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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS FLAVIANA DA SILVA OS TRAÇOS DA NOVELA DE CAVALARIA EM O SERTANEJO DE JOSÉ DE ALENCAR ANÁPOLIS/GO JUNHO 2009

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS

FLAVIANA DA SILVA

OS TRAÇOS DA NOVELA DE CAVALARIA EM O SERTANEJO

DE JOSÉ DE ALENCAR

ANÁPOLIS/GO

JUNHO – 2009

FLAVIANA DA SILVA

OS TRAÇOS DA NOVELA DE CAVALARIA EM O SERTANEJO

DE JOSÉ DE ALENCAR

Artigo elaborado sob a orientação da professora

Maria Raimunda Gomes, como pré-requisito

para obtenção de grau em Letras: Licenciatura

Português/Inglês pela Universidade Estadual de

Goiás.

ANÁPOLIS

2009

FOLHA DE APROVAÇÃO

Autora: Flaviana da Silva

Título: Os traços da novela da cavalaria em O Sertanejo de José de Alencar

Data de defesa: 19 de agosto de 2009

Parecer da banca examinadora: aprovada

Banca Examinadora:

Professora Dra. Maria Raimunda Gomes – UnUCSEH/UEG (Orientadora)

Professora Ms. Euda Fátima de Castro – UnUCSEH/UEG

Coordenação de TCC:

Professor Ms. Sóstenes Cezar de Lima

Coordenador Adjunto de TCC – UnUCSEH/UEG

SUMÁRIO

Introdução .................................................................................................... 7

Metodologia .................................................................................................. 9

O estilo de época O Romantismo ................................................................ 9

Novelas de cavalaria .................................................................................... 12

As características da novela de cavalaria em O Sertanejo ....................... 14

Considerações finais .................................................................................... 20

Referências bibliográficas ........................................................................... 20

OS TRAÇOS DA NOVELA DE CAVALARIA EM O SERTANEJO

DE JOSÉ DE ALENCAR ¹

Flaviana da Silva 1²

RESUMO: Esse artigo propõe identificar no romance O Sertanejo, que foi editado pela primeira vez em

1875, traços de novelas de cavalaria nele presentes, particularmente observando semelhanças desse romance do

Romantismo com a narrativa de aventuras de cavalaria intitulada por Affonso Lopes de Oliveira de O romance

de Amadis, reconstituição do Amadis de Gaula dos Lobeiras. Também algumas referências serão feitas à novela

A demanda do santo Graal, que integra o ciclo arturiano. E ainda para a elaboração desse artigo, iremos nos

basear nos estudos de Massaud Moisés (1995), Afrânio Coutinho (2002) e AlfredoBosi (1974).

Palavras-chave: José de Alencar; Romantismo; Novela de cavalaria.

1 Artigo elaborado como exigência para habilitação em Licenciatura em Letras pela Universidade Estadual de

Goiás

² Aluna do 4° ano de Letras da Universidade Estadual de Goiás, UnUCESH de Anápolis

ABSTRACT: This article proposes to identify in the novel O Sertanejo , that was edited at the first time in

1875, traces of cavalry novel present on it, particularly observing things in common of this Romanticism novel

to the narrative of cavalry adventures entitled by Affonso Lopes de Oliveira by O romance de Amadis ,

reproduction of Amadis de Gaula dos Lobeiras. Some references are going to be made to the soap opera A

Demanda do Santo Graal, which integrates the Arthurian cycle. And for the elaboration of this article, we are

going to base on the studies of Massaud Moisés, Afrânio Coutinho and Alfredo Bosi.

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INTRODUÇÃO

Massaud Moisés (1989) pondera que poucos escritores há na Literatura Brasileira

que tenham suscitado juízos tão contraditórios como José de Alencar. Ora julgam-no “genial”,

“magistral”, ora fazem dele um secundário contador de patranhas de índios e vaqueiros. Na

verdade, porém, Alencar está para a prosa romântica assim como Gonçalves Dias para a

poesia: é o nosso mais importante ficcionista do Romantismo, pelo volume da obra produzida,

pela variedade dos temas versados e o estilo grandiloquentemente brasileiro e espontâneo.

No decurso duma breve, mas intensa jornada literária (de 1857 a 1877) praticou a

crônica, o teatro, a crítica literária, a biografia, a poesia, o romance, etc. Verdadeiramente,

situa-se na prosa de ficção o ponto mais alto da obra de Alencar.

Urbano, ou citadino, o primeiro tipo de romance alencariano, é fruto de breve

experiência jornalística, de observação da sociedade fluminense, e da fantasia. Nele Alencar

parece seguir as pegadas de Balzac, um de seus numes tutelares. Cinco Minutos, A Viuvinha,

Diva, Lucíola, Senhora, A Pata da Gazela, Sonhos d’Ouro enquadram-se nessa “comédia

humana” carioca de meados do século XIX. Romances de intriga, de entretenimento, de

namoro adolescente, giram em torno do conflito entre duas forças igualmente poderosas: o

amor e o dinheiro.

Indianista é o segundo tipo de romance criado por Alencar. Na esteira da Gonçalves

Dias, concebeu uma trilogia que abarcasse o modus vivendi básico do indígena brasileiro. O

Guarani retrata o encontro dum índio, Peri, com a civilização branca e portuguesa. Em

Iracema, arquiteta-se a equação dramática oposta: um europeu, Martim Soares Moreno,

descobre nossa vida primitiva por meio da heroína que confere nome ao romance.

Na essência, Alencar foi, ou pretendeu ser, romancista histórico à Walter Scott; de

onde a influência do ficcionista escocês, juntamente com Fenimore Cooper e Chateaubriand.

Como seria de esperar, o medievalismo de Alencar logra plenitude no romance histórico:

Guerra dos Mascates, Alfarrábios e As Minas de Prata. Este último é uma novela em que

Alencar movimenta personagens, dramas, situações, etc., com o propósito de reconstituição

dum mundo ultrapassado.

Tem-se a impressão de estar observando a vida castelã portuguesa durante a Idade

Média. “Damas” e “donzelas” são formas de tratamento usuais: às primeiras, deve-se o

respeito imposto por sua condição e estado; às outras, reverenciam-se segundo as regras do

“amor cortês”. Nem falta um torneio à medieval: o duelo entre rivais terríveis; as homenagens

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palacianas à mulher. Ambos, torneios e idílio, constituem nítidas revivescências, ou

remanescentes, medievais.

O romance regionalista, quarto tipo de narrativa criado por Alencar, corrobora a

impressão de que a Idade Média e Romantismo nos fossem historicamente congeniais.

Compõem-no: O Gaúcho, O Sertanejo, O tronco do Ipê e Til. Alencar diligencia oferecer um

retrato das peculiaridades regionais do Brasil e das tradições e costumes ligados ao folclore.

Esses romances fazem uso dos mesmos ingredientes narrativos presentes nos demais

tipos de romance e não fogem à estereotipia medievalesca: Manuel Canho, cavaleiro dos

pampas, rege-se pelo código moral da Távola Redonda, do mesmo modo que Arnaldo, no

Ceará, opera façanhas em prol da heroína digna dum cavaleiro andante.

Alfredo Bosi (1974) considera que o lugar de centro no Romantismo, pela natureza e

extensão da obra que produziu, viria a caber com toda justiça a José de Alencar. Apresentando

um dos seus últimos trabalhos, Sonhos d’Ouro, Alencar traçou um quadro retrospectivo da

sua ficção, no qual se mostrava consciente de ter abraçado todas as grandes etapas da vida

brasileira.

Para dar forma ao herói, Alencar não via meio mais eficaz do que amalgamá-lo à

vida da natureza. É a conaturalidade que o encanta: desde as linhas do perfil até os gestos que

definem um caráter, tudo emerge do mesmo fundo incônscio e selvagem, que é a própria

matriz dos valores românticos. O Brasil ideal de Alencar seria uma espécie de cenário

selvagem onde, expulsos os portugueses, reinariam capitães altivos, senhores da baraço e

cutelo rodeados de sertanejos, livres sim, mas fiéis até a morte.

Por ser nosso objetivo fazer um estudo da obra O Sertanejo (2003), com o intuito de

averiguar os traços de novela de cavalaria, consideramos importante resumir aqui o seu

enredo, uma vez que o romance do Romantismo prima pela história.

A narrativa tem início com a chegada de um capitão com sua família em sua fazenda

denominada Oiticica. Durante a trajetória, um incêndio na estrada quis tirar a vida da única

filha do capitão-mor, porém um vaqueiro que nada temia a salvou. Seu nome era Arnaldo

Loredo, filho de um antigo vaqueiro da fazenda já falecido.

O capitão o queria fazer vaqueiro da fazenda como o seu pai, só que Arnaldo não

aceitou porque amava a liberdade, só se Flor lhe pedisse pois era submisso a ela. Arnaldo

desde criança era muito apegado à filha do capitão-mor, porém ao ficar mocinha ela se

afastou do vaqueiro e mostrou-lhe a diferença que havia entre eles. Ela era filha de um capitão

e ele, filho de um simples vaqueiro da fazenda.

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Assim seguia a vida de Flor cercada de sua família e protegida pelos empregados da

fazenda e guardada por Arnaldo. Quando Flor fez 19 anos, o seu pai achou que estava na hora

de se casar e para isso escolheu dois pretendentes: o sobrinho de sua esposa Leandro Barbalho

e Marcos Fragoso, que herdara algumas terras com o falecimento de seu pai.

Marcos Fragoso ficou apaixonado por Flor ao avistá-la de longe em Recife a tal

ponto de deixar a cidade e ir para a sua fazenda em Quixeramobim. Lá o fazendeiro pede a

moça em casamento. O capitão-mor, que era um homem austero e conservador, não deu a

mão de Flor ao fazendeiro porque ele a pediu como se fosse uma qualquer, em vez de esperar

o capitão-mor oferecê-la. Com a negação do capitão, Marcos Fragoso resolve raptar a

donzela; só que Arnaldo descobriu a armadilha e livrou-a de seu raptor.

O capitão reage à trama casando a filha com Leandro Barbalho às vistas de Marcos

Fragoso e de seus homens. O casamento não termina, pois se supõe que o noivo tenha

morrido ao ser atingido por uma bala e tendo o seu corpo desaparecido. Arnaldo com seu

amigo Jô e uma tribo de índios derrotam Fragoso e seus comparsas. Dona Flor abdica de

casar-se e o capitão em agradecimento dá a Arnaldo o seu sobrenome, que passa a chamar-se

Arnaldo Loredo Pires Campelo.

METODOLOGIA

Para realização dessa pesquisa bibliográfica, foi feita a leitura crítica do romance O

Sertanejo, de José de Alencar (2003), que se constitui no corpus de nosso trabalho. E com o

intuito de proceder às análises propostas, recorreremos aos estudos sobre as novelas de

cavalaria e o Trovadorismo.

O ESTILO DE ÉPOCA O ROMANTISMO

O crítico literário Afrânio Coutinho (2002) fornece-nos não só o histórico dos

primórdios do Romantismo europeu e brasileiro como também os caracteres desse estilo de

época.

No estudo do romantismo, há que estabelecer primeiramente uma distinção entre o

estado de alma romântico e o movimento ou escola de âmbito universal que o viveu entre os

meados do século XVIII e do século XIX. O estado de alma ou temperamento romântico é

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uma constante universal, oposta à atitude clássica, por meio das quais a humanidade exprime

sua artística apreensão do real.

Enquanto o temperamento clássico se caracteriza pelo primado da razão, do decoro,

da contenção, o romântico é exaltado, entusiasta, colorido, emocional e apaixonado. Ao

contrário do clássico, que é absolutista, o romântico é relativista, buscando satisfação na

natureza, no regional, pitoresco, selvagem, e procurando, pela imaginação, escapar do mundo

real para um passado remoto ou para lugares distantes ou fantasiosos.

Sob o impacto da influência convergente das correntes inglesa e alemã, a fortaleza

francesa do racionalismo clássico vai aos poucos, ao longo do século XVIII, cedendo os seus

bastões de defesa, e a marcha progride também lá com a vitória do individualismo, sentimento

da natureza, sensibilidade, paixão, melancolia, desejo de evasão, mormente pela influência

poderosa de Rousseau. Da França o Romantismo se espalha por toda a Europa e América.

O Romantismo, no Brasil, assumiu um feito particular, com caracteres especiais e

traços próprios, ao lado dos elementos gerais, que o filiam ao movimento europeu. De

qualquer modo, tem uma importância extraordinária, porquanto foi a ele que deveu o país a

sua independência literária, conquistando uma liberdade de pensamento e de expressão sem

precedentes.

O período de meio século, entre 1800 e 1850, mostra um grande salto na literatura

brasileira, passando-se das penumbras de uma situação indefinida, misto de neoclassicismo

decadente, para uma manifestação artística, em que se reúne uma plêiade de altos espíritos de

poetas e prosadores.

Sobressai nesse instante a figura de José de Alencar, símbolo da revolução literária

então realizada. Incitando o movimento de renovação; defendendo os motivos e temas

brasileiros, sobretudo indígenas, reivindicando os direitos de uma linguagem brasileira;

colocando a natureza e a paisagem física e social brasileiras em posição obrigatória no

descritivismo romântico. Alencar deu um enérgico impulso à marcha da literatura brasileira

para a alforria.

O movimento romântico no Brasil processou-se, como o europeu, através de ondas

de gerações sucessivas, que constituem sub-períodos ou grupos mais ou menos diferenciados

do ponto de vista ideológico e temático:

Primeiro grupo: Gonçalves de Magalhães, Porto Alegre, Teixeira e Sousa, Martins

Pena. Iniciação pelo grupo fluminense, com o manifesto romântico de 1836: Niterói, Revista

Brasiliense. Tendências contraditórias, de conservadorismo, com resíduos classicistas, ao lado

de marcha deliberada para a nova estética. Poesia religiosa e mística; nacionalismo, lusofobia;

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influência inglesa e francesa (Marmontel, Chateaubriand, Hugo, Vigny, Lamartine). O gênero

preferido é a poesia lírica, mas a ficção e o teatro dão os primeiros passos e continua o intenso

cultivo do jornalismo.

Segundo grupo (1840-1850): Joaquim M. de Macedo, Gonçalves Dias, Bernardo

Guimarães, José de Alencar. Apesar de incluir figuras pertencentes à geração do grupo

anterior e mesmo alguns retardatários, formam um grupo bem caracterizado e diverso do

anterior. Predominam a descrição da natureza, o panteísmo, a idealização do selvagem, o

indianismo, expressão original do nacionalismo brasileiro, o selvagem como símbolo do

espírito e da civilização nacionais em luta contra a herança portuguesa. Influências de

Chateaubriand, Fenimore Cooper, Walter Scott, Eugène Sue, Balzac.

Terceiro grupo (1850-1860): Laurindo Rabelo, Manoel A. de Almeida, Álvares de

Azevedo, Fagundes Varela, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu. Individualismo e

subjetivismo, dúvida, desilusão, cinismo e negativismo boêmio; “mal do século”; poesia

byroniana ou satânica. Influência de Byron, Musset, Espronceda, Leopardi, Lamartine.

Quarto grupo (Depois de 1860): Castro Alves, Sousândrade, Tobias Barreto,

Machado de Assis, Franklin Távora, Alfredo Taunay. Romantismo liberal e social: intensa

impregnação político-social, nacionalista, ligada às lutas pelo abolicionismo (especialmente

depois de 1866) e pela Guerra do Paraguai (1864-1870).

O movimento romântico, muito embora subdividido em nuances estilísticas, denota

unidade em seus caracteres fundamentais. No Brasil, todavia, assumiu uma tonalidade

própria, comunicada pelas peculiaridades do meio a que se acomodou. Bem brasileiros e bem

românticos são o sentimentalismo e sensibilismo. Conseqüência disso é a extrema

popularidade da literatura romântica, que correspondeu a uma exigência natural do povo. São

os românticos dos escritores brasileiros mais populares, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu,

Álvares de Azevedo, Castro Alves, José de Alencar, Macedo.

Em verdade, declara-nos Afrânio Coutinho (2002), realizam os românticos a criação

dos gêneros literários com feitio brasileiro. Antes deles, a poesia recendia a impregnações

clássicas e portuguesas. Era uma poesia, em muitos casos, portuguesa escrita no Brasil, por

homens que aqui residiam, mas que no reino se formaram e a seu modo sentiam. O

Romantismo quebrou tal submissão, introduzindo na literatura a maneira brasileira de sentir e

encarar o mundo, de traduzir os sentimentos e reações.

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NOVELAS DE CAVALARIA

Massaud Moisés (1999) em seu estudo da Literatura Portuguesa, propicia-nos uma

discussão histórica da época do Trovadorismo. Esta se caracteriza pelo aparecimento e cultivo

das novelas de cavalaria. Originárias da Inglaterra ou da França, e de caráter tipicamente

medieval, nasceram da prosificação e metamorfose das canções de gesta (poesia de temas

guerreiros).

As gestas deixaram de ser expressas por meio de versos para o ser em prosa, e

deixaram de ser cantadas para ser lidas. Dessa mudança resultaram as novelas de cavalaria

que penetraram em Portugal no século XIII, durante o reinado de Afonso III; e o seu meio de

circulação era da fidalguia e a realeza.

Convencionou-se dividir a matéria cavaleiresca em três ciclos: ciclo bretão ou

arturiano, tendo o Rei Artur e seus cavaleiros como protagonistas; ciclo carolíngio, em torno

de Carlos Magno e os doze pares de França; ciclo clássico, referente a novelas de temas

greco-latinos. Só o ciclo arturiano deixou marcas vivas de sua passagem em Portugal.

Excetuando o Amadis de Gaula, das novelas que então circularam, em Portugal

somente permaneceram as seguintes: História de Merlim, José de Arimatéia e A Demanda do

Santo Graal.

A Demanda do Santo Graal corresponde, assim, à terceira parte da trilogia. A lenda,

de remotas origens célticas, foi inicialmente cantada em verso, tendo Perceval como herói. À

volta de 1220, em França, por influxo clerical, opera-se a prosificação da lenda, da autoria

presuntiva de Gautier Map, e então Galaaz substitui Perceval.

A lenda, até então de cunho nitidamente pagão, cristianiza-se. Com isso, em vez de

aventuras marcadas por um realismo profano, tem-se a presença da ascese, traduzida no

desprezo do corpo e no culto da vida espiritual, e exercida como processo de experimentação

das forças físicas e morais de cada cavaleiro no sentido da Eucaristia, fim último anelado por

todos. A Demanda do Santo Graal constitui, por isso, uma novela de cavalaria mística e

simbólica.

Heitor Megale (1999) traduziu A Demanda do Santo Graal com base em cópia do

século XV, códice vienense, e das edições de Augusto Magne, de 1944 e 1955-1970. Narra-

nos onze episódios, dos quais faremos uma síntese de alguns deles:

1) “Como Galaaz e Boorz chegaram ao castelo de Brut e a filha do rei Brutos

enamorou-se de Galaaz por louco amor”; esse episódio relata-nos que a filha do rei mata-se

com a espada de Galaaz, porque este recusou-a preferindo continuar virgem a pecar.

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2) Em a “tentação de Persival”, vemos uma donzela belíssima na tentativa de seduzir

este cavaleiro. Mas é salvo ao ouvir uma voz forte feito um trovão, que o censurava.

Assustado, notou que a mulher era o demônio disfarçado.

3) Em “A fonte da virgem” temos o cavaleiro Erec sofrendo um mal súbito ao

aproximar-se de uma fonte. É salvo por duas mulheres que narram a maldição feita por uma

princesa virgem: homem que não fosse donzel, ao aproximar-se da fonte, morreria.

4) Conta-se no episódio “Últimos feitos de Lancelote”, como este combateu e matou

na Grã-Bretanha os filhos de Morderete. Depois da batalha, recolhe-se em uma ermida

juntamente com o arcebispo de Cantuária. Lá morre e é enterrado no túmulo de Galeote,

Senhor das Longas Ilhas.

5) A narrativa “As maravilhas da besta ladradora” é a história de um príncipe

bondoso que fora acusado pela irmã, conhecedora de magia negra, de tentar seduzi-la. O

donzel, condenado a ser comido pelos cães, fez o seguinte vaticínio: o filho de sua irmã

nasceria feito um monstro que ladraria como os cães. E assim nasceu a besta ladradora, morta

por Galaaz.

A respeito da literatura quatrocentista em Portugal, é necessário demorar a atenção

sobre o Amadis de Gaula (1508), uma das mais importantes novelas de cavalaria escritas na

Península Ibérica e cuja autoria continua a ser um intrincado problema. Quem a escreveu? Em

que língua?

Militam em favor da tese portuguesa alguns argumentos, dos quais se apontam os

seguintes: Azurara, em sua Crônica do Conde D. Pedro de Meneses (1454,1. I, cap. 63),

refere o nome de Vasco de Lobeira, tido por um dos autores da obra, juntamente com João de

Lobeira.

Fundamentam a tese espanhola os seguintes argumentos: a primeira edição da novela

é de 1508, em Espanhol, feita por Garci-Ordóñez de Montalvo, as mais remotas referências à

novela se devem a autores espanhóis, como a do Canciller Ayala em seu Rimado de Palacio

(cerca de 1380).

Todavia, há pouco tempo se encontrou motivo suficiente para considerar o problema

resolvido em definitivo, pois se localizou um fragmento do romance na nossa língua, do

século XIII ou XIV, no arquivo dum aristocrata castelhano residente em Madrid. Podemos

portanto dizer que as duas mais altas expressões do gênio literário galego-português são o

Amadis de Gaula e Os Lusíadas de Camões.

A novela de cavalaria do Amadis de Gaula, escrita pelos Lobeiros, foi reconstituída

por Vieira (1995). E é dessa reconstituição que nos valeremos para a elaboração desse artigo.

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Amadis de Gaula, apelidado de Donzel do mar, fica sabendo, quando completou

doze anos de idade, que havia sido abandonado no mar, junto com uma espada e um anel. É

adotado pelo rei Lisuarte, de Grã-Bretanha. Ainda jovem Amadis serve à Oriana, filha desse

rei.

Durante batalhas contra o rei da Irlanda, Amadis descobre que é filho do rei Perion,

da pequena Bretanha. Em sua vida de guerreiro, vence o castelão Dardan e liberta uma viúva

por ele oprimida. Também consegue vencer o feiticeiro Arcalaus, que havia feito uma trama

para apossar-se da princesa Oriana. Ao voltar, ela acusa-o de infidelidade. Por isso, Amadis,

apelidado de Beltenebros, refugia-se em um lugar ermo e de difícil acesso.

Foi reencontrado por Oriana, que reconhece ter-se enganado quanto à conduta de seu

amado, e passam a viver momentos de felicidades no Castelo de Miraflores. Mas esta

felicidade é interrompida porque o rei Lisuarte, muito ambicioso, dá a mão de sua filha em

casamento ao imperador de Roma. Só houve um recurso, Amadis precisou atacar o navio

romano e raptar Oriana. Aqui acaba o romance de Amadis.

AS CARACTERÍSTICAS DA NOVELA DE CAVALARIA EM O

SERTANEJO

É nosso objetivo, nesta parte do artigo, demonstrar se algumas características das

novelas de cavalaria aparecem no romance O Sertanejo. Nessas novelas encontramos a

aventura dos cavaleiros andantes e a representação desses heróis com qualidades superiores,

quase sobre- humanas, pois sofrem a experimentação de suas forças físicas e morais, mas não

se deixam destruir, devido a sua grandeza física e moral.

O herói está a serviço do senhor feudal, mas preza, acima de tudo, seu altruísmo, por

isso seus objetivos são nobres. Como já foi dito anteriormente, temos a ascese, ou o desprezo

do corpo, pois os cavaleiros são dotados de forte religiosidade e crença na superioridade da

alma. A isso se relaciona o respeito à virgindade nos cavaleiros consagrados ao Santo Graal, e

o amor cortês, ou seja, a dedicação constante e respeitosa à mulher amada. Além disso, nessas

novelas, o real e o fantástico se cruzam. Existe a ocorrência de seres imaginários, como

dragões e de feiticeiros e bruxas. Profecias também são freqüentes.

Em O Sertanejo, encontramos a figura de Arnaldo, o protagonista, homem nascido e

criado no sertão cearense, extremamente forte e hábil, tão adaptado a esse meio que parece

fazer-se uno com a natureza. Apesar de trabalhar como vaqueiro de um grande fazendeiro, a

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quem serve com discrição e fidelidade absoluta, a descrição das características físicas, morais

e das ações de Arnaldo faz supor a superioridade dessa personagem. Nesse sentido, ao

analisar O Sertanejo sobre o prisma das novelas de cavalaria, percebemos semelhanças, por

exemplo, entre os personagens Arnaldo e Amadis, não apenas no que se refere à

experimentação de suas forças físicas e morais, pela qual ambos passam, mas também por

coincidências no desenrolar de suas aventuras.

Um dos aspectos mais importantes da novela Amadis de Gaula é o amor-adoração

do herói pela princesa Oriana. Para sentir-se digno de ser amado por ela e para servi-la e só a

ela, Amadis torna-se cavaleiro. Arnaldo também ama e tem verdadeira adoração por D. Flor,

filha de seu patrão, o fazendeiro Campelo.

Entretanto, tanto Amadis, quanto Arnaldo enfrentam empecilhos que os impedem de

obter a mão de suas amadas. Amadis se entristece por não ter linhagem e não tem coragem de

declarar o seu amor à Oriana. Também Arnaldo sente-se humilhado por não pertencer à classe

social da filha do fazendeiro. Os seus gestos de amor eram rejeitados por Dona Flor, pois,

mesmo os dois tendo sido amamentados pela mesma mulher, o que cria um vínculo afetivo e

quase co-sanguíneo entre eles, ela julga-se superior a ele: “(...) apesar de nos termos criados

juntos, não sou sua igual” (ALENCAR, 2003, p.173). Embora o herói reconheça a sua

inferioridade na escala social, isso não impede o seu devotamento à donzela.

O cavaleiro Amadis salva o rei Lisuarte, pai de Oriana, e também a livra de uma

armadilha, libertando-a do feiticeiro Arcalaus. Desse modo, parecido com a coragem de um

personagem de cavalaria, apresenta-se Arnaldo, sertanejo valente e honrado. Ele salva Dona

Flor de um incêndio criminoso, e expõe a própria vida ao perigo para protegê-la de ser raptada

por um fazendeiro vizinho, chamado Fragoso.

No caso do cavaleiro do reino de Lisuarte, ele descobre mais tarde possuir origem

nobre, pois também é filho do rei, mas ainda assim não pode casar-se com Oriana, pois o pai

da moça, muito ambicioso, deseja um casamento mais rico para a filha. Já a origem plebéia de

Arnaldo só poderá ser suplantada caso ele ascenda socialmente. Ainda que o romance O

Sertanejo não tenha sido concluído, ficando com o final em aberto, os episódios caminharam

para habilitar o vaqueiro como pretendente à mão de Dona Flor.

Este mérito Arnaldo estava obtendo por meio de sua devoção, coragem e fidelidade à

família do fazendeiro e, como prova dessa habilitação, temos o episódio final de O Sertanejo,

no qual, após salvar os Campelo do inimigo Fragoso, Arnaldo recebe do fazendeiro o

sobrenome da família: “Tu és um homem, e de hoje em diante quero que te chames Arnaldo

Louredo Campelo” (ALENCAR, 2003, p.246). Tal passagem nos remete à sagração dos

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cavaleiros, como ocorre com Amadis, feita pelas mãos de Perión, quando este ainda não sabia

ser seu pai: “Ora, cavaleiro sois. Tomais a espada!” (VIEIRA, 1995, p. 38)

As personagens das novelas de cavalaria são em maioria reis e seus súditos,

princesas e cavaleiros. Dessa feita, a descrição das qualidades físicas e morais do fazendeiro,

da filha, Dona Flor, e do vaqueiro, revela particularidades que remetem às qualidades dos reis

e cavaleiros medievais. A descrição física de Arnaldo é a de um homem belo e forte, como o

esperado para um herói, um cavaleiro medieval:

A par com a comitiva, mas por dentro do mato, caminhava um viajante à escoteira.

Parecia acompanhar o capitão-mor, porém de longe, às ocultas, pois facilmente

percebia-se o cuidado que empregava para não o descobrirem (...) Era o viajante

moço de vinte e um anos, de estatura regular, ágil, e delgado de talhe. Sombreava-

lhe o rosto, queimado pelo sol, um buço negro como os compridos cabelos que

anelavam-se pelo pescoço. Seus olhos, rasgados e vívidos, dardejavam as

veemências de um coração indomável. (ALENCAR, 2003, p.18).

A sua roupa lembra a armadura. Vejamos a descrição do traje e da montaria de

Arnaldo:

Vestia o moço um trajo completo de couro de veado, curtido à feição de camurça.

Compunha-se de véstia e gibão com lavores de estampa e botões de prata: calções

estreitos, botas compridas e chapéu à espanhola.

Tinha o cavalo um porte alto e linda estampa, mas nessa ocasião, além da fadiga da

longa viagem que devia emagrecê-lo (...) o animal vaqueano conhecia que não era

ocasião de enfeitar-se, rifar e dar mostras de sua galhardia. De feito tinha mais

aspecto de um grande cão montado por seu senhor, do que de um corcel.

(ALENCAR, 2003, p.18).

Por sua vez, Dona Flor é descrita como “formosa e gentil, de beleza deslumbrante”

(2003, p.15), e também é comparada a uma princesa: “em outras ocasiões D. Flor deleitava-se

no meio dessa procissão que lhe formava uma corte de princesa daqueles sítios” (ALENCAR,

2003, p.59).

O fazendeiro provinha de sangue limpo, isto é, sangue que quase equivale ao da

realeza, e parecia um castelão, ou seja, o dono de castelo: “Campelo provinha de sangue

limpo, mas plebeu; e almejando um pergaminho de nobreza, que enfim alcançara, ele queria

merecê-lo por seus dotes e ser primeiro fidalgo na pessoa, que no brasão” (ALENCAR, 2003,

p. 32).

Vejamos a descrição do fazendeiro, que só é feita após a descrição da casa da

fazenda e após a sua entrada na casa, onde é recebido como um rei: “Formalista severo, adicto

às regras e cerimônias, que se esmerava observar escrupulosamente, imbuído de uma

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gravidade que tinha por essencial ao decoro de uma pessoa de sua categoria...” (ALENCAR,

2003, p. 32). Também o tratamento dado aos súditos, ou seja, aos peões e feitores da fazenda,

remete-nos à era medieval. O fazendeiro trata a todos como se ele fosse um senhor feudal, e

os peões, vassalos.

Se na prosa trovadoresca o espaço em que se desenrola a trama é o campo aberto

onde ocorrem as batalhas, ou os castelos onde habita a nobreza, Alencar cria, em pleno sertão

cearense, uma fazenda que nos lembra um castelo, rodeada por um ambiente que só não

parece hostil ao herói Arnaldo:

As casas da opulenta morada eram todas construídas com solidez e dispostas por

maneira que se prestariam sendo preciso, não somente à defesa contra um assalto,

como à resistência em caso de sítio (...) A tapeçaria e alfaias da casa eram de uma

suntuosidade que se não encontra hoje igual, não só em toda a província, mas quiçá

em nenhuma vivenda rural do império. Naquela época, porém, os fazendeiros

tinham por timbre fazer ostentação de sua opulência e cercar-se de um luxo régio

(...) e o capitão-mor Campelo era um deles, que não comia senão em baixela de

ouro, e que trazia na libré de seus criados e escravos, bem como nos jaezes de seus

cavalos, brocados, veludos e telas de maior custo e primor (...) (ALENCAR, 2003,p.

29).

Em O Sertanejo a descrição da riqueza dos trajes e dos objetos de valor do

fazendeiro se assemelha com a descrição da riqueza de reis. O vestuário dos personagens

fazendeiros é rico. Na cena da cavalgada dos viajantes vê-se o requinte dos cavaleiros e das

amazonas. O narrador descreve os personagens, a família de um fazendeiro do Ceará, como se

descrevesse personagens de romances de cavalaria. O fazendeiro, sua mulher e filha estão

vestidos ricamente: “O vestido de montar era de fino droguete verde- garrafa com alamares de

torçal de ouro (...)” (ALENCAR, 2003, p.14).

A coragem e a força sobrecomum do cavaleiro é revista no romance de Alencar em

várias ocasiões. O episódio do salvamento de Dona Flor do incêndio, por exemplo, remete-

nos a episódios de donzelas que seriam queimadas pelo fogo do dragão nas lendas e novelas

de cavalaria, pois, nessas novelas, é comum que o cavaleiro salve donzelas de dragões.

Arnaldo salva D. Flor de um incêndio na mata. Podemos associar a queimada que ameaça a

mocinha às labaredas lançadas por um dragão perigoso, pois até o próprio narrador faz essa

menção de modo explícito: “Do meio desse torvelinho, o dragão de fogo arremessava

desfraldando as duas asas flamantes, cujo bafo abrasado já crestava as faces mimosas de D.

Flor” (ALENCAR, 2003, p. 20).

Em A demanda do Santo Graal, Galaaz vence um monstro, a besta ladradora. No

romance brasileiro, Arnaldo amansa uma onça, que lhe obedece como um animal de

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estimação: “logo depois abriu-se a folhagem e apareceu Arnaldo puxando pela orelha a um

tigre enorme, que o seguia gacheiro e humilde” (ALENCAR, 2003, p.68). Amadis é capaz de

vencer inimigos muito maiores que ele através de sua agilidade na montaria e no uso da

espada. Arnaldo também é ágil, movimenta-se entre as árvores como um macaco e monta

com maestria cavalos e bois.

O feiticeiro Arcalaus e o rei Bersinan de Sansonha preparam uma traição ao rei

Lisuarte, obrigando-o a entregar-lhes a filha Oriana, mas Amadis salva a donzela. Essa

aventura lembra-nos o episódio em que Fragoso, ajudado por ciganos, tenta raptar Dona Flor,

que é salva pelo sertanejo: “... Arnaldo deixou o velho no lugar da emboscada e voltou ao

sítio onde havia ficado a comitiva... ele apresentou o baio a D. Flor, já tinha destruído

completamente o efeito das artes dos ciganos” (ALENCAR, 2003, p.170).

O sertanejo não revela ao fazendeiro a emboscada feita por Fragoso. Do mesmo

modo, Arnaldo, que sempre se esconde para vigiar D. Flor, livrando-a dos perigos sem que

ninguém saiba disso, ele não conta que salvou a jovem do incêndio na mata, fica como se

fosse um mistério: “A maneira por que a donzela fora salva do incêndio, ficou sendo um

mistério. A maior parte atribuiu o caso à intervenção divina” (ALENCAR, 2003, p. 28).

Como se percebe, a questão do mistério e do sobrenatural aparece rodeando a figura

de Arnaldo e suas ações. Ele faz proezas, descobre os perigos antecipadamente, e outros

personagens acreditam que ele faz bruxarias, o que nos lembra os mistérios que os cavaleiros

viviam, sobretudo em A Demanda do Santo Graal. Em Amadis há adivinhos que desvendam

sonhos e fazem profecias. Dois adivinhos, Ungan e Urganda, profetizam acontecimentos para

o pai, o rei Perion, e para o filho Amadis.

Como já foi citado, o nascimento de Amadis é cercado de mistério: ele não conheceu

os verdadeiros pais, mas descobre, ao fim da trama, a sua origem nobre. Além disso, houve

profecias sobre seu nascimento. Em O sertanejo, temos Jó, que se revela um profeta ao fazer

previsões sobre a vida de Arnaldo. A mãe do vaqueiro acredita que o filho é protegido pela

Virgem e, em várias ocasiões, outras personagens atribuem as qualidades excepcionais de

Arnaldo a feitiçarias.

Outra característica presente em A Demanda do Santo Graal, a religiosidade, ocorre

em O Sertanejo. Assim como Galaaz, Arnaldo também é temente a Deus. Podemos observar

que o cristianismo ocorre no romance analisado, pois Arnaldo reza a ave-maria, tem devoção

por Nossa Senhora, mãe de Jesus, e vê a donzela Dona Flor como se fosse a Virgem

Santíssima. Vejamos como se apresenta essa religiosidade do protagonista:

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Com as mãos postas e a fronte reclinada para fitas o símbolo da redenção,

murmurou uma ave-maria, que ofereceu à Virgem Santíssima como ação de graças

por haver permitido que ele chegasse a tempo de salvar a donzela (ALENCAR,

2003, p 22).

Arnaldo também possui a castidade dos cavaleiros Galaaz e Boorz que são virgens e

consagrados pela cavalaria para encontrar o Santo Graal. Em A demanda há uma cena em que

uma princesa se mata, acusando o cavaleiro Galaaz de violência sexual, embora ele fosse

inocente. Também uma cigana tenta seduzir Arnaldo, mas este consegue livrar-se da sedução.

Se nas novelas de cavalaria muitas vezes o demônio se disfarçava de mulher, em O Sertanejo

esta cigana simboliza o demônio. Arnaldo é fiel à Dona Flor, e seu amor por ela é puro,

ficando na condição de platônico. Amadis é fiel à Oriana, a sem-par, mas o amor desse herói é

sensual, pois há desejo erótico concretizado.

Além destas semelhanças, alguns episódios do enredo de Amadis encontram seus

pares nesse romance brasileiro. O rei Lisuarte afasta Amadis de sua corte e dá Oriana como

esposa ao rei de Roma, mas Amadis consegue raptá-la do navio. Do mesmo modo, o pai de

Flor dá-lhe como esposa ao primo Leandro, mas Arnaldo não permite o casamento e prepara

um ardil: o noivo desmaia em função de uma flechada e assim o casamento não se realiza.

Arnaldo dorme em uma rede, no alto de um pé de jacarandá, para bem vigiar a

fazenda. Podemos ver nesta cena insólita a semelhança de um guardião na torre de um castelo.

Arnaldo segue um código de honra para com aqueles a quem promete sua lealdade, a maneira

dos cavaleiros do rei Arthur: “Um amigo é diferente: não o trairei jamais denunciando-o, e

ainda menos abandonando-o ao poder de estranhos” (ALENCAR, 2003, p. 50). E, embora

tenha o espírito livre e indomável, como os cavaleiros que não se prendiam à família para

poder batalhar, Arnaldo servia fielmente ao capitão Campelo, como Amadis servia ao senhor

de Lisuarte.

Arnaldo é protegido por um relicário vermelho: “Está defendido. Enquanto tiver no

pescoço o bentinho, não lhe acontece mal” (ALENCAR, 2003, p.63), e nas novelas de

cavalaria também temos os amuletos de proteção. O de Amadis era um anel que sua mãe

verdadeira lhe atara ao pescoço quando fora obrigada a deixá-lo, recém nascido, a ser levado

pelas águas de um rio.

Outras cenas do romance analisado, as festas das Cavalhadas, narradas cheias de

aventuras, evocam as comemorações feitas na Espanha e Portugal para rememorar a vitória

dos povos da península Ibérica contra os árabes ou mulçumanos. D. Flor rememora a prenda

que recebeu de um cavaleiro misterioso, numa dessas festas. O cavaleiro era Arnaldo que,

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com um lenço cobrindo-lhe o rosto, vence a prova mais difícil para dar a prenda à mulher que

amava, “a mais formosa”. Tal feito era comumente narrado nas novelas medievais.

Do mesmo modo, embora o narrador de O sertanejo narre os episódios de coragem e

maestria dos vaqueiros nordestinos ao montar em touros bravos ou derrubar o gado que ainda

não tinha sido domesticado, na verdade, o narrador enobrece a festa da vaquejada retratando-a

como “montearia”, isto é, as caçadas à moda dos europeus desde o período medieval.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabe-se que os românticos apreciaram a volta ao passado e às tradições. Pela análise

de O Sertanejo pode-se perceber a clara influência do trovadorismo, especialmente das

novelas de cavalaria na confecção deste romance. A figura do herói, para a humanidade, é

emblemática, e permanece, até hoje, como elemento recorrente.

O herói Arnaldo, de O Sertanejo, como vimos, em tudo lembra um cavaleiro

medieval. Sua descrição física, seu vestuário e, principalmente, suas ações e seu caráter.

Nesse sentido, ao utilizar-se de elementos comuns à novela de cavalaria para produzir seu

romance, José de Alencar revisita este gênero e o transpõe para outra época e outro espaço,

que não é mais o autêntico sertão nordestino, mas uma terra com ares também medievais,

demonstrando que o romance é um gênero que se alimenta de outros gêneros e deles tira sua

força.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ALENCAR, J. de. O Sertanejo. São Paulo: Ática, 2003.

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colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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VIEIRA, A. L. O romance de Amadis. Reconstituição do Amadis de Gaula dos Lobeiras. São

Paulo: Martins Fontes, 1995.