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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES SIMONE ROCHA DE CAMPOS EFÊMERA – EXPERIÊNCIAS VISUAIS COM PIGMENTOS DE PLANTAS CAMPINAS 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

SIMONE ROCHA DE CAMPOS

EFÊMERA – EXPERIÊNCIAS VISUAIS COM PIGMENTOS DE PLANTAS

CAMPINAS

2019

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SIMONE ROCHA DE CAMPOS

EFÊMERA – EXPERIÊNCIAS VISUAIS COM PIGMENTOS DE PLANTAS

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da

Universidade Estadual de Campinas como parte dos

requisitos exigidos para a obtenção do título de

Mestra em Artes Visuais

Dissertation presented to the Arts Institute of the

University of Campinas in partial fulfillment of the

requirements for the degree of Master in Visual Arts

ORIENTADORA: IVANIR COZENIOSQUE SILVA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA

PELA ALUNA SIMONE ROCHA DE CAMPOS, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA.

IVANIR COZENIOSQUE SILVA.

CAMPINAS

2019

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

SIMONE ROCHA DE CAMPOS

ORIENTADORA: PROFA. DRA. IVANIR COZENIOSQUE SILVA

MEMBROS:

1. PROFA. DRA. IVANIR COZENIOSQUE SILVA

2. PROF. DR. EDSON DO PRADO PFUTZENREUTER

3. PROF. DR. WLADIMIR AUGUSTO EVELIM ROMERO FONTES

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da

Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão

examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na

Secretaria do Programa da Unidade.

DATA DA DEFESA: 30.01.2019.

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AGRADECIMENTOS

Camila Mangueira, pelo olhar atento, contato e diálogos durante todo o percurso. Fatima Roque

(in memorian), pela força, conselhos, reflexões e incentivos. Miguel Chikaoka, pela inspiração

constante. Daniela Avelar, pelas sugestões e conversas nos momentos de dúvidas. Heloisa Pisani,

pelo entusiasmo genuíno e inspirador, e pelas indicações de pares poéticos durante a pesquisa.

Larissa Meneses, por me presentear com suas reflexões ao acessar meu trabalho. Bárbara Alves,

por me ajudar a trazer luz nas sombras. Frank Vitor Dantas, pela interlocução generosa na

construção do gabinete. Laura Del Rey, pela precisão nas dicas gráficas e Telma Zanata, pela ajuda

com as capas dos bookletes. Beth Lee e André Leite Coelho, por terem me apresentado ao

anthotype anos atrás.

Ivanir Cozeniosque, pela orientação com espaço, liberdade e respeito. Luise Weiss e Edson do

Prado Pftutzenreuter, pelas contribuições fundamentais no momento da qualificação. Fabíola

Notari, pela disponibilidade e abertura. Wladimir Fontes, pelas colocações precisas, profundas e

sensíveis.

Roger Sassaki, pelas traduções, consultoria, reproduções fotográficas e também pela parceria,

conversas, afetos e incentivos diários.

Lina e Duda (in memorian), que muito me ensinaram sobre amizade e amor, e continuam vivos em

minhas memórias.

Junior Suci, Angela Di Sessa, Guilherme Maranhão, Ligia Minami, Edison Angeloni, Celina

Yamauchi, Regina Marques, Salete do Anjos, Catia Leandro e Lilian Sarmento, pelo estímulo desde

o princípio.

Antonio Wilson, Marilene e Adriana, por motivarem meu crescimento pessoal.

Wilson Campos Jr, meu irmão, por todos os anos de dedicação incondicional, sem seu apoio eu

nunca teria chegado até aqui.

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Nuno Zanata, pela empolgação em me oferecer flores para eu ‘esmagar’. Chumbinho, meu

parceiro de todas as horas de escrita.

Sandra Carmello Guerreiro, Diego De Marco, Octávio Weber, José Pedro Nepomucemo, biólogos

que me deram dicas e auxílios cruciais para o andamento da pesquisa.

Walkiria Pompermayer, Rosângela Ribeiro de Oliveira e alunos bolsistas, pelo apoio durante a

montagem da instalação na GAIA, e Claudenir Ferreira Machado pela iluminação precisa e

delicada.

Participantes das oficinas que ofereci em São Paulo, em Campinas e em Belém, com quem troquei

muitas informações e conhecimentos.

Sesc SP, por ter concedido uma bolsa de estudos que me possibilitou frequentar aulas e encontros

acadêmicos, sem esse apoio esse trabalho não seria possível.

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RESUMO

Tendo como ponto de partida o uso do processo fotossensível a partir de pigmentos de plantas

(Anthotype), surgem aberturas e repercussões que a pesquisa prática suscitou, como por exemplo

a convergência com a ciência – mais especificamente com o campo da biologia —, e sua relação

com as estruturas celulares das plantas. O trabalho reúne, numa espécie de gabinete de

curiosidades, imagens produzidas em um processo fotográfico do século XIX, desenhos de plantas

realizados com o uso de câmara lúcida (dispositivo óptico pré-fotográfico para projeção de

imagens), lâminas de histologia vegetal e fotografias microscópicas, com o propósito de criar

hibridismos, borrar fronteiras entre registros artísticos e científicos ao refletir sobre a

impermanência da matéria-prima.

Palavras-chave: processo criativo, fotografia, pigmentos vegetais, antotipia, gabinete de

curiosidades.

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ABSTRACT

Having as a starting point the use of a photosensitive process from plant pigments (Anthotype),

paths and repercussions appeared that the practical research aroused, such as convergence with

science - more specifically with the field of biology - and its relation to the cellular structures of

plants. The work includes, in a kind of cabinet of curiosities, images produced in a photographic

process of the 19th century, drawings of plants made using a camera lucida (pre-photographic

optical device for projection of images), histology slides and microscopic photographs, with the

purpose of creating hybridity, to blur boundaries between artistic and scientific records by

thinking over the impermanence of the raw material.

Keywords: creative process, photography, plant pigments, anthotype, cabinet of curiosities.

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Sumário

1. APRESENTAÇÃO | OBJETIVOS.................................................................................102. FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E CIÊNCIA - A descoberta da fotografia e alguns de seus usos no século XIX......................................................................................................11

2.1. DESENVOLVIMENTO E PESQUISA DOS PROCESSOS FOTOSSENSÍVEIS.............152.2. A MATERIALIDADE DA FOTOGRAFIA NA HISTÓRIA E A IMAGEM DIGITAL.......182.3. USO DE PROCESSOS HISTÓRICOS EM TRABALHOS CONTEMPORÂNEOS........19

3. PERCURSO...............................................................................................................283.1. ANTHOTYPES....................................................................................................363.2. PRÉ-FOTOGRÁFICO..........................................................................................38

4. MATÉRIA PRIMA......................................................................................................424.1. IMAGEM ‘CIENTÍFICA’ - Desenhos científicos, preparo de lâminas e imagens microscópicas.........................................................................................................474.2. PIGMENTOS.....................................................................................................50

5. GESTUAL – Contato e fricção..................................................................................545.1 HISTOLOGIA VEGETAL.......................................................................................55

6. A EFEMERIDADE E O TEMPO..................................................................................586.1. O RITMO DA NATUREZA - Experiência.............................................................596.2. PARES POÉTICOS..............................................................................................62

7. O PROCESSO COMO OBRA – Anotações e registros...............................................667.1 ANOTAÇÕES – Postagens no blog.....................................................................697.2 REDES DE CONEXÕES........................................................................................71

8. ORGANIZAÇÃO – Coleção, inventário, arquivo, gabinete de curiosidades.............748.1. O GABINETE.....................................................................................................82

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................8710. BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................105

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1. APRESENTAÇÃO | OBJETIVOS

O presente projeto pretende refletir sobre a efemeridade e a impermanência nos processos

artísticos, além da intersecção da natureza na perspectiva das artes e da ciência por meio de

pesquisas com as matérias-primas, gestos e linguagens usados nos trabalhos. A investigação de

matérias-primas para elaboração de imagens efêmeras foi o fio condutor para essa pesquisa.

Nesse sentido, o fazer foi constituído por trabalhos práticos norteados por desdobramentos a

partir do uso da técnica fotográfica Anthotype, que tem como característica o registro de imagens

a partir de pigmentos vegetais que se alteram e se apagam com o passar do tempo. Tendo como

ponto de partida o uso desse processo fotossensível são apresentadas também aberturas e

repercussões que a pesquisa prática suscitou, como por exemplo a convergência com a ciência;

mais especificamente com o campo da biologia e sua relação com as estruturas celulares das

plantas.

No decorrer do mestrado emergiram necessidades do uso de equipamentos pré-

fotográficos tal como a câmara lúcida para realização de desenhos científicos de plantas, preparo

de lâminas histológicas para a visualização das estruturas celulares (onde se encontram os

pigmentos dos vegetais), bem como o registro de imagens microscópicas que começaram a se

fazer presentes nessa investigação poética.

A matéria-prima, como plantas de espécimes diversas; a gestualidade como marca possível

do registro de um processo investigativo e os procedimentos são assinalados dando à pesquisa

formas de refletir e trabalhar num contexto temporal menos apressado. As transformações

acontecem lentamente na matéria orgânica, e sua observação atenta aponta para um momento de

pausa, contemplação e reflexão.

Aliados a prática artística estarão presentes de uma maneira aproximativa ou, como

afinidades eletivas, estudos teóricos sobre o efêmero, pesquisas de técnicas históricas fotográficas

do século XIX, um levantamento de trabalhos de artistas que discutem a efemeridade e a presença

das transformações orgânicas em suas produções artísticas.

O trabalho reune numa espécie de gabinete de curiosidades imagens em um processo

fotográfico do século XIX, desenhos de plantas realizados com o uso de câmara lúcida (dispositivo

óptico pré-fotográfico para projeção de imagens), lâminas de histologia vegetal e fotografias

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microscópicas, com o propósito de criar hibridismos e borrar fronteiras entre registros artísticos e

científicos.

2. FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E CIÊNCIA - A descoberta da fotografia e alguns de seus usos no século XIX

Como é sabido, todos os elementos que intervêm no processofotoquímico da fotografia eram conhecidos com muita anterioridadeà data de divulgação do daguerreótipo: Aristóteles menciona osprincípios ópticos da câmera escura; os alquimistas árabes estavamfamiliarizados com as propriedades fotossensíveis dos haletos deprata. No entanto, o que conhecemos usualmente como fotografia sóse cristaliza no início do século XIX porque é justamente nessemomento que a cultura tecnocientífica do positivismo requer umprocedimento que certifique a observação empírica da natureza. Acâmera aparece, portanto, ligada às noções de objetividade, verdade,identidade, cor, documento, arquivo, etc. A câmera será uminstrumento a serviço da industrialização, a serviço do colonialismo, aserviço das incipientes disciplinas do controle e vigilância… Alémdesse salto da prata para o silício e da partícula fotográfica ao pixel,quais são as modificações com que a fotografia digital nosconfrontará no semiológico, no epistemológico e no ontológico?(FONTCUBERTA, 2012, 63)

A fotografia nasce no século XIX com o estatuto de veracidade, e foi vislumbrada por

cientistas como representação fiel e científica das coisas. Ela surge não como mero acaso, mas

como resposta ao desejo cultural da época. Louis Daguerre (18/11/1787 – 10/07/1851) pesquisava

na França, William Henry Fox Talbot (11/02/1800 – 17/09/1877) na Inglaterra e até no Brasil, na

região de Campinas o pesquisador Hercules Florence (27/03/1804 – 27/03/1879) fez suas

tentativas de registros de luz. Num dos primeiros textos escritos por Talbot (Fig. 1), ele nomeia a

técnica como “Lápis da natureza”, ou seja, desde seus primórdios, mesmo na perspectiva de seus

inventores, a fotografia parecia prescindir de autores. Somente a natureza revelando a si própria,

sem intermediários.

Exemplo dessa isenção de autoria aparece na capa de uma publicação de Talbot sobre uma

técnica nomeada por ele de ‘desenhos fotogênicos’, desenhos feitos com luz ou “processo no qual

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os objetos naturais podem delinear a si próprios sem a ajuda do lápis do artista”1 (TALBOT, 1839,

capa). O processo, hoje chamado também de fotograma, consiste em depositar objetos sobre

material fotossensível que ao receber luz, registra suas silhuetas (Fig. 2).

Fig. 1 – ‘The pencil of nature’, capa de livro, Henry Fox Talbot, 1844. 6x8”. Fonte: https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1994.197.1-.6/

1 Tradução livre de “Some account of Art of Photogenic Drawing - or the process by which natural objects may be made to delineate themselves without the aid of the artist's pencil”, título da publicação que é a transcrição do discurso de apresentação das pesquisas de Talbot, realizada em 1839.

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Fig. 2 - ‘Photogenic Drawing of Erica Mutabilis’, desenho fotogênico, Henry Fox Talbot, 1839. Fonte: https://www.mhs.ox.ac.uk/features/ephotos/pdtypes.htm

O meio científico via na fotografia uma grande aliada para seus registros. Ainda no século

XIX, Anna Atkins (1799-1871), bióloga pesquisadora de algas, fez o que seria o primeiro livro

ilustrado com fotografias: usou um processo que utiliza sais de ferro para registros de imagens em

tons de azul, o cianótipo. Colocou algas diretamente em contato com papéis sensibilizados com os

sais férricos e registrou seus contornos (Fig. 3).

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Fig. 3 – Página do livro ‘Cyanotypes of British Algae’, Anna Atkins, 1843. Fonte: https://publicdomainreview.org/collections/cyanotypes-of-british-algae-by-anna-atkins-1843/ Acessado em 2/12/2018.

Além do uso no meio científico, a fotografia cumpriu também nessas primeiras décadas umimportante papel na captura de paisagens permitindo que pessoas conhecessem lugares nunca antes visitados. E teve uma função relevante no registro de retratos, que na época eram considerados supostamente mais fiéis do que a interpretação dos pintores. Como escreve Fontcuberta:

“A fotografia foi entendida durante muito tempo como forma da natureza representar a si mesma. O fascínio que sua descoberta produziu apontava para essa ilusão de automatismo natural. Um slogan publicitário de material daguerreotípico rezava: ‘Deixe que a Natureza plasme o que a Natureza fez’. Essa declaração ontológica sobre a essência da imagem fotográfica pressupõem a ausência de intervenção e, portanto, a ausência de interpretação. Trata-se de copiar a natureza com a máxima precisão e fidelidade sem depender das habilidades de quem a realiza. A consequência aparente era a obtenção direta, sem paliativos, da verdade. Em 1853, Albert Bisbee escreveu em seu manual sobre a daguerreotipia: ‘Uma das principais vantagens do daguerreótipo é que atua com tamanha capacidade de certeza e magnitude que as faculdades humanas resultam, ao seu lado, absolutamente incompetentes… Daí que cenas do maior interesse possam ser transcritas e legadas à posteridade exatamente tal como são, e não como poderiam parecer segundo a imaginação

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do poeta ou do pintor… Os próprios objetos se delineiam e o resultado é verdade e exatidão’.” (FONTCUBERTA, 1997, 19)

2.1. DESENVOLVIMENTO E PESQUISA DOS PROCESSOS FOTOSSENSÍVEIS

Uma vez descoberta a forma de fixar imagens feitas a partir da luz, a pesquisa dos

processos fotográficos seguiu sua história no sentido de transformar os registros em capturas mais

ágeis, com melhor qualidade de registro de informações e menos onerosas financeiramente. A

materialidade das imagens foi se transformando a cada novo processo inventado. O daguerreótipo,

que tem sua descoberta anunciada ao mundo em 1839, era uma espécie de jóia: uma fina placa de

cobre, recoberta por uma camada de prata onde uma imagem única se formava. Vale lembrar que

o daguerreótipo era um positivo direto, ou seja, era um objeto único, não era reprodutível. O

mesmo objeto que presenciava a cena registrada dentro da câmera e recebia a luz refletida dela,

continha a imagem final. Talbot, logo após ter conhecimento do daguerreótipo, resolve também

mostrar ao meio acadêmico em 1839 suas pesquisas em andamento, o Talbótipo (também

conhecido como calótipo). Ele publica em 1841 um manual ilustrado de como realizar seu invento,

que se trata de um processo em que a imagem registrada em papel com sais de prata gera uma

matriz com os tons invertidos (em negativo), que por contato poderia ser reproduzida em positivos

infinitamente. E em 1844 ele publicou ainda o ‘The Pencil of Nature’, citado anteriormente. O

papel era viável do ponto de vista dos custos, no entanto, para se produzir os positivos, a matriz

negativa deveria ser encerada e ficar mais translúcida para que a luz atravessasse por ela e

atingisse um novo papel sensibilizado, gerando o positivo. Mesmo encerado, parte da fibra do

papel do negativo fazia sombra durante o contato e sua textura acabava por participar da imagem

positiva, o que não animava muito os fotógrafos na época.

A característica reprodutível da descoberta de Talbot gerou interesse, e muitos

desdobramentos do par positivo/negativo foram pesquisados e utilizados na história da fotografia.

A escolha de um novo suporte para a matriz (que não fosse papel) foi perseguido e o vidro foi

escolhido. Duas variáveis utilizando vidro foram amplamente utilizadas ainda no século XIX: placa

úmida de colódio e placa seca de gelatina. Frederick Scott Archer (1813 – 1/5/1857) descobriu em

1851, que o colódio é um material que teria a capacidade de aderir sobre o vidro e continuar

permeável enquanto úmido. A técnica da placa úmida de colódio consiste em diluir nitrocelulose

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em solução de álcool, éter e posteriormente salgar essa solução viscosa com brometos e iodetos.

Essa solução é derramada sobre placa de vidro2 ou ferro3 de modo a cobrir toda a placa, que

posteriormente será mergulhada em uma solução de nitrato de prata. O sal de prata se liga aos

iodetos e brometos formando sais fotossensíveis no interior do colódio, aderido à placa. Essa placa

é levada ao interior da câmera, onde é registrada a imagem, que em seguida passa pelo processo

de revelação e fixação. Todo o processo deve acontecer com a placa ainda úmida, que é o que

mantém a superfície permeável e permitindo que as reações químicas aconteçam, e isso obrigava

o fotógrafo a ter seu laboratório junto de si onde quer que fosse realizar suas imagens. Vale

lembrar que nessa altura, já existiam alguns ampliadores fotográficos4, mas eles ainda eram

rudimentares e pouco utilizados, por essa razão, a placa deveria ter o tamanho da imagem final

pretendida. O colódio úmido foi bastante utilizado por alguns motivos: era mais sensível do que o

calótipo e que o daguerreótipo, ou seja, o tempo de exposição à luz (e consequentemente da pose

para os retratos) era menor; diferente do calótipo, que apresentava a textura do papel, o colódio

produzia uma matriz negativa mais transparente para posterior positivação em papel (papel

salgado ou papel albuminado); quando utilizada a variação de positivo direto (ambrótipo ou

ferrótipo) era de custo infinitamente mais baixo que os daguerreótipos, pois o suporte de vidro ou

ferro eram muito mais baratos do que cobre revestido de prata usado no daguerreótipo; o inventor

da placa úmida de colódio, Frederick Archer, não patenteou seu invento, e disponibilizou sua

pesquisa sem que seu uso carecesse de qualquer repasse financeiro a ele - diferente do que fez

Daguerre e Talbot.

As alternativas mais utilizadas para positivar imagens negativas em placa úmida de colódio

foram o papel salgado e o papel albuminado. Ambos se fazem por contato5, e utilizam nitrato de

prata diluído em água, no entanto, o albúmen (clara de ovo) entrega um brilho ao papel e mantém

a prata sobre suas fibras, o que oferece um notável aumento de contraste na imagem positiva

2 Colódio sobre vidro pode gerar negativos em placa úmida, ou Ambrótipos, se forem positivos sobre placa de vidro.

3 Os positivos feitos com colódio sobre placa de ferro são também chamados de ferrótipos.

4 Aparelho com lâmpada e lentes, que projetam a imagem do negativo ampliada e é usado para a realização de cópias positivas em dimensão maiores que a matriz negativa. Seu antecessor era chamado de Solar Camera (Câmera Solar), que não utilizava lâmpadas, mas um sistema de lentes e espelhos para direcionar a luz do sol.

5 A luz atravessa o negativo de vidro e atinge o papel sensibilizado que fica em contato com ele.

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final. Esse par negativo de vidro feito em colódio úmido e positivo em papel albuminado foi

amplamente utilizado no século XIX e início do século XX.

A tentativa seguinte foi eliminar a necessidade de transportar o laboratório, ou seja, criar

um material fotossensível seco sobre a placa de vidro, o que culminou com a invenção da placa

seca de gelatina. A placa seca de gelatina consiste na produção de uma gelatina que mantém em

suspensão sais fotossensíveis de brometo e iodeto de prata. Essa gelatina é derretida e derramada

sobre a placa de vidro, e depois de seca é colocada no interior da câmera fotográfica.

O passo seguinte foi modificar o suporte frágil (vidro) das matrizes e suas dimensões. Uso

de acetato de celulose como base para a matriz negativa e o contínuo desenvolvimento de

emulsões fotográficas mais sensíveis (tanto para a matriz, quanto para a cópia), possibilitou o uso

de ampliadores, que tornaram a fotografia ágil e permitiram o uso de câmeras mais portáteis.

A tecnologia da emulsão de gelatina de prata, inventada por Richard Leach Maddox

(4/8/1816 – 11/5/1902) em 1871 possibilitou a industrialização dos materiais fotossensíveis e

garantiram ampla difusão da fotografia.

Fig. 4 – Eastman Kodak Company. Rochester, New York. ‘Advertisement’, ca. 1890s. Fonte: Acervo Pessoal.

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Toda essa corrida entre os primeiros ensaios de Daguerre e Talbot e a industrialização e

difusão de câmeras, filmes e papéis pela Eastman Kodak Company (que por volta de 1890 já tinha

o slogan: ‘Você aperta o botão e nós fazemos o resto’) durou menos de 100 anos.

Sem entrar em detalhes sobre os processos fotográficos para imagens em cores, o que é

importante salientar é que toda a corrida de transformações tecnológicas pareciam caminhar na

intenção de baratear os custos e acelerar os registros e nesse sentido, a fotografia digital também

parece seguir nessa direção. A diferença é que em termos de rapidez de captura, os filmes flexíveis

conseguiram atender a todas as expectativas. A necessidade agora seria a rapidez de transmissão

da imagem/informação, portanto a imagem digital atende a essa necessidade contemporânea. Em

relação aos custos, aparentemente (caso não se leve em conta a obsolescência programada dos

equipamentos eletrônicos) há uma diminuição, na medida que não são imprescindíveis materiais

(filmes e papéis fotográficos), pois a imagem pode ser apreciada diretamente desde o display da

câmera até as telas de computador ou de TV’s.

2.2. A MATERIALIDADE DA FOTOGRAFIA NA HISTÓRIA E A IMAGEM DIGITAL

Como cada técnica foi substituída por outro processo sucessor, as imagens históricas de

diferentes épocas podem ser facilmente identificadas pela tecnologia empregada no registro. Os

vestígios da passagem do tempo na matéria também oferecem informações para identificar

quando as imagens foram capturadas.

Uma característica da imagem digital é o fato dela ser uma imagem numérica, binária.

Daqui a uma centena de anos, um arquivo digital poderá ‘abrir’ ou ‘não abrir’, e caso abra, ele será

idêntico ao momento em que foi capturado. Há características temporais quanto aos formatos dos

arquivos, quantidade de pixel ou mesmo gama de cores, no entanto, são características que por si

não parecem suficientes para datar imagens digitais. As imagens digitais não carregam os vestígios

da passagem do tempo em seus arquivos, e isso poderá dificultar o trabalho de historiadores no

futuro.

É interessante refletir que essas transformações pelas quais os processos fotográficos

passaram na história nos apontam as diferentes materialidades pelas quais a fotografia passou ao

longo dos anos até chegar aos dias atuais com seus arquivos digitais. Aparentemente, as diferentes

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materialidades pareciam, no momento de sua invenção, serem ponderadas principalmente do

ponto de vista funcional, e não necessariamente do ponto de vista expressivo. Baixo custo,

velocidade de captura e nitidez pareciam ser fatores mais importantes a serem perseguidos nos

desdobramentos técnicos pelos quais passou a fotografia do que a característica expressiva de

seus suportes materiais. Os suportes materiais pareciam ser interpretados principalmente com

meio que continha a fotografia (imagem, informação) - por vezes interpretados até mesmo como

obstáculo - , e aparentemente não eram considerados como parte constituinte delas. Essa é uma

hipótese também levantada por Crawford:

“Como um princípio geral na evolução do processo de impressão, o processo que pudesse apresentar mais informação no mesmo espaço, a um custo competitivo, superaria seus rivais. (…) Durante as duas primeiras décadas defotografia, a maior parte do trabalho experimental concentrou-se em encontrar uma maneira conveniente e prática de transmitir informações. Para isso, o que era necessário era um processo que pudesse combinar a precisão óptica do daguerreótipo com a reprodutibilidade do calótipo.”6 (CRAWFORD, 1979, 41)

Em contrapartida, há uma retomada dos processos fotográficos do século XIX em trabalhos

artísticos de fotógrafos no século XX e XXI dando principal ênfase à materialidade desses

processos. E nesse sentido, algumas características materiais que na história da fotografia fizeram

com que determinadas técnicas ficassem obsoletas e fossem ‘substituídas’ por outras tecnologias

mais ‘eficientes’, são retomadas na fotografia contemporânea como elementos potencialmente

poéticos.

2.3. USO DE PROCESSOS HISTÓRICOS EM TRABALHOS CONTEMPORÂNEOS

A eventual falta de materialidade dos registros digitais parecem instigar sua valorização,

mesmo quando a visualização é feita a partir de dispositivos tecnológicos – displays - como as telas

dos smartphones. A febre dos filtros do instagram testemunha essa apreciação. Existem filtros que

6 Tradução livre de “As a general principle in the evolution of print-making, the process that can present more information in the same space at competitive cost wins out over its rivals. (...) During the first two decades of photography, most experimental work concentrated on finding a convenient and practical way to convey information. For this, what was needed was a process that could combine the optical precision of the daguerreotype with the reproducibility of the calotype.”.

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simulam características visuais da coloração do polaroide7, da viragem a sépia8, o contraste e

saturação de filmes invertidos em processo cruzado9, as marcas nas bordas típicas dos ferrótipos,

entre outros.

Na direção oposta de criar simulacros numéricos, há quem procure retomar os processos

fotográficos em sua materialidade de nascença, buscando em manuais do século retrasado suas

fórmulas químicas originais para saciar um real interesse nas peculiaridades de cada técnica, desde

a elaboração dos materiais fotossensíveis até o seu resultado visual no objeto fotográfico final.

Alguns relatam que incorporaram o uso do laboratório em suas produções motivados pela

mudança de ritmo que os processos analógicos demandam, e também pelo interesse na

visualização das transformações químicas pelas quais as fotografias passam durante todas as

etapas dos processos. Outros gostam de participar de todas ou da maior parte das etapas por se

interessarem pelo contato manual e pela artesania analógica. Há ainda fotógrafos que se

interessam por esses processos por mero fetiche tecnicista.

As fibras do papel que participam da imagem positiva no calótipo são um ponto de

interesse do artista Dan Estabrook, que em alguns trabalhos utiliza lado a lado o positivo e

negativo (Fig. 5); em outros incorpora a textura do papel como elemento expressivo e também faz

interferências com tinta sobre as imagens (Fig. 6).

7 Material fotográfico instantâneo, que continha em seu interior os químicos necessários para revelar o registro minutos após a captura e tinha uma coloração peculiar.

8 Banho químico para fotografias PB, que dão às imagens tons de marrom, e que também simulam uma imagem ‘envelhecida’, com a coloração de imagens feitas na técnica histórica do papel salgado.

9 Filmes fabricados para resultar em positivos diretos (slides), quando revelados como se fosse negativos, aumentam o contraste e a saturação das imagens, essa alteração na revelação é chamada de processo cruzado.

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Fig. 5 - Dan Estabrook. ‘Forever & Never’, 2003. Waxed Calotype negative with pencil, and salt print. 5″ x 7″. Fonte: http://danestabrook.com/portfolio/night-and-day/#jp-carousel-1656 Acesso em 2/12/2018.

Fig. 6 - Dan Estabrook. ‘At Sea’, 2007. Salt print with watercolor and gouache. 16″ x 20″. Fonte: http://danestabrook.com/portfolio/at-sea/#jp-carousel-1575 Acesso em 2/12/2018.

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A superfície metálica do daguerreótipo promove a fusão entre o retrato da artista e o

reflexo do observador, e são utilizados no trabalho de Cris Bierrenbach de modo a criar esse jogo

que exige do espectador uma movimentação corporal ao buscar o melhor ângulo para conseguir

visualizar a obra. O observador hora se vê, hora consegue visualizar o autoretrato da artista.

Observar uma reprodução desse trabalho em superfície opaca (Fig. 7) faz com que uma parte

significativa da obra se perca, pois só se vê o retrato e mesmo assim, sem o brilho natural que a

materialidade a ele confere.

Fig. 7 - Cris Bierrenbach. Sem nome (tríptico), 2003. Daguerreótipo, 25 x 19 cm. Fonte: https://crisbierrenbach.com/pessoal/daguerreotipo/sem-nome/ Acesso em 2/12/2018.

Os relativos longos tempos de exposição exigidos pela técnica da placa úmida de colódio

parecem interessar Sally Mann, pois fazem com que os retratados tenham algumas expressões que

dificilmente se alcançaria com uma fotografia instantânea ou de tempos de exposição menores

(Fig. 8). A necessidade do uso de câmeras de grande formato para a maior parte dos processos

fotográficos de captura do século XIX também alteram a relação entre o fotógrafo e a cena

registrada, e interferem no resultado final. A transparência e a fragilidade dos vidros também

comunicam.

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Fig. 8 - Sally Mann. Untitled. Self portrait, 2006-2012. Ambrótipo sobre vidro negro. Fonte: https://www.sallymann.com/new-page-1 Acesso em 2/12/2018.

Nos processos fotográficos para a produção de cópias, tais como o cianótipo, o papel

salgado e a albumina, há uma valorização contemporânea no gesto que é empregado no momento

de depositar o material fotossensível na superfície que servirá como suporte. Nos cianótipos de

Irina Glik as lacunas entre as pincelas são construídas cuidadosamente, como se a ausência de

emulsão criasse o movimento das ondas em suas paisagens aquáticas (Fig. 9).

Fig. 9 - Irina Glik. ‘Cyanotype Same Boat’. Cianótipo, 6x9.1”. Fonte: http://irina-glik.com/stolen-art/ Acesso em 2/12/2018.

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A falta de contraste das cópias em papel salgado foi o fator determinante quando me

interessei em fazer um trabalho sobre a pele (Fig. 10). Gostaria de trazer essa suavidade das

passagens de tons para as cópias. A textura do papel também oferecia um caráter mais tátil para o

trabalho. Manchas, marcas de manipulação, pinceladas sinuosas, acúmulos de produtos químicos,

irregularidades causadas pela artesania do processo foram atrativos bastante destacados durante a

produção dessas imagens.

Fig. 10 – Simone Wicca. ‘Pele’, 2001. Papel Salgado, 15x15cm. Fonte: Acervo Pessoal.

A fragilidade do vidro utilizado na placa úmida de colódio me atraiu para a criação de uma

certa ‘intranquilidade’ no trabalho ‘Estudos sobre flexibilidade e limite’ (Fig. 11). Desejei registrar

um assunto muito flexível (uma contorcionista) num suporte ao mesmo tempo rígido e frágil e

pressionar a fotografia com um grampo (do tipo sargento). A soma do assunto às características

das matérias primas empregadas nessa produção criam um tensionamento e certa inquietude em

quem observa, pois a transparência e a fragilidade dos vidros também confabulam. A imagem

parece flutuar sobre a superfície da placa. Os longos tempos de captura deram à retratada certa

expressão austera que dificilmente seria alcançada numa fotografia instantânea.

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Fig. 11 – Simone Wicca. ‘Estudo sobre flexibilidade e limite’, 2015. Ambrótipo e grampo de metal, 20x30cm. Fonte: Acervo Pessoal.

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A superfície metálica, o aspecto irreprodutível da imagem única do ferrótipo me fizeram

escolher esse processo para fazer um trabalho nomeado ‘Materia Prima’ (Fig. 12). A possibilidade

de reação química ao adicionar sais durante o processamento fez com que acontecessem algumas

precipitações metálicas. Assumir a casualidade e o descontrole da formação quase aleatória dos

cristais metálicos junto com a imagem gravada com luz trouxeram características e qualidades que

fazem com que esse trabalho não pudesse ter sido realizado usando outra técnica.

Fig. 12 – Simone Wicca. Detalhe do ferrótipo que consta no trabalho ‘Materia Prima’, 2016. Ferrótipo de 4x5”. Fonte: Acervo Pessoal.

A retomada de processos fotográficos históricos por fotógrafos contemporâneos nem

sempre se trata de saudosismo ou resgate histórico. Utilizo os processos exagerando suas

características para que a apropriação dessas técnicas deem ênfase em suas peculiaridades físicas

e materiais de forma expressiva.

A materialização de imagens digitais passa atualmente por um processo de invenções e

descobertas, e tem dado fortes indícios de que a produção de cópias não caminhará na direção de

registrar as imagens através da luz, mas de impressões em jato de tinta de pigmentos minerais

sobre papel de algodão. Possivelmente é a primeira vez na história da fotografia que as cópias não

são geradas a partir da incidência da luz. O processo com pigmentos minerais seguramente oferece

qualidade e estabilidade às impressões, mas a forma de realização e o resultado visual das cópias

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impressas por hora ainda não satisfazem completamente uma parcela de fotógrafos artistas na

qual me incluo (apesar de em alguns trabalhos eu também utilizar esse processo de reprodução). E

esses ainda veem interesse em retomar processos e procedimentos do século XIX valendo-se de

suas particularidades para dar materialidade aos seus trabalhos contemporâneos.

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3. PERCURSO “Em outras latitudes e situações culturais, o ato fotográfico foi considerado uma manifestação da Luz, uma revelação do sobrenatural.” (FONTCUBERTA,1997, 20)

A primeira vez que vi um Anthotype foi em 2007. André Leite Coelho fez imagens a partir

do sumo de pétalas de rosas vermelhas pincelados sobre papel de fibra de algodão (Fig. 13), e

resultava numa imagem em tons de rosa e lilás. Em 2009, vi algumas imagens produzidas por

Elizabeth Lee usando uma variação desta técnica, diretamente sobre a folha da planta (Fig. 14). Foi

imediato: olhei para a imagem na folha e já pude “visualizar” o trabalho: se registrasse um corpo

feminino utilizando aquela técnica, poderia contar o mito da mulher que se transformou em

planta.

Fig. 13 - André Leite Coelho. Sem título. Série ‘Atlas do esquecimento’, 2013. Anthotype a partir de sumo de rosas vermelhas, 20x30cm. Fonte: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/86943 Acesso em 2/12/2018.

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Fig. 14 - Elizabeth Lee. ‘Relógio’, 2008. Anthotype diretamente sobre folha de Zantedeschia aethiopica (Copo de Leite),15cm x 8cm. Fonte: https://www.flickr.com/photos/fotons/6014220235/ Acesso em 2/12/2018.

Naquela mesma época, pesquisando sobre trabalhos que utilizam a propriedade

fotossensível das plantas para gerar imagens, encontrei também o trabalho de Heather Ackroyd e

Dan Harvey. Ackroyd e Harvey são artistas ingleses que trabalham juntos há algumas décadas e

utilizam materiais naturais na criação de seus trabalhos, justapondo forças de crescimento e

deterioração, fantasia e renovação. Em um dos trabalhos da dupla, que discute a permanência de

imagens em suportes vivos, são projetadas fotografias em grandes painéis verdes e a luz dos

projetores imprime a imagem na grama (Fig. 15).

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Fig. 15 - Heather Ackroyd e Dan Harvey. ‘Mother and child’ (process), 2001. Fonte: https://www.ackroydandharvey.com/presence Acesso em 2/12/2018.

Em 2010 fiz um trabalho de impressão fotossensível diretamente sobre folhas de plantas10,

chamado ‘Apolo e Dafne’. Esse trabalho tratava de contar o mito de uma mulher que se

transformava em um loureiro. Fiz registros em fotografia digital de uma modelo que atuava uma

espécie de fuga, e depois de selecionadas as imagens, imprimi algumas em transparências na

dimensão desejada e as deixei em contato com uma folha de guiné pressionada entre uma base de

madeira e uma placa de vidro durante vários dias ao sol. Os locais onde a luz atinge a folha

desbotam, enquanto que as regiões que permanecem protegidas da luz pelas áreas escuras da

impressão em transparência, permanecem escuras. Após alguns dias de exposição à luz do sol, o

resultado é uma imagem gravada diretamente sobre a folha (Fig. 16). São imagens interessantes,

que mesclam as características da textura das folhas com a fotografia e que continuam a desbotar

com o passar do tempo.

10 Técnica em que se utiliza a propriedade de desbotamento dos pigmentos vegetais para registros de imagens efêmeras. Quando feita diretamente sobre folhas também é conhecida como Chlorophyll print (em tradução livre, impressão em clorofila).

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Fig. 16 – Simone Wicca. ‘Apolo e Dafne’, 2010. Anthotype, 7x17cm. Fonte: Acervo Pessoal.

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Quando iniciei o mestrado, passei a experimentar a variável da técnica (anthotype) em que

se extrai o sumo das plantas (flores, folhas, raízes, frutos) para pincelá-lo posteriormente sobre um

papel ou tecido resistente fazendo assim materiais fotossensíveis com diferentes possibilidades de

tonalidades, a depender do vegetal utilizado. A efemeridade das imagens, característica inerente

ao processo, é um aspecto a ser refletido e explorado conceitualmente.

Percebo que se trata de uma questão atual lidar com o apagamento, a falibilidade no

desejo de reter, arquivar, guardar a imaterialidade dos arquivos digitais. Com a quantidade de

imagens digitais sendo produzidas é notável a dificuldade e até certa precariedade nos processos

de arquivamento. A obsolescência programada dos equipamentos eletrônicos, a proliferação

acelerada de imagens digitais, e a dificuldade de guardar todos esses arquivos trazem a

efemeridade para a pauta contemporânea. Possivelmente movida pela necessidade de discutir tais

questões ou por ter aceito que não é esse um procedimento menos ‘efêmero’ do que os atuais

utilizados na produção e guarda de imagens fotográficas digitais, mais de 150 anos depois da

publicação da pesquisa de Mary Somerville por John Herschel, tenho retomado a produção dos

Anthotypes na minha pesquisa recente (Fig. 17).

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Fig. 17 – Simone Wicca. Sem título, 2016. Anthotype com sumo de brácteas de primavera, 10x15cm.

Fonte: Acervo Pessoal.

Anthotype ou Antotipia11 é um processo fotográfico documentado por John Herschel no

século XIX, que utiliza pigmentos de plantas para registro fotográfico. Das experiências de

Somerville e Herschel sobre os pigmentos das plantas é percebido que a ação dos raios do sol é a

de esmaecer as cores. O resultado dessa fotografia orgânica é uma imagem efêmera quando

exposta a luz depois de produzida e instável quanto a ação do tempo. Outra particularidade desse

processo fotográfico reside na sua aparente simplicidade, que difere da química comumente usada

11 Tradução do termo cunhado por Herschel – o termo grego ánthos designa “flor”, e o termo grego tipus significa “cunho”, “molde”, “sinal”.

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ores, no entanto os estudos envolvendo o Anthotype foram interrompidos e abandonados ainda

no snas fotografias analógicas. O processo é realizado utilizando o sumo de folhas, flores, raízes ou

frutos como emulsão fotossensível.

Na história da fotografia acreditava-se que esse processo poderia dar pistas de como

realizar fotografias a céculo XIX, pois naquele momento histórico a efemeridade no processo era

um ponto negativo incontornável e indesejável. A necessidade da permanência levou as pesquisas

da fotografia em cores para outra direção, deixando essa técnica esquecida por um longo período

até ser retomada no século XX e XXI por fotógrafos contemporâneos.

Francis Schanberger é um desses artistas contemporâneos que cria imagens efêmeras a

partir de contato de roupas, principalmente roupas de dormir, cortadas em uma única camada e

colocadas sobre o papel revestido por pigmentos de plantas e expostas à luz do sol através de uma

grande janela de construção entre 2 a 4 semanas no verão (Fig. 18 e 19).

Fig. 18 e 19 - Francis Schanberger. Anthotypes expostos à luz solar através das janelas de uma construção, 2011. Fontes: http://francisschanberger.com/artwork/3809056-Slipped-Twice-in-Spring.html e http://francisschanberger.blogspot.com/2011/07/spectacle-if-you-know-where-to-look.html Acessos em 2/12/2018.

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A emulsão é feita por Francis a partir de pigmentos de plantas, como grama, pétalas de

rosas vermelhas, amoras, pétalas de flor de íris. Suas imagens resultam suaves, oníricas, por vezes

sensuais, e evocam a um estado de sonho, uma espécie de sonambulismo como o próprio título de

uma de suas séries sugere (Fig. 20).

Fig. 20 - Francis Schanberger. ‘Somnambulists - Slipped Twice in Spring’, 2015. Purple Iris Anthotype, 36"x 42". Fonte: http://francisschanberger.com/artwork/3809056-Slipped-Twice-in-Spring.html Acesso em 2/12/2018.

A minha pesquisa com as plantas tem levado a um trajeto que apesar de tangenciar essa

técnica fotossensível, tem aberto também alguns outros caminhos de investigação. Desenhos

‘científicos’ de espécies vegetais a partir do uso de um equipamento pré-fotográfico (câmara

lúcida), o uso dos pigmentos vegetais como tintura, realização de fotografias feitas sem câmeras

criadas a partir de contato direto de plantas com materiais fotossensíveis variados, coletas de

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exemplares de plantas para a realização de exsicatas12, preparo de lâminas histológicas vegetais

para visualização de estruturas celulares ao microscópio.

3.1. ANTHOTYPES

Ao procurar bibliografia sobre Anthotypes encontram-se poucas informações em língua

portuguesa. Foi possível localizar duas dissertações de mestrado que mencionam a técnica: a de

André Leite Coelho, realizado na Unesp em 2013 e a de Mariana Marote, realizada na Faculdade de

Belas Artes da Universidade de Lisboa, em 2014. Há alguma citação da técnica no livro (em inglês)

que é referência para quem pesquisa processos fotográficos históricos, o ‘The Keepers of Ligth’, de

William Crawford, e um livro bastante didático e completo ‘Anthotypes: Explore the darkroom in

your garden and make photographs’, de Malin Fabbri.

Fabbri conta que resolveu se debruçar sobre essa pesquisa com pigmentos vegetais na

altura em que esteve grávida e lactante, pois seria um dos processos menos tóxicos para se

trabalhar nesse período. O livro é muito esclarecedor e mostra todas as etapas e todas as variáveis

possíveis para a execução de cópias: procedimento de extração do pigmento (maceração,

centrifugação, etc), diluentes para pigmentos (água, álcool, óleos, etc), métodos de filtragem,

deposição do pigmento sobre papel (submersão, pinceladas, etc). No final do livro existe um

catálogo realizado coletivamente com outros artistas em que eles informam o procedimento

adotado e também o tempo de exposição do material ao sol. Uma observação a ser feita é que

esse catálogo do livro de Malin Fabbri se trata de um apanhado de registros a partir de pigmentos

de plantas da região de onde os artistas colaboradores residem (em grande maioria EUA e Europa),

ou seja, não havia menção de nenhuma espécie de nossa rica flora tropical.

Paralelamente à pesquisa autoral, passei a oferecer alguns cursos sobre esse processo, e

um dos cursos que ministrei aconteceu em Belém do Pará, na Associação FotoAtiva13. Lá foram

utilizadas plantas locais: mastruz, jambu, terramicina, açaí (fruta e polpa) e pétalas de flamboyam

encontradas nas ruas da cidade. Essa oficina intensiva e a falta de publicações que dessem conta

12 Fragmento ou exemplar vegetal, dessecado e geralmente prensado, acompanhado de uma ou mais etiquetas, cominformações diversas sobre o espécime e conservado em herbário para estudo.

13 Fundada em Belém em 1984 por Miguel Chikaoka, no contexto de abertura política do Brasil, na confluência de ações e experiências coletivas como o Fotovaral, Grupo FotoOficina (1982-1984), o Fotopará – Mostra Paraense deFotografia (1982-1984) e Grupo Fotopará (1984- 1986), a Associação Fotoativa se consolidou como um núcleo de referência para o desenvolvimento de uma cultura fotográfica na região amazônica e como uma das mais atuantese criativas organizações culturais do Brasil.

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dos pigmentos encontrados no Brasil instigaram a criação de uma ficha em que os participantes

pudessem anotar características das plantas e informações sobre o procedimento adotado para

gerar suas imagens, para que fosse possível criar coletivamente um catálogo que levasse em conta

não só materiais encontrados no Brasil, mas também a característica da intensidade e variação da

luz do sol em nosso país. Conforme mencionado, a Malin Fabbri fez algo similar, mas além do

material não contemplar as espécies da flora brasileira, ele desconsidera algumas informações

bastante relevantes para o procedimento, afinal, 3 dias de sol em Belém, em São Paulo ou em São

Francisco não tem a mesma intensidade de U.V.. Nem mesmo 3 dias de sol em São Paulo são a

mesma quantidade de luz, a depender da estação do ano. Criei os itens a serem preenchidos e

adotei essa ficha para todas as oficinas que ofereci a seguir. Ao final de cada curso fazemos o

escaneamento das imagens produzidas acompanhada da ficha preenchida, e todos os

participantes ficam com esse arquivo criado conjuntamente a fim de guardar algum parâmetro

para próximas tentativas com a mesma planta, um guia para futuras experiências (Fig. 21). Esse

registro de observação cuidadoso de características das plantas me aproximou de uma observação

mais metodológica e causou interesse por desenhos científicos de espécies vegetais.

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Fig. 21 - Escaneamento de ficha acompanhada de imagens produzidas nos cursos de Anthotypes ministrados por Simone Wicca, 2016. Fonte: Acervo Pessoal.

3.2. PRÉ-FOTOGRÁFICO

A pesquisa com anthotypes aguçou meu interesse pela botânica. Passei a investigar

bastante as ilustrações científicas, que além da utilidade para estudos de profissionais da biologia,

tem também um resultado esteticamente bastante apreciável. Nesse meu trabalho atual, gostaria

de trazer um pouco dessa intersecção entre arte, natureza e ciência. Além disso, os estudos que

tenho feito, me levam a questionar o referente fotográfico, assunto que desenvolverei melhor a

seguir. Passei a pesquisar como desenhar a partir de câmara lúcida alguns vegetais e

eventualmente até utilizar seus pigmentos para colori-lo.

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A câmara lúcida ou câmara clara foi muito utilizada por pintores do renascimento, ela cria

uma projeção da imagem e a partir dela é possível registrar contornos, perspectivas, sombras e

detalhes.

David Hockney, em seu livro ‘O conhecimento secreto’, menciona que

“A câmara lúcida não é fácil de usar. Basicamente, trata-se de um prisma numa vareta que cria a ilusão de uma imagem daquilo que esteja na frente dele sobre um pedaço de papel embaixo. Essa imagem não é real – não se acha de fato no papel, somente parece estar ali. Quando se olha pelo prisma a partir de um único ponto, pode-se ver a pessoa ou objetos em frente ao papel embaixo ao mesmo tempo. Se você usa a câmara lúcida para desenhar, pode ver também a sua mão e o lápis fazendo marcas no papel. Mas somente você, sentado na posição certa, é capaz de ver essas coisas, ninguém mais.” (HOCKNEY, 2001, 28)

Trata-se de um equipamento pré-fotográfico, que tem uma ligação intrínseca com a

fotografia, pois os pintores renascentistas já o utilizavam para desenhar figuras mais realistas, e

como era um anseio de pesquisadores de vários lugares do mundo, no século XIX procurava-se

uma forma de fixar imagens projetadas, o que resultaria na descoberta da fotografia.

Iniciei usando um prisma neolúcida (Fig. 22), e senti certa dificuldade para achar o bom

posicionamento entre meu corpo e aquilo que eu desejava desenhar. Pesquisei um pouco e

descobri também uma série de aplicativos para telefone celular que simulam a câmara clara. É

possível abrir no aplicativo ‘Da Vinci Eye’14 uma fotografia feita pela câmera do telefone celular e

ele mostra no display uma sobreposição translúcida da fotografia registrada anteriormente junto à

cena em tempo real da superfície em que se irá desenhar (Fig. 23) captada pela câmera do

telefone.

14 http://www.davincieyeapp.com Acesso em 2/12/2108.

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Fig. 22 - ‘Neolúcida’, prisma para desenhar. Fonte: www.neolucida.com . Acesso em 2/12/2018.

Fig. 23 – Simone Wicca. Registro de processo, uso do aplicativo para celular ‘Da Vinci Eyes’, 2017. Fonte: Acervo Pessoal.

Os desenhos começaram a dialogar com os anthotypes quando plantei batata-doce, que

possui folhagem abundante e bonita. Fiz um anthotype diretamente sobre uma folha de batata-

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doce e o resultado foi uma imagem em tons de amarelo (a parte que recebe luz) e um marrom

quase preto (nas áreas protegidas), numa folha finíssima, frágil e translúcida. Fiz também uma foto

da mesma folhagem da batata-doce (Ipomoea batatas), que foi adicionada no aplicativo de câmara

lúcida para celular. Desenhei a folhagem com caneta técnica 005 e colori usando aquarela (Fig. 24).

Passei a realizar vários desenhos e em alguns casos, utilizo o pigmento da própria planta para

colori-los.

Fig. 24 – Simone Wicca. Sem título, 2017. Desenho realizado com câmara lúcida e anthotype diretamente sobre folha de batata doce, aproximadamente 9x12cm cada. Fonte: Acervo Pessoal.

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4. MATÉRIA PRIMAEm maio de 2017 fui ao laboratório para descobrir como registrar fotogramas15 em placa

úmida de colódio. Tinha visto algumas imagens da artista Nadezda Nikolova-Kratzee (Fig. 25) e me

interessado, sem saber muito bem como solucionar a possível abrasão do material fotossensível ao

colocar os objetos em contato direto com a placa úmida de colódio.

Fig. 25 - Nadezda Nikolova-Kratzee. ‘Lachrymatory Bottle’, 2017. Placa úmida de colódio, quadríptico de fotogramas. Fonte: http://nadezdanikolova.com/nikolova-kratzer/ Acesso em 2/12/2018.

15 Fotografias sem o uso de câmera, em que objetos são colocados sobre o material fotossensível e exposto à luz.

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Nas primeiras tentativas entendi que o uso de um plástico fino entre a emulsão e a planta

que eu desejava registrar resolveria a abrasão sem comprometer a nitidez. As imagens vinham

nítidas e limpas. Tão limpas que me incomodavam… queria sujá-las, mas sem comprometer os

banhos químicos que seriam usados por outras pessoas nos dias seguintes16. Só poderia ‘salpicar’

materiais que já faziam parte do processo para não comprometer os banhos químicos: sais

variados. Segui experimentando com vários sais, até que ao revelar uma placa em que eu tinha

‘polvilhado’ sal de cozinha (NaCl) notei uma precipitação metálica sobre a placa. O cloreto de

sódio, em muitos pontos ‘dissolvia’ a emulsão de colódio, mas em alguns pontos reagia formando

padrões que pareciam cristais de gelo/neve ou estruturas de algas marinhas (Fig. 27). O acaso

surpreendeu e encantou, e a reação química intrigou bastante.

“O impacto direto das emissões luminosas de um objeto em uma superfície fotossensível determina o vínculo sobrenatural entre a realidade e a fotografia, e fundamenta dessa maneira o pilar de sua metafísica realista: o real parece se transferir e aderir na imagem, ou inclusive se transmutar nela. O que o fotógrafo, como um xamã, faz no quarto escuro é explicitar o conteúdo latente dessa transmutação.” (FONTCUBERTA, 2012, 39).

Não conseguia deixar de pensar que o trabalho precisaria dar visibilidade ao trajeto pelo

qual tinha passado. Meses antes, por conta do interesse botânico, fiz uma visita ao Museu do

Jardim Botânico de São Paulo e estava com a memória muito vívida da forma de exposição, com

frascos de essências e herbários com exsicatas (Fig. 26). Criei um microambiente, uma mini

narrativa metafórica das etapas para a produção daquele fotograma ‘incluindo’ dessa forma o

processo na obra final a ser exposta. O importante seria não fazer uma mera explicação didática,

mas criar uma mensagem cifrada, um jogo de adivinhação (ou de imaginação), uma ficção em

torno do processo. Cada elemento químico foi colocado em um pequeno frasco - tal qual as

essências no museu - e foram estudadas disposições e narrativas poéticas (Fig. 28). As ilustrações

sobre processos alquímicos trazem sempre palavras manuscritas em latim sobre cada uma das

etapas e já que se tratava também de um processo de precipitação dourada, criei esse paralelo.

Não tenho conhecimento de latim, no entanto os trabalhos artísticos não prescindem de

16 Os trabalhos que desenvolvo em placa úmida de colódio são realizados no laboratório do Imagineiro, localizado naCasa Ranzini desde 2012. É o laboratório pessoal do fotógrafo Roger Sassaki, onde ele oferece aulas de processos fotográficos do século XIX e que durante alguns meses se transforma num espaço para uso coletivo para o projeto Wetplateday (data anual mundial comemorativa da técnica de placa úmida de colódio), quando um grupo de artistas se reúne para fazer uma mostra coletiva de fotos em colódio úmido.

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compromisso com a realidade. Cada conjunto de sais foi associado a uma descrição e a uma ação,

e então essas palavras e termos foram traduzidas pelo ‘google translator’. Afinal incluí também a

exsicata do trevo utilizado no fotograma (Oxalis latifolia), uma mini prensa (como a que biólogos

usam quando recolhem espécimes em campo), uma lupa e uma caixa de fósforos. Tudo foi

montado dentro de numa caixa, algo como a maleta do cientista. E para fixar os pequenos textos

manuscritos foi usada uma ‘estética de insetário’ dos museus de ciências naturais, tudo foi

espetado com alfinetes. A princípio deixaria o trabalho interativo, as pessoas poderiam pegar a

lupa, ver tudo de pertinho, mas afinal entendi que a lupa teria mais uma finalidade representativa

(junto com os fósforos, representaria o ampliador utilizado) e com todos aqueles reagentes

químicos expostos, mudei de ideia quanto à interação, fechando as tampas com vidro (Fig. 29).

Fig. 26 - Registro de vitrine da exposição permanente Museu Botânico de São Paulo. Foto Simone Wicca, 2017.

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Fig. 27 - Precipitação metálica na superfície de ferrótipo vista através de uma lupa. Foto Simone Wicca, 2017.

Fig. 28 - Registro do processo de elaboração e estudos de composição para o trabalho ‘Materia Prima’. Foto Simone Wicca, 2017.

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Fig. 29 – Simone Wicca. ‘Materia Prima’, 2017. Caixa com ferrótipo e suas matérias-primas, 30x40x10cm. Fonte: AcervoPessoal.

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4.1. IMAGEM ‘CIENTÍFICA’ - Desenhos científicos, preparo de lâminas e imagens microscópicas

“James Borcoman enumera signos da identidade do estatuto icônico da imagem fotográfica: ‘Extraordinária densidade de pequenos detalhes, visão mais além do olho nu, exatidão, clareza de definição, delineação perfeita, imparcialidade, fidelidade tonal, sensação tangível de realidade, verdade’”. (FONTCUBERTA, 1997, 23)

Ocorreu que a cristalização sobre a placa de ferrótipo instigou a observar a matéria-prima

do trabalho mais de perto. Esse desejo se desdobrou na investigação mais assertiva para a

aquisição de um microscópio para a visualização da estrutura celular vegetal onde estão

armazenados os pigmentos nas plantas, que é uma organela chamada cromoplasto. Tentei

descobrir com vários biólogos qual deveria ser o fator de aproximação do microscópio para que eu

pudesse ver os cromoplastos. Ocorre que os cientistas consultados não se sentiam confortáveis

para me responder uma pergunta tão específica sem serem especialistas em microscopia.

Consultei uns 6 ou 7 biólogos até que um professor da USP, do Laboratório de Anatomia Vegetal

(Departamento de Botânica, Instituto de Biociências) me respondeu (Fig. 30)17.

Fig. 30 – Captura de tela de computador com troca de e-mails, 2017.

17 Transcrição do e-mail: “Os cromoplastos, como qualquer plastídeo, podem ser visualizados em muitos aumentos diferentes, pois são organelas muito grandes, e podem ser observados desde aumentos com a objetiva de 10x, ou seja,100x de aumento (total). A presença de pigmento às vezes permite a sua observação até em aumentos menores, embora sem resolução. A questão é para a observação de detalhes que devem ser observados com 400x ou 1000x de aumento. Os cortes anatômicos para a observação dos cromoplastos devem ser feitos em material fresco seccionado à mão, então, é muito simples. Sugiro que você vá ao laboratório de Anatomia Vegetal do Departamento de Botânica do IB da UNICAMP e veja se pode fazer um estágio curto só para aprender a cortar e identificar os cromoplastos ao microscópio. Espero ter ajudado.”.

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O professor Diego Demarco18 me ajudou bastante, pois a partir de sua resposta pude dar

um passo adiante. Entendi que o melhor seria ter um microscópio que ampliasse a 1000x para

garantir a observação dos cromoplastos com bastante detalhamento. A etapa seguinte foi

descobrir qual seria um microscópio com esse fator e financeiramente viável para mim.

Depois de ver muitos videos no youtube, cheguei a conclusão de que o que era usado pelo

biólogo do canal ‘Ciência Curiosa’ para fazer os videos, era um Coleman/Opton, e foi o que

comprei. Certamente não deve ser o melhor, mas gera imagens relativamente decentes em termos

de resolução e qualidade óptica. E foi então que saí da loja munida de microscópio, lâminas,

lamínulas redondas, uma pinça super fina, um porta lâminas e adquiri também algumas placas de

petri, que são uns lindos objetos, com grande potencial visual para se tornar parte de algum de

meus trabalhos.

Montei o microscópio e me aventurei no preparo das lâminas pra visualização. Foram flores

(pétalas e pistilos de flor de manjericão), pistilos e pétalas de flor de Oxalis latifolia, pétalas de

Clitorea ternatea (Fig. 31 e 33), pétalas de romã (Fig. 31 e 32), cortes de batata doce entre outras.

Antes de fazer contato com Laboratório de Anatomia Vegetal do I.B. da Unicamp, me aventurei nos

preparos, mas como ainda não sabia o procedimento correto e sem deixar bolhas de ar entre

lâmina e lamínula, me limitei a fazer lâminas com materiais bem finos já que ainda não sabia fazer

os cortes. Aguçou-me a curiosidade saber identificar o que via, e apesar de minha inaptidão

técnica pude me deparar com uma linda série de paisagens ficcionais! Foi possível “transmutar as

formas ‘naturais’ em metáforas verbais ou plásticas que traduzam sua emoção, para comunicá-la

ao leitor ou ao espectador.” (RIBON, 1991, 63). Pude viajar por planícies, rios e corredeiras

ficcionais do microcosmo vegetal.

18 Diego Demarco é Bacharel e licenciado em Ciências Biológicas (2002), mestre (2005) e doutor (2008) em BiologiaVegetal pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, Professor Doutor I do Departamento de Botânica doInstituto de Biociências da Universidade de São Paulo, atuando na área de Anatomia Vegetal, com ênfase emestruturas secretoras e desenvolvimento e evolução floral. Essa linha de pesquisa envolve análise ontogenética eestrutural em microscopia de luz, incluindo polarização, fluorescência e confocal, além de microscopia eletrônica devarredura e de transmissão.

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Fig. 31 a 33 – Simone Wicca. Primeiras lâminas microscópicas. De cima para baixo e da esquerda para a direita: Lâminas com pétalas de flor de romã e de Clitórea ternátea; pétala de flor de romã vista ao microscópio e pétala de Clitórea ternátea vista ao microscópio, 2017. 26x76x1mm (cada lâmina).

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4.2. PIGMENTOS

“Imitando a natureza naturante nas suas operações criadoras, a arte, como que movida por um impulso semelhante (o que Kant chamará de gênio), também dá sua forma e portanto sua unidade, à coisa que produz. (…) o gesto do artesão ou artista consagra a união de duas essências: a essência como matéria informe, substrato das qualidadessensíveis, e a essência como forma.” (RIBON, 1991, 61)

Fiz contato com o IB - Instituto de Biologia da Unicamp - onde fui muito bem recebida pela

professora Dra. Sandra Carmello Guerreiro19, que me ofereceu uma aula particular de técnica de

cortes histológicos para a preparação de lâminas de microscópio. Comecei contando que a

motivação de minha procura por ela foi a necessidade desse mergulho microscópico para visualizar

a estrutura do pigmento dentro das células vegetais. Fomos ao laboratório de anatomia vegetal

onde ela preparou uma mesa com os utensílios necessários para fazermos os cortes (Fig. 34) e

montou um microscópio.

Eu tinha levado alguns itens que já tinha usado para fazer anthotypes e que gostaria de

saber como cortar para visualizar o pigmento: amora, rosa vermelha, romã e beterraba.

O procedimento manual é utilizar metade de uma lâmina de corte (gilete) para realizar

cortes finos. Começamos pela beterraba, que ela cortou ao meio, e com bastante habilidade e

prática, fez pequenas fatias o mais finas e planas possíveis. Esses cortes são colocados num

recipiente com água, e depois os melhores cortes são ‘pescados’ com um pincel e depositados

sobre a lâmina de vidro, coloca-se uma gota de água sobre o corte e deposita-se uma lamínula

(encosta-se a lamínula inclinada numa parte molhada e solta-se devagar a fim de evitar bolhas de

ar). Para ter lâminas semi-permanentes ela recomendou fazer esse procedimento usando gota de

gelatina diluída em água, e depois de colocada a lamínula, prender com um prendedor até firmar,

daí limpar o excesso das bordas e selar os cantos com esmalte incolor. Feito isso ela está pronta

para ser visualizada.

Uma informação importante que ela me forneceu é que o pigmento pode estar

armazenado no cromoplasto (caso os pigmentos daquele vegetal sejam cristais lipossolúveis), ou

19 Profa. Dra. Sandra Carmello Guerreiro possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual PaulistaJúlio de Mesquita Filho (1986), mestrado em Ciências Biológicas (Botânica) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1991) e doutorado em Ciências Biológicas (Biologia Vegetal) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1997), Livre Docente pela Universidade Estadual de Campinas (2014). Atualmente é professora associado da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Botânica, com ênfase em Anatomia Vegetal, atuando principalmente nos seguintes temas: anatomia de partes vegetativas e reprodutivas, neste caso, especificamente frutos e sementes.

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nos vacúolos (caso os pigmentos sejam hidrossolúveis). Todas as amostras que levei eram

hidrossolúveis. Ela conseguiu arranjar (com um estudante que estava no laboratório) uma fatia de

cenoura, para me mostrar os cristais lipossolúveis. Tanto os vacúolos quanto os cromoplastos são

transparentes e deixam visíveis os pigmentos em seus interiores. Com essa informação, intuí que

os pigmentos que melhor se prestam aos anthotypes são os hidrossolúveis, mas essa informação

precisaria de mais pesquisas para ser afirmada com convicção. Seguimos com fatias de amoras,

romãs e rosa. A amora foi das mais difíceis de cortar e a professora Sandra informou que existe um

polímero - polietilenoglicol ou peg - em que se mergulha a amostra e que ajuda nos cortes desses

vegetais mais moles. A parafina não seria uma boa opção pois para fazer uso dela seria necessário

desidratar o vegetal, e na desidratação a planta perde coloração, desbota. O peg não necessita de

desidratação, é só mergulhar o vegetal fresco no peg, para depois de endurecido fazer os cortes.

Não fizemos uso do peg, a Sandra tinha muita prática e fez tudo à mão sem maiores dificuldades.

Para vegetais finos (pétalas de flores) ela orientou que poderia ser usado o pecíolo de embaúba ou

um pedaço de cenoura, para dar sustentação20. Uma coisa interessante que observei na imagem ao

microscópio é que a rosa vermelha possui vacúolos com pigmentos vermelhos e lilases separados

(Fig. 35) , e possivelmente por isso apesar da pétala ser vermelha ao maceramos temos um sumo

arroxeado (os pigmentos saem dos vacúolos e se misturam resultando numa nova cor).

Ela aproveitou para observar as lâminas que eu tinha feito intuitivamente e sem rigor

técnico usando esmalte incolor no lugar de água para fixar as lamínulas. Ela conseguiu ver muitas

estruturas celulares, o que me deixou feliz, pois apesar da minha falta de técnica meu modo de

preparo apontava para um caminho possível. Criticou somente uma lâmina em que a pétala

ultrapassava o limite da lamínula (Fig. 31), pois ali é um ponto de entrada de ar que oxida o vegetal

e pode criar fungos também. Sinalizou que o uso do esmalte em contato direto com o vegetal não

é recomendado por dois motivos: pode reagir com a planta e não é o melhor veículo para estar

junto do vegetal, pois a luz ao passar por ele pode refratar e interferir na visualização das

organelas.

Ela me mostrou também os micrótomos para cortes ainda mais finos (mergulha-se o item

desidratado numa resina que depois de endurecida será fatiada finamente por esses

equipamentos).

20 Faz uma cunha na cenoura ou no pecíolo, acomoda-se a pétala aberta no meio do corte e utiliza o pecíolo ou cenoura para estruturar e facilitar o corte.

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Existe no IB da Unicamp um microscópio bastante sofisticado, que tem um corpo de

câmera digital acoplado a ele, e onde se podem visualizar as lâminas diretamente no monitor do

computador e fazer os registros fotográficos digitais para salvar direto numa mídia (pendrive) ou

num arquivo do computador.

Mostrei a ela alguns anthotypes sobre diversas folhas e ela me falou que a folha de batata

doce parecia diafanizada. Perguntei do que se tratava a diafanização e ela explicou que é um

procedimento que se faz nas folhas para deixá-las translúcidas e conseguir visualizar suas

vascularizações ao microscópio. Ela me mostrou algumas lâminas diafanizadas que estavam

guardadas em arquivos, em armários com pequenas gavetas onde elas são armazenadas (Fig. 36 ).

Me mostrou desde os armários mais antigos (com lâminas com informações manuscritas) aos mais

novos (com informações digitadas em etiquetas adesivas). Essa forma de organização pode me dar

pistas no momento de finalizar a montagem de meu trabalho.

Fig. 34 – Registro da Profa.Dra. Sandra Guerreiro preparando lâminas de histologia vegetal no Instituto de Biologia da Unicamp. Foto Simone Wicca, 2017.

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Fig. 35 - Corte de pétala de rosa vista através do microscópio do IB Unicamp. Foto Simone Wicca, 2017.

Fig. 36 – Arquivos de lâminas do Instituto de Biologia da Unicamp. Fotos Simone Wicca, 2017.

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5. GESTUAL – Contato e fricçãoSegui as experimentações com a extração de diferentes pigmentos perseguindo aquele que

seria o melhor assunto para se juntar à minha pesquisa técnica com o anthotype em forma de

matriz para a produção das cópias. Tenho trabalhado num processo às avessas do que

normalmente pratico: entender o que participa da gênese das imagens e que daria sentido à

produção delas. Algo aponta que eu deveria seguir a investigação atenta à minha ação. Tem algo

importante a ser considerado nesse recolher de flores pelo caminho, separar metodicamente

(quase cirurgicamente) pistilos, sépalas e pétalas, pegar somente as últimas e colocá-las no

almofariz. Macerá-las, esfolá-las, esmagá-las até que sangrem, juntar a isso algumas gotas de

álcool para ardê-las ainda mais, aí apertá-las, esmagá-las para filtrar tudo e tirar qualquer resíduo,

separar só a essência daquilo que a flor é feita e daí, a partir desse material, criar imagens

efêmeras. Imagens feitas para apagar, feitas para acabar. Registrar coisas que se querem esquecer.

“O esquecimento, segundo pesquisadores desse tema, é enfrentado muitas vezes como algo devastador e irritante, deve ser visto, porém, como necessário para a sobrevivência e nossa memória saturada comexcessos de informações. Em outras palavras, precisamos esquecer algumas coisas, para poder lembrar de outras.” (SALLES, 2016, 73)

Percebo nos cursos que oriento que acontece alguma coisa interessante com as pessoas

durante esse processo.

“O filósofo Michael Polanyi fala de ‘consciência focal’, recorrendo ao ato de martelar um prego: ’Quando baixamos o martelo, não sentimos que seu cabo golpeou a palma de nossa mão, mas que sua cabeça golpeou o prego. (…) Tenho uma consciência subsidiária da sensação na palma da mão, que se mistura com a minha consciência focal de estar impelindo o prego.’ Para formular de outra maneira, estamos já agora absortos em alguma coisa, e não mais conscientes de nós mesmos, ou nem sequer ao nosso self corpóreo. Tornamo-nosaquilo em que trabalhamos.” (SENNETT, 1943, 196)

Intuo que o macerar das plantas para extrair delas sua essência, seu pigmento, mexe com

questões inconscientes e traz a tona algo meio visceral. E fazer desse sumo um material

fotossensível para revelar imagens efêmeras tem um sentido muito poético.

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Fontcuberta, no livro ‘O beijo de Judas‘, discorre sobre a fricção com o referente que é o

fotograma: “O fotograma é o registro da pura sombra do contorno do objeto. Representaria,

portanto, o ponto de partida. Seria possível afirmar que sua leitura é mais imediata e direta? Os

rastros diretos são mais fáceis de interpretar do que os diferidos?”

Quando penso sobre usar o pigmento vegetal como matéria sensível para o contato,

criando uma outra fricção anterior, reflito sobre o atrito como forma de produção de imagens

fotográficas. Me sinto tal qual humanos primitivos criando fagulhas.

5.1 HISTOLOGIA VEGETAL“Contrariamente ao que a história nos inculcou, a fotografia pertence ao âmbito da ficção muito mais que ao das evidências. Fictio é o particípio de fingere que significa ‘inventar’. A fotografia é pura invenção. Toda fotografia. Sem exceções.” (FONTCUBERTA,1997, 112)

Aprendi em maio de 2017, com a professora Sandra Guerreiro (I.B. Unicamp), a preparar

corretamente as lâminas histológicas de cortes vegetais. Ela também me indicou a leitura de um

livro de técnicas e procedimentos que li com entusiasmo. Após a aula produzi algumas lâminas

com cortes histológicos vegetais para observação e registro ao microscópio. No momento em que

comecei a colocar os cortes nas lâminas, me flagrei fazendo algo nada ‘científico’. Um desejo de

criar composições visuais me fez pensar em como de fato eu já havia começado a subverter as

funções daqueles materiais. Se cientificamente o ideal é ter poucos e os mais finos e planos cortes,

do meu ponto de vista, ao criar alguma sobreposição, o corte não estar exatamente o mais

paralelo possível poderia criar algumas situações instigantes, pois haveria diferenças de planos de

foco quando observado ao microscópio (Fig. 37 e 38). A observação microscópica científica não

prevê essas ilusões ópticas de perspectiva, o ideal é que tudo esteja no mesmo plano a fim de ter

foco em toda a extensão da imagem visualizada.

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Fig. - 37 e 38 - Lâminas histológicas (esquerda); Pétala de capuchinha vista ao microscópio (direita). Fotos Simone Wicca, 2017. Fonte: Acervo Pessoal.

Uma das técnicas que me foi apresentada no I.B. foi a do uso de gelatina como veículo para

produzir lâminas semi-permanentes. Fiz algumas experiências e a gelatina é um material familiar

para quem lida com processos fotográficos do século XIX, mas ela demora demasiado para secar

quando entre os vidros. Talvez tenha sobrado ansiedade, ou só faltado um pouco mais de tempo,

esse recurso finito e valiosíssimo. No mesmo dia eu pretendia preparar as lâminas e já fazer alguns

registros ao microscópio para aproveitar a intensidade das cores dos pigmentos das lâminas recém

preparadas. Não funcionou. Deixei as lâminas com gelatina ‘endurecerem’ na geladeira, mas ao

retirar os prendedores que faziam a pressão para manter tudo em contato, várias bolhas de ar se

formaram entre a lâmina, lamínula e gelatina. Retomei ao meu procedimento ‘errado’: usar

esmalte incolor para fixar e selar tudo. Ele certamente não é o melhor veículo, pois reage com os

vegetais (osmose, diluição do pigmento, entre outras interações) e talvez cause alguma refração ou

desvio na luz do microscópio. Do ponto de vista biológico não é adequado, porém da perspectiva

visual me pareceu uma escolha prudente. Consegui fazer a fotos no mesmo dia, antes que o

pigmento esmaecesse. Não sei a longo prazo como esse material se deteriorará, mas para essas

minhas capturas, com os pigmentos ainda frescos, tem oferecido resultados bastante satisfatórios.

Outro método pouco científico tem sido usar partes grandes das plantas deixando pouca

área sem material entre a lâmina e lamínula. Tentei fazer uso do bálsamo do Canadá, que seca um

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pouco mais rápido, mas tem uma coloração amarelada. Por agora, aceito que o que tenho feito já

deixou de ser lâminas com cortes histológicos vegetais como a ciência prevê.

Sigo criando composições visuais com pequenos fragmentos vegetais sobre estreitas

lâminas de vidro. E tem sido encantador e divertido observá-las ao microscópio.

Fig. 39 – Pigmento hidrossolúvel de Clitórea ternátea nos vacúolos. Simone Wicca, 2017. Fonte: Acervo Pessoal.

Fig. 40 – Pólen de Hibisco, visto ao microscópio. Simone Wicca, 2017. Fonte: Acervo Pessoal.

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6. A EFEMERIDADE E O TEMPO

“– Agora, meu neto, me chegue aquele álbum.

Aponta um velho álbum de fotografias pousado na poeira do armário.Era ali que, às escondidas, ela vinha tirar vingança do tempo. Naquelelivro a Avó visitava lembranças, doces revivências.

Mas quando o álbum se abre em seu colo eu reparo, espantado, que não há fotografia nenhuma. As páginas de desbotada cartolina estão vazias. Ainda se notam as marcas onde, antes, estiveram coladas fotos.

– Vá. Sente aqui que eu lhe mostro.

Finjo que acompanho, cúmplice da mentira.

– Está a ver aqui seu pai, tão novo, tão clarinho até parece mulato?

E vai repassando as folhas vazias, com aqueles seus dedos sem aptidão, a voz num fio como se não quisesse despertar os fotografados.

– Aqui, veja bem, aqui está sua mãe. E olhe nesta, você, tão pequeninho! Vê como está bonita consigo no colo?

Me comovo, tal é a convicção que deitava em suas visões, a ponto de meus dedos serem chamados a tocar o velho álbum. Mas Dulcineusa corrige-me.

– Não passe a mão pelas fotos que se estragam. Elas são o contrário de nós: apagam-se quando recebem carícias.”(COUTO, 2003, 49)

Uma das perguntas que mais me fazem durante os cursos a respeito dos anthotypes é

como se preserva a imagem. Tenho interesse no apagamento como parte expressiva do processo.

Entendo que se trata de uma característica técnica que é um atributo dela e que faz parte da

sintaxe desse procedimento e desse resultado. Entendo o apagamento como parte narrativa e não

como defeito. Vejo beleza e potencial nesse aspecto do anthotype. De qualquer modo, é uma

pergunta muito recorrente. Recentemente foi publicado no blog Alternative Photography,

organizado pela Malin Fabbri, um processo descoberto pela portuguesa Barbara Morais para

preservar imagens feitas diretamente sobre as folhas21.

Parte de meu encantamento desse processo é a observação de suas transformações. A cor

da planta não necessariamente será a cor do pigmento macerado e filtrado. Ao colocá-lo sobre o

papel, há uma espera entre a deposição das camadas, depois de montado o frame com o papel

21 O artigo em inglês pode ser acessado em: http://www.alternativephotography.com/how-to-preserve-chlorophyll-prints/ Acesso em 2/12/2018.

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fotossensível, a matriz (positivo em transparência ou objetos) prensado entre vidro e madeira, é

preciso observar a mudança na intensidade de seus tons no decorrer dos dias de exposição ao sol.

Há uma observação participativa no processo, uma mudança no ritmo de produção (normalmente

o tempo de luz é da ordem dos dias, não dos segundos ou minutos como em outros processos

fotográficos do século XIX). Há uma escolha do momento certo de se retirar a imagem da luz e o

processo de transformação da matéria continua a acontecer após a imagem ‘finalizada’. A imagem

resultante é efêmera, no entanto o processo tem sua duração esticada pelas pausas. E durante

essa espera e observação, há tempo para que algo nos ocorra, e o ocorre não é efêmero, não se

apaga tão facilmente.

6.1. O RITMO DA NATUREZA - Experiência

Recebi na qualificação a indicação da leitura de um texto de Jorge Larrosa. No artigo ‘Notas

sobre experiência e o saber de experiência’, Larrosa parte de uma análise sobre o termo

experiência em diversos idiomas:

“Em espanhol, ‘o que nos passa’; em português se diria que a experiência é ‘o que nos acontece’; em francês a experiência seria ‘ce que nous arrive’; em italiano, ‘quello che nos succede’ ou ‘quello che nos accade’; em inglês, ‘that what is happening to us’; em alemão, ‘was mir passiert’. A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ouo que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.’22

Já no mundo da informação, segundo ele explana

‘O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber, o que consegue é que nada lhe aconteça. Em segundo lugar, a experiência écada vez mais rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um sujeito informado que, além disso, opina. É alguém que tem uma opinião supostamente pessoal e supostamente própria e, às vezes, supostamente crítica sobre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo deque tem informação. (…) Depois da informação, vem a opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também anula nossas possibilidadesde experiência, também faz com que nada nos aconteça. (…) A

22 LARROSA, Jorge. Notas sobre experiência e o saber de experiência. Revista brasileira de educação, fev-mar-abr-mai,2002. trad. João Wanderley Geráldi. Pg. 19.

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experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. O acontecimento nos é dado na forma de choque, do estímulo, da sensação pura, na forma da vivência instantânea, pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem a conexão significativa entreacontecimentos. Impedem também a memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por outro que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar qualquer vestígio. O sujeito moderno não só está informado e opina, mas também é um consumidor voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar permanentemente excitado e já se tornou incapaz de silêncio. Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória, são também inimigas mortais da experiência.’23

Ao ler esse texto, foi impossível não fazer uma conexão dessa fala a uma impressão que

venho tendo em relação a algumas atividades que faço com imagens. Tenho refletido um pouco

nessa comparação entre imagens para o instagram24 e as experiências com pigmentos de plantas.

Isso por dois motivos: pelo tempo que leva para ser feito e para ser apagado. Sinceramente, tenho

dúvidas quanto o que é de fato mais efêmero. As histórias do Instagram (ou stories) são registros

que se criam e se apagam em 24h. É uma informação feita para durar pouco e desaparecer sem

deixar rastros no dia seguinte. É um espaço para incluir informação sem memória. Curiosamente

tem como nome tudo o que ele não pretende ser: história. Às vezes penso que essa poderia ser a

resposta contemporânea para a quantidade de arquivos gerados atualmente e a falha nos

arquivamentos. Penso que as pessoas, entendendo que aquele registro ‘não precisa ficar para a

posteridade’, fazem com que ele dure - segundo uma amiga - ‘apenas o tempo em que a piada

ainda faz sentido’.

Já faz parte de minhas rotinas diárias fazer esse circuito: instagram-facebook-messenger e

mal ele encerra, novamente o reinicio, nesse círculo vicioso motivado pela sede de informações.

Tudo acontece de forma muito veloz: a produção da informação (ou das imagens) e o apagamento

delas. Quando comparo o tempo que se leva para a produção de imagens em anthotypes, acredito

23 Idem.24 Aplicativo online para compartilhamento de imagens nas redes sociais.

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que a duração do experimento (macerar a planta, retirar seu sumo, filtrá-lo, depositá-lo no papel,

secá-lo, colocá-lo na contateira, deixá-lo ao sol durante dias e observar enquanto o pigmento

desbota), fornece tempo para que algo ocorra durante o processo. Me coloco aberta e à disposição

para tudo aquilo que esses experimentos me propiciam.

“Se escutamos em espanhol, nessa língua em que a experiência é ‘o que nos passa’, o sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em que a experiência é ‘ce que nous arrive’, o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português, em italiano e em inglês, em que a experiência soa como ‘aquilo que nos acontece, nos sucede’, ou ‘happen to us’, o sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos. Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura.”25

Quando iniciei os processos com os pigmentos de plantas, intencionei registrar todo o

procedimento, criar uma espécie de histórico do experimento. Quando ofereço as aulas em que

ensino esses processos, consigo notar no noutro também a conexão e a mudança de ritmo que o

experimento manual proporciona a quem o realiza. Algo acontece. A pessoa se afeta, algo ocorre

no indivíduo. Larrosa, fala ainda da diferença entre experimento e experiência.

“Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. Por isso, no compartir a experiência, trata-se mais de uma heterologia do que de uma homologia, ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funciona heterologicamente do que uma dialogia que funciona homologicamente. Se o experimento é repetível, a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência nãoé o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem ‘pré-ver’ nem ‘pré-dizer’ ”26

25 LARROSA, Jorge. Notas sobre experiência e o saber de experiência. Revista brasileira de educação, fev-mar-abr-mai,2002. trad. João Wanderley Geráldi. Pg. 19.

26 Idem.

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Voltando ao saber da experiência, penso sobre uma pergunta impertinente que já me

colocaram e a qual talvez ainda não saiba responder prontamente: qual o sentido de fazer

impressões transitórias? A essa questão, eu arriscaria responder (hoje), que o motivador desses

experimentos, é estar aberta ao saber que o fazer propicia. Talvez, ilusoriamente, ao lidar com

experimentos tão efêmeros, seja possível aprender a assimilar outras situações e contextos de

perda. E mesmo observando as cores se apagarem ao sol, se possa vislumbrar que sempre parte

do que parte fica. E ainda, que parte das coisas, só fazem sentido ao se transformarem, e são feitas

para acabar.

“Sente-se que uma coisa quer ser fotografada, quer tornar-se imageme que não é para durar: é, ao contrário, para melhor desaparecer. E o sujeito só é um bom medium fotográfico se ele entra nesse jogo, se exorciza seu próprio olhar e seu próprio juízo estético, se frui de sua própria ausência.” (MACIEL, 1997, 46).

6.2. PARES POÉTICOS

“Essa continuidade envolve esperas. A relação do artista com sua matéria-prima – palavra, tinta, etc – é estabelecida na tensão entre suas propriedade e sua potencialidade. Esse embate reverte em conhecimento da matéria, que envolve uma aprendizagem de sua história, de seus limites e suas possibilidades. (…) No momento de concretização da obra, ele estabelece um relacionamento íntimo e tensivo com a matéria-prima escolhida. Em sua manipulação e transformação há mútua incitação. Cada uma delas tem seu tempo de ‘secagem’, que implica um afastamento no tempo para ‘colocar novas camadas’”. (SALLES, 2016, 61)

Em abril de 2017 fui até Holambra e trouxe várias plantas, entre elas um vaso com ervilha

borboleta (Clitorea ternatea). Tinha uma vagem seca, cheia de pequenas sementes. Resolvi fazer

tal qual experimento científico do pré-primário: envolvê-las uma a uma em algodão úmido para

iniciar a germinação. Dias depois fui visitar minha amiga fotógrafa Fátima Roque27 e ela tinha

separado um documentário sobre a Lourdes de Castro para eu ver. Lourdes é uma artista

portuguesa, nascida na ilha da Madeira. Viajou na década de 1970 para Paris e se envolveu com a

27 Fátima Roque (1960-2019), foi fotógrafa e investigadora da fotografia na área dos processos fotográficos, da fotografia precária, para além da técnica. Fotografou com frequentes incursões pelos rios da Amazônia e ministroucursos à população local. Participou em grupos de discussão e atuação nas artes visuais e, especialmente, no surrealismo, integrando o Grupo Surrealista de São Paulo. Parte de seus trabalhos podem ser acessados em: www.faroquefotografias.wordpress.com

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cena artística de lá. Voltou muitos anos depois para a Ilha da Madeira, onde vive até hoje numa

casa ateliê cercada de jardim e plantações que cuida diariamente. É de lá que surge parte da

matéria prima de vários de seus trabalho. O filme, dirigido pela Catarina Mourão, é delicado e

segue os mesmos princípios de Lourdes em seus trabalhos, respeitando o vagar das coisas

cotidianas, o ritmo do crescimento das plantas e o protagonismo da materialidade das sombras,

tão frequente na produção artística de Castro (Fig. 41). Num dado momento ela diz que tem sorte

de ter nascido lá na Madeira, e por isso, não tem pressa nenhuma para nada. As semanas

anteriores a essa visita foram muito corridas, e as seguintes prometiam ser ainda mais aceleradas.

Foi muito bom passar essas horas conversando, dedicar esse tempo a ver o filme com essa amiga

querida sem pressa, desfrutar do momento agora. Quando voltei de Holambra, coloquei 8

sementes no algodão ao lado da minha cama e dediquei alguns minutos todas as manhãs durante

alguns dias as observando e umedecendo. Dentre as oito, duas vingaram. E passadas duas

semanas, já estavam com dois pares de folhas cada uma.

Fig. 41 -Lourdes de Castro. ‘Crescem à sombra’, 1991. 110x250cm. Fonte: https://gulbenkian.pt/museu/works_cam/crescem-a-sombra-138292/ Acesso em 2/12/2018.

Lourdes de Castro lê no filme um haicai de Kobayashi Issa que me marcou:

“nous marchons en ce monde

sur le toit de l’enfer

en regardant les fleurs”28

28 Tradução livre: ‘nesse mundo nós caminhamos/ sobre o telhado do inferno/ olhando as flores‘.

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Ao ver as sementes brotadas, me lembrei do trabalho ‘O jardim’, de Rubiane Maia, que

esteve na exposição Terra Comunal, em 2015, no Sesc Pompeia (Fig. 42). E me lembrei da Lourdes

de Castro dizendo no filme (ao pegar uns bulbos brotados dentro de um armário), que “às escuras

é que se ‘trabalha’ e em silêncio” e comenta como seria interessante poder observar como as

raízes se relacionam no subsolo. Rubiane tratava de um certo luto em seu trabalho, eu, nessa visita

à minha amiga Fátima, também estava a trabalhar essa ideia de perda e de como garantir ter o

tempo que as coisas realmente importantes merecem.

Fig. 42 - ‘O Jardim’, de Rubiane Maia. Registro de Performance realizada durante a mostra ‘Terra Comunal – Marina Abramovic + MAI’, no Sesc Pompeia, SP, 2015. Fonte: http://cargocollective.com/rubianemaia/o-jardim Acesso em 2/12/2018.

Num momento em que fui devastada por alguma perda repentina, me apresentaram

música ‘Beautiful Boy’, que John Lennon fez ao seu filho. Nela, ele menciona:

“Yes, it's a long way to go / But in the meantime / Before you cross the street / Take my hand /

Life is what happens to you / While you're busy making other plans”29

29 Tradução livre: ‘Sim, é um longo caminho a percorrer / Mas enquanto isso / Antes de atravessar a rua / Pegue minha mão / A vida é o que acontece com você/ Enquanto você está ocupado fazendo outros planos”.

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É preciso lembrar disso frequentemente, pois esse ritmo mais lento, ter esse momento de

viver o momento presente, de observar o tempo que as coisas levam para acontecer, não parece

ser viável nesse mundo que vivemos, em que só caminhamos no telhado do inferno. É sempre

preciso ‘cavucar’ espaço/tempo na agenda para dedicar às coisas particularmente importantes. O

tempo para observar as flores, os vegetais brotarem, fazer um pão de fermentação lenta e

desfrutá-lo com uma amiga e seus familiares num fim de tarde, assistir a um filme com alguém

importante. Olhando para a germinação, previ umas sementes brotadas em tubos ou balões de

ensaio… o trabalho poderia chamar: ensaio sobre o tempo que faz e o tempo que passa.

Fig. 43 – Simone Wicca. ‘Ensaio sobre o tempo que faz e o tempo que passa’, 2017. Semente germinada em balão de ensaio. Fotos Simone Wicca. Fonte: Acervo Pessoal.

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7. O PROCESSO COMO OBRA – Anotações e registros “A poética da ‘obra aberta’ tende, como diz Pouseur, a promover no intérprete ‘atos de liberdade consciente’, pô-lo no centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva os modos definitivos de organização de uma obra fruída; mas (apoiando-nos naquele significado mais amplo do termo ‘abertura’ que mencionamos antes) poder-se-ia objetar que qualquer obra de arte, embora não se entregue materialmente acabada, exige uma resposta livre e inventiva, mesmo porque não poderá ser realmente compreendida se o intérprete não a reinventar num ato decongenialidade com o autor.” (ECO, 2005, 41)

Uma indagação que me ocorre é: como não separar processo e ‘resultado’? Como se

relaciona o processo com aquilo que se apresenta no final de um ciclo?

Faço registros incessantes de cada etapa dos procedimentos que tenho pesquisado: uso de

equipamentos pré-fotográficos como a câmara lúcida, uso de pigmentos vegetais como matéria

fotossensível, experimentos com tintas a partir de pigmentos vegetais em pó, entre outros. Aprecio

muito esses registros e realizá-los mas não acredito que somente essas capturas sejam o trabalho

em si. Acredito fortemente que está no gesto e na conexão entre todos os processos que tenho

desenvolvido o meu ponto de interesse maior nesse trabalho em andamento. Apesar da imagem

resultante da cada um dos procedimentos trazer em suas entranhas todo o processo pelo qual ela

passou para chegar até ali, como seria possível dar visibilidade a esses procedimentos, a esse

gestual, a esse percurso e toda a sua potência no trabalho final sem que aquilo que for

apresentado seja didático? Seria a ação? Seria instalação?

Quando iniciei a pesquisa, imaginei algumas referências com as quais pretendia dialogar: asficções botânicas de Fontcuberta (Fig. 45); as performances com germinações de Rubiane Maia (Fig. 42); o primeiro livro ilustrado com fotografias, produzido com cianótipos por Anna Atkins (Fig. 3). Afinal, ao iniciar minhas investigações com os pigmentos, e meus testes de diluição deles, comecei a postar regularmente minhas investigações num blog (wiccaverna.wordpress.com), que tem funcionado como um diário de artista. Ao visualizarem minhas publicações, tenho recebido uma série de indicações de amigos e colegas. Como salienta Cecília Almeida Salles,

“A interatividade é, portanto, uma das propriedades da rede indispensável para falarmos dos modos de desenvolvimento e um pensamento em criação. Em nossas preocupações relativas à construção dos objetos artísticos como objetos de comunicação, essas interações devem ser observadas, pois as indagações recaem

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sobre esse pensamento, que se constrói nas inter-relações, ou seja, como esse chamamos atenção acima, o processo e criação está localizado no campo relacional.” (SALLES, 2016, 26)

Ao ler minhas postagens, a amiga Heloísa Pisani me indicou ver obras de Tadeo Haenke, um

pesquisador que saía em expedições e possivelmente fez a maior catalogação de pigmentos de

vegetais, uma espécie de ‘pantone30 floral’ (Fig. 46), mas que não usava o mesmo sistema da escala

pantone. Outra amiga, ao ver meus anthotypes, indicou que procurasse ver os herbários de

Lourdes de Castro, que ela realizou com serigrafias, pinturas e heliografias, usando as plantas de

seu jardim. E uma terceira amiga, Camila Mangueira, depois de uma conversa sobre por onde o

processo andava me conduzindo, me ofereceu um livro da artista Anne Geene, que fez uma

espécie de enciclopédia de tudo que encontrou (animais e vegetais) num pequeno lote de terra

(Fig. 44).

Fig. 44. Anne Geene. Página do livro ‘Plot no.235’, de Anne Geene.

Fonte: http://www.annegeene.nl/ Acesso em 2/12/2018.

Essa troca, esses diálogos com amigos tem sido muito enriquecedores, pois esses olhares

atentos, que tem uma visão privilegiada de quem está vigilante, mas não está imerso no processo,

me ajuda muitíssimo a encontrar mais pares poéticos. E “a obra vai se desenvolvendo por meio de

uma série de associações ou estabelecimento de relações”. (SALLES, 2016, 27)

30 Em relação às escalas Pantones, que são determinações para o uso industrial das cores, feitas pela empresa Pantone Inc..

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Fig. 45 e 46 - De cima para baixo: Joan Fontcuberta. ‘Braohypoda frustrata’, da série ‘Herbarium’, 1984. Fonte: https://www.anothermag.com/art-photography/3806/joan-fontcuberta-stranger-than-fiction; Tadeo Haenke 1789-1794. Fonte: http://equipajebcn.com/blog/tadeo-haenke-o-como-flipar-en-colores/ Acessos em 2/12/208.

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7.1 ANOTAÇÕES – Postagens no blog

“As anotações funcionavam, segundo o escritor (Pascal Covici), como um período de aquecimento e de articulação de idéias. Mondrian, por sua vez, escreveu textos sob forma de diálogo, criando assim um espaço virtual de interlocução.” (SALLES, 2016, 42)

Durante todo o processo, fiz postagens regulares num blog aberto. A ideia seria facilitar

uma anotação com a memória ainda recente e vívida dos experimentos realizado, e o exercício de

uma escrita mais fluida. Durante toda a pesquisa, e antes mesmo disso, já tinha o hábito de

documentar meus processos nesse blog. A regularidade, a repetição além de me auxiliar no

momento da escrita do texto de qualificação, também permitiu uma organização prévia, e foi

também foi uma plataforma de trocas. Num dos semestres, criei uma rotina de escrever

semanalmente sobre o que estava acontecendo naquela fase da pesquisa. Isso permitia uma

descrição do processo com frescor e riqueza de detalhes. E no momento da escrita da qualificação

o blog foi auxílio crucial, pois de uma certa maneira todas as informações estavam mencionadas e

arquivadas de um modo informal e descontraído. Pude perceber que até a ideia preliminar para a

estrutura dos capítulos já tinha sido desenhada numa das postagens.

Depois da qualificação, comecei a considerar mais fortemente fazer com que esse blog

fizesse parte da montagem final a ser exibida e passei a elucubrar formas de incorporá-lo. O blog já

estava absolutamente referenciado no texto da qualificação, mas era desejável que ele participasse

da mostra final. Debruçando-me sobre essa ideia, descobri que há um site31 que consegue

transformar o conteúdo do blog em um livro. O conteúdo é organizado num arquivo pdf.

Surpreendentemente, o arquivo vem totalmente ordenado, com índice, data de postagem, fotos,

comentários e links. Essa descoberta propicia que todo o histórico de postagens e comentários

sejam disponibilizados e guardados sem a necessidade de dispositivos eletrônicos conectados à

internet. Minhas primeiras investigações sobre os Anthotypes iniciaram em 2010 e estão

documentadas. Baixei um arquivo pdf de quase 500 páginas A4 de postagens desse blog. A

dificuldade seria achar um modelo de livro impresso em gráfica rápida de pequena tiragem que

desse conta de todo esse conteúdo. Conversando com a artista Daniela Avelar32, que tem pesquisa

31 http://blogbooker.com Acesso em 2/12/2018.32 Daniela Avelar é doutoranda em Artes Visuais pelo Centro de Artes da Udesc. Mestra em Artes Visuais pelo

Instituto de Artes da Unicamp (2016). Investiga processos de escrita nas Artes Visuais e experimentos em arte impressa. Atua como produtora cultural (Pinã) em projetos de Artes Visuais, educativos e editoriais.

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e trabalhos com publicações independentes, surgiu uma ideia de pensar num formato menos

formal que o livro, e com características de caderno de anotações, de caderno de artista. Ela me

apresentou o trabalho ‘Empenas’ do artista Andrés Sandoval, que fez dois livretos (booklets) que

se encaixam. Com esse exemplo, passei a pensar em separar o arquivo em blocos menores, para

fazer 4 livretos com aproximadamente 108 páginas cada, e que podem ser observados

separadamente e guardados juntos agrupados por uma luva ou uma capa que os envolva.

Conversei também com Laura Del Rey33, que me indicou gráficas, formas de impressões e papéis

adequados.

Fui até a Inprima34 e lá vi uma gama de papéis e duas hipóteses de impressão (Konika ou

Indigo). Queria um papel fino, que ao ter aproximadamente 30 folhas A4 dobradas ao meio

‘assentasse’, sem ficar abrindo. Fiquei entre 3 opções: markatto (levemente texturizado), um

couchê alta alvura e o pólen, meio amareladinho. Apesar do meu ímpeto inicial ser ir no liso e alta

alvura para não interferir na saturação das cores, lembrei de uma observação da Laura Del Rey

sobre o conforto na leitura com o papel pólen. Escolhi a impressão na impressora HP Indigo, por

que não oferece brilho. As cores perderam um pouco de sua saturação, por conta do papel

amarelado e da impressão mais fosca, mas as imagens ficaram bem decentes para um pdf feito a

partir dos arquivos do blog.

Com todos os 5 volumes impressos dos bookletes, quis uma capa resistente e discreta, sem

muitas informações, apenas o nome do blog e o período de cada um. Peguei algumas dicas com a

Telma Zanata, que costura bolsas artesanais de couro, de como trabalhar para fazer uma marcação

em baixo relevo no couro. Usei tipos móveis, juntei as letrinhas com fita crepe bem apertada, para

as fontes não ‘correrem’, e martelei com força. A Telma indicou que usasse um couro de espessura

mais maleável, mas não muito fina, e que fosse couro cru para imprimir o baixo relevo. Sugeriu

que eu umedecesse o couro antes de martelar as letras para a marcação ficar mais forte e

duradoura. Também umedeci a lombada e deixei secar embaixo de um vidro pesado para o livreto

ficar com a capa assentada. Para juntar as páginas e capa, fiz dois furos na lombada e usei apenas

um cordão de barbante encerado.

33 Laura Del Rey, junto com Marcos Casilli está a frente da Editora Incompleta (http://incompleta.com.br) que trabalha com publicações independentes.

34 Gráfica referência em tecnologia de impressão digital, que imprime materiais com tiragens pequenas. https://www.inprima.com.br/

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Fig. 47 – Livretos, 2018. Fotos: Simone Wicca. Fonte: acervo pessoal.

7.2 REDES DE CONEXÕESAs experimentações com pigmentos de plantas e a efemeridade desse uso tem aberto

muitas linhas de investigações e percebo que meu trabalho é bastante metalinguístico. Sempre me

interesso por processos fotográficos que dialogam com o assunto que estou a fim de tratar. Essa

inquietude já tinha aparecido nas minhas reflexões no início de 2018. Fui para a biblioteca

encontrar com quem ‘dialogar’ sobre essas inquietações. Deparei-me com um capítulo da ‘As redes

de criação’, de Cecília Almeida Salles, chamado ‘O processo é a obra’. Esse capítulo inicia com a

citação de um instigante texto de Jean-Claude Bernardet. Dele, cito os parágrafos seguintes:

“Do que se trata? De apresentar elementos visuais e sonoros, verbais ou não. Esses elementos são justapostos sem que se estabeleçam entre eles inter-relações fixas e precisas. São

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materiais temáticos ou formais que permitem ao espectador construir conexões.Aparentemente se solicitaria um trabalho de decifração. De fato, não é o caso, porque não há nenhuma verdade, nenhuma mensagem a ser alcançada por baixo (ou por cima) desses elementos e de suas inter-relações frouxas. Uma certa opacidade estimula o espectador a construir conexões, trabalho que será ainda mais estimulado/estimulante se os materiais apresentados forem heterogêneos, díspares. E isso sem que nunca se chegue a uma conclusão que possa parecer correta ou definitiva. Simplesmente a apresentação dos materiais propõe uma área de atuação ao espectador, cujo trabalho pode lhe proporcionar intensa emoção estética, bem como discursos, falas a respeito. E, como não há conclusão a que chegar, esse relacionamento entre espectador e obra a rigor não tem fim.O fato de esses elementos não estarem fechados numa narrativa homogênea, coesa e unívoca impede que a linguagem seja instrumentalizada, quer dizer, seja colocada a serviço de outra coisa, tal como um enredo ou uma exposição sobre este ou aquele assunto. O fato de que o discurso não se fecha deixa a linguagem constantemente presente, porque constantemente ela tem que ser observada, interrogada, trabalhada. (…) Fiquemos mais atentos ao trabalho do espectador. Ele observa os elementos dos quais extrai determinadas informações. Estas serão de natureza diversa e não serão as mesmas para todos os espectadores. A partir daí ele vai tentar construir conexões, o que será provavelmente o momento mais denso de sua relação com a obra. Esse momento está evidentemente baseado num pressuposto, o de que os elementos apresentados não são aleatórios. De alguma forma, o espectador busca uma lógica entre eles, busca uma unidade, a qual não será encontrada, e o caráter disperso dos elementos permanece. Portanto seu trabalho, a rigor, não encontra fim, ele se dá num terreno movediço e se reveste sempre de um caráter hipotético e pode sempre se renovar. Se o momento importante do trabalho, após a observação, sempre renovada, dos elementos consiste em construir conexões, podemos dizer que a área mais produtiva para o espectador não são os elementos em si, mas a potencialidade existente entre eles.”

Quando li esse texto, voltei a acreditar que meu caminho atual - o de abrir várias

frentes de pesquisa (Fig. 48) podem funcionar como uma instalação que mostre

desdobramentos e representações diversas. Se for apresentado como uma instalação, um

gabinete de curiosidades, podem estimular o espectador a criar essas conexões todas que eu

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mesma tenho feito - e mais outras que ele venha a imaginar. Pareço seguir trilhando um

caminho possível.

Fig. 48 – Simone Wicca. Sem título, 2017. Caixa com anthotypes, exsicatas, caderno de desenhos, imagens microscópicas e estudos de pigmentos vegetais. Aproximadamente 10x15cm cada imagem. Fonte: Acervo Pessoal.

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8. ORGANIZAÇÃO – Coleção, inventário, arquivo, gabinete de curiosidades

“Muitas vezes esses gabinetes eram espaços de estudos, contendo também estantes com livros e manuscritos. Um gabinete de curiosidades era a expressão da cultura de seu colecionador, do poder e da glória do conhecimento. Os colecionadores se tornavam os guardiões da memória, aqueles que estavam em condições especiais e favoráveis para que o entendimento do processo de criação fosse entendido, e consequentemente, dominado (…) CitandoFoucault. ‘Os documentos dessa história nova não são textos ou arquivos, mas espaços claros onde as coisas se justapõem: herbários, coleções e jardins (…) um novo modo de vincular as coisas ao mesmo tempo ao olhar e ao discurso. Uma nova maneira de fazer história’.” (FIGUEIREDO, 2005, 157)

Passados alguns meses da qualificação decantando um pouco de tudo que foi colocado, uma coisa que me ocorreu: a data do exame de qualificação foi a primeira vez em que coloquei na mesma mesa, lado a lado, tudo (ou quase tudo) o que produzi desde que iniciei a pesquisa com os pigmentos vegetais. Deveria ter feito isso antes, por sugestão inclusive de minha amiga Fátima Roque, mas acabei fazendo apenas nessa ocasião.

Fig. 49 e 50 - Apresentação dos trabalhos na qualificação. Fevereiro de 2018. Fotografias: Simone Wicca. Fonte: AcervoPessoal.

A princípio, coloquei tudo cronologicamente ordenado pois parecia uma forma

interessante de contar a cronologia da pesquisa (Fig. 49 e 50). Durante a conversa com a banca,

fomos movimentando os trabalhos e criando outras relações e aproximações: por técnica utilizada,

por vegetal estudado, entre outras. Dias antes da qualificação peguei alguns livros referente ao

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assunto coleções e mais precisamente sobre os ‘gabinetes de curiosidades’. Ali encontrei algumas

referências visuais desses precursores dos museus (de história natural e das artes). E

paralelamente também comecei uma pesquisa visual sobre possibilidades de evocar aos gabinetes

sem dar um ar de antigo, vintage ou ultrapassado. Já andava investigando modos de expor dos

museus de história natural, conforme mencionei anteriormente, mas procurava por referências

mais contemporâneas, que remetessem a ideia, mas sem dar um ar falso.

Fig. 51 a 54 - Referências de site de decoração francês. Fonte: https://www.deco.fr/jardin-jardinage/plante-interieur/actualite-826864-creer-cabinet-curiosites-vegetales-vert.html Acesso em 2/12/2018.

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Fig. 55 - Damien Hirst. ‘The Kiss of Death’, 2005. 914 x 610 x 254 mm | 36x 24x10”. Acrylic, painted steel, stainless steel, resin, sterling silver, monofilament, bull's heart and formaldehyde solution, Formaldehyde. Fonte: http://damienhirst.com/artworks/catalogue Acesso em 2/12/2018.

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Fig. 56. Mark Dion/Photo by John Kennard. Mark Dion: Harbingers of the Fifth Season, 2014. Fonte: http://www.nybooks.com/daily/2017/12/16/mark-dion-the-science-of-art/ Acesso em 2/12/2018.

E ainda nessa pesquisa sobre gabinetes de curiosidades, cheguei em Domenico Vandelli. A

caixa-livro ‘Gabinete de curiosidades’ apresenta a transformação do universo científico europeu

com o iluminismo e em especial o valor atribuído a natureza brasileira que começava a ser

catalogada. Domenico, ou Domingos, Vandelli foi um dos principais estudiosos da história natural

em Portugal na época em que o Brasil era um dos focos da curiosidade. Para o Brasil ele prestou

um serviço inestimável ao articular as viagens filosóficas, legando-nos um dos maiores tesouros do

período colonial: a memória sobre a diversidade brasileira e a preocupação com a finitude dos

recursos naturais. A caixa traz manuscritos em latim, e também digitalizadas, transcritas e

traduzidas todas as cartas entre Domenico Vandelli e Carl Lineu, pai do Sistema Natural.

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Fig. 57 - Caixa-livro ‘Gabinete de curiosidades’. Cada volume vem com uma folha de rosto ricamente ilustrada em papeldelicado. Foto: Simone Wicca. Fonte: Acervo Pessoal.

Pesquisando outros livros que mencionam sobre gabinetes de curiosidades e contam sobre

a história das ciências naturais, fica claro que uma das grandes questões debatidas pelos

naturalistas era a classificação: como organizar, descrever e nomear os itens colecionados. A forma

de ordenar e classificar os espécimes nortearia a biologia nos anos seguintes. Existiam divergências

no procedimento de catalogação. No livro ‘As palavras e as coisas’, de Foucault, ele menciona o

desacordo entre as formas de pesquisa de Jonston, Aldrovandi e mais adiante, Lineu. Sobre isso,

cito um trecho do livro:

“Quando Jonston escreveu sua História Natural dos Quadrúpedes, saberia ele menos do que Aldrovandi meio século antes? Não muito, afirmam os historiadores. Mas a questão não está aí ou, se se quiser colocar nesses termos, é preciso responder que Jonston sabe a respeito muito menos que Aldrovandi. Este, a propósito de todo

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animal estudado, desenvolvia, e no mesmo nível, a descrição de sua anatomia e as maneiras de capturá-lo; sua utilização alegórica e seu modo de geração; seu habitat e os templos de suas lendas; sua nutrição e a melhor maneira de torná-lo saboroso. Jonston subdivide seu capítulo sobre o cavalo em 12 rubricas: nome, partes anatômicas,habitação, idades, geração, vozes, movimentos, simpatia e antipatia, utilizações, usos medicinais. Nada disso faltava em Aldrovandi, mas havia muito mais. E a diferença reside nessa falta. (…) A ordem descritiva que Lineu, bem após Jonston proporá à história natural é muito característica. Segundo ele, todo capítulo concernente a um animal qualquer deve ter os seguintes passos: nome, teoria, gênero, espécie, atributos, uso e, para terminar Litteraria. (…) A instauração, na idade clássica, de uma ciência natural não é o efeito direto ou indireto da transferência de uma racionalidade formada alhures. (…) Os documentos dessa história nova não são outras palavras, textos ouarquivos, mas espaços claros onde as coisas se justapõem: herbários, coleções, jardins; o lugar dessa história é um retângulo intemporal, onde, despojados de todo comentário, de todas linguagem circundante, os seres se apresentam uns ao lado dos outros, com suas superfícies visíveis, aproximados segundo seus traços comuns e, com isso, já virtualmente analisados e portadores apenas de seus nomes.” (FOUCAULT, 2016, 177)

Paralelamente a essa pesquisa sobre os gabinetes, segui pensando na organização da

minha produção e pesquisa visual com os pigmentos vegetais. Decidi juntar os trabalhos por

plantas em vez de juntar por técnica. Acho interessante ver todas as visualidades daquele mesmo

pigmento lado a lado, para estabelecer essas relações sobre os vários estados daquela matéria

(pigmento líquido, desbotado no anthotype, seco na exsicata, etc) e em diferentes aproximações

(ainda na planta, na lâmina histológica e na imagem vista através do microscópio).

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Fig. 58 - Simone Wicca. Exsicata, lâmina de histologia vegetal, fotografia microscópica, 2018. Fonte: Acervo Pessoal.

Tenho pensado é na desconstrução formal do ‘gabinete de curiosidades’. Penso em abrir o

móvel gabinete, no sentido de dispor cada série em uma gaveta, e cada gaveta ‘emoldurar’ a

série, fixada na parede. Fiz uns esboços e estudei possibilidades a serem desenhadas melhor com a

ajuda de alguém que conheça e lide com madeira.

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Fig. 59 - Simone Wicca. Desenho com esboço de montagem da instalação, 2018. Fonte: Acervo Pessoal.

Fig. 60 - Simone Wicca. Desenho com esboço de montagem da instalação, 2018. Fonte: Acervo Pessoal.

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Fig. 61 - Simone Wicca. Desenho com esboço de montagem de gaveta da instalação, 2018. Fonte: Acervo Pessoal.

8.1. O GABINETE

Com a ajuda do Frank Vitor Dantas, que é um artista que trabalha com madeira e já

montou a estrutura/totem que abrigou meu trabalho de conclusão de curso na graduação,

desenhamos juntos um móvel. Teríamos 7 gavetas, que pudessem facilmente ser removidas para

serem expostas na parede, e quando empilhadas, ficariam fixas num móvel com um formato

similar a uma mapoteca. Usamos como referência os armários que observei nos museus de

ciências naturais. Fiz uma pesquisa para adquirir puxadores para gavetas de arquivos (Fig. 62 e 63)

em que poderia colocar etiqueta mencionando cada uma das plantas.

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Fig. 62 - Simone Wicca. Procura por puxadores e identificadores de gavetas, no bairro do Brás, julho de 2018. Fonte: Acervo Pessoal.

Fig. 63 - Simone Wicca. Puxadores e identificadores de gavetas “garimpados” pela internet e adquiridos de uma loja dointerior paulista, julho de 2018. Fonte: Acervo Pessoal.

A partir de meu desenho inicial, Frank se pautou bastante nas conversas que tivemos e

pensou em soluções de encaixes do vidro das gavetas para facilitar tanto o monta-desmonta-

transporta quanto para o momento de expô-las na parede, podendo ser na horizontal ou vertical.

Os pés são encaixados, o que faz com que o móvel fique numa boa medida para ser transportado.

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Fig. 64 e 65 – Gabinete desenhado por mim e executado por Frank Vitor Dantas, agosto de 2018. Fotos: Simone Wicca.Fonte: Acervo Pessoal.

Curiosamente, em novembro de 2018, ao visitar American Museum of Natural History em

Nova York, notei que as gavetas construídas para meus trabalhos são idênticas as dos insetários

exibidos na exposição permanente do Museu (Fig. 66 a 69).

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Fig. 66 a 69 – Simone Wicca. American Museum of Natural History, NYC. Novembro de 2018. Fonte: Acervo Pessoal.

Fig. 70 – Simone Wicca. Estudos para posicionamento dos materiais nas gavetas. Agosto de 2018. Fonte: Acervo

Pessoal.

Mais alguns itens de vidraria de laboratório também foram adquiridos, para criar um

ambiente com ares de espaço de estudo e pesquisa. São vidrarias que fizeram parte de algumas

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etapas do processo, no laboratório de fotografia ou no laboratório de biologia, somados a outros

que apesar de entrarem como elementos cenográficos, dialogam com os demais e abrigam outros

experimentos realizados durante o projeto, como por exemplo a germinação das sementes, citada

no capítulo 6.2 (Pares Poéticos) ou o cultivo e brotamento de batatas, registrado no capítulo 3.2

(Pré-Fotográfico).

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9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Até Aldrovandi, a História era o tecido inextrincável e perfeitamente unitário daquilo que se vê das coisas e de todos os signos que foram nelas descobertos ou nelas depositados: fazer a história de uma planta ou de um animal era tanto dizer quais são seus elementos ou seus órgãos, quanto das semelhanças que se lhe podem encontrar, as virtudes que se lhe atribuem, as lendas e histórias com que se misturou, os brasões onde figura, os medicamentos que se fabricam com sua substância, os alimentos que ele fornece, o que os antigos relatam dele, o que os viajantes dele podem dizer. A história de um ser vivo era esse ser mesmo, no interior de toda a rede semântica que o ligava ao mundo”. (FOUCAULT, 2016, 176)

Uma imagem que permeia todo o projeto é a fotografia de um urubu sobre um telhado.

Evitei mencioná-la durante o desenvolvimento, mas nesse momento, vejo que se faz necessário.

Gosto dessa imagem pelo seu caráter simbólico. Para mim, essa ave no alto do telhado é

simbolicamente um prenúncio de morte, de transformação da matéria orgânica, de finalização de

um ciclo para início do próximo. Dialoga com a natureza efêmera da minha produção. A

repugnante ave, ao se alimentar de restos orgânicos em putrefação, permite à natureza renovar-se

em seus ciclos. O urubu tem função de agente universal da transmutação de energias e matérias.

Simboliza o princípio da eliminação e destruição. Depois de transformado, o terreno estará limpo e

fértil para a nova semeadura. E o que foi, será alimento para o que será.

Nesse momento de encerramento, apesar de sentir que o trabalho não está finalizado, e

que ainda há muito a ser desvendado, o desejo é de apresentar todo o processo de descobertas,

todos os desdobramentos da pesquisa material desenvolvida até o momento numa instalação que

reproduza um espaço de trabalho e estudos. Parte das imagens realizadas no início da pesquisa já

esmaeceram e devem ser apresentadas dessa forma, que dialoga com a natureza do projeto, esse

paradoxo que é o desejo de arquivar imagens e objetos que se transformam e se apagam. Outras

imagens e objetos realizadas mais proximamente à data da defesa, ao serem expostas se

transformam organicamente ao longo da mostra.

Uma parte considerável dessa produção não é estável. Há algumas imagens microscópicas

que são registros estáveis de uma matéria que se modifica rapidamente (lâminas histológicas), mas

a maior parte do trabalho é feita de objetos com pigmentos que se modificam e se apagam. O que

é possível, dada a natureza instável dessa produção, é apresentar um estágio de como a

materialidade das coisas se encontram num dado intervalo de tempo.

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O fato do trabalho não poder estar finalizado me é desconfortável, por que é uma sensação

de que muito do que fiz já não está visível, e ainda há muito a ser feito, mas o que falta não pode

ser feito num ritmo imposto por mim. As imagens precisam de ser feitas ao seu próprio ritmo, e

isso precisa ser respeitado. Esse é um grande aprendizado para mim, pois me faz refletir sobre qual

a forma como lido com o desaparecimento e na falta de controle dessas situações. Me faz pensar

sobre o que há de positivo no apagamento. Nos anthotypes, o apagamento é responsável por criar

a imagem, mas também a destrói. O processo de construção é feito a partir do apagamento, mas

não é possível interrompê-lo. Me lembra que não é possível controlar a efemeridade. E o que fazer

diante dessa incapacidade? Para honrar o desaparecimento da forma, minha solução foi dar palco

ao processo, ao caminho, ao percurso, à experiência.

Fig. 71 – Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Vista geral da instalação na GAIA (Galeria do Instituto de Artes). Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 72 – Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Painel com texto de abertura. Fonte: Acervo Pessoal.

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Fig. 73 – Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Vista geral do ‘Espaço de trabalho’. Foto: Roger Sassaki.

Fig. 74 – Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Prateleiras e Espaço de Trabalho (legendas desenhadas com câmara lúcida). Foto: Simone Wicca.

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Fig. 75 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Prateleira 1. Foto: Roger Sassaki.

Fig. 76 – Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Prateleira 1 (detalhe). Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 77 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Mesa de trabalho (detalhe). Foto: Roger Sassaki.

Fig.78 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Mesa de trabalho (detalhe microscópio). Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 79- Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Mesa de trabalho (detalhe bookletes). Foto: Roger Sassaki.

Fig. 80 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Mesa de trabalho (detalhe). Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 81- Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Espaço de trabalho (detalhe quadro estudos). Foto: Roger Sassaki.

Fig. 82 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Prateleira 2. Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 83 - Vista geral da instalação na GAIA (Galeria do Instituto de Artes). Foto: Roger Sassaki.

Fig. 84 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gabinete de curiosidades. Foto: Roger Sassaki

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Fig. 85 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 1. Foto: Roger Sassaki.

Fig. 86 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 1 (legenda). Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 87 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 2. Foto: Roger Sassaki.

Fig. 88 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 2 (legenda). Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 89 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 3. Foto: Roger Sassaki.

Fig. 90 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 3 (legenda). Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 91 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 4. Foto: Roger Sassaki.

Fig. 92 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 4 (legenda). Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 93 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 5. Foto: Roger Sassaki.

Fig. 94 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 5 (legenda). Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 95 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 6. Foto: Roger Sassaki.

Fig. 96 – Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 6 (legenda). Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 97 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos, 2019. Gaveta 7. Foto: Roger Sassaki.

Fig. 98 – Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos. Gaveta 7 (legenda). Foto: Roger Sassaki.

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Fig. 99 - Simone Wicca. Breve história da natureza dos pigmentos. Gabinete de curiosidades (detalhes das gavetas). Fotos: Simone Wicca.

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O trabalho diz respeito a uma tentativa de aprofundamento, um adentrar na matéria-prima

- nesse momento, metaforicamente, a célula vegetal - para ver aquilo que é invisível a olho nu.

Soma-se a esse mergulho a contradição pretendida de guardar esses vestígios, que se mostra uma

tarefa praticamente inexequível, ao ponto que se refere a um repositório onde parte do que se

guarda se apaga com o passar do tempo. E para honrar aquilo que foi, aquilo que já não é, mesmo

que contraditório e inútil, se faz necessário para mim guardar objetos que se apagam.

Encerro com uma reflexão sobre os arquivos:

“Maurício Lissovsky identifica quatro dimensões do arquivo, que estão relacionadas à história e ao funcionamento das instituições responsáveis pela proteção do patrimônio arquivístico: a historiográfica, que protege os documentos da ação degradante do tempo; a republicana, que resguarda o patrimônio público da apropriação privada; a cartorial, em quese busca a garantia do valor de verdade ou de prova; e a cultual, a da devoção a um passado que não deve ser esquecido. A essa, Lissovsky soma uma quinta, a dimensão poética, que: ‘Não decorre diretamente dos documentos arquivados, mas, paradoxalmente, das lacunas entre eles. Isto é, constitui-se a partir dos vazios e dos esquecimentos, do caráter irremediavelmente fragmentário dos arquivos. A história que esta dimensão nos abre não nos remete a um passado já realizado e completo, repleto de fatos consumados,mas evoca a memória de um pretérito inconcluso que ainda está por se realizar’. Essa potência poética não está nos vestígios, nos cacos deixados pelos acontecimentos, cujos fragmentos vão sendo apresentados por meio de gravações, testemunhos, fotografias e outras formas de registro, mas estásempre por ser realizada em cada nova montagem.” (PIMENTEL, 2014, 167)

Penso que esse agrupamento - em forma de gabinete de curiosidades - das várias

visualidades da matéria de onde extraio o pigmento, talvez possa apresentar uma breve e efêmera

história da natureza dos pigmentos. Provavelmente não do ponto de vista da dimensão

historiográfica, republicana, cartorial, visto que se trata de um arquivo delével, ficcional e aberto a

leituras, mas possivelmente da dimensão cultual e poética, pois é feito de memórias em constante

transformação, que mesmo quando esmaecem, não deveriam ser esquecidas.

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www.artforum.com

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https://publicdomainreview.org/collections/cyanotypes-of-british-algae-by-anna-atkins-1843/

ANTHOTYPES E CHLOROPHYLL PRINTS - Artigo sobre preservação de Anthotypes sobre folhas

(também chamado de chlorophyll prints) pode ser acessado em

http://www.alternativephotography.com/how-to-preserve-chlorophyll-prints/

FRANCIS SCHABERGER – blog pode ser acessado em

www.francisschanberger.blogspot.com.br

Page 108: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO ...XIX, Anna Atkins (1799-1871), bióloga pesquisadora de algas, fez o que seria o primeiro livro ilustrado com fotografias: usou um processo

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JOAN FONTCUBERTA - Trabalhos autorais do artista podem ser acessados em

https://www.fontcuberta.com/

LOURDES DE CASTRO - Parte dos trabalhos da artista podem ser acessados no site do Museu

Calouste Gulbenkian em

https://gulbenkian.pt/museu/artist/lourdes-castro/

MUSEU DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA (desenhos fotogênicos de Talbot)

https://www.mhs.ox.ac.uk/features/ephotos/pdtypes.htm

RUBIANE MAIA - Portfolio online da artista pode ser acessado em

http://cargocollective.com/rubianemaia

TADEO HAENKE - Parte do trabalho do pesquisador pode ser acessado em

http://equipajebcn.com/blog/en/tadeo-haenke-o-como-flipar-en-colores/

Filmes

MOURÃO, Catarina. Pelas sombras – Lourdes de Castro. Portugal, 2010. 83min.

Revista, Periódicos

MATADOR. Volume R/Botânica. Pode ser acessado em

http://clubmatador.com/revista-matador/