar
as vaacuterias teorias sobre sua composiccedilatildeo e sua estrutura retoacuterica
131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica
As diferenccedilas estruturais de uma para a outra apologia de Justino exigem uma anaacutelise
especiacutefica Notadamente a II Apol eacute menor que a I Apol Minns e Parvis116 apresentam trecircs
teorias sobre o nuacutemero desses escritos de Justino
A forma como aparecem no MS A corrobora com a ideia de que sejam duas apologias
Mas enquanto a primeira eacute cheia de citaccedilotildees da escritura a segunda natildeo tem nenhuma citaccedilatildeo
desse tipo De modo bem peculiar eacute na II Apologia que aparece a reflexatildeo sobre o loacutegoj
sperermatikoj117 e o comprometimento de Justino no debate com Crescente A anaacutelise textual
da II Apologia eacute desfavorecida pelo tamanho do texto todavia as diferenccedilas proporcionais
entre os escritos satildeo somadas agrave hipoacutetese de que seriam de fato duas apologias
A segunda teoria sustenta a ideia de que originalmente a atual composiccedilatildeo dupla era
na verdade uma uacutenica Apologia Munier eacute aliado a essa proposta Ele considera que uma obra
uacutenica ndash um libellus ndash teria sido apresentada em Roma como requisiccedilatildeo pessoal endereccedilada ao
Imperador Antonino Pio e seus filhos para mudar a condiccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio118 O
principal argumento dessa hipoacutetese eacute que existe uma boa inclusio entre as referecircncias agrave
piedade e agrave filosofia no iniacutecio da primeira (I Apol 1 21-2 31) e os que aparecem no final da
segunda (II Apol 1213 e 14) As retomadas na segunda do tipo ldquoconforme dissemos
anteriormenterdquo seriam referecircncias ao que foi dito na parte imediatamente anterior e natildeo a
outro texto
De modo diverso Minns e Parvis119 consideram que a estrutura do texto ficaria muito
estranha se fosse pensada segundo essa teoria O cliacutemax da primeira parte estaria no rescrito
de Adriano quando o autor mostra a incoerecircncia das acusaccedilotildees e perseguiccedilotildees sofridas pelos
cristatildeos (I Apol 685-10) Isso tornaria incoerente recomeccedilar uma seccedilatildeo de defesa na parte
posterior Outro argumento desfavoraacutevel eacute que o escriba que picou o texto teria sido
demasiadamente astuto para escolher uma parte que marcaria precisamente a distinccedilatildeo de tons
entre os dois textos
116 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p22 117 Logos spermatikos que pode ser entendido de modo limitado com ldquosemente da razatildeordquo 118 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 119 Op cit p 22
27
Outra teoria sustenta que se trata de uma apologia e um apecircndice Minns e Parvis120
fazem saber que essa foi a teoria apresentada por Grabe121 em 1703 recebida por Harnack122
popularizada por Goodspeed123 em 1914 e ainda sustentada com entusiasmo por Marcovich124
em 1994 As correspondecircncias entre a primeira e a segunda estariam relacionadas ao material
deixado pelo proacuteprio Justino apoacutes concluir o texto definitivo A I Apologia pode ser
reconhecida como um libellus ou seja uma requisiccedilatildeo particular endereccedilada ao Imperador
mas a classificaccedilatildeo da II Apologia natildeo eacute muito precisa
Seguindo o raciociacutenio de Robert M Haddad125 qualquer peticcedilatildeo (libellus) apresentada
ao imperador buscava persuadi-lo a fazer alguma coisa De fato na Antiguidade a persuasatildeo
se tornou uma arte Desenvolvida pelos gregos a retoacuterica foi adaptada pelos romanos para
suas proacuteprias aspiraccedilotildees Ciacutecero Secircneca o Velho Taacutecito Pliacutenio o Jovem Quintiliano e
Fronto se tornaram nomes referenciais dessa habilidade Como foi apontado anteriormente
Justino era muito familiarizado com a filosofia mas natildeo se mostrou muito familiarizado com
a retoacuterica o que natildeo isentou seu texto de revelar uma estrutura comum agraves teacutecnicas dessa
disciplina126 No entanto esses aspectos ainda natildeo satildeo suficientes para oferecer uma
explicaccedilatildeo clara sobre o gecircnero das Apologias
132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino
Se a apologia de Soacutecrates diante do tribunal grego adaptada por Platatildeo127 e por
Xenofontes128 tornou-se um emblema da defesa da razatildeo no II seacuteculo dC foram as
120 Op cit p 23 121 HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703 Grabe atuou em parceria com Huntchim nessa ediccedilatildeo 122 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274 123
Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 passim 124 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 10 125 HADDAD Robert M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 Werner Eck escreve que o imperador romano era cercado por pessoas que procuravam influenciaacute-lo ou conseguir favores (Id The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000) 126 The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 21-28 127 Apologia de Soacutecrates 128 Apologia
28
acusaccedilotildees contras os cristatildeos que deram ldquorazatildeordquo agrave proliferaccedilatildeo de apologias em defesa da feacute
cristatilde que ainda natildeo apresentava uma sistematizaccedilatildeo coerente de suas ideias
Segundo a anaacutelise de Robert Grant a literatura apologeacutetica emerge de grupos
minoritaacuterios que estatildeo tentando desenvolver uma linguagem que seja compreensiacutevel agraves
culturas no Impeacuterio Romano para que por meio dela seja comunicada a mensagem cristatilde129
Satildeo vaacuterias as formas apresentadas para atestar a autenticidade das correntes religiosas
defendidas A apologia significaria algo mais do que uma simples defesa dos ataques sofridos
pela Igreja Seria uma forma baseada na defesa que Soacutecrates teria feito no seu julgamento
diante do povo de Atenas para mostrar a racionalidade de seu julgamento Os apologistas
cristatildeos teriam a ampla tarefa de estender possiacuteveis conexotildees entre as concepccedilotildees da filosofia
grega e aquela que para os cristatildeos era a ldquoverdade por excelecircnciardquo Mas esse processo
precisa ser analisado dentro do acircmbito missioloacutegico cristatildeo 130
A apreciaccedilatildeo helenizante estendida tambeacutem por Leslie W Barnard131 a todos os
apologistas eacute desajeitada O proacuteprio disciacutepulo de Justino Taciano opotildee-se agrave cultura grega
Poucos anos depois Tertuliano132 se mostraria o principal disseminador de um discurso que
estava longe de buscar os pontos comuns entre Jerusaleacutem e Atenas A comparaccedilatildeo com
Soacutecrates tambeacutem natildeo pode ser estendida a todos os apologistas
Justino poreacutem aleacutem de se referir positivamente a Soacutecrates como participante no logos
que autentica a racionalidade cristatilde proporciona uma analogia com a sua proacutepria condiccedilatildeo
enquanto prevecirc o seu martiacuterio em defesa da feacute cristatilde133
Em 1897 Th Wehofer em busca dos modelos literaacuterios de Justino observou que no
elogio dos mortos de Menexenus e na Apologia de Soacutecrates Platatildeo proporciona o modelo de
uma retoacuterica a serviccedilo da justiccedila e da verdade Sem duacutevida Justino conhecia os escritos de
Platatildeo Algumas correlaccedilotildees podem ser identificadas em trechos de suas Apologias I Apol
24 = ApS 30c 53 = 24b et 26c 82 = 30d 682 = 19a II102 = 24b Segundo Munier134
a exposiccedilatildeo temaacutetica progressiva encontrada nessa obra pode parecer uma desorganizaccedilatildeo
129 GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988 p 9 apud HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 31 130 Isso significa que as interconexotildees apologeacuteticas entre cultura greco-romana e cristianismo precisam ser contempladas como mecanismo dos discursos cristatildeos para proporcionar siginificaccedilotildees eficientes entre os povos de outras culturas cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990 131 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 2008 p 2(3) 132 Apolog passim 133 I Apol 51-3 II Apol 81ss 134 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 33
29
uma composiccedilatildeo aparentemente relaxada uma sucessatildeo aparentemente arbitraacuteria de
passagens dogmaacuteticas e pareneacuteticas que retoma abundantemente o mesmo tema abordando-o
sob uma perspectiva diversa Nota-se que um esquema preside a composiccedilatildeo geral das
Apologias
A estrutura essencial da Apologia de Soacutecrates por si soacute natildeo eacute suficiente para dar conta
do plano geral da obra de Justino As correlaccedilotildees entre o escrito de Platatildeo e o de Justino vatildeo
aleacutem do niacutevel estrutural Elas tambeacutem se mostram nos modelos de argumentaccedilatildeo De fato
este eacute o coraccedilatildeo mesmo da defesa que se funda sobre o exemplo de Soacutecrates condenado como
ldquoateu e iacutempiordquo135 Para Justino136 o destino traacutegico do filoacutesofo ateniense ilustra perfeitamente
a sorte dos cristatildeos ameaccedilados de morte
A diatribe de Justino contra Crescente toma uma funccedilatildeo analoacutegica Ela estaacute associada
agrave evocaccedilatildeo de Soacutecrates Assim como Meacuteletos tinha acusado Soacutecrates Crescente acusa os
cristatildeos de serem ldquoateus e iacutempiosrdquo a fim de agradar a multidatildeo insensata137 E como Soacutecrates
tinha oposto a seus acusadores sua indiferenccedila ao ldquotalento da palavra e sua uacutenica preocupaccedilatildeo
era dizer a verdaderdquo138 o desafio de Justino a Crescente se inspira na sentenccedila de Platatildeo139
ldquoDe modo nenhum se deve honrar mais a homens do que agrave verdaderdquo
Contudo a Apologia de Soacutecrates natildeo eacute um modelo literaacuterio estrito no qual Justino se
inspirou Segundo a anaacutelise de Munier140 o Protreacuteptico de Aristoacuteteles oferece tambeacutem
alguma correlaccedilatildeo mas isso natildeo deve significar que haja alguma dependecircncia intriacutenseca entre
esses escritos Aristoacuteteles se dedica a demonstrar que a filosofia converte todo seu valor agrave
vida em sociedade e que uma vida sem filosofia natildeo vale a pena de ser vivida Na medida em
que apresenta o cristianismo como uma ldquofilosofia divinardquo141 Justino poderia tirar o melhor
partido dos protreacutepticos142 de Aristoacuteteles de Isoacutecrate e de seus seguidores dedicados agrave
filosofia Mas essa semelhanccedila eacute apenas ocasional e natildeo intencional O apologista natildeo
esconde seu desejo de que o imperador se torne um filoacutesofo de Cristo Ele acreditava que se
seu pedido fosse aceito a feacute cristatilde espalharia benefiacutecios por todo o Impeacuterio143 Eacute nesse sentido
135 I Apol 53 136 II Apol 12 81-2 137 Cf WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991 138 Platatildeo ApS 17bc 139 Repuacuteblica X595c 607c 140 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 40 141 II125 142 Protreacuteptico exortaccedilatildeo Restam apenas fragmentos dos escritos protreacutepticos de Aristoacuteteles cf CHROUST Anton-Hermann Aristotle Protrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964 143 I 12 1-2 17 1-4
30
que ele recorre agrave maacutexima de Platatildeo144 ldquoSe governantes e governados natildeo satildeo filoacutesofos natildeo
pode haver felicidade nas cidadesrdquo
P Keresztes145 estava certo ao dizer que a caracteriacutestica marcante da Apologia eacute a
extensiva defesa dos cristatildeos contra as acusaccedilotildees de ateiacutesmo traiccedilatildeo canibalismo e agraves accedilotildees
caluniosas de modo geral Justino sustenta essa defesa tentando mostrar a exclusiva verdade
da religiatildeo cristatilde O principal propoacutesito das Apologias seria garantir que os cristatildeos tivessem
liberdade para professarem a feacute embora isso significasse a condenaccedilatildeo dos demais deuses
Tambeacutem fazia parte do propoacutesito chamar os pagatildeos a abraccedilarem o cristianismo Seus
conselhos retoacutericos no contexto servem ao propoacutesito de sugerir ao imperador que mude o
corrente curso da justiccedila Isso significa clamar por um julgamento comum que natildeo permitisse
a condenaccedilatildeo pelo ldquonome cristatildeordquo
Esses escritos do pensador de Flaacutevia Neaacutepolis satildeo dotados de certa particularidade em
sua composiccedilatildeo Mas se nota que a princiacutepio o apologista procurou valer-se do seu direito de
dirigir uma ldquopeticcedilatildeordquo ou libellus ao imperador
Na I Apol 74 ele faz sua requisiccedilatildeo usando o verbo normalmente empregado para
uma peticcedilatildeo em grego avxioun Assumindo a postura de um pensador compromissado com a
justiccedila e a verdade ele pede para que ldquosejam examinadas as accedilotildees de todos os que [] satildeo
denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por
outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo
ter cometido nenhum crimerdquo146 (I Apol 74) Uma requisiccedilatildeo desse tipo deveria ser
encaminhada ao escritoacuterio administrativo para ser ou natildeo subscrita e receber uma resposta O
equivalente grego para libellus eacute biblidion para subscribere o equivalente eacute u`pografein e
para postar uma resposta usa-se proqeiai no lugar de proponere147 Esta terminologia pode
ser precisamente encontrada na II Apol 141
Kai u`maj ou=n avxioumen u`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaj148148148148 to dokoun proqeinaiproqeinaiproqeinaiproqeinai touti to biblidionbiblidionbiblidionbiblidion( o[pwj kai toij alloij ta hmetera gnwsqh| kai dunwntai thj yeudodoxiaj kai avgnoiaj ton kalwn avpallaghvai( oi para thn
144 Repuacuteblica V 473de 145 The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965 p 109 146 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 pp 23-24 [Oqen pantwn twn kataggellomenwn umin taj praxeij krinesqai avxioumen( i[na o` evlegcqeij w`j adikoj kolazhtai( avlla mh wvj Cristianoj evan de tij avnelegktoj fanhtai( avpoluhtai w`j Cristianoj ouvden avdikon) MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 142-144 147 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 25 148 Grifos nossos
31
e`autwn aivtina u`peuqunoi taij timwriaij eivj to gnwsqhnai toij avnqrwpoij tauta(149
As proporccedilotildees desses textos ultrapassam os padrotildees de um libellus Para explicar essa
relativa incompatibilidade Minns e Parvis150 referindo-se apenas a I Apologia sustentam que
Justino usou de uma estrateacutegia por meio da qual ele adota esse tipo de documento
administrativo romano inserindo um material catequeacutetico e explanatoacuterio cristatildeo convertendo-
o em um dispositivo disseminador da mensagem de feacute Ou ainda traduzindo as palavras de
W R Schoedel151 trata-se de uma peticcedilatildeo apologeticamente fundamentada e sem precedentes
na tradiccedilatildeo literaacuteria greco-romana As diferenccedilas na estrutura da II Apologia natildeo permitem
dizer que se trata de um documento de outro autor pois as caracteriacutesticas do texto atestam sua
compatibilidade com a primeira peccedila O que faz multiplicar as interrogaccedilotildees sobre o segundo
texto eacute que mesmo apresentando traccedilos de uma segunda ldquopeticcedilatildeordquo ela eacute evidentemente menor
e dispensa um exordio bem formulado como o do primeiro escrito Mas essa propriedade da II
Apologia se tornaraacute mais clara a seguir na anaacutelise dos destinataacuterios
14 Destinataacuterios
Existem algumas variaccedilotildees entre a forma como a I Apologia eacute endereccedila no MS A e na
Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio A tabela a seguir foi construiacuteda seguindo as informaccedilotildees
apresentadas por Minns e Parvis152
MS A Euseacutebio HE IV12
a Antoninus Pius Augustus Caesar a Antoninus Pius Augustus Caesar
e a Verissimus seu filho e a Verissimus seu filho
Filoacutesofo Filoacutesofo
e a Lucius e a Lucius
Filoacutesofo do filoacutesofo
de Ceacutesar filho por natureza Ceacutesar filho por natureza
e de Pius por adoccedilatildeo e de Pius por adoccedilatildeo
149 MUNIER Op cit pp 364 366 TrldquoPortanto noacutes vos suplicamos que subscrevendo como vos pareccedila deis publicidade a este livro a fim de que tambeacutem os outros conheccedilam a nossa religiatildeo e se vejam livres da vatilde opiniatildeo e da ignoracircncia em relaccedilatildeo ao bem Por sua proacutepria culpa eles se tornam responsaacuteveis pelo castigordquo 150 Op cit p 25 151 SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72 152 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35
32
Eacute incluiacuteda ainda no manuscrito a expressatildeo ldquoao santo senado e a todo o povo dos
romanosrdquo entre os destinataacuterios da Apologia Minns e Parvis153 consideram esse uacuteltimo
trecho uma antiga adiccedilatildeo editorial Eles apontam que a expressatildeo ldquosanto senadordquo foi
comumente encontrada em moedas de bronze cunhadas na Aacutesia Menor154 Outras inscriccedilotildees
mostram essa expressatildeo vinculada agrave famiacutelia imperial e ao povo romano Vespasiano ldquoe toda
sua casa o santo senado e o povo dos romanosrdquo155 Trajano ldquoe toda sua casa o santo senado e
o povo dos romanosrdquo156 Marco Aureacutelio e Luacutecio Veroldquoe toda [sua] casa o mais santo senado e
o povo dos romanosrdquo157 Septimus Severus Caracalla Geta Julia Domna ldquoe toda a sua casa o
santo senado o povo dos romanos e os santos exeacutercitosrdquo158 Eacute possiacutevel indicar muitas outras
inscriccedilotildees mas o impasse identificado por Minns e Parvis estaacute relacionado ao fato de o
ldquosenadordquo e o ldquopovordquo aparecem no endereccedilamento de uma ldquopeticcedilatildeordquo como eacute caracterizada a
Apologia de Justino Entra na hipoacutetese a importaccedilatildeo da expressatildeo que ocorre na I Apol 563
ldquoPor isso noacutes vos suplicamos que o sacro senado e o povo romano conheccedilam este nosso
escrito []rdquo Ou ainda que a primeira ocorrecircncia do termo ldquosacro senadordquo seja a da fala de
Lucius a Urbicus na II Apol 216
Munier159 no entanto tem outra proposta Para ele eacute mais provaacutevel que tal expressatildeo
tenha assumido seu lugar em funccedilatildeo da necessaacuteria autorizaccedilatildeo do senado e do povo para o
estabelecimento de um novo culto puacuteblico Seu argumento eacute baseado no escrito de Ciacutecero
(Legibus II19-20) e parece mais seguro
Euseacutebio escreve que Justino tambeacutem endereccedilou uma Apologia ao imperador
ldquoAntonino Verordquo160 ou seja a Marco Aureacutelio A menccedilatildeo ao ldquoimperador Piordquo ao ldquofilho de
Ceacutesar amante do saberrdquo e ao ldquosacro senadordquo na II Apol 21ss pode significar para estudiosos
como M Marcovich161 que a II Apologia foi dirigida aos mesmos nomes que a primeira Essa
periacutecope do texto apresenta a narraccedilatildeo de um episoacutedio que se sucedeu nos dias de Antonino
153 Ibid 154 TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984 p 96 apud MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35 155 tan i`eran sunklhton kai ton damon ton R`wmaiwn Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386 Minns e Paris (op cit p35) citam o mesmo texto com algumas variaccedilotildees 156 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn (Cyrenis IGRR I-II 1037) Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355 157 i`erwtathj boulhj te kai dhmou tou Rwmaiwn (Serdicae IGRR I-II 1452) Ibid p 182 158 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn kai strateumatwn (Pizi IGRR I-II 766) Ibid p 251 159 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 278 160 Hist Ecles IV183 161 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 7
33
Pio mas eacute provaacutevel que a alusatildeo agrave piedade e agrave filosofia novamente seja proposital para
constranger seus destinataacuterios Euseacutebio se confunde com o nome de Antonino assim como o
faz quanto ao rescrito agrave comunidade da Aacutesia162
Considerando que Justino escreveu na I Apologia 462-3 que ldquoCristo nasceu cento e
cinquenta anos antes de nosso tempordquo A Harnack163 conclui que esse primeiro escrito foi
composto entre 147 e 154 dC Tambeacutem na I Apol 296 L Munatius Felix eacute mencionado
como prefeito do Egito Sabe-se que ele exerceu seu mandato de 150 a 154 dC164 A II Apol
11 faz referecircncia a Q Lollius Urbicus como prefeito de Roma cargo que ocupou de 146 a
160 dC165 Segundo a anaacutelise de Munier o Chronicon de Euseacutebio indica que o adversaacuterio de
Justino Crescente comeccedilou a denunciaacute-lo em Roma no segundo ano da 233ordf Olimpiacuteada que
corresponde ao ano de 153 ou 154 Desse modo seraacute acatada a uma data por volta do ano 153
ou 154 para a I Apologia e alguns anos depois para o segundo escrito ateacute no maacuteximo 161 dC
A I Apologia apresenta uma defesa geral dos cristatildeos O segundo escrito parte da
reprovaccedilatildeo das accedilotildees anticristatildes tendo em vista principalmente o que havia acontecido em
Roma sob Urbico e as investidas do ciacutenico Crescente Entranhado nessa ldquopeticcedilatildeo
apologeticamente fundamentadardquo166 estaacute o argumento de que os cristatildeos ao contraacuterio do que
era disseminado em algumas denuacutencias e caluacutenias natildeo seriam de nenhum modo uma ameaccedila
agrave ordem A seguir seratildeo examinadas as accedilotildees anticristatildes que compunham o contexto da
primeira metade do seacuteculo II dC
162 Hist Ecles IV131ss A confusatildeo com os nomes dos imperadores no rescrito da Aacutesia seraacute examinada mais adiante Pode-se admitir tambeacutem que essa confusatildeo tenha sido acarretada pela organizaccedilatildeo do texto em um periacuteodo posterior a Euseacutebio 163 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 227 164 Prosopografia Imperii Romani V 2 Berlim Walter de Gruyter 1983 (M 723) 165 PIR v1 1970 L 327 166 Usando novamente a expressatildeo de SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72
34
CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS
Justino se opotildee agraves investidas contra os cristatildeos167 por natildeo considerar vaacutelidas as
justificativas apresentadas para as condenaccedilotildees dos fieacuteis A confissatildeo de ldquocristianismordquo diante
de uma autoridade acaba sendo ironizada como uma condenaccedilatildeo do nome ldquocristatildeordquo Na II
Apologia (11) ele afirma que accedilotildees desse tipo estatildeo ocorrendo por todo o Impeacuterio O que natildeo
deve significar que existia uma busca exaustiva dos romanos pelos membros do novo
movimento No entanto eacute provaacutevel que esses atritos pudessem ser localizados em vaacuterias
regiotildees Um caso especiacutefico da execuccedilatildeo em Roma sob Urbico motivou-o a se manifestar
novamente168 As intimaccedilotildees por razotildees religiosas aos tribunais jaacute haviam movido outros
apologistas na primeira metade do II seacuteculo Euseacutebio169 faz saber que antes de Justino
Quadrato e Aristides jaacute clamavam em favor dos cristatildeos ao Imperador Adriano
Natildeo haacute nenhum indiacutecio de que o cerne da crenccedila cristatilde apresentasse alguma forma de
conspiraccedilatildeo contra os romanos Mas eacute preciso estabelecer uma visatildeo geral das accedilotildees
anticristatildes que se desenvolveram antes de Justino e em seu tempo para que se possa assimilar
o sentido de sua reflexatildeo
O II seacuteculo se inicia com um quadro indefinido a respeito dos cristatildeos A atividade
cristatilde de anunciaccedilatildeo da sua mensagem de feacute e conversatildeo dos pagatildeos alcanccedilava diversas
regiotildees do Impeacuterio Conversotildees e alguns atritos sempre ocorriam
A conversatildeo ao cristianismo implicava em uma mudanccedila que aleacutem de religiosa
poderia ser existencial social e ateacute poliacutetica Eacute provaacutevel que essa postura de resistecircncia agrave
associaccedilatildeo com a ldquoidolatriardquo identificada na vida ciacutevica fosse interpretada como ldquoineacuterciardquo ou
falta de vigor para se envolverem nos assuntos puacuteblicos jaacute despertasse preocupaccedilotildees na virada
do I seacuteculo Principalmente quando membros das classes dirigentes comeccedilam a aderir agrave feacute do
oriente A linha entre a toleracircncia e a intoleracircncia eacute indefinida Eacute preciso analisar os contornos
desde Trajano (governou de 98-117 dC) ateacute os primeiros anos de Marco Aureacutelio (governou
de 161-180 dC)
167 ldquopedimos sejam examinadas as acusaccedilotildees contra os cristatildeos Se for demonstrado que satildeo reais castiguem-nos como eacute conveniente que sejam castigados os reacuteus convictosrdquo I Apol 31 168 ldquo[] o que aconteceu ultimamente em vossa cidade sob Urbico e o que os governadores estatildeo fazendo sem razatildeo em todo o impeacuteriordquo II Apol 11 169 Hist Ecles IV1-3
35
21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano
Natildeo haacute indiacutecios de uma perseguiccedilatildeo generalizada aos cristatildeos no Impeacuterio Romano no
iniacutecio do seacuteculo II mas a expansatildeo cristatilde em curso proporcionava um nuacutemero significativo de
processos nos tribunais locais Se por um lado alguns estavam certos de que os membros
dessa superstitio illicita deveriam ser condenados por outro lado existiam algumas lacunas
sobre esse tipo de julgamento
A expansatildeo proporcionava atritos corriqueiros de resistecircncia agraves novas crenccedilas O
nuacutemero de cristatildeos era crescente170 Ateacute o governo de Nero171 os adeptos agrave nova religiatildeo que
se desenvolvia no seio do judaiacutesmo natildeo enfrentaram problemas significativos em relaccedilatildeo aos
romanos Taacutecito faz saber que esses que a seu ver jaacute eram impopulares pelas suas flagitia
foram incriminados por Nero pelo incecircndio de Roma em 64 dC172 Se Nero lanccedilou a culpa
do incecircndio de Roma sobre os cristatildeos fica aberta a questatildeo sobre a dimensatildeo dessa
perseguiccedilatildeo A accedilatildeo de Nero foi suficiente para que a tradiccedilatildeo cristatilde o transformasse no
ldquoprimeiro imperador perseguidorrdquo logo seguido por Domiciano173174 do qual natildeo se conhece
uma perseguiccedilatildeo direta contra os cristatildeos mas uma repressatildeo a asebeia e ao proselitismo
judaico175 que deve ter ocasionado transtornos inclusive agrave Igreja Isso foi suficiente para se
sustentar que a referecircncia de Tertuliano176 ao institutum neronianum fazia de Nero o primeiro
a lanccedilar as bases juriacutedicas para a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos177 Todavia a utilizaccedilatildeo dessa
referecircncia de Tertuliano para a identificaccedilatildeo das bases juriacutedicas da perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute
problemaacutetica Marta Sordi178 recorrendo ao mesmo Tertuliano sustenta a ideia de que houve
170 GOODMANN M Mission and conversion poselytizing in the Religious History of the Roman Empire New York Clarendon PressOxford 1994 p 91-108 Cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 171 Governou de 54 a 68 dC 172 Anais XV44 Flagitia poderia referir-se a algo vergonhoso ou inapropriado algo descabido cf LIDDEL H G SCOTT R (Ed) Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 173 Governou de 81 a 96 dC 174 Euseacutebio His Ecles III26 175 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3 176 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4 177 KERESZTES Paul Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 Segundo C G Roman as bases dessa teoria se encontram na obra de CALLEWAERD C La methode dans la recherrch de la base juridique des premiers persecutions Reviste dhistoire Ecclesiastique 12 1911 pp 5-16 e segue acompanhada por Cf DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106 MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 1953 pp 3-32 178 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968
36
um senatus consultum na eacutepoca de Tibeacuterio179 que teria desaprovado o reconhecimento de
Cristo como deus do panteatildeo a contragosto do Imperador
A incerteza sobre como proceder em julgamento de cristatildeos fez com que Pliacutenio o
Jovem escrevesse ao imperador Trajano no iniacutecio do II seacuteculo A resposta do imperador
confirma a accedilatildeo de Pliacutenio em condenar os cristatildeos confessos proiacutebe agrave perseguiccedilatildeo a esses
religiosos rejeita as denuacutencias anocircnimas e faz aumenta as interrogaccedilotildees sobre as bases
juriacutedicas processos desse tipo Uma hipoacutetese comum tal como sustentam Marcel Simon e
Andreacute Benoicirct180 eacute a de que neste periacuteodo natildeo existia nenhuma lei sobre os cristatildeos e que os
magistrados agiam mediante a ius coertionis181 Essa teoria que havia sido sustentada
originalmente por Mommsen arrebanhou alguns seguidores mas como aponta Giorgio
Jossa182 em alguns casos como na questatildeo dirigida por Pliacutenio a Trajano o uso da coercitio eacute
limitado pelas interrogaccedilotildees sobre como enquadrar judicialmente os processos Para ser mais
especiacutefico Pliacutenio deseja saber se os cristatildeos deveriam ser condenados simplesmente por
confessarem esse nomem ou por algum crime que esteja subentendido Com base nos
trabalhos de E Le Blant183 no seacuteculo XIX outra teoria sobre esse tipo de julgamento propotildee
que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais existentes dentro do
direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea maiestatis Segundo C
G Roman184 essa teoria teve muitos seguidores nos seacuteculos XIX e XX sendo favoraacutevel
agravequeles que como L Homo e Ch Saumagne185 consideram que o institutum neronianum186
natildeo pode ser compreendido como edito ou lei especial emanada do princeps
As maiores discrepacircncias quanto agraves razotildees juriacutedicas e populares para condenaccedilatildeo dos
cristatildeos eacute a proacutepria relaccedilatildeo desse grupo religioso com o Impeacuterio neste iniacutecio do II seacuteculo
aparecem em funccedilatildeo das supostas posturas diferentes assumidas por Trajano e Adriano diante
dessa superstitio As explicaccedilotildees atuais trilham caminhos que vatildeo desde diferentes niacuteveis de
toleracircncia atribuiacutedos a esses dois imperadores como sustenta Pedro Barcelograve187 ateacute a hipoacutetese
179 Governou de 14 a 37 dC 180 Giudaismo e cristianismo una storia antica RomaBari Gius Laterza Figli Spa 2005 p 97 181 MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-96 182 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 107-144 183 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 184 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 185 HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229 186 Tertuliano Ad nationes 17 187 Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim
37
de que Adriano tenha reconhecido o cristianismo como uma religio licita conforme sustentou
primeiramente Mommsen188
Trajano assumiu o poder no ano de 98 dC A estrateacutegia de Nerva189 em adotaacute-lo para
ser seu sucessor aproximou o senado do futuro priacutencipe190 originaacuterio da Itaacutelica cidade da
proviacutencia senatorial da Baetica no sul da Hispania Eacute provaacutevel que tenha recebido formaccedilatildeo
poliacutetica e puacuteblica razoaacutevel mas sua imagem de homem militar e popular entre as legiotildees eacute a
que prevaleceu para a posteridade Segundo Julien Bennett191 Trajano era de uma famiacutelia
provincial de status elevado Mas essa ascensatildeo natildeo era para qualquer um Pliacutenio192 destaca-o
como priacutencipe escolhido pelas divindades ndash o epiacuteteto optimum era especiacutefico de Juacutepiter ndash
respeitador de todas as tradiccedilotildees ancestrais e das instituiccedilotildees poliacuteticas entre elas o senado
Uma idealizaccedilatildeo que certamente contrapunha-se agrave realidade efetiva pois Trajano apoiado
pelas legiotildees e representado como escolhido de Juacutepiter era detentor de um poder autocraacutetico
tatildeo grande quanto ou maior que o dos mais proacuteximos conselheiros os amigos do priacutencipe
Pode-se considerar que as accedilotildees poliacuteticas de Trajano tinham um caraacuteter apaziguador nos
territoacuterios romanos Ampliou-se a poliacutetica urbana e a extensatildeo das vias romanas nas
proviacutencias favorecendo significativamente a atividade comercial193
Nesse periacuteodo a filosofia estoica encontrou grande honra Por outro lado tambeacutem
houve uma significativa propagaccedilatildeo dos cultos orientais e da magia Prodiacutegios e milagres
eram ansiosamente buscados desencadeando certo fervor religioso entre o povo A piedade
religiosa ancorada agrave velha tradiccedilatildeo grega e romana nutrida por fermento novo proveniente
dos misteacuterios egiacutepcios e dos oraacuteculos caldeus permeava ainda os escritos dos intelectuais O
culto ao imperador natildeo recebeu tanta ecircnfase mas a sacralidade do Impeacuterio eacute talvez um fato
adquirido por todos e a aceitaccedilatildeo praacutetica da forma de culto se juntou com a formaccedilatildeo estoica
da classe dominante194
No ano de 96 Nerva estipulou a requisiccedilatildeo dos relegados e o veto contra as acusaccedilotildees
de ldquoateiacutesmordquo ou mais precisamente de avsebeia e de ldquocostumes judaicosrdquo195 Se os cristatildeos
haviam sido incomodados por decretos que indiretamente insidiam sobre eles alguma
188 Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-399 189 Governou de 96 a 98 dC 190 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 38 191 Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005 pIX 192 Epistolas 1012 Panegiricus 27 884 passim 193 FRIGHETTO Renan Op cit 2012 p 38 194 Ibid p 38 195 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3
38
opressatildeo as mudanccedilas de Nerva teriam representado um aliacutevio196 Mas sob Trajano percebe-
se que os casos esporaacutedicos de condenaccedilotildees aos fieacuteis ainda satildeo identificados Natildeo se ouviraacute
mais falar sobre acusaccedilatildeo de costume judaico no II seacuteculo mas os cristatildeos continuaratildeo a
enfrentar repressotildees em alguns pontos do territoacuterio romano o que levanta uma obscura
questatildeo sobre por qual crime seriam culpados os cristatildeos e quais seriam os fundamentos
juriacutedicos de suas condenaccedilotildees
Como destacou Giorgio Jossa197 a apologeacutetica cristatilde desse periacuteodo distingue dois
tipos de criacuteticos Uma opiniatildeo puacuteblica grosseira e mal informada como as acusaccedilotildees de
cometerem delitos particularmente vergonhosos como incesto e antropofagia movida contra
os cristatildeos por meio de falatoacuterio e caluacutenias e a acusaccedilatildeo de serem a causa de todos os males
no Impeacuterio devido agrave ameaccedila que representavam agrave pax deorum Eacute difiacutecil dizer qual era
realmente a extensatildeo da hostilidade dos pagatildeos das diversas regiotildees mas essa hostilidade
existia e constituiacutea um terreno feacutertil para o desenvolvimento tanto das acusaccedilotildees poliacuteticas da
opiniatildeo culta quanto juriacutedicas por parte dos funcionaacuterios imperiais
O cristianismo natildeo se dirigiu apenas agraves classes humildes Rapidamente sua mensagem
chegou tambeacutem agraves classes elevadas A oposiccedilatildeo da classe culta era principalmente de caraacuteter
filosoacutefico e nesse periacuteodo foram sustentadas especialmente por Epiacuteteto Luciano e Galeno a
partir dos valores mais tradicionais da cultura helecircnica Por outro lado sustentando acusaccedilotildees
de caraacuteter social aparecem as consideraccedilotildees de Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio tendo em vista as
preocupaccedilotildees poliacuteticas do governo romano Taacutecito198 escreveu que os cristatildeos eram mal vistos
pela suas flagitia199 e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero humano] A
crenccedila desse grupo era considerada uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]
Suetocircnio200 os considerava homens de uma superstitionis novae ac maleficae [superstitio201
nova e maleacutefica] Frontatildeo202 em atenccedilatildeo agraves antigas caluacutenias de flagitia teria acusado os
196 Eusebio Hist Ecles III231 197 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 108 198 Anais XV44 199 O termo latino pode significar ldquocrime infacircmia ato vergonhoso etcrdquo LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) 200 genus hominum superstitionis novae ac maleficae [raccedila de homens de uma superstitio nova e maleacutefica] De Vita Caesarum Vita Neronis 162 201 A palavra latina superstitio significa basicamente ldquotemor distinto aos deusesrdquo ldquopavor pelo sobrenatualrdquo com possiacuteveis variaccedilotildees em contextos diferentes Sua traduccedilatildeo para ldquosupersticcedilatildeordquo pode ocasionar uma confusatildeo indesejada de conceitos LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) cf JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 jun1979 pp 131-159 MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007 SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002 202 apud Minucio Felix Octavius 96-7
39
cristatildeos de orgias incestuosas Pliacutenio203 vecirc nas novas crenccedilas uma superstitionem pravam et
immodicam A imagem dos cristatildeos diante desses homens educados era negativa Mas as
opiniotildees satildeo muito divergentes sobre as bases juriacutedicas da condenaccedilatildeo dos membros desse
novo grupo religioso
O governador do Ponto-Bitiacutenia diz nunca ter participado de julgamentos de cristatildeos e
por isso natildeo sabia quais eram as medidas e os procedimentos para castigar e inquirir204 Ele
levanta as seguintes questotildees a Trajano se as diferentes idades e condiccedilotildees fiacutesicas dos
acusados deveriam ser levadas em consideraccedilatildeo se os que se retratavam mereciam ser
perdoados e se deveriam ser punidos por serem cristatildeos sem qualquer crime ou
exclusivamente pelos delitos encobertos por este nome205 O rescrito de Trajano a Pliacutenio
tendo em vista a inscriccedilatildeo de Como (CIL V 5262206) pode ter sido escrito em 111 e 112 ou
112 e 113 anos que compreenderiam o governo de Pliacutenio no Ponto-Bitiacutenia
Sua interrogaccedilatildeo sobre se o ldquonomerdquo deveria ser punido mesmo sem significar uma
ofensa ou a ofensa subentendida pelo nome207 incide sobre que tipo de lei existia naquela
eacutepoca Segundo E Le Blant208 as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis
penais existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de
laesea maiestatis Todavia conforme propocircs C G Roman209 em seu estudo eacute provaacutevel que
os cristatildeos estivessem sendo denunciados naquela regiatildeo devido ao fato de se reunirem
semanalmente Isso contrariava as estipulaccedilotildees do edito promulgado pelo governador segundo
as instruccedilotildees de Trajano que proibia as assembleias ou hetaerias210 entre o povo para evitar
conspiraccedilotildees211 Assim pelo menos neste ponto eacute preciso concordar com Pedro Barcelograve no
203 [superstitio distorcida e desregrada] Ep X968 204 Cognitionibus de Christianis interfui nunquam ideo nescio quid et quatenus aut puniri soleat aut quaeri [ Nunca tomei parte em processos contra cristatildeos por esta razatildeo eu natildeo sei o que costumeiramente se deve punir e quais satildeo as extensotildees ou investigaccedilotildees] (Ep X97) 205 Ep X96 206 Corpus Inscripitionum Latinarum V Berolini Reimer 1959 207 nomen ipsu etiamsi flagitiis careat an flagita cohaerentia nomini puniantur [O proacuteprio nome mesmo sem nenhuma ofensa ou os crimes associados a esse nome devem ser punidos] (Ep X97) 208 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 209 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 passim 210 Assembleias civis comuns entre os gregos 211 Ep X97
40
reconhecimento de que se estaacute diante de um problema local212 Os cristatildeos estavam agrave mercecirc
de denuacutencias de desobediecircncia ao edito do governador mas tambeacutem por alguma
irregularidade identificada no tocante agrave nova religiatildeo
Pliacutenio consultou Trajano pelo menos duas vezes sobre como lidar com as heterias213
Ele havia questionado sobre a possibilidade de criar um coleacutegio de fabri composto por 150
homens na Nicomeacutedia214 Mas o imperador respondeu ldquoNatildeo esqueccedilamos que tua proviacutencia e
sobretudo esta vila eacute vitima de sociedades deste gecircnero Qualquer que seja seu nome
qualquer que seja a finalidade de que dermos a estes homens reunidos daraacute lugar rapidamente
a heteriasrdquo215 Natildeo seria razoaacutevel abrir uma exceccedilatildeo aos cristatildeos Mediante inuacutemeras
denuacutencias Pliacutenio resolveu investigar sobre o tipo de assembleia que constituiacuteam as reuniotildees
cuacutelticas cristatildes Os processos de acusaccedilatildeo cresceram e proporcionaram vaacuterios incidentes216
Denuacutencias anocircnimas por meio de libelus contendo o nome de pessoas que negavam ser cristatildes
estavam entre os inconvenientes Os cristatildeos alegavam que sua uacutenica culpa ou erro era se
reunirem antes de nascer o sol em um dia especiacutefico da semana para cantar hinos a Cristo E
tambeacutem de se ajuntarem para uma refeiccedilatildeo comum vista pelo governador como innoxium
[inocente] Praacutetica que havia sido abandonada devido ao edito de Pliacutenio O governador
procurou extrair informaccedilotildees sobre os cristatildeos mas ele escreve que natildeo encontrou nada aleacutem
de uma superstitionem pravam et immodicam Visto que o nuacutemero de acusados estava
provocando ldquoincidentesrdquo Pliacutenio decidiu consultar o imperador sobre o assunto Ele nota que
pessoas de todas as idades de todos os graus de ambos os sexos e de muitas cidades satildeo
citadas em juiacutezo A superstitio dos cristatildeos jaacute se estendia pelos campos e vilas mas ele eacute
otimista e acredita ser possiacutevel sanar esse problema217 Pliacutenio218 escreve que
muitos recomeccedilam a frequentar os templos que haviam ficado quase desertos tornando a se celebrarem os sacrifiacutecios solenes abandonados e a se venderem as viacutetimas das quais ateacute agora eram raros os compradores De modo que eacute faacutecil argumentar que muitas pessoas podem se emendar se existir lugar para arrependimento
Desse modo haacute uma evidente intenccedilatildeo de realocar os cristatildeos ao povo em geral que
participa da religiatildeo oficial Deve ser esta a razatildeo pela qual o governador concede o perdatildeo
212 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 p 69 213 Assembleias comuns aos gregos 214 Ep X33 215 Ep X341 216 mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species incierunt [Assim como seu suceder crescem os processos de acusaccedilatildeo ocasionando vaacuterios incidentes] (Ep X97) 217 quae videtur sisti et corrigi posse (Ep X97) 218 Ep X97
41
agravequeles que abandonam o cristianismo Mas baseado em relatos anteriores219 e em textos
posteriores sobre esse tipo de julgamento220 pode-se supor que os cristatildeos intimados
argumentavam e questionavam sobre a razatildeo da culpa que os condenava
Roman221 em certa medida seguindo o raciociacutenio de Marta Sordi222 sustenta que a
disposiccedilatildeo de Trajano estaacute voltada para a soluccedilatildeo de problemas sociais na regiatildeo do Ponto-
Bitiacutenia tendo em vista a sua recomendaccedilatildeo geral contra as heterias Proibindo as reuniotildees
puacuteblicas de qualquer caraacuteter os cristatildeos estariam indiretamente incluiacutedos Mas Roman
atribuindo um acentuado grau de toleracircncia a Trajano considera que o imperador estaacute
liberando os cristatildeos dessa condenaccedilatildeo recomendando que os mesmos natildeo sejam buscados
No entanto natildeo haacute qualquer razatildeo para supervalorizar a ldquotoleracircnciardquo desse imperador aos
cristatildeos
Se fossem acusados de violaccedilatildeo do edito das heterias defender-se-iam dizendo que
natildeo se reuniam mais Caso os problemas envolvendo cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia se ressumissem
a essa questatildeo o magistrado deveria soltaacute-los imediatamente Mas natildeo eacute isso que eacute descrito
por Pliacutenio Ele relata que insistia para que os acusados negassem ser ldquocristatildeosrdquo ameaccedilando-os
de morte Certamente um cristatildeo questionaria esse tipo de julgamento perguntando sobre qual
crime teria sido por eles cometido O governador sabia que esses religiosos eram acusados em
outros lugares e ao caracterizar as crenccedilas cristatildes como pravam et immodicam uma percepccedilatildeo
muito negativa se manifesta No entanto natildeo haacute referecircncia a nenhuma lei contra os cristatildeos
Pliacutenio decidiu punir os que confessavam essa superstitio procurando convencecirc-los a
mudarem de opiniatildeo quanto agrave feacute a que se apegavam ameaccedilando-os por ateacute trecircs vezes Seu
julgamento foi que independente da natureza dos credos dos cristatildeos a inflexibilidade e
obstinaccedilatildeo que os faziam natildeo negar o nomen christianum tornavam-lhes dignos de puniccedilatildeo223
Giorgio Jossa224 destacou ainda que nenhum dos crimes a eles imputados eram demonstados
ou pareciam dignos de serem cridos contudo os cristatildeos satildeo vistos como seguidores de
crenccedilas despresiacuteveis Embora natildeo exista nenhuma referecircncia a uma lei contra os fieacuteis natildeo haacute
nenhuma razatildeo para se pensar que Pliacutenio estivesse receoso de punir os cristatildeos exceto pelo
fato de que o nuacutemero de denuacutencias anocircnimas poderia provocar desordem Conforme apontou
219 Atos dos Apoacutestolospassim 220 Euseacutebio Hist Ecles passim Atas dos maacutertires passim 221 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-242 222 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 87-102 223 hellip qualecumque esset quod faterentur pervicaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri (Ep X97) 224 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 116
42
J Danieacutelou225 natildeo era uma lei especiacutefica que ocasionava a condenaccedilatildeo dos fieacuteis mas a
ausecircncia de uma lei que regulamentasse a nova religiatildeo como a que autorizava a religiatildeo
judaica
A resposta de Trajano natildeo demonstrou muita preocupaccedilatildeo com os cristatildeos O
imperador aprovou as medidas empregadas contra eles e para evitar o problema do excesso
de denuacutencias sem fundamento recomendou que natildeo fossem admitidas delaccedilotildees anocircnimas O
imperador tambeacutem estabeleceu que os fieacuteis natildeo deveriam ser perseguidos Ele escreveu
Agiste muito bem meu caro Pliacutenio ao instituir os processos contra esses que te foram denunciados como cristatildeos Natildeo se deve estabelecer regra dura e inflexiacutevel de aplicaccedilatildeo universal Natildeo os procure mas se surgirem outras denuacutencias que procedam puna-os Poreacutem com esta ressalva de que se algueacutem nega ser cristatildeo e mediante a adoraccedilatildeo dos deuses demonstra natildeo o ser atualmente deve ser perdoado em recompensa de sua emenda por muito que o acusem suspeitas relativas ao passado Natildeo merecem atenccedilatildeo panfletos anocircnimos em causa alguma aleacutem do dever de evitarem-se antecedentes iniacutequos panfletos anocircnimos natildeo condizem absolutamente com os nossos tempos226
O caraacuteter lacocircnico da resposta de Trajano poderia se justificar pelo menos de trecircs
formas Em primeiro lugar a autenticidade do rescrito de Trajano e a carta de Pliacutenio a esse
imperador foram questionadas por alguns estudiosos desde o seacuteculo XVIII Segundo
Cristobal G Roman a anaacutelise de J S Semler227 em 1788 contribuiu para desencadear uma
corrente de pensamento que foi bem representada ateacute longos anos do seacuteculo XX228 As
principais objeccedilotildees natildeo estariam diretamente relacionadas agrave inadequaccedilatildeo da descriccedilatildeo de
Pliacutenio sobre as comunidades cristatildes e a situaccedilatildeo real na qual se encontrariam As
discordacircncias incidiriam sobre o tipo de canto praticado nas reuniotildees cristatildes e sobre o nuacutemero
de cristatildeos existentes no Ponto-Bitiacutenia segundo o relato de Pliacutenio229 Os aspectos estruturais
satildeo analisados na criacutetica de L Hermann230 que aponta as repeticcedilotildees e as reiteradas alusotildees agrave
proacutepria ignoracircncia de Pliacutenio como elementos que induzem a pensar em interpolaccedilotildees ou 225 Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975 pp 13-15 226 Pliacutenio Ep X981ss 227 Novae observationes quibus studiosius illustrantur potiora capita historiae et religionis christianae usque ad Constantinum Halle Impensis Bibliopolii Hemmerdiani 1781 228 Marcel Durry (Pline-le-juene Paris Soc DrsquoEacuted Le belle Lettre 1972 p 7071) oferece uma lista dos pesquisadores que aponta a inautenticidade da correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano Entre as obras aparecem AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875 p 186 HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844 pp 426 HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885 LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934 pp 28-34 e GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946 p 585 229 VIDMAN L Etude sur la correspondance de Pline Le Jeune avec Trajan Roma LErma di Bretschneider 1972 pp 87 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 227 230 HERMANN L Les interpretations de la lettre de Pline sur les chretiens Latomus XIII 1954 p 343 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228
43
falsificaccedilotildees Dentro dessa mesma loacutegica estaria a resposta lacocircnica de Trajano agraves trecircs
questotildees que aparecem na carta de Pliacutenio a) se deveriam ser feitas distinccedilotildees tendo em vistas
as idades dos cristatildeos b) se deveria lhes permitir o arrependimento c) e se o roacutetulo de cristatildeo
deveria ser motivo de castigo por si mesmo ou apenas os delitos que aquele nome
implicava231 A resposta de Trajano contempla diretamente apenas a segunda questatildeo natildeo
dando provas de que a primeira e a terceira estivessem na carta por ele recebida Desse modo
Hermann deduz que as questotildees natildeo contempladas seriam interpolaccedilotildees
Entretanto a despreocupaccedilatildeo de Trajano em estabelecer uma norma riacutegida contra os
cristatildeos pode justificar o caraacuteter superficial de sua resposta Ele escreve que neque enim in
universum aliquid quod quase certam formam habeat constitui potest232 [natildeo se pode
constituir uma norma universal ou que seja invariaacutevel] Com isso nota-se tambeacutem a
liberdade do magistrado em avaliar os suspeitos e procurar enquadraacute-los sob uma lei
A tese mommseniana da coercitio eacute rebatida parcialmente por Jossa233 tendo em vista
que na maioria dos casos de condenaccedilatildeo dos cristatildeos nesse periacuteodo a atitude das autoridades
natildeo se reduz a uma simples atitude de poliacutecia para manter a ordem puacuteblica em uma proviacutencia
atingida pela desordem mas em um procedimento judiciaacuterio que tinha iniacutecio com uma
denuacutencia privada comporta uma acusaccedilatildeo precisa e se conclue com a condenaccedilatildeo formal Um
procedimento judiciaacuterio que corresponde perfeitamente a cognitio extra ordinem234 um
processo criminal de natureza inquisitorial afirmado durante o principado para crimes e que
tinha formas diversas daqueles previstos na ordo iudiciorum que nas proviacutencias eram tidos
pelos governadores delegados pelo princeps No entanto diante da ausecircncia de uma
legislaccedilatildeo clara sobre o que fazer com os cristatildeos Pliacutenio recorre a ius coertionis para
desestimular os adeptos dessa pravam et immodicam que desrespeitam o magistrado para
sustentarem seu credo Eacute preciso considerar com certo cuidado a teoria derivada da obra de E
Le Blant235 de que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais
existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea
maiestatis Pliacutenio primeiramente julgou os cristatildeos por meio da lei local que proibia as
assembleias entre o povo poreacutem diante da correccedilatildeo por parte dos cristatildeos apontada pelo
231 Pliacutenio Epistolas X962-3 232 Ep X98 233 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 122-123 234 Tido de processo que substitui o processo padratildeo Eacute provaacutevel que soacute tenha se oficializado com forma instituiacuteda de processo no seacuteculo IV O julgamento dos cristatildeos no seacuteculo II seria um processo semelhante 235 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229
44
proacuteprio governador em sua carta ele natildeo sabia exatamente como punir os que se negavam a
desprezar agravequela superstitio Para Jossa236 estaacute evidente que a condenaccedilatildeo se efetiva diante da
profissatildeo da feacute cristatilde natildeo aos delitos a esse nome associados
O cristianismo natildeo eacute condenado como superstitio externa Uma religiatildeo estrangeira
poderia ser socialmente suspeita mas isso natildeo faz com que seja judicialmente perseguida E
natildeo eacute o seu caraacuteter baacuterbaro que lhe rende ilicidade Superstio externa e barbara o judaiacutesmo
era de fato religio licita Os romanos consideravam superstitio toda forma religiosa e toda
praacutetica cultural que natildeo correspondia agravequela transmitida pelos seus antepassados e que natildeo
eram munidas de puacuteblico reconhecimento Todas as praacuteticas religiosas de caraacuteter privado
individuais ou enraizadas em certos grupos sociais como magos ou adivinhos eram dessa
forma rotuladas Religiotildees e cultos puacuteblicos estrangeiros ainda que constituiacutessem patrimocircnio
de um povo e fossem transmitidos desde os tempos mais antigos poderiam ser tachados de
superstitio237 Segundo Jossa238 exprime-se desse modo a diferenccedila instintiva dos ciacuterculos
romanos abastados de uma consciecircncia nacional diante das religiotildees estrangeiras para os
quais os cultos natildeo romanos eram ldquonatildeo religiotildeesrdquo ou seja apenas superstitiones Externa
superstitio vem a ser toda forma ou manifestaccedilatildeo religiosa que natildeo pertenccedila originalmente agrave
tradiccedilatildeo romana ou pelo menos ao puacuteblico reconhecimento e agrave apreciaccedilatildeo dos ritos e crenccedilas
religiosas da parte dos romanos
A partir de Cicero superstitio passa a indicar tambeacutem qualquer forma excesiva
fanaacutetica de religiosidade que se contrapunha agrave moderaccedilatildeo da religio aquela manifestaccedilatildeo
religiosa tiacutepica de uma alma deacutebil (imbecillis) ou velha (anilis) que derivam em particular de
uma anguacutestia inuacutetil e absurda dos deuses239 A superstitio natildeo eacute apenas diversa mas se opotildee
sendo uma corrupccedilatildeo da religio (De natura Deorum II72)
Diante da convicccedilatildeo dos romanos de serem muito religiosos entre todos os homens de
serem inclusive religiosamente superiores aos demais fica impliacutecito que toda e qualquer
religiatildeo estrangeira eacute excessiva ou fanaacutetica que todas as religiotildees estrangeiras satildeo tambeacutem
superstitio e assim toda externa superstitio eacute tambeacutem barbara superstitio no sentido
embrionaacuterio do termo pela falta de racionalidade e moderaccedilatildeo que sempre deixam a
desejar240
236 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 123 237 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 131-159 238 Op Cit p 115 239 Ciacutecero De natura Deorum I117 Cf SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 240 JANSEN L F Op cit pp 145
45
Como jaacute foi apontado anteriormente aleacutem do proacuteprio Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio
tambeacutem adjetivaram negativamente a superstitio cristatilde Taacutecito escreveu que os cristatildeos eram
mal vistos pelas suas flagitia e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero
humano] Flagitia por sinal que Pliacutenio natildeo detectou A crenccedila desse grupo eacute considerada
uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]241 Analisando as consideraccedilotildees de Taacutecito
nota-se que a provaacutevel ofensa que os cristatildeos causavam aos deuses combatendo-os com a
propagaccedilatildeo da sua mensagem evangeacutelica e com abstenccedilatildeo de participaccedilatildeo nas celebraccedilotildees
puacuteblicas responsabilizava-lhes pelo rompimento da pax deorum que havia fragilizado a
capital do Impeacuterio tornando-a vulneraacutevel a tamanha cataacutestrofe da eacutepoca de Nero Segundo L
F Jansen242 o odio humani generis visto por Taacutecito sobre os cristatildeos ndash como antes sobre os
judeus ndash era um elemento que condenava essa superstitionis novae ac maleficae como
escreveu Suetocircnio243 tornando-a exitiabilis No entanto apologistas como Justino244
sustentaram que as flagitia atribuiacutedas aos cristatildeos eram fruto de ldquocaluacuteniasrdquo o que natildeo
acarretaria isenccedilatildeo de serem relativamente enquadrados nos crimes de sacrilegium245 ou
maiestas
No entanto ao confirmar a accedilatildeo de Pliacutenio Trajano ratifica a condenaccedilatildeo do nomen
christianum Isso deve estar ligado ao fato de o governador do Ponto-Bitiacutenia ter confirmado
os resultados positivos desse tipo de condenaccedilatildeo que visava desestimular a aderecircncia ao grupo
cristatildeos garantindo a manutenccedilatildeo da religiatildeo tradicional a uma medida moderada que
impedisse falsas denuacutencias e o cometimento de injusticcedilas O que natildeo significa que Trajano
tenha empreendido uma poliacutetica de toleracircncia aos cristatildeos dificultando as denuacutencias como em
alguns momentos parece sugerir Pedro Barcelograve246
Euseacutebio247 explora o fato de Trajano ter determinado que os cristatildeos natildeo deveriam ser
buscados (conquirendi non sunt) para assim construir uma ldquotradiccedilatildeo favoraacutevelrdquo aos fieacuteis Ele
confirma que Trajano promulga um decreto para que os cristatildeos natildeo fossem perseguidos Tal
medida eacute interpretada como o fator importante para a reduccedilatildeo parcial da perseguiccedilatildeo naquela
241 Anais XV44 242 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 145 243 De Vita Caesarum Vita Neronis 162 244 II Apol 82 245 Este caso envolveria um crime especiacutefico contra o patrimocircnio religioso pagatildeo mas natildeo haacute sinais evidentes no na primeira metade do II seacuteculo cf ROBINSON OF The criminal Law of ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 passim 246 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim 247 Histoacuteria Eclesiaacutestica III231-3
46
eacutepoca Mas essas vantagens que Euseacutebio vecirc na recomendaccedilatildeo de Trajano se reduzem ao fato
de ele natildeo admitir que os cristatildeos sejam levados em juiacutezo mediante denuacutencias anocircnimas
Mesmo assim os incocircmodos locais permaneceram Euseacutebio escreve ldquoAlgumas vezes eram as
populaccedilotildees outras as proacuteprias autoridades locais que preparavam os asseacutedios contra noacutes de
forma que ainda que sem perseguiccedilotildees manifestas acenderam-se focos parciais segundo as
proviacutenciasrdquo248 Por outro lado em grande medida influenciado por Meacuteliton de Sardes249 que
escreveu a Marco Aureacutelio Euseacutebio ratifica a tradiccedilatildeo cristatilde que destaca Nero e Domiciano
como grandes perseguidores da Igreja250 Eacute interessante a tradiccedilatildeo cristatilde relacionar as accedilotildees
anticristatildes a ldquomaus imperadoresrdquo Com isso tenta-se reproduzir a ideia de que perseguir os
cristatildeos eacute seguir os passos de tiranos Todavia quando se procuram as raiacutezes das hostilidades
imperiais com os cristatildeos faz-se necessaacuterio ter em mente que por vaacuterias regiotildees do Impeacuterio os
atritos envolvendo o combate aos cristatildeos emergem do processo de expansatildeo da comunicaccedilatildeo
da mensagem apelativa cristatilde e das transformaccedilotildees reivindicadas e provocadas por ela nas
tradiccedilotildees e no comportamento das pessoas
Desse modo deixando de lado a hipoacutetese de Marta Sordi251 sobre um senatus
consultum na eacutepoca de Tibeacuterio que teria desaprovado o reconhecimento de Cristo a
contragosto do Imperador eacute preciso lidar com o institutum neronianum252 tambeacutem
mencionado por Tertuliano como a primeira hostilidade incisiva do Impeacuterio contra os
cristatildeos Mas esta peculiar expressatildeo empregada por Tertuliano natildeo se refere a uma lei e sim
a uma accedilatildeo de Nero E a accedilatildeo de Nero neste caso teria interesses particulares e usa os cristatildeos
como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo Mesmo que as flagitia cristatildes se fundamentem em caluacutenias
originaacuterias dos atritos populares a superstitio cristatilde natildeo poderia representar algo aceitaacutevel aos
olhos dos romanos devido ao seu caraacuteter exclusivista e seu desprezo pela vida puacuteblica ligada agrave
religiatildeo tradicional Em defesa dos cristatildeos poucos anos mais tarde Justino escreveu ldquoEsta eacute
a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo
oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos sepulcros nem
celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo (I Apol 242) Aleacutem disso seria uma incriacutevel contradiccedilatildeo
sustentar que existia uma lei geral em vigor que determinava a pena capital para os cristatildeos e
248 Hist EclesIII232 249 ldquoEntre todos somente Nero e Domiciano persuadidos por alguns homens maleacutevolos quiseram caluniar nossa doutrina e acontece que deles derivou por costume irracional a mentira caluniosa contra tais pessoasrdquo (apud Euseacutebio Hist EclesIV239) 250 Hist Ecles III171 201-9 221-8 251 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968 252 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4
47
ser necessaacuterio admitir que Trajano recomenda que os cristatildeos natildeo sejam perseguidos e que
apenas os casos mais precisos sejam examinados
A resposta de Trajano alegando ldquonatildeo eacute possiacutevel constituir por assim dizer algo
universal que possua forma fixardquo253 pode servir como evidecircncia de que natildeo existia uma lei
geral para julgar os cristatildeos Todavia Roman254 considera que a foacutermula neque enin
universum deve ser relativizada em funccedilatildeo de um marco geograacutefico concreto o da proviacutencia
Ponto-Bitiacutenia e em relaccedilatildeo agrave diversidade de status juriacutedico e de situaccedilotildees existentes nessa
regiatildeo que motivam a correspondecircncia entre Pliacutenio e o Imperador Um exemplo dessa
preocupaccedilatildeo aparece quando se fala da constituiccedilatildeo de um evranouj (sociedade de seguros
muacutetuos) em Amisos255 Trajano desaprovando a ideia responde
Se as leis de Amisos de acordo com as obrigaccedilotildees do tratado lhe datildeo direito a ter uma associaccedilatildeo de seguros muacutetuos natildeo podemos proibir que a tenham tanto mais se tal sociedade natildeo procede a organizar tumultos e reuniotildees iliacutecitas senatildeo para sustentar os mais pobres Nas cidades restantes que estatildeo submetidas a nosso direito praacuteticas desse tipo devem ser proibidas []256
Roman257 estaacute correto em considerar que Trajano potildee em praacutetica um tipo de
disposiccedilatildeo que tende a fazer frente aos problemas sociais provinciais que encontram uma
ampla expressatildeo na formaccedilatildeo de heterias Esta poliacutetica encontra uma limitaccedilatildeo na situaccedilatildeo da
proviacutencia Ponto-Bitiacutenia com a existecircncia de cidades livres e federadas que se autorregulam
Poreacutem a hipoacutetese de Roman apresenta limitaccedilotildees Ele considera que tal poliacutetica
administrativa com respeito aos cristatildeos constituiria uma exceccedilatildeo em suas disposiccedilotildees sobre
as associaccedilotildees no Ponto-Bitiacutenia Esta exceccedilatildeo natildeo se explica em funccedilatildeo da diversidade de
status juriacutedico das cidades existentes nessa proviacutencia mas estaacute relacionada ao caraacuteter peculiar
das reuniotildees das comunidades cristatildes que natildeo consistiam um perigo ao Impeacuterio Roman segue
a hipoacutetese de De Robertis258 e chega a alegar que as reuniotildees cristatildes eram consideradas licita
A proposiccedilatildeo de Roman falha basicamente em natildeo compreender que a aprovaccedilatildeo por
parte de Trajano dos atos de execuccedilatildeo da pena capital sobre os cristatildeos desempenhada por
Pliacutenio estaacute diametralmente oposta a uma hipoteacutetica licenccedila agrave religiatildeo cristatilde O que descarta
qualquer vestiacutegio de simpatia romana pelos cristatildeos Aleacutem disso Pliacutenio havia informado ao
imperador que os cristatildeos haviam deixado de se reunir tendo em vista as disposiccedilotildees do edito
253 neque enim in universum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest (Ep X98) 254 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 233-234 255 Ep X92 256 Pliacutenio Ep X94 257 Op cit pp 233-234 258 ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89
48
recente Quando Trajano aponta que seria inadequado estabelecer uma norma fixa para julgar
os cristatildeos ele estaacute se referindo agraves interrogaccedilotildees levantadas por Pliacutenio questionando sobre a
necessidade de se fazer distinccedilatildeo entre jovens e idosos satildeos e doentes romanos e natildeo
romanos Desse modo o imperador estaacute de acordo que o magistrado use de seus poderes
constituiacutedos para fazer as distinccedilotildees necessaacuterias sem que se fixe uma norma universal
Giorgio Jossa259 faz uma siacutentese das teorias baacutesicas sobre as accedilotildees anticristatildes no
periacuteodo de Trajano e desenvolve uma avaliaccedilatildeo que tem em vista a complexidade da situaccedilatildeo
poliacutetica da religiatildeo cristatilde e da peculiaridade do procedimento criminal do direito romano Esta
explicaccedilatildeo comporta certa mescla de todas as trecircs hipoacuteteses aceitaacuteveis Assim Jossa considera
que o cristianismo representa antes de tudo um problema de ordem puacuteblica que dependia em
parte da sensibilidade dos magistrados por meio do uso da ius coertionis num momento onde
jaacute existia uma legislaccedilatildeo especiacutefica contra os cristatildeos e onde o nomen christianum carregava
subentendido os crimes de sacrilegium e maiesta Exceto pela sua insistecircncia em admitir que
havia uma lei especiacutefica contra os cristatildeos sua anaacutelise torna-se proveitosa em funccedilatildeo de sua
sensibilidade agrave questatildeo da ordem puacuteblica enviesada nesse dilema juriacutedico Se o nomen
christianum carregava subentendido crimes comuns eles se manifestam com a pressatildeo civil
procurando expelir esse corpo estranho da sociedade pagatilde e obriga os magistrados a
procurarem um enquadramento que ratifique a condenaccedilatildeo daquilo que para muitos do povo
estava evidente que os cristatildeos deviam ser condenados
Em siacutentese eacute mais prudente admitir que as condenaccedilotildees de outrora sobre os cristatildeos
davam margem para que os magistrados em outras regiotildees do Impeacuterio eventualmente
condenassem os cristatildeos que lhes fossem entregues normalmente devido a atritos populares
Isso justificaria a incerteza de Pliacutenio em condenar os cristatildeos Eacute o uso de se condenar os
cristatildeos em decorrecircncia desde a eacutepoca de Nero da opiniatildeo puacuteblica somada agrave imagem
negativa que a classe culta tinha desses religiosos que atribui flagitia aos fieacuteis tornando o
nomen christianum razatildeo de condenaccedilatildeo Algo que eacute negado pelos apologistas com
veemecircncia no II seacuteculo e que seraacute avaliado por Adriano subsequentemente a Trajano
259 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125
49
22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano
A Histoacuteria Augusta (51) aponta que Adriano foi um imperador dedicado agrave
manutenccedilatildeo da paz no mundo mas tatildeo logo as revoltas estouraram em regiotildees variadas Os
samaritanos se envolveram em guerra os britacircnicos davam sinais de que natildeo permaneceriam
sob o domiacutenio romano o Egito foi jogado em desordem por distuacuterbios e finalmente a Liacutebia e
a Palestina mostraram espiacuterito de rebeliatildeo
Nos anos 130 e 131 Adriano partiu para o Oriente No plano das suas reformas estava
a revitalizaccedilatildeo da cidade de Jerusaleacutem que havia sido destruiacuteda na guerra judaica de 66 a 73
Natildeo eacute agrave toa que ficou reconhecido como promotor da vida urbana no Impeacuterio valorizando as
obras puacuteblicas (aacutegoras templos teatros anfiteatros aquedutos portos ou estradas) Os
investimentos na Judeia faziam parte de sua estrateacutegia de integraccedilatildeo e romanizaccedilatildeo
Os judeus sofreram em muitos aspectos os efeitos das transformaccedilotildees culturais Mas a
introduccedilatildeo de elementos estrangeiros e a construccedilatildeo de um templo a Juacutepiter na cidade sagrada
gerou protestos260 A proibiccedilatildeo da circuncisatildeo261 contribuiu para acirrar os acircnimos revoltosos
No entanto segundo a anaacutelise de J M C Copete262 se esse foi o estopim da guerra as causas
que levaram o povo judeu e alguns outros provincianos a lutar natildeo poderiam estar apenas na
devoccedilatildeo ao seu Deus tradicional Yahveacute A insensatez romana em ignorar os problemas
estruturais da regiatildeo tais como a pobreza endecircmica reinante e as proacuteprias rivalidades entre
sacerdotes e rabinos na regiatildeo proporcionaram as condiccedilotildees para esse movimento que se
levantou como uma ameaccedila agrave ordem
Euseacutebio escreve que
Rufo governador da Judeacuteia com o reforccedilo militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade marchou contra eles Aniquilou em massa milhares de homens de crianccedilas e de mulheres e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territoacuterios agrave escravidatildeo Mandava entatildeo sobre os judeus um chamado Bar Kosibas que significa ldquofilho da estrela263
A religiatildeo dos judeus era o elemento fundamental de sua identidade Havia interaccedilatildeo
com os demais povos do Impeacuterio mas qualquer tipo de resistecircncia em funccedilatildeo dessa
260 Cassius Dio His Rom 121-3 261 Hist Aug 142 262 Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 263 His Ecles IV61-2
50
identidade poderia deixar as autoridades romanas ressabiadas Taacutecito264 fala da diferenccedila de
ambos os mundos O judaiacutesmo parecia-lhe uma supersticcedilatildeo absurda soacuterdida e depravada que
gerava costumes contraacuterios aos dos outros povos A abstenccedilatildeo do culto ao imperador por parte
dos judeus poderia simbolizar sua rejeiccedilatildeo ao Impeacuterio e agrave cultura greco-romana mas natildeo se
deve pensar que os judeus estavam blindados agrave cultura helecircnica e que as oligarquias judaicas
se isolassem dos negoacutecios com as demais proviacutencias do Impeacuterio265
Uma das preocupaccedilotildees de Justino em sua I Apologia eacute deixar claro que os judeus
haviam se tornado os principais opositores dos cristatildeos e que muitos foram vitimados por Bar
Kosiba que os mandava ldquosubmeter a terriacuteveis torturasrdquo266 Natildeo haacute certeza sobre as razotildees
dessa oposiccedilatildeo e se ela diferia da rivalidade entre judeus e cristatildeos constatada no I seacuteculo
Todavia aleacutem desse tipo de accedilatildeo anticristatilde haacute indiacutecios de que os tribunais locais recebessem
queixas sobre os cristatildeos e um nuacutemero significativo de fieacuteis era levado agrave morte Tal como a feacute
dos judeus a religiatildeo dos cristatildeos era considerada uma superstitio reprovaacutevel que apresentava
resistecircncia agrave vida puacuteblica no Impeacuterio ou seja que natildeo se envolviam em teatros jogos e todo
tipo de reverecircncias aos deuses pagatildeos Para evitar quaisquer duacutevidas quanto agrave identidade entre
cristatildeos e judeus o apologista faz essa interpolaccedilatildeo
Em funccedilatildeo das condenaccedilotildees sofridas pelos cristatildeos durante o governo de Adriano
Quadrato e Aristides escreveram-lhe apologias267 Se a teoria de Paul Andriessen268 for
tomada por certa e a Carta a Diogneto for reconhecida como a apologia perdida de Quadrato
reconhecer-se-aacute a disposiccedilatildeo tanto nesse escrito quanto na Apologia de Aristides em
apresentar algumas das principais distinccedilotildees entre as crenccedilas dos cristatildeos dos judeus e dos
pagatildeos A principal queixa na Carta a Diogneto leva a crer que o ldquonomerdquo cristatildeo era um
elemento chave para a condenaccedilatildeo269 Sua queixa faz pensar que as variaccedilotildees nos julgamentos
nos tribunais locais pudessem proporcionar um destino distinto aos cristatildeos ldquoPor isso
condeno tambeacutem as vossas leis Deveria haver uma soacute constituiccedilatildeo poliacutetica comum para
todos agora haacute tantas legislaccedilotildees quantas cidades existem e assim acontece que o que entre
uns eacute vergonhoso entre outros eacute tido por honrosordquo270
264 Taacutecito Historia V 3-6 Cf Strabatildeo Geografia XVI237 Quintiliano Institutio Oratoria II7 Juvenal Satiras III 13-6 VI 541-7 96-106 Plutarco De Superstitione 8 Cassius Dio Hist Rom 37174 265 Josefo Antiguidades Judaicas XVIII 23 Guerras dos Judeus II118 266 I Apol 316 267 Euseacutebio His Ecles IV31-3 268 Lrsquoapologie de Quadratus conserve sous le nom drsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedievale 13 1946 pp 5-260 Id Lrsquoepilogue de lrsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedieacutevale 14 1947 pp 121-156 269 Carta a Diogneto 271ss 270 Carta a Diogneto 281ss
51
O rescrito de Adriano ao prococircnsul da Aacutesia a partir de 124125 dC Minuacutecio
Fundano oferece uma ideia sobre sua forma de lidar com os cristatildeos O texto foi conservado
na Apologia de Justino (I Apol 68) no texto de Euseacutebio271 e por Rufino na versatildeo latina
Adriano havia recebido a carta de Serecircncio Graniano272 antecessor de Minuacutecio e julgou ser
importante responder essa demanda a fim de ldquoevitar que se perturbem os homens e que os
delatores encontrem apoio para suas maldadesrdquo273 Adriano recomenda que
se os provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo que respondam a ela diante do tribunal deveratildeo ater-se a esse procedimento e natildeo a meras peticcedilotildees e gritarias Com efeito eacute muito mais conveniente que se algueacutem pretende fazer uma acusaccedilatildeo examines tu o assunto Em conclusatildeo se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delito Mas por Heacutercules se a acusaccedilatildeo eacute caluniosa castiga-o com maior severidade e cuida para que natildeo fique impune (I Apol 688-10)
As interpretaccedilotildees desse rescrito satildeo divergentes Em uma primeira linha interpretativa
representada por exemplo por B Orgeval H Gregoire L Regibus e M Sordi274 acredita-se
que esse rescrito assegurou a liberdade de algum tipo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos por
professarem sua religiatildeo e providenciou que fossem punidos apenas por crimes cometidos
contra as leis comuns Representantes de outro ponto de vista como C Callewaerd J Moreau
e W Schimid275 sustentam que o rescrito natildeo concede aos cristatildeos nenhuma liberdade
O rescrito foi lido por Justino de um modo favoraacutevel aos cristatildeos como se de fato o
Imperador tivesse agido decididamente a favor dos cristatildeos A esse documento fez alusatildeo
Meliton bispo de Sardes276 Euseacutebio agiu de modo semelhante em sua proacutepria leitura do
rescrito de Trajano e seguiu a Justino em sua interpretaccedilatildeo do rescrito de Adriano No entanto
como mostrou Paul Kereszts277 a interpretaccedilatildeo do apologista difere do sentido original do
rescrito Segundo a interpretaccedilatildeo de Justino Adriano teria proibido que os cristatildeos fossem
271 His Ecles IV 9 272 O nome correto eacute Q Licinio Silvano Graniano cocircnsul a partir de 106 dC e pro-cocircnsul da Aacutesia a paritir de 122123 dC MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 132 273 I Apol 687 Eus Hist Ecles IV9 274 ORGEVAL B LEmpereur Hadrien oeuvre leacutegislative et administrative ParisGrenoble Domat MontchrestienImpr De Allier 1950 pp 302-307 GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 pp 138-139 REGIBUS L de Storia e Diritto Romano negli Acta Martyrum Didascalos 1926 pp 147-148 SORDI M I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349 275 CALLEWAERT C Le Rescrit dHadrien a Minucius Fundanus Reviste dHistoire et de Litterature 6l 8 1903 pp 152-189 MOREAU J La Persecution du Christianism e dans lEmpire Romain Paris Presses Universitaires de France 1956 p 48 SCHIMID W The Christian Re-Interpretation of the Rescript of Hadrian Maia 71955 pp 5-13 276 Euseacutebio Hist EclesIV 2610 277 Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129
52
punidos simplesmente mediante a confissatildeo de que eram ldquocristatildeosrdquo e teriam recomendado
que fossem julgados pelos crimes como quaisquer outros e natildeo por suas crenccedilas
Segundo C G Roman278 a postura de Adriano em advertir a Minuacutecio Fundano a nada
julgar sem denuacutencia e acusaccedilatildeo formal contra os cristatildeos dava continuidade agrave poliacutetica de
Trajano Tomando essa perspectiva como exemplo deve-se destacar que a interpretaccedilatildeo do
rescrito de Adriano dependeraacute significativamente da interpretaccedilatildeo do rescrito de Trajano e
talvez deva remontar ateacute um pouco antes Roman interpretou as recomendaccedilotildees deste uacuteltimo
como sendo positivas para com os cristatildeos e sua tendecircncia eacute reconhecer o aprimoramento das
limitaccedilotildees das accedilotildees anticristatildes
J Beaujeu279 considera que Adriano procedeu a uma grande obra de restauraccedilatildeo
religiosa que obedecia aleacutem das necessidades religiosas a objetivos poliacuteticos agrave medida que
tendia a uma unificaccedilatildeo religiosa das distintas proviacutencias do Impeacuterio debaixo da eacutegide dos
cultos Greco-romanos mediante a criaccedilatildeo de uma religiatildeo do Estado siacutentese destes uacuteltimos
cultos com as religiotildees orientais com a originalidade dos diversos grupos sociais e eacutetnicos
que formavam o Impeacuterio
De fato Adriano foi um imperador interessado em conhecer a cultura do vasto
Impeacuterio Por volta do ano de 124 iniciou-se nos misteacuterios Eleusis importante oraacuteculo do
mundo grego revelando um interesse miacutestico que acabou por conduzi-lo tambeacutem ao
conhecimento misterioso da religiatildeo egiacutepcia Os cultos tradicionais de Roma natildeo receberam
menor atenccedilatildeo certamente para manter uma relaccedilatildeo amistosa com os integrantes do universo
senatorial Construiu um templo a Venus em Roma no Foro Romano no ano de 121 e mandou
reconstruir o Panteatildeo de Marco Agripa um dos mais importantes colaboradores de
Augusto280 No entanto isso natildeo permite ver em seu rescrito uma accedilatildeo proacute-cristatilde que
estivesse em consonacircncia com a ideia sustentada por Marta Sordi281 de que Adriano teve em
mente reconhecer a Cristo entre os outros deuses e lhe oferecer um templo conforme anota a
Histoacuteria Augusta (Alexandre Severus 436-7) Essa passagem se assemelha agrave lenda de que
antes de propor a construir a cidade de Elia Adriano havia empreendido um projeto de
reconstruccedilatildeo conjunta do templo de Jerusaleacutem com os judeus mas a oposiccedilatildeo dos samaritanos
278 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 230 279 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp150ss 280 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 43 281 I Cristiani e Lrsquoimpero Romano Ed rev e atual Milano Jaca Book 2011 p 98
53
fez com que os planos sofressem mudanccedilas draacutesticas282 Esse tipo de tendecircncia pode chegar a
ponto de admitir como sustentou T Mommsem283 que Adriano estava proacuteximo a elevar a feacute
cristatilde a uma religio licita
As comparaccedilotildees entre as accedilotildees de Trajano e Adriano satildeo muito importantes para o
desenvolvimento de uma teoria coerente que explique a condiccedilatildeo dos cristatildeos nesse iniacutecio do
II seacuteculo todavia natildeo eacute necessaacuterio admitir nenhuma continuidade entre ambos em razatildeo dos
rescritos G Jossa284 alerta que os rescritos natildeo satildeo ldquoleisrdquo mas recomendaccedilotildees a governantes
locais e nem um desses imperadores estabeleceu normas gerais sobre o julgamento dos
cristatildeos
Como foi visto anteriormente ao responder a demanda de Pliacutenio Trajano admitiu o
procedimento daquele governador em condenar os cristatildeos mediante a confissatildeo
recomendaccedilatildeo que fazia pressupor que o nomen christianum representava a razatildeo da
condenaccedilatildeo que visava desestimular a adesatildeo e expansatildeo dessa superstitio Naquela ocasiatildeo o
imperador fez questatildeo de lembrar que as denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas Pouco
tempo depois Adriano precisa admoestar os governantes da Aacutesia Menor a natildeo serem movidos
por ldquomeras peticcedilotildees e gritariasrdquo285 A condenaccedilatildeo aos cristatildeos provocou abusos nas
condenaccedilotildees Se bastasse estender o dedo para algueacutem e acusaacute-lo de cristianismo para
conseguir sua condenaccedilatildeo essa seria uma forma eficaz de eliminar qualquer pessoa
indesejada ainda que ela natildeo fosse cristatilde Adriano entatildeo reconhece que a questatildeo levantada
por Graniano natildeo poderia ficar sem resposta pois os efeitos da desordem seriam extensos
Embora a carta de Graniano natildeo tenha sido preservada eacute possiacutevel deduzir que se o imperador
recomenda a condenaccedilatildeo dos ldquomaleacutevolosrdquo delatores dos cristatildeos que indevidamente os
caluniavam visando agrave puniccedilatildeo isso significa que esse tipo de episoacutedio jaacute havia sido
constatado naquela regiatildeo Nenhuma norma universal eacute estabelecida ou mencionada O
governador eacute designado como o responsaacutevel por examinar as denuacutencias formais e averiguar os
casos
Fica evidenciada a obrigaccedilatildeo por parte de quem realiza a denuacutencia de apresentar ele
mesmo provas sobre seu testemunho diferenciando-se um pouco da medida de Trajano
segundo a qual o governador deveria se responsabilizar pela investigaccedilatildeo O castigo aos falsos
282 Midash Berersquoshit Babba 6410 e Epiacutestola de Barnabeacute 163-4 apud COPETE J M C Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII CONGRESSO INTERNACIONAL GIREA-ARYS IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 283 Der religonsfrevel nach der roumlmischen Recht Historische Zeitschrift 64 1890 pp 389-429 284 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125 285 I Apol 688
54
acusadores era praacutetica usual no direito romano286 Neste ponto surge a seguinte questatildeo Os
acusadores deveriam provar que os cristatildeos por eles acusados cometiam a infraccedilatildeo de serem
ldquocristatildeosrdquo ou que infringiam outras leis comuns subentendidas pelo seu nomen
A expressatildeo287 ei tij ou=n kathgorei kai deiknusi ti para touj nomouj prattontaj(
ou[twj Diorixw kata thn Dunamin tou a`marthmatoj( [ se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e
demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade
do delito ] (I Apol 6810) eacute entendida de modo positivo ou negativo dependendo da corrente
de interpretaccedilatildeo No entanto o proacuteprio rescrito tem algo a dizer em um delineamento mais
claro sobre essa questatildeo A especificaccedilatildeo de que os acusadores deveriam demonstrar que os
cristatildeos acusados agiam contra as leis [touj nomoj prattontaj] eacute uma medida para evitar as
sukofantiaj [caluacutenias] Por isso ele recomenda que Minuacutecio Fundano examine os casos e ldquose
a acusaccedilatildeo eacute caluniosa [castigue-o]288 com maior severidade e [cuide]289 para que natildeo fique
impunerdquo (I Apol 6810)
Uma nova questatildeo incide sobre o significado dessa acusaccedilatildeo ldquocaluniosardquo Justino
interpretou esse trecho como as acusaccedilotildees que maculavam injustamente a imagem dos
cristatildeos atribuindo-lhes canibalismo ateiacutesmo maiestas ou outras coisas desse tipo Segundo
esse tipo de interpretaccedilatildeo Adriano estaria reprovando a condenaccedilatildeo pelo nomen christianum
e recomendando que os governantes examinassem se existia de fato algum crime contra as
leis Ateacute esse ponto essa medida natildeo significaria nenhuma benevolecircncia para com os cristatildeos
apenas garantiria que fossem julgados como quaisquer outros no Impeacuterio sem que os
magistrados fossem movidos por gritarias puacuteblicas mas que se detivessem aos processos
formais Todavia uma segunda hipoacutetese eacute cogitada
Nessa hipoacutetese as acusaccedilotildees ldquocaluniosasrdquo agraves quais Adriano se refere poderiam natildeo ser
do mesmo tipo das que Justino tinha em mente em suas Apologias Elas poderiam se referir agrave
proacutepria acusaccedilatildeo de cristianismo lanccedilada sobre algueacutem com o intuito de levaacute-lo agrave condenaccedilatildeo
sob uma lei especiacutefica contra os cristatildeos Nessa perspectiva a exigecircncia de Adriano para que
se examinasse a comprovaccedilatildeo da denuacutencia seria uma medida semelhante agravequela tomada por
Pliacutenio exigindo que os acusados sacrificassem aos deuses e amaldiccediloassem a Cristo para que
assim se pudesse verificar se eram realmente cristatildeos A diferenccedila eacute que natildeo eacute possiacutevel
286 ROBINSON O F The criminal Law of ancient Rome Baltimore John Hopkins University Press 1996 pp 8100 287 O rescrito em latim que Euseacutebio dizia ter sido anexado originalmente por Justino foi substituiacutedo no MS Par Grae 450 pela traduccedilatildeo grega de Euseacutebio (MINNS D PARVIS P Justin philosopher and martyr apologies New York Oxford University Press 2009 p 265) 288 Adaptaccedilatildeo de ldquocastiga-ordquo para melhor leitura da frase 289 Originalmente ldquocuidardquo
55
conferir a carta de Graniano para fazer algum tipo de comparaccedilatildeo Desse modo natildeo haveria
nenhuma diferenccedila entre a posiccedilatildeo de Trajano e Adriano exceto a recomendaccedilatildeo desse uacuteltimo
para que os caluniadores fossem punidos Para sustentar essa teoria poreacutem torna-se
necessaacuterio admitir que o rescrito de Adriano foi sutilmente modificado pelos cristatildeos para
convertecirc-lo a favor da feacute cristatilde Se por um lado eacute faacutecil supor a modificaccedilatildeo desse documento
ndash o que poderia ter ocorrido ateacute em funccedilatildeo da sua traduccedilatildeo do latim para o grego ndash por outro
lado natildeo haacute outro documento desse tipo que comprove tal adulteraccedilatildeo e nem mesmo que
ratifique uma accedilatildeo intolerante de Adriano para com os cristatildeos Outra hipoacutetese deve ser
examinada e agora deveraacute levar em consideraccedilatildeo as leis agraves quais o rescrito se refere
No texto grego de Euseacutebio que agora aparece na I Apologia de Justino conforme o
MS A a conjugaccedilatildeo no particiacutepio plural presente ativo masculino do verbo prattontaj estaacute
relacionada agrave frase anterior Aproximando as frases o sentido que se tem eacute o seguinte ldquose os
provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo
que respondam a ela diante do tribunal [] faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam
alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delitordquo290 O texto
latino de Rufino eacute mais especiacutefico com essa associaccedilatildeo Si quis igitur accusat et probat
adversum leges quicquam agere memoratos homines pro merito peccatorum etiam suplicia
statues291 Nesse caso memoratos homines [homens mencionados] eacute uma expliacutecita referecircncia
aos Christianos Todavia tanto C Munier292 quanto D Minns e P Parvis293 ignoram a
palavra memoratos294 traduzindo o texto como se o rescrito se referisse ao modo geral de se
proceder em um julgamento ou seja a todos os homens cujos crimes fossem confirmados
Essa hipoacutetese forccedila o texto pois neste caso uma norma geral faria com que qualquer denuacutencia
precisasse ser provada pelo delator sob o risco de ser punido severamente caso natildeo fosse
confirmada pelas autoridades Desse modo esse tipo de sustentaccedilatildeo se converte em absurdo
Admitir que Adriano estivesse realmente orientando Minuacutecio Fundano a julgar
pessoalmente as denuacutencias contra os cristatildeos e exigir provas dos delatores que confirmassem
o descumprimento das leis natildeo significa que o imperador demonstrava simpatia pelo
cristianismo Sua preocupaccedilatildeo eacute manter a ordem e evitar os abusos Era preciso impedir que
290 I Apol 688-10 291 Apud MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 133 292 Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 pp 314-317 293 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 44264-267 294 Participio plural passado perfeito masculino acusativo que significa ldquotrazido agrave lembranccedilardquo ldquoditordquo ldquomencionadordquo ldquorelacionadordquo etc LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project)
56
as manifestaccedilotildees puacuteblicas solapassem o procedimento correto dos tribunais Haacute sim uma
diferenccedila significativa entre a postura de Trajano e a de Adriano mas ela natildeo torna o segundo
um amigo ou inimigo dos cristatildeos Cabe lembrar que uma das questotildees levantadas por Pliacutenio
a Trajano era se os cristatildeos deveriam ser punidos pela confissatildeo desse nome ou pelos crimes
subentendidos Naquele caso especiacutefico da Bitiacutenia uma das infraccedilotildees era quando os cristatildeos
se reuniam em seus cultos passar por cima da lei que impedia as reuniotildees e associaccedilotildees
gerais Abandonada essa praacutetica o governador natildeo via nenhum crime ou ameaccedila no modo de
ser dos cristatildeos e natildeo encontrou outra razatildeo para puni-los senatildeo pela contumaacutecia que
apresentavam diante de um magistrado em natildeo negar a feacute que era estranha aos olhos de Pliacutenio
A resposta de Trajano ainda que lacocircnica ratificou o procedimento de Pliacutenio e mesmo sem se
identificar um ldquocrimerdquo especiacutefico aprovou a condenaccedilatildeo dos cristatildeos pelo seu nomen para
desestimular a superstitio estranha e incentivar a retomada do culto puacuteblico pagatildeo Adriano
por outro lado tambeacutem sem fazer referecircncia a qualquer lei especiacutefica contra os cristatildeos
orienta os governantes a condenarem a todos aqueles que comprovadamente estivessem
infringindo a lei Tudo indica que a Aacutesia estava sendo agitada por mobilizaccedilotildees puacuteblicas que
impeliam os magistrados contra os cristatildeos Essa eacute a razatildeo para os apologistas Quadrato e
Aristides escreverem tambeacutem O nuacutemero dos cristatildeos ainda natildeo era muito significativo para o
estabelecimento de uma lei geral
Conforme destacou Jossa295 os cristatildeos se confrontavam com a opiniatildeo puacuteblica
Dentre o povo emergiram acusaccedilotildees de incesto infanticiacutedio e outras coisas do gecircnero A
rejeiccedilatildeo aos deuses e o estranhamento ao mos romanorum e o seu odio humanum generis
faziam com que os cristatildeos se tornassem a causa das desgraccedilas no Impeacuterio diante dos olhos de
uma boa parte dos pagatildeos No periacuteodo de Adriano a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos era apenas uma
questatildeo de ordem puacuteblica que constrangia o governo romano a uma difiacutecil obra de mediaccedilatildeo
entre os vaacuterios grupos locais Era um aspecto da poliacutetica de pacificaccedilatildeo das proviacutencias A sua
preocupaccedilatildeo estaacute relacionada exclusivamente a manter a ordem puacuteblica nas proviacutencias e a
garantir a observacircncia rigorosa do direito296 A hostilidade aos cristatildeos e os crescentes
confrontos obrigavam os governadores a intervirem e a consultarem o imperador em casos
como esse em que as coisas ameaccedilavam sair do controle
295 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125132 296 Na Digesta XXII53 o jurista Callistrato se reporta a uma seacuterie de rescritos dos quais cinco satildeo de Adriano a governadores das proviacutencias sobre o modo como escutar os textos nos processos e sobre o valor de dar a eles testemunho cf tambeacutem Dig XLVIII27
57
As respostas de Trajano e Adriano mostram que a repressatildeo puramente local do
cristianismo tinha um caraacuteter descontiacutenuo e excepcional que natildeo impedia a nova religiatildeo de
estender-se pelo Impeacuterio fazendo novos adeptos
23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos
Durante o governo de Antonino Pio (governou de 138-161) os tribunais continuavam
a receber queixas esporaacutedicas da populaccedilatildeo sobre os cristatildeos Marco Aureacutelio297 reconheceu
seu conservadorismo e o descreveu como algueacutem profundamente devoto aos deuses
romanos298 e sempre atento ao cumprimento do proacuteprio dever no culto puacuteblico
Segundo Meacuteliton que escreveu nos tempos de Marco Aureacutelio Antonino Pio natildeo
empreendeu nenhuma modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo que viesse a abater a Igreja e que
repetidamente nos rescritos dirigidos aos tessalonicenses aos atenienses e a todos os gregos
recomendou ldquonatildeo inovar nada sobre os cristatildeosrdquo299
Na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio (IV13) aparece um rescrito de Antonino ao
conselho da Aacutesia Satildeo levantados alguns argumentos contra a autenticidade desse documento
Destacam-se principalmente os erros de titulaccedilatildeo Tambeacutem se alega que suas caracteriacutesticas
formais natildeo sejam proacuteprias dos escritos de Antonino Pio Aleacutem disso o documento apresenta
uma exaltaccedilatildeo ao cristianismo Isso faz com que alguns rejeitem total300 ou parcialmente301
esse documento No entanto as condiccedilotildees da eacutepoca corroboram com a ideia de que o
imperador tenha de fato deliberado sobre essa questatildeo e J Beaujeu302 natildeo vecirc nenhuma razatildeo
para duvidar da existecircncia de um rescrito de Antonino Pio G Jossa303 e C G Roman304
297 Pensamentos I16 298 Marco Aureacutelio Pensamentos VI3014 299 apud Euseacutebio His EclesIV2610 300 Cf SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 1954 pp 190ss SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 301 Cf FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 302 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp 279-329 303 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 148 304 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 228
58
admitem-no com reservas e P Keresztes305 sustenta que por haver um comentaacuterio tanto
negativo quanto positivo sobre os cristatildeos natildeo deveria se tratar de uma falsificaccedilatildeo O modo
como tal texto foi preservado na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio eacute controverso e merece um
exame cauteloso
Pela sequecircncia do texto entende-se que Euseacutebio falaraacute de Antonino Pio Ele anuncia o
nome de Antonino que tambeacutem foi uma forma de se referir a Marco Aureacutelio mas comeccedila a
citaccedilatildeo do texto com ldquoO imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto Armecircnio
pontiacutefice maacuteximo tribuno da plebe pela deacutecima quinta vez cocircnsul por trecircs vezes ao conciacutelio
da Aacutesia saudaccedilotildeesrdquo306 A secccedilatildeo de IV82-5 apresenta um comentaacuterio que dificilmente
poderia ser admitido como autecircntico por isso esta eacute a parte que sofre maior oposiccedilatildeo Trata-se
de uma repreensatildeo moral do imperador aos provincianos O nuacutecleo seguinte do texto agraves vezes
eacute admitido como histoacuterico como sustenta C G Roman307 Lecirc-se
Em favor destes jaacute escreveram a nosso diviniacutessimo pai muitos governadores das proviacutencias aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados a natildeo ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder puacuteblico de Roma Tambeacutem a mim muitos me falaram sobre eles e tambeacutem respondi seguindo o parecer de meu pai Mas se algueacutem persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles fique o acusado livre de encargos ainda que seja evidente que eacute cristatildeo por outro lado o acusador ficaraacute sujeito a castigo Publicado em Eacutefeso no concilio da Aacutesia (Hist Ecles IV136-7)308
O contexto e as evidecircncias internas mostram que o rescrito pretende ser de Antonino
Pio Em siacutentese o texto afirma que sob seu governo natildeo se modificou em nada o que foi
estabelecido por Adriano A liberaccedilatildeo de um cristatildeo acusado em funccedilatildeo da denuacutencia de outro
cristatildeo que insiste em levaacute-lo ao tribunal natildeo faz muito sentido Pode-se imaginar que
desavenccedilas entre cristatildeos fizessem com que um cristatildeo procurasse se livrar do seu adversaacuterio
denunciando-o agraves autoridades para que fosse condenado mas eacute inimaginaacutevel que essa fosse
uma preocupaccedilatildeo de um imperador pagatildeo Eacute provaacutevel tenha sofrido uma adaptaccedilatildeo cristatilde
Mesmo despertando ceticismo sobre sua autenticidade esse rescrito pode traduzir com
reservas a situaccedilatildeo dos cristatildeos daquela eacutepoca Neste caso a compreensatildeo da condiccedilatildeo dos
cristatildeos nesse periacuteodo depende em parte da compreensatildeo da postura de Adriano diante dos
cristatildeos Euseacutebio havia interpretado o rescrito de Adriano como uma medida que beneficiava
os fieacuteis e consequentemente vecirc como positivo o rescrito de Antonino Pio No entanto
consideram as conclusotildees especificadas sobre o rescrito de Adriano nesta pesquisa se Pio natildeo
305 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 306 Euseacutebio Hist Ecles IV131 307 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 230-231 308 Ibid
59
adicionou em nada agravequela determinaccedilatildeo os cristatildeos continuavam a serem viacutetimas de
condenaccedilotildees locais e os governantes tinham liberdade para julgar cada caso
Nesse periacuteodo ocorre o martiacuterio do Papa Teleacutesforo e o processo contra Tolomeu e
Luacutecio sob o prefeito de Roma Lollio Urbico mencionados na II Apologia de Justino (21ss)
O repuacutedio da novidade e irracionalidade da feacute dos cristatildeos aparece nos escritos de Eacutelio
Aristides309 e nas vozes populares inferiores referidas por Luciano (De morte Peregrini 11)
Sobre o martiacuterio de Policarpo haacute divergecircncias Jossa310 sustenta que ele padeceu sob Marco
Aureacutelio mas o tipo de perseguiccedilatildeo recebida natildeo foi diferente daquela pela qual padeceram os
cristatildeos condenados sob Antonino Pio Tumultos e agitaccedilotildees puacuteblicas foram problemas que
Adriano havia procurado resolver
As acusaccedilotildees de ldquoateiacutesmordquo sofridas pelos cristatildeos que aparecem na primeira parte do
rescrito satildeo pertinentes ao periacuteodo311 Esse tipo de acusaccedilatildeo levou o proacuteprio Justino a incluir
esse tema nas suas Apologias312 Eacute certo como destaca Keresztes313 que ldquoateiacutesmordquo natildeo era
um crime de fato E em segundo lugar diante das cataacutestrofes aqueles que professavam
orgulhosamente a inexistecircncia dos deuses pagatildeos tornavam-se a explicaccedilatildeo mais provaacutevel
para o distuacuterbio da pax deorum314 Haacute indiacutecios no rescrito de Antonino que esse temor dos
pagatildeos diante das forccedilas da natureza tambeacutem corroborava com o combate aos cristatildeos315
A principal queixa de Justino na deacutecada de 150 dC era a de que natildeo seria justo
algueacutem ser condenado simplesmente por professar ser ldquocristatildeordquo316 O apologista tece sua
reivindicaccedilatildeo considerando o que pensa ser ldquojustordquo e assim tambeacutem apresenta uma peticcedilatildeo
309 Aristides (Orationes XLVI309) fala dos cristatildeos como ldquoos iacutempios da Palestinardquo que se distanciavam dos costumes gregos e natildeo honravam os deuses 310 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125132 311 ldquoA estes estais empurrando para a agitaccedilatildeo uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateusrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV133) 312 I62 313 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 p 17 314 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam e comparais nossa situaccedilatildeo agrave suardquo (Hist Ecles IV134) [Os seguintes infortuacutenios e prodiacutegios ocorridos em seu reino a fome a qual jaacute mencionamos o colapso do Circus e o terremoto por meio do qual as cidades de Rodes e da Aacutesia foram destruiacutedas] Adversa eius temporibus haec provenerunt fames de qua diximus Circi ruina terrae motus quo Rhodiorum et Asiae oppida conciderunt quae omnia mirifice instauravit et Romae incendium quod trecentas quadraginta insulas vel domos absumpsit (Hist Aug Vita Antoninus IX1) Dion Cassius escreveu que ldquoNos dias de Antonino tambeacutem um terriacutevel terremoto ocorreu na regiatildeo da Bitinia e de Helesponto Vaacuterias cidades foram severamente danificadas ou caiacuteram em ruiacutenas em particular Cizicus e o templo de laacute que era o maior e mais belo de todos os templo foi lanccedilado abaixordquo (Hist Rom LXX 4) Ἐπὶ τοῦ Ἀντωνίνου λέγεται καὶ φοβερώτατος περὶ τὰ microέρη τῆς Βιθυνίας καὶ τοῦ Ἑλλησπόντου σεισmicroὸς γενέσθαι καὶ ἄλλας τε πόλεις καmicroεῖν ἰσχυρῶς καὶ πεσεῖν ὁλοσχερῶς καὶ ἐξαιρέτως τὴν Κύζικον καὶ τὸν ἐν αὐτῇ ναὸν microέγιστόν τε καὶ κάλλιστον ναῶν ἁπάντων καταρριφῆναι 315 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegamrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV134) 316 I Apol 41-7
60
reinterpretando o rescrito de Adriano317 Desse modo em exigecircncia mediante o que chama de
ldquosatilde razatildeordquo ele sustenta ser justo que os cristatildeos sejam julgados quando porventura vierem a
cometer alguma falta contra a lei ou por algum delito mas nunca por se chamarem ldquocristatildeosrdquo
Eacute em funccedilatildeo do que representava ser ldquocristatildeordquo que o apologista se dedica a algumas
explicaccedilotildees Em sua anaacutelise era por causa do preconceito das crenccedilas pagatildes dos boatos
maliciosos e ainda por certo impulso irracional por parte dos ldquooutrosrdquo que os cristatildeos eram
ofendidos318 O caso de uma mulher que se divorciou do marido pagatildeo narrado na II Apologia
eacute outro exemplo dos atritos corriqueiros que poderiam chegar aos tribunais Segundo o
apologista ldquotodo aquele que eacute repreendido pelo pai vizinho filho amigo marido ou mulher
por causa de uma falta se volta contra [os cristatildeos] por sua obstinaccedilatildeo no mal por seu amor
ao prazer e por sua impotecircncia para seguir o que eacute bomrdquo319 Aleacutem desse caso emblemaacutetico
acontecido havia pouco tempo na cidade de Roma sob Urbico320 ele acrescenta que tais accedilotildees
tambeacutem eram comuns aos governadores em todo o Impeacuterio e que ldquoem todas as partesrdquo havia
quem estivesse disposto a levar os seguidores de Cristo agrave morte321 Em ambas as Apologias
Justino escreve como quem procura alertar o imperador sobre os abusos cometidos contra os
cristatildeos Devido agrave ausecircncia de uma lei geral contra os fieacuteis as accedilotildees anticristatildes aparecem
como fruto dos distuacuterbios locais que emergiam em resistecircncia agrave nova religiatildeo A I Apologia
parece se referir aos atritos gerais contra os cristatildeos enquanto a segunda comeccedila com um
clamor a partir de um caso especiacutefico ocorrido em Roma sob o prefeito Urbico A II Apologia
daacute sinais de que as disputas de Justino com Crescente na capital imperial levavam o
apologista a prever o seu martiacuterio que soacute viria a acontecer no iniacutecio do governo de Marco
Aureacutelio
Marta Sordi322 assim como Robert M Grant323 identifica trecircs fases na poliacutetica
imperial de Marco Aureacutelio mas as duas uacuteltimas extrapolam o contexto em que se insere
Justino A primeira fase se relaciona ao periacuteodo da corregecircncia entre Marco Aureacutelio e Lucio
Vero de 161 a 169 que corresponde em parte aos uacuteltimos anos de Justino Esta fase revela a
princiacutepio a mesma condiccedilatildeo do governo de Antonino Pio mas pode ter sofrido mudanccedilas no
final da deacutecada
317 I Apol 681-10 318 I Apol 23 319 II 12 320 Quintus Lollius Urbicus havia sido incumbido por Adriano na Guerra Judaica (133-135 dC) governou a Germania Menor (136-138 dC) e a Britania (139-142 dC) e foi prefeito de Roma de 146 a 160 dC (Historiae Augustae 54) 321 II 11-2 322 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103 323 Five apologists and Marcus Aurelius Vigiliae Christianae V 42 n 1 Mar1988 pp 1-17
61
Algumas fontes cristatildes (Atas do martiacuterio de Justino 58324 Oroacutesio Historiae Adversus
PaganusVII154325) vinculam a intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo a um edito sobre sacrifiacutecios
Natildeo se tratava de um decreto diretamente contra os cristatildeos A determinaccedilatildeo exigia sacrifiacutecios
aos deuses por todas as cidades do Impeacuterio nos anos de 166168 e devia estar relacionada aos
temores devido agrave peste agrave guerra na Partia e agrave pressatildeo germacircnica326 Justino foi provavelmente
condenado por se negar a obedecer ao novo decreto mas suas Apologias refletem a situaccedilatildeo
dos cristatildeos sob Antonino Pio
Por meio de uma leitura do seu tempo Justino contemplaraacute em seu discurso os
fundamentos desse tipo de accedilotildees Ele apresenta uma desconstruccedilatildeo da forma de controle que
proporciona agreccedilotildees aos cristatildeos e entatildeo oferece uma concepccedilatildeo cristatilde para fundamentar o
estabelecimento da ordem social
O apologista compotildee uma argumentaccedilatildeo para mostrar que a religiatildeo cristatilde poderia
contribuir para a estabilidade da ordem social no Impeacuterio e oferece uma reflexatildeo sobre os
fundamentos da noccedilatildeo de justiccedila na perspectiva cristatilde Por meio do exame do discurso de
Justino identificam-se dois aspectos da relaccedilatildeo entre religiatildeo e controle social no Impeacuterio
Romano contemplados nas accedilotildees anticristatildes de seu tempo O primeiro eacute representado na sua
anaacutelise da repressatildeo aos cristatildeos em funccedilatildeo da preservaccedilatildeo da ordem e o segundo na sua
proposta de contribuiccedilatildeo dos cristatildeos para a manutenccedilatildeo da ordem
324 ldquoAqueles que natildeo desejarem sacrificarem aos deuses e se submeterem ao decreto imperial satildeo condenados primeiro a serem castigados e depois agrave pena capital conforme a leirdquo (Tr A) kai ei=xai tw| tou auvtokragmati( mastigwqevtej avpacqhtwsan( kefalikhn avpotinnuntej dikhn( kata thn twn nomwn avkoluqian) cf Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 p152 325 Eo defuncto Marcus Antoninus solus reipublicae praefuit sed in diebus Parthici belli persecutiones Christianorum quarta iam post Neronem uice in Asia et in Gallia graues praecepto eius exstiterunt multique sanctorum martyrio coronati sunt Cf OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889 326 SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103
62
CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE
MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM
Ao escrever suas Apologias em defesa dos cristatildeos e endereccedilaacute-las ao imperador
Justino se posiciona tanto como um profeta da antiga monarquia de Israel quanto como um
filoacutesofo conselheiro que se prontifica a oferecer conselhos ao governante Eacute possiacutevel
estabelecer uma analogia entre essas duas posturas nesse caso pois para esse pensador o
cristianismo ndash que em certo sentido eacute para os cristatildeos o cumprimento das expectativas de
Israel ndash eacute a ldquoverdadeira filosofiardquo327 Eacute a partir dessa sua perspectiva cristatilde que ele analisa a
forma romana de garantir o estabelecimento da ordem no tocante agrave religiatildeo e que manifesta
suas razotildees para se opor agrave religiatildeo pagatilde
Sua construccedilatildeo apologeacutetica contrasta tal forma de controle romana que acaba por
vitimar os cristatildeos agrave contribuiccedilatildeo cristatilde para a ordem social Seus pronunciamentos agraves vezes
satildeo muito diretos aos governantes ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem
e natildeo tenhais a quem castigar coisa que conviria melhor a verdugos do que a priacutencipes
bonsrdquo328 Na verdade o problema central incide sobre as formas de controle sociais
empregadas para a repressatildeo da expansatildeo dessa nova religiatildeo Por isso os argumentos de
Justino tecircm por objetivo combater algumas das principais queixas sobre os cristatildeos e tambeacutem
informar sobre o caraacuteter de suas crenccedilas e estilo de vida
Nessa parte da pesquisa seraacute analisada a forma como o apologista tece suas criacuteticas ao
procedimento romano contra a religiatildeo cristatilde e agrave postura dos cristatildeos diante dessas outras
religiotildees A proposta de Justino sobre os fundamentos cristatildeos para o controle social seraacute
examinada no proacuteximo capiacutetulo Sua interrogaccedilatildeo eacute a mesma que ainda voltou agrave tona no
seacuteculo XX com G E M de Ste Croix329 em 1963 com A N Sherwin-White330 em 1964 e
com o proacuteprio Ste Croix331 em uma treacuteplica ldquoWhy were the Early Christians persecutedrdquo
Segundo GEM de Ste Croix as perseguiccedilotildees aos cristatildeos eram decorrentes
basicamente da recusa desse grupo em reconhecer os deuses de Roma acarretando uma
situaccedilatildeo de suspeitas de sediccedilatildeo e periculosidade social Os deuses tradicionais do panteatildeo
greco-romano eram as divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma e seus cultos eram
327 II Apol 152 328 I Apol 124 329 Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p6-38 330 Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 331 Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 p28-33
63
uma necessidade para a manutenccedilatildeo da pax deorum [paz dos deuses]332 A perseguiccedilatildeo se
relacionaria ao sentimento religioso da eacutepoca supersticiosa na qual eles viviam333
A N Sherwin-White334 de modo diverso desviou a tocircnica da perseguiccedilatildeo da questatildeo
da pax deorum e lanccedilou seu olhar agrave contumaacutecia dos cristatildeos em se manterem fieacuteis agraves suas
crenccedilas exclusivistas diante do panteatildeo greco-romano Tal postura teria sido interpretada em
muitos momentos como um desafio agraves autoridades romanas Desse modo atrairiam para si
mesmos acusaccedilotildees e suspeitas em decorrecircncia de sua potencial insubordinaccedilatildeo conforme
pode ser visto nas Cartas de Pliacutenio o Jovem a Trajano335
A treacuteplica de GEM Ste Croix336 natildeo colocou um ponto-final na questatildeo e
incomodou a outros estudiosos contemporacircneos Segundo Paul Veyne as comunidades cristatildes
enfrentaram resistecircncias devido agrave aversatildeo romana ldquoao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguordquo337
O fato de o grupo ser ainda pouco conhecido e sustentar a veneraccedilatildeo a um ldquoreirdquo na esperanccedila
de um reino torna a situaccedilatildeo ainda mais complicada Tal hibridez alegada seria notada tendo
em vista que embora possuindo as mesmas categorias de pensamentos dos demais cidadatildeos do
Impeacuterio Romano
os cristatildeos faziam parte do Impeacuterio mas sem os mesmos costumes evitavam conviver com os outros natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo veneravam os deuses nacionais seu Deus natildeo pertencia agrave determinada naccedilatildeo diferente do deus dos judeus Aleacutem de querer se isolar como uma legiacutetima diferenccedila nacional esse Deus pretendia superar os deuses nacionais338
Nesse sentido as perseguiccedilotildees teriam sido causadas pela rejeiccedilatildeo a algo pouco
definido anormal capaz de produzir inseguranccedilas e exigir uma medida cautelar E para
justificar as accedilotildees persecutoacuterias os romanos lanccedilavam matildeo de argumentos tradicionais como
o respeito ao mos maiorum [os costumes ancestrais] e o respeito agrave unidade religiosa e moral
da coletividade
Mesmo apresentando explicaccedilotildees diferentes sobre as perseguiccedilotildees as consideraccedilotildees
de Sherwin-White Ste Croix e Paul Veyne natildeo satildeo completamente opostas Se por um lado
observamos a posiccedilatildeo obstinada dos cristatildeos em manter a sua religiatildeo a ponto de se tornar
332 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p 24 333 Ibid 1963 pp 29-31 Cf DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963 334 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n 27 1964 pp 25 335 Pliacutenio Segundo Cartas X 96-97 336 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 337 VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 338 Ibid p 246
64
uma desobediecircncia contra as autoridades imperiais por outro a religiatildeo romana se baseava na
manutenccedilatildeo do equiliacutebrio das relaccedilotildees entre o Impeacuterio Romano e os deuses tradicionais
Essas explicaccedilotildees decorrem de uma anaacutelise geral das accedilotildees anticristatildes do I ao IV
seacuteculo Um exame mais localizado ndash e em niacuteveis menos oficiais ndash poderia multiplicar as
razotildees pelas quais os cristatildeos foram perseguidos ou chamar a atenccedilatildeo para o fator psicoloacutegico
desses atritos religiosos Essa pesquisa no entanto limitar-se aos aspectos que possibilitem
uma leitura das accedilotildees anticristatildes a partir das Apologias de Justino
O apologista tambeacutem se propotildee a responder a esta questatildeo ldquoPor que os cristatildeos satildeo
perseguidosrdquo Sua leitura teoloacutegica da histoacuteria procura chegar agrave causa uacuteltima motivadora das
accedilotildees anticristatildes desenvolvendo uma trama apologeacutetica que relaciona controle social e
religiatildeo Para compreender suas formulaccedilotildees conveacutem analisar esse conceito chave
ldquoControle socialrdquo pode ser definido como ldquoo conjunto dos recursos materiais e
simboacutelicos que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de
seus membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo339 O termo de
modo geral eacute frequentemente usado para se referir a alguma forma de reaccedilatildeo organizada ao
comportamento pervertido Essa abordagem eacute baseada o trabalho de Stan Cohen que definiu
controle social como ldquorespostas organizadas ao crime delinquecircncia e formas aliadas de
perversatildeo eou comportamento socialmente problemaacutetico os quais satildeo atualmente concebidos
se no reativo sentido (depois do putativo ato ter tomado espaccedilo ou o ator ter sido identificado)
ou no proativo sentido (para prever os atos)rdquo340
A definiccedilatildeo usada por Donald Black341 eacute muito semelhante Ele assinalou que
ldquocontrole social eacute o aspecto normativo da vida social ou a definiccedilatildeo de comportamento
pervertido e a resposta a ele tal como proibiccedilotildees acusaccedilotildees puniccedilotildees e compensaccedilatildeordquo
Segundo esta afirmaccedilatildeo controle social se refere aos mecanismos determinantes usados para
regular a conduta das pessoas que satildeo vistas como pervertidas criminosas preocupantes ou
problemaacuteticas em algum sentido para os outros Todo tempo os sentidos nos quais diferentes
culturas entendem e respondem a diferentes formas de mudanccedilas e ajustes de comportamentos
problemaacuteticos
A causa desses problemas pode ser atribuiacuteda agrave criminalidade perversatildeo imoralidade
maldade perversidade ou alguma combinaccedilatildeo desses Similarmente os mecanismos
empregados para alcanccedilar o controle podem incluir formas variadas de puniccedilatildeo tratamento
339 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 340 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 p 3 341 BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press 1976 pp 1-2
65
dissuasatildeo segregaccedilatildeo ou prevenccedilatildeo342 Desse modo se a combinaccedilatildeo de fatores eacute usada para
compreender e reatar o problema o objetivo eacute promulgar o controle sobre o comportamento
que eacute visto como pervertido em algum sentido
A complexidade do tema se manifesta ainda quando R Meier343 considera que
controle social pode ser encontrado em trecircs principais contextos a) como uma descriccedilatildeo da
condiccedilatildeo ou processo social baacutesico ndash definiccedilatildeo dominante na teoria socioloacutegica claacutessica ndash b)
como um mecanismo para assegurar o cumprimento das normas e c) como um meacutetodo pelo
qual estudar (ou interpretar dados sobre) a ordem social Cohen retoma Joseph Rouceck344
que escreveu em 1947 entendendo controle social como ldquoum termo coletivo para aqueles
processos planejados ou natildeo planejados pelos quais indiviacuteduos satildeo ensinados ou compelidos
a conformar os usos e valores vitais dos gruposrdquo E A Horwitz345 que considerava que o
ldquocontrole social emerge da vida e das praacuteticas sociais e serve para manter o sentido da vida e
das praacuteticas sociais dos gruposrdquo Muitos diriam que tal descriccedilatildeo se aproxima mais dos
processos de socializaccedilatildeo E natildeo eacute preciso ir muito longe para perceber que os dilemas desse
conceito podem vir a ser complexos Tatildeo logo manifesta-se a necessidade de estabeler os
limites desse termo de modo que natildeo seja tatildeo limitado e que tambeacutem natildeo seja tatildeo amplo a
ponto de natildeo ser reconhecido
Segundo a anaacutelise de Martin Innes346 a definiccedilatildeo de Cohen permanece muito flexiacutevel
para mostrar a promulgaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social pelo Estado ou por agentes
profissionais autocircnomos tais como funcionaacuterios de corporaccedilotildees privadas e psiquiatras As
pessoas tendem a usar outros meios antes de recorrer ao aparato formal estabelecido de
controle social subcolocados como satildeo pela lei Mais conflitos satildeo resolvidos sem recursos da
lei ou controle social formal Uma soluccedilatildeo eacute frequentemente negociada ou a perversatildeo
tolerada e a imposiccedilatildeo do controle social tende a ser uma funccedilatildeo de elevada distacircncia
relacional Por isso a extensatildeo do desempenho do controle social atinge tambeacutem um caraacuteter
informal na sociedade
A definiccedilatildeo de controle social como uma resposta organizada a comportamentos
pervertidos natildeo eacute consensual Mas na busca por uma definiccedilatildeo que se adapte aos objetivos
desse trabalho seratildeo levadas em consideraccedilatildeo as proposiccedilotildees de Martin Innes347 Ele sintetiza
342 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 passim 343 MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology 1982 8 pp 35ndash55 344 Social Control Westport CT Greenwood Press 1970 p 3 345 The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990 p 5 346 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 347 Ibid
66
os aspectos da definiccedilatildeo de Cohen em uma abordagem revisionista Seu argumento eacute que
controle social pode ser pensado como um conceito-mestre composto de uma raiz de
diferentes modos de controle e tecnologias
Para estabelecer os limites desse conceito de controle social tambeacutem eacute necessaacuterio
estabelecer conceitos paacutereos como ldquoordem socialrdquo Segundo Erwin Goffman348 as relaccedilotildees
regulares entre as pessoas os variados padrotildees de funcionamento variadamente motivados
de comportamento as rotinas associadas com regras baacutesicas juntos constituem o que pode ser
chamada de uma ldquoordem socialrdquo
Baseando-se nesta definiccedilatildeo pode-se distinguir entre o significado de ordem social e
controle social A promulgaccedilatildeo de controle social eacute frequentemente destinada a proteger a
ordem social mas ordem social natildeo eacute unicamente produto de controles sociais Ao contraacuterio
o conceito de ordem social se refere agraves condiccedilotildees de existecircncia de uma sociedade De fato
toda sociedade tem intrinsecamente um grau de organizaccedilatildeo e entatildeo uma ordem social Uma
ordem social natildeo eacute estaacutetica estaacute constantemente em processo sendo produzida e reproduzida
pela combinaccedilatildeo de atitudes valores praacuteticas instituiccedilotildees e accedilotildees de seus membros
Entatildeo a ordem social eacute composta de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees
as quais de alguma forma contribuem para a constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social As
fronteiras entre as praacuteticas de organizaccedilatildeo social e controles sociais natildeo satildeo fixas nem
estaacuteveis e ao longo do tempo mudam de equiliacutebrio Pois se ordem social se refere ao estado
da sociedade e ao arranjo organizado de seu essencial conhecimento valores accedilotildees
instituiccedilotildees e estabelecimentos controle social se refere aos processos pelos quais se busca
gerir desvios ou conflitos com a ordem social Essas formas de gerenciamento podem ser
formais ou seja institucionalizadas ou informais
Controle social formal se refere a alguma ocasiatildeo onde a imposiccedilatildeo do controle eacute
baseada sobre ou informada por a presenccedila da lei Outras atividades de controle podem ser
definidas como tipo informal349 Dentre essas formas de controle tambeacutem eacute possiacutevel distinguir
os modos reativos e os proativos O primeiro tipo eacute aquele usado para responder algumas
coisas depois que elas tecircm tomado espaccedilo O segundo envolve o caacutelculo da probabilidade de
um ato ocorrer no mesmo ponto no futuro e a manufatura de alguma forma de intervenccedilatildeo em
antecipaccedilatildeo deste Essa eacute uma forma preditiva de controle Tambeacutem eacute possiacutevel distinguir entre
formas de controle social ldquoverticalrdquo para falar sobre o poder diferencial que frequentemente
existe entre controladores e os controlados Controle social para baixo eacute mais comum
348 GOFFMAN E Relations in Public New York Basic Books 1971 p x 349 Cf BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press passim
67
envolvendo alguns com mais poder ou autoridade de regulaccedilatildeo do comportamento de
indiviacuteduos ou grupos menores Contudo o controle social tambeacutem pode ser ldquoupwardsrdquo [para
cima] envolvendo os menos poderosos moldando o comportamento de indiviacuteduos ou grupos
mais poderosos
Eacute numa perspectiva ldquode baixo para cimardquo que Justino questiona a forma de controle
empreendida pelos governantes romanos quando agem contra os cristatildeos Essa perspectiva
contempla as condiccedilotildees do grupo minoritaacuterio daqueles que satildeo considerados adeptos de uma
superstito digna de ser combatida por aqueles que detecircm os meios de controle e dessa forma
eacute produzido um instrumento de controle que busca ldquoconvencerrdquo e intimidar as autoridades e a
todos os demias a natildeo se oporem aos cristatildeos Embora reconheccedila que os governantes satildeo
constituiacutedos por Deus eacute aquilo que ele chama de ldquoreta razatildeordquo que lhe daacute o direito de se
pronunciar350 As autoridades romanas soacute satildeo buscadas porque os conflitos cotidianos quanto
agraves diferenccedilas religiosas produziram atritos e inquietaccedilotildees que abriram margem para que os
romanos aplicassem coaccedilotildees ldquoformaisrdquo Ao questionar a intervenccedilatildeo imperial para a
manutenccedilatildeo da ordem o apologista revela refugiar-se em um padratildeo de justiccedila distinto
daquele dos romanos Em seus escritos ele tambeacutem manifesta uma perspectiva cristatilde da
ordem que seraacute analisada no proacuteximo capiacutetulo
Para se compreender as proposiccedilotildees de Justino seratildeo examinados os seguintes
aspectos a criacutetica aos governantes no processo de manutenccedilatildeo da ordem no tocante aos
cristatildeos as diferenccedilas entre os cristatildeos e as outras religiotildees e sua criacutetica sobre as leis e a
moralidade
31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem
Na I Apologia logo apoacutes o exoacuterdio Justino procura justificar suas razotildees agraves
autoridades agraves quais se refere em peticcedilatildeo Ele escreve que
todo homem sensato manifestaraacute que a melhor exigecircncia ou ainda mais que a uacutenica exigecircncia justa eacute que os suacuteditos possam apresentar uma vida e um pensar irrepreensiacuteveis e que por outro lado igualmente os mandantes deem sua sentenccedila
350 ldquoA razatildeo exige dos que satildeo verdadeiramente piedosos e filoacutesofos que desprezando as opiniotildees dos antigos se estas satildeo maacutes estimem e amem apenas a verdade De fato o raciociacutenio sensato natildeo soacute exige que se abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente mas tambeacutem que o amante da verdade de todos os modos e acima da proacutepria vida mesmo que seja ameaccedilado de morte deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiccedilardquo (I Apol 12)
68
natildeo levados pela violecircncia e tirania mas segundo a piedade e a filosofia Soacute assim governantes e governados podem gozar de felicidade351
O bom procedimento dos suacuteditos conjugado agrave postura iacutentegra de justiccedila daqueles que
tecircm autoridade aparece como condiccedilatildeo para que ldquogovernantesrdquo e ldquogovernadosrdquo desfrutem da
felicidade O que mais chama atenccedilatildeo eacute a seguinte expressatildeo ldquoem algum lugar um dos
antigos disse lsquoSe os governantes e os governados natildeo forem filoacutesofos natildeo eacute possiacutevel os
Estados prosperaremrsquordquo352 Tanto Munier353 quanto Minns e Parvis354 identificam esse trecho
como uma citaccedilatildeo de Platatildeo (Repuacuteblica V 473) Na obra de Platatildeo fica claro o apontamento
da necessidade de que os governantes adiram ao cultivo da sabedoria numa junccedilatildeo de
δύναmicroίς τε πολιτικὴ καὶ φιλοσοφία [poder poliacutetico e filosofia] para que natildeo haja problemas
sociais
Justino ressignifica o conceito de ldquofilosofiardquo a partir da sua experiecircncia cristatilde Desse
modo aqueles que satildeo ldquopiedosos e filoacutesofosrdquo como satildeo chamados o imperador e seus filhos
deveriam julgar com retidatildeo para que todos gozem de bem estar
Haacute vaacuterias hipoacuteteses para justificar o tiacutetulo ldquoPiordquo de Antonino Uma hipoacutetese eacute que esse
nome lhe fora dado por ter defendido a deificaccedilatildeo dedicaccedilatildeo de um templo e concessatildeo de
inuacutemeras honras a Adriano Outras hipoacuteteses levam em conta seu caraacuteter e sua maneira de
ser355 ldquoVerissimusrdquo356 era uma denominaccedilatildeo de Marco Annio Vero que viria a ser o
Imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto O modo como esse apelido eacute empregado
no texto indica provavelmente uma estrateacutegia retoacuterica de Justino Marco era
reconhecidamente chamado de ldquofiloacutesofordquo357 Seus proacuteprios escritos eliminam qualquer
indagaccedilatildeo Poreacutem quando Luacutecio eacute chamado de ldquofiloacutesofordquo isso pode soar estranho Mas antes
de se rejeitar esse tiacutetulo eacute mais prudente tentar compreender se existe uma ligaccedilatildeo isotoacutepica
com a estrutura do texto Se os tiacutetulos ldquoPiordquo e ldquofiloacutesofordquo respectivamente de Antonino e de
Marco Aureacutelio apresentam um forte viacutenculo com a construccedilatildeo do cerne da obra haacute boa razatildeo 351 I Apol 32 Cf Kalhn de kai monhn dikaian proltsgtklhsin tauthn paj o` swfronwn avpofaneitai( to touj avrcomenouj thn euvqunhn tou eautwn biou kai logou alhpton parecein( o`moiwj drsquoauv kai touj arxontaj mh bia| mhde turannidi( avllrsquo euvsebeia| kai filosofia| avkolouqountaj thn yhfon tiqesqai ou[twj gar avrcontej kai oi` avrcomenoi avpolauoien tou avgaqou) MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 352 I Apol 33 Cf An mh oi` arcontej filosofhswsi [kai oi` avrcomenoi]( ouvk av eih taj poleij euvdaimonhsai) Cf MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 353 MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p 172 354 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 85 355 Hist Aug Antoninus Pius 21-10 356 Ele foi carinhosamente chamado ldquoVeriacutessimordquo [Ouvrissiacutemon] como apontou Cassius Dio (Hist Rom 69212) e como aparece tambeacutem na Hist Aug I41 357 Hist Aug Marcus Aurelius 15-9
69
para buscar uma hipoacutetese que aluda agrave possiacutevel relaccedilatildeo do tiacutetulo de Luacutecio com o restante do
texto
Luacutecio foi adotado por Antonino ao mesmo tempo em que Marco e se tornou Luacutecio
Aeacutelio Aureacutelio Commodo Com a morte de seu pai adotivo recebeu o tiacutetulo de Imperador
Ceacutesar como esse seu irmatildeo mas a dimensatildeo do seu poder eacute amplamente questionada Minns e
Parvis358 consideram que nos tempos de sua ldquosaiacutedardquo para as regiotildees do Impeacuterio em 153 ou
154 poderia ser mais prudente incluiacute-lo entre os destinataacuterios Ele eacute chamado de ldquofiloacutesofo
[filosofw|] filho natural de Ceacutesarrdquo no MS A e de filosofou kaisaroj fush| ui`w| [Filho
natural do filoacutesofo Ceacutesar] por Euseacutebio359 Esse tiacutetulo natildeo poderia ser atribuiacutedo ao pai
bioloacutegico de Luacutecio Segundo os registros da Historia Augusta seu pai Luacutecio Aeacutelio Vero
recebeu realmente o tiacutetulo de Ceacutesar do Imperador Adriano mas morreu sem chegar ao posto
elevado Por outro lado haacute evidecircncias suficientes para Justino chamar a Luacutecio filho natural
de Ceacutesar e filho de Pio por adoccedilatildeo de ldquoamante do saberrdquo o que equivaleria a dizer que tinha
uma formaccedilatildeo baacutesica
O tiacutetulo ldquofiloacutesofordquo natildeo se referia a apenas um exiacutemio pensador O filoacutesofo podia ser
algueacutem que se dedicava aos assuntos filosoacuteficos que frequentava alguma escola ou grupo de
discussatildeo ou algueacutem de reconhecido destaque intelectual podendo ser considerado ateacute um
embaixador em assuntos poliacuteticos360 Luacutecio poreacutem natildeo apresentou dons naturais para os
estudos literaacuterios Compocircs versos e oraccedilotildees mas suas habilidades poeacuteticas eram muito
limitadas Haacute quem diga que ele foi ajudado pela inteligecircncia de seus amigos e que muitas das
coisas creditadas a ele foram escritas por outros361 A despeito de Luacutecio ser ndash ou natildeo ndash
reconhecidamente um filoacutesofo essa denominaccedilatildeo podia render uma associaccedilatildeo desses nomes
ao cultivo do saber em geral e da piedade Se por outro lado o tiacutetulo de filoacutesofo viesse a ser
improacuteprio comparado agrave pertinecircncia da forma como Marco Aureacutelio eacute chamado abre-se espaccedilo
para uma nova hipoacutetese Seria esta uma estrateacutegia para chamar a atenccedilatildeo para as proacuteximas
colocaccedilotildees quando o apologista destaca aqueles que dizem ser filoacutesofos e natildeo o satildeo Mais do
que isso o apologista precisa de um elemento que viabilize a abertura de um espaccedilo textual
para a apresentaccedilatildeo do que ele considera ldquoa verdadeira filosofiardquo isto eacute o cristianismo
358 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 38-39 359 Hist Ecle IV121ss 360 DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940 361 Hist Aug Lucius Verus 21ss
70
Justino conheceu vaacuterias correntes filosoacuteficas Uma variedade de escolas poderia ser
encontrada pelo Impeacuterio Euseacutebio362 o chamou de ldquoamante da verdadeira filosofiardquo No
Diaacutelogo com Trifatildeo363 a filosofia eacute por ele reconhecida como ldquoo maior e mais precioso bem
diante de Deus para o qual somente ela conduz e nos associardquo Esses ensinamentos satildeo
considerados ldquosuperiores a toda filosofia humanardquo364 e reconhecidos como ldquoa filosofia segura
e proveitosardquo365 Dessa forma o pensamento cristatildeo eacute revestido de uma aacuteurea de
superioridade capaz de fundamentar sua teoria e sua criacutetica ao modo romano de repelir os
fieacuteis
Em sua leitura teoloacutegica da histoacuteria e dos problemas religiosos do seu tempo o
apologista procura a razatildeo uacuteltima que fundamenta a accedilatildeo humana para aquilo que eacute ldquobomrdquo e
para as accedilotildees de oposiccedilatildeo agrave feacute Eacute trabalhoso encontrar uma definiccedilatildeo para o que eacute ser ldquobomrdquo
segundo seu modo de pensar Sabe-se poreacutem que os cristatildeos satildeo tidos como os que buscam
aquilo que eacute ldquobomrdquo e que por isso natildeo haacute nenhuma razatildeo para persegui-los Aquilo que eacute
ldquobomrdquo pode ser experimentado de forma parcial por aqueles que natildeo satildeo cristatildeos mas essa
experiecircncia deriva de uma mesma fonte coacutesmica da ldquobondaderdquo Por isso ele sustenta que tudo
o que pode ser chamado ldquobomrdquo entre os filoacutesofos e legisladores elaborado por eles mediante
a investigaccedilatildeo e a instituiccedilatildeo foi comunicado pela parcela do Logos que lhes coube De outro
modo Justino afirma que por natildeo conhecerem plenamente o Logos que eacute Cristo eles
frequentemente se contradizem Em seu ponto de vista outrora muitos pensadores que
tentaram investigar e demonstrar as coisas por meio dessa ldquorazatildeordquo tambeacutem foram levados ao
tribunal como Soacutecrates
Em oposiccedilatildeo ao que eacute ldquobomrdquo uma forccedila oposta aparece como a propiciadora do
engano Eacute esse o elemento uacuteltimo responsaacutevel pelo desvirtuamento da sintonia com aquilo
que eacute ldquobomrdquo e que promove as accedilotildees ldquoinjustasrdquo das autoridades Ele escreve ldquoVoacutes poreacutem
natildeo examinais nossos juiacutezos mas movidos de paixatildeo irracional e aguilhoados por democircnios
perversos nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por issordquo366
Segundo sua teoria satildeo os democircnios os uacuteltimos responsaacuteveis por espalhar a ignoracircncia e
mover as autoridades contra os cristatildeos
Sob essa perspectiva ele destaca a transparecircncia cristatilde e a disposiccedilatildeo paciacutefica desse
grupo diante da autoridade imperial ao dever dos governantes
362 Hist Ecles IV83 363 Diaacutelogo com Trifatildeo 21 364 II Apol 153 365 Diaacutelogo com Trifatildeo 81 366 I Apol 51
71
Cabe a noacutes portanto expor ao exame de todos a nossa vida e os nossos ensinamentos para que natildeo nos tornemos responsaacuteveis pelo castigo daqueles que ignorando a nossa religiatildeo pecam por cegueira contra noacutes Contudo o vosso dever eacute tambeacutem ouvir-nos e mostrar-vos bons juiacutezes Com efeito daqui para frente informados como estais caso natildeo ajais com justiccedila natildeo tereis nenhuma desculpa diante de Deus367
A lealdade dos cristatildeos natildeo era algo evidente e por isso eacute uma das principais
preocupaccedilotildees do apologista ratificaacute-la Justino assinala que havia suposiccedilotildees inclusive de
que os cristatildeos arquitetavam algum tipo de irrupccedilatildeo de outro ldquoreinordquo quando de fato falavam
do ldquoreino de Deusrdquo em todos os seus aspectos espirituais (I Apol 111) A nova religiatildeo jaacute se
espalhava pelo Impeacuterio havia um seacuteculo mas eacute provaacutevel que natildeo tivesse alcanccedilado um
nuacutemero expressivo de fieacuteis Aleacutem disso ainda natildeo existia uma estrutura eclesiaacutestica bem
formada O marcionistas os valentinianos e outros grupos tornavam a questatildeo da identidade
cristatilde um assunto das apologias justinianas e de outros escritores e pregadores que pretendiam
definir quem eram os ldquocristatildeosrdquo
32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus
Na verdade o exclusivismo caracteriacutestico do monoteiacutesmo cristatildeo contrastava com a
religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio As accedilotildees importantes do Estado sempre envolviam rituais
sagrados Comemoraccedilotildees de vitoacuterias e triunfos do exeacutercito normalmente culminavam em
procissotildees e sacrifiacutecios E a proacutepria estabilidade social dependia de uma barganha feita com
os deuses para a manutenccedilatildeo da paz368
Os variados rituais produziam interaccedilotildees entre deuses e homens na religiatildeo romana
Por meio deles eram marcados todos os eventos puacuteblicos e celebraccedilotildees que envolviam
festivais anuais os juramentos ou aniversaacuterios das fundaccedilotildees de templos Tambeacutem podiam
estar relacionados aos jogos ou agraves performances dramaacuteticas que tinham elementos rituais em
seu programa ainda que incluiacutessem o entretenimento entre seus propoacutesitos Os jogos jamais
perderam seu aspecto ritual Cria-se que nessas ocasiotildees os deuses desciam para assisti-los e
entatildeo eram realizados rituais religiosos inclusive representados perfeitamente para que a
cerimocircnia fosse bem sucedida De modo geral tambeacutem os sacrifiacutecios eram feitos estritamente
367 I Apol 34 368 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35
72
segundo regras e tradiccedilotildees que necessariamente tinham de ser respeitadas369 Os prodiacutegios
envolviam quase todos os grupos de influecircncia nas decisotildees estatais ndash os coleacutegios sacerdotais
o senado os magistrados e ocasionalmente o povo nas comitia370
A criaccedilatildeo de novos lugares sagrados sejam templos propriamente ditos ou santuaacuterios
com um altar era tema de interesse puacuteblico e conflito potencial371 Alguns templos eram fruto
de promessas de generais em batalhas Com o tempo expandiram-se pelo espaccedilo urbano
representando uma imagem visiacutevel do domiacutenio romano sobre o Mediterracircneo e assinalando a
contribuiccedilatildeo de novos e antigos deuses em cada estaacutegio dessa conquista
Os rituais religiosos estavam intimamente ligados agraves demais atividades de guerra e
paz Desse modo a aprovaccedilatildeo de uma lei ou a eleiccedilatildeo de magistrado eram atos que envolviam
a tomada dos augures responsaacuteveis pelo sistema especial de regras que os controlavam o ius
augurale372 Os limites dessa religiosidade natildeo satildeo muito bem definidos Mas tanto o povo
quanto os magistrados demonstravam respeito pelas obrigaccedilotildees religiosas
A religiatildeo e os deuses estavam entre os fatores importantes na determinaccedilatildeo dos
eventos e na garantia de suas reivindicaccedilotildees de autoridade e comando dos agentes puacuteblicos
romanos Era tambeacutem uma das expressotildees da ideologia da elite romana e da manutenccedilatildeo do
poder E ainda como escreve Claudia B Rosa
ao mesmo tempo eram os rituais que garantiam as relaccedilotildees entre dois grupos homens e deuses Garantir os ritos representava a certeza da manutenccedilatildeo da sociedade como a queriam ordenada e segura Ao registrar as regras de comportamento como o respeito aos deuses sobretudo em seus espaccedilos ao curvar-se sob a autoridade dos rituais o cidadatildeo garantia a ordem social e a pax deorum e as praacuteticas que acarretavam a transgressatildeo agrave ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e agrave desagregaccedilatildeo A concoacuterdia entre homens e deuses eacute a garantia da ordem romana373
No I seacuteculo aC Augusto se tornou membro de todos os coleacutegios sacerdotais
assumindo o papel de pontifex maximus liderando os demais sacerdotes Se esta interpretaccedilatildeo
for correta ela representa a nova e revolucionaacuteria ordem religiosa do periacuteodo imperial e todos
os seus sucessores foram tambeacutem pontifices maximus ateacute o seacuteculo IV aC Desde entatildeo o
imperador se via responsaacutevel pela construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de templos O poder religioso e o
poder poliacutetico se assentaram sobre um mesmo indiviacuteduo no novo regime do Impeacuterio374
369 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 370 Assembleia dos cidadatildeos romanos 371 ROSA Claudia Beltratildeo Op cit p 144 Ciacutecero indica duas ocasiotildees em que tentativas de dedicaccedilotildees foram canceladas pelos pontiacutefices porque natildeo haviam sido aprovadas pelos comitia (De domo sua 136) 372 LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 1986 pp 2146-312 373 ROSA C B Op cit p 145-146 374 Ibid p 147
73
Conforme escreveu Paul Veyne375 ldquoO Estado com certeza exercia sua autoridade sobre os
cidadatildeos que lhe deviam tudo Mas mesmo assim apenas em circunstacircncias excepcionais
um decreto obrigaria cada cidadatildeo a tomar parte numa cerimocircnia puacuteblica []rdquo Devia-se no
entanto zelar pela pax deorum para a prosperidade e seguranccedila no Impeacuterio376
Natildeo havia uma ldquodependecircnciardquo humana em ralaccedilatildeo aos deuses o que existia era o
reconhecimento da superioridade daqueles seres que viviam entre os humanos Esse
reconhecimento cuacuteltico piedoso estava relacionado agrave barganha Esperava-se conhecer o
futuro escapar do perigo obter boas colheitas ter boa sauacutede sem que isso significasse que os
deuses estariam agrave disposiccedilatildeo a todo instante377
As accedilotildees de Augusto podem evidenciar uma estreita conexatildeo com episoacutedios de
restauraccedilatildeo e especialmente com as recorrentes observaccedilotildees de que as tradiccedilotildees ancestrais
estavam sendo perdidas ou abandonadas O ldquoculto imperialrdquo passa a representar uma novidade
no iniacutecio do Impeacuterio Se os apelos agrave restauraccedilatildeo das crenccedilas e tradiccedilotildees eram presentes nos
discursos natildeo se pode falar em uma nova forccedila religiosa ou uma nova religiatildeo no periacuteodo
imperial
Essas praacuteticas religiosas proporcionaram choques com judeus e depois com os
cristatildeos Sendo monoteiacutestas era impossiacutevel aceitar a inclusatildeo de deuses e cultos Os judeus
sacrificavam em prol do imperador e natildeo para o imperador jaacute os cristatildeos recusavam-se a
participar de qualquer sacrifiacutecio Considerando que os altares ao imperador eram colocados
muito proacuteximos ao tribunal do magistrado que ouvia os seus casos pode-se pensar que tal
sacrifiacutecio ao chefe do Impeacuterio era mais simboacutelico do que de adoraccedilatildeo e funcionava como sinal
de lealdade a Roma378 Secircneca em sua Apocolocyntosis do Divino Claacuteudio escrita
provavelmente no iniacutecio do reinado de Nero apresenta conotaccedilotildees negativas a respeito da
deificaccedilatildeo dos governantes em geral o que indica que existiam aqueles que natildeo viam com
bons olhos o processo de deificaccedilatildeo do governante Mas para a populaccedilatildeo geral do Impeacuterio
natildeo havia problemas em aceitar que o imperador pudesse ser tratado como um deus
A partir da sua expansatildeo e domiacutenio por um vasto territoacuterio o poder romano teve que
lidar com os problemas de integraccedilatildeo das regiotildees conquistadas Conforme tem destacado
375 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 244 376 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 p 15 377 MACMULLEN Ramsay Christianizatin the roman empire (AD 100-400) New Haven Yale University Press 1984 p 13 378 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 150
74
Claudia M Beltratildeo379 o mapa da peniacutensula Itaacutelica o Oriente Proacuteximo o norte da Aacutefrica e
Europa conformam uma rede que se aglutina em torno de Roma constituindo um espaccedilo
dinacircmico de interconexatildeo espaccedilo no qual se daratildeo variados modos de relaccedilatildeo Essa complexa
relaccedilatildeo exigia tambeacutem uma forma de lidar com os cultos estrangeiros
A cultura romana tornou-se sinteacutetica e sintetizante e relativamente favoraacutevel agrave
incorporaccedilatildeo de cultos estrangeiros Roma natildeo apenas se tornou o centro poliacutetico do mundo
por ela construiacutedo como tambeacutem passou a abrigar o nuacutecleo das religiotildees Segundo a anaacutelise
de Ceciacutelia Ames380 o caraacuteter sinteacutetico da religiatildeo romana que combina rito paacutetrio rito grego
e disciplina etrusca facilitou aos romanos a integraccedilatildeo de cultos estrangeiros e a difusatildeo de
seu proacuteprio sistema nos territoacuterios constituindo-se em um elemento chave na relaccedilatildeo destes
espaccedilos interconectados Sua toleracircncia e flexibilidade no entanto tambeacutem incluiacuteam
mecanismos para regular o fluxo de ideias e praacuteticas estrangeiras381 O senado era o oacutergatildeo
responsaacutevel por velar e vigiar da tradiccedilatildeo e da religiatildeo A necessidade de controle cresce junto
com a expansatildeo dos domiacutenios de Roma
Dentro da sua anaacutelise Justino se incomoda com o fato de que no meio de um universo
tatildeo vasto de culturas que se encontram no Impeacuterio Romano os cristatildeos sejam muitas vezes
odiados e levados agrave morte Para o apologista essa eacute mais uma evidecircncia da ignoracircncia
disseminada pelos maus democircnios que faz com que de algum modo as crenccedilas cristatildes sejam
tachadas de irracionais Enquanto isso ldquoalguns cultuam aacutervores rios382 ratos gatos
crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionaisrdquo de modo que todos satildeo iacutempios entre si por
natildeo terem a mesma religiatildeo (I Apol 241) O apologista na verdade aponta aquilo que
considera ser uma incoerecircncia nessa estrutura intercultural
Estaacute evidente que sua anaacutelise eacute dependente da sua loacutegica cristatilde mas Luciano de
Samosata tambeacutem apontava no seacuteculo II dC a ldquoconfusatildeordquo causada pelas diferentes opiniotildees
sobre os Deuses383 Plutarco um pouco antes anotara que a adoraccedilatildeo a diferentes formas de
379 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 151 380 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 p 342 381 Cf MACMULLEN R Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 382 Sextus Empiricus cita a afirmaccedilatildeo de Prodicus de que ldquoos antigos tinham como deus o sol a lua os rios e as primaveras [] assim como os Egiacutepicios deificavam o Nilordquo (Adversus Dogmaticos I18) apud MINNS PARVIS Op cit p 143 383 Juppiter Tragoedus 42
75
animais causava disputas entre seus adoradores384 Juvenal385 tambeacutem menciona que a
contenda se instalava na vizinhanccedila egiacutepcia quando um odiava o deus do outro e sustentava
que somente o seu deus predileto era o deus verdadeiro Essas diferenccedilas poderiam causar
ainda deboches sobre os deuses alheios entre os diferentes povos no Impeacuterio assim como
Clemente de Alexandria diz que os gregos faziam aos deuses e as crenccedilas egiacutepcias386 A
estranheza dos deuses dos outros povos tambeacutem chamou a atenccedilatildeo de Ciacutecero que indagava
Se existem divindades agraves quais adoramos e consideramos como tais por que natildeo Serapis e Isis localizadas no mesmo ranque E se eles satildeo admitidos que razatildeo temos noacutes para rejeitar os deuses dos baacuterbaros Entatildeo noacutes devemos deificar bois cavalos iacutebis gaviotildees viacuteboras crocodilos peixes cachorros lobos gatos e muitas outras bestas Se noacutes vamos de volta agraves fontes destas supersticcedilotildees devemos igualmente condenar todas as divindades das quais eles procedem [] Se vocecircs natildeo deificarem a um bem como o outro o que seraacute de Ino Pois todos esses deuses tem a mesma origem387
Diante desse universo de pensamentos e crenccedilas distintos os romanos tinham o
desafio de conceber formas para garantir a integraccedilatildeo desses grupos Justino acentua que
diante dessa variedade de ideias somente os cristatildeos satildeo perseguidos e vecirc nisso mais uma
evidecircncia de que as accedilotildees anticristatildes satildeo arquitetadas pelos maus democircnios Mas os cristatildeos
natildeo haviam sido os uacutenicos a serem cerceados pelas autoridades romanas
Nos anos 180 aC o culto a Baco despertou suspeitas e passou a ser tratado como uma
ameaccedila agrave ordem Infelizmente as fontes sobre essa questatildeo se resumem a um decreto do
Senado388 regulando o culto e um longo relato de Tito Liacutevio389
Natildeo eacute uma tarefa simples determinar qual foi o epicentro do problema Talvez natildeo se
referisse a uma crise religiosa propriamente dita representando um caso de accedilatildeo policial
contra uma conspiraccedilatildeo Mas o decreto do Senado preservado numa placa de bronze
endereccedilado a uma das cidades aliadas indica uma preocupaccedilatildeo em inviabilizar possiacuteveis
agrupamentos potencialmente conspiratoacuterios Proibia-se aos grupos ter liacutederes ou sacerdotes
masculinos tesouro juramentos ou fieacuteis Ele tambeacutem restringia o tamanho desses
aglomerados e a estrutura de seus membros390 De algum modo a organizaccedilatildeo dos baacutequicos
deve ter ameaccedilado aos romanos tambeacutem por trazer uma nova e perigosa forma de poder
384 De Iside et Osiride 72 385 Saacutetiras XV37-38 386 Protrepticus 2396 387 De natura deorum III19(47) 388 Senatus Consultum de Bacchanalibus In JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961 pp 26-27 389 Histoacuteria de Roma 398-19 390 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 152
76
Os seguidores de Baco no entanto natildeo eram hostis a nenhum deus do Impeacuterio
Tambeacutem natildeo rejeitavam os sacrifiacutecios nem viam os deuses como democircnios e natildeo tinham
nenhum problema com os rituais tradicionais Tito Liacutevio daacute sinais dessa suspeita num
discurso que atribuiu ao cocircnsul Postumio Albino numa contio391 quando falou ao povo da
ameaccedila de um poder rival
A menos que vocecircs se precavejam homens de Roma esta vossa assembleia diurna apropriadamente reunida pelo cocircnsul seraacute rivalizada por sua assembleia noturna Nesse momento eles separadamente temem a vocecircs agora reunidos em assembleia quando vocecircs retornarem agraves suas casas e fazendas eles se reuniratildeo para decidirem sobre sua proacutepria salvaccedilatildeo e a vossa ruiacutena Seraacute quando vocecircs separadamente teratildeo de temecirc-los reunidos (39164)
Segundo a anaacutelise de Clara Gallini os adeptos ao culto eram grupos marginais392 As
bacanais seriam lugares de evasatildeo para a massa de pobres e deserdados com graves
problemas econocircmicos e sociais devido agrave situaccedilatildeo que atravessava Roma A crise social teria
se manifestado em uma forma representativa de protesto religioso por meio dos quais se
buscaram respostas religiosas a problemas da sociedade pretendendo uma liberaccedilatildeo religiosa
Deste modo a repressatildeo dos cultos baacutequicos tambeacutem representaria a repressatildeo de uma
sociedade na qual uns poucos os membros da oligarquia romana decidem impotildeem as regras
e governam a maioria No entanto ainda que os problemas sociais fossem evidentes natildeo eacute
possiacutevel afirmar que atraacutes destes cultos se escondia uma revolta contra as estruturas vigentes
nem ver os rituais baacutequicos como uma espeacutecie de esperanccedila em uma nova liberdade pois
essas interpretaccedilotildees como bem sustentou C Ames393 sofrem de anacronismo
Outros grupos religiosos no periacuteodo posterior a Bacanalia tambeacutem foram objeto de
uma accedilatildeo hostil das autoridades romanas Os caldeus chamados presumivelmente de
astroacutelogos foram expulsos de Roma em 139 aC Depois os seguidores de Iacutesis em vaacuterias
ocasiotildees na Repuacuteblica Tardia e no primeiro principado Tambeacutem os judeus enfrentaram seacuterias
dificuldades com os romanos em certos momentos394
Com a viabilizaccedilatildeo de um maior nuacutemero de viagens e trocas comerciais e culturais no
Impeacuterio Romano o conhecimento das variadas religiotildees deuses e crenccedilas tambeacutem podia
viajar rapidamente E isso significou ter que lidar com atritos decorrentes dessas diferenccedilas
envolvendo inclusive o judaiacutesmo o cristianismo e o maniqueiacutesmo
391 Audiecircncia convocada 392 GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52 393 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 p 344 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 394 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Op cit pp 161 230 231
77
De um modo bem diferente desses monoteiacutesmos de caraacuteter exclusivista entre as outras
crenccedilas como nas religiotildees de misteacuterios os adeptos natildeo rejeitavam ou condenavam outros
deuses Tambeacutem natildeo era necessaacuterio evitar os festivais e rituais da cidade ou a praacutetica do culto
imperial Natildeo havia nada que os pusesse em conflito com as autoridades Ocasionalmente
recebiam o apoio de membros da elite romana
Justino todavia procura mostrar que natildeo havia nenhum motivo para os romanos se
preocuparem com os cristatildeos afinal eles reconheciam que toda autoridade eacute constituiacuteda por
Deus e por isso devia ser respeitada Eacute fazendo jus a certo sentido de transparecircncia que o
apologista julga indispensaacutevel nas relaccedilotildees entre governantes e governados que ele entatildeo se
prontifica em demonstrar as razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo se misturavam com outros
deuses Com confianccedila ele afirma ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo
veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo
colocamos coroas nos sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo395
O fato de os cristatildeos natildeo concordarem com os sacrifiacutecios pagatildeos natildeo faz sentido
isoladamente aos incocircmodos caluacutenias e perseguiccedilotildees sofridos Parece ser razoaacutevel que por ser
um grupo cujas crenccedilas natildeo estavam bem sistematizadas e que se espalhavam pelo Impeacuterio as
caluacutenias oriundas dos atritos culturais podem ter chegado agraves autoridades e despertado
desconfianccedila396 Calumnia era um crime condenado pelas leis romanas desde o I seacuteculo aC e
se exatamente agraves acusaccedilotildees falsas e maliciosas397 As accedilotildees anticristatildes todavia natildeo podem
ser analisadas em termos generalizantes e absolutos pois passam por diversos momentos
Embora os cristatildeos natildeo representem uma ameaccedila poliacutetica na perspectiva de Pliacutenio por
exemplo o fato de natildeo praticarem o culto ao imperador e a separaccedilatildeo das praacuteticas idoacutelatras da
esfera puacuteblica interseciona a questatildeo poliacutetica agrave religiosa
Seria essa uma boa razatildeo para Justino explicar em seu projeto apologeacutetico por que os
cristatildeos natildeo participavam de sacrifiacutecios a outros deuses e natildeo lhes ofereciam culto Seu
argumento eacute diametralmente oposto a ou]j anqrwpoi [esses homens] que oferecem sacrifiacutecios
aos que eles proacuteprios datildeo forma colocam nos templos e chamam de deuses Ele justifica a
crenccedila cristatilde apenas dizendo ldquosabemos que [esses deuses] satildeo coisas sem alma e mortas que
395 I Apol 242 396 Cf VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006 Passim URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932 397 ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 Passim BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 p 238 Cf I Apol 267
78
natildeo tem forma de Deusrdquo398 (I Apol 91) Afirma tambeacutem que os nomes e figuras que os
deuses assumem satildeo arquitetados pelos maus democircnios de modo que coisas corruptiacuteveis que
necessitam de cuidado recebem o nome de Deus Agrega-se ao seu argumento que os artesatildeos
dos deuses satildeo pessoas dissolutas e que eacute uma estupidez fazer guardas para os deuses nos
templos Na sequecircncia o autor introduz a justificativa cristatilde para esse distanciamento de tais
praacuteticas ldquo aprendemos que Deus natildeo tem necessidade de nenhuma oferta material dos
homens pois vemos que eacute ele quem nos concede tudordquo399 (I Apol 93) Em resposta a essa
benevolecircncia divina espera-se a gratidatildeo humana que soacute pode ser atestada atraveacutes do ldquobom
sensordquo [swfrosunhn] da ldquojusticcedilardquo [dikaiosunhn] do ldquoamor aos homensrdquo [filanqrwpian] e
numa expressatildeo pouco clara em ldquotudo que conveacutem a um Deus que natildeo pode ser chamado por
nenhum nome impostordquo400 (I Apol 101) Enquanto para o apologista os deuses pagatildeos satildeo
criados por matildeos humanas o Deus cristatildeo eacute apresentado como aquele que concederaacute a sua
presenccedila aos dignos Assim Justino demonstra estar certo de que os cristatildeos tecircm um
conhecimento superior ao dos que creem em outros deuses a ponto de se satisfazer em dizer
ldquosabemosrdquo ldquoaprendemosrdquo ou ldquocremosrdquo e isso basta
Se por um lado a perspectiva escatoloacutegica cristatilde do ldquoreinordquo natildeo implicava nenhuma
conspiraccedilatildeo poliacutetica contra os romanos seu iacutempeto proselitista causava tanto rumores quanto
um nuacutemero crescente de conversos Eacute por isso que ateacute meados do seacuteculo II quando Justino
escreve as accedilotildees anticristatildes tecircm suas raiacutezes nas relaccedilotildees interculturais travadas no proacuteprio
processo de expansatildeo da mensagem cristatilde Isso significa que os mecanismos de controle
social empregados contra os cristatildeos pelas autoridades imperiais satildeo requeridos mediante os
problemas locais E pode-se dizer que por ser uma religiatildeo emergente outros como Pliacutenio
natildeo sabiam como proceder diante das denuacutencias e caluacutenias contra esse novo grupo
Os cristatildeos formavam um grupo em expansatildeo que estava no Impeacuterio mas viviam de
modo diferente e procuravam evitar a participaccedilatildeo de todo tipo de praacuteticas contraacuterias agraves
prescriccedilotildees doutrinaacuterias cristatildes Natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo
veneravam os deuses nacionais e seu Deus natildeo pertencia a uma naccedilatildeo mas deveria ser
reconhecido como superior a todos os outros401
398 evpei ayuca kai nekra tauta ginwskomen kai qeou morfhn mh econta cf MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 96 399 Ouv deesqai thj para avnqrwpwn ulikhj prosforaj proseilhfamen ton qeon( auvton pareconta panta orwntej ibid p 96 400 o[as oivkeia qew| evsti( tw| mhdeni ovnomati qetw| kaloumenw| MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 401 Cf MACMULLEN Ramsay Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966 Id Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997
79
Justino insere o seu testemunho pessoal
Eu mesmo quando seguia a doutrina de Platatildeo ouvia as caluacutenias contra os cristatildeos Contudo ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que eacute considerado espantoso comecei a refletir que era impossiacutevel que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres Com efeito que homem amante do prazer intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas poderia abraccedilar alegremente a morte que vai privaacute-lo de seus bens402
Prossegue sua queixa ldquobuscando condenar agrave morte alguns cristatildeos fundados nas
caluacutenias contra noacutes arrastaram tambeacutem escravos meninos e mulheres e por meio de incriacuteveis
tormentos os forccedilam a repetir contra noacutes o que o povo inventardquo403 No entanto ele eacute enfaacutetico
contra esse tipo de opiniatildeo sustentada sobre os cristatildeos ldquonada disso nos diz respeitordquo404
Justino tambeacutem nega que os cristatildeos abusariam de homens e se uniriam destemidamente com
as mulheres Seguindo para o desfecho de seu escrito ele faz uma declaraccedilatildeo reveladora ldquoA
verdade eacute que nos fazem guerra de mil modos exatamente porque ensinamos a fugir de
semelhantes doutrinas e daqueles que praticam tais coisas ou imitam tais exemplos como
mesmo nesse discurso que vos dirigimosrdquo405 Tal declaraccedilatildeo de Justino daacute margem para a
reflexatildeo sobre esse processo de ldquonegativizaccedilatildeordquo da figura do ldquooutrordquo que condena as praacuteticas
que ldquoumrdquo pratica Segundo esse pensador os cristatildeos seriam muitas vezes caluniados por
condenarem as praacuteticas dos outros que em retaliaccedilatildeo se esforccedilariam por difamar os
seguidores do nazareno
Por isso tambeacutem parece significativo considerar que os atritos com os cristatildeos natildeo
satildeo decorrentes de uma preocupaccedilatildeo poliacutetica para minar um potencial grupo subversivo Satildeo
destacados alguns aspectos desses atritos que se remetem agraves caluacutenias e maus comentaacuterios
sobre os cristatildeos que desembocam na estigmatizaccedilatildeo desse grupo Eacute preciso lembrar que o
contexto no qual o discurso de Justino estaacute inserido se refere a meados do II seacuteculo quando o
impacto do estilo de vida dos cristatildeos era sentido apenas em niacuteveis locais ainda que em
diversas regiotildees Os cristatildeos jaacute se encontravam pela Siacuteria-Palestina Egito Aacutesia Menor
Peniacutensula Itaacutelica e outras regiotildees mas o nuacutemero de fieacuteis ainda era muito pequeno diante do
tamanho do Impeacuterio Romano406 O desprezo e o combate por parte dos cristatildeos aos deuses
pagatildeos provocavam ocasionalmente reaccedilotildees e mobilizaccedilotildees contra os proacuteprios cristatildeos Por se
tratar de um grupo distinto com praacuteticas pouco conhecidas as caluacutenias se propagaram como
402 II Apol 121-2 403 II Apol 124 404 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 405 II Apol 126 406 GIBBON Edward Number of Christians in the Empire under Diocletioan and Constantine In _____ The History of the Decline and Fall of the Roman Empire ed JB New York Fred de Fau and Co 1906 pp 337 341
80
uma forma de defesa dos pagatildeos A perseguiccedilatildeo de Nero no I seacuteculo havia aberto precedentes
para a condenaccedilatildeo dos cristatildeos mas sua determinaccedilatildeo foi limitada agrave execuccedilatildeo de seu plano de
acobertar as suspeitas de seu envolvimento no incecircndio de Roma Na primeira metade do II
seacuteculo alguns tumultos procuravam condenar os cristatildeos buscando sem um enquadramento
juriacutedico algo que foi condenado por Adriano na Aacutesia Em outros casos como o que relatou
Pliacutenio a Trajano procurava-se por um crime que condenasse os cristatildeos Desse modo as
acusaccedilotildees tais como canibalismo denuacutencia de ateiacutesmo imoralidades e inclusive de
infidelidade ganhavam forccedila Essas caluacutenias somadas ao precedente neroniano fizeram com
que para muitos como Trajano e Urbico o nomen Christianum assumisse um significado
negativo Essa conotaccedilatildeo negativa no entanto natildeo se instalou apenas em funccedilatildeo das caluacutenias
Conforme destacou Paul Veyne407 ldquoas autoridades natildeo acreditavam que os cristatildeos comiam
criancinhas ou praticavam incesto todos os domingos a atitude polecircmica de Celso a respeito
da nova religiatildeo natildeo fazia alusatildeo a essas praacuteticas considerando-as um fato socialrdquo Se para o
povo em geral o oacutedio e o medo pela estranheza dos cristatildeos faziam-lhes repulsivos para as
autoridades a ausecircncia de participaccedilatildeo nas praacuteticas puacuteblicas ou mesmo a contumaacutecia em natildeo
negar a feacute diante do magistrado faziam com que os pedidos de condenaccedilatildeo fossem acatados
Neste momento cabe destacar que entre os tipos de estigmas destacados por Erving
Goffman408 estatildeo os tribais de raccedila naccedilatildeo e religiatildeo considerados suscetiacuteveis de uma
transmissatildeo por heranccedila e decontaminar outros ao redor Nesses estigmas encontram-se os
seguintes traccedilos socioloacutegicos
un individuo que podiacutea haber sido faacutecilmente aceptado en un intercambio social corriente posee un rasgo que pude imponerse por la fuerza a nuestra atencioacuten u que nos lleva a alejarnos de eacutel cuando lo encontramos anulando el llamado que nos hacen sus restantes atributos Posee un estigma una indeseable diferencia que no habiacuteamos previsto
Essa diferenccedila se torna o elemento fundamental para a praacutetica de vaacuterios tipos de
discriminaccedilatildeo Consciente ou inconscientemente se constroacutei uma teoria do estigma uma
ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do perigo que representa essa pessoa
racionalizando agraves vezes uma animosidade que se baseia em outras diferenccedilas
Goffman409 natildeo deixa de contemplar em sua anaacutelise a possibilidade de sujeitos
estigmatizados permanecerem ilhados protegidos por suas crenccedilas proacuteprias sobre sua
identidade mas ao mesmo tempo em constante contato com os outros Nesse sentido os 407 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 408 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 16 Tr A ldquoum indiviacuteduo que podia ter sido facilmente aceito num intercacircmbio social corrente possui um traccedilo que pode impor-se agrave forccedila a nossa atenccedilatildeo e que nos leva a nos afastarmos dele quando o encontramos anulando a chamada que nos fazem seus ouros atributos Possui um estigma uma indesejaacutevel diferenccedila que natildeo haviacuteamos previstordquo 409 Ibid p 17
81
seguidores da Igreja dos disciacutepulos de Jesus de Nazareacute podiam refugiar-se em suas crenccedilas
proacuteprias a saber seu proacuteprio modo de se autodefinir como ldquocristatildeosrdquo Enquanto o termo
ldquocristatildeordquo eacute capaz de referir-se a algueacutem de uma superstitio ilicita que abusa das crianccedilas que
se une promiscuamente com homens e mulheres que acredita em lendas de um deus
encarnado e nascido de uma virgem cujos fieacuteis se reuacutenem para comer sua carne em reuniotildees
secretas e assim se torna estigma de algueacutem despreziacutevel por outro lado ganha outro
significado para os seguidores do Cristo
Os atritos entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos poderiam surgir em decorrecircncia do exerciacutecio da
anunciaccedilatildeo da mensagem cristatilde ou devido ao apelo agrave mudanccedila de conduta e implementaccedilatildeo
de novos haacutebitos O caso mais emblemaacutetico apontado por Justino eacute o que aparece na II
Apologia
Certa mulher vivia com o seu marido homem dissoluto e antes de se tornar cristatilde se entregara agrave vida licenciosa Todavia logo que conheceu os ensinamentos de Cristo natildeo soacute se tornou casta como procurava tambeacutem persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme a reta razatildeo Ele poreacutem obstinado na dissoluccedilatildeo com a sua conduta desanimou a sua mulher [] Depois disso para natildeo se tornar cuacutemplice de tais iniquidades e impiedades permanecendo no matrimocircnio e partilhando o leito e a mesa com tal homem ela [] separou-se [] Despeitado [] [] a acusou diante dos tribunais dizendo que ela era cristatilde [] natildeo podendo na ocasiatildeo fazer nada contra a mulher voltou-se contra Ptolomeu que Urbico chamara ao seu tribunal por ter sido mestre dela nos ensinamentos de Cristordquo410
A uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se era cristatildeo Apoacutes
confessar foi condenado ao supliacutecio Justino ainda conta que certo Luacutecio advertiu a Urbico e
do mesmo modo foi conduzido ao supliacutecio Um terceiro sobreveio mas tambeacutem foi
condenado agrave morte411
Se fosse um caso isolado esse episoacutedio jamais poderia servir como pista para
fundamentar a hipoacutetese de que significativamente os atritos com os cristatildeos podem surgir
tambeacutem devido agrave condenaccedilatildeo das praacuteticas dos natildeo-cristatildeos Mas outras evidecircncias se
mostram Os Evangelhos do Novo Testamento (Mt 1413-12 Mc 614-28 Lc 318-20 97-9)
afirmam que Joatildeo Batista foi para a prisatildeo por repreender ao rei Herodes que vivia com
Herodiacuteades a mulher de seu irmatildeo e por outros crimes cometidos pelo governante Flaacutevio
Josefo escreveu que Herodes temeu que o povo fosse influenciado para uma sublevaccedilatildeo e por
isso encaminhou Joatildeo Batista para o caacutercere412 Embora pareccedilam discrepantes pode haver
alguma convergecircncia nas duas versotildees O ldquoprofetardquo Joatildeo Batista devia fazer repreensotildees
410 II Apol 2 411 II Apol 216-20 412 Ant Jud II 52
82
puacuteblicas condenando os haacutebitos do rei Herodes e a sua uniatildeo com Herodiacuteades o que poderia
despertar alguma inseguranccedila quanto agrave reaccedilatildeo do povo
Outras ocorrecircncias podem ser identificadas Quando Paulo repreendeu um espiacuterito de
adivinhaccedilatildeo de uma jovem escrava quando estava em Filipos na Macedocircnia os patrotildees da
moccedila se irritaram pois exploravam aquela habilidade da jovem para lucrar Por isso levaram
Paulo e seu companheiro Silas aos magistrados e disseram ldquoEsses homens estatildeo provocando
desordem em nossa cidade satildeo judeus e pregam costumes que a noacutes romanos natildeo eacute
permitido aceitar nem seguirrdquo A multidatildeo se levantou contra Paulo e Silas e depois disso
foram accediloitados e presos sem julgamento formal 413 Em Eacutefeso os artesatildeos teriam visto na
doutrina de Paulo mais do que uma ofensa agrave religiatildeo uma ameaccedila a seus negoacutecios Conta-se
que um ourives chamado Demeacutetrio que fabricava miniaturas em prata no templo de Diana
reuniu alguns artesatildeos e outros profissionais do ramo e disse-lhes
Amigos sabeis que o nosso bem-estar proveacutem dessa nossa atividade [] esse tal de Paulo com sua propaganda desencaminha muita gente natildeo soacute em Eacutefeso mas em quase toda a Aacutesia Ele afirma que natildeo satildeo deuses os produtos de matildeos humanas Natildeo eacute soacute a nossa profissatildeo que corre o risco de cair em descreacutedito mas tambeacutem o templo da grande deusa Diana acabaraacute sendo desacreditado e assim ficaraacute despojada de majestade aquela que toda a Aacutesia e o mundo inteiro adoram414
Segundo o livro de Atos dos Apoacutestolos esses homens furiosos arrastaram os
companheiros de Paulo para o teatro da cidade O tumulto se espalhou
Esses tipos de atritos envolviam o encobrimento de uma praacutetica moralmente
condenada pelos seguidores da Igreja e manifestavam a defesa dos interesses pessoais ou de
determinados grupos que sofreriam com as possiacuteveis mudanccedilas nos costumes e tradiccedilotildees
Neste uacuteltimo caso aparece algo distinto a menccedilatildeo da representaccedilatildeo de uma divindade para
uma determinada regiatildeo Diana para a Aacutesia especialmente
Yi-Fu Tuan415 aponta que nas religiotildees que vinculam o povo a um lugar os deuses
parecem estimular nos seus fieacuteis um forte sentido do passado de linhagem e continuidade no
lugar O culto aos ancestrais eacute o fundamento de tal praacutetica religiosa Atraveacutes deste sentido
histoacuterico de continuidade busca-se algum tipo de ldquoseguranccedilardquo Entre o I e II seacuteculos dC
deuses romanos e gregos satildeo conhecidos por povos de culturas diferentes mas nenhum deles
exige exclusividade O Deus dos judeus figura nesse cenaacuterio de deuses e homens e agraves vezes
se confunde com deus nenhum Os seguidores de Cristo propagadores desse mesmo Deus
mediante a crenccedila no seu messias paradoxalmente tambeacutem satildeo tachados de ateus algumas
vezes Poreacutem enquanto os ldquooutrosrdquo natildeo veem o Deus cristatildeo os cristatildeos natildeo veem outro deus
413 At 1617-40 414 At 1923-27 415 Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983 p 168
83
aleacutem do seu proacuteprio Desse modo a negaccedilatildeo dos deuses alheios pode ser interpretada por
muitos como profunda agressatildeo agraves crenccedilas que por um periacuteodo indeterminado serviram para
explicar e inspirar a vida das pessoas que nasceram cresceram e morreram em determinado
local
A estigmatizaccedilatildeo dos ldquocristatildeosrdquo eacute portanto em grande medida uma reaccedilatildeo das
pessoas que satildeo alvo dos cristatildeos no exerciacutecio de sua feacute Pois esses cristatildeos ndash dos quais
Justino eacute um ndash manifestam o repuacutedio a tudo aquilo que se associa a uma moral que lhes seja
estranha e que se vincule agrave veneraccedilatildeo de outros deuses que natildeo sejam o Deus do seu Cristo
Diante das reaccedilotildees adversas que lhes satildeo imputadas sob a forma de duras penas e
condenaccedilotildees Justino teologiza o seu estigma Isso natildeo eacute uma invenccedilatildeo sua Talvez lhe caiba o
meacuterito de tecirc-lo feito habilidosamente poreacutem haacute indiacutecios desse procedimento anos antes de
seus escritos
Na I Epiacutestola de Pedro (413-1416) o autor frisa a gloacuteria do sofrimento dos cristatildeos
nas perseguiccedilotildees
alegrai-vos por participar dos sofrimentos de Cristo para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua gloacuteria Se sofreis injuacuterias por causa do nome de Cristo sois felizes pois o Espiacuterito da gloacuteria o Espiacuterito de Deus repousa sobre voacutes [] Se poreacutem algueacutem sofrer por ser cristatildeo natildeo se envergonhe Antes glorifique a Deus por este nome
Antes ainda eacute Paulo quem permitiraacute um trocadilho didaacutetico para que melhor se
compreenda essa formulaccedilatildeo teoloacutegica por traacutes do sofrimento dos fieacuteis da Igreja Ao finalizar
sua Epiacutestola aos Gaacutelatas (617) escreve ldquo eu trago em meu corpo as marcas [stigmata] de
Cristordquo416 Como o proacuteprio Goffman observou para os gregos estigma significava
basicamente algum tipo de signo ou marca na pele417 Paulo evidentemente se refere aos sinais
do sofrimento enfrentado devido agraves perseguiccedilotildees sofridas no exerciacutecio do seu apostolado Natildeo
existe nenhuma ligaccedilatildeo entre essa passagem e o discurso de Justino O que eacute preciso notar
atentamente eacute que assim como Paulo transforma seus estigmas em seu testemunho na
perspectiva de Justino a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute representada como ldquoas marcasrdquo de sua
identidade que se pretende afirmar Essa identidade por ele afirmada eacute distinta dos devaneios
caluniosos que lhes satildeo associados pelos seus opositores Ser cristatildeo para Justino eacute a razatildeo de
natildeo serem perseguidos e ao mesmo tempo o motivo pelo qual satildeo perseguidos A
416 Versatildeo grega evgw gar ta stigmata tou Kuriou VIhsou evn tw| swmati mou bastazw ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) [Bible Work 5 Software 2002] 417 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 11 Para maiores informaccedilotildees sobre o significado do termo estigma cf LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940
84
perseguiccedilatildeo seraacute interpretada como uma reaccedilatildeo dos ldquomaus democircniosrdquo contra os ldquoverdadeiros
cristatildeosrdquo como seraacute examinado no proacuteximo capiacutetulo
Seus acusadores estariam movidos por paixatildeo irracional e ldquoaguilhoados por democircnios
perversosrdquo418 por isso natildeo conseguiam enxergar a verdade anunciada por esses cristatildeos
Mesmo tendo grande responsabilidade na ocultaccedilatildeo dessa verdade os democircnios natildeo satildeo os
uacutenicos culpados Escreve Justino a respeito dos judeus
As outras naccedilotildees natildeo tecircm tanta culpa da iniquidade que se comete contra noacutes e contra Cristo como voacutes que sois causa do preconceito injusto que elas tecircm contra ele e contra noacutes que viemos dele [] escolhestes homens especiais de Jerusaleacutem e os mandastes por todo o mundo a fim de espalhar que havia aparecido uma iacutempia seita de cristatildeos e espalharam caluacutenias que todos aqueles que natildeo vos conhecem repetem contra noacutes419
Os judeus tecircm uma parcela de responsabilidade pelos preconceitos e caluacutenias herdados
pelos gentios Em vaacuterios episoacutedios no livro dos Atos dos Apoacutestolos haacute a mesma disposiccedilatildeo
cristatilde para atribuir aos judeus a culpa pelas delaccedilotildees agraves autoridades romanas para reclamar
dos cristatildeos No entanto eacute pouco provaacutevel que o apologista assim sintetize a causa das
caluacutenias e puniccedilotildees contra os cristatildeos Mas haacute uma disposiccedilatildeo por parte do apologista em
afastar os cristatildeos dos judeus Semelhantemente Justino tambeacutem natildeo demonstra nenhuma
simpatia por aqueles que ele chama de ldquocristatildeos soacute de nomerdquo
Sobre esses que natildeo viviam como Cristo teria ensinado o filoacutesofo orienta que ldquosejam
declarados como natildeo-cristatildeosrdquo420 por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de
Cristo Para os pagatildeos provavelmente natildeo haveria distinccedilatildeo entre esses grupos Justino
poreacutem chama a atenccedilatildeo para o fato de que esses satildeo denominados segundo o nome de quem
promoveu cada doutrina especiacutefica Eram eles os marcionistas valentinianos basilidianos
saturnilianos e com outros nomes421
Um dos argumentos de que a accedilatildeo dos ldquodemocircnios perversosrdquo move seus opositores
contra os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo eacute que os cristatildeos dessas outras ldquoheresiasrdquo natildeo satildeo perseguidos
pelas autoridades422 Quanto a esses ldquooutrosrdquo pelos quais o apologista natildeo demonstra
nenhuma simpatia sua recomendaccedilatildeo eacute que sejam punidos423
Os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo segundo Justino satildeo aqueles que estatildeo prontos a confessar
que satildeo cristatildeos a ponto de padecerem Desse modo recorrendo ao trocadilho didaacutetico
desenvolvido a partir da fala paulina esses homens de feacute colocam-se agrave disposiccedilatildeo para
418 I Apol 51ss 419 Diaacutelogo com Trifatildeo 171 420 I Apol 168 421 Diaacutelogo com Trifatildeo 355-6 422 I Apol 267 423 I Apol 1614
85
receber os ldquoestigmas de Cristordquo a saber as marcas das perseguiccedilotildees sobre seus corpos em
razatildeo de suas crenccedilas Satildeo persuadidos a crer que a verdadeira recompensa seraacute atribuiacuteda para
a vida eterna que em muito excede ao sofrimento transitoacuterio desse mundo Cabe-lhes
anunciar e testemunhar a feacute a todos mesmo sob a insiacutegnia das tribulaccedilotildees Por isso Justino
declara
Decapitam-nos pregam-nos em cruzes atiram-nos agraves feras agrave prisatildeo ao fogo e nos submetem a todo tipo de torturas Todavia estaacute agrave vista de todos que natildeo apostatamos de nossa feacute Ao contraacuterio quanto maiores satildeo os nossos sofrimentos mais ainda se multiplicam os que abraccedilam a feacute e a piedade pelo nome de Jesus424
Essa missatildeo cristatilde implica tambeacutem em buscar convencer aos seus opositores de que
os ldquocristatildeosrdquo natildeo deviam ser perseguidos simplesmente por denominarem-se ldquocristatildeosrdquo
33 Sobre as leis e imoralidades
Justino faz saber que a confissatildeo de cristianismo diante de um magistrado acarretava a
pena de morte425 Isto eacute ser ldquocristatildeordquo poderia implicar na condenaccedilatildeo agrave pena de morte426
Uma das interrogaccedilotildees centrais desses escritos de Justino eacute sobre o fato de os cristatildeos
serem condenados por confessarem esse nome Seria um absurdo pensar que os romanos
condenariam os membros dessa superstitio simplesmente por sustentarem um nome e eacute
justamente esse absurdo que o apologista busca destacar para ridicularizar o procedimento dos
magistrados Na verdade os acusados de cristianismo natildeo eram condenados apenas pelo
ldquonomerdquo mas sim pelo que ele representava uma superstitio nova maleacutefica depravada e
excessiva que envolvia os cristatildeos em flagitia que sustentava certo desprezo pela religiatildeo
tradicional Mas pelo fato de natildeo haver uma lei universal para este caso os governantes
tinham liberdade para julgar as ocorrecircncias de modo particular As recomendaccedilotildees de Trajano
e Adriano ao dispensarem a busca pelos cristatildeos limitaram os processos a apenas denuacutencias
formais A nova religiatildeo ainda natildeo se mostrava um problema seacuterio para o Impeacuterio Eacute provaacutevel
que essas medidas visem solucionar os atritos e inibir os conflitos locais ocasionados pelas
diferenccedilas religiosas O caraacuteter flexiacutevel do processo que permitia que o acusado mudasse de
ideia quanto a sua religiatildeo no meio do processo e recebesse a absolviccedilatildeo eacute o elemento
fundamental para se argumentar que os cristatildeos eram condenados pelo ldquonomerdquo
424 Dialogo com Trifatildeo 110 4 425 I Apol 81-2 No I111 lecirc-se ldquoconfessamos ser cristatildeos sabendo como sabemos que tal confissatildeo traz consigo a pena de morterdquo 426 ldquo e nos tiram a vida sem termos cometido crime algumrdquo (I241) Mas o consolo dos fieacuteis estaacute na feacute ldquo aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis fazerrdquo (I456)
86
Justino deseja que os romanos compreendam a maneira de pensar dos cristatildeos e que se
desvencilhem da ideia negativa sobre os fieacuteis Desse modo depois da exposiccedilatildeo da sua I
Apologia ele escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da verdade
respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees despreze-as Natildeo
decreteis poreacutem pena de morte como contra inimigos contra aqueles que nenhum crime
cometemrdquo427
Como jaacute foi mencionado no Capiacutetulo II dessa dissertaccedilatildeo Justino procura alinhar sua
Apologia ao rescrito de Adriano o qual ele interpreta convertendo-o sutilmente a favor dos
cristatildeos
Noacutes vos pedimos portanto que sejam examinadas accedilotildees de todos os que vos satildeo denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo ter cometido nenhum crime428
Mesmo assim o apologista sustenta que sua reclamaccedilatildeo natildeo estaacute fundamentada no rescrito de
Adriano mas em um senso de justiccedila que permeia sua peticcedilatildeo429
Sua interpretaccedilatildeo considera que mediante as obras dos democircnios perversos os cristatildeos
satildeo buscados e condenados agrave morte devido a caluacutenias O apologista aponta atentados contra
escravos meninos e mulheres obrigando-os a confessarem coisas falsas430 Segundo sua
leitura teoloacutegica desses eventos os cristatildeos eram acusados de tais praacuteticas justamente porque
as condenavam e assim fazendo incomodam aqueles que procediam dissolutamente431
Tendo em vista que a razatildeo para que as autoridades acatassem as denuacutencias dirigidas
contra os cristatildeos estava no fato de que esta superstitio era uma ameaccedila agrave ordem em funccedilatildeo da
sua expectativa sobre o ldquoreino de Deusrdquo Justino inclui no seu projeto apologeacutetico uma
explanaccedilatildeo sobre a contribuiccedilatildeo cristatilde ao estabelecimento da paz no Impeacuterio Natildeo se podia
esperar que uma religiatildeo estrangeira principalmente oriunda de uma naccedilatildeo problemaacutetica
como a dos judeus pudesse representar algum benefiacutecio A sua proacutepria indefiniccedilatildeo enquanto
religiatildeo dificultaria essa possibilidade e o seu caraacuteter exclusivista acentuaria os atritos sociais
Mas o pensador de Flaacutevia Neaacutepolis eacute direto em dizer
Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo e salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que
427 I651 428 I74 429 ldquo natildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo (I683) 430 II124 431 II12
87
caminharia para a sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos e se adornaria de virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos432
A proposta de Justino apresenta o valor das crenccedilas cristatildes O desenvolvimento da sua
teoria seraacute analisado com mais detalhes no proacuteximo capiacutetulo Neste momento analisar-se-aacute a
reprovaccedilatildeo da moralidade dos natildeo-cristatildeos Segundo Paul Veyne433 no mundo greco-romano
ldquomoral e religiatildeo estavam parcialmente ligadas porque se pedia aos deuses que protegessem
os bons e castigassem os maus Deuses e homens julgavam da mesma maneira os bons e
maus pois compartilhavam da mesma moralrdquo Para os deuses a moral dos mortais tambeacutem
natildeo interessava A opiniatildeo humana sobre os deuses tambeacutem variava desde a atribuiccedilatildeo de
virtudes ateacute a laacutestima por serem egoiacutestas e mercenaacuterios Natildeo era possiacutevel pensar nos deuses
como senhores vigilantes da justiccedila No entanto os deuses poderiam vingar as injusticcedilas434
Natildeo se deve pensar que a religiatildeo de gregos e romanos era estaacutetica Satildeo identificadas
transformaccedilotildees durante os seacuteculos A filosofia as mudanccedilas culturais e a paideia
relacionaram a divindade ao sumo bem e acentuou os contornos entre a religiosidade das
pessoas comuns e agrave dos membros das classes elevadas e dos letrados435
Varratildeo436 atribuiu trecircs concepccedilotildees para os deuses os deuses das cidades os deuses
vistos pelos filoacutesofos e os deuses das narrativas dos poetas Segundo Paul Veyne437
inspirados por Euriacutepides os estoicos estavam convencidos de que os deuses natildeo podiam se
portar mal Os deuses dos filoacutesofos se afastavam das narrativas mitoloacutegicas anteriores para
assumirem agraves vezes o aacutepice da virtude Para Platatildeo os deuses eram a medida de todas as
coisas e natildeo seria conveniente receberem oferendas de pessoas desonradas438 A relaccedilatildeo entre
moral e religiatildeo passou por transformaccedilatildeo mas essa mudanccedila ficou restrita a alguns ciacuterculos
sociais Para alguns criacuteticos e pensadores o temor religioso seria uacutetil para a contensatildeo
humana Mas essa natildeo era uma opiniatildeo comum Isoacutecrates (viveu de 436 a 338 aC) escreveu
que ldquoaqueles que creem que os favores dos deuses e suas puniccedilotildees satildeo maiores do que
realmente satildeo prestam um grande serviccedilo agrave sociedaderdquo439 Mais tarde Poliacutebio (viveu entre 203
aC ndash 120 aC) ao comparar os romanos aos gregos tambeacutem destacou o valor das crenccedilas
religiosas romanas no estabelecimento da ordem
432 I121-3 433 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 220 434 Ibid p 239 435 BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 pp 305-332 436 Apud Agostinho de Hipona Cidade de Deus IV311 Plutarco se referia a trecircs visotildees sobre os deuses a dos filoacutesofos poetas e legisladores (Amatorius XVIII10765c) 437 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 256 438 Leis IV716c717 439 Busires 1124
88
muitos poderiam pensar que isso eacute irresponsaacutevel mas [] seu objetivo eacute usar isso como forma de controle sobre as pessoas comuns Se era possiacutevel formar um Estado inteiro de filoacutesofos isso seria no entanto desnecessaacuterio Mas vendo que as multidotildees satildeo inconstantes cheios de desejos desregrados iras irracionais e paixatildeo violenta o uacutenico recurso eacute mantecirc-los sob controle pelo terror misterioso e efeitos cecircnicos desse tipo440
Ainda nesse sentido ele afirma que tambeacutem natildeo era sem sentido que os antigos
promoviam entre as pessoas simples diversas opiniotildees sobre os deuses e a crenccedila no Hades
Tendo em vista essa importante funccedilatildeo da religiatildeo na manutenccedilatildeo da ordem Poliacutebio pensa
que aqueles que em seu tempo abriam matildeo da religiatildeo agiram de forma precipitada e
insensata Assim ele destaca
Esta eacute a razatildeo por que aleacutem de tudo se aos estadistas gregos eacute confiada uma uacutenica moeda embora protegidos por dez funcionaacuterios de vigilacircncia muitos selos e o dobro de testemunhas jaacute natildeo podem ser induzidos a manter a feacute enquanto entre os romanos em suas magistraturas e embaixadas homens tecircm cuidado de grandes quantias de dinheiro e ainda por puro respeito a seus juramentos manteacutem a feacute intacta E em outras naccedilotildees eacute raro encontrar um homem que meta suas matildeos fora do eraacuterio puacuteblico e eacute inteiramente puro em tais assuntos Mas entre os romanos eacute raro encontrar um homem cometendo tal crime441
A necessidade de uma sociedade ter mecanismos para estabelecer a ldquoconfianccedilardquo ou a
ldquoboa feacuterdquo entre as relaccedilotildees humanas eacute sublinhada diante dos efeitos dos questionamentos
cultivados pela filosofia e do proacuteprio ideal poliacutetico-filosoacutefico que poderia diminuir o valor da
religiatildeo
No seacuteculo II dC eacute Justino quem olha as mais distintas crenccedilas do Impeacuterio com um
tom de superioridade proporcionada pela sua proacutepria religiatildeo Mas haacute um espaccedilo de
aproximadamente trecircs seacuteculos entre Poliacutebio por exemplo e Justino No II seacuteculo dC a
filosofia jaacute havia se tornado um elemento essencial da cultura romana e o fluxo das suas
interrogaccedilotildees e das suas performances puacuteblicas acarretavam algumas transformaccedilotildees de
caraacuteter ideoloacutegico na sociedade Como escreveu Paul Veyne
o povo nunca deixou de crer e rezar Mas em que um romano culto mdash um Ciacutecero um Horaacutecio um imperador um senador um notaacutevel mdash podia crer dentro dessa fantasmagoria dos deuses ancestrais A resposta eacute categoacuterica natildeo podia crer em nada leu Platatildeo e Aristoacuteteles que quatro seacuteculos antes tampouco acreditavam Virgiacutelio alma religiosa acredita na Providecircncia mas natildeo nos deuses de seus proacuteprios poemas mdash Vecircnus Juno ou Apolo442
Justino mostra algumas razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo compactuavam com os
demais deuses e com a religiatildeo tradicional romana e ainda aponta aquilo que considera ser o
caraacuteter racional da verdadeira filosofia isto eacute da religiatildeo cristatilde Por isso ele escreve ldquoas
440 Historias VI5614 441 Ibid 442 Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197
89
nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo443 Poreacutem
como ele proacuteprio diz ldquonos condenam sem saber se praticamos as coisas vergonhosas de que
nos acusam comprazem-se com deuses que as fizeram e ainda exigem dos homens coisas
semelhantesrdquo444 Desse modo o apologista destaca a incoerecircncia em se pensar que os povos
seriam contidos por temor a deuses tatildeo imoderados quanto os proacuteprios homens em suas
paixotildees Por outro lado tambeacutem o temor ao Imperador ou a fidelidade demonstrada por
meio do culto imperial satildeo apontados como algo que representa uma forma superficial de
controle pois como Justino escreve ldquoaqueles que agora por medo das leis e dos castigos por
voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los [] sabem que sois homens e
que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutesrdquo445 Esse ldquomedordquo das leis era um temor ao que eacute
humano Desse modo Justino sublinha que a ausecircncia de mecanismo superior de controle
como a absorccedilatildeo da crenccedila em um Deus onisciente como o Deus dos cristatildeos favorecia a
desobediecircncia agraves leis
O apologista apresenta um mecanismo de controle que julga ser muito mais eficiente
ldquose se inteirassem e se persuadissem de que natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma
accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os
modos como voacutes mesmos haveis de convirrdquo Por essa razatildeo ele considera que a expansatildeo do
cristianismo contribuiria para que as pessoas agissem de modo moderado e respeitoso de
acordo com a moral cultivada na comunidade e ainda em atentar fidelidade ao Impeacuterio
Esse ldquotemorrdquo religioso proveniente de uma crenccedila distinta da religiatildeo tradicional se
enquadra no que os romanos chamavam de superstitio As superstitiones e os cultos locais
eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob atenccedilatildeo com destacam Mary Beard John North e
Simon Price446 as controveacutersias poderiam desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade
romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito em 172 a 173 aC447 na incursatildeo da Traacutecia que
foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que conseguiu seguidores448 entre os druidas da
Gaacutelia profecias indicavam que o incecircndio de Roma era o sinal do fim do domiacutenio romano
sobre aquela regiatildeo fazendo com que uma revolta nas fronteiras do Reno fosse animada por
essas profecias449 e as revoltas judaicas contemporacircneas a Justino satildeo outro exemplo
443 II153 444 II142 445 I123 446 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 447 Cassius Dio Hist Rom LXXII4 448 Ibid LI255 LIV345-7 449 Taacutecito Historias IV546165 V2224
90
Todavia o apologista procura convencer de que os cristatildeos natildeo suportavam nenhum tipo de
ameaccedila agrave sociedade sob o domiacutenio romano
Sua estrateacutegia apologeacutetica portanto natildeo pode negar que as crenccedilas cristatildes reprovavam
uma seacuterie de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais caracterizam um
quadro da organizaccedilatildeo social No entanto essa nova religiatildeo deveria ser encarada como uma
dessemelhanccedila absoluta Vaacuterios pontos de contato entre a cultura pagatilde e a doutrina dos
cristatildeos satildeo estabelecidos para convencer sobre esse aspecto450 Os deuses e a religiatildeo pagatilde
deveriam ser rejeitados por serem incoerentes com a moralidade segundo as narrativas
antigas A feacute cristatilde eacute apresentada como um mecanismo eficaz de controle e de organizaccedilatildeo
social que exige uma mudanccedila subjetiva antes de um reflexo socialmente objetivo Por isso
segundo seu ponto de vista a condenaccedilatildeo dos cristatildeos acatada pelos governantes locais eacute uma
forma equivocada de manter a ordem Em grande medida essa forma de controle que emerge
dos clamores reativos populares estaria impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do
nomen Christianum sem conhecerem de fato a forma de pensar dos cristatildeos Por isso Justino
procura afirmar que os cristatildeos satildeo os melhores auxiliadores na manutenccedilatildeo da paz no
Impeacuterio
450 Esse ponto seraacute analisado no proacuteximo capiacutetulo
91
CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM SOCIAL
Justino combate agrave forma de controle que recrimina os cristatildeos e que segundo seu
ponto de vista tem fundamento nas accedilotildees dos democircnios Eacute dentro do seu objetivo apologeacutetico
que emerge sua tese da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem no Impeacuterio Eacute a
primeira vez que a religiatildeo emergente dos cristatildeos aparece assumidamente como um
instrumento a favor do Impeacuterio Natildeo havia nenhuma razatildeo para esse tipo de preocupaccedilatildeo por
parte dos cristatildeos A tese da contribuiccedilatildeo cristatilde agrave manutenccedilatildeo da ordem vem em oposiccedilatildeo agrave
ideia de que os cristatildeos seriam uma ameaccedila social Todavia eacute permitido supor que diante da
mira dos ldquoperseguidoresrdquo locais nesse periacuteodo natildeo era uacutetil jurar fidelidade ao Impeacuterio
As caluacutenias e a proacutepria inclinaccedilatildeo a repudiar as superstitones estrangeiras faziam com
que os cristatildeos fossem reprimidos em diferentes niacuteveis pelos pagatildeos do Impeacuterio Justino
apresenta uma forma de controle cristatilde que julga ser mais eficiente do que aquelas pagatildes
empregadas contra os proacuteprios cristatildeos A base de tal eficiecircncia estaacute no caraacuteter de sua
doutrina que quando absorvida deveria conduzir os crentes a uma conduta pautada por regras
morais que estabelecem precircmio ou castigo eterno a todos depois da morte de acordo com seu
meacuterito em vida A doutrina cristatilde eacute uma incentivadora da moral
Ao recorrer ao imperador o apologista natildeo apenas reafirma a fidelidade dos cristatildeos
mas expotildee o caraacuteter de sua doutrina e procura ser o mais convincente possiacutevel sobre a
razoabilidade de suas crenccedilas
41 O controle absoluto do controlador absoluto
Em primeiro lugar Justino sustenta que os cristatildeos satildeo os ldquomelhores ajudantes e
aliados para a manutenccedilatildeo da pazrdquo devido ao caraacuteter das suas doutrinas como a de que ldquonatildeo
eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que
cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildeesrdquo (I Apol
121) Segundo essa perspectiva a crenccedila em um Deus onisciente seria capaz de induzir os
que a deteacutem a se comedirem Nesse sentido ele destaca ldquoningueacutem escolheria por um
momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se
92
conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e
livrar-se dos castigosrdquo (I Apol 122) Esse mecanismo de controle apresenta uma estrutura
limitadora das accedilotildees humanas que eacute dependente do conhecimento das normas que determinam
a recompensa e o castigo O traccedilo marcante desse mecanismo eacute que existe um vigilante
constante de quem natildeo se pode esconder absolutamente nada nem mesmo as intenccedilotildees
Haacute certa dependecircncia do sentimento de temor pessoal diante da ideia de vigilacircncia
constante pelos olhos infaliacuteveis de um ser superior que julgaraacute com rigor as accedilotildees humanas de
uma vez por todas num momento aguardado mas desconhecido Todavia para que ele
funcione eacute preciso que exista um miacutenimo de plausibilidade nas ideias que sustentam o
controle absoluto de Deus Ou seja ningueacutem temeria algo que natildeo fizesse o miacutenimo sentido
Aqueles que combatiam os cristatildeos natildeo se intimidavam diante do Deus cristatildeo e em alguns
casos acreditavam estar sendo piedosos combatendo as crenccedilas descabidas desse novo grupo
Atentando para essas circunstacircncias Justino se empenha em mostrar correlaccedilotildees entre
elementos do pensamento cristatildeo e outros comuns agraves culturas no Impeacuterio
A ameaccedila do castigo no poacutes-morte eacute fundamental na estrutura da doutrina da justiccedila
divina Por isso para que sua estrateacutegia de persuasatildeo funcione ele se empenha em demonstrar
ldquoas evidecircnciasrdquo da vida eterna ou do poacutes-morte O apologista admite que ldquose a morte
terminasse na inconsciecircncia seria uma boa sorte para todos os malvadosrdquo (I181) uma
reflexatildeo comum tambeacutem a Plutarco (Consolatio ad Apollonium 11107c) Todavia Justino
manteacutem que a consciecircncia permanece e que a conduta humana eacute passiacutevel de puniccedilatildeo ou
precircmio em um momento aleacutem da vida451 Sua linha de pensamento sobre esse assunto
representa apenas uma das correntes de pensamento que emergiam entre os cristatildeos no seacuteculo
II452
Para minimizar qualquer exotismo no reconhecimento dessa doutrina cristatilde ele
menciona a necromancia453 as visotildees obtidas atraveacutes de crianccedilas puras454 os que satildeo
451 Como Platatildeo discorrendo sobre a vida apoacutes a morte em Phaedo 107c 452 Cf POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005 passim 453 Justino usa o termo nekuomanteiaj que deve ser entendido como ldquoconsulta aos mortosrdquo cf I183 454 Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p178) editou essa passagem da seguinte forma ai` avdiafqorwn paidwn evpopteuseij [les divinations faites sur les entrailles drsquoenfants innocents] Seu texto grego foi fiel ao MS A que sugere o termo avdiafqorwn no lugar de diafqorwn mas a versatildeo em francecircs se distanciou muito do significado estrito Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 59) observou a nota marginal do MS A e acrescentou tambeacutem a conjunccedilatildeo div proporcionando a seguinte frase ai` div avdiafqorwn paidwn evpopteuseij Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 123) apresentam uma correccedilatildeo que parece ser a mais convincente Em vez de substituir diafqorwn por avdiafqorwn eles simplesmente dividem a palavra que aparece no MS A em duas div avfqorwn paidwn evpopteuseij [visions obtained through uncorrupted children] Natildeo eacute possiacutevel dizer se se trata de uma
93
chamados entre os magos de espiacuteritos dos sonhos e espiacuteritos assistentes para assim tentar
estabelecer que mesmo depois da morte as almas conservam a consciecircncia Os casos de
possessatildeo ou loucura quando segundo sua concepccedilatildeo sobre o que se pensava naquela eacutepoca
alguns eram ldquoarrebatados e agitados pelas almas dos mortosrdquo tambeacutem satildeo alocados ao lado
dos oraacuteculos de Anfiloco de Dodona de Piton e outros semelhantes A descida de Ulisses ateacute
a regiatildeo dos mortos na obra de Homero (Odisseia10101 ndash 111ss) as doutrinas de escritores
como Empeacutedocles e Pitaacutegoras Platatildeo e outros que disseram coisas parecidas tambeacutem satildeo
destacadas
A ideia de uma consciecircncia apoacutes a morte fiacutesica natildeo era algo estranho no mundo greco-
romano da eacutepoca de Justino Mas o apologista apresenta uma elaboraccedilatildeo teoloacutegica sobre o
ldquocastigo ou salvaccedilatildeo eternardquo que deveria desempenhar uma funccedilatildeo coercitiva sobre as pessoas
em geral Essas ideias cristatildes satildeo herdeiras de elementos do pensamento judaico jaacute sob a
influecircncia do helenismo Desse modo satildeo encontrados aspectos comuns ao judaiacutesmo como o
da justiccedila divina e outros relativos a outras culturas como a existecircncia da alma455
Segundo Dag Oistein Endsjo456 os judeus sofreram a influecircncia da cultura grega sobre
as ideias do poacutes-morte sem que isso represente uma planificaccedilatildeo das duas culturas A
correspondecircncia entre alguns elementos aparece por exemplo na traduccedilatildeo de lw a v para avdej
na LXX proporcionando a associaccedilatildeo entre a ldquosepulturardquo e o ldquosubmundo dos mortosrdquo
Associaccedilatildeo que remonta a Odisseia de Homero e se estende para niacuteveis mais complexos
Conforme tambeacutem considerou E D Wright457 judeus e cristatildeos emprestaram alguns
elementos da cultura greco-romana para a elaboraccedilatildeo de suas cosmologias Mas as
consulta de crianccedilas vivas ou mortas mas poder haver alguma relaccedilatildeo com as passagens sobre as ldquocrianccedilas purasrdquo nos Papyri Graecae Magicae e principalmente com a Historia Eclesiaacutestica (III1311-12) de Soacutecrates 455 Devido aos objetivos desta pesquisa seraacute necessaacuterio ser bastante seletivo neste ponto A anaacutelise do desenvolvimento das ideias cristatildes sobre a vida apoacutes a morte exigiria uma anaacutelise de suas raiacutezes na cultura egeia entre os egiacutepcios mesopotacircmicos no zoroastrismo na cultura grega em geral e nas vaacuterias fases da religiatildeo dos judeus As correlaccedilotildees estabelecidas neste capiacutetulo satildeo aprofundamentos de toacutepicos sugeridos pelos proacuteprio Justino no decorrer de sua anaacutelises Para mais informaccedilotildees cf SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946 OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992 COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987 DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000 SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006 456 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 457 The History of Heaven New York Oxford University Press 2000 p 139
94
correlaccedilotildees se estendem tambeacutem para com a cultura persa que segundo Alan Segal458
apresentava aspectos muito atrativos ao povo simples
O desenvolvimento das ideias sobre o poacutes-morte entre os judeus eacute complexa Haacute
algum consenso entre os estudiosos de que a ideia de ldquoressurreiccedilatildeordquo tenha aparecido
tardiamente no judaiacutesmo Mas as Escrituras judaicas apresentam referecircncias a algum tipo de
existecircncia apoacutes a morte fiacutesica Um caso emblemaacutetico acontece quando o rei Saul procurou
uma b A a ecircb A a ecircb A a ecircb A a ecirc-t l[]B [evocadora de espiacuteritos] para poder falar com o falecido profeta Samuel (I
Samuel 281-7) praacutetica proibida pela Lei (Dt 189-12) No I seacutec dC a ressurreiccedilatildeo era
motivo de disputas entre saduceus e fariseus459 Os saduceus natildeo acreditavam na ressurreiccedilatildeo
dos mortos Sobre os fariseus Flaacutevio Josefo460 escreveu que ldquotoda alma [] eacute impereciacutevel
mas somente a alma dos bons passa a outro corpo Por outro lado a alma dos homens maus
estaacute sujeita agrave puniccedilatildeo eternardquo Os saduceus satildeo descritos como aqueles que ldquoacreditavam que
Deus natildeo estaacute interessado em se agimos bem ou mal [] agir bem ou mal eacute apenas uma
questatildeo de escolha humana e que uma ou outra pertence a cada um assim podem agir como
bem entendemrdquo461 Tambeacutem descartam a crenccedila ldquona duraccedilatildeo imortal da alma e na puniccedilatildeo e
recompensa no Hadesrdquo462 Na contramatildeo dessas ideias Josefo escreve que os fariseus
ldquotambeacutem acreditam que a alma tem o poder de sobreviver agrave morte em si e que embaixo da
terra haveraacute recompensa ou puniccedilatildeo para a vida de viacutecio ou virtude que se viveu nesta
vidardquo463
Natildeo passou despercebido a Vicente Dobroduka464 que o vocabulaacuterio empregado pelo
historiador judeu se assemelha razoavelmente ao de Platatildeo465 Quer seja por uma intenccedilatildeo do
autor em aproximar a doutrina farisaica agrave filosofia ou pela adaptaccedilatildeo de um editor posterior
os pontos de semelhanccedila entre essas doutrinas e a cultura helecircnica satildeo evidentes Mesmo sem
ser uma forma de pensar que atraiacutesse a todos os judeus naquela eacutepoca natildeo haacute razotildees para se
458 Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 p 394 Cf as noccedilotildees escatoloacutegicas persas que teriam influenciado a apocaliacuteptica judaica em RUSSELL D S The Method and Message of Jewish ApocalypticPhiladelphia Westminster Press 1964 p 19 e em SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008 p 314 Entre essas noccedilotildees esta a ideia da ressurreiccedilatildeo corporal Para uma visatildeo geral da escatologia do Avesta cf MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975 pp 177-207 459 Mt 2223-33 Josefo Ant Jud 1814 Guer Jud 28 460 Guer Jud 2162ss 461 Guer Jud 2162ss 462 Guer Jud 2162ss 463 Ant Jud 1814 464 DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 2005 p 24 465 Meno 81b5 Feacutedon 70a8 e 72a8
95
duvidar que a ideia de uma recompensa futura baseada nas accedilotildees humanas era amplamente
conhecida entre os judeus Como escreveu Elizacircngela A Sousa466
certos elementos nas ideias particulares de juiacutezo satildeo compartilhados por uma e outra cultura assinalando algum tipo de intercacircmbio existente entre elas o que ainda outra vez nos coloca de frente com o pressuposto de que certos aspectos culturais (e religiosos) se constituem se natildeo totalmente a partir de trocas simboacutelicas pelo menos em parte satildeo influenciados por elas
A tradiccedilatildeo aponta que Paulo era um fariseu467 e a sua crenccedila na ressurreiccedilatildeo se
desenvolveraacute entre os cristatildeos No entanto eacute preciso lembrar como destacou D O Sousa468
que entre os cristatildeos ldquonatildeo havia uma unicidade de pensamento em continuidade com a
escatologia judaicardquo No processo proselitista de comunicaccedilatildeo da mensagem cristatilde os fieacuteis
enfrentaram os questionamentos de outros grupos Segundo o relato de Atos dos Apoacutestolos
(1716-34) Paulo enfrentou a resistecircncia dos filoacutesofos epicureus e estoicos no areoacutepago em
Atenas e em outro episoacutedio precisou repreender os coriacutentios em carta porque alguns estavam
sustentando que natildeo existia ressurreiccedilatildeo (I Co 1512-33) Embora os relatos de ressurreiccedilatildeo
dos mortos e da existecircncia de uma consciecircncia apoacutes a morte fossem comuns ao mundo greco-
romano como destaca Dag Oistein Endsjo469 natildeo existia nenhum consenso e eacute possiacutevel
distinguir essas contraposiccedilotildees em pelo menos dois grupos os criacuteticos intelectuais que
incluiacuteam filoacutesofos oradores e escritores e por outro lado a maioria sem instruccedilatildeo
De acordo com Lewis Richard Farnell470 a especulaccedilatildeo filosoacutefica grega natildeo poderia
ser considerada uma testemunha plena da mentalidade e da feacute daquela eacutepoca da cultura greco-
romana Estrabatildeo471 escreveu provavelmente no iniacutecio do I seacuteculo dC que ldquofilosofia era
algo para poucos enquanto poesia era mais uacutetil para as pessoas em geralrdquo No mesmo sentido
Plutarco472 admite que em sua eacutepoca apenas poucos conheciam as Leis de Platatildeo enquanto os
escritos de Homero eram ainda amplamente disseminados Pausacircnias no seacuteculo II dC
escreveu que Platatildeo a quem ele chama de ldquoo maior dos filoacutesofosrdquo473 tinha suas ideias
recebidas somente ldquopor alguns dos gregosrdquo474 Tudo indica que a situaccedilatildeo no II seacuteculo era a
466 SOARES Elizangela A Variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte desenvolvimento de uma crenccedila no judaiacutesmo do segundo templo 127 f (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2006 p 104 467 At 223 468 SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 setdez 2009 p 412 469 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 passim 470 Ibid p 386 471 Geografia 128 472 Moralia 328de 473 Descriccedilatildeo da Greacutecia 4324 474 Ibid 1303
96
mesma que Oriacutegenes475 descreve no seacuteculo seguinte ldquoeacute faacutecil de fato observar que Platatildeo eacute
encontrado somente nas matildeos daqueles que professam serem homens das letrasrdquo
Conforme destacou Henry Chadwick476 o estudo da metafiacutesica platocircnica foi peculiar a
poucos de uma ldquoaristocracia intelectualrdquo Nesse sentido Ramsay MacMullen477 tambeacutem
apontou que a reflexatildeo filosoacutefica natildeo apresentou nenhuma influecircncia detectaacutevel agrave praacutetica
cuacuteltica da religiatildeo tradicional grega478 Por outro lado eacute possiacutevel encontrar criacuteticas da
intelectualidade agraves superstitiones e agrave religiatildeo tradicional Certamente para pensadores como
Plutarco Dio de Prusa e Luciano de Samoacutesata os deuses natildeo existiam conforme as formas
homeacutericas Segundo Ramsay MacMullen479 esses pensadores puristas sustentam que os
deuses estavam distantes demais de tais caracteriacutesticas humanas comuns tais como nascer
comer beber e fornicar como a maioria deles faz extensivamente em suas tradicionais
representaccedilotildees Tudo isso natildeo passa de deisidaimonia ou seja ldquosupersticcedilatildeordquo Muitas vezes os
filoacutesofos reinterpretavam ou racionalizavam os mitos antigos rejeitando acontecimentos
milagrosos recentes semelhantes agraves narrativas antigas
No mundo grego a morte foi usualmente definida como a separaccedilatildeo da alma do corpo
Isso eacute amplamente demonstrado nas representaccedilotildees da morte de muitos guerreiros de Homero
repetidamente descritas como a alma [yuch] deixando o corpo480 E mesmo Platatildeo poderia
concordar com isso tendo Soacutecrates proclamado que a morte em sua opiniatildeo ldquonatildeo eacute nada
aleacutem do que a separaccedilatildeo dessas duas coisas a alma e o corpordquo481 A alma homeacuterica no Hades
era sempre definida como ldquomorterdquo Eram ldquoespiacuteritos da morterdquo482 ldquoMorterdquo natildeo significava
inexistecircncia absoluta mas uma existecircncia deacutebil da alma sem o corpo Sem um corpo fiacutesico
ningueacutem era de fato uma ldquopessoa completardquo Para os gregos a natureza humana sempre
equivaleu a uma unidade psicossomaacutetica Como escreveu Michael Clarcke483 ldquoo homem
homeacuterico natildeo tinha uma mente pois seus pensamentos e consciecircncia eram partes constituintes
da sua vida corpoacuterea como eram os movimentos e o metabolismordquo
475 Contra Celso 62 476 Introduction In ____ Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi 477 Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 p77 478 Isso natildeo quer dizer que filosofia natildeo acarretou mudanccedilas na maneira de pensar a religiatildeo pelos letrados como se considerou no capiacutetulo anterior 479 Ibid p77 480 ENDSJO Dag Oistein Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 p 38 481 Platatildeo Gorgias 524b cf Platatildeo Feacutedon 64c 482 Odisseia 11541 cf Odisseia 10521 10536 1129 1149 483 CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999 p 115
97
Como filoacutesofo Plutarco natildeo acreditava em nenhuma dessas histoacuterias populares sobre
ressurreiccedilatildeo fiacutesica e imortalizaccedilatildeo Para ele somente a alma tinha a chance de alcanccedilar a
esfera divina ldquoquando ela definitivamente se separa e se torna livre do corpo tornando-se
pura descarnada e imaculadardquo484 Mas ele admite que a maioria das pessoas natildeo se importava
com isso
Essas especulaccedilotildees tinham consequecircncias apenas limitadas de modo que natildeo
apresentaram um impedimento destacaacutevel agrave proliferaccedilatildeo de superstitiones inclusive entre as
classes elevadas agraves vezes Conforme Rohde485 argumenta a indignaccedilatildeo apaixonada de
filoacutesofos estoicos e epicureus que atacavam as crenccedilas que repousavam sobre os ensinos de
Homero natildeo poderiam ser explicadas exceto pela suposiccedilatildeo de que Homero e suas
representaccedilotildees permaneciam com uma significativa forccedila de orientaccedilatildeo entre as massas que
natildeo tinham conhecimento da filosofia O proacuteprio Justino indica que as ideias em torno da
crenccedila no Hades ainda eram fortes
O apologista toma o desafio de mostrar que a forma de pensar cristatilde natildeo era uma
novidade tatildeo descabida que natildeo pudesse ser aceita e ao mesmo tempo procura mostrar que
suas ideias apresentam um argumento razoaacutevel Comparando a crenccedila cristatilde na existecircncia de
uma consciecircncia apoacutes a morte do corpo agraves outras opiniotildees disseminadas pelo Impeacuterio
destaca-se tambeacutem que essa doutrina natildeo era demasiadamente estranha aos povos486 Os
elementos aparentemente comuns agrave cultura greco-romana e ao cristianismo nascente satildeo
alinhados na construccedilatildeo do argumento de que se os cristatildeos natildeo apresentavam uma doutrina
demasiadamente nova natildeo deveriam existir razotildees para serem incomodados ou combatidos
Neste caso os que apresentam doutrinas semelhantes agraves dos fieacuteis tambeacutem mereceriam ser
combatidos ou em uma melhor hipoacutetese ambos mereceriam ser deixados em paz
Outro refuacutegio apologeacutetico encontrado por Justino eacute recorrer ao fundamento cristatildeo na
tradiccedilatildeo judaica para assim alegar a antiguidade cristatilde Mas reconhecendo os elementos
semelhantes agrave cultura geral e agrave religiatildeo dos judeus o apologista abaixa a guarda para os
golpes da intelectualidade Por isso sua trama apologeacutetica precisa forjar um sentido
racionalizante desses elementos comuns a pagatildeos e a judeus e apresentar ao mesmo tempo a
doutrina cristatilde como um ensinamento superior agrave filosofia
484 Plutarco Romulus 287 485 ROHDE Erwin [1921] Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966 p 535 486 I186
98
Ele compara a crenccedila cristatilde na consumaccedilatildeo final de todas as coisas agraves noccedilotildees de
Sibila487 e Histapes488 (I201) sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo de tudo o que eacute corruptiacutevel A
funccedilatildeo do fogo no processo do ciclo coacutesmico dos filoacutesofos estoicos tambeacutem eacute elencado
destacando o renascimento do mundo pela transformaccedilatildeo489 Arquitetando seu argumento
apologeacutetico Justino questiona por que os cristatildeos satildeo ldquoperseguidosrdquo se existem algumas
correlaccedilotildees ou semelhanccedila entre as coisas ensinadas entre os fieacuteis e entre os filoacutesofos e
ldquopoetasrdquo estimados pelos romanos490 Essas correlaccedilotildees no entanto levaratildeo o apologista a
um aprofundamento dessas semelhanccedilas e dessemelhanccedilas Ele escreve
Assim quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus pareceraacute apenas que enunciamos um dogma de Platatildeo ao falar sobre conflagraccedilatildeo outro dogma dos estoicos ao dizer que satildeo castigadas as almas dos iniacutequos que ainda depois da morte conservaratildeo a consciecircncia e que as dos bons livres de todo castigo seratildeo felizes pareceraacute que falamos como vossos poetas e filoacutesofos que natildeo se devem adorar obras de matildeos humanas natildeo eacute senatildeo repetir o que disseram Menandro o
487 O substantivo feminino Sibulla pode significar uma ldquoprofetizardquo (PEREIRA Isidro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 516) Admite-se que essas elas profetizavam sob a influecircncia divina O primeiro escritor grego a fazer menccedilatildeo a Sibila eacute Heraacuteclito (Fragmento 92) No entanto Walter Burket (Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 p 116) escreve que mulheres em frenesi espiritual pelas quais os deuses falavam podiam ser encontradas muito antes no Oriente proacuteximo como em Mari no secundo milecircnio e na Assiacuteria no primeiro milecircnio Elas natildeo eram identificadas por um nome proacuteprio ficavam conhecidas apenas com o nome do local onde atuavam Uma coleccedilatildeo de anuacutencios profeacuteticos deu origem ao que ficou conhecido como Libri Sibyllini Acredita-se que a abra tenha sido obtida no reinado de Tarquinio Priscus (616 aC ndash 579 ac) por uma Sibila que protagoniza um mito em torno do livro Por vezes ela eacute chamada apenas de Sibila Os textos serviam de paracircmetro para a religiatildeo e eram guardados no Juacutepiter Captolino Com o incecircndio do templo em 82 aC os livros se perderam Deram iniacutecio a uma raacutepida busca por textos sibiliacutenicos por diversas regiotildees para compor uma nova coleccedilatildeo Poreacutem o caraacuteter e a pretensatildeo dos textos coletados desapontou esse objetivo Augustus determinou que os livros fossem destruiacutedos (Suetonio Vita cesarum Augustus 31 Tacito Anais VI12) Tibeacuterio voltou a examinar os Livros Sibilinos Muitos foram rejeitados como escritos espuacuterios (Cassius Dio LIV17) Pouco tempo mais tarde ainda sob seu governo um novo volume foi admitido (Taacutecito Anais VI12) (cf SMITH W (Ed) A Dictionary of Greek na Roman Antiquities London John Murray 1875 pp 1043-1044) Do primeiro para o segundo seacuteculo uma grande porccedilatildeo de escritos de cunho judaico-cristatildeos entram no paacutereo do textos sibiliacutenios (cf TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899) Eacute difiacutecil saber exatamente a qual ensino sibilino sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo Justino se refere MUNIER (op cit p 185) sugere que seja o trecho dos Oracles Sibyllins II196 MARCOVICH (Op cit p 62) aponta as passagens de Oracle Sibylline 2196ss 2286ss 3672ss 3689ss 4173ss 7120ss 8243ss O mesmo livro sibilino eacute mencionado em I4512 cuja leitura era vetada ao povo Cf ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997 PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988 A Greek-English Lexicon Edited by Henry Georg Liddell and Robert Scott OxfordNew York Clarendon PressOxford University Press 1996 488 U`stasphj eacute a forma grega de se escrever Vistaspa nome do pai de Dario o Grande e protetor de Zoroastro (KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945) Justino provavelmente estaacute se referindo ao escrito pseudoepiacutegrafo dos Oraacuteculos de Histaspes produzido provavelmente entre os seacuteculo II e I aC Essa obra heleniacutestica da Aacutesia menor apresentava fortes traccedilos do Zoroastrismo mas tambeacutem evidenciava aspectos poliacutetico-apocaliacutepticos relacionado ao domiacutenio de Roma sobre os demais povos (SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012 cf CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938) Histaspe e Sibila tambeacutem aparecem juntos nos escrito de Clemente de Alexandria (Stromata VI51) Lactacircncio (Divinae Institutiones VII1519 VII182) 489 I202 490 I203
99
poeta cocircmico e outros com ele que afirmaram que o artiacutefice eacute maior do que aquele que o fabrica (I204-5)
Tendo em vista a criacutetica dos filoacutesofos e letrados agraves crenccedilas gerais do povo as
semelhanccedilas e pontos de contato entre as doutrinas cristatildes e os mitos pagatildeos apontados por
Justino em defesa dos cristatildeos poderia se converter em uma nova dificuldade como algueacutem
que tenta sair de um abismo para cair em outro Por isso ele desenvolve uma explicaccedilatildeo para
essas semelhanccedilas elevando as doutrinas cristatildes a um niacutevel de primazia e evidenciando o seu
aspecto filosoacutefico
Segundo Viviana L Felix491 mesmo admitindo a semelhanccedila entre os ensinos de
Platatildeo e o dos cristatildeos uma posiccedilatildeo contraacuteria agrave doutrina platocircnica da alma eacute assumida
empenhando-se na construccedilatildeo de uma soteriologia e escatologia cristatildes conforme seratildeo
analisadas mais adiante O apologista combate como destaca Van Winden492 as correntes
filosoacuteficas que natildeo tecircm esperanccedila que Deus castigue ou premie em outra vida Seu interesse
estaacute ligado agrave vida eacutetica do homem e seu destino escatoloacutegico
A esperanccedila dos cristatildeos de terem os seus corpos restabelecidos mesmo depois de
mortos poderia representar algo ldquoimpossiacutevelrdquo na opiniatildeo de alguns Justino natildeo usa outro
argumento que natildeo seja o argumento da feacute Esse seu subterfuacutegio indica que muitas coisas que
parecem ser impossiacuteveis em um momento se demonstram possiacuteveis em outro surpreendendo
a muitos Ele usa o exemplo do secircmen humano para dizer que mostrado a algueacutem luacutecido
jamais se poderia supor imediatamente que uma soacute gota desse liacutequido seria capaz de se
transformar em um corpo humano De modo semelhante entatildeo se a princiacutepio pode parecer
estranho crer que um corpo ldquosemeadordquo na sepultura possa se transformar em um corpo
glorificado na ressurreiccedilatildeo depois se mostraraacute evidente493 Explanando esse argumento o
apologista explica que os cristatildeos sustentam que ldquoeacute melhor crer naquilo que estaacute acima da []
proacutepria natureza e que eacute impossiacutevel aos homens do que serem increacutedulosrdquo494 Tudo gira em
torno dos ensinamentos do seu mestre Jesus Cristo O mesmo que ensinou que o que eacute
impossiacutevel para os homens eacute possiacutevel para Deus495 Para um ouvinte alheio agrave mentalidade
judaico-cristatilde tal sentenccedila poderia parecer muito vaga Afinal os pagatildeos estavam
familiarizados com as limitaccedilotildees humanas e os poderes divinos que recheavam os mitos 491 FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa 492 WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 1975 pp 181-190 493 I191-4 494 I196 Kreitton de pisteuein kai tauta kai ta Th| e`autwn fusei kai avnqrwpoij avdunata hv o`moiwj toij alloij avpistein proseilhfamen MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 495 `Ta avdunata para avnqrwpoij dunata para qew|( MINNSPARVIS Op cit p 128 A citaccedilatildeo eacute de Lc 1827
100
Todavia Justino faraacute saber que o ponto chave desse misteacuterio eacute a feacute naquilo que eacute crido como a
ldquorevelaccedilatildeo divinardquo Essa revelaccedilatildeo mostra-se tambeacutem desafiadora pois ao mesmo tempo em
que traz luz sobre as accedilotildees humanas porta condenaccedilatildeo e temor ainda que estes sejam
contemplados pela mensagem da cruz496 de modo reparador Eacute no exato momento em que se
manifesta a necessidade de escolher aquilo que se revela como o correto verdadeiro e bom
que se deve temer pela escolha capaz de determinar o destino no poacutes-morte Essa advertecircncia
tambeacutem foi feita pelo mestre Natildeo temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais
podem fazer temei antes aquele que depois da morte pode lanccedilar alma e corpo no
inferno497 Ele mesmo define o ldquoinfernordquo como ldquoo lugar onde seratildeo castigados os que
tiverem vivido iniquamente e natildeo acreditaram que aconteceratildeo essas coisas ensinadas por
Deus atraveacutes de Cristordquo498 (I198) O Deus absoluto que tudo vecirc tudo conhece e do qual
nada se pode ocultar aparece tambeacutem como o grande juiz das accedilotildees humanas Assim
comunicada essa ldquoverdaderdquo cristatilde ela deve produzir temor e efetivar a sua funccedilatildeo em exigir
uma accedilatildeo positiva ou negativa de quem a ouve ou a lecirc
42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde
Seguindo o raciociacutenio do apologista deve ser a ldquorazatildeordquo a dirigir as escolhas humanas
No entanto a ldquorazatildeordquo ou seja o logos que estaacute em evidecircncia no pensamento de Justino eacute
produto da sua arguiccedilatildeo teoloacutegico-apologeacutetica Eacute possiacutevel identificar uma estrateacutegia literaacuteria
496 Mensagem da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo 497 lsquoMh Fobeisqe touj avnairountaj umaj kai meta tauta mh dunamenouj ti poihsai( fobhqhte de meta to Avpoqanein dunaMenon kai yuchn kai swma eivj geennan evmbalein)v MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 Cf Mt 1028 Lc 124-5 Geenna eacute uma transliteraccedilatildeo grega do termo aramaico ~ N h iy G e que corresponde ao ~oN h i a y G e hebraico e assumiu o sentido de ldquopuniccedilatildeo futurardquo (RUSCONI C Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 106 A primeira menccedilatildeo ao Vale de Hinnom na Biacuteblia aparece em Js 158 No entanto no texto dos LXX (LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]) satildeo empregadas as palavras faragga Onom para se referir ao ~ N Oh i- y g E) da Biacuteblia Hebraica (Biblia Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50]) Em II Cr 283 a LXX substitui ~ N O=h i- b a y g EaringB pela transliteraccedilatildeo Gaibenenom Esse lugar teria destinados primeiramente ao sacrifiacutecio de crianccedilas a Moloque e a Baal numa parte especiacutefica do vale chamada Tophet Depois do Exiacutelio com o intuito de mostrar a abominaccedilatildeo do local o judeus o transformaram no depoacutesito de lixo da cidade Para a destruiccedilatildeo dos resiacuteduos ali depositados o fogo era mantido sempre aceso Por isso os judeus associaram ao local a ideia de sofrimento e corrupccedilatildeo (Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998 p 457) A palavra geenna eacute sempre empregada nos discursos de Jesus (Mt 2333 Lu 125 Mt 522) como um lugar de puniccedilatildeo num julgamento futuro e Justino o emprega nesse mesmo sentido 498 h de geenna evsti topoj enqa kolaxesqai mellousin oi` avdikwn biwsantej kai mh pisteuontej tauta genhsesqai( o[as o` qeoj dia tou Cristou evdidaxe) MINNSPARVIS Op cit p 128 Cf Lc 125 Mt 1028
101
que ressignifica o conceito de ldquorazatildeordquo por meio da construccedilatildeo teoloacutegica em torno do logos
cristatildeo buscando atestar a racionalidade da ldquofilosofiardquo cristatilde
Considerar a religiatildeo cristatilde como uma ldquofilosofia divinardquo499 natildeo eacute apenas o reflexo da
sua trajetoacuteria filosoacutefica ateacute sua conversatildeo eacute tambeacutem uma estrateacutegia apologeacutetica que considera
normal existirem diferentes correntes de pensamento dentro do Impeacuterio sem que isso acarrete
automaticamente perseguiccedilotildees entre grupos distintos500 Segundo Justino eacute o logosrazatildeo que
orienta o curso da apologia em favor dos cristatildeos501 O apologista estaacute convencido de que suas
reivindicaccedilotildees satildeo ldquojustas e verdadeirasrdquo502 o que exige uma investigaccedilatildeo particular sobre o
sentido desses dois conceitos tambeacutem De outro modo a causa uacuteltima das accedilotildees anticristatildes eacute a
influecircncia dos democircnios que colocam o povo e as autoridades contra os fieacuteis Segundo seu
raciociacutenio os ldquomaus democircniosrdquo agiam por meio da promoccedilatildeo da ignoracircncia e da confusatildeo
Por isso ele se demonstra disposto a apresentar outros pontos sobre as crenccedilas cristatildes ldquoa fim
de persuadir os amantes da verdaderdquo503
Tendo em vista que o mecanismo de controle proporcionado pelo conteuacutedo das
doutrinas cristatildes eacute estabelecido fundamentalmente pelo temor diante do Deus que sonda todas
as coisas e que pode punir ou recompensar eternamente aqueles que agem virtuosamente nesta
vida o apologista escreve sobre a capacidade humana de agir racionalmente
Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e se recusem
outras como ldquoa pobreza o sofrimento e a desonra paternardquo504 A incompreensatildeo dessa
ldquoracionalidade cristatilderdquo fazia com que muitos se opusessem aos cristatildeos A falta de
conhecimento sobre as doutrinas cristatildes seria a responsaacutevel por exemplo por muitos
acusarem-lhes de ateiacutesmo505 Por ser uma religiatildeo nova e em processo de consolidaccedilatildeo natildeo eacute
nenhuma surpresa que muitos ainda estivessem confusos acerca das doutrinas cristatildes que por
vezes encabulavam os proacuteprios cristatildeos506
499 II Apol 125 500 II Apol 126 501 II Apol 128 502 I1211 tambeacutem em I683 ldquonatildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo 503 I1211 504 I128 505 I131 506 Os cristatildeos estavam longe de apresentarem unidade doutrinaacuteria Justino faz menccedilatildeo a cristatildeos divergentes como Helena Menandro e os marcionitas (I261-8)
102
421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios
Segundo a tese apresentada por Justino os democircnios se apoderam de todos aqueles
que de um ou outro modo natildeo trabalham por sua proacutepria salvaccedilatildeo O conceito de daiacute mwn
estava presente na cultura grega desde Homero e Hesiacuteodo507 Seu campo semacircntico eacute extenso
Deus conceito baacutesico que mais se aproxima da ideia que Justino sustenta eacute o de ldquoum ser
divinordquo ldquoo poder divinordquo ldquoum semideusrdquo ldquoser que interfere no destino humanordquo e poderia
ser ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo508
O conceito de ldquosalvaccedilatildeordquo natildeo estaacute claro nesses escritos mas estaacute relacionado agrave
recompensa positiva daqueles que creram e agiram conforme a revelaccedilatildeo dos desiacutegnios
divinos Isso tambeacutem significa associar-se ao logos e dissociar-se dos enganos demoniacuteacos
Desse modo ele escreve que ldquodepois de crer no logos noacutes nos afastamos deles [dos democircnios]
e por meio do Filho seguimos o uacutenico Deus unigecircnitordquo509
Esse distanciamento dos enganos destes seres malignos e pelo apego ao logos eacute o que
produz uma mudanccedila de conduta Seu testemunho em defesa da feacute eacute que os que antes se
compraziam na dissoluccedilatildeo agora abraccedilam apenas a temperanccedila os que antes se entregavam
agraves artes maacutegicas agora se consagram ao Deus bom e ingecircnito aqueles que antes eram
apegados aos bens materiais e agraves rendas agora compartilham do quem tecircm os que antes se
odiavam e se matavam mutuamente desprezando aqueles que natildeo pertenciam agrave mesma raccedila
pela diferenccedila de costumes agora vivem todos juntos rezam pelos seus inimigos e tratam de
persuadir os que os aborrecem injustamente a fim de que vivendo conforme conselhos de
Cristo tenham boas esperanccedilas de alcanccedilar uma recompensa de Deus (I Apol 141-3) Por
isso o filoacutesofo apologista critica as accedilotildees anticristatildes romanas que acatavam as caluacutenias
disseminadas dizendo ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e natildeo
tenhais a quem castigarrdquo510
A fonte da moralidade cristatilde estaacute primeiramente relacionada agrave mensagem do seu
mestre o Cristo por vezes tido como motivo de escacircndalo para os infieacuteis Essa moralidade eacute
destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e comentaacuterios ldquodisseminados
507 POPE Kyle Mark The concept of theDAIMWN in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 13-17 cf REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004 508 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 (Perseu Project) 509 I Apol 141 510 I Apol 124
103
entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso seu discurso sobressalta o
valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de temperanccedila511 Tambeacutem recebem
destaques a doutrina cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos
necessitados e a ausecircncia de valor da ostentaccedilatildeo512 Com o mesmo tom piedoso seguem as
afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico513 Desse
modo Justino contribui tambeacutem para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos
propondo uma identidade coletiva Nesse processo o apologista combate um conceito
estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que considera equiacutevocos e mal entendidos
ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja Essa sua atitude revela tambeacutem que o processo de construccedilatildeo da
identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada principalmente pela
necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os variados grupos
cristatildeos Pois as Igrejas em meados do seacuteculo II devem ser vistas ainda como manifestaccedilotildees
de ldquocristianismosrdquo514
No intuito de explicar o caraacuteter das crenccedilas cristatildes Justino faz referecircncia agrave recepccedilatildeo e
interpretaccedilatildeo de escritos e doutrinas Ser cristatildeo em sua perspectiva natildeo eacute simplesmente
pertencer a um grupo eacute um ldquoidealrdquo o de aprender o que foi ensinado pelo Cristo e praticar
em suas obras Desse modo elege-se a praacutetica dos ensinamentos do Logos como o elemento
fundamental diferenciador entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos515 Justino defende a liberdade para
estes que ele tem por ldquocristatildeosrdquo aos outros espera-se que sejam mesmo perseguidos516
Dentre os ensinos do Cristo estaacute o pagamento dos tributos e contribuiccedilotildees517 mas o
apologista vai aleacutem Propondo-se a oferecer algumas das principais informaccedilotildees sobre o
conteuacutedo das crenccedilas cristatildes um paralelo entre a natureza desses ensinamentos e outras
arguiccedilotildees eacute traccedilado518
Jesus eacute descrito como u`ioj de Qeou [filho de Deus] aquele que ainda que parecesse
homem de modo comum por sua sabedoria mereceria chamar-se filho de Deus Haacute um
511 I151-7 512 I141-919 513 I161-6 514 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 515 ldquoAqueles poreacutem que se vecirc que natildeo vivem como ele ensinou sejam declarados como natildeo cristatildeos por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de Cristo pois ele disse que se salvariam natildeo os que apenas falassem mas que tambeacutem praticassem as obrasrdquo (I169) 516 ldquoAqueles que natildeo vivem conforme os ensinamentos de Cristo e satildeo cristatildeos apenas de nome noacutes somos os primeiros a vos pedir que sejam castigadosrdquo (I1614) 517 Justino recorre agrave passagem comum a Mt 221719-20 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo cf I172 518 I144
104
contraste entre o Cristo que nasceu como Logos de Deus e o que afirmavam sobre Hermes
chamado de Logos anunciador ou mensageiro de Deus519 Para rebater o desdeacutem pela
crucificaccedilatildeo de Cristo que poderia representar algo despreziacutevel aos olhos de muitos no
Impeacuterio o apologista aponta que tambeacutem os filhos de Zeus sofreram mortes terriacuteveis Sobre
ele haver nascido de uma virgem ele compara-o a Perseu Quanto agrave cura de coxos paraliacuteticos
e enfermos de nascimento e ateacute mesmo ressurreiccedilatildeo de mortos ele aponta que haacute alguma
semelhanccedila com Ascleacutepio520 As comparaccedilotildees tambeacutem envolvem Dioniso e Heacuteracles esta
uacuteltima ascendida depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos os Dioacutescoros filhos de
Leda Perseu de Dacircnae e Belerofonte nascido de homens que ascenderam sobre o cavalo
Peacutegaso O apologista fala tambeacutem dos imperadores mortos aos quais muitos consideravam
como dignos da imortalidade e alguns juravam terem visto Ceacutesar subir ao ceacuteu521 Mas ele
adverte ldquoNatildeo pedimos que se aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque
dizemos a verdaderdquo522
As doutrinas cristatildes satildeo apresentadas como a ldquouacutenica verdaderdquo e a mais antiga do que
todos os escritores que existiram Seu discurso busca demonstrar que Jesus Cristo eacute
propriamente o uacutenico Filho nascido de Deus como seu Logos seu Primogecircnito e sua
Potecircncia A encarnaccedilatildeo do Filho pelo seu designo deu-se para que ele ensinasse essas
verdades para a transformaccedilatildeo e conduccedilatildeo do ldquogecircnero humanordquo523 Poreacutem segundo sua teoria
apologeacutetica antes de tornar-se homem entre os homens houve alguns democircnios malvados
que se adiantaram a dizer por meio dos poetas terem acontecido os mitos que inventaram
Seriam esses os mitos gerais conhecidos por gregos e romanos Em oposiccedilatildeo ao
esclarecimento proposto pelo logos para a salvaccedilatildeo humana esta o obscurecimento de toda a
racionalidade proporcionado pelos democircnios
Os democircnios satildeo entatildeo reconceituados a partir de uma perspectiva cristatilde que toma por
base a tradiccedilatildeo judaica em intersecccedilatildeo com aspectos da cultura grega conforme analisou K
M Pope524 Sua imagem estaacute relacionada ao ldquopriacutencipe dos maus democircniosrdquo chamado de
ldquoserpente satanaacutes diabo ou caluniador Todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que
519 I221-2 520 I225-6 521 Cassius Dio (Hist Rom 56462 cf T Livio Histoacuteria de Roma (Ad urbe condita) I165-7) menciona a histoacuteria de que um senador e ex-pretor tinha jurado que ele tinha visto Augustus subindo aos ceacuteus Suetocircnio tambeacutem se refere a algo desse tipo Augustus 1004 Uma histoacuteria similar foi contada sobre Iulia Drusilla a irmatilde de Caliacutegula (Cassius Dio Hist Rom 59114) Secircneca zomba deste testemunho em Apocolocyntosis I 522 I231 523 I232 cf SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987 524 The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 52-53
105
o seguem seraacute enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de
antematildeo anunciada por Cristordquo525
Justino acredita ser possiacutevel demonstrar a veracidade da feacute cristatilde por meio do
cumprimento das Escrituras526 Ele explica que os profetas de Deus movidos pelo logos e sob
o Espiacuterito profeacutetico anunciaram antecipadamente os acontecimentos futuros Vem em
seguida uma seacuterie de ldquoprediccedilotildeesrdquo sobre a vinda de Cristo e sobre o que deveria acontecer tais
como a queda de Jerusaleacutem527 a cura das enfermidades e a morte de Cristo a ressurreiccedilatildeo dos
mortos e a prediccedilatildeo de Isaiacuteas528 sobre a expansatildeo para todas as naccedilotildees Ele tambeacutem procura
mostrar que ateacute o sofrimento e a humilhaccedilatildeo de Jesus estavam previstas nas profecias e que
ele chegou a ser abandonado ateacute pelos seus (I501ss) Seu raciociacutenio eacute o seguinte
Com efeito do mesmo modo que o acontecido antecipadamente anunciado por mais que natildeo tivesse sido compreendido aconteceu assim tambeacutem o que ainda falta para ser cumprido aconteceraacute por mais que natildeo se compreenda nem se creia Assim eacute que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo uma jaacute cumprida como homem desonrado e passiacutevel a segunda quando viraacute dos ceacuteus acompanhado de seu exeacutercito de anjos quando ressuscitaraacute tambeacutem os corpos de todos os homens que existiram revestiraacute de incorruptibilidade os que forem dignos e enviaraacute os iniacutequos com percepccedilatildeo eterna ao fogo eterno junto com os perversos democircnios (I521-3)
Com convicccedilatildeo sobre o cumprimento das profecias escreve ldquoDe fato por que motivo
haveriacuteamos de crer que um homem crucificado eacute o primogecircnito do Deus ingecircnito e que
julgaraacute todo o gecircnero humano se natildeo encontraacutessemos testemunhos sobre ele publicados
antes de ele ter nascido como homem e natildeo os viacutessemos literalmente cumpridosrdquo 529 E isso o
faz pensar que a apresentaccedilatildeo desse elevado nuacutemero de referecircncias a prediccedilotildees e seus
cumprimentos deveria razoavelmente convencer a seus leitores530
Os mitos dos pagatildeos satildeo comparados aos ldquoensinosrdquo cristatildeos sustentando que eles natildeo
apresentam nenhuma prova de sua veracidade Isso deveria demonstrar que foram ditos por
obra dos ldquodemocircnios perversosrdquo para enganar e extraviar o ldquogecircnero humanordquo Ouvindo os
profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens iacutempios seriam castigados atraveacutes do
fogo esses seres maleacutevolos teriam colocado agrave ldquofrente muitos que se disseram filhos de Zeus
crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo
como um conto de fada semelhante aos contados pelos poetasrdquo531 Assim eacute elencada uma
seacuterie de semelhanccedilas entre a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e a greco-romana para mostrar a distorccedilatildeo
525 I281 526 I301ss 527 I471ss 528 Is 651-15 520 529 I532 530 Justino escreve que seriam persuadidos os que ldquoamam a verdade que natildeo seguem a opiniatildeo nem se deixam dominar por suas paixotildeesrdquo (I5310-12) 531 I542
106
pagatilde que soacute podem ser identificadas atraveacutes de uma hermenecircutica bem peculiar532 As
comparaccedilotildees vatildeo desde o texto de Gn 4910-11 agrave vinha de Dioniso e sua ascensatildeo
semelhante agrave subida de Belerofonte montado no cavalo Peacutegaso ao ceacuteu o texto de Is 714 e a
lenda de Perseu Sl 186 e as narrativas sobre Heacutercules ateacute as ldquoprofeciasrdquo de curas a todas as
enfermidades e ressurreiccedilatildeo dos mortos533 ao mito de Ascleacutepio Mas a crucificaccedilatildeo eacute algo que
os pagatildeos natildeo poderiam imitar pois tudo ldquotudo o que se refere agrave cruz foi dito de forma
simboacutelicardquo534
Os judeus no entanto satildeo tidos como ignorantes sobre o cumprimento das profecias
de que Jesus deveria vir nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda
doenccedila toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e
crucificado que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus
que ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os
homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nele535
Ele recorre aos escritos do profeta Isaiacuteas536 para indicar que Cristo seria concebido por
uma virgem O logos eacute conceituado como o Filho a primeira virtude ou potecircncia depois de
Deus que eacute Pai e soberano de todas as coisas O logos entatildeo se tornou carne e nasceu homem
(I3210) Por Espiacuterito e forccedila que procede de Deus ele eacute reconhecido como o Logos que eacute o
primogecircnito de Deus O apologista sustenta que aqueles que profetizam satildeo inspirados pelo
logos divino
Em sua perspectiva os judeus detentores da tradiccedilatildeo e dos livros dos profetas poreacutem
aleacutem de natildeo reconhecerem a Cristo jaacute vindo tambeacutem odeiam aos cristatildeos Isso eacute destacado
na sua afirmaccedilatildeo de que na guerra dos judeus Bar Koseba o cabeccedila da rebeliatildeo mandava
submeter a terriacuteveis torturas somente os cristatildeos caso estes natildeo negassem e blasfemassem
Jesus Cristo (I316)
A mensagem cristatilde eacute um elemento apelativo que busca induzir os fieacuteis a uma conduta
diferente ldquoNoacutes que antes nos mataacutevamos mutuamente agora natildeo soacute natildeo fazemos guerra
contra os nossos inimigos mas tambeacutem por natildeo mentir nem enganar os juiacutezes que nos
interrogam morremos felizes de confessar a Cristordquo (I393) Justino considera ridiacuteculo que os
soldados que se arrolam e se alistam pusessem a lealdade para com o imperador ldquoacima de
sua proacutepria vida acima dos pais paacutetria e tudo o que lhes pertence embora nada de
532 BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 2009 pp 538-555 533 Is 355-6 Mt 115 534 I551 535 I317-8 536 Is 111-10
107
impereciacutevel lhes pudeacutesseis oferecerrdquo (I395) Por outro lado os cristatildeos que amam a
incorrupccedilatildeo suportam tudo a troco de receber daquele que confiam ter poder para lhes dar
(I395)
A superioridade do Deus judaico-cristatildeo sobre os deuses das outras naccedilotildees aparece
submetendo os demais deuses ao jugo dos ldquodemocircniosrdquo sob a sombra da ignoracircncia que esses
propagam Entretanto o Deus dos cristatildeos eacute o Deus que criou a racionalidade
Justino coloca que
no princiacutepio [Deus] criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma pedra Virtude e viacutecio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e iniquidade (I283-4)
Esse ser racional que Justino se refere eacute tambeacutem aquele cuja racionalidade pode ser ratificada
no reconhecimento e submissatildeo aos ensinos cristatildeos Haacute uma postura anti-estoica manifesta
em suas palavras que reduz o dogma do destino dessa corrente filosoacutefica a ldquoimpiedade e
iniquidaderdquo537
Ele sustenta que os cristatildeos aprenderam com os profetas que
os castigos e tormentos assim como as boas recompensas satildeo dadas a cada um conforme as suas obras Se natildeo fosse assim mas tudo acontecesse por destino natildeo haveria absolutamente livre-arbiacutetrio Com efeito se jaacute estaacute determinado que um seja bom e outro mau nem aquele merece elogio nem este vitupeacuterio Se o gecircnero humano natildeo tem poder de fugir por livre determinaccedilatildeo do que eacute vergonhoso e escolher o belo ele natildeo eacute irresponsaacutevel de nenhuma accedilatildeo que faccedila538 (I432-3)
Ele destaca que se por outro lado algueacutem
estivesse determinado [para] ser mau ou bom natildeo seria capaz de coisas contraacuterias nem mudaria com tanta frequumlecircncia Na realidade nem se poderia dizer que uns satildeo bons e outros maus desde o momento que afirmamos que o destino eacute a causa de bons e maus e que realiza coisas contraacuterias a si mesmo ou que se deveria tomar como verdade o que jaacute anteriormente insinuamos isto eacute que virtude e maldade satildeo puras palavras e que soacute por opiniatildeo se tem algo como bom ou mau Isso como demonstra a verdadeira razatildeo eacute o cuacutemulo da impiedade e da iniquidade (I436)
O ldquodestino iniludiacutevelrdquo reconhecido pelo apologista eacute que aqueles que escolheram o
bem tenham ldquodigna recompensardquo e os que escolheram o contraacuterio tenham igualmente ldquodigno
castigordquo (I437) Dentro do sistema de pensamento construiacutedo por Justino seria incoerente
com o sistema de controle social admitir que Deus tenha determinado as escolhas humanas
Nesse caso como ele escreve ldquonatildeo seria digno de recompensa e elogio pois natildeo teria
escolhido o bem por si mesmo mas nascido jaacute bom nem por ter sido mau seria castigado
537 avsebeia kai avdikia evsti I284 538 PLATAtildeO Repuacuteblica 617e
108
justamente pois natildeo o seria livremente mas por natildeo ter podido ser algo diferente do que foirdquo
(I438) Desse modo o apologista deixa clara sua oposiccedilatildeo ao estoicismo539
O pensamento de Justino sobre isso poderia ser resumido em ldquoDeus criou livres tanto
os anjos como o gecircnero humano e por isso receberam com justiccedila o castigo de seus pecados
no fogo eternordquo540 Tal alegaccedilatildeo estaria fundamentada na ideia de que tudo deve ser capaz de
viacutecio e de virtude pois ningueacutem seria digno de louvor se natildeo pudesse tambeacutem voltar-se para
um desses extremos541
Ele assume que esta doutrina foi ensinada pelo Espiacuterito profeacutetico que por meio de
Moiseacutes nos testemunha que falou ao primeiro homem que havia criado do seguinte modo
ldquoOlha que diante de tua face estaacute o bem e o mal escolhe o bemrdquo542 Ele cita tambeacutem Isaiacuteas543
e o proacuteprio Platatildeo544 ao dizer A culpa eacute de quem escolhe Deus natildeo tem culpa Justino
alega que Platatildeo falou isso por tecirc-lo tomado do profeta Moiseacutes desse modo ele diz que ldquopois
se sabe que este eacute mais antigo do que todos os escritores gregosrdquo (I441-8) Para explicar os
elementos semelhantes entre os escritos gregos e os judaico-cristatildeos o apologista alega que
tudo o que os filoacutesofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplaccedilatildeo das coisas celestes aproveitaram-se dos profetas natildeo soacute para poder entender mas tambeacutem para expressar isso Daiacute que parece haver em todos algo como germes de verdade Todavia demonstra-se que natildeo o entenderam exatamente pelo fato de que se contradizem uns aos outros (I449-10)
Deus conhece de antematildeo tudo o que seraacute feito por todos os homens e eacute decreto seu
recompensar cada um segundo o meacuterito de suas obras e por isso justamente prediz por meio
do Espiacuterito profeacutetico o que para cada um viraacute da parte dele conforme o que suas obras
mereccedilam545 Ele eacute aquele que constantemente conduz o gecircnero humano agrave reflexatildeo e agrave
lembranccedila demonstrando-lhe que cuida e usa de providecircncia para com os homens
Sobre a novidade da religiatildeo cristatilde Justino escreve ldquoAlguns sem motivo para rejeitar
o nosso ensinamento poderiam nos objetar que ao dizermos que Cristo nasceu somente haacute
cento e cinquumlenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio
Pilatos os homens que o precederam natildeo tecircm nenhuma responsabilidaderdquo (461) Ele entatildeo
responde
Noacutes recebemos o ensinamento de que Cristo eacute o primogecircnito de Deus e indicamos antes que ele eacute o Logos do qual todo o gecircnero humano participou Portanto aqueles
539 ldquohellipnoacutes dizemos que aconteceraacute a conflagraccedilatildeo universal mas natildeo como dizem os estoacuteicosrdquo II63 cf Alesandre de Aphrodisias On Fate 9 [17525] 540 II65 541 II66 542 Dt 301519 543 Is 116-20 544 Repuacuteblica X617e 545 I4411
109
que viveram conforme o Logos satildeo cristatildeos quando foram considerados ateus como sucedeu entre os gregos com Soacutecrates Heraacuteclito e outros semelhantes e entre os baacuterbaros com Abraatildeo Ananias Azarias e Misael e muitos outros cujos fatos e nomes omitimos agora pois seria longo enumerar De modo que tambeacutem os que antes viveram sem razatildeo [logos] se tornaram inuacuteteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razatildeo [logos] mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela satildeo cristatildeos e natildeo experimentam medo ou perturbaccedilatildeo O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma virgem pela virtude do Logos conforme o desiacutegnio de Deus Pai e soberano do universo e foi chamado Jesus e depois de crucificado e morto ressuscitou e subiu ao ceacuteu o leitor inteligente poderaacute perfeitamente compreendecirc-lo pelas longas explicaccedilotildees que foram dadas ateacute aqui (462-6)
O apologista usa de uma estrateacutegia semacircntica para literalmente ldquodar razatildeordquo agraves
doutrinas cristatildes
422 A razatildeo que julga
No mundo grego a palavra logoj jaacute assumira uma significacircncia para o pensamento
especulativo desde muito cedo Era um termo teacutecnico para as vaacuterias ldquociecircnciasrdquo que se
desenvolviam na Greacutecia do seacutec V aC A gramaacutetica a loacutegica a retoacuterica a psicologia a
metafiacutesica a teologia e a matemaacutetica deram-lhe sentidos diferentes ainda dentro do mesmo
campo da ciecircncia Seu campo semacircntico eacute vasto Pode significar razatildeo palavra discurso
menccedilatildeo declaraccedilatildeo afirmaccedilatildeo resposta promessa dito proveacuterbio ou maacutexima546 Alguns
destes significados podem parecer contraditoacuterios Ele eacute um termo comum que pode aparecer
em qualquer lugar Aparece nos textos de Homero Heroacutedoto Platatildeo Aristoacuteteles Tuciacutededes
Piacutendaro Aeschylus Xenoacutefanes Soacutefocles Aischines e outros547 mas eacute seu significado
filosoacutefico-religioso que importa A histoacuteria desse conceito eacute bastante complexa todavia eacute
suficiente abordar os principais aspectos do uso filosoacutefico-religioso do logoj
Justino sustenta que os gregos aprenderam muitos conceitos com as Escrituras
judaicas Segundo sua teoria Ptolomeu rei do Egito se preocupou em formar uma biblioteca
e nela reunir os escritos de todo o mundo tendo notiacutecia dessas profecias mandou uma
546 Significa ainda decisatildeo resoluccedilatildeo ordem proclamaccedilatildeo ensinamento doutrina parte de doutrina definiccedilatildeo hipoacutetese condiccedilatildeo pacto fama tradiccedilatildeo lenda reputaccedilatildeo boato opiniatildeo notiacutecia revelaccedilatildeo oraacuteculo resposta de oraacuteculo palavra revelada verbo assunto mateacuteria objeto questatildeo fato acontecimento coisa discurso frase prosa falar faculdade de falar e como logoj proforikoj discurso extriacutenseco palavra uso da palavra direito agrave palavra coloacutequio discussatildeo faacutebula narrativa imaginaacuteria lenda mito narrativa histoacuterica histoacuteria literatura conta caacutelculo soma explicaccedilatildeo avaliaccedilatildeo valor significado a razatildeo praacutetica (nouj especulativo) razatildeo divina personificada motivo causa fundamento justificaccedilatildeo plano projeto RUSCONI C (ed) DICIONAacuteRIO do grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 350 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001 547 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001
110
embaixada pedindo os livros dos judeus Ptolomeu providenciou que fossem traduzidos para o
grego Depois disso os livros permaneceram entre os egiacutepcios ateacute o presente e os judeus os
usam no mundo inteiro Assim os gregos teriam aprendido muitas coisas que teriam
ldquoenriquecidordquo seus mitos e pensamentos em geral548
Todavia foi Filon de Alexandria quem primeiro tomou as interrogaccedilotildees filosoacuteficas
estabelecendo correlaccedilotildees com os elementos da cultura religiosa judaica549 Era corrente no
judaiacutesmo a reflexatildeo sobre a ldquoPalavrardquo criadora e comunicadora da revelaccedilatildeo divina Mas foi o
contato com a cultura helecircnica e as proximidades semacircnticas ainda que muito limitadas entre
Escrituras judaicas e as palavras gregas que carregaram o teor filosoacutefico ou especulativo550
Conforme analisou Dax F P Nascimento551 eacute por intermeacutedio do Logos uma espeacutecie de
declaraccedilatildeo divina que se remete a si mesmo revelado que se obteacutem a educaccedilatildeo acerca da
verdade por meio da qual haacute o arrependimento ou conversatildeo dos prazeres e ciecircncias do
mundo sensiacutevel para a razatildeo e para a piedade
Entre os cristatildeos natildeo haacute evidecircncias de que a reflexatildeo sobre o logos tenha a princiacutepio
alguma conotaccedilatildeo filosoacutefica Teoacutelogos como R Bultmann552 G Kimmel553 O Culmann554
concordam que o logos mencionado no proacutelogo do Evangelho segundo Joatildeo eacute uma niacutetida
referecircncia agrave ldquoPalavrardquo comunicadora de Deus sobre a qual Fiacutelon refletiu Eacute possiacutevel que na
virada do I para o II seacuteculo a expansatildeo cristatilde comeccedilasse a exigir uma atenccedilatildeo maior tambeacutem
aos conceitos e questotildees pertinentes ao mundo greco-romano555
Com a conversatildeo de filoacutesofos como Atenaacutegoras Aristides e do proacuteprio Justino as
correlaccedilotildees entre essas correntes de pensamentos se manifestam principalmente na produccedilatildeo
apologeacutetica cristatilde556
Justino escreve que do logos que inspirou os profetas Platatildeo tomou o que disse sobre
Deus ter criado o mundo transformando uma mateacuteria informe557 Segundo Minns e Parvis558
548 I311-5 549 BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950 550 KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91 Cf COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp 1507-1562 551 O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia PUC Rio de Janeiro 2003 p 179 552 Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004 553 Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983 554 Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002 555 ARZANI A A teologia do logoj no Quarto Evangelho Orientador Dr Paulo Beniacutecio Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008 pp 52-60 556 Cf WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982 557 I591
111
suas comparaccedilotildees entre algumas passagens das Escrituras e dos textos de Platatildeo satildeo
interpretaccedilotildees difiacuteceis de serem compartilhadas pois apresentam uma hermenecircutica muito
particular e em alguns pontos chega a interpretar o platonismo segundo formas comuns ao
estoicismo Destacando os elementos semelhantes ao cristianismo e outras correntes de
pensamento Justino alega ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim
todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinasrdquo559 Mas esses pontos de contato satildeo
limitados Ele escreve que
natildeo satildeo totalmente semelhantes como tambeacutem as dos outros filoacutesofos os estoacuteicos por exemplo poetas e historiadores De fato cada um falou bem vendo o que tinha afinidade com ele pela parte que lhe coube do logos seminal divino Todavia eacute evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros natildeo alcanccedilaram uma ciecircncia infaliacutevel nem um conhecimento irrefutaacutevel Portanto tudo o que de bom foi dito por eles pertence a noacutes cristatildeos porque noacutes adoramos e amamos depois de Deus o logos que procede do mesmo Deus ingecircnito e inefaacutevel Ele por amor a noacutes se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curaacute-los Todos os escritores soacute puderam obscuramente ver a realidade graccedilas agrave semente do logos neles ingecircnita560
Enquanto algumas correlaccedilotildees entre o pensamento cristatildeo e a cultura greco-romana
satildeo fruto da accedilatildeo dos democircnios para causar confusatildeo uma porccedilatildeo do logos pode ser
identificada para aleacutem daqueles que deteacutem o logos pleno
Nesse sentido ele escreve
Sabemos que alguns que professaram a doutrina estoacuteica foram odiados e mortos Pelo menos na eacutetica eles se mostram moderados assim como os poetas em determinados pontos por causa da semente do Logos que se encontra ingecircnita em todo o gecircnero humano (II71)
Heraacuteclito que foi banido de Eacutefeso por causa de suas ideias e tambeacutem o filoacutesofo
Musonius que dentre outros que sofreram algum tipo de hostilidade nos tempos de Nero a
Vespasiano561 satildeo citados como exemplo Natildeo haacute nenhum motivo evidente para Justino
mencionar Heraacuteclito exceto pela sua teoria sobre o logos Quanto a Gaius Musonius Rufus
seu nome eacute lembrado pelo acento moral de sua filosofia de inspiraccedilatildeo estoica que o tornou
ridiacuteculo a muitos soldados562 Desse modo procura-se destacar que ldquoos democircnios sempre se
empenharam em tornar odiosos aqueles que de algum modo quiseram viver conforme o
Logos e fugir da maldade (II72)
O apologista ainda considera como uma investida dos democircnios a pena de morte
estabelecida contra aqueles que lessem os livros de Histaspes da Sibila e dos profetas a fim
558Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 236 559 I6010 560 II132-5 561 TACITO Histoacuterias III81 562 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 42
112
de impedir por meio do terror que os homens consigam lendo-os o conhecimento do bem e
retecirc-los como seus escravos563
Segundo o apologista muito mais odiado que aqueles que possuem o logos seminal
satildeo os que tecircm conhecimento e contemplaccedilatildeo do logos total Conforme suas proacuteprias
palavras ldquoO logos de Deus eacute seu Filho [] E tambeacutem se chama mensageiro e embaixador
porque ele anuncia o que se deve conhecer e eacute enviado para nos manifestar tudo o que o Pai
nos comunicardquo564 Sendo os cristatildeos os detentores do logos total e sendo o logos total aquele
que anuncia o que se deve conhecer para se proceder corretamente e receber a recompensa
futura tudo se resume agrave submissatildeo agraves ideias cristatildes565
A forma de controle empregada pelos romanos e que conduz os cristatildeos diante dos
tribunais satildeo pintadas como um sinal da ignoracircncia despreziacutevel daqueles que se submetem agrave
irracionalidade da obscuridade demoniacuteaca em exerciacutecio de uma falsa justiccedila
O julgamento segundo a ldquorazatildeordquo eacute o julgamento final estabelecido pelo Deus cristatildeo e
sobre o qual o apologista pretende convencer a todos ao seu redor566 Os democircnios no
entanto natildeo conseguem convencer de que natildeo haveraacute a conflagraccedilatildeo para castigar os iacutempios
do mesmo modo que natildeo conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu A uacutenica coisa
que conseguem eacute fazer com que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em
meio aos maus costumes entregues agraves suas paixotildees e seguindo a opiniatildeo vatilde procurem tirar a
vida dos cristatildeos e os odeiem Os cristatildeos por outro lado satildeo apresentados como aqueles que
por pura compaixatildeo por eles procuram persuadi-los a se converterem
Os maus haacutebitos dos deuses satildeo reprovados por essa medida cristatilde pois serviriam para
a corrupccedilatildeo dos que eram educados tendo em vista que muitos consideravam ldquobelordquo serem
imitadores dos deuses567 O apologista natildeo pode admitir que uma mente sensata aceite as
accedilotildees de Zeus e de Ganimedes como ldquodivinasrdquo (I215) Por isso ele relaciona a disseminaccedilatildeo
desses mitos agraves artimanhas dos democircnios que induzem os homens agrave imoralidade Em
oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo dos democircnios Justino sustenta que aos cristatildeos foi ensinado que soacute poderiam
alcanccedilar a imortalidade aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus assim como
tambeacutem se sustenta que seratildeo castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e
563 Cf Tacitus Annales II32 XII52 Historias I22 II62 Cassius Dio Hist Rom 57157-8 564 I634-5 565 Cf PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988 566 Cf KERESZTES P Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986 567 E um pensamento que estava relacionado aos epicureus pelo menos Philodemus Sobre a Piedade 71
113
natildeo se converteram (I216) Para os outros estaacute guardado o dia do juiacutezo descrito com grande
tormento em que se encontraratildeo os injustos568
A moralidade cristatilde eacute destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e
comentaacuterios ldquodisseminados entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso
seu discurso sobressalta o valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de
temperanccedila569 que crescia em nuacutemeros naquela eacutepoca Tambeacutem recebem destaques a doutrina
cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos necessitados e a ausecircncia de
valor da ostentaccedilatildeo570 Com o mesmo tom piedoso seguem as afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia
a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico571 Desse modo Justino contribui tambeacutem
para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos propondo uma identidade
coletiva
Um conceito estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que chama de equiacutevocos e mal
entendidos ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja satildeo combatidos Essa sua atitude revela que o
processo de construccedilatildeo da identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada
principalmente pela necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os
variados grupos cristatildeos572 Os outros grupos cristatildeos como o dos seguidores de Marciatildeo satildeo
tidos como instrumentos nas matildeos dos democircnios (I581) Seus discursos satildeo ldquoirracionaisrdquo e
satildeo presas de doutrinas ateiacutestas do democircnio573
Tendo em vista que as pessoas satildeo capazes de agir bem ou mal devido agrave liberdade
concedida por Deus considera-se que em todas as partes haacute tambeacutem os que ldquolegislaram e
filosofaram conforme a reta razatildeordquo ou aparte dela ao mandarem que se faccedilam algumas coisas
e se evitem outras574 A ldquoreta razatildeordquo agrave qual Justino se refere eacute aquela que deriva do Logos
cristatildeo que permeia a criaccedilatildeo revela a mensagem de Deus aos homens desde outros tempos
pelas Escrituras e no seacutec I pelo proacuteprio Cristo e que assim estabelece o padratildeo de conduta
aos que desejam a ldquorecompensa eternardquo Desse modo eacute identificado um padratildeo de justiccedila
baseado nas crenccedilas e valores cultivados pelos cristatildeos que estatildeo proacuteximos a Justino e que L
W Barnard575 chega a chamar de uma ldquoproto-ortodoxiardquo Natildeo eacute possiacutevel resumir ou descrever
568 Is 6624 569 I151-7 570 I141-919 571 I161-6 572 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 573 Avlla Avlogwj w`j upoacute Lukou arnej sunhrpasmenoi( bora Twn avqewn dogmatwn kai daiacutemonwn ginontai I582 574 II68 575 Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 1967
114
o conteuacutedo dessas crenccedilas e valores a partir da anaacutelise das Apologias sabe-se poreacutem que o
apologista se refere agrave forma de pensar dos cristatildeos que lhe satildeo proacuteximos e se distanciam do
modo de pensar por exemplo do grupo de Marciatildeo Helena e Menandro
Justino contempla tambeacutem as criacuteticas daqueles que segundo o seu parecer ldquose
consideram filoacutesofosrdquo e que alegariam que as ideias cristatildes sobre um julgamento universal
futuro ldquosatildeo apenas ruiacutedos espalhafatosos e alarmismosrdquo e diriam que a ameaccedila do castigo no
fogo eterno natildeo passa de um instrumento despreziacutevel para que a ldquohumanidade viva retamente
por medo e natildeo porque a virtude eacute bela e gratificanterdquo (II91) Haacute indiacutecios de que Chrysippus
de Solis dizia que Platatildeo errava em fazer do temor aos deuses um instrumento para a detenccedilatildeo
da injusticcedila e que o argumento do castigo divino natildeo eacute diferente das histoacuterias que as matildees
contam para assustar as criancinhas576 E ainda segundo Diogenes Laertius Crisipo
sustentava que a ldquovirtude [] eacute uma disposiccedilatildeo harmoniosa escolha digna para seu proacuteprio
bem e natildeo de esperanccedila medo ou qualquer outro motivo externordquo577 Em sua soluccedilatildeo Justino
toma emprestado o argumento de Alexandre de Afrodiacutesias578 que defendeu a responsabilidade
moral humana e diz ldquose isto natildeo eacute como dizemos entatildeo natildeo existe Deus ou se existe natildeo se
importa em nada com os homensrdquo579 Virtude e o viacutecio nada seriam e em consequecircncia nem
os legisladores castigariam com justiccedila os que transgridem as boas ordenaccedilotildees Segundo
Minns e Parvis580 a hipoacutetese de Deus natildeo se importar com os seres humanos parece refletir a
visatildeo estoica que estabelecia a teoria do bem e do mal ou virtude e infelicidade considerando
a proximidade com o universo natural e a administraccedilatildeo do mundo Assim quando
Chrysippus581 mantinha que a natureza universal e a administraccedilatildeo do mundo era o
fundamento da teoria estoica sobre o bem e o mal ele estava apelando agrave racional e
providencial atividade de deus cuja conformidade com o qual constitui o bem para o homem
e cuja carecircncia de conformidade constitui o mal
Todavia Justino pontua que os legisladores ldquonatildeo satildeo injustos e o Pai deles ensina
atraveacutes do Logos a fazer o que ele mesmo fazrdquo e neste sentido ldquonatildeo satildeo injustos os que
576 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1040b 577 Diogenes Laertius Vida dos filoacutesofos eminentes VII89 578 ldquopois se natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo e virtude e viacutecio eles argumentam tambeacutem natildeo haacuteacutelouvor ou reprovaccedilatildeo e sem estes natildeo haacute accedilotildees certas ou erradas e se natildeo haacute essas tambeacutem natildeo haacute virtude ou viacutecio e se natildeo haacute essas eles dizem natildeo haacute seque deuses Mas antes assim designadamente que natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo chega a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas vem a estar em concordacircncia com o destino como tem sido mostrado Desse modo a uacuteltima posiccedilatildeo segue tambeacutem mas isto eacute absurdo e impossiacutevel (Alexandre de Afrodisias De fato36) 579 II91 580 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 305 nota 1 581 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1035c-d
115
aderem a essas virtudesrdquo582 Assim o apologista constroacutei outro padratildeo ldquoracionalrdquo atraveacutes do
qual os juiacutezes deveriam julgar para natildeo serem julgados por Deus O novo fundamento da
justiccedila no cumprimento dos seus anseios apologeacuteticos se resume a deixar os cristatildeos em paz
pois segundo seu ponto de vista natildeo havia nenhuma evidecircncia de que os fieacuteis fossem inimigos
do Impeacuterio Ele busca convencer o Imperador e seus filhos a impedir que os governantes e
magistrados locais empreendam accedilotildees anticristatildes apontando as razotildees e a racionalidade cristatilde
43 O governo o controle e os governantes
Justino ndash nessas suas peticcedilotildees apologeticamente fundamentadas que tinham como
destinataacuterios especiais Antonino Pio e seus filhos583 reconhecidamente apreciadores da
filosofia ndash alega que natildeo havia nenhuma ldquorazatildeordquo [logos] para se perseguirem os cristatildeos pois
seria a proacutepria ldquorazatildeordquo [o Logos] quem exige que ldquoos amantes da piedade e da filosofiardquo584
natildeo faccedilam algo irracionalmente
No capiacutetulo anterior foi destacada a criacutetica de Justino sobre os governantes agora
poreacutem eacute oportuno notar o perfil do governante traccedilado pelo apologista dentro do seu
argumento da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem Segundo sua teoria os homens
revestidos de autoridade para governar natildeo devem valorizar nada aleacutem da ldquoverdaderdquo Aleacutem
disso a partir de sua inspiraccedilatildeo platocircnica nota-se sua exigecircncia agravequeles que satildeo ldquopiedosos e
filoacutesofosrdquo assim como satildeo chamados o Imperador e seus filhos que deveriam julgar com
retidatildeo para que todos gozem de bem estar Governar com retidatildeo eacute para Justino governar
segundo a ldquoreta razatildeordquo Esse conceito eacute cristianizado mas aleacutem disso um governante ideal
ldquosuperiorrdquo eacute reverenciado ldquoo logosrdquo A quem ele chama de ldquoo rei mais alto o governante
mais justo que conhecemos depois de Deus que o gerourdquo (I Apol 127) Manifesta-se um
jogo semioacutetico com a palavra logos ou razatildeo
582 II92 583 A I Apologia foi dirigida ao Imperador Antonino Pio e a seus filhos Veriacutessimo (Marco Aureacutelio) e Lucio Vero A II Apologia pode ser continuaccedilatildeo da primeira como sustentou C Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006) fragmentos de anotaccedilotildees de um segundo escrito que natildeo pode ser entregue quando Justino foi preso durante o iniacutecio do governo de Marco Aureacutelio por volta de 160 dC como sustentam Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 passim) A teoria mais tradicional eacute admitir que a II Apologia foi dirigida ao imperador Marco Aureacutelio mas como seraacute visto mais adiante haacute indiacutecios de que Justino tinha por destinataacuterios secundaacuterios todos os que pudessem ler o texto e se informar acerca da inocecircncia dos cristatildeos A soluccedilatildeo para a questatildeo dos destinataacuterios das Apologias exige uma investigaccedilatildeo agrave parte mas natildeo haacute duacutevidas de que Justino pretendia que se texto fosse conhecido por Antonino e seus filhos Marco e Lucio que desde cedo atuaram ao lado 584 I125
116
Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e recusem as
coisas maacutes e assim controlar os excessos humanos (I Apol 128) Do mesmo modo eacute o logos
quem deve orientar os governantes para que o bem ou a ldquosalvaccedilatildeordquo opere sobre o ldquogecircnero
humanordquo Por isso ele escreve ldquose os filoacutesofos e legisladores disseram e encontraram algo de
bom foi elaborado por eles pela investigaccedilatildeo e intuiccedilatildeo conforme a parte do logos que lhes
couberdquo585 Poreacutem por natildeo conheceram a integralidade do Logos que eacute Cristo ldquoeles
frequentemente se contradisseram uns aos outrosrdquo586 Aqueles que antes de Cristo tentaram
investigar e demonstrar as coisas pela razatildeo conforme as forccedilas humanas foram levados aos
tribunais como iacutempios e amigos de novidades Soacutecrates aparece como um exemplo que
ratifica a fala de Justino Segundo o apologista ele foi acusado ldquodos mesmos crimes que [os
cristatildeos]rdquo587 A condenaccedilatildeo seria em razatildeo da oposiccedilatildeo daquele filoacutesofo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica e
a outros poetas ensinando os homens a rejeitar ldquoos maus democircniosrdquo envolvidos com a
idolatria e ao mesmo tempo os exortando ao conhecimento de Deus para eles desconhecido
por meio de investigaccedilatildeo racional dizendo Natildeo eacute faacutecil encontrar o Pai e artiacutefice do universo
nem quando o tivermos encontrado eacute seguro dizecirc-lo a todos588 Todavia se ningueacutem deu
ouvidos a Soacutecrates ateacute que ele deu a sua vida por essa doutrina em Cristo acreditaram natildeo soacute
filoacutesofos e homens dos quais o proacuteprio Justino eacute um mas tambeacutem artesatildeos e pessoas
totalmente ignorantes que souberam desprezar a opiniatildeo o medo e a morte Justino pretende
assim apresentar o poder de abrangecircncia da mensagem cristatilde que deriva do Logos que em
parte foi conhecido por Soacutecrates pois como o apologista escreve ldquoele era e eacute o Logos que
estaacute em tudo e foi quem predisse o futuro atraveacutes dos profetas e feito de nossa natureza por
si mesmo nos ensinou essas coisasrdquo589
A partir desse tipo de comparaccedilatildeo retrata-se o caso que ocorreu sob Urbico na cidade
de Roma Eacute provaacutevel que outros casos como esse acontecessem em regiotildees diferentes590
Segundo Justino ldquoo fato eacute que em todas as partes haacute gente disposta a [] levar [os cristatildeos] agrave
morterdquo591 A reprovaccedilatildeo cristatilde das atitudes condenaacuteveis ou repreensiacuteveis de outras pessoas era
um dos motivos para que os cristatildeos fossem denunciados aos governantes ldquoendemoniadosrdquo592
Ele escreve especialmente sobre certa mulher cristatilde na eacutepoca do prefeito Urbico que
procurou persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e lhe 585 II102 586 II102 587 II105 588 II105-6 Citaccedilatildeo de Platatildeo Timeu 28c 589 II108 590 II11 591 II12 592 II13
117
anunciando o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme
a ldquoreta razatildeordquo Naquela ocasiatildeo a uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se
era cristatildeo Apoacutes confessar recebeu condenaccedilatildeo ao supliacutecio O mesmo aconteceu com Luacutecio
que tambeacutem advertiu a Urbico593 de que ele natildeo estava ldquojulgando de modo conveniente ao
imperador Pio nem ao Ceacutesar filoacutesofo nem ao filho de Ceacutesar amigo do saber nem ao sacro
Senadordquo (II216)
Justino procura persuadir o imperador seus filhos e demais autoridades a barrarem as
condenaccedilotildees dos cristatildeos num momento quando natildeo haacute indiacutecios do estabelecimento de uma
lei concreta sobre a puniccedilatildeo dos cristatildeos Em vaacuterias regiotildees e em situaccedilotildees variaacuteveis os atritos
ocasionados pela presenccedila e expansatildeo cristatilde ocasionavam denuacutencias tidas pelos proacuteprios
cristatildeos como ldquocaluniosasrdquo a respeito da nova religiatildeo As accedilotildees anticristatildes se refletiam
muitas vezes na busca por sua condenaccedilatildeo em discussotildees em praccedilas ou em denuacutencias
dirigidas aos magistrados Em meados do seacuteculo II as delaccedilotildees sobre os cristatildeos variavam
pois seus opositores procuravam brechas juriacutedicas para enquadraacute-los A superstitio cristatilde
poderia proporcionar o oacutedio de muitos que resistiam agraves suas implicaccedilotildees morais sociais ou
simplesmente religiosas Por isso as denuacutencias ou posicionamentos se contradiziam em
lugares e ocasiotildees diferentes Taacutecito identificou algumas flagitia nas praacuteticas religiosas cristatildes
ou nos comentaacuterios sobre elas mas essa natildeo foi a opiniatildeo de Pliacutenio Segundo que julgou os
cristatildeos dignos de condenaccedilatildeo somente pela contumaacutecia que apresentaram diante de um
magistrado Para outros deveriam ser rejeitados pelo seu ateiacutesmo Comer o corpo e o sangue
de Cristo tambeacutem poderia provocar suspeitas de canibalismo594
O apologista contrasta a imagem do ldquopiordquo e ldquosaacutebiordquo governante representada na figura
de Antonino e seus filhos agravequela do falso filoacutesofo ou seja aquele que estaacute contra a ldquorazatildeordquo A
sua morte em defesa da ldquorazatildeordquo cristatilde aparece como uma possiacutevel analogia a Soacutecrates
devido aos seus embates com Crescente em Roma O falso ldquofiloacutesofordquo eacute aquele que natildeo sabe
uma palavra sobre os cristatildeos mas os calunia publicamente como esses fossem ldquoateus e
iacutempiosrdquo595 Ele adapta a esse novo contexto Xenofonte596 que conta que em uma encruzilhada
vieram ao encontro de Heacuteracles597 a virtude e o viacutecio na forma de mulheres
O viacutecio estava vestido com roupas finas tinha rosto atraente e adornado com enfeites e disse a Heacuteracles que se ele a seguisse ela o faria viver sempre no prazer
593 II215 594 Cf MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 winter1994 pp 413-442 595 wj avlogoj kai avsebwn Cristianwn ontwn( (II82) 596 Memorabilia II121-34 597 Heraacutecles tambeacutem foi invocada por estoicos como exemplo de luta moral (Churniss em Plutarco De Communibbus Notitiis adversus stoicos 1065c em Moralia)
118
e enfeitado com o mais belo ornamento semelhante ao que ela usava Ao contraacuterio a virtude com rosto e veste severos lhe disse Se seguires a mim natildeo te enfeitarei com beleza ou adorno passageiro e corruptiacutevel mas com enfeites eternos e belos598
Semelhantemente Justino considera
estamos persuadidos de que alcanccedilam a felicidade todos aqueles que fazem dos bens aparentes e seguem o que parece duro e contra a razatildeo Porque a maldade veste as suas accedilotildees com as qualidades da virtude e do que eacute de fato bem remedando o incorruptiacutevel pois ela de si natildeo tem nada de incorruptiacutevel e nem eacute capaz de produzi-lo e torna escravos seus os homens que se arrastam pelo chatildeo atribuindo agrave virtude os males proacuteprios da maldade Contudo os que compreendem os bens verdadeiros proacuteprios da virtude tambeacutem se tornam incorruptiacuteveis pela virtude599
Desse modo Justino procura constranger o imperador a partir do seu argumento
apologeacutetico e do jogo semioacutetico em torno da ldquorazatildeordquo e da filosofia a ser favoraacutevel aos
cristatildeos pois natildeo seria de nenhum modo virtuoso combater ou permitir que sejam combatidos
aqueles que segundo seu ponto de vista tecircm muito a contribuir para a paz no Impeacuterio
A contribuiccedilatildeo da religiatildeo cristatilde eacute apresentada dentro do seu plano apologeacutetico que
busca convencer natildeo apenas dos efeitos positivos do caraacuteter de suas crenccedilas para a
manutenccedilatildeo da ordem mas tambeacutem na apresentaccedilatildeo de alguns pontos fundamentais do seu
conteuacutedo que rebatam as ldquocaluacuteniasrdquo dos acusadores e apresentem o seu aspecto ldquoracionalrdquo Ao
explicar alguns fundamentos da crenccedila cristatilde como o combate agrave idolatria eacute possiacutevel notar que
o apologista eacute sensiacutevel em sua anaacutelise agrave diversidade de ideias e crenccedilas que interagem e se
contradizem no Impeacuterio Essa contradiccedilatildeo aparece tambeacutem entre os intelectuais e as crenccedilas
do povo comum Segundo Paul Veyne600 ldquotodo erudito hesitava entre o ceticismo da alta
sociedade e o esoterismo cultivadordquo Isso leva Justino a formular um argumento que busque
apresentar os aspectos racionais das crenccedilas cristatildes ainda que isso se reduza a um jogo
semioacutetico e linguiacutestico em torno do logos De qualquer forma a religiatildeo cristatilde aparece como
uma opccedilatildeo de superaccedilatildeo tanto da religiatildeo pagatilde questionada pelos intelectuais em muitos
aspectos quanto como uma filosofia sublime ou superior601 que tem maior alcance e eficaacutecia
no controle das accedilotildees humanas602 Assim ele escreve ldquoem Cristo acreditaram natildeo soacute filoacutesofos
e homens cultos mas tambeacutem artesatildeos e pessoas totalmente ignorantes que souberam
598 II114-5 599 II116-8 600 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 280 601 ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Logos inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (II101) E tambeacutem ldquoas nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo (II152) 602 ldquoEntre noacutes tudo isso se pode ouvir e aprender ateacute daqueles que ignoram as formas das letras pessoas ignorantes e baacuterbaras de liacutengua mas saacutebias e fieacuteis de inteligecircncia e ateacute pessoas mutiladas e privadas de visatildeo De onde se pode entender que isso natildeo acontece pela sabedoria humana mas se diz que eacute pela forccedila de Deusrdquo (I6011)
119
desprezar a opiniatildeo o medo e a morte porque ele eacute a virtude do Pai inefaacutevel e natildeo um vaso
de humana razatildeordquo603
Apoacutes explicar os pontos fundamentais do pensamento cristatildeo Justino diz que ldquodaqui
por diante noacutes natildeo nos sentiremos irresponsaacuteveis mesmo que continueis increacutedulos pois o
que dependia de noacutes jaacute foi feito e chegou ao fimrdquo (558) Seguindo sua articulaccedilatildeo para
ratificar a fidelidade dos cristatildeos a Deus e ao Impeacuterio nota-se que o apologista faz uso do
proacuteprio efeito da doutrina cristatilde que sugere como instrumento de controle para persuadir o
imperador tambeacutem pelo possiacutevel temor Assim com um tom de advertecircncia ele escreve
[] se natildeo atendeis agraves nossas suacuteplicas nem esta exposiccedilatildeo puacuteblica que vos fazemos de todo o nosso modo de viver em nada ficaremos prejudicados pois cremos ou melhor estamos persuadidos de que cada um pagaraacute a pena conforme mereccedilam as suas obras pelo fogo eterno e que teraacute que prestar contas a Deus segundo as faculdades que recebeu do proacuteprio Deus conforme nos indicou Cristo dizendo A quem Deus deu mais mais seraacute exigido por Deusrdquo604 (I173-4)
Em outras palavras esse eacute um tipo de alerta ao imperador sobre a sua responsabilidade
diante de Deus devido a sua posiccedilatildeo de autoridade E como se deveria esperar de um
governante ldquopiordquo e ldquoamante da sabedoriardquo tal como foi idealizado no perfil construiacutedo por
Justino segundo sua leitura logocecircntrica Ou seja tendo a ideia do logos cristatildeo como
referecircncia o apologista escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da
verdade respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees
desprezai-as Natildeo decreteis poreacutem pena de morte como contra a inimigos contra aqueles
que nenhum crime cometemrdquo605 Sua peticcedilatildeo eacute seguida de outro alerta ldquoescatoloacutegicordquo ldquovos
avisamos de antematildeo que se vos obstinais em vossa iniquidade natildeo escapareis do futuro
julgamento de Deusrdquo606 Em outro ponto nesse mesmo sentido lecirc-se ldquose tambeacutem voacutes ledes
como inimigos estas nossas palavras aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis
fazer A noacutes isso nenhum dano causaraacute a voacutes poreacutem e a todos os que injustamente nos
odeiam e natildeo se convertem trar-vos-aacute castigo de fogo eternordquo (I456)
Aliada agrave ciecircncia dos benefiacutecios da religiatildeo cristatilde o apologista deixa claro o seu desejo
de que ldquotodos os homens de todo o mundordquo conheccedilam ldquoa verdaderdquo o que incluiacutea o imperador
e seus filhos Desses uacuteltimos deseja-se tambeacutem que julguem ldquocom justiccedila de acordo com [a]
piedade e filosofiardquo e que se possiacutevel publiquem esse escrito para o conhecimento de todos607
Natildeo eacute possiacutevel saber se as Apologias chegaram ateacute o imperador e eacute pouco provaacutevel
que ela tenha circulado amplamente conforme desejava Justino No entanto segundo Sara 603 II108 604 Fazendo menccedilatildeo a Lc 1248 605 I681 606 I681 607 II152
120
Parvis608 seu modo de escrever em defesa dos cristatildeos teria influenciado outros apologistas
As aproximaccedilotildees praticadas por esse pensador em sua manobra teoloacutegica buscam a conversatildeo
inclusive do imperador Em oposiccedilatildeo agrave forma controle que emerge dos clamores reativos
populares que estariam impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do nomen
Christianum o apologista acaba por formular uma reflexatildeo teoloacutegica da histoacuteria que
contempla a relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo Se por um lado estaacute a criacutetica agrave forma de
manutenccedilatildeo da ordem imposta pelos romanos que dava margem para que denuacutencias
decorrentes de atritos locais que conduziam os cristatildeos agrave morte por outro emerge a sua teoria
sobre a cooperaccedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo da sociedade devido ao caraacuteter de suas crenccedilas
Trata-se de um confronto de ideias cujos efeitos deveriam ser aguardados O modelo de
controle cristatildeo pode-se dizer eacute aquele que vem do alto ou de dentro Eacute fruto da assimilaccedilatildeo
da doutrina cristatilde que tem um Deus que zela pela justiccedila e pela moral e que exige uma
conduta impecaacutevel de todos os seus fieacuteis Os que creem e os que natildeo creem estatildeo sob a
condiccedilatildeo do seu juiacutezo O Deus cuja feacute os cristatildeos professam e procuram comunicar aos
demais natildeo tem nacionalidade Ele eacute o criador dos homens e da razatildeo [logos] Todo ser
humano recebeu uma semente dessa razatildeo mas os democircnios maleacutevolos satildeo os responsaacuteveis
por obscurecer o julgamento correto que conduz todo o genus humanus a uma vida reta justa
e virtuosa para a sua recompensa eterna Essa racionalidade humana eacute a responsaacutevel por fazer
com que os homens reconheccedilam e atentem para a mensagem pelo logos que revela Deus pelas
Escrituras ignoradas pelos judeus e examinas pelos cristatildeos Esse temor diante de Deus
entatildeo natildeo deveria ser rechaccedilado como uma superstitio despreziacutevel mas deveria ser acatada
como um mecanismo capaz de traduzir razoavelmente uma doutrina que agregue pontos de
aproximaccedilatildeo aos assuntos filosoacuteficos e a uma mensagem significativa para as pessoas sem
instruccedilatildeo Deve ser reconhecida natildeo como uma mensagem de odio humanus genus mas de
salvatio humanus genus609 sob o domiacutenio do Logos que se traduz na submissatildeo e conversatildeo
ao cristianismo
608 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 609 Isto eacute ldquosalvaccedilatildeo da humanidaderdquo
121
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A situaccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II era instaacutevel e
revelava condenaccedilotildees esporaacutedicas Gritarias e tumultos puacuteblicos agraves vezes pressionavam os
magistrados para que condenassem os cristatildeos sem que houvesse uma ideia clara sobre como
enquadraacute-los em uma lei comum Um pouco antes Adriano havia sido consultado por
governantes610 como Graniano sobre esses problemas Naquela eacutepoca o imperador
recomendou a Minuacutecio Fundano que examinasse de modo particular as denuacutencias formais e
que natildeo desse espaccedilo para a pressatildeo dos tumultos puacuteblicos
Ainda um pouco antes a forma como deviam ser conduzidos os processos contra os
cristatildeos despertava algumas duacutevidas em Pliacutenio Segundo no Ponto-Bitiacutenia A crenccedila cristatilde era
vista como uma superstitio cujo temor os faziam repudiar os deuses comuns o culto ao
Imperador e todos os aspectos da vida puacuteblica que apresentasse algum viacutenculo com outras
crenccedilas e com a ldquoimoralidaderdquo Esse afastamento das interaccedilotildees sociais e o desprezo pelos
deuses tradicionais causou a aversatildeo de muitos das camadas populares e a desconfianccedila das
autoridades A estranheza dessa superstitio favoreceu a disseminaccedilatildeo de caluacutenias como a de
que a celebraccedilatildeo da ceia fosse algum tipo de ritual antropofaacutegico e que as reuniotildees cristatildes
privadas constituiacuteam-se em orgias Desse modo o nonem christianum assumiu uma forte
conotaccedilatildeo negativa pelas regiotildees do Impeacuterio A condenaccedilatildeo dos membros dessa nova religiatildeo
tinha precedentes desde a culpa pelo incecircndio de Roma nos tempos de Nero embora nenhuma
evidecircncia concreta a uma lei que condenasse o crime de ldquocristianismordquo seja encontrada na
primeira metade do II seacuteculo Trajano ratificou o procedimento de Pliacutenio em condenar os
cristatildeos por confessarem-se ldquocristatildeosrdquo todavia essas condenaccedilotildees tinham caraacuteter
admoestativo para desestimular o crescimento do grupo As buscas ou perseguiccedilotildees de fato
natildeo deviam entrar em curso Visava-se minar o corpo estranho representado pelo grupo
antissocial dos cristatildeos da sociedade e garantir a sua reintegraccedilatildeo mediante o perdatildeo aos que
abandonassem a feacute Se para alguns como Taacutecito a superstitio incidia sobre flagitia para
outros como Pliacutenio nenhum flagitium era detectado provavelmente eram produto das
caluacutenias e rumores das massas
A religiatildeo e os deuses tinham diferentes conotaccedilotildees entre a classe letrada entre os
poetas e para o povo sem instruccedilatildeo Desde os tempos de Platatildeo e Soacutecrates a filosofia
610 Deve-se considerar que a ldquoCarta de Antonino ao conciacutelio da Aacutesiardquo citada por Euseacutebio na Histoacuteria Eclesiaacutestica IV131-8 estava correta
122
sustentou criacuteticas agrave religiatildeo tradicional No II seacuteculo dC a influecircncia do cultivo do saber e do
exerciacutecio filosoacutefico podia ser percebida nas correntes de pensamento tais como o estoicismo e
o neoplatonismo que aproximavam a religiatildeo da moral Justino recebeu educaccedilatildeo grega e
provavelmente era filho de um funcionaacuterio romano Priscus cuja famiacutelia pode ter atuado na
colonizaccedilatildeo de Flavia Neaacutepolis na Palestina De laacute partiu para sua jornada pelos caminhos da
filosofia ateacute conhecer as doutrinas cristatildes Como ldquofiloacutesofordquo eacute possiacutevel que sustentasse criacuteticas
agrave forma de pensar das pessoas comuns considerada expressatildeo de ldquoexcessos supersticiososrdquo
Na condiccedilatildeo de cristatildeo passou a pensar a religiatildeo a partir da filosofia Desse modo a feacute cristatilde
passou a representar em seu pensamento a ldquofilosofia verdadeirardquo e ldquodivinardquo Diante dos atritos
sofridos pelos cristatildeos em seu tempo recorreu ao poder da argumentaccedilatildeo e da conveniecircncia
da escrita para defender os cristatildeos da ldquoinjusticcedilardquo sofrida Em uma peticcedilatildeo apologeticamente
fundamenta escreveu a Antonino Pio e a seus filhos clamando para que os cristatildeos natildeo
fossem condenados apenas pela confissatildeo de ldquocristianismordquo Para alcanccedilar o favor do
imperador Justino procura desfazer a conotaccedilatildeo negativa em torno desse nomen christianum
por meio da explicaccedilatildeo dos principais toacutepicos das doutrinas cristatildes e da afirmaccedilatildeo da
submissatildeo dos cristatildeos
A partir da reflexatildeo sobre suas ideias compreende-se o paradoxo entre tipo de controle
social desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia a esses (ou seja
os cristatildeos) que satildeo tidos como ameaccedila agrave ordem e por outro lado o tipo de controle social
apontado nas Apologias que daacute razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos Justino tece uma criacutetica jaacute
conhecida sobre a imoralidade dos deuses pagatildeos Ele natildeo se sente nem um pouco intimidado
em sustentar que os deuses nada satildeo aleacutem de uma ilusatildeo criada pelos ldquomaus democircniosrdquo para o
desvirtuamento dos homens Os ldquomaus democircniosrdquo satildeo os responsaacuteveis pelo obscurecimento
de toda a ldquoverdaderdquo A ldquoverdaderdquo eacute o conhecimento superior que conduz a humanidade agrave
moralidade e eacute reconhecida pelo exerciacutecio da ldquorazatildeordquo A ldquorazatildeordquo eacute algo divino compartilhado
a todos os homens e encarnada na pessoa de Jesus Cristo o mestre dos cristatildeos Sua
encarnaccedilatildeo eacute o cumprimento das profecias das Escrituras sustentadas pelos judeus que por
natildeo a compreenderem corretamente natildeo satildeo capazes de reconhecer o cumprimento da
expectativa messiacircnica611 Por reconhecer mediante uma hermenecircutica que busca identificar
o maacuteximo de evidecircncias possiacuteveis sobre o cumprimento das Escrituras em Cristo612 o
611 ldquoExpectativa messiacircnicardquo expressatildeo teoloacutegica utilizada para se referir a esperanccedila de que o messias libertador de Israel chegaria conforme os profetas israelitas haviam predito 612 Tambeacutem chamada de ldquohermenecircutica cristocecircntricardquo ou no que se refere agrave comunicaccedilatildeo da mensagem divina pelo Logos uma ldquohermenecircutica logocecircntricardquo
123
cumprimento das profecias julga prudente reconhecer as advertecircncias divinas pelas escrituras
sobre o julgamento futuro
Justino desenvolve uma leitura teoloacutegica da histoacuteria contrastando o julgamento a que
satildeo submetidos os cristatildeos e o julgamento final de Deus O primeiro considerado um
julgamento ldquoirracionalrdquo e momentacircneo movido pela cegueira produzida pelos maus
democircnios enquanto o segundo eacute idealizado como um julgamento divinamente justo e eterno
A accedilatildeo dos primeiros governantes estaacute relacionada a uma preocupaccedilatildeo com a manutenccedilatildeo da
ordem que os leva a acatar as denuacutencias caluacutenias e mobilizaccedilotildees contra os cristatildeos Eacute um tipo
de controle social que emerge de baixo pela repulsa do povo por aqueles que representavam
uma ameaccedila a pax deorum devido agrave condenaccedilatildeo ao culto dos deuses Justino acredita que em
meio agrave variedade de ideias e crenccedilas que constituem o quadro social do Impeacuterio os cristatildeos
natildeo deveriam ser reprimidos pelas autoridades por pensarem diferente Desse modo ele se
empenha em mostrar as correlaccedilotildees existentes entre as coisas sustentadas pelos cristatildeos e
outros pontos da cultura greco-romana Enquanto algumas correlaccedilotildees satildeo consideradas
estrateacutegias do democircnio para enganar os homens outras satildeo consideradas a manifestaccedilatildeo da
accedilatildeo do logos que comunica a verdade quer seja pelo conhecimento que os gregos tiveram
pelas Escrituras judaicas ou pelo logos spermatikos comum ao gecircnero humano Tudo o que
foi dito escrito ou julgado corretamente segundo a razatildeo eacute considerado consonante com o
posicionamento dos cristatildeos Pois eacute a ldquorazatildeordquo ou logos que deve conduzir as accedilotildees humanas
para a salvaccedilatildeo Desse modo aleacutem de procurar investir as doutrinas cristatildes de aspectos
racionais Justino tambeacutem busca deixar claro que os cristatildeos natildeo satildeo nenhuma ameaccedila ao
Impeacuterio Os fieacuteis satildeo apresentados como os melhores cooperados do Impeacuterio na manutenccedilatildeo
da paz devido ao caraacuteter das suas doutrinas Contrastando em alguns pontos com o tipo de
controle exercido sobre os soldados que juram fidelidade sem esperarem algo duradouro em
troca Justino fala do tipo de controle que vem ldquodo altordquo A crenccedila no controle absoluto do
Deus cristatildeo eacute apresentada como uma alternativa para solapar a incoerecircncia manifestada na
reverecircncia a deuses tatildeo desregrados e impiedosos quanto aos seres humanos que natildeo
poderiam servir de exemplo de conduta Natildeo haacute muitos detalhes acerca da moralidade cristatilde
mas ela parece estar relacionada agrave moderaccedilatildeo a restriccedilotildees sexuais ao respeito agrave verdade e aos
outros Segundo essa crenccedila cristatilde toda pessoa eacute livre para escolher como deseja viver mas
um dia estaraacute diante do juiacutezo do Deus absoluto do qual ningueacutem pode esconder nada
Tambeacutem eacute nesse sentido que satildeo identificados os cristatildeos Os cristatildeos satildeo definidos como
praticantes de um ideal de vida a seguir fortemente caracterizado pelo moralismo estrito
124
Desse modo Justino acredita que a disseminaccedilatildeo das doutrinas cristatildes poderia servir para
controlar os excessos humanos e as injusticcedilas
Esse tipo de ferramenta de controle foi empregado inclusive para constranger o
imperador a ouvi-lo Aleacutem de considerar irracional desprezar a doutrina dos cristatildeos o
apologista faz uso dessa ferramenta de controle para destacar que a uacutenica coisa que os
romanos poderiam fazer pelos cristatildeos em sua oposiccedilatildeo era lhes tirar a vida algo que
ironicamente o apologista considera insignificante visto que todos um dia morreratildeo Todavia
sustentando que a vida natildeo termina no tuacutemulo Justino alerta que a injusticcedilas como essas
Deus retribuiraacute um dia o castigo eterno enquanto para os que satildeo piedosos e justos estaacute
guardada uma ldquorecompensa eternardquo
Talvez as Apologias de Justino nunca tenham chegado ao seu destinataacuterio
especificado E se chegaram natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que tenham surtido um efeito
positivo Justino morreu anos mais tarde Todavia seu martiacuterio nos tempos de Marco Aureacutelio
tornou-se inspiraccedilatildeo para outros escritores como Atenaacutegoras ou Teoacutefilo de Antioquia Ao
revelar uma relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo a partir das accedilotildees anticristatildes seus escritos
se tornam peccedila fundamental para se compreender como as suspeitas e caluacutenias que incidiam
sobre os cristatildeos despertaram pessoas como esse mestre para pensar a relaccedilatildeo entre a nova
religiatildeo e a estrutura social e poliacutetica existente Se em siacutentese o que suas Apologias
pretendiam de fato era a retirada dos empecilhos para a conversatildeo dos pagatildeos elas satildeo
tambeacutem a primeira manifestaccedilatildeo da ideia de que para proporcionar a conversatildeo dos ldquooutrosrdquo e
o abandono dos rituais religiosos que permeavam a vida puacuteblica e os eventos sociais no
Impeacuterio era preciso pensar a religiatildeo cristatilde como uma alternativa que oferecesse algum tipo
de vantagem social e poliacutetica
Quando se busca por exemplo compreender as vantagens identificadas pelos romanos
na autorizaccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no IV seacuteculo manifesta-se a necessidade de se
investigar sobre as raiacutezes da aproximaccedilatildeo entre religiatildeo cristatilde e o Impeacuterio Eacute pelo exame das
Apologias de Justino Maacutertir que se percebe que em grande medida tal aproximaccedilatildeo eacute fruto
da reflexatildeo apologeacutetica que procurar livrar os cristatildeos da condenaccedilatildeo das autoridades romanas
e ao mesmo tempo em sintonia com a orientaccedilatildeo missionaacuteria na propagaccedilatildeo da mensagem
cristatilde busca livrar os romanos da condenaccedilatildeo eterna de Deus por meio da conversatildeo A
condenaccedilatildeo do culto aos deuses pagatildeos e da religiatildeo ciacutevica associada agrave contumaacutecia cristatilde em
natildeo contradizer suas crenccedilas em funccedilatildeo das determinaccedilotildees romanas exigiu uma reflexatildeo
sobre a sua contribuiccedilatildeo social para o Impeacuterio que os isentasse da culpa de traiccedilatildeo falta de
civismo ou algum tipo de conspiraccedilatildeo do ldquoreino de Deusrdquo Ateacute meados do seacuteculo II as
125
acusaccedilotildees variavam em cada regiatildeo e um paralelo que proporcione uma anaacutelise entre cada
uma delas tambeacutem parece ser um tema digno de uma investigaccedilatildeo especiacutefica e um desafio que
ainda precisa ser encarado
126
REFEREcircNCIAS
Fontes principais
MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005
MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006
JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995
Referecircncas gerais
AGOSTINHO de Hipona A cidade de Deus Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2000
ALCINOOS Enseignement des doctrines de Platon Les Belles Lettres Paris 1990
APHRODISIAS Alexandre drsquo De fato ad Imperatores Ed Guilaume de Moerbek e Pierre Thillet Paris J Vrin 1963
APULEIO Lrsquoautodifesa (apologia di segrave e della magia) Ed Bruno Cassianelli Caserta Edizioni UTEM 1948
AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] vol29 n2 pp 341-356 2010 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019
ANDRESEN C Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft Berlin-New York v44 pp157-195 1952-1953
ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Walter de Gruyter und co Berliacuten 1955
ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris Librairie Alphonse Picard et Fils 1909
127
ARISTIDES Aelius Orationes In Aristides ex recensione Guilielmi Dindorfii Leipzig Weidmann 1829
ARZANI A A teologia do loacutegoj no Quarto Evangelho Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Escola Superior de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008
ATHENAGORAS A Plea for the Chrstians In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995
AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875
AYRES Lewis LOUTH Andrew YOUNG Francecircs M (org) The Cambridge history of early Christian life New York Cambridge 2007
BAGATTI B S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319
BARCELOgrave P Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002
BARNARD L W Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology v 22 n 2 pp 152-164 jun1969
________ Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967
BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 pp 30-50 1968
BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 pp 538-555 2009
BAUMGARTNER M Social control from below In D Black (ed) Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 Orlando Academic Press 1984
BAYET Jean La religion romaine histore politique et psychologique Paris Payot 1976
BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998
BENNET J Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005
BENOIcircT Simon Giudaismo e Cristianesimo una storia antica Bari Laterza 2005
128
BIBLIA Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50])
BIBLIA Sagrada ediccedilatildeo da CNBB 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2002
BLACK Donald The Behaviour of Law New York Academic Press 1976
_______ Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 New York Academic Press 1984
_______ Toward a General Theory of Social Control Selected Problems Vol 2 New York Academic Press 1984
BLANT E le Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373
_______ le Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373
BLUNT A W The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911
BOBICHON P lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 pp 157-158 2003
BOFFO Laura Iscrizioni greche e latine per lo Studio della Bibblia Brescia Paideia Editrice 1994
BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101
BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950
BRENT Allen A political history of Early Christianity London TampT Clark 2009
BUELL Denise K Why this new race ethnic reasoning in early Christianity New York Columbia University Press 2005
BULTMANN R Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004
BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985
BURNS Stacy Lee Ethnographies of law and social control Oxford Elsevier 2005
Carta a Diogneto In Padres Apologistas Satildeo Paulo Paulus 1995
CHADWICH H Early Christian Thought and the Classical Tradition Oxford Clarendon Press 2002
129
________ Introduction In ____ (Ed) Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi
________ Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 (v 47)
________ The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001
________ The gospel a Republication of the natural religion in Justin Martyr Illinois Classical Studies n 18 pp 237-247 1993
CLEMENT of Alexandria Protrepticus In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
________ Stromata In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832
CHROUST Anton-Hermann AristotleProtrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964
CICERO M Tullius De Natura Deorum Edited by O Plasberg Leipzig Teubner 1917 pp 136-137
_________ Tullius De Legibus Georges de Plinval (ed) Paris Belles Lettres 1959
CLARK Gillian Christianity and Roman Society Cambridge Cambridge University Press 2004
CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999
COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp1507-1562
COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985
COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987
COPETE Juan Manuel Corteacutes Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004
130
COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008
Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonnae E Webere 1832
CULMANN O Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002
CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938
DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000
DANIELOU J Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975
De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted- A Rejoinder Past and Present n27 pp28-33 1964
De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 pp6-38 1963
DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000
DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940
DIOGENES Laertius The life of the eminents philosophers Ed Robert Drew Hicks LondonNew York W HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1925
DION Cassius Histoire Romaine V 9 Editado por E Gros Paris Librairie de Firmin Didot Fregraveres Fil Et C Imprimeurs de LrsquoInstitut 1867
DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 p 24 2005
DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963
DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990
DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106
DURRY Marcel Durry Pline-le-juene Paris Le belle Lettre 1972 p 7071
131
ECK Werner The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 195-213
ENDSJO Dag Oistein Greek resurrection beliefs and the soccess of Christianity New York Palgrave Macmillan 2009
ESTRABAtildeO Geography London Heinemann 1949
EUSEBIO de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduzido por Wolfgang Fischer Satildeo Paulo Novo Seacuteculo 2002
EUSEBIUS Die Chronik des Hieronymus heraugegeben und in 2 Auflage bearbeitet von R Helm 3 unveraumlnderte Auflage mit einer Vorbemerkung von U Treu GCS 31 Berlin Akademie Verlag 1984
FARNELL R L Greek hero cult and ideas of immortality Oxford Carendon Press 1921
FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa
________ La relacioacuten entre razoacuten y revelacioacuten em la antropologiacutea de Justino Maacutertir Teologiacutea y Vida v LII pp 35-50 2011
FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006
FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967
FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012
FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11
GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52
GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995
GOFFMAN E Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006
__________ Relations in Public New York Basic Books 1971
GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946
132
GOODENOUGH E R Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923
GOODMAN R ROWLAND C Apologetics in the Roman Empire Oxford Oxford University Press 1999
GOODSPEED E Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914
GRABE J E SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703
__________ SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700
GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988
GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951
GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18--
HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010
__________ The appropriateness of the apologetical arguments of Justin Martyr Tesis submitted for the Master of Philosophy Australian Catholic University 2008
HARNACK A Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274
__________ Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882
__________ Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99
__________ The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962
HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844
HENTEN Jan Willem AVEMARIE Friedrich Martyrdom and noble death selected texts from Graeco-Roman Jewish and Christian Antiquity New York Routledge 2002
133
HIPPOLYTUS The refutation of all heresies Traduzido por Rev J H MacMahon In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 5 Fathers of the Third Century Hippolytus Cyprian Caius Novatian Appendix Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
Historiae Augustae v I text latin with english translation by David Magie London Harvard University Press 1921 (Loeb Classical Library)
HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885
HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897
HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931
HORWITZ E A The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990
HUNT Emily J Christianity in the second century a case of Tatian New York Routledge 2003
HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703
HYLDAHL N Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965)
Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998
INNES Martin Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003
Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386
Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355
IRINEO of Lyon Againt Heresies Traduzido por Rev Alexander Roberts e James Donaldson In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene Fathers v 1 The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
ISOCRATES Busiris with an English Translation in three volumes by George Norlin PhD LLD Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1980
JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 pp 131-159 jun1979
134
JEROME GENNADIUS Lives of illustrious men Traduzido por Ernest Cushing Richardson In SCHAFF Philip (ed) Nicene and Post-Nicene Fathers 2 v 3 Theodoret Jerome Gennadius amp Rufinus Historical Writings New York Grand Rapids MI Christian Literature Publishing Co Christian Classics Ethereal Library 1892
JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961
JOLY E MOORE D Corpus Inscriptionum Latinarum vol VI pars VII fasc IV Berolini De Gruyter p 4262
JOSEgravePHE F Contre Appion Trad Th Reinach Paris Les Belles Lettres 1930
JOSEPHUS Flavius Jewish antiquities books XVI-XVII (Loeb Classical Library) Translated by Ralph Marcus and Allen Wikgren New York Harvad Press 1963
JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991
JOUCE Cullan The seeds of dialogue in Justin Martyr Australian eJournal of Theology 7 jun2006
JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995
JUVENAL Satiras In Juvenal and Persius With An English Translation G G Ramsay London New York William Heinemann G P Putnams Son 1918
KEITH Graham Justin Martyr and religious exclusivism Tyndale Bulletin 431 pp 56-80 1992
KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945
KERESZTES P Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 pp 204-214 dec1964
_________ Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986
_________ Rome and Christians Church I ANRW II 23 1 pp 260 274ss (1979)
_________ The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965
KHORENATSrsquoI Moses History of Armenians Traduzido por Robert W Thomson Ann Arbor Caravan Books 2006
KIMMEL G Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983
135
KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91
KRUEGER Paul MOMMSEN Theodor (Ed) Corpus iuris civilis I Institutiones Dublin Weidmann 1920 passim
KRUumlGER G Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896
LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934
LACTANTIUS The divine institutes Washington Catholic University of America Press 1964
LEWIS Charlton Thomas KINGERY Hugh Macmaster (Ed) An elementary latin dictionary New York American Book Co 1918
LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940
_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999
_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001
LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 pp 2146-312 1986
LUCIAN De morte Peregrini In Works with an English Translation by A M Harmon Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1936
_______ Menippus In The Works of Lucian of Samosata Translated by Fowler H W and F G Oxford The Clarendon Press 1905
LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]
MACMULLEN Ramsay Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997
__________ Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966
__________ Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981
MAIR AW GR MAIR Callimachus Hymn and Epigrams Lycophron With an English Translation by AW Mair Revised Version Cambridge MA amp London Harvard University Press 2000
136
MARAN P TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius
MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005
_________ Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994
_________ Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997
_________ Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 (2) pp 322-335 1992
MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007
MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 pp 413-442 winter1994
MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology v 8 pp 35ndash55 1982
MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 161v
_________ (Org) Patrologiae cursus completus series latina Paris Garnier-Migne 1878 217v
MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 pp 392-399 1890
MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 pp 3-32 1953
MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956
MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975
MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006
137
__________ LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p
__________ Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995
NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002
NASCIMENTO DFP O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia Pontificia Universidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003
NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzene Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129
OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992
ORIGIN Against Celsus In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997
OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889
OTTO JCT von Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876
PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988
PARVIS Sara Justin Martyr and Apologetc Tradition In PARVIS Sara FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007
________ FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007
PAUSANIAS Description of Greece with an English Translation by WHS Jones LittD and HA Ormerod MA in 4 Volumes Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1918
PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998
PERION Joachin Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum
138
Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis
PERKINS Judith Roman Imperial Identities in the Early Christian Era New York Routledge 2009
PFAumlTTISCH Johannes M Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910
PLATO Apology In Plato in Twelve Volumes Vol 1 translated by Harold North Fowler Introduction by WRM Lamb Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1966
______ Republic In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903
______ Law In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903
PLINIUS Caecilius Secundus Gaius Lettres Paris Belle Lettres 1953
PLUTARCH Moralia with an English Translation by Frank Cole Babbitt Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1928
POLYBIUS The Histories V III Translated by W R Paton Cambridge MALondon Harvard University PressWilliam Heinemann LTD 1979
POPE M The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000
POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005
PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988
QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197
RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972
REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004
ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89
ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) Bible Work 5 Software 2002
139
ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995
ROHDE Erwin Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966
ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981
ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141
ROSS Robert C Superstitio The Classical Journal v 64 n 8 pp 354-358 mai1969
ROUCECK Joseph Social Control Westport CT Greenwood Press 1970
RUSCONI C DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005
RUSSELL D S The Method and Message of Jewish Apocalyptic Philadelphia Westminster Press 1964
SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961
SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958
SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 pp 190ss 1954
SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review N 82 p 72 Jan1982
SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004
SENECA Apocolocyntosis WHD Rouse MA Litt D London William Heinemann 1913
SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008
SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 pp 23-27 1964
___________ The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952
140
SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987
SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 p 412 setdez 2009
SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006
SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944
SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011
________ I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349
STARK Rodney Baindridge Religion deviance and social control New York Routledge 1996
SUETONIUS The lives of the CAESARS In ROLFE JC (ed) SUETONIUS v II LondonNew York William HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1928
SUETONII C T De Vita XII Caesarum Harvard Loeb Classical Library 1914
SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012
SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946
SYLBERG F TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953
TACITUS C Annais In Complete Works of Tacitus Edited by Alfred John Church William Jackson Brodribb Sara Bryant New York Random House Inc Random House Inc reprinted 1942
________ Historiae Ed Charles Dennis Fisher Clarendon Press Oxford 1911
TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984
TATIAN Address to the Greeks Traduzido por JE Ryland In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
141
TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899
TERTULLIAN Apology Traduzido por Rev S Thelwall In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
________ Apology With tradution of TRGlover In GOOLD G P TertullianMinucius Felix Cambridge MassachusettsLondon Harvard University PressWilliam Heinemann 1978 pp 112-113 (The Loeb Classical Library)
________ Against the Valentinians Traduzido por Dr Roberts In SCHAFF Philip MENZIES Allan (ed) Anti-nicene fathers v 3 Latin Christianity its Founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2006b
THIRLBY S Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722
TITUS Livius History of Rome Cambridge Mass Harvard University Press 1970
TUAN Yi-fu Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983
URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932
VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006
VALANTASIS Richard Demons Adversaries devils fishermen The Asceticism of authoritative teaching (NHLVI3) in context of Roman AscetismThe Journal of religion v 81 n 4 pp 549-565 out2001
VEYNE P Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197
VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009
XENOPHON Apology In ____ Xenophontis opera omnia 2nd ed Oxford Clarendon Press 1921
WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991
WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987
WHIGHT ED The History of Heaven New York Oxford University Press 2000
WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 pp 181-190 1975
142
WINDISCH Hans Die orakel des Hystaspes Amsterdam Koninklijke Akademie van Wetenschappen 1929
WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982
143
APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS
A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450
ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C
segundo a forma estabelecida por Otto613
O Parisinus Graecus 450 ndash A ndash eacute o mais antigo manuscrito das obras de Justino
consideradas autecircnticas Ele eacute descrito como um conjunto de 467 foacutelios de 285x215 cm
terminado em 11 de setembro de 1364 segundo seu colofatildeo (fol 461a)614 Presume-se que
tenha sido adquirido em Veneza por Guillaume Pellicier bispo de Montpellirer e embaixador
francecircs naquela cidade de 1539 a 1542615 Natildeo eacute possiacutevel saber onde o manuscrito esteve
entre 1364 e 1540 Miroslav Marcovich616 considera ateacute razoaacutevel a hipoacutetese de A ter sido
produzido na Mistra617 do Deacutespota Manuel Cantacuzenos O antigo imperador John VI
Cantacuzenos pai de Manuel teria vivido contente como monge ateacute seus uacuteltimos dias
conhecido como Joasaph Era um homem culto e interessado nos assuntos teoloacutegicos Esse foi
um periacuteodo de prosperidade cultural e material no despotado de Morea618 Minns e Davis
identificam outros pontos que contribuem razoavelmente para indicar um centro maior como
Mitra ou Constantinopla Os primeiros cinco foacutelios que introduzem a coleccedilatildeo das obras de
Justino no A satildeo extratos de Photius e Euseacutebio sobre esse apologista Especificamente no
primeiro foacutelio aparecem indiacutecios de que o texto foi copiado ou adaptado de outro exemplar
Isso levaria a crer que A foi escrito em um lugar onde fosse possiacutevel ter acesso a outros textos
que auxiliassem na adaptaccedilatildeo Ter acesso agraves relevantes passagens de Photius no seacuteculo XIV
pode ser considerado algo raro619
Outro manuscrito completo das Apologias eacute o Phillippicus 3081 chamado B A partir
da anaacutelise de Bobichon620 B eacute reconhecido como um apoacutegrafo de A Sua dataccedilatildeo eacute de 2 de
abril de 1541 e apresenta uma assinatura no nome de ldquoGeorgerdquo provavelmente Georgios
613 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 614 MINNS D PARVIS P Justin Philosopher and Martyr Apologies Oxford Oxfrod Press 2009 p 3 615 ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris 1909 616 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 Cf Id Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 2 1992 p 322-335 617 Apoacutes o ano de 1261 a cidade ao sul do Peloponeso teria passado por um periacuteodo de ascendente prosperidade No seacuteculo XIV tornou-se importante centro cultural que teria sido capaz de influenciar o Renascimento na Itaacutelia 618 NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzenos Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129 619 MINNS PARVIS Op cit p 5 620 lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 p 157-158
144
Kokolos que viveu em Veneza e trabalhou para Guillaume Pelicier621 Acredita-se que B
tenha pertencido sucessivamente a Pellicier Clausde Noulot du Val ao Coleacutegio Jesuiacuteta de
Clermont em Paris e com a expulsatildeo dos Jesuiacutetas da Franccedila agrave coleccedilatildeo de Meermann E entatildeo
passou para a coleccedilatildeo de Sir Thomas Phillipps622 dando origem ao seu nome Por alguns anos
esses escritos estiveram no depoacutesito da British Library identificado como ldquoLoan 3613rdquo mas
foi retirado e vendido ldquoby private treatyrdquo em Marccedilo de 2006623
O coacutedice Ottobonianus 274 chamado de C tambeacutem tem certo valor na tradiccedilatildeo
manuscrita das Apologias mesmo contendo apenas trecircs capiacutetulos das mesmas Minns e
Parvis624 Marcovich625 Otto626 Harnack627 Blunt628 e Munier629 concordam que sua
qualidade eacute bem inferior a de A Mas quando se trata de saber se C eacute paralelo e independente
de A ou se eacute simplesmente uma coacutepia as opiniotildees se dividem Harnack630 considerou-o um
escrito independente de A Blunt destacou que ele parecia representar uma tradiccedilatildeo diferente
de A Marcovich e Munier segundo Minns e Parvis contentaram-se em apontar o demeacuterito
do texto Sem dar muitos detalhes sobre tais caracteriacutesticas de C Minns e Parvis se
esforccedilaram para argumentar que se trata de uma coacutepia de A feita agraves pressas Uma hipoacutetese
razoaacutevel eacute a de que o trecho da I Apologia 65-67 teria sido copiado pelo escriba Giovanni
Onorio atuante no Vaticano e em outros lugares de Roma por nomeaccedilatildeo do papa Paulo III em
1535 ateacute sua morte em agosto de 1563631 O restante de C teve outros escritores de diferentes
datas632 Ainda segundo a anaacutelise de Minns e Parvis633 a junccedilatildeo da ediccedilatildeo de Petrus Nannius
do De Resurretione Mortuorum de Atenaacutegoras ao conjunto de escritos proacuteximos aos extratos
das Apologias aponta para uma data natildeo anterior a 1541 Semelhantemente a Legatio de
Atenaacutegoras impotildee uma data natildeo posterior a 1557 quando a edito princeps foi impressa por H
Stephanus A visatildeo de Justino sobre a eucaristia teria sido de grande interesse teoloacutegico no
621 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 6 Vide nota 14 622 Esta trajetoacuteria apontada por Minns e Parvis eacute traccedilada por Archambault (Op cit v I pp xxiv-xxviii) e sumarizada por Bobichon (Op cit p 160) 623 Conforme Minns e Parvis (Op cit p 6) indicam e o Newslatter of the Association for Manuscripts and Archives in Research Collectons 46 mai2006 p 13 atesta 624 Op cit p 6 625 Op cit p 7 626 Op cit p xxviii 627 Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882 628 The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911 p lii 629 Justin Apologie pour les Chreacutetiens Paris Les Eacuteditons du Cerf 2006 p 86 630 Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99 631 MINNS PARVIS Op cit p 7 Ele indaca tambeacutem RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972 632 Conforme mostram Minns e Parvis (Op cit p 7) 633 Ibid p 8
145
periacuteodo que antecedeu e aos redores do decreto da eucaristia na deacutecima terceira sessatildeo do
Conciacutelio de Trento em 11 de outubro de 1551 Esses trecircs capiacutetulos do texto de Justino teriam
sido citados por Thomas Cranmer e Stephen Gardiner em 1549 antes de aparecer a editio
princeps Uma data proacutexima a 1548 eacute sustentada para esses dois primeiros foacutelios de C
Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra Parallela634 e no Chronicon
Paschale635 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo menos que doze vezes Na
Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito passagens No Chronicon Paschale
aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4 Esse uacuteltimo deriva provavelmente da
tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)636
634 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 635 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 636 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 13
146
Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos
Agostinho de Hipona 86
Alexandre de Afrodiacutesias 113
Apuleio 24
Aristides 15 24 33 49 55 58 109
Ata do Martiacuterio de Justino 22
Atenaacutegoras 24 109 123 143
Carta a Diogneto 49
Cassius Dio 9 13 14 34 36 48 49 67 88 97 103 111
Chronicon Paschale 18 128 144
Chrysippus de Solis 113
Cicero 43 139
26 31 43 71 74 87
Clemente de Alexandria 74 97
Diogenes Laertius 113
Eacutelio Aristides 58
Estrabatildeo 94
Euseacutebio 18 19 22 23 30 31 32 33 34 40 44 45 48 49 50 53 54 56 57 58 68 69
120 142 144
Flaacutevio Josefo 24 80 93 129
Histoacuteria Augusta 9 48 51
Homero 92
Irineu de Lyon 21
Isoacutecrates 86
Jerocircnimo e Gennadius 21
Juvenal 74
Lactacircncio 97
Luciano 21 37 58 73 95
Meacuteliton de Sardes 24 45
Oraacuteculos de Histaspes 97
Oriacutegenes 95
Oroacutesio 60
147
Papyri Graecae Magicae 92
Pausacircnias 94
Platatildeo 11 24 26 27 28 29 67 78 86 87 91 92 93 94 95 97 98 107 108 109 113 115
120
Pliacutenio 9 14 26 35 36 37 38 39 40 41 42 44 46 47 52 53 55 62 76 77 79 116 120
Plutarco 73 86 91 94 95 96 113 116
Poliacutebio 86 87
Quadrato 15 24 33 49 55
Secircneca 26 72 103
Suetocircnio 13 37 44 103
Taciano 21 24 27
Taacutecito 13 14 26 34 37 44 49 88 97 116 120
Teoacutefilo de Antioquia 24 123
Tertuliano 9 12 21 27 34 35 45
Tito Liacutevio 9 74 75
Varratildeo 86
Xenofontes 24 26
148
Iacutendice remissivo
acusadores 30 56 88 125
Adriano 7 10 15 16 27 35 37 40 41
42 44 49 50 51 52 53 54 55 56 57
58 59 60 61 62 63 71 72 84 90
106 128 143
alma 24 46 81 93 98 99 101 102 104
105 114 125 137
Antonino Pio 7 10 15 16 26 33 59 60
61 62 64 121 129
antropofagia 39
asebeia 36
Aacutesia Menor 15 26 32 55 83
ateiacutesmo 30 38 56 62 84 107 124
avsebeia 38
Bar Koseba 112
24 51 52 55 136
boatos maliciosos 63
caluacutenias
caluacutenia 7 34 39 40 47 48 56 81 82
83 84 88 91 96 108 119 125 128
130 131
canibalismo 30 56 84 124
castigo 6 31 44 56 61 74 85 91 94 96
97 98 104 113 114 120 123 126
131
coercitio 37 44
cognitio extra ordinem 45
controle social 14 16 17 18 64 65 67
68 69 70 77 80 82 113 127 129
130 131 133
costumes judaicos
costume judaico 39
Crescente 23 26 29 34 63 124
crime 17 31 37 39 40 42 47 57 58 62
67 68 84 89 90 93 126 128 139
culto ao imperador
culto imperial 38 52 81
decreto 47 64 76 79 114 148
democircnios
democircnio 11 74 78 79 81 88 89 91
96 106 107 108 110 111 112 117
118 119 122 127 129 130
denuacutencias
denuacutencia 7 34 37 41 43 47 55 56
58 82 90 91 123 124 127 128
130
desordem social 17
destino 29 52 104 105 107 113 120
Domiciano 36 48
epicureus 100 102
escola peripateacutetica 22
escola platocircnica
platonismo 22
estigmas
estigma 84 88 89
estigmatizaccedilatildeo 11 74 83 87
estoicismo 22 114 117 129
estoicos 92 100 102 104 124
exclusivismo 74
fariseus
fariseu 99
149
filosofia 7 12 16 22 23 27 28 30 33
38 65 71 73 92 93 99 100 101 102
103 106 118 122 125 126 129
filosofia estoica 38
flagitia
flagitium 14 36 39 40 46 47 48 50
90 124 128
gecircnero apologeacutetico 10 25 28
Graniano 15 16 53 56 57 128
Hades 92 99 101 102
Helena 107 120
Heraacuteclito 103 115 117
hetaerias 41
Histapes 103
Homero 98 101 102 107 115
incesto 14 39 59 84
inferno 105
injusticcedilas
injusticcedila 15 47 91 131
institutum neronianum 12 15 36 37 48
ius coertionis 37 45 50
julgamento 7 23 28 30 35 36 42 45 55
58 86 106 118 120 126 127 130
justiccedila 11 29 30 31 64 70 71 74 82
90 91 97 98 106 114 118 120 121
126 127
laesea maiestatis 37 40 45
livre-arbiacutetrio 113
loacutegoj sperermatikoj 26
Logos
logos 12 26 73 109 110 112 115
116 117 118 120 121 122 123
125 127 130 133 142 143
Luacutecio Vero 33
maiestas 47 56
manutenccedilatildeo da ordem 7 10 11 15 16 17
64 70 71 92 95 96 122 125 127
130
Marciatildeo 24 119 120
Marco Aureacutelio
M Aureacutelio 10 16 33 35 48 59 60 62
63 72 73 121 131
Menandro 104 107 120
Minuacutecio Fundano 16 53 54 56 58 128
Moiseacutes 114
moral 15 61 66 87 91 92 94 96 118
121 124 127 129
moralidade 7 70 91 94 108 119 129
131
morte 16 24 29 42 52 62 63 70 72 78
82 83 85 89 90 91 96 97 98 99
100 101 102 104 105 111 118 123
124 125 126 127 144 147
neoplatonismo 129
Nero 12 36 47 48 50 77 83 117 128
Nerva 38
nome cristatildeo
nomen christianum 30
nomen christianum 7 43 47 50 55 57
129
nomen Christianum 84 95 127
opiniatildeo puacuteblica 39 50 59
Ottobonianus Graecus 274 9 19 146
Parisinus Graecus 450 5 9 19 24 146
pax deorum 13 39 46 62 65 66 76 130
perseguiccedilatildeo 7 8 13 15 35 36 37 47 53
59 62 64 66 83 88
150
perseguiccedilotildees 13 15 27 47 65 66 81 87
89 106 128
peticcedilatildeo
libellus 27 31 32 33 34 62 71 90
126 129
Phillipicus 3081 19 146
pitagoacuterico 22
preconceito 63 88
reino de Deus 6 74 91
religio licita 38 45 55
rescrito 16 27 33 40 43 53 54 55 56
57 58 60 61 62 90
rescrito de Adriano 54 57 61
ressurreiccedilatildeo 99 100 102 105 109 111
112 144
retoacuterica 10 26 27 29 72 115
revelaccedilatildeo 11 105 107 115 116
Rusticus 23
sacrifiacutecios
sacrifiacutecio 42 48 64 74 75 79 81
sacrilegium 37 40 45 47 50
saduceus
saduceu 99
senatus consultum 36 48
Sibila 103 118
Simatildeo Mago 24
Soacutecrates 9 25 28 29 30 73 97 101 115
122 124 129
superstitio 7 8 14 35 37 39 40 42 43
45 46 48 52 55 58 85 90 91 94
124 127 128
superstitiones 14 46 94 101 102
temor 40 62 92 93 94 97 105 107 120
126 127 128
Tibeacuterio 15 16 36 48 103 139
toleracircncia 17 35 37 42 47 129
Tolomeu 61
Trajano7 10 15 32 35 36 37 38 39 40
41 42 43 44 47 48 49 50 54 55 56
57 58 59 60 61 66 84 90 128 133
143
Tumultos
Tumulto 62
Urbico 16 34 35 61 63 84 85 123
verdade 22 23 26 28 29 30 31 65 70
74 78 83 88 90 106 108 110 111
113 114 116 119 122 126 129 130
Vespasiano 22 32 117
viacutecio 99 113 114 120 121 124
virtude 6 91 92 96 99 112 113 114
115 120 124 125
151
4
ALESSANDRO ARZANI
AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS SEGUNDO AS APOLOGIAS DE
JUSTINO MAacuteRTIR
Controle social e religiatildeo no Impeacuterio Romano
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
Profordf Drordf Monica Selvatici
Universidade Estadual de Londrina - UEL
Profordf Drordf Solange Ramos de Andrade
Universidade Estadual de Maringaacute - UEM
Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini
Universidade Estadual de Maringaacute - UEM
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Estadual de Maringaacute como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Histoacuteria
5
Dedico este trabalho
ao senhor de todas as eras que natildeo pode ser submetido a qualquer estaticidade que se possa
imaginar no universo Ao que era desde o princiacutepio eacute agora e continuaraacute sendo
indefinidamente Ao que consola e agraves vezes oprime a qualquer que seja Ao que
cuidadosamente nos observa desde o primeiro instante de vida e que conta
cada batimento do nosso coraccedilatildeo Sem ele nossos dias natildeo poderiam
ser contados Dele depende o amanhatilde nossa existecircncia e nossa
histoacuteria Agravequele que acompanhou cada passo deste
desafio e que me fazia lembrar do valor de
cada instante Agravequele que muitos
simplesmente chamam de
ldquotempordquo
6
AGRADECIMENTOS
Agrave Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini minha querida orientadora pela confianccedila
incentivo amizade e paciecircncia durante essa jornada Eu confesso que nunca havia conhecido
algueacutem que carregasse em si de tal forma a franqueza e a doccedilura associadas ao rigor
acadecircmico como pude constatar em sua pessoa
Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) pelo
amparo financeiro para o desenvolvimento dessa pesquisa
Agrave Profordf Drordf Sara Parvis (University of Edinburgh) por sua gentileza em indicar
algumas informaccedilotildees importantes sobre o principal manuscrito das Apologias de Justino o
MS Parisinus Graecus 450
Agrave minha querida amiga Profordf Viviana L Felix (Universidad Catolica de Buenos
Aires) que generozamente compartilhou comigo artigos e momentos agradaacuteveis de fluecircncia de
ideias
Aos professores Drordm Mauro Pesce e Drordf Adriana Destro (Universitagrave di Bologna) pela
atenccedilatildeo em partilhar comigo algumas indicaccedilotildees bibliograacuteficas
Agraves professoras Drordf Maria Aparecida de Oliveria Silva (pesquisadora na UNESP-
Araraquara) e Drordf Giovanna Menci (Istituto Papirologico ldquoG Vitellirdquo dellrsquoUniversitagrave degli
Studi di Firenze) assim como tambeacutem ao nobre B Jobjorn Boman (Oumlrebro University) pelos
riquiacutessimos artigos compartilhados
Ao Profordm Me Deivid V Gaia (Universidade Federal de Pelotas) por haver gentilmente
compartilhado alguns documentos importantes conseguidos junto agrave Bibliothegraveque national de
France
Agraves professoras Drordf Monica Selvatici (Universidade Estadual de Londrina) e Drordf
Solange Ramos de Andrade (Universidade Estadual de Maringaacute) pelas ricas criacuteticas e
consideraccedilotildees que contribuiacuteram para o aprimoramento dessa pesquisa
Aos colegas Camila Santiago Luz Thiago Franccedila Thais Bassi Soares Profordm Drordm
Jaime Estevatildeo dos Reis e demais integrantes do Laboratoacuterio de Estudos Antigos e Medievais
(LEAM-UEM) pelo companheirismo e satisfaccedilatildeo proporcionada pela dedicaccedilatildeo conjunta aos
estudos histoacutericos
7
Ateacute voacutes apenas ouvindo que esperamos um reino logo supondes sem nenhuma averiguaccedilatildeo que se trata de
reino humano quando noacutes falamos do reino de Deus [] Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a
manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o
avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens
conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos os modos e se
adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos De fato aqueles que agora
por medo das leis e dos castigos por voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los porque
sabem que sois homens e que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutes se se inteirassem e se persuadissem de que
natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se
moderariam de todos os modos como voacutes mesmos haveis de convir
Justino Maacutertir I Apologia 111121
8
Resumo
A histoacuteria do cristianismo na primeira metade do II seacuteculo eacute marcada por atritos locais
denuacutencias em tribunais e caluacutenias que faziam do nome ldquocristatildeordquo um motivo de condenaccedilatildeo
Trajano Adriano e Antonino Pio fizeram suas recomendaccedilotildees aos governantes locais para
desestimular a expansatildeo da nova superstitio dos cristatildeos que demonstrava aversatildeo aos
deuses agraves tradiccedilotildees agraves celebraccedilotildees puacuteblicas e ao culto imperial Nenhuma perseguiccedilatildeo de
fato devia ser estabelecida denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas e os cristatildeos que
abandonassem a feacute deveriam ser perdoados os que se recusavam a abandonar a feacute eram
punidos com a pena capital segundo o julgamento de cada magistrado Nesse periacuteodo alguns
chamados apologistas produziram escritos em defesa dos fieacuteis Justino escreveu duas vezes
ao imperador Antonino e a seus filhos entre os anos de 154 e 161 Nas Apologias ele critica a
postura dos governantes por acatarem as caluacutenias das massas que acarretavam uma ideia
depreciativa ao nomen christianum A fidelidade cristatilde ao Impeacuterio eacute ratificada pelo
apologista que surpreende ao destacar a colaboraccedilatildeo dos fieacuteis na manutenccedilatildeo da ordem Por
meio desta pesquisa que tem por obejtivo analisar a relaccedilatildeo entre controle e religiatildeo a partir as
accedilotildees anticristatildes nesses escritos de Justino nota-se que esse tipo de accedilotildees foi fundamental
para que a funccedilatildeo social da religiatildeo dos cristatildeos fosse pensada no desenvolvimento desse
discurso apologeacutetico Nesse discurso procura-se justificar a rejeiccedilatildeo aos deuses e agrave
imoralidade por eles representada Atento agraves interrogaccedilotildees dos intelectuais e homens letrados
de sua eacutepoca satildeo destacados os aspectos tidos por ldquoirracionais e imoraisrdquo das crenccedilas pagatildes
enquanto a feacute cristatilde eacute apresentada em contornos racionais com o intuito de reconhececirc-la como
filosofia divina e superior agraves demais Nesse sentido a crenccedila num Deus absoluto justo e
onisciente aparece como um instrumento capaz de subter as pessoas agrave moralidade enquanto
aguardam a recompensa eterna e procuram se afastar da condenaccedilatildeo divina Eacute nesse momento
que a religiatildeo dos cristatildeos comeccedila a ser pensada como uma substituta agraves crenccedilas pagatildes
apontadas como incoerentes
Palavras-chave
Justino Maacutertir histoacuteria do cristianismo Impeacuterio Romano perseguiccedilatildeo aos cristatildeos
9
Abstract
The history of Christianity in the first half of the second century is marked by local clashes
accusations in court and slanders that made the name Christian reason for condemnation
Trajan Hadrian and Antoninus Pius made their recommendations to local governments to
discourage the expansion of new superstitio of the Christians who showed aversion to the
gods traditions public celebrations and the imperial cult No persecution in fact should have
been established anonymous reports should not have been accepted and if any Christian
abandoned the faith they should have been forgiven however those who refused to abandon
their faith were punished with the death penalty according to the judgment of each magistrate
During this period some Christians with high education produced writings in defense of their
faith Justin wrote twice to the Emperor Antoninus and his sons between the years 154 and
161 AD In ldquoApologiesrdquo he criticizes the attitudes of the rulers for accepting the slander of the
masses who were accusing the Christians The Christian fidelity to the Empire is ratified and
he highlights the collaboration of the faithful in the maintenance of order Through this
research on the relationship between religion and control as seen in the antichristian actions
reported in the writings of Justin it is noted that this type of action was essential to the social
function of the Christian religion to be thought in your apologetic discourse It seeks to justify
the condemnation of the gods and the immorality represented by them In attention to the
questions of intellectuals and men of letters of his age the irrational behaviors and immoral
aspects of the pagan beliefs are pointed by the apologist while the Christian faith is presented
in rational contours making it a divine philosophy and superior to the other In this sense the
Christian belief in an absolute God who is just and omniscient appears as an instrument with
the ability to teach and demand morality from its followers while they are awaiting the
eternal reward and actively trying to move away from divine condemnation It is then that
their religion begins to be thought of as a substitute for pagan beliefs which are pointed out as
incoherent with the order in the Empire
Key-words
Justin Martyr History of Christianity Roman Empire persecution of Christians
10
LISTA DE ABREVIATURAS
Hist Ecles Histoacuteria Eclesiaacutestica
Diaacutel Diaacutelogo com Trifatildeo
I Apol Primeira Apologia de Justino
II Apol Segunda Apologia de Justino
A Manuscrito Parisinus Graecus 450
B Manuscrito Phillipicus
C Manuscrito Ottobonianus Graecus 274
IGRR Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes
Apolog Apologeticus de Tertuliano
Hist Rom Histoacuteria Romana de Cassius Dio
Hist Aug Histoacuteria Augusta
ApS Apologia de Soacutecrates
PIR Prosopografia Imperii Romani
Ep Epiacutestolas de Pliacutenio
Hist Roma Histoacuteria de Roma de Tito Liacutevio
ANRW Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt
ZKG Zeitschrift fuumlr Kirchengeschichte
Ant Jud Antiguidades Judaicas
Guer Jud Guerras Judaicas
11
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 12
CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS 18
11 As principais ediccedilotildees das Apologias 18
12 A questatildeo da autoria Justino 22
13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino 25
131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica 26
132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino 27
14 Destinataacuterios 31
CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS 34
21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano 35
22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano 49
23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos 57
CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE
MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM 62
31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem 67
32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus 71
33 Sobre as leis e imoralidades 85
CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM
SOCIAL 91
41 O controle absoluto do controlador absoluto 91
42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde 100
421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios 102
422 A razatildeo que julga 109
43 O governo o controle e os governantes 115
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 121
REFEREcircNCIAS 126
APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS 143
Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos 146
Iacutendice remissivo 148
12
INTRODUCcedilAtildeO
Este que no dia 1 de junho eacute reverenciado pelas Igrejas Catoacutelica Ortodoxa Oriental e
Anglicana tem a apresentar um testemunho que vai aleacutem do seu martiacuterio Seus escritos
oferecem pistas importantes para o entendimento da condiccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no
Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II Muitos como o Papa Bento XVI o tecircm chamado
de ldquoo mais importante dos padres apologistas do segundo seacuteculordquo1 Poreacutem o que esta
pesquisa iraacute mostrar eacute que os escritos atribuiacutedos a esse ldquofiloacutesofo cristatildeordquo apresentam acima de
tudo os primeiros indiacutecios de uma efetiva reflexatildeo histoacuterico-teoloacutegica sobre a funccedilatildeo do
cristianismo na organizaccedilatildeo social
Dentre as pesquisas do seacuteculo XX sobre Justino recebe destaque primeiramente o
trabalho de Johannes M Pfaumlttisch2 em 1910 a respeito da influecircncia do pensamento de
Platatildeo sobre esse apologista Em 1923 foi publicada a obra de E R Goodenough3 que
apresentava uma sistematizaccedilatildeo do pensamento teoloacutegico desse que segundo seu ponto de
vista fazia jus ao nome de ldquomaacutertirrdquo ou seja algueacutem ldquoque daacute testemunhordquo mas que em
contrapartida estava longe de merecer o tiacutetulo de ldquofiloacutesofordquo Poucos anos mais tarde
destoando em alguns aspectos do pensamento de Goodenough empreendeu C Andresen4
uma anaacutelise sublinhando os traccedilos filosoacuteficos dos escritos de Justino em comparaccedilatildeo ao
meacutedio-platonismo que tinha um espaccedilo significativo no pano de fundo intelectual do II
seacuteculo dC A problemaacutetica da relaccedilatildeo entre as doutrinas cristatildes ganhou reforccedilo com a defesa
da tese de N Hyldahl5 em 1965 Na mesma deacutecada de 1960 eacute Lislie W Barnard6 quem
intersecciona os aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos e as ideias sobre o judaiacutesmo representados
nos escritos de Justino Aleacutem dos interesses teoloacutegico-filosoacuteficos em torno desses escritos haacute
tambeacutem uma busca por elementos que auxiliem a compreender a condiccedilatildeo dos cristatildeos no
1 PAPA BENTO XVI Audiecircncia geral Praccedila de Satildeo Pedro Vaticano 21 de marccedilo de 2007 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherbenedict_xviaudiences2007documentshf_ben-xvi_aud_20070321_pohtml acesso em 20 de dezembro de 2011 2 Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910 3 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 4 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf tambeacutem ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Berliacuten Walter de Gruyter und co 1955 5 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 6 Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967 cf tambeacutem id Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology V 22 n 2 jun1969 pp 152-164
13
Impeacuterio em meados do seacuteculo II Nesse sentido os escritos de Justino tecircm muito a contribuir
tanto para se pensar a influecircncia da cultura greco-romana sobre as ideias cristatildes quanto sobre
as accedilotildees anticristatildes
As conferecircncias de Henry Chadwich7 na The John Rylands Library em 1965
chamavam a atenccedilatildeo para a inter-relaccedilatildeo entre a filosofia e a teologia nascente percebidas nas
estrateacutegias de defesa argumentativa apresentadas por Justino contra a opressatildeo sobre os
cristatildeos Mas por que os cristatildeos foram perseguidos
As hipoacuteteses tecircm girado em torno de uma lei especial contra os cristatildeos instituiacuteda por
Nero institutum neronianum como chamou Tertuliano8 ou pelo enquadramento em crimes
comuns como maiestas ou pela livre accedilatildeo dos magistrados para manter a ordem ius
coertiones9 Na deacutecada de 1950 receberam destaque os trabalhos de Henry Gregoire10 A N
Sherwin-White11 e J Moreau12 Na deacutecada seguinte Geoffrey E M de Ste Croix13
estabeleceu um debate com Sherwin-White14 sobre essa questatildeo
GEM de Ste Croix sustentava que as perseguiccedilotildees aos cristatildeos baseavam-se na
recusa em reconhecer os deuses de Roma comportamento que era frequentemente
considerado perigoso e sedicioso Os deuses tradicionais do panteatildeo greco-romano eram as
divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma que exigiam culto para a estabilidade da
pax deorum15 Por essa perspectiva Ste Croix propunha que a perseguiccedilatildeo se relacionava ao
sentimento religioso da eacutepoca16 AN Sherwin-White por outro lado defendeu que as
perseguiccedilotildees aos cristatildeos natildeo se baseavam na questatildeo do rompimento da pax deorum mas na
aguda obstinaccedilatildeo dos cristatildeos em natildeo cometer apostasia nem sacrificar para os deuses do
Impeacuterio17 Tal postura dos cristatildeos desafiava as autoridades romanas e representavam uma
grave insubordinaccedilatildeo GEM Ste Croix deu uma treacuteplica a essa questatildeo em 196418 mas essa
problemaacutetica tem despertado pesquisadores ateacute hoje19
7 Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 8 Ad Nationis I78 9 BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 1968 pp 30-50 10 Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 1111 The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952 p 199 12 La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 13 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 pp 6-38 14 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 15 De Ste CROIX GEM Op cit 1963 p 24 16 Ste CROIX GEM Op cit 1963 pp 29-31 17 SHERWIN-WHITE AN Op cit 1964 pp 25 18 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 19 Cf BARNES Timothy D Constantine and Eusebius Cambridge MA Harvard University Press 1981 MacMULLEN Ramsay Christianizing the Roman Empire (AD 100-400) New HavenLondon Yale
14
A proclamaccedilatildeo cristatilde no I e II seacuteculos causava tanto conversotildees quanto reaccedilotildees
adversas entre os pagatildeos20 A religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio Romano era presente na vida dos
povos 21 Relembrando Marcel Simon e Andreacute Benoicirct22 eacute justo admitir que com a refutaccedilatildeo
de todos os compromissos e a sustentaccedilatildeo intransigente do monoteiacutesmo a Igreja parecia um
corpo estranho aos pagatildeos Distanciando-se dos eventos puacuteblicos normalmente envolvidos
com a idolatria condenada pela Igreja rejeitando o serviccedilo militar os jogos e as celebraccedilotildees
artiacutesticas os cristatildeos se autoexpunham agrave marginalizaccedilatildeo da sociedade
Entre o povo ou entre os intelectuais os cristatildeos eram vistos com estranheza ou
desconfianccedila23 Assim como foram caracterizados os judeus podia-se pensar que os cristatildeos
apresentavam um odio humani generis24 em parte devido aos comentaacuterios depreciativos que
se espalhavam entre o povo Foram caracterizados por Taacutecito como membros de uma
destrutiacutevel superstitio25 oriunda da Judeia Suetocircnio se referiu a eles como ldquoraccedila de homens de
uma superstitio nova e maleacuteficardquo26 As acusaccedilotildees ou suspeitas poderiam girar em torno de
delitos ou coisas consideradas repulsivas como infanticiacutedio incesto assembleias ilegais
introduccedilatildeo de cultos iliacutecitos e mais especialmente traiccedilatildeo sendo esta uacuteltima caracterizada pela
recusa em adorar a divindade do imperador27
As superstitiones e os cultos locais eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob
atenccedilatildeo Como destacam Mary Beard John North e Simon Price28 as controveacutersias poderiam
desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito
em 172 e 173 aC29 na incursatildeo da Traacutecia que foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que
University Press 1984 DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000 DRAKE Harold Allen Constantine and the Bishops the politics of intolerance BaltimoreLondon John Hopkins University Press 1999 CLARK Gillian Christianity and the Roman Society Cambridge Cambridge University press 2004 CHADWICK Henry The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001 FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006 20 GOODMAN Martin Mission and conversion proselytizing in the religous history of the Roman Empire Clarendon Press Oxford University Press 1994 p 12 21 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 Cf BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35 22 SIMON M BENOIcircT A Giudaismo e Cristianesimo una storia antica RomaBari LaterzaFigli Spa 2005 p 12 23 ldquoaqueles que por suas abominaccedilotildees eram mal vistosrdquo [quos per flagitia invisos] Taacutecito Annales 1544 24 ldquooacutedio agrave humanidaderdquo Ibid 25 exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo] Annales 1544 26 genus hominum superstitionis novae ac maleficae De Vita XII Caesarum Vita Neronis 162 27 MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 28 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 29 Cassius Dio Hist Rom LXXII4
15
conseguiu seguidores30 entre os druidas incitados por profecias sobre o fim de Roma da
Gaacutelia31 e nas revoltas judaicas do I e II seacuteculos dC Embora existisse um niacutevel significativo
de liberdades religiosa e individual os grupos e assembleias ficavam sob atenccedilatildeo das
autoridades Os baacutequicos os astroacutelogos e maacutegicos o culto de Iacutesis e a crenccedila dos druidas
tambeacutem enfrentaram a obstruccedilatildeo romana32
Paul Veyne faz diferenciaccedilatildeo entre os interesses dos homens letrados e das autoridades
preocupadas com a manutenccedilatildeo da ordem e o interesse da populaccedilatildeo pagatilde em geral Em sua
percepccedilatildeo a atitude de criacutetica dos romanos frente agraves comunidades cristatildes manifestava a
repulsa ao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguo33 Desse modo a rejeiccedilatildeo ao novo grupo religioso
do oriente deveria envolver um problema identitaacuterio tambeacutem relacionado agrave dificuldade de se
assimilar um grupo dotado de particularidades que pretendiam a superioridade diante dos
estabelecidos Justino tambeacutem sustenta uma tese em torno da questatildeo do ldquopor que os cristatildeos
eram perseguidosrdquo esforccedilando-se em convencer os romanos sobre as ldquoinjusticcedilasrdquo cometidas
contra os cristatildeos
Embora natildeo exista um consenso sobre o iniacutecio das perseguiccedilotildees no I seacuteculo34 eacute certo
que o estilo de vida e o conteuacutedo das crenccedilas cristatildes natildeo agradavam a muitos o que
culminava na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados
Natildeo haacute sinais de uma perseguiccedilatildeo generalizada no iniacutecio do II seacuteculo mas apareciam
atritos locais que por vezes culminavam na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados ou agredidos
pelo povo Pliacutenio Segundo natildeo sabia ao certo como proceder nos processos que julgavam os
cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia e chegou a pedir a orientaccedilatildeo de Trajano35 Sob Adriano36 o
governador da Aacutesia Menor Graniano tambeacutem levantou questotildees sobre esses processos
30 Cassius Dio Hist Rom LI255 LIV345-7 31 Taacutecito Historias IV546165 V2224 32 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 Cf AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 33 VEYNE Paul Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 pp 245-246 34 Marta Sordi (I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 15-29) por exemplo sustenta a tese de que a resposta negativa do Senado ao pedido de Tibeacuterio sobre o reconhecimento de Cristo entre os deuses oficiais teria tornado a feacute cristatilde em uma religio illicta Paul Keresztes defende que foi o institutum neronianum que primeiramente comprometeu a legalidade do grupo dos cristatildeos (Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214) 35 Governou de 98 a 117 dC 36 Governou de 117 a 138 dC
16
Nesse periacuteodo Quadrato e Aristides tambeacutem escreveram ao imperador em defesa dos cristatildeos
mas a situaccedilatildeo continuou a mesma sob o governo de Antonino Pio37
Justino que havia nascido em Flaacutevia Neaacutepolis38 atual Nablus uma cidade na antiga
regiatildeo da Samaria filho de pai latino e de um avocirc com nome grego estudou filosofia mas se
converteu ao cristianismo e se pocircs em defesa da feacute39 Escreveu suas Apologias entre os anos
de 154 e 161 aproximadamente em defesa dos cristatildeos levados aos tribunais e entatildeo
condenados agrave morte Aleacutem da previsatildeo de seu proacuteprio martiacuterio o apologista retrata ainda um
caso especiacutefico que ocorreu sob Urbico em Roma Seu discurso busca convencer o imperador
Antonino Pio40 de que os cristatildeos natildeo representavam nenhum tipo de ameaccedila e que seria
segundo seu ponto de vista uma grande injusticcedila condenar agrave morte aqueles que eram
colaboradores ldquoda pazrdquo no Impeacuterio41 Os problemas penais e de outros caraacuteteres juriacutedicos
abordados por Justino e comuns ao governo de Antonino Pio foram uma vez analisados por
Paul Keresztes42 que destacou a estrateacutegia desse apologista de interpretar o rescrito43 de
Adriano a Minuacutecio Fundano Todavia as Apologias desse pensador cristatildeo desafiam a
compreensatildeo de um capiacutetulo intrigante da histoacuteria das ideias religiosas cristatildes como esse
discurso em defesa dos cristatildeos apresenta em meio agraves proposiccedilotildees teoloacutegico-filosoacuteficas que
permeiam o texto uma leitura das accedilotildees anticristatildes conjuguando controle social e religiatildeo na
reprovaccedilatildeo da coaccedilatildeo imposta por Roma sobre os cristatildeos e na indicaccedilatildeo da funccedilatildeo
reguladora da religiatildeo cristatilde para a cooperaccedilatildeo na manutenccedilatildeo da ordem
Por isso essa pesquisa tem por objetivo principal compreender as relaccedilotildees entre
controle social e religiatildeo a partir da anaacutelise das accedilotildees anticristatildes praticadas ateacute meados do
seacuteculo II dC segundo as Apologias de Justino Maacutertir O exame de suas ideias deve
compreender o paradoxo construiacutedo em seu discurso entre o tipo de controle social
desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia aos cristatildeos que
tumultuam a ordem e por outro lado o tipo de controle social apontado nas Apologias que
37 Governou de 138 a 161 dC 38 I Apol 11 cf MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 127-129 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought New York Cambridge University Press 1967 pp 3-12 39 JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991 Cf mais informaccedilotildees no capiacutetulo I 40 E tambeacutem a seus filhos Marco Vero (que seria chamado Marco Aureacutelio) e Luacutecio Vero 41 I Apol 31ss I Apol 121ss 42 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129 Id Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214 Id The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 43 Rescrito em resposta aos questionamentos do governador anterior Graniano
17
daria razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos mediante um tipo de ordem derivado da proliferaccedilatildeo de
suas crenccedilas
Por ldquocontrole socialrdquo entende-se ldquoo conjunto dos recursos materiais e simboacutelicos de
que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de seus
membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo44 Ou ainda
seguindo a perspectiva de Martin Innes45 ldquocontrole socialrdquo refere aos mecanismos e
tecnologias empregados para manutenccedilatildeo da ordem social Esta por sua vez eacute composta de
diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais de alguma forma contribuem para a
constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social Nesse embate apologeacutetico do seacuteculo II satildeo
apresentados argumentos para convencer de que a feacute cristatilde natildeo estava propiacutecia a nenhum tipo
de desordem social e que pelo contraacuterio seria capaz de influenciar na formaccedilatildeo de suacuteditos
fieacuteis do Impeacuterio
Para o cumprimento do objetivo central dessa pesquisa as Apologias de Justino satildeo
estabelecidas como principal objeto e fonte de investigaccedilatildeo a serem submetidas agrave criacutetica
interna e externa segundo o desenvolvimento de uma anaacutelise histoacuterica46 Ao colocar as
Apologias de Justino no centro dessa anaacutelise busca-se delimitar um campo possiacutevel de anaacutelise
dentro do processo de expansatildeo do cristianismo pelos territoacuterios do Impeacuterio Romano tendo
em vista as vaacuterias formas de resistecircncias e aceitaccedilotildees Uma anaacutelise sobre Justino e a
sobrevivecircncia de suas Apologias eacute apresentada no capiacutetulo I e no Apecircndice I
44 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) Dicionaacuterio criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 45 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 46 TOPOLSKY Jersy Metodologia de la historia Madrid Ediciones Catedras 1992 pp 36-45
18
CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS
Para desenvolver uma investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre controle social e religiatildeo
nas accedilotildees anticristatildes de meados do seacuteculo II dC a partir das Apologias de Justino Maacutertir eacute
preciso responder a algumas perguntas baacutesicas sobre sua origem transmissatildeo e forma
Levando em consideraccedilatildeo que as Apologias foram redigidas originalmente haacute quase 1900
anos e passaram por diversos copistas e editores ateacute chegar agrave atualidade eacute necessaacuterio fazer um
raacutepido percurso analiacutetico sobre as ediccedilotildees e suportes materiais que garantiram a preservaccedilatildeo
do texto Isso deveraacute contribuir para a compreensatildeo de suas caracteriacutesticas atuais
Esse tipo de anaacutelise contempla as diferenccedilas entre as trecircs principais ediccedilotildees recentes
das Apologias Miroslav Marcovich47 (com a 1ordf ediccedilatildeo em 1995) por exemplo oferece uma
ediccedilatildeo seguindo o padratildeo apresentado no MS Parisinus Graecus enquanto Charles Munier48
(com ediccedilotildees em 1994 1996 e 2006) sustenta a teoria de que os dois textos seriam
originalmente uma mesma peccedila Denis Minns e Paul Parvis49 (2009) oferecem uma ediccedilatildeo
que aleacutem de considerar a II Apologia uma compilaccedilatildeo de fragmentos e anotaccedilotildees de Justino
transformadas em Apologia por terceiros ainda realoca partes da segunda peccedila para a
primeira fazendo-a ganhar dois capiacutetulos a mais do que as duas ediccedilotildees mencionadas
anteriormente
Assim seratildeo analisados a seguir alguns dos principais pontos sobre as ediccedilotildees o
tamanho original e os destinataacuterios das Apologias bem como as evidecircncias que apontam para
Justino como seu autor
11 As principais ediccedilotildees das Apologias
A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450
ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C
47 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 48 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 Id Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 49 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
19
segundo a forma estabelecida por T Otto50 Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar
com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra
Parallela51 e no Chronicon Paschale52 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo
menos que doze vezes Na Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito
passagens No Chronicon Paschale aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4
Esse uacuteltimo deriva provavelmente da tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)53
Em 1551 foi produzida a partir do MS A a editio princeps importante trabalho do
typographus regius Robert Estienne54 ou Robertus Stephanus Conforme a anaacutelise de Minns e
Parvis55 trata-se de um texto bem produzido Do mesmo modo que A a composiccedilatildeo de
Stephanus que foi dedicada a ldquoBiblioteca Realrdquo apresenta os extratos de Photius e Euseacutebio
sobre Justino A Apologia menor tambeacutem aparece antes da maior56 Natildeo haacute nenhuma divisatildeo
ou quebra de texto Apenas algumas variantes de A satildeo colocadas nas margens das paacuteginas
A primeira traduccedilatildeo das Apologias viria em 1554 por Joachim Peacuterion57 em Paris
Frederick Sylburg58 apresentou sua ediccedilatildeo em 1593 em Heidelberg seguindo rigorosamente
o texto de Robert Etienne Sabe-se tambeacutem que Feacutedeacuteric Morel publicou as Apologias de
Justino em 161559 As ediccedilotildees de Johann Ernst Grabe seguiram fieacuteis ao Stephanus mas
trouxeram duas inovaccedilotildees a ediccedilatildeo de 170060 em Oxford apresentou a Apologia maior como
50 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 51 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 52 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 53 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 13 54 Minns e Parvis oferecem a seguinte referecircncia TOU AGIOU FILOSOFOU KAI MARTUROS) ZHNA kai Serhnw|) LOGOS parainetikoj proj Hllhnaj) PROS TRUFWNA Ioudaion dialogoj) APOLOGIA uper Cristianwn proj thn Rwmaiwn Sugklhton) APOLOGIA b uper Cristianwn proj Antoninon ton euvsebh) EX BIBLIOTHECA REGIA LVTETIAE Ex officina Roberti Stephani typographi Regii Regiis typis MDLI Cum priuilegio Regis Devido agrave corrupccedilatildeo dos textos antigos nem sempre eacute possiacutevel identificar os tiacutetulos corretamente por isso satildeo apresentados aqui em letras maiuacutesculas As barras representam a separaccedilatildeo das linhas onde satildeo lidas as informaccedilotildees a respeito dos volumes referenciados 55 Op cit p 14 56 A I Apologia eacute a ldquoapologia maiorrdquo mas no MS A a ldquoapologia menorrdquo isto eacute a II Apologia vem primeiro 57 Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis 58 TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953 59 Minns e Parvis (Op cit p 15) mencionam que Feacutederic Morel tenha criado a categoria de ldquoApologistasrdquo lanccedilando uma coleccedilatildeo de texto Esta informaccedilatildeo pode ateacute estar correta mas os autores natildeo apontaram nenhuma referecircncia do tipoacutegrafo Sabe-se que ele publicou as Apologias devito as informaccedilotildees do seguinte cataacutelogo GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18-- 60 SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700
20
a primeira e a ediccedilatildeo de 170361 apresentou a obra menor como a II Apologia tal como satildeo
reconhecidas hoje e tambeacutem foram acrescentadas divisotildees de capiacutetulos diferentes das usuais
A ediccedilatildeo de Styan Thirlby de 172262 juntou as trecircs obras de Justino reconhecidas como
autecircnticas I e II Apologia e o Diaacutelogo com Trifatildeo O texto ainda era baseado em Stephanus
Em 1742 Prudentius Maran63 publicou sua obra com uma divisatildeo de capiacutetulos que se
tornaria a usual Segundo Minns e Parvis64 Maran teve acesso a A e B mas seu texto eacute
semelhante ao de Stephanus As Apologias da coleccedilatildeo Patrologia Graeca volume 6 de
185765 eacute a reproduccedilatildeo da sua ediccedilatildeo alocada na seacuterie de Jacques Paul Migne (1800-1875)
JCT von Otto66 publicou sua primeira ediccedilatildeo em 1842 e a terceira e definitiva em
1876 Ele natildeo ficou preso ao texto de Stephanus e apresenta o princiacutepio das ediccedilotildees criacuteticas
sugerindo modificaccedilotildees e melhoramentos do texto Em 1911 foi a vez de Alfred Blunt
Segundo Minns e Parvis67 a obra se baseou principalmente nos trabalhos de G Kruumlger68 que
se espelhou em Otto A ediccedilatildeo de Edgar Goodspeed69 em 1914 recorre a A C e agrave tradiccedilatildeo de
Euseacutebio e da Sacra Parallela poreacutem natildeo apresenta notas criacuteticas
Em 1994 Miroslav Marcovich70 publicou sua ediccedilatildeo criacutetica das Apologias Em 1997
publicou tambeacutem a ediccedilatildeo do Diaacutelogo71 A qualidade criacutetica destes textos passou a um alto
niacutevel Segundo a anaacutelise de Minns e Parvis72 as emendas de Marcovich satildeo de um teor
filoloacutegico tatildeo elevado e com intervenccedilotildees sobre o caraacuteter estiliacutestico de tal modo que eacute possiacutevel
duvidar que Justino tivesse um conhecimento tatildeo apurado de grego
61 SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703 62 Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722 63 TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius 64 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 16 65 MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 66 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 67 Op cit p 17 68 Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896 69 Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 70 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 71 MARCOVICH Miroslav Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997 72 Op cit p 18
21
Charles Munier tambeacutem apresentou em 199473 um volume simples das Apologias em
francecircs Em 199574 foi lanccedilada sua ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto grego Ele confessa natildeo ter tido
acesso agrave obra de Marcovich receacutem-publicada75 Sua ldquogrande obrardquo veio em 2006 uma ediccedilatildeo
criacutetica na coleccedilatildeo Sources Chreacutetiennes O ponto forte do texto de Munier satildeo os comentaacuterios
e a extensiva discussatildeo do contexto teoloacutegico e filosoacutefico76 As anaacutelises textuais natildeo satildeo
muito profundas mas contribuem significativamente com a indicaccedilatildeo de textos
correlacionados
A ediccedilatildeo criacutetica de Denis Minns e Paul Parvis77 ndash com texto grego traduccedilatildeo e notas ndash
foi publicada em 2009 Aleacutem da ampla revisatildeo das ediccedilotildees de outros autores o texto
apresenta um rico aparato criacutetico As interferecircncias no texto fazem a I Apologia chegar ateacute o
capiacutetulo 70
Em 1995 a editora Paulus preparou uma versatildeo das I e II Apologias e o Diaacutelogo com
Trifatildeo em um uacutenico volume78 O texto eacute problemaacutetico e muito simplista Natildeo haacute sinais de
criacutetica textual e podem ser encontrados alguns erros de portuguecircs A traduccedilatildeo foi feita por Ivo
Storniolo com introduccedilatildeo e notas de Roque Frangiotti mas natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo sobre
qual foi o texto base para a traduccedilatildeo Eacute evidente todavia que os editores natildeo contaram com
as ediccedilotildees de Marcovich Munier ou Minns e Parvis Por isso deixaremos este texto em
segundo plano
Nessa pesquisa as ediccedilotildees de Miroslav Marcovich79 Charles Munier80 e a de Denis
Minns e Paul Parvis81 satildeo lidas em conjunto comparando as divergecircncias sempre que for
necessaacuterio A interferecircncia na disposiccedilatildeo dos capiacutetulos adotada por Denis Minns e Paul Parvis
natildeo seraacute admitida A divisatildeo das Apologias seraacute tal qual a que apresenta Marcovich por ater-
se ao padratildeo comum agrave maioria dos estudiosos82 poreacutem a Apologia Maior seraacute chamada I
Apologia abreviado para I Apol ou simplesmente I quando jaacute houver uma citaccedilatildeo no
paraacutegrafo Semelhantemente a Apologia Menor seraacute chamada II Apologia abreviado para II
73 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p 74 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 75 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 90 76 Opiniatildeo tambeacutem compartilhada por MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 18 77 Ibid 346 p 78 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 79 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 80 Op cit 2006 81 Op cit 82 Cf MARCOVICH M Op cit 2005 p 10
22
Apol ou II nas mesmas condiccedilotildees que a primeira O texto de Munier segue a mesma
padronizaccedilatildeo de Marcovich no entanto ele prefere se referir a Apologia parte I e parte II
nomenclatura que natildeo seraacute seguida nesse texto O termo ldquoApologiasrdquo seraacute empregado como
referecircncia aos dois textos de Justino
12 A questatildeo da autoria Justino
A I Apologia (11) aponta explicitamente que seu autor eacute Justino homem oriundo de
Flaacutevia Neaacutepolis hoje conhecida como Nablus localizada na Siacuteria Palestina B Bagatti83
afirma que ela foi fundada por veteranos da conquista da Judeia sob Vespasiano por volta do
ano de 72 O avocirc de Justino Baquios pode ter participado da implantaccedilatildeo da cidade
O apologista se reconhece como conterracircneo dos samaritanos84 No Diaacutelogo com
Trifatildeo ele eacute identificado como ldquofiloacutesofordquo e nas Apologias fica evidente seu conhecimento da
filosofia Taciano chamou seu mestre apologista de ldquoo mais admiraacutevel85rdquo Irineu de Lyon fez
menccedilatildeo ao seu martiacuterio e carregou sua influecircncia em seu escrito86 Tertuliano87 atribuiu-lhe
dois tiacutetulos ldquofiloacutesofo e maacutertirrdquo O apologista tambeacutem recebeu um lugar no De viriis
illustribus de Satildeo Jerocircnimo e Gennadius88
Em seu Diaacutelogo com Trifatildeo89 ele eacute apresentado como um homem educado no estudo
da filosofia Segundo a narrativa do Diaacutelogo Justino conheceu o estoicismo frequentou a
escola peripateacutetica ficou junto a um filoacutesofo pitagoacuterico que lhe solicitou aprender muacutesica
astronomia e geometria Por uacuteltimo havia se aproximado da escola platocircnica quando entatildeo
conheceu os escritos dos profetas e a feacute cristatilde90 Segundo E R Goodenough91 Justino adota
uma dramatizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o cristianismo e a filosofia apresentando as passagens
por diversas escolas agraves quais critica rumo agrave ldquoverdaderdquo cristatilde Ele compara a narrativa de
Justino agrave de seu contemporacircneo Luciano em Menippus IVVI Em Menippus tambeacutem eacute
descrita a passagem por diversas escolas de pensamento chegando-se ao consentimento pelas
inuacutemeras contradiccedilotildees de que nenhuma delas tinha autoridade Goodenough tambeacutem vecirc a
83 S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319 84 Diaacutel 1206 II Apol 151 85 Discurso contra os gregos 191ss 86 Contra as heresias I281 cf IV62 V262 87 Contra os Valentinianos 51ss 88 Vida dos homens Ilustres 89 21ss 90 II Apol 81ss 91 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 pp 58-59
23
recorrecircncia dessa forma literaacuteria na descriccedilatildeo de verdadeiros proseacutelitos do judaiacutesmo Githro
Naaman e Rahab descritos na Tannaim92 N Hyldahl93 aleacutem de considerar a narrativa da
trajetoacuteria filosoacutefica de Justino mera ficccedilatildeo tambeacutem sustenta ser impossiacutevel determinar que
tipo de platonista esse pensador foi antes de sua conversatildeo e que a capa de filoacutesofo que usava
mencionada por Euseacutebio era um erro de interpretaccedilatildeo
Deve-se reconhecer como tambeacutem destacou L W Barnard que se por um lado havia
uma convenccedilatildeo literaacuteria grega ndash e que pudesse ser encontrada ocasionalmente ateacute no judaiacutesmo
ndash sobre as aventuras por diversas escolas a fim de criticaacute-las por outro lado isso natildeo contradiz
a admissatildeo da atual condiccedilatildeo de filoacutesofo cristatildeo assumida por Justino naquele momento Por
ldquofiloacutesofo cristatildeordquo natildeo se pretende dizer outra coisa senatildeo aquilo que ele mesmo confessa e
procura convencer os seus leitores a saber de que apoacutes conhecer diversas correntes
filosoacuteficas encontrou nas doutrinas cristatildes a ldquoverdaderdquo que o contentou94 Aleacutem disso o teor
apologeacutetico do discurso de Justino estaacute fundamentalmente relacionado a paralelos e
intersecccedilotildees com a filosofia C Andresen95 concorda que a trajetoacuteria filosoacutefica de Justino seja
mais do que um simples jogo literaacuterio Segundo Andresen e ele parece estar correto o meacutedio-
platonismo eacute a base da construccedilatildeo do pensamento cristatildeo de Justino
Em Roma Justino esteve engajado em debates com o filoacutesofo ciacutenico Crescente96
Segundo a Ata do Martiacuterio de Justino97 ele foi decapitado sob o julgamento de Rusticus
prefeito de Roma entre 162 e 168
A data e o local da conversatildeo de Justino satildeo imprecisos Eacutefeso tem sido cogitada como
uma boa hipoacutetese para o local de seu membramento ao cristianismo98 ou ainda algum ponto
na sua longa jornada da Palestina para Roma99 Minns e Parvis100 pensam que sua adesatildeo deve
ter ocorrido pelo menos uns 30 anos antes de sua morte Isso apontaria para uma data proacutexima
92 Ibid pp 58-59 93 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 94 Dial II1-6 95 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf FELIX Viviana Laura Elementos medioplatoacutenicos en la filosofiacutea de Justino IV JORNADAS NACIONALES DE FILOSOFIacuteA MEDIEVAL Academia Nacional de Ciencias de Ciencias de Buenos Aires Abril 2009 96 II Apol 31ss 97 Atti del Martiacuterio di San Giustino Caritone Caritoacute Evelpisto Ierace Peone e Liberiano Martirizzati a Roma In GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 Texto grego e traduccedilatildeo italiana a partir da obra de WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987 98 QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197 99 SKARSAUNE Oskar The proof from phophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provence theological profile Leiden EJBrill 1987 pp 245-246 100 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 33
24
agrave guerra judaica da deacutecada de 130 dC O Dialogo (1206) cita a I Apologia e desse modo
ambos os textos fazem referecircncia agrave revolta de Bar Kosiba entre os anos de 132 e 135101
Aleacutem das Apologias e do Diaacutelogo com Trifatildeo obras que satildeo reconhecidamente
proacuteprias a Justino Euseacutebio102 aponta que o apologista escreveu tambeacutem um livro contra os
gregos outro intitulado Elenchos um tratado sobre a soberania de Deus outro com o tiacutetulo
Psaltes e um escrito sobre a alma Um tratado contra Marciatildeo tambeacutem eacute citado mas essa
passagem corresponde a um trecho da I Apol 265-6103 Na sequecircncia dessa periacutecope da I
Apologia Justino disse que ele mesmo escreveu um ldquotratadordquo contra todas as heresias Esse
escrito poreacutem eacute dado por perdido No Dialogo 1206 o apologista diz ter aprestado um
escrito endereccedilado ao imperador no qual se refere a Simatildeo Mago104 o que eacute constatado na I
Apologia Eacute pertinente admitir que natildeo eacute possiacutevel saber se o texto que foi preservado ateacute agora
derivou daquele primeiro endereccedilado ao imperador Se seu trabalho foi entregue ao imperador
eacute provaacutevel que Justino tenha ficado com uma coacutepia
Minns e Parvis105 natildeo acreditam que seu texto tenha sido copiado com o intuito de ser
amplamente publicado Parece-lhes razoaacutevel sustentar a hipoacutetese de que o texto preservado
ateacute hoje pelo MS A deriva do documento que estava com Justino no momento de sua prisatildeo
Talvez tenha sido necessaacuteria uma reorganizaccedilatildeo do texto mais tarde com um propoacutesito
catequeacutetico ou apologeacutetico diferente do seu sentido original Entre sua emissatildeo original e o
teacutermino do trabalho do copista do Parisinus Graecus 450 em 11 de setembro de 1364106
muita coisa pode ter acontecido ao texto Todavia o principal obstaacuteculo a essa hipoacutetese eacute que
natildeo foram encontrados quaisquer vestiacutegios de um texto que ateste que o documento jaacute teve
outro formato sem os acreacutescimos catequeacuteticos Aleacutem disso as partes que tratam das crenccedilas
cristatildes estatildeo bem relacionadas agrave estrutura da obra e cumprem com seu propoacutesito
apologeacutetico107 Sua estrutura apresenta traccedilos comuns aos escritos de outros apologistas do II
101 Diaacutel 13 I Apol 316 102 Hist Ecles IV181-6 103 Hist Ecles IV118-9 104 Cf I Apol 262-3 105 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 34 106 Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005) calcula o ano de 1363 mas Bobichon ( lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 pp 157-158) apontou de forma mais satisfatoacuteria a data de 1364 com a qual Minns e Parvis (Op cit 34) e Munier (Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 84) concordam 107 A funccedilatildeo catequeacutetica da obra seraacute examinada mais propriamente no terceiro capiacutetulo parte 4 dessa dissertaccedilatildeo
25
seacuteculo induzindo Sara Parvis108 a pensar que Justino tenha sido o ldquopairdquo do gecircnero apologeacutetico
cristatildeo servindo de inspiraccedilatildeo para outros escritores da eacutepoca
Embora existam interrogaccedilotildees e divergecircncias sobre a unicidade ou biparticcedilatildeo das
Apologias haacute semelhanccedilas estiliacutesticas entre as duas partes que fazem com que Marcovich109
Munier110 Minns e Parvis111 concordem que os escritos procedam de Justino ainda que certas
modificaccedilotildees sejam admitidas durante o tempo conforme as irregularidades de alguns pontos
tecircm mostrado Eacute preciso ainda ter uma ideia clara sobre que tipo de escritos se estaacute
analisando tendo em vista que o conceito de ldquoapologiardquo como uma espeacutecie de gecircnero literaacuterio
eacute recente
13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino
Termo derivado da palavra grega avpologia significa basicamente ldquodiscurso de defesa
defesardquo Que tambeacutem deriva do verbo avpologeomai que representa o oposto de kathgoria
que significa ldquoacusaccedilatildeordquo112
No seacuteculo IV aC Platatildeo113 e Xenofontes114 cada um a seu modo narram a ldquoapologia
de Soacutecratesrdquo e proporcionam um tributo agrave valorizaccedilatildeo da razatildeo No I seacuteculo dC eacute Flaacutevio
Josefo115 quem eterniza um discurso desse tipo remetido a Aacutepion em prol dos judeus Josefo
defende a religiatildeo judaica salientando a sua antiguidade e contrastando a pretensatildeo grega agrave
superioridade no campo cultural O caraacuteter ldquoapologeacuteticordquo do texto como um ldquodiscurso de
defesardquo fica por conta da resposta a algumas alegaccedilotildees antijudaicas atribuiacutedas ao escritor
grego Aacutepion e os mitos acreditados por Manetho
No seacuteculo II dC Apuleio de Madura tambeacutem compocircs uma apologia pela qual se
defende das acusaccedilotildees de magia Eacute nesse mesmo seacuteculo que uma seacuterie de escritos como os de
Quadrato Aristides Justino Atenaacutegoras Meacuteliton de Sardes Teoacutefilo de Antioquia Taciano e
outros emerge em defesa dos cristatildeos que sofriam acusaccedilotildees principalmente na Aacutesia Menor
108 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 109 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 110 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 111 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 112 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 Cf RUSCONI C (Ed) DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 113
Apologia de Soacutecrates 114
Apologia 115 Contra Aacutepion
26
Para compreender os aspectos constitutivos das apologias de Justino eacute preciso analisar
as vaacuterias teorias sobre sua composiccedilatildeo e sua estrutura retoacuterica
131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica
As diferenccedilas estruturais de uma para a outra apologia de Justino exigem uma anaacutelise
especiacutefica Notadamente a II Apol eacute menor que a I Apol Minns e Parvis116 apresentam trecircs
teorias sobre o nuacutemero desses escritos de Justino
A forma como aparecem no MS A corrobora com a ideia de que sejam duas apologias
Mas enquanto a primeira eacute cheia de citaccedilotildees da escritura a segunda natildeo tem nenhuma citaccedilatildeo
desse tipo De modo bem peculiar eacute na II Apologia que aparece a reflexatildeo sobre o loacutegoj
sperermatikoj117 e o comprometimento de Justino no debate com Crescente A anaacutelise textual
da II Apologia eacute desfavorecida pelo tamanho do texto todavia as diferenccedilas proporcionais
entre os escritos satildeo somadas agrave hipoacutetese de que seriam de fato duas apologias
A segunda teoria sustenta a ideia de que originalmente a atual composiccedilatildeo dupla era
na verdade uma uacutenica Apologia Munier eacute aliado a essa proposta Ele considera que uma obra
uacutenica ndash um libellus ndash teria sido apresentada em Roma como requisiccedilatildeo pessoal endereccedilada ao
Imperador Antonino Pio e seus filhos para mudar a condiccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio118 O
principal argumento dessa hipoacutetese eacute que existe uma boa inclusio entre as referecircncias agrave
piedade e agrave filosofia no iniacutecio da primeira (I Apol 1 21-2 31) e os que aparecem no final da
segunda (II Apol 1213 e 14) As retomadas na segunda do tipo ldquoconforme dissemos
anteriormenterdquo seriam referecircncias ao que foi dito na parte imediatamente anterior e natildeo a
outro texto
De modo diverso Minns e Parvis119 consideram que a estrutura do texto ficaria muito
estranha se fosse pensada segundo essa teoria O cliacutemax da primeira parte estaria no rescrito
de Adriano quando o autor mostra a incoerecircncia das acusaccedilotildees e perseguiccedilotildees sofridas pelos
cristatildeos (I Apol 685-10) Isso tornaria incoerente recomeccedilar uma seccedilatildeo de defesa na parte
posterior Outro argumento desfavoraacutevel eacute que o escriba que picou o texto teria sido
demasiadamente astuto para escolher uma parte que marcaria precisamente a distinccedilatildeo de tons
entre os dois textos
116 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p22 117 Logos spermatikos que pode ser entendido de modo limitado com ldquosemente da razatildeordquo 118 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 119 Op cit p 22
27
Outra teoria sustenta que se trata de uma apologia e um apecircndice Minns e Parvis120
fazem saber que essa foi a teoria apresentada por Grabe121 em 1703 recebida por Harnack122
popularizada por Goodspeed123 em 1914 e ainda sustentada com entusiasmo por Marcovich124
em 1994 As correspondecircncias entre a primeira e a segunda estariam relacionadas ao material
deixado pelo proacuteprio Justino apoacutes concluir o texto definitivo A I Apologia pode ser
reconhecida como um libellus ou seja uma requisiccedilatildeo particular endereccedilada ao Imperador
mas a classificaccedilatildeo da II Apologia natildeo eacute muito precisa
Seguindo o raciociacutenio de Robert M Haddad125 qualquer peticcedilatildeo (libellus) apresentada
ao imperador buscava persuadi-lo a fazer alguma coisa De fato na Antiguidade a persuasatildeo
se tornou uma arte Desenvolvida pelos gregos a retoacuterica foi adaptada pelos romanos para
suas proacuteprias aspiraccedilotildees Ciacutecero Secircneca o Velho Taacutecito Pliacutenio o Jovem Quintiliano e
Fronto se tornaram nomes referenciais dessa habilidade Como foi apontado anteriormente
Justino era muito familiarizado com a filosofia mas natildeo se mostrou muito familiarizado com
a retoacuterica o que natildeo isentou seu texto de revelar uma estrutura comum agraves teacutecnicas dessa
disciplina126 No entanto esses aspectos ainda natildeo satildeo suficientes para oferecer uma
explicaccedilatildeo clara sobre o gecircnero das Apologias
132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino
Se a apologia de Soacutecrates diante do tribunal grego adaptada por Platatildeo127 e por
Xenofontes128 tornou-se um emblema da defesa da razatildeo no II seacuteculo dC foram as
120 Op cit p 23 121 HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703 Grabe atuou em parceria com Huntchim nessa ediccedilatildeo 122 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274 123
Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 passim 124 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 10 125 HADDAD Robert M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 Werner Eck escreve que o imperador romano era cercado por pessoas que procuravam influenciaacute-lo ou conseguir favores (Id The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000) 126 The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 21-28 127 Apologia de Soacutecrates 128 Apologia
28
acusaccedilotildees contras os cristatildeos que deram ldquorazatildeordquo agrave proliferaccedilatildeo de apologias em defesa da feacute
cristatilde que ainda natildeo apresentava uma sistematizaccedilatildeo coerente de suas ideias
Segundo a anaacutelise de Robert Grant a literatura apologeacutetica emerge de grupos
minoritaacuterios que estatildeo tentando desenvolver uma linguagem que seja compreensiacutevel agraves
culturas no Impeacuterio Romano para que por meio dela seja comunicada a mensagem cristatilde129
Satildeo vaacuterias as formas apresentadas para atestar a autenticidade das correntes religiosas
defendidas A apologia significaria algo mais do que uma simples defesa dos ataques sofridos
pela Igreja Seria uma forma baseada na defesa que Soacutecrates teria feito no seu julgamento
diante do povo de Atenas para mostrar a racionalidade de seu julgamento Os apologistas
cristatildeos teriam a ampla tarefa de estender possiacuteveis conexotildees entre as concepccedilotildees da filosofia
grega e aquela que para os cristatildeos era a ldquoverdade por excelecircnciardquo Mas esse processo
precisa ser analisado dentro do acircmbito missioloacutegico cristatildeo 130
A apreciaccedilatildeo helenizante estendida tambeacutem por Leslie W Barnard131 a todos os
apologistas eacute desajeitada O proacuteprio disciacutepulo de Justino Taciano opotildee-se agrave cultura grega
Poucos anos depois Tertuliano132 se mostraria o principal disseminador de um discurso que
estava longe de buscar os pontos comuns entre Jerusaleacutem e Atenas A comparaccedilatildeo com
Soacutecrates tambeacutem natildeo pode ser estendida a todos os apologistas
Justino poreacutem aleacutem de se referir positivamente a Soacutecrates como participante no logos
que autentica a racionalidade cristatilde proporciona uma analogia com a sua proacutepria condiccedilatildeo
enquanto prevecirc o seu martiacuterio em defesa da feacute cristatilde133
Em 1897 Th Wehofer em busca dos modelos literaacuterios de Justino observou que no
elogio dos mortos de Menexenus e na Apologia de Soacutecrates Platatildeo proporciona o modelo de
uma retoacuterica a serviccedilo da justiccedila e da verdade Sem duacutevida Justino conhecia os escritos de
Platatildeo Algumas correlaccedilotildees podem ser identificadas em trechos de suas Apologias I Apol
24 = ApS 30c 53 = 24b et 26c 82 = 30d 682 = 19a II102 = 24b Segundo Munier134
a exposiccedilatildeo temaacutetica progressiva encontrada nessa obra pode parecer uma desorganizaccedilatildeo
129 GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988 p 9 apud HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 31 130 Isso significa que as interconexotildees apologeacuteticas entre cultura greco-romana e cristianismo precisam ser contempladas como mecanismo dos discursos cristatildeos para proporcionar siginificaccedilotildees eficientes entre os povos de outras culturas cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990 131 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 2008 p 2(3) 132 Apolog passim 133 I Apol 51-3 II Apol 81ss 134 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 33
29
uma composiccedilatildeo aparentemente relaxada uma sucessatildeo aparentemente arbitraacuteria de
passagens dogmaacuteticas e pareneacuteticas que retoma abundantemente o mesmo tema abordando-o
sob uma perspectiva diversa Nota-se que um esquema preside a composiccedilatildeo geral das
Apologias
A estrutura essencial da Apologia de Soacutecrates por si soacute natildeo eacute suficiente para dar conta
do plano geral da obra de Justino As correlaccedilotildees entre o escrito de Platatildeo e o de Justino vatildeo
aleacutem do niacutevel estrutural Elas tambeacutem se mostram nos modelos de argumentaccedilatildeo De fato
este eacute o coraccedilatildeo mesmo da defesa que se funda sobre o exemplo de Soacutecrates condenado como
ldquoateu e iacutempiordquo135 Para Justino136 o destino traacutegico do filoacutesofo ateniense ilustra perfeitamente
a sorte dos cristatildeos ameaccedilados de morte
A diatribe de Justino contra Crescente toma uma funccedilatildeo analoacutegica Ela estaacute associada
agrave evocaccedilatildeo de Soacutecrates Assim como Meacuteletos tinha acusado Soacutecrates Crescente acusa os
cristatildeos de serem ldquoateus e iacutempiosrdquo a fim de agradar a multidatildeo insensata137 E como Soacutecrates
tinha oposto a seus acusadores sua indiferenccedila ao ldquotalento da palavra e sua uacutenica preocupaccedilatildeo
era dizer a verdaderdquo138 o desafio de Justino a Crescente se inspira na sentenccedila de Platatildeo139
ldquoDe modo nenhum se deve honrar mais a homens do que agrave verdaderdquo
Contudo a Apologia de Soacutecrates natildeo eacute um modelo literaacuterio estrito no qual Justino se
inspirou Segundo a anaacutelise de Munier140 o Protreacuteptico de Aristoacuteteles oferece tambeacutem
alguma correlaccedilatildeo mas isso natildeo deve significar que haja alguma dependecircncia intriacutenseca entre
esses escritos Aristoacuteteles se dedica a demonstrar que a filosofia converte todo seu valor agrave
vida em sociedade e que uma vida sem filosofia natildeo vale a pena de ser vivida Na medida em
que apresenta o cristianismo como uma ldquofilosofia divinardquo141 Justino poderia tirar o melhor
partido dos protreacutepticos142 de Aristoacuteteles de Isoacutecrate e de seus seguidores dedicados agrave
filosofia Mas essa semelhanccedila eacute apenas ocasional e natildeo intencional O apologista natildeo
esconde seu desejo de que o imperador se torne um filoacutesofo de Cristo Ele acreditava que se
seu pedido fosse aceito a feacute cristatilde espalharia benefiacutecios por todo o Impeacuterio143 Eacute nesse sentido
135 I Apol 53 136 II Apol 12 81-2 137 Cf WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991 138 Platatildeo ApS 17bc 139 Repuacuteblica X595c 607c 140 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 40 141 II125 142 Protreacuteptico exortaccedilatildeo Restam apenas fragmentos dos escritos protreacutepticos de Aristoacuteteles cf CHROUST Anton-Hermann Aristotle Protrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964 143 I 12 1-2 17 1-4
30
que ele recorre agrave maacutexima de Platatildeo144 ldquoSe governantes e governados natildeo satildeo filoacutesofos natildeo
pode haver felicidade nas cidadesrdquo
P Keresztes145 estava certo ao dizer que a caracteriacutestica marcante da Apologia eacute a
extensiva defesa dos cristatildeos contra as acusaccedilotildees de ateiacutesmo traiccedilatildeo canibalismo e agraves accedilotildees
caluniosas de modo geral Justino sustenta essa defesa tentando mostrar a exclusiva verdade
da religiatildeo cristatilde O principal propoacutesito das Apologias seria garantir que os cristatildeos tivessem
liberdade para professarem a feacute embora isso significasse a condenaccedilatildeo dos demais deuses
Tambeacutem fazia parte do propoacutesito chamar os pagatildeos a abraccedilarem o cristianismo Seus
conselhos retoacutericos no contexto servem ao propoacutesito de sugerir ao imperador que mude o
corrente curso da justiccedila Isso significa clamar por um julgamento comum que natildeo permitisse
a condenaccedilatildeo pelo ldquonome cristatildeordquo
Esses escritos do pensador de Flaacutevia Neaacutepolis satildeo dotados de certa particularidade em
sua composiccedilatildeo Mas se nota que a princiacutepio o apologista procurou valer-se do seu direito de
dirigir uma ldquopeticcedilatildeordquo ou libellus ao imperador
Na I Apol 74 ele faz sua requisiccedilatildeo usando o verbo normalmente empregado para
uma peticcedilatildeo em grego avxioun Assumindo a postura de um pensador compromissado com a
justiccedila e a verdade ele pede para que ldquosejam examinadas as accedilotildees de todos os que [] satildeo
denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por
outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo
ter cometido nenhum crimerdquo146 (I Apol 74) Uma requisiccedilatildeo desse tipo deveria ser
encaminhada ao escritoacuterio administrativo para ser ou natildeo subscrita e receber uma resposta O
equivalente grego para libellus eacute biblidion para subscribere o equivalente eacute u`pografein e
para postar uma resposta usa-se proqeiai no lugar de proponere147 Esta terminologia pode
ser precisamente encontrada na II Apol 141
Kai u`maj ou=n avxioumen u`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaj148148148148 to dokoun proqeinaiproqeinaiproqeinaiproqeinai touti to biblidionbiblidionbiblidionbiblidion( o[pwj kai toij alloij ta hmetera gnwsqh| kai dunwntai thj yeudodoxiaj kai avgnoiaj ton kalwn avpallaghvai( oi para thn
144 Repuacuteblica V 473de 145 The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965 p 109 146 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 pp 23-24 [Oqen pantwn twn kataggellomenwn umin taj praxeij krinesqai avxioumen( i[na o` evlegcqeij w`j adikoj kolazhtai( avlla mh wvj Cristianoj evan de tij avnelegktoj fanhtai( avpoluhtai w`j Cristianoj ouvden avdikon) MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 142-144 147 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 25 148 Grifos nossos
31
e`autwn aivtina u`peuqunoi taij timwriaij eivj to gnwsqhnai toij avnqrwpoij tauta(149
As proporccedilotildees desses textos ultrapassam os padrotildees de um libellus Para explicar essa
relativa incompatibilidade Minns e Parvis150 referindo-se apenas a I Apologia sustentam que
Justino usou de uma estrateacutegia por meio da qual ele adota esse tipo de documento
administrativo romano inserindo um material catequeacutetico e explanatoacuterio cristatildeo convertendo-
o em um dispositivo disseminador da mensagem de feacute Ou ainda traduzindo as palavras de
W R Schoedel151 trata-se de uma peticcedilatildeo apologeticamente fundamentada e sem precedentes
na tradiccedilatildeo literaacuteria greco-romana As diferenccedilas na estrutura da II Apologia natildeo permitem
dizer que se trata de um documento de outro autor pois as caracteriacutesticas do texto atestam sua
compatibilidade com a primeira peccedila O que faz multiplicar as interrogaccedilotildees sobre o segundo
texto eacute que mesmo apresentando traccedilos de uma segunda ldquopeticcedilatildeordquo ela eacute evidentemente menor
e dispensa um exordio bem formulado como o do primeiro escrito Mas essa propriedade da II
Apologia se tornaraacute mais clara a seguir na anaacutelise dos destinataacuterios
14 Destinataacuterios
Existem algumas variaccedilotildees entre a forma como a I Apologia eacute endereccedila no MS A e na
Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio A tabela a seguir foi construiacuteda seguindo as informaccedilotildees
apresentadas por Minns e Parvis152
MS A Euseacutebio HE IV12
a Antoninus Pius Augustus Caesar a Antoninus Pius Augustus Caesar
e a Verissimus seu filho e a Verissimus seu filho
Filoacutesofo Filoacutesofo
e a Lucius e a Lucius
Filoacutesofo do filoacutesofo
de Ceacutesar filho por natureza Ceacutesar filho por natureza
e de Pius por adoccedilatildeo e de Pius por adoccedilatildeo
149 MUNIER Op cit pp 364 366 TrldquoPortanto noacutes vos suplicamos que subscrevendo como vos pareccedila deis publicidade a este livro a fim de que tambeacutem os outros conheccedilam a nossa religiatildeo e se vejam livres da vatilde opiniatildeo e da ignoracircncia em relaccedilatildeo ao bem Por sua proacutepria culpa eles se tornam responsaacuteveis pelo castigordquo 150 Op cit p 25 151 SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72 152 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35
32
Eacute incluiacuteda ainda no manuscrito a expressatildeo ldquoao santo senado e a todo o povo dos
romanosrdquo entre os destinataacuterios da Apologia Minns e Parvis153 consideram esse uacuteltimo
trecho uma antiga adiccedilatildeo editorial Eles apontam que a expressatildeo ldquosanto senadordquo foi
comumente encontrada em moedas de bronze cunhadas na Aacutesia Menor154 Outras inscriccedilotildees
mostram essa expressatildeo vinculada agrave famiacutelia imperial e ao povo romano Vespasiano ldquoe toda
sua casa o santo senado e o povo dos romanosrdquo155 Trajano ldquoe toda sua casa o santo senado e
o povo dos romanosrdquo156 Marco Aureacutelio e Luacutecio Veroldquoe toda [sua] casa o mais santo senado e
o povo dos romanosrdquo157 Septimus Severus Caracalla Geta Julia Domna ldquoe toda a sua casa o
santo senado o povo dos romanos e os santos exeacutercitosrdquo158 Eacute possiacutevel indicar muitas outras
inscriccedilotildees mas o impasse identificado por Minns e Parvis estaacute relacionado ao fato de o
ldquosenadordquo e o ldquopovordquo aparecem no endereccedilamento de uma ldquopeticcedilatildeordquo como eacute caracterizada a
Apologia de Justino Entra na hipoacutetese a importaccedilatildeo da expressatildeo que ocorre na I Apol 563
ldquoPor isso noacutes vos suplicamos que o sacro senado e o povo romano conheccedilam este nosso
escrito []rdquo Ou ainda que a primeira ocorrecircncia do termo ldquosacro senadordquo seja a da fala de
Lucius a Urbicus na II Apol 216
Munier159 no entanto tem outra proposta Para ele eacute mais provaacutevel que tal expressatildeo
tenha assumido seu lugar em funccedilatildeo da necessaacuteria autorizaccedilatildeo do senado e do povo para o
estabelecimento de um novo culto puacuteblico Seu argumento eacute baseado no escrito de Ciacutecero
(Legibus II19-20) e parece mais seguro
Euseacutebio escreve que Justino tambeacutem endereccedilou uma Apologia ao imperador
ldquoAntonino Verordquo160 ou seja a Marco Aureacutelio A menccedilatildeo ao ldquoimperador Piordquo ao ldquofilho de
Ceacutesar amante do saberrdquo e ao ldquosacro senadordquo na II Apol 21ss pode significar para estudiosos
como M Marcovich161 que a II Apologia foi dirigida aos mesmos nomes que a primeira Essa
periacutecope do texto apresenta a narraccedilatildeo de um episoacutedio que se sucedeu nos dias de Antonino
153 Ibid 154 TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984 p 96 apud MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35 155 tan i`eran sunklhton kai ton damon ton R`wmaiwn Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386 Minns e Paris (op cit p35) citam o mesmo texto com algumas variaccedilotildees 156 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn (Cyrenis IGRR I-II 1037) Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355 157 i`erwtathj boulhj te kai dhmou tou Rwmaiwn (Serdicae IGRR I-II 1452) Ibid p 182 158 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn kai strateumatwn (Pizi IGRR I-II 766) Ibid p 251 159 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 278 160 Hist Ecles IV183 161 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 7
33
Pio mas eacute provaacutevel que a alusatildeo agrave piedade e agrave filosofia novamente seja proposital para
constranger seus destinataacuterios Euseacutebio se confunde com o nome de Antonino assim como o
faz quanto ao rescrito agrave comunidade da Aacutesia162
Considerando que Justino escreveu na I Apologia 462-3 que ldquoCristo nasceu cento e
cinquenta anos antes de nosso tempordquo A Harnack163 conclui que esse primeiro escrito foi
composto entre 147 e 154 dC Tambeacutem na I Apol 296 L Munatius Felix eacute mencionado
como prefeito do Egito Sabe-se que ele exerceu seu mandato de 150 a 154 dC164 A II Apol
11 faz referecircncia a Q Lollius Urbicus como prefeito de Roma cargo que ocupou de 146 a
160 dC165 Segundo a anaacutelise de Munier o Chronicon de Euseacutebio indica que o adversaacuterio de
Justino Crescente comeccedilou a denunciaacute-lo em Roma no segundo ano da 233ordf Olimpiacuteada que
corresponde ao ano de 153 ou 154 Desse modo seraacute acatada a uma data por volta do ano 153
ou 154 para a I Apologia e alguns anos depois para o segundo escrito ateacute no maacuteximo 161 dC
A I Apologia apresenta uma defesa geral dos cristatildeos O segundo escrito parte da
reprovaccedilatildeo das accedilotildees anticristatildes tendo em vista principalmente o que havia acontecido em
Roma sob Urbico e as investidas do ciacutenico Crescente Entranhado nessa ldquopeticcedilatildeo
apologeticamente fundamentadardquo166 estaacute o argumento de que os cristatildeos ao contraacuterio do que
era disseminado em algumas denuacutencias e caluacutenias natildeo seriam de nenhum modo uma ameaccedila
agrave ordem A seguir seratildeo examinadas as accedilotildees anticristatildes que compunham o contexto da
primeira metade do seacuteculo II dC
162 Hist Ecles IV131ss A confusatildeo com os nomes dos imperadores no rescrito da Aacutesia seraacute examinada mais adiante Pode-se admitir tambeacutem que essa confusatildeo tenha sido acarretada pela organizaccedilatildeo do texto em um periacuteodo posterior a Euseacutebio 163 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 227 164 Prosopografia Imperii Romani V 2 Berlim Walter de Gruyter 1983 (M 723) 165 PIR v1 1970 L 327 166 Usando novamente a expressatildeo de SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72
34
CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS
Justino se opotildee agraves investidas contra os cristatildeos167 por natildeo considerar vaacutelidas as
justificativas apresentadas para as condenaccedilotildees dos fieacuteis A confissatildeo de ldquocristianismordquo diante
de uma autoridade acaba sendo ironizada como uma condenaccedilatildeo do nome ldquocristatildeordquo Na II
Apologia (11) ele afirma que accedilotildees desse tipo estatildeo ocorrendo por todo o Impeacuterio O que natildeo
deve significar que existia uma busca exaustiva dos romanos pelos membros do novo
movimento No entanto eacute provaacutevel que esses atritos pudessem ser localizados em vaacuterias
regiotildees Um caso especiacutefico da execuccedilatildeo em Roma sob Urbico motivou-o a se manifestar
novamente168 As intimaccedilotildees por razotildees religiosas aos tribunais jaacute haviam movido outros
apologistas na primeira metade do II seacuteculo Euseacutebio169 faz saber que antes de Justino
Quadrato e Aristides jaacute clamavam em favor dos cristatildeos ao Imperador Adriano
Natildeo haacute nenhum indiacutecio de que o cerne da crenccedila cristatilde apresentasse alguma forma de
conspiraccedilatildeo contra os romanos Mas eacute preciso estabelecer uma visatildeo geral das accedilotildees
anticristatildes que se desenvolveram antes de Justino e em seu tempo para que se possa assimilar
o sentido de sua reflexatildeo
O II seacuteculo se inicia com um quadro indefinido a respeito dos cristatildeos A atividade
cristatilde de anunciaccedilatildeo da sua mensagem de feacute e conversatildeo dos pagatildeos alcanccedilava diversas
regiotildees do Impeacuterio Conversotildees e alguns atritos sempre ocorriam
A conversatildeo ao cristianismo implicava em uma mudanccedila que aleacutem de religiosa
poderia ser existencial social e ateacute poliacutetica Eacute provaacutevel que essa postura de resistecircncia agrave
associaccedilatildeo com a ldquoidolatriardquo identificada na vida ciacutevica fosse interpretada como ldquoineacuterciardquo ou
falta de vigor para se envolverem nos assuntos puacuteblicos jaacute despertasse preocupaccedilotildees na virada
do I seacuteculo Principalmente quando membros das classes dirigentes comeccedilam a aderir agrave feacute do
oriente A linha entre a toleracircncia e a intoleracircncia eacute indefinida Eacute preciso analisar os contornos
desde Trajano (governou de 98-117 dC) ateacute os primeiros anos de Marco Aureacutelio (governou
de 161-180 dC)
167 ldquopedimos sejam examinadas as acusaccedilotildees contra os cristatildeos Se for demonstrado que satildeo reais castiguem-nos como eacute conveniente que sejam castigados os reacuteus convictosrdquo I Apol 31 168 ldquo[] o que aconteceu ultimamente em vossa cidade sob Urbico e o que os governadores estatildeo fazendo sem razatildeo em todo o impeacuteriordquo II Apol 11 169 Hist Ecles IV1-3
35
21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano
Natildeo haacute indiacutecios de uma perseguiccedilatildeo generalizada aos cristatildeos no Impeacuterio Romano no
iniacutecio do seacuteculo II mas a expansatildeo cristatilde em curso proporcionava um nuacutemero significativo de
processos nos tribunais locais Se por um lado alguns estavam certos de que os membros
dessa superstitio illicita deveriam ser condenados por outro lado existiam algumas lacunas
sobre esse tipo de julgamento
A expansatildeo proporcionava atritos corriqueiros de resistecircncia agraves novas crenccedilas O
nuacutemero de cristatildeos era crescente170 Ateacute o governo de Nero171 os adeptos agrave nova religiatildeo que
se desenvolvia no seio do judaiacutesmo natildeo enfrentaram problemas significativos em relaccedilatildeo aos
romanos Taacutecito faz saber que esses que a seu ver jaacute eram impopulares pelas suas flagitia
foram incriminados por Nero pelo incecircndio de Roma em 64 dC172 Se Nero lanccedilou a culpa
do incecircndio de Roma sobre os cristatildeos fica aberta a questatildeo sobre a dimensatildeo dessa
perseguiccedilatildeo A accedilatildeo de Nero foi suficiente para que a tradiccedilatildeo cristatilde o transformasse no
ldquoprimeiro imperador perseguidorrdquo logo seguido por Domiciano173174 do qual natildeo se conhece
uma perseguiccedilatildeo direta contra os cristatildeos mas uma repressatildeo a asebeia e ao proselitismo
judaico175 que deve ter ocasionado transtornos inclusive agrave Igreja Isso foi suficiente para se
sustentar que a referecircncia de Tertuliano176 ao institutum neronianum fazia de Nero o primeiro
a lanccedilar as bases juriacutedicas para a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos177 Todavia a utilizaccedilatildeo dessa
referecircncia de Tertuliano para a identificaccedilatildeo das bases juriacutedicas da perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute
problemaacutetica Marta Sordi178 recorrendo ao mesmo Tertuliano sustenta a ideia de que houve
170 GOODMANN M Mission and conversion poselytizing in the Religious History of the Roman Empire New York Clarendon PressOxford 1994 p 91-108 Cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 171 Governou de 54 a 68 dC 172 Anais XV44 Flagitia poderia referir-se a algo vergonhoso ou inapropriado algo descabido cf LIDDEL H G SCOTT R (Ed) Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 173 Governou de 81 a 96 dC 174 Euseacutebio His Ecles III26 175 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3 176 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4 177 KERESZTES Paul Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 Segundo C G Roman as bases dessa teoria se encontram na obra de CALLEWAERD C La methode dans la recherrch de la base juridique des premiers persecutions Reviste dhistoire Ecclesiastique 12 1911 pp 5-16 e segue acompanhada por Cf DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106 MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 1953 pp 3-32 178 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968
36
um senatus consultum na eacutepoca de Tibeacuterio179 que teria desaprovado o reconhecimento de
Cristo como deus do panteatildeo a contragosto do Imperador
A incerteza sobre como proceder em julgamento de cristatildeos fez com que Pliacutenio o
Jovem escrevesse ao imperador Trajano no iniacutecio do II seacuteculo A resposta do imperador
confirma a accedilatildeo de Pliacutenio em condenar os cristatildeos confessos proiacutebe agrave perseguiccedilatildeo a esses
religiosos rejeita as denuacutencias anocircnimas e faz aumenta as interrogaccedilotildees sobre as bases
juriacutedicas processos desse tipo Uma hipoacutetese comum tal como sustentam Marcel Simon e
Andreacute Benoicirct180 eacute a de que neste periacuteodo natildeo existia nenhuma lei sobre os cristatildeos e que os
magistrados agiam mediante a ius coertionis181 Essa teoria que havia sido sustentada
originalmente por Mommsen arrebanhou alguns seguidores mas como aponta Giorgio
Jossa182 em alguns casos como na questatildeo dirigida por Pliacutenio a Trajano o uso da coercitio eacute
limitado pelas interrogaccedilotildees sobre como enquadrar judicialmente os processos Para ser mais
especiacutefico Pliacutenio deseja saber se os cristatildeos deveriam ser condenados simplesmente por
confessarem esse nomem ou por algum crime que esteja subentendido Com base nos
trabalhos de E Le Blant183 no seacuteculo XIX outra teoria sobre esse tipo de julgamento propotildee
que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais existentes dentro do
direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea maiestatis Segundo C
G Roman184 essa teoria teve muitos seguidores nos seacuteculos XIX e XX sendo favoraacutevel
agravequeles que como L Homo e Ch Saumagne185 consideram que o institutum neronianum186
natildeo pode ser compreendido como edito ou lei especial emanada do princeps
As maiores discrepacircncias quanto agraves razotildees juriacutedicas e populares para condenaccedilatildeo dos
cristatildeos eacute a proacutepria relaccedilatildeo desse grupo religioso com o Impeacuterio neste iniacutecio do II seacuteculo
aparecem em funccedilatildeo das supostas posturas diferentes assumidas por Trajano e Adriano diante
dessa superstitio As explicaccedilotildees atuais trilham caminhos que vatildeo desde diferentes niacuteveis de
toleracircncia atribuiacutedos a esses dois imperadores como sustenta Pedro Barcelograve187 ateacute a hipoacutetese
179 Governou de 14 a 37 dC 180 Giudaismo e cristianismo una storia antica RomaBari Gius Laterza Figli Spa 2005 p 97 181 MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-96 182 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 107-144 183 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 184 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 185 HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229 186 Tertuliano Ad nationes 17 187 Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim
37
de que Adriano tenha reconhecido o cristianismo como uma religio licita conforme sustentou
primeiramente Mommsen188
Trajano assumiu o poder no ano de 98 dC A estrateacutegia de Nerva189 em adotaacute-lo para
ser seu sucessor aproximou o senado do futuro priacutencipe190 originaacuterio da Itaacutelica cidade da
proviacutencia senatorial da Baetica no sul da Hispania Eacute provaacutevel que tenha recebido formaccedilatildeo
poliacutetica e puacuteblica razoaacutevel mas sua imagem de homem militar e popular entre as legiotildees eacute a
que prevaleceu para a posteridade Segundo Julien Bennett191 Trajano era de uma famiacutelia
provincial de status elevado Mas essa ascensatildeo natildeo era para qualquer um Pliacutenio192 destaca-o
como priacutencipe escolhido pelas divindades ndash o epiacuteteto optimum era especiacutefico de Juacutepiter ndash
respeitador de todas as tradiccedilotildees ancestrais e das instituiccedilotildees poliacuteticas entre elas o senado
Uma idealizaccedilatildeo que certamente contrapunha-se agrave realidade efetiva pois Trajano apoiado
pelas legiotildees e representado como escolhido de Juacutepiter era detentor de um poder autocraacutetico
tatildeo grande quanto ou maior que o dos mais proacuteximos conselheiros os amigos do priacutencipe
Pode-se considerar que as accedilotildees poliacuteticas de Trajano tinham um caraacuteter apaziguador nos
territoacuterios romanos Ampliou-se a poliacutetica urbana e a extensatildeo das vias romanas nas
proviacutencias favorecendo significativamente a atividade comercial193
Nesse periacuteodo a filosofia estoica encontrou grande honra Por outro lado tambeacutem
houve uma significativa propagaccedilatildeo dos cultos orientais e da magia Prodiacutegios e milagres
eram ansiosamente buscados desencadeando certo fervor religioso entre o povo A piedade
religiosa ancorada agrave velha tradiccedilatildeo grega e romana nutrida por fermento novo proveniente
dos misteacuterios egiacutepcios e dos oraacuteculos caldeus permeava ainda os escritos dos intelectuais O
culto ao imperador natildeo recebeu tanta ecircnfase mas a sacralidade do Impeacuterio eacute talvez um fato
adquirido por todos e a aceitaccedilatildeo praacutetica da forma de culto se juntou com a formaccedilatildeo estoica
da classe dominante194
No ano de 96 Nerva estipulou a requisiccedilatildeo dos relegados e o veto contra as acusaccedilotildees
de ldquoateiacutesmordquo ou mais precisamente de avsebeia e de ldquocostumes judaicosrdquo195 Se os cristatildeos
haviam sido incomodados por decretos que indiretamente insidiam sobre eles alguma
188 Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-399 189 Governou de 96 a 98 dC 190 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 38 191 Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005 pIX 192 Epistolas 1012 Panegiricus 27 884 passim 193 FRIGHETTO Renan Op cit 2012 p 38 194 Ibid p 38 195 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3
38
opressatildeo as mudanccedilas de Nerva teriam representado um aliacutevio196 Mas sob Trajano percebe-
se que os casos esporaacutedicos de condenaccedilotildees aos fieacuteis ainda satildeo identificados Natildeo se ouviraacute
mais falar sobre acusaccedilatildeo de costume judaico no II seacuteculo mas os cristatildeos continuaratildeo a
enfrentar repressotildees em alguns pontos do territoacuterio romano o que levanta uma obscura
questatildeo sobre por qual crime seriam culpados os cristatildeos e quais seriam os fundamentos
juriacutedicos de suas condenaccedilotildees
Como destacou Giorgio Jossa197 a apologeacutetica cristatilde desse periacuteodo distingue dois
tipos de criacuteticos Uma opiniatildeo puacuteblica grosseira e mal informada como as acusaccedilotildees de
cometerem delitos particularmente vergonhosos como incesto e antropofagia movida contra
os cristatildeos por meio de falatoacuterio e caluacutenias e a acusaccedilatildeo de serem a causa de todos os males
no Impeacuterio devido agrave ameaccedila que representavam agrave pax deorum Eacute difiacutecil dizer qual era
realmente a extensatildeo da hostilidade dos pagatildeos das diversas regiotildees mas essa hostilidade
existia e constituiacutea um terreno feacutertil para o desenvolvimento tanto das acusaccedilotildees poliacuteticas da
opiniatildeo culta quanto juriacutedicas por parte dos funcionaacuterios imperiais
O cristianismo natildeo se dirigiu apenas agraves classes humildes Rapidamente sua mensagem
chegou tambeacutem agraves classes elevadas A oposiccedilatildeo da classe culta era principalmente de caraacuteter
filosoacutefico e nesse periacuteodo foram sustentadas especialmente por Epiacuteteto Luciano e Galeno a
partir dos valores mais tradicionais da cultura helecircnica Por outro lado sustentando acusaccedilotildees
de caraacuteter social aparecem as consideraccedilotildees de Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio tendo em vista as
preocupaccedilotildees poliacuteticas do governo romano Taacutecito198 escreveu que os cristatildeos eram mal vistos
pela suas flagitia199 e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero humano] A
crenccedila desse grupo era considerada uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]
Suetocircnio200 os considerava homens de uma superstitionis novae ac maleficae [superstitio201
nova e maleacutefica] Frontatildeo202 em atenccedilatildeo agraves antigas caluacutenias de flagitia teria acusado os
196 Eusebio Hist Ecles III231 197 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 108 198 Anais XV44 199 O termo latino pode significar ldquocrime infacircmia ato vergonhoso etcrdquo LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) 200 genus hominum superstitionis novae ac maleficae [raccedila de homens de uma superstitio nova e maleacutefica] De Vita Caesarum Vita Neronis 162 201 A palavra latina superstitio significa basicamente ldquotemor distinto aos deusesrdquo ldquopavor pelo sobrenatualrdquo com possiacuteveis variaccedilotildees em contextos diferentes Sua traduccedilatildeo para ldquosupersticcedilatildeordquo pode ocasionar uma confusatildeo indesejada de conceitos LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) cf JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 jun1979 pp 131-159 MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007 SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002 202 apud Minucio Felix Octavius 96-7
39
cristatildeos de orgias incestuosas Pliacutenio203 vecirc nas novas crenccedilas uma superstitionem pravam et
immodicam A imagem dos cristatildeos diante desses homens educados era negativa Mas as
opiniotildees satildeo muito divergentes sobre as bases juriacutedicas da condenaccedilatildeo dos membros desse
novo grupo religioso
O governador do Ponto-Bitiacutenia diz nunca ter participado de julgamentos de cristatildeos e
por isso natildeo sabia quais eram as medidas e os procedimentos para castigar e inquirir204 Ele
levanta as seguintes questotildees a Trajano se as diferentes idades e condiccedilotildees fiacutesicas dos
acusados deveriam ser levadas em consideraccedilatildeo se os que se retratavam mereciam ser
perdoados e se deveriam ser punidos por serem cristatildeos sem qualquer crime ou
exclusivamente pelos delitos encobertos por este nome205 O rescrito de Trajano a Pliacutenio
tendo em vista a inscriccedilatildeo de Como (CIL V 5262206) pode ter sido escrito em 111 e 112 ou
112 e 113 anos que compreenderiam o governo de Pliacutenio no Ponto-Bitiacutenia
Sua interrogaccedilatildeo sobre se o ldquonomerdquo deveria ser punido mesmo sem significar uma
ofensa ou a ofensa subentendida pelo nome207 incide sobre que tipo de lei existia naquela
eacutepoca Segundo E Le Blant208 as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis
penais existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de
laesea maiestatis Todavia conforme propocircs C G Roman209 em seu estudo eacute provaacutevel que
os cristatildeos estivessem sendo denunciados naquela regiatildeo devido ao fato de se reunirem
semanalmente Isso contrariava as estipulaccedilotildees do edito promulgado pelo governador segundo
as instruccedilotildees de Trajano que proibia as assembleias ou hetaerias210 entre o povo para evitar
conspiraccedilotildees211 Assim pelo menos neste ponto eacute preciso concordar com Pedro Barcelograve no
203 [superstitio distorcida e desregrada] Ep X968 204 Cognitionibus de Christianis interfui nunquam ideo nescio quid et quatenus aut puniri soleat aut quaeri [ Nunca tomei parte em processos contra cristatildeos por esta razatildeo eu natildeo sei o que costumeiramente se deve punir e quais satildeo as extensotildees ou investigaccedilotildees] (Ep X97) 205 Ep X96 206 Corpus Inscripitionum Latinarum V Berolini Reimer 1959 207 nomen ipsu etiamsi flagitiis careat an flagita cohaerentia nomini puniantur [O proacuteprio nome mesmo sem nenhuma ofensa ou os crimes associados a esse nome devem ser punidos] (Ep X97) 208 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 209 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 passim 210 Assembleias civis comuns entre os gregos 211 Ep X97
40
reconhecimento de que se estaacute diante de um problema local212 Os cristatildeos estavam agrave mercecirc
de denuacutencias de desobediecircncia ao edito do governador mas tambeacutem por alguma
irregularidade identificada no tocante agrave nova religiatildeo
Pliacutenio consultou Trajano pelo menos duas vezes sobre como lidar com as heterias213
Ele havia questionado sobre a possibilidade de criar um coleacutegio de fabri composto por 150
homens na Nicomeacutedia214 Mas o imperador respondeu ldquoNatildeo esqueccedilamos que tua proviacutencia e
sobretudo esta vila eacute vitima de sociedades deste gecircnero Qualquer que seja seu nome
qualquer que seja a finalidade de que dermos a estes homens reunidos daraacute lugar rapidamente
a heteriasrdquo215 Natildeo seria razoaacutevel abrir uma exceccedilatildeo aos cristatildeos Mediante inuacutemeras
denuacutencias Pliacutenio resolveu investigar sobre o tipo de assembleia que constituiacuteam as reuniotildees
cuacutelticas cristatildes Os processos de acusaccedilatildeo cresceram e proporcionaram vaacuterios incidentes216
Denuacutencias anocircnimas por meio de libelus contendo o nome de pessoas que negavam ser cristatildes
estavam entre os inconvenientes Os cristatildeos alegavam que sua uacutenica culpa ou erro era se
reunirem antes de nascer o sol em um dia especiacutefico da semana para cantar hinos a Cristo E
tambeacutem de se ajuntarem para uma refeiccedilatildeo comum vista pelo governador como innoxium
[inocente] Praacutetica que havia sido abandonada devido ao edito de Pliacutenio O governador
procurou extrair informaccedilotildees sobre os cristatildeos mas ele escreve que natildeo encontrou nada aleacutem
de uma superstitionem pravam et immodicam Visto que o nuacutemero de acusados estava
provocando ldquoincidentesrdquo Pliacutenio decidiu consultar o imperador sobre o assunto Ele nota que
pessoas de todas as idades de todos os graus de ambos os sexos e de muitas cidades satildeo
citadas em juiacutezo A superstitio dos cristatildeos jaacute se estendia pelos campos e vilas mas ele eacute
otimista e acredita ser possiacutevel sanar esse problema217 Pliacutenio218 escreve que
muitos recomeccedilam a frequentar os templos que haviam ficado quase desertos tornando a se celebrarem os sacrifiacutecios solenes abandonados e a se venderem as viacutetimas das quais ateacute agora eram raros os compradores De modo que eacute faacutecil argumentar que muitas pessoas podem se emendar se existir lugar para arrependimento
Desse modo haacute uma evidente intenccedilatildeo de realocar os cristatildeos ao povo em geral que
participa da religiatildeo oficial Deve ser esta a razatildeo pela qual o governador concede o perdatildeo
212 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 p 69 213 Assembleias comuns aos gregos 214 Ep X33 215 Ep X341 216 mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species incierunt [Assim como seu suceder crescem os processos de acusaccedilatildeo ocasionando vaacuterios incidentes] (Ep X97) 217 quae videtur sisti et corrigi posse (Ep X97) 218 Ep X97
41
agravequeles que abandonam o cristianismo Mas baseado em relatos anteriores219 e em textos
posteriores sobre esse tipo de julgamento220 pode-se supor que os cristatildeos intimados
argumentavam e questionavam sobre a razatildeo da culpa que os condenava
Roman221 em certa medida seguindo o raciociacutenio de Marta Sordi222 sustenta que a
disposiccedilatildeo de Trajano estaacute voltada para a soluccedilatildeo de problemas sociais na regiatildeo do Ponto-
Bitiacutenia tendo em vista a sua recomendaccedilatildeo geral contra as heterias Proibindo as reuniotildees
puacuteblicas de qualquer caraacuteter os cristatildeos estariam indiretamente incluiacutedos Mas Roman
atribuindo um acentuado grau de toleracircncia a Trajano considera que o imperador estaacute
liberando os cristatildeos dessa condenaccedilatildeo recomendando que os mesmos natildeo sejam buscados
No entanto natildeo haacute qualquer razatildeo para supervalorizar a ldquotoleracircnciardquo desse imperador aos
cristatildeos
Se fossem acusados de violaccedilatildeo do edito das heterias defender-se-iam dizendo que
natildeo se reuniam mais Caso os problemas envolvendo cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia se ressumissem
a essa questatildeo o magistrado deveria soltaacute-los imediatamente Mas natildeo eacute isso que eacute descrito
por Pliacutenio Ele relata que insistia para que os acusados negassem ser ldquocristatildeosrdquo ameaccedilando-os
de morte Certamente um cristatildeo questionaria esse tipo de julgamento perguntando sobre qual
crime teria sido por eles cometido O governador sabia que esses religiosos eram acusados em
outros lugares e ao caracterizar as crenccedilas cristatildes como pravam et immodicam uma percepccedilatildeo
muito negativa se manifesta No entanto natildeo haacute referecircncia a nenhuma lei contra os cristatildeos
Pliacutenio decidiu punir os que confessavam essa superstitio procurando convencecirc-los a
mudarem de opiniatildeo quanto agrave feacute a que se apegavam ameaccedilando-os por ateacute trecircs vezes Seu
julgamento foi que independente da natureza dos credos dos cristatildeos a inflexibilidade e
obstinaccedilatildeo que os faziam natildeo negar o nomen christianum tornavam-lhes dignos de puniccedilatildeo223
Giorgio Jossa224 destacou ainda que nenhum dos crimes a eles imputados eram demonstados
ou pareciam dignos de serem cridos contudo os cristatildeos satildeo vistos como seguidores de
crenccedilas despresiacuteveis Embora natildeo exista nenhuma referecircncia a uma lei contra os fieacuteis natildeo haacute
nenhuma razatildeo para se pensar que Pliacutenio estivesse receoso de punir os cristatildeos exceto pelo
fato de que o nuacutemero de denuacutencias anocircnimas poderia provocar desordem Conforme apontou
219 Atos dos Apoacutestolospassim 220 Euseacutebio Hist Ecles passim Atas dos maacutertires passim 221 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-242 222 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 87-102 223 hellip qualecumque esset quod faterentur pervicaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri (Ep X97) 224 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 116
42
J Danieacutelou225 natildeo era uma lei especiacutefica que ocasionava a condenaccedilatildeo dos fieacuteis mas a
ausecircncia de uma lei que regulamentasse a nova religiatildeo como a que autorizava a religiatildeo
judaica
A resposta de Trajano natildeo demonstrou muita preocupaccedilatildeo com os cristatildeos O
imperador aprovou as medidas empregadas contra eles e para evitar o problema do excesso
de denuacutencias sem fundamento recomendou que natildeo fossem admitidas delaccedilotildees anocircnimas O
imperador tambeacutem estabeleceu que os fieacuteis natildeo deveriam ser perseguidos Ele escreveu
Agiste muito bem meu caro Pliacutenio ao instituir os processos contra esses que te foram denunciados como cristatildeos Natildeo se deve estabelecer regra dura e inflexiacutevel de aplicaccedilatildeo universal Natildeo os procure mas se surgirem outras denuacutencias que procedam puna-os Poreacutem com esta ressalva de que se algueacutem nega ser cristatildeo e mediante a adoraccedilatildeo dos deuses demonstra natildeo o ser atualmente deve ser perdoado em recompensa de sua emenda por muito que o acusem suspeitas relativas ao passado Natildeo merecem atenccedilatildeo panfletos anocircnimos em causa alguma aleacutem do dever de evitarem-se antecedentes iniacutequos panfletos anocircnimos natildeo condizem absolutamente com os nossos tempos226
O caraacuteter lacocircnico da resposta de Trajano poderia se justificar pelo menos de trecircs
formas Em primeiro lugar a autenticidade do rescrito de Trajano e a carta de Pliacutenio a esse
imperador foram questionadas por alguns estudiosos desde o seacuteculo XVIII Segundo
Cristobal G Roman a anaacutelise de J S Semler227 em 1788 contribuiu para desencadear uma
corrente de pensamento que foi bem representada ateacute longos anos do seacuteculo XX228 As
principais objeccedilotildees natildeo estariam diretamente relacionadas agrave inadequaccedilatildeo da descriccedilatildeo de
Pliacutenio sobre as comunidades cristatildes e a situaccedilatildeo real na qual se encontrariam As
discordacircncias incidiriam sobre o tipo de canto praticado nas reuniotildees cristatildes e sobre o nuacutemero
de cristatildeos existentes no Ponto-Bitiacutenia segundo o relato de Pliacutenio229 Os aspectos estruturais
satildeo analisados na criacutetica de L Hermann230 que aponta as repeticcedilotildees e as reiteradas alusotildees agrave
proacutepria ignoracircncia de Pliacutenio como elementos que induzem a pensar em interpolaccedilotildees ou 225 Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975 pp 13-15 226 Pliacutenio Ep X981ss 227 Novae observationes quibus studiosius illustrantur potiora capita historiae et religionis christianae usque ad Constantinum Halle Impensis Bibliopolii Hemmerdiani 1781 228 Marcel Durry (Pline-le-juene Paris Soc DrsquoEacuted Le belle Lettre 1972 p 7071) oferece uma lista dos pesquisadores que aponta a inautenticidade da correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano Entre as obras aparecem AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875 p 186 HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844 pp 426 HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885 LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934 pp 28-34 e GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946 p 585 229 VIDMAN L Etude sur la correspondance de Pline Le Jeune avec Trajan Roma LErma di Bretschneider 1972 pp 87 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 227 230 HERMANN L Les interpretations de la lettre de Pline sur les chretiens Latomus XIII 1954 p 343 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228
43
falsificaccedilotildees Dentro dessa mesma loacutegica estaria a resposta lacocircnica de Trajano agraves trecircs
questotildees que aparecem na carta de Pliacutenio a) se deveriam ser feitas distinccedilotildees tendo em vistas
as idades dos cristatildeos b) se deveria lhes permitir o arrependimento c) e se o roacutetulo de cristatildeo
deveria ser motivo de castigo por si mesmo ou apenas os delitos que aquele nome
implicava231 A resposta de Trajano contempla diretamente apenas a segunda questatildeo natildeo
dando provas de que a primeira e a terceira estivessem na carta por ele recebida Desse modo
Hermann deduz que as questotildees natildeo contempladas seriam interpolaccedilotildees
Entretanto a despreocupaccedilatildeo de Trajano em estabelecer uma norma riacutegida contra os
cristatildeos pode justificar o caraacuteter superficial de sua resposta Ele escreve que neque enim in
universum aliquid quod quase certam formam habeat constitui potest232 [natildeo se pode
constituir uma norma universal ou que seja invariaacutevel] Com isso nota-se tambeacutem a
liberdade do magistrado em avaliar os suspeitos e procurar enquadraacute-los sob uma lei
A tese mommseniana da coercitio eacute rebatida parcialmente por Jossa233 tendo em vista
que na maioria dos casos de condenaccedilatildeo dos cristatildeos nesse periacuteodo a atitude das autoridades
natildeo se reduz a uma simples atitude de poliacutecia para manter a ordem puacuteblica em uma proviacutencia
atingida pela desordem mas em um procedimento judiciaacuterio que tinha iniacutecio com uma
denuacutencia privada comporta uma acusaccedilatildeo precisa e se conclue com a condenaccedilatildeo formal Um
procedimento judiciaacuterio que corresponde perfeitamente a cognitio extra ordinem234 um
processo criminal de natureza inquisitorial afirmado durante o principado para crimes e que
tinha formas diversas daqueles previstos na ordo iudiciorum que nas proviacutencias eram tidos
pelos governadores delegados pelo princeps No entanto diante da ausecircncia de uma
legislaccedilatildeo clara sobre o que fazer com os cristatildeos Pliacutenio recorre a ius coertionis para
desestimular os adeptos dessa pravam et immodicam que desrespeitam o magistrado para
sustentarem seu credo Eacute preciso considerar com certo cuidado a teoria derivada da obra de E
Le Blant235 de que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais
existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea
maiestatis Pliacutenio primeiramente julgou os cristatildeos por meio da lei local que proibia as
assembleias entre o povo poreacutem diante da correccedilatildeo por parte dos cristatildeos apontada pelo
231 Pliacutenio Epistolas X962-3 232 Ep X98 233 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 122-123 234 Tido de processo que substitui o processo padratildeo Eacute provaacutevel que soacute tenha se oficializado com forma instituiacuteda de processo no seacuteculo IV O julgamento dos cristatildeos no seacuteculo II seria um processo semelhante 235 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229
44
proacuteprio governador em sua carta ele natildeo sabia exatamente como punir os que se negavam a
desprezar agravequela superstitio Para Jossa236 estaacute evidente que a condenaccedilatildeo se efetiva diante da
profissatildeo da feacute cristatilde natildeo aos delitos a esse nome associados
O cristianismo natildeo eacute condenado como superstitio externa Uma religiatildeo estrangeira
poderia ser socialmente suspeita mas isso natildeo faz com que seja judicialmente perseguida E
natildeo eacute o seu caraacuteter baacuterbaro que lhe rende ilicidade Superstio externa e barbara o judaiacutesmo
era de fato religio licita Os romanos consideravam superstitio toda forma religiosa e toda
praacutetica cultural que natildeo correspondia agravequela transmitida pelos seus antepassados e que natildeo
eram munidas de puacuteblico reconhecimento Todas as praacuteticas religiosas de caraacuteter privado
individuais ou enraizadas em certos grupos sociais como magos ou adivinhos eram dessa
forma rotuladas Religiotildees e cultos puacuteblicos estrangeiros ainda que constituiacutessem patrimocircnio
de um povo e fossem transmitidos desde os tempos mais antigos poderiam ser tachados de
superstitio237 Segundo Jossa238 exprime-se desse modo a diferenccedila instintiva dos ciacuterculos
romanos abastados de uma consciecircncia nacional diante das religiotildees estrangeiras para os
quais os cultos natildeo romanos eram ldquonatildeo religiotildeesrdquo ou seja apenas superstitiones Externa
superstitio vem a ser toda forma ou manifestaccedilatildeo religiosa que natildeo pertenccedila originalmente agrave
tradiccedilatildeo romana ou pelo menos ao puacuteblico reconhecimento e agrave apreciaccedilatildeo dos ritos e crenccedilas
religiosas da parte dos romanos
A partir de Cicero superstitio passa a indicar tambeacutem qualquer forma excesiva
fanaacutetica de religiosidade que se contrapunha agrave moderaccedilatildeo da religio aquela manifestaccedilatildeo
religiosa tiacutepica de uma alma deacutebil (imbecillis) ou velha (anilis) que derivam em particular de
uma anguacutestia inuacutetil e absurda dos deuses239 A superstitio natildeo eacute apenas diversa mas se opotildee
sendo uma corrupccedilatildeo da religio (De natura Deorum II72)
Diante da convicccedilatildeo dos romanos de serem muito religiosos entre todos os homens de
serem inclusive religiosamente superiores aos demais fica impliacutecito que toda e qualquer
religiatildeo estrangeira eacute excessiva ou fanaacutetica que todas as religiotildees estrangeiras satildeo tambeacutem
superstitio e assim toda externa superstitio eacute tambeacutem barbara superstitio no sentido
embrionaacuterio do termo pela falta de racionalidade e moderaccedilatildeo que sempre deixam a
desejar240
236 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 123 237 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 131-159 238 Op Cit p 115 239 Ciacutecero De natura Deorum I117 Cf SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 240 JANSEN L F Op cit pp 145
45
Como jaacute foi apontado anteriormente aleacutem do proacuteprio Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio
tambeacutem adjetivaram negativamente a superstitio cristatilde Taacutecito escreveu que os cristatildeos eram
mal vistos pelas suas flagitia e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero
humano] Flagitia por sinal que Pliacutenio natildeo detectou A crenccedila desse grupo eacute considerada
uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]241 Analisando as consideraccedilotildees de Taacutecito
nota-se que a provaacutevel ofensa que os cristatildeos causavam aos deuses combatendo-os com a
propagaccedilatildeo da sua mensagem evangeacutelica e com abstenccedilatildeo de participaccedilatildeo nas celebraccedilotildees
puacuteblicas responsabilizava-lhes pelo rompimento da pax deorum que havia fragilizado a
capital do Impeacuterio tornando-a vulneraacutevel a tamanha cataacutestrofe da eacutepoca de Nero Segundo L
F Jansen242 o odio humani generis visto por Taacutecito sobre os cristatildeos ndash como antes sobre os
judeus ndash era um elemento que condenava essa superstitionis novae ac maleficae como
escreveu Suetocircnio243 tornando-a exitiabilis No entanto apologistas como Justino244
sustentaram que as flagitia atribuiacutedas aos cristatildeos eram fruto de ldquocaluacuteniasrdquo o que natildeo
acarretaria isenccedilatildeo de serem relativamente enquadrados nos crimes de sacrilegium245 ou
maiestas
No entanto ao confirmar a accedilatildeo de Pliacutenio Trajano ratifica a condenaccedilatildeo do nomen
christianum Isso deve estar ligado ao fato de o governador do Ponto-Bitiacutenia ter confirmado
os resultados positivos desse tipo de condenaccedilatildeo que visava desestimular a aderecircncia ao grupo
cristatildeos garantindo a manutenccedilatildeo da religiatildeo tradicional a uma medida moderada que
impedisse falsas denuacutencias e o cometimento de injusticcedilas O que natildeo significa que Trajano
tenha empreendido uma poliacutetica de toleracircncia aos cristatildeos dificultando as denuacutencias como em
alguns momentos parece sugerir Pedro Barcelograve246
Euseacutebio247 explora o fato de Trajano ter determinado que os cristatildeos natildeo deveriam ser
buscados (conquirendi non sunt) para assim construir uma ldquotradiccedilatildeo favoraacutevelrdquo aos fieacuteis Ele
confirma que Trajano promulga um decreto para que os cristatildeos natildeo fossem perseguidos Tal
medida eacute interpretada como o fator importante para a reduccedilatildeo parcial da perseguiccedilatildeo naquela
241 Anais XV44 242 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 145 243 De Vita Caesarum Vita Neronis 162 244 II Apol 82 245 Este caso envolveria um crime especiacutefico contra o patrimocircnio religioso pagatildeo mas natildeo haacute sinais evidentes no na primeira metade do II seacuteculo cf ROBINSON OF The criminal Law of ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 passim 246 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim 247 Histoacuteria Eclesiaacutestica III231-3
46
eacutepoca Mas essas vantagens que Euseacutebio vecirc na recomendaccedilatildeo de Trajano se reduzem ao fato
de ele natildeo admitir que os cristatildeos sejam levados em juiacutezo mediante denuacutencias anocircnimas
Mesmo assim os incocircmodos locais permaneceram Euseacutebio escreve ldquoAlgumas vezes eram as
populaccedilotildees outras as proacuteprias autoridades locais que preparavam os asseacutedios contra noacutes de
forma que ainda que sem perseguiccedilotildees manifestas acenderam-se focos parciais segundo as
proviacutenciasrdquo248 Por outro lado em grande medida influenciado por Meacuteliton de Sardes249 que
escreveu a Marco Aureacutelio Euseacutebio ratifica a tradiccedilatildeo cristatilde que destaca Nero e Domiciano
como grandes perseguidores da Igreja250 Eacute interessante a tradiccedilatildeo cristatilde relacionar as accedilotildees
anticristatildes a ldquomaus imperadoresrdquo Com isso tenta-se reproduzir a ideia de que perseguir os
cristatildeos eacute seguir os passos de tiranos Todavia quando se procuram as raiacutezes das hostilidades
imperiais com os cristatildeos faz-se necessaacuterio ter em mente que por vaacuterias regiotildees do Impeacuterio os
atritos envolvendo o combate aos cristatildeos emergem do processo de expansatildeo da comunicaccedilatildeo
da mensagem apelativa cristatilde e das transformaccedilotildees reivindicadas e provocadas por ela nas
tradiccedilotildees e no comportamento das pessoas
Desse modo deixando de lado a hipoacutetese de Marta Sordi251 sobre um senatus
consultum na eacutepoca de Tibeacuterio que teria desaprovado o reconhecimento de Cristo a
contragosto do Imperador eacute preciso lidar com o institutum neronianum252 tambeacutem
mencionado por Tertuliano como a primeira hostilidade incisiva do Impeacuterio contra os
cristatildeos Mas esta peculiar expressatildeo empregada por Tertuliano natildeo se refere a uma lei e sim
a uma accedilatildeo de Nero E a accedilatildeo de Nero neste caso teria interesses particulares e usa os cristatildeos
como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo Mesmo que as flagitia cristatildes se fundamentem em caluacutenias
originaacuterias dos atritos populares a superstitio cristatilde natildeo poderia representar algo aceitaacutevel aos
olhos dos romanos devido ao seu caraacuteter exclusivista e seu desprezo pela vida puacuteblica ligada agrave
religiatildeo tradicional Em defesa dos cristatildeos poucos anos mais tarde Justino escreveu ldquoEsta eacute
a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo
oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos sepulcros nem
celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo (I Apol 242) Aleacutem disso seria uma incriacutevel contradiccedilatildeo
sustentar que existia uma lei geral em vigor que determinava a pena capital para os cristatildeos e
248 Hist EclesIII232 249 ldquoEntre todos somente Nero e Domiciano persuadidos por alguns homens maleacutevolos quiseram caluniar nossa doutrina e acontece que deles derivou por costume irracional a mentira caluniosa contra tais pessoasrdquo (apud Euseacutebio Hist EclesIV239) 250 Hist Ecles III171 201-9 221-8 251 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968 252 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4
47
ser necessaacuterio admitir que Trajano recomenda que os cristatildeos natildeo sejam perseguidos e que
apenas os casos mais precisos sejam examinados
A resposta de Trajano alegando ldquonatildeo eacute possiacutevel constituir por assim dizer algo
universal que possua forma fixardquo253 pode servir como evidecircncia de que natildeo existia uma lei
geral para julgar os cristatildeos Todavia Roman254 considera que a foacutermula neque enin
universum deve ser relativizada em funccedilatildeo de um marco geograacutefico concreto o da proviacutencia
Ponto-Bitiacutenia e em relaccedilatildeo agrave diversidade de status juriacutedico e de situaccedilotildees existentes nessa
regiatildeo que motivam a correspondecircncia entre Pliacutenio e o Imperador Um exemplo dessa
preocupaccedilatildeo aparece quando se fala da constituiccedilatildeo de um evranouj (sociedade de seguros
muacutetuos) em Amisos255 Trajano desaprovando a ideia responde
Se as leis de Amisos de acordo com as obrigaccedilotildees do tratado lhe datildeo direito a ter uma associaccedilatildeo de seguros muacutetuos natildeo podemos proibir que a tenham tanto mais se tal sociedade natildeo procede a organizar tumultos e reuniotildees iliacutecitas senatildeo para sustentar os mais pobres Nas cidades restantes que estatildeo submetidas a nosso direito praacuteticas desse tipo devem ser proibidas []256
Roman257 estaacute correto em considerar que Trajano potildee em praacutetica um tipo de
disposiccedilatildeo que tende a fazer frente aos problemas sociais provinciais que encontram uma
ampla expressatildeo na formaccedilatildeo de heterias Esta poliacutetica encontra uma limitaccedilatildeo na situaccedilatildeo da
proviacutencia Ponto-Bitiacutenia com a existecircncia de cidades livres e federadas que se autorregulam
Poreacutem a hipoacutetese de Roman apresenta limitaccedilotildees Ele considera que tal poliacutetica
administrativa com respeito aos cristatildeos constituiria uma exceccedilatildeo em suas disposiccedilotildees sobre
as associaccedilotildees no Ponto-Bitiacutenia Esta exceccedilatildeo natildeo se explica em funccedilatildeo da diversidade de
status juriacutedico das cidades existentes nessa proviacutencia mas estaacute relacionada ao caraacuteter peculiar
das reuniotildees das comunidades cristatildes que natildeo consistiam um perigo ao Impeacuterio Roman segue
a hipoacutetese de De Robertis258 e chega a alegar que as reuniotildees cristatildes eram consideradas licita
A proposiccedilatildeo de Roman falha basicamente em natildeo compreender que a aprovaccedilatildeo por
parte de Trajano dos atos de execuccedilatildeo da pena capital sobre os cristatildeos desempenhada por
Pliacutenio estaacute diametralmente oposta a uma hipoteacutetica licenccedila agrave religiatildeo cristatilde O que descarta
qualquer vestiacutegio de simpatia romana pelos cristatildeos Aleacutem disso Pliacutenio havia informado ao
imperador que os cristatildeos haviam deixado de se reunir tendo em vista as disposiccedilotildees do edito
253 neque enim in universum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest (Ep X98) 254 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 233-234 255 Ep X92 256 Pliacutenio Ep X94 257 Op cit pp 233-234 258 ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89
48
recente Quando Trajano aponta que seria inadequado estabelecer uma norma fixa para julgar
os cristatildeos ele estaacute se referindo agraves interrogaccedilotildees levantadas por Pliacutenio questionando sobre a
necessidade de se fazer distinccedilatildeo entre jovens e idosos satildeos e doentes romanos e natildeo
romanos Desse modo o imperador estaacute de acordo que o magistrado use de seus poderes
constituiacutedos para fazer as distinccedilotildees necessaacuterias sem que se fixe uma norma universal
Giorgio Jossa259 faz uma siacutentese das teorias baacutesicas sobre as accedilotildees anticristatildes no
periacuteodo de Trajano e desenvolve uma avaliaccedilatildeo que tem em vista a complexidade da situaccedilatildeo
poliacutetica da religiatildeo cristatilde e da peculiaridade do procedimento criminal do direito romano Esta
explicaccedilatildeo comporta certa mescla de todas as trecircs hipoacuteteses aceitaacuteveis Assim Jossa considera
que o cristianismo representa antes de tudo um problema de ordem puacuteblica que dependia em
parte da sensibilidade dos magistrados por meio do uso da ius coertionis num momento onde
jaacute existia uma legislaccedilatildeo especiacutefica contra os cristatildeos e onde o nomen christianum carregava
subentendido os crimes de sacrilegium e maiesta Exceto pela sua insistecircncia em admitir que
havia uma lei especiacutefica contra os cristatildeos sua anaacutelise torna-se proveitosa em funccedilatildeo de sua
sensibilidade agrave questatildeo da ordem puacuteblica enviesada nesse dilema juriacutedico Se o nomen
christianum carregava subentendido crimes comuns eles se manifestam com a pressatildeo civil
procurando expelir esse corpo estranho da sociedade pagatilde e obriga os magistrados a
procurarem um enquadramento que ratifique a condenaccedilatildeo daquilo que para muitos do povo
estava evidente que os cristatildeos deviam ser condenados
Em siacutentese eacute mais prudente admitir que as condenaccedilotildees de outrora sobre os cristatildeos
davam margem para que os magistrados em outras regiotildees do Impeacuterio eventualmente
condenassem os cristatildeos que lhes fossem entregues normalmente devido a atritos populares
Isso justificaria a incerteza de Pliacutenio em condenar os cristatildeos Eacute o uso de se condenar os
cristatildeos em decorrecircncia desde a eacutepoca de Nero da opiniatildeo puacuteblica somada agrave imagem
negativa que a classe culta tinha desses religiosos que atribui flagitia aos fieacuteis tornando o
nomen christianum razatildeo de condenaccedilatildeo Algo que eacute negado pelos apologistas com
veemecircncia no II seacuteculo e que seraacute avaliado por Adriano subsequentemente a Trajano
259 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125
49
22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano
A Histoacuteria Augusta (51) aponta que Adriano foi um imperador dedicado agrave
manutenccedilatildeo da paz no mundo mas tatildeo logo as revoltas estouraram em regiotildees variadas Os
samaritanos se envolveram em guerra os britacircnicos davam sinais de que natildeo permaneceriam
sob o domiacutenio romano o Egito foi jogado em desordem por distuacuterbios e finalmente a Liacutebia e
a Palestina mostraram espiacuterito de rebeliatildeo
Nos anos 130 e 131 Adriano partiu para o Oriente No plano das suas reformas estava
a revitalizaccedilatildeo da cidade de Jerusaleacutem que havia sido destruiacuteda na guerra judaica de 66 a 73
Natildeo eacute agrave toa que ficou reconhecido como promotor da vida urbana no Impeacuterio valorizando as
obras puacuteblicas (aacutegoras templos teatros anfiteatros aquedutos portos ou estradas) Os
investimentos na Judeia faziam parte de sua estrateacutegia de integraccedilatildeo e romanizaccedilatildeo
Os judeus sofreram em muitos aspectos os efeitos das transformaccedilotildees culturais Mas a
introduccedilatildeo de elementos estrangeiros e a construccedilatildeo de um templo a Juacutepiter na cidade sagrada
gerou protestos260 A proibiccedilatildeo da circuncisatildeo261 contribuiu para acirrar os acircnimos revoltosos
No entanto segundo a anaacutelise de J M C Copete262 se esse foi o estopim da guerra as causas
que levaram o povo judeu e alguns outros provincianos a lutar natildeo poderiam estar apenas na
devoccedilatildeo ao seu Deus tradicional Yahveacute A insensatez romana em ignorar os problemas
estruturais da regiatildeo tais como a pobreza endecircmica reinante e as proacuteprias rivalidades entre
sacerdotes e rabinos na regiatildeo proporcionaram as condiccedilotildees para esse movimento que se
levantou como uma ameaccedila agrave ordem
Euseacutebio escreve que
Rufo governador da Judeacuteia com o reforccedilo militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade marchou contra eles Aniquilou em massa milhares de homens de crianccedilas e de mulheres e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territoacuterios agrave escravidatildeo Mandava entatildeo sobre os judeus um chamado Bar Kosibas que significa ldquofilho da estrela263
A religiatildeo dos judeus era o elemento fundamental de sua identidade Havia interaccedilatildeo
com os demais povos do Impeacuterio mas qualquer tipo de resistecircncia em funccedilatildeo dessa
260 Cassius Dio His Rom 121-3 261 Hist Aug 142 262 Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 263 His Ecles IV61-2
50
identidade poderia deixar as autoridades romanas ressabiadas Taacutecito264 fala da diferenccedila de
ambos os mundos O judaiacutesmo parecia-lhe uma supersticcedilatildeo absurda soacuterdida e depravada que
gerava costumes contraacuterios aos dos outros povos A abstenccedilatildeo do culto ao imperador por parte
dos judeus poderia simbolizar sua rejeiccedilatildeo ao Impeacuterio e agrave cultura greco-romana mas natildeo se
deve pensar que os judeus estavam blindados agrave cultura helecircnica e que as oligarquias judaicas
se isolassem dos negoacutecios com as demais proviacutencias do Impeacuterio265
Uma das preocupaccedilotildees de Justino em sua I Apologia eacute deixar claro que os judeus
haviam se tornado os principais opositores dos cristatildeos e que muitos foram vitimados por Bar
Kosiba que os mandava ldquosubmeter a terriacuteveis torturasrdquo266 Natildeo haacute certeza sobre as razotildees
dessa oposiccedilatildeo e se ela diferia da rivalidade entre judeus e cristatildeos constatada no I seacuteculo
Todavia aleacutem desse tipo de accedilatildeo anticristatilde haacute indiacutecios de que os tribunais locais recebessem
queixas sobre os cristatildeos e um nuacutemero significativo de fieacuteis era levado agrave morte Tal como a feacute
dos judeus a religiatildeo dos cristatildeos era considerada uma superstitio reprovaacutevel que apresentava
resistecircncia agrave vida puacuteblica no Impeacuterio ou seja que natildeo se envolviam em teatros jogos e todo
tipo de reverecircncias aos deuses pagatildeos Para evitar quaisquer duacutevidas quanto agrave identidade entre
cristatildeos e judeus o apologista faz essa interpolaccedilatildeo
Em funccedilatildeo das condenaccedilotildees sofridas pelos cristatildeos durante o governo de Adriano
Quadrato e Aristides escreveram-lhe apologias267 Se a teoria de Paul Andriessen268 for
tomada por certa e a Carta a Diogneto for reconhecida como a apologia perdida de Quadrato
reconhecer-se-aacute a disposiccedilatildeo tanto nesse escrito quanto na Apologia de Aristides em
apresentar algumas das principais distinccedilotildees entre as crenccedilas dos cristatildeos dos judeus e dos
pagatildeos A principal queixa na Carta a Diogneto leva a crer que o ldquonomerdquo cristatildeo era um
elemento chave para a condenaccedilatildeo269 Sua queixa faz pensar que as variaccedilotildees nos julgamentos
nos tribunais locais pudessem proporcionar um destino distinto aos cristatildeos ldquoPor isso
condeno tambeacutem as vossas leis Deveria haver uma soacute constituiccedilatildeo poliacutetica comum para
todos agora haacute tantas legislaccedilotildees quantas cidades existem e assim acontece que o que entre
uns eacute vergonhoso entre outros eacute tido por honrosordquo270
264 Taacutecito Historia V 3-6 Cf Strabatildeo Geografia XVI237 Quintiliano Institutio Oratoria II7 Juvenal Satiras III 13-6 VI 541-7 96-106 Plutarco De Superstitione 8 Cassius Dio Hist Rom 37174 265 Josefo Antiguidades Judaicas XVIII 23 Guerras dos Judeus II118 266 I Apol 316 267 Euseacutebio His Ecles IV31-3 268 Lrsquoapologie de Quadratus conserve sous le nom drsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedievale 13 1946 pp 5-260 Id Lrsquoepilogue de lrsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedieacutevale 14 1947 pp 121-156 269 Carta a Diogneto 271ss 270 Carta a Diogneto 281ss
51
O rescrito de Adriano ao prococircnsul da Aacutesia a partir de 124125 dC Minuacutecio
Fundano oferece uma ideia sobre sua forma de lidar com os cristatildeos O texto foi conservado
na Apologia de Justino (I Apol 68) no texto de Euseacutebio271 e por Rufino na versatildeo latina
Adriano havia recebido a carta de Serecircncio Graniano272 antecessor de Minuacutecio e julgou ser
importante responder essa demanda a fim de ldquoevitar que se perturbem os homens e que os
delatores encontrem apoio para suas maldadesrdquo273 Adriano recomenda que
se os provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo que respondam a ela diante do tribunal deveratildeo ater-se a esse procedimento e natildeo a meras peticcedilotildees e gritarias Com efeito eacute muito mais conveniente que se algueacutem pretende fazer uma acusaccedilatildeo examines tu o assunto Em conclusatildeo se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delito Mas por Heacutercules se a acusaccedilatildeo eacute caluniosa castiga-o com maior severidade e cuida para que natildeo fique impune (I Apol 688-10)
As interpretaccedilotildees desse rescrito satildeo divergentes Em uma primeira linha interpretativa
representada por exemplo por B Orgeval H Gregoire L Regibus e M Sordi274 acredita-se
que esse rescrito assegurou a liberdade de algum tipo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos por
professarem sua religiatildeo e providenciou que fossem punidos apenas por crimes cometidos
contra as leis comuns Representantes de outro ponto de vista como C Callewaerd J Moreau
e W Schimid275 sustentam que o rescrito natildeo concede aos cristatildeos nenhuma liberdade
O rescrito foi lido por Justino de um modo favoraacutevel aos cristatildeos como se de fato o
Imperador tivesse agido decididamente a favor dos cristatildeos A esse documento fez alusatildeo
Meliton bispo de Sardes276 Euseacutebio agiu de modo semelhante em sua proacutepria leitura do
rescrito de Trajano e seguiu a Justino em sua interpretaccedilatildeo do rescrito de Adriano No entanto
como mostrou Paul Kereszts277 a interpretaccedilatildeo do apologista difere do sentido original do
rescrito Segundo a interpretaccedilatildeo de Justino Adriano teria proibido que os cristatildeos fossem
271 His Ecles IV 9 272 O nome correto eacute Q Licinio Silvano Graniano cocircnsul a partir de 106 dC e pro-cocircnsul da Aacutesia a paritir de 122123 dC MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 132 273 I Apol 687 Eus Hist Ecles IV9 274 ORGEVAL B LEmpereur Hadrien oeuvre leacutegislative et administrative ParisGrenoble Domat MontchrestienImpr De Allier 1950 pp 302-307 GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 pp 138-139 REGIBUS L de Storia e Diritto Romano negli Acta Martyrum Didascalos 1926 pp 147-148 SORDI M I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349 275 CALLEWAERT C Le Rescrit dHadrien a Minucius Fundanus Reviste dHistoire et de Litterature 6l 8 1903 pp 152-189 MOREAU J La Persecution du Christianism e dans lEmpire Romain Paris Presses Universitaires de France 1956 p 48 SCHIMID W The Christian Re-Interpretation of the Rescript of Hadrian Maia 71955 pp 5-13 276 Euseacutebio Hist EclesIV 2610 277 Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129
52
punidos simplesmente mediante a confissatildeo de que eram ldquocristatildeosrdquo e teriam recomendado
que fossem julgados pelos crimes como quaisquer outros e natildeo por suas crenccedilas
Segundo C G Roman278 a postura de Adriano em advertir a Minuacutecio Fundano a nada
julgar sem denuacutencia e acusaccedilatildeo formal contra os cristatildeos dava continuidade agrave poliacutetica de
Trajano Tomando essa perspectiva como exemplo deve-se destacar que a interpretaccedilatildeo do
rescrito de Adriano dependeraacute significativamente da interpretaccedilatildeo do rescrito de Trajano e
talvez deva remontar ateacute um pouco antes Roman interpretou as recomendaccedilotildees deste uacuteltimo
como sendo positivas para com os cristatildeos e sua tendecircncia eacute reconhecer o aprimoramento das
limitaccedilotildees das accedilotildees anticristatildes
J Beaujeu279 considera que Adriano procedeu a uma grande obra de restauraccedilatildeo
religiosa que obedecia aleacutem das necessidades religiosas a objetivos poliacuteticos agrave medida que
tendia a uma unificaccedilatildeo religiosa das distintas proviacutencias do Impeacuterio debaixo da eacutegide dos
cultos Greco-romanos mediante a criaccedilatildeo de uma religiatildeo do Estado siacutentese destes uacuteltimos
cultos com as religiotildees orientais com a originalidade dos diversos grupos sociais e eacutetnicos
que formavam o Impeacuterio
De fato Adriano foi um imperador interessado em conhecer a cultura do vasto
Impeacuterio Por volta do ano de 124 iniciou-se nos misteacuterios Eleusis importante oraacuteculo do
mundo grego revelando um interesse miacutestico que acabou por conduzi-lo tambeacutem ao
conhecimento misterioso da religiatildeo egiacutepcia Os cultos tradicionais de Roma natildeo receberam
menor atenccedilatildeo certamente para manter uma relaccedilatildeo amistosa com os integrantes do universo
senatorial Construiu um templo a Venus em Roma no Foro Romano no ano de 121 e mandou
reconstruir o Panteatildeo de Marco Agripa um dos mais importantes colaboradores de
Augusto280 No entanto isso natildeo permite ver em seu rescrito uma accedilatildeo proacute-cristatilde que
estivesse em consonacircncia com a ideia sustentada por Marta Sordi281 de que Adriano teve em
mente reconhecer a Cristo entre os outros deuses e lhe oferecer um templo conforme anota a
Histoacuteria Augusta (Alexandre Severus 436-7) Essa passagem se assemelha agrave lenda de que
antes de propor a construir a cidade de Elia Adriano havia empreendido um projeto de
reconstruccedilatildeo conjunta do templo de Jerusaleacutem com os judeus mas a oposiccedilatildeo dos samaritanos
278 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 230 279 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp150ss 280 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 43 281 I Cristiani e Lrsquoimpero Romano Ed rev e atual Milano Jaca Book 2011 p 98
53
fez com que os planos sofressem mudanccedilas draacutesticas282 Esse tipo de tendecircncia pode chegar a
ponto de admitir como sustentou T Mommsem283 que Adriano estava proacuteximo a elevar a feacute
cristatilde a uma religio licita
As comparaccedilotildees entre as accedilotildees de Trajano e Adriano satildeo muito importantes para o
desenvolvimento de uma teoria coerente que explique a condiccedilatildeo dos cristatildeos nesse iniacutecio do
II seacuteculo todavia natildeo eacute necessaacuterio admitir nenhuma continuidade entre ambos em razatildeo dos
rescritos G Jossa284 alerta que os rescritos natildeo satildeo ldquoleisrdquo mas recomendaccedilotildees a governantes
locais e nem um desses imperadores estabeleceu normas gerais sobre o julgamento dos
cristatildeos
Como foi visto anteriormente ao responder a demanda de Pliacutenio Trajano admitiu o
procedimento daquele governador em condenar os cristatildeos mediante a confissatildeo
recomendaccedilatildeo que fazia pressupor que o nomen christianum representava a razatildeo da
condenaccedilatildeo que visava desestimular a adesatildeo e expansatildeo dessa superstitio Naquela ocasiatildeo o
imperador fez questatildeo de lembrar que as denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas Pouco
tempo depois Adriano precisa admoestar os governantes da Aacutesia Menor a natildeo serem movidos
por ldquomeras peticcedilotildees e gritariasrdquo285 A condenaccedilatildeo aos cristatildeos provocou abusos nas
condenaccedilotildees Se bastasse estender o dedo para algueacutem e acusaacute-lo de cristianismo para
conseguir sua condenaccedilatildeo essa seria uma forma eficaz de eliminar qualquer pessoa
indesejada ainda que ela natildeo fosse cristatilde Adriano entatildeo reconhece que a questatildeo levantada
por Graniano natildeo poderia ficar sem resposta pois os efeitos da desordem seriam extensos
Embora a carta de Graniano natildeo tenha sido preservada eacute possiacutevel deduzir que se o imperador
recomenda a condenaccedilatildeo dos ldquomaleacutevolosrdquo delatores dos cristatildeos que indevidamente os
caluniavam visando agrave puniccedilatildeo isso significa que esse tipo de episoacutedio jaacute havia sido
constatado naquela regiatildeo Nenhuma norma universal eacute estabelecida ou mencionada O
governador eacute designado como o responsaacutevel por examinar as denuacutencias formais e averiguar os
casos
Fica evidenciada a obrigaccedilatildeo por parte de quem realiza a denuacutencia de apresentar ele
mesmo provas sobre seu testemunho diferenciando-se um pouco da medida de Trajano
segundo a qual o governador deveria se responsabilizar pela investigaccedilatildeo O castigo aos falsos
282 Midash Berersquoshit Babba 6410 e Epiacutestola de Barnabeacute 163-4 apud COPETE J M C Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII CONGRESSO INTERNACIONAL GIREA-ARYS IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 283 Der religonsfrevel nach der roumlmischen Recht Historische Zeitschrift 64 1890 pp 389-429 284 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125 285 I Apol 688
54
acusadores era praacutetica usual no direito romano286 Neste ponto surge a seguinte questatildeo Os
acusadores deveriam provar que os cristatildeos por eles acusados cometiam a infraccedilatildeo de serem
ldquocristatildeosrdquo ou que infringiam outras leis comuns subentendidas pelo seu nomen
A expressatildeo287 ei tij ou=n kathgorei kai deiknusi ti para touj nomouj prattontaj(
ou[twj Diorixw kata thn Dunamin tou a`marthmatoj( [ se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e
demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade
do delito ] (I Apol 6810) eacute entendida de modo positivo ou negativo dependendo da corrente
de interpretaccedilatildeo No entanto o proacuteprio rescrito tem algo a dizer em um delineamento mais
claro sobre essa questatildeo A especificaccedilatildeo de que os acusadores deveriam demonstrar que os
cristatildeos acusados agiam contra as leis [touj nomoj prattontaj] eacute uma medida para evitar as
sukofantiaj [caluacutenias] Por isso ele recomenda que Minuacutecio Fundano examine os casos e ldquose
a acusaccedilatildeo eacute caluniosa [castigue-o]288 com maior severidade e [cuide]289 para que natildeo fique
impunerdquo (I Apol 6810)
Uma nova questatildeo incide sobre o significado dessa acusaccedilatildeo ldquocaluniosardquo Justino
interpretou esse trecho como as acusaccedilotildees que maculavam injustamente a imagem dos
cristatildeos atribuindo-lhes canibalismo ateiacutesmo maiestas ou outras coisas desse tipo Segundo
esse tipo de interpretaccedilatildeo Adriano estaria reprovando a condenaccedilatildeo pelo nomen christianum
e recomendando que os governantes examinassem se existia de fato algum crime contra as
leis Ateacute esse ponto essa medida natildeo significaria nenhuma benevolecircncia para com os cristatildeos
apenas garantiria que fossem julgados como quaisquer outros no Impeacuterio sem que os
magistrados fossem movidos por gritarias puacuteblicas mas que se detivessem aos processos
formais Todavia uma segunda hipoacutetese eacute cogitada
Nessa hipoacutetese as acusaccedilotildees ldquocaluniosasrdquo agraves quais Adriano se refere poderiam natildeo ser
do mesmo tipo das que Justino tinha em mente em suas Apologias Elas poderiam se referir agrave
proacutepria acusaccedilatildeo de cristianismo lanccedilada sobre algueacutem com o intuito de levaacute-lo agrave condenaccedilatildeo
sob uma lei especiacutefica contra os cristatildeos Nessa perspectiva a exigecircncia de Adriano para que
se examinasse a comprovaccedilatildeo da denuacutencia seria uma medida semelhante agravequela tomada por
Pliacutenio exigindo que os acusados sacrificassem aos deuses e amaldiccediloassem a Cristo para que
assim se pudesse verificar se eram realmente cristatildeos A diferenccedila eacute que natildeo eacute possiacutevel
286 ROBINSON O F The criminal Law of ancient Rome Baltimore John Hopkins University Press 1996 pp 8100 287 O rescrito em latim que Euseacutebio dizia ter sido anexado originalmente por Justino foi substituiacutedo no MS Par Grae 450 pela traduccedilatildeo grega de Euseacutebio (MINNS D PARVIS P Justin philosopher and martyr apologies New York Oxford University Press 2009 p 265) 288 Adaptaccedilatildeo de ldquocastiga-ordquo para melhor leitura da frase 289 Originalmente ldquocuidardquo
55
conferir a carta de Graniano para fazer algum tipo de comparaccedilatildeo Desse modo natildeo haveria
nenhuma diferenccedila entre a posiccedilatildeo de Trajano e Adriano exceto a recomendaccedilatildeo desse uacuteltimo
para que os caluniadores fossem punidos Para sustentar essa teoria poreacutem torna-se
necessaacuterio admitir que o rescrito de Adriano foi sutilmente modificado pelos cristatildeos para
convertecirc-lo a favor da feacute cristatilde Se por um lado eacute faacutecil supor a modificaccedilatildeo desse documento
ndash o que poderia ter ocorrido ateacute em funccedilatildeo da sua traduccedilatildeo do latim para o grego ndash por outro
lado natildeo haacute outro documento desse tipo que comprove tal adulteraccedilatildeo e nem mesmo que
ratifique uma accedilatildeo intolerante de Adriano para com os cristatildeos Outra hipoacutetese deve ser
examinada e agora deveraacute levar em consideraccedilatildeo as leis agraves quais o rescrito se refere
No texto grego de Euseacutebio que agora aparece na I Apologia de Justino conforme o
MS A a conjugaccedilatildeo no particiacutepio plural presente ativo masculino do verbo prattontaj estaacute
relacionada agrave frase anterior Aproximando as frases o sentido que se tem eacute o seguinte ldquose os
provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo
que respondam a ela diante do tribunal [] faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam
alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delitordquo290 O texto
latino de Rufino eacute mais especiacutefico com essa associaccedilatildeo Si quis igitur accusat et probat
adversum leges quicquam agere memoratos homines pro merito peccatorum etiam suplicia
statues291 Nesse caso memoratos homines [homens mencionados] eacute uma expliacutecita referecircncia
aos Christianos Todavia tanto C Munier292 quanto D Minns e P Parvis293 ignoram a
palavra memoratos294 traduzindo o texto como se o rescrito se referisse ao modo geral de se
proceder em um julgamento ou seja a todos os homens cujos crimes fossem confirmados
Essa hipoacutetese forccedila o texto pois neste caso uma norma geral faria com que qualquer denuacutencia
precisasse ser provada pelo delator sob o risco de ser punido severamente caso natildeo fosse
confirmada pelas autoridades Desse modo esse tipo de sustentaccedilatildeo se converte em absurdo
Admitir que Adriano estivesse realmente orientando Minuacutecio Fundano a julgar
pessoalmente as denuacutencias contra os cristatildeos e exigir provas dos delatores que confirmassem
o descumprimento das leis natildeo significa que o imperador demonstrava simpatia pelo
cristianismo Sua preocupaccedilatildeo eacute manter a ordem e evitar os abusos Era preciso impedir que
290 I Apol 688-10 291 Apud MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 133 292 Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 pp 314-317 293 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 44264-267 294 Participio plural passado perfeito masculino acusativo que significa ldquotrazido agrave lembranccedilardquo ldquoditordquo ldquomencionadordquo ldquorelacionadordquo etc LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project)
56
as manifestaccedilotildees puacuteblicas solapassem o procedimento correto dos tribunais Haacute sim uma
diferenccedila significativa entre a postura de Trajano e a de Adriano mas ela natildeo torna o segundo
um amigo ou inimigo dos cristatildeos Cabe lembrar que uma das questotildees levantadas por Pliacutenio
a Trajano era se os cristatildeos deveriam ser punidos pela confissatildeo desse nome ou pelos crimes
subentendidos Naquele caso especiacutefico da Bitiacutenia uma das infraccedilotildees era quando os cristatildeos
se reuniam em seus cultos passar por cima da lei que impedia as reuniotildees e associaccedilotildees
gerais Abandonada essa praacutetica o governador natildeo via nenhum crime ou ameaccedila no modo de
ser dos cristatildeos e natildeo encontrou outra razatildeo para puni-los senatildeo pela contumaacutecia que
apresentavam diante de um magistrado em natildeo negar a feacute que era estranha aos olhos de Pliacutenio
A resposta de Trajano ainda que lacocircnica ratificou o procedimento de Pliacutenio e mesmo sem se
identificar um ldquocrimerdquo especiacutefico aprovou a condenaccedilatildeo dos cristatildeos pelo seu nomen para
desestimular a superstitio estranha e incentivar a retomada do culto puacuteblico pagatildeo Adriano
por outro lado tambeacutem sem fazer referecircncia a qualquer lei especiacutefica contra os cristatildeos
orienta os governantes a condenarem a todos aqueles que comprovadamente estivessem
infringindo a lei Tudo indica que a Aacutesia estava sendo agitada por mobilizaccedilotildees puacuteblicas que
impeliam os magistrados contra os cristatildeos Essa eacute a razatildeo para os apologistas Quadrato e
Aristides escreverem tambeacutem O nuacutemero dos cristatildeos ainda natildeo era muito significativo para o
estabelecimento de uma lei geral
Conforme destacou Jossa295 os cristatildeos se confrontavam com a opiniatildeo puacuteblica
Dentre o povo emergiram acusaccedilotildees de incesto infanticiacutedio e outras coisas do gecircnero A
rejeiccedilatildeo aos deuses e o estranhamento ao mos romanorum e o seu odio humanum generis
faziam com que os cristatildeos se tornassem a causa das desgraccedilas no Impeacuterio diante dos olhos de
uma boa parte dos pagatildeos No periacuteodo de Adriano a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos era apenas uma
questatildeo de ordem puacuteblica que constrangia o governo romano a uma difiacutecil obra de mediaccedilatildeo
entre os vaacuterios grupos locais Era um aspecto da poliacutetica de pacificaccedilatildeo das proviacutencias A sua
preocupaccedilatildeo estaacute relacionada exclusivamente a manter a ordem puacuteblica nas proviacutencias e a
garantir a observacircncia rigorosa do direito296 A hostilidade aos cristatildeos e os crescentes
confrontos obrigavam os governadores a intervirem e a consultarem o imperador em casos
como esse em que as coisas ameaccedilavam sair do controle
295 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125132 296 Na Digesta XXII53 o jurista Callistrato se reporta a uma seacuterie de rescritos dos quais cinco satildeo de Adriano a governadores das proviacutencias sobre o modo como escutar os textos nos processos e sobre o valor de dar a eles testemunho cf tambeacutem Dig XLVIII27
57
As respostas de Trajano e Adriano mostram que a repressatildeo puramente local do
cristianismo tinha um caraacuteter descontiacutenuo e excepcional que natildeo impedia a nova religiatildeo de
estender-se pelo Impeacuterio fazendo novos adeptos
23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos
Durante o governo de Antonino Pio (governou de 138-161) os tribunais continuavam
a receber queixas esporaacutedicas da populaccedilatildeo sobre os cristatildeos Marco Aureacutelio297 reconheceu
seu conservadorismo e o descreveu como algueacutem profundamente devoto aos deuses
romanos298 e sempre atento ao cumprimento do proacuteprio dever no culto puacuteblico
Segundo Meacuteliton que escreveu nos tempos de Marco Aureacutelio Antonino Pio natildeo
empreendeu nenhuma modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo que viesse a abater a Igreja e que
repetidamente nos rescritos dirigidos aos tessalonicenses aos atenienses e a todos os gregos
recomendou ldquonatildeo inovar nada sobre os cristatildeosrdquo299
Na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio (IV13) aparece um rescrito de Antonino ao
conselho da Aacutesia Satildeo levantados alguns argumentos contra a autenticidade desse documento
Destacam-se principalmente os erros de titulaccedilatildeo Tambeacutem se alega que suas caracteriacutesticas
formais natildeo sejam proacuteprias dos escritos de Antonino Pio Aleacutem disso o documento apresenta
uma exaltaccedilatildeo ao cristianismo Isso faz com que alguns rejeitem total300 ou parcialmente301
esse documento No entanto as condiccedilotildees da eacutepoca corroboram com a ideia de que o
imperador tenha de fato deliberado sobre essa questatildeo e J Beaujeu302 natildeo vecirc nenhuma razatildeo
para duvidar da existecircncia de um rescrito de Antonino Pio G Jossa303 e C G Roman304
297 Pensamentos I16 298 Marco Aureacutelio Pensamentos VI3014 299 apud Euseacutebio His EclesIV2610 300 Cf SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 1954 pp 190ss SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 301 Cf FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 302 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp 279-329 303 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 148 304 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 228
58
admitem-no com reservas e P Keresztes305 sustenta que por haver um comentaacuterio tanto
negativo quanto positivo sobre os cristatildeos natildeo deveria se tratar de uma falsificaccedilatildeo O modo
como tal texto foi preservado na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio eacute controverso e merece um
exame cauteloso
Pela sequecircncia do texto entende-se que Euseacutebio falaraacute de Antonino Pio Ele anuncia o
nome de Antonino que tambeacutem foi uma forma de se referir a Marco Aureacutelio mas comeccedila a
citaccedilatildeo do texto com ldquoO imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto Armecircnio
pontiacutefice maacuteximo tribuno da plebe pela deacutecima quinta vez cocircnsul por trecircs vezes ao conciacutelio
da Aacutesia saudaccedilotildeesrdquo306 A secccedilatildeo de IV82-5 apresenta um comentaacuterio que dificilmente
poderia ser admitido como autecircntico por isso esta eacute a parte que sofre maior oposiccedilatildeo Trata-se
de uma repreensatildeo moral do imperador aos provincianos O nuacutecleo seguinte do texto agraves vezes
eacute admitido como histoacuterico como sustenta C G Roman307 Lecirc-se
Em favor destes jaacute escreveram a nosso diviniacutessimo pai muitos governadores das proviacutencias aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados a natildeo ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder puacuteblico de Roma Tambeacutem a mim muitos me falaram sobre eles e tambeacutem respondi seguindo o parecer de meu pai Mas se algueacutem persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles fique o acusado livre de encargos ainda que seja evidente que eacute cristatildeo por outro lado o acusador ficaraacute sujeito a castigo Publicado em Eacutefeso no concilio da Aacutesia (Hist Ecles IV136-7)308
O contexto e as evidecircncias internas mostram que o rescrito pretende ser de Antonino
Pio Em siacutentese o texto afirma que sob seu governo natildeo se modificou em nada o que foi
estabelecido por Adriano A liberaccedilatildeo de um cristatildeo acusado em funccedilatildeo da denuacutencia de outro
cristatildeo que insiste em levaacute-lo ao tribunal natildeo faz muito sentido Pode-se imaginar que
desavenccedilas entre cristatildeos fizessem com que um cristatildeo procurasse se livrar do seu adversaacuterio
denunciando-o agraves autoridades para que fosse condenado mas eacute inimaginaacutevel que essa fosse
uma preocupaccedilatildeo de um imperador pagatildeo Eacute provaacutevel tenha sofrido uma adaptaccedilatildeo cristatilde
Mesmo despertando ceticismo sobre sua autenticidade esse rescrito pode traduzir com
reservas a situaccedilatildeo dos cristatildeos daquela eacutepoca Neste caso a compreensatildeo da condiccedilatildeo dos
cristatildeos nesse periacuteodo depende em parte da compreensatildeo da postura de Adriano diante dos
cristatildeos Euseacutebio havia interpretado o rescrito de Adriano como uma medida que beneficiava
os fieacuteis e consequentemente vecirc como positivo o rescrito de Antonino Pio No entanto
consideram as conclusotildees especificadas sobre o rescrito de Adriano nesta pesquisa se Pio natildeo
305 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 306 Euseacutebio Hist Ecles IV131 307 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 230-231 308 Ibid
59
adicionou em nada agravequela determinaccedilatildeo os cristatildeos continuavam a serem viacutetimas de
condenaccedilotildees locais e os governantes tinham liberdade para julgar cada caso
Nesse periacuteodo ocorre o martiacuterio do Papa Teleacutesforo e o processo contra Tolomeu e
Luacutecio sob o prefeito de Roma Lollio Urbico mencionados na II Apologia de Justino (21ss)
O repuacutedio da novidade e irracionalidade da feacute dos cristatildeos aparece nos escritos de Eacutelio
Aristides309 e nas vozes populares inferiores referidas por Luciano (De morte Peregrini 11)
Sobre o martiacuterio de Policarpo haacute divergecircncias Jossa310 sustenta que ele padeceu sob Marco
Aureacutelio mas o tipo de perseguiccedilatildeo recebida natildeo foi diferente daquela pela qual padeceram os
cristatildeos condenados sob Antonino Pio Tumultos e agitaccedilotildees puacuteblicas foram problemas que
Adriano havia procurado resolver
As acusaccedilotildees de ldquoateiacutesmordquo sofridas pelos cristatildeos que aparecem na primeira parte do
rescrito satildeo pertinentes ao periacuteodo311 Esse tipo de acusaccedilatildeo levou o proacuteprio Justino a incluir
esse tema nas suas Apologias312 Eacute certo como destaca Keresztes313 que ldquoateiacutesmordquo natildeo era
um crime de fato E em segundo lugar diante das cataacutestrofes aqueles que professavam
orgulhosamente a inexistecircncia dos deuses pagatildeos tornavam-se a explicaccedilatildeo mais provaacutevel
para o distuacuterbio da pax deorum314 Haacute indiacutecios no rescrito de Antonino que esse temor dos
pagatildeos diante das forccedilas da natureza tambeacutem corroborava com o combate aos cristatildeos315
A principal queixa de Justino na deacutecada de 150 dC era a de que natildeo seria justo
algueacutem ser condenado simplesmente por professar ser ldquocristatildeordquo316 O apologista tece sua
reivindicaccedilatildeo considerando o que pensa ser ldquojustordquo e assim tambeacutem apresenta uma peticcedilatildeo
309 Aristides (Orationes XLVI309) fala dos cristatildeos como ldquoos iacutempios da Palestinardquo que se distanciavam dos costumes gregos e natildeo honravam os deuses 310 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125132 311 ldquoA estes estais empurrando para a agitaccedilatildeo uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateusrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV133) 312 I62 313 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 p 17 314 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam e comparais nossa situaccedilatildeo agrave suardquo (Hist Ecles IV134) [Os seguintes infortuacutenios e prodiacutegios ocorridos em seu reino a fome a qual jaacute mencionamos o colapso do Circus e o terremoto por meio do qual as cidades de Rodes e da Aacutesia foram destruiacutedas] Adversa eius temporibus haec provenerunt fames de qua diximus Circi ruina terrae motus quo Rhodiorum et Asiae oppida conciderunt quae omnia mirifice instauravit et Romae incendium quod trecentas quadraginta insulas vel domos absumpsit (Hist Aug Vita Antoninus IX1) Dion Cassius escreveu que ldquoNos dias de Antonino tambeacutem um terriacutevel terremoto ocorreu na regiatildeo da Bitinia e de Helesponto Vaacuterias cidades foram severamente danificadas ou caiacuteram em ruiacutenas em particular Cizicus e o templo de laacute que era o maior e mais belo de todos os templo foi lanccedilado abaixordquo (Hist Rom LXX 4) Ἐπὶ τοῦ Ἀντωνίνου λέγεται καὶ φοβερώτατος περὶ τὰ microέρη τῆς Βιθυνίας καὶ τοῦ Ἑλλησπόντου σεισmicroὸς γενέσθαι καὶ ἄλλας τε πόλεις καmicroεῖν ἰσχυρῶς καὶ πεσεῖν ὁλοσχερῶς καὶ ἐξαιρέτως τὴν Κύζικον καὶ τὸν ἐν αὐτῇ ναὸν microέγιστόν τε καὶ κάλλιστον ναῶν ἁπάντων καταρριφῆναι 315 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegamrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV134) 316 I Apol 41-7
60
reinterpretando o rescrito de Adriano317 Desse modo em exigecircncia mediante o que chama de
ldquosatilde razatildeordquo ele sustenta ser justo que os cristatildeos sejam julgados quando porventura vierem a
cometer alguma falta contra a lei ou por algum delito mas nunca por se chamarem ldquocristatildeosrdquo
Eacute em funccedilatildeo do que representava ser ldquocristatildeordquo que o apologista se dedica a algumas
explicaccedilotildees Em sua anaacutelise era por causa do preconceito das crenccedilas pagatildes dos boatos
maliciosos e ainda por certo impulso irracional por parte dos ldquooutrosrdquo que os cristatildeos eram
ofendidos318 O caso de uma mulher que se divorciou do marido pagatildeo narrado na II Apologia
eacute outro exemplo dos atritos corriqueiros que poderiam chegar aos tribunais Segundo o
apologista ldquotodo aquele que eacute repreendido pelo pai vizinho filho amigo marido ou mulher
por causa de uma falta se volta contra [os cristatildeos] por sua obstinaccedilatildeo no mal por seu amor
ao prazer e por sua impotecircncia para seguir o que eacute bomrdquo319 Aleacutem desse caso emblemaacutetico
acontecido havia pouco tempo na cidade de Roma sob Urbico320 ele acrescenta que tais accedilotildees
tambeacutem eram comuns aos governadores em todo o Impeacuterio e que ldquoem todas as partesrdquo havia
quem estivesse disposto a levar os seguidores de Cristo agrave morte321 Em ambas as Apologias
Justino escreve como quem procura alertar o imperador sobre os abusos cometidos contra os
cristatildeos Devido agrave ausecircncia de uma lei geral contra os fieacuteis as accedilotildees anticristatildes aparecem
como fruto dos distuacuterbios locais que emergiam em resistecircncia agrave nova religiatildeo A I Apologia
parece se referir aos atritos gerais contra os cristatildeos enquanto a segunda comeccedila com um
clamor a partir de um caso especiacutefico ocorrido em Roma sob o prefeito Urbico A II Apologia
daacute sinais de que as disputas de Justino com Crescente na capital imperial levavam o
apologista a prever o seu martiacuterio que soacute viria a acontecer no iniacutecio do governo de Marco
Aureacutelio
Marta Sordi322 assim como Robert M Grant323 identifica trecircs fases na poliacutetica
imperial de Marco Aureacutelio mas as duas uacuteltimas extrapolam o contexto em que se insere
Justino A primeira fase se relaciona ao periacuteodo da corregecircncia entre Marco Aureacutelio e Lucio
Vero de 161 a 169 que corresponde em parte aos uacuteltimos anos de Justino Esta fase revela a
princiacutepio a mesma condiccedilatildeo do governo de Antonino Pio mas pode ter sofrido mudanccedilas no
final da deacutecada
317 I Apol 681-10 318 I Apol 23 319 II 12 320 Quintus Lollius Urbicus havia sido incumbido por Adriano na Guerra Judaica (133-135 dC) governou a Germania Menor (136-138 dC) e a Britania (139-142 dC) e foi prefeito de Roma de 146 a 160 dC (Historiae Augustae 54) 321 II 11-2 322 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103 323 Five apologists and Marcus Aurelius Vigiliae Christianae V 42 n 1 Mar1988 pp 1-17
61
Algumas fontes cristatildes (Atas do martiacuterio de Justino 58324 Oroacutesio Historiae Adversus
PaganusVII154325) vinculam a intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo a um edito sobre sacrifiacutecios
Natildeo se tratava de um decreto diretamente contra os cristatildeos A determinaccedilatildeo exigia sacrifiacutecios
aos deuses por todas as cidades do Impeacuterio nos anos de 166168 e devia estar relacionada aos
temores devido agrave peste agrave guerra na Partia e agrave pressatildeo germacircnica326 Justino foi provavelmente
condenado por se negar a obedecer ao novo decreto mas suas Apologias refletem a situaccedilatildeo
dos cristatildeos sob Antonino Pio
Por meio de uma leitura do seu tempo Justino contemplaraacute em seu discurso os
fundamentos desse tipo de accedilotildees Ele apresenta uma desconstruccedilatildeo da forma de controle que
proporciona agreccedilotildees aos cristatildeos e entatildeo oferece uma concepccedilatildeo cristatilde para fundamentar o
estabelecimento da ordem social
O apologista compotildee uma argumentaccedilatildeo para mostrar que a religiatildeo cristatilde poderia
contribuir para a estabilidade da ordem social no Impeacuterio e oferece uma reflexatildeo sobre os
fundamentos da noccedilatildeo de justiccedila na perspectiva cristatilde Por meio do exame do discurso de
Justino identificam-se dois aspectos da relaccedilatildeo entre religiatildeo e controle social no Impeacuterio
Romano contemplados nas accedilotildees anticristatildes de seu tempo O primeiro eacute representado na sua
anaacutelise da repressatildeo aos cristatildeos em funccedilatildeo da preservaccedilatildeo da ordem e o segundo na sua
proposta de contribuiccedilatildeo dos cristatildeos para a manutenccedilatildeo da ordem
324 ldquoAqueles que natildeo desejarem sacrificarem aos deuses e se submeterem ao decreto imperial satildeo condenados primeiro a serem castigados e depois agrave pena capital conforme a leirdquo (Tr A) kai ei=xai tw| tou auvtokragmati( mastigwqevtej avpacqhtwsan( kefalikhn avpotinnuntej dikhn( kata thn twn nomwn avkoluqian) cf Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 p152 325 Eo defuncto Marcus Antoninus solus reipublicae praefuit sed in diebus Parthici belli persecutiones Christianorum quarta iam post Neronem uice in Asia et in Gallia graues praecepto eius exstiterunt multique sanctorum martyrio coronati sunt Cf OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889 326 SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103
62
CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE
MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM
Ao escrever suas Apologias em defesa dos cristatildeos e endereccedilaacute-las ao imperador
Justino se posiciona tanto como um profeta da antiga monarquia de Israel quanto como um
filoacutesofo conselheiro que se prontifica a oferecer conselhos ao governante Eacute possiacutevel
estabelecer uma analogia entre essas duas posturas nesse caso pois para esse pensador o
cristianismo ndash que em certo sentido eacute para os cristatildeos o cumprimento das expectativas de
Israel ndash eacute a ldquoverdadeira filosofiardquo327 Eacute a partir dessa sua perspectiva cristatilde que ele analisa a
forma romana de garantir o estabelecimento da ordem no tocante agrave religiatildeo e que manifesta
suas razotildees para se opor agrave religiatildeo pagatilde
Sua construccedilatildeo apologeacutetica contrasta tal forma de controle romana que acaba por
vitimar os cristatildeos agrave contribuiccedilatildeo cristatilde para a ordem social Seus pronunciamentos agraves vezes
satildeo muito diretos aos governantes ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem
e natildeo tenhais a quem castigar coisa que conviria melhor a verdugos do que a priacutencipes
bonsrdquo328 Na verdade o problema central incide sobre as formas de controle sociais
empregadas para a repressatildeo da expansatildeo dessa nova religiatildeo Por isso os argumentos de
Justino tecircm por objetivo combater algumas das principais queixas sobre os cristatildeos e tambeacutem
informar sobre o caraacuteter de suas crenccedilas e estilo de vida
Nessa parte da pesquisa seraacute analisada a forma como o apologista tece suas criacuteticas ao
procedimento romano contra a religiatildeo cristatilde e agrave postura dos cristatildeos diante dessas outras
religiotildees A proposta de Justino sobre os fundamentos cristatildeos para o controle social seraacute
examinada no proacuteximo capiacutetulo Sua interrogaccedilatildeo eacute a mesma que ainda voltou agrave tona no
seacuteculo XX com G E M de Ste Croix329 em 1963 com A N Sherwin-White330 em 1964 e
com o proacuteprio Ste Croix331 em uma treacuteplica ldquoWhy were the Early Christians persecutedrdquo
Segundo GEM de Ste Croix as perseguiccedilotildees aos cristatildeos eram decorrentes
basicamente da recusa desse grupo em reconhecer os deuses de Roma acarretando uma
situaccedilatildeo de suspeitas de sediccedilatildeo e periculosidade social Os deuses tradicionais do panteatildeo
greco-romano eram as divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma e seus cultos eram
327 II Apol 152 328 I Apol 124 329 Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p6-38 330 Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 331 Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 p28-33
63
uma necessidade para a manutenccedilatildeo da pax deorum [paz dos deuses]332 A perseguiccedilatildeo se
relacionaria ao sentimento religioso da eacutepoca supersticiosa na qual eles viviam333
A N Sherwin-White334 de modo diverso desviou a tocircnica da perseguiccedilatildeo da questatildeo
da pax deorum e lanccedilou seu olhar agrave contumaacutecia dos cristatildeos em se manterem fieacuteis agraves suas
crenccedilas exclusivistas diante do panteatildeo greco-romano Tal postura teria sido interpretada em
muitos momentos como um desafio agraves autoridades romanas Desse modo atrairiam para si
mesmos acusaccedilotildees e suspeitas em decorrecircncia de sua potencial insubordinaccedilatildeo conforme
pode ser visto nas Cartas de Pliacutenio o Jovem a Trajano335
A treacuteplica de GEM Ste Croix336 natildeo colocou um ponto-final na questatildeo e
incomodou a outros estudiosos contemporacircneos Segundo Paul Veyne as comunidades cristatildes
enfrentaram resistecircncias devido agrave aversatildeo romana ldquoao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguordquo337
O fato de o grupo ser ainda pouco conhecido e sustentar a veneraccedilatildeo a um ldquoreirdquo na esperanccedila
de um reino torna a situaccedilatildeo ainda mais complicada Tal hibridez alegada seria notada tendo
em vista que embora possuindo as mesmas categorias de pensamentos dos demais cidadatildeos do
Impeacuterio Romano
os cristatildeos faziam parte do Impeacuterio mas sem os mesmos costumes evitavam conviver com os outros natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo veneravam os deuses nacionais seu Deus natildeo pertencia agrave determinada naccedilatildeo diferente do deus dos judeus Aleacutem de querer se isolar como uma legiacutetima diferenccedila nacional esse Deus pretendia superar os deuses nacionais338
Nesse sentido as perseguiccedilotildees teriam sido causadas pela rejeiccedilatildeo a algo pouco
definido anormal capaz de produzir inseguranccedilas e exigir uma medida cautelar E para
justificar as accedilotildees persecutoacuterias os romanos lanccedilavam matildeo de argumentos tradicionais como
o respeito ao mos maiorum [os costumes ancestrais] e o respeito agrave unidade religiosa e moral
da coletividade
Mesmo apresentando explicaccedilotildees diferentes sobre as perseguiccedilotildees as consideraccedilotildees
de Sherwin-White Ste Croix e Paul Veyne natildeo satildeo completamente opostas Se por um lado
observamos a posiccedilatildeo obstinada dos cristatildeos em manter a sua religiatildeo a ponto de se tornar
332 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p 24 333 Ibid 1963 pp 29-31 Cf DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963 334 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n 27 1964 pp 25 335 Pliacutenio Segundo Cartas X 96-97 336 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 337 VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 338 Ibid p 246
64
uma desobediecircncia contra as autoridades imperiais por outro a religiatildeo romana se baseava na
manutenccedilatildeo do equiliacutebrio das relaccedilotildees entre o Impeacuterio Romano e os deuses tradicionais
Essas explicaccedilotildees decorrem de uma anaacutelise geral das accedilotildees anticristatildes do I ao IV
seacuteculo Um exame mais localizado ndash e em niacuteveis menos oficiais ndash poderia multiplicar as
razotildees pelas quais os cristatildeos foram perseguidos ou chamar a atenccedilatildeo para o fator psicoloacutegico
desses atritos religiosos Essa pesquisa no entanto limitar-se aos aspectos que possibilitem
uma leitura das accedilotildees anticristatildes a partir das Apologias de Justino
O apologista tambeacutem se propotildee a responder a esta questatildeo ldquoPor que os cristatildeos satildeo
perseguidosrdquo Sua leitura teoloacutegica da histoacuteria procura chegar agrave causa uacuteltima motivadora das
accedilotildees anticristatildes desenvolvendo uma trama apologeacutetica que relaciona controle social e
religiatildeo Para compreender suas formulaccedilotildees conveacutem analisar esse conceito chave
ldquoControle socialrdquo pode ser definido como ldquoo conjunto dos recursos materiais e
simboacutelicos que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de
seus membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo339 O termo de
modo geral eacute frequentemente usado para se referir a alguma forma de reaccedilatildeo organizada ao
comportamento pervertido Essa abordagem eacute baseada o trabalho de Stan Cohen que definiu
controle social como ldquorespostas organizadas ao crime delinquecircncia e formas aliadas de
perversatildeo eou comportamento socialmente problemaacutetico os quais satildeo atualmente concebidos
se no reativo sentido (depois do putativo ato ter tomado espaccedilo ou o ator ter sido identificado)
ou no proativo sentido (para prever os atos)rdquo340
A definiccedilatildeo usada por Donald Black341 eacute muito semelhante Ele assinalou que
ldquocontrole social eacute o aspecto normativo da vida social ou a definiccedilatildeo de comportamento
pervertido e a resposta a ele tal como proibiccedilotildees acusaccedilotildees puniccedilotildees e compensaccedilatildeordquo
Segundo esta afirmaccedilatildeo controle social se refere aos mecanismos determinantes usados para
regular a conduta das pessoas que satildeo vistas como pervertidas criminosas preocupantes ou
problemaacuteticas em algum sentido para os outros Todo tempo os sentidos nos quais diferentes
culturas entendem e respondem a diferentes formas de mudanccedilas e ajustes de comportamentos
problemaacuteticos
A causa desses problemas pode ser atribuiacuteda agrave criminalidade perversatildeo imoralidade
maldade perversidade ou alguma combinaccedilatildeo desses Similarmente os mecanismos
empregados para alcanccedilar o controle podem incluir formas variadas de puniccedilatildeo tratamento
339 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 340 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 p 3 341 BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press 1976 pp 1-2
65
dissuasatildeo segregaccedilatildeo ou prevenccedilatildeo342 Desse modo se a combinaccedilatildeo de fatores eacute usada para
compreender e reatar o problema o objetivo eacute promulgar o controle sobre o comportamento
que eacute visto como pervertido em algum sentido
A complexidade do tema se manifesta ainda quando R Meier343 considera que
controle social pode ser encontrado em trecircs principais contextos a) como uma descriccedilatildeo da
condiccedilatildeo ou processo social baacutesico ndash definiccedilatildeo dominante na teoria socioloacutegica claacutessica ndash b)
como um mecanismo para assegurar o cumprimento das normas e c) como um meacutetodo pelo
qual estudar (ou interpretar dados sobre) a ordem social Cohen retoma Joseph Rouceck344
que escreveu em 1947 entendendo controle social como ldquoum termo coletivo para aqueles
processos planejados ou natildeo planejados pelos quais indiviacuteduos satildeo ensinados ou compelidos
a conformar os usos e valores vitais dos gruposrdquo E A Horwitz345 que considerava que o
ldquocontrole social emerge da vida e das praacuteticas sociais e serve para manter o sentido da vida e
das praacuteticas sociais dos gruposrdquo Muitos diriam que tal descriccedilatildeo se aproxima mais dos
processos de socializaccedilatildeo E natildeo eacute preciso ir muito longe para perceber que os dilemas desse
conceito podem vir a ser complexos Tatildeo logo manifesta-se a necessidade de estabeler os
limites desse termo de modo que natildeo seja tatildeo limitado e que tambeacutem natildeo seja tatildeo amplo a
ponto de natildeo ser reconhecido
Segundo a anaacutelise de Martin Innes346 a definiccedilatildeo de Cohen permanece muito flexiacutevel
para mostrar a promulgaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social pelo Estado ou por agentes
profissionais autocircnomos tais como funcionaacuterios de corporaccedilotildees privadas e psiquiatras As
pessoas tendem a usar outros meios antes de recorrer ao aparato formal estabelecido de
controle social subcolocados como satildeo pela lei Mais conflitos satildeo resolvidos sem recursos da
lei ou controle social formal Uma soluccedilatildeo eacute frequentemente negociada ou a perversatildeo
tolerada e a imposiccedilatildeo do controle social tende a ser uma funccedilatildeo de elevada distacircncia
relacional Por isso a extensatildeo do desempenho do controle social atinge tambeacutem um caraacuteter
informal na sociedade
A definiccedilatildeo de controle social como uma resposta organizada a comportamentos
pervertidos natildeo eacute consensual Mas na busca por uma definiccedilatildeo que se adapte aos objetivos
desse trabalho seratildeo levadas em consideraccedilatildeo as proposiccedilotildees de Martin Innes347 Ele sintetiza
342 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 passim 343 MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology 1982 8 pp 35ndash55 344 Social Control Westport CT Greenwood Press 1970 p 3 345 The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990 p 5 346 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 347 Ibid
66
os aspectos da definiccedilatildeo de Cohen em uma abordagem revisionista Seu argumento eacute que
controle social pode ser pensado como um conceito-mestre composto de uma raiz de
diferentes modos de controle e tecnologias
Para estabelecer os limites desse conceito de controle social tambeacutem eacute necessaacuterio
estabelecer conceitos paacutereos como ldquoordem socialrdquo Segundo Erwin Goffman348 as relaccedilotildees
regulares entre as pessoas os variados padrotildees de funcionamento variadamente motivados
de comportamento as rotinas associadas com regras baacutesicas juntos constituem o que pode ser
chamada de uma ldquoordem socialrdquo
Baseando-se nesta definiccedilatildeo pode-se distinguir entre o significado de ordem social e
controle social A promulgaccedilatildeo de controle social eacute frequentemente destinada a proteger a
ordem social mas ordem social natildeo eacute unicamente produto de controles sociais Ao contraacuterio
o conceito de ordem social se refere agraves condiccedilotildees de existecircncia de uma sociedade De fato
toda sociedade tem intrinsecamente um grau de organizaccedilatildeo e entatildeo uma ordem social Uma
ordem social natildeo eacute estaacutetica estaacute constantemente em processo sendo produzida e reproduzida
pela combinaccedilatildeo de atitudes valores praacuteticas instituiccedilotildees e accedilotildees de seus membros
Entatildeo a ordem social eacute composta de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees
as quais de alguma forma contribuem para a constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social As
fronteiras entre as praacuteticas de organizaccedilatildeo social e controles sociais natildeo satildeo fixas nem
estaacuteveis e ao longo do tempo mudam de equiliacutebrio Pois se ordem social se refere ao estado
da sociedade e ao arranjo organizado de seu essencial conhecimento valores accedilotildees
instituiccedilotildees e estabelecimentos controle social se refere aos processos pelos quais se busca
gerir desvios ou conflitos com a ordem social Essas formas de gerenciamento podem ser
formais ou seja institucionalizadas ou informais
Controle social formal se refere a alguma ocasiatildeo onde a imposiccedilatildeo do controle eacute
baseada sobre ou informada por a presenccedila da lei Outras atividades de controle podem ser
definidas como tipo informal349 Dentre essas formas de controle tambeacutem eacute possiacutevel distinguir
os modos reativos e os proativos O primeiro tipo eacute aquele usado para responder algumas
coisas depois que elas tecircm tomado espaccedilo O segundo envolve o caacutelculo da probabilidade de
um ato ocorrer no mesmo ponto no futuro e a manufatura de alguma forma de intervenccedilatildeo em
antecipaccedilatildeo deste Essa eacute uma forma preditiva de controle Tambeacutem eacute possiacutevel distinguir entre
formas de controle social ldquoverticalrdquo para falar sobre o poder diferencial que frequentemente
existe entre controladores e os controlados Controle social para baixo eacute mais comum
348 GOFFMAN E Relations in Public New York Basic Books 1971 p x 349 Cf BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press passim
67
envolvendo alguns com mais poder ou autoridade de regulaccedilatildeo do comportamento de
indiviacuteduos ou grupos menores Contudo o controle social tambeacutem pode ser ldquoupwardsrdquo [para
cima] envolvendo os menos poderosos moldando o comportamento de indiviacuteduos ou grupos
mais poderosos
Eacute numa perspectiva ldquode baixo para cimardquo que Justino questiona a forma de controle
empreendida pelos governantes romanos quando agem contra os cristatildeos Essa perspectiva
contempla as condiccedilotildees do grupo minoritaacuterio daqueles que satildeo considerados adeptos de uma
superstito digna de ser combatida por aqueles que detecircm os meios de controle e dessa forma
eacute produzido um instrumento de controle que busca ldquoconvencerrdquo e intimidar as autoridades e a
todos os demias a natildeo se oporem aos cristatildeos Embora reconheccedila que os governantes satildeo
constituiacutedos por Deus eacute aquilo que ele chama de ldquoreta razatildeordquo que lhe daacute o direito de se
pronunciar350 As autoridades romanas soacute satildeo buscadas porque os conflitos cotidianos quanto
agraves diferenccedilas religiosas produziram atritos e inquietaccedilotildees que abriram margem para que os
romanos aplicassem coaccedilotildees ldquoformaisrdquo Ao questionar a intervenccedilatildeo imperial para a
manutenccedilatildeo da ordem o apologista revela refugiar-se em um padratildeo de justiccedila distinto
daquele dos romanos Em seus escritos ele tambeacutem manifesta uma perspectiva cristatilde da
ordem que seraacute analisada no proacuteximo capiacutetulo
Para se compreender as proposiccedilotildees de Justino seratildeo examinados os seguintes
aspectos a criacutetica aos governantes no processo de manutenccedilatildeo da ordem no tocante aos
cristatildeos as diferenccedilas entre os cristatildeos e as outras religiotildees e sua criacutetica sobre as leis e a
moralidade
31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem
Na I Apologia logo apoacutes o exoacuterdio Justino procura justificar suas razotildees agraves
autoridades agraves quais se refere em peticcedilatildeo Ele escreve que
todo homem sensato manifestaraacute que a melhor exigecircncia ou ainda mais que a uacutenica exigecircncia justa eacute que os suacuteditos possam apresentar uma vida e um pensar irrepreensiacuteveis e que por outro lado igualmente os mandantes deem sua sentenccedila
350 ldquoA razatildeo exige dos que satildeo verdadeiramente piedosos e filoacutesofos que desprezando as opiniotildees dos antigos se estas satildeo maacutes estimem e amem apenas a verdade De fato o raciociacutenio sensato natildeo soacute exige que se abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente mas tambeacutem que o amante da verdade de todos os modos e acima da proacutepria vida mesmo que seja ameaccedilado de morte deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiccedilardquo (I Apol 12)
68
natildeo levados pela violecircncia e tirania mas segundo a piedade e a filosofia Soacute assim governantes e governados podem gozar de felicidade351
O bom procedimento dos suacuteditos conjugado agrave postura iacutentegra de justiccedila daqueles que
tecircm autoridade aparece como condiccedilatildeo para que ldquogovernantesrdquo e ldquogovernadosrdquo desfrutem da
felicidade O que mais chama atenccedilatildeo eacute a seguinte expressatildeo ldquoem algum lugar um dos
antigos disse lsquoSe os governantes e os governados natildeo forem filoacutesofos natildeo eacute possiacutevel os
Estados prosperaremrsquordquo352 Tanto Munier353 quanto Minns e Parvis354 identificam esse trecho
como uma citaccedilatildeo de Platatildeo (Repuacuteblica V 473) Na obra de Platatildeo fica claro o apontamento
da necessidade de que os governantes adiram ao cultivo da sabedoria numa junccedilatildeo de
δύναmicroίς τε πολιτικὴ καὶ φιλοσοφία [poder poliacutetico e filosofia] para que natildeo haja problemas
sociais
Justino ressignifica o conceito de ldquofilosofiardquo a partir da sua experiecircncia cristatilde Desse
modo aqueles que satildeo ldquopiedosos e filoacutesofosrdquo como satildeo chamados o imperador e seus filhos
deveriam julgar com retidatildeo para que todos gozem de bem estar
Haacute vaacuterias hipoacuteteses para justificar o tiacutetulo ldquoPiordquo de Antonino Uma hipoacutetese eacute que esse
nome lhe fora dado por ter defendido a deificaccedilatildeo dedicaccedilatildeo de um templo e concessatildeo de
inuacutemeras honras a Adriano Outras hipoacuteteses levam em conta seu caraacuteter e sua maneira de
ser355 ldquoVerissimusrdquo356 era uma denominaccedilatildeo de Marco Annio Vero que viria a ser o
Imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto O modo como esse apelido eacute empregado
no texto indica provavelmente uma estrateacutegia retoacuterica de Justino Marco era
reconhecidamente chamado de ldquofiloacutesofordquo357 Seus proacuteprios escritos eliminam qualquer
indagaccedilatildeo Poreacutem quando Luacutecio eacute chamado de ldquofiloacutesofordquo isso pode soar estranho Mas antes
de se rejeitar esse tiacutetulo eacute mais prudente tentar compreender se existe uma ligaccedilatildeo isotoacutepica
com a estrutura do texto Se os tiacutetulos ldquoPiordquo e ldquofiloacutesofordquo respectivamente de Antonino e de
Marco Aureacutelio apresentam um forte viacutenculo com a construccedilatildeo do cerne da obra haacute boa razatildeo 351 I Apol 32 Cf Kalhn de kai monhn dikaian proltsgtklhsin tauthn paj o` swfronwn avpofaneitai( to touj avrcomenouj thn euvqunhn tou eautwn biou kai logou alhpton parecein( o`moiwj drsquoauv kai touj arxontaj mh bia| mhde turannidi( avllrsquo euvsebeia| kai filosofia| avkolouqountaj thn yhfon tiqesqai ou[twj gar avrcontej kai oi` avrcomenoi avpolauoien tou avgaqou) MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 352 I Apol 33 Cf An mh oi` arcontej filosofhswsi [kai oi` avrcomenoi]( ouvk av eih taj poleij euvdaimonhsai) Cf MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 353 MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p 172 354 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 85 355 Hist Aug Antoninus Pius 21-10 356 Ele foi carinhosamente chamado ldquoVeriacutessimordquo [Ouvrissiacutemon] como apontou Cassius Dio (Hist Rom 69212) e como aparece tambeacutem na Hist Aug I41 357 Hist Aug Marcus Aurelius 15-9
69
para buscar uma hipoacutetese que aluda agrave possiacutevel relaccedilatildeo do tiacutetulo de Luacutecio com o restante do
texto
Luacutecio foi adotado por Antonino ao mesmo tempo em que Marco e se tornou Luacutecio
Aeacutelio Aureacutelio Commodo Com a morte de seu pai adotivo recebeu o tiacutetulo de Imperador
Ceacutesar como esse seu irmatildeo mas a dimensatildeo do seu poder eacute amplamente questionada Minns e
Parvis358 consideram que nos tempos de sua ldquosaiacutedardquo para as regiotildees do Impeacuterio em 153 ou
154 poderia ser mais prudente incluiacute-lo entre os destinataacuterios Ele eacute chamado de ldquofiloacutesofo
[filosofw|] filho natural de Ceacutesarrdquo no MS A e de filosofou kaisaroj fush| ui`w| [Filho
natural do filoacutesofo Ceacutesar] por Euseacutebio359 Esse tiacutetulo natildeo poderia ser atribuiacutedo ao pai
bioloacutegico de Luacutecio Segundo os registros da Historia Augusta seu pai Luacutecio Aeacutelio Vero
recebeu realmente o tiacutetulo de Ceacutesar do Imperador Adriano mas morreu sem chegar ao posto
elevado Por outro lado haacute evidecircncias suficientes para Justino chamar a Luacutecio filho natural
de Ceacutesar e filho de Pio por adoccedilatildeo de ldquoamante do saberrdquo o que equivaleria a dizer que tinha
uma formaccedilatildeo baacutesica
O tiacutetulo ldquofiloacutesofordquo natildeo se referia a apenas um exiacutemio pensador O filoacutesofo podia ser
algueacutem que se dedicava aos assuntos filosoacuteficos que frequentava alguma escola ou grupo de
discussatildeo ou algueacutem de reconhecido destaque intelectual podendo ser considerado ateacute um
embaixador em assuntos poliacuteticos360 Luacutecio poreacutem natildeo apresentou dons naturais para os
estudos literaacuterios Compocircs versos e oraccedilotildees mas suas habilidades poeacuteticas eram muito
limitadas Haacute quem diga que ele foi ajudado pela inteligecircncia de seus amigos e que muitas das
coisas creditadas a ele foram escritas por outros361 A despeito de Luacutecio ser ndash ou natildeo ndash
reconhecidamente um filoacutesofo essa denominaccedilatildeo podia render uma associaccedilatildeo desses nomes
ao cultivo do saber em geral e da piedade Se por outro lado o tiacutetulo de filoacutesofo viesse a ser
improacuteprio comparado agrave pertinecircncia da forma como Marco Aureacutelio eacute chamado abre-se espaccedilo
para uma nova hipoacutetese Seria esta uma estrateacutegia para chamar a atenccedilatildeo para as proacuteximas
colocaccedilotildees quando o apologista destaca aqueles que dizem ser filoacutesofos e natildeo o satildeo Mais do
que isso o apologista precisa de um elemento que viabilize a abertura de um espaccedilo textual
para a apresentaccedilatildeo do que ele considera ldquoa verdadeira filosofiardquo isto eacute o cristianismo
358 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 38-39 359 Hist Ecle IV121ss 360 DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940 361 Hist Aug Lucius Verus 21ss
70
Justino conheceu vaacuterias correntes filosoacuteficas Uma variedade de escolas poderia ser
encontrada pelo Impeacuterio Euseacutebio362 o chamou de ldquoamante da verdadeira filosofiardquo No
Diaacutelogo com Trifatildeo363 a filosofia eacute por ele reconhecida como ldquoo maior e mais precioso bem
diante de Deus para o qual somente ela conduz e nos associardquo Esses ensinamentos satildeo
considerados ldquosuperiores a toda filosofia humanardquo364 e reconhecidos como ldquoa filosofia segura
e proveitosardquo365 Dessa forma o pensamento cristatildeo eacute revestido de uma aacuteurea de
superioridade capaz de fundamentar sua teoria e sua criacutetica ao modo romano de repelir os
fieacuteis
Em sua leitura teoloacutegica da histoacuteria e dos problemas religiosos do seu tempo o
apologista procura a razatildeo uacuteltima que fundamenta a accedilatildeo humana para aquilo que eacute ldquobomrdquo e
para as accedilotildees de oposiccedilatildeo agrave feacute Eacute trabalhoso encontrar uma definiccedilatildeo para o que eacute ser ldquobomrdquo
segundo seu modo de pensar Sabe-se poreacutem que os cristatildeos satildeo tidos como os que buscam
aquilo que eacute ldquobomrdquo e que por isso natildeo haacute nenhuma razatildeo para persegui-los Aquilo que eacute
ldquobomrdquo pode ser experimentado de forma parcial por aqueles que natildeo satildeo cristatildeos mas essa
experiecircncia deriva de uma mesma fonte coacutesmica da ldquobondaderdquo Por isso ele sustenta que tudo
o que pode ser chamado ldquobomrdquo entre os filoacutesofos e legisladores elaborado por eles mediante
a investigaccedilatildeo e a instituiccedilatildeo foi comunicado pela parcela do Logos que lhes coube De outro
modo Justino afirma que por natildeo conhecerem plenamente o Logos que eacute Cristo eles
frequentemente se contradizem Em seu ponto de vista outrora muitos pensadores que
tentaram investigar e demonstrar as coisas por meio dessa ldquorazatildeordquo tambeacutem foram levados ao
tribunal como Soacutecrates
Em oposiccedilatildeo ao que eacute ldquobomrdquo uma forccedila oposta aparece como a propiciadora do
engano Eacute esse o elemento uacuteltimo responsaacutevel pelo desvirtuamento da sintonia com aquilo
que eacute ldquobomrdquo e que promove as accedilotildees ldquoinjustasrdquo das autoridades Ele escreve ldquoVoacutes poreacutem
natildeo examinais nossos juiacutezos mas movidos de paixatildeo irracional e aguilhoados por democircnios
perversos nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por issordquo366
Segundo sua teoria satildeo os democircnios os uacuteltimos responsaacuteveis por espalhar a ignoracircncia e
mover as autoridades contra os cristatildeos
Sob essa perspectiva ele destaca a transparecircncia cristatilde e a disposiccedilatildeo paciacutefica desse
grupo diante da autoridade imperial ao dever dos governantes
362 Hist Ecles IV83 363 Diaacutelogo com Trifatildeo 21 364 II Apol 153 365 Diaacutelogo com Trifatildeo 81 366 I Apol 51
71
Cabe a noacutes portanto expor ao exame de todos a nossa vida e os nossos ensinamentos para que natildeo nos tornemos responsaacuteveis pelo castigo daqueles que ignorando a nossa religiatildeo pecam por cegueira contra noacutes Contudo o vosso dever eacute tambeacutem ouvir-nos e mostrar-vos bons juiacutezes Com efeito daqui para frente informados como estais caso natildeo ajais com justiccedila natildeo tereis nenhuma desculpa diante de Deus367
A lealdade dos cristatildeos natildeo era algo evidente e por isso eacute uma das principais
preocupaccedilotildees do apologista ratificaacute-la Justino assinala que havia suposiccedilotildees inclusive de
que os cristatildeos arquitetavam algum tipo de irrupccedilatildeo de outro ldquoreinordquo quando de fato falavam
do ldquoreino de Deusrdquo em todos os seus aspectos espirituais (I Apol 111) A nova religiatildeo jaacute se
espalhava pelo Impeacuterio havia um seacuteculo mas eacute provaacutevel que natildeo tivesse alcanccedilado um
nuacutemero expressivo de fieacuteis Aleacutem disso ainda natildeo existia uma estrutura eclesiaacutestica bem
formada O marcionistas os valentinianos e outros grupos tornavam a questatildeo da identidade
cristatilde um assunto das apologias justinianas e de outros escritores e pregadores que pretendiam
definir quem eram os ldquocristatildeosrdquo
32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus
Na verdade o exclusivismo caracteriacutestico do monoteiacutesmo cristatildeo contrastava com a
religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio As accedilotildees importantes do Estado sempre envolviam rituais
sagrados Comemoraccedilotildees de vitoacuterias e triunfos do exeacutercito normalmente culminavam em
procissotildees e sacrifiacutecios E a proacutepria estabilidade social dependia de uma barganha feita com
os deuses para a manutenccedilatildeo da paz368
Os variados rituais produziam interaccedilotildees entre deuses e homens na religiatildeo romana
Por meio deles eram marcados todos os eventos puacuteblicos e celebraccedilotildees que envolviam
festivais anuais os juramentos ou aniversaacuterios das fundaccedilotildees de templos Tambeacutem podiam
estar relacionados aos jogos ou agraves performances dramaacuteticas que tinham elementos rituais em
seu programa ainda que incluiacutessem o entretenimento entre seus propoacutesitos Os jogos jamais
perderam seu aspecto ritual Cria-se que nessas ocasiotildees os deuses desciam para assisti-los e
entatildeo eram realizados rituais religiosos inclusive representados perfeitamente para que a
cerimocircnia fosse bem sucedida De modo geral tambeacutem os sacrifiacutecios eram feitos estritamente
367 I Apol 34 368 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35
72
segundo regras e tradiccedilotildees que necessariamente tinham de ser respeitadas369 Os prodiacutegios
envolviam quase todos os grupos de influecircncia nas decisotildees estatais ndash os coleacutegios sacerdotais
o senado os magistrados e ocasionalmente o povo nas comitia370
A criaccedilatildeo de novos lugares sagrados sejam templos propriamente ditos ou santuaacuterios
com um altar era tema de interesse puacuteblico e conflito potencial371 Alguns templos eram fruto
de promessas de generais em batalhas Com o tempo expandiram-se pelo espaccedilo urbano
representando uma imagem visiacutevel do domiacutenio romano sobre o Mediterracircneo e assinalando a
contribuiccedilatildeo de novos e antigos deuses em cada estaacutegio dessa conquista
Os rituais religiosos estavam intimamente ligados agraves demais atividades de guerra e
paz Desse modo a aprovaccedilatildeo de uma lei ou a eleiccedilatildeo de magistrado eram atos que envolviam
a tomada dos augures responsaacuteveis pelo sistema especial de regras que os controlavam o ius
augurale372 Os limites dessa religiosidade natildeo satildeo muito bem definidos Mas tanto o povo
quanto os magistrados demonstravam respeito pelas obrigaccedilotildees religiosas
A religiatildeo e os deuses estavam entre os fatores importantes na determinaccedilatildeo dos
eventos e na garantia de suas reivindicaccedilotildees de autoridade e comando dos agentes puacuteblicos
romanos Era tambeacutem uma das expressotildees da ideologia da elite romana e da manutenccedilatildeo do
poder E ainda como escreve Claudia B Rosa
ao mesmo tempo eram os rituais que garantiam as relaccedilotildees entre dois grupos homens e deuses Garantir os ritos representava a certeza da manutenccedilatildeo da sociedade como a queriam ordenada e segura Ao registrar as regras de comportamento como o respeito aos deuses sobretudo em seus espaccedilos ao curvar-se sob a autoridade dos rituais o cidadatildeo garantia a ordem social e a pax deorum e as praacuteticas que acarretavam a transgressatildeo agrave ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e agrave desagregaccedilatildeo A concoacuterdia entre homens e deuses eacute a garantia da ordem romana373
No I seacuteculo aC Augusto se tornou membro de todos os coleacutegios sacerdotais
assumindo o papel de pontifex maximus liderando os demais sacerdotes Se esta interpretaccedilatildeo
for correta ela representa a nova e revolucionaacuteria ordem religiosa do periacuteodo imperial e todos
os seus sucessores foram tambeacutem pontifices maximus ateacute o seacuteculo IV aC Desde entatildeo o
imperador se via responsaacutevel pela construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de templos O poder religioso e o
poder poliacutetico se assentaram sobre um mesmo indiviacuteduo no novo regime do Impeacuterio374
369 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 370 Assembleia dos cidadatildeos romanos 371 ROSA Claudia Beltratildeo Op cit p 144 Ciacutecero indica duas ocasiotildees em que tentativas de dedicaccedilotildees foram canceladas pelos pontiacutefices porque natildeo haviam sido aprovadas pelos comitia (De domo sua 136) 372 LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 1986 pp 2146-312 373 ROSA C B Op cit p 145-146 374 Ibid p 147
73
Conforme escreveu Paul Veyne375 ldquoO Estado com certeza exercia sua autoridade sobre os
cidadatildeos que lhe deviam tudo Mas mesmo assim apenas em circunstacircncias excepcionais
um decreto obrigaria cada cidadatildeo a tomar parte numa cerimocircnia puacuteblica []rdquo Devia-se no
entanto zelar pela pax deorum para a prosperidade e seguranccedila no Impeacuterio376
Natildeo havia uma ldquodependecircnciardquo humana em ralaccedilatildeo aos deuses o que existia era o
reconhecimento da superioridade daqueles seres que viviam entre os humanos Esse
reconhecimento cuacuteltico piedoso estava relacionado agrave barganha Esperava-se conhecer o
futuro escapar do perigo obter boas colheitas ter boa sauacutede sem que isso significasse que os
deuses estariam agrave disposiccedilatildeo a todo instante377
As accedilotildees de Augusto podem evidenciar uma estreita conexatildeo com episoacutedios de
restauraccedilatildeo e especialmente com as recorrentes observaccedilotildees de que as tradiccedilotildees ancestrais
estavam sendo perdidas ou abandonadas O ldquoculto imperialrdquo passa a representar uma novidade
no iniacutecio do Impeacuterio Se os apelos agrave restauraccedilatildeo das crenccedilas e tradiccedilotildees eram presentes nos
discursos natildeo se pode falar em uma nova forccedila religiosa ou uma nova religiatildeo no periacuteodo
imperial
Essas praacuteticas religiosas proporcionaram choques com judeus e depois com os
cristatildeos Sendo monoteiacutestas era impossiacutevel aceitar a inclusatildeo de deuses e cultos Os judeus
sacrificavam em prol do imperador e natildeo para o imperador jaacute os cristatildeos recusavam-se a
participar de qualquer sacrifiacutecio Considerando que os altares ao imperador eram colocados
muito proacuteximos ao tribunal do magistrado que ouvia os seus casos pode-se pensar que tal
sacrifiacutecio ao chefe do Impeacuterio era mais simboacutelico do que de adoraccedilatildeo e funcionava como sinal
de lealdade a Roma378 Secircneca em sua Apocolocyntosis do Divino Claacuteudio escrita
provavelmente no iniacutecio do reinado de Nero apresenta conotaccedilotildees negativas a respeito da
deificaccedilatildeo dos governantes em geral o que indica que existiam aqueles que natildeo viam com
bons olhos o processo de deificaccedilatildeo do governante Mas para a populaccedilatildeo geral do Impeacuterio
natildeo havia problemas em aceitar que o imperador pudesse ser tratado como um deus
A partir da sua expansatildeo e domiacutenio por um vasto territoacuterio o poder romano teve que
lidar com os problemas de integraccedilatildeo das regiotildees conquistadas Conforme tem destacado
375 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 244 376 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 p 15 377 MACMULLEN Ramsay Christianizatin the roman empire (AD 100-400) New Haven Yale University Press 1984 p 13 378 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 150
74
Claudia M Beltratildeo379 o mapa da peniacutensula Itaacutelica o Oriente Proacuteximo o norte da Aacutefrica e
Europa conformam uma rede que se aglutina em torno de Roma constituindo um espaccedilo
dinacircmico de interconexatildeo espaccedilo no qual se daratildeo variados modos de relaccedilatildeo Essa complexa
relaccedilatildeo exigia tambeacutem uma forma de lidar com os cultos estrangeiros
A cultura romana tornou-se sinteacutetica e sintetizante e relativamente favoraacutevel agrave
incorporaccedilatildeo de cultos estrangeiros Roma natildeo apenas se tornou o centro poliacutetico do mundo
por ela construiacutedo como tambeacutem passou a abrigar o nuacutecleo das religiotildees Segundo a anaacutelise
de Ceciacutelia Ames380 o caraacuteter sinteacutetico da religiatildeo romana que combina rito paacutetrio rito grego
e disciplina etrusca facilitou aos romanos a integraccedilatildeo de cultos estrangeiros e a difusatildeo de
seu proacuteprio sistema nos territoacuterios constituindo-se em um elemento chave na relaccedilatildeo destes
espaccedilos interconectados Sua toleracircncia e flexibilidade no entanto tambeacutem incluiacuteam
mecanismos para regular o fluxo de ideias e praacuteticas estrangeiras381 O senado era o oacutergatildeo
responsaacutevel por velar e vigiar da tradiccedilatildeo e da religiatildeo A necessidade de controle cresce junto
com a expansatildeo dos domiacutenios de Roma
Dentro da sua anaacutelise Justino se incomoda com o fato de que no meio de um universo
tatildeo vasto de culturas que se encontram no Impeacuterio Romano os cristatildeos sejam muitas vezes
odiados e levados agrave morte Para o apologista essa eacute mais uma evidecircncia da ignoracircncia
disseminada pelos maus democircnios que faz com que de algum modo as crenccedilas cristatildes sejam
tachadas de irracionais Enquanto isso ldquoalguns cultuam aacutervores rios382 ratos gatos
crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionaisrdquo de modo que todos satildeo iacutempios entre si por
natildeo terem a mesma religiatildeo (I Apol 241) O apologista na verdade aponta aquilo que
considera ser uma incoerecircncia nessa estrutura intercultural
Estaacute evidente que sua anaacutelise eacute dependente da sua loacutegica cristatilde mas Luciano de
Samosata tambeacutem apontava no seacuteculo II dC a ldquoconfusatildeordquo causada pelas diferentes opiniotildees
sobre os Deuses383 Plutarco um pouco antes anotara que a adoraccedilatildeo a diferentes formas de
379 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 151 380 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 p 342 381 Cf MACMULLEN R Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 382 Sextus Empiricus cita a afirmaccedilatildeo de Prodicus de que ldquoos antigos tinham como deus o sol a lua os rios e as primaveras [] assim como os Egiacutepicios deificavam o Nilordquo (Adversus Dogmaticos I18) apud MINNS PARVIS Op cit p 143 383 Juppiter Tragoedus 42
75
animais causava disputas entre seus adoradores384 Juvenal385 tambeacutem menciona que a
contenda se instalava na vizinhanccedila egiacutepcia quando um odiava o deus do outro e sustentava
que somente o seu deus predileto era o deus verdadeiro Essas diferenccedilas poderiam causar
ainda deboches sobre os deuses alheios entre os diferentes povos no Impeacuterio assim como
Clemente de Alexandria diz que os gregos faziam aos deuses e as crenccedilas egiacutepcias386 A
estranheza dos deuses dos outros povos tambeacutem chamou a atenccedilatildeo de Ciacutecero que indagava
Se existem divindades agraves quais adoramos e consideramos como tais por que natildeo Serapis e Isis localizadas no mesmo ranque E se eles satildeo admitidos que razatildeo temos noacutes para rejeitar os deuses dos baacuterbaros Entatildeo noacutes devemos deificar bois cavalos iacutebis gaviotildees viacuteboras crocodilos peixes cachorros lobos gatos e muitas outras bestas Se noacutes vamos de volta agraves fontes destas supersticcedilotildees devemos igualmente condenar todas as divindades das quais eles procedem [] Se vocecircs natildeo deificarem a um bem como o outro o que seraacute de Ino Pois todos esses deuses tem a mesma origem387
Diante desse universo de pensamentos e crenccedilas distintos os romanos tinham o
desafio de conceber formas para garantir a integraccedilatildeo desses grupos Justino acentua que
diante dessa variedade de ideias somente os cristatildeos satildeo perseguidos e vecirc nisso mais uma
evidecircncia de que as accedilotildees anticristatildes satildeo arquitetadas pelos maus democircnios Mas os cristatildeos
natildeo haviam sido os uacutenicos a serem cerceados pelas autoridades romanas
Nos anos 180 aC o culto a Baco despertou suspeitas e passou a ser tratado como uma
ameaccedila agrave ordem Infelizmente as fontes sobre essa questatildeo se resumem a um decreto do
Senado388 regulando o culto e um longo relato de Tito Liacutevio389
Natildeo eacute uma tarefa simples determinar qual foi o epicentro do problema Talvez natildeo se
referisse a uma crise religiosa propriamente dita representando um caso de accedilatildeo policial
contra uma conspiraccedilatildeo Mas o decreto do Senado preservado numa placa de bronze
endereccedilado a uma das cidades aliadas indica uma preocupaccedilatildeo em inviabilizar possiacuteveis
agrupamentos potencialmente conspiratoacuterios Proibia-se aos grupos ter liacutederes ou sacerdotes
masculinos tesouro juramentos ou fieacuteis Ele tambeacutem restringia o tamanho desses
aglomerados e a estrutura de seus membros390 De algum modo a organizaccedilatildeo dos baacutequicos
deve ter ameaccedilado aos romanos tambeacutem por trazer uma nova e perigosa forma de poder
384 De Iside et Osiride 72 385 Saacutetiras XV37-38 386 Protrepticus 2396 387 De natura deorum III19(47) 388 Senatus Consultum de Bacchanalibus In JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961 pp 26-27 389 Histoacuteria de Roma 398-19 390 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 152
76
Os seguidores de Baco no entanto natildeo eram hostis a nenhum deus do Impeacuterio
Tambeacutem natildeo rejeitavam os sacrifiacutecios nem viam os deuses como democircnios e natildeo tinham
nenhum problema com os rituais tradicionais Tito Liacutevio daacute sinais dessa suspeita num
discurso que atribuiu ao cocircnsul Postumio Albino numa contio391 quando falou ao povo da
ameaccedila de um poder rival
A menos que vocecircs se precavejam homens de Roma esta vossa assembleia diurna apropriadamente reunida pelo cocircnsul seraacute rivalizada por sua assembleia noturna Nesse momento eles separadamente temem a vocecircs agora reunidos em assembleia quando vocecircs retornarem agraves suas casas e fazendas eles se reuniratildeo para decidirem sobre sua proacutepria salvaccedilatildeo e a vossa ruiacutena Seraacute quando vocecircs separadamente teratildeo de temecirc-los reunidos (39164)
Segundo a anaacutelise de Clara Gallini os adeptos ao culto eram grupos marginais392 As
bacanais seriam lugares de evasatildeo para a massa de pobres e deserdados com graves
problemas econocircmicos e sociais devido agrave situaccedilatildeo que atravessava Roma A crise social teria
se manifestado em uma forma representativa de protesto religioso por meio dos quais se
buscaram respostas religiosas a problemas da sociedade pretendendo uma liberaccedilatildeo religiosa
Deste modo a repressatildeo dos cultos baacutequicos tambeacutem representaria a repressatildeo de uma
sociedade na qual uns poucos os membros da oligarquia romana decidem impotildeem as regras
e governam a maioria No entanto ainda que os problemas sociais fossem evidentes natildeo eacute
possiacutevel afirmar que atraacutes destes cultos se escondia uma revolta contra as estruturas vigentes
nem ver os rituais baacutequicos como uma espeacutecie de esperanccedila em uma nova liberdade pois
essas interpretaccedilotildees como bem sustentou C Ames393 sofrem de anacronismo
Outros grupos religiosos no periacuteodo posterior a Bacanalia tambeacutem foram objeto de
uma accedilatildeo hostil das autoridades romanas Os caldeus chamados presumivelmente de
astroacutelogos foram expulsos de Roma em 139 aC Depois os seguidores de Iacutesis em vaacuterias
ocasiotildees na Repuacuteblica Tardia e no primeiro principado Tambeacutem os judeus enfrentaram seacuterias
dificuldades com os romanos em certos momentos394
Com a viabilizaccedilatildeo de um maior nuacutemero de viagens e trocas comerciais e culturais no
Impeacuterio Romano o conhecimento das variadas religiotildees deuses e crenccedilas tambeacutem podia
viajar rapidamente E isso significou ter que lidar com atritos decorrentes dessas diferenccedilas
envolvendo inclusive o judaiacutesmo o cristianismo e o maniqueiacutesmo
391 Audiecircncia convocada 392 GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52 393 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 p 344 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 394 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Op cit pp 161 230 231
77
De um modo bem diferente desses monoteiacutesmos de caraacuteter exclusivista entre as outras
crenccedilas como nas religiotildees de misteacuterios os adeptos natildeo rejeitavam ou condenavam outros
deuses Tambeacutem natildeo era necessaacuterio evitar os festivais e rituais da cidade ou a praacutetica do culto
imperial Natildeo havia nada que os pusesse em conflito com as autoridades Ocasionalmente
recebiam o apoio de membros da elite romana
Justino todavia procura mostrar que natildeo havia nenhum motivo para os romanos se
preocuparem com os cristatildeos afinal eles reconheciam que toda autoridade eacute constituiacuteda por
Deus e por isso devia ser respeitada Eacute fazendo jus a certo sentido de transparecircncia que o
apologista julga indispensaacutevel nas relaccedilotildees entre governantes e governados que ele entatildeo se
prontifica em demonstrar as razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo se misturavam com outros
deuses Com confianccedila ele afirma ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo
veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo
colocamos coroas nos sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo395
O fato de os cristatildeos natildeo concordarem com os sacrifiacutecios pagatildeos natildeo faz sentido
isoladamente aos incocircmodos caluacutenias e perseguiccedilotildees sofridos Parece ser razoaacutevel que por ser
um grupo cujas crenccedilas natildeo estavam bem sistematizadas e que se espalhavam pelo Impeacuterio as
caluacutenias oriundas dos atritos culturais podem ter chegado agraves autoridades e despertado
desconfianccedila396 Calumnia era um crime condenado pelas leis romanas desde o I seacuteculo aC e
se exatamente agraves acusaccedilotildees falsas e maliciosas397 As accedilotildees anticristatildes todavia natildeo podem
ser analisadas em termos generalizantes e absolutos pois passam por diversos momentos
Embora os cristatildeos natildeo representem uma ameaccedila poliacutetica na perspectiva de Pliacutenio por
exemplo o fato de natildeo praticarem o culto ao imperador e a separaccedilatildeo das praacuteticas idoacutelatras da
esfera puacuteblica interseciona a questatildeo poliacutetica agrave religiosa
Seria essa uma boa razatildeo para Justino explicar em seu projeto apologeacutetico por que os
cristatildeos natildeo participavam de sacrifiacutecios a outros deuses e natildeo lhes ofereciam culto Seu
argumento eacute diametralmente oposto a ou]j anqrwpoi [esses homens] que oferecem sacrifiacutecios
aos que eles proacuteprios datildeo forma colocam nos templos e chamam de deuses Ele justifica a
crenccedila cristatilde apenas dizendo ldquosabemos que [esses deuses] satildeo coisas sem alma e mortas que
395 I Apol 242 396 Cf VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006 Passim URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932 397 ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 Passim BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 p 238 Cf I Apol 267
78
natildeo tem forma de Deusrdquo398 (I Apol 91) Afirma tambeacutem que os nomes e figuras que os
deuses assumem satildeo arquitetados pelos maus democircnios de modo que coisas corruptiacuteveis que
necessitam de cuidado recebem o nome de Deus Agrega-se ao seu argumento que os artesatildeos
dos deuses satildeo pessoas dissolutas e que eacute uma estupidez fazer guardas para os deuses nos
templos Na sequecircncia o autor introduz a justificativa cristatilde para esse distanciamento de tais
praacuteticas ldquo aprendemos que Deus natildeo tem necessidade de nenhuma oferta material dos
homens pois vemos que eacute ele quem nos concede tudordquo399 (I Apol 93) Em resposta a essa
benevolecircncia divina espera-se a gratidatildeo humana que soacute pode ser atestada atraveacutes do ldquobom
sensordquo [swfrosunhn] da ldquojusticcedilardquo [dikaiosunhn] do ldquoamor aos homensrdquo [filanqrwpian] e
numa expressatildeo pouco clara em ldquotudo que conveacutem a um Deus que natildeo pode ser chamado por
nenhum nome impostordquo400 (I Apol 101) Enquanto para o apologista os deuses pagatildeos satildeo
criados por matildeos humanas o Deus cristatildeo eacute apresentado como aquele que concederaacute a sua
presenccedila aos dignos Assim Justino demonstra estar certo de que os cristatildeos tecircm um
conhecimento superior ao dos que creem em outros deuses a ponto de se satisfazer em dizer
ldquosabemosrdquo ldquoaprendemosrdquo ou ldquocremosrdquo e isso basta
Se por um lado a perspectiva escatoloacutegica cristatilde do ldquoreinordquo natildeo implicava nenhuma
conspiraccedilatildeo poliacutetica contra os romanos seu iacutempeto proselitista causava tanto rumores quanto
um nuacutemero crescente de conversos Eacute por isso que ateacute meados do seacuteculo II quando Justino
escreve as accedilotildees anticristatildes tecircm suas raiacutezes nas relaccedilotildees interculturais travadas no proacuteprio
processo de expansatildeo da mensagem cristatilde Isso significa que os mecanismos de controle
social empregados contra os cristatildeos pelas autoridades imperiais satildeo requeridos mediante os
problemas locais E pode-se dizer que por ser uma religiatildeo emergente outros como Pliacutenio
natildeo sabiam como proceder diante das denuacutencias e caluacutenias contra esse novo grupo
Os cristatildeos formavam um grupo em expansatildeo que estava no Impeacuterio mas viviam de
modo diferente e procuravam evitar a participaccedilatildeo de todo tipo de praacuteticas contraacuterias agraves
prescriccedilotildees doutrinaacuterias cristatildes Natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo
veneravam os deuses nacionais e seu Deus natildeo pertencia a uma naccedilatildeo mas deveria ser
reconhecido como superior a todos os outros401
398 evpei ayuca kai nekra tauta ginwskomen kai qeou morfhn mh econta cf MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 96 399 Ouv deesqai thj para avnqrwpwn ulikhj prosforaj proseilhfamen ton qeon( auvton pareconta panta orwntej ibid p 96 400 o[as oivkeia qew| evsti( tw| mhdeni ovnomati qetw| kaloumenw| MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 401 Cf MACMULLEN Ramsay Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966 Id Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997
79
Justino insere o seu testemunho pessoal
Eu mesmo quando seguia a doutrina de Platatildeo ouvia as caluacutenias contra os cristatildeos Contudo ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que eacute considerado espantoso comecei a refletir que era impossiacutevel que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres Com efeito que homem amante do prazer intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas poderia abraccedilar alegremente a morte que vai privaacute-lo de seus bens402
Prossegue sua queixa ldquobuscando condenar agrave morte alguns cristatildeos fundados nas
caluacutenias contra noacutes arrastaram tambeacutem escravos meninos e mulheres e por meio de incriacuteveis
tormentos os forccedilam a repetir contra noacutes o que o povo inventardquo403 No entanto ele eacute enfaacutetico
contra esse tipo de opiniatildeo sustentada sobre os cristatildeos ldquonada disso nos diz respeitordquo404
Justino tambeacutem nega que os cristatildeos abusariam de homens e se uniriam destemidamente com
as mulheres Seguindo para o desfecho de seu escrito ele faz uma declaraccedilatildeo reveladora ldquoA
verdade eacute que nos fazem guerra de mil modos exatamente porque ensinamos a fugir de
semelhantes doutrinas e daqueles que praticam tais coisas ou imitam tais exemplos como
mesmo nesse discurso que vos dirigimosrdquo405 Tal declaraccedilatildeo de Justino daacute margem para a
reflexatildeo sobre esse processo de ldquonegativizaccedilatildeordquo da figura do ldquooutrordquo que condena as praacuteticas
que ldquoumrdquo pratica Segundo esse pensador os cristatildeos seriam muitas vezes caluniados por
condenarem as praacuteticas dos outros que em retaliaccedilatildeo se esforccedilariam por difamar os
seguidores do nazareno
Por isso tambeacutem parece significativo considerar que os atritos com os cristatildeos natildeo
satildeo decorrentes de uma preocupaccedilatildeo poliacutetica para minar um potencial grupo subversivo Satildeo
destacados alguns aspectos desses atritos que se remetem agraves caluacutenias e maus comentaacuterios
sobre os cristatildeos que desembocam na estigmatizaccedilatildeo desse grupo Eacute preciso lembrar que o
contexto no qual o discurso de Justino estaacute inserido se refere a meados do II seacuteculo quando o
impacto do estilo de vida dos cristatildeos era sentido apenas em niacuteveis locais ainda que em
diversas regiotildees Os cristatildeos jaacute se encontravam pela Siacuteria-Palestina Egito Aacutesia Menor
Peniacutensula Itaacutelica e outras regiotildees mas o nuacutemero de fieacuteis ainda era muito pequeno diante do
tamanho do Impeacuterio Romano406 O desprezo e o combate por parte dos cristatildeos aos deuses
pagatildeos provocavam ocasionalmente reaccedilotildees e mobilizaccedilotildees contra os proacuteprios cristatildeos Por se
tratar de um grupo distinto com praacuteticas pouco conhecidas as caluacutenias se propagaram como
402 II Apol 121-2 403 II Apol 124 404 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 405 II Apol 126 406 GIBBON Edward Number of Christians in the Empire under Diocletioan and Constantine In _____ The History of the Decline and Fall of the Roman Empire ed JB New York Fred de Fau and Co 1906 pp 337 341
80
uma forma de defesa dos pagatildeos A perseguiccedilatildeo de Nero no I seacuteculo havia aberto precedentes
para a condenaccedilatildeo dos cristatildeos mas sua determinaccedilatildeo foi limitada agrave execuccedilatildeo de seu plano de
acobertar as suspeitas de seu envolvimento no incecircndio de Roma Na primeira metade do II
seacuteculo alguns tumultos procuravam condenar os cristatildeos buscando sem um enquadramento
juriacutedico algo que foi condenado por Adriano na Aacutesia Em outros casos como o que relatou
Pliacutenio a Trajano procurava-se por um crime que condenasse os cristatildeos Desse modo as
acusaccedilotildees tais como canibalismo denuacutencia de ateiacutesmo imoralidades e inclusive de
infidelidade ganhavam forccedila Essas caluacutenias somadas ao precedente neroniano fizeram com
que para muitos como Trajano e Urbico o nomen Christianum assumisse um significado
negativo Essa conotaccedilatildeo negativa no entanto natildeo se instalou apenas em funccedilatildeo das caluacutenias
Conforme destacou Paul Veyne407 ldquoas autoridades natildeo acreditavam que os cristatildeos comiam
criancinhas ou praticavam incesto todos os domingos a atitude polecircmica de Celso a respeito
da nova religiatildeo natildeo fazia alusatildeo a essas praacuteticas considerando-as um fato socialrdquo Se para o
povo em geral o oacutedio e o medo pela estranheza dos cristatildeos faziam-lhes repulsivos para as
autoridades a ausecircncia de participaccedilatildeo nas praacuteticas puacuteblicas ou mesmo a contumaacutecia em natildeo
negar a feacute diante do magistrado faziam com que os pedidos de condenaccedilatildeo fossem acatados
Neste momento cabe destacar que entre os tipos de estigmas destacados por Erving
Goffman408 estatildeo os tribais de raccedila naccedilatildeo e religiatildeo considerados suscetiacuteveis de uma
transmissatildeo por heranccedila e decontaminar outros ao redor Nesses estigmas encontram-se os
seguintes traccedilos socioloacutegicos
un individuo que podiacutea haber sido faacutecilmente aceptado en un intercambio social corriente posee un rasgo que pude imponerse por la fuerza a nuestra atencioacuten u que nos lleva a alejarnos de eacutel cuando lo encontramos anulando el llamado que nos hacen sus restantes atributos Posee un estigma una indeseable diferencia que no habiacuteamos previsto
Essa diferenccedila se torna o elemento fundamental para a praacutetica de vaacuterios tipos de
discriminaccedilatildeo Consciente ou inconscientemente se constroacutei uma teoria do estigma uma
ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do perigo que representa essa pessoa
racionalizando agraves vezes uma animosidade que se baseia em outras diferenccedilas
Goffman409 natildeo deixa de contemplar em sua anaacutelise a possibilidade de sujeitos
estigmatizados permanecerem ilhados protegidos por suas crenccedilas proacuteprias sobre sua
identidade mas ao mesmo tempo em constante contato com os outros Nesse sentido os 407 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 408 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 16 Tr A ldquoum indiviacuteduo que podia ter sido facilmente aceito num intercacircmbio social corrente possui um traccedilo que pode impor-se agrave forccedila a nossa atenccedilatildeo e que nos leva a nos afastarmos dele quando o encontramos anulando a chamada que nos fazem seus ouros atributos Possui um estigma uma indesejaacutevel diferenccedila que natildeo haviacuteamos previstordquo 409 Ibid p 17
81
seguidores da Igreja dos disciacutepulos de Jesus de Nazareacute podiam refugiar-se em suas crenccedilas
proacuteprias a saber seu proacuteprio modo de se autodefinir como ldquocristatildeosrdquo Enquanto o termo
ldquocristatildeordquo eacute capaz de referir-se a algueacutem de uma superstitio ilicita que abusa das crianccedilas que
se une promiscuamente com homens e mulheres que acredita em lendas de um deus
encarnado e nascido de uma virgem cujos fieacuteis se reuacutenem para comer sua carne em reuniotildees
secretas e assim se torna estigma de algueacutem despreziacutevel por outro lado ganha outro
significado para os seguidores do Cristo
Os atritos entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos poderiam surgir em decorrecircncia do exerciacutecio da
anunciaccedilatildeo da mensagem cristatilde ou devido ao apelo agrave mudanccedila de conduta e implementaccedilatildeo
de novos haacutebitos O caso mais emblemaacutetico apontado por Justino eacute o que aparece na II
Apologia
Certa mulher vivia com o seu marido homem dissoluto e antes de se tornar cristatilde se entregara agrave vida licenciosa Todavia logo que conheceu os ensinamentos de Cristo natildeo soacute se tornou casta como procurava tambeacutem persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme a reta razatildeo Ele poreacutem obstinado na dissoluccedilatildeo com a sua conduta desanimou a sua mulher [] Depois disso para natildeo se tornar cuacutemplice de tais iniquidades e impiedades permanecendo no matrimocircnio e partilhando o leito e a mesa com tal homem ela [] separou-se [] Despeitado [] [] a acusou diante dos tribunais dizendo que ela era cristatilde [] natildeo podendo na ocasiatildeo fazer nada contra a mulher voltou-se contra Ptolomeu que Urbico chamara ao seu tribunal por ter sido mestre dela nos ensinamentos de Cristordquo410
A uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se era cristatildeo Apoacutes
confessar foi condenado ao supliacutecio Justino ainda conta que certo Luacutecio advertiu a Urbico e
do mesmo modo foi conduzido ao supliacutecio Um terceiro sobreveio mas tambeacutem foi
condenado agrave morte411
Se fosse um caso isolado esse episoacutedio jamais poderia servir como pista para
fundamentar a hipoacutetese de que significativamente os atritos com os cristatildeos podem surgir
tambeacutem devido agrave condenaccedilatildeo das praacuteticas dos natildeo-cristatildeos Mas outras evidecircncias se
mostram Os Evangelhos do Novo Testamento (Mt 1413-12 Mc 614-28 Lc 318-20 97-9)
afirmam que Joatildeo Batista foi para a prisatildeo por repreender ao rei Herodes que vivia com
Herodiacuteades a mulher de seu irmatildeo e por outros crimes cometidos pelo governante Flaacutevio
Josefo escreveu que Herodes temeu que o povo fosse influenciado para uma sublevaccedilatildeo e por
isso encaminhou Joatildeo Batista para o caacutercere412 Embora pareccedilam discrepantes pode haver
alguma convergecircncia nas duas versotildees O ldquoprofetardquo Joatildeo Batista devia fazer repreensotildees
410 II Apol 2 411 II Apol 216-20 412 Ant Jud II 52
82
puacuteblicas condenando os haacutebitos do rei Herodes e a sua uniatildeo com Herodiacuteades o que poderia
despertar alguma inseguranccedila quanto agrave reaccedilatildeo do povo
Outras ocorrecircncias podem ser identificadas Quando Paulo repreendeu um espiacuterito de
adivinhaccedilatildeo de uma jovem escrava quando estava em Filipos na Macedocircnia os patrotildees da
moccedila se irritaram pois exploravam aquela habilidade da jovem para lucrar Por isso levaram
Paulo e seu companheiro Silas aos magistrados e disseram ldquoEsses homens estatildeo provocando
desordem em nossa cidade satildeo judeus e pregam costumes que a noacutes romanos natildeo eacute
permitido aceitar nem seguirrdquo A multidatildeo se levantou contra Paulo e Silas e depois disso
foram accediloitados e presos sem julgamento formal 413 Em Eacutefeso os artesatildeos teriam visto na
doutrina de Paulo mais do que uma ofensa agrave religiatildeo uma ameaccedila a seus negoacutecios Conta-se
que um ourives chamado Demeacutetrio que fabricava miniaturas em prata no templo de Diana
reuniu alguns artesatildeos e outros profissionais do ramo e disse-lhes
Amigos sabeis que o nosso bem-estar proveacutem dessa nossa atividade [] esse tal de Paulo com sua propaganda desencaminha muita gente natildeo soacute em Eacutefeso mas em quase toda a Aacutesia Ele afirma que natildeo satildeo deuses os produtos de matildeos humanas Natildeo eacute soacute a nossa profissatildeo que corre o risco de cair em descreacutedito mas tambeacutem o templo da grande deusa Diana acabaraacute sendo desacreditado e assim ficaraacute despojada de majestade aquela que toda a Aacutesia e o mundo inteiro adoram414
Segundo o livro de Atos dos Apoacutestolos esses homens furiosos arrastaram os
companheiros de Paulo para o teatro da cidade O tumulto se espalhou
Esses tipos de atritos envolviam o encobrimento de uma praacutetica moralmente
condenada pelos seguidores da Igreja e manifestavam a defesa dos interesses pessoais ou de
determinados grupos que sofreriam com as possiacuteveis mudanccedilas nos costumes e tradiccedilotildees
Neste uacuteltimo caso aparece algo distinto a menccedilatildeo da representaccedilatildeo de uma divindade para
uma determinada regiatildeo Diana para a Aacutesia especialmente
Yi-Fu Tuan415 aponta que nas religiotildees que vinculam o povo a um lugar os deuses
parecem estimular nos seus fieacuteis um forte sentido do passado de linhagem e continuidade no
lugar O culto aos ancestrais eacute o fundamento de tal praacutetica religiosa Atraveacutes deste sentido
histoacuterico de continuidade busca-se algum tipo de ldquoseguranccedilardquo Entre o I e II seacuteculos dC
deuses romanos e gregos satildeo conhecidos por povos de culturas diferentes mas nenhum deles
exige exclusividade O Deus dos judeus figura nesse cenaacuterio de deuses e homens e agraves vezes
se confunde com deus nenhum Os seguidores de Cristo propagadores desse mesmo Deus
mediante a crenccedila no seu messias paradoxalmente tambeacutem satildeo tachados de ateus algumas
vezes Poreacutem enquanto os ldquooutrosrdquo natildeo veem o Deus cristatildeo os cristatildeos natildeo veem outro deus
413 At 1617-40 414 At 1923-27 415 Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983 p 168
83
aleacutem do seu proacuteprio Desse modo a negaccedilatildeo dos deuses alheios pode ser interpretada por
muitos como profunda agressatildeo agraves crenccedilas que por um periacuteodo indeterminado serviram para
explicar e inspirar a vida das pessoas que nasceram cresceram e morreram em determinado
local
A estigmatizaccedilatildeo dos ldquocristatildeosrdquo eacute portanto em grande medida uma reaccedilatildeo das
pessoas que satildeo alvo dos cristatildeos no exerciacutecio de sua feacute Pois esses cristatildeos ndash dos quais
Justino eacute um ndash manifestam o repuacutedio a tudo aquilo que se associa a uma moral que lhes seja
estranha e que se vincule agrave veneraccedilatildeo de outros deuses que natildeo sejam o Deus do seu Cristo
Diante das reaccedilotildees adversas que lhes satildeo imputadas sob a forma de duras penas e
condenaccedilotildees Justino teologiza o seu estigma Isso natildeo eacute uma invenccedilatildeo sua Talvez lhe caiba o
meacuterito de tecirc-lo feito habilidosamente poreacutem haacute indiacutecios desse procedimento anos antes de
seus escritos
Na I Epiacutestola de Pedro (413-1416) o autor frisa a gloacuteria do sofrimento dos cristatildeos
nas perseguiccedilotildees
alegrai-vos por participar dos sofrimentos de Cristo para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua gloacuteria Se sofreis injuacuterias por causa do nome de Cristo sois felizes pois o Espiacuterito da gloacuteria o Espiacuterito de Deus repousa sobre voacutes [] Se poreacutem algueacutem sofrer por ser cristatildeo natildeo se envergonhe Antes glorifique a Deus por este nome
Antes ainda eacute Paulo quem permitiraacute um trocadilho didaacutetico para que melhor se
compreenda essa formulaccedilatildeo teoloacutegica por traacutes do sofrimento dos fieacuteis da Igreja Ao finalizar
sua Epiacutestola aos Gaacutelatas (617) escreve ldquo eu trago em meu corpo as marcas [stigmata] de
Cristordquo416 Como o proacuteprio Goffman observou para os gregos estigma significava
basicamente algum tipo de signo ou marca na pele417 Paulo evidentemente se refere aos sinais
do sofrimento enfrentado devido agraves perseguiccedilotildees sofridas no exerciacutecio do seu apostolado Natildeo
existe nenhuma ligaccedilatildeo entre essa passagem e o discurso de Justino O que eacute preciso notar
atentamente eacute que assim como Paulo transforma seus estigmas em seu testemunho na
perspectiva de Justino a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute representada como ldquoas marcasrdquo de sua
identidade que se pretende afirmar Essa identidade por ele afirmada eacute distinta dos devaneios
caluniosos que lhes satildeo associados pelos seus opositores Ser cristatildeo para Justino eacute a razatildeo de
natildeo serem perseguidos e ao mesmo tempo o motivo pelo qual satildeo perseguidos A
416 Versatildeo grega evgw gar ta stigmata tou Kuriou VIhsou evn tw| swmati mou bastazw ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) [Bible Work 5 Software 2002] 417 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 11 Para maiores informaccedilotildees sobre o significado do termo estigma cf LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940
84
perseguiccedilatildeo seraacute interpretada como uma reaccedilatildeo dos ldquomaus democircniosrdquo contra os ldquoverdadeiros
cristatildeosrdquo como seraacute examinado no proacuteximo capiacutetulo
Seus acusadores estariam movidos por paixatildeo irracional e ldquoaguilhoados por democircnios
perversosrdquo418 por isso natildeo conseguiam enxergar a verdade anunciada por esses cristatildeos
Mesmo tendo grande responsabilidade na ocultaccedilatildeo dessa verdade os democircnios natildeo satildeo os
uacutenicos culpados Escreve Justino a respeito dos judeus
As outras naccedilotildees natildeo tecircm tanta culpa da iniquidade que se comete contra noacutes e contra Cristo como voacutes que sois causa do preconceito injusto que elas tecircm contra ele e contra noacutes que viemos dele [] escolhestes homens especiais de Jerusaleacutem e os mandastes por todo o mundo a fim de espalhar que havia aparecido uma iacutempia seita de cristatildeos e espalharam caluacutenias que todos aqueles que natildeo vos conhecem repetem contra noacutes419
Os judeus tecircm uma parcela de responsabilidade pelos preconceitos e caluacutenias herdados
pelos gentios Em vaacuterios episoacutedios no livro dos Atos dos Apoacutestolos haacute a mesma disposiccedilatildeo
cristatilde para atribuir aos judeus a culpa pelas delaccedilotildees agraves autoridades romanas para reclamar
dos cristatildeos No entanto eacute pouco provaacutevel que o apologista assim sintetize a causa das
caluacutenias e puniccedilotildees contra os cristatildeos Mas haacute uma disposiccedilatildeo por parte do apologista em
afastar os cristatildeos dos judeus Semelhantemente Justino tambeacutem natildeo demonstra nenhuma
simpatia por aqueles que ele chama de ldquocristatildeos soacute de nomerdquo
Sobre esses que natildeo viviam como Cristo teria ensinado o filoacutesofo orienta que ldquosejam
declarados como natildeo-cristatildeosrdquo420 por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de
Cristo Para os pagatildeos provavelmente natildeo haveria distinccedilatildeo entre esses grupos Justino
poreacutem chama a atenccedilatildeo para o fato de que esses satildeo denominados segundo o nome de quem
promoveu cada doutrina especiacutefica Eram eles os marcionistas valentinianos basilidianos
saturnilianos e com outros nomes421
Um dos argumentos de que a accedilatildeo dos ldquodemocircnios perversosrdquo move seus opositores
contra os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo eacute que os cristatildeos dessas outras ldquoheresiasrdquo natildeo satildeo perseguidos
pelas autoridades422 Quanto a esses ldquooutrosrdquo pelos quais o apologista natildeo demonstra
nenhuma simpatia sua recomendaccedilatildeo eacute que sejam punidos423
Os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo segundo Justino satildeo aqueles que estatildeo prontos a confessar
que satildeo cristatildeos a ponto de padecerem Desse modo recorrendo ao trocadilho didaacutetico
desenvolvido a partir da fala paulina esses homens de feacute colocam-se agrave disposiccedilatildeo para
418 I Apol 51ss 419 Diaacutelogo com Trifatildeo 171 420 I Apol 168 421 Diaacutelogo com Trifatildeo 355-6 422 I Apol 267 423 I Apol 1614
85
receber os ldquoestigmas de Cristordquo a saber as marcas das perseguiccedilotildees sobre seus corpos em
razatildeo de suas crenccedilas Satildeo persuadidos a crer que a verdadeira recompensa seraacute atribuiacuteda para
a vida eterna que em muito excede ao sofrimento transitoacuterio desse mundo Cabe-lhes
anunciar e testemunhar a feacute a todos mesmo sob a insiacutegnia das tribulaccedilotildees Por isso Justino
declara
Decapitam-nos pregam-nos em cruzes atiram-nos agraves feras agrave prisatildeo ao fogo e nos submetem a todo tipo de torturas Todavia estaacute agrave vista de todos que natildeo apostatamos de nossa feacute Ao contraacuterio quanto maiores satildeo os nossos sofrimentos mais ainda se multiplicam os que abraccedilam a feacute e a piedade pelo nome de Jesus424
Essa missatildeo cristatilde implica tambeacutem em buscar convencer aos seus opositores de que
os ldquocristatildeosrdquo natildeo deviam ser perseguidos simplesmente por denominarem-se ldquocristatildeosrdquo
33 Sobre as leis e imoralidades
Justino faz saber que a confissatildeo de cristianismo diante de um magistrado acarretava a
pena de morte425 Isto eacute ser ldquocristatildeordquo poderia implicar na condenaccedilatildeo agrave pena de morte426
Uma das interrogaccedilotildees centrais desses escritos de Justino eacute sobre o fato de os cristatildeos
serem condenados por confessarem esse nome Seria um absurdo pensar que os romanos
condenariam os membros dessa superstitio simplesmente por sustentarem um nome e eacute
justamente esse absurdo que o apologista busca destacar para ridicularizar o procedimento dos
magistrados Na verdade os acusados de cristianismo natildeo eram condenados apenas pelo
ldquonomerdquo mas sim pelo que ele representava uma superstitio nova maleacutefica depravada e
excessiva que envolvia os cristatildeos em flagitia que sustentava certo desprezo pela religiatildeo
tradicional Mas pelo fato de natildeo haver uma lei universal para este caso os governantes
tinham liberdade para julgar as ocorrecircncias de modo particular As recomendaccedilotildees de Trajano
e Adriano ao dispensarem a busca pelos cristatildeos limitaram os processos a apenas denuacutencias
formais A nova religiatildeo ainda natildeo se mostrava um problema seacuterio para o Impeacuterio Eacute provaacutevel
que essas medidas visem solucionar os atritos e inibir os conflitos locais ocasionados pelas
diferenccedilas religiosas O caraacuteter flexiacutevel do processo que permitia que o acusado mudasse de
ideia quanto a sua religiatildeo no meio do processo e recebesse a absolviccedilatildeo eacute o elemento
fundamental para se argumentar que os cristatildeos eram condenados pelo ldquonomerdquo
424 Dialogo com Trifatildeo 110 4 425 I Apol 81-2 No I111 lecirc-se ldquoconfessamos ser cristatildeos sabendo como sabemos que tal confissatildeo traz consigo a pena de morterdquo 426 ldquo e nos tiram a vida sem termos cometido crime algumrdquo (I241) Mas o consolo dos fieacuteis estaacute na feacute ldquo aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis fazerrdquo (I456)
86
Justino deseja que os romanos compreendam a maneira de pensar dos cristatildeos e que se
desvencilhem da ideia negativa sobre os fieacuteis Desse modo depois da exposiccedilatildeo da sua I
Apologia ele escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da verdade
respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees despreze-as Natildeo
decreteis poreacutem pena de morte como contra inimigos contra aqueles que nenhum crime
cometemrdquo427
Como jaacute foi mencionado no Capiacutetulo II dessa dissertaccedilatildeo Justino procura alinhar sua
Apologia ao rescrito de Adriano o qual ele interpreta convertendo-o sutilmente a favor dos
cristatildeos
Noacutes vos pedimos portanto que sejam examinadas accedilotildees de todos os que vos satildeo denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo ter cometido nenhum crime428
Mesmo assim o apologista sustenta que sua reclamaccedilatildeo natildeo estaacute fundamentada no rescrito de
Adriano mas em um senso de justiccedila que permeia sua peticcedilatildeo429
Sua interpretaccedilatildeo considera que mediante as obras dos democircnios perversos os cristatildeos
satildeo buscados e condenados agrave morte devido a caluacutenias O apologista aponta atentados contra
escravos meninos e mulheres obrigando-os a confessarem coisas falsas430 Segundo sua
leitura teoloacutegica desses eventos os cristatildeos eram acusados de tais praacuteticas justamente porque
as condenavam e assim fazendo incomodam aqueles que procediam dissolutamente431
Tendo em vista que a razatildeo para que as autoridades acatassem as denuacutencias dirigidas
contra os cristatildeos estava no fato de que esta superstitio era uma ameaccedila agrave ordem em funccedilatildeo da
sua expectativa sobre o ldquoreino de Deusrdquo Justino inclui no seu projeto apologeacutetico uma
explanaccedilatildeo sobre a contribuiccedilatildeo cristatilde ao estabelecimento da paz no Impeacuterio Natildeo se podia
esperar que uma religiatildeo estrangeira principalmente oriunda de uma naccedilatildeo problemaacutetica
como a dos judeus pudesse representar algum benefiacutecio A sua proacutepria indefiniccedilatildeo enquanto
religiatildeo dificultaria essa possibilidade e o seu caraacuteter exclusivista acentuaria os atritos sociais
Mas o pensador de Flaacutevia Neaacutepolis eacute direto em dizer
Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo e salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que
427 I651 428 I74 429 ldquo natildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo (I683) 430 II124 431 II12
87
caminharia para a sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos e se adornaria de virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos432
A proposta de Justino apresenta o valor das crenccedilas cristatildes O desenvolvimento da sua
teoria seraacute analisado com mais detalhes no proacuteximo capiacutetulo Neste momento analisar-se-aacute a
reprovaccedilatildeo da moralidade dos natildeo-cristatildeos Segundo Paul Veyne433 no mundo greco-romano
ldquomoral e religiatildeo estavam parcialmente ligadas porque se pedia aos deuses que protegessem
os bons e castigassem os maus Deuses e homens julgavam da mesma maneira os bons e
maus pois compartilhavam da mesma moralrdquo Para os deuses a moral dos mortais tambeacutem
natildeo interessava A opiniatildeo humana sobre os deuses tambeacutem variava desde a atribuiccedilatildeo de
virtudes ateacute a laacutestima por serem egoiacutestas e mercenaacuterios Natildeo era possiacutevel pensar nos deuses
como senhores vigilantes da justiccedila No entanto os deuses poderiam vingar as injusticcedilas434
Natildeo se deve pensar que a religiatildeo de gregos e romanos era estaacutetica Satildeo identificadas
transformaccedilotildees durante os seacuteculos A filosofia as mudanccedilas culturais e a paideia
relacionaram a divindade ao sumo bem e acentuou os contornos entre a religiosidade das
pessoas comuns e agrave dos membros das classes elevadas e dos letrados435
Varratildeo436 atribuiu trecircs concepccedilotildees para os deuses os deuses das cidades os deuses
vistos pelos filoacutesofos e os deuses das narrativas dos poetas Segundo Paul Veyne437
inspirados por Euriacutepides os estoicos estavam convencidos de que os deuses natildeo podiam se
portar mal Os deuses dos filoacutesofos se afastavam das narrativas mitoloacutegicas anteriores para
assumirem agraves vezes o aacutepice da virtude Para Platatildeo os deuses eram a medida de todas as
coisas e natildeo seria conveniente receberem oferendas de pessoas desonradas438 A relaccedilatildeo entre
moral e religiatildeo passou por transformaccedilatildeo mas essa mudanccedila ficou restrita a alguns ciacuterculos
sociais Para alguns criacuteticos e pensadores o temor religioso seria uacutetil para a contensatildeo
humana Mas essa natildeo era uma opiniatildeo comum Isoacutecrates (viveu de 436 a 338 aC) escreveu
que ldquoaqueles que creem que os favores dos deuses e suas puniccedilotildees satildeo maiores do que
realmente satildeo prestam um grande serviccedilo agrave sociedaderdquo439 Mais tarde Poliacutebio (viveu entre 203
aC ndash 120 aC) ao comparar os romanos aos gregos tambeacutem destacou o valor das crenccedilas
religiosas romanas no estabelecimento da ordem
432 I121-3 433 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 220 434 Ibid p 239 435 BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 pp 305-332 436 Apud Agostinho de Hipona Cidade de Deus IV311 Plutarco se referia a trecircs visotildees sobre os deuses a dos filoacutesofos poetas e legisladores (Amatorius XVIII10765c) 437 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 256 438 Leis IV716c717 439 Busires 1124
88
muitos poderiam pensar que isso eacute irresponsaacutevel mas [] seu objetivo eacute usar isso como forma de controle sobre as pessoas comuns Se era possiacutevel formar um Estado inteiro de filoacutesofos isso seria no entanto desnecessaacuterio Mas vendo que as multidotildees satildeo inconstantes cheios de desejos desregrados iras irracionais e paixatildeo violenta o uacutenico recurso eacute mantecirc-los sob controle pelo terror misterioso e efeitos cecircnicos desse tipo440
Ainda nesse sentido ele afirma que tambeacutem natildeo era sem sentido que os antigos
promoviam entre as pessoas simples diversas opiniotildees sobre os deuses e a crenccedila no Hades
Tendo em vista essa importante funccedilatildeo da religiatildeo na manutenccedilatildeo da ordem Poliacutebio pensa
que aqueles que em seu tempo abriam matildeo da religiatildeo agiram de forma precipitada e
insensata Assim ele destaca
Esta eacute a razatildeo por que aleacutem de tudo se aos estadistas gregos eacute confiada uma uacutenica moeda embora protegidos por dez funcionaacuterios de vigilacircncia muitos selos e o dobro de testemunhas jaacute natildeo podem ser induzidos a manter a feacute enquanto entre os romanos em suas magistraturas e embaixadas homens tecircm cuidado de grandes quantias de dinheiro e ainda por puro respeito a seus juramentos manteacutem a feacute intacta E em outras naccedilotildees eacute raro encontrar um homem que meta suas matildeos fora do eraacuterio puacuteblico e eacute inteiramente puro em tais assuntos Mas entre os romanos eacute raro encontrar um homem cometendo tal crime441
A necessidade de uma sociedade ter mecanismos para estabelecer a ldquoconfianccedilardquo ou a
ldquoboa feacuterdquo entre as relaccedilotildees humanas eacute sublinhada diante dos efeitos dos questionamentos
cultivados pela filosofia e do proacuteprio ideal poliacutetico-filosoacutefico que poderia diminuir o valor da
religiatildeo
No seacuteculo II dC eacute Justino quem olha as mais distintas crenccedilas do Impeacuterio com um
tom de superioridade proporcionada pela sua proacutepria religiatildeo Mas haacute um espaccedilo de
aproximadamente trecircs seacuteculos entre Poliacutebio por exemplo e Justino No II seacuteculo dC a
filosofia jaacute havia se tornado um elemento essencial da cultura romana e o fluxo das suas
interrogaccedilotildees e das suas performances puacuteblicas acarretavam algumas transformaccedilotildees de
caraacuteter ideoloacutegico na sociedade Como escreveu Paul Veyne
o povo nunca deixou de crer e rezar Mas em que um romano culto mdash um Ciacutecero um Horaacutecio um imperador um senador um notaacutevel mdash podia crer dentro dessa fantasmagoria dos deuses ancestrais A resposta eacute categoacuterica natildeo podia crer em nada leu Platatildeo e Aristoacuteteles que quatro seacuteculos antes tampouco acreditavam Virgiacutelio alma religiosa acredita na Providecircncia mas natildeo nos deuses de seus proacuteprios poemas mdash Vecircnus Juno ou Apolo442
Justino mostra algumas razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo compactuavam com os
demais deuses e com a religiatildeo tradicional romana e ainda aponta aquilo que considera ser o
caraacuteter racional da verdadeira filosofia isto eacute da religiatildeo cristatilde Por isso ele escreve ldquoas
440 Historias VI5614 441 Ibid 442 Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197
89
nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo443 Poreacutem
como ele proacuteprio diz ldquonos condenam sem saber se praticamos as coisas vergonhosas de que
nos acusam comprazem-se com deuses que as fizeram e ainda exigem dos homens coisas
semelhantesrdquo444 Desse modo o apologista destaca a incoerecircncia em se pensar que os povos
seriam contidos por temor a deuses tatildeo imoderados quanto os proacuteprios homens em suas
paixotildees Por outro lado tambeacutem o temor ao Imperador ou a fidelidade demonstrada por
meio do culto imperial satildeo apontados como algo que representa uma forma superficial de
controle pois como Justino escreve ldquoaqueles que agora por medo das leis e dos castigos por
voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los [] sabem que sois homens e
que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutesrdquo445 Esse ldquomedordquo das leis era um temor ao que eacute
humano Desse modo Justino sublinha que a ausecircncia de mecanismo superior de controle
como a absorccedilatildeo da crenccedila em um Deus onisciente como o Deus dos cristatildeos favorecia a
desobediecircncia agraves leis
O apologista apresenta um mecanismo de controle que julga ser muito mais eficiente
ldquose se inteirassem e se persuadissem de que natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma
accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os
modos como voacutes mesmos haveis de convirrdquo Por essa razatildeo ele considera que a expansatildeo do
cristianismo contribuiria para que as pessoas agissem de modo moderado e respeitoso de
acordo com a moral cultivada na comunidade e ainda em atentar fidelidade ao Impeacuterio
Esse ldquotemorrdquo religioso proveniente de uma crenccedila distinta da religiatildeo tradicional se
enquadra no que os romanos chamavam de superstitio As superstitiones e os cultos locais
eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob atenccedilatildeo com destacam Mary Beard John North e
Simon Price446 as controveacutersias poderiam desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade
romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito em 172 a 173 aC447 na incursatildeo da Traacutecia que
foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que conseguiu seguidores448 entre os druidas da
Gaacutelia profecias indicavam que o incecircndio de Roma era o sinal do fim do domiacutenio romano
sobre aquela regiatildeo fazendo com que uma revolta nas fronteiras do Reno fosse animada por
essas profecias449 e as revoltas judaicas contemporacircneas a Justino satildeo outro exemplo
443 II153 444 II142 445 I123 446 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 447 Cassius Dio Hist Rom LXXII4 448 Ibid LI255 LIV345-7 449 Taacutecito Historias IV546165 V2224
90
Todavia o apologista procura convencer de que os cristatildeos natildeo suportavam nenhum tipo de
ameaccedila agrave sociedade sob o domiacutenio romano
Sua estrateacutegia apologeacutetica portanto natildeo pode negar que as crenccedilas cristatildes reprovavam
uma seacuterie de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais caracterizam um
quadro da organizaccedilatildeo social No entanto essa nova religiatildeo deveria ser encarada como uma
dessemelhanccedila absoluta Vaacuterios pontos de contato entre a cultura pagatilde e a doutrina dos
cristatildeos satildeo estabelecidos para convencer sobre esse aspecto450 Os deuses e a religiatildeo pagatilde
deveriam ser rejeitados por serem incoerentes com a moralidade segundo as narrativas
antigas A feacute cristatilde eacute apresentada como um mecanismo eficaz de controle e de organizaccedilatildeo
social que exige uma mudanccedila subjetiva antes de um reflexo socialmente objetivo Por isso
segundo seu ponto de vista a condenaccedilatildeo dos cristatildeos acatada pelos governantes locais eacute uma
forma equivocada de manter a ordem Em grande medida essa forma de controle que emerge
dos clamores reativos populares estaria impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do
nomen Christianum sem conhecerem de fato a forma de pensar dos cristatildeos Por isso Justino
procura afirmar que os cristatildeos satildeo os melhores auxiliadores na manutenccedilatildeo da paz no
Impeacuterio
450 Esse ponto seraacute analisado no proacuteximo capiacutetulo
91
CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM SOCIAL
Justino combate agrave forma de controle que recrimina os cristatildeos e que segundo seu
ponto de vista tem fundamento nas accedilotildees dos democircnios Eacute dentro do seu objetivo apologeacutetico
que emerge sua tese da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem no Impeacuterio Eacute a
primeira vez que a religiatildeo emergente dos cristatildeos aparece assumidamente como um
instrumento a favor do Impeacuterio Natildeo havia nenhuma razatildeo para esse tipo de preocupaccedilatildeo por
parte dos cristatildeos A tese da contribuiccedilatildeo cristatilde agrave manutenccedilatildeo da ordem vem em oposiccedilatildeo agrave
ideia de que os cristatildeos seriam uma ameaccedila social Todavia eacute permitido supor que diante da
mira dos ldquoperseguidoresrdquo locais nesse periacuteodo natildeo era uacutetil jurar fidelidade ao Impeacuterio
As caluacutenias e a proacutepria inclinaccedilatildeo a repudiar as superstitones estrangeiras faziam com
que os cristatildeos fossem reprimidos em diferentes niacuteveis pelos pagatildeos do Impeacuterio Justino
apresenta uma forma de controle cristatilde que julga ser mais eficiente do que aquelas pagatildes
empregadas contra os proacuteprios cristatildeos A base de tal eficiecircncia estaacute no caraacuteter de sua
doutrina que quando absorvida deveria conduzir os crentes a uma conduta pautada por regras
morais que estabelecem precircmio ou castigo eterno a todos depois da morte de acordo com seu
meacuterito em vida A doutrina cristatilde eacute uma incentivadora da moral
Ao recorrer ao imperador o apologista natildeo apenas reafirma a fidelidade dos cristatildeos
mas expotildee o caraacuteter de sua doutrina e procura ser o mais convincente possiacutevel sobre a
razoabilidade de suas crenccedilas
41 O controle absoluto do controlador absoluto
Em primeiro lugar Justino sustenta que os cristatildeos satildeo os ldquomelhores ajudantes e
aliados para a manutenccedilatildeo da pazrdquo devido ao caraacuteter das suas doutrinas como a de que ldquonatildeo
eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que
cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildeesrdquo (I Apol
121) Segundo essa perspectiva a crenccedila em um Deus onisciente seria capaz de induzir os
que a deteacutem a se comedirem Nesse sentido ele destaca ldquoningueacutem escolheria por um
momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se
92
conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e
livrar-se dos castigosrdquo (I Apol 122) Esse mecanismo de controle apresenta uma estrutura
limitadora das accedilotildees humanas que eacute dependente do conhecimento das normas que determinam
a recompensa e o castigo O traccedilo marcante desse mecanismo eacute que existe um vigilante
constante de quem natildeo se pode esconder absolutamente nada nem mesmo as intenccedilotildees
Haacute certa dependecircncia do sentimento de temor pessoal diante da ideia de vigilacircncia
constante pelos olhos infaliacuteveis de um ser superior que julgaraacute com rigor as accedilotildees humanas de
uma vez por todas num momento aguardado mas desconhecido Todavia para que ele
funcione eacute preciso que exista um miacutenimo de plausibilidade nas ideias que sustentam o
controle absoluto de Deus Ou seja ningueacutem temeria algo que natildeo fizesse o miacutenimo sentido
Aqueles que combatiam os cristatildeos natildeo se intimidavam diante do Deus cristatildeo e em alguns
casos acreditavam estar sendo piedosos combatendo as crenccedilas descabidas desse novo grupo
Atentando para essas circunstacircncias Justino se empenha em mostrar correlaccedilotildees entre
elementos do pensamento cristatildeo e outros comuns agraves culturas no Impeacuterio
A ameaccedila do castigo no poacutes-morte eacute fundamental na estrutura da doutrina da justiccedila
divina Por isso para que sua estrateacutegia de persuasatildeo funcione ele se empenha em demonstrar
ldquoas evidecircnciasrdquo da vida eterna ou do poacutes-morte O apologista admite que ldquose a morte
terminasse na inconsciecircncia seria uma boa sorte para todos os malvadosrdquo (I181) uma
reflexatildeo comum tambeacutem a Plutarco (Consolatio ad Apollonium 11107c) Todavia Justino
manteacutem que a consciecircncia permanece e que a conduta humana eacute passiacutevel de puniccedilatildeo ou
precircmio em um momento aleacutem da vida451 Sua linha de pensamento sobre esse assunto
representa apenas uma das correntes de pensamento que emergiam entre os cristatildeos no seacuteculo
II452
Para minimizar qualquer exotismo no reconhecimento dessa doutrina cristatilde ele
menciona a necromancia453 as visotildees obtidas atraveacutes de crianccedilas puras454 os que satildeo
451 Como Platatildeo discorrendo sobre a vida apoacutes a morte em Phaedo 107c 452 Cf POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005 passim 453 Justino usa o termo nekuomanteiaj que deve ser entendido como ldquoconsulta aos mortosrdquo cf I183 454 Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p178) editou essa passagem da seguinte forma ai` avdiafqorwn paidwn evpopteuseij [les divinations faites sur les entrailles drsquoenfants innocents] Seu texto grego foi fiel ao MS A que sugere o termo avdiafqorwn no lugar de diafqorwn mas a versatildeo em francecircs se distanciou muito do significado estrito Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 59) observou a nota marginal do MS A e acrescentou tambeacutem a conjunccedilatildeo div proporcionando a seguinte frase ai` div avdiafqorwn paidwn evpopteuseij Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 123) apresentam uma correccedilatildeo que parece ser a mais convincente Em vez de substituir diafqorwn por avdiafqorwn eles simplesmente dividem a palavra que aparece no MS A em duas div avfqorwn paidwn evpopteuseij [visions obtained through uncorrupted children] Natildeo eacute possiacutevel dizer se se trata de uma
93
chamados entre os magos de espiacuteritos dos sonhos e espiacuteritos assistentes para assim tentar
estabelecer que mesmo depois da morte as almas conservam a consciecircncia Os casos de
possessatildeo ou loucura quando segundo sua concepccedilatildeo sobre o que se pensava naquela eacutepoca
alguns eram ldquoarrebatados e agitados pelas almas dos mortosrdquo tambeacutem satildeo alocados ao lado
dos oraacuteculos de Anfiloco de Dodona de Piton e outros semelhantes A descida de Ulisses ateacute
a regiatildeo dos mortos na obra de Homero (Odisseia10101 ndash 111ss) as doutrinas de escritores
como Empeacutedocles e Pitaacutegoras Platatildeo e outros que disseram coisas parecidas tambeacutem satildeo
destacadas
A ideia de uma consciecircncia apoacutes a morte fiacutesica natildeo era algo estranho no mundo greco-
romano da eacutepoca de Justino Mas o apologista apresenta uma elaboraccedilatildeo teoloacutegica sobre o
ldquocastigo ou salvaccedilatildeo eternardquo que deveria desempenhar uma funccedilatildeo coercitiva sobre as pessoas
em geral Essas ideias cristatildes satildeo herdeiras de elementos do pensamento judaico jaacute sob a
influecircncia do helenismo Desse modo satildeo encontrados aspectos comuns ao judaiacutesmo como o
da justiccedila divina e outros relativos a outras culturas como a existecircncia da alma455
Segundo Dag Oistein Endsjo456 os judeus sofreram a influecircncia da cultura grega sobre
as ideias do poacutes-morte sem que isso represente uma planificaccedilatildeo das duas culturas A
correspondecircncia entre alguns elementos aparece por exemplo na traduccedilatildeo de lw a v para avdej
na LXX proporcionando a associaccedilatildeo entre a ldquosepulturardquo e o ldquosubmundo dos mortosrdquo
Associaccedilatildeo que remonta a Odisseia de Homero e se estende para niacuteveis mais complexos
Conforme tambeacutem considerou E D Wright457 judeus e cristatildeos emprestaram alguns
elementos da cultura greco-romana para a elaboraccedilatildeo de suas cosmologias Mas as
consulta de crianccedilas vivas ou mortas mas poder haver alguma relaccedilatildeo com as passagens sobre as ldquocrianccedilas purasrdquo nos Papyri Graecae Magicae e principalmente com a Historia Eclesiaacutestica (III1311-12) de Soacutecrates 455 Devido aos objetivos desta pesquisa seraacute necessaacuterio ser bastante seletivo neste ponto A anaacutelise do desenvolvimento das ideias cristatildes sobre a vida apoacutes a morte exigiria uma anaacutelise de suas raiacutezes na cultura egeia entre os egiacutepcios mesopotacircmicos no zoroastrismo na cultura grega em geral e nas vaacuterias fases da religiatildeo dos judeus As correlaccedilotildees estabelecidas neste capiacutetulo satildeo aprofundamentos de toacutepicos sugeridos pelos proacuteprio Justino no decorrer de sua anaacutelises Para mais informaccedilotildees cf SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946 OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992 COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987 DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000 SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006 456 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 457 The History of Heaven New York Oxford University Press 2000 p 139
94
correlaccedilotildees se estendem tambeacutem para com a cultura persa que segundo Alan Segal458
apresentava aspectos muito atrativos ao povo simples
O desenvolvimento das ideias sobre o poacutes-morte entre os judeus eacute complexa Haacute
algum consenso entre os estudiosos de que a ideia de ldquoressurreiccedilatildeordquo tenha aparecido
tardiamente no judaiacutesmo Mas as Escrituras judaicas apresentam referecircncias a algum tipo de
existecircncia apoacutes a morte fiacutesica Um caso emblemaacutetico acontece quando o rei Saul procurou
uma b A a ecircb A a ecircb A a ecircb A a ecirc-t l[]B [evocadora de espiacuteritos] para poder falar com o falecido profeta Samuel (I
Samuel 281-7) praacutetica proibida pela Lei (Dt 189-12) No I seacutec dC a ressurreiccedilatildeo era
motivo de disputas entre saduceus e fariseus459 Os saduceus natildeo acreditavam na ressurreiccedilatildeo
dos mortos Sobre os fariseus Flaacutevio Josefo460 escreveu que ldquotoda alma [] eacute impereciacutevel
mas somente a alma dos bons passa a outro corpo Por outro lado a alma dos homens maus
estaacute sujeita agrave puniccedilatildeo eternardquo Os saduceus satildeo descritos como aqueles que ldquoacreditavam que
Deus natildeo estaacute interessado em se agimos bem ou mal [] agir bem ou mal eacute apenas uma
questatildeo de escolha humana e que uma ou outra pertence a cada um assim podem agir como
bem entendemrdquo461 Tambeacutem descartam a crenccedila ldquona duraccedilatildeo imortal da alma e na puniccedilatildeo e
recompensa no Hadesrdquo462 Na contramatildeo dessas ideias Josefo escreve que os fariseus
ldquotambeacutem acreditam que a alma tem o poder de sobreviver agrave morte em si e que embaixo da
terra haveraacute recompensa ou puniccedilatildeo para a vida de viacutecio ou virtude que se viveu nesta
vidardquo463
Natildeo passou despercebido a Vicente Dobroduka464 que o vocabulaacuterio empregado pelo
historiador judeu se assemelha razoavelmente ao de Platatildeo465 Quer seja por uma intenccedilatildeo do
autor em aproximar a doutrina farisaica agrave filosofia ou pela adaptaccedilatildeo de um editor posterior
os pontos de semelhanccedila entre essas doutrinas e a cultura helecircnica satildeo evidentes Mesmo sem
ser uma forma de pensar que atraiacutesse a todos os judeus naquela eacutepoca natildeo haacute razotildees para se
458 Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 p 394 Cf as noccedilotildees escatoloacutegicas persas que teriam influenciado a apocaliacuteptica judaica em RUSSELL D S The Method and Message of Jewish ApocalypticPhiladelphia Westminster Press 1964 p 19 e em SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008 p 314 Entre essas noccedilotildees esta a ideia da ressurreiccedilatildeo corporal Para uma visatildeo geral da escatologia do Avesta cf MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975 pp 177-207 459 Mt 2223-33 Josefo Ant Jud 1814 Guer Jud 28 460 Guer Jud 2162ss 461 Guer Jud 2162ss 462 Guer Jud 2162ss 463 Ant Jud 1814 464 DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 2005 p 24 465 Meno 81b5 Feacutedon 70a8 e 72a8
95
duvidar que a ideia de uma recompensa futura baseada nas accedilotildees humanas era amplamente
conhecida entre os judeus Como escreveu Elizacircngela A Sousa466
certos elementos nas ideias particulares de juiacutezo satildeo compartilhados por uma e outra cultura assinalando algum tipo de intercacircmbio existente entre elas o que ainda outra vez nos coloca de frente com o pressuposto de que certos aspectos culturais (e religiosos) se constituem se natildeo totalmente a partir de trocas simboacutelicas pelo menos em parte satildeo influenciados por elas
A tradiccedilatildeo aponta que Paulo era um fariseu467 e a sua crenccedila na ressurreiccedilatildeo se
desenvolveraacute entre os cristatildeos No entanto eacute preciso lembrar como destacou D O Sousa468
que entre os cristatildeos ldquonatildeo havia uma unicidade de pensamento em continuidade com a
escatologia judaicardquo No processo proselitista de comunicaccedilatildeo da mensagem cristatilde os fieacuteis
enfrentaram os questionamentos de outros grupos Segundo o relato de Atos dos Apoacutestolos
(1716-34) Paulo enfrentou a resistecircncia dos filoacutesofos epicureus e estoicos no areoacutepago em
Atenas e em outro episoacutedio precisou repreender os coriacutentios em carta porque alguns estavam
sustentando que natildeo existia ressurreiccedilatildeo (I Co 1512-33) Embora os relatos de ressurreiccedilatildeo
dos mortos e da existecircncia de uma consciecircncia apoacutes a morte fossem comuns ao mundo greco-
romano como destaca Dag Oistein Endsjo469 natildeo existia nenhum consenso e eacute possiacutevel
distinguir essas contraposiccedilotildees em pelo menos dois grupos os criacuteticos intelectuais que
incluiacuteam filoacutesofos oradores e escritores e por outro lado a maioria sem instruccedilatildeo
De acordo com Lewis Richard Farnell470 a especulaccedilatildeo filosoacutefica grega natildeo poderia
ser considerada uma testemunha plena da mentalidade e da feacute daquela eacutepoca da cultura greco-
romana Estrabatildeo471 escreveu provavelmente no iniacutecio do I seacuteculo dC que ldquofilosofia era
algo para poucos enquanto poesia era mais uacutetil para as pessoas em geralrdquo No mesmo sentido
Plutarco472 admite que em sua eacutepoca apenas poucos conheciam as Leis de Platatildeo enquanto os
escritos de Homero eram ainda amplamente disseminados Pausacircnias no seacuteculo II dC
escreveu que Platatildeo a quem ele chama de ldquoo maior dos filoacutesofosrdquo473 tinha suas ideias
recebidas somente ldquopor alguns dos gregosrdquo474 Tudo indica que a situaccedilatildeo no II seacuteculo era a
466 SOARES Elizangela A Variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte desenvolvimento de uma crenccedila no judaiacutesmo do segundo templo 127 f (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2006 p 104 467 At 223 468 SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 setdez 2009 p 412 469 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 passim 470 Ibid p 386 471 Geografia 128 472 Moralia 328de 473 Descriccedilatildeo da Greacutecia 4324 474 Ibid 1303
96
mesma que Oriacutegenes475 descreve no seacuteculo seguinte ldquoeacute faacutecil de fato observar que Platatildeo eacute
encontrado somente nas matildeos daqueles que professam serem homens das letrasrdquo
Conforme destacou Henry Chadwick476 o estudo da metafiacutesica platocircnica foi peculiar a
poucos de uma ldquoaristocracia intelectualrdquo Nesse sentido Ramsay MacMullen477 tambeacutem
apontou que a reflexatildeo filosoacutefica natildeo apresentou nenhuma influecircncia detectaacutevel agrave praacutetica
cuacuteltica da religiatildeo tradicional grega478 Por outro lado eacute possiacutevel encontrar criacuteticas da
intelectualidade agraves superstitiones e agrave religiatildeo tradicional Certamente para pensadores como
Plutarco Dio de Prusa e Luciano de Samoacutesata os deuses natildeo existiam conforme as formas
homeacutericas Segundo Ramsay MacMullen479 esses pensadores puristas sustentam que os
deuses estavam distantes demais de tais caracteriacutesticas humanas comuns tais como nascer
comer beber e fornicar como a maioria deles faz extensivamente em suas tradicionais
representaccedilotildees Tudo isso natildeo passa de deisidaimonia ou seja ldquosupersticcedilatildeordquo Muitas vezes os
filoacutesofos reinterpretavam ou racionalizavam os mitos antigos rejeitando acontecimentos
milagrosos recentes semelhantes agraves narrativas antigas
No mundo grego a morte foi usualmente definida como a separaccedilatildeo da alma do corpo
Isso eacute amplamente demonstrado nas representaccedilotildees da morte de muitos guerreiros de Homero
repetidamente descritas como a alma [yuch] deixando o corpo480 E mesmo Platatildeo poderia
concordar com isso tendo Soacutecrates proclamado que a morte em sua opiniatildeo ldquonatildeo eacute nada
aleacutem do que a separaccedilatildeo dessas duas coisas a alma e o corpordquo481 A alma homeacuterica no Hades
era sempre definida como ldquomorterdquo Eram ldquoespiacuteritos da morterdquo482 ldquoMorterdquo natildeo significava
inexistecircncia absoluta mas uma existecircncia deacutebil da alma sem o corpo Sem um corpo fiacutesico
ningueacutem era de fato uma ldquopessoa completardquo Para os gregos a natureza humana sempre
equivaleu a uma unidade psicossomaacutetica Como escreveu Michael Clarcke483 ldquoo homem
homeacuterico natildeo tinha uma mente pois seus pensamentos e consciecircncia eram partes constituintes
da sua vida corpoacuterea como eram os movimentos e o metabolismordquo
475 Contra Celso 62 476 Introduction In ____ Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi 477 Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 p77 478 Isso natildeo quer dizer que filosofia natildeo acarretou mudanccedilas na maneira de pensar a religiatildeo pelos letrados como se considerou no capiacutetulo anterior 479 Ibid p77 480 ENDSJO Dag Oistein Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 p 38 481 Platatildeo Gorgias 524b cf Platatildeo Feacutedon 64c 482 Odisseia 11541 cf Odisseia 10521 10536 1129 1149 483 CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999 p 115
97
Como filoacutesofo Plutarco natildeo acreditava em nenhuma dessas histoacuterias populares sobre
ressurreiccedilatildeo fiacutesica e imortalizaccedilatildeo Para ele somente a alma tinha a chance de alcanccedilar a
esfera divina ldquoquando ela definitivamente se separa e se torna livre do corpo tornando-se
pura descarnada e imaculadardquo484 Mas ele admite que a maioria das pessoas natildeo se importava
com isso
Essas especulaccedilotildees tinham consequecircncias apenas limitadas de modo que natildeo
apresentaram um impedimento destacaacutevel agrave proliferaccedilatildeo de superstitiones inclusive entre as
classes elevadas agraves vezes Conforme Rohde485 argumenta a indignaccedilatildeo apaixonada de
filoacutesofos estoicos e epicureus que atacavam as crenccedilas que repousavam sobre os ensinos de
Homero natildeo poderiam ser explicadas exceto pela suposiccedilatildeo de que Homero e suas
representaccedilotildees permaneciam com uma significativa forccedila de orientaccedilatildeo entre as massas que
natildeo tinham conhecimento da filosofia O proacuteprio Justino indica que as ideias em torno da
crenccedila no Hades ainda eram fortes
O apologista toma o desafio de mostrar que a forma de pensar cristatilde natildeo era uma
novidade tatildeo descabida que natildeo pudesse ser aceita e ao mesmo tempo procura mostrar que
suas ideias apresentam um argumento razoaacutevel Comparando a crenccedila cristatilde na existecircncia de
uma consciecircncia apoacutes a morte do corpo agraves outras opiniotildees disseminadas pelo Impeacuterio
destaca-se tambeacutem que essa doutrina natildeo era demasiadamente estranha aos povos486 Os
elementos aparentemente comuns agrave cultura greco-romana e ao cristianismo nascente satildeo
alinhados na construccedilatildeo do argumento de que se os cristatildeos natildeo apresentavam uma doutrina
demasiadamente nova natildeo deveriam existir razotildees para serem incomodados ou combatidos
Neste caso os que apresentam doutrinas semelhantes agraves dos fieacuteis tambeacutem mereceriam ser
combatidos ou em uma melhor hipoacutetese ambos mereceriam ser deixados em paz
Outro refuacutegio apologeacutetico encontrado por Justino eacute recorrer ao fundamento cristatildeo na
tradiccedilatildeo judaica para assim alegar a antiguidade cristatilde Mas reconhecendo os elementos
semelhantes agrave cultura geral e agrave religiatildeo dos judeus o apologista abaixa a guarda para os
golpes da intelectualidade Por isso sua trama apologeacutetica precisa forjar um sentido
racionalizante desses elementos comuns a pagatildeos e a judeus e apresentar ao mesmo tempo a
doutrina cristatilde como um ensinamento superior agrave filosofia
484 Plutarco Romulus 287 485 ROHDE Erwin [1921] Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966 p 535 486 I186
98
Ele compara a crenccedila cristatilde na consumaccedilatildeo final de todas as coisas agraves noccedilotildees de
Sibila487 e Histapes488 (I201) sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo de tudo o que eacute corruptiacutevel A
funccedilatildeo do fogo no processo do ciclo coacutesmico dos filoacutesofos estoicos tambeacutem eacute elencado
destacando o renascimento do mundo pela transformaccedilatildeo489 Arquitetando seu argumento
apologeacutetico Justino questiona por que os cristatildeos satildeo ldquoperseguidosrdquo se existem algumas
correlaccedilotildees ou semelhanccedila entre as coisas ensinadas entre os fieacuteis e entre os filoacutesofos e
ldquopoetasrdquo estimados pelos romanos490 Essas correlaccedilotildees no entanto levaratildeo o apologista a
um aprofundamento dessas semelhanccedilas e dessemelhanccedilas Ele escreve
Assim quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus pareceraacute apenas que enunciamos um dogma de Platatildeo ao falar sobre conflagraccedilatildeo outro dogma dos estoicos ao dizer que satildeo castigadas as almas dos iniacutequos que ainda depois da morte conservaratildeo a consciecircncia e que as dos bons livres de todo castigo seratildeo felizes pareceraacute que falamos como vossos poetas e filoacutesofos que natildeo se devem adorar obras de matildeos humanas natildeo eacute senatildeo repetir o que disseram Menandro o
487 O substantivo feminino Sibulla pode significar uma ldquoprofetizardquo (PEREIRA Isidro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 516) Admite-se que essas elas profetizavam sob a influecircncia divina O primeiro escritor grego a fazer menccedilatildeo a Sibila eacute Heraacuteclito (Fragmento 92) No entanto Walter Burket (Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 p 116) escreve que mulheres em frenesi espiritual pelas quais os deuses falavam podiam ser encontradas muito antes no Oriente proacuteximo como em Mari no secundo milecircnio e na Assiacuteria no primeiro milecircnio Elas natildeo eram identificadas por um nome proacuteprio ficavam conhecidas apenas com o nome do local onde atuavam Uma coleccedilatildeo de anuacutencios profeacuteticos deu origem ao que ficou conhecido como Libri Sibyllini Acredita-se que a abra tenha sido obtida no reinado de Tarquinio Priscus (616 aC ndash 579 ac) por uma Sibila que protagoniza um mito em torno do livro Por vezes ela eacute chamada apenas de Sibila Os textos serviam de paracircmetro para a religiatildeo e eram guardados no Juacutepiter Captolino Com o incecircndio do templo em 82 aC os livros se perderam Deram iniacutecio a uma raacutepida busca por textos sibiliacutenicos por diversas regiotildees para compor uma nova coleccedilatildeo Poreacutem o caraacuteter e a pretensatildeo dos textos coletados desapontou esse objetivo Augustus determinou que os livros fossem destruiacutedos (Suetonio Vita cesarum Augustus 31 Tacito Anais VI12) Tibeacuterio voltou a examinar os Livros Sibilinos Muitos foram rejeitados como escritos espuacuterios (Cassius Dio LIV17) Pouco tempo mais tarde ainda sob seu governo um novo volume foi admitido (Taacutecito Anais VI12) (cf SMITH W (Ed) A Dictionary of Greek na Roman Antiquities London John Murray 1875 pp 1043-1044) Do primeiro para o segundo seacuteculo uma grande porccedilatildeo de escritos de cunho judaico-cristatildeos entram no paacutereo do textos sibiliacutenios (cf TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899) Eacute difiacutecil saber exatamente a qual ensino sibilino sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo Justino se refere MUNIER (op cit p 185) sugere que seja o trecho dos Oracles Sibyllins II196 MARCOVICH (Op cit p 62) aponta as passagens de Oracle Sibylline 2196ss 2286ss 3672ss 3689ss 4173ss 7120ss 8243ss O mesmo livro sibilino eacute mencionado em I4512 cuja leitura era vetada ao povo Cf ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997 PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988 A Greek-English Lexicon Edited by Henry Georg Liddell and Robert Scott OxfordNew York Clarendon PressOxford University Press 1996 488 U`stasphj eacute a forma grega de se escrever Vistaspa nome do pai de Dario o Grande e protetor de Zoroastro (KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945) Justino provavelmente estaacute se referindo ao escrito pseudoepiacutegrafo dos Oraacuteculos de Histaspes produzido provavelmente entre os seacuteculo II e I aC Essa obra heleniacutestica da Aacutesia menor apresentava fortes traccedilos do Zoroastrismo mas tambeacutem evidenciava aspectos poliacutetico-apocaliacutepticos relacionado ao domiacutenio de Roma sobre os demais povos (SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012 cf CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938) Histaspe e Sibila tambeacutem aparecem juntos nos escrito de Clemente de Alexandria (Stromata VI51) Lactacircncio (Divinae Institutiones VII1519 VII182) 489 I202 490 I203
99
poeta cocircmico e outros com ele que afirmaram que o artiacutefice eacute maior do que aquele que o fabrica (I204-5)
Tendo em vista a criacutetica dos filoacutesofos e letrados agraves crenccedilas gerais do povo as
semelhanccedilas e pontos de contato entre as doutrinas cristatildes e os mitos pagatildeos apontados por
Justino em defesa dos cristatildeos poderia se converter em uma nova dificuldade como algueacutem
que tenta sair de um abismo para cair em outro Por isso ele desenvolve uma explicaccedilatildeo para
essas semelhanccedilas elevando as doutrinas cristatildes a um niacutevel de primazia e evidenciando o seu
aspecto filosoacutefico
Segundo Viviana L Felix491 mesmo admitindo a semelhanccedila entre os ensinos de
Platatildeo e o dos cristatildeos uma posiccedilatildeo contraacuteria agrave doutrina platocircnica da alma eacute assumida
empenhando-se na construccedilatildeo de uma soteriologia e escatologia cristatildes conforme seratildeo
analisadas mais adiante O apologista combate como destaca Van Winden492 as correntes
filosoacuteficas que natildeo tecircm esperanccedila que Deus castigue ou premie em outra vida Seu interesse
estaacute ligado agrave vida eacutetica do homem e seu destino escatoloacutegico
A esperanccedila dos cristatildeos de terem os seus corpos restabelecidos mesmo depois de
mortos poderia representar algo ldquoimpossiacutevelrdquo na opiniatildeo de alguns Justino natildeo usa outro
argumento que natildeo seja o argumento da feacute Esse seu subterfuacutegio indica que muitas coisas que
parecem ser impossiacuteveis em um momento se demonstram possiacuteveis em outro surpreendendo
a muitos Ele usa o exemplo do secircmen humano para dizer que mostrado a algueacutem luacutecido
jamais se poderia supor imediatamente que uma soacute gota desse liacutequido seria capaz de se
transformar em um corpo humano De modo semelhante entatildeo se a princiacutepio pode parecer
estranho crer que um corpo ldquosemeadordquo na sepultura possa se transformar em um corpo
glorificado na ressurreiccedilatildeo depois se mostraraacute evidente493 Explanando esse argumento o
apologista explica que os cristatildeos sustentam que ldquoeacute melhor crer naquilo que estaacute acima da []
proacutepria natureza e que eacute impossiacutevel aos homens do que serem increacutedulosrdquo494 Tudo gira em
torno dos ensinamentos do seu mestre Jesus Cristo O mesmo que ensinou que o que eacute
impossiacutevel para os homens eacute possiacutevel para Deus495 Para um ouvinte alheio agrave mentalidade
judaico-cristatilde tal sentenccedila poderia parecer muito vaga Afinal os pagatildeos estavam
familiarizados com as limitaccedilotildees humanas e os poderes divinos que recheavam os mitos 491 FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa 492 WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 1975 pp 181-190 493 I191-4 494 I196 Kreitton de pisteuein kai tauta kai ta Th| e`autwn fusei kai avnqrwpoij avdunata hv o`moiwj toij alloij avpistein proseilhfamen MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 495 `Ta avdunata para avnqrwpoij dunata para qew|( MINNSPARVIS Op cit p 128 A citaccedilatildeo eacute de Lc 1827
100
Todavia Justino faraacute saber que o ponto chave desse misteacuterio eacute a feacute naquilo que eacute crido como a
ldquorevelaccedilatildeo divinardquo Essa revelaccedilatildeo mostra-se tambeacutem desafiadora pois ao mesmo tempo em
que traz luz sobre as accedilotildees humanas porta condenaccedilatildeo e temor ainda que estes sejam
contemplados pela mensagem da cruz496 de modo reparador Eacute no exato momento em que se
manifesta a necessidade de escolher aquilo que se revela como o correto verdadeiro e bom
que se deve temer pela escolha capaz de determinar o destino no poacutes-morte Essa advertecircncia
tambeacutem foi feita pelo mestre Natildeo temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais
podem fazer temei antes aquele que depois da morte pode lanccedilar alma e corpo no
inferno497 Ele mesmo define o ldquoinfernordquo como ldquoo lugar onde seratildeo castigados os que
tiverem vivido iniquamente e natildeo acreditaram que aconteceratildeo essas coisas ensinadas por
Deus atraveacutes de Cristordquo498 (I198) O Deus absoluto que tudo vecirc tudo conhece e do qual
nada se pode ocultar aparece tambeacutem como o grande juiz das accedilotildees humanas Assim
comunicada essa ldquoverdaderdquo cristatilde ela deve produzir temor e efetivar a sua funccedilatildeo em exigir
uma accedilatildeo positiva ou negativa de quem a ouve ou a lecirc
42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde
Seguindo o raciociacutenio do apologista deve ser a ldquorazatildeordquo a dirigir as escolhas humanas
No entanto a ldquorazatildeordquo ou seja o logos que estaacute em evidecircncia no pensamento de Justino eacute
produto da sua arguiccedilatildeo teoloacutegico-apologeacutetica Eacute possiacutevel identificar uma estrateacutegia literaacuteria
496 Mensagem da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo 497 lsquoMh Fobeisqe touj avnairountaj umaj kai meta tauta mh dunamenouj ti poihsai( fobhqhte de meta to Avpoqanein dunaMenon kai yuchn kai swma eivj geennan evmbalein)v MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 Cf Mt 1028 Lc 124-5 Geenna eacute uma transliteraccedilatildeo grega do termo aramaico ~ N h iy G e que corresponde ao ~oN h i a y G e hebraico e assumiu o sentido de ldquopuniccedilatildeo futurardquo (RUSCONI C Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 106 A primeira menccedilatildeo ao Vale de Hinnom na Biacuteblia aparece em Js 158 No entanto no texto dos LXX (LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]) satildeo empregadas as palavras faragga Onom para se referir ao ~ N Oh i- y g E) da Biacuteblia Hebraica (Biblia Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50]) Em II Cr 283 a LXX substitui ~ N O=h i- b a y g EaringB pela transliteraccedilatildeo Gaibenenom Esse lugar teria destinados primeiramente ao sacrifiacutecio de crianccedilas a Moloque e a Baal numa parte especiacutefica do vale chamada Tophet Depois do Exiacutelio com o intuito de mostrar a abominaccedilatildeo do local o judeus o transformaram no depoacutesito de lixo da cidade Para a destruiccedilatildeo dos resiacuteduos ali depositados o fogo era mantido sempre aceso Por isso os judeus associaram ao local a ideia de sofrimento e corrupccedilatildeo (Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998 p 457) A palavra geenna eacute sempre empregada nos discursos de Jesus (Mt 2333 Lu 125 Mt 522) como um lugar de puniccedilatildeo num julgamento futuro e Justino o emprega nesse mesmo sentido 498 h de geenna evsti topoj enqa kolaxesqai mellousin oi` avdikwn biwsantej kai mh pisteuontej tauta genhsesqai( o[as o` qeoj dia tou Cristou evdidaxe) MINNSPARVIS Op cit p 128 Cf Lc 125 Mt 1028
101
que ressignifica o conceito de ldquorazatildeordquo por meio da construccedilatildeo teoloacutegica em torno do logos
cristatildeo buscando atestar a racionalidade da ldquofilosofiardquo cristatilde
Considerar a religiatildeo cristatilde como uma ldquofilosofia divinardquo499 natildeo eacute apenas o reflexo da
sua trajetoacuteria filosoacutefica ateacute sua conversatildeo eacute tambeacutem uma estrateacutegia apologeacutetica que considera
normal existirem diferentes correntes de pensamento dentro do Impeacuterio sem que isso acarrete
automaticamente perseguiccedilotildees entre grupos distintos500 Segundo Justino eacute o logosrazatildeo que
orienta o curso da apologia em favor dos cristatildeos501 O apologista estaacute convencido de que suas
reivindicaccedilotildees satildeo ldquojustas e verdadeirasrdquo502 o que exige uma investigaccedilatildeo particular sobre o
sentido desses dois conceitos tambeacutem De outro modo a causa uacuteltima das accedilotildees anticristatildes eacute a
influecircncia dos democircnios que colocam o povo e as autoridades contra os fieacuteis Segundo seu
raciociacutenio os ldquomaus democircniosrdquo agiam por meio da promoccedilatildeo da ignoracircncia e da confusatildeo
Por isso ele se demonstra disposto a apresentar outros pontos sobre as crenccedilas cristatildes ldquoa fim
de persuadir os amantes da verdaderdquo503
Tendo em vista que o mecanismo de controle proporcionado pelo conteuacutedo das
doutrinas cristatildes eacute estabelecido fundamentalmente pelo temor diante do Deus que sonda todas
as coisas e que pode punir ou recompensar eternamente aqueles que agem virtuosamente nesta
vida o apologista escreve sobre a capacidade humana de agir racionalmente
Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e se recusem
outras como ldquoa pobreza o sofrimento e a desonra paternardquo504 A incompreensatildeo dessa
ldquoracionalidade cristatilderdquo fazia com que muitos se opusessem aos cristatildeos A falta de
conhecimento sobre as doutrinas cristatildes seria a responsaacutevel por exemplo por muitos
acusarem-lhes de ateiacutesmo505 Por ser uma religiatildeo nova e em processo de consolidaccedilatildeo natildeo eacute
nenhuma surpresa que muitos ainda estivessem confusos acerca das doutrinas cristatildes que por
vezes encabulavam os proacuteprios cristatildeos506
499 II Apol 125 500 II Apol 126 501 II Apol 128 502 I1211 tambeacutem em I683 ldquonatildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo 503 I1211 504 I128 505 I131 506 Os cristatildeos estavam longe de apresentarem unidade doutrinaacuteria Justino faz menccedilatildeo a cristatildeos divergentes como Helena Menandro e os marcionitas (I261-8)
102
421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios
Segundo a tese apresentada por Justino os democircnios se apoderam de todos aqueles
que de um ou outro modo natildeo trabalham por sua proacutepria salvaccedilatildeo O conceito de daiacute mwn
estava presente na cultura grega desde Homero e Hesiacuteodo507 Seu campo semacircntico eacute extenso
Deus conceito baacutesico que mais se aproxima da ideia que Justino sustenta eacute o de ldquoum ser
divinordquo ldquoo poder divinordquo ldquoum semideusrdquo ldquoser que interfere no destino humanordquo e poderia
ser ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo508
O conceito de ldquosalvaccedilatildeordquo natildeo estaacute claro nesses escritos mas estaacute relacionado agrave
recompensa positiva daqueles que creram e agiram conforme a revelaccedilatildeo dos desiacutegnios
divinos Isso tambeacutem significa associar-se ao logos e dissociar-se dos enganos demoniacuteacos
Desse modo ele escreve que ldquodepois de crer no logos noacutes nos afastamos deles [dos democircnios]
e por meio do Filho seguimos o uacutenico Deus unigecircnitordquo509
Esse distanciamento dos enganos destes seres malignos e pelo apego ao logos eacute o que
produz uma mudanccedila de conduta Seu testemunho em defesa da feacute eacute que os que antes se
compraziam na dissoluccedilatildeo agora abraccedilam apenas a temperanccedila os que antes se entregavam
agraves artes maacutegicas agora se consagram ao Deus bom e ingecircnito aqueles que antes eram
apegados aos bens materiais e agraves rendas agora compartilham do quem tecircm os que antes se
odiavam e se matavam mutuamente desprezando aqueles que natildeo pertenciam agrave mesma raccedila
pela diferenccedila de costumes agora vivem todos juntos rezam pelos seus inimigos e tratam de
persuadir os que os aborrecem injustamente a fim de que vivendo conforme conselhos de
Cristo tenham boas esperanccedilas de alcanccedilar uma recompensa de Deus (I Apol 141-3) Por
isso o filoacutesofo apologista critica as accedilotildees anticristatildes romanas que acatavam as caluacutenias
disseminadas dizendo ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e natildeo
tenhais a quem castigarrdquo510
A fonte da moralidade cristatilde estaacute primeiramente relacionada agrave mensagem do seu
mestre o Cristo por vezes tido como motivo de escacircndalo para os infieacuteis Essa moralidade eacute
destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e comentaacuterios ldquodisseminados
507 POPE Kyle Mark The concept of theDAIMWN in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 13-17 cf REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004 508 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 (Perseu Project) 509 I Apol 141 510 I Apol 124
103
entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso seu discurso sobressalta o
valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de temperanccedila511 Tambeacutem recebem
destaques a doutrina cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos
necessitados e a ausecircncia de valor da ostentaccedilatildeo512 Com o mesmo tom piedoso seguem as
afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico513 Desse
modo Justino contribui tambeacutem para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos
propondo uma identidade coletiva Nesse processo o apologista combate um conceito
estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que considera equiacutevocos e mal entendidos
ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja Essa sua atitude revela tambeacutem que o processo de construccedilatildeo da
identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada principalmente pela
necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os variados grupos
cristatildeos Pois as Igrejas em meados do seacuteculo II devem ser vistas ainda como manifestaccedilotildees
de ldquocristianismosrdquo514
No intuito de explicar o caraacuteter das crenccedilas cristatildes Justino faz referecircncia agrave recepccedilatildeo e
interpretaccedilatildeo de escritos e doutrinas Ser cristatildeo em sua perspectiva natildeo eacute simplesmente
pertencer a um grupo eacute um ldquoidealrdquo o de aprender o que foi ensinado pelo Cristo e praticar
em suas obras Desse modo elege-se a praacutetica dos ensinamentos do Logos como o elemento
fundamental diferenciador entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos515 Justino defende a liberdade para
estes que ele tem por ldquocristatildeosrdquo aos outros espera-se que sejam mesmo perseguidos516
Dentre os ensinos do Cristo estaacute o pagamento dos tributos e contribuiccedilotildees517 mas o
apologista vai aleacutem Propondo-se a oferecer algumas das principais informaccedilotildees sobre o
conteuacutedo das crenccedilas cristatildes um paralelo entre a natureza desses ensinamentos e outras
arguiccedilotildees eacute traccedilado518
Jesus eacute descrito como u`ioj de Qeou [filho de Deus] aquele que ainda que parecesse
homem de modo comum por sua sabedoria mereceria chamar-se filho de Deus Haacute um
511 I151-7 512 I141-919 513 I161-6 514 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 515 ldquoAqueles poreacutem que se vecirc que natildeo vivem como ele ensinou sejam declarados como natildeo cristatildeos por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de Cristo pois ele disse que se salvariam natildeo os que apenas falassem mas que tambeacutem praticassem as obrasrdquo (I169) 516 ldquoAqueles que natildeo vivem conforme os ensinamentos de Cristo e satildeo cristatildeos apenas de nome noacutes somos os primeiros a vos pedir que sejam castigadosrdquo (I1614) 517 Justino recorre agrave passagem comum a Mt 221719-20 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo cf I172 518 I144
104
contraste entre o Cristo que nasceu como Logos de Deus e o que afirmavam sobre Hermes
chamado de Logos anunciador ou mensageiro de Deus519 Para rebater o desdeacutem pela
crucificaccedilatildeo de Cristo que poderia representar algo despreziacutevel aos olhos de muitos no
Impeacuterio o apologista aponta que tambeacutem os filhos de Zeus sofreram mortes terriacuteveis Sobre
ele haver nascido de uma virgem ele compara-o a Perseu Quanto agrave cura de coxos paraliacuteticos
e enfermos de nascimento e ateacute mesmo ressurreiccedilatildeo de mortos ele aponta que haacute alguma
semelhanccedila com Ascleacutepio520 As comparaccedilotildees tambeacutem envolvem Dioniso e Heacuteracles esta
uacuteltima ascendida depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos os Dioacutescoros filhos de
Leda Perseu de Dacircnae e Belerofonte nascido de homens que ascenderam sobre o cavalo
Peacutegaso O apologista fala tambeacutem dos imperadores mortos aos quais muitos consideravam
como dignos da imortalidade e alguns juravam terem visto Ceacutesar subir ao ceacuteu521 Mas ele
adverte ldquoNatildeo pedimos que se aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque
dizemos a verdaderdquo522
As doutrinas cristatildes satildeo apresentadas como a ldquouacutenica verdaderdquo e a mais antiga do que
todos os escritores que existiram Seu discurso busca demonstrar que Jesus Cristo eacute
propriamente o uacutenico Filho nascido de Deus como seu Logos seu Primogecircnito e sua
Potecircncia A encarnaccedilatildeo do Filho pelo seu designo deu-se para que ele ensinasse essas
verdades para a transformaccedilatildeo e conduccedilatildeo do ldquogecircnero humanordquo523 Poreacutem segundo sua teoria
apologeacutetica antes de tornar-se homem entre os homens houve alguns democircnios malvados
que se adiantaram a dizer por meio dos poetas terem acontecido os mitos que inventaram
Seriam esses os mitos gerais conhecidos por gregos e romanos Em oposiccedilatildeo ao
esclarecimento proposto pelo logos para a salvaccedilatildeo humana esta o obscurecimento de toda a
racionalidade proporcionado pelos democircnios
Os democircnios satildeo entatildeo reconceituados a partir de uma perspectiva cristatilde que toma por
base a tradiccedilatildeo judaica em intersecccedilatildeo com aspectos da cultura grega conforme analisou K
M Pope524 Sua imagem estaacute relacionada ao ldquopriacutencipe dos maus democircniosrdquo chamado de
ldquoserpente satanaacutes diabo ou caluniador Todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que
519 I221-2 520 I225-6 521 Cassius Dio (Hist Rom 56462 cf T Livio Histoacuteria de Roma (Ad urbe condita) I165-7) menciona a histoacuteria de que um senador e ex-pretor tinha jurado que ele tinha visto Augustus subindo aos ceacuteus Suetocircnio tambeacutem se refere a algo desse tipo Augustus 1004 Uma histoacuteria similar foi contada sobre Iulia Drusilla a irmatilde de Caliacutegula (Cassius Dio Hist Rom 59114) Secircneca zomba deste testemunho em Apocolocyntosis I 522 I231 523 I232 cf SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987 524 The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 52-53
105
o seguem seraacute enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de
antematildeo anunciada por Cristordquo525
Justino acredita ser possiacutevel demonstrar a veracidade da feacute cristatilde por meio do
cumprimento das Escrituras526 Ele explica que os profetas de Deus movidos pelo logos e sob
o Espiacuterito profeacutetico anunciaram antecipadamente os acontecimentos futuros Vem em
seguida uma seacuterie de ldquoprediccedilotildeesrdquo sobre a vinda de Cristo e sobre o que deveria acontecer tais
como a queda de Jerusaleacutem527 a cura das enfermidades e a morte de Cristo a ressurreiccedilatildeo dos
mortos e a prediccedilatildeo de Isaiacuteas528 sobre a expansatildeo para todas as naccedilotildees Ele tambeacutem procura
mostrar que ateacute o sofrimento e a humilhaccedilatildeo de Jesus estavam previstas nas profecias e que
ele chegou a ser abandonado ateacute pelos seus (I501ss) Seu raciociacutenio eacute o seguinte
Com efeito do mesmo modo que o acontecido antecipadamente anunciado por mais que natildeo tivesse sido compreendido aconteceu assim tambeacutem o que ainda falta para ser cumprido aconteceraacute por mais que natildeo se compreenda nem se creia Assim eacute que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo uma jaacute cumprida como homem desonrado e passiacutevel a segunda quando viraacute dos ceacuteus acompanhado de seu exeacutercito de anjos quando ressuscitaraacute tambeacutem os corpos de todos os homens que existiram revestiraacute de incorruptibilidade os que forem dignos e enviaraacute os iniacutequos com percepccedilatildeo eterna ao fogo eterno junto com os perversos democircnios (I521-3)
Com convicccedilatildeo sobre o cumprimento das profecias escreve ldquoDe fato por que motivo
haveriacuteamos de crer que um homem crucificado eacute o primogecircnito do Deus ingecircnito e que
julgaraacute todo o gecircnero humano se natildeo encontraacutessemos testemunhos sobre ele publicados
antes de ele ter nascido como homem e natildeo os viacutessemos literalmente cumpridosrdquo 529 E isso o
faz pensar que a apresentaccedilatildeo desse elevado nuacutemero de referecircncias a prediccedilotildees e seus
cumprimentos deveria razoavelmente convencer a seus leitores530
Os mitos dos pagatildeos satildeo comparados aos ldquoensinosrdquo cristatildeos sustentando que eles natildeo
apresentam nenhuma prova de sua veracidade Isso deveria demonstrar que foram ditos por
obra dos ldquodemocircnios perversosrdquo para enganar e extraviar o ldquogecircnero humanordquo Ouvindo os
profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens iacutempios seriam castigados atraveacutes do
fogo esses seres maleacutevolos teriam colocado agrave ldquofrente muitos que se disseram filhos de Zeus
crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo
como um conto de fada semelhante aos contados pelos poetasrdquo531 Assim eacute elencada uma
seacuterie de semelhanccedilas entre a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e a greco-romana para mostrar a distorccedilatildeo
525 I281 526 I301ss 527 I471ss 528 Is 651-15 520 529 I532 530 Justino escreve que seriam persuadidos os que ldquoamam a verdade que natildeo seguem a opiniatildeo nem se deixam dominar por suas paixotildeesrdquo (I5310-12) 531 I542
106
pagatilde que soacute podem ser identificadas atraveacutes de uma hermenecircutica bem peculiar532 As
comparaccedilotildees vatildeo desde o texto de Gn 4910-11 agrave vinha de Dioniso e sua ascensatildeo
semelhante agrave subida de Belerofonte montado no cavalo Peacutegaso ao ceacuteu o texto de Is 714 e a
lenda de Perseu Sl 186 e as narrativas sobre Heacutercules ateacute as ldquoprofeciasrdquo de curas a todas as
enfermidades e ressurreiccedilatildeo dos mortos533 ao mito de Ascleacutepio Mas a crucificaccedilatildeo eacute algo que
os pagatildeos natildeo poderiam imitar pois tudo ldquotudo o que se refere agrave cruz foi dito de forma
simboacutelicardquo534
Os judeus no entanto satildeo tidos como ignorantes sobre o cumprimento das profecias
de que Jesus deveria vir nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda
doenccedila toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e
crucificado que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus
que ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os
homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nele535
Ele recorre aos escritos do profeta Isaiacuteas536 para indicar que Cristo seria concebido por
uma virgem O logos eacute conceituado como o Filho a primeira virtude ou potecircncia depois de
Deus que eacute Pai e soberano de todas as coisas O logos entatildeo se tornou carne e nasceu homem
(I3210) Por Espiacuterito e forccedila que procede de Deus ele eacute reconhecido como o Logos que eacute o
primogecircnito de Deus O apologista sustenta que aqueles que profetizam satildeo inspirados pelo
logos divino
Em sua perspectiva os judeus detentores da tradiccedilatildeo e dos livros dos profetas poreacutem
aleacutem de natildeo reconhecerem a Cristo jaacute vindo tambeacutem odeiam aos cristatildeos Isso eacute destacado
na sua afirmaccedilatildeo de que na guerra dos judeus Bar Koseba o cabeccedila da rebeliatildeo mandava
submeter a terriacuteveis torturas somente os cristatildeos caso estes natildeo negassem e blasfemassem
Jesus Cristo (I316)
A mensagem cristatilde eacute um elemento apelativo que busca induzir os fieacuteis a uma conduta
diferente ldquoNoacutes que antes nos mataacutevamos mutuamente agora natildeo soacute natildeo fazemos guerra
contra os nossos inimigos mas tambeacutem por natildeo mentir nem enganar os juiacutezes que nos
interrogam morremos felizes de confessar a Cristordquo (I393) Justino considera ridiacuteculo que os
soldados que se arrolam e se alistam pusessem a lealdade para com o imperador ldquoacima de
sua proacutepria vida acima dos pais paacutetria e tudo o que lhes pertence embora nada de
532 BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 2009 pp 538-555 533 Is 355-6 Mt 115 534 I551 535 I317-8 536 Is 111-10
107
impereciacutevel lhes pudeacutesseis oferecerrdquo (I395) Por outro lado os cristatildeos que amam a
incorrupccedilatildeo suportam tudo a troco de receber daquele que confiam ter poder para lhes dar
(I395)
A superioridade do Deus judaico-cristatildeo sobre os deuses das outras naccedilotildees aparece
submetendo os demais deuses ao jugo dos ldquodemocircniosrdquo sob a sombra da ignoracircncia que esses
propagam Entretanto o Deus dos cristatildeos eacute o Deus que criou a racionalidade
Justino coloca que
no princiacutepio [Deus] criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma pedra Virtude e viacutecio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e iniquidade (I283-4)
Esse ser racional que Justino se refere eacute tambeacutem aquele cuja racionalidade pode ser ratificada
no reconhecimento e submissatildeo aos ensinos cristatildeos Haacute uma postura anti-estoica manifesta
em suas palavras que reduz o dogma do destino dessa corrente filosoacutefica a ldquoimpiedade e
iniquidaderdquo537
Ele sustenta que os cristatildeos aprenderam com os profetas que
os castigos e tormentos assim como as boas recompensas satildeo dadas a cada um conforme as suas obras Se natildeo fosse assim mas tudo acontecesse por destino natildeo haveria absolutamente livre-arbiacutetrio Com efeito se jaacute estaacute determinado que um seja bom e outro mau nem aquele merece elogio nem este vitupeacuterio Se o gecircnero humano natildeo tem poder de fugir por livre determinaccedilatildeo do que eacute vergonhoso e escolher o belo ele natildeo eacute irresponsaacutevel de nenhuma accedilatildeo que faccedila538 (I432-3)
Ele destaca que se por outro lado algueacutem
estivesse determinado [para] ser mau ou bom natildeo seria capaz de coisas contraacuterias nem mudaria com tanta frequumlecircncia Na realidade nem se poderia dizer que uns satildeo bons e outros maus desde o momento que afirmamos que o destino eacute a causa de bons e maus e que realiza coisas contraacuterias a si mesmo ou que se deveria tomar como verdade o que jaacute anteriormente insinuamos isto eacute que virtude e maldade satildeo puras palavras e que soacute por opiniatildeo se tem algo como bom ou mau Isso como demonstra a verdadeira razatildeo eacute o cuacutemulo da impiedade e da iniquidade (I436)
O ldquodestino iniludiacutevelrdquo reconhecido pelo apologista eacute que aqueles que escolheram o
bem tenham ldquodigna recompensardquo e os que escolheram o contraacuterio tenham igualmente ldquodigno
castigordquo (I437) Dentro do sistema de pensamento construiacutedo por Justino seria incoerente
com o sistema de controle social admitir que Deus tenha determinado as escolhas humanas
Nesse caso como ele escreve ldquonatildeo seria digno de recompensa e elogio pois natildeo teria
escolhido o bem por si mesmo mas nascido jaacute bom nem por ter sido mau seria castigado
537 avsebeia kai avdikia evsti I284 538 PLATAtildeO Repuacuteblica 617e
108
justamente pois natildeo o seria livremente mas por natildeo ter podido ser algo diferente do que foirdquo
(I438) Desse modo o apologista deixa clara sua oposiccedilatildeo ao estoicismo539
O pensamento de Justino sobre isso poderia ser resumido em ldquoDeus criou livres tanto
os anjos como o gecircnero humano e por isso receberam com justiccedila o castigo de seus pecados
no fogo eternordquo540 Tal alegaccedilatildeo estaria fundamentada na ideia de que tudo deve ser capaz de
viacutecio e de virtude pois ningueacutem seria digno de louvor se natildeo pudesse tambeacutem voltar-se para
um desses extremos541
Ele assume que esta doutrina foi ensinada pelo Espiacuterito profeacutetico que por meio de
Moiseacutes nos testemunha que falou ao primeiro homem que havia criado do seguinte modo
ldquoOlha que diante de tua face estaacute o bem e o mal escolhe o bemrdquo542 Ele cita tambeacutem Isaiacuteas543
e o proacuteprio Platatildeo544 ao dizer A culpa eacute de quem escolhe Deus natildeo tem culpa Justino
alega que Platatildeo falou isso por tecirc-lo tomado do profeta Moiseacutes desse modo ele diz que ldquopois
se sabe que este eacute mais antigo do que todos os escritores gregosrdquo (I441-8) Para explicar os
elementos semelhantes entre os escritos gregos e os judaico-cristatildeos o apologista alega que
tudo o que os filoacutesofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplaccedilatildeo das coisas celestes aproveitaram-se dos profetas natildeo soacute para poder entender mas tambeacutem para expressar isso Daiacute que parece haver em todos algo como germes de verdade Todavia demonstra-se que natildeo o entenderam exatamente pelo fato de que se contradizem uns aos outros (I449-10)
Deus conhece de antematildeo tudo o que seraacute feito por todos os homens e eacute decreto seu
recompensar cada um segundo o meacuterito de suas obras e por isso justamente prediz por meio
do Espiacuterito profeacutetico o que para cada um viraacute da parte dele conforme o que suas obras
mereccedilam545 Ele eacute aquele que constantemente conduz o gecircnero humano agrave reflexatildeo e agrave
lembranccedila demonstrando-lhe que cuida e usa de providecircncia para com os homens
Sobre a novidade da religiatildeo cristatilde Justino escreve ldquoAlguns sem motivo para rejeitar
o nosso ensinamento poderiam nos objetar que ao dizermos que Cristo nasceu somente haacute
cento e cinquumlenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio
Pilatos os homens que o precederam natildeo tecircm nenhuma responsabilidaderdquo (461) Ele entatildeo
responde
Noacutes recebemos o ensinamento de que Cristo eacute o primogecircnito de Deus e indicamos antes que ele eacute o Logos do qual todo o gecircnero humano participou Portanto aqueles
539 ldquohellipnoacutes dizemos que aconteceraacute a conflagraccedilatildeo universal mas natildeo como dizem os estoacuteicosrdquo II63 cf Alesandre de Aphrodisias On Fate 9 [17525] 540 II65 541 II66 542 Dt 301519 543 Is 116-20 544 Repuacuteblica X617e 545 I4411
109
que viveram conforme o Logos satildeo cristatildeos quando foram considerados ateus como sucedeu entre os gregos com Soacutecrates Heraacuteclito e outros semelhantes e entre os baacuterbaros com Abraatildeo Ananias Azarias e Misael e muitos outros cujos fatos e nomes omitimos agora pois seria longo enumerar De modo que tambeacutem os que antes viveram sem razatildeo [logos] se tornaram inuacuteteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razatildeo [logos] mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela satildeo cristatildeos e natildeo experimentam medo ou perturbaccedilatildeo O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma virgem pela virtude do Logos conforme o desiacutegnio de Deus Pai e soberano do universo e foi chamado Jesus e depois de crucificado e morto ressuscitou e subiu ao ceacuteu o leitor inteligente poderaacute perfeitamente compreendecirc-lo pelas longas explicaccedilotildees que foram dadas ateacute aqui (462-6)
O apologista usa de uma estrateacutegia semacircntica para literalmente ldquodar razatildeordquo agraves
doutrinas cristatildes
422 A razatildeo que julga
No mundo grego a palavra logoj jaacute assumira uma significacircncia para o pensamento
especulativo desde muito cedo Era um termo teacutecnico para as vaacuterias ldquociecircnciasrdquo que se
desenvolviam na Greacutecia do seacutec V aC A gramaacutetica a loacutegica a retoacuterica a psicologia a
metafiacutesica a teologia e a matemaacutetica deram-lhe sentidos diferentes ainda dentro do mesmo
campo da ciecircncia Seu campo semacircntico eacute vasto Pode significar razatildeo palavra discurso
menccedilatildeo declaraccedilatildeo afirmaccedilatildeo resposta promessa dito proveacuterbio ou maacutexima546 Alguns
destes significados podem parecer contraditoacuterios Ele eacute um termo comum que pode aparecer
em qualquer lugar Aparece nos textos de Homero Heroacutedoto Platatildeo Aristoacuteteles Tuciacutededes
Piacutendaro Aeschylus Xenoacutefanes Soacutefocles Aischines e outros547 mas eacute seu significado
filosoacutefico-religioso que importa A histoacuteria desse conceito eacute bastante complexa todavia eacute
suficiente abordar os principais aspectos do uso filosoacutefico-religioso do logoj
Justino sustenta que os gregos aprenderam muitos conceitos com as Escrituras
judaicas Segundo sua teoria Ptolomeu rei do Egito se preocupou em formar uma biblioteca
e nela reunir os escritos de todo o mundo tendo notiacutecia dessas profecias mandou uma
546 Significa ainda decisatildeo resoluccedilatildeo ordem proclamaccedilatildeo ensinamento doutrina parte de doutrina definiccedilatildeo hipoacutetese condiccedilatildeo pacto fama tradiccedilatildeo lenda reputaccedilatildeo boato opiniatildeo notiacutecia revelaccedilatildeo oraacuteculo resposta de oraacuteculo palavra revelada verbo assunto mateacuteria objeto questatildeo fato acontecimento coisa discurso frase prosa falar faculdade de falar e como logoj proforikoj discurso extriacutenseco palavra uso da palavra direito agrave palavra coloacutequio discussatildeo faacutebula narrativa imaginaacuteria lenda mito narrativa histoacuterica histoacuteria literatura conta caacutelculo soma explicaccedilatildeo avaliaccedilatildeo valor significado a razatildeo praacutetica (nouj especulativo) razatildeo divina personificada motivo causa fundamento justificaccedilatildeo plano projeto RUSCONI C (ed) DICIONAacuteRIO do grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 350 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001 547 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001
110
embaixada pedindo os livros dos judeus Ptolomeu providenciou que fossem traduzidos para o
grego Depois disso os livros permaneceram entre os egiacutepcios ateacute o presente e os judeus os
usam no mundo inteiro Assim os gregos teriam aprendido muitas coisas que teriam
ldquoenriquecidordquo seus mitos e pensamentos em geral548
Todavia foi Filon de Alexandria quem primeiro tomou as interrogaccedilotildees filosoacuteficas
estabelecendo correlaccedilotildees com os elementos da cultura religiosa judaica549 Era corrente no
judaiacutesmo a reflexatildeo sobre a ldquoPalavrardquo criadora e comunicadora da revelaccedilatildeo divina Mas foi o
contato com a cultura helecircnica e as proximidades semacircnticas ainda que muito limitadas entre
Escrituras judaicas e as palavras gregas que carregaram o teor filosoacutefico ou especulativo550
Conforme analisou Dax F P Nascimento551 eacute por intermeacutedio do Logos uma espeacutecie de
declaraccedilatildeo divina que se remete a si mesmo revelado que se obteacutem a educaccedilatildeo acerca da
verdade por meio da qual haacute o arrependimento ou conversatildeo dos prazeres e ciecircncias do
mundo sensiacutevel para a razatildeo e para a piedade
Entre os cristatildeos natildeo haacute evidecircncias de que a reflexatildeo sobre o logos tenha a princiacutepio
alguma conotaccedilatildeo filosoacutefica Teoacutelogos como R Bultmann552 G Kimmel553 O Culmann554
concordam que o logos mencionado no proacutelogo do Evangelho segundo Joatildeo eacute uma niacutetida
referecircncia agrave ldquoPalavrardquo comunicadora de Deus sobre a qual Fiacutelon refletiu Eacute possiacutevel que na
virada do I para o II seacuteculo a expansatildeo cristatilde comeccedilasse a exigir uma atenccedilatildeo maior tambeacutem
aos conceitos e questotildees pertinentes ao mundo greco-romano555
Com a conversatildeo de filoacutesofos como Atenaacutegoras Aristides e do proacuteprio Justino as
correlaccedilotildees entre essas correntes de pensamentos se manifestam principalmente na produccedilatildeo
apologeacutetica cristatilde556
Justino escreve que do logos que inspirou os profetas Platatildeo tomou o que disse sobre
Deus ter criado o mundo transformando uma mateacuteria informe557 Segundo Minns e Parvis558
548 I311-5 549 BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950 550 KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91 Cf COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp 1507-1562 551 O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia PUC Rio de Janeiro 2003 p 179 552 Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004 553 Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983 554 Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002 555 ARZANI A A teologia do logoj no Quarto Evangelho Orientador Dr Paulo Beniacutecio Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008 pp 52-60 556 Cf WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982 557 I591
111
suas comparaccedilotildees entre algumas passagens das Escrituras e dos textos de Platatildeo satildeo
interpretaccedilotildees difiacuteceis de serem compartilhadas pois apresentam uma hermenecircutica muito
particular e em alguns pontos chega a interpretar o platonismo segundo formas comuns ao
estoicismo Destacando os elementos semelhantes ao cristianismo e outras correntes de
pensamento Justino alega ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim
todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinasrdquo559 Mas esses pontos de contato satildeo
limitados Ele escreve que
natildeo satildeo totalmente semelhantes como tambeacutem as dos outros filoacutesofos os estoacuteicos por exemplo poetas e historiadores De fato cada um falou bem vendo o que tinha afinidade com ele pela parte que lhe coube do logos seminal divino Todavia eacute evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros natildeo alcanccedilaram uma ciecircncia infaliacutevel nem um conhecimento irrefutaacutevel Portanto tudo o que de bom foi dito por eles pertence a noacutes cristatildeos porque noacutes adoramos e amamos depois de Deus o logos que procede do mesmo Deus ingecircnito e inefaacutevel Ele por amor a noacutes se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curaacute-los Todos os escritores soacute puderam obscuramente ver a realidade graccedilas agrave semente do logos neles ingecircnita560
Enquanto algumas correlaccedilotildees entre o pensamento cristatildeo e a cultura greco-romana
satildeo fruto da accedilatildeo dos democircnios para causar confusatildeo uma porccedilatildeo do logos pode ser
identificada para aleacutem daqueles que deteacutem o logos pleno
Nesse sentido ele escreve
Sabemos que alguns que professaram a doutrina estoacuteica foram odiados e mortos Pelo menos na eacutetica eles se mostram moderados assim como os poetas em determinados pontos por causa da semente do Logos que se encontra ingecircnita em todo o gecircnero humano (II71)
Heraacuteclito que foi banido de Eacutefeso por causa de suas ideias e tambeacutem o filoacutesofo
Musonius que dentre outros que sofreram algum tipo de hostilidade nos tempos de Nero a
Vespasiano561 satildeo citados como exemplo Natildeo haacute nenhum motivo evidente para Justino
mencionar Heraacuteclito exceto pela sua teoria sobre o logos Quanto a Gaius Musonius Rufus
seu nome eacute lembrado pelo acento moral de sua filosofia de inspiraccedilatildeo estoica que o tornou
ridiacuteculo a muitos soldados562 Desse modo procura-se destacar que ldquoos democircnios sempre se
empenharam em tornar odiosos aqueles que de algum modo quiseram viver conforme o
Logos e fugir da maldade (II72)
O apologista ainda considera como uma investida dos democircnios a pena de morte
estabelecida contra aqueles que lessem os livros de Histaspes da Sibila e dos profetas a fim
558Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 236 559 I6010 560 II132-5 561 TACITO Histoacuterias III81 562 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 42
112
de impedir por meio do terror que os homens consigam lendo-os o conhecimento do bem e
retecirc-los como seus escravos563
Segundo o apologista muito mais odiado que aqueles que possuem o logos seminal
satildeo os que tecircm conhecimento e contemplaccedilatildeo do logos total Conforme suas proacuteprias
palavras ldquoO logos de Deus eacute seu Filho [] E tambeacutem se chama mensageiro e embaixador
porque ele anuncia o que se deve conhecer e eacute enviado para nos manifestar tudo o que o Pai
nos comunicardquo564 Sendo os cristatildeos os detentores do logos total e sendo o logos total aquele
que anuncia o que se deve conhecer para se proceder corretamente e receber a recompensa
futura tudo se resume agrave submissatildeo agraves ideias cristatildes565
A forma de controle empregada pelos romanos e que conduz os cristatildeos diante dos
tribunais satildeo pintadas como um sinal da ignoracircncia despreziacutevel daqueles que se submetem agrave
irracionalidade da obscuridade demoniacuteaca em exerciacutecio de uma falsa justiccedila
O julgamento segundo a ldquorazatildeordquo eacute o julgamento final estabelecido pelo Deus cristatildeo e
sobre o qual o apologista pretende convencer a todos ao seu redor566 Os democircnios no
entanto natildeo conseguem convencer de que natildeo haveraacute a conflagraccedilatildeo para castigar os iacutempios
do mesmo modo que natildeo conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu A uacutenica coisa
que conseguem eacute fazer com que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em
meio aos maus costumes entregues agraves suas paixotildees e seguindo a opiniatildeo vatilde procurem tirar a
vida dos cristatildeos e os odeiem Os cristatildeos por outro lado satildeo apresentados como aqueles que
por pura compaixatildeo por eles procuram persuadi-los a se converterem
Os maus haacutebitos dos deuses satildeo reprovados por essa medida cristatilde pois serviriam para
a corrupccedilatildeo dos que eram educados tendo em vista que muitos consideravam ldquobelordquo serem
imitadores dos deuses567 O apologista natildeo pode admitir que uma mente sensata aceite as
accedilotildees de Zeus e de Ganimedes como ldquodivinasrdquo (I215) Por isso ele relaciona a disseminaccedilatildeo
desses mitos agraves artimanhas dos democircnios que induzem os homens agrave imoralidade Em
oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo dos democircnios Justino sustenta que aos cristatildeos foi ensinado que soacute poderiam
alcanccedilar a imortalidade aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus assim como
tambeacutem se sustenta que seratildeo castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e
563 Cf Tacitus Annales II32 XII52 Historias I22 II62 Cassius Dio Hist Rom 57157-8 564 I634-5 565 Cf PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988 566 Cf KERESZTES P Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986 567 E um pensamento que estava relacionado aos epicureus pelo menos Philodemus Sobre a Piedade 71
113
natildeo se converteram (I216) Para os outros estaacute guardado o dia do juiacutezo descrito com grande
tormento em que se encontraratildeo os injustos568
A moralidade cristatilde eacute destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e
comentaacuterios ldquodisseminados entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso
seu discurso sobressalta o valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de
temperanccedila569 que crescia em nuacutemeros naquela eacutepoca Tambeacutem recebem destaques a doutrina
cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos necessitados e a ausecircncia de
valor da ostentaccedilatildeo570 Com o mesmo tom piedoso seguem as afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia
a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico571 Desse modo Justino contribui tambeacutem
para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos propondo uma identidade
coletiva
Um conceito estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que chama de equiacutevocos e mal
entendidos ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja satildeo combatidos Essa sua atitude revela que o
processo de construccedilatildeo da identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada
principalmente pela necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os
variados grupos cristatildeos572 Os outros grupos cristatildeos como o dos seguidores de Marciatildeo satildeo
tidos como instrumentos nas matildeos dos democircnios (I581) Seus discursos satildeo ldquoirracionaisrdquo e
satildeo presas de doutrinas ateiacutestas do democircnio573
Tendo em vista que as pessoas satildeo capazes de agir bem ou mal devido agrave liberdade
concedida por Deus considera-se que em todas as partes haacute tambeacutem os que ldquolegislaram e
filosofaram conforme a reta razatildeordquo ou aparte dela ao mandarem que se faccedilam algumas coisas
e se evitem outras574 A ldquoreta razatildeordquo agrave qual Justino se refere eacute aquela que deriva do Logos
cristatildeo que permeia a criaccedilatildeo revela a mensagem de Deus aos homens desde outros tempos
pelas Escrituras e no seacutec I pelo proacuteprio Cristo e que assim estabelece o padratildeo de conduta
aos que desejam a ldquorecompensa eternardquo Desse modo eacute identificado um padratildeo de justiccedila
baseado nas crenccedilas e valores cultivados pelos cristatildeos que estatildeo proacuteximos a Justino e que L
W Barnard575 chega a chamar de uma ldquoproto-ortodoxiardquo Natildeo eacute possiacutevel resumir ou descrever
568 Is 6624 569 I151-7 570 I141-919 571 I161-6 572 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 573 Avlla Avlogwj w`j upoacute Lukou arnej sunhrpasmenoi( bora Twn avqewn dogmatwn kai daiacutemonwn ginontai I582 574 II68 575 Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 1967
114
o conteuacutedo dessas crenccedilas e valores a partir da anaacutelise das Apologias sabe-se poreacutem que o
apologista se refere agrave forma de pensar dos cristatildeos que lhe satildeo proacuteximos e se distanciam do
modo de pensar por exemplo do grupo de Marciatildeo Helena e Menandro
Justino contempla tambeacutem as criacuteticas daqueles que segundo o seu parecer ldquose
consideram filoacutesofosrdquo e que alegariam que as ideias cristatildes sobre um julgamento universal
futuro ldquosatildeo apenas ruiacutedos espalhafatosos e alarmismosrdquo e diriam que a ameaccedila do castigo no
fogo eterno natildeo passa de um instrumento despreziacutevel para que a ldquohumanidade viva retamente
por medo e natildeo porque a virtude eacute bela e gratificanterdquo (II91) Haacute indiacutecios de que Chrysippus
de Solis dizia que Platatildeo errava em fazer do temor aos deuses um instrumento para a detenccedilatildeo
da injusticcedila e que o argumento do castigo divino natildeo eacute diferente das histoacuterias que as matildees
contam para assustar as criancinhas576 E ainda segundo Diogenes Laertius Crisipo
sustentava que a ldquovirtude [] eacute uma disposiccedilatildeo harmoniosa escolha digna para seu proacuteprio
bem e natildeo de esperanccedila medo ou qualquer outro motivo externordquo577 Em sua soluccedilatildeo Justino
toma emprestado o argumento de Alexandre de Afrodiacutesias578 que defendeu a responsabilidade
moral humana e diz ldquose isto natildeo eacute como dizemos entatildeo natildeo existe Deus ou se existe natildeo se
importa em nada com os homensrdquo579 Virtude e o viacutecio nada seriam e em consequecircncia nem
os legisladores castigariam com justiccedila os que transgridem as boas ordenaccedilotildees Segundo
Minns e Parvis580 a hipoacutetese de Deus natildeo se importar com os seres humanos parece refletir a
visatildeo estoica que estabelecia a teoria do bem e do mal ou virtude e infelicidade considerando
a proximidade com o universo natural e a administraccedilatildeo do mundo Assim quando
Chrysippus581 mantinha que a natureza universal e a administraccedilatildeo do mundo era o
fundamento da teoria estoica sobre o bem e o mal ele estava apelando agrave racional e
providencial atividade de deus cuja conformidade com o qual constitui o bem para o homem
e cuja carecircncia de conformidade constitui o mal
Todavia Justino pontua que os legisladores ldquonatildeo satildeo injustos e o Pai deles ensina
atraveacutes do Logos a fazer o que ele mesmo fazrdquo e neste sentido ldquonatildeo satildeo injustos os que
576 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1040b 577 Diogenes Laertius Vida dos filoacutesofos eminentes VII89 578 ldquopois se natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo e virtude e viacutecio eles argumentam tambeacutem natildeo haacuteacutelouvor ou reprovaccedilatildeo e sem estes natildeo haacute accedilotildees certas ou erradas e se natildeo haacute essas tambeacutem natildeo haacute virtude ou viacutecio e se natildeo haacute essas eles dizem natildeo haacute seque deuses Mas antes assim designadamente que natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo chega a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas vem a estar em concordacircncia com o destino como tem sido mostrado Desse modo a uacuteltima posiccedilatildeo segue tambeacutem mas isto eacute absurdo e impossiacutevel (Alexandre de Afrodisias De fato36) 579 II91 580 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 305 nota 1 581 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1035c-d
115
aderem a essas virtudesrdquo582 Assim o apologista constroacutei outro padratildeo ldquoracionalrdquo atraveacutes do
qual os juiacutezes deveriam julgar para natildeo serem julgados por Deus O novo fundamento da
justiccedila no cumprimento dos seus anseios apologeacuteticos se resume a deixar os cristatildeos em paz
pois segundo seu ponto de vista natildeo havia nenhuma evidecircncia de que os fieacuteis fossem inimigos
do Impeacuterio Ele busca convencer o Imperador e seus filhos a impedir que os governantes e
magistrados locais empreendam accedilotildees anticristatildes apontando as razotildees e a racionalidade cristatilde
43 O governo o controle e os governantes
Justino ndash nessas suas peticcedilotildees apologeticamente fundamentadas que tinham como
destinataacuterios especiais Antonino Pio e seus filhos583 reconhecidamente apreciadores da
filosofia ndash alega que natildeo havia nenhuma ldquorazatildeordquo [logos] para se perseguirem os cristatildeos pois
seria a proacutepria ldquorazatildeordquo [o Logos] quem exige que ldquoos amantes da piedade e da filosofiardquo584
natildeo faccedilam algo irracionalmente
No capiacutetulo anterior foi destacada a criacutetica de Justino sobre os governantes agora
poreacutem eacute oportuno notar o perfil do governante traccedilado pelo apologista dentro do seu
argumento da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem Segundo sua teoria os homens
revestidos de autoridade para governar natildeo devem valorizar nada aleacutem da ldquoverdaderdquo Aleacutem
disso a partir de sua inspiraccedilatildeo platocircnica nota-se sua exigecircncia agravequeles que satildeo ldquopiedosos e
filoacutesofosrdquo assim como satildeo chamados o Imperador e seus filhos que deveriam julgar com
retidatildeo para que todos gozem de bem estar Governar com retidatildeo eacute para Justino governar
segundo a ldquoreta razatildeordquo Esse conceito eacute cristianizado mas aleacutem disso um governante ideal
ldquosuperiorrdquo eacute reverenciado ldquoo logosrdquo A quem ele chama de ldquoo rei mais alto o governante
mais justo que conhecemos depois de Deus que o gerourdquo (I Apol 127) Manifesta-se um
jogo semioacutetico com a palavra logos ou razatildeo
582 II92 583 A I Apologia foi dirigida ao Imperador Antonino Pio e a seus filhos Veriacutessimo (Marco Aureacutelio) e Lucio Vero A II Apologia pode ser continuaccedilatildeo da primeira como sustentou C Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006) fragmentos de anotaccedilotildees de um segundo escrito que natildeo pode ser entregue quando Justino foi preso durante o iniacutecio do governo de Marco Aureacutelio por volta de 160 dC como sustentam Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 passim) A teoria mais tradicional eacute admitir que a II Apologia foi dirigida ao imperador Marco Aureacutelio mas como seraacute visto mais adiante haacute indiacutecios de que Justino tinha por destinataacuterios secundaacuterios todos os que pudessem ler o texto e se informar acerca da inocecircncia dos cristatildeos A soluccedilatildeo para a questatildeo dos destinataacuterios das Apologias exige uma investigaccedilatildeo agrave parte mas natildeo haacute duacutevidas de que Justino pretendia que se texto fosse conhecido por Antonino e seus filhos Marco e Lucio que desde cedo atuaram ao lado 584 I125
116
Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e recusem as
coisas maacutes e assim controlar os excessos humanos (I Apol 128) Do mesmo modo eacute o logos
quem deve orientar os governantes para que o bem ou a ldquosalvaccedilatildeordquo opere sobre o ldquogecircnero
humanordquo Por isso ele escreve ldquose os filoacutesofos e legisladores disseram e encontraram algo de
bom foi elaborado por eles pela investigaccedilatildeo e intuiccedilatildeo conforme a parte do logos que lhes
couberdquo585 Poreacutem por natildeo conheceram a integralidade do Logos que eacute Cristo ldquoeles
frequentemente se contradisseram uns aos outrosrdquo586 Aqueles que antes de Cristo tentaram
investigar e demonstrar as coisas pela razatildeo conforme as forccedilas humanas foram levados aos
tribunais como iacutempios e amigos de novidades Soacutecrates aparece como um exemplo que
ratifica a fala de Justino Segundo o apologista ele foi acusado ldquodos mesmos crimes que [os
cristatildeos]rdquo587 A condenaccedilatildeo seria em razatildeo da oposiccedilatildeo daquele filoacutesofo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica e
a outros poetas ensinando os homens a rejeitar ldquoos maus democircniosrdquo envolvidos com a
idolatria e ao mesmo tempo os exortando ao conhecimento de Deus para eles desconhecido
por meio de investigaccedilatildeo racional dizendo Natildeo eacute faacutecil encontrar o Pai e artiacutefice do universo
nem quando o tivermos encontrado eacute seguro dizecirc-lo a todos588 Todavia se ningueacutem deu
ouvidos a Soacutecrates ateacute que ele deu a sua vida por essa doutrina em Cristo acreditaram natildeo soacute
filoacutesofos e homens dos quais o proacuteprio Justino eacute um mas tambeacutem artesatildeos e pessoas
totalmente ignorantes que souberam desprezar a opiniatildeo o medo e a morte Justino pretende
assim apresentar o poder de abrangecircncia da mensagem cristatilde que deriva do Logos que em
parte foi conhecido por Soacutecrates pois como o apologista escreve ldquoele era e eacute o Logos que
estaacute em tudo e foi quem predisse o futuro atraveacutes dos profetas e feito de nossa natureza por
si mesmo nos ensinou essas coisasrdquo589
A partir desse tipo de comparaccedilatildeo retrata-se o caso que ocorreu sob Urbico na cidade
de Roma Eacute provaacutevel que outros casos como esse acontecessem em regiotildees diferentes590
Segundo Justino ldquoo fato eacute que em todas as partes haacute gente disposta a [] levar [os cristatildeos] agrave
morterdquo591 A reprovaccedilatildeo cristatilde das atitudes condenaacuteveis ou repreensiacuteveis de outras pessoas era
um dos motivos para que os cristatildeos fossem denunciados aos governantes ldquoendemoniadosrdquo592
Ele escreve especialmente sobre certa mulher cristatilde na eacutepoca do prefeito Urbico que
procurou persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e lhe 585 II102 586 II102 587 II105 588 II105-6 Citaccedilatildeo de Platatildeo Timeu 28c 589 II108 590 II11 591 II12 592 II13
117
anunciando o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme
a ldquoreta razatildeordquo Naquela ocasiatildeo a uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se
era cristatildeo Apoacutes confessar recebeu condenaccedilatildeo ao supliacutecio O mesmo aconteceu com Luacutecio
que tambeacutem advertiu a Urbico593 de que ele natildeo estava ldquojulgando de modo conveniente ao
imperador Pio nem ao Ceacutesar filoacutesofo nem ao filho de Ceacutesar amigo do saber nem ao sacro
Senadordquo (II216)
Justino procura persuadir o imperador seus filhos e demais autoridades a barrarem as
condenaccedilotildees dos cristatildeos num momento quando natildeo haacute indiacutecios do estabelecimento de uma
lei concreta sobre a puniccedilatildeo dos cristatildeos Em vaacuterias regiotildees e em situaccedilotildees variaacuteveis os atritos
ocasionados pela presenccedila e expansatildeo cristatilde ocasionavam denuacutencias tidas pelos proacuteprios
cristatildeos como ldquocaluniosasrdquo a respeito da nova religiatildeo As accedilotildees anticristatildes se refletiam
muitas vezes na busca por sua condenaccedilatildeo em discussotildees em praccedilas ou em denuacutencias
dirigidas aos magistrados Em meados do seacuteculo II as delaccedilotildees sobre os cristatildeos variavam
pois seus opositores procuravam brechas juriacutedicas para enquadraacute-los A superstitio cristatilde
poderia proporcionar o oacutedio de muitos que resistiam agraves suas implicaccedilotildees morais sociais ou
simplesmente religiosas Por isso as denuacutencias ou posicionamentos se contradiziam em
lugares e ocasiotildees diferentes Taacutecito identificou algumas flagitia nas praacuteticas religiosas cristatildes
ou nos comentaacuterios sobre elas mas essa natildeo foi a opiniatildeo de Pliacutenio Segundo que julgou os
cristatildeos dignos de condenaccedilatildeo somente pela contumaacutecia que apresentaram diante de um
magistrado Para outros deveriam ser rejeitados pelo seu ateiacutesmo Comer o corpo e o sangue
de Cristo tambeacutem poderia provocar suspeitas de canibalismo594
O apologista contrasta a imagem do ldquopiordquo e ldquosaacutebiordquo governante representada na figura
de Antonino e seus filhos agravequela do falso filoacutesofo ou seja aquele que estaacute contra a ldquorazatildeordquo A
sua morte em defesa da ldquorazatildeordquo cristatilde aparece como uma possiacutevel analogia a Soacutecrates
devido aos seus embates com Crescente em Roma O falso ldquofiloacutesofordquo eacute aquele que natildeo sabe
uma palavra sobre os cristatildeos mas os calunia publicamente como esses fossem ldquoateus e
iacutempiosrdquo595 Ele adapta a esse novo contexto Xenofonte596 que conta que em uma encruzilhada
vieram ao encontro de Heacuteracles597 a virtude e o viacutecio na forma de mulheres
O viacutecio estava vestido com roupas finas tinha rosto atraente e adornado com enfeites e disse a Heacuteracles que se ele a seguisse ela o faria viver sempre no prazer
593 II215 594 Cf MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 winter1994 pp 413-442 595 wj avlogoj kai avsebwn Cristianwn ontwn( (II82) 596 Memorabilia II121-34 597 Heraacutecles tambeacutem foi invocada por estoicos como exemplo de luta moral (Churniss em Plutarco De Communibbus Notitiis adversus stoicos 1065c em Moralia)
118
e enfeitado com o mais belo ornamento semelhante ao que ela usava Ao contraacuterio a virtude com rosto e veste severos lhe disse Se seguires a mim natildeo te enfeitarei com beleza ou adorno passageiro e corruptiacutevel mas com enfeites eternos e belos598
Semelhantemente Justino considera
estamos persuadidos de que alcanccedilam a felicidade todos aqueles que fazem dos bens aparentes e seguem o que parece duro e contra a razatildeo Porque a maldade veste as suas accedilotildees com as qualidades da virtude e do que eacute de fato bem remedando o incorruptiacutevel pois ela de si natildeo tem nada de incorruptiacutevel e nem eacute capaz de produzi-lo e torna escravos seus os homens que se arrastam pelo chatildeo atribuindo agrave virtude os males proacuteprios da maldade Contudo os que compreendem os bens verdadeiros proacuteprios da virtude tambeacutem se tornam incorruptiacuteveis pela virtude599
Desse modo Justino procura constranger o imperador a partir do seu argumento
apologeacutetico e do jogo semioacutetico em torno da ldquorazatildeordquo e da filosofia a ser favoraacutevel aos
cristatildeos pois natildeo seria de nenhum modo virtuoso combater ou permitir que sejam combatidos
aqueles que segundo seu ponto de vista tecircm muito a contribuir para a paz no Impeacuterio
A contribuiccedilatildeo da religiatildeo cristatilde eacute apresentada dentro do seu plano apologeacutetico que
busca convencer natildeo apenas dos efeitos positivos do caraacuteter de suas crenccedilas para a
manutenccedilatildeo da ordem mas tambeacutem na apresentaccedilatildeo de alguns pontos fundamentais do seu
conteuacutedo que rebatam as ldquocaluacuteniasrdquo dos acusadores e apresentem o seu aspecto ldquoracionalrdquo Ao
explicar alguns fundamentos da crenccedila cristatilde como o combate agrave idolatria eacute possiacutevel notar que
o apologista eacute sensiacutevel em sua anaacutelise agrave diversidade de ideias e crenccedilas que interagem e se
contradizem no Impeacuterio Essa contradiccedilatildeo aparece tambeacutem entre os intelectuais e as crenccedilas
do povo comum Segundo Paul Veyne600 ldquotodo erudito hesitava entre o ceticismo da alta
sociedade e o esoterismo cultivadordquo Isso leva Justino a formular um argumento que busque
apresentar os aspectos racionais das crenccedilas cristatildes ainda que isso se reduza a um jogo
semioacutetico e linguiacutestico em torno do logos De qualquer forma a religiatildeo cristatilde aparece como
uma opccedilatildeo de superaccedilatildeo tanto da religiatildeo pagatilde questionada pelos intelectuais em muitos
aspectos quanto como uma filosofia sublime ou superior601 que tem maior alcance e eficaacutecia
no controle das accedilotildees humanas602 Assim ele escreve ldquoem Cristo acreditaram natildeo soacute filoacutesofos
e homens cultos mas tambeacutem artesatildeos e pessoas totalmente ignorantes que souberam
598 II114-5 599 II116-8 600 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 280 601 ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Logos inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (II101) E tambeacutem ldquoas nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo (II152) 602 ldquoEntre noacutes tudo isso se pode ouvir e aprender ateacute daqueles que ignoram as formas das letras pessoas ignorantes e baacuterbaras de liacutengua mas saacutebias e fieacuteis de inteligecircncia e ateacute pessoas mutiladas e privadas de visatildeo De onde se pode entender que isso natildeo acontece pela sabedoria humana mas se diz que eacute pela forccedila de Deusrdquo (I6011)
119
desprezar a opiniatildeo o medo e a morte porque ele eacute a virtude do Pai inefaacutevel e natildeo um vaso
de humana razatildeordquo603
Apoacutes explicar os pontos fundamentais do pensamento cristatildeo Justino diz que ldquodaqui
por diante noacutes natildeo nos sentiremos irresponsaacuteveis mesmo que continueis increacutedulos pois o
que dependia de noacutes jaacute foi feito e chegou ao fimrdquo (558) Seguindo sua articulaccedilatildeo para
ratificar a fidelidade dos cristatildeos a Deus e ao Impeacuterio nota-se que o apologista faz uso do
proacuteprio efeito da doutrina cristatilde que sugere como instrumento de controle para persuadir o
imperador tambeacutem pelo possiacutevel temor Assim com um tom de advertecircncia ele escreve
[] se natildeo atendeis agraves nossas suacuteplicas nem esta exposiccedilatildeo puacuteblica que vos fazemos de todo o nosso modo de viver em nada ficaremos prejudicados pois cremos ou melhor estamos persuadidos de que cada um pagaraacute a pena conforme mereccedilam as suas obras pelo fogo eterno e que teraacute que prestar contas a Deus segundo as faculdades que recebeu do proacuteprio Deus conforme nos indicou Cristo dizendo A quem Deus deu mais mais seraacute exigido por Deusrdquo604 (I173-4)
Em outras palavras esse eacute um tipo de alerta ao imperador sobre a sua responsabilidade
diante de Deus devido a sua posiccedilatildeo de autoridade E como se deveria esperar de um
governante ldquopiordquo e ldquoamante da sabedoriardquo tal como foi idealizado no perfil construiacutedo por
Justino segundo sua leitura logocecircntrica Ou seja tendo a ideia do logos cristatildeo como
referecircncia o apologista escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da
verdade respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees
desprezai-as Natildeo decreteis poreacutem pena de morte como contra a inimigos contra aqueles
que nenhum crime cometemrdquo605 Sua peticcedilatildeo eacute seguida de outro alerta ldquoescatoloacutegicordquo ldquovos
avisamos de antematildeo que se vos obstinais em vossa iniquidade natildeo escapareis do futuro
julgamento de Deusrdquo606 Em outro ponto nesse mesmo sentido lecirc-se ldquose tambeacutem voacutes ledes
como inimigos estas nossas palavras aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis
fazer A noacutes isso nenhum dano causaraacute a voacutes poreacutem e a todos os que injustamente nos
odeiam e natildeo se convertem trar-vos-aacute castigo de fogo eternordquo (I456)
Aliada agrave ciecircncia dos benefiacutecios da religiatildeo cristatilde o apologista deixa claro o seu desejo
de que ldquotodos os homens de todo o mundordquo conheccedilam ldquoa verdaderdquo o que incluiacutea o imperador
e seus filhos Desses uacuteltimos deseja-se tambeacutem que julguem ldquocom justiccedila de acordo com [a]
piedade e filosofiardquo e que se possiacutevel publiquem esse escrito para o conhecimento de todos607
Natildeo eacute possiacutevel saber se as Apologias chegaram ateacute o imperador e eacute pouco provaacutevel
que ela tenha circulado amplamente conforme desejava Justino No entanto segundo Sara 603 II108 604 Fazendo menccedilatildeo a Lc 1248 605 I681 606 I681 607 II152
120
Parvis608 seu modo de escrever em defesa dos cristatildeos teria influenciado outros apologistas
As aproximaccedilotildees praticadas por esse pensador em sua manobra teoloacutegica buscam a conversatildeo
inclusive do imperador Em oposiccedilatildeo agrave forma controle que emerge dos clamores reativos
populares que estariam impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do nomen
Christianum o apologista acaba por formular uma reflexatildeo teoloacutegica da histoacuteria que
contempla a relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo Se por um lado estaacute a criacutetica agrave forma de
manutenccedilatildeo da ordem imposta pelos romanos que dava margem para que denuacutencias
decorrentes de atritos locais que conduziam os cristatildeos agrave morte por outro emerge a sua teoria
sobre a cooperaccedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo da sociedade devido ao caraacuteter de suas crenccedilas
Trata-se de um confronto de ideias cujos efeitos deveriam ser aguardados O modelo de
controle cristatildeo pode-se dizer eacute aquele que vem do alto ou de dentro Eacute fruto da assimilaccedilatildeo
da doutrina cristatilde que tem um Deus que zela pela justiccedila e pela moral e que exige uma
conduta impecaacutevel de todos os seus fieacuteis Os que creem e os que natildeo creem estatildeo sob a
condiccedilatildeo do seu juiacutezo O Deus cuja feacute os cristatildeos professam e procuram comunicar aos
demais natildeo tem nacionalidade Ele eacute o criador dos homens e da razatildeo [logos] Todo ser
humano recebeu uma semente dessa razatildeo mas os democircnios maleacutevolos satildeo os responsaacuteveis
por obscurecer o julgamento correto que conduz todo o genus humanus a uma vida reta justa
e virtuosa para a sua recompensa eterna Essa racionalidade humana eacute a responsaacutevel por fazer
com que os homens reconheccedilam e atentem para a mensagem pelo logos que revela Deus pelas
Escrituras ignoradas pelos judeus e examinas pelos cristatildeos Esse temor diante de Deus
entatildeo natildeo deveria ser rechaccedilado como uma superstitio despreziacutevel mas deveria ser acatada
como um mecanismo capaz de traduzir razoavelmente uma doutrina que agregue pontos de
aproximaccedilatildeo aos assuntos filosoacuteficos e a uma mensagem significativa para as pessoas sem
instruccedilatildeo Deve ser reconhecida natildeo como uma mensagem de odio humanus genus mas de
salvatio humanus genus609 sob o domiacutenio do Logos que se traduz na submissatildeo e conversatildeo
ao cristianismo
608 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 609 Isto eacute ldquosalvaccedilatildeo da humanidaderdquo
121
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A situaccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II era instaacutevel e
revelava condenaccedilotildees esporaacutedicas Gritarias e tumultos puacuteblicos agraves vezes pressionavam os
magistrados para que condenassem os cristatildeos sem que houvesse uma ideia clara sobre como
enquadraacute-los em uma lei comum Um pouco antes Adriano havia sido consultado por
governantes610 como Graniano sobre esses problemas Naquela eacutepoca o imperador
recomendou a Minuacutecio Fundano que examinasse de modo particular as denuacutencias formais e
que natildeo desse espaccedilo para a pressatildeo dos tumultos puacuteblicos
Ainda um pouco antes a forma como deviam ser conduzidos os processos contra os
cristatildeos despertava algumas duacutevidas em Pliacutenio Segundo no Ponto-Bitiacutenia A crenccedila cristatilde era
vista como uma superstitio cujo temor os faziam repudiar os deuses comuns o culto ao
Imperador e todos os aspectos da vida puacuteblica que apresentasse algum viacutenculo com outras
crenccedilas e com a ldquoimoralidaderdquo Esse afastamento das interaccedilotildees sociais e o desprezo pelos
deuses tradicionais causou a aversatildeo de muitos das camadas populares e a desconfianccedila das
autoridades A estranheza dessa superstitio favoreceu a disseminaccedilatildeo de caluacutenias como a de
que a celebraccedilatildeo da ceia fosse algum tipo de ritual antropofaacutegico e que as reuniotildees cristatildes
privadas constituiacuteam-se em orgias Desse modo o nonem christianum assumiu uma forte
conotaccedilatildeo negativa pelas regiotildees do Impeacuterio A condenaccedilatildeo dos membros dessa nova religiatildeo
tinha precedentes desde a culpa pelo incecircndio de Roma nos tempos de Nero embora nenhuma
evidecircncia concreta a uma lei que condenasse o crime de ldquocristianismordquo seja encontrada na
primeira metade do II seacuteculo Trajano ratificou o procedimento de Pliacutenio em condenar os
cristatildeos por confessarem-se ldquocristatildeosrdquo todavia essas condenaccedilotildees tinham caraacuteter
admoestativo para desestimular o crescimento do grupo As buscas ou perseguiccedilotildees de fato
natildeo deviam entrar em curso Visava-se minar o corpo estranho representado pelo grupo
antissocial dos cristatildeos da sociedade e garantir a sua reintegraccedilatildeo mediante o perdatildeo aos que
abandonassem a feacute Se para alguns como Taacutecito a superstitio incidia sobre flagitia para
outros como Pliacutenio nenhum flagitium era detectado provavelmente eram produto das
caluacutenias e rumores das massas
A religiatildeo e os deuses tinham diferentes conotaccedilotildees entre a classe letrada entre os
poetas e para o povo sem instruccedilatildeo Desde os tempos de Platatildeo e Soacutecrates a filosofia
610 Deve-se considerar que a ldquoCarta de Antonino ao conciacutelio da Aacutesiardquo citada por Euseacutebio na Histoacuteria Eclesiaacutestica IV131-8 estava correta
122
sustentou criacuteticas agrave religiatildeo tradicional No II seacuteculo dC a influecircncia do cultivo do saber e do
exerciacutecio filosoacutefico podia ser percebida nas correntes de pensamento tais como o estoicismo e
o neoplatonismo que aproximavam a religiatildeo da moral Justino recebeu educaccedilatildeo grega e
provavelmente era filho de um funcionaacuterio romano Priscus cuja famiacutelia pode ter atuado na
colonizaccedilatildeo de Flavia Neaacutepolis na Palestina De laacute partiu para sua jornada pelos caminhos da
filosofia ateacute conhecer as doutrinas cristatildes Como ldquofiloacutesofordquo eacute possiacutevel que sustentasse criacuteticas
agrave forma de pensar das pessoas comuns considerada expressatildeo de ldquoexcessos supersticiososrdquo
Na condiccedilatildeo de cristatildeo passou a pensar a religiatildeo a partir da filosofia Desse modo a feacute cristatilde
passou a representar em seu pensamento a ldquofilosofia verdadeirardquo e ldquodivinardquo Diante dos atritos
sofridos pelos cristatildeos em seu tempo recorreu ao poder da argumentaccedilatildeo e da conveniecircncia
da escrita para defender os cristatildeos da ldquoinjusticcedilardquo sofrida Em uma peticcedilatildeo apologeticamente
fundamenta escreveu a Antonino Pio e a seus filhos clamando para que os cristatildeos natildeo
fossem condenados apenas pela confissatildeo de ldquocristianismordquo Para alcanccedilar o favor do
imperador Justino procura desfazer a conotaccedilatildeo negativa em torno desse nomen christianum
por meio da explicaccedilatildeo dos principais toacutepicos das doutrinas cristatildes e da afirmaccedilatildeo da
submissatildeo dos cristatildeos
A partir da reflexatildeo sobre suas ideias compreende-se o paradoxo entre tipo de controle
social desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia a esses (ou seja
os cristatildeos) que satildeo tidos como ameaccedila agrave ordem e por outro lado o tipo de controle social
apontado nas Apologias que daacute razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos Justino tece uma criacutetica jaacute
conhecida sobre a imoralidade dos deuses pagatildeos Ele natildeo se sente nem um pouco intimidado
em sustentar que os deuses nada satildeo aleacutem de uma ilusatildeo criada pelos ldquomaus democircniosrdquo para o
desvirtuamento dos homens Os ldquomaus democircniosrdquo satildeo os responsaacuteveis pelo obscurecimento
de toda a ldquoverdaderdquo A ldquoverdaderdquo eacute o conhecimento superior que conduz a humanidade agrave
moralidade e eacute reconhecida pelo exerciacutecio da ldquorazatildeordquo A ldquorazatildeordquo eacute algo divino compartilhado
a todos os homens e encarnada na pessoa de Jesus Cristo o mestre dos cristatildeos Sua
encarnaccedilatildeo eacute o cumprimento das profecias das Escrituras sustentadas pelos judeus que por
natildeo a compreenderem corretamente natildeo satildeo capazes de reconhecer o cumprimento da
expectativa messiacircnica611 Por reconhecer mediante uma hermenecircutica que busca identificar
o maacuteximo de evidecircncias possiacuteveis sobre o cumprimento das Escrituras em Cristo612 o
611 ldquoExpectativa messiacircnicardquo expressatildeo teoloacutegica utilizada para se referir a esperanccedila de que o messias libertador de Israel chegaria conforme os profetas israelitas haviam predito 612 Tambeacutem chamada de ldquohermenecircutica cristocecircntricardquo ou no que se refere agrave comunicaccedilatildeo da mensagem divina pelo Logos uma ldquohermenecircutica logocecircntricardquo
123
cumprimento das profecias julga prudente reconhecer as advertecircncias divinas pelas escrituras
sobre o julgamento futuro
Justino desenvolve uma leitura teoloacutegica da histoacuteria contrastando o julgamento a que
satildeo submetidos os cristatildeos e o julgamento final de Deus O primeiro considerado um
julgamento ldquoirracionalrdquo e momentacircneo movido pela cegueira produzida pelos maus
democircnios enquanto o segundo eacute idealizado como um julgamento divinamente justo e eterno
A accedilatildeo dos primeiros governantes estaacute relacionada a uma preocupaccedilatildeo com a manutenccedilatildeo da
ordem que os leva a acatar as denuacutencias caluacutenias e mobilizaccedilotildees contra os cristatildeos Eacute um tipo
de controle social que emerge de baixo pela repulsa do povo por aqueles que representavam
uma ameaccedila a pax deorum devido agrave condenaccedilatildeo ao culto dos deuses Justino acredita que em
meio agrave variedade de ideias e crenccedilas que constituem o quadro social do Impeacuterio os cristatildeos
natildeo deveriam ser reprimidos pelas autoridades por pensarem diferente Desse modo ele se
empenha em mostrar as correlaccedilotildees existentes entre as coisas sustentadas pelos cristatildeos e
outros pontos da cultura greco-romana Enquanto algumas correlaccedilotildees satildeo consideradas
estrateacutegias do democircnio para enganar os homens outras satildeo consideradas a manifestaccedilatildeo da
accedilatildeo do logos que comunica a verdade quer seja pelo conhecimento que os gregos tiveram
pelas Escrituras judaicas ou pelo logos spermatikos comum ao gecircnero humano Tudo o que
foi dito escrito ou julgado corretamente segundo a razatildeo eacute considerado consonante com o
posicionamento dos cristatildeos Pois eacute a ldquorazatildeordquo ou logos que deve conduzir as accedilotildees humanas
para a salvaccedilatildeo Desse modo aleacutem de procurar investir as doutrinas cristatildes de aspectos
racionais Justino tambeacutem busca deixar claro que os cristatildeos natildeo satildeo nenhuma ameaccedila ao
Impeacuterio Os fieacuteis satildeo apresentados como os melhores cooperados do Impeacuterio na manutenccedilatildeo
da paz devido ao caraacuteter das suas doutrinas Contrastando em alguns pontos com o tipo de
controle exercido sobre os soldados que juram fidelidade sem esperarem algo duradouro em
troca Justino fala do tipo de controle que vem ldquodo altordquo A crenccedila no controle absoluto do
Deus cristatildeo eacute apresentada como uma alternativa para solapar a incoerecircncia manifestada na
reverecircncia a deuses tatildeo desregrados e impiedosos quanto aos seres humanos que natildeo
poderiam servir de exemplo de conduta Natildeo haacute muitos detalhes acerca da moralidade cristatilde
mas ela parece estar relacionada agrave moderaccedilatildeo a restriccedilotildees sexuais ao respeito agrave verdade e aos
outros Segundo essa crenccedila cristatilde toda pessoa eacute livre para escolher como deseja viver mas
um dia estaraacute diante do juiacutezo do Deus absoluto do qual ningueacutem pode esconder nada
Tambeacutem eacute nesse sentido que satildeo identificados os cristatildeos Os cristatildeos satildeo definidos como
praticantes de um ideal de vida a seguir fortemente caracterizado pelo moralismo estrito
124
Desse modo Justino acredita que a disseminaccedilatildeo das doutrinas cristatildes poderia servir para
controlar os excessos humanos e as injusticcedilas
Esse tipo de ferramenta de controle foi empregado inclusive para constranger o
imperador a ouvi-lo Aleacutem de considerar irracional desprezar a doutrina dos cristatildeos o
apologista faz uso dessa ferramenta de controle para destacar que a uacutenica coisa que os
romanos poderiam fazer pelos cristatildeos em sua oposiccedilatildeo era lhes tirar a vida algo que
ironicamente o apologista considera insignificante visto que todos um dia morreratildeo Todavia
sustentando que a vida natildeo termina no tuacutemulo Justino alerta que a injusticcedilas como essas
Deus retribuiraacute um dia o castigo eterno enquanto para os que satildeo piedosos e justos estaacute
guardada uma ldquorecompensa eternardquo
Talvez as Apologias de Justino nunca tenham chegado ao seu destinataacuterio
especificado E se chegaram natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que tenham surtido um efeito
positivo Justino morreu anos mais tarde Todavia seu martiacuterio nos tempos de Marco Aureacutelio
tornou-se inspiraccedilatildeo para outros escritores como Atenaacutegoras ou Teoacutefilo de Antioquia Ao
revelar uma relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo a partir das accedilotildees anticristatildes seus escritos
se tornam peccedila fundamental para se compreender como as suspeitas e caluacutenias que incidiam
sobre os cristatildeos despertaram pessoas como esse mestre para pensar a relaccedilatildeo entre a nova
religiatildeo e a estrutura social e poliacutetica existente Se em siacutentese o que suas Apologias
pretendiam de fato era a retirada dos empecilhos para a conversatildeo dos pagatildeos elas satildeo
tambeacutem a primeira manifestaccedilatildeo da ideia de que para proporcionar a conversatildeo dos ldquooutrosrdquo e
o abandono dos rituais religiosos que permeavam a vida puacuteblica e os eventos sociais no
Impeacuterio era preciso pensar a religiatildeo cristatilde como uma alternativa que oferecesse algum tipo
de vantagem social e poliacutetica
Quando se busca por exemplo compreender as vantagens identificadas pelos romanos
na autorizaccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no IV seacuteculo manifesta-se a necessidade de se
investigar sobre as raiacutezes da aproximaccedilatildeo entre religiatildeo cristatilde e o Impeacuterio Eacute pelo exame das
Apologias de Justino Maacutertir que se percebe que em grande medida tal aproximaccedilatildeo eacute fruto
da reflexatildeo apologeacutetica que procurar livrar os cristatildeos da condenaccedilatildeo das autoridades romanas
e ao mesmo tempo em sintonia com a orientaccedilatildeo missionaacuteria na propagaccedilatildeo da mensagem
cristatilde busca livrar os romanos da condenaccedilatildeo eterna de Deus por meio da conversatildeo A
condenaccedilatildeo do culto aos deuses pagatildeos e da religiatildeo ciacutevica associada agrave contumaacutecia cristatilde em
natildeo contradizer suas crenccedilas em funccedilatildeo das determinaccedilotildees romanas exigiu uma reflexatildeo
sobre a sua contribuiccedilatildeo social para o Impeacuterio que os isentasse da culpa de traiccedilatildeo falta de
civismo ou algum tipo de conspiraccedilatildeo do ldquoreino de Deusrdquo Ateacute meados do seacuteculo II as
125
acusaccedilotildees variavam em cada regiatildeo e um paralelo que proporcione uma anaacutelise entre cada
uma delas tambeacutem parece ser um tema digno de uma investigaccedilatildeo especiacutefica e um desafio que
ainda precisa ser encarado
126
REFEREcircNCIAS
Fontes principais
MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005
MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006
JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995
Referecircncas gerais
AGOSTINHO de Hipona A cidade de Deus Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2000
ALCINOOS Enseignement des doctrines de Platon Les Belles Lettres Paris 1990
APHRODISIAS Alexandre drsquo De fato ad Imperatores Ed Guilaume de Moerbek e Pierre Thillet Paris J Vrin 1963
APULEIO Lrsquoautodifesa (apologia di segrave e della magia) Ed Bruno Cassianelli Caserta Edizioni UTEM 1948
AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] vol29 n2 pp 341-356 2010 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019
ANDRESEN C Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft Berlin-New York v44 pp157-195 1952-1953
ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Walter de Gruyter und co Berliacuten 1955
ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris Librairie Alphonse Picard et Fils 1909
127
ARISTIDES Aelius Orationes In Aristides ex recensione Guilielmi Dindorfii Leipzig Weidmann 1829
ARZANI A A teologia do loacutegoj no Quarto Evangelho Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Escola Superior de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008
ATHENAGORAS A Plea for the Chrstians In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995
AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875
AYRES Lewis LOUTH Andrew YOUNG Francecircs M (org) The Cambridge history of early Christian life New York Cambridge 2007
BAGATTI B S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319
BARCELOgrave P Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002
BARNARD L W Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology v 22 n 2 pp 152-164 jun1969
________ Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967
BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 pp 30-50 1968
BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 pp 538-555 2009
BAUMGARTNER M Social control from below In D Black (ed) Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 Orlando Academic Press 1984
BAYET Jean La religion romaine histore politique et psychologique Paris Payot 1976
BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998
BENNET J Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005
BENOIcircT Simon Giudaismo e Cristianesimo una storia antica Bari Laterza 2005
128
BIBLIA Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50])
BIBLIA Sagrada ediccedilatildeo da CNBB 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2002
BLACK Donald The Behaviour of Law New York Academic Press 1976
_______ Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 New York Academic Press 1984
_______ Toward a General Theory of Social Control Selected Problems Vol 2 New York Academic Press 1984
BLANT E le Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373
_______ le Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373
BLUNT A W The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911
BOBICHON P lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 pp 157-158 2003
BOFFO Laura Iscrizioni greche e latine per lo Studio della Bibblia Brescia Paideia Editrice 1994
BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101
BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950
BRENT Allen A political history of Early Christianity London TampT Clark 2009
BUELL Denise K Why this new race ethnic reasoning in early Christianity New York Columbia University Press 2005
BULTMANN R Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004
BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985
BURNS Stacy Lee Ethnographies of law and social control Oxford Elsevier 2005
Carta a Diogneto In Padres Apologistas Satildeo Paulo Paulus 1995
CHADWICH H Early Christian Thought and the Classical Tradition Oxford Clarendon Press 2002
129
________ Introduction In ____ (Ed) Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi
________ Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 (v 47)
________ The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001
________ The gospel a Republication of the natural religion in Justin Martyr Illinois Classical Studies n 18 pp 237-247 1993
CLEMENT of Alexandria Protrepticus In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
________ Stromata In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832
CHROUST Anton-Hermann AristotleProtrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964
CICERO M Tullius De Natura Deorum Edited by O Plasberg Leipzig Teubner 1917 pp 136-137
_________ Tullius De Legibus Georges de Plinval (ed) Paris Belles Lettres 1959
CLARK Gillian Christianity and Roman Society Cambridge Cambridge University Press 2004
CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999
COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp1507-1562
COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985
COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987
COPETE Juan Manuel Corteacutes Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004
130
COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008
Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonnae E Webere 1832
CULMANN O Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002
CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938
DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000
DANIELOU J Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975
De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted- A Rejoinder Past and Present n27 pp28-33 1964
De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 pp6-38 1963
DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000
DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940
DIOGENES Laertius The life of the eminents philosophers Ed Robert Drew Hicks LondonNew York W HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1925
DION Cassius Histoire Romaine V 9 Editado por E Gros Paris Librairie de Firmin Didot Fregraveres Fil Et C Imprimeurs de LrsquoInstitut 1867
DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 p 24 2005
DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963
DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990
DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106
DURRY Marcel Durry Pline-le-juene Paris Le belle Lettre 1972 p 7071
131
ECK Werner The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 195-213
ENDSJO Dag Oistein Greek resurrection beliefs and the soccess of Christianity New York Palgrave Macmillan 2009
ESTRABAtildeO Geography London Heinemann 1949
EUSEBIO de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduzido por Wolfgang Fischer Satildeo Paulo Novo Seacuteculo 2002
EUSEBIUS Die Chronik des Hieronymus heraugegeben und in 2 Auflage bearbeitet von R Helm 3 unveraumlnderte Auflage mit einer Vorbemerkung von U Treu GCS 31 Berlin Akademie Verlag 1984
FARNELL R L Greek hero cult and ideas of immortality Oxford Carendon Press 1921
FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa
________ La relacioacuten entre razoacuten y revelacioacuten em la antropologiacutea de Justino Maacutertir Teologiacutea y Vida v LII pp 35-50 2011
FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006
FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967
FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012
FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11
GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52
GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995
GOFFMAN E Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006
__________ Relations in Public New York Basic Books 1971
GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946
132
GOODENOUGH E R Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923
GOODMAN R ROWLAND C Apologetics in the Roman Empire Oxford Oxford University Press 1999
GOODSPEED E Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914
GRABE J E SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703
__________ SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700
GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988
GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951
GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18--
HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010
__________ The appropriateness of the apologetical arguments of Justin Martyr Tesis submitted for the Master of Philosophy Australian Catholic University 2008
HARNACK A Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274
__________ Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882
__________ Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99
__________ The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962
HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844
HENTEN Jan Willem AVEMARIE Friedrich Martyrdom and noble death selected texts from Graeco-Roman Jewish and Christian Antiquity New York Routledge 2002
133
HIPPOLYTUS The refutation of all heresies Traduzido por Rev J H MacMahon In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 5 Fathers of the Third Century Hippolytus Cyprian Caius Novatian Appendix Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
Historiae Augustae v I text latin with english translation by David Magie London Harvard University Press 1921 (Loeb Classical Library)
HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885
HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897
HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931
HORWITZ E A The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990
HUNT Emily J Christianity in the second century a case of Tatian New York Routledge 2003
HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703
HYLDAHL N Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965)
Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998
INNES Martin Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003
Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386
Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355
IRINEO of Lyon Againt Heresies Traduzido por Rev Alexander Roberts e James Donaldson In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene Fathers v 1 The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
ISOCRATES Busiris with an English Translation in three volumes by George Norlin PhD LLD Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1980
JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 pp 131-159 jun1979
134
JEROME GENNADIUS Lives of illustrious men Traduzido por Ernest Cushing Richardson In SCHAFF Philip (ed) Nicene and Post-Nicene Fathers 2 v 3 Theodoret Jerome Gennadius amp Rufinus Historical Writings New York Grand Rapids MI Christian Literature Publishing Co Christian Classics Ethereal Library 1892
JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961
JOLY E MOORE D Corpus Inscriptionum Latinarum vol VI pars VII fasc IV Berolini De Gruyter p 4262
JOSEgravePHE F Contre Appion Trad Th Reinach Paris Les Belles Lettres 1930
JOSEPHUS Flavius Jewish antiquities books XVI-XVII (Loeb Classical Library) Translated by Ralph Marcus and Allen Wikgren New York Harvad Press 1963
JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991
JOUCE Cullan The seeds of dialogue in Justin Martyr Australian eJournal of Theology 7 jun2006
JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995
JUVENAL Satiras In Juvenal and Persius With An English Translation G G Ramsay London New York William Heinemann G P Putnams Son 1918
KEITH Graham Justin Martyr and religious exclusivism Tyndale Bulletin 431 pp 56-80 1992
KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945
KERESZTES P Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 pp 204-214 dec1964
_________ Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986
_________ Rome and Christians Church I ANRW II 23 1 pp 260 274ss (1979)
_________ The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965
KHORENATSrsquoI Moses History of Armenians Traduzido por Robert W Thomson Ann Arbor Caravan Books 2006
KIMMEL G Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983
135
KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91
KRUEGER Paul MOMMSEN Theodor (Ed) Corpus iuris civilis I Institutiones Dublin Weidmann 1920 passim
KRUumlGER G Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896
LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934
LACTANTIUS The divine institutes Washington Catholic University of America Press 1964
LEWIS Charlton Thomas KINGERY Hugh Macmaster (Ed) An elementary latin dictionary New York American Book Co 1918
LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940
_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999
_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001
LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 pp 2146-312 1986
LUCIAN De morte Peregrini In Works with an English Translation by A M Harmon Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1936
_______ Menippus In The Works of Lucian of Samosata Translated by Fowler H W and F G Oxford The Clarendon Press 1905
LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]
MACMULLEN Ramsay Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997
__________ Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966
__________ Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981
MAIR AW GR MAIR Callimachus Hymn and Epigrams Lycophron With an English Translation by AW Mair Revised Version Cambridge MA amp London Harvard University Press 2000
136
MARAN P TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius
MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005
_________ Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994
_________ Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997
_________ Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 (2) pp 322-335 1992
MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007
MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 pp 413-442 winter1994
MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology v 8 pp 35ndash55 1982
MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 161v
_________ (Org) Patrologiae cursus completus series latina Paris Garnier-Migne 1878 217v
MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 pp 392-399 1890
MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 pp 3-32 1953
MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956
MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975
MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006
137
__________ LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p
__________ Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995
NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002
NASCIMENTO DFP O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia Pontificia Universidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003
NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzene Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129
OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992
ORIGIN Against Celsus In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997
OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889
OTTO JCT von Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876
PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988
PARVIS Sara Justin Martyr and Apologetc Tradition In PARVIS Sara FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007
________ FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007
PAUSANIAS Description of Greece with an English Translation by WHS Jones LittD and HA Ormerod MA in 4 Volumes Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1918
PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998
PERION Joachin Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum
138
Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis
PERKINS Judith Roman Imperial Identities in the Early Christian Era New York Routledge 2009
PFAumlTTISCH Johannes M Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910
PLATO Apology In Plato in Twelve Volumes Vol 1 translated by Harold North Fowler Introduction by WRM Lamb Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1966
______ Republic In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903
______ Law In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903
PLINIUS Caecilius Secundus Gaius Lettres Paris Belle Lettres 1953
PLUTARCH Moralia with an English Translation by Frank Cole Babbitt Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1928
POLYBIUS The Histories V III Translated by W R Paton Cambridge MALondon Harvard University PressWilliam Heinemann LTD 1979
POPE M The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000
POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005
PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988
QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197
RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972
REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004
ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89
ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) Bible Work 5 Software 2002
139
ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995
ROHDE Erwin Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966
ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981
ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141
ROSS Robert C Superstitio The Classical Journal v 64 n 8 pp 354-358 mai1969
ROUCECK Joseph Social Control Westport CT Greenwood Press 1970
RUSCONI C DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005
RUSSELL D S The Method and Message of Jewish Apocalyptic Philadelphia Westminster Press 1964
SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961
SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958
SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 pp 190ss 1954
SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review N 82 p 72 Jan1982
SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004
SENECA Apocolocyntosis WHD Rouse MA Litt D London William Heinemann 1913
SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008
SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 pp 23-27 1964
___________ The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952
140
SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987
SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 p 412 setdez 2009
SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006
SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944
SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011
________ I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349
STARK Rodney Baindridge Religion deviance and social control New York Routledge 1996
SUETONIUS The lives of the CAESARS In ROLFE JC (ed) SUETONIUS v II LondonNew York William HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1928
SUETONII C T De Vita XII Caesarum Harvard Loeb Classical Library 1914
SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012
SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946
SYLBERG F TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953
TACITUS C Annais In Complete Works of Tacitus Edited by Alfred John Church William Jackson Brodribb Sara Bryant New York Random House Inc Random House Inc reprinted 1942
________ Historiae Ed Charles Dennis Fisher Clarendon Press Oxford 1911
TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984
TATIAN Address to the Greeks Traduzido por JE Ryland In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
141
TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899
TERTULLIAN Apology Traduzido por Rev S Thelwall In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
________ Apology With tradution of TRGlover In GOOLD G P TertullianMinucius Felix Cambridge MassachusettsLondon Harvard University PressWilliam Heinemann 1978 pp 112-113 (The Loeb Classical Library)
________ Against the Valentinians Traduzido por Dr Roberts In SCHAFF Philip MENZIES Allan (ed) Anti-nicene fathers v 3 Latin Christianity its Founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2006b
THIRLBY S Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722
TITUS Livius History of Rome Cambridge Mass Harvard University Press 1970
TUAN Yi-fu Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983
URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932
VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006
VALANTASIS Richard Demons Adversaries devils fishermen The Asceticism of authoritative teaching (NHLVI3) in context of Roman AscetismThe Journal of religion v 81 n 4 pp 549-565 out2001
VEYNE P Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197
VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009
XENOPHON Apology In ____ Xenophontis opera omnia 2nd ed Oxford Clarendon Press 1921
WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991
WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987
WHIGHT ED The History of Heaven New York Oxford University Press 2000
WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 pp 181-190 1975
142
WINDISCH Hans Die orakel des Hystaspes Amsterdam Koninklijke Akademie van Wetenschappen 1929
WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982
143
APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS
A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450
ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C
segundo a forma estabelecida por Otto613
O Parisinus Graecus 450 ndash A ndash eacute o mais antigo manuscrito das obras de Justino
consideradas autecircnticas Ele eacute descrito como um conjunto de 467 foacutelios de 285x215 cm
terminado em 11 de setembro de 1364 segundo seu colofatildeo (fol 461a)614 Presume-se que
tenha sido adquirido em Veneza por Guillaume Pellicier bispo de Montpellirer e embaixador
francecircs naquela cidade de 1539 a 1542615 Natildeo eacute possiacutevel saber onde o manuscrito esteve
entre 1364 e 1540 Miroslav Marcovich616 considera ateacute razoaacutevel a hipoacutetese de A ter sido
produzido na Mistra617 do Deacutespota Manuel Cantacuzenos O antigo imperador John VI
Cantacuzenos pai de Manuel teria vivido contente como monge ateacute seus uacuteltimos dias
conhecido como Joasaph Era um homem culto e interessado nos assuntos teoloacutegicos Esse foi
um periacuteodo de prosperidade cultural e material no despotado de Morea618 Minns e Davis
identificam outros pontos que contribuem razoavelmente para indicar um centro maior como
Mitra ou Constantinopla Os primeiros cinco foacutelios que introduzem a coleccedilatildeo das obras de
Justino no A satildeo extratos de Photius e Euseacutebio sobre esse apologista Especificamente no
primeiro foacutelio aparecem indiacutecios de que o texto foi copiado ou adaptado de outro exemplar
Isso levaria a crer que A foi escrito em um lugar onde fosse possiacutevel ter acesso a outros textos
que auxiliassem na adaptaccedilatildeo Ter acesso agraves relevantes passagens de Photius no seacuteculo XIV
pode ser considerado algo raro619
Outro manuscrito completo das Apologias eacute o Phillippicus 3081 chamado B A partir
da anaacutelise de Bobichon620 B eacute reconhecido como um apoacutegrafo de A Sua dataccedilatildeo eacute de 2 de
abril de 1541 e apresenta uma assinatura no nome de ldquoGeorgerdquo provavelmente Georgios
613 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 614 MINNS D PARVIS P Justin Philosopher and Martyr Apologies Oxford Oxfrod Press 2009 p 3 615 ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris 1909 616 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 Cf Id Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 2 1992 p 322-335 617 Apoacutes o ano de 1261 a cidade ao sul do Peloponeso teria passado por um periacuteodo de ascendente prosperidade No seacuteculo XIV tornou-se importante centro cultural que teria sido capaz de influenciar o Renascimento na Itaacutelia 618 NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzenos Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129 619 MINNS PARVIS Op cit p 5 620 lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 p 157-158
144
Kokolos que viveu em Veneza e trabalhou para Guillaume Pelicier621 Acredita-se que B
tenha pertencido sucessivamente a Pellicier Clausde Noulot du Val ao Coleacutegio Jesuiacuteta de
Clermont em Paris e com a expulsatildeo dos Jesuiacutetas da Franccedila agrave coleccedilatildeo de Meermann E entatildeo
passou para a coleccedilatildeo de Sir Thomas Phillipps622 dando origem ao seu nome Por alguns anos
esses escritos estiveram no depoacutesito da British Library identificado como ldquoLoan 3613rdquo mas
foi retirado e vendido ldquoby private treatyrdquo em Marccedilo de 2006623
O coacutedice Ottobonianus 274 chamado de C tambeacutem tem certo valor na tradiccedilatildeo
manuscrita das Apologias mesmo contendo apenas trecircs capiacutetulos das mesmas Minns e
Parvis624 Marcovich625 Otto626 Harnack627 Blunt628 e Munier629 concordam que sua
qualidade eacute bem inferior a de A Mas quando se trata de saber se C eacute paralelo e independente
de A ou se eacute simplesmente uma coacutepia as opiniotildees se dividem Harnack630 considerou-o um
escrito independente de A Blunt destacou que ele parecia representar uma tradiccedilatildeo diferente
de A Marcovich e Munier segundo Minns e Parvis contentaram-se em apontar o demeacuterito
do texto Sem dar muitos detalhes sobre tais caracteriacutesticas de C Minns e Parvis se
esforccedilaram para argumentar que se trata de uma coacutepia de A feita agraves pressas Uma hipoacutetese
razoaacutevel eacute a de que o trecho da I Apologia 65-67 teria sido copiado pelo escriba Giovanni
Onorio atuante no Vaticano e em outros lugares de Roma por nomeaccedilatildeo do papa Paulo III em
1535 ateacute sua morte em agosto de 1563631 O restante de C teve outros escritores de diferentes
datas632 Ainda segundo a anaacutelise de Minns e Parvis633 a junccedilatildeo da ediccedilatildeo de Petrus Nannius
do De Resurretione Mortuorum de Atenaacutegoras ao conjunto de escritos proacuteximos aos extratos
das Apologias aponta para uma data natildeo anterior a 1541 Semelhantemente a Legatio de
Atenaacutegoras impotildee uma data natildeo posterior a 1557 quando a edito princeps foi impressa por H
Stephanus A visatildeo de Justino sobre a eucaristia teria sido de grande interesse teoloacutegico no
621 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 6 Vide nota 14 622 Esta trajetoacuteria apontada por Minns e Parvis eacute traccedilada por Archambault (Op cit v I pp xxiv-xxviii) e sumarizada por Bobichon (Op cit p 160) 623 Conforme Minns e Parvis (Op cit p 6) indicam e o Newslatter of the Association for Manuscripts and Archives in Research Collectons 46 mai2006 p 13 atesta 624 Op cit p 6 625 Op cit p 7 626 Op cit p xxviii 627 Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882 628 The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911 p lii 629 Justin Apologie pour les Chreacutetiens Paris Les Eacuteditons du Cerf 2006 p 86 630 Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99 631 MINNS PARVIS Op cit p 7 Ele indaca tambeacutem RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972 632 Conforme mostram Minns e Parvis (Op cit p 7) 633 Ibid p 8
145
periacuteodo que antecedeu e aos redores do decreto da eucaristia na deacutecima terceira sessatildeo do
Conciacutelio de Trento em 11 de outubro de 1551 Esses trecircs capiacutetulos do texto de Justino teriam
sido citados por Thomas Cranmer e Stephen Gardiner em 1549 antes de aparecer a editio
princeps Uma data proacutexima a 1548 eacute sustentada para esses dois primeiros foacutelios de C
Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra Parallela634 e no Chronicon
Paschale635 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo menos que doze vezes Na
Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito passagens No Chronicon Paschale
aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4 Esse uacuteltimo deriva provavelmente da
tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)636
634 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 635 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 636 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 13
146
Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos
Agostinho de Hipona 86
Alexandre de Afrodiacutesias 113
Apuleio 24
Aristides 15 24 33 49 55 58 109
Ata do Martiacuterio de Justino 22
Atenaacutegoras 24 109 123 143
Carta a Diogneto 49
Cassius Dio 9 13 14 34 36 48 49 67 88 97 103 111
Chronicon Paschale 18 128 144
Chrysippus de Solis 113
Cicero 43 139
26 31 43 71 74 87
Clemente de Alexandria 74 97
Diogenes Laertius 113
Eacutelio Aristides 58
Estrabatildeo 94
Euseacutebio 18 19 22 23 30 31 32 33 34 40 44 45 48 49 50 53 54 56 57 58 68 69
120 142 144
Flaacutevio Josefo 24 80 93 129
Histoacuteria Augusta 9 48 51
Homero 92
Irineu de Lyon 21
Isoacutecrates 86
Jerocircnimo e Gennadius 21
Juvenal 74
Lactacircncio 97
Luciano 21 37 58 73 95
Meacuteliton de Sardes 24 45
Oraacuteculos de Histaspes 97
Oriacutegenes 95
Oroacutesio 60
147
Papyri Graecae Magicae 92
Pausacircnias 94
Platatildeo 11 24 26 27 28 29 67 78 86 87 91 92 93 94 95 97 98 107 108 109 113 115
120
Pliacutenio 9 14 26 35 36 37 38 39 40 41 42 44 46 47 52 53 55 62 76 77 79 116 120
Plutarco 73 86 91 94 95 96 113 116
Poliacutebio 86 87
Quadrato 15 24 33 49 55
Secircneca 26 72 103
Suetocircnio 13 37 44 103
Taciano 21 24 27
Taacutecito 13 14 26 34 37 44 49 88 97 116 120
Teoacutefilo de Antioquia 24 123
Tertuliano 9 12 21 27 34 35 45
Tito Liacutevio 9 74 75
Varratildeo 86
Xenofontes 24 26
148
Iacutendice remissivo
acusadores 30 56 88 125
Adriano 7 10 15 16 27 35 37 40 41
42 44 49 50 51 52 53 54 55 56 57
58 59 60 61 62 63 71 72 84 90
106 128 143
alma 24 46 81 93 98 99 101 102 104
105 114 125 137
Antonino Pio 7 10 15 16 26 33 59 60
61 62 64 121 129
antropofagia 39
asebeia 36
Aacutesia Menor 15 26 32 55 83
ateiacutesmo 30 38 56 62 84 107 124
avsebeia 38
Bar Koseba 112
24 51 52 55 136
boatos maliciosos 63
caluacutenias
caluacutenia 7 34 39 40 47 48 56 81 82
83 84 88 91 96 108 119 125 128
130 131
canibalismo 30 56 84 124
castigo 6 31 44 56 61 74 85 91 94 96
97 98 104 113 114 120 123 126
131
coercitio 37 44
cognitio extra ordinem 45
controle social 14 16 17 18 64 65 67
68 69 70 77 80 82 113 127 129
130 131 133
costumes judaicos
costume judaico 39
Crescente 23 26 29 34 63 124
crime 17 31 37 39 40 42 47 57 58 62
67 68 84 89 90 93 126 128 139
culto ao imperador
culto imperial 38 52 81
decreto 47 64 76 79 114 148
democircnios
democircnio 11 74 78 79 81 88 89 91
96 106 107 108 110 111 112 117
118 119 122 127 129 130
denuacutencias
denuacutencia 7 34 37 41 43 47 55 56
58 82 90 91 123 124 127 128
130
desordem social 17
destino 29 52 104 105 107 113 120
Domiciano 36 48
epicureus 100 102
escola peripateacutetica 22
escola platocircnica
platonismo 22
estigmas
estigma 84 88 89
estigmatizaccedilatildeo 11 74 83 87
estoicismo 22 114 117 129
estoicos 92 100 102 104 124
exclusivismo 74
fariseus
fariseu 99
149
filosofia 7 12 16 22 23 27 28 30 33
38 65 71 73 92 93 99 100 101 102
103 106 118 122 125 126 129
filosofia estoica 38
flagitia
flagitium 14 36 39 40 46 47 48 50
90 124 128
gecircnero apologeacutetico 10 25 28
Graniano 15 16 53 56 57 128
Hades 92 99 101 102
Helena 107 120
Heraacuteclito 103 115 117
hetaerias 41
Histapes 103
Homero 98 101 102 107 115
incesto 14 39 59 84
inferno 105
injusticcedilas
injusticcedila 15 47 91 131
institutum neronianum 12 15 36 37 48
ius coertionis 37 45 50
julgamento 7 23 28 30 35 36 42 45 55
58 86 106 118 120 126 127 130
justiccedila 11 29 30 31 64 70 71 74 82
90 91 97 98 106 114 118 120 121
126 127
laesea maiestatis 37 40 45
livre-arbiacutetrio 113
loacutegoj sperermatikoj 26
Logos
logos 12 26 73 109 110 112 115
116 117 118 120 121 122 123
125 127 130 133 142 143
Luacutecio Vero 33
maiestas 47 56
manutenccedilatildeo da ordem 7 10 11 15 16 17
64 70 71 92 95 96 122 125 127
130
Marciatildeo 24 119 120
Marco Aureacutelio
M Aureacutelio 10 16 33 35 48 59 60 62
63 72 73 121 131
Menandro 104 107 120
Minuacutecio Fundano 16 53 54 56 58 128
Moiseacutes 114
moral 15 61 66 87 91 92 94 96 118
121 124 127 129
moralidade 7 70 91 94 108 119 129
131
morte 16 24 29 42 52 62 63 70 72 78
82 83 85 89 90 91 96 97 98 99
100 101 102 104 105 111 118 123
124 125 126 127 144 147
neoplatonismo 129
Nero 12 36 47 48 50 77 83 117 128
Nerva 38
nome cristatildeo
nomen christianum 30
nomen christianum 7 43 47 50 55 57
129
nomen Christianum 84 95 127
opiniatildeo puacuteblica 39 50 59
Ottobonianus Graecus 274 9 19 146
Parisinus Graecus 450 5 9 19 24 146
pax deorum 13 39 46 62 65 66 76 130
perseguiccedilatildeo 7 8 13 15 35 36 37 47 53
59 62 64 66 83 88
150
perseguiccedilotildees 13 15 27 47 65 66 81 87
89 106 128
peticcedilatildeo
libellus 27 31 32 33 34 62 71 90
126 129
Phillipicus 3081 19 146
pitagoacuterico 22
preconceito 63 88
reino de Deus 6 74 91
religio licita 38 45 55
rescrito 16 27 33 40 43 53 54 55 56
57 58 60 61 62 90
rescrito de Adriano 54 57 61
ressurreiccedilatildeo 99 100 102 105 109 111
112 144
retoacuterica 10 26 27 29 72 115
revelaccedilatildeo 11 105 107 115 116
Rusticus 23
sacrifiacutecios
sacrifiacutecio 42 48 64 74 75 79 81
sacrilegium 37 40 45 47 50
saduceus
saduceu 99
senatus consultum 36 48
Sibila 103 118
Simatildeo Mago 24
Soacutecrates 9 25 28 29 30 73 97 101 115
122 124 129
superstitio 7 8 14 35 37 39 40 42 43
45 46 48 52 55 58 85 90 91 94
124 127 128
superstitiones 14 46 94 101 102
temor 40 62 92 93 94 97 105 107 120
126 127 128
Tibeacuterio 15 16 36 48 103 139
toleracircncia 17 35 37 42 47 129
Tolomeu 61
Trajano7 10 15 32 35 36 37 38 39 40
41 42 43 44 47 48 49 50 54 55 56
57 58 59 60 61 66 84 90 128 133
143
Tumultos
Tumulto 62
Urbico 16 34 35 61 63 84 85 123
verdade 22 23 26 28 29 30 31 65 70
74 78 83 88 90 106 108 110 111
113 114 116 119 122 126 129 130
Vespasiano 22 32 117
viacutecio 99 113 114 120 121 124
virtude 6 91 92 96 99 112 113 114
115 120 124 125
151
5
Dedico este trabalho
ao senhor de todas as eras que natildeo pode ser submetido a qualquer estaticidade que se possa
imaginar no universo Ao que era desde o princiacutepio eacute agora e continuaraacute sendo
indefinidamente Ao que consola e agraves vezes oprime a qualquer que seja Ao que
cuidadosamente nos observa desde o primeiro instante de vida e que conta
cada batimento do nosso coraccedilatildeo Sem ele nossos dias natildeo poderiam
ser contados Dele depende o amanhatilde nossa existecircncia e nossa
histoacuteria Agravequele que acompanhou cada passo deste
desafio e que me fazia lembrar do valor de
cada instante Agravequele que muitos
simplesmente chamam de
ldquotempordquo
6
AGRADECIMENTOS
Agrave Profordf Drordf Renata L Biazotto Venturini minha querida orientadora pela confianccedila
incentivo amizade e paciecircncia durante essa jornada Eu confesso que nunca havia conhecido
algueacutem que carregasse em si de tal forma a franqueza e a doccedilura associadas ao rigor
acadecircmico como pude constatar em sua pessoa
Agrave Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) pelo
amparo financeiro para o desenvolvimento dessa pesquisa
Agrave Profordf Drordf Sara Parvis (University of Edinburgh) por sua gentileza em indicar
algumas informaccedilotildees importantes sobre o principal manuscrito das Apologias de Justino o
MS Parisinus Graecus 450
Agrave minha querida amiga Profordf Viviana L Felix (Universidad Catolica de Buenos
Aires) que generozamente compartilhou comigo artigos e momentos agradaacuteveis de fluecircncia de
ideias
Aos professores Drordm Mauro Pesce e Drordf Adriana Destro (Universitagrave di Bologna) pela
atenccedilatildeo em partilhar comigo algumas indicaccedilotildees bibliograacuteficas
Agraves professoras Drordf Maria Aparecida de Oliveria Silva (pesquisadora na UNESP-
Araraquara) e Drordf Giovanna Menci (Istituto Papirologico ldquoG Vitellirdquo dellrsquoUniversitagrave degli
Studi di Firenze) assim como tambeacutem ao nobre B Jobjorn Boman (Oumlrebro University) pelos
riquiacutessimos artigos compartilhados
Ao Profordm Me Deivid V Gaia (Universidade Federal de Pelotas) por haver gentilmente
compartilhado alguns documentos importantes conseguidos junto agrave Bibliothegraveque national de
France
Agraves professoras Drordf Monica Selvatici (Universidade Estadual de Londrina) e Drordf
Solange Ramos de Andrade (Universidade Estadual de Maringaacute) pelas ricas criacuteticas e
consideraccedilotildees que contribuiacuteram para o aprimoramento dessa pesquisa
Aos colegas Camila Santiago Luz Thiago Franccedila Thais Bassi Soares Profordm Drordm
Jaime Estevatildeo dos Reis e demais integrantes do Laboratoacuterio de Estudos Antigos e Medievais
(LEAM-UEM) pelo companheirismo e satisfaccedilatildeo proporcionada pela dedicaccedilatildeo conjunta aos
estudos histoacutericos
7
Ateacute voacutes apenas ouvindo que esperamos um reino logo supondes sem nenhuma averiguaccedilatildeo que se trata de
reino humano quando noacutes falamos do reino de Deus [] Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a
manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o
avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens
conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos os modos e se
adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos De fato aqueles que agora
por medo das leis e dos castigos por voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los porque
sabem que sois homens e que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutes se se inteirassem e se persuadissem de que
natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se
moderariam de todos os modos como voacutes mesmos haveis de convir
Justino Maacutertir I Apologia 111121
8
Resumo
A histoacuteria do cristianismo na primeira metade do II seacuteculo eacute marcada por atritos locais
denuacutencias em tribunais e caluacutenias que faziam do nome ldquocristatildeordquo um motivo de condenaccedilatildeo
Trajano Adriano e Antonino Pio fizeram suas recomendaccedilotildees aos governantes locais para
desestimular a expansatildeo da nova superstitio dos cristatildeos que demonstrava aversatildeo aos
deuses agraves tradiccedilotildees agraves celebraccedilotildees puacuteblicas e ao culto imperial Nenhuma perseguiccedilatildeo de
fato devia ser estabelecida denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas e os cristatildeos que
abandonassem a feacute deveriam ser perdoados os que se recusavam a abandonar a feacute eram
punidos com a pena capital segundo o julgamento de cada magistrado Nesse periacuteodo alguns
chamados apologistas produziram escritos em defesa dos fieacuteis Justino escreveu duas vezes
ao imperador Antonino e a seus filhos entre os anos de 154 e 161 Nas Apologias ele critica a
postura dos governantes por acatarem as caluacutenias das massas que acarretavam uma ideia
depreciativa ao nomen christianum A fidelidade cristatilde ao Impeacuterio eacute ratificada pelo
apologista que surpreende ao destacar a colaboraccedilatildeo dos fieacuteis na manutenccedilatildeo da ordem Por
meio desta pesquisa que tem por obejtivo analisar a relaccedilatildeo entre controle e religiatildeo a partir as
accedilotildees anticristatildes nesses escritos de Justino nota-se que esse tipo de accedilotildees foi fundamental
para que a funccedilatildeo social da religiatildeo dos cristatildeos fosse pensada no desenvolvimento desse
discurso apologeacutetico Nesse discurso procura-se justificar a rejeiccedilatildeo aos deuses e agrave
imoralidade por eles representada Atento agraves interrogaccedilotildees dos intelectuais e homens letrados
de sua eacutepoca satildeo destacados os aspectos tidos por ldquoirracionais e imoraisrdquo das crenccedilas pagatildes
enquanto a feacute cristatilde eacute apresentada em contornos racionais com o intuito de reconhececirc-la como
filosofia divina e superior agraves demais Nesse sentido a crenccedila num Deus absoluto justo e
onisciente aparece como um instrumento capaz de subter as pessoas agrave moralidade enquanto
aguardam a recompensa eterna e procuram se afastar da condenaccedilatildeo divina Eacute nesse momento
que a religiatildeo dos cristatildeos comeccedila a ser pensada como uma substituta agraves crenccedilas pagatildes
apontadas como incoerentes
Palavras-chave
Justino Maacutertir histoacuteria do cristianismo Impeacuterio Romano perseguiccedilatildeo aos cristatildeos
9
Abstract
The history of Christianity in the first half of the second century is marked by local clashes
accusations in court and slanders that made the name Christian reason for condemnation
Trajan Hadrian and Antoninus Pius made their recommendations to local governments to
discourage the expansion of new superstitio of the Christians who showed aversion to the
gods traditions public celebrations and the imperial cult No persecution in fact should have
been established anonymous reports should not have been accepted and if any Christian
abandoned the faith they should have been forgiven however those who refused to abandon
their faith were punished with the death penalty according to the judgment of each magistrate
During this period some Christians with high education produced writings in defense of their
faith Justin wrote twice to the Emperor Antoninus and his sons between the years 154 and
161 AD In ldquoApologiesrdquo he criticizes the attitudes of the rulers for accepting the slander of the
masses who were accusing the Christians The Christian fidelity to the Empire is ratified and
he highlights the collaboration of the faithful in the maintenance of order Through this
research on the relationship between religion and control as seen in the antichristian actions
reported in the writings of Justin it is noted that this type of action was essential to the social
function of the Christian religion to be thought in your apologetic discourse It seeks to justify
the condemnation of the gods and the immorality represented by them In attention to the
questions of intellectuals and men of letters of his age the irrational behaviors and immoral
aspects of the pagan beliefs are pointed by the apologist while the Christian faith is presented
in rational contours making it a divine philosophy and superior to the other In this sense the
Christian belief in an absolute God who is just and omniscient appears as an instrument with
the ability to teach and demand morality from its followers while they are awaiting the
eternal reward and actively trying to move away from divine condemnation It is then that
their religion begins to be thought of as a substitute for pagan beliefs which are pointed out as
incoherent with the order in the Empire
Key-words
Justin Martyr History of Christianity Roman Empire persecution of Christians
10
LISTA DE ABREVIATURAS
Hist Ecles Histoacuteria Eclesiaacutestica
Diaacutel Diaacutelogo com Trifatildeo
I Apol Primeira Apologia de Justino
II Apol Segunda Apologia de Justino
A Manuscrito Parisinus Graecus 450
B Manuscrito Phillipicus
C Manuscrito Ottobonianus Graecus 274
IGRR Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes
Apolog Apologeticus de Tertuliano
Hist Rom Histoacuteria Romana de Cassius Dio
Hist Aug Histoacuteria Augusta
ApS Apologia de Soacutecrates
PIR Prosopografia Imperii Romani
Ep Epiacutestolas de Pliacutenio
Hist Roma Histoacuteria de Roma de Tito Liacutevio
ANRW Aufstieg und Niedergang der roumlmischen Welt
ZKG Zeitschrift fuumlr Kirchengeschichte
Ant Jud Antiguidades Judaicas
Guer Jud Guerras Judaicas
11
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 12
CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS 18
11 As principais ediccedilotildees das Apologias 18
12 A questatildeo da autoria Justino 22
13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino 25
131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica 26
132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino 27
14 Destinataacuterios 31
CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS 34
21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano 35
22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano 49
23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos 57
CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE
MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM 62
31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem 67
32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus 71
33 Sobre as leis e imoralidades 85
CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM
SOCIAL 91
41 O controle absoluto do controlador absoluto 91
42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde 100
421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios 102
422 A razatildeo que julga 109
43 O governo o controle e os governantes 115
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 121
REFEREcircNCIAS 126
APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS 143
Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos 146
Iacutendice remissivo 148
12
INTRODUCcedilAtildeO
Este que no dia 1 de junho eacute reverenciado pelas Igrejas Catoacutelica Ortodoxa Oriental e
Anglicana tem a apresentar um testemunho que vai aleacutem do seu martiacuterio Seus escritos
oferecem pistas importantes para o entendimento da condiccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no
Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II Muitos como o Papa Bento XVI o tecircm chamado
de ldquoo mais importante dos padres apologistas do segundo seacuteculordquo1 Poreacutem o que esta
pesquisa iraacute mostrar eacute que os escritos atribuiacutedos a esse ldquofiloacutesofo cristatildeordquo apresentam acima de
tudo os primeiros indiacutecios de uma efetiva reflexatildeo histoacuterico-teoloacutegica sobre a funccedilatildeo do
cristianismo na organizaccedilatildeo social
Dentre as pesquisas do seacuteculo XX sobre Justino recebe destaque primeiramente o
trabalho de Johannes M Pfaumlttisch2 em 1910 a respeito da influecircncia do pensamento de
Platatildeo sobre esse apologista Em 1923 foi publicada a obra de E R Goodenough3 que
apresentava uma sistematizaccedilatildeo do pensamento teoloacutegico desse que segundo seu ponto de
vista fazia jus ao nome de ldquomaacutertirrdquo ou seja algueacutem ldquoque daacute testemunhordquo mas que em
contrapartida estava longe de merecer o tiacutetulo de ldquofiloacutesofordquo Poucos anos mais tarde
destoando em alguns aspectos do pensamento de Goodenough empreendeu C Andresen4
uma anaacutelise sublinhando os traccedilos filosoacuteficos dos escritos de Justino em comparaccedilatildeo ao
meacutedio-platonismo que tinha um espaccedilo significativo no pano de fundo intelectual do II
seacuteculo dC A problemaacutetica da relaccedilatildeo entre as doutrinas cristatildes ganhou reforccedilo com a defesa
da tese de N Hyldahl5 em 1965 Na mesma deacutecada de 1960 eacute Lislie W Barnard6 quem
intersecciona os aspectos teoloacutegicos filosoacuteficos e as ideias sobre o judaiacutesmo representados
nos escritos de Justino Aleacutem dos interesses teoloacutegico-filosoacuteficos em torno desses escritos haacute
tambeacutem uma busca por elementos que auxiliem a compreender a condiccedilatildeo dos cristatildeos no
1 PAPA BENTO XVI Audiecircncia geral Praccedila de Satildeo Pedro Vaticano 21 de marccedilo de 2007 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherbenedict_xviaudiences2007documentshf_ben-xvi_aud_20070321_pohtml acesso em 20 de dezembro de 2011 2 Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910 3 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 4 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf tambeacutem ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Berliacuten Walter de Gruyter und co 1955 5 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 6 Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967 cf tambeacutem id Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology V 22 n 2 jun1969 pp 152-164
13
Impeacuterio em meados do seacuteculo II Nesse sentido os escritos de Justino tecircm muito a contribuir
tanto para se pensar a influecircncia da cultura greco-romana sobre as ideias cristatildes quanto sobre
as accedilotildees anticristatildes
As conferecircncias de Henry Chadwich7 na The John Rylands Library em 1965
chamavam a atenccedilatildeo para a inter-relaccedilatildeo entre a filosofia e a teologia nascente percebidas nas
estrateacutegias de defesa argumentativa apresentadas por Justino contra a opressatildeo sobre os
cristatildeos Mas por que os cristatildeos foram perseguidos
As hipoacuteteses tecircm girado em torno de uma lei especial contra os cristatildeos instituiacuteda por
Nero institutum neronianum como chamou Tertuliano8 ou pelo enquadramento em crimes
comuns como maiestas ou pela livre accedilatildeo dos magistrados para manter a ordem ius
coertiones9 Na deacutecada de 1950 receberam destaque os trabalhos de Henry Gregoire10 A N
Sherwin-White11 e J Moreau12 Na deacutecada seguinte Geoffrey E M de Ste Croix13
estabeleceu um debate com Sherwin-White14 sobre essa questatildeo
GEM de Ste Croix sustentava que as perseguiccedilotildees aos cristatildeos baseavam-se na
recusa em reconhecer os deuses de Roma comportamento que era frequentemente
considerado perigoso e sedicioso Os deuses tradicionais do panteatildeo greco-romano eram as
divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma que exigiam culto para a estabilidade da
pax deorum15 Por essa perspectiva Ste Croix propunha que a perseguiccedilatildeo se relacionava ao
sentimento religioso da eacutepoca16 AN Sherwin-White por outro lado defendeu que as
perseguiccedilotildees aos cristatildeos natildeo se baseavam na questatildeo do rompimento da pax deorum mas na
aguda obstinaccedilatildeo dos cristatildeos em natildeo cometer apostasia nem sacrificar para os deuses do
Impeacuterio17 Tal postura dos cristatildeos desafiava as autoridades romanas e representavam uma
grave insubordinaccedilatildeo GEM Ste Croix deu uma treacuteplica a essa questatildeo em 196418 mas essa
problemaacutetica tem despertado pesquisadores ateacute hoje19
7 Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 8 Ad Nationis I78 9 BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 1968 pp 30-50 10 Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 1111 The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952 p 199 12 La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 13 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 pp 6-38 14 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 15 De Ste CROIX GEM Op cit 1963 p 24 16 Ste CROIX GEM Op cit 1963 pp 29-31 17 SHERWIN-WHITE AN Op cit 1964 pp 25 18 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 19 Cf BARNES Timothy D Constantine and Eusebius Cambridge MA Harvard University Press 1981 MacMULLEN Ramsay Christianizing the Roman Empire (AD 100-400) New HavenLondon Yale
14
A proclamaccedilatildeo cristatilde no I e II seacuteculos causava tanto conversotildees quanto reaccedilotildees
adversas entre os pagatildeos20 A religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio Romano era presente na vida dos
povos 21 Relembrando Marcel Simon e Andreacute Benoicirct22 eacute justo admitir que com a refutaccedilatildeo
de todos os compromissos e a sustentaccedilatildeo intransigente do monoteiacutesmo a Igreja parecia um
corpo estranho aos pagatildeos Distanciando-se dos eventos puacuteblicos normalmente envolvidos
com a idolatria condenada pela Igreja rejeitando o serviccedilo militar os jogos e as celebraccedilotildees
artiacutesticas os cristatildeos se autoexpunham agrave marginalizaccedilatildeo da sociedade
Entre o povo ou entre os intelectuais os cristatildeos eram vistos com estranheza ou
desconfianccedila23 Assim como foram caracterizados os judeus podia-se pensar que os cristatildeos
apresentavam um odio humani generis24 em parte devido aos comentaacuterios depreciativos que
se espalhavam entre o povo Foram caracterizados por Taacutecito como membros de uma
destrutiacutevel superstitio25 oriunda da Judeia Suetocircnio se referiu a eles como ldquoraccedila de homens de
uma superstitio nova e maleacuteficardquo26 As acusaccedilotildees ou suspeitas poderiam girar em torno de
delitos ou coisas consideradas repulsivas como infanticiacutedio incesto assembleias ilegais
introduccedilatildeo de cultos iliacutecitos e mais especialmente traiccedilatildeo sendo esta uacuteltima caracterizada pela
recusa em adorar a divindade do imperador27
As superstitiones e os cultos locais eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob
atenccedilatildeo Como destacam Mary Beard John North e Simon Price28 as controveacutersias poderiam
desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito
em 172 e 173 aC29 na incursatildeo da Traacutecia que foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que
University Press 1984 DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000 DRAKE Harold Allen Constantine and the Bishops the politics of intolerance BaltimoreLondon John Hopkins University Press 1999 CLARK Gillian Christianity and the Roman Society Cambridge Cambridge University press 2004 CHADWICK Henry The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001 FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006 20 GOODMAN Martin Mission and conversion proselytizing in the religous history of the Roman Empire Clarendon Press Oxford University Press 1994 p 12 21 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 Cf BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35 22 SIMON M BENOIcircT A Giudaismo e Cristianesimo una storia antica RomaBari LaterzaFigli Spa 2005 p 12 23 ldquoaqueles que por suas abominaccedilotildees eram mal vistosrdquo [quos per flagitia invisos] Taacutecito Annales 1544 24 ldquooacutedio agrave humanidaderdquo Ibid 25 exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo] Annales 1544 26 genus hominum superstitionis novae ac maleficae De Vita XII Caesarum Vita Neronis 162 27 MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956 28 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 29 Cassius Dio Hist Rom LXXII4
15
conseguiu seguidores30 entre os druidas incitados por profecias sobre o fim de Roma da
Gaacutelia31 e nas revoltas judaicas do I e II seacuteculos dC Embora existisse um niacutevel significativo
de liberdades religiosa e individual os grupos e assembleias ficavam sob atenccedilatildeo das
autoridades Os baacutequicos os astroacutelogos e maacutegicos o culto de Iacutesis e a crenccedila dos druidas
tambeacutem enfrentaram a obstruccedilatildeo romana32
Paul Veyne faz diferenciaccedilatildeo entre os interesses dos homens letrados e das autoridades
preocupadas com a manutenccedilatildeo da ordem e o interesse da populaccedilatildeo pagatilde em geral Em sua
percepccedilatildeo a atitude de criacutetica dos romanos frente agraves comunidades cristatildes manifestava a
repulsa ao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguo33 Desse modo a rejeiccedilatildeo ao novo grupo religioso
do oriente deveria envolver um problema identitaacuterio tambeacutem relacionado agrave dificuldade de se
assimilar um grupo dotado de particularidades que pretendiam a superioridade diante dos
estabelecidos Justino tambeacutem sustenta uma tese em torno da questatildeo do ldquopor que os cristatildeos
eram perseguidosrdquo esforccedilando-se em convencer os romanos sobre as ldquoinjusticcedilasrdquo cometidas
contra os cristatildeos
Embora natildeo exista um consenso sobre o iniacutecio das perseguiccedilotildees no I seacuteculo34 eacute certo
que o estilo de vida e o conteuacutedo das crenccedilas cristatildes natildeo agradavam a muitos o que
culminava na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados
Natildeo haacute sinais de uma perseguiccedilatildeo generalizada no iniacutecio do II seacuteculo mas apareciam
atritos locais que por vezes culminavam na condenaccedilatildeo dos cristatildeos denunciados ou agredidos
pelo povo Pliacutenio Segundo natildeo sabia ao certo como proceder nos processos que julgavam os
cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia e chegou a pedir a orientaccedilatildeo de Trajano35 Sob Adriano36 o
governador da Aacutesia Menor Graniano tambeacutem levantou questotildees sobre esses processos
30 Cassius Dio Hist Rom LI255 LIV345-7 31 Taacutecito Historias IV546165 V2224 32 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 Cf AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 33 VEYNE Paul Culto piedade e moral no paganismo greco-romano In O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 pp 245-246 34 Marta Sordi (I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 15-29) por exemplo sustenta a tese de que a resposta negativa do Senado ao pedido de Tibeacuterio sobre o reconhecimento de Cristo entre os deuses oficiais teria tornado a feacute cristatilde em uma religio illicta Paul Keresztes defende que foi o institutum neronianum que primeiramente comprometeu a legalidade do grupo dos cristatildeos (Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214) 35 Governou de 98 a 117 dC 36 Governou de 117 a 138 dC
16
Nesse periacuteodo Quadrato e Aristides tambeacutem escreveram ao imperador em defesa dos cristatildeos
mas a situaccedilatildeo continuou a mesma sob o governo de Antonino Pio37
Justino que havia nascido em Flaacutevia Neaacutepolis38 atual Nablus uma cidade na antiga
regiatildeo da Samaria filho de pai latino e de um avocirc com nome grego estudou filosofia mas se
converteu ao cristianismo e se pocircs em defesa da feacute39 Escreveu suas Apologias entre os anos
de 154 e 161 aproximadamente em defesa dos cristatildeos levados aos tribunais e entatildeo
condenados agrave morte Aleacutem da previsatildeo de seu proacuteprio martiacuterio o apologista retrata ainda um
caso especiacutefico que ocorreu sob Urbico em Roma Seu discurso busca convencer o imperador
Antonino Pio40 de que os cristatildeos natildeo representavam nenhum tipo de ameaccedila e que seria
segundo seu ponto de vista uma grande injusticcedila condenar agrave morte aqueles que eram
colaboradores ldquoda pazrdquo no Impeacuterio41 Os problemas penais e de outros caraacuteteres juriacutedicos
abordados por Justino e comuns ao governo de Antonino Pio foram uma vez analisados por
Paul Keresztes42 que destacou a estrateacutegia desse apologista de interpretar o rescrito43 de
Adriano a Minuacutecio Fundano Todavia as Apologias desse pensador cristatildeo desafiam a
compreensatildeo de um capiacutetulo intrigante da histoacuteria das ideias religiosas cristatildes como esse
discurso em defesa dos cristatildeos apresenta em meio agraves proposiccedilotildees teoloacutegico-filosoacuteficas que
permeiam o texto uma leitura das accedilotildees anticristatildes conjuguando controle social e religiatildeo na
reprovaccedilatildeo da coaccedilatildeo imposta por Roma sobre os cristatildeos e na indicaccedilatildeo da funccedilatildeo
reguladora da religiatildeo cristatilde para a cooperaccedilatildeo na manutenccedilatildeo da ordem
Por isso essa pesquisa tem por objetivo principal compreender as relaccedilotildees entre
controle social e religiatildeo a partir da anaacutelise das accedilotildees anticristatildes praticadas ateacute meados do
seacuteculo II dC segundo as Apologias de Justino Maacutertir O exame de suas ideias deve
compreender o paradoxo construiacutedo em seu discurso entre o tipo de controle social
desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia aos cristatildeos que
tumultuam a ordem e por outro lado o tipo de controle social apontado nas Apologias que
37 Governou de 138 a 161 dC 38 I Apol 11 cf MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 127-129 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought New York Cambridge University Press 1967 pp 3-12 39 JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991 Cf mais informaccedilotildees no capiacutetulo I 40 E tambeacutem a seus filhos Marco Vero (que seria chamado Marco Aureacutelio) e Luacutecio Vero 41 I Apol 31ss I Apol 121ss 42 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129 Id Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 dec1964 pp 204-214 Id The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 43 Rescrito em resposta aos questionamentos do governador anterior Graniano
17
daria razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos mediante um tipo de ordem derivado da proliferaccedilatildeo de
suas crenccedilas
Por ldquocontrole socialrdquo entende-se ldquoo conjunto dos recursos materiais e simboacutelicos de
que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de seus
membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo44 Ou ainda
seguindo a perspectiva de Martin Innes45 ldquocontrole socialrdquo refere aos mecanismos e
tecnologias empregados para manutenccedilatildeo da ordem social Esta por sua vez eacute composta de
diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais de alguma forma contribuem para a
constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social Nesse embate apologeacutetico do seacuteculo II satildeo
apresentados argumentos para convencer de que a feacute cristatilde natildeo estava propiacutecia a nenhum tipo
de desordem social e que pelo contraacuterio seria capaz de influenciar na formaccedilatildeo de suacuteditos
fieacuteis do Impeacuterio
Para o cumprimento do objetivo central dessa pesquisa as Apologias de Justino satildeo
estabelecidas como principal objeto e fonte de investigaccedilatildeo a serem submetidas agrave criacutetica
interna e externa segundo o desenvolvimento de uma anaacutelise histoacuterica46 Ao colocar as
Apologias de Justino no centro dessa anaacutelise busca-se delimitar um campo possiacutevel de anaacutelise
dentro do processo de expansatildeo do cristianismo pelos territoacuterios do Impeacuterio Romano tendo
em vista as vaacuterias formas de resistecircncias e aceitaccedilotildees Uma anaacutelise sobre Justino e a
sobrevivecircncia de suas Apologias eacute apresentada no capiacutetulo I e no Apecircndice I
44 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) Dicionaacuterio criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 45 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 46 TOPOLSKY Jersy Metodologia de la historia Madrid Ediciones Catedras 1992 pp 36-45
18
CAPIacuteTULO I JUSTINO E AS APOLOGIAS
Para desenvolver uma investigaccedilatildeo sobre as relaccedilotildees entre controle social e religiatildeo
nas accedilotildees anticristatildes de meados do seacuteculo II dC a partir das Apologias de Justino Maacutertir eacute
preciso responder a algumas perguntas baacutesicas sobre sua origem transmissatildeo e forma
Levando em consideraccedilatildeo que as Apologias foram redigidas originalmente haacute quase 1900
anos e passaram por diversos copistas e editores ateacute chegar agrave atualidade eacute necessaacuterio fazer um
raacutepido percurso analiacutetico sobre as ediccedilotildees e suportes materiais que garantiram a preservaccedilatildeo
do texto Isso deveraacute contribuir para a compreensatildeo de suas caracteriacutesticas atuais
Esse tipo de anaacutelise contempla as diferenccedilas entre as trecircs principais ediccedilotildees recentes
das Apologias Miroslav Marcovich47 (com a 1ordf ediccedilatildeo em 1995) por exemplo oferece uma
ediccedilatildeo seguindo o padratildeo apresentado no MS Parisinus Graecus enquanto Charles Munier48
(com ediccedilotildees em 1994 1996 e 2006) sustenta a teoria de que os dois textos seriam
originalmente uma mesma peccedila Denis Minns e Paul Parvis49 (2009) oferecem uma ediccedilatildeo
que aleacutem de considerar a II Apologia uma compilaccedilatildeo de fragmentos e anotaccedilotildees de Justino
transformadas em Apologia por terceiros ainda realoca partes da segunda peccedila para a
primeira fazendo-a ganhar dois capiacutetulos a mais do que as duas ediccedilotildees mencionadas
anteriormente
Assim seratildeo analisados a seguir alguns dos principais pontos sobre as ediccedilotildees o
tamanho original e os destinataacuterios das Apologias bem como as evidecircncias que apontam para
Justino como seu autor
11 As principais ediccedilotildees das Apologias
A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450
ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C
47 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 48 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 Id Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 49 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
19
segundo a forma estabelecida por T Otto50 Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar
com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra
Parallela51 e no Chronicon Paschale52 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo
menos que doze vezes Na Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito
passagens No Chronicon Paschale aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4
Esse uacuteltimo deriva provavelmente da tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)53
Em 1551 foi produzida a partir do MS A a editio princeps importante trabalho do
typographus regius Robert Estienne54 ou Robertus Stephanus Conforme a anaacutelise de Minns e
Parvis55 trata-se de um texto bem produzido Do mesmo modo que A a composiccedilatildeo de
Stephanus que foi dedicada a ldquoBiblioteca Realrdquo apresenta os extratos de Photius e Euseacutebio
sobre Justino A Apologia menor tambeacutem aparece antes da maior56 Natildeo haacute nenhuma divisatildeo
ou quebra de texto Apenas algumas variantes de A satildeo colocadas nas margens das paacuteginas
A primeira traduccedilatildeo das Apologias viria em 1554 por Joachim Peacuterion57 em Paris
Frederick Sylburg58 apresentou sua ediccedilatildeo em 1593 em Heidelberg seguindo rigorosamente
o texto de Robert Etienne Sabe-se tambeacutem que Feacutedeacuteric Morel publicou as Apologias de
Justino em 161559 As ediccedilotildees de Johann Ernst Grabe seguiram fieacuteis ao Stephanus mas
trouxeram duas inovaccedilotildees a ediccedilatildeo de 170060 em Oxford apresentou a Apologia maior como
50 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 51 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 52 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 53 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 13 54 Minns e Parvis oferecem a seguinte referecircncia TOU AGIOU FILOSOFOU KAI MARTUROS) ZHNA kai Serhnw|) LOGOS parainetikoj proj Hllhnaj) PROS TRUFWNA Ioudaion dialogoj) APOLOGIA uper Cristianwn proj thn Rwmaiwn Sugklhton) APOLOGIA b uper Cristianwn proj Antoninon ton euvsebh) EX BIBLIOTHECA REGIA LVTETIAE Ex officina Roberti Stephani typographi Regii Regiis typis MDLI Cum priuilegio Regis Devido agrave corrupccedilatildeo dos textos antigos nem sempre eacute possiacutevel identificar os tiacutetulos corretamente por isso satildeo apresentados aqui em letras maiuacutesculas As barras representam a separaccedilatildeo das linhas onde satildeo lidas as informaccedilotildees a respeito dos volumes referenciados 55 Op cit p 14 56 A I Apologia eacute a ldquoapologia maiorrdquo mas no MS A a ldquoapologia menorrdquo isto eacute a II Apologia vem primeiro 57 Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis 58 TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953 59 Minns e Parvis (Op cit p 15) mencionam que Feacutederic Morel tenha criado a categoria de ldquoApologistasrdquo lanccedilando uma coleccedilatildeo de texto Esta informaccedilatildeo pode ateacute estar correta mas os autores natildeo apontaram nenhuma referecircncia do tipoacutegrafo Sabe-se que ele publicou as Apologias devito as informaccedilotildees do seguinte cataacutelogo GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18-- 60 SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700
20
a primeira e a ediccedilatildeo de 170361 apresentou a obra menor como a II Apologia tal como satildeo
reconhecidas hoje e tambeacutem foram acrescentadas divisotildees de capiacutetulos diferentes das usuais
A ediccedilatildeo de Styan Thirlby de 172262 juntou as trecircs obras de Justino reconhecidas como
autecircnticas I e II Apologia e o Diaacutelogo com Trifatildeo O texto ainda era baseado em Stephanus
Em 1742 Prudentius Maran63 publicou sua obra com uma divisatildeo de capiacutetulos que se
tornaria a usual Segundo Minns e Parvis64 Maran teve acesso a A e B mas seu texto eacute
semelhante ao de Stephanus As Apologias da coleccedilatildeo Patrologia Graeca volume 6 de
185765 eacute a reproduccedilatildeo da sua ediccedilatildeo alocada na seacuterie de Jacques Paul Migne (1800-1875)
JCT von Otto66 publicou sua primeira ediccedilatildeo em 1842 e a terceira e definitiva em
1876 Ele natildeo ficou preso ao texto de Stephanus e apresenta o princiacutepio das ediccedilotildees criacuteticas
sugerindo modificaccedilotildees e melhoramentos do texto Em 1911 foi a vez de Alfred Blunt
Segundo Minns e Parvis67 a obra se baseou principalmente nos trabalhos de G Kruumlger68 que
se espelhou em Otto A ediccedilatildeo de Edgar Goodspeed69 em 1914 recorre a A C e agrave tradiccedilatildeo de
Euseacutebio e da Sacra Parallela poreacutem natildeo apresenta notas criacuteticas
Em 1994 Miroslav Marcovich70 publicou sua ediccedilatildeo criacutetica das Apologias Em 1997
publicou tambeacutem a ediccedilatildeo do Diaacutelogo71 A qualidade criacutetica destes textos passou a um alto
niacutevel Segundo a anaacutelise de Minns e Parvis72 as emendas de Marcovich satildeo de um teor
filoloacutegico tatildeo elevado e com intervenccedilotildees sobre o caraacuteter estiliacutestico de tal modo que eacute possiacutevel
duvidar que Justino tivesse um conhecimento tatildeo apurado de grego
61 SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703 62 Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722 63 TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius 64 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 16 65 MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 66 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 67 Op cit p 17 68 Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896 69 Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 70 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 71 MARCOVICH Miroslav Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997 72 Op cit p 18
21
Charles Munier tambeacutem apresentou em 199473 um volume simples das Apologias em
francecircs Em 199574 foi lanccedilada sua ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto grego Ele confessa natildeo ter tido
acesso agrave obra de Marcovich receacutem-publicada75 Sua ldquogrande obrardquo veio em 2006 uma ediccedilatildeo
criacutetica na coleccedilatildeo Sources Chreacutetiennes O ponto forte do texto de Munier satildeo os comentaacuterios
e a extensiva discussatildeo do contexto teoloacutegico e filosoacutefico76 As anaacutelises textuais natildeo satildeo
muito profundas mas contribuem significativamente com a indicaccedilatildeo de textos
correlacionados
A ediccedilatildeo criacutetica de Denis Minns e Paul Parvis77 ndash com texto grego traduccedilatildeo e notas ndash
foi publicada em 2009 Aleacutem da ampla revisatildeo das ediccedilotildees de outros autores o texto
apresenta um rico aparato criacutetico As interferecircncias no texto fazem a I Apologia chegar ateacute o
capiacutetulo 70
Em 1995 a editora Paulus preparou uma versatildeo das I e II Apologias e o Diaacutelogo com
Trifatildeo em um uacutenico volume78 O texto eacute problemaacutetico e muito simplista Natildeo haacute sinais de
criacutetica textual e podem ser encontrados alguns erros de portuguecircs A traduccedilatildeo foi feita por Ivo
Storniolo com introduccedilatildeo e notas de Roque Frangiotti mas natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo sobre
qual foi o texto base para a traduccedilatildeo Eacute evidente todavia que os editores natildeo contaram com
as ediccedilotildees de Marcovich Munier ou Minns e Parvis Por isso deixaremos este texto em
segundo plano
Nessa pesquisa as ediccedilotildees de Miroslav Marcovich79 Charles Munier80 e a de Denis
Minns e Paul Parvis81 satildeo lidas em conjunto comparando as divergecircncias sempre que for
necessaacuterio A interferecircncia na disposiccedilatildeo dos capiacutetulos adotada por Denis Minns e Paul Parvis
natildeo seraacute admitida A divisatildeo das Apologias seraacute tal qual a que apresenta Marcovich por ater-
se ao padratildeo comum agrave maioria dos estudiosos82 poreacutem a Apologia Maior seraacute chamada I
Apologia abreviado para I Apol ou simplesmente I quando jaacute houver uma citaccedilatildeo no
paraacutegrafo Semelhantemente a Apologia Menor seraacute chamada II Apologia abreviado para II
73 MUNIER Charles LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p 74 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995 75 Id Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 90 76 Opiniatildeo tambeacutem compartilhada por MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 18 77 Ibid 346 p 78 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 79 MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 80 Op cit 2006 81 Op cit 82 Cf MARCOVICH M Op cit 2005 p 10
22
Apol ou II nas mesmas condiccedilotildees que a primeira O texto de Munier segue a mesma
padronizaccedilatildeo de Marcovich no entanto ele prefere se referir a Apologia parte I e parte II
nomenclatura que natildeo seraacute seguida nesse texto O termo ldquoApologiasrdquo seraacute empregado como
referecircncia aos dois textos de Justino
12 A questatildeo da autoria Justino
A I Apologia (11) aponta explicitamente que seu autor eacute Justino homem oriundo de
Flaacutevia Neaacutepolis hoje conhecida como Nablus localizada na Siacuteria Palestina B Bagatti83
afirma que ela foi fundada por veteranos da conquista da Judeia sob Vespasiano por volta do
ano de 72 O avocirc de Justino Baquios pode ter participado da implantaccedilatildeo da cidade
O apologista se reconhece como conterracircneo dos samaritanos84 No Diaacutelogo com
Trifatildeo ele eacute identificado como ldquofiloacutesofordquo e nas Apologias fica evidente seu conhecimento da
filosofia Taciano chamou seu mestre apologista de ldquoo mais admiraacutevel85rdquo Irineu de Lyon fez
menccedilatildeo ao seu martiacuterio e carregou sua influecircncia em seu escrito86 Tertuliano87 atribuiu-lhe
dois tiacutetulos ldquofiloacutesofo e maacutertirrdquo O apologista tambeacutem recebeu um lugar no De viriis
illustribus de Satildeo Jerocircnimo e Gennadius88
Em seu Diaacutelogo com Trifatildeo89 ele eacute apresentado como um homem educado no estudo
da filosofia Segundo a narrativa do Diaacutelogo Justino conheceu o estoicismo frequentou a
escola peripateacutetica ficou junto a um filoacutesofo pitagoacuterico que lhe solicitou aprender muacutesica
astronomia e geometria Por uacuteltimo havia se aproximado da escola platocircnica quando entatildeo
conheceu os escritos dos profetas e a feacute cristatilde90 Segundo E R Goodenough91 Justino adota
uma dramatizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre o cristianismo e a filosofia apresentando as passagens
por diversas escolas agraves quais critica rumo agrave ldquoverdaderdquo cristatilde Ele compara a narrativa de
Justino agrave de seu contemporacircneo Luciano em Menippus IVVI Em Menippus tambeacutem eacute
descrita a passagem por diversas escolas de pensamento chegando-se ao consentimento pelas
inuacutemeras contradiccedilotildees de que nenhuma delas tinha autoridade Goodenough tambeacutem vecirc a
83 S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319 84 Diaacutel 1206 II Apol 151 85 Discurso contra os gregos 191ss 86 Contra as heresias I281 cf IV62 V262 87 Contra os Valentinianos 51ss 88 Vida dos homens Ilustres 89 21ss 90 II Apol 81ss 91 Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923 pp 58-59
23
recorrecircncia dessa forma literaacuteria na descriccedilatildeo de verdadeiros proseacutelitos do judaiacutesmo Githro
Naaman e Rahab descritos na Tannaim92 N Hyldahl93 aleacutem de considerar a narrativa da
trajetoacuteria filosoacutefica de Justino mera ficccedilatildeo tambeacutem sustenta ser impossiacutevel determinar que
tipo de platonista esse pensador foi antes de sua conversatildeo e que a capa de filoacutesofo que usava
mencionada por Euseacutebio era um erro de interpretaccedilatildeo
Deve-se reconhecer como tambeacutem destacou L W Barnard que se por um lado havia
uma convenccedilatildeo literaacuteria grega ndash e que pudesse ser encontrada ocasionalmente ateacute no judaiacutesmo
ndash sobre as aventuras por diversas escolas a fim de criticaacute-las por outro lado isso natildeo contradiz
a admissatildeo da atual condiccedilatildeo de filoacutesofo cristatildeo assumida por Justino naquele momento Por
ldquofiloacutesofo cristatildeordquo natildeo se pretende dizer outra coisa senatildeo aquilo que ele mesmo confessa e
procura convencer os seus leitores a saber de que apoacutes conhecer diversas correntes
filosoacuteficas encontrou nas doutrinas cristatildes a ldquoverdaderdquo que o contentou94 Aleacutem disso o teor
apologeacutetico do discurso de Justino estaacute fundamentalmente relacionado a paralelos e
intersecccedilotildees com a filosofia C Andresen95 concorda que a trajetoacuteria filosoacutefica de Justino seja
mais do que um simples jogo literaacuterio Segundo Andresen e ele parece estar correto o meacutedio-
platonismo eacute a base da construccedilatildeo do pensamento cristatildeo de Justino
Em Roma Justino esteve engajado em debates com o filoacutesofo ciacutenico Crescente96
Segundo a Ata do Martiacuterio de Justino97 ele foi decapitado sob o julgamento de Rusticus
prefeito de Roma entre 162 e 168
A data e o local da conversatildeo de Justino satildeo imprecisos Eacutefeso tem sido cogitada como
uma boa hipoacutetese para o local de seu membramento ao cristianismo98 ou ainda algum ponto
na sua longa jornada da Palestina para Roma99 Minns e Parvis100 pensam que sua adesatildeo deve
ter ocorrido pelo menos uns 30 anos antes de sua morte Isso apontaria para uma data proacutexima
92 Ibid pp 58-59 93 Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965) 94 Dial II1-6 95 Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft v44 Berlin-New York 1952-1953 pp157-195 Cf FELIX Viviana Laura Elementos medioplatoacutenicos en la filosofiacutea de Justino IV JORNADAS NACIONALES DE FILOSOFIacuteA MEDIEVAL Academia Nacional de Ciencias de Ciencias de Buenos Aires Abril 2009 96 II Apol 31ss 97 Atti del Martiacuterio di San Giustino Caritone Caritoacute Evelpisto Ierace Peone e Liberiano Martirizzati a Roma In GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 Texto grego e traduccedilatildeo italiana a partir da obra de WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987 98 QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197 99 SKARSAUNE Oskar The proof from phophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provence theological profile Leiden EJBrill 1987 pp 245-246 100 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 33
24
agrave guerra judaica da deacutecada de 130 dC O Dialogo (1206) cita a I Apologia e desse modo
ambos os textos fazem referecircncia agrave revolta de Bar Kosiba entre os anos de 132 e 135101
Aleacutem das Apologias e do Diaacutelogo com Trifatildeo obras que satildeo reconhecidamente
proacuteprias a Justino Euseacutebio102 aponta que o apologista escreveu tambeacutem um livro contra os
gregos outro intitulado Elenchos um tratado sobre a soberania de Deus outro com o tiacutetulo
Psaltes e um escrito sobre a alma Um tratado contra Marciatildeo tambeacutem eacute citado mas essa
passagem corresponde a um trecho da I Apol 265-6103 Na sequecircncia dessa periacutecope da I
Apologia Justino disse que ele mesmo escreveu um ldquotratadordquo contra todas as heresias Esse
escrito poreacutem eacute dado por perdido No Dialogo 1206 o apologista diz ter aprestado um
escrito endereccedilado ao imperador no qual se refere a Simatildeo Mago104 o que eacute constatado na I
Apologia Eacute pertinente admitir que natildeo eacute possiacutevel saber se o texto que foi preservado ateacute agora
derivou daquele primeiro endereccedilado ao imperador Se seu trabalho foi entregue ao imperador
eacute provaacutevel que Justino tenha ficado com uma coacutepia
Minns e Parvis105 natildeo acreditam que seu texto tenha sido copiado com o intuito de ser
amplamente publicado Parece-lhes razoaacutevel sustentar a hipoacutetese de que o texto preservado
ateacute hoje pelo MS A deriva do documento que estava com Justino no momento de sua prisatildeo
Talvez tenha sido necessaacuteria uma reorganizaccedilatildeo do texto mais tarde com um propoacutesito
catequeacutetico ou apologeacutetico diferente do seu sentido original Entre sua emissatildeo original e o
teacutermino do trabalho do copista do Parisinus Graecus 450 em 11 de setembro de 1364106
muita coisa pode ter acontecido ao texto Todavia o principal obstaacuteculo a essa hipoacutetese eacute que
natildeo foram encontrados quaisquer vestiacutegios de um texto que ateste que o documento jaacute teve
outro formato sem os acreacutescimos catequeacuteticos Aleacutem disso as partes que tratam das crenccedilas
cristatildes estatildeo bem relacionadas agrave estrutura da obra e cumprem com seu propoacutesito
apologeacutetico107 Sua estrutura apresenta traccedilos comuns aos escritos de outros apologistas do II
101 Diaacutel 13 I Apol 316 102 Hist Ecles IV181-6 103 Hist Ecles IV118-9 104 Cf I Apol 262-3 105 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 34 106 Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005) calcula o ano de 1363 mas Bobichon ( lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 pp 157-158) apontou de forma mais satisfatoacuteria a data de 1364 com a qual Minns e Parvis (Op cit 34) e Munier (Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 84) concordam 107 A funccedilatildeo catequeacutetica da obra seraacute examinada mais propriamente no terceiro capiacutetulo parte 4 dessa dissertaccedilatildeo
25
seacuteculo induzindo Sara Parvis108 a pensar que Justino tenha sido o ldquopairdquo do gecircnero apologeacutetico
cristatildeo servindo de inspiraccedilatildeo para outros escritores da eacutepoca
Embora existam interrogaccedilotildees e divergecircncias sobre a unicidade ou biparticcedilatildeo das
Apologias haacute semelhanccedilas estiliacutesticas entre as duas partes que fazem com que Marcovich109
Munier110 Minns e Parvis111 concordem que os escritos procedam de Justino ainda que certas
modificaccedilotildees sejam admitidas durante o tempo conforme as irregularidades de alguns pontos
tecircm mostrado Eacute preciso ainda ter uma ideia clara sobre que tipo de escritos se estaacute
analisando tendo em vista que o conceito de ldquoapologiardquo como uma espeacutecie de gecircnero literaacuterio
eacute recente
13 A composiccedilatildeo das Apologias de Justino
Termo derivado da palavra grega avpologia significa basicamente ldquodiscurso de defesa
defesardquo Que tambeacutem deriva do verbo avpologeomai que representa o oposto de kathgoria
que significa ldquoacusaccedilatildeordquo112
No seacuteculo IV aC Platatildeo113 e Xenofontes114 cada um a seu modo narram a ldquoapologia
de Soacutecratesrdquo e proporcionam um tributo agrave valorizaccedilatildeo da razatildeo No I seacuteculo dC eacute Flaacutevio
Josefo115 quem eterniza um discurso desse tipo remetido a Aacutepion em prol dos judeus Josefo
defende a religiatildeo judaica salientando a sua antiguidade e contrastando a pretensatildeo grega agrave
superioridade no campo cultural O caraacuteter ldquoapologeacuteticordquo do texto como um ldquodiscurso de
defesardquo fica por conta da resposta a algumas alegaccedilotildees antijudaicas atribuiacutedas ao escritor
grego Aacutepion e os mitos acreditados por Manetho
No seacuteculo II dC Apuleio de Madura tambeacutem compocircs uma apologia pela qual se
defende das acusaccedilotildees de magia Eacute nesse mesmo seacuteculo que uma seacuterie de escritos como os de
Quadrato Aristides Justino Atenaacutegoras Meacuteliton de Sardes Teoacutefilo de Antioquia Taciano e
outros emerge em defesa dos cristatildeos que sofriam acusaccedilotildees principalmente na Aacutesia Menor
108 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 109 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 110 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 111 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 112 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 Cf RUSCONI C (Ed) DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 113
Apologia de Soacutecrates 114
Apologia 115 Contra Aacutepion
26
Para compreender os aspectos constitutivos das apologias de Justino eacute preciso analisar
as vaacuterias teorias sobre sua composiccedilatildeo e sua estrutura retoacuterica
131 As teorias sobre a composiccedilatildeo e a estrutura retoacuterica
As diferenccedilas estruturais de uma para a outra apologia de Justino exigem uma anaacutelise
especiacutefica Notadamente a II Apol eacute menor que a I Apol Minns e Parvis116 apresentam trecircs
teorias sobre o nuacutemero desses escritos de Justino
A forma como aparecem no MS A corrobora com a ideia de que sejam duas apologias
Mas enquanto a primeira eacute cheia de citaccedilotildees da escritura a segunda natildeo tem nenhuma citaccedilatildeo
desse tipo De modo bem peculiar eacute na II Apologia que aparece a reflexatildeo sobre o loacutegoj
sperermatikoj117 e o comprometimento de Justino no debate com Crescente A anaacutelise textual
da II Apologia eacute desfavorecida pelo tamanho do texto todavia as diferenccedilas proporcionais
entre os escritos satildeo somadas agrave hipoacutetese de que seriam de fato duas apologias
A segunda teoria sustenta a ideia de que originalmente a atual composiccedilatildeo dupla era
na verdade uma uacutenica Apologia Munier eacute aliado a essa proposta Ele considera que uma obra
uacutenica ndash um libellus ndash teria sido apresentada em Roma como requisiccedilatildeo pessoal endereccedilada ao
Imperador Antonino Pio e seus filhos para mudar a condiccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio118 O
principal argumento dessa hipoacutetese eacute que existe uma boa inclusio entre as referecircncias agrave
piedade e agrave filosofia no iniacutecio da primeira (I Apol 1 21-2 31) e os que aparecem no final da
segunda (II Apol 1213 e 14) As retomadas na segunda do tipo ldquoconforme dissemos
anteriormenterdquo seriam referecircncias ao que foi dito na parte imediatamente anterior e natildeo a
outro texto
De modo diverso Minns e Parvis119 consideram que a estrutura do texto ficaria muito
estranha se fosse pensada segundo essa teoria O cliacutemax da primeira parte estaria no rescrito
de Adriano quando o autor mostra a incoerecircncia das acusaccedilotildees e perseguiccedilotildees sofridas pelos
cristatildeos (I Apol 685-10) Isso tornaria incoerente recomeccedilar uma seccedilatildeo de defesa na parte
posterior Outro argumento desfavoraacutevel eacute que o escriba que picou o texto teria sido
demasiadamente astuto para escolher uma parte que marcaria precisamente a distinccedilatildeo de tons
entre os dois textos
116 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p22 117 Logos spermatikos que pode ser entendido de modo limitado com ldquosemente da razatildeordquo 118 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 119 Op cit p 22
27
Outra teoria sustenta que se trata de uma apologia e um apecircndice Minns e Parvis120
fazem saber que essa foi a teoria apresentada por Grabe121 em 1703 recebida por Harnack122
popularizada por Goodspeed123 em 1914 e ainda sustentada com entusiasmo por Marcovich124
em 1994 As correspondecircncias entre a primeira e a segunda estariam relacionadas ao material
deixado pelo proacuteprio Justino apoacutes concluir o texto definitivo A I Apologia pode ser
reconhecida como um libellus ou seja uma requisiccedilatildeo particular endereccedilada ao Imperador
mas a classificaccedilatildeo da II Apologia natildeo eacute muito precisa
Seguindo o raciociacutenio de Robert M Haddad125 qualquer peticcedilatildeo (libellus) apresentada
ao imperador buscava persuadi-lo a fazer alguma coisa De fato na Antiguidade a persuasatildeo
se tornou uma arte Desenvolvida pelos gregos a retoacuterica foi adaptada pelos romanos para
suas proacuteprias aspiraccedilotildees Ciacutecero Secircneca o Velho Taacutecito Pliacutenio o Jovem Quintiliano e
Fronto se tornaram nomes referenciais dessa habilidade Como foi apontado anteriormente
Justino era muito familiarizado com a filosofia mas natildeo se mostrou muito familiarizado com
a retoacuterica o que natildeo isentou seu texto de revelar uma estrutura comum agraves teacutecnicas dessa
disciplina126 No entanto esses aspectos ainda natildeo satildeo suficientes para oferecer uma
explicaccedilatildeo clara sobre o gecircnero das Apologias
132 As raiacutezes do gecircnero apologeacutetico de Justino
Se a apologia de Soacutecrates diante do tribunal grego adaptada por Platatildeo127 e por
Xenofontes128 tornou-se um emblema da defesa da razatildeo no II seacuteculo dC foram as
120 Op cit p 23 121 HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703 Grabe atuou em parceria com Huntchim nessa ediccedilatildeo 122 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274 123
Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914 passim 124 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 10 125 HADDAD Robert M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 Werner Eck escreve que o imperador romano era cercado por pessoas que procuravam influenciaacute-lo ou conseguir favores (Id The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000) 126 The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 34 MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 24 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 21-28 127 Apologia de Soacutecrates 128 Apologia
28
acusaccedilotildees contras os cristatildeos que deram ldquorazatildeordquo agrave proliferaccedilatildeo de apologias em defesa da feacute
cristatilde que ainda natildeo apresentava uma sistematizaccedilatildeo coerente de suas ideias
Segundo a anaacutelise de Robert Grant a literatura apologeacutetica emerge de grupos
minoritaacuterios que estatildeo tentando desenvolver uma linguagem que seja compreensiacutevel agraves
culturas no Impeacuterio Romano para que por meio dela seja comunicada a mensagem cristatilde129
Satildeo vaacuterias as formas apresentadas para atestar a autenticidade das correntes religiosas
defendidas A apologia significaria algo mais do que uma simples defesa dos ataques sofridos
pela Igreja Seria uma forma baseada na defesa que Soacutecrates teria feito no seu julgamento
diante do povo de Atenas para mostrar a racionalidade de seu julgamento Os apologistas
cristatildeos teriam a ampla tarefa de estender possiacuteveis conexotildees entre as concepccedilotildees da filosofia
grega e aquela que para os cristatildeos era a ldquoverdade por excelecircnciardquo Mas esse processo
precisa ser analisado dentro do acircmbito missioloacutegico cristatildeo 130
A apreciaccedilatildeo helenizante estendida tambeacutem por Leslie W Barnard131 a todos os
apologistas eacute desajeitada O proacuteprio disciacutepulo de Justino Taciano opotildee-se agrave cultura grega
Poucos anos depois Tertuliano132 se mostraria o principal disseminador de um discurso que
estava longe de buscar os pontos comuns entre Jerusaleacutem e Atenas A comparaccedilatildeo com
Soacutecrates tambeacutem natildeo pode ser estendida a todos os apologistas
Justino poreacutem aleacutem de se referir positivamente a Soacutecrates como participante no logos
que autentica a racionalidade cristatilde proporciona uma analogia com a sua proacutepria condiccedilatildeo
enquanto prevecirc o seu martiacuterio em defesa da feacute cristatilde133
Em 1897 Th Wehofer em busca dos modelos literaacuterios de Justino observou que no
elogio dos mortos de Menexenus e na Apologia de Soacutecrates Platatildeo proporciona o modelo de
uma retoacuterica a serviccedilo da justiccedila e da verdade Sem duacutevida Justino conhecia os escritos de
Platatildeo Algumas correlaccedilotildees podem ser identificadas em trechos de suas Apologias I Apol
24 = ApS 30c 53 = 24b et 26c 82 = 30d 682 = 19a II102 = 24b Segundo Munier134
a exposiccedilatildeo temaacutetica progressiva encontrada nessa obra pode parecer uma desorganizaccedilatildeo
129 GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988 p 9 apud HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010 p 31 130 Isso significa que as interconexotildees apologeacuteticas entre cultura greco-romana e cristianismo precisam ser contempladas como mecanismo dos discursos cristatildeos para proporcionar siginificaccedilotildees eficientes entre os povos de outras culturas cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990 131 BARNARD L W Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 2008 p 2(3) 132 Apolog passim 133 I Apol 51-3 II Apol 81ss 134 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 33
29
uma composiccedilatildeo aparentemente relaxada uma sucessatildeo aparentemente arbitraacuteria de
passagens dogmaacuteticas e pareneacuteticas que retoma abundantemente o mesmo tema abordando-o
sob uma perspectiva diversa Nota-se que um esquema preside a composiccedilatildeo geral das
Apologias
A estrutura essencial da Apologia de Soacutecrates por si soacute natildeo eacute suficiente para dar conta
do plano geral da obra de Justino As correlaccedilotildees entre o escrito de Platatildeo e o de Justino vatildeo
aleacutem do niacutevel estrutural Elas tambeacutem se mostram nos modelos de argumentaccedilatildeo De fato
este eacute o coraccedilatildeo mesmo da defesa que se funda sobre o exemplo de Soacutecrates condenado como
ldquoateu e iacutempiordquo135 Para Justino136 o destino traacutegico do filoacutesofo ateniense ilustra perfeitamente
a sorte dos cristatildeos ameaccedilados de morte
A diatribe de Justino contra Crescente toma uma funccedilatildeo analoacutegica Ela estaacute associada
agrave evocaccedilatildeo de Soacutecrates Assim como Meacuteletos tinha acusado Soacutecrates Crescente acusa os
cristatildeos de serem ldquoateus e iacutempiosrdquo a fim de agradar a multidatildeo insensata137 E como Soacutecrates
tinha oposto a seus acusadores sua indiferenccedila ao ldquotalento da palavra e sua uacutenica preocupaccedilatildeo
era dizer a verdaderdquo138 o desafio de Justino a Crescente se inspira na sentenccedila de Platatildeo139
ldquoDe modo nenhum se deve honrar mais a homens do que agrave verdaderdquo
Contudo a Apologia de Soacutecrates natildeo eacute um modelo literaacuterio estrito no qual Justino se
inspirou Segundo a anaacutelise de Munier140 o Protreacuteptico de Aristoacuteteles oferece tambeacutem
alguma correlaccedilatildeo mas isso natildeo deve significar que haja alguma dependecircncia intriacutenseca entre
esses escritos Aristoacuteteles se dedica a demonstrar que a filosofia converte todo seu valor agrave
vida em sociedade e que uma vida sem filosofia natildeo vale a pena de ser vivida Na medida em
que apresenta o cristianismo como uma ldquofilosofia divinardquo141 Justino poderia tirar o melhor
partido dos protreacutepticos142 de Aristoacuteteles de Isoacutecrate e de seus seguidores dedicados agrave
filosofia Mas essa semelhanccedila eacute apenas ocasional e natildeo intencional O apologista natildeo
esconde seu desejo de que o imperador se torne um filoacutesofo de Cristo Ele acreditava que se
seu pedido fosse aceito a feacute cristatilde espalharia benefiacutecios por todo o Impeacuterio143 Eacute nesse sentido
135 I Apol 53 136 II Apol 12 81-2 137 Cf WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991 138 Platatildeo ApS 17bc 139 Repuacuteblica X595c 607c 140 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 40 141 II125 142 Protreacuteptico exortaccedilatildeo Restam apenas fragmentos dos escritos protreacutepticos de Aristoacuteteles cf CHROUST Anton-Hermann Aristotle Protrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964 143 I 12 1-2 17 1-4
30
que ele recorre agrave maacutexima de Platatildeo144 ldquoSe governantes e governados natildeo satildeo filoacutesofos natildeo
pode haver felicidade nas cidadesrdquo
P Keresztes145 estava certo ao dizer que a caracteriacutestica marcante da Apologia eacute a
extensiva defesa dos cristatildeos contra as acusaccedilotildees de ateiacutesmo traiccedilatildeo canibalismo e agraves accedilotildees
caluniosas de modo geral Justino sustenta essa defesa tentando mostrar a exclusiva verdade
da religiatildeo cristatilde O principal propoacutesito das Apologias seria garantir que os cristatildeos tivessem
liberdade para professarem a feacute embora isso significasse a condenaccedilatildeo dos demais deuses
Tambeacutem fazia parte do propoacutesito chamar os pagatildeos a abraccedilarem o cristianismo Seus
conselhos retoacutericos no contexto servem ao propoacutesito de sugerir ao imperador que mude o
corrente curso da justiccedila Isso significa clamar por um julgamento comum que natildeo permitisse
a condenaccedilatildeo pelo ldquonome cristatildeordquo
Esses escritos do pensador de Flaacutevia Neaacutepolis satildeo dotados de certa particularidade em
sua composiccedilatildeo Mas se nota que a princiacutepio o apologista procurou valer-se do seu direito de
dirigir uma ldquopeticcedilatildeordquo ou libellus ao imperador
Na I Apol 74 ele faz sua requisiccedilatildeo usando o verbo normalmente empregado para
uma peticcedilatildeo em grego avxioun Assumindo a postura de um pensador compromissado com a
justiccedila e a verdade ele pede para que ldquosejam examinadas as accedilotildees de todos os que [] satildeo
denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por
outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo
ter cometido nenhum crimerdquo146 (I Apol 74) Uma requisiccedilatildeo desse tipo deveria ser
encaminhada ao escritoacuterio administrativo para ser ou natildeo subscrita e receber uma resposta O
equivalente grego para libellus eacute biblidion para subscribere o equivalente eacute u`pografein e
para postar uma resposta usa-se proqeiai no lugar de proponere147 Esta terminologia pode
ser precisamente encontrada na II Apol 141
Kai u`maj ou=n avxioumen u`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaju`pograyantaj148148148148 to dokoun proqeinaiproqeinaiproqeinaiproqeinai touti to biblidionbiblidionbiblidionbiblidion( o[pwj kai toij alloij ta hmetera gnwsqh| kai dunwntai thj yeudodoxiaj kai avgnoiaj ton kalwn avpallaghvai( oi para thn
144 Repuacuteblica V 473de 145 The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965 p 109 146 JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995 pp 23-24 [Oqen pantwn twn kataggellomenwn umin taj praxeij krinesqai avxioumen( i[na o` evlegcqeij w`j adikoj kolazhtai( avlla mh wvj Cristianoj evan de tij avnelegktoj fanhtai( avpoluhtai w`j Cristianoj ouvden avdikon) MUNIER C Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 pp 142-144 147 MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 25 148 Grifos nossos
31
e`autwn aivtina u`peuqunoi taij timwriaij eivj to gnwsqhnai toij avnqrwpoij tauta(149
As proporccedilotildees desses textos ultrapassam os padrotildees de um libellus Para explicar essa
relativa incompatibilidade Minns e Parvis150 referindo-se apenas a I Apologia sustentam que
Justino usou de uma estrateacutegia por meio da qual ele adota esse tipo de documento
administrativo romano inserindo um material catequeacutetico e explanatoacuterio cristatildeo convertendo-
o em um dispositivo disseminador da mensagem de feacute Ou ainda traduzindo as palavras de
W R Schoedel151 trata-se de uma peticcedilatildeo apologeticamente fundamentada e sem precedentes
na tradiccedilatildeo literaacuteria greco-romana As diferenccedilas na estrutura da II Apologia natildeo permitem
dizer que se trata de um documento de outro autor pois as caracteriacutesticas do texto atestam sua
compatibilidade com a primeira peccedila O que faz multiplicar as interrogaccedilotildees sobre o segundo
texto eacute que mesmo apresentando traccedilos de uma segunda ldquopeticcedilatildeordquo ela eacute evidentemente menor
e dispensa um exordio bem formulado como o do primeiro escrito Mas essa propriedade da II
Apologia se tornaraacute mais clara a seguir na anaacutelise dos destinataacuterios
14 Destinataacuterios
Existem algumas variaccedilotildees entre a forma como a I Apologia eacute endereccedila no MS A e na
Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio A tabela a seguir foi construiacuteda seguindo as informaccedilotildees
apresentadas por Minns e Parvis152
MS A Euseacutebio HE IV12
a Antoninus Pius Augustus Caesar a Antoninus Pius Augustus Caesar
e a Verissimus seu filho e a Verissimus seu filho
Filoacutesofo Filoacutesofo
e a Lucius e a Lucius
Filoacutesofo do filoacutesofo
de Ceacutesar filho por natureza Ceacutesar filho por natureza
e de Pius por adoccedilatildeo e de Pius por adoccedilatildeo
149 MUNIER Op cit pp 364 366 TrldquoPortanto noacutes vos suplicamos que subscrevendo como vos pareccedila deis publicidade a este livro a fim de que tambeacutem os outros conheccedilam a nossa religiatildeo e se vejam livres da vatilde opiniatildeo e da ignoracircncia em relaccedilatildeo ao bem Por sua proacutepria culpa eles se tornam responsaacuteveis pelo castigordquo 150 Op cit p 25 151 SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72 152 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35
32
Eacute incluiacuteda ainda no manuscrito a expressatildeo ldquoao santo senado e a todo o povo dos
romanosrdquo entre os destinataacuterios da Apologia Minns e Parvis153 consideram esse uacuteltimo
trecho uma antiga adiccedilatildeo editorial Eles apontam que a expressatildeo ldquosanto senadordquo foi
comumente encontrada em moedas de bronze cunhadas na Aacutesia Menor154 Outras inscriccedilotildees
mostram essa expressatildeo vinculada agrave famiacutelia imperial e ao povo romano Vespasiano ldquoe toda
sua casa o santo senado e o povo dos romanosrdquo155 Trajano ldquoe toda sua casa o santo senado e
o povo dos romanosrdquo156 Marco Aureacutelio e Luacutecio Veroldquoe toda [sua] casa o mais santo senado e
o povo dos romanosrdquo157 Septimus Severus Caracalla Geta Julia Domna ldquoe toda a sua casa o
santo senado o povo dos romanos e os santos exeacutercitosrdquo158 Eacute possiacutevel indicar muitas outras
inscriccedilotildees mas o impasse identificado por Minns e Parvis estaacute relacionado ao fato de o
ldquosenadordquo e o ldquopovordquo aparecem no endereccedilamento de uma ldquopeticcedilatildeordquo como eacute caracterizada a
Apologia de Justino Entra na hipoacutetese a importaccedilatildeo da expressatildeo que ocorre na I Apol 563
ldquoPor isso noacutes vos suplicamos que o sacro senado e o povo romano conheccedilam este nosso
escrito []rdquo Ou ainda que a primeira ocorrecircncia do termo ldquosacro senadordquo seja a da fala de
Lucius a Urbicus na II Apol 216
Munier159 no entanto tem outra proposta Para ele eacute mais provaacutevel que tal expressatildeo
tenha assumido seu lugar em funccedilatildeo da necessaacuteria autorizaccedilatildeo do senado e do povo para o
estabelecimento de um novo culto puacuteblico Seu argumento eacute baseado no escrito de Ciacutecero
(Legibus II19-20) e parece mais seguro
Euseacutebio escreve que Justino tambeacutem endereccedilou uma Apologia ao imperador
ldquoAntonino Verordquo160 ou seja a Marco Aureacutelio A menccedilatildeo ao ldquoimperador Piordquo ao ldquofilho de
Ceacutesar amante do saberrdquo e ao ldquosacro senadordquo na II Apol 21ss pode significar para estudiosos
como M Marcovich161 que a II Apologia foi dirigida aos mesmos nomes que a primeira Essa
periacutecope do texto apresenta a narraccedilatildeo de um episoacutedio que se sucedeu nos dias de Antonino
153 Ibid 154 TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984 p 96 apud MINNS D PARVIS P Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 35 155 tan i`eran sunklhton kai ton damon ton R`wmaiwn Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386 Minns e Paris (op cit p35) citam o mesmo texto com algumas variaccedilotildees 156 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn (Cyrenis IGRR I-II 1037) Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355 157 i`erwtathj boulhj te kai dhmou tou Rwmaiwn (Serdicae IGRR I-II 1452) Ibid p 182 158 i`eraj sunklhtou kai dhmou `Rwmaiwn kai strateumatwn (Pizi IGRR I-II 766) Ibid p 251 159 Saint Justin apologie pour les chreacutetiens introduction et commentaire Paris du Cerf 2006 p 278 160 Hist Ecles IV183 161 Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 7
33
Pio mas eacute provaacutevel que a alusatildeo agrave piedade e agrave filosofia novamente seja proposital para
constranger seus destinataacuterios Euseacutebio se confunde com o nome de Antonino assim como o
faz quanto ao rescrito agrave comunidade da Aacutesia162
Considerando que Justino escreveu na I Apologia 462-3 que ldquoCristo nasceu cento e
cinquenta anos antes de nosso tempordquo A Harnack163 conclui que esse primeiro escrito foi
composto entre 147 e 154 dC Tambeacutem na I Apol 296 L Munatius Felix eacute mencionado
como prefeito do Egito Sabe-se que ele exerceu seu mandato de 150 a 154 dC164 A II Apol
11 faz referecircncia a Q Lollius Urbicus como prefeito de Roma cargo que ocupou de 146 a
160 dC165 Segundo a anaacutelise de Munier o Chronicon de Euseacutebio indica que o adversaacuterio de
Justino Crescente comeccedilou a denunciaacute-lo em Roma no segundo ano da 233ordf Olimpiacuteada que
corresponde ao ano de 153 ou 154 Desse modo seraacute acatada a uma data por volta do ano 153
ou 154 para a I Apologia e alguns anos depois para o segundo escrito ateacute no maacuteximo 161 dC
A I Apologia apresenta uma defesa geral dos cristatildeos O segundo escrito parte da
reprovaccedilatildeo das accedilotildees anticristatildes tendo em vista principalmente o que havia acontecido em
Roma sob Urbico e as investidas do ciacutenico Crescente Entranhado nessa ldquopeticcedilatildeo
apologeticamente fundamentadardquo166 estaacute o argumento de que os cristatildeos ao contraacuterio do que
era disseminado em algumas denuacutencias e caluacutenias natildeo seriam de nenhum modo uma ameaccedila
agrave ordem A seguir seratildeo examinadas as accedilotildees anticristatildes que compunham o contexto da
primeira metade do seacuteculo II dC
162 Hist Ecles IV131ss A confusatildeo com os nomes dos imperadores no rescrito da Aacutesia seraacute examinada mais adiante Pode-se admitir tambeacutem que essa confusatildeo tenha sido acarretada pela organizaccedilatildeo do texto em um periacuteodo posterior a Euseacutebio 163 Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 227 164 Prosopografia Imperii Romani V 2 Berlim Walter de Gruyter 1983 (M 723) 165 PIR v1 1970 L 327 166 Usando novamente a expressatildeo de SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review Jan1982 n 82 p 72
34
CAPIacuteTULO II AS ACcedilOtildeES ANTICRISTAtildeS
Justino se opotildee agraves investidas contra os cristatildeos167 por natildeo considerar vaacutelidas as
justificativas apresentadas para as condenaccedilotildees dos fieacuteis A confissatildeo de ldquocristianismordquo diante
de uma autoridade acaba sendo ironizada como uma condenaccedilatildeo do nome ldquocristatildeordquo Na II
Apologia (11) ele afirma que accedilotildees desse tipo estatildeo ocorrendo por todo o Impeacuterio O que natildeo
deve significar que existia uma busca exaustiva dos romanos pelos membros do novo
movimento No entanto eacute provaacutevel que esses atritos pudessem ser localizados em vaacuterias
regiotildees Um caso especiacutefico da execuccedilatildeo em Roma sob Urbico motivou-o a se manifestar
novamente168 As intimaccedilotildees por razotildees religiosas aos tribunais jaacute haviam movido outros
apologistas na primeira metade do II seacuteculo Euseacutebio169 faz saber que antes de Justino
Quadrato e Aristides jaacute clamavam em favor dos cristatildeos ao Imperador Adriano
Natildeo haacute nenhum indiacutecio de que o cerne da crenccedila cristatilde apresentasse alguma forma de
conspiraccedilatildeo contra os romanos Mas eacute preciso estabelecer uma visatildeo geral das accedilotildees
anticristatildes que se desenvolveram antes de Justino e em seu tempo para que se possa assimilar
o sentido de sua reflexatildeo
O II seacuteculo se inicia com um quadro indefinido a respeito dos cristatildeos A atividade
cristatilde de anunciaccedilatildeo da sua mensagem de feacute e conversatildeo dos pagatildeos alcanccedilava diversas
regiotildees do Impeacuterio Conversotildees e alguns atritos sempre ocorriam
A conversatildeo ao cristianismo implicava em uma mudanccedila que aleacutem de religiosa
poderia ser existencial social e ateacute poliacutetica Eacute provaacutevel que essa postura de resistecircncia agrave
associaccedilatildeo com a ldquoidolatriardquo identificada na vida ciacutevica fosse interpretada como ldquoineacuterciardquo ou
falta de vigor para se envolverem nos assuntos puacuteblicos jaacute despertasse preocupaccedilotildees na virada
do I seacuteculo Principalmente quando membros das classes dirigentes comeccedilam a aderir agrave feacute do
oriente A linha entre a toleracircncia e a intoleracircncia eacute indefinida Eacute preciso analisar os contornos
desde Trajano (governou de 98-117 dC) ateacute os primeiros anos de Marco Aureacutelio (governou
de 161-180 dC)
167 ldquopedimos sejam examinadas as acusaccedilotildees contra os cristatildeos Se for demonstrado que satildeo reais castiguem-nos como eacute conveniente que sejam castigados os reacuteus convictosrdquo I Apol 31 168 ldquo[] o que aconteceu ultimamente em vossa cidade sob Urbico e o que os governadores estatildeo fazendo sem razatildeo em todo o impeacuteriordquo II Apol 11 169 Hist Ecles IV1-3
35
21 Os cristatildeos sob o governo de Trajano
Natildeo haacute indiacutecios de uma perseguiccedilatildeo generalizada aos cristatildeos no Impeacuterio Romano no
iniacutecio do seacuteculo II mas a expansatildeo cristatilde em curso proporcionava um nuacutemero significativo de
processos nos tribunais locais Se por um lado alguns estavam certos de que os membros
dessa superstitio illicita deveriam ser condenados por outro lado existiam algumas lacunas
sobre esse tipo de julgamento
A expansatildeo proporcionava atritos corriqueiros de resistecircncia agraves novas crenccedilas O
nuacutemero de cristatildeos era crescente170 Ateacute o governo de Nero171 os adeptos agrave nova religiatildeo que
se desenvolvia no seio do judaiacutesmo natildeo enfrentaram problemas significativos em relaccedilatildeo aos
romanos Taacutecito faz saber que esses que a seu ver jaacute eram impopulares pelas suas flagitia
foram incriminados por Nero pelo incecircndio de Roma em 64 dC172 Se Nero lanccedilou a culpa
do incecircndio de Roma sobre os cristatildeos fica aberta a questatildeo sobre a dimensatildeo dessa
perseguiccedilatildeo A accedilatildeo de Nero foi suficiente para que a tradiccedilatildeo cristatilde o transformasse no
ldquoprimeiro imperador perseguidorrdquo logo seguido por Domiciano173174 do qual natildeo se conhece
uma perseguiccedilatildeo direta contra os cristatildeos mas uma repressatildeo a asebeia e ao proselitismo
judaico175 que deve ter ocasionado transtornos inclusive agrave Igreja Isso foi suficiente para se
sustentar que a referecircncia de Tertuliano176 ao institutum neronianum fazia de Nero o primeiro
a lanccedilar as bases juriacutedicas para a perseguiccedilatildeo dos cristatildeos177 Todavia a utilizaccedilatildeo dessa
referecircncia de Tertuliano para a identificaccedilatildeo das bases juriacutedicas da perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute
problemaacutetica Marta Sordi178 recorrendo ao mesmo Tertuliano sustenta a ideia de que houve
170 GOODMANN M Mission and conversion poselytizing in the Religious History of the Roman Empire New York Clarendon PressOxford 1994 p 91-108 Cf HARNACK A von The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962 171 Governou de 54 a 68 dC 172 Anais XV44 Flagitia poderia referir-se a algo vergonhoso ou inapropriado algo descabido cf LIDDEL H G SCOTT R (Ed) Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 173 Governou de 81 a 96 dC 174 Euseacutebio His Ecles III26 175 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3 176 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4 177 KERESZTES Paul Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 Segundo C G Roman as bases dessa teoria se encontram na obra de CALLEWAERD C La methode dans la recherrch de la base juridique des premiers persecutions Reviste dhistoire Ecclesiastique 12 1911 pp 5-16 e segue acompanhada por Cf DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106 MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 1953 pp 3-32 178 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968
36
um senatus consultum na eacutepoca de Tibeacuterio179 que teria desaprovado o reconhecimento de
Cristo como deus do panteatildeo a contragosto do Imperador
A incerteza sobre como proceder em julgamento de cristatildeos fez com que Pliacutenio o
Jovem escrevesse ao imperador Trajano no iniacutecio do II seacuteculo A resposta do imperador
confirma a accedilatildeo de Pliacutenio em condenar os cristatildeos confessos proiacutebe agrave perseguiccedilatildeo a esses
religiosos rejeita as denuacutencias anocircnimas e faz aumenta as interrogaccedilotildees sobre as bases
juriacutedicas processos desse tipo Uma hipoacutetese comum tal como sustentam Marcel Simon e
Andreacute Benoicirct180 eacute a de que neste periacuteodo natildeo existia nenhuma lei sobre os cristatildeos e que os
magistrados agiam mediante a ius coertionis181 Essa teoria que havia sido sustentada
originalmente por Mommsen arrebanhou alguns seguidores mas como aponta Giorgio
Jossa182 em alguns casos como na questatildeo dirigida por Pliacutenio a Trajano o uso da coercitio eacute
limitado pelas interrogaccedilotildees sobre como enquadrar judicialmente os processos Para ser mais
especiacutefico Pliacutenio deseja saber se os cristatildeos deveriam ser condenados simplesmente por
confessarem esse nomem ou por algum crime que esteja subentendido Com base nos
trabalhos de E Le Blant183 no seacuteculo XIX outra teoria sobre esse tipo de julgamento propotildee
que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais existentes dentro do
direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea maiestatis Segundo C
G Roman184 essa teoria teve muitos seguidores nos seacuteculos XIX e XX sendo favoraacutevel
agravequeles que como L Homo e Ch Saumagne185 consideram que o institutum neronianum186
natildeo pode ser compreendido como edito ou lei especial emanada do princeps
As maiores discrepacircncias quanto agraves razotildees juriacutedicas e populares para condenaccedilatildeo dos
cristatildeos eacute a proacutepria relaccedilatildeo desse grupo religioso com o Impeacuterio neste iniacutecio do II seacuteculo
aparecem em funccedilatildeo das supostas posturas diferentes assumidas por Trajano e Adriano diante
dessa superstitio As explicaccedilotildees atuais trilham caminhos que vatildeo desde diferentes niacuteveis de
toleracircncia atribuiacutedos a esses dois imperadores como sustenta Pedro Barcelograve187 ateacute a hipoacutetese
179 Governou de 14 a 37 dC 180 Giudaismo e cristianismo una storia antica RomaBari Gius Laterza Figli Spa 2005 p 97 181 MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-96 182 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 107-144 183 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 184 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 185 HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229 186 Tertuliano Ad nationes 17 187 Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim
37
de que Adriano tenha reconhecido o cristianismo como uma religio licita conforme sustentou
primeiramente Mommsen188
Trajano assumiu o poder no ano de 98 dC A estrateacutegia de Nerva189 em adotaacute-lo para
ser seu sucessor aproximou o senado do futuro priacutencipe190 originaacuterio da Itaacutelica cidade da
proviacutencia senatorial da Baetica no sul da Hispania Eacute provaacutevel que tenha recebido formaccedilatildeo
poliacutetica e puacuteblica razoaacutevel mas sua imagem de homem militar e popular entre as legiotildees eacute a
que prevaleceu para a posteridade Segundo Julien Bennett191 Trajano era de uma famiacutelia
provincial de status elevado Mas essa ascensatildeo natildeo era para qualquer um Pliacutenio192 destaca-o
como priacutencipe escolhido pelas divindades ndash o epiacuteteto optimum era especiacutefico de Juacutepiter ndash
respeitador de todas as tradiccedilotildees ancestrais e das instituiccedilotildees poliacuteticas entre elas o senado
Uma idealizaccedilatildeo que certamente contrapunha-se agrave realidade efetiva pois Trajano apoiado
pelas legiotildees e representado como escolhido de Juacutepiter era detentor de um poder autocraacutetico
tatildeo grande quanto ou maior que o dos mais proacuteximos conselheiros os amigos do priacutencipe
Pode-se considerar que as accedilotildees poliacuteticas de Trajano tinham um caraacuteter apaziguador nos
territoacuterios romanos Ampliou-se a poliacutetica urbana e a extensatildeo das vias romanas nas
proviacutencias favorecendo significativamente a atividade comercial193
Nesse periacuteodo a filosofia estoica encontrou grande honra Por outro lado tambeacutem
houve uma significativa propagaccedilatildeo dos cultos orientais e da magia Prodiacutegios e milagres
eram ansiosamente buscados desencadeando certo fervor religioso entre o povo A piedade
religiosa ancorada agrave velha tradiccedilatildeo grega e romana nutrida por fermento novo proveniente
dos misteacuterios egiacutepcios e dos oraacuteculos caldeus permeava ainda os escritos dos intelectuais O
culto ao imperador natildeo recebeu tanta ecircnfase mas a sacralidade do Impeacuterio eacute talvez um fato
adquirido por todos e a aceitaccedilatildeo praacutetica da forma de culto se juntou com a formaccedilatildeo estoica
da classe dominante194
No ano de 96 Nerva estipulou a requisiccedilatildeo dos relegados e o veto contra as acusaccedilotildees
de ldquoateiacutesmordquo ou mais precisamente de avsebeia e de ldquocostumes judaicosrdquo195 Se os cristatildeos
haviam sido incomodados por decretos que indiretamente insidiam sobre eles alguma
188 Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 1890 pp 392-399 189 Governou de 96 a 98 dC 190 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 38 191 Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005 pIX 192 Epistolas 1012 Panegiricus 27 884 passim 193 FRIGHETTO Renan Op cit 2012 p 38 194 Ibid p 38 195 Cassius Dio Hist Rom 68 11-3
38
opressatildeo as mudanccedilas de Nerva teriam representado um aliacutevio196 Mas sob Trajano percebe-
se que os casos esporaacutedicos de condenaccedilotildees aos fieacuteis ainda satildeo identificados Natildeo se ouviraacute
mais falar sobre acusaccedilatildeo de costume judaico no II seacuteculo mas os cristatildeos continuaratildeo a
enfrentar repressotildees em alguns pontos do territoacuterio romano o que levanta uma obscura
questatildeo sobre por qual crime seriam culpados os cristatildeos e quais seriam os fundamentos
juriacutedicos de suas condenaccedilotildees
Como destacou Giorgio Jossa197 a apologeacutetica cristatilde desse periacuteodo distingue dois
tipos de criacuteticos Uma opiniatildeo puacuteblica grosseira e mal informada como as acusaccedilotildees de
cometerem delitos particularmente vergonhosos como incesto e antropofagia movida contra
os cristatildeos por meio de falatoacuterio e caluacutenias e a acusaccedilatildeo de serem a causa de todos os males
no Impeacuterio devido agrave ameaccedila que representavam agrave pax deorum Eacute difiacutecil dizer qual era
realmente a extensatildeo da hostilidade dos pagatildeos das diversas regiotildees mas essa hostilidade
existia e constituiacutea um terreno feacutertil para o desenvolvimento tanto das acusaccedilotildees poliacuteticas da
opiniatildeo culta quanto juriacutedicas por parte dos funcionaacuterios imperiais
O cristianismo natildeo se dirigiu apenas agraves classes humildes Rapidamente sua mensagem
chegou tambeacutem agraves classes elevadas A oposiccedilatildeo da classe culta era principalmente de caraacuteter
filosoacutefico e nesse periacuteodo foram sustentadas especialmente por Epiacuteteto Luciano e Galeno a
partir dos valores mais tradicionais da cultura helecircnica Por outro lado sustentando acusaccedilotildees
de caraacuteter social aparecem as consideraccedilotildees de Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio tendo em vista as
preocupaccedilotildees poliacuteticas do governo romano Taacutecito198 escreveu que os cristatildeos eram mal vistos
pela suas flagitia199 e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero humano] A
crenccedila desse grupo era considerada uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]
Suetocircnio200 os considerava homens de uma superstitionis novae ac maleficae [superstitio201
nova e maleacutefica] Frontatildeo202 em atenccedilatildeo agraves antigas caluacutenias de flagitia teria acusado os
196 Eusebio Hist Ecles III231 197 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 108 198 Anais XV44 199 O termo latino pode significar ldquocrime infacircmia ato vergonhoso etcrdquo LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) 200 genus hominum superstitionis novae ac maleficae [raccedila de homens de uma superstitio nova e maleacutefica] De Vita Caesarum Vita Neronis 162 201 A palavra latina superstitio significa basicamente ldquotemor distinto aos deusesrdquo ldquopavor pelo sobrenatualrdquo com possiacuteveis variaccedilotildees em contextos diferentes Sua traduccedilatildeo para ldquosupersticcedilatildeordquo pode ocasionar uma confusatildeo indesejada de conceitos LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project) cf JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 jun1979 pp 131-159 MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007 SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002 202 apud Minucio Felix Octavius 96-7
39
cristatildeos de orgias incestuosas Pliacutenio203 vecirc nas novas crenccedilas uma superstitionem pravam et
immodicam A imagem dos cristatildeos diante desses homens educados era negativa Mas as
opiniotildees satildeo muito divergentes sobre as bases juriacutedicas da condenaccedilatildeo dos membros desse
novo grupo religioso
O governador do Ponto-Bitiacutenia diz nunca ter participado de julgamentos de cristatildeos e
por isso natildeo sabia quais eram as medidas e os procedimentos para castigar e inquirir204 Ele
levanta as seguintes questotildees a Trajano se as diferentes idades e condiccedilotildees fiacutesicas dos
acusados deveriam ser levadas em consideraccedilatildeo se os que se retratavam mereciam ser
perdoados e se deveriam ser punidos por serem cristatildeos sem qualquer crime ou
exclusivamente pelos delitos encobertos por este nome205 O rescrito de Trajano a Pliacutenio
tendo em vista a inscriccedilatildeo de Como (CIL V 5262206) pode ter sido escrito em 111 e 112 ou
112 e 113 anos que compreenderiam o governo de Pliacutenio no Ponto-Bitiacutenia
Sua interrogaccedilatildeo sobre se o ldquonomerdquo deveria ser punido mesmo sem significar uma
ofensa ou a ofensa subentendida pelo nome207 incide sobre que tipo de lei existia naquela
eacutepoca Segundo E Le Blant208 as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis
penais existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de
laesea maiestatis Todavia conforme propocircs C G Roman209 em seu estudo eacute provaacutevel que
os cristatildeos estivessem sendo denunciados naquela regiatildeo devido ao fato de se reunirem
semanalmente Isso contrariava as estipulaccedilotildees do edito promulgado pelo governador segundo
as instruccedilotildees de Trajano que proibia as assembleias ou hetaerias210 entre o povo para evitar
conspiraccedilotildees211 Assim pelo menos neste ponto eacute preciso concordar com Pedro Barcelograve no
203 [superstitio distorcida e desregrada] Ep X968 204 Cognitionibus de Christianis interfui nunquam ideo nescio quid et quatenus aut puniri soleat aut quaeri [ Nunca tomei parte em processos contra cristatildeos por esta razatildeo eu natildeo sei o que costumeiramente se deve punir e quais satildeo as extensotildees ou investigaccedilotildees] (Ep X97) 205 Ep X96 206 Corpus Inscripitionum Latinarum V Berolini Reimer 1959 207 nomen ipsu etiamsi flagitiis careat an flagita cohaerentia nomini puniantur [O proacuteprio nome mesmo sem nenhuma ofensa ou os crimes associados a esse nome devem ser punidos] (Ep X97) 208 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 229 209 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 passim 210 Assembleias civis comuns entre os gregos 211 Ep X97
40
reconhecimento de que se estaacute diante de um problema local212 Os cristatildeos estavam agrave mercecirc
de denuacutencias de desobediecircncia ao edito do governador mas tambeacutem por alguma
irregularidade identificada no tocante agrave nova religiatildeo
Pliacutenio consultou Trajano pelo menos duas vezes sobre como lidar com as heterias213
Ele havia questionado sobre a possibilidade de criar um coleacutegio de fabri composto por 150
homens na Nicomeacutedia214 Mas o imperador respondeu ldquoNatildeo esqueccedilamos que tua proviacutencia e
sobretudo esta vila eacute vitima de sociedades deste gecircnero Qualquer que seja seu nome
qualquer que seja a finalidade de que dermos a estes homens reunidos daraacute lugar rapidamente
a heteriasrdquo215 Natildeo seria razoaacutevel abrir uma exceccedilatildeo aos cristatildeos Mediante inuacutemeras
denuacutencias Pliacutenio resolveu investigar sobre o tipo de assembleia que constituiacuteam as reuniotildees
cuacutelticas cristatildes Os processos de acusaccedilatildeo cresceram e proporcionaram vaacuterios incidentes216
Denuacutencias anocircnimas por meio de libelus contendo o nome de pessoas que negavam ser cristatildes
estavam entre os inconvenientes Os cristatildeos alegavam que sua uacutenica culpa ou erro era se
reunirem antes de nascer o sol em um dia especiacutefico da semana para cantar hinos a Cristo E
tambeacutem de se ajuntarem para uma refeiccedilatildeo comum vista pelo governador como innoxium
[inocente] Praacutetica que havia sido abandonada devido ao edito de Pliacutenio O governador
procurou extrair informaccedilotildees sobre os cristatildeos mas ele escreve que natildeo encontrou nada aleacutem
de uma superstitionem pravam et immodicam Visto que o nuacutemero de acusados estava
provocando ldquoincidentesrdquo Pliacutenio decidiu consultar o imperador sobre o assunto Ele nota que
pessoas de todas as idades de todos os graus de ambos os sexos e de muitas cidades satildeo
citadas em juiacutezo A superstitio dos cristatildeos jaacute se estendia pelos campos e vilas mas ele eacute
otimista e acredita ser possiacutevel sanar esse problema217 Pliacutenio218 escreve que
muitos recomeccedilam a frequentar os templos que haviam ficado quase desertos tornando a se celebrarem os sacrifiacutecios solenes abandonados e a se venderem as viacutetimas das quais ateacute agora eram raros os compradores De modo que eacute faacutecil argumentar que muitas pessoas podem se emendar se existir lugar para arrependimento
Desse modo haacute uma evidente intenccedilatildeo de realocar os cristatildeos ao povo em geral que
participa da religiatildeo oficial Deve ser esta a razatildeo pela qual o governador concede o perdatildeo
212 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 p 69 213 Assembleias comuns aos gregos 214 Ep X33 215 Ep X341 216 mox ipso tractatu ut fieri solet diffundente se crimine plures species incierunt [Assim como seu suceder crescem os processos de acusaccedilatildeo ocasionando vaacuterios incidentes] (Ep X97) 217 quae videtur sisti et corrigi posse (Ep X97) 218 Ep X97
41
agravequeles que abandonam o cristianismo Mas baseado em relatos anteriores219 e em textos
posteriores sobre esse tipo de julgamento220 pode-se supor que os cristatildeos intimados
argumentavam e questionavam sobre a razatildeo da culpa que os condenava
Roman221 em certa medida seguindo o raciociacutenio de Marta Sordi222 sustenta que a
disposiccedilatildeo de Trajano estaacute voltada para a soluccedilatildeo de problemas sociais na regiatildeo do Ponto-
Bitiacutenia tendo em vista a sua recomendaccedilatildeo geral contra as heterias Proibindo as reuniotildees
puacuteblicas de qualquer caraacuteter os cristatildeos estariam indiretamente incluiacutedos Mas Roman
atribuindo um acentuado grau de toleracircncia a Trajano considera que o imperador estaacute
liberando os cristatildeos dessa condenaccedilatildeo recomendando que os mesmos natildeo sejam buscados
No entanto natildeo haacute qualquer razatildeo para supervalorizar a ldquotoleracircnciardquo desse imperador aos
cristatildeos
Se fossem acusados de violaccedilatildeo do edito das heterias defender-se-iam dizendo que
natildeo se reuniam mais Caso os problemas envolvendo cristatildeos no Ponto-Bitiacutenia se ressumissem
a essa questatildeo o magistrado deveria soltaacute-los imediatamente Mas natildeo eacute isso que eacute descrito
por Pliacutenio Ele relata que insistia para que os acusados negassem ser ldquocristatildeosrdquo ameaccedilando-os
de morte Certamente um cristatildeo questionaria esse tipo de julgamento perguntando sobre qual
crime teria sido por eles cometido O governador sabia que esses religiosos eram acusados em
outros lugares e ao caracterizar as crenccedilas cristatildes como pravam et immodicam uma percepccedilatildeo
muito negativa se manifesta No entanto natildeo haacute referecircncia a nenhuma lei contra os cristatildeos
Pliacutenio decidiu punir os que confessavam essa superstitio procurando convencecirc-los a
mudarem de opiniatildeo quanto agrave feacute a que se apegavam ameaccedilando-os por ateacute trecircs vezes Seu
julgamento foi que independente da natureza dos credos dos cristatildeos a inflexibilidade e
obstinaccedilatildeo que os faziam natildeo negar o nomen christianum tornavam-lhes dignos de puniccedilatildeo223
Giorgio Jossa224 destacou ainda que nenhum dos crimes a eles imputados eram demonstados
ou pareciam dignos de serem cridos contudo os cristatildeos satildeo vistos como seguidores de
crenccedilas despresiacuteveis Embora natildeo exista nenhuma referecircncia a uma lei contra os fieacuteis natildeo haacute
nenhuma razatildeo para se pensar que Pliacutenio estivesse receoso de punir os cristatildeos exceto pelo
fato de que o nuacutemero de denuacutencias anocircnimas poderia provocar desordem Conforme apontou
219 Atos dos Apoacutestolospassim 220 Euseacutebio Hist Ecles passim Atas dos maacutertires passim 221 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-242 222 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 pp 87-102 223 hellip qualecumque esset quod faterentur pervicaciam certe et inflexibilem obstinationem debere puniri (Ep X97) 224 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 116
42
J Danieacutelou225 natildeo era uma lei especiacutefica que ocasionava a condenaccedilatildeo dos fieacuteis mas a
ausecircncia de uma lei que regulamentasse a nova religiatildeo como a que autorizava a religiatildeo
judaica
A resposta de Trajano natildeo demonstrou muita preocupaccedilatildeo com os cristatildeos O
imperador aprovou as medidas empregadas contra eles e para evitar o problema do excesso
de denuacutencias sem fundamento recomendou que natildeo fossem admitidas delaccedilotildees anocircnimas O
imperador tambeacutem estabeleceu que os fieacuteis natildeo deveriam ser perseguidos Ele escreveu
Agiste muito bem meu caro Pliacutenio ao instituir os processos contra esses que te foram denunciados como cristatildeos Natildeo se deve estabelecer regra dura e inflexiacutevel de aplicaccedilatildeo universal Natildeo os procure mas se surgirem outras denuacutencias que procedam puna-os Poreacutem com esta ressalva de que se algueacutem nega ser cristatildeo e mediante a adoraccedilatildeo dos deuses demonstra natildeo o ser atualmente deve ser perdoado em recompensa de sua emenda por muito que o acusem suspeitas relativas ao passado Natildeo merecem atenccedilatildeo panfletos anocircnimos em causa alguma aleacutem do dever de evitarem-se antecedentes iniacutequos panfletos anocircnimos natildeo condizem absolutamente com os nossos tempos226
O caraacuteter lacocircnico da resposta de Trajano poderia se justificar pelo menos de trecircs
formas Em primeiro lugar a autenticidade do rescrito de Trajano e a carta de Pliacutenio a esse
imperador foram questionadas por alguns estudiosos desde o seacuteculo XVIII Segundo
Cristobal G Roman a anaacutelise de J S Semler227 em 1788 contribuiu para desencadear uma
corrente de pensamento que foi bem representada ateacute longos anos do seacuteculo XX228 As
principais objeccedilotildees natildeo estariam diretamente relacionadas agrave inadequaccedilatildeo da descriccedilatildeo de
Pliacutenio sobre as comunidades cristatildes e a situaccedilatildeo real na qual se encontrariam As
discordacircncias incidiriam sobre o tipo de canto praticado nas reuniotildees cristatildes e sobre o nuacutemero
de cristatildeos existentes no Ponto-Bitiacutenia segundo o relato de Pliacutenio229 Os aspectos estruturais
satildeo analisados na criacutetica de L Hermann230 que aponta as repeticcedilotildees e as reiteradas alusotildees agrave
proacutepria ignoracircncia de Pliacutenio como elementos que induzem a pensar em interpolaccedilotildees ou 225 Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975 pp 13-15 226 Pliacutenio Ep X981ss 227 Novae observationes quibus studiosius illustrantur potiora capita historiae et religionis christianae usque ad Constantinum Halle Impensis Bibliopolii Hemmerdiani 1781 228 Marcel Durry (Pline-le-juene Paris Soc DrsquoEacuted Le belle Lettre 1972 p 7071) oferece uma lista dos pesquisadores que aponta a inautenticidade da correspondecircncia entre Pliacutenio e Trajano Entre as obras aparecem AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875 p 186 HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844 pp 426 HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885 LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934 pp 28-34 e GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946 p 585 229 VIDMAN L Etude sur la correspondance de Pline Le Jeune avec Trajan Roma LErma di Bretschneider 1972 pp 87 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 227 230 HERMANN L Les interpretations de la lettre de Pline sur les chretiens Latomus XIII 1954 p 343 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228
43
falsificaccedilotildees Dentro dessa mesma loacutegica estaria a resposta lacocircnica de Trajano agraves trecircs
questotildees que aparecem na carta de Pliacutenio a) se deveriam ser feitas distinccedilotildees tendo em vistas
as idades dos cristatildeos b) se deveria lhes permitir o arrependimento c) e se o roacutetulo de cristatildeo
deveria ser motivo de castigo por si mesmo ou apenas os delitos que aquele nome
implicava231 A resposta de Trajano contempla diretamente apenas a segunda questatildeo natildeo
dando provas de que a primeira e a terceira estivessem na carta por ele recebida Desse modo
Hermann deduz que as questotildees natildeo contempladas seriam interpolaccedilotildees
Entretanto a despreocupaccedilatildeo de Trajano em estabelecer uma norma riacutegida contra os
cristatildeos pode justificar o caraacuteter superficial de sua resposta Ele escreve que neque enim in
universum aliquid quod quase certam formam habeat constitui potest232 [natildeo se pode
constituir uma norma universal ou que seja invariaacutevel] Com isso nota-se tambeacutem a
liberdade do magistrado em avaliar os suspeitos e procurar enquadraacute-los sob uma lei
A tese mommseniana da coercitio eacute rebatida parcialmente por Jossa233 tendo em vista
que na maioria dos casos de condenaccedilatildeo dos cristatildeos nesse periacuteodo a atitude das autoridades
natildeo se reduz a uma simples atitude de poliacutecia para manter a ordem puacuteblica em uma proviacutencia
atingida pela desordem mas em um procedimento judiciaacuterio que tinha iniacutecio com uma
denuacutencia privada comporta uma acusaccedilatildeo precisa e se conclue com a condenaccedilatildeo formal Um
procedimento judiciaacuterio que corresponde perfeitamente a cognitio extra ordinem234 um
processo criminal de natureza inquisitorial afirmado durante o principado para crimes e que
tinha formas diversas daqueles previstos na ordo iudiciorum que nas proviacutencias eram tidos
pelos governadores delegados pelo princeps No entanto diante da ausecircncia de uma
legislaccedilatildeo clara sobre o que fazer com os cristatildeos Pliacutenio recorre a ius coertionis para
desestimular os adeptos dessa pravam et immodicam que desrespeitam o magistrado para
sustentarem seu credo Eacute preciso considerar com certo cuidado a teoria derivada da obra de E
Le Blant235 de que as condenaccedilotildees dos cristatildeos deveriam ser buscadas nas leis penais
existentes dentro do direito romano contra crimes tais como o de sacrilegium ou de laesea
maiestatis Pliacutenio primeiramente julgou os cristatildeos por meio da lei local que proibia as
assembleias entre o povo poreacutem diante da correccedilatildeo por parte dos cristatildeos apontada pelo
231 Pliacutenio Epistolas X962-3 232 Ep X98 233 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 122-123 234 Tido de processo que substitui o processo padratildeo Eacute provaacutevel que soacute tenha se oficializado com forma instituiacuteda de processo no seacuteculo IV O julgamento dos cristatildeos no seacuteculo II seria um processo semelhante 235 Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373 Isso inclui os trabalhos de HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931 p 35 SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961 p 337 Apud ROMAN C G Op cit p 229
44
proacuteprio governador em sua carta ele natildeo sabia exatamente como punir os que se negavam a
desprezar agravequela superstitio Para Jossa236 estaacute evidente que a condenaccedilatildeo se efetiva diante da
profissatildeo da feacute cristatilde natildeo aos delitos a esse nome associados
O cristianismo natildeo eacute condenado como superstitio externa Uma religiatildeo estrangeira
poderia ser socialmente suspeita mas isso natildeo faz com que seja judicialmente perseguida E
natildeo eacute o seu caraacuteter baacuterbaro que lhe rende ilicidade Superstio externa e barbara o judaiacutesmo
era de fato religio licita Os romanos consideravam superstitio toda forma religiosa e toda
praacutetica cultural que natildeo correspondia agravequela transmitida pelos seus antepassados e que natildeo
eram munidas de puacuteblico reconhecimento Todas as praacuteticas religiosas de caraacuteter privado
individuais ou enraizadas em certos grupos sociais como magos ou adivinhos eram dessa
forma rotuladas Religiotildees e cultos puacuteblicos estrangeiros ainda que constituiacutessem patrimocircnio
de um povo e fossem transmitidos desde os tempos mais antigos poderiam ser tachados de
superstitio237 Segundo Jossa238 exprime-se desse modo a diferenccedila instintiva dos ciacuterculos
romanos abastados de uma consciecircncia nacional diante das religiotildees estrangeiras para os
quais os cultos natildeo romanos eram ldquonatildeo religiotildeesrdquo ou seja apenas superstitiones Externa
superstitio vem a ser toda forma ou manifestaccedilatildeo religiosa que natildeo pertenccedila originalmente agrave
tradiccedilatildeo romana ou pelo menos ao puacuteblico reconhecimento e agrave apreciaccedilatildeo dos ritos e crenccedilas
religiosas da parte dos romanos
A partir de Cicero superstitio passa a indicar tambeacutem qualquer forma excesiva
fanaacutetica de religiosidade que se contrapunha agrave moderaccedilatildeo da religio aquela manifestaccedilatildeo
religiosa tiacutepica de uma alma deacutebil (imbecillis) ou velha (anilis) que derivam em particular de
uma anguacutestia inuacutetil e absurda dos deuses239 A superstitio natildeo eacute apenas diversa mas se opotildee
sendo uma corrupccedilatildeo da religio (De natura Deorum II72)
Diante da convicccedilatildeo dos romanos de serem muito religiosos entre todos os homens de
serem inclusive religiosamente superiores aos demais fica impliacutecito que toda e qualquer
religiatildeo estrangeira eacute excessiva ou fanaacutetica que todas as religiotildees estrangeiras satildeo tambeacutem
superstitio e assim toda externa superstitio eacute tambeacutem barbara superstitio no sentido
embrionaacuterio do termo pela falta de racionalidade e moderaccedilatildeo que sempre deixam a
desejar240
236 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 123 237 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 131-159 238 Op Cit p 115 239 Ciacutecero De natura Deorum I117 Cf SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944 240 JANSEN L F Op cit pp 145
45
Como jaacute foi apontado anteriormente aleacutem do proacuteprio Pliacutenio Taacutecito e Suetocircnio
tambeacutem adjetivaram negativamente a superstitio cristatilde Taacutecito escreveu que os cristatildeos eram
mal vistos pelas suas flagitia e apresentavam certo odio humani generis [oacutedio ao gecircnero
humano] Flagitia por sinal que Pliacutenio natildeo detectou A crenccedila desse grupo eacute considerada
uma exitiabilis superstitio [destrutiacutevel supersticcedilatildeo]241 Analisando as consideraccedilotildees de Taacutecito
nota-se que a provaacutevel ofensa que os cristatildeos causavam aos deuses combatendo-os com a
propagaccedilatildeo da sua mensagem evangeacutelica e com abstenccedilatildeo de participaccedilatildeo nas celebraccedilotildees
puacuteblicas responsabilizava-lhes pelo rompimento da pax deorum que havia fragilizado a
capital do Impeacuterio tornando-a vulneraacutevel a tamanha cataacutestrofe da eacutepoca de Nero Segundo L
F Jansen242 o odio humani generis visto por Taacutecito sobre os cristatildeos ndash como antes sobre os
judeus ndash era um elemento que condenava essa superstitionis novae ac maleficae como
escreveu Suetocircnio243 tornando-a exitiabilis No entanto apologistas como Justino244
sustentaram que as flagitia atribuiacutedas aos cristatildeos eram fruto de ldquocaluacuteniasrdquo o que natildeo
acarretaria isenccedilatildeo de serem relativamente enquadrados nos crimes de sacrilegium245 ou
maiestas
No entanto ao confirmar a accedilatildeo de Pliacutenio Trajano ratifica a condenaccedilatildeo do nomen
christianum Isso deve estar ligado ao fato de o governador do Ponto-Bitiacutenia ter confirmado
os resultados positivos desse tipo de condenaccedilatildeo que visava desestimular a aderecircncia ao grupo
cristatildeos garantindo a manutenccedilatildeo da religiatildeo tradicional a uma medida moderada que
impedisse falsas denuacutencias e o cometimento de injusticcedilas O que natildeo significa que Trajano
tenha empreendido uma poliacutetica de toleracircncia aos cristatildeos dificultando as denuacutencias como em
alguns momentos parece sugerir Pedro Barcelograve246
Euseacutebio247 explora o fato de Trajano ter determinado que os cristatildeos natildeo deveriam ser
buscados (conquirendi non sunt) para assim construir uma ldquotradiccedilatildeo favoraacutevelrdquo aos fieacuteis Ele
confirma que Trajano promulga um decreto para que os cristatildeos natildeo fossem perseguidos Tal
medida eacute interpretada como o fator importante para a reduccedilatildeo parcial da perseguiccedilatildeo naquela
241 Anais XV44 242 JANSEN L F lsquoSuperstitiorsquo and the persecution of the Christians Vigiliae Christianae V 33 n 2 jun1979 pp 145 243 De Vita Caesarum Vita Neronis 162 244 II Apol 82 245 Este caso envolveria um crime especiacutefico contra o patrimocircnio religioso pagatildeo mas natildeo haacute sinais evidentes no na primeira metade do II seacuteculo cf ROBINSON OF The criminal Law of ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 passim 246 BARCELOacute Pedro Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002 passim 247 Histoacuteria Eclesiaacutestica III231-3
46
eacutepoca Mas essas vantagens que Euseacutebio vecirc na recomendaccedilatildeo de Trajano se reduzem ao fato
de ele natildeo admitir que os cristatildeos sejam levados em juiacutezo mediante denuacutencias anocircnimas
Mesmo assim os incocircmodos locais permaneceram Euseacutebio escreve ldquoAlgumas vezes eram as
populaccedilotildees outras as proacuteprias autoridades locais que preparavam os asseacutedios contra noacutes de
forma que ainda que sem perseguiccedilotildees manifestas acenderam-se focos parciais segundo as
proviacutenciasrdquo248 Por outro lado em grande medida influenciado por Meacuteliton de Sardes249 que
escreveu a Marco Aureacutelio Euseacutebio ratifica a tradiccedilatildeo cristatilde que destaca Nero e Domiciano
como grandes perseguidores da Igreja250 Eacute interessante a tradiccedilatildeo cristatilde relacionar as accedilotildees
anticristatildes a ldquomaus imperadoresrdquo Com isso tenta-se reproduzir a ideia de que perseguir os
cristatildeos eacute seguir os passos de tiranos Todavia quando se procuram as raiacutezes das hostilidades
imperiais com os cristatildeos faz-se necessaacuterio ter em mente que por vaacuterias regiotildees do Impeacuterio os
atritos envolvendo o combate aos cristatildeos emergem do processo de expansatildeo da comunicaccedilatildeo
da mensagem apelativa cristatilde e das transformaccedilotildees reivindicadas e provocadas por ela nas
tradiccedilotildees e no comportamento das pessoas
Desse modo deixando de lado a hipoacutetese de Marta Sordi251 sobre um senatus
consultum na eacutepoca de Tibeacuterio que teria desaprovado o reconhecimento de Cristo a
contragosto do Imperador eacute preciso lidar com o institutum neronianum252 tambeacutem
mencionado por Tertuliano como a primeira hostilidade incisiva do Impeacuterio contra os
cristatildeos Mas esta peculiar expressatildeo empregada por Tertuliano natildeo se refere a uma lei e sim
a uma accedilatildeo de Nero E a accedilatildeo de Nero neste caso teria interesses particulares e usa os cristatildeos
como ldquobodes expiatoacuteriosrdquo Mesmo que as flagitia cristatildes se fundamentem em caluacutenias
originaacuterias dos atritos populares a superstitio cristatilde natildeo poderia representar algo aceitaacutevel aos
olhos dos romanos devido ao seu caraacuteter exclusivista e seu desprezo pela vida puacuteblica ligada agrave
religiatildeo tradicional Em defesa dos cristatildeos poucos anos mais tarde Justino escreveu ldquoEsta eacute
a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo
oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo colocamos coroas nos sepulcros nem
celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo (I Apol 242) Aleacutem disso seria uma incriacutevel contradiccedilatildeo
sustentar que existia uma lei geral em vigor que determinava a pena capital para os cristatildeos e
248 Hist EclesIII232 249 ldquoEntre todos somente Nero e Domiciano persuadidos por alguns homens maleacutevolos quiseram caluniar nossa doutrina e acontece que deles derivou por costume irracional a mentira caluniosa contra tais pessoasrdquo (apud Euseacutebio Hist EclesIV239) 250 Hist Ecles III171 201-9 221-8 251 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 27 Cf BARNES T D Legislation against the Christians Journal of Roman Studies 58 1968 252 Ad Nationis I7 Apologeticus IV4
47
ser necessaacuterio admitir que Trajano recomenda que os cristatildeos natildeo sejam perseguidos e que
apenas os casos mais precisos sejam examinados
A resposta de Trajano alegando ldquonatildeo eacute possiacutevel constituir por assim dizer algo
universal que possua forma fixardquo253 pode servir como evidecircncia de que natildeo existia uma lei
geral para julgar os cristatildeos Todavia Roman254 considera que a foacutermula neque enin
universum deve ser relativizada em funccedilatildeo de um marco geograacutefico concreto o da proviacutencia
Ponto-Bitiacutenia e em relaccedilatildeo agrave diversidade de status juriacutedico e de situaccedilotildees existentes nessa
regiatildeo que motivam a correspondecircncia entre Pliacutenio e o Imperador Um exemplo dessa
preocupaccedilatildeo aparece quando se fala da constituiccedilatildeo de um evranouj (sociedade de seguros
muacutetuos) em Amisos255 Trajano desaprovando a ideia responde
Se as leis de Amisos de acordo com as obrigaccedilotildees do tratado lhe datildeo direito a ter uma associaccedilatildeo de seguros muacutetuos natildeo podemos proibir que a tenham tanto mais se tal sociedade natildeo procede a organizar tumultos e reuniotildees iliacutecitas senatildeo para sustentar os mais pobres Nas cidades restantes que estatildeo submetidas a nosso direito praacuteticas desse tipo devem ser proibidas []256
Roman257 estaacute correto em considerar que Trajano potildee em praacutetica um tipo de
disposiccedilatildeo que tende a fazer frente aos problemas sociais provinciais que encontram uma
ampla expressatildeo na formaccedilatildeo de heterias Esta poliacutetica encontra uma limitaccedilatildeo na situaccedilatildeo da
proviacutencia Ponto-Bitiacutenia com a existecircncia de cidades livres e federadas que se autorregulam
Poreacutem a hipoacutetese de Roman apresenta limitaccedilotildees Ele considera que tal poliacutetica
administrativa com respeito aos cristatildeos constituiria uma exceccedilatildeo em suas disposiccedilotildees sobre
as associaccedilotildees no Ponto-Bitiacutenia Esta exceccedilatildeo natildeo se explica em funccedilatildeo da diversidade de
status juriacutedico das cidades existentes nessa proviacutencia mas estaacute relacionada ao caraacuteter peculiar
das reuniotildees das comunidades cristatildes que natildeo consistiam um perigo ao Impeacuterio Roman segue
a hipoacutetese de De Robertis258 e chega a alegar que as reuniotildees cristatildes eram consideradas licita
A proposiccedilatildeo de Roman falha basicamente em natildeo compreender que a aprovaccedilatildeo por
parte de Trajano dos atos de execuccedilatildeo da pena capital sobre os cristatildeos desempenhada por
Pliacutenio estaacute diametralmente oposta a uma hipoteacutetica licenccedila agrave religiatildeo cristatilde O que descarta
qualquer vestiacutegio de simpatia romana pelos cristatildeos Aleacutem disso Pliacutenio havia informado ao
imperador que os cristatildeos haviam deixado de se reunir tendo em vista as disposiccedilotildees do edito
253 neque enim in universum aliquid quod quasi certam formam habeat constitui potest (Ep X98) 254 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 233-234 255 Ep X92 256 Pliacutenio Ep X94 257 Op cit pp 233-234 258 ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89
48
recente Quando Trajano aponta que seria inadequado estabelecer uma norma fixa para julgar
os cristatildeos ele estaacute se referindo agraves interrogaccedilotildees levantadas por Pliacutenio questionando sobre a
necessidade de se fazer distinccedilatildeo entre jovens e idosos satildeos e doentes romanos e natildeo
romanos Desse modo o imperador estaacute de acordo que o magistrado use de seus poderes
constituiacutedos para fazer as distinccedilotildees necessaacuterias sem que se fixe uma norma universal
Giorgio Jossa259 faz uma siacutentese das teorias baacutesicas sobre as accedilotildees anticristatildes no
periacuteodo de Trajano e desenvolve uma avaliaccedilatildeo que tem em vista a complexidade da situaccedilatildeo
poliacutetica da religiatildeo cristatilde e da peculiaridade do procedimento criminal do direito romano Esta
explicaccedilatildeo comporta certa mescla de todas as trecircs hipoacuteteses aceitaacuteveis Assim Jossa considera
que o cristianismo representa antes de tudo um problema de ordem puacuteblica que dependia em
parte da sensibilidade dos magistrados por meio do uso da ius coertionis num momento onde
jaacute existia uma legislaccedilatildeo especiacutefica contra os cristatildeos e onde o nomen christianum carregava
subentendido os crimes de sacrilegium e maiesta Exceto pela sua insistecircncia em admitir que
havia uma lei especiacutefica contra os cristatildeos sua anaacutelise torna-se proveitosa em funccedilatildeo de sua
sensibilidade agrave questatildeo da ordem puacuteblica enviesada nesse dilema juriacutedico Se o nomen
christianum carregava subentendido crimes comuns eles se manifestam com a pressatildeo civil
procurando expelir esse corpo estranho da sociedade pagatilde e obriga os magistrados a
procurarem um enquadramento que ratifique a condenaccedilatildeo daquilo que para muitos do povo
estava evidente que os cristatildeos deviam ser condenados
Em siacutentese eacute mais prudente admitir que as condenaccedilotildees de outrora sobre os cristatildeos
davam margem para que os magistrados em outras regiotildees do Impeacuterio eventualmente
condenassem os cristatildeos que lhes fossem entregues normalmente devido a atritos populares
Isso justificaria a incerteza de Pliacutenio em condenar os cristatildeos Eacute o uso de se condenar os
cristatildeos em decorrecircncia desde a eacutepoca de Nero da opiniatildeo puacuteblica somada agrave imagem
negativa que a classe culta tinha desses religiosos que atribui flagitia aos fieacuteis tornando o
nomen christianum razatildeo de condenaccedilatildeo Algo que eacute negado pelos apologistas com
veemecircncia no II seacuteculo e que seraacute avaliado por Adriano subsequentemente a Trajano
259 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125
49
22 Os cristatildeos sob o governo de Adriano
A Histoacuteria Augusta (51) aponta que Adriano foi um imperador dedicado agrave
manutenccedilatildeo da paz no mundo mas tatildeo logo as revoltas estouraram em regiotildees variadas Os
samaritanos se envolveram em guerra os britacircnicos davam sinais de que natildeo permaneceriam
sob o domiacutenio romano o Egito foi jogado em desordem por distuacuterbios e finalmente a Liacutebia e
a Palestina mostraram espiacuterito de rebeliatildeo
Nos anos 130 e 131 Adriano partiu para o Oriente No plano das suas reformas estava
a revitalizaccedilatildeo da cidade de Jerusaleacutem que havia sido destruiacuteda na guerra judaica de 66 a 73
Natildeo eacute agrave toa que ficou reconhecido como promotor da vida urbana no Impeacuterio valorizando as
obras puacuteblicas (aacutegoras templos teatros anfiteatros aquedutos portos ou estradas) Os
investimentos na Judeia faziam parte de sua estrateacutegia de integraccedilatildeo e romanizaccedilatildeo
Os judeus sofreram em muitos aspectos os efeitos das transformaccedilotildees culturais Mas a
introduccedilatildeo de elementos estrangeiros e a construccedilatildeo de um templo a Juacutepiter na cidade sagrada
gerou protestos260 A proibiccedilatildeo da circuncisatildeo261 contribuiu para acirrar os acircnimos revoltosos
No entanto segundo a anaacutelise de J M C Copete262 se esse foi o estopim da guerra as causas
que levaram o povo judeu e alguns outros provincianos a lutar natildeo poderiam estar apenas na
devoccedilatildeo ao seu Deus tradicional Yahveacute A insensatez romana em ignorar os problemas
estruturais da regiatildeo tais como a pobreza endecircmica reinante e as proacuteprias rivalidades entre
sacerdotes e rabinos na regiatildeo proporcionaram as condiccedilotildees para esse movimento que se
levantou como uma ameaccedila agrave ordem
Euseacutebio escreve que
Rufo governador da Judeacuteia com o reforccedilo militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade marchou contra eles Aniquilou em massa milhares de homens de crianccedilas e de mulheres e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territoacuterios agrave escravidatildeo Mandava entatildeo sobre os judeus um chamado Bar Kosibas que significa ldquofilho da estrela263
A religiatildeo dos judeus era o elemento fundamental de sua identidade Havia interaccedilatildeo
com os demais povos do Impeacuterio mas qualquer tipo de resistecircncia em funccedilatildeo dessa
260 Cassius Dio His Rom 121-3 261 Hist Aug 142 262 Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 263 His Ecles IV61-2
50
identidade poderia deixar as autoridades romanas ressabiadas Taacutecito264 fala da diferenccedila de
ambos os mundos O judaiacutesmo parecia-lhe uma supersticcedilatildeo absurda soacuterdida e depravada que
gerava costumes contraacuterios aos dos outros povos A abstenccedilatildeo do culto ao imperador por parte
dos judeus poderia simbolizar sua rejeiccedilatildeo ao Impeacuterio e agrave cultura greco-romana mas natildeo se
deve pensar que os judeus estavam blindados agrave cultura helecircnica e que as oligarquias judaicas
se isolassem dos negoacutecios com as demais proviacutencias do Impeacuterio265
Uma das preocupaccedilotildees de Justino em sua I Apologia eacute deixar claro que os judeus
haviam se tornado os principais opositores dos cristatildeos e que muitos foram vitimados por Bar
Kosiba que os mandava ldquosubmeter a terriacuteveis torturasrdquo266 Natildeo haacute certeza sobre as razotildees
dessa oposiccedilatildeo e se ela diferia da rivalidade entre judeus e cristatildeos constatada no I seacuteculo
Todavia aleacutem desse tipo de accedilatildeo anticristatilde haacute indiacutecios de que os tribunais locais recebessem
queixas sobre os cristatildeos e um nuacutemero significativo de fieacuteis era levado agrave morte Tal como a feacute
dos judeus a religiatildeo dos cristatildeos era considerada uma superstitio reprovaacutevel que apresentava
resistecircncia agrave vida puacuteblica no Impeacuterio ou seja que natildeo se envolviam em teatros jogos e todo
tipo de reverecircncias aos deuses pagatildeos Para evitar quaisquer duacutevidas quanto agrave identidade entre
cristatildeos e judeus o apologista faz essa interpolaccedilatildeo
Em funccedilatildeo das condenaccedilotildees sofridas pelos cristatildeos durante o governo de Adriano
Quadrato e Aristides escreveram-lhe apologias267 Se a teoria de Paul Andriessen268 for
tomada por certa e a Carta a Diogneto for reconhecida como a apologia perdida de Quadrato
reconhecer-se-aacute a disposiccedilatildeo tanto nesse escrito quanto na Apologia de Aristides em
apresentar algumas das principais distinccedilotildees entre as crenccedilas dos cristatildeos dos judeus e dos
pagatildeos A principal queixa na Carta a Diogneto leva a crer que o ldquonomerdquo cristatildeo era um
elemento chave para a condenaccedilatildeo269 Sua queixa faz pensar que as variaccedilotildees nos julgamentos
nos tribunais locais pudessem proporcionar um destino distinto aos cristatildeos ldquoPor isso
condeno tambeacutem as vossas leis Deveria haver uma soacute constituiccedilatildeo poliacutetica comum para
todos agora haacute tantas legislaccedilotildees quantas cidades existem e assim acontece que o que entre
uns eacute vergonhoso entre outros eacute tido por honrosordquo270
264 Taacutecito Historia V 3-6 Cf Strabatildeo Geografia XVI237 Quintiliano Institutio Oratoria II7 Juvenal Satiras III 13-6 VI 541-7 96-106 Plutarco De Superstitione 8 Cassius Dio Hist Rom 37174 265 Josefo Antiguidades Judaicas XVIII 23 Guerras dos Judeus II118 266 I Apol 316 267 Euseacutebio His Ecles IV31-3 268 Lrsquoapologie de Quadratus conserve sous le nom drsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedievale 13 1946 pp 5-260 Id Lrsquoepilogue de lrsquoEacutepicirctre agrave Diognegravete Recherches de Theacuteologie Ancienne et Meacutedieacutevale 14 1947 pp 121-156 269 Carta a Diogneto 271ss 270 Carta a Diogneto 281ss
51
O rescrito de Adriano ao prococircnsul da Aacutesia a partir de 124125 dC Minuacutecio
Fundano oferece uma ideia sobre sua forma de lidar com os cristatildeos O texto foi conservado
na Apologia de Justino (I Apol 68) no texto de Euseacutebio271 e por Rufino na versatildeo latina
Adriano havia recebido a carta de Serecircncio Graniano272 antecessor de Minuacutecio e julgou ser
importante responder essa demanda a fim de ldquoevitar que se perturbem os homens e que os
delatores encontrem apoio para suas maldadesrdquo273 Adriano recomenda que
se os provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo que respondam a ela diante do tribunal deveratildeo ater-se a esse procedimento e natildeo a meras peticcedilotildees e gritarias Com efeito eacute muito mais conveniente que se algueacutem pretende fazer uma acusaccedilatildeo examines tu o assunto Em conclusatildeo se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delito Mas por Heacutercules se a acusaccedilatildeo eacute caluniosa castiga-o com maior severidade e cuida para que natildeo fique impune (I Apol 688-10)
As interpretaccedilotildees desse rescrito satildeo divergentes Em uma primeira linha interpretativa
representada por exemplo por B Orgeval H Gregoire L Regibus e M Sordi274 acredita-se
que esse rescrito assegurou a liberdade de algum tipo de perseguiccedilatildeo aos cristatildeos por
professarem sua religiatildeo e providenciou que fossem punidos apenas por crimes cometidos
contra as leis comuns Representantes de outro ponto de vista como C Callewaerd J Moreau
e W Schimid275 sustentam que o rescrito natildeo concede aos cristatildeos nenhuma liberdade
O rescrito foi lido por Justino de um modo favoraacutevel aos cristatildeos como se de fato o
Imperador tivesse agido decididamente a favor dos cristatildeos A esse documento fez alusatildeo
Meliton bispo de Sardes276 Euseacutebio agiu de modo semelhante em sua proacutepria leitura do
rescrito de Trajano e seguiu a Justino em sua interpretaccedilatildeo do rescrito de Adriano No entanto
como mostrou Paul Kereszts277 a interpretaccedilatildeo do apologista difere do sentido original do
rescrito Segundo a interpretaccedilatildeo de Justino Adriano teria proibido que os cristatildeos fossem
271 His Ecles IV 9 272 O nome correto eacute Q Licinio Silvano Graniano cocircnsul a partir de 106 dC e pro-cocircnsul da Aacutesia a paritir de 122123 dC MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 132 273 I Apol 687 Eus Hist Ecles IV9 274 ORGEVAL B LEmpereur Hadrien oeuvre leacutegislative et administrative ParisGrenoble Domat MontchrestienImpr De Allier 1950 pp 302-307 GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951 pp 138-139 REGIBUS L de Storia e Diritto Romano negli Acta Martyrum Didascalos 1926 pp 147-148 SORDI M I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349 275 CALLEWAERT C Le Rescrit dHadrien a Minucius Fundanus Reviste dHistoire et de Litterature 6l 8 1903 pp 152-189 MOREAU J La Persecution du Christianism e dans lEmpire Romain Paris Presses Universitaires de France 1956 p 48 SCHIMID W The Christian Re-Interpretation of the Rescript of Hadrian Maia 71955 pp 5-13 276 Euseacutebio Hist EclesIV 2610 277 Law and Arbitrariness in the persecution of the Christian and Justinrsquos Firt Apology Vigiliae Christianae 18 1964 pp 204-214 KERESZTES Paul The Emperor Hadrians Rescript to Minucius Fundanus Phoenix Vol 21 No 2 Summer 1967 pp 120-129
52
punidos simplesmente mediante a confissatildeo de que eram ldquocristatildeosrdquo e teriam recomendado
que fossem julgados pelos crimes como quaisquer outros e natildeo por suas crenccedilas
Segundo C G Roman278 a postura de Adriano em advertir a Minuacutecio Fundano a nada
julgar sem denuacutencia e acusaccedilatildeo formal contra os cristatildeos dava continuidade agrave poliacutetica de
Trajano Tomando essa perspectiva como exemplo deve-se destacar que a interpretaccedilatildeo do
rescrito de Adriano dependeraacute significativamente da interpretaccedilatildeo do rescrito de Trajano e
talvez deva remontar ateacute um pouco antes Roman interpretou as recomendaccedilotildees deste uacuteltimo
como sendo positivas para com os cristatildeos e sua tendecircncia eacute reconhecer o aprimoramento das
limitaccedilotildees das accedilotildees anticristatildes
J Beaujeu279 considera que Adriano procedeu a uma grande obra de restauraccedilatildeo
religiosa que obedecia aleacutem das necessidades religiosas a objetivos poliacuteticos agrave medida que
tendia a uma unificaccedilatildeo religiosa das distintas proviacutencias do Impeacuterio debaixo da eacutegide dos
cultos Greco-romanos mediante a criaccedilatildeo de uma religiatildeo do Estado siacutentese destes uacuteltimos
cultos com as religiotildees orientais com a originalidade dos diversos grupos sociais e eacutetnicos
que formavam o Impeacuterio
De fato Adriano foi um imperador interessado em conhecer a cultura do vasto
Impeacuterio Por volta do ano de 124 iniciou-se nos misteacuterios Eleusis importante oraacuteculo do
mundo grego revelando um interesse miacutestico que acabou por conduzi-lo tambeacutem ao
conhecimento misterioso da religiatildeo egiacutepcia Os cultos tradicionais de Roma natildeo receberam
menor atenccedilatildeo certamente para manter uma relaccedilatildeo amistosa com os integrantes do universo
senatorial Construiu um templo a Venus em Roma no Foro Romano no ano de 121 e mandou
reconstruir o Panteatildeo de Marco Agripa um dos mais importantes colaboradores de
Augusto280 No entanto isso natildeo permite ver em seu rescrito uma accedilatildeo proacute-cristatilde que
estivesse em consonacircncia com a ideia sustentada por Marta Sordi281 de que Adriano teve em
mente reconhecer a Cristo entre os outros deuses e lhe oferecer um templo conforme anota a
Histoacuteria Augusta (Alexandre Severus 436-7) Essa passagem se assemelha agrave lenda de que
antes de propor a construir a cidade de Elia Adriano havia empreendido um projeto de
reconstruccedilatildeo conjunta do templo de Jerusaleacutem com os judeus mas a oposiccedilatildeo dos samaritanos
278 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 230 279 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp150ss 280 FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012 p 43 281 I Cristiani e Lrsquoimpero Romano Ed rev e atual Milano Jaca Book 2011 p 98
53
fez com que os planos sofressem mudanccedilas draacutesticas282 Esse tipo de tendecircncia pode chegar a
ponto de admitir como sustentou T Mommsem283 que Adriano estava proacuteximo a elevar a feacute
cristatilde a uma religio licita
As comparaccedilotildees entre as accedilotildees de Trajano e Adriano satildeo muito importantes para o
desenvolvimento de uma teoria coerente que explique a condiccedilatildeo dos cristatildeos nesse iniacutecio do
II seacuteculo todavia natildeo eacute necessaacuterio admitir nenhuma continuidade entre ambos em razatildeo dos
rescritos G Jossa284 alerta que os rescritos natildeo satildeo ldquoleisrdquo mas recomendaccedilotildees a governantes
locais e nem um desses imperadores estabeleceu normas gerais sobre o julgamento dos
cristatildeos
Como foi visto anteriormente ao responder a demanda de Pliacutenio Trajano admitiu o
procedimento daquele governador em condenar os cristatildeos mediante a confissatildeo
recomendaccedilatildeo que fazia pressupor que o nomen christianum representava a razatildeo da
condenaccedilatildeo que visava desestimular a adesatildeo e expansatildeo dessa superstitio Naquela ocasiatildeo o
imperador fez questatildeo de lembrar que as denuacutencias anocircnimas natildeo deveriam ser aceitas Pouco
tempo depois Adriano precisa admoestar os governantes da Aacutesia Menor a natildeo serem movidos
por ldquomeras peticcedilotildees e gritariasrdquo285 A condenaccedilatildeo aos cristatildeos provocou abusos nas
condenaccedilotildees Se bastasse estender o dedo para algueacutem e acusaacute-lo de cristianismo para
conseguir sua condenaccedilatildeo essa seria uma forma eficaz de eliminar qualquer pessoa
indesejada ainda que ela natildeo fosse cristatilde Adriano entatildeo reconhece que a questatildeo levantada
por Graniano natildeo poderia ficar sem resposta pois os efeitos da desordem seriam extensos
Embora a carta de Graniano natildeo tenha sido preservada eacute possiacutevel deduzir que se o imperador
recomenda a condenaccedilatildeo dos ldquomaleacutevolosrdquo delatores dos cristatildeos que indevidamente os
caluniavam visando agrave puniccedilatildeo isso significa que esse tipo de episoacutedio jaacute havia sido
constatado naquela regiatildeo Nenhuma norma universal eacute estabelecida ou mencionada O
governador eacute designado como o responsaacutevel por examinar as denuacutencias formais e averiguar os
casos
Fica evidenciada a obrigaccedilatildeo por parte de quem realiza a denuacutencia de apresentar ele
mesmo provas sobre seu testemunho diferenciando-se um pouco da medida de Trajano
segundo a qual o governador deveria se responsabilizar pela investigaccedilatildeo O castigo aos falsos
282 Midash Berersquoshit Babba 6410 e Epiacutestola de Barnabeacute 163-4 apud COPETE J M C Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII CONGRESSO INTERNACIONAL GIREA-ARYS IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004 p 483 283 Der religonsfrevel nach der roumlmischen Recht Historische Zeitschrift 64 1890 pp 389-429 284 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125 285 I Apol 688
54
acusadores era praacutetica usual no direito romano286 Neste ponto surge a seguinte questatildeo Os
acusadores deveriam provar que os cristatildeos por eles acusados cometiam a infraccedilatildeo de serem
ldquocristatildeosrdquo ou que infringiam outras leis comuns subentendidas pelo seu nomen
A expressatildeo287 ei tij ou=n kathgorei kai deiknusi ti para touj nomouj prattontaj(
ou[twj Diorixw kata thn Dunamin tou a`marthmatoj( [ se algueacutem faz uma acusaccedilatildeo e
demonstra que realizam alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade
do delito ] (I Apol 6810) eacute entendida de modo positivo ou negativo dependendo da corrente
de interpretaccedilatildeo No entanto o proacuteprio rescrito tem algo a dizer em um delineamento mais
claro sobre essa questatildeo A especificaccedilatildeo de que os acusadores deveriam demonstrar que os
cristatildeos acusados agiam contra as leis [touj nomoj prattontaj] eacute uma medida para evitar as
sukofantiaj [caluacutenias] Por isso ele recomenda que Minuacutecio Fundano examine os casos e ldquose
a acusaccedilatildeo eacute caluniosa [castigue-o]288 com maior severidade e [cuide]289 para que natildeo fique
impunerdquo (I Apol 6810)
Uma nova questatildeo incide sobre o significado dessa acusaccedilatildeo ldquocaluniosardquo Justino
interpretou esse trecho como as acusaccedilotildees que maculavam injustamente a imagem dos
cristatildeos atribuindo-lhes canibalismo ateiacutesmo maiestas ou outras coisas desse tipo Segundo
esse tipo de interpretaccedilatildeo Adriano estaria reprovando a condenaccedilatildeo pelo nomen christianum
e recomendando que os governantes examinassem se existia de fato algum crime contra as
leis Ateacute esse ponto essa medida natildeo significaria nenhuma benevolecircncia para com os cristatildeos
apenas garantiria que fossem julgados como quaisquer outros no Impeacuterio sem que os
magistrados fossem movidos por gritarias puacuteblicas mas que se detivessem aos processos
formais Todavia uma segunda hipoacutetese eacute cogitada
Nessa hipoacutetese as acusaccedilotildees ldquocaluniosasrdquo agraves quais Adriano se refere poderiam natildeo ser
do mesmo tipo das que Justino tinha em mente em suas Apologias Elas poderiam se referir agrave
proacutepria acusaccedilatildeo de cristianismo lanccedilada sobre algueacutem com o intuito de levaacute-lo agrave condenaccedilatildeo
sob uma lei especiacutefica contra os cristatildeos Nessa perspectiva a exigecircncia de Adriano para que
se examinasse a comprovaccedilatildeo da denuacutencia seria uma medida semelhante agravequela tomada por
Pliacutenio exigindo que os acusados sacrificassem aos deuses e amaldiccediloassem a Cristo para que
assim se pudesse verificar se eram realmente cristatildeos A diferenccedila eacute que natildeo eacute possiacutevel
286 ROBINSON O F The criminal Law of ancient Rome Baltimore John Hopkins University Press 1996 pp 8100 287 O rescrito em latim que Euseacutebio dizia ter sido anexado originalmente por Justino foi substituiacutedo no MS Par Grae 450 pela traduccedilatildeo grega de Euseacutebio (MINNS D PARVIS P Justin philosopher and martyr apologies New York Oxford University Press 2009 p 265) 288 Adaptaccedilatildeo de ldquocastiga-ordquo para melhor leitura da frase 289 Originalmente ldquocuidardquo
55
conferir a carta de Graniano para fazer algum tipo de comparaccedilatildeo Desse modo natildeo haveria
nenhuma diferenccedila entre a posiccedilatildeo de Trajano e Adriano exceto a recomendaccedilatildeo desse uacuteltimo
para que os caluniadores fossem punidos Para sustentar essa teoria poreacutem torna-se
necessaacuterio admitir que o rescrito de Adriano foi sutilmente modificado pelos cristatildeos para
convertecirc-lo a favor da feacute cristatilde Se por um lado eacute faacutecil supor a modificaccedilatildeo desse documento
ndash o que poderia ter ocorrido ateacute em funccedilatildeo da sua traduccedilatildeo do latim para o grego ndash por outro
lado natildeo haacute outro documento desse tipo que comprove tal adulteraccedilatildeo e nem mesmo que
ratifique uma accedilatildeo intolerante de Adriano para com os cristatildeos Outra hipoacutetese deve ser
examinada e agora deveraacute levar em consideraccedilatildeo as leis agraves quais o rescrito se refere
No texto grego de Euseacutebio que agora aparece na I Apologia de Justino conforme o
MS A a conjugaccedilatildeo no particiacutepio plural presente ativo masculino do verbo prattontaj estaacute
relacionada agrave frase anterior Aproximando as frases o sentido que se tem eacute o seguinte ldquose os
provincianos satildeo capazes de sustentar abertamente a sua demanda contra os cristatildeos de modo
que respondam a ela diante do tribunal [] faz uma acusaccedilatildeo e demonstra que realizam
alguma coisa contra as leis determina a pena conforme a gravidade do delitordquo290 O texto
latino de Rufino eacute mais especiacutefico com essa associaccedilatildeo Si quis igitur accusat et probat
adversum leges quicquam agere memoratos homines pro merito peccatorum etiam suplicia
statues291 Nesse caso memoratos homines [homens mencionados] eacute uma expliacutecita referecircncia
aos Christianos Todavia tanto C Munier292 quanto D Minns e P Parvis293 ignoram a
palavra memoratos294 traduzindo o texto como se o rescrito se referisse ao modo geral de se
proceder em um julgamento ou seja a todos os homens cujos crimes fossem confirmados
Essa hipoacutetese forccedila o texto pois neste caso uma norma geral faria com que qualquer denuacutencia
precisasse ser provada pelo delator sob o risco de ser punido severamente caso natildeo fosse
confirmada pelas autoridades Desse modo esse tipo de sustentaccedilatildeo se converte em absurdo
Admitir que Adriano estivesse realmente orientando Minuacutecio Fundano a julgar
pessoalmente as denuacutencias contra os cristatildeos e exigir provas dos delatores que confirmassem
o descumprimento das leis natildeo significa que o imperador demonstrava simpatia pelo
cristianismo Sua preocupaccedilatildeo eacute manter a ordem e evitar os abusos Era preciso impedir que
290 I Apol 688-10 291 Apud MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris BerlinNew York Walter de Gruyter 2005 p 133 292 Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 pp 314-317 293 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 pp 44264-267 294 Participio plural passado perfeito masculino acusativo que significa ldquotrazido agrave lembranccedilardquo ldquoditordquo ldquomencionadordquo ldquorelacionadordquo etc LEWIS C T SHORT C et al Harperrsquos Latin Dictionary New York Harper amp Brothers 1888 (Perseu Project)
56
as manifestaccedilotildees puacuteblicas solapassem o procedimento correto dos tribunais Haacute sim uma
diferenccedila significativa entre a postura de Trajano e a de Adriano mas ela natildeo torna o segundo
um amigo ou inimigo dos cristatildeos Cabe lembrar que uma das questotildees levantadas por Pliacutenio
a Trajano era se os cristatildeos deveriam ser punidos pela confissatildeo desse nome ou pelos crimes
subentendidos Naquele caso especiacutefico da Bitiacutenia uma das infraccedilotildees era quando os cristatildeos
se reuniam em seus cultos passar por cima da lei que impedia as reuniotildees e associaccedilotildees
gerais Abandonada essa praacutetica o governador natildeo via nenhum crime ou ameaccedila no modo de
ser dos cristatildeos e natildeo encontrou outra razatildeo para puni-los senatildeo pela contumaacutecia que
apresentavam diante de um magistrado em natildeo negar a feacute que era estranha aos olhos de Pliacutenio
A resposta de Trajano ainda que lacocircnica ratificou o procedimento de Pliacutenio e mesmo sem se
identificar um ldquocrimerdquo especiacutefico aprovou a condenaccedilatildeo dos cristatildeos pelo seu nomen para
desestimular a superstitio estranha e incentivar a retomada do culto puacuteblico pagatildeo Adriano
por outro lado tambeacutem sem fazer referecircncia a qualquer lei especiacutefica contra os cristatildeos
orienta os governantes a condenarem a todos aqueles que comprovadamente estivessem
infringindo a lei Tudo indica que a Aacutesia estava sendo agitada por mobilizaccedilotildees puacuteblicas que
impeliam os magistrados contra os cristatildeos Essa eacute a razatildeo para os apologistas Quadrato e
Aristides escreverem tambeacutem O nuacutemero dos cristatildeos ainda natildeo era muito significativo para o
estabelecimento de uma lei geral
Conforme destacou Jossa295 os cristatildeos se confrontavam com a opiniatildeo puacuteblica
Dentre o povo emergiram acusaccedilotildees de incesto infanticiacutedio e outras coisas do gecircnero A
rejeiccedilatildeo aos deuses e o estranhamento ao mos romanorum e o seu odio humanum generis
faziam com que os cristatildeos se tornassem a causa das desgraccedilas no Impeacuterio diante dos olhos de
uma boa parte dos pagatildeos No periacuteodo de Adriano a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos era apenas uma
questatildeo de ordem puacuteblica que constrangia o governo romano a uma difiacutecil obra de mediaccedilatildeo
entre os vaacuterios grupos locais Era um aspecto da poliacutetica de pacificaccedilatildeo das proviacutencias A sua
preocupaccedilatildeo estaacute relacionada exclusivamente a manter a ordem puacuteblica nas proviacutencias e a
garantir a observacircncia rigorosa do direito296 A hostilidade aos cristatildeos e os crescentes
confrontos obrigavam os governadores a intervirem e a consultarem o imperador em casos
como esse em que as coisas ameaccedilavam sair do controle
295 JOSSA Giorgio I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 pp 125132 296 Na Digesta XXII53 o jurista Callistrato se reporta a uma seacuterie de rescritos dos quais cinco satildeo de Adriano a governadores das proviacutencias sobre o modo como escutar os textos nos processos e sobre o valor de dar a eles testemunho cf tambeacutem Dig XLVIII27
57
As respostas de Trajano e Adriano mostram que a repressatildeo puramente local do
cristianismo tinha um caraacuteter descontiacutenuo e excepcional que natildeo impedia a nova religiatildeo de
estender-se pelo Impeacuterio fazendo novos adeptos
23 Antonino Pio Justino Marco Aureacutelio e os cristatildeos
Durante o governo de Antonino Pio (governou de 138-161) os tribunais continuavam
a receber queixas esporaacutedicas da populaccedilatildeo sobre os cristatildeos Marco Aureacutelio297 reconheceu
seu conservadorismo e o descreveu como algueacutem profundamente devoto aos deuses
romanos298 e sempre atento ao cumprimento do proacuteprio dever no culto puacuteblico
Segundo Meacuteliton que escreveu nos tempos de Marco Aureacutelio Antonino Pio natildeo
empreendeu nenhuma modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo que viesse a abater a Igreja e que
repetidamente nos rescritos dirigidos aos tessalonicenses aos atenienses e a todos os gregos
recomendou ldquonatildeo inovar nada sobre os cristatildeosrdquo299
Na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio (IV13) aparece um rescrito de Antonino ao
conselho da Aacutesia Satildeo levantados alguns argumentos contra a autenticidade desse documento
Destacam-se principalmente os erros de titulaccedilatildeo Tambeacutem se alega que suas caracteriacutesticas
formais natildeo sejam proacuteprias dos escritos de Antonino Pio Aleacutem disso o documento apresenta
uma exaltaccedilatildeo ao cristianismo Isso faz com que alguns rejeitem total300 ou parcialmente301
esse documento No entanto as condiccedilotildees da eacutepoca corroboram com a ideia de que o
imperador tenha de fato deliberado sobre essa questatildeo e J Beaujeu302 natildeo vecirc nenhuma razatildeo
para duvidar da existecircncia de um rescrito de Antonino Pio G Jossa303 e C G Roman304
297 Pensamentos I16 298 Marco Aureacutelio Pensamentos VI3014 299 apud Euseacutebio His EclesIV2610 300 Cf SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 1954 pp 190ss SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 301 Cf FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967 apud ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 227-228 302 La religion romain a lrsquoapogee de lrsquoEmpire 1 La politique religieuse des Antonins (96-192) Paris Socieacuteteacute DrsquoEdition ldquoLes Belles Lettres 1955 pp 279-329 303 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 148 304 ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 p 228
58
admitem-no com reservas e P Keresztes305 sustenta que por haver um comentaacuterio tanto
negativo quanto positivo sobre os cristatildeos natildeo deveria se tratar de uma falsificaccedilatildeo O modo
como tal texto foi preservado na Histoacuteria Eclesiaacutestica de Euseacutebio eacute controverso e merece um
exame cauteloso
Pela sequecircncia do texto entende-se que Euseacutebio falaraacute de Antonino Pio Ele anuncia o
nome de Antonino que tambeacutem foi uma forma de se referir a Marco Aureacutelio mas comeccedila a
citaccedilatildeo do texto com ldquoO imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto Armecircnio
pontiacutefice maacuteximo tribuno da plebe pela deacutecima quinta vez cocircnsul por trecircs vezes ao conciacutelio
da Aacutesia saudaccedilotildeesrdquo306 A secccedilatildeo de IV82-5 apresenta um comentaacuterio que dificilmente
poderia ser admitido como autecircntico por isso esta eacute a parte que sofre maior oposiccedilatildeo Trata-se
de uma repreensatildeo moral do imperador aos provincianos O nuacutecleo seguinte do texto agraves vezes
eacute admitido como histoacuterico como sustenta C G Roman307 Lecirc-se
Em favor destes jaacute escreveram a nosso diviniacutessimo pai muitos governadores das proviacutencias aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados a natildeo ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder puacuteblico de Roma Tambeacutem a mim muitos me falaram sobre eles e tambeacutem respondi seguindo o parecer de meu pai Mas se algueacutem persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles fique o acusado livre de encargos ainda que seja evidente que eacute cristatildeo por outro lado o acusador ficaraacute sujeito a castigo Publicado em Eacutefeso no concilio da Aacutesia (Hist Ecles IV136-7)308
O contexto e as evidecircncias internas mostram que o rescrito pretende ser de Antonino
Pio Em siacutentese o texto afirma que sob seu governo natildeo se modificou em nada o que foi
estabelecido por Adriano A liberaccedilatildeo de um cristatildeo acusado em funccedilatildeo da denuacutencia de outro
cristatildeo que insiste em levaacute-lo ao tribunal natildeo faz muito sentido Pode-se imaginar que
desavenccedilas entre cristatildeos fizessem com que um cristatildeo procurasse se livrar do seu adversaacuterio
denunciando-o agraves autoridades para que fosse condenado mas eacute inimaginaacutevel que essa fosse
uma preocupaccedilatildeo de um imperador pagatildeo Eacute provaacutevel tenha sofrido uma adaptaccedilatildeo cristatilde
Mesmo despertando ceticismo sobre sua autenticidade esse rescrito pode traduzir com
reservas a situaccedilatildeo dos cristatildeos daquela eacutepoca Neste caso a compreensatildeo da condiccedilatildeo dos
cristatildeos nesse periacuteodo depende em parte da compreensatildeo da postura de Adriano diante dos
cristatildeos Euseacutebio havia interpretado o rescrito de Adriano como uma medida que beneficiava
os fieacuteis e consequentemente vecirc como positivo o rescrito de Antonino Pio No entanto
consideram as conclusotildees especificadas sobre o rescrito de Adriano nesta pesquisa se Pio natildeo
305 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 pp 1-18 306 Euseacutebio Hist Ecles IV131 307 Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981 pp 230-231 308 Ibid
59
adicionou em nada agravequela determinaccedilatildeo os cristatildeos continuavam a serem viacutetimas de
condenaccedilotildees locais e os governantes tinham liberdade para julgar cada caso
Nesse periacuteodo ocorre o martiacuterio do Papa Teleacutesforo e o processo contra Tolomeu e
Luacutecio sob o prefeito de Roma Lollio Urbico mencionados na II Apologia de Justino (21ss)
O repuacutedio da novidade e irracionalidade da feacute dos cristatildeos aparece nos escritos de Eacutelio
Aristides309 e nas vozes populares inferiores referidas por Luciano (De morte Peregrini 11)
Sobre o martiacuterio de Policarpo haacute divergecircncias Jossa310 sustenta que ele padeceu sob Marco
Aureacutelio mas o tipo de perseguiccedilatildeo recebida natildeo foi diferente daquela pela qual padeceram os
cristatildeos condenados sob Antonino Pio Tumultos e agitaccedilotildees puacuteblicas foram problemas que
Adriano havia procurado resolver
As acusaccedilotildees de ldquoateiacutesmordquo sofridas pelos cristatildeos que aparecem na primeira parte do
rescrito satildeo pertinentes ao periacuteodo311 Esse tipo de acusaccedilatildeo levou o proacuteprio Justino a incluir
esse tema nas suas Apologias312 Eacute certo como destaca Keresztes313 que ldquoateiacutesmordquo natildeo era
um crime de fato E em segundo lugar diante das cataacutestrofes aqueles que professavam
orgulhosamente a inexistecircncia dos deuses pagatildeos tornavam-se a explicaccedilatildeo mais provaacutevel
para o distuacuterbio da pax deorum314 Haacute indiacutecios no rescrito de Antonino que esse temor dos
pagatildeos diante das forccedilas da natureza tambeacutem corroborava com o combate aos cristatildeos315
A principal queixa de Justino na deacutecada de 150 dC era a de que natildeo seria justo
algueacutem ser condenado simplesmente por professar ser ldquocristatildeordquo316 O apologista tece sua
reivindicaccedilatildeo considerando o que pensa ser ldquojustordquo e assim tambeacutem apresenta uma peticcedilatildeo
309 Aristides (Orationes XLVI309) fala dos cristatildeos como ldquoos iacutempios da Palestinardquo que se distanciavam dos costumes gregos e natildeo honravam os deuses 310 I cristiani e lrsquoImpero Romano Napoli M DrsquoAura 1991 p 125132 311 ldquoA estes estais empurrando para a agitaccedilatildeo uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateusrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV133) 312 I62 313 The emperor Antoninus Pius and the Christians The Journal of Ecclesiastical History v 22 nordm 1 jan1971 p 17 314 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam e comparais nossa situaccedilatildeo agrave suardquo (Hist Ecles IV134) [Os seguintes infortuacutenios e prodiacutegios ocorridos em seu reino a fome a qual jaacute mencionamos o colapso do Circus e o terremoto por meio do qual as cidades de Rodes e da Aacutesia foram destruiacutedas] Adversa eius temporibus haec provenerunt fames de qua diximus Circi ruina terrae motus quo Rhodiorum et Asiae oppida conciderunt quae omnia mirifice instauravit et Romae incendium quod trecentas quadraginta insulas vel domos absumpsit (Hist Aug Vita Antoninus IX1) Dion Cassius escreveu que ldquoNos dias de Antonino tambeacutem um terriacutevel terremoto ocorreu na regiatildeo da Bitinia e de Helesponto Vaacuterias cidades foram severamente danificadas ou caiacuteram em ruiacutenas em particular Cizicus e o templo de laacute que era o maior e mais belo de todos os templo foi lanccedilado abaixordquo (Hist Rom LXX 4) Ἐπὶ τοῦ Ἀντωνίνου λέγεται καὶ φοβερώτατος περὶ τὰ microέρη τῆς Βιθυνίας καὶ τοῦ Ἑλλησπόντου σεισmicroὸς γενέσθαι καὶ ἄλλας τε πόλεις καmicroεῖν ἰσχυρῶς καὶ πεσεῖν ὁλοσχερῶς καὶ ἐξαιρέτως τὴν Κύζικον καὶ τὸν ἐν αὐτῇ ναὸν microέγιστόν τε καὶ κάλλιστον ναῶν ἁπάντων καταρριφῆναι 315 ldquoQuanto aos terremotos passados e atuais natildeo seraacute demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegamrdquo (Rescrito ao conciacutelio da Aacutesia apud Euseacutebio de Cesareia Hist Ecles IV134) 316 I Apol 41-7
60
reinterpretando o rescrito de Adriano317 Desse modo em exigecircncia mediante o que chama de
ldquosatilde razatildeordquo ele sustenta ser justo que os cristatildeos sejam julgados quando porventura vierem a
cometer alguma falta contra a lei ou por algum delito mas nunca por se chamarem ldquocristatildeosrdquo
Eacute em funccedilatildeo do que representava ser ldquocristatildeordquo que o apologista se dedica a algumas
explicaccedilotildees Em sua anaacutelise era por causa do preconceito das crenccedilas pagatildes dos boatos
maliciosos e ainda por certo impulso irracional por parte dos ldquooutrosrdquo que os cristatildeos eram
ofendidos318 O caso de uma mulher que se divorciou do marido pagatildeo narrado na II Apologia
eacute outro exemplo dos atritos corriqueiros que poderiam chegar aos tribunais Segundo o
apologista ldquotodo aquele que eacute repreendido pelo pai vizinho filho amigo marido ou mulher
por causa de uma falta se volta contra [os cristatildeos] por sua obstinaccedilatildeo no mal por seu amor
ao prazer e por sua impotecircncia para seguir o que eacute bomrdquo319 Aleacutem desse caso emblemaacutetico
acontecido havia pouco tempo na cidade de Roma sob Urbico320 ele acrescenta que tais accedilotildees
tambeacutem eram comuns aos governadores em todo o Impeacuterio e que ldquoem todas as partesrdquo havia
quem estivesse disposto a levar os seguidores de Cristo agrave morte321 Em ambas as Apologias
Justino escreve como quem procura alertar o imperador sobre os abusos cometidos contra os
cristatildeos Devido agrave ausecircncia de uma lei geral contra os fieacuteis as accedilotildees anticristatildes aparecem
como fruto dos distuacuterbios locais que emergiam em resistecircncia agrave nova religiatildeo A I Apologia
parece se referir aos atritos gerais contra os cristatildeos enquanto a segunda comeccedila com um
clamor a partir de um caso especiacutefico ocorrido em Roma sob o prefeito Urbico A II Apologia
daacute sinais de que as disputas de Justino com Crescente na capital imperial levavam o
apologista a prever o seu martiacuterio que soacute viria a acontecer no iniacutecio do governo de Marco
Aureacutelio
Marta Sordi322 assim como Robert M Grant323 identifica trecircs fases na poliacutetica
imperial de Marco Aureacutelio mas as duas uacuteltimas extrapolam o contexto em que se insere
Justino A primeira fase se relaciona ao periacuteodo da corregecircncia entre Marco Aureacutelio e Lucio
Vero de 161 a 169 que corresponde em parte aos uacuteltimos anos de Justino Esta fase revela a
princiacutepio a mesma condiccedilatildeo do governo de Antonino Pio mas pode ter sofrido mudanccedilas no
final da deacutecada
317 I Apol 681-10 318 I Apol 23 319 II 12 320 Quintus Lollius Urbicus havia sido incumbido por Adriano na Guerra Judaica (133-135 dC) governou a Germania Menor (136-138 dC) e a Britania (139-142 dC) e foi prefeito de Roma de 146 a 160 dC (Historiae Augustae 54) 321 II 11-2 322 I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103 323 Five apologists and Marcus Aurelius Vigiliae Christianae V 42 n 1 Mar1988 pp 1-17
61
Algumas fontes cristatildes (Atas do martiacuterio de Justino 58324 Oroacutesio Historiae Adversus
PaganusVII154325) vinculam a intensificaccedilatildeo da perseguiccedilatildeo a um edito sobre sacrifiacutecios
Natildeo se tratava de um decreto diretamente contra os cristatildeos A determinaccedilatildeo exigia sacrifiacutecios
aos deuses por todas as cidades do Impeacuterio nos anos de 166168 e devia estar relacionada aos
temores devido agrave peste agrave guerra na Partia e agrave pressatildeo germacircnica326 Justino foi provavelmente
condenado por se negar a obedecer ao novo decreto mas suas Apologias refletem a situaccedilatildeo
dos cristatildeos sob Antonino Pio
Por meio de uma leitura do seu tempo Justino contemplaraacute em seu discurso os
fundamentos desse tipo de accedilotildees Ele apresenta uma desconstruccedilatildeo da forma de controle que
proporciona agreccedilotildees aos cristatildeos e entatildeo oferece uma concepccedilatildeo cristatilde para fundamentar o
estabelecimento da ordem social
O apologista compotildee uma argumentaccedilatildeo para mostrar que a religiatildeo cristatilde poderia
contribuir para a estabilidade da ordem social no Impeacuterio e oferece uma reflexatildeo sobre os
fundamentos da noccedilatildeo de justiccedila na perspectiva cristatilde Por meio do exame do discurso de
Justino identificam-se dois aspectos da relaccedilatildeo entre religiatildeo e controle social no Impeacuterio
Romano contemplados nas accedilotildees anticristatildes de seu tempo O primeiro eacute representado na sua
anaacutelise da repressatildeo aos cristatildeos em funccedilatildeo da preservaccedilatildeo da ordem e o segundo na sua
proposta de contribuiccedilatildeo dos cristatildeos para a manutenccedilatildeo da ordem
324 ldquoAqueles que natildeo desejarem sacrificarem aos deuses e se submeterem ao decreto imperial satildeo condenados primeiro a serem castigados e depois agrave pena capital conforme a leirdquo (Tr A) kai ei=xai tw| tou auvtokragmati( mastigwqevtej avpacqhtwsan( kefalikhn avpotinnuntej dikhn( kata thn twn nomwn avkoluqian) cf Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995 p152 325 Eo defuncto Marcus Antoninus solus reipublicae praefuit sed in diebus Parthici belli persecutiones Christianorum quarta iam post Neronem uice in Asia et in Gallia graues praecepto eius exstiterunt multique sanctorum martyrio coronati sunt Cf OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889 326 SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011 p 103
62
CAPIacuteTULO III A CRIacuteTICA DE JUSTINO AOS DEUSES E Agrave FORMA ROMANA DE
MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM
Ao escrever suas Apologias em defesa dos cristatildeos e endereccedilaacute-las ao imperador
Justino se posiciona tanto como um profeta da antiga monarquia de Israel quanto como um
filoacutesofo conselheiro que se prontifica a oferecer conselhos ao governante Eacute possiacutevel
estabelecer uma analogia entre essas duas posturas nesse caso pois para esse pensador o
cristianismo ndash que em certo sentido eacute para os cristatildeos o cumprimento das expectativas de
Israel ndash eacute a ldquoverdadeira filosofiardquo327 Eacute a partir dessa sua perspectiva cristatilde que ele analisa a
forma romana de garantir o estabelecimento da ordem no tocante agrave religiatildeo e que manifesta
suas razotildees para se opor agrave religiatildeo pagatilde
Sua construccedilatildeo apologeacutetica contrasta tal forma de controle romana que acaba por
vitimar os cristatildeos agrave contribuiccedilatildeo cristatilde para a ordem social Seus pronunciamentos agraves vezes
satildeo muito diretos aos governantes ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem
e natildeo tenhais a quem castigar coisa que conviria melhor a verdugos do que a priacutencipes
bonsrdquo328 Na verdade o problema central incide sobre as formas de controle sociais
empregadas para a repressatildeo da expansatildeo dessa nova religiatildeo Por isso os argumentos de
Justino tecircm por objetivo combater algumas das principais queixas sobre os cristatildeos e tambeacutem
informar sobre o caraacuteter de suas crenccedilas e estilo de vida
Nessa parte da pesquisa seraacute analisada a forma como o apologista tece suas criacuteticas ao
procedimento romano contra a religiatildeo cristatilde e agrave postura dos cristatildeos diante dessas outras
religiotildees A proposta de Justino sobre os fundamentos cristatildeos para o controle social seraacute
examinada no proacuteximo capiacutetulo Sua interrogaccedilatildeo eacute a mesma que ainda voltou agrave tona no
seacuteculo XX com G E M de Ste Croix329 em 1963 com A N Sherwin-White330 em 1964 e
com o proacuteprio Ste Croix331 em uma treacuteplica ldquoWhy were the Early Christians persecutedrdquo
Segundo GEM de Ste Croix as perseguiccedilotildees aos cristatildeos eram decorrentes
basicamente da recusa desse grupo em reconhecer os deuses de Roma acarretando uma
situaccedilatildeo de suspeitas de sediccedilatildeo e periculosidade social Os deuses tradicionais do panteatildeo
greco-romano eram as divindades principais da religiatildeo puacuteblica de Roma e seus cultos eram
327 II Apol 152 328 I Apol 124 329 Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p6-38 330 Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 1964 pp 23-27 331 Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 p28-33
63
uma necessidade para a manutenccedilatildeo da pax deorum [paz dos deuses]332 A perseguiccedilatildeo se
relacionaria ao sentimento religioso da eacutepoca supersticiosa na qual eles viviam333
A N Sherwin-White334 de modo diverso desviou a tocircnica da perseguiccedilatildeo da questatildeo
da pax deorum e lanccedilou seu olhar agrave contumaacutecia dos cristatildeos em se manterem fieacuteis agraves suas
crenccedilas exclusivistas diante do panteatildeo greco-romano Tal postura teria sido interpretada em
muitos momentos como um desafio agraves autoridades romanas Desse modo atrairiam para si
mesmos acusaccedilotildees e suspeitas em decorrecircncia de sua potencial insubordinaccedilatildeo conforme
pode ser visto nas Cartas de Pliacutenio o Jovem a Trajano335
A treacuteplica de GEM Ste Croix336 natildeo colocou um ponto-final na questatildeo e
incomodou a outros estudiosos contemporacircneos Segundo Paul Veyne as comunidades cristatildes
enfrentaram resistecircncias devido agrave aversatildeo romana ldquoao que era hiacutebrido impuro ambiacuteguordquo337
O fato de o grupo ser ainda pouco conhecido e sustentar a veneraccedilatildeo a um ldquoreirdquo na esperanccedila
de um reino torna a situaccedilatildeo ainda mais complicada Tal hibridez alegada seria notada tendo
em vista que embora possuindo as mesmas categorias de pensamentos dos demais cidadatildeos do
Impeacuterio Romano
os cristatildeos faziam parte do Impeacuterio mas sem os mesmos costumes evitavam conviver com os outros natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo veneravam os deuses nacionais seu Deus natildeo pertencia agrave determinada naccedilatildeo diferente do deus dos judeus Aleacutem de querer se isolar como uma legiacutetima diferenccedila nacional esse Deus pretendia superar os deuses nacionais338
Nesse sentido as perseguiccedilotildees teriam sido causadas pela rejeiccedilatildeo a algo pouco
definido anormal capaz de produzir inseguranccedilas e exigir uma medida cautelar E para
justificar as accedilotildees persecutoacuterias os romanos lanccedilavam matildeo de argumentos tradicionais como
o respeito ao mos maiorum [os costumes ancestrais] e o respeito agrave unidade religiosa e moral
da coletividade
Mesmo apresentando explicaccedilotildees diferentes sobre as perseguiccedilotildees as consideraccedilotildees
de Sherwin-White Ste Croix e Paul Veyne natildeo satildeo completamente opostas Se por um lado
observamos a posiccedilatildeo obstinada dos cristatildeos em manter a sua religiatildeo a ponto de se tornar
332 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 1963 p 24 333 Ibid 1963 pp 29-31 Cf DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963 334 SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n 27 1964 pp 25 335 Pliacutenio Segundo Cartas X 96-97 336 De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted ndash A Rejoinder Past and Present n27 1964 pp 28-33 337 VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 338 Ibid p 246
64
uma desobediecircncia contra as autoridades imperiais por outro a religiatildeo romana se baseava na
manutenccedilatildeo do equiliacutebrio das relaccedilotildees entre o Impeacuterio Romano e os deuses tradicionais
Essas explicaccedilotildees decorrem de uma anaacutelise geral das accedilotildees anticristatildes do I ao IV
seacuteculo Um exame mais localizado ndash e em niacuteveis menos oficiais ndash poderia multiplicar as
razotildees pelas quais os cristatildeos foram perseguidos ou chamar a atenccedilatildeo para o fator psicoloacutegico
desses atritos religiosos Essa pesquisa no entanto limitar-se aos aspectos que possibilitem
uma leitura das accedilotildees anticristatildes a partir das Apologias de Justino
O apologista tambeacutem se propotildee a responder a esta questatildeo ldquoPor que os cristatildeos satildeo
perseguidosrdquo Sua leitura teoloacutegica da histoacuteria procura chegar agrave causa uacuteltima motivadora das
accedilotildees anticristatildes desenvolvendo uma trama apologeacutetica que relaciona controle social e
religiatildeo Para compreender suas formulaccedilotildees conveacutem analisar esse conceito chave
ldquoControle socialrdquo pode ser definido como ldquoo conjunto dos recursos materiais e
simboacutelicos que uma sociedade dispotildee para assegurar a conformidade do comportamento de
seus membros a um conjunto de regras e princiacutepios prescritos e sancionadosrdquo339 O termo de
modo geral eacute frequentemente usado para se referir a alguma forma de reaccedilatildeo organizada ao
comportamento pervertido Essa abordagem eacute baseada o trabalho de Stan Cohen que definiu
controle social como ldquorespostas organizadas ao crime delinquecircncia e formas aliadas de
perversatildeo eou comportamento socialmente problemaacutetico os quais satildeo atualmente concebidos
se no reativo sentido (depois do putativo ato ter tomado espaccedilo ou o ator ter sido identificado)
ou no proativo sentido (para prever os atos)rdquo340
A definiccedilatildeo usada por Donald Black341 eacute muito semelhante Ele assinalou que
ldquocontrole social eacute o aspecto normativo da vida social ou a definiccedilatildeo de comportamento
pervertido e a resposta a ele tal como proibiccedilotildees acusaccedilotildees puniccedilotildees e compensaccedilatildeordquo
Segundo esta afirmaccedilatildeo controle social se refere aos mecanismos determinantes usados para
regular a conduta das pessoas que satildeo vistas como pervertidas criminosas preocupantes ou
problemaacuteticas em algum sentido para os outros Todo tempo os sentidos nos quais diferentes
culturas entendem e respondem a diferentes formas de mudanccedilas e ajustes de comportamentos
problemaacuteticos
A causa desses problemas pode ser atribuiacuteda agrave criminalidade perversatildeo imoralidade
maldade perversidade ou alguma combinaccedilatildeo desses Similarmente os mecanismos
empregados para alcanccedilar o controle podem incluir formas variadas de puniccedilatildeo tratamento
339 BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101 340 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 p 3 341 BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press 1976 pp 1-2
65
dissuasatildeo segregaccedilatildeo ou prevenccedilatildeo342 Desse modo se a combinaccedilatildeo de fatores eacute usada para
compreender e reatar o problema o objetivo eacute promulgar o controle sobre o comportamento
que eacute visto como pervertido em algum sentido
A complexidade do tema se manifesta ainda quando R Meier343 considera que
controle social pode ser encontrado em trecircs principais contextos a) como uma descriccedilatildeo da
condiccedilatildeo ou processo social baacutesico ndash definiccedilatildeo dominante na teoria socioloacutegica claacutessica ndash b)
como um mecanismo para assegurar o cumprimento das normas e c) como um meacutetodo pelo
qual estudar (ou interpretar dados sobre) a ordem social Cohen retoma Joseph Rouceck344
que escreveu em 1947 entendendo controle social como ldquoum termo coletivo para aqueles
processos planejados ou natildeo planejados pelos quais indiviacuteduos satildeo ensinados ou compelidos
a conformar os usos e valores vitais dos gruposrdquo E A Horwitz345 que considerava que o
ldquocontrole social emerge da vida e das praacuteticas sociais e serve para manter o sentido da vida e
das praacuteticas sociais dos gruposrdquo Muitos diriam que tal descriccedilatildeo se aproxima mais dos
processos de socializaccedilatildeo E natildeo eacute preciso ir muito longe para perceber que os dilemas desse
conceito podem vir a ser complexos Tatildeo logo manifesta-se a necessidade de estabeler os
limites desse termo de modo que natildeo seja tatildeo limitado e que tambeacutem natildeo seja tatildeo amplo a
ponto de natildeo ser reconhecido
Segundo a anaacutelise de Martin Innes346 a definiccedilatildeo de Cohen permanece muito flexiacutevel
para mostrar a promulgaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social pelo Estado ou por agentes
profissionais autocircnomos tais como funcionaacuterios de corporaccedilotildees privadas e psiquiatras As
pessoas tendem a usar outros meios antes de recorrer ao aparato formal estabelecido de
controle social subcolocados como satildeo pela lei Mais conflitos satildeo resolvidos sem recursos da
lei ou controle social formal Uma soluccedilatildeo eacute frequentemente negociada ou a perversatildeo
tolerada e a imposiccedilatildeo do controle social tende a ser uma funccedilatildeo de elevada distacircncia
relacional Por isso a extensatildeo do desempenho do controle social atinge tambeacutem um caraacuteter
informal na sociedade
A definiccedilatildeo de controle social como uma resposta organizada a comportamentos
pervertidos natildeo eacute consensual Mas na busca por uma definiccedilatildeo que se adapte aos objetivos
desse trabalho seratildeo levadas em consideraccedilatildeo as proposiccedilotildees de Martin Innes347 Ele sintetiza
342 COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985 passim 343 MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology 1982 8 pp 35ndash55 344 Social Control Westport CT Greenwood Press 1970 p 3 345 The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990 p 5 346 Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003 p 5 347 Ibid
66
os aspectos da definiccedilatildeo de Cohen em uma abordagem revisionista Seu argumento eacute que
controle social pode ser pensado como um conceito-mestre composto de uma raiz de
diferentes modos de controle e tecnologias
Para estabelecer os limites desse conceito de controle social tambeacutem eacute necessaacuterio
estabelecer conceitos paacutereos como ldquoordem socialrdquo Segundo Erwin Goffman348 as relaccedilotildees
regulares entre as pessoas os variados padrotildees de funcionamento variadamente motivados
de comportamento as rotinas associadas com regras baacutesicas juntos constituem o que pode ser
chamada de uma ldquoordem socialrdquo
Baseando-se nesta definiccedilatildeo pode-se distinguir entre o significado de ordem social e
controle social A promulgaccedilatildeo de controle social eacute frequentemente destinada a proteger a
ordem social mas ordem social natildeo eacute unicamente produto de controles sociais Ao contraacuterio
o conceito de ordem social se refere agraves condiccedilotildees de existecircncia de uma sociedade De fato
toda sociedade tem intrinsecamente um grau de organizaccedilatildeo e entatildeo uma ordem social Uma
ordem social natildeo eacute estaacutetica estaacute constantemente em processo sendo produzida e reproduzida
pela combinaccedilatildeo de atitudes valores praacuteticas instituiccedilotildees e accedilotildees de seus membros
Entatildeo a ordem social eacute composta de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees
as quais de alguma forma contribuem para a constituiccedilatildeo em curso da organizaccedilatildeo social As
fronteiras entre as praacuteticas de organizaccedilatildeo social e controles sociais natildeo satildeo fixas nem
estaacuteveis e ao longo do tempo mudam de equiliacutebrio Pois se ordem social se refere ao estado
da sociedade e ao arranjo organizado de seu essencial conhecimento valores accedilotildees
instituiccedilotildees e estabelecimentos controle social se refere aos processos pelos quais se busca
gerir desvios ou conflitos com a ordem social Essas formas de gerenciamento podem ser
formais ou seja institucionalizadas ou informais
Controle social formal se refere a alguma ocasiatildeo onde a imposiccedilatildeo do controle eacute
baseada sobre ou informada por a presenccedila da lei Outras atividades de controle podem ser
definidas como tipo informal349 Dentre essas formas de controle tambeacutem eacute possiacutevel distinguir
os modos reativos e os proativos O primeiro tipo eacute aquele usado para responder algumas
coisas depois que elas tecircm tomado espaccedilo O segundo envolve o caacutelculo da probabilidade de
um ato ocorrer no mesmo ponto no futuro e a manufatura de alguma forma de intervenccedilatildeo em
antecipaccedilatildeo deste Essa eacute uma forma preditiva de controle Tambeacutem eacute possiacutevel distinguir entre
formas de controle social ldquoverticalrdquo para falar sobre o poder diferencial que frequentemente
existe entre controladores e os controlados Controle social para baixo eacute mais comum
348 GOFFMAN E Relations in Public New York Basic Books 1971 p x 349 Cf BLACK D The Behaviour of Law New York Academic Press passim
67
envolvendo alguns com mais poder ou autoridade de regulaccedilatildeo do comportamento de
indiviacuteduos ou grupos menores Contudo o controle social tambeacutem pode ser ldquoupwardsrdquo [para
cima] envolvendo os menos poderosos moldando o comportamento de indiviacuteduos ou grupos
mais poderosos
Eacute numa perspectiva ldquode baixo para cimardquo que Justino questiona a forma de controle
empreendida pelos governantes romanos quando agem contra os cristatildeos Essa perspectiva
contempla as condiccedilotildees do grupo minoritaacuterio daqueles que satildeo considerados adeptos de uma
superstito digna de ser combatida por aqueles que detecircm os meios de controle e dessa forma
eacute produzido um instrumento de controle que busca ldquoconvencerrdquo e intimidar as autoridades e a
todos os demias a natildeo se oporem aos cristatildeos Embora reconheccedila que os governantes satildeo
constituiacutedos por Deus eacute aquilo que ele chama de ldquoreta razatildeordquo que lhe daacute o direito de se
pronunciar350 As autoridades romanas soacute satildeo buscadas porque os conflitos cotidianos quanto
agraves diferenccedilas religiosas produziram atritos e inquietaccedilotildees que abriram margem para que os
romanos aplicassem coaccedilotildees ldquoformaisrdquo Ao questionar a intervenccedilatildeo imperial para a
manutenccedilatildeo da ordem o apologista revela refugiar-se em um padratildeo de justiccedila distinto
daquele dos romanos Em seus escritos ele tambeacutem manifesta uma perspectiva cristatilde da
ordem que seraacute analisada no proacuteximo capiacutetulo
Para se compreender as proposiccedilotildees de Justino seratildeo examinados os seguintes
aspectos a criacutetica aos governantes no processo de manutenccedilatildeo da ordem no tocante aos
cristatildeos as diferenccedilas entre os cristatildeos e as outras religiotildees e sua criacutetica sobre as leis e a
moralidade
31 A postura dos governantes na manutenccedilatildeo da ordem
Na I Apologia logo apoacutes o exoacuterdio Justino procura justificar suas razotildees agraves
autoridades agraves quais se refere em peticcedilatildeo Ele escreve que
todo homem sensato manifestaraacute que a melhor exigecircncia ou ainda mais que a uacutenica exigecircncia justa eacute que os suacuteditos possam apresentar uma vida e um pensar irrepreensiacuteveis e que por outro lado igualmente os mandantes deem sua sentenccedila
350 ldquoA razatildeo exige dos que satildeo verdadeiramente piedosos e filoacutesofos que desprezando as opiniotildees dos antigos se estas satildeo maacutes estimem e amem apenas a verdade De fato o raciociacutenio sensato natildeo soacute exige que se abandonem aos que realizaram e ensinaram algo injustamente mas tambeacutem que o amante da verdade de todos os modos e acima da proacutepria vida mesmo que seja ameaccedilado de morte deve estar sempre decidido a dizer e praticar a justiccedilardquo (I Apol 12)
68
natildeo levados pela violecircncia e tirania mas segundo a piedade e a filosofia Soacute assim governantes e governados podem gozar de felicidade351
O bom procedimento dos suacuteditos conjugado agrave postura iacutentegra de justiccedila daqueles que
tecircm autoridade aparece como condiccedilatildeo para que ldquogovernantesrdquo e ldquogovernadosrdquo desfrutem da
felicidade O que mais chama atenccedilatildeo eacute a seguinte expressatildeo ldquoem algum lugar um dos
antigos disse lsquoSe os governantes e os governados natildeo forem filoacutesofos natildeo eacute possiacutevel os
Estados prosperaremrsquordquo352 Tanto Munier353 quanto Minns e Parvis354 identificam esse trecho
como uma citaccedilatildeo de Platatildeo (Repuacuteblica V 473) Na obra de Platatildeo fica claro o apontamento
da necessidade de que os governantes adiram ao cultivo da sabedoria numa junccedilatildeo de
δύναmicroίς τε πολιτικὴ καὶ φιλοσοφία [poder poliacutetico e filosofia] para que natildeo haja problemas
sociais
Justino ressignifica o conceito de ldquofilosofiardquo a partir da sua experiecircncia cristatilde Desse
modo aqueles que satildeo ldquopiedosos e filoacutesofosrdquo como satildeo chamados o imperador e seus filhos
deveriam julgar com retidatildeo para que todos gozem de bem estar
Haacute vaacuterias hipoacuteteses para justificar o tiacutetulo ldquoPiordquo de Antonino Uma hipoacutetese eacute que esse
nome lhe fora dado por ter defendido a deificaccedilatildeo dedicaccedilatildeo de um templo e concessatildeo de
inuacutemeras honras a Adriano Outras hipoacuteteses levam em conta seu caraacuteter e sua maneira de
ser355 ldquoVerissimusrdquo356 era uma denominaccedilatildeo de Marco Annio Vero que viria a ser o
Imperador Ceacutesar Marco Aureacutelio Antonino Augusto O modo como esse apelido eacute empregado
no texto indica provavelmente uma estrateacutegia retoacuterica de Justino Marco era
reconhecidamente chamado de ldquofiloacutesofordquo357 Seus proacuteprios escritos eliminam qualquer
indagaccedilatildeo Poreacutem quando Luacutecio eacute chamado de ldquofiloacutesofordquo isso pode soar estranho Mas antes
de se rejeitar esse tiacutetulo eacute mais prudente tentar compreender se existe uma ligaccedilatildeo isotoacutepica
com a estrutura do texto Se os tiacutetulos ldquoPiordquo e ldquofiloacutesofordquo respectivamente de Antonino e de
Marco Aureacutelio apresentam um forte viacutenculo com a construccedilatildeo do cerne da obra haacute boa razatildeo 351 I Apol 32 Cf Kalhn de kai monhn dikaian proltsgtklhsin tauthn paj o` swfronwn avpofaneitai( to touj avrcomenouj thn euvqunhn tou eautwn biou kai logou alhpton parecein( o`moiwj drsquoauv kai touj arxontaj mh bia| mhde turannidi( avllrsquo euvsebeia| kai filosofia| avkolouqountaj thn yhfon tiqesqai ou[twj gar avrcontej kai oi` avrcomenoi avpolauoien tou avgaqou) MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 352 I Apol 33 Cf An mh oi` arcontej filosofhswsi [kai oi` avrcomenoi]( ouvk av eih taj poleij euvdaimonhsai) Cf MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 35 353 MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p 172 354 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 85 355 Hist Aug Antoninus Pius 21-10 356 Ele foi carinhosamente chamado ldquoVeriacutessimordquo [Ouvrissiacutemon] como apontou Cassius Dio (Hist Rom 69212) e como aparece tambeacutem na Hist Aug I41 357 Hist Aug Marcus Aurelius 15-9
69
para buscar uma hipoacutetese que aluda agrave possiacutevel relaccedilatildeo do tiacutetulo de Luacutecio com o restante do
texto
Luacutecio foi adotado por Antonino ao mesmo tempo em que Marco e se tornou Luacutecio
Aeacutelio Aureacutelio Commodo Com a morte de seu pai adotivo recebeu o tiacutetulo de Imperador
Ceacutesar como esse seu irmatildeo mas a dimensatildeo do seu poder eacute amplamente questionada Minns e
Parvis358 consideram que nos tempos de sua ldquosaiacutedardquo para as regiotildees do Impeacuterio em 153 ou
154 poderia ser mais prudente incluiacute-lo entre os destinataacuterios Ele eacute chamado de ldquofiloacutesofo
[filosofw|] filho natural de Ceacutesarrdquo no MS A e de filosofou kaisaroj fush| ui`w| [Filho
natural do filoacutesofo Ceacutesar] por Euseacutebio359 Esse tiacutetulo natildeo poderia ser atribuiacutedo ao pai
bioloacutegico de Luacutecio Segundo os registros da Historia Augusta seu pai Luacutecio Aeacutelio Vero
recebeu realmente o tiacutetulo de Ceacutesar do Imperador Adriano mas morreu sem chegar ao posto
elevado Por outro lado haacute evidecircncias suficientes para Justino chamar a Luacutecio filho natural
de Ceacutesar e filho de Pio por adoccedilatildeo de ldquoamante do saberrdquo o que equivaleria a dizer que tinha
uma formaccedilatildeo baacutesica
O tiacutetulo ldquofiloacutesofordquo natildeo se referia a apenas um exiacutemio pensador O filoacutesofo podia ser
algueacutem que se dedicava aos assuntos filosoacuteficos que frequentava alguma escola ou grupo de
discussatildeo ou algueacutem de reconhecido destaque intelectual podendo ser considerado ateacute um
embaixador em assuntos poliacuteticos360 Luacutecio poreacutem natildeo apresentou dons naturais para os
estudos literaacuterios Compocircs versos e oraccedilotildees mas suas habilidades poeacuteticas eram muito
limitadas Haacute quem diga que ele foi ajudado pela inteligecircncia de seus amigos e que muitas das
coisas creditadas a ele foram escritas por outros361 A despeito de Luacutecio ser ndash ou natildeo ndash
reconhecidamente um filoacutesofo essa denominaccedilatildeo podia render uma associaccedilatildeo desses nomes
ao cultivo do saber em geral e da piedade Se por outro lado o tiacutetulo de filoacutesofo viesse a ser
improacuteprio comparado agrave pertinecircncia da forma como Marco Aureacutelio eacute chamado abre-se espaccedilo
para uma nova hipoacutetese Seria esta uma estrateacutegia para chamar a atenccedilatildeo para as proacuteximas
colocaccedilotildees quando o apologista destaca aqueles que dizem ser filoacutesofos e natildeo o satildeo Mais do
que isso o apologista precisa de um elemento que viabilize a abertura de um espaccedilo textual
para a apresentaccedilatildeo do que ele considera ldquoa verdadeira filosofiardquo isto eacute o cristianismo
358 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 38-39 359 Hist Ecle IV121ss 360 DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940 361 Hist Aug Lucius Verus 21ss
70
Justino conheceu vaacuterias correntes filosoacuteficas Uma variedade de escolas poderia ser
encontrada pelo Impeacuterio Euseacutebio362 o chamou de ldquoamante da verdadeira filosofiardquo No
Diaacutelogo com Trifatildeo363 a filosofia eacute por ele reconhecida como ldquoo maior e mais precioso bem
diante de Deus para o qual somente ela conduz e nos associardquo Esses ensinamentos satildeo
considerados ldquosuperiores a toda filosofia humanardquo364 e reconhecidos como ldquoa filosofia segura
e proveitosardquo365 Dessa forma o pensamento cristatildeo eacute revestido de uma aacuteurea de
superioridade capaz de fundamentar sua teoria e sua criacutetica ao modo romano de repelir os
fieacuteis
Em sua leitura teoloacutegica da histoacuteria e dos problemas religiosos do seu tempo o
apologista procura a razatildeo uacuteltima que fundamenta a accedilatildeo humana para aquilo que eacute ldquobomrdquo e
para as accedilotildees de oposiccedilatildeo agrave feacute Eacute trabalhoso encontrar uma definiccedilatildeo para o que eacute ser ldquobomrdquo
segundo seu modo de pensar Sabe-se poreacutem que os cristatildeos satildeo tidos como os que buscam
aquilo que eacute ldquobomrdquo e que por isso natildeo haacute nenhuma razatildeo para persegui-los Aquilo que eacute
ldquobomrdquo pode ser experimentado de forma parcial por aqueles que natildeo satildeo cristatildeos mas essa
experiecircncia deriva de uma mesma fonte coacutesmica da ldquobondaderdquo Por isso ele sustenta que tudo
o que pode ser chamado ldquobomrdquo entre os filoacutesofos e legisladores elaborado por eles mediante
a investigaccedilatildeo e a instituiccedilatildeo foi comunicado pela parcela do Logos que lhes coube De outro
modo Justino afirma que por natildeo conhecerem plenamente o Logos que eacute Cristo eles
frequentemente se contradizem Em seu ponto de vista outrora muitos pensadores que
tentaram investigar e demonstrar as coisas por meio dessa ldquorazatildeordquo tambeacutem foram levados ao
tribunal como Soacutecrates
Em oposiccedilatildeo ao que eacute ldquobomrdquo uma forccedila oposta aparece como a propiciadora do
engano Eacute esse o elemento uacuteltimo responsaacutevel pelo desvirtuamento da sintonia com aquilo
que eacute ldquobomrdquo e que promove as accedilotildees ldquoinjustasrdquo das autoridades Ele escreve ldquoVoacutes poreacutem
natildeo examinais nossos juiacutezos mas movidos de paixatildeo irracional e aguilhoados por democircnios
perversos nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por issordquo366
Segundo sua teoria satildeo os democircnios os uacuteltimos responsaacuteveis por espalhar a ignoracircncia e
mover as autoridades contra os cristatildeos
Sob essa perspectiva ele destaca a transparecircncia cristatilde e a disposiccedilatildeo paciacutefica desse
grupo diante da autoridade imperial ao dever dos governantes
362 Hist Ecles IV83 363 Diaacutelogo com Trifatildeo 21 364 II Apol 153 365 Diaacutelogo com Trifatildeo 81 366 I Apol 51
71
Cabe a noacutes portanto expor ao exame de todos a nossa vida e os nossos ensinamentos para que natildeo nos tornemos responsaacuteveis pelo castigo daqueles que ignorando a nossa religiatildeo pecam por cegueira contra noacutes Contudo o vosso dever eacute tambeacutem ouvir-nos e mostrar-vos bons juiacutezes Com efeito daqui para frente informados como estais caso natildeo ajais com justiccedila natildeo tereis nenhuma desculpa diante de Deus367
A lealdade dos cristatildeos natildeo era algo evidente e por isso eacute uma das principais
preocupaccedilotildees do apologista ratificaacute-la Justino assinala que havia suposiccedilotildees inclusive de
que os cristatildeos arquitetavam algum tipo de irrupccedilatildeo de outro ldquoreinordquo quando de fato falavam
do ldquoreino de Deusrdquo em todos os seus aspectos espirituais (I Apol 111) A nova religiatildeo jaacute se
espalhava pelo Impeacuterio havia um seacuteculo mas eacute provaacutevel que natildeo tivesse alcanccedilado um
nuacutemero expressivo de fieacuteis Aleacutem disso ainda natildeo existia uma estrutura eclesiaacutestica bem
formada O marcionistas os valentinianos e outros grupos tornavam a questatildeo da identidade
cristatilde um assunto das apologias justinianas e de outros escritores e pregadores que pretendiam
definir quem eram os ldquocristatildeosrdquo
32 A condenaccedilatildeo aos deuses pagatildeos e a estigmatizaccedilatildeo do nomen christianus
Na verdade o exclusivismo caracteriacutestico do monoteiacutesmo cristatildeo contrastava com a
religiatildeo puacuteblica do Impeacuterio As accedilotildees importantes do Estado sempre envolviam rituais
sagrados Comemoraccedilotildees de vitoacuterias e triunfos do exeacutercito normalmente culminavam em
procissotildees e sacrifiacutecios E a proacutepria estabilidade social dependia de uma barganha feita com
os deuses para a manutenccedilatildeo da paz368
Os variados rituais produziam interaccedilotildees entre deuses e homens na religiatildeo romana
Por meio deles eram marcados todos os eventos puacuteblicos e celebraccedilotildees que envolviam
festivais anuais os juramentos ou aniversaacuterios das fundaccedilotildees de templos Tambeacutem podiam
estar relacionados aos jogos ou agraves performances dramaacuteticas que tinham elementos rituais em
seu programa ainda que incluiacutessem o entretenimento entre seus propoacutesitos Os jogos jamais
perderam seu aspecto ritual Cria-se que nessas ocasiotildees os deuses desciam para assisti-los e
entatildeo eram realizados rituais religiosos inclusive representados perfeitamente para que a
cerimocircnia fosse bem sucedida De modo geral tambeacutem os sacrifiacutecios eram feitos estritamente
367 I Apol 34 368 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1988 pp 32-35
72
segundo regras e tradiccedilotildees que necessariamente tinham de ser respeitadas369 Os prodiacutegios
envolviam quase todos os grupos de influecircncia nas decisotildees estatais ndash os coleacutegios sacerdotais
o senado os magistrados e ocasionalmente o povo nas comitia370
A criaccedilatildeo de novos lugares sagrados sejam templos propriamente ditos ou santuaacuterios
com um altar era tema de interesse puacuteblico e conflito potencial371 Alguns templos eram fruto
de promessas de generais em batalhas Com o tempo expandiram-se pelo espaccedilo urbano
representando uma imagem visiacutevel do domiacutenio romano sobre o Mediterracircneo e assinalando a
contribuiccedilatildeo de novos e antigos deuses em cada estaacutegio dessa conquista
Os rituais religiosos estavam intimamente ligados agraves demais atividades de guerra e
paz Desse modo a aprovaccedilatildeo de uma lei ou a eleiccedilatildeo de magistrado eram atos que envolviam
a tomada dos augures responsaacuteveis pelo sistema especial de regras que os controlavam o ius
augurale372 Os limites dessa religiosidade natildeo satildeo muito bem definidos Mas tanto o povo
quanto os magistrados demonstravam respeito pelas obrigaccedilotildees religiosas
A religiatildeo e os deuses estavam entre os fatores importantes na determinaccedilatildeo dos
eventos e na garantia de suas reivindicaccedilotildees de autoridade e comando dos agentes puacuteblicos
romanos Era tambeacutem uma das expressotildees da ideologia da elite romana e da manutenccedilatildeo do
poder E ainda como escreve Claudia B Rosa
ao mesmo tempo eram os rituais que garantiam as relaccedilotildees entre dois grupos homens e deuses Garantir os ritos representava a certeza da manutenccedilatildeo da sociedade como a queriam ordenada e segura Ao registrar as regras de comportamento como o respeito aos deuses sobretudo em seus espaccedilos ao curvar-se sob a autoridade dos rituais o cidadatildeo garantia a ordem social e a pax deorum e as praacuteticas que acarretavam a transgressatildeo agrave ordem vigente podiam levar a sociedade ao caos e agrave desagregaccedilatildeo A concoacuterdia entre homens e deuses eacute a garantia da ordem romana373
No I seacuteculo aC Augusto se tornou membro de todos os coleacutegios sacerdotais
assumindo o papel de pontifex maximus liderando os demais sacerdotes Se esta interpretaccedilatildeo
for correta ela representa a nova e revolucionaacuteria ordem religiosa do periacuteodo imperial e todos
os seus sucessores foram tambeacutem pontifices maximus ateacute o seacuteculo IV aC Desde entatildeo o
imperador se via responsaacutevel pela construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de templos O poder religioso e o
poder poliacutetico se assentaram sobre um mesmo indiviacuteduo no novo regime do Impeacuterio374
369 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141 370 Assembleia dos cidadatildeos romanos 371 ROSA Claudia Beltratildeo Op cit p 144 Ciacutecero indica duas ocasiotildees em que tentativas de dedicaccedilotildees foram canceladas pelos pontiacutefices porque natildeo haviam sido aprovadas pelos comitia (De domo sua 136) 372 LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 1986 pp 2146-312 373 ROSA C B Op cit p 145-146 374 Ibid p 147
73
Conforme escreveu Paul Veyne375 ldquoO Estado com certeza exercia sua autoridade sobre os
cidadatildeos que lhe deviam tudo Mas mesmo assim apenas em circunstacircncias excepcionais
um decreto obrigaria cada cidadatildeo a tomar parte numa cerimocircnia puacuteblica []rdquo Devia-se no
entanto zelar pela pax deorum para a prosperidade e seguranccedila no Impeacuterio376
Natildeo havia uma ldquodependecircnciardquo humana em ralaccedilatildeo aos deuses o que existia era o
reconhecimento da superioridade daqueles seres que viviam entre os humanos Esse
reconhecimento cuacuteltico piedoso estava relacionado agrave barganha Esperava-se conhecer o
futuro escapar do perigo obter boas colheitas ter boa sauacutede sem que isso significasse que os
deuses estariam agrave disposiccedilatildeo a todo instante377
As accedilotildees de Augusto podem evidenciar uma estreita conexatildeo com episoacutedios de
restauraccedilatildeo e especialmente com as recorrentes observaccedilotildees de que as tradiccedilotildees ancestrais
estavam sendo perdidas ou abandonadas O ldquoculto imperialrdquo passa a representar uma novidade
no iniacutecio do Impeacuterio Se os apelos agrave restauraccedilatildeo das crenccedilas e tradiccedilotildees eram presentes nos
discursos natildeo se pode falar em uma nova forccedila religiosa ou uma nova religiatildeo no periacuteodo
imperial
Essas praacuteticas religiosas proporcionaram choques com judeus e depois com os
cristatildeos Sendo monoteiacutestas era impossiacutevel aceitar a inclusatildeo de deuses e cultos Os judeus
sacrificavam em prol do imperador e natildeo para o imperador jaacute os cristatildeos recusavam-se a
participar de qualquer sacrifiacutecio Considerando que os altares ao imperador eram colocados
muito proacuteximos ao tribunal do magistrado que ouvia os seus casos pode-se pensar que tal
sacrifiacutecio ao chefe do Impeacuterio era mais simboacutelico do que de adoraccedilatildeo e funcionava como sinal
de lealdade a Roma378 Secircneca em sua Apocolocyntosis do Divino Claacuteudio escrita
provavelmente no iniacutecio do reinado de Nero apresenta conotaccedilotildees negativas a respeito da
deificaccedilatildeo dos governantes em geral o que indica que existiam aqueles que natildeo viam com
bons olhos o processo de deificaccedilatildeo do governante Mas para a populaccedilatildeo geral do Impeacuterio
natildeo havia problemas em aceitar que o imperador pudesse ser tratado como um deus
A partir da sua expansatildeo e domiacutenio por um vasto territoacuterio o poder romano teve que
lidar com os problemas de integraccedilatildeo das regiotildees conquistadas Conforme tem destacado
375 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 244 376 COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008 p 15 377 MACMULLEN Ramsay Christianizatin the roman empire (AD 100-400) New Haven Yale University Press 1984 p 13 378 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 150
74
Claudia M Beltratildeo379 o mapa da peniacutensula Itaacutelica o Oriente Proacuteximo o norte da Aacutefrica e
Europa conformam uma rede que se aglutina em torno de Roma constituindo um espaccedilo
dinacircmico de interconexatildeo espaccedilo no qual se daratildeo variados modos de relaccedilatildeo Essa complexa
relaccedilatildeo exigia tambeacutem uma forma de lidar com os cultos estrangeiros
A cultura romana tornou-se sinteacutetica e sintetizante e relativamente favoraacutevel agrave
incorporaccedilatildeo de cultos estrangeiros Roma natildeo apenas se tornou o centro poliacutetico do mundo
por ela construiacutedo como tambeacutem passou a abrigar o nuacutecleo das religiotildees Segundo a anaacutelise
de Ceciacutelia Ames380 o caraacuteter sinteacutetico da religiatildeo romana que combina rito paacutetrio rito grego
e disciplina etrusca facilitou aos romanos a integraccedilatildeo de cultos estrangeiros e a difusatildeo de
seu proacuteprio sistema nos territoacuterios constituindo-se em um elemento chave na relaccedilatildeo destes
espaccedilos interconectados Sua toleracircncia e flexibilidade no entanto tambeacutem incluiacuteam
mecanismos para regular o fluxo de ideias e praacuteticas estrangeiras381 O senado era o oacutergatildeo
responsaacutevel por velar e vigiar da tradiccedilatildeo e da religiatildeo A necessidade de controle cresce junto
com a expansatildeo dos domiacutenios de Roma
Dentro da sua anaacutelise Justino se incomoda com o fato de que no meio de um universo
tatildeo vasto de culturas que se encontram no Impeacuterio Romano os cristatildeos sejam muitas vezes
odiados e levados agrave morte Para o apologista essa eacute mais uma evidecircncia da ignoracircncia
disseminada pelos maus democircnios que faz com que de algum modo as crenccedilas cristatildes sejam
tachadas de irracionais Enquanto isso ldquoalguns cultuam aacutervores rios382 ratos gatos
crocodilos e uma multidatildeo de animais irracionaisrdquo de modo que todos satildeo iacutempios entre si por
natildeo terem a mesma religiatildeo (I Apol 241) O apologista na verdade aponta aquilo que
considera ser uma incoerecircncia nessa estrutura intercultural
Estaacute evidente que sua anaacutelise eacute dependente da sua loacutegica cristatilde mas Luciano de
Samosata tambeacutem apontava no seacuteculo II dC a ldquoconfusatildeordquo causada pelas diferentes opiniotildees
sobre os Deuses383 Plutarco um pouco antes anotara que a adoraccedilatildeo a diferentes formas de
379 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 151 380 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 pp 341-356 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 p 342 381 Cf MACMULLEN R Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 382 Sextus Empiricus cita a afirmaccedilatildeo de Prodicus de que ldquoos antigos tinham como deus o sol a lua os rios e as primaveras [] assim como os Egiacutepicios deificavam o Nilordquo (Adversus Dogmaticos I18) apud MINNS PARVIS Op cit p 143 383 Juppiter Tragoedus 42
75
animais causava disputas entre seus adoradores384 Juvenal385 tambeacutem menciona que a
contenda se instalava na vizinhanccedila egiacutepcia quando um odiava o deus do outro e sustentava
que somente o seu deus predileto era o deus verdadeiro Essas diferenccedilas poderiam causar
ainda deboches sobre os deuses alheios entre os diferentes povos no Impeacuterio assim como
Clemente de Alexandria diz que os gregos faziam aos deuses e as crenccedilas egiacutepcias386 A
estranheza dos deuses dos outros povos tambeacutem chamou a atenccedilatildeo de Ciacutecero que indagava
Se existem divindades agraves quais adoramos e consideramos como tais por que natildeo Serapis e Isis localizadas no mesmo ranque E se eles satildeo admitidos que razatildeo temos noacutes para rejeitar os deuses dos baacuterbaros Entatildeo noacutes devemos deificar bois cavalos iacutebis gaviotildees viacuteboras crocodilos peixes cachorros lobos gatos e muitas outras bestas Se noacutes vamos de volta agraves fontes destas supersticcedilotildees devemos igualmente condenar todas as divindades das quais eles procedem [] Se vocecircs natildeo deificarem a um bem como o outro o que seraacute de Ino Pois todos esses deuses tem a mesma origem387
Diante desse universo de pensamentos e crenccedilas distintos os romanos tinham o
desafio de conceber formas para garantir a integraccedilatildeo desses grupos Justino acentua que
diante dessa variedade de ideias somente os cristatildeos satildeo perseguidos e vecirc nisso mais uma
evidecircncia de que as accedilotildees anticristatildes satildeo arquitetadas pelos maus democircnios Mas os cristatildeos
natildeo haviam sido os uacutenicos a serem cerceados pelas autoridades romanas
Nos anos 180 aC o culto a Baco despertou suspeitas e passou a ser tratado como uma
ameaccedila agrave ordem Infelizmente as fontes sobre essa questatildeo se resumem a um decreto do
Senado388 regulando o culto e um longo relato de Tito Liacutevio389
Natildeo eacute uma tarefa simples determinar qual foi o epicentro do problema Talvez natildeo se
referisse a uma crise religiosa propriamente dita representando um caso de accedilatildeo policial
contra uma conspiraccedilatildeo Mas o decreto do Senado preservado numa placa de bronze
endereccedilado a uma das cidades aliadas indica uma preocupaccedilatildeo em inviabilizar possiacuteveis
agrupamentos potencialmente conspiratoacuterios Proibia-se aos grupos ter liacutederes ou sacerdotes
masculinos tesouro juramentos ou fieacuteis Ele tambeacutem restringia o tamanho desses
aglomerados e a estrutura de seus membros390 De algum modo a organizaccedilatildeo dos baacutequicos
deve ter ameaccedilado aos romanos tambeacutem por trazer uma nova e perigosa forma de poder
384 De Iside et Osiride 72 385 Saacutetiras XV37-38 386 Protrepticus 2396 387 De natura deorum III19(47) 388 Senatus Consultum de Bacchanalibus In JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961 pp 26-27 389 Histoacuteria de Roma 398-19 390 ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 152
76
Os seguidores de Baco no entanto natildeo eram hostis a nenhum deus do Impeacuterio
Tambeacutem natildeo rejeitavam os sacrifiacutecios nem viam os deuses como democircnios e natildeo tinham
nenhum problema com os rituais tradicionais Tito Liacutevio daacute sinais dessa suspeita num
discurso que atribuiu ao cocircnsul Postumio Albino numa contio391 quando falou ao povo da
ameaccedila de um poder rival
A menos que vocecircs se precavejam homens de Roma esta vossa assembleia diurna apropriadamente reunida pelo cocircnsul seraacute rivalizada por sua assembleia noturna Nesse momento eles separadamente temem a vocecircs agora reunidos em assembleia quando vocecircs retornarem agraves suas casas e fazendas eles se reuniratildeo para decidirem sobre sua proacutepria salvaccedilatildeo e a vossa ruiacutena Seraacute quando vocecircs separadamente teratildeo de temecirc-los reunidos (39164)
Segundo a anaacutelise de Clara Gallini os adeptos ao culto eram grupos marginais392 As
bacanais seriam lugares de evasatildeo para a massa de pobres e deserdados com graves
problemas econocircmicos e sociais devido agrave situaccedilatildeo que atravessava Roma A crise social teria
se manifestado em uma forma representativa de protesto religioso por meio dos quais se
buscaram respostas religiosas a problemas da sociedade pretendendo uma liberaccedilatildeo religiosa
Deste modo a repressatildeo dos cultos baacutequicos tambeacutem representaria a repressatildeo de uma
sociedade na qual uns poucos os membros da oligarquia romana decidem impotildeem as regras
e governam a maioria No entanto ainda que os problemas sociais fossem evidentes natildeo eacute
possiacutevel afirmar que atraacutes destes cultos se escondia uma revolta contra as estruturas vigentes
nem ver os rituais baacutequicos como uma espeacutecie de esperanccedila em uma nova liberdade pois
essas interpretaccedilotildees como bem sustentou C Ames393 sofrem de anacronismo
Outros grupos religiosos no periacuteodo posterior a Bacanalia tambeacutem foram objeto de
uma accedilatildeo hostil das autoridades romanas Os caldeus chamados presumivelmente de
astroacutelogos foram expulsos de Roma em 139 aC Depois os seguidores de Iacutesis em vaacuterias
ocasiotildees na Repuacuteblica Tardia e no primeiro principado Tambeacutem os judeus enfrentaram seacuterias
dificuldades com os romanos em certos momentos394
Com a viabilizaccedilatildeo de um maior nuacutemero de viagens e trocas comerciais e culturais no
Impeacuterio Romano o conhecimento das variadas religiotildees deuses e crenccedilas tambeacutem podia
viajar rapidamente E isso significou ter que lidar com atritos decorrentes dessas diferenccedilas
envolvendo inclusive o judaiacutesmo o cristianismo e o maniqueiacutesmo
391 Audiecircncia convocada 392 GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52 393 Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] 2010 vol29 n2 p 344 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019 394 BEARD M NORTH JA PRICE SRF Op cit pp 161 230 231
77
De um modo bem diferente desses monoteiacutesmos de caraacuteter exclusivista entre as outras
crenccedilas como nas religiotildees de misteacuterios os adeptos natildeo rejeitavam ou condenavam outros
deuses Tambeacutem natildeo era necessaacuterio evitar os festivais e rituais da cidade ou a praacutetica do culto
imperial Natildeo havia nada que os pusesse em conflito com as autoridades Ocasionalmente
recebiam o apoio de membros da elite romana
Justino todavia procura mostrar que natildeo havia nenhum motivo para os romanos se
preocuparem com os cristatildeos afinal eles reconheciam que toda autoridade eacute constituiacuteda por
Deus e por isso devia ser respeitada Eacute fazendo jus a certo sentido de transparecircncia que o
apologista julga indispensaacutevel nas relaccedilotildees entre governantes e governados que ele entatildeo se
prontifica em demonstrar as razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo se misturavam com outros
deuses Com confianccedila ele afirma ldquoEsta eacute a uacutenica coisa que podeis nos recriminar natildeo
veneramos os mesmos deuses que voacutes e natildeo oferecemos libaccedilotildees e gorduras aos mortos natildeo
colocamos coroas nos sepulcros nem celebramos sacrifiacutecios sobre elesrdquo395
O fato de os cristatildeos natildeo concordarem com os sacrifiacutecios pagatildeos natildeo faz sentido
isoladamente aos incocircmodos caluacutenias e perseguiccedilotildees sofridos Parece ser razoaacutevel que por ser
um grupo cujas crenccedilas natildeo estavam bem sistematizadas e que se espalhavam pelo Impeacuterio as
caluacutenias oriundas dos atritos culturais podem ter chegado agraves autoridades e despertado
desconfianccedila396 Calumnia era um crime condenado pelas leis romanas desde o I seacuteculo aC e
se exatamente agraves acusaccedilotildees falsas e maliciosas397 As accedilotildees anticristatildes todavia natildeo podem
ser analisadas em termos generalizantes e absolutos pois passam por diversos momentos
Embora os cristatildeos natildeo representem uma ameaccedila poliacutetica na perspectiva de Pliacutenio por
exemplo o fato de natildeo praticarem o culto ao imperador e a separaccedilatildeo das praacuteticas idoacutelatras da
esfera puacuteblica interseciona a questatildeo poliacutetica agrave religiosa
Seria essa uma boa razatildeo para Justino explicar em seu projeto apologeacutetico por que os
cristatildeos natildeo participavam de sacrifiacutecios a outros deuses e natildeo lhes ofereciam culto Seu
argumento eacute diametralmente oposto a ou]j anqrwpoi [esses homens] que oferecem sacrifiacutecios
aos que eles proacuteprios datildeo forma colocam nos templos e chamam de deuses Ele justifica a
crenccedila cristatilde apenas dizendo ldquosabemos que [esses deuses] satildeo coisas sem alma e mortas que
395 I Apol 242 396 Cf VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006 Passim URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932 397 ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995 Passim BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 p 238 Cf I Apol 267
78
natildeo tem forma de Deusrdquo398 (I Apol 91) Afirma tambeacutem que os nomes e figuras que os
deuses assumem satildeo arquitetados pelos maus democircnios de modo que coisas corruptiacuteveis que
necessitam de cuidado recebem o nome de Deus Agrega-se ao seu argumento que os artesatildeos
dos deuses satildeo pessoas dissolutas e que eacute uma estupidez fazer guardas para os deuses nos
templos Na sequecircncia o autor introduz a justificativa cristatilde para esse distanciamento de tais
praacuteticas ldquo aprendemos que Deus natildeo tem necessidade de nenhuma oferta material dos
homens pois vemos que eacute ele quem nos concede tudordquo399 (I Apol 93) Em resposta a essa
benevolecircncia divina espera-se a gratidatildeo humana que soacute pode ser atestada atraveacutes do ldquobom
sensordquo [swfrosunhn] da ldquojusticcedilardquo [dikaiosunhn] do ldquoamor aos homensrdquo [filanqrwpian] e
numa expressatildeo pouco clara em ldquotudo que conveacutem a um Deus que natildeo pode ser chamado por
nenhum nome impostordquo400 (I Apol 101) Enquanto para o apologista os deuses pagatildeos satildeo
criados por matildeos humanas o Deus cristatildeo eacute apresentado como aquele que concederaacute a sua
presenccedila aos dignos Assim Justino demonstra estar certo de que os cristatildeos tecircm um
conhecimento superior ao dos que creem em outros deuses a ponto de se satisfazer em dizer
ldquosabemosrdquo ldquoaprendemosrdquo ou ldquocremosrdquo e isso basta
Se por um lado a perspectiva escatoloacutegica cristatilde do ldquoreinordquo natildeo implicava nenhuma
conspiraccedilatildeo poliacutetica contra os romanos seu iacutempeto proselitista causava tanto rumores quanto
um nuacutemero crescente de conversos Eacute por isso que ateacute meados do seacuteculo II quando Justino
escreve as accedilotildees anticristatildes tecircm suas raiacutezes nas relaccedilotildees interculturais travadas no proacuteprio
processo de expansatildeo da mensagem cristatilde Isso significa que os mecanismos de controle
social empregados contra os cristatildeos pelas autoridades imperiais satildeo requeridos mediante os
problemas locais E pode-se dizer que por ser uma religiatildeo emergente outros como Pliacutenio
natildeo sabiam como proceder diante das denuacutencias e caluacutenias contra esse novo grupo
Os cristatildeos formavam um grupo em expansatildeo que estava no Impeacuterio mas viviam de
modo diferente e procuravam evitar a participaccedilatildeo de todo tipo de praacuteticas contraacuterias agraves
prescriccedilotildees doutrinaacuterias cristatildes Natildeo participavam das festas ou dos espetaacuteculos natildeo
veneravam os deuses nacionais e seu Deus natildeo pertencia a uma naccedilatildeo mas deveria ser
reconhecido como superior a todos os outros401
398 evpei ayuca kai nekra tauta ginwskomen kai qeou morfhn mh econta cf MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 96 399 Ouv deesqai thj para avnqrwpwn ulikhj prosforaj proseilhfamen ton qeon( auvton pareconta panta orwntej ibid p 96 400 o[as oivkeia qew| evsti( tw| mhdeni ovnomati qetw| kaloumenw| MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 401 Cf MACMULLEN Ramsay Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966 Id Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997
79
Justino insere o seu testemunho pessoal
Eu mesmo quando seguia a doutrina de Platatildeo ouvia as caluacutenias contra os cristatildeos Contudo ao ver como caminhavam intrepidamente para a morte e para tudo o que eacute considerado espantoso comecei a refletir que era impossiacutevel que tais homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres Com efeito que homem amante do prazer intemperante e que considere coisa boa devorar carnes humanas poderia abraccedilar alegremente a morte que vai privaacute-lo de seus bens402
Prossegue sua queixa ldquobuscando condenar agrave morte alguns cristatildeos fundados nas
caluacutenias contra noacutes arrastaram tambeacutem escravos meninos e mulheres e por meio de incriacuteveis
tormentos os forccedilam a repetir contra noacutes o que o povo inventardquo403 No entanto ele eacute enfaacutetico
contra esse tipo de opiniatildeo sustentada sobre os cristatildeos ldquonada disso nos diz respeitordquo404
Justino tambeacutem nega que os cristatildeos abusariam de homens e se uniriam destemidamente com
as mulheres Seguindo para o desfecho de seu escrito ele faz uma declaraccedilatildeo reveladora ldquoA
verdade eacute que nos fazem guerra de mil modos exatamente porque ensinamos a fugir de
semelhantes doutrinas e daqueles que praticam tais coisas ou imitam tais exemplos como
mesmo nesse discurso que vos dirigimosrdquo405 Tal declaraccedilatildeo de Justino daacute margem para a
reflexatildeo sobre esse processo de ldquonegativizaccedilatildeordquo da figura do ldquooutrordquo que condena as praacuteticas
que ldquoumrdquo pratica Segundo esse pensador os cristatildeos seriam muitas vezes caluniados por
condenarem as praacuteticas dos outros que em retaliaccedilatildeo se esforccedilariam por difamar os
seguidores do nazareno
Por isso tambeacutem parece significativo considerar que os atritos com os cristatildeos natildeo
satildeo decorrentes de uma preocupaccedilatildeo poliacutetica para minar um potencial grupo subversivo Satildeo
destacados alguns aspectos desses atritos que se remetem agraves caluacutenias e maus comentaacuterios
sobre os cristatildeos que desembocam na estigmatizaccedilatildeo desse grupo Eacute preciso lembrar que o
contexto no qual o discurso de Justino estaacute inserido se refere a meados do II seacuteculo quando o
impacto do estilo de vida dos cristatildeos era sentido apenas em niacuteveis locais ainda que em
diversas regiotildees Os cristatildeos jaacute se encontravam pela Siacuteria-Palestina Egito Aacutesia Menor
Peniacutensula Itaacutelica e outras regiotildees mas o nuacutemero de fieacuteis ainda era muito pequeno diante do
tamanho do Impeacuterio Romano406 O desprezo e o combate por parte dos cristatildeos aos deuses
pagatildeos provocavam ocasionalmente reaccedilotildees e mobilizaccedilotildees contra os proacuteprios cristatildeos Por se
tratar de um grupo distinto com praacuteticas pouco conhecidas as caluacutenias se propagaram como
402 II Apol 121-2 403 II Apol 124 404 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 9698 405 II Apol 126 406 GIBBON Edward Number of Christians in the Empire under Diocletioan and Constantine In _____ The History of the Decline and Fall of the Roman Empire ed JB New York Fred de Fau and Co 1906 pp 337 341
80
uma forma de defesa dos pagatildeos A perseguiccedilatildeo de Nero no I seacuteculo havia aberto precedentes
para a condenaccedilatildeo dos cristatildeos mas sua determinaccedilatildeo foi limitada agrave execuccedilatildeo de seu plano de
acobertar as suspeitas de seu envolvimento no incecircndio de Roma Na primeira metade do II
seacuteculo alguns tumultos procuravam condenar os cristatildeos buscando sem um enquadramento
juriacutedico algo que foi condenado por Adriano na Aacutesia Em outros casos como o que relatou
Pliacutenio a Trajano procurava-se por um crime que condenasse os cristatildeos Desse modo as
acusaccedilotildees tais como canibalismo denuacutencia de ateiacutesmo imoralidades e inclusive de
infidelidade ganhavam forccedila Essas caluacutenias somadas ao precedente neroniano fizeram com
que para muitos como Trajano e Urbico o nomen Christianum assumisse um significado
negativo Essa conotaccedilatildeo negativa no entanto natildeo se instalou apenas em funccedilatildeo das caluacutenias
Conforme destacou Paul Veyne407 ldquoas autoridades natildeo acreditavam que os cristatildeos comiam
criancinhas ou praticavam incesto todos os domingos a atitude polecircmica de Celso a respeito
da nova religiatildeo natildeo fazia alusatildeo a essas praacuteticas considerando-as um fato socialrdquo Se para o
povo em geral o oacutedio e o medo pela estranheza dos cristatildeos faziam-lhes repulsivos para as
autoridades a ausecircncia de participaccedilatildeo nas praacuteticas puacuteblicas ou mesmo a contumaacutecia em natildeo
negar a feacute diante do magistrado faziam com que os pedidos de condenaccedilatildeo fossem acatados
Neste momento cabe destacar que entre os tipos de estigmas destacados por Erving
Goffman408 estatildeo os tribais de raccedila naccedilatildeo e religiatildeo considerados suscetiacuteveis de uma
transmissatildeo por heranccedila e decontaminar outros ao redor Nesses estigmas encontram-se os
seguintes traccedilos socioloacutegicos
un individuo que podiacutea haber sido faacutecilmente aceptado en un intercambio social corriente posee un rasgo que pude imponerse por la fuerza a nuestra atencioacuten u que nos lleva a alejarnos de eacutel cuando lo encontramos anulando el llamado que nos hacen sus restantes atributos Posee un estigma una indeseable diferencia que no habiacuteamos previsto
Essa diferenccedila se torna o elemento fundamental para a praacutetica de vaacuterios tipos de
discriminaccedilatildeo Consciente ou inconscientemente se constroacutei uma teoria do estigma uma
ideologia para explicar sua inferioridade e dar conta do perigo que representa essa pessoa
racionalizando agraves vezes uma animosidade que se baseia em outras diferenccedilas
Goffman409 natildeo deixa de contemplar em sua anaacutelise a possibilidade de sujeitos
estigmatizados permanecerem ilhados protegidos por suas crenccedilas proacuteprias sobre sua
identidade mas ao mesmo tempo em constante contato com os outros Nesse sentido os 407 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 245 408 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 16 Tr A ldquoum indiviacuteduo que podia ter sido facilmente aceito num intercacircmbio social corrente possui um traccedilo que pode impor-se agrave forccedila a nossa atenccedilatildeo e que nos leva a nos afastarmos dele quando o encontramos anulando a chamada que nos fazem seus ouros atributos Possui um estigma uma indesejaacutevel diferenccedila que natildeo haviacuteamos previstordquo 409 Ibid p 17
81
seguidores da Igreja dos disciacutepulos de Jesus de Nazareacute podiam refugiar-se em suas crenccedilas
proacuteprias a saber seu proacuteprio modo de se autodefinir como ldquocristatildeosrdquo Enquanto o termo
ldquocristatildeordquo eacute capaz de referir-se a algueacutem de uma superstitio ilicita que abusa das crianccedilas que
se une promiscuamente com homens e mulheres que acredita em lendas de um deus
encarnado e nascido de uma virgem cujos fieacuteis se reuacutenem para comer sua carne em reuniotildees
secretas e assim se torna estigma de algueacutem despreziacutevel por outro lado ganha outro
significado para os seguidores do Cristo
Os atritos entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos poderiam surgir em decorrecircncia do exerciacutecio da
anunciaccedilatildeo da mensagem cristatilde ou devido ao apelo agrave mudanccedila de conduta e implementaccedilatildeo
de novos haacutebitos O caso mais emblemaacutetico apontado por Justino eacute o que aparece na II
Apologia
Certa mulher vivia com o seu marido homem dissoluto e antes de se tornar cristatilde se entregara agrave vida licenciosa Todavia logo que conheceu os ensinamentos de Cristo natildeo soacute se tornou casta como procurava tambeacutem persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme a reta razatildeo Ele poreacutem obstinado na dissoluccedilatildeo com a sua conduta desanimou a sua mulher [] Depois disso para natildeo se tornar cuacutemplice de tais iniquidades e impiedades permanecendo no matrimocircnio e partilhando o leito e a mesa com tal homem ela [] separou-se [] Despeitado [] [] a acusou diante dos tribunais dizendo que ela era cristatilde [] natildeo podendo na ocasiatildeo fazer nada contra a mulher voltou-se contra Ptolomeu que Urbico chamara ao seu tribunal por ter sido mestre dela nos ensinamentos de Cristordquo410
A uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se era cristatildeo Apoacutes
confessar foi condenado ao supliacutecio Justino ainda conta que certo Luacutecio advertiu a Urbico e
do mesmo modo foi conduzido ao supliacutecio Um terceiro sobreveio mas tambeacutem foi
condenado agrave morte411
Se fosse um caso isolado esse episoacutedio jamais poderia servir como pista para
fundamentar a hipoacutetese de que significativamente os atritos com os cristatildeos podem surgir
tambeacutem devido agrave condenaccedilatildeo das praacuteticas dos natildeo-cristatildeos Mas outras evidecircncias se
mostram Os Evangelhos do Novo Testamento (Mt 1413-12 Mc 614-28 Lc 318-20 97-9)
afirmam que Joatildeo Batista foi para a prisatildeo por repreender ao rei Herodes que vivia com
Herodiacuteades a mulher de seu irmatildeo e por outros crimes cometidos pelo governante Flaacutevio
Josefo escreveu que Herodes temeu que o povo fosse influenciado para uma sublevaccedilatildeo e por
isso encaminhou Joatildeo Batista para o caacutercere412 Embora pareccedilam discrepantes pode haver
alguma convergecircncia nas duas versotildees O ldquoprofetardquo Joatildeo Batista devia fazer repreensotildees
410 II Apol 2 411 II Apol 216-20 412 Ant Jud II 52
82
puacuteblicas condenando os haacutebitos do rei Herodes e a sua uniatildeo com Herodiacuteades o que poderia
despertar alguma inseguranccedila quanto agrave reaccedilatildeo do povo
Outras ocorrecircncias podem ser identificadas Quando Paulo repreendeu um espiacuterito de
adivinhaccedilatildeo de uma jovem escrava quando estava em Filipos na Macedocircnia os patrotildees da
moccedila se irritaram pois exploravam aquela habilidade da jovem para lucrar Por isso levaram
Paulo e seu companheiro Silas aos magistrados e disseram ldquoEsses homens estatildeo provocando
desordem em nossa cidade satildeo judeus e pregam costumes que a noacutes romanos natildeo eacute
permitido aceitar nem seguirrdquo A multidatildeo se levantou contra Paulo e Silas e depois disso
foram accediloitados e presos sem julgamento formal 413 Em Eacutefeso os artesatildeos teriam visto na
doutrina de Paulo mais do que uma ofensa agrave religiatildeo uma ameaccedila a seus negoacutecios Conta-se
que um ourives chamado Demeacutetrio que fabricava miniaturas em prata no templo de Diana
reuniu alguns artesatildeos e outros profissionais do ramo e disse-lhes
Amigos sabeis que o nosso bem-estar proveacutem dessa nossa atividade [] esse tal de Paulo com sua propaganda desencaminha muita gente natildeo soacute em Eacutefeso mas em quase toda a Aacutesia Ele afirma que natildeo satildeo deuses os produtos de matildeos humanas Natildeo eacute soacute a nossa profissatildeo que corre o risco de cair em descreacutedito mas tambeacutem o templo da grande deusa Diana acabaraacute sendo desacreditado e assim ficaraacute despojada de majestade aquela que toda a Aacutesia e o mundo inteiro adoram414
Segundo o livro de Atos dos Apoacutestolos esses homens furiosos arrastaram os
companheiros de Paulo para o teatro da cidade O tumulto se espalhou
Esses tipos de atritos envolviam o encobrimento de uma praacutetica moralmente
condenada pelos seguidores da Igreja e manifestavam a defesa dos interesses pessoais ou de
determinados grupos que sofreriam com as possiacuteveis mudanccedilas nos costumes e tradiccedilotildees
Neste uacuteltimo caso aparece algo distinto a menccedilatildeo da representaccedilatildeo de uma divindade para
uma determinada regiatildeo Diana para a Aacutesia especialmente
Yi-Fu Tuan415 aponta que nas religiotildees que vinculam o povo a um lugar os deuses
parecem estimular nos seus fieacuteis um forte sentido do passado de linhagem e continuidade no
lugar O culto aos ancestrais eacute o fundamento de tal praacutetica religiosa Atraveacutes deste sentido
histoacuterico de continuidade busca-se algum tipo de ldquoseguranccedilardquo Entre o I e II seacuteculos dC
deuses romanos e gregos satildeo conhecidos por povos de culturas diferentes mas nenhum deles
exige exclusividade O Deus dos judeus figura nesse cenaacuterio de deuses e homens e agraves vezes
se confunde com deus nenhum Os seguidores de Cristo propagadores desse mesmo Deus
mediante a crenccedila no seu messias paradoxalmente tambeacutem satildeo tachados de ateus algumas
vezes Poreacutem enquanto os ldquooutrosrdquo natildeo veem o Deus cristatildeo os cristatildeos natildeo veem outro deus
413 At 1617-40 414 At 1923-27 415 Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983 p 168
83
aleacutem do seu proacuteprio Desse modo a negaccedilatildeo dos deuses alheios pode ser interpretada por
muitos como profunda agressatildeo agraves crenccedilas que por um periacuteodo indeterminado serviram para
explicar e inspirar a vida das pessoas que nasceram cresceram e morreram em determinado
local
A estigmatizaccedilatildeo dos ldquocristatildeosrdquo eacute portanto em grande medida uma reaccedilatildeo das
pessoas que satildeo alvo dos cristatildeos no exerciacutecio de sua feacute Pois esses cristatildeos ndash dos quais
Justino eacute um ndash manifestam o repuacutedio a tudo aquilo que se associa a uma moral que lhes seja
estranha e que se vincule agrave veneraccedilatildeo de outros deuses que natildeo sejam o Deus do seu Cristo
Diante das reaccedilotildees adversas que lhes satildeo imputadas sob a forma de duras penas e
condenaccedilotildees Justino teologiza o seu estigma Isso natildeo eacute uma invenccedilatildeo sua Talvez lhe caiba o
meacuterito de tecirc-lo feito habilidosamente poreacutem haacute indiacutecios desse procedimento anos antes de
seus escritos
Na I Epiacutestola de Pedro (413-1416) o autor frisa a gloacuteria do sofrimento dos cristatildeos
nas perseguiccedilotildees
alegrai-vos por participar dos sofrimentos de Cristo para que possais exultar de alegria quando se revelar a sua gloacuteria Se sofreis injuacuterias por causa do nome de Cristo sois felizes pois o Espiacuterito da gloacuteria o Espiacuterito de Deus repousa sobre voacutes [] Se poreacutem algueacutem sofrer por ser cristatildeo natildeo se envergonhe Antes glorifique a Deus por este nome
Antes ainda eacute Paulo quem permitiraacute um trocadilho didaacutetico para que melhor se
compreenda essa formulaccedilatildeo teoloacutegica por traacutes do sofrimento dos fieacuteis da Igreja Ao finalizar
sua Epiacutestola aos Gaacutelatas (617) escreve ldquo eu trago em meu corpo as marcas [stigmata] de
Cristordquo416 Como o proacuteprio Goffman observou para os gregos estigma significava
basicamente algum tipo de signo ou marca na pele417 Paulo evidentemente se refere aos sinais
do sofrimento enfrentado devido agraves perseguiccedilotildees sofridas no exerciacutecio do seu apostolado Natildeo
existe nenhuma ligaccedilatildeo entre essa passagem e o discurso de Justino O que eacute preciso notar
atentamente eacute que assim como Paulo transforma seus estigmas em seu testemunho na
perspectiva de Justino a perseguiccedilatildeo aos cristatildeos eacute representada como ldquoas marcasrdquo de sua
identidade que se pretende afirmar Essa identidade por ele afirmada eacute distinta dos devaneios
caluniosos que lhes satildeo associados pelos seus opositores Ser cristatildeo para Justino eacute a razatildeo de
natildeo serem perseguidos e ao mesmo tempo o motivo pelo qual satildeo perseguidos A
416 Versatildeo grega evgw gar ta stigmata tou Kuriou VIhsou evn tw| swmati mou bastazw ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) [Bible Work 5 Software 2002] 417 Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006 p 11 Para maiores informaccedilotildees sobre o significado do termo estigma cf LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940
84
perseguiccedilatildeo seraacute interpretada como uma reaccedilatildeo dos ldquomaus democircniosrdquo contra os ldquoverdadeiros
cristatildeosrdquo como seraacute examinado no proacuteximo capiacutetulo
Seus acusadores estariam movidos por paixatildeo irracional e ldquoaguilhoados por democircnios
perversosrdquo418 por isso natildeo conseguiam enxergar a verdade anunciada por esses cristatildeos
Mesmo tendo grande responsabilidade na ocultaccedilatildeo dessa verdade os democircnios natildeo satildeo os
uacutenicos culpados Escreve Justino a respeito dos judeus
As outras naccedilotildees natildeo tecircm tanta culpa da iniquidade que se comete contra noacutes e contra Cristo como voacutes que sois causa do preconceito injusto que elas tecircm contra ele e contra noacutes que viemos dele [] escolhestes homens especiais de Jerusaleacutem e os mandastes por todo o mundo a fim de espalhar que havia aparecido uma iacutempia seita de cristatildeos e espalharam caluacutenias que todos aqueles que natildeo vos conhecem repetem contra noacutes419
Os judeus tecircm uma parcela de responsabilidade pelos preconceitos e caluacutenias herdados
pelos gentios Em vaacuterios episoacutedios no livro dos Atos dos Apoacutestolos haacute a mesma disposiccedilatildeo
cristatilde para atribuir aos judeus a culpa pelas delaccedilotildees agraves autoridades romanas para reclamar
dos cristatildeos No entanto eacute pouco provaacutevel que o apologista assim sintetize a causa das
caluacutenias e puniccedilotildees contra os cristatildeos Mas haacute uma disposiccedilatildeo por parte do apologista em
afastar os cristatildeos dos judeus Semelhantemente Justino tambeacutem natildeo demonstra nenhuma
simpatia por aqueles que ele chama de ldquocristatildeos soacute de nomerdquo
Sobre esses que natildeo viviam como Cristo teria ensinado o filoacutesofo orienta que ldquosejam
declarados como natildeo-cristatildeosrdquo420 por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de
Cristo Para os pagatildeos provavelmente natildeo haveria distinccedilatildeo entre esses grupos Justino
poreacutem chama a atenccedilatildeo para o fato de que esses satildeo denominados segundo o nome de quem
promoveu cada doutrina especiacutefica Eram eles os marcionistas valentinianos basilidianos
saturnilianos e com outros nomes421
Um dos argumentos de que a accedilatildeo dos ldquodemocircnios perversosrdquo move seus opositores
contra os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo eacute que os cristatildeos dessas outras ldquoheresiasrdquo natildeo satildeo perseguidos
pelas autoridades422 Quanto a esses ldquooutrosrdquo pelos quais o apologista natildeo demonstra
nenhuma simpatia sua recomendaccedilatildeo eacute que sejam punidos423
Os ldquoverdadeiros cristatildeosrdquo segundo Justino satildeo aqueles que estatildeo prontos a confessar
que satildeo cristatildeos a ponto de padecerem Desse modo recorrendo ao trocadilho didaacutetico
desenvolvido a partir da fala paulina esses homens de feacute colocam-se agrave disposiccedilatildeo para
418 I Apol 51ss 419 Diaacutelogo com Trifatildeo 171 420 I Apol 168 421 Diaacutelogo com Trifatildeo 355-6 422 I Apol 267 423 I Apol 1614
85
receber os ldquoestigmas de Cristordquo a saber as marcas das perseguiccedilotildees sobre seus corpos em
razatildeo de suas crenccedilas Satildeo persuadidos a crer que a verdadeira recompensa seraacute atribuiacuteda para
a vida eterna que em muito excede ao sofrimento transitoacuterio desse mundo Cabe-lhes
anunciar e testemunhar a feacute a todos mesmo sob a insiacutegnia das tribulaccedilotildees Por isso Justino
declara
Decapitam-nos pregam-nos em cruzes atiram-nos agraves feras agrave prisatildeo ao fogo e nos submetem a todo tipo de torturas Todavia estaacute agrave vista de todos que natildeo apostatamos de nossa feacute Ao contraacuterio quanto maiores satildeo os nossos sofrimentos mais ainda se multiplicam os que abraccedilam a feacute e a piedade pelo nome de Jesus424
Essa missatildeo cristatilde implica tambeacutem em buscar convencer aos seus opositores de que
os ldquocristatildeosrdquo natildeo deviam ser perseguidos simplesmente por denominarem-se ldquocristatildeosrdquo
33 Sobre as leis e imoralidades
Justino faz saber que a confissatildeo de cristianismo diante de um magistrado acarretava a
pena de morte425 Isto eacute ser ldquocristatildeordquo poderia implicar na condenaccedilatildeo agrave pena de morte426
Uma das interrogaccedilotildees centrais desses escritos de Justino eacute sobre o fato de os cristatildeos
serem condenados por confessarem esse nome Seria um absurdo pensar que os romanos
condenariam os membros dessa superstitio simplesmente por sustentarem um nome e eacute
justamente esse absurdo que o apologista busca destacar para ridicularizar o procedimento dos
magistrados Na verdade os acusados de cristianismo natildeo eram condenados apenas pelo
ldquonomerdquo mas sim pelo que ele representava uma superstitio nova maleacutefica depravada e
excessiva que envolvia os cristatildeos em flagitia que sustentava certo desprezo pela religiatildeo
tradicional Mas pelo fato de natildeo haver uma lei universal para este caso os governantes
tinham liberdade para julgar as ocorrecircncias de modo particular As recomendaccedilotildees de Trajano
e Adriano ao dispensarem a busca pelos cristatildeos limitaram os processos a apenas denuacutencias
formais A nova religiatildeo ainda natildeo se mostrava um problema seacuterio para o Impeacuterio Eacute provaacutevel
que essas medidas visem solucionar os atritos e inibir os conflitos locais ocasionados pelas
diferenccedilas religiosas O caraacuteter flexiacutevel do processo que permitia que o acusado mudasse de
ideia quanto a sua religiatildeo no meio do processo e recebesse a absolviccedilatildeo eacute o elemento
fundamental para se argumentar que os cristatildeos eram condenados pelo ldquonomerdquo
424 Dialogo com Trifatildeo 110 4 425 I Apol 81-2 No I111 lecirc-se ldquoconfessamos ser cristatildeos sabendo como sabemos que tal confissatildeo traz consigo a pena de morterdquo 426 ldquo e nos tiram a vida sem termos cometido crime algumrdquo (I241) Mas o consolo dos fieacuteis estaacute na feacute ldquo aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis fazerrdquo (I456)
86
Justino deseja que os romanos compreendam a maneira de pensar dos cristatildeos e que se
desvencilhem da ideia negativa sobre os fieacuteis Desse modo depois da exposiccedilatildeo da sua I
Apologia ele escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da verdade
respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees despreze-as Natildeo
decreteis poreacutem pena de morte como contra inimigos contra aqueles que nenhum crime
cometemrdquo427
Como jaacute foi mencionado no Capiacutetulo II dessa dissertaccedilatildeo Justino procura alinhar sua
Apologia ao rescrito de Adriano o qual ele interpreta convertendo-o sutilmente a favor dos
cristatildeos
Noacutes vos pedimos portanto que sejam examinadas accedilotildees de todos os que vos satildeo denunciados a fim de que o culpado seja castigado como iniacutequo mas natildeo como cristatildeo por outro lado aquele que for comprovadamente inocente seja absolvido como cristatildeo por natildeo ter cometido nenhum crime428
Mesmo assim o apologista sustenta que sua reclamaccedilatildeo natildeo estaacute fundamentada no rescrito de
Adriano mas em um senso de justiccedila que permeia sua peticcedilatildeo429
Sua interpretaccedilatildeo considera que mediante as obras dos democircnios perversos os cristatildeos
satildeo buscados e condenados agrave morte devido a caluacutenias O apologista aponta atentados contra
escravos meninos e mulheres obrigando-os a confessarem coisas falsas430 Segundo sua
leitura teoloacutegica desses eventos os cristatildeos eram acusados de tais praacuteticas justamente porque
as condenavam e assim fazendo incomodam aqueles que procediam dissolutamente431
Tendo em vista que a razatildeo para que as autoridades acatassem as denuacutencias dirigidas
contra os cristatildeos estava no fato de que esta superstitio era uma ameaccedila agrave ordem em funccedilatildeo da
sua expectativa sobre o ldquoreino de Deusrdquo Justino inclui no seu projeto apologeacutetico uma
explanaccedilatildeo sobre a contribuiccedilatildeo cristatilde ao estabelecimento da paz no Impeacuterio Natildeo se podia
esperar que uma religiatildeo estrangeira principalmente oriunda de uma naccedilatildeo problemaacutetica
como a dos judeus pudesse representar algum benefiacutecio A sua proacutepria indefiniccedilatildeo enquanto
religiatildeo dificultaria essa possibilidade e o seu caraacuteter exclusivista acentuaria os atritos sociais
Mas o pensador de Flaacutevia Neaacutepolis eacute direto em dizer
Somos vossos melhores ajudantes e aliados para a manutenccedilatildeo da paz pois professamos doutrinas como a de que natildeo eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que cada um caminha para o castigo e salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildees Com efeito se todos os homens conhecessem isso ningueacutem escolheria por um momento a maldade sabendo que
427 I651 428 I74 429 ldquo natildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo (I683) 430 II124 431 II12
87
caminharia para a sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se conteria de todos e se adornaria de virtude a fim de conseguir os bens de Deus e livrar-se dos castigos432
A proposta de Justino apresenta o valor das crenccedilas cristatildes O desenvolvimento da sua
teoria seraacute analisado com mais detalhes no proacuteximo capiacutetulo Neste momento analisar-se-aacute a
reprovaccedilatildeo da moralidade dos natildeo-cristatildeos Segundo Paul Veyne433 no mundo greco-romano
ldquomoral e religiatildeo estavam parcialmente ligadas porque se pedia aos deuses que protegessem
os bons e castigassem os maus Deuses e homens julgavam da mesma maneira os bons e
maus pois compartilhavam da mesma moralrdquo Para os deuses a moral dos mortais tambeacutem
natildeo interessava A opiniatildeo humana sobre os deuses tambeacutem variava desde a atribuiccedilatildeo de
virtudes ateacute a laacutestima por serem egoiacutestas e mercenaacuterios Natildeo era possiacutevel pensar nos deuses
como senhores vigilantes da justiccedila No entanto os deuses poderiam vingar as injusticcedilas434
Natildeo se deve pensar que a religiatildeo de gregos e romanos era estaacutetica Satildeo identificadas
transformaccedilotildees durante os seacuteculos A filosofia as mudanccedilas culturais e a paideia
relacionaram a divindade ao sumo bem e acentuou os contornos entre a religiosidade das
pessoas comuns e agrave dos membros das classes elevadas e dos letrados435
Varratildeo436 atribuiu trecircs concepccedilotildees para os deuses os deuses das cidades os deuses
vistos pelos filoacutesofos e os deuses das narrativas dos poetas Segundo Paul Veyne437
inspirados por Euriacutepides os estoicos estavam convencidos de que os deuses natildeo podiam se
portar mal Os deuses dos filoacutesofos se afastavam das narrativas mitoloacutegicas anteriores para
assumirem agraves vezes o aacutepice da virtude Para Platatildeo os deuses eram a medida de todas as
coisas e natildeo seria conveniente receberem oferendas de pessoas desonradas438 A relaccedilatildeo entre
moral e religiatildeo passou por transformaccedilatildeo mas essa mudanccedila ficou restrita a alguns ciacuterculos
sociais Para alguns criacuteticos e pensadores o temor religioso seria uacutetil para a contensatildeo
humana Mas essa natildeo era uma opiniatildeo comum Isoacutecrates (viveu de 436 a 338 aC) escreveu
que ldquoaqueles que creem que os favores dos deuses e suas puniccedilotildees satildeo maiores do que
realmente satildeo prestam um grande serviccedilo agrave sociedaderdquo439 Mais tarde Poliacutebio (viveu entre 203
aC ndash 120 aC) ao comparar os romanos aos gregos tambeacutem destacou o valor das crenccedilas
religiosas romanas no estabelecimento da ordem
432 I121-3 433 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 220 434 Ibid p 239 435 BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 pp 305-332 436 Apud Agostinho de Hipona Cidade de Deus IV311 Plutarco se referia a trecircs visotildees sobre os deuses a dos filoacutesofos poetas e legisladores (Amatorius XVIII10765c) 437 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 256 438 Leis IV716c717 439 Busires 1124
88
muitos poderiam pensar que isso eacute irresponsaacutevel mas [] seu objetivo eacute usar isso como forma de controle sobre as pessoas comuns Se era possiacutevel formar um Estado inteiro de filoacutesofos isso seria no entanto desnecessaacuterio Mas vendo que as multidotildees satildeo inconstantes cheios de desejos desregrados iras irracionais e paixatildeo violenta o uacutenico recurso eacute mantecirc-los sob controle pelo terror misterioso e efeitos cecircnicos desse tipo440
Ainda nesse sentido ele afirma que tambeacutem natildeo era sem sentido que os antigos
promoviam entre as pessoas simples diversas opiniotildees sobre os deuses e a crenccedila no Hades
Tendo em vista essa importante funccedilatildeo da religiatildeo na manutenccedilatildeo da ordem Poliacutebio pensa
que aqueles que em seu tempo abriam matildeo da religiatildeo agiram de forma precipitada e
insensata Assim ele destaca
Esta eacute a razatildeo por que aleacutem de tudo se aos estadistas gregos eacute confiada uma uacutenica moeda embora protegidos por dez funcionaacuterios de vigilacircncia muitos selos e o dobro de testemunhas jaacute natildeo podem ser induzidos a manter a feacute enquanto entre os romanos em suas magistraturas e embaixadas homens tecircm cuidado de grandes quantias de dinheiro e ainda por puro respeito a seus juramentos manteacutem a feacute intacta E em outras naccedilotildees eacute raro encontrar um homem que meta suas matildeos fora do eraacuterio puacuteblico e eacute inteiramente puro em tais assuntos Mas entre os romanos eacute raro encontrar um homem cometendo tal crime441
A necessidade de uma sociedade ter mecanismos para estabelecer a ldquoconfianccedilardquo ou a
ldquoboa feacuterdquo entre as relaccedilotildees humanas eacute sublinhada diante dos efeitos dos questionamentos
cultivados pela filosofia e do proacuteprio ideal poliacutetico-filosoacutefico que poderia diminuir o valor da
religiatildeo
No seacuteculo II dC eacute Justino quem olha as mais distintas crenccedilas do Impeacuterio com um
tom de superioridade proporcionada pela sua proacutepria religiatildeo Mas haacute um espaccedilo de
aproximadamente trecircs seacuteculos entre Poliacutebio por exemplo e Justino No II seacuteculo dC a
filosofia jaacute havia se tornado um elemento essencial da cultura romana e o fluxo das suas
interrogaccedilotildees e das suas performances puacuteblicas acarretavam algumas transformaccedilotildees de
caraacuteter ideoloacutegico na sociedade Como escreveu Paul Veyne
o povo nunca deixou de crer e rezar Mas em que um romano culto mdash um Ciacutecero um Horaacutecio um imperador um senador um notaacutevel mdash podia crer dentro dessa fantasmagoria dos deuses ancestrais A resposta eacute categoacuterica natildeo podia crer em nada leu Platatildeo e Aristoacuteteles que quatro seacuteculos antes tampouco acreditavam Virgiacutelio alma religiosa acredita na Providecircncia mas natildeo nos deuses de seus proacuteprios poemas mdash Vecircnus Juno ou Apolo442
Justino mostra algumas razotildees pelas quais os cristatildeos natildeo compactuavam com os
demais deuses e com a religiatildeo tradicional romana e ainda aponta aquilo que considera ser o
caraacuteter racional da verdadeira filosofia isto eacute da religiatildeo cristatilde Por isso ele escreve ldquoas
440 Historias VI5614 441 Ibid 442 Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197
89
nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo443 Poreacutem
como ele proacuteprio diz ldquonos condenam sem saber se praticamos as coisas vergonhosas de que
nos acusam comprazem-se com deuses que as fizeram e ainda exigem dos homens coisas
semelhantesrdquo444 Desse modo o apologista destaca a incoerecircncia em se pensar que os povos
seriam contidos por temor a deuses tatildeo imoderados quanto os proacuteprios homens em suas
paixotildees Por outro lado tambeacutem o temor ao Imperador ou a fidelidade demonstrada por
meio do culto imperial satildeo apontados como algo que representa uma forma superficial de
controle pois como Justino escreve ldquoaqueles que agora por medo das leis e dos castigos por
voacutes impostos ao cometer seus crimes procuram escondecirc-los [] sabem que sois homens e
que por isso eacute possiacutevel ocultaacute-los de voacutesrdquo445 Esse ldquomedordquo das leis era um temor ao que eacute
humano Desse modo Justino sublinha que a ausecircncia de mecanismo superior de controle
como a absorccedilatildeo da crenccedila em um Deus onisciente como o Deus dos cristatildeos favorecia a
desobediecircncia agraves leis
O apologista apresenta um mecanismo de controle que julga ser muito mais eficiente
ldquose se inteirassem e se persuadissem de que natildeo se pode ocultar nada a Deus natildeo soacute uma
accedilatildeo mas sequer um pensamento ao menos por causa do castigo se moderariam de todos os
modos como voacutes mesmos haveis de convirrdquo Por essa razatildeo ele considera que a expansatildeo do
cristianismo contribuiria para que as pessoas agissem de modo moderado e respeitoso de
acordo com a moral cultivada na comunidade e ainda em atentar fidelidade ao Impeacuterio
Esse ldquotemorrdquo religioso proveniente de uma crenccedila distinta da religiatildeo tradicional se
enquadra no que os romanos chamavam de superstitio As superstitiones e os cultos locais
eram alvo da poliacutecia romana e ficavam sob atenccedilatildeo com destacam Mary Beard John North e
Simon Price446 as controveacutersias poderiam desencadear ideias de oposiccedilatildeo agrave autoridade
romana Assim aconteceu na rebeliatildeo do Egito em 172 a 173 aC447 na incursatildeo da Traacutecia que
foi liderada por um sacerdote de Dioniacutesio que conseguiu seguidores448 entre os druidas da
Gaacutelia profecias indicavam que o incecircndio de Roma era o sinal do fim do domiacutenio romano
sobre aquela regiatildeo fazendo com que uma revolta nas fronteiras do Reno fosse animada por
essas profecias449 e as revoltas judaicas contemporacircneas a Justino satildeo outro exemplo
443 II153 444 II142 445 I123 446 Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998 pp 337-348 447 Cassius Dio Hist Rom LXXII4 448 Ibid LI255 LIV345-7 449 Taacutecito Historias IV546165 V2224
90
Todavia o apologista procura convencer de que os cristatildeos natildeo suportavam nenhum tipo de
ameaccedila agrave sociedade sob o domiacutenio romano
Sua estrateacutegia apologeacutetica portanto natildeo pode negar que as crenccedilas cristatildes reprovavam
uma seacuterie de diversos conjuntos de ideias accedilotildees e interaccedilotildees as quais caracterizam um
quadro da organizaccedilatildeo social No entanto essa nova religiatildeo deveria ser encarada como uma
dessemelhanccedila absoluta Vaacuterios pontos de contato entre a cultura pagatilde e a doutrina dos
cristatildeos satildeo estabelecidos para convencer sobre esse aspecto450 Os deuses e a religiatildeo pagatilde
deveriam ser rejeitados por serem incoerentes com a moralidade segundo as narrativas
antigas A feacute cristatilde eacute apresentada como um mecanismo eficaz de controle e de organizaccedilatildeo
social que exige uma mudanccedila subjetiva antes de um reflexo socialmente objetivo Por isso
segundo seu ponto de vista a condenaccedilatildeo dos cristatildeos acatada pelos governantes locais eacute uma
forma equivocada de manter a ordem Em grande medida essa forma de controle que emerge
dos clamores reativos populares estaria impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do
nomen Christianum sem conhecerem de fato a forma de pensar dos cristatildeos Por isso Justino
procura afirmar que os cristatildeos satildeo os melhores auxiliadores na manutenccedilatildeo da paz no
Impeacuterio
450 Esse ponto seraacute analisado no proacuteximo capiacutetulo
91
CAPIacuteTULO IV A CONTRIBUICcedilAtildeO CRISTAtilde PARA A MANUTENCcedilAtildeO DA ORDEM SOCIAL
Justino combate agrave forma de controle que recrimina os cristatildeos e que segundo seu
ponto de vista tem fundamento nas accedilotildees dos democircnios Eacute dentro do seu objetivo apologeacutetico
que emerge sua tese da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem no Impeacuterio Eacute a
primeira vez que a religiatildeo emergente dos cristatildeos aparece assumidamente como um
instrumento a favor do Impeacuterio Natildeo havia nenhuma razatildeo para esse tipo de preocupaccedilatildeo por
parte dos cristatildeos A tese da contribuiccedilatildeo cristatilde agrave manutenccedilatildeo da ordem vem em oposiccedilatildeo agrave
ideia de que os cristatildeos seriam uma ameaccedila social Todavia eacute permitido supor que diante da
mira dos ldquoperseguidoresrdquo locais nesse periacuteodo natildeo era uacutetil jurar fidelidade ao Impeacuterio
As caluacutenias e a proacutepria inclinaccedilatildeo a repudiar as superstitones estrangeiras faziam com
que os cristatildeos fossem reprimidos em diferentes niacuteveis pelos pagatildeos do Impeacuterio Justino
apresenta uma forma de controle cristatilde que julga ser mais eficiente do que aquelas pagatildes
empregadas contra os proacuteprios cristatildeos A base de tal eficiecircncia estaacute no caraacuteter de sua
doutrina que quando absorvida deveria conduzir os crentes a uma conduta pautada por regras
morais que estabelecem precircmio ou castigo eterno a todos depois da morte de acordo com seu
meacuterito em vida A doutrina cristatilde eacute uma incentivadora da moral
Ao recorrer ao imperador o apologista natildeo apenas reafirma a fidelidade dos cristatildeos
mas expotildee o caraacuteter de sua doutrina e procura ser o mais convincente possiacutevel sobre a
razoabilidade de suas crenccedilas
41 O controle absoluto do controlador absoluto
Em primeiro lugar Justino sustenta que os cristatildeos satildeo os ldquomelhores ajudantes e
aliados para a manutenccedilatildeo da pazrdquo devido ao caraacuteter das suas doutrinas como a de que ldquonatildeo
eacute possiacutevel ocultar de Deus o malfeitor o avaro o conspirador ou o homem virtuoso e que
cada um caminha para o castigo ou salvaccedilatildeo eterna conforme o meacuterito de suas accedilotildeesrdquo (I Apol
121) Segundo essa perspectiva a crenccedila em um Deus onisciente seria capaz de induzir os
que a deteacutem a se comedirem Nesse sentido ele destaca ldquoningueacutem escolheria por um
momento a maldade sabendo que caminharia para sua condenaccedilatildeo eterna pelo fogo mas se
92
conteria de todos os modos e se adornaria com a virtude a fim de conseguir os bens de Deus e
livrar-se dos castigosrdquo (I Apol 122) Esse mecanismo de controle apresenta uma estrutura
limitadora das accedilotildees humanas que eacute dependente do conhecimento das normas que determinam
a recompensa e o castigo O traccedilo marcante desse mecanismo eacute que existe um vigilante
constante de quem natildeo se pode esconder absolutamente nada nem mesmo as intenccedilotildees
Haacute certa dependecircncia do sentimento de temor pessoal diante da ideia de vigilacircncia
constante pelos olhos infaliacuteveis de um ser superior que julgaraacute com rigor as accedilotildees humanas de
uma vez por todas num momento aguardado mas desconhecido Todavia para que ele
funcione eacute preciso que exista um miacutenimo de plausibilidade nas ideias que sustentam o
controle absoluto de Deus Ou seja ningueacutem temeria algo que natildeo fizesse o miacutenimo sentido
Aqueles que combatiam os cristatildeos natildeo se intimidavam diante do Deus cristatildeo e em alguns
casos acreditavam estar sendo piedosos combatendo as crenccedilas descabidas desse novo grupo
Atentando para essas circunstacircncias Justino se empenha em mostrar correlaccedilotildees entre
elementos do pensamento cristatildeo e outros comuns agraves culturas no Impeacuterio
A ameaccedila do castigo no poacutes-morte eacute fundamental na estrutura da doutrina da justiccedila
divina Por isso para que sua estrateacutegia de persuasatildeo funcione ele se empenha em demonstrar
ldquoas evidecircnciasrdquo da vida eterna ou do poacutes-morte O apologista admite que ldquose a morte
terminasse na inconsciecircncia seria uma boa sorte para todos os malvadosrdquo (I181) uma
reflexatildeo comum tambeacutem a Plutarco (Consolatio ad Apollonium 11107c) Todavia Justino
manteacutem que a consciecircncia permanece e que a conduta humana eacute passiacutevel de puniccedilatildeo ou
precircmio em um momento aleacutem da vida451 Sua linha de pensamento sobre esse assunto
representa apenas uma das correntes de pensamento que emergiam entre os cristatildeos no seacuteculo
II452
Para minimizar qualquer exotismo no reconhecimento dessa doutrina cristatilde ele
menciona a necromancia453 as visotildees obtidas atraveacutes de crianccedilas puras454 os que satildeo
451 Como Platatildeo discorrendo sobre a vida apoacutes a morte em Phaedo 107c 452 Cf POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005 passim 453 Justino usa o termo nekuomanteiaj que deve ser entendido como ldquoconsulta aos mortosrdquo cf I183 454 Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006 p178) editou essa passagem da seguinte forma ai` avdiafqorwn paidwn evpopteuseij [les divinations faites sur les entrailles drsquoenfants innocents] Seu texto grego foi fiel ao MS A que sugere o termo avdiafqorwn no lugar de diafqorwn mas a versatildeo em francecircs se distanciou muito do significado estrito Marcovich (Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005 p 59) observou a nota marginal do MS A e acrescentou tambeacutem a conjunccedilatildeo div proporcionando a seguinte frase ai` div avdiafqorwn paidwn evpopteuseij Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 123) apresentam uma correccedilatildeo que parece ser a mais convincente Em vez de substituir diafqorwn por avdiafqorwn eles simplesmente dividem a palavra que aparece no MS A em duas div avfqorwn paidwn evpopteuseij [visions obtained through uncorrupted children] Natildeo eacute possiacutevel dizer se se trata de uma
93
chamados entre os magos de espiacuteritos dos sonhos e espiacuteritos assistentes para assim tentar
estabelecer que mesmo depois da morte as almas conservam a consciecircncia Os casos de
possessatildeo ou loucura quando segundo sua concepccedilatildeo sobre o que se pensava naquela eacutepoca
alguns eram ldquoarrebatados e agitados pelas almas dos mortosrdquo tambeacutem satildeo alocados ao lado
dos oraacuteculos de Anfiloco de Dodona de Piton e outros semelhantes A descida de Ulisses ateacute
a regiatildeo dos mortos na obra de Homero (Odisseia10101 ndash 111ss) as doutrinas de escritores
como Empeacutedocles e Pitaacutegoras Platatildeo e outros que disseram coisas parecidas tambeacutem satildeo
destacadas
A ideia de uma consciecircncia apoacutes a morte fiacutesica natildeo era algo estranho no mundo greco-
romano da eacutepoca de Justino Mas o apologista apresenta uma elaboraccedilatildeo teoloacutegica sobre o
ldquocastigo ou salvaccedilatildeo eternardquo que deveria desempenhar uma funccedilatildeo coercitiva sobre as pessoas
em geral Essas ideias cristatildes satildeo herdeiras de elementos do pensamento judaico jaacute sob a
influecircncia do helenismo Desse modo satildeo encontrados aspectos comuns ao judaiacutesmo como o
da justiccedila divina e outros relativos a outras culturas como a existecircncia da alma455
Segundo Dag Oistein Endsjo456 os judeus sofreram a influecircncia da cultura grega sobre
as ideias do poacutes-morte sem que isso represente uma planificaccedilatildeo das duas culturas A
correspondecircncia entre alguns elementos aparece por exemplo na traduccedilatildeo de lw a v para avdej
na LXX proporcionando a associaccedilatildeo entre a ldquosepulturardquo e o ldquosubmundo dos mortosrdquo
Associaccedilatildeo que remonta a Odisseia de Homero e se estende para niacuteveis mais complexos
Conforme tambeacutem considerou E D Wright457 judeus e cristatildeos emprestaram alguns
elementos da cultura greco-romana para a elaboraccedilatildeo de suas cosmologias Mas as
consulta de crianccedilas vivas ou mortas mas poder haver alguma relaccedilatildeo com as passagens sobre as ldquocrianccedilas purasrdquo nos Papyri Graecae Magicae e principalmente com a Historia Eclesiaacutestica (III1311-12) de Soacutecrates 455 Devido aos objetivos desta pesquisa seraacute necessaacuterio ser bastante seletivo neste ponto A anaacutelise do desenvolvimento das ideias cristatildes sobre a vida apoacutes a morte exigiria uma anaacutelise de suas raiacutezes na cultura egeia entre os egiacutepcios mesopotacircmicos no zoroastrismo na cultura grega em geral e nas vaacuterias fases da religiatildeo dos judeus As correlaccedilotildees estabelecidas neste capiacutetulo satildeo aprofundamentos de toacutepicos sugeridos pelos proacuteprio Justino no decorrer de sua anaacutelises Para mais informaccedilotildees cf SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946 OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992 COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987 DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000 SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006 456 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 457 The History of Heaven New York Oxford University Press 2000 p 139
94
correlaccedilotildees se estendem tambeacutem para com a cultura persa que segundo Alan Segal458
apresentava aspectos muito atrativos ao povo simples
O desenvolvimento das ideias sobre o poacutes-morte entre os judeus eacute complexa Haacute
algum consenso entre os estudiosos de que a ideia de ldquoressurreiccedilatildeordquo tenha aparecido
tardiamente no judaiacutesmo Mas as Escrituras judaicas apresentam referecircncias a algum tipo de
existecircncia apoacutes a morte fiacutesica Um caso emblemaacutetico acontece quando o rei Saul procurou
uma b A a ecircb A a ecircb A a ecircb A a ecirc-t l[]B [evocadora de espiacuteritos] para poder falar com o falecido profeta Samuel (I
Samuel 281-7) praacutetica proibida pela Lei (Dt 189-12) No I seacutec dC a ressurreiccedilatildeo era
motivo de disputas entre saduceus e fariseus459 Os saduceus natildeo acreditavam na ressurreiccedilatildeo
dos mortos Sobre os fariseus Flaacutevio Josefo460 escreveu que ldquotoda alma [] eacute impereciacutevel
mas somente a alma dos bons passa a outro corpo Por outro lado a alma dos homens maus
estaacute sujeita agrave puniccedilatildeo eternardquo Os saduceus satildeo descritos como aqueles que ldquoacreditavam que
Deus natildeo estaacute interessado em se agimos bem ou mal [] agir bem ou mal eacute apenas uma
questatildeo de escolha humana e que uma ou outra pertence a cada um assim podem agir como
bem entendemrdquo461 Tambeacutem descartam a crenccedila ldquona duraccedilatildeo imortal da alma e na puniccedilatildeo e
recompensa no Hadesrdquo462 Na contramatildeo dessas ideias Josefo escreve que os fariseus
ldquotambeacutem acreditam que a alma tem o poder de sobreviver agrave morte em si e que embaixo da
terra haveraacute recompensa ou puniccedilatildeo para a vida de viacutecio ou virtude que se viveu nesta
vidardquo463
Natildeo passou despercebido a Vicente Dobroduka464 que o vocabulaacuterio empregado pelo
historiador judeu se assemelha razoavelmente ao de Platatildeo465 Quer seja por uma intenccedilatildeo do
autor em aproximar a doutrina farisaica agrave filosofia ou pela adaptaccedilatildeo de um editor posterior
os pontos de semelhanccedila entre essas doutrinas e a cultura helecircnica satildeo evidentes Mesmo sem
ser uma forma de pensar que atraiacutesse a todos os judeus naquela eacutepoca natildeo haacute razotildees para se
458 Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004 p 394 Cf as noccedilotildees escatoloacutegicas persas que teriam influenciado a apocaliacuteptica judaica em RUSSELL D S The Method and Message of Jewish ApocalypticPhiladelphia Westminster Press 1964 p 19 e em SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008 p 314 Entre essas noccedilotildees esta a ideia da ressurreiccedilatildeo corporal Para uma visatildeo geral da escatologia do Avesta cf MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975 pp 177-207 459 Mt 2223-33 Josefo Ant Jud 1814 Guer Jud 28 460 Guer Jud 2162ss 461 Guer Jud 2162ss 462 Guer Jud 2162ss 463 Ant Jud 1814 464 DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 2005 p 24 465 Meno 81b5 Feacutedon 70a8 e 72a8
95
duvidar que a ideia de uma recompensa futura baseada nas accedilotildees humanas era amplamente
conhecida entre os judeus Como escreveu Elizacircngela A Sousa466
certos elementos nas ideias particulares de juiacutezo satildeo compartilhados por uma e outra cultura assinalando algum tipo de intercacircmbio existente entre elas o que ainda outra vez nos coloca de frente com o pressuposto de que certos aspectos culturais (e religiosos) se constituem se natildeo totalmente a partir de trocas simboacutelicas pelo menos em parte satildeo influenciados por elas
A tradiccedilatildeo aponta que Paulo era um fariseu467 e a sua crenccedila na ressurreiccedilatildeo se
desenvolveraacute entre os cristatildeos No entanto eacute preciso lembrar como destacou D O Sousa468
que entre os cristatildeos ldquonatildeo havia uma unicidade de pensamento em continuidade com a
escatologia judaicardquo No processo proselitista de comunicaccedilatildeo da mensagem cristatilde os fieacuteis
enfrentaram os questionamentos de outros grupos Segundo o relato de Atos dos Apoacutestolos
(1716-34) Paulo enfrentou a resistecircncia dos filoacutesofos epicureus e estoicos no areoacutepago em
Atenas e em outro episoacutedio precisou repreender os coriacutentios em carta porque alguns estavam
sustentando que natildeo existia ressurreiccedilatildeo (I Co 1512-33) Embora os relatos de ressurreiccedilatildeo
dos mortos e da existecircncia de uma consciecircncia apoacutes a morte fossem comuns ao mundo greco-
romano como destaca Dag Oistein Endsjo469 natildeo existia nenhum consenso e eacute possiacutevel
distinguir essas contraposiccedilotildees em pelo menos dois grupos os criacuteticos intelectuais que
incluiacuteam filoacutesofos oradores e escritores e por outro lado a maioria sem instruccedilatildeo
De acordo com Lewis Richard Farnell470 a especulaccedilatildeo filosoacutefica grega natildeo poderia
ser considerada uma testemunha plena da mentalidade e da feacute daquela eacutepoca da cultura greco-
romana Estrabatildeo471 escreveu provavelmente no iniacutecio do I seacuteculo dC que ldquofilosofia era
algo para poucos enquanto poesia era mais uacutetil para as pessoas em geralrdquo No mesmo sentido
Plutarco472 admite que em sua eacutepoca apenas poucos conheciam as Leis de Platatildeo enquanto os
escritos de Homero eram ainda amplamente disseminados Pausacircnias no seacuteculo II dC
escreveu que Platatildeo a quem ele chama de ldquoo maior dos filoacutesofosrdquo473 tinha suas ideias
recebidas somente ldquopor alguns dos gregosrdquo474 Tudo indica que a situaccedilatildeo no II seacuteculo era a
466 SOARES Elizangela A Variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte desenvolvimento de uma crenccedila no judaiacutesmo do segundo templo 127 f (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Universidade Metodista de Satildeo Paulo 2006 p 104 467 At 223 468 SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 setdez 2009 p 412 469 Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 passim 470 Ibid p 386 471 Geografia 128 472 Moralia 328de 473 Descriccedilatildeo da Greacutecia 4324 474 Ibid 1303
96
mesma que Oriacutegenes475 descreve no seacuteculo seguinte ldquoeacute faacutecil de fato observar que Platatildeo eacute
encontrado somente nas matildeos daqueles que professam serem homens das letrasrdquo
Conforme destacou Henry Chadwick476 o estudo da metafiacutesica platocircnica foi peculiar a
poucos de uma ldquoaristocracia intelectualrdquo Nesse sentido Ramsay MacMullen477 tambeacutem
apontou que a reflexatildeo filosoacutefica natildeo apresentou nenhuma influecircncia detectaacutevel agrave praacutetica
cuacuteltica da religiatildeo tradicional grega478 Por outro lado eacute possiacutevel encontrar criacuteticas da
intelectualidade agraves superstitiones e agrave religiatildeo tradicional Certamente para pensadores como
Plutarco Dio de Prusa e Luciano de Samoacutesata os deuses natildeo existiam conforme as formas
homeacutericas Segundo Ramsay MacMullen479 esses pensadores puristas sustentam que os
deuses estavam distantes demais de tais caracteriacutesticas humanas comuns tais como nascer
comer beber e fornicar como a maioria deles faz extensivamente em suas tradicionais
representaccedilotildees Tudo isso natildeo passa de deisidaimonia ou seja ldquosupersticcedilatildeordquo Muitas vezes os
filoacutesofos reinterpretavam ou racionalizavam os mitos antigos rejeitando acontecimentos
milagrosos recentes semelhantes agraves narrativas antigas
No mundo grego a morte foi usualmente definida como a separaccedilatildeo da alma do corpo
Isso eacute amplamente demonstrado nas representaccedilotildees da morte de muitos guerreiros de Homero
repetidamente descritas como a alma [yuch] deixando o corpo480 E mesmo Platatildeo poderia
concordar com isso tendo Soacutecrates proclamado que a morte em sua opiniatildeo ldquonatildeo eacute nada
aleacutem do que a separaccedilatildeo dessas duas coisas a alma e o corpordquo481 A alma homeacuterica no Hades
era sempre definida como ldquomorterdquo Eram ldquoespiacuteritos da morterdquo482 ldquoMorterdquo natildeo significava
inexistecircncia absoluta mas uma existecircncia deacutebil da alma sem o corpo Sem um corpo fiacutesico
ningueacutem era de fato uma ldquopessoa completardquo Para os gregos a natureza humana sempre
equivaleu a uma unidade psicossomaacutetica Como escreveu Michael Clarcke483 ldquoo homem
homeacuterico natildeo tinha uma mente pois seus pensamentos e consciecircncia eram partes constituintes
da sua vida corpoacuterea como eram os movimentos e o metabolismordquo
475 Contra Celso 62 476 Introduction In ____ Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi 477 Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981 p77 478 Isso natildeo quer dizer que filosofia natildeo acarretou mudanccedilas na maneira de pensar a religiatildeo pelos letrados como se considerou no capiacutetulo anterior 479 Ibid p77 480 ENDSJO Dag Oistein Greek Ressurrection beliefs and the success of Christianity Basingstoke (Hampshire UK) Palgrave Mcmillan 2009 p 38 481 Platatildeo Gorgias 524b cf Platatildeo Feacutedon 64c 482 Odisseia 11541 cf Odisseia 10521 10536 1129 1149 483 CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999 p 115
97
Como filoacutesofo Plutarco natildeo acreditava em nenhuma dessas histoacuterias populares sobre
ressurreiccedilatildeo fiacutesica e imortalizaccedilatildeo Para ele somente a alma tinha a chance de alcanccedilar a
esfera divina ldquoquando ela definitivamente se separa e se torna livre do corpo tornando-se
pura descarnada e imaculadardquo484 Mas ele admite que a maioria das pessoas natildeo se importava
com isso
Essas especulaccedilotildees tinham consequecircncias apenas limitadas de modo que natildeo
apresentaram um impedimento destacaacutevel agrave proliferaccedilatildeo de superstitiones inclusive entre as
classes elevadas agraves vezes Conforme Rohde485 argumenta a indignaccedilatildeo apaixonada de
filoacutesofos estoicos e epicureus que atacavam as crenccedilas que repousavam sobre os ensinos de
Homero natildeo poderiam ser explicadas exceto pela suposiccedilatildeo de que Homero e suas
representaccedilotildees permaneciam com uma significativa forccedila de orientaccedilatildeo entre as massas que
natildeo tinham conhecimento da filosofia O proacuteprio Justino indica que as ideias em torno da
crenccedila no Hades ainda eram fortes
O apologista toma o desafio de mostrar que a forma de pensar cristatilde natildeo era uma
novidade tatildeo descabida que natildeo pudesse ser aceita e ao mesmo tempo procura mostrar que
suas ideias apresentam um argumento razoaacutevel Comparando a crenccedila cristatilde na existecircncia de
uma consciecircncia apoacutes a morte do corpo agraves outras opiniotildees disseminadas pelo Impeacuterio
destaca-se tambeacutem que essa doutrina natildeo era demasiadamente estranha aos povos486 Os
elementos aparentemente comuns agrave cultura greco-romana e ao cristianismo nascente satildeo
alinhados na construccedilatildeo do argumento de que se os cristatildeos natildeo apresentavam uma doutrina
demasiadamente nova natildeo deveriam existir razotildees para serem incomodados ou combatidos
Neste caso os que apresentam doutrinas semelhantes agraves dos fieacuteis tambeacutem mereceriam ser
combatidos ou em uma melhor hipoacutetese ambos mereceriam ser deixados em paz
Outro refuacutegio apologeacutetico encontrado por Justino eacute recorrer ao fundamento cristatildeo na
tradiccedilatildeo judaica para assim alegar a antiguidade cristatilde Mas reconhecendo os elementos
semelhantes agrave cultura geral e agrave religiatildeo dos judeus o apologista abaixa a guarda para os
golpes da intelectualidade Por isso sua trama apologeacutetica precisa forjar um sentido
racionalizante desses elementos comuns a pagatildeos e a judeus e apresentar ao mesmo tempo a
doutrina cristatilde como um ensinamento superior agrave filosofia
484 Plutarco Romulus 287 485 ROHDE Erwin [1921] Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966 p 535 486 I186
98
Ele compara a crenccedila cristatilde na consumaccedilatildeo final de todas as coisas agraves noccedilotildees de
Sibila487 e Histapes488 (I201) sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo de tudo o que eacute corruptiacutevel A
funccedilatildeo do fogo no processo do ciclo coacutesmico dos filoacutesofos estoicos tambeacutem eacute elencado
destacando o renascimento do mundo pela transformaccedilatildeo489 Arquitetando seu argumento
apologeacutetico Justino questiona por que os cristatildeos satildeo ldquoperseguidosrdquo se existem algumas
correlaccedilotildees ou semelhanccedila entre as coisas ensinadas entre os fieacuteis e entre os filoacutesofos e
ldquopoetasrdquo estimados pelos romanos490 Essas correlaccedilotildees no entanto levaratildeo o apologista a
um aprofundamento dessas semelhanccedilas e dessemelhanccedilas Ele escreve
Assim quando dizemos que tudo foi ordenado e feito por Deus pareceraacute apenas que enunciamos um dogma de Platatildeo ao falar sobre conflagraccedilatildeo outro dogma dos estoicos ao dizer que satildeo castigadas as almas dos iniacutequos que ainda depois da morte conservaratildeo a consciecircncia e que as dos bons livres de todo castigo seratildeo felizes pareceraacute que falamos como vossos poetas e filoacutesofos que natildeo se devem adorar obras de matildeos humanas natildeo eacute senatildeo repetir o que disseram Menandro o
487 O substantivo feminino Sibulla pode significar uma ldquoprofetizardquo (PEREIRA Isidro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 516) Admite-se que essas elas profetizavam sob a influecircncia divina O primeiro escritor grego a fazer menccedilatildeo a Sibila eacute Heraacuteclito (Fragmento 92) No entanto Walter Burket (Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985 p 116) escreve que mulheres em frenesi espiritual pelas quais os deuses falavam podiam ser encontradas muito antes no Oriente proacuteximo como em Mari no secundo milecircnio e na Assiacuteria no primeiro milecircnio Elas natildeo eram identificadas por um nome proacuteprio ficavam conhecidas apenas com o nome do local onde atuavam Uma coleccedilatildeo de anuacutencios profeacuteticos deu origem ao que ficou conhecido como Libri Sibyllini Acredita-se que a abra tenha sido obtida no reinado de Tarquinio Priscus (616 aC ndash 579 ac) por uma Sibila que protagoniza um mito em torno do livro Por vezes ela eacute chamada apenas de Sibila Os textos serviam de paracircmetro para a religiatildeo e eram guardados no Juacutepiter Captolino Com o incecircndio do templo em 82 aC os livros se perderam Deram iniacutecio a uma raacutepida busca por textos sibiliacutenicos por diversas regiotildees para compor uma nova coleccedilatildeo Poreacutem o caraacuteter e a pretensatildeo dos textos coletados desapontou esse objetivo Augustus determinou que os livros fossem destruiacutedos (Suetonio Vita cesarum Augustus 31 Tacito Anais VI12) Tibeacuterio voltou a examinar os Livros Sibilinos Muitos foram rejeitados como escritos espuacuterios (Cassius Dio LIV17) Pouco tempo mais tarde ainda sob seu governo um novo volume foi admitido (Taacutecito Anais VI12) (cf SMITH W (Ed) A Dictionary of Greek na Roman Antiquities London John Murray 1875 pp 1043-1044) Do primeiro para o segundo seacuteculo uma grande porccedilatildeo de escritos de cunho judaico-cristatildeos entram no paacutereo do textos sibiliacutenios (cf TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899) Eacute difiacutecil saber exatamente a qual ensino sibilino sobre a consumaccedilatildeo pelo fogo Justino se refere MUNIER (op cit p 185) sugere que seja o trecho dos Oracles Sibyllins II196 MARCOVICH (Op cit p 62) aponta as passagens de Oracle Sibylline 2196ss 2286ss 3672ss 3689ss 4173ss 7120ss 8243ss O mesmo livro sibilino eacute mencionado em I4512 cuja leitura era vetada ao povo Cf ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997 PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988 A Greek-English Lexicon Edited by Henry Georg Liddell and Robert Scott OxfordNew York Clarendon PressOxford University Press 1996 488 U`stasphj eacute a forma grega de se escrever Vistaspa nome do pai de Dario o Grande e protetor de Zoroastro (KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945) Justino provavelmente estaacute se referindo ao escrito pseudoepiacutegrafo dos Oraacuteculos de Histaspes produzido provavelmente entre os seacuteculo II e I aC Essa obra heleniacutestica da Aacutesia menor apresentava fortes traccedilos do Zoroastrismo mas tambeacutem evidenciava aspectos poliacutetico-apocaliacutepticos relacionado ao domiacutenio de Roma sobre os demais povos (SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012 cf CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938) Histaspe e Sibila tambeacutem aparecem juntos nos escrito de Clemente de Alexandria (Stromata VI51) Lactacircncio (Divinae Institutiones VII1519 VII182) 489 I202 490 I203
99
poeta cocircmico e outros com ele que afirmaram que o artiacutefice eacute maior do que aquele que o fabrica (I204-5)
Tendo em vista a criacutetica dos filoacutesofos e letrados agraves crenccedilas gerais do povo as
semelhanccedilas e pontos de contato entre as doutrinas cristatildes e os mitos pagatildeos apontados por
Justino em defesa dos cristatildeos poderia se converter em uma nova dificuldade como algueacutem
que tenta sair de um abismo para cair em outro Por isso ele desenvolve uma explicaccedilatildeo para
essas semelhanccedilas elevando as doutrinas cristatildes a um niacutevel de primazia e evidenciando o seu
aspecto filosoacutefico
Segundo Viviana L Felix491 mesmo admitindo a semelhanccedila entre os ensinos de
Platatildeo e o dos cristatildeos uma posiccedilatildeo contraacuteria agrave doutrina platocircnica da alma eacute assumida
empenhando-se na construccedilatildeo de uma soteriologia e escatologia cristatildes conforme seratildeo
analisadas mais adiante O apologista combate como destaca Van Winden492 as correntes
filosoacuteficas que natildeo tecircm esperanccedila que Deus castigue ou premie em outra vida Seu interesse
estaacute ligado agrave vida eacutetica do homem e seu destino escatoloacutegico
A esperanccedila dos cristatildeos de terem os seus corpos restabelecidos mesmo depois de
mortos poderia representar algo ldquoimpossiacutevelrdquo na opiniatildeo de alguns Justino natildeo usa outro
argumento que natildeo seja o argumento da feacute Esse seu subterfuacutegio indica que muitas coisas que
parecem ser impossiacuteveis em um momento se demonstram possiacuteveis em outro surpreendendo
a muitos Ele usa o exemplo do secircmen humano para dizer que mostrado a algueacutem luacutecido
jamais se poderia supor imediatamente que uma soacute gota desse liacutequido seria capaz de se
transformar em um corpo humano De modo semelhante entatildeo se a princiacutepio pode parecer
estranho crer que um corpo ldquosemeadordquo na sepultura possa se transformar em um corpo
glorificado na ressurreiccedilatildeo depois se mostraraacute evidente493 Explanando esse argumento o
apologista explica que os cristatildeos sustentam que ldquoeacute melhor crer naquilo que estaacute acima da []
proacutepria natureza e que eacute impossiacutevel aos homens do que serem increacutedulosrdquo494 Tudo gira em
torno dos ensinamentos do seu mestre Jesus Cristo O mesmo que ensinou que o que eacute
impossiacutevel para os homens eacute possiacutevel para Deus495 Para um ouvinte alheio agrave mentalidade
judaico-cristatilde tal sentenccedila poderia parecer muito vaga Afinal os pagatildeos estavam
familiarizados com as limitaccedilotildees humanas e os poderes divinos que recheavam os mitos 491 FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa 492 WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 1975 pp 181-190 493 I191-4 494 I196 Kreitton de pisteuein kai tauta kai ta Th| e`autwn fusei kai avnqrwpoij avdunata hv o`moiwj toij alloij avpistein proseilhfamen MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 495 `Ta avdunata para avnqrwpoij dunata para qew|( MINNSPARVIS Op cit p 128 A citaccedilatildeo eacute de Lc 1827
100
Todavia Justino faraacute saber que o ponto chave desse misteacuterio eacute a feacute naquilo que eacute crido como a
ldquorevelaccedilatildeo divinardquo Essa revelaccedilatildeo mostra-se tambeacutem desafiadora pois ao mesmo tempo em
que traz luz sobre as accedilotildees humanas porta condenaccedilatildeo e temor ainda que estes sejam
contemplados pela mensagem da cruz496 de modo reparador Eacute no exato momento em que se
manifesta a necessidade de escolher aquilo que se revela como o correto verdadeiro e bom
que se deve temer pela escolha capaz de determinar o destino no poacutes-morte Essa advertecircncia
tambeacutem foi feita pelo mestre Natildeo temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais
podem fazer temei antes aquele que depois da morte pode lanccedilar alma e corpo no
inferno497 Ele mesmo define o ldquoinfernordquo como ldquoo lugar onde seratildeo castigados os que
tiverem vivido iniquamente e natildeo acreditaram que aconteceratildeo essas coisas ensinadas por
Deus atraveacutes de Cristordquo498 (I198) O Deus absoluto que tudo vecirc tudo conhece e do qual
nada se pode ocultar aparece tambeacutem como o grande juiz das accedilotildees humanas Assim
comunicada essa ldquoverdaderdquo cristatilde ela deve produzir temor e efetivar a sua funccedilatildeo em exigir
uma accedilatildeo positiva ou negativa de quem a ouve ou a lecirc
42 A razatildeo das escolhas e o fundamento da justiccedila cristatilde
Seguindo o raciociacutenio do apologista deve ser a ldquorazatildeordquo a dirigir as escolhas humanas
No entanto a ldquorazatildeordquo ou seja o logos que estaacute em evidecircncia no pensamento de Justino eacute
produto da sua arguiccedilatildeo teoloacutegico-apologeacutetica Eacute possiacutevel identificar uma estrateacutegia literaacuteria
496 Mensagem da morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo 497 lsquoMh Fobeisqe touj avnairountaj umaj kai meta tauta mh dunamenouj ti poihsai( fobhqhte de meta to Avpoqanein dunaMenon kai yuchn kai swma eivj geennan evmbalein)v MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 128 Cf Mt 1028 Lc 124-5 Geenna eacute uma transliteraccedilatildeo grega do termo aramaico ~ N h iy G e que corresponde ao ~oN h i a y G e hebraico e assumiu o sentido de ldquopuniccedilatildeo futurardquo (RUSCONI C Dicionaacuterio do Grego do Novo Testamento Satildeo Paulo Paulus 2003 p 106 A primeira menccedilatildeo ao Vale de Hinnom na Biacuteblia aparece em Js 158 No entanto no texto dos LXX (LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]) satildeo empregadas as palavras faragga Onom para se referir ao ~ N Oh i- y g E) da Biacuteblia Hebraica (Biblia Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50]) Em II Cr 283 a LXX substitui ~ N O=h i- b a y g EaringB pela transliteraccedilatildeo Gaibenenom Esse lugar teria destinados primeiramente ao sacrifiacutecio de crianccedilas a Moloque e a Baal numa parte especiacutefica do vale chamada Tophet Depois do Exiacutelio com o intuito de mostrar a abominaccedilatildeo do local o judeus o transformaram no depoacutesito de lixo da cidade Para a destruiccedilatildeo dos resiacuteduos ali depositados o fogo era mantido sempre aceso Por isso os judeus associaram ao local a ideia de sofrimento e corrupccedilatildeo (Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998 p 457) A palavra geenna eacute sempre empregada nos discursos de Jesus (Mt 2333 Lu 125 Mt 522) como um lugar de puniccedilatildeo num julgamento futuro e Justino o emprega nesse mesmo sentido 498 h de geenna evsti topoj enqa kolaxesqai mellousin oi` avdikwn biwsantej kai mh pisteuontej tauta genhsesqai( o[as o` qeoj dia tou Cristou evdidaxe) MINNSPARVIS Op cit p 128 Cf Lc 125 Mt 1028
101
que ressignifica o conceito de ldquorazatildeordquo por meio da construccedilatildeo teoloacutegica em torno do logos
cristatildeo buscando atestar a racionalidade da ldquofilosofiardquo cristatilde
Considerar a religiatildeo cristatilde como uma ldquofilosofia divinardquo499 natildeo eacute apenas o reflexo da
sua trajetoacuteria filosoacutefica ateacute sua conversatildeo eacute tambeacutem uma estrateacutegia apologeacutetica que considera
normal existirem diferentes correntes de pensamento dentro do Impeacuterio sem que isso acarrete
automaticamente perseguiccedilotildees entre grupos distintos500 Segundo Justino eacute o logosrazatildeo que
orienta o curso da apologia em favor dos cristatildeos501 O apologista estaacute convencido de que suas
reivindicaccedilotildees satildeo ldquojustas e verdadeirasrdquo502 o que exige uma investigaccedilatildeo particular sobre o
sentido desses dois conceitos tambeacutem De outro modo a causa uacuteltima das accedilotildees anticristatildes eacute a
influecircncia dos democircnios que colocam o povo e as autoridades contra os fieacuteis Segundo seu
raciociacutenio os ldquomaus democircniosrdquo agiam por meio da promoccedilatildeo da ignoracircncia e da confusatildeo
Por isso ele se demonstra disposto a apresentar outros pontos sobre as crenccedilas cristatildes ldquoa fim
de persuadir os amantes da verdaderdquo503
Tendo em vista que o mecanismo de controle proporcionado pelo conteuacutedo das
doutrinas cristatildes eacute estabelecido fundamentalmente pelo temor diante do Deus que sonda todas
as coisas e que pode punir ou recompensar eternamente aqueles que agem virtuosamente nesta
vida o apologista escreve sobre a capacidade humana de agir racionalmente
Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e se recusem
outras como ldquoa pobreza o sofrimento e a desonra paternardquo504 A incompreensatildeo dessa
ldquoracionalidade cristatilderdquo fazia com que muitos se opusessem aos cristatildeos A falta de
conhecimento sobre as doutrinas cristatildes seria a responsaacutevel por exemplo por muitos
acusarem-lhes de ateiacutesmo505 Por ser uma religiatildeo nova e em processo de consolidaccedilatildeo natildeo eacute
nenhuma surpresa que muitos ainda estivessem confusos acerca das doutrinas cristatildes que por
vezes encabulavam os proacuteprios cristatildeos506
499 II Apol 125 500 II Apol 126 501 II Apol 128 502 I1211 tambeacutem em I683 ldquonatildeo vos fizemos nossa suacuteplica nem dirigimos nossa exposiccedilatildeo porque Adriano o julgasse assim mas porque estamos persuadidos da justiccedila de nossas peticcedilotildeesrdquo 503 I1211 504 I128 505 I131 506 Os cristatildeos estavam longe de apresentarem unidade doutrinaacuteria Justino faz menccedilatildeo a cristatildeos divergentes como Helena Menandro e os marcionitas (I261-8)
102
421 A revelaccedilatildeo da norma e a oposiccedilatildeo dos democircnios
Segundo a tese apresentada por Justino os democircnios se apoderam de todos aqueles
que de um ou outro modo natildeo trabalham por sua proacutepria salvaccedilatildeo O conceito de daiacute mwn
estava presente na cultura grega desde Homero e Hesiacuteodo507 Seu campo semacircntico eacute extenso
Deus conceito baacutesico que mais se aproxima da ideia que Justino sustenta eacute o de ldquoum ser
divinordquo ldquoo poder divinordquo ldquoum semideusrdquo ldquoser que interfere no destino humanordquo e poderia
ser ldquobomrdquo ou ldquomaurdquo508
O conceito de ldquosalvaccedilatildeordquo natildeo estaacute claro nesses escritos mas estaacute relacionado agrave
recompensa positiva daqueles que creram e agiram conforme a revelaccedilatildeo dos desiacutegnios
divinos Isso tambeacutem significa associar-se ao logos e dissociar-se dos enganos demoniacuteacos
Desse modo ele escreve que ldquodepois de crer no logos noacutes nos afastamos deles [dos democircnios]
e por meio do Filho seguimos o uacutenico Deus unigecircnitordquo509
Esse distanciamento dos enganos destes seres malignos e pelo apego ao logos eacute o que
produz uma mudanccedila de conduta Seu testemunho em defesa da feacute eacute que os que antes se
compraziam na dissoluccedilatildeo agora abraccedilam apenas a temperanccedila os que antes se entregavam
agraves artes maacutegicas agora se consagram ao Deus bom e ingecircnito aqueles que antes eram
apegados aos bens materiais e agraves rendas agora compartilham do quem tecircm os que antes se
odiavam e se matavam mutuamente desprezando aqueles que natildeo pertenciam agrave mesma raccedila
pela diferenccedila de costumes agora vivem todos juntos rezam pelos seus inimigos e tratam de
persuadir os que os aborrecem injustamente a fim de que vivendo conforme conselhos de
Cristo tenham boas esperanccedilas de alcanccedilar uma recompensa de Deus (I Apol 141-3) Por
isso o filoacutesofo apologista critica as accedilotildees anticristatildes romanas que acatavam as caluacutenias
disseminadas dizendo ldquoateacute parece que temeis que todos se decidam a fazer o bem e natildeo
tenhais a quem castigarrdquo510
A fonte da moralidade cristatilde estaacute primeiramente relacionada agrave mensagem do seu
mestre o Cristo por vezes tido como motivo de escacircndalo para os infieacuteis Essa moralidade eacute
destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e comentaacuterios ldquodisseminados
507 POPE Kyle Mark The concept of theDAIMWN in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 13-17 cf REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004 508 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999 (Perseu Project) 509 I Apol 141 510 I Apol 124
103
entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso seu discurso sobressalta o
valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de temperanccedila511 Tambeacutem recebem
destaques a doutrina cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos
necessitados e a ausecircncia de valor da ostentaccedilatildeo512 Com o mesmo tom piedoso seguem as
afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico513 Desse
modo Justino contribui tambeacutem para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos
propondo uma identidade coletiva Nesse processo o apologista combate um conceito
estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que considera equiacutevocos e mal entendidos
ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja Essa sua atitude revela tambeacutem que o processo de construccedilatildeo da
identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada principalmente pela
necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os variados grupos
cristatildeos Pois as Igrejas em meados do seacuteculo II devem ser vistas ainda como manifestaccedilotildees
de ldquocristianismosrdquo514
No intuito de explicar o caraacuteter das crenccedilas cristatildes Justino faz referecircncia agrave recepccedilatildeo e
interpretaccedilatildeo de escritos e doutrinas Ser cristatildeo em sua perspectiva natildeo eacute simplesmente
pertencer a um grupo eacute um ldquoidealrdquo o de aprender o que foi ensinado pelo Cristo e praticar
em suas obras Desse modo elege-se a praacutetica dos ensinamentos do Logos como o elemento
fundamental diferenciador entre cristatildeos e natildeo-cristatildeos515 Justino defende a liberdade para
estes que ele tem por ldquocristatildeosrdquo aos outros espera-se que sejam mesmo perseguidos516
Dentre os ensinos do Cristo estaacute o pagamento dos tributos e contribuiccedilotildees517 mas o
apologista vai aleacutem Propondo-se a oferecer algumas das principais informaccedilotildees sobre o
conteuacutedo das crenccedilas cristatildes um paralelo entre a natureza desses ensinamentos e outras
arguiccedilotildees eacute traccedilado518
Jesus eacute descrito como u`ioj de Qeou [filho de Deus] aquele que ainda que parecesse
homem de modo comum por sua sabedoria mereceria chamar-se filho de Deus Haacute um
511 I151-7 512 I141-919 513 I161-6 514 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 515 ldquoAqueles poreacutem que se vecirc que natildeo vivem como ele ensinou sejam declarados como natildeo cristatildeos por mais que repitam com a liacutengua os ensinamentos de Cristo pois ele disse que se salvariam natildeo os que apenas falassem mas que tambeacutem praticassem as obrasrdquo (I169) 516 ldquoAqueles que natildeo vivem conforme os ensinamentos de Cristo e satildeo cristatildeos apenas de nome noacutes somos os primeiros a vos pedir que sejam castigadosrdquo (I1614) 517 Justino recorre agrave passagem comum a Mt 221719-20 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo cf I172 518 I144
104
contraste entre o Cristo que nasceu como Logos de Deus e o que afirmavam sobre Hermes
chamado de Logos anunciador ou mensageiro de Deus519 Para rebater o desdeacutem pela
crucificaccedilatildeo de Cristo que poderia representar algo despreziacutevel aos olhos de muitos no
Impeacuterio o apologista aponta que tambeacutem os filhos de Zeus sofreram mortes terriacuteveis Sobre
ele haver nascido de uma virgem ele compara-o a Perseu Quanto agrave cura de coxos paraliacuteticos
e enfermos de nascimento e ateacute mesmo ressurreiccedilatildeo de mortos ele aponta que haacute alguma
semelhanccedila com Ascleacutepio520 As comparaccedilotildees tambeacutem envolvem Dioniso e Heacuteracles esta
uacuteltima ascendida depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos os Dioacutescoros filhos de
Leda Perseu de Dacircnae e Belerofonte nascido de homens que ascenderam sobre o cavalo
Peacutegaso O apologista fala tambeacutem dos imperadores mortos aos quais muitos consideravam
como dignos da imortalidade e alguns juravam terem visto Ceacutesar subir ao ceacuteu521 Mas ele
adverte ldquoNatildeo pedimos que se aceite a nossa doutrina por coincidir com eles mas porque
dizemos a verdaderdquo522
As doutrinas cristatildes satildeo apresentadas como a ldquouacutenica verdaderdquo e a mais antiga do que
todos os escritores que existiram Seu discurso busca demonstrar que Jesus Cristo eacute
propriamente o uacutenico Filho nascido de Deus como seu Logos seu Primogecircnito e sua
Potecircncia A encarnaccedilatildeo do Filho pelo seu designo deu-se para que ele ensinasse essas
verdades para a transformaccedilatildeo e conduccedilatildeo do ldquogecircnero humanordquo523 Poreacutem segundo sua teoria
apologeacutetica antes de tornar-se homem entre os homens houve alguns democircnios malvados
que se adiantaram a dizer por meio dos poetas terem acontecido os mitos que inventaram
Seriam esses os mitos gerais conhecidos por gregos e romanos Em oposiccedilatildeo ao
esclarecimento proposto pelo logos para a salvaccedilatildeo humana esta o obscurecimento de toda a
racionalidade proporcionado pelos democircnios
Os democircnios satildeo entatildeo reconceituados a partir de uma perspectiva cristatilde que toma por
base a tradiccedilatildeo judaica em intersecccedilatildeo com aspectos da cultura grega conforme analisou K
M Pope524 Sua imagem estaacute relacionada ao ldquopriacutencipe dos maus democircniosrdquo chamado de
ldquoserpente satanaacutes diabo ou caluniador Todo o seu exeacutercito juntamente com os homens que
519 I221-2 520 I225-6 521 Cassius Dio (Hist Rom 56462 cf T Livio Histoacuteria de Roma (Ad urbe condita) I165-7) menciona a histoacuteria de que um senador e ex-pretor tinha jurado que ele tinha visto Augustus subindo aos ceacuteus Suetocircnio tambeacutem se refere a algo desse tipo Augustus 1004 Uma histoacuteria similar foi contada sobre Iulia Drusilla a irmatilde de Caliacutegula (Cassius Dio Hist Rom 59114) Secircneca zomba deste testemunho em Apocolocyntosis I 522 I231 523 I232 cf SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987 524 The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000 pp 52-53
105
o seguem seraacute enviado ao fogo para ser castigado pela eternidade sem fim coisa que foi de
antematildeo anunciada por Cristordquo525
Justino acredita ser possiacutevel demonstrar a veracidade da feacute cristatilde por meio do
cumprimento das Escrituras526 Ele explica que os profetas de Deus movidos pelo logos e sob
o Espiacuterito profeacutetico anunciaram antecipadamente os acontecimentos futuros Vem em
seguida uma seacuterie de ldquoprediccedilotildeesrdquo sobre a vinda de Cristo e sobre o que deveria acontecer tais
como a queda de Jerusaleacutem527 a cura das enfermidades e a morte de Cristo a ressurreiccedilatildeo dos
mortos e a prediccedilatildeo de Isaiacuteas528 sobre a expansatildeo para todas as naccedilotildees Ele tambeacutem procura
mostrar que ateacute o sofrimento e a humilhaccedilatildeo de Jesus estavam previstas nas profecias e que
ele chegou a ser abandonado ateacute pelos seus (I501ss) Seu raciociacutenio eacute o seguinte
Com efeito do mesmo modo que o acontecido antecipadamente anunciado por mais que natildeo tivesse sido compreendido aconteceu assim tambeacutem o que ainda falta para ser cumprido aconteceraacute por mais que natildeo se compreenda nem se creia Assim eacute que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo uma jaacute cumprida como homem desonrado e passiacutevel a segunda quando viraacute dos ceacuteus acompanhado de seu exeacutercito de anjos quando ressuscitaraacute tambeacutem os corpos de todos os homens que existiram revestiraacute de incorruptibilidade os que forem dignos e enviaraacute os iniacutequos com percepccedilatildeo eterna ao fogo eterno junto com os perversos democircnios (I521-3)
Com convicccedilatildeo sobre o cumprimento das profecias escreve ldquoDe fato por que motivo
haveriacuteamos de crer que um homem crucificado eacute o primogecircnito do Deus ingecircnito e que
julgaraacute todo o gecircnero humano se natildeo encontraacutessemos testemunhos sobre ele publicados
antes de ele ter nascido como homem e natildeo os viacutessemos literalmente cumpridosrdquo 529 E isso o
faz pensar que a apresentaccedilatildeo desse elevado nuacutemero de referecircncias a prediccedilotildees e seus
cumprimentos deveria razoavelmente convencer a seus leitores530
Os mitos dos pagatildeos satildeo comparados aos ldquoensinosrdquo cristatildeos sustentando que eles natildeo
apresentam nenhuma prova de sua veracidade Isso deveria demonstrar que foram ditos por
obra dos ldquodemocircnios perversosrdquo para enganar e extraviar o ldquogecircnero humanordquo Ouvindo os
profetas anunciarem que Cristo viria e que os homens iacutempios seriam castigados atraveacutes do
fogo esses seres maleacutevolos teriam colocado agrave ldquofrente muitos que se disseram filhos de Zeus
crendo que assim conseguiriam que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo
como um conto de fada semelhante aos contados pelos poetasrdquo531 Assim eacute elencada uma
seacuterie de semelhanccedilas entre a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e a greco-romana para mostrar a distorccedilatildeo
525 I281 526 I301ss 527 I471ss 528 Is 651-15 520 529 I532 530 Justino escreve que seriam persuadidos os que ldquoamam a verdade que natildeo seguem a opiniatildeo nem se deixam dominar por suas paixotildeesrdquo (I5310-12) 531 I542
106
pagatilde que soacute podem ser identificadas atraveacutes de uma hermenecircutica bem peculiar532 As
comparaccedilotildees vatildeo desde o texto de Gn 4910-11 agrave vinha de Dioniso e sua ascensatildeo
semelhante agrave subida de Belerofonte montado no cavalo Peacutegaso ao ceacuteu o texto de Is 714 e a
lenda de Perseu Sl 186 e as narrativas sobre Heacutercules ateacute as ldquoprofeciasrdquo de curas a todas as
enfermidades e ressurreiccedilatildeo dos mortos533 ao mito de Ascleacutepio Mas a crucificaccedilatildeo eacute algo que
os pagatildeos natildeo poderiam imitar pois tudo ldquotudo o que se refere agrave cruz foi dito de forma
simboacutelicardquo534
Os judeus no entanto satildeo tidos como ignorantes sobre o cumprimento das profecias
de que Jesus deveria vir nascido de uma virgem que ele chegaria agrave idade adulta curaria toda
doenccedila toda fraqueza e ressuscitaria dos mortos que seria invejado desconhecido e
crucificado que morreria ressuscitaria e subiria aos ceacuteus que ele eacute e se chama Filho de Deus
que ele enviaria alguns para proclamar essas coisas a todo o gecircnero humano e seriam os
homens das naccedilotildees aqueles que mais creriam nele535
Ele recorre aos escritos do profeta Isaiacuteas536 para indicar que Cristo seria concebido por
uma virgem O logos eacute conceituado como o Filho a primeira virtude ou potecircncia depois de
Deus que eacute Pai e soberano de todas as coisas O logos entatildeo se tornou carne e nasceu homem
(I3210) Por Espiacuterito e forccedila que procede de Deus ele eacute reconhecido como o Logos que eacute o
primogecircnito de Deus O apologista sustenta que aqueles que profetizam satildeo inspirados pelo
logos divino
Em sua perspectiva os judeus detentores da tradiccedilatildeo e dos livros dos profetas poreacutem
aleacutem de natildeo reconhecerem a Cristo jaacute vindo tambeacutem odeiam aos cristatildeos Isso eacute destacado
na sua afirmaccedilatildeo de que na guerra dos judeus Bar Koseba o cabeccedila da rebeliatildeo mandava
submeter a terriacuteveis torturas somente os cristatildeos caso estes natildeo negassem e blasfemassem
Jesus Cristo (I316)
A mensagem cristatilde eacute um elemento apelativo que busca induzir os fieacuteis a uma conduta
diferente ldquoNoacutes que antes nos mataacutevamos mutuamente agora natildeo soacute natildeo fazemos guerra
contra os nossos inimigos mas tambeacutem por natildeo mentir nem enganar os juiacutezes que nos
interrogam morremos felizes de confessar a Cristordquo (I393) Justino considera ridiacuteculo que os
soldados que se arrolam e se alistam pusessem a lealdade para com o imperador ldquoacima de
sua proacutepria vida acima dos pais paacutetria e tudo o que lhes pertence embora nada de
532 BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 2009 pp 538-555 533 Is 355-6 Mt 115 534 I551 535 I317-8 536 Is 111-10
107
impereciacutevel lhes pudeacutesseis oferecerrdquo (I395) Por outro lado os cristatildeos que amam a
incorrupccedilatildeo suportam tudo a troco de receber daquele que confiam ter poder para lhes dar
(I395)
A superioridade do Deus judaico-cristatildeo sobre os deuses das outras naccedilotildees aparece
submetendo os demais deuses ao jugo dos ldquodemocircniosrdquo sob a sombra da ignoracircncia que esses
propagam Entretanto o Deus dos cristatildeos eacute o Deus que criou a racionalidade
Justino coloca que
no princiacutepio [Deus] criou o gecircnero humano racional capaz de escolher a verdade e praticar o bem de modo que natildeo existe homem que tenha desculpa diante de Deus pois todos foram criados racionais e capazes de contemplar a verdade Se algueacutem natildeo crecirc que Deus se preocupe com essas coisas ou teraacute que confessar com sofismas que natildeo existe ou existindo se compraza com a maldade ou permaneccedila insensiacutevel como uma pedra Virtude e viacutecio seriam puros nomes e os homens considerariam as coisas como boas ou maacutes unicamente por sua opiniatildeo o que eacute a maior impiedade e iniquidade (I283-4)
Esse ser racional que Justino se refere eacute tambeacutem aquele cuja racionalidade pode ser ratificada
no reconhecimento e submissatildeo aos ensinos cristatildeos Haacute uma postura anti-estoica manifesta
em suas palavras que reduz o dogma do destino dessa corrente filosoacutefica a ldquoimpiedade e
iniquidaderdquo537
Ele sustenta que os cristatildeos aprenderam com os profetas que
os castigos e tormentos assim como as boas recompensas satildeo dadas a cada um conforme as suas obras Se natildeo fosse assim mas tudo acontecesse por destino natildeo haveria absolutamente livre-arbiacutetrio Com efeito se jaacute estaacute determinado que um seja bom e outro mau nem aquele merece elogio nem este vitupeacuterio Se o gecircnero humano natildeo tem poder de fugir por livre determinaccedilatildeo do que eacute vergonhoso e escolher o belo ele natildeo eacute irresponsaacutevel de nenhuma accedilatildeo que faccedila538 (I432-3)
Ele destaca que se por outro lado algueacutem
estivesse determinado [para] ser mau ou bom natildeo seria capaz de coisas contraacuterias nem mudaria com tanta frequumlecircncia Na realidade nem se poderia dizer que uns satildeo bons e outros maus desde o momento que afirmamos que o destino eacute a causa de bons e maus e que realiza coisas contraacuterias a si mesmo ou que se deveria tomar como verdade o que jaacute anteriormente insinuamos isto eacute que virtude e maldade satildeo puras palavras e que soacute por opiniatildeo se tem algo como bom ou mau Isso como demonstra a verdadeira razatildeo eacute o cuacutemulo da impiedade e da iniquidade (I436)
O ldquodestino iniludiacutevelrdquo reconhecido pelo apologista eacute que aqueles que escolheram o
bem tenham ldquodigna recompensardquo e os que escolheram o contraacuterio tenham igualmente ldquodigno
castigordquo (I437) Dentro do sistema de pensamento construiacutedo por Justino seria incoerente
com o sistema de controle social admitir que Deus tenha determinado as escolhas humanas
Nesse caso como ele escreve ldquonatildeo seria digno de recompensa e elogio pois natildeo teria
escolhido o bem por si mesmo mas nascido jaacute bom nem por ter sido mau seria castigado
537 avsebeia kai avdikia evsti I284 538 PLATAtildeO Repuacuteblica 617e
108
justamente pois natildeo o seria livremente mas por natildeo ter podido ser algo diferente do que foirdquo
(I438) Desse modo o apologista deixa clara sua oposiccedilatildeo ao estoicismo539
O pensamento de Justino sobre isso poderia ser resumido em ldquoDeus criou livres tanto
os anjos como o gecircnero humano e por isso receberam com justiccedila o castigo de seus pecados
no fogo eternordquo540 Tal alegaccedilatildeo estaria fundamentada na ideia de que tudo deve ser capaz de
viacutecio e de virtude pois ningueacutem seria digno de louvor se natildeo pudesse tambeacutem voltar-se para
um desses extremos541
Ele assume que esta doutrina foi ensinada pelo Espiacuterito profeacutetico que por meio de
Moiseacutes nos testemunha que falou ao primeiro homem que havia criado do seguinte modo
ldquoOlha que diante de tua face estaacute o bem e o mal escolhe o bemrdquo542 Ele cita tambeacutem Isaiacuteas543
e o proacuteprio Platatildeo544 ao dizer A culpa eacute de quem escolhe Deus natildeo tem culpa Justino
alega que Platatildeo falou isso por tecirc-lo tomado do profeta Moiseacutes desse modo ele diz que ldquopois
se sabe que este eacute mais antigo do que todos os escritores gregosrdquo (I441-8) Para explicar os
elementos semelhantes entre os escritos gregos e os judaico-cristatildeos o apologista alega que
tudo o que os filoacutesofos e poetas disseram sobre a imortalidade da alma e da contemplaccedilatildeo das coisas celestes aproveitaram-se dos profetas natildeo soacute para poder entender mas tambeacutem para expressar isso Daiacute que parece haver em todos algo como germes de verdade Todavia demonstra-se que natildeo o entenderam exatamente pelo fato de que se contradizem uns aos outros (I449-10)
Deus conhece de antematildeo tudo o que seraacute feito por todos os homens e eacute decreto seu
recompensar cada um segundo o meacuterito de suas obras e por isso justamente prediz por meio
do Espiacuterito profeacutetico o que para cada um viraacute da parte dele conforme o que suas obras
mereccedilam545 Ele eacute aquele que constantemente conduz o gecircnero humano agrave reflexatildeo e agrave
lembranccedila demonstrando-lhe que cuida e usa de providecircncia para com os homens
Sobre a novidade da religiatildeo cristatilde Justino escreve ldquoAlguns sem motivo para rejeitar
o nosso ensinamento poderiam nos objetar que ao dizermos que Cristo nasceu somente haacute
cento e cinquumlenta anos sob Quirino e ensinou sua doutrina mais tarde no tempo de Pocircncio
Pilatos os homens que o precederam natildeo tecircm nenhuma responsabilidaderdquo (461) Ele entatildeo
responde
Noacutes recebemos o ensinamento de que Cristo eacute o primogecircnito de Deus e indicamos antes que ele eacute o Logos do qual todo o gecircnero humano participou Portanto aqueles
539 ldquohellipnoacutes dizemos que aconteceraacute a conflagraccedilatildeo universal mas natildeo como dizem os estoacuteicosrdquo II63 cf Alesandre de Aphrodisias On Fate 9 [17525] 540 II65 541 II66 542 Dt 301519 543 Is 116-20 544 Repuacuteblica X617e 545 I4411
109
que viveram conforme o Logos satildeo cristatildeos quando foram considerados ateus como sucedeu entre os gregos com Soacutecrates Heraacuteclito e outros semelhantes e entre os baacuterbaros com Abraatildeo Ananias Azarias e Misael e muitos outros cujos fatos e nomes omitimos agora pois seria longo enumerar De modo que tambeacutem os que antes viveram sem razatildeo [logos] se tornaram inuacuteteis e inimigos de Cristo e assassinos daqueles que vivem com razatildeo [logos] mas os que viveram e continuam vivendo de acordo com ela satildeo cristatildeos e natildeo experimentam medo ou perturbaccedilatildeo O motivo pelo qual ele nasceu homem de uma virgem pela virtude do Logos conforme o desiacutegnio de Deus Pai e soberano do universo e foi chamado Jesus e depois de crucificado e morto ressuscitou e subiu ao ceacuteu o leitor inteligente poderaacute perfeitamente compreendecirc-lo pelas longas explicaccedilotildees que foram dadas ateacute aqui (462-6)
O apologista usa de uma estrateacutegia semacircntica para literalmente ldquodar razatildeordquo agraves
doutrinas cristatildes
422 A razatildeo que julga
No mundo grego a palavra logoj jaacute assumira uma significacircncia para o pensamento
especulativo desde muito cedo Era um termo teacutecnico para as vaacuterias ldquociecircnciasrdquo que se
desenvolviam na Greacutecia do seacutec V aC A gramaacutetica a loacutegica a retoacuterica a psicologia a
metafiacutesica a teologia e a matemaacutetica deram-lhe sentidos diferentes ainda dentro do mesmo
campo da ciecircncia Seu campo semacircntico eacute vasto Pode significar razatildeo palavra discurso
menccedilatildeo declaraccedilatildeo afirmaccedilatildeo resposta promessa dito proveacuterbio ou maacutexima546 Alguns
destes significados podem parecer contraditoacuterios Ele eacute um termo comum que pode aparecer
em qualquer lugar Aparece nos textos de Homero Heroacutedoto Platatildeo Aristoacuteteles Tuciacutededes
Piacutendaro Aeschylus Xenoacutefanes Soacutefocles Aischines e outros547 mas eacute seu significado
filosoacutefico-religioso que importa A histoacuteria desse conceito eacute bastante complexa todavia eacute
suficiente abordar os principais aspectos do uso filosoacutefico-religioso do logoj
Justino sustenta que os gregos aprenderam muitos conceitos com as Escrituras
judaicas Segundo sua teoria Ptolomeu rei do Egito se preocupou em formar uma biblioteca
e nela reunir os escritos de todo o mundo tendo notiacutecia dessas profecias mandou uma
546 Significa ainda decisatildeo resoluccedilatildeo ordem proclamaccedilatildeo ensinamento doutrina parte de doutrina definiccedilatildeo hipoacutetese condiccedilatildeo pacto fama tradiccedilatildeo lenda reputaccedilatildeo boato opiniatildeo notiacutecia revelaccedilatildeo oraacuteculo resposta de oraacuteculo palavra revelada verbo assunto mateacuteria objeto questatildeo fato acontecimento coisa discurso frase prosa falar faculdade de falar e como logoj proforikoj discurso extriacutenseco palavra uso da palavra direito agrave palavra coloacutequio discussatildeo faacutebula narrativa imaginaacuteria lenda mito narrativa histoacuterica histoacuteria literatura conta caacutelculo soma explicaccedilatildeo avaliaccedilatildeo valor significado a razatildeo praacutetica (nouj especulativo) razatildeo divina personificada motivo causa fundamento justificaccedilatildeo plano projeto RUSCONI C (ed) DICIONAacuteRIO do grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998 p 350 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001 547 LIDDLE H G SCOTT Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001
110
embaixada pedindo os livros dos judeus Ptolomeu providenciou que fossem traduzidos para o
grego Depois disso os livros permaneceram entre os egiacutepcios ateacute o presente e os judeus os
usam no mundo inteiro Assim os gregos teriam aprendido muitas coisas que teriam
ldquoenriquecidordquo seus mitos e pensamentos em geral548
Todavia foi Filon de Alexandria quem primeiro tomou as interrogaccedilotildees filosoacuteficas
estabelecendo correlaccedilotildees com os elementos da cultura religiosa judaica549 Era corrente no
judaiacutesmo a reflexatildeo sobre a ldquoPalavrardquo criadora e comunicadora da revelaccedilatildeo divina Mas foi o
contato com a cultura helecircnica e as proximidades semacircnticas ainda que muito limitadas entre
Escrituras judaicas e as palavras gregas que carregaram o teor filosoacutefico ou especulativo550
Conforme analisou Dax F P Nascimento551 eacute por intermeacutedio do Logos uma espeacutecie de
declaraccedilatildeo divina que se remete a si mesmo revelado que se obteacutem a educaccedilatildeo acerca da
verdade por meio da qual haacute o arrependimento ou conversatildeo dos prazeres e ciecircncias do
mundo sensiacutevel para a razatildeo e para a piedade
Entre os cristatildeos natildeo haacute evidecircncias de que a reflexatildeo sobre o logos tenha a princiacutepio
alguma conotaccedilatildeo filosoacutefica Teoacutelogos como R Bultmann552 G Kimmel553 O Culmann554
concordam que o logos mencionado no proacutelogo do Evangelho segundo Joatildeo eacute uma niacutetida
referecircncia agrave ldquoPalavrardquo comunicadora de Deus sobre a qual Fiacutelon refletiu Eacute possiacutevel que na
virada do I para o II seacuteculo a expansatildeo cristatilde comeccedilasse a exigir uma atenccedilatildeo maior tambeacutem
aos conceitos e questotildees pertinentes ao mundo greco-romano555
Com a conversatildeo de filoacutesofos como Atenaacutegoras Aristides e do proacuteprio Justino as
correlaccedilotildees entre essas correntes de pensamentos se manifestam principalmente na produccedilatildeo
apologeacutetica cristatilde556
Justino escreve que do logos que inspirou os profetas Platatildeo tomou o que disse sobre
Deus ter criado o mundo transformando uma mateacuteria informe557 Segundo Minns e Parvis558
548 I311-5 549 BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950 550 KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91 Cf COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp 1507-1562 551 O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia PUC Rio de Janeiro 2003 p 179 552 Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004 553 Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983 554 Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002 555 ARZANI A A teologia do logoj no Quarto Evangelho Orientador Dr Paulo Beniacutecio Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008 pp 52-60 556 Cf WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982 557 I591
111
suas comparaccedilotildees entre algumas passagens das Escrituras e dos textos de Platatildeo satildeo
interpretaccedilotildees difiacuteceis de serem compartilhadas pois apresentam uma hermenecircutica muito
particular e em alguns pontos chega a interpretar o platonismo segundo formas comuns ao
estoicismo Destacando os elementos semelhantes ao cristianismo e outras correntes de
pensamento Justino alega ldquonatildeo somos noacutes que professamos opiniotildees iguais aos outros e sim
todos por imitaccedilatildeo repetem as nossas doutrinasrdquo559 Mas esses pontos de contato satildeo
limitados Ele escreve que
natildeo satildeo totalmente semelhantes como tambeacutem as dos outros filoacutesofos os estoacuteicos por exemplo poetas e historiadores De fato cada um falou bem vendo o que tinha afinidade com ele pela parte que lhe coube do logos seminal divino Todavia eacute evidente que aqueles que em pontos muito fundamentais se contradisseram uns aos outros natildeo alcanccedilaram uma ciecircncia infaliacutevel nem um conhecimento irrefutaacutevel Portanto tudo o que de bom foi dito por eles pertence a noacutes cristatildeos porque noacutes adoramos e amamos depois de Deus o logos que procede do mesmo Deus ingecircnito e inefaacutevel Ele por amor a noacutes se tornou homem para partilhar de nossos sofrimentos e curaacute-los Todos os escritores soacute puderam obscuramente ver a realidade graccedilas agrave semente do logos neles ingecircnita560
Enquanto algumas correlaccedilotildees entre o pensamento cristatildeo e a cultura greco-romana
satildeo fruto da accedilatildeo dos democircnios para causar confusatildeo uma porccedilatildeo do logos pode ser
identificada para aleacutem daqueles que deteacutem o logos pleno
Nesse sentido ele escreve
Sabemos que alguns que professaram a doutrina estoacuteica foram odiados e mortos Pelo menos na eacutetica eles se mostram moderados assim como os poetas em determinados pontos por causa da semente do Logos que se encontra ingecircnita em todo o gecircnero humano (II71)
Heraacuteclito que foi banido de Eacutefeso por causa de suas ideias e tambeacutem o filoacutesofo
Musonius que dentre outros que sofreram algum tipo de hostilidade nos tempos de Nero a
Vespasiano561 satildeo citados como exemplo Natildeo haacute nenhum motivo evidente para Justino
mencionar Heraacuteclito exceto pela sua teoria sobre o logos Quanto a Gaius Musonius Rufus
seu nome eacute lembrado pelo acento moral de sua filosofia de inspiraccedilatildeo estoica que o tornou
ridiacuteculo a muitos soldados562 Desse modo procura-se destacar que ldquoos democircnios sempre se
empenharam em tornar odiosos aqueles que de algum modo quiseram viver conforme o
Logos e fugir da maldade (II72)
O apologista ainda considera como uma investida dos democircnios a pena de morte
estabelecida contra aqueles que lessem os livros de Histaspes da Sibila e dos profetas a fim
558Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 236 559 I6010 560 II132-5 561 TACITO Histoacuterias III81 562 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 42
112
de impedir por meio do terror que os homens consigam lendo-os o conhecimento do bem e
retecirc-los como seus escravos563
Segundo o apologista muito mais odiado que aqueles que possuem o logos seminal
satildeo os que tecircm conhecimento e contemplaccedilatildeo do logos total Conforme suas proacuteprias
palavras ldquoO logos de Deus eacute seu Filho [] E tambeacutem se chama mensageiro e embaixador
porque ele anuncia o que se deve conhecer e eacute enviado para nos manifestar tudo o que o Pai
nos comunicardquo564 Sendo os cristatildeos os detentores do logos total e sendo o logos total aquele
que anuncia o que se deve conhecer para se proceder corretamente e receber a recompensa
futura tudo se resume agrave submissatildeo agraves ideias cristatildes565
A forma de controle empregada pelos romanos e que conduz os cristatildeos diante dos
tribunais satildeo pintadas como um sinal da ignoracircncia despreziacutevel daqueles que se submetem agrave
irracionalidade da obscuridade demoniacuteaca em exerciacutecio de uma falsa justiccedila
O julgamento segundo a ldquorazatildeordquo eacute o julgamento final estabelecido pelo Deus cristatildeo e
sobre o qual o apologista pretende convencer a todos ao seu redor566 Os democircnios no
entanto natildeo conseguem convencer de que natildeo haveraacute a conflagraccedilatildeo para castigar os iacutempios
do mesmo modo que natildeo conseguiram esconder a Cristo depois que ele nasceu A uacutenica coisa
que conseguem eacute fazer com que aqueles que vivem irracionalmente e se desenvolvem em
meio aos maus costumes entregues agraves suas paixotildees e seguindo a opiniatildeo vatilde procurem tirar a
vida dos cristatildeos e os odeiem Os cristatildeos por outro lado satildeo apresentados como aqueles que
por pura compaixatildeo por eles procuram persuadi-los a se converterem
Os maus haacutebitos dos deuses satildeo reprovados por essa medida cristatilde pois serviriam para
a corrupccedilatildeo dos que eram educados tendo em vista que muitos consideravam ldquobelordquo serem
imitadores dos deuses567 O apologista natildeo pode admitir que uma mente sensata aceite as
accedilotildees de Zeus e de Ganimedes como ldquodivinasrdquo (I215) Por isso ele relaciona a disseminaccedilatildeo
desses mitos agraves artimanhas dos democircnios que induzem os homens agrave imoralidade Em
oposiccedilatildeo agrave accedilatildeo dos democircnios Justino sustenta que aos cristatildeos foi ensinado que soacute poderiam
alcanccedilar a imortalidade aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus assim como
tambeacutem se sustenta que seratildeo castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e
563 Cf Tacitus Annales II32 XII52 Historias I22 II62 Cassius Dio Hist Rom 57157-8 564 I634-5 565 Cf PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988 566 Cf KERESZTES P Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986 567 E um pensamento que estava relacionado aos epicureus pelo menos Philodemus Sobre a Piedade 71
113
natildeo se converteram (I216) Para os outros estaacute guardado o dia do juiacutezo descrito com grande
tormento em que se encontraratildeo os injustos568
A moralidade cristatilde eacute destacada como um provaacutevel argumento contra as ldquocaluacuteniasrdquo e
comentaacuterios ldquodisseminados entre os natildeo-cristatildeos sobre o comportamento dos fieacuteis Por isso
seu discurso sobressalta o valor da conversatildeo de uma vida dissoluta para uma vida de
temperanccedila569 que crescia em nuacutemeros naquela eacutepoca Tambeacutem recebem destaques a doutrina
cristatilde sobre o amor ao proacuteximo a valorizaccedilatildeo da atenccedilatildeo aos necessitados e a ausecircncia de
valor da ostentaccedilatildeo570 Com o mesmo tom piedoso seguem as afirmaccedilotildees sobre a paciecircncia
a estima pela verdade e adoraccedilatildeo ao Deus uacutenico571 Desse modo Justino contribui tambeacutem
para a construccedilatildeo de um conceito sobre quem satildeo os cristatildeos propondo uma identidade
coletiva
Um conceito estigmatizado de ldquocristianismordquo e aquilo que chama de equiacutevocos e mal
entendidos ldquodemoniacuteacosrdquo sobre a Igreja satildeo combatidos Essa sua atitude revela que o
processo de construccedilatildeo da identidade do que viria a ser a ldquoortodoxiardquo da Igreja foi alavancada
principalmente pela necessidade de se estabelecer paracircmetros de reconhecimento entre os
variados grupos cristatildeos572 Os outros grupos cristatildeos como o dos seguidores de Marciatildeo satildeo
tidos como instrumentos nas matildeos dos democircnios (I581) Seus discursos satildeo ldquoirracionaisrdquo e
satildeo presas de doutrinas ateiacutestas do democircnio573
Tendo em vista que as pessoas satildeo capazes de agir bem ou mal devido agrave liberdade
concedida por Deus considera-se que em todas as partes haacute tambeacutem os que ldquolegislaram e
filosofaram conforme a reta razatildeordquo ou aparte dela ao mandarem que se faccedilam algumas coisas
e se evitem outras574 A ldquoreta razatildeordquo agrave qual Justino se refere eacute aquela que deriva do Logos
cristatildeo que permeia a criaccedilatildeo revela a mensagem de Deus aos homens desde outros tempos
pelas Escrituras e no seacutec I pelo proacuteprio Cristo e que assim estabelece o padratildeo de conduta
aos que desejam a ldquorecompensa eternardquo Desse modo eacute identificado um padratildeo de justiccedila
baseado nas crenccedilas e valores cultivados pelos cristatildeos que estatildeo proacuteximos a Justino e que L
W Barnard575 chega a chamar de uma ldquoproto-ortodoxiardquo Natildeo eacute possiacutevel resumir ou descrever
568 Is 6624 569 I151-7 570 I141-919 571 I161-6 572 FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11 573 Avlla Avlogwj w`j upoacute Lukou arnej sunhrpasmenoi( bora Twn avqewn dogmatwn kai daiacutemonwn ginontai I582 574 II68 575 Justin Martyr his life and thought Cambridge Cambridge University Press 1967
114
o conteuacutedo dessas crenccedilas e valores a partir da anaacutelise das Apologias sabe-se poreacutem que o
apologista se refere agrave forma de pensar dos cristatildeos que lhe satildeo proacuteximos e se distanciam do
modo de pensar por exemplo do grupo de Marciatildeo Helena e Menandro
Justino contempla tambeacutem as criacuteticas daqueles que segundo o seu parecer ldquose
consideram filoacutesofosrdquo e que alegariam que as ideias cristatildes sobre um julgamento universal
futuro ldquosatildeo apenas ruiacutedos espalhafatosos e alarmismosrdquo e diriam que a ameaccedila do castigo no
fogo eterno natildeo passa de um instrumento despreziacutevel para que a ldquohumanidade viva retamente
por medo e natildeo porque a virtude eacute bela e gratificanterdquo (II91) Haacute indiacutecios de que Chrysippus
de Solis dizia que Platatildeo errava em fazer do temor aos deuses um instrumento para a detenccedilatildeo
da injusticcedila e que o argumento do castigo divino natildeo eacute diferente das histoacuterias que as matildees
contam para assustar as criancinhas576 E ainda segundo Diogenes Laertius Crisipo
sustentava que a ldquovirtude [] eacute uma disposiccedilatildeo harmoniosa escolha digna para seu proacuteprio
bem e natildeo de esperanccedila medo ou qualquer outro motivo externordquo577 Em sua soluccedilatildeo Justino
toma emprestado o argumento de Alexandre de Afrodiacutesias578 que defendeu a responsabilidade
moral humana e diz ldquose isto natildeo eacute como dizemos entatildeo natildeo existe Deus ou se existe natildeo se
importa em nada com os homensrdquo579 Virtude e o viacutecio nada seriam e em consequecircncia nem
os legisladores castigariam com justiccedila os que transgridem as boas ordenaccedilotildees Segundo
Minns e Parvis580 a hipoacutetese de Deus natildeo se importar com os seres humanos parece refletir a
visatildeo estoica que estabelecia a teoria do bem e do mal ou virtude e infelicidade considerando
a proximidade com o universo natural e a administraccedilatildeo do mundo Assim quando
Chrysippus581 mantinha que a natureza universal e a administraccedilatildeo do mundo era o
fundamento da teoria estoica sobre o bem e o mal ele estava apelando agrave racional e
providencial atividade de deus cuja conformidade com o qual constitui o bem para o homem
e cuja carecircncia de conformidade constitui o mal
Todavia Justino pontua que os legisladores ldquonatildeo satildeo injustos e o Pai deles ensina
atraveacutes do Logos a fazer o que ele mesmo fazrdquo e neste sentido ldquonatildeo satildeo injustos os que
576 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1040b 577 Diogenes Laertius Vida dos filoacutesofos eminentes VII89 578 ldquopois se natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo e virtude e viacutecio eles argumentam tambeacutem natildeo haacuteacutelouvor ou reprovaccedilatildeo e sem estes natildeo haacute accedilotildees certas ou erradas e se natildeo haacute essas tambeacutem natildeo haacute virtude ou viacutecio e se natildeo haacute essas eles dizem natildeo haacute seque deuses Mas antes assim designadamente que natildeo haacute nenhuma recompensa ou puniccedilatildeo chega a afirmaccedilatildeo de que todas as coisas vem a estar em concordacircncia com o destino como tem sido mostrado Desse modo a uacuteltima posiccedilatildeo segue tambeacutem mas isto eacute absurdo e impossiacutevel (Alexandre de Afrodisias De fato36) 579 II91 580 Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 305 nota 1 581 Plutarco De stoicorum repugnantiis 1035c-d
115
aderem a essas virtudesrdquo582 Assim o apologista constroacutei outro padratildeo ldquoracionalrdquo atraveacutes do
qual os juiacutezes deveriam julgar para natildeo serem julgados por Deus O novo fundamento da
justiccedila no cumprimento dos seus anseios apologeacuteticos se resume a deixar os cristatildeos em paz
pois segundo seu ponto de vista natildeo havia nenhuma evidecircncia de que os fieacuteis fossem inimigos
do Impeacuterio Ele busca convencer o Imperador e seus filhos a impedir que os governantes e
magistrados locais empreendam accedilotildees anticristatildes apontando as razotildees e a racionalidade cristatilde
43 O governo o controle e os governantes
Justino ndash nessas suas peticcedilotildees apologeticamente fundamentadas que tinham como
destinataacuterios especiais Antonino Pio e seus filhos583 reconhecidamente apreciadores da
filosofia ndash alega que natildeo havia nenhuma ldquorazatildeordquo [logos] para se perseguirem os cristatildeos pois
seria a proacutepria ldquorazatildeordquo [o Logos] quem exige que ldquoos amantes da piedade e da filosofiardquo584
natildeo faccedilam algo irracionalmente
No capiacutetulo anterior foi destacada a criacutetica de Justino sobre os governantes agora
poreacutem eacute oportuno notar o perfil do governante traccedilado pelo apologista dentro do seu
argumento da contribuiccedilatildeo cristatilde para a manutenccedilatildeo da ordem Segundo sua teoria os homens
revestidos de autoridade para governar natildeo devem valorizar nada aleacutem da ldquoverdaderdquo Aleacutem
disso a partir de sua inspiraccedilatildeo platocircnica nota-se sua exigecircncia agravequeles que satildeo ldquopiedosos e
filoacutesofosrdquo assim como satildeo chamados o Imperador e seus filhos que deveriam julgar com
retidatildeo para que todos gozem de bem estar Governar com retidatildeo eacute para Justino governar
segundo a ldquoreta razatildeordquo Esse conceito eacute cristianizado mas aleacutem disso um governante ideal
ldquosuperiorrdquo eacute reverenciado ldquoo logosrdquo A quem ele chama de ldquoo rei mais alto o governante
mais justo que conhecemos depois de Deus que o gerourdquo (I Apol 127) Manifesta-se um
jogo semioacutetico com a palavra logos ou razatildeo
582 II92 583 A I Apologia foi dirigida ao Imperador Antonino Pio e a seus filhos Veriacutessimo (Marco Aureacutelio) e Lucio Vero A II Apologia pode ser continuaccedilatildeo da primeira como sustentou C Munier (Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006) fragmentos de anotaccedilotildees de um segundo escrito que natildeo pode ser entregue quando Justino foi preso durante o iniacutecio do governo de Marco Aureacutelio por volta de 160 dC como sustentam Minns e Parvis (Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 passim) A teoria mais tradicional eacute admitir que a II Apologia foi dirigida ao imperador Marco Aureacutelio mas como seraacute visto mais adiante haacute indiacutecios de que Justino tinha por destinataacuterios secundaacuterios todos os que pudessem ler o texto e se informar acerca da inocecircncia dos cristatildeos A soluccedilatildeo para a questatildeo dos destinataacuterios das Apologias exige uma investigaccedilatildeo agrave parte mas natildeo haacute duacutevidas de que Justino pretendia que se texto fosse conhecido por Antonino e seus filhos Marco e Lucio que desde cedo atuaram ao lado 584 I125
116
Eacute o logos que regula a sensatez humana para que se escolham coisas boas e recusem as
coisas maacutes e assim controlar os excessos humanos (I Apol 128) Do mesmo modo eacute o logos
quem deve orientar os governantes para que o bem ou a ldquosalvaccedilatildeordquo opere sobre o ldquogecircnero
humanordquo Por isso ele escreve ldquose os filoacutesofos e legisladores disseram e encontraram algo de
bom foi elaborado por eles pela investigaccedilatildeo e intuiccedilatildeo conforme a parte do logos que lhes
couberdquo585 Poreacutem por natildeo conheceram a integralidade do Logos que eacute Cristo ldquoeles
frequentemente se contradisseram uns aos outrosrdquo586 Aqueles que antes de Cristo tentaram
investigar e demonstrar as coisas pela razatildeo conforme as forccedilas humanas foram levados aos
tribunais como iacutempios e amigos de novidades Soacutecrates aparece como um exemplo que
ratifica a fala de Justino Segundo o apologista ele foi acusado ldquodos mesmos crimes que [os
cristatildeos]rdquo587 A condenaccedilatildeo seria em razatildeo da oposiccedilatildeo daquele filoacutesofo agrave tradiccedilatildeo homeacuterica e
a outros poetas ensinando os homens a rejeitar ldquoos maus democircniosrdquo envolvidos com a
idolatria e ao mesmo tempo os exortando ao conhecimento de Deus para eles desconhecido
por meio de investigaccedilatildeo racional dizendo Natildeo eacute faacutecil encontrar o Pai e artiacutefice do universo
nem quando o tivermos encontrado eacute seguro dizecirc-lo a todos588 Todavia se ningueacutem deu
ouvidos a Soacutecrates ateacute que ele deu a sua vida por essa doutrina em Cristo acreditaram natildeo soacute
filoacutesofos e homens dos quais o proacuteprio Justino eacute um mas tambeacutem artesatildeos e pessoas
totalmente ignorantes que souberam desprezar a opiniatildeo o medo e a morte Justino pretende
assim apresentar o poder de abrangecircncia da mensagem cristatilde que deriva do Logos que em
parte foi conhecido por Soacutecrates pois como o apologista escreve ldquoele era e eacute o Logos que
estaacute em tudo e foi quem predisse o futuro atraveacutes dos profetas e feito de nossa natureza por
si mesmo nos ensinou essas coisasrdquo589
A partir desse tipo de comparaccedilatildeo retrata-se o caso que ocorreu sob Urbico na cidade
de Roma Eacute provaacutevel que outros casos como esse acontecessem em regiotildees diferentes590
Segundo Justino ldquoo fato eacute que em todas as partes haacute gente disposta a [] levar [os cristatildeos] agrave
morterdquo591 A reprovaccedilatildeo cristatilde das atitudes condenaacuteveis ou repreensiacuteveis de outras pessoas era
um dos motivos para que os cristatildeos fossem denunciados aos governantes ldquoendemoniadosrdquo592
Ele escreve especialmente sobre certa mulher cristatilde na eacutepoca do prefeito Urbico que
procurou persuadir seu marido agrave castidade referindo-lhe os mesmos ensinamentos e lhe 585 II102 586 II102 587 II105 588 II105-6 Citaccedilatildeo de Platatildeo Timeu 28c 589 II108 590 II11 591 II12 592 II13
117
anunciando o castigo do fogo eterno preparado para os que natildeo vivem castamente e conforme
a ldquoreta razatildeordquo Naquela ocasiatildeo a uacutenica pergunta feita a Ptolomeu no tribunal de Urbico foi se
era cristatildeo Apoacutes confessar recebeu condenaccedilatildeo ao supliacutecio O mesmo aconteceu com Luacutecio
que tambeacutem advertiu a Urbico593 de que ele natildeo estava ldquojulgando de modo conveniente ao
imperador Pio nem ao Ceacutesar filoacutesofo nem ao filho de Ceacutesar amigo do saber nem ao sacro
Senadordquo (II216)
Justino procura persuadir o imperador seus filhos e demais autoridades a barrarem as
condenaccedilotildees dos cristatildeos num momento quando natildeo haacute indiacutecios do estabelecimento de uma
lei concreta sobre a puniccedilatildeo dos cristatildeos Em vaacuterias regiotildees e em situaccedilotildees variaacuteveis os atritos
ocasionados pela presenccedila e expansatildeo cristatilde ocasionavam denuacutencias tidas pelos proacuteprios
cristatildeos como ldquocaluniosasrdquo a respeito da nova religiatildeo As accedilotildees anticristatildes se refletiam
muitas vezes na busca por sua condenaccedilatildeo em discussotildees em praccedilas ou em denuacutencias
dirigidas aos magistrados Em meados do seacuteculo II as delaccedilotildees sobre os cristatildeos variavam
pois seus opositores procuravam brechas juriacutedicas para enquadraacute-los A superstitio cristatilde
poderia proporcionar o oacutedio de muitos que resistiam agraves suas implicaccedilotildees morais sociais ou
simplesmente religiosas Por isso as denuacutencias ou posicionamentos se contradiziam em
lugares e ocasiotildees diferentes Taacutecito identificou algumas flagitia nas praacuteticas religiosas cristatildes
ou nos comentaacuterios sobre elas mas essa natildeo foi a opiniatildeo de Pliacutenio Segundo que julgou os
cristatildeos dignos de condenaccedilatildeo somente pela contumaacutecia que apresentaram diante de um
magistrado Para outros deveriam ser rejeitados pelo seu ateiacutesmo Comer o corpo e o sangue
de Cristo tambeacutem poderia provocar suspeitas de canibalismo594
O apologista contrasta a imagem do ldquopiordquo e ldquosaacutebiordquo governante representada na figura
de Antonino e seus filhos agravequela do falso filoacutesofo ou seja aquele que estaacute contra a ldquorazatildeordquo A
sua morte em defesa da ldquorazatildeordquo cristatilde aparece como uma possiacutevel analogia a Soacutecrates
devido aos seus embates com Crescente em Roma O falso ldquofiloacutesofordquo eacute aquele que natildeo sabe
uma palavra sobre os cristatildeos mas os calunia publicamente como esses fossem ldquoateus e
iacutempiosrdquo595 Ele adapta a esse novo contexto Xenofonte596 que conta que em uma encruzilhada
vieram ao encontro de Heacuteracles597 a virtude e o viacutecio na forma de mulheres
O viacutecio estava vestido com roupas finas tinha rosto atraente e adornado com enfeites e disse a Heacuteracles que se ele a seguisse ela o faria viver sempre no prazer
593 II215 594 Cf MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 winter1994 pp 413-442 595 wj avlogoj kai avsebwn Cristianwn ontwn( (II82) 596 Memorabilia II121-34 597 Heraacutecles tambeacutem foi invocada por estoicos como exemplo de luta moral (Churniss em Plutarco De Communibbus Notitiis adversus stoicos 1065c em Moralia)
118
e enfeitado com o mais belo ornamento semelhante ao que ela usava Ao contraacuterio a virtude com rosto e veste severos lhe disse Se seguires a mim natildeo te enfeitarei com beleza ou adorno passageiro e corruptiacutevel mas com enfeites eternos e belos598
Semelhantemente Justino considera
estamos persuadidos de que alcanccedilam a felicidade todos aqueles que fazem dos bens aparentes e seguem o que parece duro e contra a razatildeo Porque a maldade veste as suas accedilotildees com as qualidades da virtude e do que eacute de fato bem remedando o incorruptiacutevel pois ela de si natildeo tem nada de incorruptiacutevel e nem eacute capaz de produzi-lo e torna escravos seus os homens que se arrastam pelo chatildeo atribuindo agrave virtude os males proacuteprios da maldade Contudo os que compreendem os bens verdadeiros proacuteprios da virtude tambeacutem se tornam incorruptiacuteveis pela virtude599
Desse modo Justino procura constranger o imperador a partir do seu argumento
apologeacutetico e do jogo semioacutetico em torno da ldquorazatildeordquo e da filosofia a ser favoraacutevel aos
cristatildeos pois natildeo seria de nenhum modo virtuoso combater ou permitir que sejam combatidos
aqueles que segundo seu ponto de vista tecircm muito a contribuir para a paz no Impeacuterio
A contribuiccedilatildeo da religiatildeo cristatilde eacute apresentada dentro do seu plano apologeacutetico que
busca convencer natildeo apenas dos efeitos positivos do caraacuteter de suas crenccedilas para a
manutenccedilatildeo da ordem mas tambeacutem na apresentaccedilatildeo de alguns pontos fundamentais do seu
conteuacutedo que rebatam as ldquocaluacuteniasrdquo dos acusadores e apresentem o seu aspecto ldquoracionalrdquo Ao
explicar alguns fundamentos da crenccedila cristatilde como o combate agrave idolatria eacute possiacutevel notar que
o apologista eacute sensiacutevel em sua anaacutelise agrave diversidade de ideias e crenccedilas que interagem e se
contradizem no Impeacuterio Essa contradiccedilatildeo aparece tambeacutem entre os intelectuais e as crenccedilas
do povo comum Segundo Paul Veyne600 ldquotodo erudito hesitava entre o ceticismo da alta
sociedade e o esoterismo cultivadordquo Isso leva Justino a formular um argumento que busque
apresentar os aspectos racionais das crenccedilas cristatildes ainda que isso se reduza a um jogo
semioacutetico e linguiacutestico em torno do logos De qualquer forma a religiatildeo cristatilde aparece como
uma opccedilatildeo de superaccedilatildeo tanto da religiatildeo pagatilde questionada pelos intelectuais em muitos
aspectos quanto como uma filosofia sublime ou superior601 que tem maior alcance e eficaacutecia
no controle das accedilotildees humanas602 Assim ele escreve ldquoem Cristo acreditaram natildeo soacute filoacutesofos
e homens cultos mas tambeacutem artesatildeos e pessoas totalmente ignorantes que souberam
598 II114-5 599 II116-8 600 O Impeacuterio greco-romano Rio de Janeiro Elsevier 2009 p 280 601 ldquoPortanto a nossa religiatildeo mostra-se mais sublime do que todo o ensinamento humano pela simples razatildeo de que possuiacutemos o Logos inteiro que eacute Cristo manifestado por noacutes tornando-se corpo razatildeo e almardquo (II101) E tambeacutem ldquoas nossas doutrinas natildeo satildeo vergonhosas mas superiores a toda filosofia humanardquo (II152) 602 ldquoEntre noacutes tudo isso se pode ouvir e aprender ateacute daqueles que ignoram as formas das letras pessoas ignorantes e baacuterbaras de liacutengua mas saacutebias e fieacuteis de inteligecircncia e ateacute pessoas mutiladas e privadas de visatildeo De onde se pode entender que isso natildeo acontece pela sabedoria humana mas se diz que eacute pela forccedila de Deusrdquo (I6011)
119
desprezar a opiniatildeo o medo e a morte porque ele eacute a virtude do Pai inefaacutevel e natildeo um vaso
de humana razatildeordquo603
Apoacutes explicar os pontos fundamentais do pensamento cristatildeo Justino diz que ldquodaqui
por diante noacutes natildeo nos sentiremos irresponsaacuteveis mesmo que continueis increacutedulos pois o
que dependia de noacutes jaacute foi feito e chegou ao fimrdquo (558) Seguindo sua articulaccedilatildeo para
ratificar a fidelidade dos cristatildeos a Deus e ao Impeacuterio nota-se que o apologista faz uso do
proacuteprio efeito da doutrina cristatilde que sugere como instrumento de controle para persuadir o
imperador tambeacutem pelo possiacutevel temor Assim com um tom de advertecircncia ele escreve
[] se natildeo atendeis agraves nossas suacuteplicas nem esta exposiccedilatildeo puacuteblica que vos fazemos de todo o nosso modo de viver em nada ficaremos prejudicados pois cremos ou melhor estamos persuadidos de que cada um pagaraacute a pena conforme mereccedilam as suas obras pelo fogo eterno e que teraacute que prestar contas a Deus segundo as faculdades que recebeu do proacuteprio Deus conforme nos indicou Cristo dizendo A quem Deus deu mais mais seraacute exigido por Deusrdquo604 (I173-4)
Em outras palavras esse eacute um tipo de alerta ao imperador sobre a sua responsabilidade
diante de Deus devido a sua posiccedilatildeo de autoridade E como se deveria esperar de um
governante ldquopiordquo e ldquoamante da sabedoriardquo tal como foi idealizado no perfil construiacutedo por
Justino segundo sua leitura logocecircntrica Ou seja tendo a ideia do logos cristatildeo como
referecircncia o apologista escreve ldquose vos parece que tais doutrinas provecircm da razatildeo e da
verdade respeitai-as mas se as considerais como charlatanice ou coisa de charlatatildees
desprezai-as Natildeo decreteis poreacutem pena de morte como contra a inimigos contra aqueles
que nenhum crime cometemrdquo605 Sua peticcedilatildeo eacute seguida de outro alerta ldquoescatoloacutegicordquo ldquovos
avisamos de antematildeo que se vos obstinais em vossa iniquidade natildeo escapareis do futuro
julgamento de Deusrdquo606 Em outro ponto nesse mesmo sentido lecirc-se ldquose tambeacutem voacutes ledes
como inimigos estas nossas palavras aleacutem de matar-nos como jaacute dissemos antes nada podeis
fazer A noacutes isso nenhum dano causaraacute a voacutes poreacutem e a todos os que injustamente nos
odeiam e natildeo se convertem trar-vos-aacute castigo de fogo eternordquo (I456)
Aliada agrave ciecircncia dos benefiacutecios da religiatildeo cristatilde o apologista deixa claro o seu desejo
de que ldquotodos os homens de todo o mundordquo conheccedilam ldquoa verdaderdquo o que incluiacutea o imperador
e seus filhos Desses uacuteltimos deseja-se tambeacutem que julguem ldquocom justiccedila de acordo com [a]
piedade e filosofiardquo e que se possiacutevel publiquem esse escrito para o conhecimento de todos607
Natildeo eacute possiacutevel saber se as Apologias chegaram ateacute o imperador e eacute pouco provaacutevel
que ela tenha circulado amplamente conforme desejava Justino No entanto segundo Sara 603 II108 604 Fazendo menccedilatildeo a Lc 1248 605 I681 606 I681 607 II152
120
Parvis608 seu modo de escrever em defesa dos cristatildeos teria influenciado outros apologistas
As aproximaccedilotildees praticadas por esse pensador em sua manobra teoloacutegica buscam a conversatildeo
inclusive do imperador Em oposiccedilatildeo agrave forma controle que emerge dos clamores reativos
populares que estariam impelindo os governantes a acataram a condenaccedilatildeo do nomen
Christianum o apologista acaba por formular uma reflexatildeo teoloacutegica da histoacuteria que
contempla a relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo Se por um lado estaacute a criacutetica agrave forma de
manutenccedilatildeo da ordem imposta pelos romanos que dava margem para que denuacutencias
decorrentes de atritos locais que conduziam os cristatildeos agrave morte por outro emerge a sua teoria
sobre a cooperaccedilatildeo cristatilde na organizaccedilatildeo da sociedade devido ao caraacuteter de suas crenccedilas
Trata-se de um confronto de ideias cujos efeitos deveriam ser aguardados O modelo de
controle cristatildeo pode-se dizer eacute aquele que vem do alto ou de dentro Eacute fruto da assimilaccedilatildeo
da doutrina cristatilde que tem um Deus que zela pela justiccedila e pela moral e que exige uma
conduta impecaacutevel de todos os seus fieacuteis Os que creem e os que natildeo creem estatildeo sob a
condiccedilatildeo do seu juiacutezo O Deus cuja feacute os cristatildeos professam e procuram comunicar aos
demais natildeo tem nacionalidade Ele eacute o criador dos homens e da razatildeo [logos] Todo ser
humano recebeu uma semente dessa razatildeo mas os democircnios maleacutevolos satildeo os responsaacuteveis
por obscurecer o julgamento correto que conduz todo o genus humanus a uma vida reta justa
e virtuosa para a sua recompensa eterna Essa racionalidade humana eacute a responsaacutevel por fazer
com que os homens reconheccedilam e atentem para a mensagem pelo logos que revela Deus pelas
Escrituras ignoradas pelos judeus e examinas pelos cristatildeos Esse temor diante de Deus
entatildeo natildeo deveria ser rechaccedilado como uma superstitio despreziacutevel mas deveria ser acatada
como um mecanismo capaz de traduzir razoavelmente uma doutrina que agregue pontos de
aproximaccedilatildeo aos assuntos filosoacuteficos e a uma mensagem significativa para as pessoas sem
instruccedilatildeo Deve ser reconhecida natildeo como uma mensagem de odio humanus genus mas de
salvatio humanus genus609 sob o domiacutenio do Logos que se traduz na submissatildeo e conversatildeo
ao cristianismo
608 Justin Martyr and apologetic tradition In _____ FOSTER P Justin Martyr and his World Minneapolis Fortress Press 2007 pp 115ss 609 Isto eacute ldquosalvaccedilatildeo da humanidaderdquo
121
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
A situaccedilatildeo dos cristatildeos no Impeacuterio Romano em meados do seacuteculo II era instaacutevel e
revelava condenaccedilotildees esporaacutedicas Gritarias e tumultos puacuteblicos agraves vezes pressionavam os
magistrados para que condenassem os cristatildeos sem que houvesse uma ideia clara sobre como
enquadraacute-los em uma lei comum Um pouco antes Adriano havia sido consultado por
governantes610 como Graniano sobre esses problemas Naquela eacutepoca o imperador
recomendou a Minuacutecio Fundano que examinasse de modo particular as denuacutencias formais e
que natildeo desse espaccedilo para a pressatildeo dos tumultos puacuteblicos
Ainda um pouco antes a forma como deviam ser conduzidos os processos contra os
cristatildeos despertava algumas duacutevidas em Pliacutenio Segundo no Ponto-Bitiacutenia A crenccedila cristatilde era
vista como uma superstitio cujo temor os faziam repudiar os deuses comuns o culto ao
Imperador e todos os aspectos da vida puacuteblica que apresentasse algum viacutenculo com outras
crenccedilas e com a ldquoimoralidaderdquo Esse afastamento das interaccedilotildees sociais e o desprezo pelos
deuses tradicionais causou a aversatildeo de muitos das camadas populares e a desconfianccedila das
autoridades A estranheza dessa superstitio favoreceu a disseminaccedilatildeo de caluacutenias como a de
que a celebraccedilatildeo da ceia fosse algum tipo de ritual antropofaacutegico e que as reuniotildees cristatildes
privadas constituiacuteam-se em orgias Desse modo o nonem christianum assumiu uma forte
conotaccedilatildeo negativa pelas regiotildees do Impeacuterio A condenaccedilatildeo dos membros dessa nova religiatildeo
tinha precedentes desde a culpa pelo incecircndio de Roma nos tempos de Nero embora nenhuma
evidecircncia concreta a uma lei que condenasse o crime de ldquocristianismordquo seja encontrada na
primeira metade do II seacuteculo Trajano ratificou o procedimento de Pliacutenio em condenar os
cristatildeos por confessarem-se ldquocristatildeosrdquo todavia essas condenaccedilotildees tinham caraacuteter
admoestativo para desestimular o crescimento do grupo As buscas ou perseguiccedilotildees de fato
natildeo deviam entrar em curso Visava-se minar o corpo estranho representado pelo grupo
antissocial dos cristatildeos da sociedade e garantir a sua reintegraccedilatildeo mediante o perdatildeo aos que
abandonassem a feacute Se para alguns como Taacutecito a superstitio incidia sobre flagitia para
outros como Pliacutenio nenhum flagitium era detectado provavelmente eram produto das
caluacutenias e rumores das massas
A religiatildeo e os deuses tinham diferentes conotaccedilotildees entre a classe letrada entre os
poetas e para o povo sem instruccedilatildeo Desde os tempos de Platatildeo e Soacutecrates a filosofia
610 Deve-se considerar que a ldquoCarta de Antonino ao conciacutelio da Aacutesiardquo citada por Euseacutebio na Histoacuteria Eclesiaacutestica IV131-8 estava correta
122
sustentou criacuteticas agrave religiatildeo tradicional No II seacuteculo dC a influecircncia do cultivo do saber e do
exerciacutecio filosoacutefico podia ser percebida nas correntes de pensamento tais como o estoicismo e
o neoplatonismo que aproximavam a religiatildeo da moral Justino recebeu educaccedilatildeo grega e
provavelmente era filho de um funcionaacuterio romano Priscus cuja famiacutelia pode ter atuado na
colonizaccedilatildeo de Flavia Neaacutepolis na Palestina De laacute partiu para sua jornada pelos caminhos da
filosofia ateacute conhecer as doutrinas cristatildes Como ldquofiloacutesofordquo eacute possiacutevel que sustentasse criacuteticas
agrave forma de pensar das pessoas comuns considerada expressatildeo de ldquoexcessos supersticiososrdquo
Na condiccedilatildeo de cristatildeo passou a pensar a religiatildeo a partir da filosofia Desse modo a feacute cristatilde
passou a representar em seu pensamento a ldquofilosofia verdadeirardquo e ldquodivinardquo Diante dos atritos
sofridos pelos cristatildeos em seu tempo recorreu ao poder da argumentaccedilatildeo e da conveniecircncia
da escrita para defender os cristatildeos da ldquoinjusticcedilardquo sofrida Em uma peticcedilatildeo apologeticamente
fundamenta escreveu a Antonino Pio e a seus filhos clamando para que os cristatildeos natildeo
fossem condenados apenas pela confissatildeo de ldquocristianismordquo Para alcanccedilar o favor do
imperador Justino procura desfazer a conotaccedilatildeo negativa em torno desse nomen christianum
por meio da explicaccedilatildeo dos principais toacutepicos das doutrinas cristatildes e da afirmaccedilatildeo da
submissatildeo dos cristatildeos
A partir da reflexatildeo sobre suas ideias compreende-se o paradoxo entre tipo de controle
social desenvolvido pelas autoridades romanas que permitem a intoleracircncia a esses (ou seja
os cristatildeos) que satildeo tidos como ameaccedila agrave ordem e por outro lado o tipo de controle social
apontado nas Apologias que daacute razatildeo agrave toleracircncia aos cristatildeos Justino tece uma criacutetica jaacute
conhecida sobre a imoralidade dos deuses pagatildeos Ele natildeo se sente nem um pouco intimidado
em sustentar que os deuses nada satildeo aleacutem de uma ilusatildeo criada pelos ldquomaus democircniosrdquo para o
desvirtuamento dos homens Os ldquomaus democircniosrdquo satildeo os responsaacuteveis pelo obscurecimento
de toda a ldquoverdaderdquo A ldquoverdaderdquo eacute o conhecimento superior que conduz a humanidade agrave
moralidade e eacute reconhecida pelo exerciacutecio da ldquorazatildeordquo A ldquorazatildeordquo eacute algo divino compartilhado
a todos os homens e encarnada na pessoa de Jesus Cristo o mestre dos cristatildeos Sua
encarnaccedilatildeo eacute o cumprimento das profecias das Escrituras sustentadas pelos judeus que por
natildeo a compreenderem corretamente natildeo satildeo capazes de reconhecer o cumprimento da
expectativa messiacircnica611 Por reconhecer mediante uma hermenecircutica que busca identificar
o maacuteximo de evidecircncias possiacuteveis sobre o cumprimento das Escrituras em Cristo612 o
611 ldquoExpectativa messiacircnicardquo expressatildeo teoloacutegica utilizada para se referir a esperanccedila de que o messias libertador de Israel chegaria conforme os profetas israelitas haviam predito 612 Tambeacutem chamada de ldquohermenecircutica cristocecircntricardquo ou no que se refere agrave comunicaccedilatildeo da mensagem divina pelo Logos uma ldquohermenecircutica logocecircntricardquo
123
cumprimento das profecias julga prudente reconhecer as advertecircncias divinas pelas escrituras
sobre o julgamento futuro
Justino desenvolve uma leitura teoloacutegica da histoacuteria contrastando o julgamento a que
satildeo submetidos os cristatildeos e o julgamento final de Deus O primeiro considerado um
julgamento ldquoirracionalrdquo e momentacircneo movido pela cegueira produzida pelos maus
democircnios enquanto o segundo eacute idealizado como um julgamento divinamente justo e eterno
A accedilatildeo dos primeiros governantes estaacute relacionada a uma preocupaccedilatildeo com a manutenccedilatildeo da
ordem que os leva a acatar as denuacutencias caluacutenias e mobilizaccedilotildees contra os cristatildeos Eacute um tipo
de controle social que emerge de baixo pela repulsa do povo por aqueles que representavam
uma ameaccedila a pax deorum devido agrave condenaccedilatildeo ao culto dos deuses Justino acredita que em
meio agrave variedade de ideias e crenccedilas que constituem o quadro social do Impeacuterio os cristatildeos
natildeo deveriam ser reprimidos pelas autoridades por pensarem diferente Desse modo ele se
empenha em mostrar as correlaccedilotildees existentes entre as coisas sustentadas pelos cristatildeos e
outros pontos da cultura greco-romana Enquanto algumas correlaccedilotildees satildeo consideradas
estrateacutegias do democircnio para enganar os homens outras satildeo consideradas a manifestaccedilatildeo da
accedilatildeo do logos que comunica a verdade quer seja pelo conhecimento que os gregos tiveram
pelas Escrituras judaicas ou pelo logos spermatikos comum ao gecircnero humano Tudo o que
foi dito escrito ou julgado corretamente segundo a razatildeo eacute considerado consonante com o
posicionamento dos cristatildeos Pois eacute a ldquorazatildeordquo ou logos que deve conduzir as accedilotildees humanas
para a salvaccedilatildeo Desse modo aleacutem de procurar investir as doutrinas cristatildes de aspectos
racionais Justino tambeacutem busca deixar claro que os cristatildeos natildeo satildeo nenhuma ameaccedila ao
Impeacuterio Os fieacuteis satildeo apresentados como os melhores cooperados do Impeacuterio na manutenccedilatildeo
da paz devido ao caraacuteter das suas doutrinas Contrastando em alguns pontos com o tipo de
controle exercido sobre os soldados que juram fidelidade sem esperarem algo duradouro em
troca Justino fala do tipo de controle que vem ldquodo altordquo A crenccedila no controle absoluto do
Deus cristatildeo eacute apresentada como uma alternativa para solapar a incoerecircncia manifestada na
reverecircncia a deuses tatildeo desregrados e impiedosos quanto aos seres humanos que natildeo
poderiam servir de exemplo de conduta Natildeo haacute muitos detalhes acerca da moralidade cristatilde
mas ela parece estar relacionada agrave moderaccedilatildeo a restriccedilotildees sexuais ao respeito agrave verdade e aos
outros Segundo essa crenccedila cristatilde toda pessoa eacute livre para escolher como deseja viver mas
um dia estaraacute diante do juiacutezo do Deus absoluto do qual ningueacutem pode esconder nada
Tambeacutem eacute nesse sentido que satildeo identificados os cristatildeos Os cristatildeos satildeo definidos como
praticantes de um ideal de vida a seguir fortemente caracterizado pelo moralismo estrito
124
Desse modo Justino acredita que a disseminaccedilatildeo das doutrinas cristatildes poderia servir para
controlar os excessos humanos e as injusticcedilas
Esse tipo de ferramenta de controle foi empregado inclusive para constranger o
imperador a ouvi-lo Aleacutem de considerar irracional desprezar a doutrina dos cristatildeos o
apologista faz uso dessa ferramenta de controle para destacar que a uacutenica coisa que os
romanos poderiam fazer pelos cristatildeos em sua oposiccedilatildeo era lhes tirar a vida algo que
ironicamente o apologista considera insignificante visto que todos um dia morreratildeo Todavia
sustentando que a vida natildeo termina no tuacutemulo Justino alerta que a injusticcedilas como essas
Deus retribuiraacute um dia o castigo eterno enquanto para os que satildeo piedosos e justos estaacute
guardada uma ldquorecompensa eternardquo
Talvez as Apologias de Justino nunca tenham chegado ao seu destinataacuterio
especificado E se chegaram natildeo haacute nenhuma evidecircncia de que tenham surtido um efeito
positivo Justino morreu anos mais tarde Todavia seu martiacuterio nos tempos de Marco Aureacutelio
tornou-se inspiraccedilatildeo para outros escritores como Atenaacutegoras ou Teoacutefilo de Antioquia Ao
revelar uma relaccedilatildeo entre controle social e religiatildeo a partir das accedilotildees anticristatildes seus escritos
se tornam peccedila fundamental para se compreender como as suspeitas e caluacutenias que incidiam
sobre os cristatildeos despertaram pessoas como esse mestre para pensar a relaccedilatildeo entre a nova
religiatildeo e a estrutura social e poliacutetica existente Se em siacutentese o que suas Apologias
pretendiam de fato era a retirada dos empecilhos para a conversatildeo dos pagatildeos elas satildeo
tambeacutem a primeira manifestaccedilatildeo da ideia de que para proporcionar a conversatildeo dos ldquooutrosrdquo e
o abandono dos rituais religiosos que permeavam a vida puacuteblica e os eventos sociais no
Impeacuterio era preciso pensar a religiatildeo cristatilde como uma alternativa que oferecesse algum tipo
de vantagem social e poliacutetica
Quando se busca por exemplo compreender as vantagens identificadas pelos romanos
na autorizaccedilatildeo da religiatildeo dos cristatildeos no IV seacuteculo manifesta-se a necessidade de se
investigar sobre as raiacutezes da aproximaccedilatildeo entre religiatildeo cristatilde e o Impeacuterio Eacute pelo exame das
Apologias de Justino Maacutertir que se percebe que em grande medida tal aproximaccedilatildeo eacute fruto
da reflexatildeo apologeacutetica que procurar livrar os cristatildeos da condenaccedilatildeo das autoridades romanas
e ao mesmo tempo em sintonia com a orientaccedilatildeo missionaacuteria na propagaccedilatildeo da mensagem
cristatilde busca livrar os romanos da condenaccedilatildeo eterna de Deus por meio da conversatildeo A
condenaccedilatildeo do culto aos deuses pagatildeos e da religiatildeo ciacutevica associada agrave contumaacutecia cristatilde em
natildeo contradizer suas crenccedilas em funccedilatildeo das determinaccedilotildees romanas exigiu uma reflexatildeo
sobre a sua contribuiccedilatildeo social para o Impeacuterio que os isentasse da culpa de traiccedilatildeo falta de
civismo ou algum tipo de conspiraccedilatildeo do ldquoreino de Deusrdquo Ateacute meados do seacuteculo II as
125
acusaccedilotildees variavam em cada regiatildeo e um paralelo que proporcione uma anaacutelise entre cada
uma delas tambeacutem parece ser um tema digno de uma investigaccedilatildeo especiacutefica e um desafio que
ainda precisa ser encarado
126
REFEREcircNCIAS
Fontes principais
MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005
MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006
JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995
Referecircncas gerais
AGOSTINHO de Hipona A cidade de Deus Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2000
ALCINOOS Enseignement des doctrines de Platon Les Belles Lettres Paris 1990
APHRODISIAS Alexandre drsquo De fato ad Imperatores Ed Guilaume de Moerbek e Pierre Thillet Paris J Vrin 1963
APULEIO Lrsquoautodifesa (apologia di segrave e della magia) Ed Bruno Cassianelli Caserta Edizioni UTEM 1948
AMES Ceciacutelia Religiatildeo e controle social no mundo romano a proibiccedilatildeo das Bacanais em 186 aC Traduzido por Nathalia Monseff Junqueira Conferecircncia do I Coloacutequio Internacional e III Coloacutequio Nacional do LEIR (Laboratoacuterio de estudos sobre o Impeacuterio Romano) da Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita Filho (UNESP) Campus Franca Setembro de 2010 Histoacuteria [online] vol29 n2 pp 341-356 2010 httpdxdoiorg101590S0101-90742010000200019
ANDRESEN C Justin und der mittlere Platonismus Zeitschrift fuumlr die Neuetestamentliche Wissenschaft Berlin-New York v44 pp157-195 1952-1953
ANDRESEN C Logos und Nomos Die Polemik des Kelsos wider das christentum Walter de Gruyter und co Berliacuten 1955
ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris Librairie Alphonse Picard et Fils 1909
127
ARISTIDES Aelius Orationes In Aristides ex recensione Guilielmi Dindorfii Leipzig Weidmann 1829
ARZANI A A teologia do loacutegoj no Quarto Evangelho Monografia de conclusatildeo do curso de Teologia Escola Superior de Teologia Universidade Presbiteriana Mackenzie Satildeo Paulo 2008
ATHENAGORAS A Plea for the Chrstians In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
Atti del Martirio di San Giustino In GIRGENTE Giuseppe Giustino Martire Il primo Cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995
AUBE B Histoire des persecutions de lrsquoEglise jusque a la fin des Antonins Paris Didier et cie 1875
AYRES Lewis LOUTH Andrew YOUNG Francecircs M (org) The Cambridge history of early Christian life New York Cambridge 2007
BAGATTI B S Giustino e la sua patria Agustinianum V 19 2 Ago1979 p 319
BARCELOgrave P Reflexiones sobre el tratamiento de las minorias religiosas por parte Del Emperador Romano Trajano y los cristianos In RABASSA C STEPPER (Ed) R Impeacuterios sacros monarquias divinas Castelloacute de La Plata Publicaciones de la Universitat Jaime I DL 2002
BARNARD L W Justin Martyr in recent study Scottish Journal of Theology v 22 n 2 pp 152-164 jun1969
________ Justin Martyr his life and thought London Cambridge University Press 1967
BARNES T D Legislation againt the Christian The Journal of Roman Studies v 58 pp 30-50 1968
BATES M W Justin Martyrrsquos logocentric hermeneutical transformation of Isaiahrsquos vision of the nations Journal of Theological Studies 60 pp 538-555 2009
BAUMGARTNER M Social control from below In D Black (ed) Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 Orlando Academic Press 1984
BAYET Jean La religion romaine histore politique et psychologique Paris Payot 1976
BEARD M NORTH JA PRICE SRF Religions of Rome v I Cambridge Cambridge University Press 1998
BENNET J Trajan Optimus Princeps a Life and Times London Taylor amp Francis e-Library 2005
BENOIcircT Simon Giudaismo e Cristianesimo una storia antica Bari Laterza 2005
128
BIBLIA Hebraica Stuttgartensia Hebrew Bible Masoretic Text or Hebrew Old Testament Edited by K Elliger and W Rudoph 4 Ed Corr Stuttgart Deutsche Bibelgesellschaft 1971 [software Bible Works 50])
BIBLIA Sagrada ediccedilatildeo da CNBB 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2002
BLACK Donald The Behaviour of Law New York Academic Press 1976
_______ Toward a General Theory of Social Control Fundamentals Vol 1 New York Academic Press 1984
_______ Toward a General Theory of Social Control Selected Problems Vol 2 New York Academic Press 1984
BLANT E le Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373
_______ le Sur les bases juridiques des poursuites dirigees contre lesmartyrs Compftes rendus de lrsquoAcademie des Inscriptions et Belles Lettres Nouvelle ser II 1866 pp 358-373
BLUNT A W The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911
BOBICHON P lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 pp 157-158 2003
BOFFO Laura Iscrizioni greche e latine per lo Studio della Bibblia Brescia Paideia Editrice 1994
BOUDON R BOURRICAUD F (ed) DICIONAacuteRIO criacutetico de sociologia Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 101
BREacuteHIER Eacute Les ideacutees philosophiques et religieuses de Philon dAlexandrie Pariacutes J Vrin 1950
BRENT Allen A political history of Early Christianity London TampT Clark 2009
BUELL Denise K Why this new race ethnic reasoning in early Christianity New York Columbia University Press 2005
BULTMANN R Teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Teoloacutegica 2004
BURKERT Walter Greek Religion Cambridge MA Harvard University Press 1985
BURNS Stacy Lee Ethnographies of law and social control Oxford Elsevier 2005
Carta a Diogneto In Padres Apologistas Satildeo Paulo Paulus 1995
CHADWICH H Early Christian Thought and the Classical Tradition Oxford Clarendon Press 2002
129
________ Introduction In ____ (Ed) Origen Contra Celsum Translated with an Introduction and Notes by Henry Chadwick Cambridge Cambridge University Press 1980 pxi
________ Justin Martyrrsquos defence of Chrstitianity Manchester The John Rylands Library 1965 (v 47)
________ The Church in Ancient History New York Oxford University Press 2001
________ The gospel a Republication of the natural religion in Justin Martyr Illinois Classical Studies n 18 pp 237-247 1993
CLEMENT of Alexandria Protrepticus In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
________ Stromata In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832
CHROUST Anton-Hermann AristotleProtrepticus a reconstruction Notre Dame IN University of Notre Dame Press 1964
CICERO M Tullius De Natura Deorum Edited by O Plasberg Leipzig Teubner 1917 pp 136-137
_________ Tullius De Legibus Georges de Plinval (ed) Paris Belles Lettres 1959
CLARK Gillian Christianity and Roman Society Cambridge Cambridge University Press 2004
CLARKE Michael Flesh and Spirit in the Songs of Homer A Study of Words and Myths Oxford Clarendon Press 1999
COENEN L COLIN B (ed) DICIONAacuteRIO internacional de teologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2000 pp1507-1562
COHEN S Visions of Social Control Cambridge Polity Press 1985
COOPER A M Canaanite religion an overview In ELIADE Mircea (ed) The encyclopedia of religion Vol 3 New York Macmillan 1987
COPETE Juan Manuel Corteacutes Mesianismo y control social em la revuelta de Bar Kosiba In XXVII Congresso Internacional Girea-Arys IX Universidad de Valladolid Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial 2004
130
COWLEY Angela Religious Toleration and Political Power in the Roman World Tesis submited for the Master in Arts McMaster Unversity 2008
Chronicon Paschale Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonnae E Webere 1832
CULMANN O Cristologia do Novo Testamento Satildeo Paulo Custom 2002
CUMONT F BIDEZ J Les mages helleacuteniseacutes Zoroastre Ostanegraves et Hystape drsquoapregraves la tradition grecque Tome I-II WetterenParis Les Belles Lettres 1938
DALLEY Stephanie Myths from Mesopotamia creation the flood Gilgamesh and others Oxford Oxford University Press 2000
DANIELOU J Messagio evangeacutelico e cultura ellenistica Bologna Il Mulino 1975
De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted- A Rejoinder Past and Present n27 pp28-33 1964
De Ste CROIX GEM Why were the Early Christians persecuted Past and Present n26 pp6-38 1963
DIGESER Elizabeth DePalma The making of a Christian Empire Lactantius and Rome Ithaca Cornell University Press 2000
DILLON J Philosophy In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 922-940
DIOGENES Laertius The life of the eminents philosophers Ed Robert Drew Hicks LondonNew York W HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1925
DION Cassius Histoire Romaine V 9 Editado por E Gros Paris Librairie de Firmin Didot Fregraveres Fil Et C Imprimeurs de LrsquoInstitut 1867
DOBRORUKA Vicente Reencarnaccedilatildeo e o judaiacutesmo de Flaacutevio Josefo como instrumentos hermenecircuticos para entender a pseudepigrafia apocaliacuteptica Oraacutecula V1 n 2 p 24 2005
DODDS ER Pagan and Christian in an Age of Anxiety Cambridge Cambridge University Press 1963
DORIVAL Gilles Helleacutenisme et Patristique Grecque continuiteacute et discontinuiteacute Antiguidad Cristiana (Murcia) VII 1990
DUCHESNE L Histoire ancienne de LrsquoEglise Paris Pariente 1991 p 106
DURRY Marcel Durry Pline-le-juene Paris Le belle Lettre 1972 p 7071
131
ECK Werner The emperor and his advisers In BOWMAN A GARNSEY P RATHBONE D The Cambridge Ancient History v XI The High Empire AD 70 ndash 192 2 ed New York Cambridge University Press 2000 pp 195-213
ENDSJO Dag Oistein Greek resurrection beliefs and the soccess of Christianity New York Palgrave Macmillan 2009
ESTRABAtildeO Geography London Heinemann 1949
EUSEBIO de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduzido por Wolfgang Fischer Satildeo Paulo Novo Seacuteculo 2002
EUSEBIUS Die Chronik des Hieronymus heraugegeben und in 2 Auflage bearbeitet von R Helm 3 unveraumlnderte Auflage mit einer Vorbemerkung von U Treu GCS 31 Berlin Akademie Verlag 1984
FARNELL R L Greek hero cult and ideas of immortality Oxford Carendon Press 1921
FELIX Viviana L Inmortalidad del alma y escatologiacutea en Justino Actas del II Simpoacutesio Internacional Helenismo Cristianismo 2010 Universidade GralSarmientoUniversidad Nacional de la Pampa
________ La relacioacuten entre razoacuten y revelacioacuten em la antropologiacutea de Justino Maacutertir Teologiacutea y Vida v LII pp 35-50 2011
FREND WHC Persecutions genesis and legacy In MITCHELL M YOUNG F The Cambridge History of Christianity Vol I ndash Origins to Constantine Cambridge Cambridge University Press 2006
FREUDENBERGER R Christenveskrip Ein umstrittenes Rekript des Antonium Pius ZKG 78 1967
FRIGHETTO Renan Antiguidade Tardia Roma e as monarquias romano-baacuterbaras numa eacutepoca de transformaccedilotildees (seacuteculos II-VIII) Curitiba Juruaacute 2012
FUNARI P P A Introduccedilatildeo Identidades Fluiacutedas In NOGUEIRA P A S FUNARI P P A COLLINS (Org) John J Identidades fluiacutedas no judaiacutesmo Antigo e no Cristianismo Primitivo Satildeo Paulo Annablume 2010 p11
GALLINI Clara Protesta e integrazione nella Roma acircntica Bari Laterza 1970 pp 46-52
GIRGENTI Giuseppe Giustino Martire il primo cristiano platonico Milano Vita e Pensiero 1995
GOFFMAN E Estigma la identidade deteriorada Buenos Aires Amorrorta 2006
__________ Relations in Public New York Basic Books 1971
GOGUEL M Jeacutesus et la origine du Christianisme naissance du ChristianismevI e II Paris Payot 1946
132
GOODENOUGH E R Theology of Justin Martyr Jena Frommann 1923
GOODMAN R ROWLAND C Apologetics in the Roman Empire Oxford Oxford University Press 1999
GOODSPEED E Dei aumlltesten Apologeten Texte mit kurzen Einleitungen Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 1914
GRABE J E SANCTI JUSTINI Philosophi amp Martyris APOLOGIA SECONDA PRO CRISTIANIS ORATIO COHORTATORIA ORATIO AD GRAECOS ET DE MONARCHIA LIBER Edita agrave H Hutchin AM ex Aede Christi OXONIAE E THEATRO SELDONIANO 1703
__________ SANCTI JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS APOLOGIA PRIMA PRO CRISTIANIS AD ANTONINUM PIUM Edita a Joanne Ernesto Grabe Oxoniae 1700
GRANT Robert M Greek Apologists of the second century London SCM Press 1988
GREGOIRE H Les Persecutions dans lEmpire Romain Bruxelles Palais de AcadeacutemiesAcadeacutemie Royale 1951
GRESWELL W H P GRESWELL E A view of the early parisian greek press includin the lives of the Stephani notices of other contemporary greek printers of Paris 2 v Oxford E Greswell 18--
HADDAD R M The case for Christianity St Justin Martyrrsquos arguments for religious liberty and judicial justice Laham Maryland Taylor Trade Publishing 2010
__________ The appropriateness of the apologetical arguments of Justin Martyr Tesis submitted for the Master of Philosophy Australian Catholic University 2008
HARNACK A Dei Chronologie der Litteratur bis Irenaus nebst einleitend Untersuchgen Leipzig Hinrichs 1897 p 274
__________ Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882
__________ Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99
__________ The mission and expansion of Christianity in the first three centuries New York Harper 1962
HARVERT E Le Christianisme et seacutes origines v IV Paris Calman Leacutevy 1844
HENTEN Jan Willem AVEMARIE Friedrich Martyrdom and noble death selected texts from Graeco-Roman Jewish and Christian Antiquity New York Routledge 2002
133
HIPPOLYTUS The refutation of all heresies Traduzido por Rev J H MacMahon In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 5 Fathers of the Third Century Hippolytus Cyprian Caius Novatian Appendix Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
Historiae Augustae v I text latin with english translation by David Magie London Harvard University Press 1921 (Loeb Classical Library)
HOCHART P Etudes au sujet de la persecution des Chretiens sous Neron Paris E Leroux 1885
HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897
HOMO L Les empereurs romains El Le christianisme Paris Payot 1931
HORWITZ E A The Logic of Social Control New York Plenum Press 1990
HUNT Emily J Christianity in the second century a case of Tatian New York Routledge 2003
HUNTCHIN H Sancti Iustini Philosophi et Martyris Apologia Secunda pro Christianis Oxoniae E Theatro Sheldoniano 1703
HYLDAHL N Philosophie und christentum eine interpretation der einleitun zum Dialog Justins Kopenhagen Munksgaard 1966 (Tese de doutorado na Aarhus Universitet 1965)
Illustrated Bible Dictionary Edited by M G Easton 3 Ed Wheaton Ill Christian Classics Ethereal Library 1998
INNES Martin Understanding social control Deviance crime and social order Berkshire England Open University Press 2003
Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V IV Paris Leroux 1927 p 386
Inscriptiones Graecae ad Res Romanas Pertinentes [ed R Cagnet e R Lafaye] V I-II Paris Leroux 1901 p 355
IRINEO of Lyon Againt Heresies Traduzido por Rev Alexander Roberts e James Donaldson In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene Fathers v 1 The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
ISOCRATES Busiris with an English Translation in three volumes by George Norlin PhD LLD Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1980
JANSEN L F Superstitio and persecution of the Christians Vigiliae Christianae v 33 n 2 pp 131-159 jun1979
134
JEROME GENNADIUS Lives of illustrious men Traduzido por Ernest Cushing Richardson In SCHAFF Philip (ed) Nicene and Post-Nicene Fathers 2 v 3 Theodoret Jerome Gennadius amp Rufinus Historical Writings New York Grand Rapids MI Christian Literature Publishing Co Christian Classics Ethereal Library 1892
JOHNSON A C et al Ancient Roman Statutes Austin University of Texas Press 1961
JOLY E MOORE D Corpus Inscriptionum Latinarum vol VI pars VII fasc IV Berolini De Gruyter p 4262
JOSEgravePHE F Contre Appion Trad Th Reinach Paris Les Belles Lettres 1930
JOSEPHUS Flavius Jewish antiquities books XVI-XVII (Loeb Classical Library) Translated by Ralph Marcus and Allen Wikgren New York Harvad Press 1963
JOSSA G I Cristiani e LImpero Romano da Tibeacuterio a Marco Aurelio Napoli M dAuria Editore 1991
JOUCE Cullan The seeds of dialogue in Justin Martyr Australian eJournal of Theology 7 jun2006
JUSTINO Satildeo Justino de Roma I e II Apologias Diaacutelogo com Trifatildeo Introduccedilatildeo e notas Roque Frangiotti Traduzido por Ivo Storniolo Euclides M Balancin 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1995
JUVENAL Satiras In Juvenal and Persius With An English Translation G G Ramsay London New York William Heinemann G P Putnams Son 1918
KEITH Graham Justin Martyr and religious exclusivism Tyndale Bulletin 431 pp 56-80 1992
KENT R G The mane of Hystapes Language V 21 n 2 pp 55-58 abrijun-1945
KERESZTES P Law and Arbitrariness in the persecution of the Christians and Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae v 18 n 4 pp 204-214 dec1964
_________ Justin roman law and logos Latomus V45 n 2 pp339-346 Avril-juin1986
_________ Rome and Christians Church I ANRW II 23 1 pp 260 274ss (1979)
_________ The literary genre of Justinrsquos First Apology Vigiliae Christianae Vol 19 No 2 Jun 1965
KHORENATSrsquoI Moses History of Armenians Traduzido por Robert W Thomson Ann Arbor Caravan Books 2006
KIMMEL G Siacutentese teoloacutegica do Novo Testamento de acordo com as testemunhas principais Jesus Paulo e Joatildeo 3 ed Satildeo Leopoldo (RS) Sinodal 1983
135
KITTEL G Teological dictionary of the New Testament Michigand Grand rapids WM B Eerdmans Publising Company 1974 p 71-91
KRUEGER Paul MOMMSEN Theodor (Ed) Corpus iuris civilis I Institutiones Dublin Weidmann 1920 passim
KRUumlGER G Die Apologieen Justins des Maumlrtyrers 3 ed FreiburgLeipzig Mohr 1896
LABRIOLLE P de La reaction paumlienne Paris Le artisan du libre 1934
LACTANTIUS The divine institutes Washington Catholic University of America Press 1964
LEWIS Charlton Thomas KINGERY Hugh Macmaster (Ed) An elementary latin dictionary New York American Book Co 1918
LIDDELL Henry George SCOTT Robert A Greek-English Lexicon revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones with the assistance of Roderick McKenzie Oxford Clarendon Press 1940
_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 1999
_________ Abridged Greek-English Lexicon OxfordNew York Oxford University Press 2001
LINDERSKI J The Augural Law ANRW II 163 pp 2146-312 1986
LUCIAN De morte Peregrini In Works with an English Translation by A M Harmon Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1936
_______ Menippus In The Works of Lucian of Samosata Translated by Fowler H W and F G Oxford The Clarendon Press 1905
LXX Septuaginta Old Greek Jewish Scriptures Edited by Alfred Rahlfs Stuttgart Wuumlrttembergische Bibelanstalt Deutsche Bibelgesellschaft (German Bible Society) 1935 [software Bible Works 50]
MACMULLEN Ramsay Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries New Haven amp London Yale University Press 1997
__________ Enemies of the Roman Order treason unrest and alienation in the Empire Cambridge MA Harvard University Press 1966
__________ Paganism in the Roman Empire New Haven amp London Yale University Press 1981
MAIR AW GR MAIR Callimachus Hymn and Epigrams Lycophron With an English Translation by AW Mair Revised Version Cambridge MA amp London Harvard University Press 2000
136
MARAN P TOU EM AacuteGIOS PATROS HMWN IOUSTINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EUPISLOMENA PANTA) SPN JUSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QUAE EXSTANT OMNIA Opera amp studio unius ex Monachis Congregationis S Mauri Parisiis Sumptibus Caroli Osmont 1742 Cum approbatione et privilegio regius
MARCOVICH M Apologiae pro Christianis Dialogus cum Tryphone Iustini Martyris Berlin New York Walter de Gruyter 2005
_________ Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994
_________ Iustini Martyris Dialogus cum Tryphone Berlin De Gruyter 1997
_________ Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 (2) pp 322-335 1992
MARTIN Dale B Inventing superstition from the Hippocratics to the Christians Massachusetts Harvard University Press 2007
MCGOWAN A Eating People accusations of cannibalism against Christians Journal of early Christian Studies v 2 n 4 pp 413-442 winter1994
MEIER R Perspectives on the concept of social control Annual Review of Sociology v 8 pp 35ndash55 1982
MIGNE Jacques-Paul (Org) Patrologiae cursus completus series graeca Paris Garnier-Migne 1857 161v
_________ (Org) Patrologiae cursus completus series latina Paris Garnier-Migne 1878 217v
MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009
MOMMSEN T Der regions frerel nach roumlmische Recht Historique Zeischift 64 pp 392-399 1890
MONAHINO V Il fondamento juriacutedico delle persecuzioni nei primi due secoli La scuola cattolica 81 pp 3-32 1953
MOREAU J La perseacutecution Du Christianisme dans lrsquoEmpire roman Paris Presses Universitaires de Frances 1956
MUumlLLER Friedrich Max The Eschatology of the Avesta In ____ Theosophy or Psychological Religion New York AMS Press 1975
MUNIER Charles (ed) Justin Apologie pour les chreacutetiens introduction texte critique traduction et notes Paris Du Cerf 2006
137
__________ LrsquoApologie de Saint Justin philosophe et martyr Fribourg Suisse Eacuteditions universitaire 1994 174 p
__________ Saint Justin apologie pour les chreacutetiens eacutedition et traduction Fribourg Suisse Eacuteditions universitaires 1995
NAGY Agravegnes A Superstitio et Coniuratio Numen v 49 n 2 pp 178-192 2002
NASCIMENTO DFP O Logos em Fiacutelon de Alexandria principais interpretaccedilotildees Orientador Danilo Marcondes de Souza Filho Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia Departamento de Filosofia Pontificia Universidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2003
NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzene Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129
OBAYASHI Hiroshi (ed) Death and Afterlife Perspectives of World Religions New York Praeger 1992
ORIGIN Against Celsus In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
ORLIN Eric M Temples religion and politic LeidenNew York EJ Brill 1997
OROSINUS P Historiae Adversus Paganus C Zangemeister Lipsiae Teubner 1889
OTTO JCT von Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876
PARKE Herbert William (Ed) Sibyls and Sibylline Prophecy in Classical Antiquity London Routledge 1988
PARVIS Sara Justin Martyr and Apologetc Tradition In PARVIS Sara FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007
________ FOSTER Paul (ed) Justin Marty and his world Minneapolis Fortress Press 2007
PAUSANIAS Description of Greece with an English Translation by WHS Jones LittD and HA Ormerod MA in 4 Volumes Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1918
PEREIRA I Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego 8 Ed Braga Livraria Apostolado da Imprensa 1998
PERION Joachin Beati Ivstini phiosophi amp martyris opera omnia quae adhvc inveniri potvervnt id est qvae ex Regis Galliae Pibliotheca prodierunt Parisiis Apud Iacobum
138
Dupuys egrave regione collegij Cameracensis sub insigni Smeritanae 1554 Cum Priuilegio Regis
PERKINS Judith Roman Imperial Identities in the Early Christian Era New York Routledge 2009
PFAumlTTISCH Johannes M Der einfluss Platos auf die theologie Justin des Maumlrtyers eine dogmengeschichtliche untersuchung nebst einem Anhang uumlber der Apologien Justins Paderborn Schoumlningh 1910
PLATO Apology In Plato in Twelve Volumes Vol 1 translated by Harold North Fowler Introduction by WRM Lamb Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1966
______ Republic In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903
______ Law In Platonis Opera ed John Burnet Oxford University Press 1903
PLINIUS Caecilius Secundus Gaius Lettres Paris Belle Lettres 1953
PLUTARCH Moralia with an English Translation by Frank Cole Babbitt Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1928
POLYBIUS The Histories V III Translated by W R Paton Cambridge MALondon Harvard University PressWilliam Heinemann LTD 1979
POPE M The concept of the DAIMON in Justinrsquos Second Apology with text and translation Master of Artsrsquos dissertation Departament of Classics University of Kansas 2000
POUDERON B Les Apologistes grecs du IIe siegravecle Paris Du Cerf 2005
PRICE R M Hellenization and Logos Doctrine in Justin Martyr Vigiliae Christianae Vol 42 No 1 pp 18-23 Mar1988
QUASTEN J Patrology v I Alen Texas Christian Classics (RCL) 1995 pp 196-197
RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972
REED Annette Y The trickery of the fallen angels and the demonic mimesis of the divine aetiology demonology and polemics in the writings of Justin Martyr Journal of Early Christian Studies 12 2 pp 141-171 2004
ROBERTIS F de Storia delle corporazioni e del regime associativo nel mondo romano Bari 1971 II pp 64-89
ROBINSON Maurice A PIERPONT William G (ed) Robinson-Pierpoint Majority Text Greek New Testament (1995) Bible Work 5 Software 2002
139
ROBINSON O F The criminal Law of the Ancient Rome Baltimore The Johns Hopkins University Press 1995
ROHDE Erwin Psyche The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks New York Harper amp Row 1966
ROMAN Cristobal Gonzalez Problemas sociales y poliacutetica religiosa a propoacutesito de los rescritos de Trajano Adriano y Antonino Piacuteo sobre los cristianos Memorias de historia antigua N 5 1981
ROSA Claudia Beltratildeo A religiatildeo da Urbs In SILVA Gilvan Ventura da Silva MENDES Norma Musco (org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica Poliacutetica e Cultural Rio de Janeiro Mauad Vitoacuteria ES EDUFES 2006 p 141
ROSS Robert C Superstitio The Classical Journal v 64 n 8 pp 354-358 mai1969
ROUCECK Joseph Social Control Westport CT Greenwood Press 1970
RUSCONI C DICIONAacuteRIO grego do Novo Testamento 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005
RUSSELL D S The Method and Message of Jewish Apocalyptic Philadelphia Westminster Press 1964
SAUMAGNE Ch Tertulien et lrsquoInstitutum neronianum Theoligishe Zeitschrift 17 1961
SCHEIDCEILLER F Sur geschichte des Eusebius Von Kaisareia Znwkan 49 1958
SCHIMID W Ensebianum Adnotatio ad Epistulam Antoninii Pii a Christanis fictam Rheinische Museum 97 pp 190ss 1954
SCHOEDEL W R Apologetic Literature and Ambassadorial Activities Harvard Theological Review N 82 p 72 Jan1982
SEGAL Alan F Life after Death a History of the Afterlife in the Religions of the West New York Doubleday 2004
SENECA Apocolocyntosis WHD Rouse MA Litt D London William Heinemann 1913
SHAKED Shaul Iranian Influence on Judaism First Century BCE to Second Century CE In DAVIES W D FINKELSTEIN Louis (Ed) The Cambridge History of Judaism Introduction the Persian Period CambridgeNew York Cambridge University Press 2008
SHERWIN-WHITE AN Why were the Early Christians persecuted ndash An amendment Past and Present n27 pp 23-27 1964
___________ The early persecution and roman law again Journal of Thological Studies n3 v2 1952
140
SKARSAUNE O The proof from prophecy a study in Justin Martyrrsquos proof-text tradition text-type provenance theological profile Leiden E J Brill 1987
SOARES Dioniacutesio Oliverira A ressurreiccedilatildeo corporal na tradiccedilatildeo paulina o soma psychikoacuten e o soma pneumatikoacuten Atualidade Teoloacutegica Ano XIII n 33 p 412 setdez 2009
SOARES Elizangela A Antigas variaccedilotildees sobre a vida apoacutes a morte circularidade cultural e religiosa no judaiacutesmo preacute-exiacutelico Oraacutecula V2 n 4 2006
SOLMSEN Friederich Cicero on religio and superstito The Classical Weekly v 37 n 14 pp 159-160 fev1944
SORDI M I cristiani e lrsquoImpero Romano Milano Jacka Books 2011
________ I rescritti di Traiano e di Adriano sui cristiani Rivista di Storia della Chiesa XIV 1960 pp 348-349
STARK Rodney Baindridge Religion deviance and social control New York Routledge 1996
SUETONIUS The lives of the CAESARS In ROLFE JC (ed) SUETONIUS v II LondonNew York William HeinemannGPPutnamrsquos Sons 1928
SUETONII C T De Vita XII Caesarum Harvard Loeb Classical Library 1914
SUNDERMANN Werner Oracles of Hystaspes Enclyclopaedia Iranica Vol XII Fasc 6 pp 606-609 disponiacutevel em httpwwwiranicaonlineorgarticleshystaspes-oracles-of acesso em 30 de setembro de 2012
SUTCLIFFE Edmund F The Old Testament and the Future Life London Burns Oates amp Washbourne 1946
SYLBERG F TOU AGIOU IOUSRINOU FILOSOFOU KAI MARTUROS TA EURISKOMENA) S IVSTINI PHILOSOPHI ET MARTYRIS OPERA QVAE VNDEQVAQVE INVENIRI POTVERVNT Ex Typographeio Hieronymi Commelini Heidelberg Commelin 1953
TACITUS C Annais In Complete Works of Tacitus Edited by Alfred John Church William Jackson Brodribb Sara Bryant New York Random House Inc Random House Inc reprinted 1942
________ Historiae Ed Charles Dennis Fisher Clarendon Press Oxford 1911
TALBERT R J A The Senate of Imperial Rome Princeton Princeton University Press 1984
TATIAN Address to the Greeks Traduzido por JE Ryland In SCHAFF Philip (ed) Ante-nicene fathers v 2 Fathers of the second century Hermas Tatian Athenagoras Theophilus and Clement of Alexandria Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2004
141
TERRY M The Sibylline Oracles New YorkCincinnati Eaton amp MainsCurts amp Jennings 1899
TERTULLIAN Apology Traduzido por Rev S Thelwall In SCHAFF Philip (ed) Anti-nicene fathers v3 Latin Christianity its founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2001
________ Apology With tradution of TRGlover In GOOLD G P TertullianMinucius Felix Cambridge MassachusettsLondon Harvard University PressWilliam Heinemann 1978 pp 112-113 (The Loeb Classical Library)
________ Against the Valentinians Traduzido por Dr Roberts In SCHAFF Philip MENZIES Allan (ed) Anti-nicene fathers v 3 Latin Christianity its Founder Tertullian Grand Rapids MI Christian Classics Ethereal Library 2006b
THIRLBY S Iustinu philosophu kai martyros Apologia hyper Christianōn pros Antōnion ton eusebē = Apologiae duae et dialogus cum Thyphone ludaeo Londonium Impensis Richardi Sare justa portam australem Hospitii Greiani in vico dicto Holbourn 1722
TITUS Livius History of Rome Cambridge Mass Harvard University Press 1970
TUAN Yi-fu Espaccedilo e lugar a perspectiva da experiecircncia Satildeo Paulo DIFEL 1983
URCH Erwin J Early roman understanding of Christianity The classical Journal v 27 n 4 pp 255-262 jan1932
VAAGE Leif E Religious rivalries in the Early Roman Empire and the rise of Christianity Toronto Wilfrid Laurier University Press 2006
VALANTASIS Richard Demons Adversaries devils fishermen The Asceticism of authoritative teaching (NHLVI3) in context of Roman AscetismThe Journal of religion v 81 n 4 pp 549-565 out2001
VEYNE P Impeacuterio Romano In DUBY G AacuteRIES P (Org) Histoacuteria da vida privada 1 Do Impeacuterio Romano ao ano mil Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 pp 196-197
VEYNE Paul O Impeacuterio Greco Romano Rio de Janeiro Elsevier 2009
XENOPHON Apology In ____ Xenophontis opera omnia 2nd ed Oxford Clarendon Press 1921
WALSH Joseph J On Christian Atheism Vigiliae Christianae 45 pp 255-277 1991
WARTELLE A Saint Justin Apologies Introduction texte critique traduction commentaire et index Paris Eacutetudies Augustiniannes 1987
WHIGHT ED The History of Heaven New York Oxford University Press 2000
WINDEN J C M van Le portrait de la philosophie grecque dans Justin Dialogue I 4-5 Vigiliae Christianae 31 pp 181-190 1975
142
WINDISCH Hans Die orakel des Hystaspes Amsterdam Koninklijke Akademie van Wetenschappen 1929
WRIGHT David F Christian Faith in the Greek World Justin Martyrs Testimony The Evangelical Quarterly 542 pp77-87 Apr-June1982
143
APEcircNDICE I A TRADICcedilAtildeO MANUSCRIPTICA DAS APOLOGIAS
A tradiccedilatildeo manuscriptica das Apologias de Justino remonta ao Parisinus Graecus 450
ao Phillipicus 3081 e ao Ottobonianus Graecus 274 chamados respectivamente A B e C
segundo a forma estabelecida por Otto613
O Parisinus Graecus 450 ndash A ndash eacute o mais antigo manuscrito das obras de Justino
consideradas autecircnticas Ele eacute descrito como um conjunto de 467 foacutelios de 285x215 cm
terminado em 11 de setembro de 1364 segundo seu colofatildeo (fol 461a)614 Presume-se que
tenha sido adquirido em Veneza por Guillaume Pellicier bispo de Montpellirer e embaixador
francecircs naquela cidade de 1539 a 1542615 Natildeo eacute possiacutevel saber onde o manuscrito esteve
entre 1364 e 1540 Miroslav Marcovich616 considera ateacute razoaacutevel a hipoacutetese de A ter sido
produzido na Mistra617 do Deacutespota Manuel Cantacuzenos O antigo imperador John VI
Cantacuzenos pai de Manuel teria vivido contente como monge ateacute seus uacuteltimos dias
conhecido como Joasaph Era um homem culto e interessado nos assuntos teoloacutegicos Esse foi
um periacuteodo de prosperidade cultural e material no despotado de Morea618 Minns e Davis
identificam outros pontos que contribuem razoavelmente para indicar um centro maior como
Mitra ou Constantinopla Os primeiros cinco foacutelios que introduzem a coleccedilatildeo das obras de
Justino no A satildeo extratos de Photius e Euseacutebio sobre esse apologista Especificamente no
primeiro foacutelio aparecem indiacutecios de que o texto foi copiado ou adaptado de outro exemplar
Isso levaria a crer que A foi escrito em um lugar onde fosse possiacutevel ter acesso a outros textos
que auxiliassem na adaptaccedilatildeo Ter acesso agraves relevantes passagens de Photius no seacuteculo XIV
pode ser considerado algo raro619
Outro manuscrito completo das Apologias eacute o Phillippicus 3081 chamado B A partir
da anaacutelise de Bobichon620 B eacute reconhecido como um apoacutegrafo de A Sua dataccedilatildeo eacute de 2 de
abril de 1541 e apresenta uma assinatura no nome de ldquoGeorgerdquo provavelmente Georgios
613 Iustini Philosophi et Martyris Opera quae feruntur Omnia (Corpus Apologetarum Cristianorum Saeculi Secundi i) vol I part I Opera Iustini Indubitata Jena1876 614 MINNS D PARVIS P Justin Philosopher and Martyr Apologies Oxford Oxfrod Press 2009 p 3 615 ARCHAMBAULT G Justin Dialogue avec Tryphon 2 v Paris 1909 616 Iustini Martyris Apologiae pro Christianis Berlin De Gruyter 1994 Cf Id Notes on Justin Martyrrsquos apologies Illinois Classical Studies 17 2 1992 p 322-335 617 Apoacutes o ano de 1261 a cidade ao sul do Peloponeso teria passado por um periacuteodo de ascendente prosperidade No seacuteculo XIV tornou-se importante centro cultural que teria sido capaz de influenciar o Renascimento na Itaacutelia 618 NICOL Donald M The reluctant Emperor a biography of John Cantacuzenos Byzantine Emperor and Monk c 1295-1383 Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 120-129 619 MINNS PARVIS Op cit p 5 620 lsquoOeuvres de Justin Martyr le manuscrit Loan 3613 de la British Library um apographe du manuscrit de Paris (Prisinus graecus 450)rsquo Scriptorium 57 2003 p 157-158
144
Kokolos que viveu em Veneza e trabalhou para Guillaume Pelicier621 Acredita-se que B
tenha pertencido sucessivamente a Pellicier Clausde Noulot du Val ao Coleacutegio Jesuiacuteta de
Clermont em Paris e com a expulsatildeo dos Jesuiacutetas da Franccedila agrave coleccedilatildeo de Meermann E entatildeo
passou para a coleccedilatildeo de Sir Thomas Phillipps622 dando origem ao seu nome Por alguns anos
esses escritos estiveram no depoacutesito da British Library identificado como ldquoLoan 3613rdquo mas
foi retirado e vendido ldquoby private treatyrdquo em Marccedilo de 2006623
O coacutedice Ottobonianus 274 chamado de C tambeacutem tem certo valor na tradiccedilatildeo
manuscrita das Apologias mesmo contendo apenas trecircs capiacutetulos das mesmas Minns e
Parvis624 Marcovich625 Otto626 Harnack627 Blunt628 e Munier629 concordam que sua
qualidade eacute bem inferior a de A Mas quando se trata de saber se C eacute paralelo e independente
de A ou se eacute simplesmente uma coacutepia as opiniotildees se dividem Harnack630 considerou-o um
escrito independente de A Blunt destacou que ele parecia representar uma tradiccedilatildeo diferente
de A Marcovich e Munier segundo Minns e Parvis contentaram-se em apontar o demeacuterito
do texto Sem dar muitos detalhes sobre tais caracteriacutesticas de C Minns e Parvis se
esforccedilaram para argumentar que se trata de uma coacutepia de A feita agraves pressas Uma hipoacutetese
razoaacutevel eacute a de que o trecho da I Apologia 65-67 teria sido copiado pelo escriba Giovanni
Onorio atuante no Vaticano e em outros lugares de Roma por nomeaccedilatildeo do papa Paulo III em
1535 ateacute sua morte em agosto de 1563631 O restante de C teve outros escritores de diferentes
datas632 Ainda segundo a anaacutelise de Minns e Parvis633 a junccedilatildeo da ediccedilatildeo de Petrus Nannius
do De Resurretione Mortuorum de Atenaacutegoras ao conjunto de escritos proacuteximos aos extratos
das Apologias aponta para uma data natildeo anterior a 1541 Semelhantemente a Legatio de
Atenaacutegoras impotildee uma data natildeo posterior a 1557 quando a edito princeps foi impressa por H
Stephanus A visatildeo de Justino sobre a eucaristia teria sido de grande interesse teoloacutegico no
621 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009 p 6 Vide nota 14 622 Esta trajetoacuteria apontada por Minns e Parvis eacute traccedilada por Archambault (Op cit v I pp xxiv-xxviii) e sumarizada por Bobichon (Op cit p 160) 623 Conforme Minns e Parvis (Op cit p 6) indicam e o Newslatter of the Association for Manuscripts and Archives in Research Collectons 46 mai2006 p 13 atesta 624 Op cit p 6 625 Op cit p 7 626 Op cit p xxviii 627 Die Uumlberleiferung der griechischen Apologeten des 2 Jahrhunderts in der alten Kirch und in Mittelalter Text und Untersuchungen II Leipzig 1882 628 The Apologies of Justin Martyr Cambrige Cambridge University Press 1911 p lii 629 Justin Apologie pour les Chreacutetiens Paris Les Eacuteditons du Cerf 2006 p 86 630 Geschichte der altchristilichen Literatur i Leipzig JCHinrichsrsquosche Buchhandlung 1907 p 99 631 MINNS PARVIS Op cit p 7 Ele indaca tambeacutem RAINOgrave B Giovanni Onorio da Maglie trascrittore di codici greci Bari Centro Libraio 1972 632 Conforme mostram Minns e Parvis (Op cit p 7) 633 Ibid p 8
145
periacuteodo que antecedeu e aos redores do decreto da eucaristia na deacutecima terceira sessatildeo do
Conciacutelio de Trento em 11 de outubro de 1551 Esses trecircs capiacutetulos do texto de Justino teriam
sido citados por Thomas Cranmer e Stephen Gardiner em 1549 antes de aparecer a editio
princeps Uma data proacutexima a 1548 eacute sustentada para esses dois primeiros foacutelios de C
Aleacutem desses trecircs manuscritos pode-se contar com a colaboraccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo
indireta nas citaccedilotildees de Euseacutebio de Cesareia na Sacra Parallela634 e no Chronicon
Paschale635 Na Histoacuteria Eclesiaacutestica as Apologias satildeo citadas natildeo menos que doze vezes Na
Sacra Parallela de Joatildeo Damasceno satildeo encontradas oito passagens No Chronicon Paschale
aparecem apenas os trechos da II Apol 81-2 e 83-4 Esse uacuteltimo deriva provavelmente da
tradiccedilatildeo de Euseacutebio (Hist Ecles IV163-6)636
634 HOLL Karl (ed) Die Sacra Parallela des Johannes Damascenus Leipzig JC Hinrichsrsquosche Huchhandlung 1897 635 Ad exemplar Vaticanum recensuit L Dindorf Bonae Impensis ed Weberi 1832 636 MINNS Denis PARVIS Paul (ed) Justin philosopher and Martyr New York Oxford University Press 2009p 13
146
Iacutendice onomaacutestico de autores e textos antigos
Agostinho de Hipona 86
Alexandre de Afrodiacutesias 113
Apuleio 24
Aristides 15 24 33 49 55 58 109
Ata do Martiacuterio de Justino 22
Atenaacutegoras 24 109 123 143
Carta a Diogneto 49
Cassius Dio 9 13 14 34 36 48 49 67 88 97 103 111
Chronicon Paschale 18 128 144
Chrysippus de Solis 113
Cicero 43 139
26 31 43 71 74 87
Clemente de Alexandria 74 97
Diogenes Laertius 113
Eacutelio Aristides 58
Estrabatildeo 94
Euseacutebio 18 19 22 23 30 31 32 33 34 40 44 45 48 49 50 53 54 56 57 58 68 69
120 142 144
Flaacutevio Josefo 24 80 93 129
Histoacuteria Augusta 9 48 51
Homero 92
Irineu de Lyon 21
Isoacutecrates 86
Jerocircnimo e Gennadius 21
Juvenal 74
Lactacircncio 97
Luciano 21 37 58 73 95
Meacuteliton de Sardes 24 45
Oraacuteculos de Histaspes 97
Oriacutegenes 95
Oroacutesio 60
147
Papyri Graecae Magicae 92
Pausacircnias 94
Platatildeo 11 24 26 27 28 29 67 78 86 87 91 92 93 94 95 97 98 107 108 109 113 115
120
Pliacutenio 9 14 26 35 36 37 38 39 40 41 42 44 46 47 52 53 55 62 76 77 79 116 120
Plutarco 73 86 91 94 95 96 113 116
Poliacutebio 86 87
Quadrato 15 24 33 49 55
Secircneca 26 72 103
Suetocircnio 13 37 44 103
Taciano 21 24 27
Taacutecito 13 14 26 34 37 44 49 88 97 116 120
Teoacutefilo de Antioquia 24 123
Tertuliano 9 12 21 27 34 35 45
Tito Liacutevio 9 74 75
Varratildeo 86
Xenofontes 24 26
148
Iacutendice remissivo
acusadores 30 56 88 125
Adriano 7 10 15 16 27 35 37 40 41
42 44 49 50 51 52 53 54 55 56 57
58 59 60 61 62 63 71 72 84 90
106 128 143
alma 24 46 81 93 98 99 101 102 104
105 114 125 137
Antonino Pio 7 10 15 16 26 33 59 60
61 62 64 121 129
antropofagia 39
asebeia 36
Aacutesia Menor 15 26 32 55 83
ateiacutesmo 30 38 56 62 84 107 124
avsebeia 38
Bar Koseba 112
24 51 52 55 136
boatos maliciosos 63
caluacutenias
caluacutenia 7 34 39 40 47 48 56 81 82
83 84 88 91 96 108 119 125 128
130 131
canibalismo 30 56 84 124
castigo 6 31 44 56 61 74 85 91 94 96
97 98 104 113 114 120 123 126
131
coercitio 37 44
cognitio extra ordinem 45
controle social 14 16 17 18 64 65 67
68 69 70 77 80 82 113 127 129
130 131 133
costumes judaicos
costume judaico 39
Crescente 23 26 29 34 63 124
crime 17 31 37 39 40 42 47 57 58 62
67 68 84 89 90 93 126 128 139
culto ao imperador
culto imperial 38 52 81
decreto 47 64 76 79 114 148
democircnios
democircnio 11 74 78 79 81 88 89 91
96 106 107 108 110 111 112 117
118 119 122 127 129 130
denuacutencias
denuacutencia 7 34 37 41 43 47 55 56
58 82 90 91 123 124 127 128
130
desordem social 17
destino 29 52 104 105 107 113 120
Domiciano 36 48
epicureus 100 102
escola peripateacutetica 22
escola platocircnica
platonismo 22
estigmas
estigma 84 88 89
estigmatizaccedilatildeo 11 74 83 87
estoicismo 22 114 117 129
estoicos 92 100 102 104 124
exclusivismo 74
fariseus
fariseu 99
149
filosofia 7 12 16 22 23 27 28 30 33
38 65 71 73 92 93 99 100 101 102
103 106 118 122 125 126 129
filosofia estoica 38
flagitia
flagitium 14 36 39 40 46 47 48 50
90 124 128
gecircnero apologeacutetico 10 25 28
Graniano 15 16 53 56 57 128
Hades 92 99 101 102
Helena 107 120
Heraacuteclito 103 115 117
hetaerias 41
Histapes 103
Homero 98 101 102 107 115
incesto 14 39 59 84
inferno 105
injusticcedilas
injusticcedila 15 47 91 131
institutum neronianum 12 15 36 37 48
ius coertionis 37 45 50
julgamento 7 23 28 30 35 36 42 45 55
58 86 106 118 120 126 127 130
justiccedila 11 29 30 31 64 70 71 74 82
90 91 97 98 106 114 118 120 121
126 127
laesea maiestatis 37 40 45
livre-arbiacutetrio 113
loacutegoj sperermatikoj 26
Logos
logos 12 26 73 109 110 112 115
116 117 118 120 121 122 123
125 127 130 133 142 143
Luacutecio Vero 33
maiestas 47 56
manutenccedilatildeo da ordem 7 10 11 15 16 17
64 70 71 92 95 96 122 125 127
130
Marciatildeo 24 119 120
Marco Aureacutelio
M Aureacutelio 10 16 33 35 48 59 60 62
63 72 73 121 131
Menandro 104 107 120
Minuacutecio Fundano 16 53 54 56 58 128
Moiseacutes 114
moral 15 61 66 87 91 92 94 96 118
121 124 127 129
moralidade 7 70 91 94 108 119 129
131
morte 16 24 29 42 52 62 63 70 72 78
82 83 85 89 90 91 96 97 98 99
100 101 102 104 105 111 118 123
124 125 126 127 144 147
neoplatonismo 129
Nero 12 36 47 48 50 77 83 117 128
Nerva 38
nome cristatildeo
nomen christianum 30
nomen christianum 7 43 47 50 55 57
129
nomen Christianum 84 95 127
opiniatildeo puacuteblica 39 50 59
Ottobonianus Graecus 274 9 19 146
Parisinus Graecus 450 5 9 19 24 146
pax deorum 13 39 46 62 65 66 76 130
perseguiccedilatildeo 7 8 13 15 35 36 37 47 53
59 62 64 66 83 88
150
perseguiccedilotildees 13 15 27 47 65 66 81 87
89 106 128
peticcedilatildeo
libellus 27 31 32 33 34 62 71 90
126 129
Phillipicus 3081 19 146
pitagoacuterico 22
preconceito 63 88
reino de Deus 6 74 91
religio licita 38 45 55
rescrito 16 27 33 40 43 53 54 55 56
57 58 60 61 62 90
rescrito de Adriano 54 57 61
ressurreiccedilatildeo 99 100 102 105 109 111
112 144
retoacuterica 10 26 27 29 72 115
revelaccedilatildeo 11 105 107 115 116
Rusticus 23
sacrifiacutecios
sacrifiacutecio 42 48 64 74 75 79 81
sacrilegium 37 40 45 47 50
saduceus
saduceu 99
senatus consultum 36 48
Sibila 103 118
Simatildeo Mago 24
Soacutecrates 9 25 28 29 30 73 97 101 115
122 124 129
superstitio 7 8 14 35 37 39 40 42 43
45 46 48 52 55 58 85 90 91 94
124 127 128
superstitiones 14 46 94 101 102
temor 40 62 92 93 94 97 105 107 120
126 127 128
Tibeacuterio 15 16 36 48 103 139
toleracircncia 17 35 37 42 47 129
Tolomeu 61
Trajano7 10 15 32 35 36 37 38 39 40
41 42 43 44 47 48 49 50 54 55 56
57 58 59 60 61 66 84 90 128 133
143
Tumultos
Tumulto 62
Urbico 16 34 35 61 63 84 85 123
verdade 22 23 26 28 29 30 31 65 70
74 78 83 88 90 106 108 110 111
113 114 116 119 122 126 129 130
Vespasiano 22 32 117
viacutecio 99 113 114 120 121 124
virtude 6 91 92 96 99 112 113 114
115 120 124 125
151