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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
BÁRBARA SOUZA COSTA
CONSTRUIR O EXCEPCIONAL – ENTRE AÇÕES HUMANAS E OBJETOS MARAVILHOSOS EM
SAINT-DENIS (1122-1151)
CAMPINAS 2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
BÁRBARA SOUZA COSTA
CONSTRUIR O EXCEPCIONAL:
ENTRE AÇÕES HUMANAS E OBJETOS MARAVILHOSOS EM
SAINT-DENIS (1122-1151).
Orientadora: Profª Drª. Néri de Barros Almeida
Dissertação/Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em História, na Área de História Cultural.
Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defendida pela aluna Bárbara Souza Costa, e orientada pela professora Drª. Néri de Barros Almeida.
CAMPINAS 2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 30/09/2019, considerou a candidata Bárbara Souza Costa aprovada. Profª. Drªa. Néri de Barros Almeida Prof. Dr. Luiz César Marques Filho Profª. Drª Cláudia Bovo A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Agradecimentos
Decorrem já alguns anos desde que me aventurei pelos labirintos do mundo
medieval. De lá para cá, da Iniciação Científica, das mudanças de tema e do
acolhimento constante da orientadora, descobri outros labirintos: o da vida adulta
fora das expectativas de uma graduanda encantada com a Universidade, o da sala de
aula e os percalços da vida como professora, o desafio da maternidade.
Nesses anos uma jornada se fez. De superação, perseverança e muito estudo.
Joseph Campbell já nos advertia que toda história é a maneira como resolvemos
contá-la. Aqui, a história da autora toma corpo contada através dessa dissertação.
Defendo, nas próximas páginas, que Suger escolhe a maneira como encaminha sua
narrativa para cumprir seus objetivos imediatos e memorialísticos. Assim também
escolho lembrar minha jornada nessas breves frases para, como Suger, ter a
sensação de dever cumprido.
Seria impossível, ainda que não os cite diretamente, deixar de fora das
linhas que se seguem os autores e autoras que marcaram meu período de formação,
constante e longínquo. Que forjaram, a duras penas, meu entendimento sobre o
mundo, sobre a História e sobre a certeza de que sempre teremos que estudar mais.
O leitor com certeza os identificará ao longo do texto.
Também seria impossível deixar de nomear aqueles que seguraram minhas
mãos ao longo desses anos. Aos meus companheiros do LEME e da Pós-Graduação
na Unicamp: sem as trocas que realizamos eu seria um ser humano mais pobre.
Além disso, agradeço especialmente ao CNPQ pelo apoio, auxílio e investimento
em meu projeto de pesquisa; sem eles a trajetória teria sido tortuosa.
Aos meus pais, Cláudia e Alexandre, pelo amor e conforto que seus braços
me dão e pela confiança inabalável em minha capacidade. À minha irmã, Victória,
fonte de determinação e parceria inesgotáveis. À Gabrieli, sem a qual esse texto
simplesmente não existiria da forma como está. À Marcela e Jéssica, que foram o
sopro e a força necessários para que eu tivesse forças para vencer as etapas finais.
Ao Matheus, companheiro e amigo, tantas vezes amor e alento. E ao Arthur, que
me enche de alegria e quem eu espero que tenha muito orgulho em dizer: “Minha
mamãe quem escreveu!”.
Por fim, ser mestre. No filme As sufragistas, de 2015, há uma cena
formidável em que um parlamentar inglês pergunta a uma lavadeira o que
significaria para ela o ato de votar, para uma mulher inculta que nunca havia ido à
escola e gastava seus dias escaldando camisas. A resposta é tão sutil que arranca
risos da audiência que a escuta: “Não sei, nunca pensei que um dia votaria”.
Em meu caso, esperamos e sonhamos com esse dia. Mas, ao pensar sobre
seu significado, parece-me que ser mestre é, ao mesmo tempo, a conclusão dos anos
passados e a abertura para novos voos futuros. É a assunção como historiadora,e a
licença de usar esse título com orgulho, mesmo em tempos difíceis para a profissão,
para o conhecimento e para a cultura. Mas é também e simultaneamente, a
expectativa do que vem a seguir. E de quem estará na caminhada.
Por isso, ofereço essa dissertação a todos aqueles que trilham, ora vagarosos
ora a passos largos, os difíceis caminhos da instrução. Que ela seja, se possível,
como uma lembrança de que, um dia enfim, o que é difícil poderá se tornar um
ofício.
RESUMO
O objetivo dessa pesquisa é escrutinar as justificativas de Suger para sua obra mais celebrada pela posteridade, a reconstrução da abadia de Saint-Denis durante o período de seu abaciado (1122-1151). O ponto de partida é O Segundo Livro sobre a Consagração de Saint-Denis, escrito possivelmente entre 1148 e 1149, no qual se busca as relações entre a construção da nova igreja e os objetos maravilhosos pertencentes à instituição. O que aqui se oferece é uma releitura de um tema já bem constituído na historiografia cultural e da arte, qual seja, a do surgimento do gótico em Saint-Denis no século XII e o protagonismo de Suger, a partir da análise das escolhas discursivas do abade e sua preocupação expressa com os tesouros da nova Catedral. Palavras-chave: Suger; Saint-Denis; Tesouro; Objetos preciosos; Historiografia.
ABSTRACT The main goal of this research is to investigate Suger’s justifications to his most celebrated work to posterity, the reconstruction of Saint-Denis abbey during the time when he was it’s abbot (1122-1151). The starting point it’s the Second Book of the Consecration of Saint-Denis, possibly written between 1148 and 1149, in which we can search the relations between the construction of a new church and the precious objects owned by this institution. What we offer here is a review of a well known theme in cultural and art historiography, that is, the appearance of the gothic style in Saint-Denis around the XIIth century and Suger’s protagonism for that to happen, towards the analysis of the abbots discursive choices and his concerns about the treasures of the new Cathedral. Key-words: Suger; Saint-Denis; Treasure; Precious Art; Historiography
Sumário
Introdução 10 Capítulo 1: Entre duras tintas: as memórias e um texto de um abade do século XII 1.1 Leituras contemporâneas ou os efeitos dos leitores 15 Capítulo 2: Reordenando a Casa de Deus: um novo lugar para as maravilhas. 2.1 Redescobrindo Suger: entre ações e explicações em De Consacratione 33 2.2 Os objetos e a encenação ritual em De Consacratione 51 Capítulo 3: Manter o invisível visível: a catedral, os objetos, a revolução e o patrimônio 75 Conclusão 100 Referências Bibliográficas 107 Anexos 115
10
Introdução Para essa Introdução escolhemos oferecer ao leitor um conjunto de informações
que facilitarão o acesso às páginas subsequentes. Isso porque configuram o ponto de
partida ou o plano de fundo dos argumentos desenvolvidos ao longo dessa dissertação.
Abordaremos a tradição manuscrita e a biografia de Suger para criar um palco possível
para as ações que se desenrolaram ao longo do texto.
Para isso montamos uma lista com as edições e publicações das obras de Suger,
especialmente aquelas que se referem à consagração da abadia de Saint-Denis, com
referências complementares sobre seus editores nas notas de rodapé. A intenção que
impulsiona a criação desse apanhado factual é a de fornecer um palco possível em que
as ações e as circunstâncias possibilitem uma leitura documental dentro da lógica de sua
tradição e da vida de seu autor. A biografia de Suger será largamente comentada no
capítulo 1.
De Consacratione compunha-se, originalmente, de três cópias manuscritas
pertencentes à biblioteca de Claude-Alexandre Petau . Em 1641 François Duchesne 1
(1616-1693) edita a primeira versão impressa do texto dentro da série Historiae 2
Francorurn Scriptores . Quarenta anos depois Jean Mabillon publica uma nova versão 3 4
1 O título original desse manuscrito seria, segundo Philippe Verdier, Suggerius abbas S. Dionisii de eclesia a se aedificata. (VERDIER, Philippe. Some new readings of Suger’s writings. In: GERSON, Paula L. (ed.), Abbot Suger and Saint-Denis – A symposium, The Metropotitan Museum of Art, New York, 1987 (1986) p. 159-162). As considerações que se seguem são tomadas da compilação feita por esse historiador. 2 Filho de André Duchesne (1584-1640; historiógrafo de Luís XIV, cujo patrono era o cardeal Richelieu, uma das figuras mais proeminentes da França no período), nascido e educado em Paris, obteve o título de historiógrafo na segunda metade do século XVII e se ocupou primordialmente com os grandes homens políticos da história da França, além de reeditar e republicar obras de seu pai, como: Les Antiquités et recherches des villes, châteaux, &c., de toute la France (Paris, 1609). 3 A empreitada desse compêndio teve início sob a supervisão de André Duchesne, que inicialmente planejou uma coleção faraônica de 24 volumes contendo narrativas sobre a França desde o período medieval até a sua própria época. Seu idealizador apenas publicou dois volumes e seu filho publicou outros três, sendo um deles a reedição dos escritos de Suger. O quinto volume foi publicado em 1649 e a obra permaneceu inacabada. (ver: Chisholm, Hugh, ed. (1911). Duchesne, André. In: Encyclopædia Britannica. 8 (11th ed.). Cambridge University Press. p. 629.). Outro documento referente a Suger publicado por Duchesne foi o De Administratione, que narra não só os feitos do abade como os meandros da reforma. O manuscrito utilizado para a transcrição é datado do século XII, de locus possivelmente em Saint-Denis. (Paris, Bibliotheque Nationale, ms. lat. 13835, cujo título: De administratione, Suggerii abbatis tiber de rebus in administratione sua gestis) 4 É possível considerar que Mabillon (1682-1707) teria tido interesse na figura de Suger por sua própria carreira enquanto monge beneditino e tesoureiro de Saint-Denis entre os anos 1663-64, no período imediatamente anterior ao seu envio a Saint-Germain-des-Près. Além da obra de Suger como parte integrante de Vetera Analecta, entre 1675-85, Mabillon publicou as obras de São Bernardo, em 1667, além de tratados e as atas da ordem de São Bento (ver: DE BROGLIE, Emmanuel. Mabillon et la société de
11
do texto em Vetera analecta, em 1685, a partir de outro manuscrito pertencente a
Biblioteca da abadia de Saint-Victor . Nessa versão constavam duas páginas a mais 5
reconstruídas por Mabillon, além das publicadas por Duchesne.
Em 1706, Dom Michel Félibien reproduz a versão de Mabillion em seu Histoire 6
de l’abbey Royale de Saint-Denys en France – um compêndio da história da abadia,
mais uma vez produzido sob os auspícios do poder real de Luís XIV e dentro dos muros
de Saint-Denis e Saint-German-de-Près, nos arredores parisienses. É notável que essa
edição contenha, ineditamente, alguns fólios com reproduções e desenhos minuciosos
de peças de ouro e objetos litúrgicos que compunham o tesouro de Saint-Denis tal como
se encontrava no século XVIII, poucas décadas antes de sua dispersão pela Revolução
em 1789 . O conjunto da obra de Félibien, sua edição crítica e seus desenhos, foram 7
publicados na revista Acta Eruditorum, um dos mais importantes veículos de produção e
transmissão de conhecimento da Europa continental nos idos de 1682 até 1782.
Em 1825, François Guizot editou e publicou sua Collection des mémoires 8
relatifs à l’histoire de France : vie de Louis le Gros par Suger, Vie de Suger par
Guillaume. Vie de Louis-le-Jeune e Vie de Charles-le-Bon par Galbert. Apesar de não
se tratar de uma nova aparição do De Consacratione, é digno de marca que Guizot
também tenha se empenhado em fazer conhecidas as biografias de Suger, tanto a sua
própria quanto a que escreveu sobre Luis VI. Parece que a figura de Suger se constituía
como ponto a ser mencionado nos anais históricos da monarquia francesa, ao mesmo
tempo em que seus escritos indicavam a construção dessa tradição. O locus
centralizador das publicações modernas a seu respeito nos fornece algumas pistas sobre
l'abbaye de Saint-Germain des Prés à la fin du dix-septième siècle, 1664-1707. 1888. París: Plon, Nourrit). 5 O título dado a esse manuscrito seria De renovatione ecclesiae beati Dionysii. 6 Michel Félibien (1665-1719) possuía ligações próximas à corte de Versalhes: irmão do arquiteto e historiógrafo real Jean-François Félibien e filho de André Félibien, também ocupado com o ofício de escrever a história, circulava entra a cúpula oficial da França no século XVIII. Foi monge beneditino pela congregação de Saint-Maur e professo de Saint-Germain-de-Près. Ocupou-se com muitas obras de caráter histórico e, especialmente, biografia de vilas e personalidades francesas. 7 Ver Anexos I, II e III. 8 François Guizot (1787-1874) foi, além de historiador, um homem do Estado francês. Diversas vezes ministros sob a monarquia de Julho, foi, inclusive, presidente do Conselho de Ministros. Figura controversa, Guizot foi, enquanto membro da Academia Francesa, produtor de diversas obras de cunho nacionalista durante o século XIX. A obra citada aqui é sua Introduction, Suppléments, Notices et Notes - Collection des mémoires relatifs à l'histoire de France : Vie de Louis le Gros par Suger. Vie de Suger par Guillaume. Vie de Louis-le-Jeune-Vie de Charles-Le-Bon par Galbert, Paris, Éd. J.-L.-J. Brière, libraire, 1825.
12
como a historiografia subsequente encontraria o texto: vinculado a proeminência e ao
discurso panegírico dos monarcas e grandes homens da nação francesa, bem como de
suas instituições oficiais.
A versão que se tornou célebre sobre o De Consacratione foi, definitivamente, a
de Lecoy de la Marche . Em 1868, a Sociedade de História da França financia a 9
publicação das Oeuvres complètes de Suger. Inserido nos círculos intelectuais do estado
francês, com 486 páginas, o volume se dedicava a demonstrar o valor histórico e
literário de todos os textos ali publicados. Entre eles estava o Admisnistratione, o
Ordinatio, além da biografia de Luís VI e cartas escritas (e recebidas) por Suger. Foi
especialmente nessa edição que Erwin Panofsky se baseou para realizar a sua tradução,
quase um século depois.
Em 1887, porém, Achille Luchaire publicou correções e comentários a edição 10
de La Marche. Sua tradução se baseava em um manuscrito distinto daquele que vinha
sendo republicado desde o século XVII. Algumas de suas indicações partiam de um
manuscrito compilatório do século XIV conservado na Biblioteca Nacional . 11
No século XX duas traduções são importantes para a tradição manuscrita do De
Consacratione e para a sua permanência enquanto assunto e debate acadêmico. A de
Erwin Panofsky e Françoise Gasparri. Separadas por quase meio século, ambas se
destacam pela atenção primorosa às possibilidades de tradução latina. Enquanto
Panofsky, grande historiador e pensador da arte, elaborou seu trabalho longe das
matrizes documentais e sem acesso ao texto publicado por Luchaire, Gasparri revisitou
todos os arquivos e manuscritos para oferecer ao público uma versão acadêmica do
texto. Sua preocupação não se referia tanto ao lugar de Suger enquanto criador de um
novo estilo artístico e arquitetônico, mas em sua projeção política e nas relações sociais
perenizadas em suas palavras. O viés escolhido pela autora parte do princípio da busca
pela racionalidade da escrita de Suger, ultrapassando a dimensão apenas de um relato ou
fonte, para recolocar a questão da autoria. Suas contribuições serão comentadas na
9 Richard Albert Lecoy de la Marche (1839-1897) possui uma lista extensa de publicações e edições importantes. Foi membro premiado da Académie des sciences, belles-lettres et arts de Savoir e da Société nationale des antiquaires de France. 10Achille Luchaire (1846-1908) foi um historiador da Idade Média francesa, além de filólogo e tradutor. Além disso, foi professor da Sorbonne e membro da Académie des sciences morales et politiques. 11 A indicação desse manuscrito é MS Lat. 5949 A.
13
segunda parte do primeiro capítulo desta dissertação, enquanto a de Panofsky aparecerá
na primeira parte.
Em português, duas traduções são dignas de nota: a de Marcos Monteiro Rabelo,
publicada em 2005 e que serviu como pontapé inicial e base para as citações dessa
pesquisa que se lê agora, e a de Selene Candian dos Santos, publicada em 2014 pela
Universidade de São Paulo. Ambas serão referenciadas e discutidas na primeira parte do
próximo capítulo.
Por fim, recém-saída das prensas, a tradução de Eric Withmore e Richard
Cusimano foi publicada em janeiro deste ano, 2018. Vinculada à Catholic University
American Press, a publicação revisita textos selecionados de Suger, entre eles De
Consacratione, na tentativa de ampliar os estudos em inglês sobre o tema. Ela também
será comentada mais adiante.
No próximo capítulo o leitor encontrará extensos comentários sobre a biografia
de Suger e a historiografia que buscou compreendê-lo. Através de uma divisão capitular
em duas partes, buscou-se compreender qual o protagonismo atribuído a Suger e quais
as razões para que seja tomado como modelo ou exemplo histórico. No segundo
capítulo a indagação volta-se para o próprio abade e o texto que torna essa dissertação
pertinente, em Redescobrindo Suger: entre ações e explicações em De Consacratione. Isso
para averiguar em que medida aquilo que a historiografia consolidou sobre Suger,
principalmente no que se refere à sua excepcionalidade, está presente nos planos
memorialísticos de seu autor. Nesse momento, aparecerão discussões historiográficas
importantes, como a da emergência da noção de indivíduo no século XII. Em seguida,
Reordenando a Casa de Deus: um novo lugar para as maravilhas, prima por
investigar as necessidades ou justificativas presentes no De Consacratione para a
realização da ampliação e reforma do edifício de Saint-Denis. O objetivo central é
afastar-se das análises já sólidas sobre a criação de uma metafísica da luz ou das
relações entre Suger e Pseudo-Dionísio e seus efeitos no novo prédio. O caminho que se
coloca é o dos objetos. Não se trata de uma exclusão da primeira tese, apenas de um
ajuste focal. O argumento que se defende é o de que os tesouros e as maravilhas não
podem ser tomados como secundários dentro das discussões sobre estética e arte durante
esse período. Isso porque as poéticas que evocam, além de dialogar com concepções
14
teológicas do espaço e da natureza, também apontam relações de poder fundamentais
para a preponderância e exuberância de seus detentores.
O último capítulo dessa dissertação, Manter o invisível visível: a catedral, os
objetos, a revolução e o patrimônio propõe uma discussão que é, na realidade, um
desdobramento da primeira; qual seja, a da disputa e diferenciação conceitual entre as
expressões tesouro e coleção e suas implicações de valor e categorização dos objetos
artísticos e culturais. Trata-se do momento em que os objetos são retirados de sua
função litúrgica e ritual marca sua transformação em arte sacra. No caso de
Saint-Denis, após a dispersão dos objetos pertencentes à Catedral durante a Revolução
Francesa, muitos estão em exposição permanente no Museu do Louvre ou circulando
em grandes exposições como a de 1981, no Metropolitan Museum of Art. Nosso fôlego
final será seu mapeamento e localização possíveis, bem como a análise de sua nova
importância dentro dessa categoria museológica, transformados em objetos de
admiração e síntese fora dos muros do claustro. Da mesma maneira, o texto coloca as
tensões existentes em relação aos objetos de Saint-Denis para esmiuçar como os
mesmos objetos podem, ora significar e fortalecer laços de poder, quanto, a seguir,
serem considerados opressores, saqueados e destruídos.
Fruto de uma viagem à Paris tal capítulo encerra a trajetória de nossa
investigação ao refletir sobre a maneira pela qual os objetos do período medieval e,
especialmente aqueles reunidos e ressignificados por Suger, pertencem
contemporaneamente a outras esferas de uso social em relação à memória histórica e
cultural e encenam jogos de poder que articulam o discurso acerca do patrimônio, da
pesquisa científica e das instituições museológicas.
Para encerrar, o leitor encontrará na categoria Anexos imagens das primeiras
gravuras do tesouro e de seus mais famosos objetos que foram mapeados. Encontrará
também outros documentos úteis para a compreensão da importância histórica do
tesouro e da Catedral de Saint-Denis.
Esperamos que esse material seja útil e complemente a leitura do texto que agora
se inicia...
15
CAPÍTULO I: Entre duras tintas: as memórias e um texto de um abade do século XII.
“Pequeno de corpo e família, constrito por sua pequenez dupla.
Recusou-se em sua pequenez, a ser um pequeno homem.” [obituário de Suger] Simon Chèvre d’Or
Leituras contemporâneas ou os efeitos dos leitores.
Numa resenha curta (e magnífica) do A fabricação do rei, de Peter Burke, Lília
M. Schwarcz defende que a monarquia do século XVII se configurou como um bom
exemplo para o questionamento dos historiadores sobre as relações entre a política da
“razão prática” e sua lógica de decretos, sanções e concessões de privilégios, e a força
de persuasão da “razão simbólica”. Ou seja, a autora defende que o poder real dependia
também da forma pela qual o rei era visto e representado diante de seus súditos. E, um
bom rei, saberia valorizar tanto os rituais que envolviam sua presença quanto a força de
suas ordens . 12
De fato, no período de que trata essa dissertação a noção de poder público não
era, necessariamente, vinculada à imagem e à fusão entre o Estado e um líder que o
personificaria. No entanto, a historiografia recente sobre os textos e os personagens
medievais têm buscado identificar o programa político, o discurso, a racionalidade
inerente seja nos projetos textuais ou nas ações empreendidas pelos seus protagonistas . 13
O capítulo que se inicia tem por objetivo último compreender as formulações do
próprio Suger, bem como suas justificativas e defesas, especialmente textuais, para o
empreendimento mais famoso de sua carreira religiosa e política. Para tanto, partiremos
do De Consacratione , escrito por Suger nos anos 1144-45. O leitor poderá entrever 14
12 SCHWARCZ, Lilia M. Peter Burke. A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de janeiro, Jorge Zahar, 1994, 254 pp. in: Revista de Antropologia, v. 43, n. 1, São Paulo, 2000. 13 Essa prerrogativa teórica está presente em RUSSO, Daniel. O conceito de imagem-presença na Idade Média. Revista de História, n. 165, São Paulo, 2011, p. 37-72. 14 Tomamos como base a tradução de Marcos Monteiro Rabelo, publicada em sua tese de 2005: O abade Suger, a igreja de S. Denis e os primórdios da arquitetura gótica na Ile-de-France no século XII, Unicamp, 2005. Em sua Apresentação, Rabelo faz uma excelente descrição da pertença desse texto de Suger ao corpus de sua produção, datando os manuscritos entre 1148/49 aproximadamente, partindo das considerações de GASPARRI, Françoise. L’abbé Suger de Saint-Denis. Mémoire et perpétuation des oeuvres humaines, in: Cahiers de Civilisation Médiévale 44 (2001), pp. 247-257 ; e PANOFSKY, Erwin. The book of Suger, abbot of Saint-Denis on what was done under his administration, in: Abbot Suger: On the abbey church of Saint-Denis and its art treasures. Princeton: Princeton University Press, 1979, pp.
16
que as justificativas escritas e as escolhas simbólicas do abade, como demonstraremos,
fazem eco em suas atividades práticas, isto é, nas medidas que toma para tornar suas
expectativas reais, pelo menos no que diz respeito ao que realizou em Saint-Denis.
Nossa intenção é demonstrar que a inovação e brilhantismo atribuídos a Suger decorrem
de um programa (do qual o texto é parte fundamental) que põe em causa diversas
esferas de poder e atuação, sem as quais o edifício não seria possível. Nesse sentido, as
ações do abade são relacionais. Procuraremos averiguar os sentidos do De
Consacratione e a possível existência de um vínculo entre a catedral de Saint-Denis e o
abade Suger, através da manipulação de seus aspectos mais relevantes: as relíquias e o
edifício.
A História está repleta de homens excepcionais. Isso porque a excepcionalidade,
especialmente a excepcionalidade masculina, foi considerada um dos pilares da
disciplina histórica quando da sua articulação sistemática e acadêmica, em finais do
século XVIII e no decorrer do século XIX. Dessa forma, se consolidou como objeto
notável e digno da curiosidade e tinteiro de outros homens, ecoando as prerrogativas de
privilégio social masculino . 15
As jornadas dos heróis, para relembrar o magistral Joseph Campbell , povoam 16
nossa leitura do mundo histórico e contemporâneo, como forma de identificação ou
como crítica desse tipo de narrativa tradicional. Isso porque, de ambas as formas, nossos
pressupostos culturais partem desse imaginário para a elaboração do mundo social que
nos cerca.
No caso dessa pesquisa, temos diante dos olhos um abade que iniciou sua
atuação monástica aos dez anos de idade, ascendeu a diversos níveis hierárquicos,
viajou na companhia de reis e papas, tornou-se uma espécie de primeiro ministro
(regente) dos territórios de Luís VII quando este estava no Oriente. Além disso,
escreveu centenas de páginas entre relatórios, cartas e poemas, e, sua obra mais
40-81. Outras duas traduções recentes foram levadas em consideração: a de Selene Candian dos Santos para sua dissertação de mestrado, em 2014 e a de Richard Cusimano e Erik Whitmore, de 2018 Escolhemos priorizar a tradução de Marcos Rabelo por se tratar de uma empreitada tendo em vista apenas e especialmente o De Consacratione, em edição bilíngue com a versão latina. 15 Sobre o protagonismo masculino na consolidação das narrativas acerca da História da Arte e de sua constituição enquanto disciplina acadêmica portadora de significados a serem transmitidos em manuais que privilegiam a ação dos homens, ver: POLLOCK, Griselda. Vision and difference – feminism, femininity and histories of art. Routledge, Londres, 2012 [2003]. 16 Para os propósitos dessa dissertação ver, especialmente: CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix, 1992
17
celebrada pela contemporaneidade, empreendeu uma reforma arquitetônica de
dimensões faraônicas na sede de seu abaciado, Saint-Denis, entre os anos 1137 e 1144.
Claro, é sabido que nem só de heróis se faz a história e que, inclusive, já
ultrapassamos esses limites enquanto área do conhecimento que prima pelas
experiências humanas passadas. No entanto, pelo menos no caso tratado por essa
pesquisa, é sintomático que novas edições sejam feitas e refeitas seguindo o mesmo
mote e justificando-se pelo caráter emblemático – e excepcional – de seu autor . 17
Talvez seja o beneplácito do tempo, que assegurou a permanência de
manuscritos do mesmo locus produtivo das obras de Suger; talvez o mérito seja de seu
biógrafo e discípulo, Guilherme, que conseguiu transformar a vida do abade em algo
que muitos biógrafos contemporâneos apenas tentam, sem conseguir, alcançar. Ou,
talvez o crédito deva ser dado a La Marche, um dos primeiros editores modernos dos
textos de Suger, que qualificou sua trajetória pessoal como equivalente à história da
França no século XII (e do XIX, por extensão) . Por último, talvez devêssemos tributar 18
a excepcionalidade de Suger a Erwin Panofsky, que alçou a fama do abade francês a
voos internacionais e muito profícuos para os estudiosos da arte, arquitetura, política,
economia ou historiadores . O objetivo deste capítulo é compreender como a 19
historiografia analisou a figura pública e a individualidade de Suger. Para alcançar esse
alvo, desdobramos o tema em três abordagens distintas: a de Panofsky, que defende a
excepcionalidade de Suger e seu lugar na criação de um novo estilo artístico. A de
17 A publicação de Richard Cusimano e Eric Whitmore de 2018 inclui o De Consacratione, o De Administratione e a Gesta de Luís VII, além da biografia de Suger escrita por Guilherme de Saint-Denis. O prefácio que justifica a execução da empreitada, assim a justifica: “Suger, the twelfth-century abbot of Saint-Denis, has not received the respect and attention that he deserves for his contributions to history. Bernard of Clairvaux and Peter the Venerable have garnered more attention, and students of medieval history know their names well. Yet Suger has earned due praise for his architectural innovations, for the Church of Saint-Denis is truly one of the most beautiful churches in Europe.” (CUSIMANO, Richard. WHITMORE, Eric. Selected works of abbot Suger of Saint-Denis. The Catholic University Press, Washington, 2018, p. ix.) E, na Introdução: “Suger is famous today as the skilled renovator and architect of his spectacular abbey church, still standing, not far from a Metro stop, in Paris. (...) Never shy, Suger gives his readers a large amount of biographical material in his writings. He seems almost obsessed that his works and deeds not be forgotten. (...) His innovations and changes at Saint-Denis led to the development of the medieval gothic style found in so many medieval churches.” (Idem, p. 1-2). 18 Para a tradição manuscrita desse texto e sua história de cópias e publicações, ver a Introdução dessa dissertação. A citação de La Marche refere-se ao Notice sur les écrits de Suger et sur la présente édition. in: LECOY DE LA MARCHE, A. (org.). Oeuvres complètes de Suger. Paris: Imprimerie Générale de Ch. Lahure, 1867, p. i-ii. 19 PANOFSKY, Erwin. Abbot Suger on the abbey of the St.-Denis and its art treasures, Princeton University Press, 1946 [1979].
18
Summer McKnight Crosby, que pretende dissecar as prerrogativas arquitetônicas dos
escritos de Suger e o brilhantismo de seu feito em Saint-Denis. E a de Françoise
Gasparri, que tornou possível uma dissertação como a de Selene Candian dos Santos,
cuja preocupação é analisar retoricamente os textos do abade.
Quando se trata de Saint-Denis ou Suger, Panofsky é incontornável. Sua
introdução e tradução The Abbey of Saint-Denis and its art treasures foi publicada,
republicada, remetida, analisada, citada, criticada, e ainda permanece tradicional, pedra
angular sobre o assunto. Não houve sequer um artigo lido que não a mencionasse, ou
suas ideias, mesmo sem citá-la diretamente.
A leitura que realizamos buscou identificar como Panofsky compreendeu Suger.
Nesse sentido, foi necessário esmiuçar o texto para poder desvendar as percepções do
primeiro sobre o segundo, isto é, por quais caminhos Panofsky decidiu se aproximar de
Suger e como o enxergou enquanto lia os documentos que o abade produziu de si, ou
sua biografia, escrita por Guilherme de Saint-Denis.
É sabido que muitas discussões acaloradas já foram feitas em torno dos
argumentos de Panofsky (de sua validade e historicidade) . No entanto, é possível ainda 20
acrescentar alguns pontos.
Em O abade Suger de Saint-Denis Suger nos é apresentado tal como um 21
caleidoscópio. Com o objetivo de compreender o caráter ou, numa paráfrase, a
individualidade e a condição de ser de um homem religioso do século XII, Panofsky nos
apresenta muitas imagens e colorações. Ao fim do texto, espera nos ter dado uma visão
coerente do todo e ter clarificado a possibilidade de existir de sua obra mais complexa.
Passemos às imagens. É possível identificar ao menos oito recortes diferentes da
personalidade de Suger no texto de Panofsky, todos eles complementares e integrantes
coerentes do conjunto de sua ação, de acordo com o historiador.
20 KIDSON, Peter. Panofsky, Suger e St.-Denis. in: Journal of the Warburg and Courtauld Institute, vol. 50 (1987), pp. 1-17. 21 PANOFSKY, Erwin. O abade Suger de Saint-Denis. in: O significado das artes visuais. Editora Contexto, São Paulo, 2014 (1955), p. 149-190. Ou como Introdução ao Abbot Suger – On the Abbey of St.-Denis and its arts treasures, Princeton University Press, 1979 (1946), p. 1-39. A partir de agora referenciado a partir da edição mais recente, de 2014.
19
Em primeiro lugar, Suger é descrito como patrono , “o homem cujo prestígio e 22
iniciativa possibilitam a realização da obra de outros homens” . A diferença e, logo, a 23
unicidade de Suger em relação aos outros patronos anteriores a ele seria, segundo
Panofsky, reside no fato de que ele teria escrito um compêndio considerável acerca de
seus próprios feitos.
Em segundo lugar, o personagem não poderia existir sem seu contexto: a França
do século XII. “Pai da monarquia francesa”, conselheiro de reis, regente fiel e grande 24
favorecedor da aliança entre a Igreja e a coroa, Suger ocupa um lugar central na história
francesa e, sendo ele seu produto mais bem acabado, ela não seria a mesma sem sua
existência (pelo menos é o que Panofsky deseja argumentar, e, como advogaremos,
Suger também).
Passemos ao “homem de gênio”: alguém profundamente ativo, com dois
propósitos habilmente delineados e bem orquestrados. Fortalecer o poder da coroa da
França e engrandecer a abadia de Saint-Denis. Segundo Panofsky, o apoio de Suger aos
Capetos residiria no tripé Deus-Saint-Denis-Monarquia, com a abadia enquanto
símbolo-intermédio da unidade espiritual do reino e de sua autoridade, uma vez que
conservava as relíquias dos santos protetores da França, os corpos reais e as regalias,
além de ter sido o lugar por excelência da educação de reis, príncipes e outros grandes
franceses . 25
22 Segundo a Enciclopédia Linguística Garzanti alguns significados de funcionalidades distintas são comumente associados à etimologia da palavra patrono, a partir de sua raiz patronu(m) – derivada de pater, patris e padre, em latim: 1) que desenvolve uma função diretiva e atribui funções; 2) que é o proprietário; 3) que é o capitão; 4) santo padroeiro. (https://www.garzantilinguistica.it/ricerca/?q=patron%201 – acesso em 30/05/2018). Relacionado a esse, a Enciclopédia nos oferece ainda outro verbete etimológico da mesma palavra, cujos resultados aparecem como segue: 1) santo reconhecido como protetor de um país, de uma cidade, de uma cidade ou similares. 2) defensor; em particular advogado que cuida dos interesses de uma parte em uma causa. 3) pessoa influente que sustém ou dá adesão a uma iniciativa, uma manifestação, uma obra de beneficência. 4) que possui direito ao patronato sob um benefício eclesiástico; 5) na cidade de Roma, cidadão influente que tutelava e defendia o cliente e os escravos libertos e às vezes os interesses de toda a comunidade estrangeira. (https://www.garzantilinguistica.it/ricerca/ - acesso em 30/05/2018); 23 PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 150. 24 PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 151. 25 PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 152 – A instituição referenciada por Panofsky é Saint-Denis de L’Estrée.
20
Portanto, ambas as defesas do abade seriam parte de um mesmo ideal, qual seja,
a harmonia entre a lei natural e a divina, aniquilando “todas as forças que conduzissem à
discórdia interna e obstruíssem” a autoridade central que ele ajudava a erigir . 26
Entra em cena, portanto, o Suger negociador. O homem que é capaz de tornar as
coisas possíveis. De aproximar a Coroa à Santa Sé, de neutralizar os inimigos, de atuar
como intermediário entre Luís VI e seus adversários; de ser, sobretudo, um “estadista”,
nas palavras de Panofsky. Sua atuação política seria a da reconciliação. Seu método, o
da paz. Enquanto regente, posto que assume quando Luís VII parte para a Segunda
Cruzada em 1147, Panofsky o vê como o responsável por manter a França unida,
evitando um “golpe de estado” arquitetado por Robert de Dreux, derrotando uma
invasão planejada por Henry II e alçando Saint- Denis a maestra de toda a nobiliárquica
francesa . 27
Para conseguir isso, teria lançado um ajuracio Franciae, um chamado
constituído pela união dos exércitos, pela exposição das relíquias na Catedral, pela
entrega da bandeira (oriflamme) ao rei. Símbolo a ser seguido, a unidade nacional passa
a ser representada em seu epicentro, Saint-Denis, e o próprio rei se torna vassalo da
abadia . 28
Quando Luís VII retornou da Terra Santa, Suger pôde lhe devolver um país
unificado e pacificado como raramente fora antes; e, ainda mais
miraculosamente, um tesouro bem fornido . 29
26 De certa forma, para além da ação política ou enquanto promotor de reformas, os próprios escritos de Suger indicam essa defesa da unidade e da coerência enquanto necessidade básica para a existência humana, pelo menos na Cristandade. Especialmente em seu exordium ao De consacratione e em sua persistência ao estabelecer suas obras como desejadas pelos santos e mártires, apoiadas pelos bispos e pelo rei, bem como em concordância com os habitantes do claustro, como veremos mais adiante. Da mesma forma, assegura textualmente a proteção de seus escritos, invocando o Espírito Santo e amaldiçoando de antemão aqueles que ousarem destruir seus textos e obras ou desonrar sua memória. Esse levantamento de Panofsky nos parece dos mais interessantes e ainda pouco explorado pela historiografia, com exceção de Françoise Gasparri (GASPARRI, Françoise. La politique de l’abbé Suger de Saint-Denis à travers ses chartres. in: Cahiers de civilisation médiévale. 46e année (nº183), jul-dez 2003, p. 233-45). 27 PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 154 28 Poderíamos inferir que a ideia de uma França unida sob um Estado forte, vencedor das adversidades e capaz de colocar em retirada um inimigo, invasor astuto e belicoso, poderia ser uma luminescência do próprio contexto em que o texto de Panofsky foi escrito e do ano de sua primeira publicação, 1946. Isto é, uma avaliação em retrospecto da situação de desamparo da França e sua vulnerabilidade política e territorial frente ao exército alemão durante os primeiros anos da segunda guerra mundial. 29 PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 155. Tal ponto será retomado no final do texto, quando Panofsky caracteriza Suger de “patriota”, cuja ambição maior foi a de harmonizar e engrandecer aquilo
21
Aqui, emerge a única aparição do Suger feroz: para defender a França unida e a
proeminência de Saint-Denis, seria capaz de enfrentar nobres locais (“tiranos”, para
Panofsky) e recomendaria para isso, inclusive, o uso da força. Mas, apenas para
defender seu senso de “humanidade e justiça”.
Para compreender a astúcia política de Suger, Panofsky aplica um método
interessante, apesar de questionável: passa a observar suas ações em Saint-Denis, daí em
diante tomadas como um microcosmo do reino capetíngio, tendo como premissa que
todas ressoavam a atuação abrangente do abade. Surge, então, a sexta imagem, o
administrador. Panofsky nota a habilidade de Suger de avaliar sabiamente o estado das
coisas e, em seguida, partir para sua recuperação. A metáfora que utiliza é a da
passagem de um domínio estéril para a fertilidade, simbolizando a recuperação da vida
da abadia que teria se esvaído pela ineficácia dos antecessores . 30
Contrariamente, Suger teria sido um supervisor rigoroso, presente . Após 31
“vasculhar documentos, possessões e cartas de imunidade”, aberto processos canônicos
para assegurar os limites e os cofres dos domínios, mantido a estabilidade física e legal
de Saint-Denis, iniciaria os processos de reconstrução e de reabilitação do local.
Entra em jogo o edifício. O novo prédio ou o projeto de Suger. Para iniciar o
percurso do leitor pela nova Catedral, Panofsky escolhe reavaliar uma antiga intriga: a
de Suger com São Bernardo.
O autor lança, então, os fundamentos da abordagem teórica que o seguiria ao
descrever os embates entre Suger e Bernardo como dois modos de ver e pensar a vida
que consideraria mais precioso em seu tempo, a sua igreja e a monarquia capetíngia (PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 189). 30 PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 157. É notável que, no texto, recuperar domínios (expressão branda utilizada por Panofsky) signifique erguer muros, fortalezas, paliçadas e, ademais, perseguir e derrubar os opositores ou inadimplentes. Isso é interessante porque o método de atuação, tal como Panofsky o caracteriza, seria o do arranjo, o do diálogo e exame. De certa forma, por mais que se tenha clareza sobre as motivações políticas e dos jogos de interesses nos quais Suger estaria imbricado, ainda existe uma leitura heróica de seus feitos, de modo que suas ações e projetos são considerados coesos; e suas causas, pelo menos no que diz respeito a manutenção de alianças, justa. Poderíamos questionar se isso não se deve a uma concepção ou imaginário do período medieval como caótico e violento, no qual se tomaria como excepcional, fora do convívio cotidiano, qualquer prática de conciliação, mesmo quando esta acontece para aumentar a força ou fazer frente a um inimigo poderoso. Mesmo no caso da expulsão das freiras de Argenteuil, de quem a priora responsável era Heloísa, em meio aos enfrentamentos entre Bernardo e Abelardo, Panofsky defende que Suger teria agido de boa-fé e com embasamento legal e moral. 31 “Percorria os domínios, traçava planos, cuidava dos detalhes, aproveitava as oportunidades”. (PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 159).
22
monástica no período , e não apenas meras disputas sobre o lugar da beleza e dos 32
ornamentos na vida dos monges. Isso é importante porque ao ser descrita dessa forma a
disputa entre dois gigantes do século XII ultrapassa as proporções locais e as restrições
de seus domínios eclesiásticos e se transforma em duas teorias distintas que teriam
alcance para onde quer que se estendesse sua esfera de influência. No entanto, Panofsky
é cauteloso ao lembrar que ambos teriam maior interesse em conviver pacificamente,
realizando para isso mais acordos do que desavença a céu aberto . 33
O ponto crucial do desacordo se daria em torno do acesso dos leigos a “casa de
Deus” e em como ele influenciaria a vida dos habitantes do claustro, tornando-a mais,
ou menos, austera. Ao citar alguns textos de Bernardo (Exordium Magnum Ordinis
Cisterciencis ou Apologia Willelmun abbatem Sacti Theodorici), Panofsky identifica os
argumentos segundo os quais aquele definiria a maneira própria de se apresentar uma
igreja e as regras que deveriam guiar a reclusão monástica. Porém, observa que para
Suger “nada podia estar mais longe do [seu] espírito do que manter os leigos longe da
casa de Deus...” , uma vez que o propósito para a reforma que empreendeu seria o de 34
justamente aumentar a igreja para receber e acomodar confortavelmente os visitantes
não eclesiásticos e os peregrinos, tema que retomaremos mais adiante.
Nesse tópico, Panofsky expõe aquilo que nos parece mais caro a seu texto (e que
é a coluna vertebral dessa dissertação): a preocupação do abade de Saint-Denis com a
32 A questão espinhosa da disputatio ou da controvérsia da arte no século XII foi abordada por Conrad Rudolph da seguinte maneira: conduzida por São Bernardo, a disputa evidenciava dois extremos monásticos – a autoridade dos cistercienses e o modelo dos beneditinos de Cluny –, dos quais Suger teria sugerido uma terceira via moderada. Dessa forma, mesmo não renunciando ao ambiente reluzente pelos materiais preciosos, ao acesso dos leigos e às festas religiosas, à riqueza litúrgica e a qualidade de vida dos monges, Suger encontraria justificativa para suas obras nas honrarias a Deus e aos santos e no cumprimento de suas vontades absolutas, manifestas na forma de milagres durante o andamento das reformas. Sem contrariar os princípios de Bernardo, cuja concepção de arte partia do pressuposto de uma distração desnecessária cuja materialidade afastaria os sentidos dos monges reclusos da contemplação divina, Suger reintroduziria o esplendor e a preocupação com as formas pelo propósito da elevação ou ascese através da presença decorativa. (RUDOLPH, Conrad. Bernard of Clairvaux’s Apologia as a description of Cluny, and the controversy over monastic art. Gesta, vol. 27, nº ½, Current Studies on Cluny, 1988, p. 125-32). Para outros desdobramentos da obra de Conrad Rudolph, ver nota 49 deste capítulo. 33 Tal acordo seria, segundo Panofsky, em decidirem em conjunto sobre a queda de Etienne de Garlande, empecilho do acesso de Bernardo a corte capetíngia (PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 160-1). 34 PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 164.
23
conformidade dos paramentos, ornamentos, da beleza e do esplendor da igreja com seus
planos e sua conservação futura . 35
Ao programar suas procissões, translados, cerimônias de fundação e
consagração, Suger antecipava a habilidade teatral do moderno produtor de
cinema ou promotor de feiras internacionais e, ao adquirir pedras preciosas e
pérolas, vasos raros, vitrais, esmaltes e tecidos, prefigurava a rapacidade
desinteressada do diretor de museu contemporâneo; até nomeou os primeiros
antepassados conhecidos de nossos curadores e restauradores . 36
Saint-Denis, “oficina de Vulcano”. Parece-nos muito interessante que tanta
atenção tenha sido dada à associação proposta por Panofsky entre o mundo artístico
(isto é, as reformas empíricas promovidas por Suger) e o mundo filosófico , e tão 37
menor tenha sido a reverberação desse comentário sobre a preocupação ou o programa
mais amplo de Suger.
Esse projeto ultrapassaria as reformas no prédio da Catedral para englobar outras
esferas da manipulação dos materiais naturais e de suas preciosidades para
ornamentação do mundo humano e oferenda ao mundo divino.
Ainda é preciso escrutinar as construções do abade, arquitetônicas e textuais, não
para alinhá-lo, bem como sua obra a uma história vindoura, a patronos renascentistas, a
curadores de museus ou a palimpsestos contemporâneos. Mas, sim para que se possa
perceber de que forma foi possível, por meio da escrita e da manipulação de objetos,
que Suger se projetasse como um centro gravitacional de poder no século XII. Pelo
menos é isso que a literatura mais recente sobre o tema parece sugerir e que
desenvolveremos no próximo capítulo . 38
35 Panofsky chega a declarar que, para um abade do século XII, Suger excedia a devoção conspícua de seu tempo tendo reações quase “estéticas” diante das cerimônias religiosas e da exposição dos objetos preciosos em seu interior. (Idem, ibidem.) 36 PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 165. 37 Ao neoplatonismo que teria ressurgido no século XII, principalmente à escola de Hugues de Saint-Victor e às leituras que Suger teria feito no período de sua formação do Hierarquia Celeste de Pseudo-Dionísio, traduzido por João Escoto. 38 Especialmente BOZÓKY, Édina. La politique des reliques – de Constantin à Saint-Louis, Beauchesne Éditeur, Paris, 2006. E MARRIAUX, Pierre Alain. Mettre en scène le souvenir du fondateur laïc. In : MEHÚ, Didier (org.). Mise en scène et mémoires de consécration de l’Église dans l’Occident médiéval. Brepols, 2008, p. 327-347.
24
Imediatamente, não nos parece aleatório que a próxima faceta do abade a
aparecer no texto de Panofsky seja a de littérateur. É a partir dela que o autor busca
localizar a fonte de inspiração de Suger: em sua formação letrada e nas leituras
filosóficas que teria feito e que culminariam em seus poemas anagógicos e no novo
edifício material.
Segundo Panofsky, Suger interpretaria a arte como um meio, algo que colocaria
(e até imporia) um trânsito, um movimento para a alma humana em direção a Deus. Ela
se converteria em símbolo, algo perceptível que possibilitaria entrever aquilo que não
era possível contemplar plenamente.
Enquanto “patrono das artes”, Suger se transmutaria em maestro, aquele que
colocaria em harmonia e concordância a “disparidade entre as coisas materiais e
divinas”, conflituosas pela origem inferior da materialidade. Nessa condição, a arte
irradiaria e seria um guia ascendente para os homens levados ao divino pelo “êxtase da
beleza”.
Em oposição a São Bernardo que a considerava um perigo, uma força encantada
ou uma tentação, a arte para Suger se transformava em espetáculo, no qual a experiência
religiosa adquiria vivacidade, enargeia, a partir do planejamento empreendido por
Suger . 39
Para defender suas pretensões, o Suger de Panofsky coloca-se sob a
concordância dos monges de seu claustro. Insere-se, sobretudo, sob a autoridade
histórica e religiosa de uma teoria filosófica que remontaria ao próprio santo tido como
fundador de sua igreja, o que excluiria toda possibilidade de questionamento e
insinuação de ilegitimidade por parte de seus acusadores . 40
Porém, defender-se não encerraria o assunto. Panofsky magistralmente conclui
seu texto (que nada mais é do que uma introdução a toda obra de Suger) lembrando a
seus leitores que duas facetas mais são necessárias para que compreendamos seu
39 Panofsky, E. op. cit. 2014 (1955), p. 172-178. 40 PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 166-180. O argumento da necessidade de uma defesa ou justificação para um grande empreendimento cujas preocupações centrais seriam consideradas de cunho artístico ou estético foi alvo de muitas críticas pelos sucessores de Panofsky, como já vimos acima. Kidson, especialmente, repudia essa ideia e parte para uma análise das habilidades sedutoras de Suger para convencer seu público, retomando uma indicação do próprio Panofsky conforme comentamos. Porém Kidson não lhe dá os méritos, mas leva o leitor a pensar que propõe uma tese em sua oposição, na qual chega a qualificar Suger e suas estratégias de convencimento como proto-jesuíticas. Ver: Kidson, Peter. Panofsky, Suger and Saint-Denis. Warburg Institute, vol. 50, 1987, p. 1-17. Retomaremos esse texto mais abaixo.
25
significado histórico: sua relação com a memória e sua capacidade de liderança. Este
último ponto foi alvo de críticas agudas por parte da historiografia subsequente, que viu
nos argumentos de Panofsky um exagero do protagonismo de Suger no surgimento do
estilo gótico, deslocando-o para a esfera cultural, para as inovações matemáticas ou
mesmo para outros personagens exponenciais do século XII . 41
Contudo, é forçoso notar que, mais uma vez, ainda há desdobramentos possíveis
das indicações de mais de setenta anos atrás. Primeiro, a percepção de que em seus
escritos Suger operaria uma auto-obliteração de si enquanto indivíduo isolado,
alinhando-se unilateralmente à história de sua abadia. E, uma vez que buscava
equipará-la à monarquia francesa, o próprio Suger cola sua existência à sua versão da
história da França capetíngia.
Tal alinhamento só seria possível através da participação ativa do abade na vida
de sua comunidade e em sua doação incessante para melhorá-la e embelezá-la. Assim se
formava a consonância defendida por Suger entre o antigo e o novo, pacificados pela
tríade Deus (cuja proteção especial era conferida pelo beneplácito das relíquias e dos
patronos ), Saint-Denis (agora intrinsecamente ligada à existência e imagem de Suger) 42
e a monarquia capetíngia (da qual o abade se tornou, inclusive, biógrafo, ao escrever a
vida de Luís VI e de Luís VII) . 43
Em segundo lugar, para que essa associação ocorresse, o abade indicaria em seus
escritos ou memórias todas as homenagens e celebrações que deveriam preservá-lo do
esquecimento (de seus monges e de seus reis). São eles: a celebração de seu aniversário,
as honras da reconstrução e de sua consagração, os versiculi que manda esculpir nas
paredes da nova igreja e seus retratos como doador . 44
Parece-nos que essa abordagem aglutinadora sobre Suger sobrevive na maneira
tradicional de interpelar o tesouro da Catedral e a memória da reforma empreendida no
século XII. Nesse sentido, um catálogo de 1981 eternizou uma exposição realizada no
41 Especialmente em KIDSON, Peter. op. cit. 1987. e RECHT, Roland. Le croire et le voir. L’art des cathédrales (XIIe – XV e siècles). Collection Bibliothèque des Histoires, Gallimard, 1999. 42 Sobre isso, ver o capítulo 2 desta dissertação. 43 Segundo Henri Waquet, a biografia de Luís VI (a quem Suger conhecia desde a infância) teria sido escrita entre os anos 1143-4. Já a biografia de Luís VII, herdeiro do trono em 1137, apenas foi iniciada e permaneceu inacabada pela morte de Suger, em 1151. (WAQUET, H. Vie de Louis le Gros. Paris: Les Belles Lettres, 1964 (2ª edição). apud: RABELO, Marcos M. op. cit. 2005, p. viii). As anotações de Suger para a biografia de Luís VII foram compiladas, editadas e traduzidas por Françoise Gasparri, em “Histoire de Louis VII”, in: Suger: Oeuvres, tome I. Paris: Les Belles Lettres, 1996, pp. 156-177. 44 PANOFSKY, E. op. cit. 2014 (1955), p. 182-89.
26
museu Metropolitan em Nova York, sob os auspícios daquilo que Philippe de
Montebello, diretor do museu à época, chamou de “what was to be one of the most
important church treasuries in Europe” e “Suger’s liturgical furnishings and treasury
art”. Ou seja, a exibição ressaltava aspectos da atividade prodigiosa de Suger em
Saint-Denis ou “Suger’s underlying program for the enlargement and enrichment of the
royal abbey, as documented in his writings (...)” . 45
Para abrir a série de artigos que compuseram o catálogo Sumner Mckinght
Crosby, grande especialista no tema, lançou a tônica de todo o empreendimento:
The history of the abbey of Saint-Denis is a long one, with many bright moments, but
certainly none was brighter than the period of its rebuilding in the twelfth century under
its illustrious abbot, Suger . 46
O artigo de Sumner Mckinght Crosby se inspira no De Consacratione escrito por
Suger bem como pela leitura multifacetada que Panofsky empreendeu dele, e busca
esmiuçar as circunstâncias e o programa que teriam permitido a realização da reforma e
sua narrativa tal como fixada pelas tintas de Suger. Por outro lado, a autora ressalta as
diferentes poéticas ou características estéticas que a invenção do novo estilo teria
conjecturado enquanto arte, memória e legado de Suger para a posteridade.
Dessa forma, a ligação identificada por Panofsky entre a instituição eclesiástica,
a monarquia francesa e a figura de Suger enquanto indivíduo excepcional e condensador
de potências variadas para a criação de algo novo, se transformam na tônica da
discussão de Crosby.
Para ela, retomando também o prefácio de La Marche e as edições do texto no
século XIX, Suger seria um dos homens mais importantes da história da França. Isso
porque ele condensaria em si as características consideradas fundamentais de um
45 CROSBY. Sumner McKnight. Abbot Suger, the abbey of Saint-Denis and the new Gothic style. in: CROSBY, Sumner Mcknight (org.) The Royal Abbey of Saint-Denis in the time of abbot Suger (1122-1151). The Metropolitan Museum of Art, New York, 1981, p. 13-22. A publicação do catálogo foi acompanhada pela realização de um simpósio, editado por Paula Lieber Gerson: GERSON, Paula L. (ed.), Abbot Suger and Saint-Denis – A symposium, The Metropolitan Museum of Art, New York, 1987 (1986). 46 CROSBY. Sumner McKnight. op. cit. 1981, p. 13. Para uma leitura oposta a De Crosby, ver INGLIS. Erik. Remembering and forgetting Suger at Saint-Denis, 1151-1534: as abbot’s reputation between memory and history, Gesta, 42, 2015, p. 219-243. O autor se baseia nos Anais do monastério de Saint-Denis e na Grandes Chroniques de France. Para leituras mais aprofundadas sobre a relação entre memória e esquecimento no período medieval ver: GEARY, Patrick. Phantoms of remembrance: memory and oblivion at the end of the first millenium, Princeton University Press, 1944.
27
homem de ação política cujos feitos valem ser contados. Um administrador hábil,
homem de negócios, conselheiro leal e amigo íntimo dos homens mais poderosos do
reino, regente, pater patriae, historiador e patrono artístico, além, é claro, de ser monge
e abade de uma das casas eclesiásticas mais importantes do século XII.
O percurso que Crosby realizou reiterava e ampliava essa abordagem
panofskiana de Suger: de um indivíduo notável, passando por um programa ou projeto
arquitetônico e pela construção de um novo estilo, até a análise dos elementos
arquiteturais enquanto simbólicos de um discurso teológico e político mais amplo da
aliança entre o poder real, eclesiástico e divino.
Crosby segue a linha de raciocínio de Panofsky ao levantar os objetivos que
teriam guiado Suger em sua empreitada, quais sejam, fortalecer a monarquia francesa e
aliá-la a um papado respeitável. Através do estabelecimento de uma autoridade central
e estável, tanto secular quanto espiritual, Suger teria a oportunidade de glorificar
Saint-Denis pelo seu embelezamento e ascensão como exemplo excedente a todas as
outras. Para que seus planos tomassem forma ele teria que criar algo novo e original, o
gótico . 47
Fica claro, portanto, o vínculo programático que une a pesquisa de Panofsky e de
McKnight. Apesar de procurarem por coisas diferentes no De Consacratione (enquanto
o primeiro deseja encontrar a origem do estilo gótico e suas imbricações filosóficas e
poéticas, a segunda procura compreender em que consistia esse novo estilo e o que ele
propunha como novidade estética arquitetônica), partem do mesmo pressuposto da
excepcionalidade de seu autor. A diferença entre os dois artigos se refere ao aprofundamento que Crosby dá à
reputação de Suger, construída através das muitas viagens (que ela enumera e
caracteriza) enquanto acompanhante ou representante diplomático da monarquia
francesa ou do papado. Para a historiadora, isso teria feito a diferença na construção de
uma personalidade única para Suger em meio a seus contemporâneos. O que incentiva
os artífices, trabalhadores e potenciais doadores do período a contribuírem com a
reforma que empreendeu.
47 CROSBY. Sumner McKnight. op. cit., 1981, p. 15. Sobre a mesma tópica, ver: QUÍRICO, TAMARA. Saint-Denis: anúncio de um novo tempo, Revista Universa – Ciências Humanas, Letras e Artes, Brasília, v. 1, jun., 2002, p. 131-146.
28
Muito interessada em compreender as inovações arquitetônicas da nova
construção, a autora nota que o edifício seria capaz de demonstrar o conhecimento de
Suger acerca da tradição artística do século XII, que ele poderia ter observado e
aprendido também graças a essas viagens . Para Crosby, o novo edifício é, na realidade, 48
uma integração com o antigo, realizada graças aos milagres que demonstrariam o apoio
e intervenção celeste na construção.
Porém, as bênçãos divinas teriam vindo de encontro às ações humanas. Sua
existência não seria possível sem a integração que Suger teria com os monges de seu
claustro, com estudiosos, teólogos e artífices do período para a elaboração do programa
da abadia. Nem sem sua habilidade de agregar e administrar a empreitada,
estabelecendo uma rede de trocas e de comércio, numa espécie de workshop em
Saint-Denis sob sua supervisão. Para ela, o novo estilo só foi possível porque Suger era
“one of those great patrons who could attract the outstanding talents of his time to work
for him.” 49
Por fim, presenteando o leitor com fotografias e esquemas deduzidos a partir de
escavações que teriam descoberto uma lógica ou planejamento inicial às obras , a 50
autora narra o nascimento daquilo que chama “the first truly gothic structure”. Seu
florescimento na Île-de-France a partir da consagração da primeira parte do edifício
reformado em 14 de junho de 1144 é descrito como se segue:
48 “He must have studied with his own eyes the newest Romanesque abbeys with their richly carved portals and capitals. When, about 1135, he decided to begin the building of the massive new entrance to the church at Saint-Denis, he knew where to seek out the best talents available. He could and did call, as he recorded, artists from many regions. His reputation as an able administrator and enthusiastic abbot made the proposition to participate an attractive one.” – CROSBY. Sumner McKnight. op. cit. 1981, p. 17 49 Na referência completa, Crosby termina: “He was even more astute in the degree to which he must have left them to their own devices. His good management provided the funds for large numbers of workmen and artists, as well as for the most costly materials. His bold aspiration encouraged excited responses. The result was Saint-Denis and the Gothic style. We cannot reconstruct in every detail what Suger’s accomplishments at Saint-Denis actually were, but we are able to appreciate the intensity of his vision, his extraordinary energies, and the wisdom that he displayed as he brought together his international workshop and encouraged it to create a new style.” – Idem, p. 22. Sobre o conceito de workshop internacional ver LOBRICHON, Guy. Aurora e crepúsculo de uma arte internacional (1320-1420); in: DUBY, Georges. LACLOTTE, Michel. História artística da Europa – A idade Média, t. II, São Paulo, Editora Paz e Terra, 1998, p. 366-397. Para Lobrichon só seria possível falar de uma arte internacional ou de um workshop internacional na medida em que uma ordem distinta se afirmaria em finais do século XIII, a da preponderância política das cortes que eclipsaram a os núcleos de criação tradicionais dos claustros e catedrais, e contribuíram para a formação de oficinas independentes cujos artistas eram laicos que passariam a servir aos governos e às nações. Tal abordagem é passível de críticas, mas coloca em evidência mais uma vez o caráter fenomenal de Suger, ao datar como norma no século XIV aquilo que o abade teria conseguido realizar no século XII, se seguirmos as considerações de Crosby. 50 Idem, p. 18-21.
29
This choir, with its nine adjoining chapels open the entire church by an
audacious use of relatively new structural device, the rib-vault, and lit by
sixteen great stained-glass windows, whose colored beams of light were
reflected from the bright tesserae of the mosaic floors gold, enameled and
jeweled decorations of the altar, was the truly first Gothic structure . It must 51
have amazed and delighted Suger’s contemporaries, who returned to their own
domains eager to emulate his example. Within the next thirty years most of the
Early Gothic cathedrals of the Île-de-France had been begun and the new style
proclaimed that was so unlike anything from the past that it was called opus
modernum, modern architecture, and so French that it came to be know as
opera francigena. It was not until the fifteenth century that the new humanists,
men of the Renaissance, dubbed it barbarian and called it Gothic.
É interessante notar que o que a autora caracteriza como gótico é uma junção de
três elementos principais: o uso arquitetônico da abóboda de aresta enquanto estrutura
dominante na construção, a presença de vitrais que alterariam a luz natural e, nosso
objeto de interesse por excelência, a decoração rica em materiais preciosos e objetos
litúrgicos, sagrados e decorativos dos altares. Sobre esse último aspecto, apenas
recentemente a bibliografia especializada demonstrou um interesse crescente sobre a
importância desses objetos; não só na consolidação de outra apresentação para as igrejas
medievais, mas também para a consolidação política e social de uma nova forma de
poder dessas instituições e suas redes de relacionamento. E por que esse estilo era tão radicalmente diferente? Crosby explica: o que o
fazia moderno era sua habilidade em tornar visível a hierarquia celeste, a proeminência
da luz e dar existência material aos vários níveis de literatura sacra; sua capacidade
simbólica, em suma. Para ela, a construção de Suger evocava respostas emocionais
através da arquitetura, assim como realçava a distinção e integração do mundo material
e espiritual ao jogar com os contrastes entre “’exposição literal e indagações intuitivas”
em seu programa iconográfico. Adentrar o edifício seria uma experiência no sentido
cognitivo do termo, de desvendar de forma ascendente o universo imaterial e as
hierarquias celestes, para estar em trânsito entre a Jerusalém celeste e a morada terrena
51 Ver: ALTET, Xavier Barral i. Reliques, trésors d’églises et création artistique. In: DELORT, Robert. (dir.) la France de l’an Mil. Éditions de Seuil, Paris, 1990, p. 184 e 213; e o Capítulo 2 dessa dissertação.
30
de Deus. De forma anagógica o visitante poderia desvendar os simbolismos e as
intenções de seu idealizador, que só teria conseguido levar tal programa a cabo pelo
beneplácito divino e pela intervenção dos santos.
A leitura empreendida aqui dos textos de Panofsky e de Crosby busca realçar
outros caminhos que foram, por vezes, obliterados em nome da grande polêmica que
eles fizeram germinar sobre as origens filosóficas e a relativa autonomia do estilo gótico
. É sabido esses textos fizeram surgir também discussões que buscavam determinar o 52
grau de participação de apenas um indivíduo para a promoção de uma novidade artística
e cultural tão vasta e profícua, como foi o gótico . 53
Nosso interesse no próximo tópico deste capítulo é demonstrar que parte do
exagero que se atribui a Panofsky deriva justamente do crédito que este confere não só
ao biógrafo de Suger, Guilherme de Saint-Denis, mas também da própria maneira como
Suger constrói a si mesmo nos textos que escreveu.
52 Conrad Rudolph retoma essa questão em 1990 para afirmar que, na realidade, Suger teria contato com a ajuda intelectual de Hugues de Saint-Victor para formular o plano iconográfico de Saint-Denis, tão complexamente exegético. Para o autor, tratava-se de reivindicar o valor espiritual das despesas artísticas, situando-as na interpretação agostiniana e na teologia dionisiana, através de Hugues. RUDOLPH, Conrad. Artistic Change at St-Denis: Abbot Suger's Program and the Early Twelfth Century Controversy over Art (Princeton Essays on the Arts), Princeton University Press, 1990. 53 Em 1987, Peter Kidson publicou um artigo pelo Instituto Warburg no qual ataca, parte a parte, as colunas interpretativas de Panofsky sobre a relação entre o advento de Saint-Denis e o neoplatonismo dionisiano de Suger. Legando ao exagero interpretativo tal associação, Kidson afirma que as transformações de Suger poderiam ser facilmente explicadas por uma noção de gosto do abade, pela contratação de um arquiteto cuja genialidade teria oferecido as soluções técnicas que tornaram o empreendimento possível e pela demanda interna da abadia por justificação, o que resultaria nos escritos de caráter explicativo que conhecemos. Além disso, é preciosa para nós sua proposição dos fundamentos que, segundo advoga, teriam feito surgir Saint-Denis. Antes de mais nada, uma nova forma de apresentação, cuja dramaticidade perpassa a reformulação dos altares, novos abrigos dos relicários, as formas poligonais com capelas circunscritas e os vitrais. Tudo isso numa espécie de compromisso estrutural cuja funcionalidade seria abrigar aquilo que iria dentro, criando uma nova visualidade e projeção do edifício. Voltaremos a esse ponto mais adiante. (Kidson, op. cit. 1997, p. 1-17). Para uma discussão bibliográfica acerca do neoplatonismo sugeriano, ver: GOMES, Vinicius Sabino. A origem do gótico nas ideias de Erwin Panofsky. Revista Escritos, vol. 20, nº 45, jul-dec. 2012, p. 359-388. Para Gomes, o artigo de Kidson surgiu como uma crítica à tônica do simpósio editado por Paula Gerson, que já foi comentado acima. Além disso, o surgimento do gótico foi motivo de disputa entre as nações europeias durante as primeiras décadas do século XX. Mapear essas discussões ultrapassa o escopo deste trabalho e poderia ser desenvolvido em uma pesquisa à parte, mas é possível afirmarmos que a definição do gótico enquanto opus francigenum, elaborada por Panofsky quando da ocasião de sua primeira publicação em 1946, pode ser vista pela defesa da originalidade da criação arquitetônica e fenômeno francês, em oposição às teorias pan-germanistas então em voga na historiografia da arte alemã pela ascensão do hitlerismo. O texto de Pierre Francastel, publicado pela primeira vez apenas um ano antes do texto de Panofsky, também critica o aspecto doutrinário das leituras germânicas do período, denunciando a maneira pela qual o regime nazista apropriava-se da história para a execução de propagandas. Sobre isso ver: FRANCASTEL, Pierre. L’histoire de l’art, instrument de la propagande allemande. Centre d'études européennes de l'université de Strasbourg - Éditions politiques, économiques et sociales. Libr. des Médici, 1945 [1940].
31
Sobre essa temática, Selene Candian dos Santos defendeu, em 2014, uma
dissertação de mestrado que buscou esmiuçar a construção retórica dos textos de Suger.
Sua intenção era medir de que forma a escrita de Suger poderia (e deveria) ser lida de
acordo com alguns gêneros retóricos clássicos e cristãos, como as artes do trivium e as
vitae. Para ela, a historiografia teria negligenciado os princípios de composição segundo
os quais os textos foram escritos, usando-os apenas como fonte de informação. A autora
defende, inclusive, que em gêneros epidíticos o escritor teria relativa autonomia para
escolher as virtudes que iria elogiar em seu protagonista. Dessa forma, ao considerar o
texto de Suger como um panegírico de si, caberia aqui uma ou duas palavras sobre as
questões que envolveriam a construção desse texto.
Ao descortinar as páginas do De Consacratione e realizar uma leitura de suas
estruturas, Candian invoca uma miscelânea de autores (desde Aristóteles, passando por
Cícero, Cassidoro até o abade Gauzlin) para desvendar de que forma o texto poderia ser
encarado como um programa intelectual. Seu objetivo é resolver a questão que
apresenta inicialmente: o conflito ou disparidade entre as coisas humanas e as divinas.
Nos bastidores narrativos seria possível entrever que o modo como Suger
organiza sua narrativa diria respeito também à sua postura enquanto homem dono de
suas ações, mas que precisaria, em contrapartida, justificá-la para seus superiores e
subordinados. Por isso, a escolha do epidítico seria fundamental: as virtudes seriam
elogiadas na medida em que correspondem a feitos deliberados, movidos por boas
escolhas que geraram ações excelentes do sujeito agente . 54
Assim, a jornada heróica começaria com um problema. No caso em questão, o
da insuficiência do edifício existente para acomodar as pessoas (e os objetos) no início
do século XII – que o protagonista teria que se empenhar para resolver. Todos os
malefícios desse infortúnio seriam descritos (tal como numa ekphrasis) com clareza e
vivacidade, colocando diante dos olhos (em um exercício de enargeia) do leitor todo o
incômodo que teria gerado nos personagens envolvidos, angariando, portanto, sua
simpatia para a empreitada.
54 SANTOS, Selene Candian dos. Arte retórica em Ordinatio, De Consacratione e De Administratione de Suger de Saint-Denis, Dissertação de Mestrado defendida pelo Departamento de História, FFLCH, USP, São Paulo, 2014, p. 69-75.
32
Apesar de alcançar aquilo a que se pretende, o capítulo de Candian sobre o De
consacratione é passível de críticas, pois, entre outras coisas, procura enxergar no texto
um estilo que o ultrapasse e um pertencimento a uma lógica que lhe é externa.
Desse modo, Candian recai no modo analítico classificatório e falha em apontar
leituras singulares para Suger ou em oferecer amostragem suficiente para que seu texto
possa ser compreendido à luz de uma tradição pertinente ao seu círculo, seja temporal
ou espacial. Dito de outra forma, parece-nos que seus esforços se restringem a perceber
nos textos de Suger aquilo que chama de “estilo” e “retórica clássica” sem se aprofundar
nas fronteiras textuais ou na construção única do objeto sobre o qual se debruça . 55
Aqui, defendemos que o elogio ou construção de si, tal como vislumbrado por
Panofsky e defendido com veemência por Françoise Gasparri, pode ser um elemento
central na leitura contemporânea de Suger, bem como a atualidade de seu tema. Isso
porque retoma questões acerca do desenrolar e da construção biográfica, da autonomia
ou submissão do indivíduo em relação a seu contexto.
É sobre essa dialética que trabalharemos a seguir, isto é, de que forma a narrativa
de Suger sobre suas próprias obras perpassa a manipulação de objetos, tomados como
sagrados ou não, para a consolidação de uma memória ou legado de seu tempo como
abade em Saint-Denis.
55 Como contraponto a essa abordagem, referenciamos o excelente texto de Daniel Russo, O conceito de imagem-presença na Idade Média, publicado em português pela Revista da Universidade de São Paulo, em 2011 (número 165, p. 37-72).
33
CAPÍTULO 2:
Reordenando a Casa de Deus: um novo lugar para as maravilhas.
“Os acontecimentos e feitos realizados em um passado grandioso, porém obscuro,
exigem validação por meio de locais e objetos. As relíquias que têm essa função de validação ganham o
status de ‘monumentos’.” (Aleida Assmann)
2.1: Redescobrindo Suger: entre ações e explicações em De consacratione.
Alain Erlande-Brandenburg defendeu em 2001 que era possível fazer uma
leitura de Saint-Denis como um manifesto do abade Suger . Como acabamos de ver, 56
essa abordagem se situa na preocupação em traçar a origem e os fundamentos do estilo
gótico. Porém, algumas ideias do autor podem lançar outras perspectivas sobre o tema.
Para ele a arte deve ser compreendida como resultado de um processo que
articula ação e pensamento, ou seja, de reconfigurações de heranças a esquemas novos a
partir de um projeto ou programa que a sustente e defina, o que corresponderia a seu
caráter único. Do seu ponto de vista, “une oeuvre à fait conscience aux contemporains
que le monde n’est pas le même” . Isso porque ela produziria intensa reflexão e 57
possuiria um potencial criador que seria decisivo para a transformação histórica. O
palco privilegiado por ele para testar essas afirmações é Paris no século XII.
Considerada como local excepcional, o patrimônio desse contexto é analisado
seguindo alguns itens norteadores: o surgimento da arquitetura gótica redefinindo o
espaço interior das igrejas medievais, o contexto da França do norte e sua relação com
um patrimônio monumental datado do período de Constantino, a transformação de uma
técnica - a ogiva - em um estilo preciso - o gótico e o jogo entre criação e destruição que
a articulação entre o antigo e o novo através das reformas coloca em cena.
Tais tensões seriam oriundas de um novo modo de trabalhar os materiais, que,
por sua vez, exigiria a presença e competência de profissionais de alto nível e um
56 ERLANDE-BRANDENBURG, Alain. Saint-Denis: le manifeste de l’abbé Suger. POIREL, Dominique (ed.). L’abbé Suger, le manifeste gothique de Saint-Denis et la pensée victorine. Brepols, 2001, P. 13-37. 57 Idem, p. 14.
34
programa bem definido. Essa seria, segundo o autor, a receita para a criação de
manifestos artísticos, como o caso de Saint-Denis.
Para analisar o resultado dos trabalhos de Suger, Erlande-Brandenburg propõe
uma leitura interessante de seus escritos. Em primeiro lugar defende que o abade
desejava perenizar os processos da criação artística tanto quanto o seu resultado final.
Em seguida, que era preciso justificar as despesas para a construção do santuário através
da explanação sobre o aumento do tesouro da abadia e da obra enquanto execução de
um planejamento detalhado e cauteloso . 58
No entanto, o que o autor identifica como elemento central deste novo projeto
são os objetos de tipo ornamenta ecclesiae. Assim, os vitrais, as esculturas, as
inscrições e os objetos do tesouro da catedral seriam responsáveis por unificar o projeto,
sua execução e sua projeção para a posteridade, bem como especificariam a raridade da
empreitada e a raridade da equipe. Dentre esses objetos, o autor contabiliza ao menos
quatro retratos de Suger encomendados por ele mesmo para figurar na Catedral e 59
quatorze inscrições que se referem a ele, sejam nos muros ou nos objetos.
Erlande-Brandenburg conclui que se tratava da criação de uma esfera de harmonia
através da obra física e do texto, da qual a liturgia seria um elemento estruturante.
Na análise que Erlande-Brandenburg faz de Suger o abade seria um dos
primeiros homens da Idade Média que projeta a si mesmo na História como uma
imagem criadora, como fenômeno de estabelecimento visual da concordância entre o
Antigo e o Novo Testamento. Suas preocupações seriam de estabelecer a síntese e a
concordância dos elementos que reúne para inserção no novo templo, de maneira a
estabelecer uma memória viva dentro do edifício. A concepção da obra para Suger seria,
do ponto de vista de Erlande-Brandenburg, a vontade de integração do antigo com o
novo, da execução da obra com a história da abadia e a tradição na qual ela se inseria.
Duas citações bastam para que o argumento se clarifique:
L’Église n’est pas intemporelle, nous le savons. Le dogme est éternel, mais son
expression change. Suger qui réintègre, qui assimile tout la mémoire d’une grande
58 Idem, p. 19-22. A dimensão d a construção textual do trabalho de Suger foi largamente explorada por Françoise Gasparri e será discutida mais adiante 59 São eles: a porta de bronze, o tímpano central, aos pés da cruz e o vitral da Árvore de Jessé.
35
partie d’humanité, l'exprime dans un style contemporaine c’est en quoi je crois que
Saint-Denis est un grand manifest . 60
E mais diante: “(...) la situation de Suger est tout à fait particulière. Il crée mais
il intègre la mémoire et l’actualise. Il ne fait pas oublier, qu'il’ en change le sens” . 61
O escrito de Suger, portanto, teria como objetivo primeiro o de expressar
narrativamente a integração já visível de seu projeto com as estruturas antigas de
Saint-Denis. Nesse jogo entre criação e tradição a conservação e seleção de objetos seria
fundamental, tais como as relíquias e os corpos dos santos. Veremos mais adiante como
e por que esses objetos eram fundamentais. Por ora, basta relembrar que a tradição de
elevação das relíquias para a contemplação dos fiéis e peregrinos pode ser rastreada ao
século IX em Saint-Germain de Près e que, em Saint-Denis durante o abaciado de
Suger, as relíquias são retiradas de suas criptas, acomodadas em relicários de matérias
preciosas e expostas em altares ou locais previamente separados para esse fim.
Il ne fait guère de doute que le programme de l’abbé médité dès l’origine des travaux,
avait été expressément signifié au maître d'oeuvre, que eut à coeur de trouver une
solution harmonieuse aux différentes contraintes . 62
Por fim, Saint-Denis se constitui, na leitura de Erlande-Brandenburg, “numa
síntese transcendental entre o pensamento e a matéria”, uma associação material e
visual cujo objetivo é criar a sensação de completude e coerência inerentes à harmonia.
Para tanto, a construção de altares, a elevação das relíquias, os objetos de ourivesaria, as
peças doadas pelos patronos e a luz consistiram no meio unificador material, artificial
de fato, mas transcendente para essa forma arquitetural nova que se queria apropriada e
tradicional . 63
Andreas Speer publicou, em 2012, um artigo integrante do The Oxford
Handbook of Medieval Philosophy, intitulado Aesthetics . Ali o autor retoma 64
60 POIREL, Dominique (ed.). L’abbé Suger, le manifeste gothique de Saint-Denis et la pensée victorine. Brepols, 2001, Discussions de la matin, p. 84. 61 Idem, p. 89. 62 ERLANDE-BRANDENBURG, op.cit. p. 24. 63 Idem, p. 26. 64 SPEER, A. Aesthetics, in: J. Marenbon (ed.), The Oxford Handbook of Medieval Philosophy (Oxford: 2012), 661-84
36
discussões já lançadas em 2005 no ensaio Is there a theology of the Gothic Cathedral?
A re-reading of abbot Suger’s writings on the abbey church of Saint-Denis . O que nos 65
parece digno de marca é que, em ambos os textos, Speer desloca a questão teológica ou
filosófica da reforma em Saint-Denis para o campo da liturgia ou da funcionalidade do
edifício como local de encenação ritual como preocupação primordial dos homens
medievais, taxando as interpretações anteriores como projeções modernas dos
estudiosos, de uma relação entre arte e filosofia que não estaria no cerne das concepções
medievais. O problema hermenêutico estaria na necessidade de uma relação causal entre
uma ideia criativa dominante e os princípios práticos ou formais da obra de arte. Nessa
crítica, Speer inclui também Otto von Simson e seu The Gothic Cathedral: origins of
the Gothic architecture and the medieval concept of order , publicado pela primeira 66
vez em 1956 pela nova-iorquina Pantheon Books e reeditado muitas vezes desde então
pela Princeton Univ. Press. O deslocamento realizado por Speer será fundamental para o
desenvolvimento de nosso próximo tópico.
Num artigo curto intitulado Les écrits de Suger comme source d’une esthétique
médiévale - une relecture critique Speer analisa o caso de Suger e formula os 67
primeiros passos da crítica que desenvolverá ao longo dos anos. Para ele, as publicações
existentes sobre o tema eram fascinadas com a “metafísica da luz”, de caráter não
comprovável pela documentação sugeriana porque se apoiavam nos conceitos de
“hábitos mentais” ou “coordenadas mentais” . O objetivo de Speer nesse texto é 68
acentuar as três principais dificuldades que identifica nessa abordagem.
Para ele, o tripé dos textos de Suger (De Administratione, De Consacratione e
Ordinatio) deveria ser compreendido pela sua coerência interna e pelo desaparecimento
do homem político de Suger, enquanto o monge e o abade aparecem como protagonistas
65 SPEER, Andreas. Is there a theology of the Gothic Cathedral? A re-reading of abbot Suger’s writings on the abbey church of Saint-Denis, in: The mind’s eye: art and theological argument in the medieval west. Jeffrey Hamburger e Anne-Marie Bouché. (org.) New Jersey: Princeton University Press, 2005. 65-83. 66 SIMSOM, Otto von.The Gothic Cathedral: origins of the Gothic architecture and the medieval concept of order. Princeton University Press; Edição: Expanded (1 de julho de 1988) 67SPEER, Andreas. Les écrits de Suger comme source d’une esthétique médiévale - une relecture critique, in: GROßE, Rolf (org.). Suger en Question: Regards Croisés Sur Saint-Denis, De Gruyter Oldenbourg, 2004, p. 95-107. Ver também, do mesmo autor: SPEER, Andreas. Art as Liturgy. Abbot Suger of Saint-Denis and the Question of Medieval Aesthetics, in: J. Hamesse (ed.), Roma, magistra mundi. Itineraria culturae mediaevalis (Louvain-la-Neuve: 1998), 855-75. 68 Principalmente a crítica à Conrad Rudolph e a relação formulada por esse autor entre Suger e Hugues de Saint-Victor no século XII.
37
da escrita. De modo que, apesar das dificuldades em precisar as formas da recepção do
texto, seria possível identificar que o público imediato de Suger é o próprio monastério
de Saint-Denis e que se trata de uma obra para consumo interno . 69
A leitura que estaria fora de lugar seria
la réception sélective des textes de Suger et la réduction de leur sens à une seule
cohérence qui ont contribué à la stabilisation des idées concernant la naissance du
gothique à Saint-Denis: celles d'un Suger père du gothique, ou d'un Suger présenté
comme père de la France, qui a clairement décrit les structures sociales et politiques du
royaume capétien et qui, par l'idéologie, a présenté la conception de la royauté française
ou l'aurait même créée. 70
E continua:
Selon Suger l'église contemporaine se transforme par ces signes en un royaume céleste
pour faire de nous et de la créature angélique, du ciel et de la terre, dans la
toute-puissance et miséricorde divine, une seule république (unam rem publicam) Là,
l'intention de Suger devient évidente: non pas décrire des parties d'église cloisonnées
mais traiter de l'aménagement de la basilique comme d'un espace liturgique unique. 71
Para Speer as intenções de Suger no momento de sua escrita são extremamente
claras: proclamar a generosidade divina em benefício da empreitada única e singular
que erigiu, agradecer e revelar os muitos doadores e dons recebidos durante a execução
das obras e para o paramento dos novos altares e, por fim, para criar um relato
memorialístico de maneira a fazer conhecer à posteridade a “gloriosa e digna
69 Segundo Speer, essa leitura se confirma pelos manuscritos conhecidos dos textos originais, produzidos exclusivamente no contexto restrito do claustro: “ Ce fait est confirmé par la transmission très restreinte de ces textes, qui ne sont évidemment produits que pour le monastère: Ordinatio, une charte conservée aux Archives nationales à Paris (K 23 n° 5), le De consecratione, transmis dans deux codex mixtes, le premier du IXe jusqu'au XIIIe siècle (aujourd'hui à la Bibliotheca Apostolica Vaticana, cod. Reg. lat. 571) et l'autre du XVe siècle (Paris, Bibliothèque de l'Arsenal, ms. 1030), qui contiennent plusieurs écrits variés concernant l'abbaye de Saint-Denis (par exemple les Gesta Dagoberti, une source très importante pour Suger), et finalement le De administratione, conservé dans un seul codex du XIIIe siècle (Bibliothèque nationale de France, ms. lat. 13835). Nous avons aussi découvert une tradition indirecte dans une chronique anonyme rédigée à Saint-Denis au XIVe siècle et transmise dans un codex du XVe siècle (Paris, Bibliothèque Mazarine, ms. 2017)23.” Em seguida, os textos teriam sido recuperados pela monarquia do século XVII e seu interesse historicizante, voltando à cena de maneira proeminente apenas no século XX, pelas leituras de Ernst Gall e Erwin Panofsky - SPEER, op. cit. 2004, p. 99. 70 SPEER, op. cit.2004, p. 100. 71Idem, p. 105.
38
consagração desta santa Igreja a Deus, e do muito solene translado de nossos
preciosíssimos mártires Dinis, Rústico e Eleutério, nossos senhores e apóstolos, assim
como de outros Santos com os quais podemos contar na certeza de sua proteção.” 72
Assim, Suger teria por objetivo narrar
(...) em que ordem, quão solenemente e também por quais pessoas esses atos
foram realizados, de modo a agradecer da melhor maneira que pudermos à
Divina Graça por tão grandioso presente, a fim de obter uma intercessão
favorável junto a Deus e de nossos santos protetores, tanto pelo cuidado
dispensado a tão grande obra quanto pela descrição de tão grande celebração . 73
Parece-nos curioso que as ações de Suger sejam descritas por ele como uma
forma de cuidado. E seu relato, imbricado nas questões litúrgicas, busque construir a
autoridade desse “abade construtor” a partir de seu empenho na conservação e melhoria
do espaço eclesiástico.
O texto que analisamos é datado entre os anos de 1148-49 e tem como objetivo
principal defender a ação de Suger ao reformar e ampliar a abadia de Saint-Denis, bem
como inserir essa obra na totalidade das ações de Suger enquanto bom abade para a
igreja. No entanto, numa leitura atenta, é possível perceber que em diversas ocasiões o
texto desloca-se para a questão da presença corpórea no período medieval. Para
justificar a reforma, o abade afirma que a basílica anterior sofria muitos inconvenientes
por sua pequenez, isso porque
a multidão aglomerada opunha resistência aos que se empenhavam em entrar
para venerar e beijar as Santas Relíquias, o Prego e a Coroa do Senhor, de
modo que ninguém era capaz de mover um pé entre os incontáveis milhares de
pessoas devido a sua própria compressão . 74
Tal problema é colocado em ordem na nova abadia, de modo que
72 Suger, De consacratione. RABELO (trad.), op, cit., p. 93. 73 Idem, ibidem. 74 Idem, p. 95.
39
aguardando devotamente tão grande gáudio, preparamos os
instrumentos sacramentais para a consagração e fizemos os arranjos
necessários para que uma ansiosa e tão santa procissão de tantas
pessoas pudesse percorrer tranquilamente a igreja por dentro e por fora
. 75
Outro momento de destaque dos corpos é no processo de construção do novo
edifício, em que os trabalhadores são recrutados pela sua força física e, onde não
conseguem superar as dificuldades, recebem auxílio divino através dos milagres:
Todas as vezes, porém, que as colunas eram extraídas do fundo declive,
amarradas por cordas, tanto os nossos conterrâneos como os bem devotos das
redondezas, nobres e gente comum, atavam seus braços, peitos e ombros às
cordas e, como animais de carga, traziam-nas para cima; e passando pelo meio
do declive do castelo, diversos artesãos, deixando de lado os instrumentos de
seu próprio ofício, iam ao encontro deles, oferecendo sua força contra as
dificuldades do percurso, condescendentes o mais que podiam para com Deus
e os Santos Mártires . 76
É interessante notar que os vivos, nesse contexto, oferecem seus próprios corpos
ao serviço de Deus. Voluntariamente, segundo o abade Suger. Dessa forma, eles se
transformam em continuadores da própria experiência do martírio e de Cristo, uma vez
que os santos e os mártires cujos corpos se transformam em relíquias são aqueles que
são os homens santos que entregaram seus corpos como um testemunho de
Deus; que pela nossa salvação deixaram sua terra e seus parentes (...); que nus,
contiveram açoites e, presos, detiveram bestas ferozes e famintas; que
suportaram ilesos o estiramento no ecúleo, o ardor da fornalha, e, por fim, a
venturosa decapitação com machados sem corte . 77
75 Idem, p. 123. 76 Idem, p. 99-101. 77 Idem, p. 127.
40
Por essa entrega voluntária, e pelo suplício do corpo não como punição , mas 78
como exaltação da fé e do propósito divino da perseverança e propagação do evangelho,
é que obras como a de Suger são agraciadas pelo milagre, ou seja, pela afável ação
divina que mostra sua presença e incentiva a continuidade da ação humana:
Assim foi que, animado por um zelo piedoso, o pequenino rebanho [dos trabalhadores] rezou: ‘Ó, São Dinis, se é de teu agrado, ajuda-nos, encarregando-te a ti mesmo dessa haste caída, por não nos poderá culpar, se não formos capazes de fazê-lo.’ Logo, aplicando muita força, eles extraíram o que cento e quarenta homens, ou pelo menos cem, costumavam tirar do fundo do vale com dificuldade (...). Daí, propagou-se por toda circunvizinhança que essa obra agradava sobremodo ao Deus Todo-Poderoso, uma vez que, em louvor e glória ao seu nome, ele escolheu, por meio desse sinal e de outros semelhantes, conceder o seu auxílio para aqueles que nela trabalhavam . 79
É por isso que seus restos mortais merecem ser venerados. Porque constituem
modelo e exemplo a ser seguido, bem como alcançaram a graça divina e tornaram-se
intermediários da ação sobrenatural sobre o mundo terreno. As relíquias dos santos são
legítimas pois possuem um laço essencial do martírio de Cristo, testemunham de seu
sofrimento e imitam sua Paixão. Assim, são rememorados de maneira conjunta entre
clérigos e fiéis no altar das igrejas pela veneração das relíquias e pela celebração da
eucaristia.
A jornada de Suger segue, portanto, a superação das dificuldades pela graça
divina. Desde suas limitações internas, que ele não enumera, até as externas (que,
segundo seu relato, são muitas) Suger homenageia o conforto e o socorro que teria
recebido e que atestaria, por sua vez, a legitimidade da obra. Entre as suas atribuições
enquanto administrador da Igreja, educado e instruído também ali, estava a de reparar os
erros do passado e trabalhar incessantemente em situações “necessárias, úteis e
honestas” . E, mesmo com a “mente e o espírito fatigados”, o abade narra que no centro 80
de suas preocupações estava
78 Ver o trabalho de Michel Foucault, Vigiar e Punir, especialmente a primeira parte: Suplício, em que o autor discorre sobre a utilização das penas corporais como mecanismo legal de normatização dos corpos no século XVII e sua subsequente transformação. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir - O nascimento da prisão. Editora Vozes; Edição: 42ª (1 de janeiro de 2014). 79 Suger, De consacratione. in: Rabelo, op.cit., p. 101. 80 Idem, p. 97.
41
(...) a coerência e a harmonia entre a antiga e a nova estrutura, refletindo,
considerando e procurando em diversas regiões de distritos remotos onde
adquirir [os materiais necessários para a realização do empreendimento] . 81
E cada vez que um obstáculo era superado, “tanto maiores foram os nossos
agradecimentos para retribuir, como remédio por tão grande angústia, com a
excelência da obra” . 82
Um exemplo digno de nota das ações de Suger é, segundo ele próprio, a
restauração das rachaduras dos capitéis das colunas que sustentavam os muros de pedra
da igreja. Ele nos conta que eram necessárias vigas de madeira para sustentar os
trabalhos e os carpinteiros atestavam a impossibilidade de se encontrar boas vigas na
região de Saint-Denis pela falta de florestas, recomendando que as vigas fossem trazidas
de Auxerre, o que encareceria a obra de Suger. O abade, então, resolve procurar pela
região e é zombado pelos vassalos que afirmam que as florestas da região haviam sido
dizimadas para a construção de fortes e paliçadas, especialmente desde que o Castelão
de Chevreuse, Milão II, entrara em guerra com o rei.
Suger, no entanto, ignora completamente as contraindicações de seus vassalos e
serviçais e passa a percorrer a floresta “com a coragem de nossa fé” e é agraciado com
doze vigas que leva de volta à basílica e coloca para a cobertura da obra . Dois 83
elementos deste relato são interessantes. Em primeiro lugar, Suger afirma que havia um
consenso (uma vez que todos concordassem com isso”) entre os trabalhadores dos
capitéis quanto à necessidade de encomenda das vigas vindas de Auxerre. Em segundo,
uma vez que as vigas foram descobertas o foram no número exato da necessidade para
a obra, gerando o espanto de todos. O que parece notável é a relação entre as decisões
do abade e a comunidade na qual ele se insere, bem como a maneira pela qual sua
liderança e ações são capazes de gerar impactos significativos no andamento das obras
e, por extensão, na vida coletiva ao redor de Saint-Denis.
Ao discorrer sobre a primeira consagração da nova nave central em 1140, Suger
nos conta mais uma vez como a obra e a Igreja se inseriram no coletivo, desta vez
acentuando as relações com os notáveis que a aprovavam:
81Idem, p. 99. 82 Idem, ibidem. 83 Idem, p, 103-105.
42
Assim, continuamente encorajados em tão grandes empreitadas por tão
grandes e manifestos sinais, logo avançamos para o término do dito edifício.
Deliberando de que maneira, por quais pessoas e quão solenemente se
consagraria a igreja a Deus Todo-Poderoso, e tendo chamado o notável Hugo,
arcebispo de Rouen e outros bispos veneráveis, Eudes de Beauvais e Pedro de
Senlis, cantamos na celebração dessa cerimônia louvores variados, em meio a
uma grande multidão de personagens eclesiásticos e uma enorme multidão de
clérigos e leigos . 84
Em seguida, terminada a restauração, é possível dedicar-se à ampliação
propriamente dita.
(...) livres do trabalho acima mencionado (...) pudéssemos dedicar todo o nosso
trabalho e recursos para a ampliação da nossa mãe igreja o quão mais
conveniente e gloriosamente isso pudesse fazer-se de modo racional, como um
ato de gratidão pelo fato de a nobreza divina ter reservado tamanha tarefa a um
homem tão insignificante, sucessor de uma nobre linhagem de tão grandes reis
e abades. Comunicamos, pois, essa ideia aos nossos muito devotos irmãos (...)
. 85
Para o início dos trabalhos finais de ampliação, elevação e posicionamento das
novas abóbadas e arcos que dariam maior visibilidade às relíquias ornadas com ouro e
pedras preciosas, do novo corredor circular de capelas com os vitrais que iluminariam
maravilhosamente o espaço construído foi traçado um ordenamento para a cerimônia e
até o rei, juntamente com os notáveis do reino, foi convidado para sua execução. A
escavação das relíquias e a consagração do fundamento do novo edifício serão
analisados adiante. Mas, nos interessa observar que os próprios propósitos da obra de
Suger partem da vida coletiva e social em Saint-Denis. A ampliação das áreas de culto,
o alargamento dos corredores para os peregrinos, a visualidade das relíquias para
devoção e o aparente acordo dessas iniciativas reformadoras com os monges em
Saint-Denis, a comunidade que nelas trabalhou, os bispos da Igreja na França e o
84 Idem, p. 105. 85 Idem, p. 107-109.
43
próprio rei são descritos por Suger como os elementos que permitem a continuidade da
obra e os testemunhos da graça divina para com as suas ações.
Pelo que nós, também por nosso próprio esforço, instruímo-nos para ser
coedificados em morada de Deus, no Espírito Santo, na medida em que
trabalhamos sem descanso, de modo mais elevado e conveniente, a fim de
construí-lo materialmente . 86
Suger, obviamente, não categoriza suas ações nos termos lidos pelos
historiadores contemporâneos. Suas palavras se direcionam à gratidão, à redenção ou à
prestação de culto e honra diante do divino, dos santos e mártires, em relação às
benesses que experimenta durante as etapas de construção. Mas, apesar destacar como
suas ações refletiam a convicção de sua fé e planos, Suger não deixa de integrar essa
dimensão à ação em prol, para e em relação ao ambiente em que circula e no qual o
texto encontraria seus possíveis leitores.
Para marcar a data da consagração final o abade destaca a permissão e a
concórdia real com seus intentos, a alegria dos convidados dignitários quando recebem
o chamado, a multidão de cavaleiros e soldados a pé que afluíram para Saint-Denis e a
honra em receber e hospedar a família real. A visão de todos esses personagens juntos
provoca, durante a leitura do texto, a criação de uma pintura cuja luz está na nova
Catedral. Para Suger, os personagens presentes sabiam da grandiosidade do evento que
iriam protagonizar ou presenciar e seu aparato, suas vestes e a magnificência de sua
ornamentação externa “demonstra a intenção de sua mente e corpo”. O abade nos conta
que todas as provisões e as necessidades externas haviam sido preparadas em
abundância para esse evento e que a transladação dos santos patronos para o seu novo
local seria o evento mais solene de que já se tivera notícia. Isso porque demonstraria,
afinal, o último ato de gratidão e o fruto do trabalho durante a reforma.
O ato da consagração guarda também a epifania em relação à comunidade, à
harmonia e à concórdia entre os homens proeminentes do reino, a Igreja e o rei . As 87
vestes e os ornamentos mais vez figuram como exemplos da visão esplêndida do ato. A
86 Idem, p. 113. 87 Para uma análise geral dessas relações no contexto da Paz de Deus ver BARTHELÉMY, Dominique. Rois et nobles au temps de la paix de dieu. in: GROßE, Rolf. (org.) Suger en Question: Regards Croisés Sur Saint-Denis, Gruyter Oldenbourg, 2004, 155-167.
44
população, assistindo do lado de fora, é quase tomada pelo ímpeto devocional que o
momento proporciona. As autoridades eclesiásticas e a comitiva real presentes
“cantavam e choravam com uma alegria imensurável”. A procissão que seguia o rei
carregando as relíquias ia acompanhada de cruzes, paramentos festivos, candelabros de
pedras preciosas, entoando louvores aos santos e seguindo sua majestade . 88
Assim, é possível defender que a narrativa de Suger sobre suas ações e o tempo
de seu abaciado toma dimensões excepcionais uma vez que o próprio abade acentua a 89
necessidade da superação das dificuldades com o beneplácito divino, mas, e
principalmente, pela rede de relações que ele coloca em jogo nas etapas construtivas da
nova Catedral. Além das dimensões da ingerência do sagrado, das relíquias e das peças
preciosas que analisaremos adiante, as pessoas nomeadas e escolhidas para figurar o
texto situam a obra em uma escala fundamental para a política local do século XII, bem
como a concórdia interna apazigua possíveis dissensões ou críticas ao processo e
ressaltam a resposta divina à ação harmoniosa de seus fiéis.
Para Speer o leitor de Suger deverá sentir a impressão de uma unidade realizada
por um lugar. A criação dos novos altares e de todos os aspectos monumentais do
edifício reverberam a existência da homogeneidade e da unicidade entre o antigo e o
novo, através do registro textual daquilo que havia sido criado materialmente. Speer
defende, portanto, que o método para acessar os intentos de Suger para a reforma em
Saint-Denis deveria seguir sua preocupação fundamental com a liturgia e a comunidade
eclesiástica a quem se dirigia.
Il s'agit d'un accès aux textes basé sur une méthode strictement historique, qui prend en
considération l'horizon de la compréhension médiévale, ce qui implique la prise en
compte du contexte des hommes, qui ont compris à leur manière les objets de leur
époque que nous, nous définissons comme “œuvres d'art . 90
88 SUGER, De consacratione. RABELO, Marcos M. (trad.). op. cit., p. 121-129. 89 Frank G. Hirschmann faz uma análise interessante sobre a ideia de excepcionalidade na obra de Suger, comparando-a a outros abades-construtores: ““En résumé: sans vouloir contester les mérites exceptionnels de Suger, beaucoup des choses qu'il a faites, des principes qui l'ont inspiré, des procédures qu'il a choisies étaient - à une moindre échelle, il est vrai - une pratique commune des abbés réformateurs et constructeurs depuis plus de cent ans”. (HIRSCHMANN, Frank G. Abbés réformateurs, abbés constructeurs quelques précurseurs et contemporains de Suger. in: GROßE, Rolf. (org.) Suger en Question: Regards Croisés Sur Saint-Denis, Gruyter Oldenbourg, 2004, p. 21-30.) 90 SPEER, op. cit. 2004 p. 104-107.
45
Essa dimensão social e memorialística dos escritos de Suger foi amplamente
desenvolvida por Françoise Gasparri. Dona de uma vasta produção sobre o abade e suas
relações políticas, seus textos e o século XII, Gasparri é a responsável, inclusive, por
traduções comentadas e atualizadas da obra de Suger . 91
Em La pensée et l'oeuvre de l’abbé Suger à la lumière de ses écrits a autora 92
começa por descrever o lugar que Suger ocupa na tradição de escrita medieval:
L’abbé de Saint-Denis est l’un des rares auteurs du Moyen Âge qui ait écrit sur sa
propre époque et sur sa propre personne, sur sa pensée et sur son action. 93
Citando o abade ela ressalta que a orientação de seu pensamento é confiar à pena
uma obra destinada a durar para a eternidade, totalmente consagrada a Deus e que não
possa ser completamente compreendida se não for acompanhada das obras materiais
que a complementam. Modelo e manifesto dirigidos às gerações futuras são
testemunhos
de l’action du roi au service de son royaume, et de sa propre action au service de son
église, de l’Eglise universelle, mais aussi de l”État, le regnum Francie dont il fut le
principal support . 94
Para entender a vida de Suger a autora faz um breve apanhado de sua carreira
desde que chegou a Saint-Denis como oblato, em 1091. Para ela, a participação nas
campanhas militares de Luís VI, a guerra que desencadeia contra Hugues de Puiset, as
missões diplomáticas, os encontros com o papado, a participação na Dieta de Mayence
(1125), a atuação como provoste, o contato com a diplomacia de Henry I e as viagens
acompanhando Luís VI para desposar Eleonora de Aquitânia fizeram de Suger um
“homem de Estado” perfeitamente conhecedor das realidades políticas de seu tempo e
com capacidade de se mover dentro delas. Não é à toa, segundo Gasparri, que a primeira
91 GASPARRI, Françoise. Œuvres. Tome I : Mémoire sur la consécration de Saint-Denis - L'Œuvre administrative - Histoire de Louis VII. Les Belles Lettres, Paris, 1996. 92 GASPARRI, F. la pensée et l’oeuvre de l’abbé suger à la lumière de ses écrits. IN: POIREL, Dominique (org.). L’abbé Suger de Saint-Denis, le manifeste gothique et la pensée victorine. Brepols, 2001. 93 Idem, p. 91. 94 Idem, ibidem.
46
obra escrita por Suger (em torno de setembro de 1143 e junho de 1144) foi uma obra de
caráter histórico - Vita Ludovici Grossi.
Em seguida, escreveu o texto sobre a consagração de Saint-Denis e objeto de
nosso estudo, que é acompanhado do De Consacratione, terminado entre 1147-1149 e
que é semelhante a uma Gesta do próprio Suger, uma vez que descreve com detalhes as
conquistas, os trabalhos, as obras de embelezamento, de reconstrução, de aquisição e
restauração quem Suger empreendeu durante seu abaciado. Gasparri enumera, ainda, as
cartas e epístolas de Suger, além do Ordinatio. Segundo a autora,
L'oeuvre écrite de Suger présente donc deux aspects, de nature apparemment différente:
écrits historique et politique d’une part, écrits de mémoire personnelle de l’autre (...) . 95
É interessante notar que, mais uma vez, a ideia de harmonia do mundo (dada
pelos conjuntos escritos analisados por Gasparri) como sinônimo do belo e do desejável
volta à cena. Gasparri identifica que na obra que escreve sobre a vida de Luís VI a
intenção de Suger não era a de transmitir às gerações futuras a biografia real, mas sim
um modelo de rei. Ela chega a afirmar que o acento histórico de Suger, respaldado por
Hugo de Saint-Victor, é o início de uma historiografia real, símbolo da grandeza da
unidade da França e da grandeza de seu rei. Este, por sua vez, apresentado como
protetor da Igreja e, principalmente, de Saint-Denis, abençoado pelos Santos patronos e
protetores, que unificam o profano e o sagrado . 96
O De Consacratione é fundamental para a compreensão da obra de Suger
justamente porque coloca em causa o essencial das ideias filosóficas, as orientações
teológicas e as ações do abade sobre suas ideias. Gasparri destaca que as características
textuais de Suger são semelhantes às operações que ele faz no edifício de Saint-Denis.
Às ornamentações em bronze, pedra, objetos de ourivesaria e vitrais correspondem o
texto evocador, marcado pelas anedotas, pelas descrições coloridas e pelos retratos
vivificantes dos acontecimentos. Mas, dessa vez, se tratava de testemunhas como as
mãos humanas (leia-se: do próprio Suger inserido em sua coletividade) e mãos divinas
trabalharam juntas para a edificação da nova basílica.
95 Idem, p. 93-4. 96 Idem, p. 96.
47
Essa leitura que unifica o material e o espiritual é realizada por Françoise
Gasparri seguindo o modelo interpretativo proposto por Panofsky em Arquitetura
Gótica e Escolástica. Resumidamente, a autora argumenta que é lógico imaginar que
Suger teria tido contado com a obra de Pseudo-Dionísio pois haveria duas cópias do
século IX na biblioteca da abadia em seu tempo, bem como uma cópia comentada no
próprio século XII levada a cabo por Hugues de Saint-Victor , a quem Suger teria 97
admirado e tomado contato de suas teorias sobre a arte como suporte espiritual. Dessa
forma,
Le monde créé se divise en deux univers, le sensible et l’intelligible, d’óu l’importance,
pour Suger, des inscriptions permettant, sans les opposer, de passer d’un univers à
l’autre: c’est là tout le programme de Saint-Denis. 98
Na análise de Gasparri, a síntese entre o material e o espiritual seria operada e
descrita por Suger com o recurso da luz que incide sobre as pedras preciosas, que jamais
poderiam reluzir no escuro. Por isso, da multiplicidade dos objetos e dos recursos
97 Há muita controvérsia sobre a presença desses manuscritos na abadia de Saint-Denis, bem como sobre a maneira pela qual sua leitura teria influenciado diretamente a criação do “manifesto gótico” em Saint-Denis. Gasparri apresentou sua interpretação em um colóquio organizado pela fundação Singer-Polignac em 2000, foi indagada especialmente por Andreas Speer e Peter Kurman quanto à aplicabilidade dessa tese em relação ao edifício finalizado. Mesmo levando em consideração a leitura de Hugues de Saint-Victor e a influência do pensamento victorino para a articulação da nova abadia, o que se colocou em pauta naquela ocasião foi o plano prático e de transmissão do projeto teológico para o edifício de pedra. Speer relembrou que Panofsky havia se inspirado em um conceito hegeliano no momento de elaboração da sua tese fundamental, de que haveria uma diretriz e uma ideia criadora que teria fundamentado o estilo gótico; mas, ressaltou que o teólogo, bem como o arquiteto (architectus) não é o mestre de obras (magister operis) que vai, realmente, construir o edifício. Já Peter Kurman, criticou a suposição de que o pensamento intelectual poderia ser tão facilmente transmitido àqueles que trabalhavam na obra. Por fim, Donatella Nebbiai dalla Guarda colocou a questão da participação dos monges de Saint-Denis nas tentativas de resolução da Cisma do Oriente e a necessidade política de revisitar e traduzir os textos gregos durante o século XII não pelo viés da criação intelectual, mas pela recuperação da tradição de ação política. Já Patrice Sicard se pronunciou de modo a contestar a análise binária de seus colegas entre “aquele que pensa” e “aquele que faz”. Para ele essa interpretação linear exclui a prerrogativa segundo a qual o próprio pensamento teológico do século XII se converte em uma atividade arquitetural, de lançamento dos fundamentos até o sentido anagógico. Assim, seria possível, segundo o autor, falar de um conjunto de “fontes de inspiração” que informam-se umas às outras, mas são relidas e modificadas pelos seus leitores. Para ele, o pensamento victorino e suas reverberações na obra de Suger devem ser analisados no contexto da “emergência da consciência” no século XII ou do “nascimento da pessoa”, com suas modalidades singulares e suas relações pessoais, de troca intelectual e da vida espiritual. GASPARRI, F. la pensée et l’oeuvre de l’abbé suger à la lumière de ses écrits. IN: POIREL, Dominique (org.). Discussions de l’après-midi. in: L’abbé Suger de Saint-Denis, le manifeste gothique et la pensée victorine. Brepols, 2001, p. 171-183. Sobre as questões do pensamento teológico enquanto construção múltipla de sentidos, ver LUBAC, Henri de. Medieval Exegesis: The Four Senses of Scripture, Eerdmans, 1998. 98 Idem, p. 100.
48
dispensados para a concretização da obra viria a unidade, do espaço, da comunidade e
da vida religiosa dos monges com o sagrado através da oração inspirada por esse
ambiente reformado e da luz.
A autora explica, ainda, que o projeto arquitetônico de Suger realiza a harmonia
explicitada em seus escritos a partir de três dimensões: a altura, a largura e o
comprimento. Na teologia sugeriana a construção material significa a aplicação dos
esforços humanos para a construção de algo que é eminentemente espiritual, construído
coletivamente sim, mas de inspiração interna. Por isso mesmo, a nova igreja, quando
finalizada, faria a união entre o visível e o invisível, entre a Jerusalém terrestre e a
celeste, transformaria a polis em ecclesia . É curioso notar que a ênfase textual recai, 99
mais uma vez, sobre a diligência e os cuidados dispensados por Suger na obra que
deixaria para a posteridade. E é só através desse esforço que as bênçãos divinas teriam
chegado a seu favor e possibilitado a conclusão do empreendimento, tal como Suger
havia planejado. Por isso Gasparri conclui:
Car Suger est convaincu d’avoir mené le bon combat (...) la vision eschatologique saisie
à travers la communauté terrestre, transporté, transcendée entre ciel et terre par le
monde ecclésiologique et la pulchritudo liturgique de l’Église; transformation
miraculeuse, par la force des sacrements du Christ, de la polis en ecclesia, de l’Église
présente en royaume céleste, réunissant le ciel et la terre en une seule république. Tel
est le sens de toute l'oeuvre de l’abbé Suger de Saint-Denis: l’idéal théologique,
spirituel et esthétique de l’harmonie du monde . 100
A descrição do término de sua obra mais importante têm por objetivo, portanto,
não deixar que o esquecimento e as intempéries políticas (que Suger conhecia bem)
fizessem cair o silêncio e o esquecimento sobre seus feitos . De fato, é a sua própria 101
carreira enquanto homem eclesiástico que se apresenta, de cima a baixo na basílica.
Escrever sobre esse projeto é também tomar o controle sobre a forma que sua memória
tomará e sobre sua identificação enquanto homem da igreja local e da Igreja universal.
99 Idem, p. 103. 100 Idem, p. 107. 101 Para uma visão interessante da relação entre memória, escrita e esquecimento ver: GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo, Editora 34, 2006. Ver também: GEARY, Patrick. Phantoms of remembrance. Memory and oblivion at the end of the first millennium. Princeton University Press, 1994.
49
Assim, destacar os bens preciosos, a ligação com a comunidade, as alianças com os
homens mais notáveis do reino (sobretudo com a figura real) e, principalmente, a
consonância de suas ações com os planos divinos através das bênçãos dos santos
significaria projetar sua figura e suas obras como pedra angular de Saint-Denis e do
reino da França.
Apenas um ano depois, em 2001, Gasparri publicou L’abbé Suger de
Saint-Denis. Mémoire et perpétuations des oeuvres humaines. Nesse texto de apenas
dez páginas ela condensou anos de seus trabalhos sobre os escritos de Suger e
aprofundou a leitura que empreendeu no colóquio de 2000, especialmente a partir da
relação entre o programa filosófico e político de Suger para Saint-Denis . Descrito 102
como um homem de fé e de ação, as obras de Suger teriam de ser compreendidas a
partir do lugar que ele quer destinar à abadia de Saint-Denis dentro do reino da França;
não somente como a necrópole real, local onde se reúnem as três dinastias reais, ou a
guardiã dos objetos de coroação, mas, e principalmente, como Igreja protetora do rei e
representante da Santa Sé na França. Para Gasparri, toda sua obra é escrita tendo em
vista a necessidade da memória e a luta contra o esquecimento (o que faria de Suger,
segundo ela, um historiador). Ele oferece à posteridade não apenas um relato dos
acontecimentos que presenciou, mas um modelo de ação. Modelo de abade, modelo de
ação e, por fim, um modelo de rei.
Son objectif est essentiellement moral: éviter le mal, imiter le bien par l’exemple donné.
Tendus vers l’idéal de la beauté et l’harmonie du monde, l’abbé de Saint-Denis tente de
réaliser sur terre sa vision eschatologique de l’unité du matériel et de l'immatériel, de
l’humain et du divin, la fusion du ciel et de la terre en une seule ‘République’. 103
Suger confiaria em seus escritos na luta contra o espólio dos bens da Igreja, ou
para a perpetuação de seus bons feitos. Também confia neles para exortar o rei, deixar
rastros de sua ação e da forma pela qual se apropriou e transformou a tradição de seu
tempo. Seu desejo de fazer conhecer pode ser clarificado pelas inscrições que manda
inserir na abadia reformada. Ao receber os leigos no espaço eclesiástico Suger
102 GASPARRI, Françoise. L’abbé Suger de Saint-Denis. Mémoire et perpétuations des oeuvres humaines; in: Cahiers de civilisation médiévale. 44, 21, 2001, p. 247-257. 103 GASPARRI, F. op. cit. 2001, p. p. 247.
50
reconhece a necessidade de informá-los e, segundo Gasparri, cria um ambiente onde
isso seja possível. Ambiente esse que, além de propício para a meditação dos homens do
claustro, conta sua própria história e a história de seu construtor e de seus benfeitores
reais.
Nous avons jugé digne de donner par écrit la description des ornements de l’église dont
la main de Dieu, au temps de notre administration, décora son église (...) afin que
l’oubli, ennemi de la vérité ne s’insinue et ne fasse disparaître l’exemple de l’action à
accomplir . 104
Para Gasparri as ações de Suger não podem ser vistas como uma forma de
vaidade pessoal, e sim como uma identificação direta entre o indivíduo e a função que
ocupa, entre o homem e a Igreja . 105
No entanto, é interessante notar que no trecho citado é através das mãos de
Suger que a ação divina escolhe ornamentar e enriquecer o espaço eclesiástico. Nesse
sentido, os tesouros e os objetos escolhidos por Suger não só embelezam o novo local e
honram aos santos patronos, como também testemunham sua importância histórica e o
favor espiritual que recebe para levar a cabo seus intentos da maneira como ele próprio
havia planejado fazê-lo.
Por isso, ao perpetuar a memória de si mesmo através de seus escritos, Suger
constrói sua vida e, no tema de que trata essa dissertação, seu legado na forma de
edifício e do conjunto de objetos, de modo a perenizar sua imagem como exemplo a ser
seguido e como homem excepcional no seu tempo. Como vimos no capítulo 1, Suger
abriu muitas frentes de ação enquanto foi abade de Saint-Denis e, posteriormente, Pater
Patriae. E conseguiu, através de seus textos, das referências a seu nome que manda
colocar na abadia, da instauração da celebração de seu aniversário entre as celebrações
de Saint-Denis e pelos objetos que mandou fazer para a execução dos rituais litúrgicos,
unir memorialmente as esferas de sua ação e fixar para as gerações futuras a lembrança
de seus feitos e serviços prestados à Igreja e ao reino, unidos em Saint-Denis.
104 Suger, De Administratione, t. I; apud: GASPARRI, F. op. cit. p. 251. 105 Idem, ibidem.
51
2.2: Os objetos e a encenação ritual em De Consacratione.
A epígrafe que abre este capítulo provém do monumental Espaços da
Recordação – Formas e transformações da memória cultural escrito por Aleida
Assmann em 2006, e traduzido e publicado no Brasil pela Editora da Unicamp em 2011.
Com o objetivo de compreender as formas da memória e suas funções na
modernidade, ela nos conta que sua intenção é confrontar a memória como arte (ars) e
como potência (vis). Esclarecendo a genealogia dessas tradições, a autora pretende
situá-las em torno das noções de identidade e de confecção de sentidos.
Porém, tão logo se toma esse tema [da memória] sob a perspectiva dos estudos
culturais, torna-se inevitável considerar os meios culturais e técnicos da memória. Os
semióticos culturais russos Iuri Lotman e Boris Uspenski, da escola Tartu, definiram a
cultura como uma ‘memória da coletividade que não se pode legar como herança’, e
com isso apontaram para a dependência que a memória cultural tem de certas práticas e
mídias. Esse tipo de memória não dá prosseguimento sozinha a si mesma, sempre
precisa ser renegociada, estabelecida e mediada uma vez mais, readquirida. Indivíduos e
culturas constroem suas memórias interativamente através da comunicação por meio da
língua, de imagens e de repetições ritualísticas, e organizam suas memórias com o
auxílio de meios de armazenamento externos e práticas culturais. 106
A citação é longa, porém elucida a roupagem com que vestiremos os objetos
elencados por Suger em seu livro sobre a consagração de Saint-Denis. Nosso objetivo,
apesar do deslocamento cronológico, aproxima-se do de Assmann pelo fato de se tratar
de uma indagação acerca do modo como as recordações podem significar e interferir no
processo da construção de uma identidade. Além disso, também propomos que tais
memorações são remodeladoras de si próprias e integram escolhas e ênfases no
momento em que se sedimentam através da escrita . 107
Isso posto, o capítulo que se inicia tem um duplo objetivo: perceber como são
descritos e quando aparecem os objetos preciosos no texto de Suger e quais os sentidos
106 ASSMANN, Aleida. Espaços da memória – formas e transformações da memória cultural. Editora da Unicamp, Campinas, 2011, Introdução, p. 23-4. Os autores citados por Assmann escreveram The semiotics of Russian culture, publicado pela Ann Arbor, em 1984. 107 Idem, ibidem.
52
e significados seriam considerados possíveis para explicar sua aparição/descrição
textual e sua exibição no prédio reformado.
Colette Beaune, na esteira de Benedict Anderson , reitera o argumento de que 108
os sentidos são construções sociais e coloca o historiador como o responsável por trazer
suas fundações a público:
Les communautés imaginées n’existent pas par elles-mêmes comme un arbre ou une
pierre, elles n’existent que parce que les hommes les inventent, en rêvent, se battent
pour leur apparition ou pour leur maintien : ce travail permanent est l’une des activités
essentielles de l’homme, il peut faire l’objet d’une analyse historique (comment cette
activité a-t-elle évolué, quelles formes prend-elle selon les époques et pourquoi ces
formes changent-elles ?) . 109
O conceito de “comunidades imaginadas” parece ser a ponte entre as
prerrogativas teóricas de Assmann e o escopo deste trabalho.
Sugerimos que, começando pela leitura do texto de Suger, O segundo livro sobre
a consagração da Igreja de Saint-Denis, seja possível situar a discussão historiográfica
sobre os objetos preciosos do período medieval. Além de elucidar a perspectiva dos
historiadores que buscam compreender a lógica inerente desses objetos e sua relação
com o mundo social e com as redes de poderes que os cercam.
Dito de outra forma, a força motriz deste primeiro tópico é apresentar a
discussão bibliográfica recente sobre os tesouros eclesiásticos medievais e as
possibilidades criadas pela historiografia para sua significação, tomando como caso
modelar a catedral de St. Denis sob o abaciado de Suger.
108 ANDERSON. Benedict. Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2008 [1983]. Sobre um tema correlato ver, WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac-Naify, 2009 [1975]; especialmente o capítulo 2: A cultura como criatividade. Ali, o autor define a expressão que dá título ao seu trabalho como designação do coletivo humano a partir do “controle, refinamento e aperfeiçoamento gerais do homem por ele mesmo” (p. 75-6). Wagner parece fazer uníssono a Anderson quando este afirma que até expressões como “nacionalismo” e “marxismo” são inventadas e que a função política da história deve ser a de esforçar-se “ao máximo para aprender com a experiência real e imaginada do passado” (p. 224). Desfazendo as concepções a priori estabelecidas, os dois autores propõem uma escavação dos sentidos atribuídos ou construídos socialmente (em sociedades contemporâneas ou passadas) a partir dos textos ou objetos que o pesquisador consegue alcançar. 109 BEAUNE, Colette. Naissance de la nation France. Paris, Gallimard, 1985. Especialmente o capítulo 4: L’idée de nation em France.
53
Aqui, se torna necessário um breve esclarecimento acerca da noção de objeto
durante o período medieval. Em um artigo de 2009, Eliana Magnani e Daniel Russo
abordam a problemática dos objetos traçando cronologicamente os usos dos termos res,
objectum, objectum habere e seus sinônimos durante a Idade Média.
Após uma leitura atenta dos textos agostinianos, os autores indicam que as
coisas (res corporales) em sua materialidade substancial eram os signos que indicariam
o caminho que se deveria atravessar para o além/celeste, bem como a via de
ultrapassagem das coisas em si. Em sua análise, é dessa forma que os objetos deveriam
ser considerados do ponto de vista de Agostinho, como uma intenção que impulsionava
o movimento. Ou seja, materialmente, os objetos e as coisas destinados à celebração
divina seriam mais preciosos na medida em que suportavam a ação e a intenção das
quais eram investidos, se transformando em vetores de ação ritual e litúrgica.
Nesse sentido, os objetos feitos de materiais preciosos possuíram um valor
exegético reconhecido pelos teólogos medievais. Somada à associação com as
Escrituras, a noção de valor passaria pela escolha dos materiais com os quais os objetos
seriam criados. Analisando Beda e sua obra De Tabernaculo, os autores contabilizaram
360 menções à palavra argentum e seus derivados semânticos, assim como mais de 700
citações à aurum e seus derivados na Vulgata.
O reconhecimento textual e visual desses objetos criava seu valor intrínseco e o
dos edifícios que os acomodavam. Extrapolando o sentido material, os autores
reconhecem que o valor “mágico-mimético” (ou “ressemblance imateriélle”) desses
objetos residiria na visibilidade de suas pedras. Elas exprimiriam a virtus sobre a qual
seria construída a cidade celeste nas Escrituras, mas também seriam vetores dessa virtus
aos fundamentos da cidade/igreja terrestre, através de seus atores e daqueles que
possuíam a prerrogativa social de sua manipulação . 110
Esse tipo de abordagem analítica sugere a existência de um programa, uma
lógica ou racionalidade que envolveria os objetos e as preocupações com o fazer
artístico. Este, por sua vez, entendido como um saber e uma técnica a serviço de
projetos mais amplos tanto religiosos quanto políticos, cujos protagonistas sabiam
110 MAGNANI, Eliana. RUSSO, Daniel. Autour du processus de la chose, “res”, dans le Haut Moyen Âge. BUXEMA, Auxerre, 13, 2009, p. 103-21.
54
lançar mão quando fosse conveniente e sabiam defender e legitimar suas prerrogativas
para esquivar-se de possíveis críticas . 111
Ressaltamos que a história da arte e da cultura material do medievo deve levar
em consideração nossa estranheza em relação a seus objetos e premissas. Estranheza
essa que deve nos impulsionar a buscar métodos investigativos comparativos, que
incluam as possibilidades do período em questão, avançando adiante do olhar
meramente descritivo de um estilo arbitrariamente chamado de medieval pela
modernidade e, em seguida, pela historiografia dos séculos XIX e XX . 112
Por esse motivo, esmiuçaremos a problemática dos objetos em De
Consacratione seguindo três eixos fundamentais: sua relação com os corpos santos que
integravam os relicários, com a encenação litúrgica da celebração da cerimônia de
consagração e como posse ou bem de uma instituição eclesiástica.
Nossa inquietação sobre o tema surgiu da leitura do primeiro volume da trilogia
História do Corpo, de Alain Corbin, Georges Vigarello e Jean-Jacques Courtine. No
subtítulo desse mesmo volume – Da Renascença às Luzes – percebemos uma primeira
exclusão cronológica. No único capítulo que tange o período medieval, O corpo, a
Igreja e o Sagrado, Jacques Gélis afirma que a contribuição da Idade Média para a
história do corpo está no fato de que a “fé e a devoção ao corpo de Cristo contribuíram
para elevar o corpo a uma alta dignidade [indissociável da alma], fazendo dele um
sujeito na história” . 113
Se concentrarmos nossa atenção sobre esse período e, especialmente sobre o
século XII, é impossível falar dos objetos que constituiriam o tesouro de uma Igreja sem
perceber que a questão da corporeidade já se faz presente e tem preponderância nas
relações de poder estabelecidas. Especialmente num momento inaugural, como é o caso
111 Basta relembrar a controvérsia entre Suger e Bernardo, que foi discutida no capítulo 1 desta dissertação. 112 PALAZZO, Éric. Art et liturgie au Moyen Age. Nouvelles approches anthropologique et epistémologique. In: Annales de Historia del Arte, 2010, p. 31-74. 113 GÉLIS, Jacques. O corpo, a Igreja e o Sagrado. in: VIGARELLO, Georges (dir.) História do Corpo, volume 1: Da Renascença às Luzes, Ed. Vozes, 2012, p. 19. Esse protagonismo dado ao corpo nos estudos sobre a história tem sua aparição contundente no livro de Michel Foucault, Vigiar e punir, no qual o autor elege o corpo como objeto peculiar para analisar as relações de força que se constituem na vida coletiva ocidental. No entanto, apesar de reconhecer que o imaginário cristão de contenção e culpabilidade do corpo penetra nos esforços para seu controle e para essas lógicas de poder, o autor situa sua análise apenas a partir do século XVIII, não se debruçando sobre os mecanismos de normatização existentes no período medieval. (FOUCAULT, M. op.cit., 2014. Ver especialmente o capítulo Corpos Dóceis.)
55
do texto de Suger que evocamos aqui, a relação com os corpos, e, mais ainda, sua
dominação através de recursos simbólicos e retóricos, constitui uma premissa para o
sucesso das autoridades nesse período, como veremos mais adiante.
Jacques Gélis afirmou que a consciência contemporânea do corpo seria
inseparável do imaginário cristão da vida e de sua visão de mundo, oscilando, durante a
Idade Média, entre as prerrogativas da ordem terrena e da harmonia celeste. Por isso, as
relíquias, bem como as imagens, pela sua força de sugestão e comunicação se tornariam
indispensáveis para a manutenção das populações no dogma cristão vigente ou em
reconquistá-las normativamente. Tal análise parte da premissa de que para todas as
imagens e relíquias do período medieval existiria um espectador para o qual esses
objetos se ofereciam permanentemente para serem vistos e venerados.
O corpo-relíquia se transformaria em receptáculo do sagrado, objeto de devoção
e de revitalização da comunidade, na medida em que permitiria a regeneração e a
coesão social como símbolo da permanência e das origens dos valores comuns àquela
coletividade. Um corpo morto que irradia vida, ao narrar os pertencimentos e
possibilitar o reconhecimento dessa pertença através da tutela virtuosa que ofereceria
aos peregrinos e frequentadores dos rituais . 114
Além disso, o culto das relíquias se consolida a partir da fragmentação dos
corpos dos santos, a fim de multiplicar suas parcelas e dispersar os restos mortais para
ampliar o alcance dos beneplácitos que ofereceriam. E se baseia no fato de que seria
possível a transferência da sacralidade do corpo santo para o devoto, na medida em que
são portadoras de sentido e conferem essa carga sacral a seus receptáculos (isto é, aos
relicários e objetos preciosos) e à comunidade que as cercam . 115
Por fim, o último sulco aberto pelo artigo que nos parece frutífero é o do caráter
teatral e espetacular que o culto das relíquias traria para a cultura medieval. Isso porque,
enquanto objeto solene, a relíquia ou o relicário e suas imagens, oferecem um impacto
na visualidade do culto, de maneira que a peregrinação e a veneração das imagens se
114GÉLIS, op. cit., p. 94-5. 115 Idem, p. 99. A importância dessa sacralidade reside, sobretudo, na esfera dos milagres que torna presentes no seio das comunidades: “Frequentemente, o milagre aparece como o recurso dos fracos de corpo ou de espírito, em um mundo de violência. (...) Assim, o milagre também vêm corrigir a dureza da vida das pessoas comuns. (...) Contra a injustiça ou contra a violência feita ao corpo, ele se apresenta como a manifestação de uma justiça imanente, que coloca um pouco de ordem em um mundo desordenado” (p. 119).
56
torna um exercício de ascese dos espectadores guiados ao sagrado e divino. Assim, lidar
com esses objetos se transformaria numa prerrogativa importante das autoridades no
século XII, porque a gestão do sagrado se transforma num exercício de poder . 116
Vistas desse modo, as indagações sobre arte e cultura aparecem como campo
privilegiado para essa incursão na Idade Média, uma vez que são categorias que
necessitam de uma abordagem genealógica e comparativa para as sociedades ocidentais.
Nesse sentido, se trataria de, como afirmou Michel Foucault , desnaturalizar os 117
objetos e os campos de estudo que já conhecemos, a fim de perceber que nossas
heranças são instáveis e que as pesquisas que buscam elucidar as proveniências não são
fundadoras de uma ilusão sobre as origens da nossa relação com as imagens, os objetos
ou com o corpo. Mas, de buscar agitar aquilo que parecia imóvel, fragmentar o que se
pensava unido, mostrar a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade
consigo mesmo.
A análise do texto de Suger que se realiza aqui não objetiva mostrar como a
veneração das relíquias, restos mortais de santos, se situa nas origens de nossa
compreensão normativa sobre o corpo e o sagrado. Antes, propomos que no contexto
medieval do século XII e da inauguração de uma nova Catedral sob o abaciado de Suger
é possível localizarmos a emergência de um lugar privilegiado dado aos corpos e seus
objetos relacionais. Durante a consagração do novo edifício e também no texto que a
rememora, essa emergência estabelece um jogo de poderes sobre o sagrado que evoca e
define hierarquias, através de rituais que gravam obrigações e direitos.
Ou seja, nesse exercício demonstraremos de que maneira a pesquisa dos objetos
medievais coloca questões em relação à arte e ao corpo, elucidando disputas e tramas
que os transformam em objetos históricos e problema pertinente para o historiador.
Segundo Paul Veyne,
o interesse da história é a conceitualização. Esse interesse não é apenas a curiosidade
das origens ou o gosto pelo calor humano. Ele é mais intelectual. (...) O
desenvolvimento da história conceitualizante é parte do movimento que impele as
116 Idem, p. 100. 117 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história; in: Microfísica do poder, Paz e Terra, 1979 [1971], p. 15-37.
57
sociedades modernas para a racionalização. (...) Tematizar o que é, ‘tomar consciência’
do impensado . 118
Ou seja, para Paul Veyne a pesquisa histórica deveria atribuir significados aos
seus estudos, de maneira a elucidar a distância ou a diferença entre um “nós” e “eles”,
alvos do saber histórico. Só assim criaria uma formulação precisa de seu valor.
Seguindo o mesmo raciocínio, Éric Palazzo escreve acerca da dificuldade de
escrever a história do período medieval, acentuando a relação de alteridade que temos
com ele. A Idade Média seria a “outra”, e nos obrigaria a repensar as categorias
analíticas que usamos para nos aproximar dela. Para ele, é necessário reconhecer que a
liturgia medieval e sua significação profunda, ou seja, sua teologia, se situam em uma
grande distância dos nossos modos contemporâneos do pensamento. Propõe então, na
esteira de Henri Focillon e do conceito de humanismo medieval, que tomemos os
monumentos e os objetos de arte desse período não como cartas de pedra ou pelo
ímpeto classificatório, mas a partir de uma abordagem vivificada (vivante) da Idade
Média e de sua cultura . 119
Nessa abordagem, a liturgia medieval, da qual as relíquias, os objetos preciosos
e as imagens fazem parte, constituiria uma “síntese das artes” na qual todos os sentidos
corpóreos são solicitados a participar para a elevação da alma humana em direção ao
divino. É por esse motivo que a performance ritual se transforma em fator determinante
na celebração do momento do culto, uma vez que evoca em sua dimensão material a
acepção teológica da ecclesia e de suas ornamentações enquanto espaço privilegiado do
sagrado . Como deixa ver o principal argumento teológico que justifica toda a reforma 120
de Suger e dá sustentação a todo o seu texto:
Bendito e digno de louvor e sumamente glorificado seja o Teu nome, ó Senhor
Jesus Cristo, a quem Deus Pai ungiu Sumo Pontífice com o óleo da exultação,
à frente dos Teus companheiros. Por meio dessa unção sacramental do
Santíssimo Crisma e do recebimento da Santa Eucaristia, Tu juntas de maneira
uniforme o material e o imaterial, o corporal ao espiritual, o humano ao divino;
e restabeleces, de modo sacramental, os mais puros à sua condição original.
118 VEYNE, Paul. A História conceitualizante. In: NOVAES, Fernando. SILVA, Rogério F. (orgs). Nova história em perspectiva, vol. 1, SP, Cosac-Naify, 2011, p. 512. 119 PALAZZO, Éric. op. cit., 2010, p. 31-74. 120 Idem, p. 41.
58
Por meio dessas bênçãos visíveis e de outras semelhantes, restauras
invisivelmente, assim como transforma miraculosamente, o presente estado no
Reino Celeste (...) . 121
Assim, a liturgia seria uma espécie de mise en action, que presentificaria, ou
deixaria ver, o invisível contido no visível dos objetos e corpos, através da ativação da
dimensão sensorial do ritual. A materialidade (choiseté) dos objetos medievais
permitiriam, portanto, uma transformação anagógica, isto é, uma ascese ao signo através
do efeito sensorial criado pela materialidade do objeto ou da imagem, que presentifica o
divino, ao mesmo tempo em que dá acesso a ele. 122
Partindo da premissa que todo bem cultural está inserido num processo de
disputa e de tensão, temos de relembrar uma elucidação acerca d’O segundo livro sobre
a consagração de Saint-Denis: como documento de cultura esse texto está no lugar
privilegiado daquilo que sobreviveu por escolhas sistemáticas de preservação . 123
A própria obra arquitetônica planejada por Suger, empreendida entre os anos
1137-1144, tem por objetivo ressaltar a magnificência da catedral sobre todas as outras
igrejas, bem como deixar claro que essa pungência só se dá pela aliança com a
monarquia de Luís VII (1137-1180). Dessa forma, o estabelecimento de uma memória
sobre tal empreendimento, propósito da escrita do abade, já é, em si, uma criação de
prestígio e de hierarquia, colocando Saint-Denis como modelo e edifício inaugural de
um novo tempo para a Igreja Católica.
Church buildings were by far the most insistent reminders to the world of the ubiquitous
presence of the church (...) the framework through which streams os ecclesiastical
imagery could be projected (...) 124
Nesse processo definidor, que exclui para estabelecer, a ingerência do sagrado
tem lugar de destaque, uma vez que situa o espaço eclesial entre o mundo terreno e o
celestial. Por isso, as relíquias os objetos preciosos que as cercam se transformam em
121 SUGER, De consacratione. RABELO, Marcos M. (trad.). op. cit., p. 131. 122 PALAZZO, op. cit., p. 47-9. 123 Sobre essa reflexão ver BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie. (Escritos escolhidos), São Paulo, Editora Cultrix, 1986. 124 KIDSON, Peter. op. cit. 1987, p. 9.
59
ponto-chave para compreender essas relações de poder, como vimos no artigo de
Jacques Gélis.
A tentativa de elucidar os sentidos de uma reunião de objetos sob o nome de
coleção ou tesouro, já passou por ampla conceptualização historiográfica. Uma
excelente discussão é introduzida pelo volume organizado por Susan Pearce,
Interpreting objects and collection, publicado pela primeira vez em 1994. Nele, a autora
faz uma breve história do conceito e de sua aplicação em diversas publicações que
marcaram o século XX, chamando atenção para as publicações de Belk e Baudrillard 125
em que a coleção aparece definida como um sistema de valores em que cada objeto 126
faria parte de um todo dotado de significado extraordinário. Nesse sentido, a coleção se
formaria através de três etapas lideradas por um seletor: aquisição, posse e exposição.
Essas seriam formadoras de uma exterioridade social que evidenciaria as relações
humanas perenizadas naqueles objetos. A coleção só faria sentido socialmente se fosse,
portanto, exposta a outros . 127
No mesmo volume, Krzysztof Pomian, autoridade no assunto e autor do célebre
texto Entre l’invisible et le visible: la collection, publicado pela primeira vez em 1978,
realiza uma síntese de suas ideias sobre o tema. O autor define a coleção, vista de forma
trans-histórica e aparente em diversas culturas díspares, como uma espécie de guardiã
de tesouros que devem ser inalienáveis, ou seja, de objetos que devem possuir um
estatuto diferenciado mesmo nas diversas tensões em que estão inseridos. Pomian
escreve:
[uma coleção é] um conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos
temporariamente fora do circuito econômico, resguardados sob proteção especial em
locais fechados adaptados especificamente para esse propósito, e colocados em
exposição. 128
125 BELK, R. Possessions and the extended self , Journal of Consumer Research, 1988, n. 15, p. 139–68. 126 BAUDRILLARD. Jean. Le système des objets. Gallimard. Paris, 1968. 127PEARCE, Susan. The urge to collect. p. 161. In: PEARCE, Susan (org.). Interpreting objects and collections. Routledge, 2003 [1994]. Para uma discussão conceitual mais aprofundada sobre o uso dos termos “coleçao” ou “tesouro”, avançar para a Parte II desse mesmo capítulo. 128POMIAN, Krzysztof. Collections: between the visible and the invisible. in: PEARCE, Susan (org.). Interpreting objects and collections. Routledge, 2003, p. 162.
60
Esses objetos preciosos possuiriam um valor intrínseco de troca, porém seu valor
prático, de uso cotidiano, daria lugar ao prestígio de serem vistos e admirados. Para ele,
essa seria a lógica que explicaria, salvaguardadas as especificidades, o por que é
possível encontramos reuniões de objetos muito variadas em diferentes tempos
históricos, desde móveis funerários até os museus contemporâneos. A especificidade do
período medieval, para ele, é a participação desses objetos em trocas entre o mundo do
além e o mundo terreno, e sua concentração em locais que possibilitariam uma exibição
triunfante em condições novas que, inclusive, seriam apropriadas pelas casas reais no 129
período moderno. Finaliza atestando que a reunião desses objetos sob a forma de
tesouros na Idade Média testemunha e, ao mesmo tempo, coloca em evidência o estatuto
excepcional (divino ou quase divino) dos personagens através dos quais a coleção pôde
se formar . É sobre essa dimensão que prosseguiremos. 130
É sabido que desde a publicação do Ensaio sobre a dádiva, de Marcel Mauss,
em 1925, a teoria do dom, tal como desenvolvida por Lévi-Strauss e Pierre Bordieu 131 132
possibilitou uma abrangência nos trabalhos sobre os objetos e suas trocas nas sociedades
humanas. Ponto fundamental para essa chave interpretativa é o fato de que os objetos
colocariam entre o doador e o receptor uma relação de reciprocidade, fortes alianças,
solidariedade, proteção e assistência mútua formando os elos sociais dos grupos
humanos.
Nessa ótica, Barbara Rosenwein analisa a consolidação da abadia de Cluny no 133
século X. Para ela, só se pode compreender a constituição dos dois “impérios” de
Cluny, espiritual e fundiário, analisando o crescimento das diversas propriedades da
abadia através da doação dos senhores laicos caracterizada como “propriedade em
fluxo”. Caminho este pelo qual se estabeleceria uma relação e/ou aliança entre os
poderes laicos e o locus santus mediador entre o natural e o sobrenatural, ou seja, entre
aqueles que estão de fora dos muros do monastério e aqueles que estão do lado de
dentro.
129 Leia-se, em catedrais. 130 Idem, p. 10. 131 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologie Structurale, Plon, 1953. 132 BORDIEU, Pierre. Marginalia: algumas notas adicionais sobre o dom, MANA 2(2):7-20, 1996. 133 ROSENWEIN, Barbara. To be a neighbor of St. Peter – The social meaning of Cluny’s property, Cornell University Press, 1989.
61
A transferência de propriedades, bem como de objetos materiais para
engrandecimento e ornamentação da igreja e do culto aos santos estabelece um
relacionamento entre as partes envolvidas; a noção de propriedade funcionaria, segundo
a autora, como uma “cola social (...) numa era de fragmentação e mudanças sociais,
transações fundiárias enfatizavam a conexão e as interrelações entre as pessoas e entre
as pessoas e os santos” . Num sentido importante, então, a troca e detenção de bens 134
materiais integraria um sistema mais amplo de ideias e valores sobre a relação entre
riqueza e poder durante a Idade Média.
Rosenwein identifica os principais motivos que justificariam o interesse dos
grupos laicos e eclesiásticos no estabelecimento de uma aliança através da prática do
dom. São eles: a salvação da alma do doador, através da inclusão de si e de sua família
nas orações e nos rituais funerários da igreja em questão; a aquisição de bens, no caso
dos monges, e a manutenção do patrimônio e da administração, por parte dos doadores;
a criação de uma “economia do dom”, em que a noção de status e prestígio atravessaria
uma “generosidade necessária”, do ponto de vista do doador, ao mesmo tempo em que é
vista como fonte de outros dons e exposição dos bens preciosos por parte dos monges.
Sendo assim, a economia do dom implicaria certo tipo de sistema social
definidor de grupos e alianças específicas, que estabelecem os lugares sociais e sua
posição hierárquica . 135
Artigo fundamental para encaminharmos essa reflexão, Collecting and display,
de Pierre Alain Marriaux , é um texto esclarecedor sobre os propósitos da constituição 136
de um tesouro no ocidente medieval e suas possibilidades de pesquisa. O texto se torna
particularmente interessante porque focaliza o objeto em si e não apenas as motivações
de sua fabricação, ponto destacado pela obra de Rosenwein.
De fato, todo o volume organizado por Conrad Rudolph, A companion to
medieval art, no qual o artigo de Mariaux está inserido, é uma contribuição fundamental
para os estudiosos do tema, uma vez que contém 30 artigos que cobrem as mais variadas
abordagens, desde as formulações teóricas de pensadores medievais sobre arte até o
134 Idem, p. 202. 135 Idem, pp. 35-49. 136MARIAUX, Pierre Alain. Collecting and display. In: RUDOLPH, Conrad (org.). A companion to medieval art, Blackwell Publishing, Oxford, 2010, capítulo 10.
62
estudo de programas arquitetônicos, o conceito de spolia e os museus modernos
dedicados ao medievo.
Mas, voltemos à Mariaux. Do seu ponto de vista, podem existir diferentes
enfoques sobre os tesouros eclesiásticos que permitiriam sua interpretação como
documentos históricos: tipológico (inquirer e descrever as peças), narrativos, a partir das
discriptione, litúrgico ou, por fim, pela análise arquitetural. Assim, toma o abade Suger
como caso exemplar, ao considerar o tema da visibilidade do tesouro um dos motivos
centrais da reforma em St. Denis. Seu argumento desafia as formulações tradicionais
acerca do aparecimento do estilo gótico na Île-de-France.
Se tomarmos sua análise como verossímil isso significaria que a explicação sobre as transformações arquitetônicas em Saint-Denis empreendidas por Suger poderiam também ser explicadas por uma necessidade prática da administração abacial: a de exibir os objetos de seu tesouro. Tais objetos se tornaram fundamentais porque fazem referência a algo invisível a que eles também dão acesso e seriam a comunicação entre a igreja material e a Jerusalém celestial. Tal abordagem lança nova luz sobre o fenômeno da percepção filosófica já elucidada por Panofsky e acentua que o objeto precioso também é portador e comunicador do imaginário, de modo a tornar visível a transitividade entre o mundo sensível e o celestial.
Mariaux afirma, ainda, que a necessidade de expor um tesouro no corpo da
Catedral, ou seja, colocá-lo à vista dos monges que ofereciam ali os seus serviços, bem
como dos fiéis e peregrinos que frequentavam o local, viria das múltiplas conexões que
esses objetos eram capazes de estabelecer no imaginário coletivo, enquanto símbolos
ordenadores do mundo. São elas: com o passado (uma herança que aumentaria a
legitimidade e poder de ação de seus detentores), com a memória coletiva da
comunidade que possui o tesouro, reforçando a ideia de uma continuação histórica e,
acima de tudo, com o invisível. O autor chega a afirmar que, ao colocar o tesouro em
evidência é possível incitar novas doações ao mesmo tempo em que transforma o prédio
eclesiástico numa experiência dos sentidos, especialmente visual, através dos quais o
indivíduo poderia ser colocado em contato com a história, não apenas daquela
comunidade, mas da cristandade como um todo . 137
Também é dessa forma que Jean-Claude Schmitt defende o estudo da arte
medieval somada às relíquias, uma vez que esse conjunto de objetos materiais foi
137 Idem, pp. 213-232.
63
considerado, simultaneamente, como santos em si e como simbolizadores de um
sagrado transcendente, ocupando funções ao mesmo tempo rituais, devocionais, e
estéticas (a partir da encenação visível durante o ritual) . 138
O que uniria esses seria, justamente, sua utilização no culto e o fato de
compartilharem as mesmas tensões dialéticas. Isto é, serem modos de presentificação e
visualização do sagrado, ao mesmo tempo em que estão em um entre-lugar do
humano/divino, criado/fabricado, figurado/abstrato, morto/vivo e visível/invisível . 139
No texto de Suger, tal importância das relíquias aparece no momento do
translado de suas partes durante o ritual de consagração da fachada oeste do novo
edifício. Presidida pelo rei dos franceses e pelos arcebispos mais importantes, tal
cerimônia é narrada da seguinte forma:
(...) Por essa razão, o próprio rei, nosso senhor, lançando-se em meio a eles,
recebeu primeiro o relicário de prata de nosso especial protetor das mãos dos
bispos (...) e passou-o adiante de maneira devota e nobre. Visão maravilhosa!
Jamais alguém pôde ver tal procissão (...): os corpos dos Santos Mártires e
Confessores, retirados das tendas cobertas, dos ombros e pescoços dos bispos,
condes e barões encontraram-se com o santíssimo Dinis e seus companheiros
na porta de marfim, avançaram pelo claustro, carregando candelabros, cruzes e
outros ornamentos festivos, entoando muitas odes e hinos de louvor. Eles
transportavam seu Senhores afetuosamente, lacrimejando de alegria. Não
havia, onde quer que fosse, em momento algum, alegria maior capaz de
exaltá-los. Quando retornaram para a igreja e subiram os degraus para o altar
superior, destinado ao repouso dos Santos – depositadas as relíquias dos
Santos sobre o antigo altar – o ritual foi realizado no novo altar principal,
consagrado em frente à sua nova sepultura. (...) Os ritos foram realizados com
a mesma glória e solenidade nos outros vinte altares . 140
A citação demonstra com clareza a força que esses corpos veneráveis e os
artifícios que os cercavam possuíam na experiência religiosa desses personagens. Todos
esses objetos possuem papéis complementares na sacralização do novo edifício de
138 SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens – Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Edusc, 2007, p. 280-81. 139 Idem, p. 284 140 SUGER, De consacratione. RABELO, Marcos M. (trad.). op. cit. p. 127-129.
64
Suger, na medida em que todos são articulados pela presença do altar e se tornam uma
encenação ritual na ordem do visível, mobilizando a piedade individual aos movimentos
coletivos de adesão aos mistérios desses rituais . 141
Assim, as relíquias e as imagens, além de englobar e participar da construção do
paradigma cristão do corpo possuem três estatutos diferentes no período medieval: de
culto e veneração, de objetos de decoração (ornamentus) e de memorização (na medida
em que instruem a comunidade sobre suas origens, ligam-na à sua proteção espiritual e
edificam os fiéis para que permaneçam na fé cristã).
Fica claro, portanto, que as relíquias e objetos ornamentais e cultuais que as
cercam, participam, por sua natureza dupla, de um jogo entre a imagem e sua matéria,
cujo objetivo seria indicar um caminho ou um intermédio entre o mundo terreno e o
reino celeste.
Édina Bozóky lembra que as cerimônias de consagração e procissão de 142
relíquias eram uma forma de representação do poder nas sociedades medievais; isso
porque colocariam em cena uma comunicação social segundo a qual se esclarece a
unidade hierarquizada entre a igreja, o povo e seus chefes, ao mesmo tempo em que
demonstrariam uma ligação entre o sagrado e o interesse coletivo. Assim, o tripé que
envolveria o culto das relíquias na Idade Média (aquisição, transladação e exposição)
tornar-se-ia um instrumento extremamente eficaz de representação e propaganda do
poder, sendo possível concluir que em troca das cerimônias suntuosas e dos dons que
exaltariam suas relíquias, os santos ofereceriam benevolência, proteção, paz e
prosperidade aos seus benfeitores. Mas a autora lembra-nos, no entanto, que as relíquias
também possuem uma dimensão histórica: ao narrar suas origens é possível remontar à
fundação gloriosa da abadia (e aqui Suger é, mais uma vez, o modelo a quem se
referencia) e ao passado honroso do qual o reformador se coloca como continuador . 143
Note-se que a bibliografia escolhida sobre o tema coloca no centro da questão a
função social dos objetos fabricados pelos homens, obliterando, em parte, a análise
formalista do estilo como proposto por leituras mais tradicionais da história da arte.
Assim, a análise estética que empreendem é definida por uma convicção antropológica
de que o estudo das aparências em relação a existência social, ou seja, a apreciação da
141 SCHMITT, op. cit., p. 299. 142 BOZOKY, E. op. cit. 2006. 143 Idem, p. 131.
65
forma, deve elucidar repercussões e demonstrações históricas . No entanto, é preciso 144
um adendo para que quede claro que este tipo de leitura não resolve a questão da relação
entre ideia e forma ou contexto e estilo. O fato de privilegiar-se uma abordagem não
subtrai os méritos e contribuições da outra. Podemos ouvir o eco dessas palavras nas
frases de Sérgio Miceli:
O objeto por excelência da história social da arte é o exame das condições peculiares
dessa interação entre o artista e o contexto, ou melhor, o desvelar de como um conteúdo
de experiência se transmuta em forma, como um dado acontecimento se congela numa
imagem, de que maneira certa estrutura de sentimentos se condensa numa representação
(...), num emaranhado de tensões que se convertem em valências de uma linguagem
formal. 145
Dito de outra forma e tomando como base o período medieval especificamente,
o cristianismo tardo-antigo e medieval não se interessava pela obra de arte a não ser na
medida que ela fornecia um medium que permitisse a ascensão a qualquer coisa além
dela mesma . 146
Tal escolha teórico-metodológica se justifica ao notarmos a maneira pela qual
Suger decide explicar suas motivações para a reforma de Saint-Denis. Contando a
história da Catedral desde sua fundação, o abade faz questão de ressaltar que o rei
Dagoberto, rei magnânimo e excelente administrador sob os olhos panegíricos de Suger,
ao descobrir as imagens dos Santos Mártires resolveu erigir uma basílica, construída
com a munificência real. Além de ordenar construí-la, Dagoberto
144 BINSKI, Paul. Becket’s crown – Art and imagination in gothic England, 1170-1300. Yale University Press. 2004, p. xii. 145 MICELI, Sérgio. Por uma história social da arte, in: Clark, T. J. A pintura da vida moderna – Paris na arte de Manet e de seus seguidores, Companhia das Letras, 2004, p. 16. 146 IOGNA-PRAT, Dominique. La Maison Dieu, Éditions du Seuil, Paris, 2006, p. 23. É importante ressaltarmos que a tensão entre as categorias de análise da história da arte são também elas frutos da presença do tempo. Não se trata de defendermos uma substituição da análise do estilo pela ideia da obra como médium. A questão está, mais uma vez, na ênfase. Ao tomarmos as obras pela sua potência de comunicação do imaginário de um abade no século XII não ignoramos que esses objetos possuem formas específicas e que há uma dimensão formal importante na maneira em que eles são apresentados ao mundo. No entanto, essa pesquisa busca compreender os motivos pelos quais esses objetos eram encomendados e expostos.
66
(...) enriqueceu-a de modo inestimável com copiosos tesouros de ouro e prata
puríssimos e fez suspender, em suas paredes, colunas e arcos, tapeçarias
tecidas com ouro e ricamente adornadas com grande variedade de pérolas, para
que parecesse sobrepujar os ornamentos das outras igrejas e, florescendo com
um brilho de todo incomparável e adornada com toda a beleza terrena,
brilhasse com inestimável encanto. 147
Para o abade, haveria uma única falta no edifício construído a mando de
Dagoberto: a despreocupação com o tamanho que seria necessário para abrigar e,
sobretudo, expor de maneira adequada todos esses encantos. Tal falta é o que dá
legitimidade à sua reforma. Suger afirma que a falta de espaço teria se tornado um
problema não só em relação à forma, mas verdadeiro incômodo a todos os visitantes que
prestavam sua veneração às relíquias que a igreja abrigava, especialmente as relíquias
da Paixão. O abade, então, coloca-se no texto como um aluno aplicado que, chegada sua
hora, empenhou-se decisivamente a corrigir esse erro. De seu ponto de vista a
ampliação do dito local era uma empreitada necessária, justa e honesta.
É importante frisar que os tesouros ocupam lugar fundamental no discurso sobre
a grandiosidade e o esplendor de uma igreja no texto de Suger; o que acontece também
no capítulo IV, no qual a transformação das estruturas arquitetônicas, bem como a
ampliação das abóbodas ganha justificativa pela necessidade de um lugar mais alto para
contemplação dos visitantes dos relicários dos santos, adornados com ouro e pedras
preciosas . 148
Segundo o historiador Xavier Barral i Altet , os séculos XI e XII teriam 149
assistido a um aumento nas coleções institucionais eclesiásticas. Isso porque a
rivalidade entre essas instituições se traduziria em encomendas de relicários preciosos.
Ao mesmo tempo, seria preciso rever os planos arquitetônicos das igrejas para colocar
em destaque o próprio tesouro e suas relíquias (na maioria das vezes em um altar, o que
o autor chama de “mise em scène du pouvoir”), assim como canalizar o fluxo dos
peregrinos.
147 SUGER, De consacratione. RABELO, Marcos M. (trad.). op. cit. p. 93 . 148 Idem, p. 109. 149 ALTET, Xavier Barral i. Reliques, trésor d’églises et création artistique. In : DELORT, Robert (dir.). La France de l’na Mil. Éditiond du Seuil, 1990, p. 184-213.
67
Esses espaços arquiteturais novos corresponderiam às necessidades litúrgicas e
colocariam em evidência as relações existentes entre os patronos laicos e eclesiásticos
para a constituição de um tesouro, como afirmou Éric Palazzo ao comparar as igrejas 150
medievais a relicários monumentais, nos quais a apresentação das relíquias e objetos
maravilhosos fariam parte de uma performance ritual que poderia, inclusive, ampliar o
espaço arquitetônico.
Em última instância, o tesouro seria o responsável pela distinção entre uma
abadia e uma pequena igreja, além da expressão, segundo Altet, da riqueza espiritual e
material da primeira, pela sua própria característica monumental . 151
Por isso, é preciso acentuar que a ação proposta por esses objetos e a partir deles
só passa a ser salutar nessas comunidades a partir do momento em que o princípio da
visibilidade se converteria em principio norteador de práticas sociais. Para Altet, a partir
do século XII é possível perceber que a acumulação sistemática desses objetos constitui,
ao mesmo tempo, capital simbólico e financeiro dessas instituições . 152
É possível argumentar, portanto, que as cerimônias centralizadas nesses objetos
possuem também caráter espetacular, de ordem teatral, que colocam em questão a esfera
pública do culto das relíquias, bem como afirmam as alianças terrenas, políticas e
espirituais que esse culto propõe, e criam memórias visuais e escritas de sua
magnificência . Da mesma forma, tal espetáculo estabelece normas e hierarquias entre 153
seus personagens, assim como estabelece certa gestualidade permitida em torno dos
restos mortais dos santos.
Enquanto fenômeno da visualidade, esses objetos possuem espectadores que, de
maneira semelhante aos observadores de imagens, possuem um adestramento do olhar,
na medida em que ressignificam e interpretam esses objetos a partir da sua
contemplação demorada e da disposição da participação nos momentos rituais. Para
Eduardo Pellejero
150 PALAZZO, Éric. Relics, liturgical space, and the theology of the Church. In: Treasures of Heaven – saints, relics, and devotion in medieval Europe (catalogue), Yale Press, 2011. 151 ALTET, op. cit. 1990, pp. 198-202. 152 Idem, ibidem. 153 BOZÓKY, Édina. La politique des reliques – de Constantin à Saint-Louis, Beauchesne Éditeur, Paris, 2006.
68
os dispositivos imagéticos podem cobrar a adesão total do nosso olhar, manipular-nos,
como temem os detratores. Mas também podem desafiar-nos a ver e a interpretar, isto é,
sentir pela própria sensibilidade, a pensar pela própria razão. As imagens não carecem
de realidade, mas a sua realidade não é simples: pressupõe operações complexas, muitas
vezes inéditas, que jogam com o dizível e o visível, com o espaço e com o tempo, com a
causalidade e a expressão, com nossas expectativas e as nossas reservas (...) . 154
Tal abordagem leva em consideração que as imagens e/ou objetos preciosos são
produzidos e colocados em evidência a partir da premissa da existência de um
espectador que participa também de sua visibilidade e reelaboração, cuja sensibilidade é
o alvo dessa mesma imagem ou exposição.
Como vimos, Altet defende que a preocupação crescente com tal teatralidade
deriva da rivalidade entre as instituições eclesiais, e se traduz na política de aquisição
das relíquias que aumentariam o prestígio de seu possuidor, além da encomenda de
relicários ornamentados em ouro e pedras preciosas que aumentariam seu caráter
ostentatório . 155
Para acentuar essa ostentação os líderes eclesiásticos, um abade como Suger, por
exemplo, poderiam alterar o plano arquitetônico de suas igrejas, para ressaltar o valor de
suas relíquias e tesouros, além de canalizar o fluxo dos peregrinos. Agora, vejamos o
que escreve Suger sobre o assunto:
Nesse meio tempo, especialmente solícitos com a transladação dos nossos
patronos – os santíssimos Mártires e de outros Santos que, espalhados pela
igreja, eram adorados em diferentes capelas -, animamo-nos a ornamentar,
zelosamente os seus sacratíssimos relicários, em especial o dos Patronos, e,
elegendo um local para onde eles deveriam ser transferidos e onde poderiam
ser contemplados pelos visitantes da maneira mais gloriosa e conspícua . 156
A exposição (expositio) desses objetos deveria ser um jogo de representações do
poder e do prestígio das instituições eclesiásticas. Para Altet a atividade arquitetural, a
gestão das relíquias e de seu culto, a encomenda e a fabricação dos relicários e outras
154 PELLEJERO, Eduardo, A lição das imagens – Duas observações sobre O espectador emancipado, AISTHE, vol. III, n. 12, 2014, p. 76. 155 ALTET, op. cit., p. 189. 156 SUGER, De consacratione. RABELO, Marcos M. (trad.). op. cit., 113-115.
69
peças de ourivesaria demandavam um crescimento constante da fortuna da abadia, uma
administração atenta dos bens e um controle da massa monetária que representava o
tesouro, símbolo da riqueza material e espiritual da igreja ao serviço divino . 157
Portanto, o culto das relíquias, os tesouros das igrejas e as atividades artísticas
estão intrinsecamente ligado na França do ano mil. A riqueza material dos edifícios
religiosos, importante para dar prestígios às ofertas dos peregrinos, acompanham uma
produção intensa de ourivesaria destinada a valorizar as relíquias dos santos e tornar
renomada a instituição e a comunidade às quais elas pertencem . 158
É notável que o fim último da escrita de Suger seja justamente o de sintetizar
essas dimensões para construir a memória de suas ações, como vimos acima. Isto é
dar conhecimento aos nossos sucessores da gloriosa e digna consagração desta
santa igreja a Deus, e do muito solene translado de nossos preciosíssimos
mártires (...) por que, em que ordem, quão solenemente e também por quais
pessoas esses atos foram realizados, de modo a agradecer da melhor maneira
que pudermos à Divina Graça por tão grandioso presente, a fim de obter uma
intercessão favorável junto a Deus e de nossos santos protetores, tanto pelo
cuidado dispensado a tão grande obra quanto pela descrição de tão grande
celebração . 159
Tais bases estabelecem a maneira pela qual Suger deseja inserir-se na história da
abadia a fim de criar um modelo de abade e também de Catedral, sua versão de
Saint-Denis. Tal modelo tem, em seu epicentro, a exaltação dos corpos veneráveis dos
santos patronos e seu enriquecimento através de encomendas artísticas; e rituais que os
tornam espetaculares e visíveis aos fiéis desta comunidade.
É interessante perceber que, com tamanho afluxo de pedras preciosas chegadas a
St. Denis durante o processo de reforma e ampliação, Suger faz uma advertência aos
possíveis ladrões, entregando-os à fúria do patrono Dinis e do Espírito Santo. Segundo
Patrick Geary , as advertências aos possíveis roubos de relíquias são também uma 160
estratégia retórica para aumentar o prestígio e popularidade de seus detentores.
157 ALTET, op. cit., p. 194-198. 158 Idem, p. 204. 159 SUGER, De consacratione. RABELO, Marcos M. (trad.). op. cit. p. 91-93 160 GEARY, Patrick. Furta Sacra: Thefts of Relics in the Central Middle Ages . Princeton University Press, 2011 [1975].
70
Rabelo nota que a existência das chamadas relíquias da Paixão de Cristo e dos 161
mártires na abadia realçava ainda mais sua posição como local de peregrinação e,
sabendo disso, Suger promoveria a preservação e o destaque dessas relíquias em sua
versão de St. Denis. Então, o interesse dos homens poderosos no culto das relíquias se
daria por uma razão sobretudo política: esses objetos dariam acesso ao sagrado e tal
seria indispensável, para o estabelecimento de toda autoridade política na Idade Média.
Suger nos conta:
O ilustre rei, em pessoa, ofereceu de bom grado esmeraldas, brilhantes e
marcadas; o conde Thibaut, jacintos e rubis; nobres e príncipes, preciosas
pérolas de diversas cores e qualidades; tudo isso nos induzia a terminar essa
obra de maneira gloriosa. 162
Desse modo, existiria um interesse coletivo na obtenção e preservação desses
objetos, uma vez que são tidos como meios para a proteção e estabilidade espiritual do
reino (stabilitas regni) e possibilitariam aos reis construírem-se como mantenedores da
paz, por meio da concordância e harmonia promovidas pelos milagres que a presença
das relíquias possibilitaria . 163
Quanto à consagração final da obra, em 1144, destaca-se, mais uma vez, a
preocupação com a solenidade e magnificência do evento , bem como a presença da 164
família real e de todos os principais nobres, além dos arcebispos e bispos nomeados
individualmente no capítulo VI do De Consacratione.
Uma vez que todos esses haviam vindo a tão nobre e grandiosa cerimônia, com
tamanho aparato e com a magnificência de mais altos dignitários de suas
igrejas, sua ornamentação externa e vestimenta demonstrava a intenção do
interior de sua mente e corpo (...) [as questões externas] nós havíamos
ordenado que fossem promovidas em abundância.
161 RABELO, Marcos M. op. cit, 2005, Introdução. 162 SUGER, De consacratione. RABELO, Marcos M. (trad.), op. cit. p. 117. 163 BOZÓKY, Édina. op. cit., 2006, p. 6. 164 A cerimônia de consagração é enquadrada por Françoise Gasparri (op. cit. 2000, p. 103) dentro da ordo dignatatis de Hugo de Saint-Victor, e em consonância com o ordo Pontificale Romanum, segundo Andreas Speer (op. cit. 2004, p. 103) Ambos textos do século XII.
71
O abade narra a magnitude desses homens e de suas vestimentas de tal modo
ofuscantes e destaca a participação de Luís VII na consagração dos altares: segundo o
relato o rei teria pego o primeiro relicário de prata e liderado a procissão entre os hinos
de louvor, realizando o rito com a mesma solenidade na consagração dos outros vinte
altares . 165
Para Dominique Iogna-Prat seria possível descrever a Cristandade medieval
(pelo menos a partir do século IX e da afirmação do poder carolíngio) possuindo como
força ou laço de sua estruturação a Igreja (Église). Nesta, a sociedade ganharia sua
visibilidade realizadora através da constituição de lugares considerados específicos, tais
como a igreja-monumento, designada a partir daí como ecclesia. Segundo o historiador,
a Igreja, em sua realização material (a comunidade somada aos bens eclesiásticos) nos
convida a interrogarmo-nos sobre a relação dos homens com o espaço. Isto é, em um
período em que Igreja e sociedade são termos coextensivos sob o enquadramento das
estruturas prediais eclesiásticas, consideradas como santas ou sagradas, seria possível
vislumbrar a elaboração de molduras sociais mais amplas, do controle das populações e
manejo dos poderes . 166
Tal enquadramento, seguido por suas hierarquias específicas, tomaria forma
visível e sensorial durante o ritual de consagração e de fundação da primeira pedra (a
pedra angular). Nele aparece o fundador-construtor, Luís VII na cerimônia da primeira
consagração de Saint-Denis, em 1140, como vimos.
Ao “eleito” se designa a consagração da primeira pedra ou o transporte dos bens
preciosos. No relato de Suger, cabe ao rei, já em 1144, a consagração do novo chevet da
basílica portando com suas próprias mãos o relicário de prata contendo as relíquias do
patrono do monastério. Dessa forma, Iogna-Prat nos explica a reincidência de uma
tradição antiga durante o período capetíngio, qual seja a de colocar em cena o soberano
no momento do acolhimento das relíquias e da colocação dos santos em sua
nova/reformada residência. Tratando-se de um mundo heterônimo, no qual a ordem e as
hierarquias correspondentes fazem referência ao plano das harmonias divinas, o lugar e
o tempo das intervenções dos atores nas grandes cerimônias são objetos de uma
“etiqueta necessariamente rigorosa”.
165Idem, p. 129. 166 IOGNA-PRAT, Dominique. op. cit. p. 18-9.
72
Avançando na leitura da empreitada de Iogna-Prat, encontramos uma definição
interessante sobre as construções eclesiásticas, a de um “jogo de poderes
fundamentalmente binário”, que já usamos acima. Para ele, é possível identificar dois
prismas claramente definidos nesse momento. O dos poderosos laicos e o dos clérigos,
funcionalmente em posição privilegiada de consagrar os atos piedosos de edificação
pessoal exercidos pelos primeiros.
Dessa forma, a construção ou reformas de edifícios eclesiásticos, bem como suas
cerimônias de consagração tratavam da dialética entre esses dois poderes e seu
equilíbrio enquanto forças socialmente dominantes. Partindo de Suger como escopo
para seu estudo sobre esse tema específico, Iogna-Prat nos explica que a participação de
Luís VII na posse da primeira pedra da Saint-Denis reformada, assim como sua
dedicação do novo chevet, não possuem outro sentido senão o de recolocar e rearranjar
em molduras ideais a relação entre o reino e a abadia. Nos sonhos de Suger, perenizados
por seus escritos, o soberano se tornaria vassalo de são Denis, o santo patrono de
Saint-Denis, e a basílica se transformaria no epicentro da monarquia capetíngia . 167
Diante desses dados evocamos, a título de conclusão, outro texto de Pierre
Alain-Mariaux . Desenvolvendo algumas propostas de Dominique Iogna-Prat, 168
Mariaux afirma que durante a consagração de uma igreja, especialmente a partir do
século XI, o edifício físico se tornaria uma imagem da igreja celeste, ao mesmo tempo
em que colocaria em cena as relações existentes entre a terra e o céu.
Assim, as alegorias sugeridas por Suger e os próprios objetos usados na
procissão de consagração teriam inerentes em si a dimensão de mediadores materiais e
espaciais, na medida em que permitem uma passagem do ideal ao material e do invisível
ao visível. Ao materializar essas concepções, seriam “pontos de contato com o céu” . 169
Dessa forma, itens doados a uma igreja passariam por uma transformação e
ascenderiam a outro nível hierárquico, imortalizando-os para a história assim como ao
seu doador. Tal tese também foi defendida por Phillipe Buc em seu famoso texto
167 Idem, p. 567-71. Há ainda outro motivo pelo qual o autor afirma que Suger é um ponto fulcral de seu trabalho. Sobre isto ver, do mesmo autor, Architecture d’intérieur, in: La Maison Dieu. Ou o capítulo 1 desta dissertação. 168 MARRIAUX, Pierre Alain. Mettre en scène le souvenir du fondateur laic. In : MEHÚ, Didier (org.). Mise en scène et mémoires de l’consécration de l’Église dans l’Occident médieval. Brepols, 2008, p. 327-347. 169 MARIAUX, op. cit. 2008, pp. 327-337.
73
Conversion of objects ao analisar o De consacratione de Suger. No decorrer das linhas o
autor demonstra como as cerimônias de consagração dos altares recém-construídos da
Catedral reformada, bem como dos relicários que eles abrigavam, estabelecem uma
hierarquia no edifício eclesiástico que é sintomática da hierarquia social, com o rei
como pivô e a participação incisiva do arcebispado. De tal forma que esse tesouro
exposto passaria a demonstrar, de uma só vez, a hierarquização e a síntese social
presentes nesse contexto . 170
(...) animamo-nos a ornamentar, zelosamente, os seus sacratíssimos relicários,
em especial o dos Patronos, e, elegendo um local para onde eles deveriam ser
transferidos e onde poderiam ser contemplados pelos visitantes da maneira
mais gloriosa e conspícua, empenhamo-nos para que fosse feito, com a ajuda
de Deus, um túmulo muito ilustre, pela magnífica indústria da arte dos ourives
e pela riqueza do ouro e das pedras preciosas. 171
O objetivo de tantas ornamentações é descrito logo abaixo: a generosidade dos
patronos, especialmente experimentada na proteção sentida e carecida por Suger durante
seu período de ação faz sentir a necessidade de encobrir suas cinzas (enquanto 172
“espíritos veneráveis”) com o material mais precioso possível, ou seja, com ouro
refinado, jacintos, esmeraldas e outras pedras preciosas. Da mesma forma, erigiu-se um
altar para a celebração da eucaristia, coberto com um painel dourado que, no relato,
teria sido dado pelos próprios mártires como prova de que era esse seu desejo: que tudo
fosse feito de ouro.
O ouro, material precioso por excelência apareceria, por fim, como símbolo da
opulência essencial do tesouro, e tornaria, por sua exposição, impossível dissociar a arte
da liturgia, ou seja, do contato com o espiritual através da celebração ritual. Tal ação
estaria na base da transformação desses objetos em símbolos da riqueza material e
170 BUC, Philippe. Conversion of objects, Viator – Medieval and Renaissance Studies, volume 28, 1997, pp. 99-140. 171 SUGER, De consacratione. RABELO, Marcos M. (trad.), op. cit. p. 115 172 O sucesso das obras é também destacado no texto como consequência da boa atuação de Suger como administrador de terras, duplicando ou triplicando os rendimentos dos locais cultiváveis e tornando cultiváveis os que antes eram improdutivos; ou seja, enquanto bom abade Suger também foi responsável por aumentar a produtividade de seus domínios, e a riqueza de sua abadia para a realização e término das reformas que ele próprio comandou e empreendeu (SUGER, De consacratione. RABELO, Marcos M. (trad.), op. cit. p. 111). Sobre isso, rever o capítulo 1 desta dissertação.
74
espiritual e, ao serem oferecidos ao serviço divino, poderiam contribuir para o 173
engrandecimento do culto e de seus doadores . 174
Parece-nos que qualquer avaliação sobre o estabelecimento de Saint-Denis no
século XII, bem como a história da consolidação de seu tesouro sob a tutela real
francesa, tem de levar em consideração os aspectos d’O Segundo Livro sobre a
consagração de Saint-Denis, escrito pelo abade Suger. No entanto, entre as motivações
da criação da nova catedral é preciso dar destaque às preocupações evocadas pelo
próprio abade para a exposição de seu tesouro, através de inovações arquitetônicas que
aumentariam a fama de Saint-Denis e de seus benfeitores, Suger e o monarca Luís VII,
eternizando-a visualmente.
Entendemos que os estudos sobre o período medieval e suas transformações,
continuidades e descontinuidades, não deve restringir-se ao debate historiográfico sobre
os manuscritos, sua tradição e sugestões interpretativas. Uma abordagem comparativa
sobre o tema, levando em consideração objetos materiais que são privilegiados por
determinadas autoridades estabelecidas, podem enriquecer a conversa e lançar nova luz
sobre assuntos antes considerados definidos. O balanço bibliográfico que realizamos até
aqui chama nossa atenção para esse fato. Os autores que trabalhamos advertem-nos para
o risco de uma abordagem puramente textual dos assuntos, bem como para o outro
extremo ao lidarmos com os objetos materiais, a pretensão de classificá-los sob uma
categoria que busque definir um estilo artístico, mas se isente de avaliar suas tensões.
173 É importante lembrar que, segundo Panofsky e a teoria da metafísica da luz, o ouro não é apenas material precioso ou símbolo, mas é luz, é anagogia, e coloca visualmente a dimensão ritual ou da experiência dos sentidos dentro da Catedral. 174 ALTET, op. cit. 1990.
75
Capítulo 3 - Manter o invisível visível: a catedral, os objetos, a revolução e o patrimônio.
“Le trésor va alors devenir le prétext à la collection.” (POMIAN K., Collectionneurs, amateurs et curieux : Paris, Venise XVI-XVIIIe, 1987, p. 51)
«Les églises devinssent les musées de la mémoire nationale.» (VON SCHLOSSER Julius (trad. L. Marignac), Les Cabinets d'art et de merveilles de la Renaissance
tardive, 2012, p. 82)
Escrever sobre os objetos medievais em 2019 pode parecer tarefa memorialística
ou, do âmbito restrito da pesquisa científica em História, sem nenhuma repercussão
direta nas relações cotidianas além daquelas que a própria historicidade oferece.
No entanto, a perspectiva das mudanças climáticas e a nossa relação com os
objetos parecem demonstrar que estamos carentes de outras formas de significação para
aquilo que possuímos.
Dessa forma pode-se, grosso modo, situar essa pesquisa no âmbito das tentativas
de contrapontos aos descartes cotidianos da vida capitalista e na busca por maneiras
diversas de significar, possuir e expor os objetos nas sociedades humanas ao longo do
tempo para que seja a reflexão contemporânea acerca dessas categorias. O que esse
capítulo intentará é investigar de que maneira e sob quais afirmativas os objetos de
Saint-Denis foram ressignificados pela historiografia especializada e pelos museus que
deles tomaram posse na forma de patrimônio nacional.
Por isso, além do que já fizemos até aqui (investigar as interpretações sobre
como e por que Suger teria constituído um tesouro de objetos preciosos em
Saint-Denis), esse texto também discutirá as mudanças de estatuto pelas quais as peças
passaram desde o século XII.
Em janeiro de 2019 a necessidade de mapear os objetos do tesouro de
Saint-Denis e de esmiuçar a relação entre a história do período privilegiado por essa
dissertação e a memória histórica francesa tornou relevante a visita ao monumento e à
cidade de Paris.
Tal viagem tinha como objetivo não só visitar a Catedral em seu estado atual,
como também levantar os objetos remanescentes em exposição in loco ou no Museu do
Louvre e sua procedência até o estado atual.
76
O museu do Louvre possui três dos vasos litúrgicos encomendados por Suger no
século XII, o quarto - O cálice de Suger - está na Galeria Nacional de Washington, nos
Estados Unidos. Os vasos conservados no Louvre são originários da Antiguidade e
foram refeitos durante o abaciado de Suger.
Além das pranchas que guiam nosso caminho pela “Sala Suger”, duas
publicações do Louvre tem por objetivo introduzir o visitante no universo dos tesouros
medievais. A primeira delas, um pequeno espiral com breves descrições dos objetos e
ilustrações, foi organizado em 1991 por Elisabeth Taburet-Delahaye e impresso na
Coleção Chercheurs d’art do museu. Seu argumento central no que se refere ao período
de que trata essa dissertação é o de que Suger foi bem-sucedido no estabelecimento de
uma tradição de enriquecimento do tesouro da abadia como uma das funções
elementares de seus líderes, bem como na criação de um fluxo de doações,
especialmente reais, para Saint-Denis.
Le trésor bénéficia de ces relations privilégiés avec les rois de France [especialmente
nos séculos subsequentes a Suger]. La plupart d'entre eux voulurent montrer leur
générosité et prouver leur attachement à l’abbaye royale en lui faisante d’importants
cadeaux . 175
A autora cita exemplos de rainhas que exerceram sua generosidade e caridade nas doações à abadia real e, especialmente, o imperador Carlos IV (1346-1380). Ele teria sido um grande protetor das artes e grande construtor, modificando a fortaleza do Louvre construída no reinado Philippe Auguste em uma residência real, cujas estruturas ainda é possível visitar no museu atual - na ala “Louvre médiéval”. Além disso, Carlos IV teria sido um grande colecionador e benfeitor de Saint-Denis, doando numerosos relicários, cálices e pequenas esculturas. No entanto, boa parte desses objetos desapareceu, graças aos tumultos enfrentados pela França durante as guerras religiosas do século XVI e, principalmente, na Revolução Francesa . 176
No entanto, o catálogo fundamental da coleção de Saint-Denis no museu do Louvre é o Le trésor de Saint-Denis . Logo na abertura os patrocinadores da 177
175 TABURET-DELAHAYE, Elisabeth. L’abbaye de Saint-Denis et son trésor. Musée du Louvre, Paris, 1991, Collection Chercheurs d’art, p. 10 176 Idem, p. 11 177 ALCOUFFE, Daniel (org.) Le trésor de Saint-Denis au Louvre , Réunion des Musées Nationaux, Paris, 1991. Esse catálogo foi adquirido pela Biblioteca Octavio Ianni da Universidade Estadual de Campinas.
77
empreitada, Jack Lang e Robert F. Daniell, condensam a maneira pela qual as autoridades francesas percebem a coleção hoje:
La vocation première des trésors d’églises fut de s’offrir à la vénération religieuse mais,
très tôt, est venue s’y associer une autre fonction qui préfigurent déjà celle des musées :
préserver des oeuvres rares et belles, chargées d’une signification historique ou
symbolique, souvent légendaire et politique. [...] Si l’histoire du trésor de Saint-Denis,
de ses dispensions et de ses regroupements, reflète celle de bien d’autres trésors sacrés,
c’est pourtant un ensemble unique par le magnificence et la beauté de ses oeuvres qui
est ici réuni (...).
E Robert Daniell:
L’abbaye de Saint-Denis a recelé des fleurons du patrimoine artistique de la France.
Sculptures, bijoux et orfèvrerie y ont composé l’un des plus riches trésors
ecclésiastiques d’Europe . 178
As oitenta páginas que se dedicam ao abaciado de Suger e a descrever os objetos que ele encomendou de maneira esplêndida e cuidadosa se iniciam com a prerrogativa de que as atividades artísticas em Saint-Denis, principalmente as de ourivesaria, teriam surgido da necessidade de justificar a autenticidade das relíquias que a abadia possuía. Tal ímpeto teria estimulado os religiosos de Saint-Denis a compor uma série de atos, cartas e decretos para evitar a fama de produzir falsidades . 179
No entanto, Alcouffe concorda com Gasparri ao afirmar que Suger é um dos primeiros homens medievais a tentar analisar e nomear o “prazer estético”, e, ainda que místico ou transcendental, vinculado aos objetos preciosos e reluzentes . 180
O que nos parece digno de nota é o afluxo de grupos dispersos pelo continente europeu para trabalhar em Saint-Denis:
Pour la réalisation de tous ces monuments, Suger nous dit avoir fait appel à différents
groupes d’orfèvres: le plus célèbres, qu’il appelle les lotharingi sont les orfèvres qui
firent le pied de croix, sans doute des orfèvres et émailleurs mosans; il semble, mais la
178 Idem, Preâmbulo. 179 Idem, p. 121. 180 Para a contabilização de todas as peças presentes na abadia no tempo de Suger e instalados na nova Catedral ver p. 122-124; p.130-189. Os objetos incluem souvenirs de Carlos Magno, estelas esculpidas, vasos bizantinos, manuscritos iluminados, relíquias dos santos, vasos litúrgicos. Esses objetos também são descritos por Suger na segunda parte de seu tratado De Administratione, traduzido por Selene Candian dos Santos para o português, em 2014. SANTOS, Selene Candian dos. op. cit., 2014, vol. 2. p. 58-97.
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question reste suspens, que ce soient les mêmes que Suger appelle les barbari, plus
dépensiers que les orfèvres locaux et qu’il fit travailler à cette table au revers du
maître-autel dont l’iconographie typologique connut un grand développement dans l’art
mosan et rhénan de la seconde moitié du XIIe siècle. Des orfèvres ‘provenant de
différents régions’, ce qui n’exclut pas les Français, furent chargés de la grande croix
d’or; enfin les nostrates doivent avoir été des orfèvres locaux auxquels on doit les
parties latérales du maître-autel et, selon tout vraisemblance, les montures de vases
liturgiques, seuls survivants des oeuvres d’art précieux exécutées pour Suger . 181
A fama atual de Suger viria, portanto, de seus escritos - como analisamos acima
- e de seus quatro vasos sobreviventes. Estes, por sua vez, descritos com entusiasmo tornaram o abade uma figura incontornável. Para Alcouffe eles possuem, além do mesmo comendador, uma coerência conceitual e semelhanças estilísticas e técnicas. O trabalho em pedra, a densidade e as cores da pedra sardônica, o trabalho escultórico e a esmalteria em ouro, bem como sua origem comum os tornam um testemunho do trabalho de ourivesaria em Saint-Denis no período de Suger . 182
No entanto, esses são os objetos que sobreviveram. Isso porque, segundo nos conta Alcouffe, a partir do século XVI a quantidade de doações e o prestígio da abadia passam a ser contestados não só por outras catedrais francesas, como Notre-Dame de Paris, mas pelo surgimento e propagação de outras religiões cristãs. Para o autor a segunda metade do século XVI é um dos períodos mais sombrios da história da abadia. No saque de 1567 as tropas protestantes que tomaram Saint-Denis destruíram ou pilharam os pés da cruz de Suger, o tabernáculo dos corpos santos, os mobiliários litúrgicos e as peças de ourivesaria . 183
Em 1589 a própria comunidade de Saint-Denis se desfaz de boa parte de seu tesouro pelos prejuízos com epidemias, a necessidade de pagar os altos impostos cobrados por Henri II e as pilhagens de guerra que havia reduzido significativamente os rendimentos da abadia . 184
Já entre 1610-1626 a rainha Marie de Médicis ordena adequações no tesouro e em sua exibição para ocasião de sua coroação. Mas, é em 1686 que a decadência da abadia no panorama da política real francesa e, portanto, como local de afluxo de doações proeminentes é anunciada.
181ALCOUFFE, Daniel (org.) op. cit., 1991 p. 126 182 Para uma descrição detalhada dos vasos de Suger ver os Anexos IV-VII. 183 ALCOUFFE, Daniel (org.) op. cit., 1991, p. 320. 184 Idem, p. 321.
79
(...) la suppression effective de la mense abbatiale au profit de Saint-Cyr, eut pour
conséquence la disparition de la charge d’abbé de saint-Denis et concrétise la décadence
de l’abbaye. Les regalia continuent à être déposés dans le trésor (...) mas le trésor, en
fait, survivait À grand peine et était entré dans une sorte de léthargie que rompait
seulement les visites des spécialistes des objets antiques ou médiévaux . 185
O golpe final para o tesouro abacial, tal como imaginado e perenizado por Suger
em seus escritos para garantir a importância e majestade de Saint-Denis, é o estopim revolucionário.
Antes de passarmos à análise da trajetória desses objetos da Revolução até as
salas do museu, é necessária uma breve reflexão sobre o sentido de sua exposição ali.
Dominique Poulot, em Histoire des musées de France - XVIIIe- XXe siècle , 186
escreveu que a especificidade dos museus franceses, em relação aos museus de outros
países europeus, é sua origem revolucionária. O fato de que sua construção repousa
sobre o confisco de bens eclesiásticos, a nacionalização das antigas coleções reais e as
vitórias militares . De caráter iluminista, o museu francês buscaria suprimir a 187
autoridade da tradição de maneira a regenerá-la pela liberdade revolucionária, pela
emulação dos grandes artistas e pela instrução popular transmitindo os valores e as
lições dos novos tempos. O autor situa a questão dos museus à Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, na medida em que o acesso às obras de arte e aos objetos do
passado ressignificados pelo processo revolucionário seriam uma demanda legítima que
porta o ideal de aprendizado do Belo e dos princípios de sua constituição.
[...] l’idée d'héritage éclairé qui semble tout à la fois de moyen de dissiper l'ignorance,
de perfectionner les arts, de réveiller l’esprit public et d’entretenir l’amour de la patrie.
Ainsi la réflexion sur la mémoire des chefs-d'oeuvre et des grands hommes, dans le
dessein d’édifier les peuples, accompagne l’élaboration d’une esthétique essentielle au
nouvel établissement. 188
185 Idem, p. 323. 186 POULOT, Dominique. Histoire des musées de France - XVIIIe- XXe siècle, Éditions La Découverte, 2008. 187 Especificamente sobre este último aspecto ver o brilhante filme de Alexandr Sokurov sobre o Museu do Louvre, Francophonia - Louvre sob Ocupação, 2016 188 POULOT, op. cit. 2008, p. 6.
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Inaugurado em 1793 sob o nome de Muséum central des arts de la République,
o Museu do Louvre passa a ser, pouco a pouco e em conjunto com o Museu de
Versalhes, o lugar de “consagração das glórias de uma França que renovou os filhos de
sua história”. Essa primeira função é também a primeira justificativa da existência de
um museu primariamente composto de objetos de saque. Em seguida, segundo Poulot,
uma série de dispositivos, de elementos materiais do passado, enviesados como indícios,
testemunhos e ensinamentos passam a contribuir, enfim, para a ordenação da história . 189
Tal discurso republicano do museu é marcado pelo acento da educação universal e pela
ideia de utilidade pública e cívica, de modo a estabelecer as narrativas e os locais
autorizados e privilegiados para a construção dos significados para a arte e para o
passado, bem como para a produção de valor sobre esses objetos . 190
Como não poderia deixar de ser, a obra de Poulot relaciona o surgimento dos
museus ao fenômeno do colecionismo nos séculos XVII e XVIII. Para ele, colecionar
era sinônimo da necessidade de arranjar os elementos da experiência antes dispersos,
num grau de percurso, da ambição de classificar as peças e colocar em ordem os objetos
em sua forma, atribuindo-lhes sentido. A coleta de objetos estaria ligada, portanto, ao
levantamento de informações sobre o passado, sobre lugares distantes e “exóticos”, bem
como ao estabelecimento de um saber. Além disso, a coleção seria um testemunho da
reputação de seu colecionador e de seu público, na medida em que celebra a capacidade
de reordenação, recomposição e a inteligência de seu articulador . A sistematização 191
das coleções criaria uma rede de interlocutores úteis e acionaria os recursos e as
informações compartilhadas entre colecionadores, mercadores, para o acúmulo e a
construção social desses objetos.
Para Poulot a compreensão do advento das coleções é inseparável do
aparecimento, em meados do século XVIII, dos catálogos.
Les catalogues sert souvent à faciliter une vente publique, occasion d’une mise en scène
et d’une rhétorique de la dispersion, aux effets stratégiques plus ou moins savamment
calculés par le marchand depuis la fin du XVIIIe siècle. (...) Au-delà, le catalogue
produit aussi, d’une certain manière, la conscience de la collection chez le
189 Poulot nomeia esse tipo de narrativa presente nos principais museus da França como “temática das origens” - Idem, p. 10. 190 Idem, p. 12-13. 191 Idem, p. 21.
81
collectionneur et les siens, en célébrant sa personne et ses pratiques, en déclinant un
récit des valeurs de la culture matérielle . 192
Como vimos, a associação de uma dada reunião de objetos, a ordenação de
sentidos para esse conjunto e uma figura proeminente que é por ela responsável não é
necessariamente uma novidade no século XVIII. Note-se que os inventários de Michel
Félibien, que comentaremos com maior cautela adiante, ligam diretamente as ilustrações
dos objetos de Saint-Denis à atuação de Suger no século XII. Claramente, é impossível
fazer uma associação direta entre o aparecimento dos catálogos de coleções modernas e
contemporâneas com um texto tão longínquo como é o De Consacratione. No entanto,
apesar de chaves interpretativas e intencionalidades distintas, ambos conservam uma
preocupação com os feitos de grandes homens em relação aos objetos, especialmente
preciosos, e com a memória e o legado para a posteridade que deixarão. Isso porque,
uma vez reunidos e imbuídos de um sentido, os objetos dessa coleção passariam a ser
vistos como um todo e, na medida em que são expostos, se transformam na imagem
visível dos tesouros celestiais e eclesiásticos, no caso do Saint-Denis, ou na “economia
reinante dos saberes”, no caso dos museus contemporâneos . 193
Poulot continua refletindo sobre as configurações das coleções públicas. Para
ele, os objetos dessas coleções estariam em uma linha de tensão, entre sua singularidade
que os torna especiais e dignos de nota dentro desses espaços novos, e sua vinculação à
experiência comum, capaz de relacionar-se com o futuro a ser construído. Assim, o
enriquecimento dos museus (e do Louvre, em especial) deixa entrever a constituição das
referências para a comunidade a quem ele se destina, ao mesmo tempo em que funda
discursos identitários. Durante o século XIX francês essa dicotomia corresponde ao
surgimento e queda de novos poderes, políticos e econômicos, bem como aos
movimentos revolucionários e nacionais.
Nombre de nouvelles collections, de reconfigurations ou de rattachements d'anciennes
collections à de nouvelles institutions sont dus aux guerres et aux conquêtes, qui ont
192 Idem, p. 25. 193 Idem, p. 26. Para uma leitura interessante sobre as possíveis conexões entre os tesouros medievais e o mundo da arte na Idade Moderna ver: LENAIN, Thierry. Du culte des reliques au monde de l’art: remarques sur la genèse de la critique d’authenticité. Marburger Jahrbuch für Kunstwissenschaft, 35, Bd, 2008, p. 67-85.
82
suscité des allés et venus d’hommes, des glissements de fidélités, des changements de
souveraineté . 194
Dessa forma, o que se impõe a seguir é precisar de que forma os objetos
medievais se relacionam com essas mudanças durante o século XVIII e XIX francês e
se existe (e qual é) um vínculo ou reverberação entre as práticas empreendidas por
Suger e as práticas colecionistas posteriores. Também será nosso objetivo mapear os
destinos do tesouro de Saint-Denis e da própria Catedral durante o período
revolucionário francês. Isso porque nos interessa investigar sob quais circunstâncias os
objetos que se apresentam no Louvre foram constituídos da maneira como se
encontram. Como se pode perceber pela declaração a seguir: “Não basta agir, pensar e
criar para produzir património. É também necessário transmiti-lo. É sobretudo preciso
que o herdeiro o aceite.” 195
Jean-Michel Leniaud possui uma visão singular de patrimônio. Para ele, os
esforços da conservação de um monumento ou objeto pressupõe a aceitação da próxima
geração em relação a este tesouro. No entanto, tal vontade de aceitar precisa ser
renovada de tempos em tempos e, especialmente em tempos de ruptura história, esse
patrimônio pode ser rejeitado. O historiador estuda o caso de Saint-Denis no período
revolucionário francês e sua recuperação na Era Napoleônica. Suas considerações
serviram de base para compreendermos a posição que a abadia e os seus tesouros
ocupam enquanto memória histórica e patrimônio francês.
Como “cada revolução põe em causa sua herança” o autor formula sua intenção:
Propomo-nos aqui examinar, a partir do caso particular da antiga abadia de Saint-Denis,
o que se passou em França, depois da Revolução, no decorrer desse longo século XIX,
que vai de 1789 a 1914: do ponto de vista político, o período leva da rejeição não
unânime da Monarquia à adesão quase total à República e, sob o ângulo patrimonial, da
nacionalização de uma enorme quantidade de bens artísticos à lei de 31 de Dezembro de
1913 sobre os monumentos históricos. A conjunção destas duas evoluções, política e
patrimonial, coloca-nos no centro do debate: como é que um património, ferido da
mesma condenação que .as instituições que até então o haviam detido, pôde
194 POULOT, op. cit. 2008, p. 29. 195 LENIAUD, J. M. “O patrimônio recuperado. O exemplo de Saint-Denis.” In: RIOUX, J- P e SIRINELLI, J-F. Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998. P. 335-348. P. 336.
83
progressivamente ser recuperado por novas instituições que lhe eram totalmente
estranhas? 196
Saint-Denis é escolhida como exemplo para responder a essa pergunta
fundamental porque é tomada pelo autor como um lugar onde o patrimônio do Antigo
Regime, ainda que estratificado e cristalizado, se acumulou. Para a Igreja Católica era o
túmulo do evangelizador dos gauleses; para a Monarquia, a recordação e confirmação
da dinastia capetíngia desde os merovíngios através da prática dos sepultamentos e do
programa das esculturas funerárias. E, além de lugar de memória, a abadia se constituiu,
no final do Antigo Regime, como um dos locais mais ricos do Ocidente pela quantidade
de objetos preciosos, curiosidades, manuscritos e obras de arte que ali se encontravam
depositadas através da contribuição de gerações de líderes que tomaram para si a
responsabilidade do enriquecimento da abadia, desde Suger.
Dessa forma, durante a destruição empreendida pelo período revolucionário
(especialmente durante o Terror jacobino) , o patrimônio francês deveria ser julgado e 197
selecionado pelo poder público da nova França a fim de ser pertinente com o discurso
político, bem como com a instrução pública. Em 1790 os objetos de Saint-Denis e os
tesouros eclesiásticos foram declarados propriedade nacional pela Assembleia
Legislativa de outubro. Enquanto a igreja de Sainte-Geneviève se converte em Panteão
dos grandes heróis franceses, Saint-Denis está fadada à destruição.
Às portas da capital, o símbolo é demasiado forte: as sepulturas são violadas, os
monumentos funerários deslocados, o tesouro despedaçado, os vitrais quebrados, o
telhado arrancado. No fim da Revolução, propõe-se destruir a nave e converter as naves
laterais em mercado coberto [...] A crónica da sorte e das desgraças de Saint-Denis
permite compreender as modalidades segundo as quais um património inicialmente
rejeitado e formalmente condenado à destruição pôde ser reabilitado e, neste caso
196 Idem, ibidem. 197 Chateaubriand assim descreve o que restou de Saint-Denis pós Revolução: “Saint-Denis est désert; l’oiseau l’a pris pour passage, l’herbe croît sur ses autels brisés; et au lieu du cantique de la mort qui retentissait sous ses dômes, on n’entend plus que les gouttes de pluie qui tombent par son toit découvert, la chute de quelque pierre qui se détache de ses murs en ruine, ou le son son de son horloge, qui va roulant dans les tombeaux vides et les souterrains dévastés.” Chateaubriand, Génie du christianisme, Paris, GF, 1966, t. II, p. 101. A descrição dos atos da Revolução é, nas palavras de Chateaubriand, de uma violência brutal, bárbara. Para uma excelente análise de sua relação com Saint-Denis ver: WEBER, Tatiana. La basilique Saint-Denis dans l’oeuvre de Chateaubriand : aventures d’une métamorphose. Bulletin de l’Association Guillaume Budé, 3, 2000, p. 273-284.
84
concreto, a que princípios obedece, segundo as circunstâncias políticas, a aceitação de
um legado que o herdeiro revolucionário não queria . 198
Às questões políticas somam-se também as da arquitetura, como restaurar o
estilo gótico e as artes medievais sem restaurar as práticas ou sequer a memória das
formas sociais que as tornaram perenes?
Tal discussão se tornará um dos pilares da restauração durante o império
napoleônico. A reconstrução da Catedral, ordenada em 1806, incluiu no projeto de
François Debret a criação de um túmulo a Napoleão Bonaparte e uma escultura grupal
que representaria a submissão dos reis capetíngios ao Império revolucionário, bem
como um altar dedicado às três dinastias francesas, criando um discurso que insere a
nova dinastia na continuidade das três precedentes, mas supera os monarcas destituídos
. 199
Tal projeto capitula e, com a Restauração dos Bourbons, Saint-Denis não é,
ainda, muito mais do que suas ruínas. Em 1815 as cinzas de Luís XVI e Maria
Antonieta são exumadas e transferidas do cemitério da Madeleine para a abadia. Em
1817 Saint-Denis retoma sua função funerária e o duque de Berry, Luís XVIII e outros
nobres de envergadura são enterrados ali. A restauração do prédio continua e as funções
de culto são retomadas. Os objetos e monumentos funerários encontrados e recolhidos
por Alexandre Lenoir são, progressivamente, devolvidos à cripta da abadia (e não ao 200
coro, seu local original).
Durante a Monarquia de Julho, Luís Felipe d’Orléans toma muito cuidado em se
distanciar da dinastia dos Bourbon e se recusa a manter a abadia como cemitério real,
mas se interessa pela restauração do edifício por dois motivos principais, segundo
Leniaud:
a sua política econômica decide-o por grandes trabalhos no edifício; a sua intenção de
reconciliar a França antiga e a nova França leva-o à definição de uma história nacional
baseada na glória das letras e das artes. 201
198 LENIAUD, J. M.op. cit. 1998, p. 338. 199 Ver Anexo X. 200 A participação de Lenoir na preservação dos objetos de Saint-Denis será discutida mais adiante. 201 LENIAUD, J. M.op. cit. 1998, p. 341.
85
Nesse contexto, embora a catedral continue a funcionar como lugar de culto, a
tônica do empreendimento restaurador desloca-se para uma preocupação museológica,
enquanto testemunho de arquitetura funerária e patrimonial dos franceses. Se acirra,
então, a elaboração de dois modelos de reconstrução e, do seu combate, resultaria a
situação atual da abadia: o de François Debret, substituído em 1846, em razão de
fissuras que acarretaram na demolição da torre norte do edifício, pelo de Viollet-le-Duc,
vitorioso arquiteto restaurador do estado contemporâneo de Saint-Denis.
Quando estivemos em Paris, em janeiro de 2019, uma exposição havia sido
montada nas criptas do edifício pelo Centre des Monuments Nationaux - Le splendeur
retrouvée de la basilique de Saint-Denis: François Debret (1777-1850), architect
romantique que tinha como objetivo, além de contar a história da abadia no início do
século XIX, levar ao público os projetos e desenhos de François Debret que não
chegaram a ser totalmente efetivados por ocasião de sua substituição por Viollet-le-Duc
. 202
Para Leinaud a chegada de Viollet-le-Duc expressaria o alinhamento de
Saint-Denis ao estatuto de monumento histórico e de arqueologia já no século XIX; isso
porque o arquiteto seguiria um programa claramente afirmado pela Comissão dos
Monumentos Históricos da França, que privilegiaria o arqueológico em detrimento do
litúrgico e intentaria devolver ao edifício seu aspecto original, destruindo as
intervenções do Império e, parcialmente, o que havia sido projetado por Debret. “A
basílica, segundo os termos de Viollet-le-Duc deve vir a ser o mais belo museu de
escultura francesa depois do Louvre”. 203
Após a década de 1870 novos debates do Estado francês se concentram no
destino de Saint-Denis. A discussão gira em torno, também, do grau de participação (ou
ausência) do órgão estatal nas atividades de culto e na possibilidade de laicizar
Saint-Denis como ocorreu com Saint-Geneviève. No entanto, em 1895, entre discussões
calorosas que buscavam priorizar ora o culto sobre as visitas, ora as visitas sobre os
cultos, a igreja reformada foi transformada em paróquia.
Concomitantemente, o museu do Louvre organiza salas de esculturas e objetos
medievais. Vão para lá grande parte dos objetos que são, sabidamente, organizados por
202 Existe um publicação sobre essa exposição orquestrada pelo Centre des Monuments Nationaux que pode ser acessada em https://presse.monuments-nationaux.fr/view/pdf/6256670. - acesso em 20/08/2019. 203 Idem, p. 342.
86
Suger. Acordos firmados entre as instituições de Belas-Artes e a Direção dos Museus
possibilitam a transferência de um número significativo de obras para o Louvre
enquanto outras seguem para o Museu de Cluny. Em Saint-Denis ficam os monumentos
funerários . 204
Na Introdução do monumental A companion to medieval art, Rudolph Conrad
procura esmiuçar de que maneira a historiografia compreendeu essa mudança de
estatuto em relação aos objetos medievais. Ou seja, como sua saída do âmbito religioso
para as salas de um museu propõe caminhos interpretativos de sua significação e quais
as maneiras de compreendê-los enquanto peças polissêmicas e testemunhos de tempos
passados.
Para ele,
what these new methodologies all have in common is that they have often redirected
attention from very circumscribed approaches (...) [style, form, dating…], and so on to
broader concerns of the function of the art work in its historical context (...) while
reading the art work as an active agent in the construction of that context . 205
Essa análise-síntese procura esmiuçar as vastas contribuições de Aby Warburg e
Erwin Panofsky no que se refere ao approach do pesquisador em relação ao objetos
artísticos. Em Studies in iconology, de Panofsky , Conrad identifica três níveis de 206
interpretação visual: o pré-iconográfico ou descritivo, que buscaria explicar os motivos
artísticos ou o estilo; o iconográfico, que procuraria pelos temas ou conceitos do
imaginário, portanto pela tradição visual ou literária e os tipos a que a obra se refere; e o
iconológico, da investigação do significado intrínseco às obras ou os valores simbólicos
a que o seu conteúdo se relacionaria, seus princípios determinantes. A essa última
categoria Rudolph denomina como “a história dos sintomas culturais”, ou símbolos.
204 Novas polêmicas surgiram em torno da abadia durante todo o século XX, especialmente no que se refere ao abastecimento financeiro da Instituição e às empreitadas arqueológicas no local. Para Leinaud, em Saint-Denis, “A arqueologia monumental vence pois a resistência da história e da comemoração”. E encerra seu artigo com uma crítica violenta à imperícia do Estado francês e sua incapacidade, segundo o autor, de assegurar o bom funcionamento dos monumentos que a ele pertencem, sejam castelos ou catedrais. - p. 346-7. 205 RUDOLPH, Conrad. A sense of loss: an overview of the historiography of romanesque and gothic art. in: RUDOLPH, Conrad (org.). op. cit. 2006, p. 1-40. 206 PANOFSKY, Erwin. Studies in Iconology, Routledge, 1972.
87
Ela colocaria em questão novas problemáticas, especialmente sobre as relações
entre a arte e a sociedade; bem como os sentidos de produção, reunião, posse e
exposição desses objetos.
Philippe Cordez, em seu De la pratique des trésors, du Moyen Âge central à
l’époque moderne, escreve sobre o colóquio Vom Umgang mit Schätzen ocorrido na
Áustria entre os dias 28-30 de outubro de 2004. Esse evento se situa na tradição de uma
série de realizações de simpósios e colóquios sobre os tesouros medievais dos países
europeus e testemunha a importância do tema pela convergência das disciplinas que
invoca, bem como a diversidade de métodos para sua análise.
O motivo para a realização deste encontro específico foi a descoberta, por um
pequeno agricultor num dia de outono de 2004, de um dos objetos preciosos mais
importantes conhecidos pela historiografia, datado entre 1275-1278 e pertencente a
comerciantes e artistas do período. Após a descoberta, o objeto foi levado para o museu
do castelo de Linz e os palestrantes do colóquio presenciaram a inauguração de uma 207
pequena exposição da qual ele era o epicentro, acompanhado de um estudo de mais de
mil páginas sobre a história e a arte dos objetos preciosos medievais . 208
Ainsi liée à la découverte d’un amateur, à une recherche scientifique, et à un evénement
de politique culturelle, c’est-à-dire à toute la gamme des usages sociaux des objets
anciens aujourd’hui, la rencontre de Krems invitait à réfléchir sur les modalités de la
“pratique” ou “fréquentation” des trésors. 209
Essa passagem parece ecoar os propósitos deste capítulo, qual seja, refletir sobre
a maneira pela qual os objetos do período medieval e, especialmente aqueles reunidos e
ressignificados por Suger, pertencem contemporaneamente a outras esferas de uso
social em relação à memória histórica e cultural e encenam jogos de poder que
articulam o discurso acerca do patrimônio, da pesquisa científica e das instituições
museológicas.
207 Schloss Museum (https://www.schlossundbeschlaegemuseum.de/ - acesso em 15/08/2019 208 PROKISH, Bernhard. KÜHTREIBER, Thomas (dir.). Der Schatzfund von Fuchsenhof, Studien zur Kulturgeschichte von Oberösterreich. 15. Weitra. Bibliothek der Provinz, 2004. 209CORDEZ, Philippe. De la pratique des trésors, du Moyen Âge central à l’époque moderne. Compte-rendu du colloque Vom Umgang mit Schätzen, Krems an der Donau, 28-30 octobre, ArtHist, 2004.
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Cordez define a palavra “tesouro” a partir de sua significação arqueológica,
enquanto todo e qualquer depósito de metal precioso, o que incluiria,
consideravelmente, objetos de numismática, acessórios funerários e objetos do
cotidiano, mas restringiria a classificação a objetos de outras matérias-primas. Dentro da
perspectiva arqueológica, a preocupação com os tesouros seria primeiramente em
cotejar as fontes escritas, estabelecer sua cronologia, agrupar os objetos de mesmo tipo
e levantar os indícios e as hipóteses de seu aparecimento. Para ele, no entanto, “au-delà
des objets singuliers et des stratégies de leur accumulation, c’est donc l’acte du dépôt
qu’il faut étudier” . Essa perspectiva investigativa elucidaria os sistemas de valor 210
circunscritos nos objetos estudados . 211
No entanto, dentro do discurso eclesiástico, as considerações sobre o tesouro
seriam fortemente moralizadas e, para Cordez seguindo as explanações de Helmut
Hundsbichler, a categoria de “tesouro eclesiástico” ou “tesouro da Igreja” deveria ser
tomada à parte. Isso porque, como já vimos no capítulo 2 desta dissertação, seria
composto através de “grâces accumulées par le Christ et les saints mais aussi des objets
matériels servant la liturgie” . Tal categoria necessitaria, ainda, de uma segunda 212
legitimação. Isto é, o acúmulo de objetos de riqueza material e espiritual na Idade Média
deveria ser justificável aos olhos de Deus. Essa ideia, porém, não é necessariamente
nova ou inédita no contexto do colóquio de 2004.
Pouco mais de duas décadas antes, em 1981, William D. Wixom, chefe do
Departamento de Arte Medieval do Metropolitan Museum of Art, escreveu um artigo
para compor o catálogo da exposição do tesouro de Saint-Denis apresentada pelo
museu. For the service of the Table of God é um texto que explora, a partir da leitura 213
De Administratione e De Consacratione de Suger, o mobiliário e as peças que ele
210 Idem, p. 96. 211 Duas conferências ressaltadas por Cordez parecem ser interessantes para o aprofundamento dessas discussões terminológicas. A primeira, feita por Hendrik Mäkeler, estuda o campo lexical em torno das concepções de riqueza no decorrer do século XIII e a noção de tesouro funerário para explicar o aparecimento e mesmo os saques a tumbas nesse período. A outra, ministrada por Karin Lichtblau, apresenta um panorama da noção de tesouro nas narrativas germânicas do mesmo período e enfatiza sua função de representação, sua especificidade enquanto objetos mágicos que oporiam a avareza ao dom. CORDEZ, Philippe. op.cit., 2004, p.97. 212 Idem, p. 98. 213 WIXOM, W. For the service of the Table of God. in: CROSBY, Sumner Mcknight (org.) The Royal Abbey of Saint-Denis in the time of abbot Suger (1122-1151). The Metropolitan Museum of Art, New York, 1981. p. 101-117.
89
acrescentou ou ornamentou para compor o acervo de Saint-Denis no período de seu
abaciado.
É interessante notar que Wixom começa por levantar os inventários mais
importantes acerca dessas peças. Como chefe de Departamento de um museu sua
preocupação com a proveniência e a história dos objetos dá o tom da escrita. Segundo
ele, o inventário mais completo das peças de Saint-Denis pode ser datado de 1634.
Além desse, outros três inventários pré-revolucionários tratam de identificar com
detalhes esses objetos: o de 1645, feito por Dom Germain Millet; o de Jacques Doublet,
de 1625; e o último de Dom Michel Félibien , de 1705. Sendo que os dois últimos 214
também se encarregam de contar a história da abadia e o de Félibien tenha se convertido
numa espécie de mestre para os estudos contemporâneos sobre o tema.
Como já vimos, ao longo do século XVIII e, especialmente com a Revolução
Francesa, as perdas do tesouro foram consideráveis, incluindo aqueles que atestavam a
contribuição de Suger . 215
Para o autor, no entanto, a perda dessas peças é lamentável não apenas pela sua
antiguidade ou porque demonstram como os mesmos objetos podem, ora significar e
fortalecer laços de poder, quanto, a seguir, serem considerados opressores, saqueados e
destruídos, mas porque demonstravam o caráter internacional e articulador de
Saint-Denis.
No texto de Wixom, o projeto de Suger (agora recapturado pelos objetos que
encomendou para o serviço litúrgico) deixa transparecer várias tradições que são
incorporadas em sua execução . Dessa forma, as técnicas compartilhadas e os detalhes 216
estilísticos adequados a vários meios distintos e obedecendo às regras de composição
ditadas por Suger e seus mestres, teriam feito aparecer um workshop em Saint-Denis,
214 Os anexos I, II e III desta dissertação são gravuras retiradas da obra de Félibien, com notas de Nicolas de Peiresc. Para uma análise da importância desse texto dentro da tradição das edições das obras de Suger rever a Introdução desta dissertação. 215 Entre as perdas mais notáveis o autor destaca a Cruz de Ouro com pedras preciosas encomendado por Suger e a tumba dos corpos santos, o relicário construído para abrigar as relíquias de Santo Eleutério, Rústico e o patrono da abadia, Saint-Denis. Descrito pelo próprio abade como uma das peças mais importantes entre as que encomendou, essa estrutura sobreviveu à pilhagem na abadia em 1567, mas foi substituída por um altar barroco em 1627.O altar foi completamente destruído na Revolução Francesa e o original de Suger se perdeu. Apenas a parte superior sobreviveu e sugere o aproveitamento de peças antigas para o novo mobiliário do culto, com gemas e cristais pertencentes a Charles o Baldo. 216 O autor nomeia, inclusive, algumas regiões cujas tradições são notáveis no tesouro de Saint-Denis: Languedoc, Normandia, Burgúndia, os vales de Meuse e do Rhine. - Idem, p. 102. É importante relembrar que essa abordagem é fruto do diálogo com Summer McCrosby - rever o capítulo 1 desta dissertação.
90
onde primeiro se restauraria ou se reelaboraria peças já existentes previamente
selecionadas por sua magnitude ou significação histórica; em seguida, se convocariam
artesãos e artistas para trabalhar em novas criações e, por fim, se embelezariam todas
essas peças com joias preciosas oriundas de diversas fontes e com as inscrições para a
posteridade.
Sobre a preservação de objetos do passado, Wixom escreve:
This interest was in continuing the medieval ideas of permanence and beauty in relation
to the flawless appearance of those works preserved from earlier times. Such objects
were appreciated and valued within a perceived and established divine order of the
Universe. Integrity or perfection, consonance of parts, symmetry, clarity, and
luminosity were primary consideration in categorizing the beautiful. 217
Dessa maneira, adquirir, reempregar ou restaurar uma peça de valor antigo e/ou
histórico poderia ser interpretado como uma atitude não só de preservação, mas de
criação ou de preocupação com o sentido de beleza ao frequentar o espaço da nova
Catedral e admirar seus tesouros. Essa noção de que os objetos seriam apreciados e
valorizados a partir de uma concepção a ordem divina do universo é coerente com as
leituras de Selene Candian dos Santos que, como vimos no capítulo 1 desta dissertação,
analisou a abertura (ou exordium) do De Consacratione de Suger como uma tentativa
textual do abade em justificar suas ações pela máxima da reconciliação das coisas
materiais e imateriais a partir da ordenação divina traduzida em criação . 218
Wixom continua por afirmar que esses empreendimentos de Suger estariam
alinhados com seu objetivo de fazer de Saint-Denis, sua estrutura e conteúdo, uma
abadia verdadeiramente magnífica e radiante que glorificava primeiramente a Deus,
prestaria homenagem aos santos e fortaleceria o poder político centralizado dos
monarcas capetíngios. Essa aliança com a monarquia seria confirmada diversas vezes na
medida em que Saint-Denis foi se transformando, entre outras coisas, no repositório dos
signum de poder dos reis.
A abadia foi confirmada como repositório do estandarte real, que Luís VI e
todos os reis subsequentes levaram em batalha. Datadas do período merovíngio,
217 Idem, p.103 218 Sobre a discussão dos propósitos da criação de Suger rever o capítulo 2 desta dissertação.
91
diversas coroas foram transferidas para Saint-Denis. Suger, inclusive, fez um pedido
oficial em 1120 a Luís VI para que todas as coroas ali estivessem. Segundo Wixom, até
o final do século XII essa reivindicação se estendeu a toda regalia, mantida em
Saint-Denis e apenas levada à Rheims para cada cerimônia de coroação. A
implementação dessa tradição foi sustentada pela prática de enterrar os monarcas na
abadia.
The practical need to accommodate not only the royal tombs but also a multitude of
people, in order to fulfill its reaffirmed function as a great pilgrimage Church, was
accompanied by an equally burning requirement to enrich the furnishings of the altars in
the sanctuary of the new choir and to make the sacred relics visible in a new and
prominent setting nearby. 219
Wixom conclui que o projeto de Suger de enriquecimento da abadia era
consolidado pela articulação dessas diferentes esferas de produção artística. Para ele, o
“santuário da luz” criado por Suger era intensificado pelo brilho reluzente dos relicários
de ouro, vasos litúrgicos e os objetos que compunham o altar.
Thus, when - out of my delight in the beauty of the house of God - the loveliness of the
many-colored gems has called me away from external cares, and worthy meditation has
induced me to reflect, transferring that which is material to that which is immaterial, on
the diversity of the sacred virtues: then it seems to me that I see myself dwelling, as it
were, in some strange region of the universe which neither exists entirely in the slime of
the earth nor entirely in the purity of Heaven; and that, by the grace of God, I can be
transported from this inferior to that higher world in an anagogical manner”. 220
Por esse motivo, do sentido anagógico atribuído por Suger aos objetos preciosos,
o historiador Markus Mayr, na esteira de Patrick Geary e Édina Bozoky, situa as
relíquias dos santos como sendo o núcleo e o coração dos tesouros eclesiásticos
medievais. Mas, segundo a leitura de Philippe Cordez, a ênfase do trabalho de Markus
Mayr difere da investigação do pensamento transcendental ou metafísico no século XII.
219 Idem, p. 104-05. 220 De administratione, XXXIII, ed. Panofsky, 1979, p. 62-65; apud: WIXON, op. cit. P. 106
92
De acordo com a leitura de Mayr, os relicários e as relíquias devem ser estudados
enquanto objetos de riqueza, pois:
Il indique leur présence naturelle auprès des métaux et gemmes, leur lien étroit avec
l’idée du trésor des mérites des saints, et le problème de leur circulation et de leur prix,
impossible à fixer sans être accusé de simonie. 221
O último grupo de intervenções do colóquio apresentado e resumido por
Philippe Cordez se debruça sobre os componentes materiais e narrativos dos
dispositivos do tesouro realizados por diversos grupos detentores do poder na Idade
Média e no período moderno. Essa empreitada de contextualização dos objetos recebeu
o nome de “história das coleções”. Sendo assim, tal análise tem como objetivo articular
os estudos acerca de um objeto singular com a imagem através da qual eles são dados a
serem vistos, conhecidos e apreendidos por uma comunidade numa dada situação.
Recebe destaque a apresentação de Pierre Alain Marriaux que 222
expose le principe selon lequel des noms de saints ou de personnages illustres sont
“collectionnés” par une communauté via des objets réputés provenir physiquement de
ces individus (les reliques) ou avoir été donné par eux, objets en lesquels ces individus
se concrétisent et deviennent manipulables. On le repère en particulier au XII° siècle
lorsque la réforme grégorienne s’accompagne pour de nombreuses communautés d’une
réforme du passé. Outre les instruments liturgiques, les sacristies également apparues au
XIIº siècle conservent une troisième catégorie d’objets, ceux que l’on appelle
aujourd'hui les curiosités naturelles, plus difficiles à appréhender du fait de la rareté des
sources. 223
Na sequência, as apresentações vinculam essa prática às Universidades de
Oxford e Cambridge que rememoram seus fundadores através dos dons de objetos até o
século XVI. Passam também a analisar os tesouros de corporações de ofícios do final da
Idade Média e os inventários de aquisição, formação, transporte, transferência e
estabelecimento dos tesouros principescos, bem como suas causas práticas e políticas. A
possibilidade de itinerância das cortes europeias, o crescimento da participação dos
221 CORDEZ, Philippe. op. cit. 2004. p. 98. 222 Para uma análise mais detalhada das ideias do autor voltar ao capítulo 2 desta dissertação. 223 CORDEZ, Philippe. op. cit. 2004, p. 99.
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nobres e burgueses na formação de coleções colocariam novos critérios de avaliação
para a existência desses objetos. Assim, Dagmar Eichberger defendeu, nas palavras de
Cordez,
finement l'évolution et la coexistence de différentes logiques d’accumulation et
d’exposition dans différents salles. Le modèle historiographique linéaire d’un passage
de la “chambre du trésor” à la “collection” s’en trouve complexifié : à la magnificence
symbolique des matières, à leur valeur monétaire viennent s'adjoindre de nouveaux
critères d’évaluation. 224
Esses novos critérios incluiriam o que o autor chamou de “valor de arte” para
assegurar sua origem, a nobreza de seus materiais e o privilégio de seus detentores. Por
fim, as análises sobre o período moderno colocariam em questão os inventários
familiares e o legado dos dotes e testamentos nos séculos XVI e XVII, que realçariam o
valor material e simbólico desses objetos.
Se seguirmos esse ponto de vista, a pesquisa histórica sobre os objetos
medievais e sua manipulação deveria levantar hipóteses e buscar a genealogia da
transformação dos tesouros eclesiásticos em museus diocesanos ou em museus de arte
sacra, reflexão a que nos propomos neste capítulo. Isso porque, segundo Pierre Alain
Mariaux, os tesouros seriam coleções sem colecionadores, pertenceriam a uma
instituição específica e não seriam um produto do trabalho de apenas um indivíduo, mas
de uma linha sucessória que, com o passar do tempo, tratou de aumentá-lo,
transformá-lo e adaptá-lo a novos usos, bem como de expô-los - como é o caso de Suger
. 225
As ideias de Mariaux parecem se situar numa tradição já consolidada da
historiografia sobre o tema, mas pouco abordada pelas pesquisas realizadas no Brasil.
Assim como Cordez, ele afirma:
(...) the cabinet of curiosity partly takes over the representative functions of the
medieval treasuries, while adding the taste of the marvellous. 226
224 Idem, p. 100-01. 225 MARIAUX, op. cit. p. 213-232. 226 Idem, p. 220.
94
Dessa forma, para compreender a existência de um conjunto de objetos dessa
categoria e nomenclatura seria preciso esmiuçar em que medida seria possível ou
desejável para os seus detentores que eles se transformem em “pontos visuais da
memória” (visual points of memory) ao mesmo tempo em que são a imobilização de 227
capital na forma de objetos. Isto é, a riqueza da instituição que os possui (porque, e isso
é muito importante, eles não pertencem a um único indivíduo, mas a uma comunidade)
se nutriria especialmente da reputação e da prosperidade que a ordenação e a exibição
desses objetos propõe. E essa análise, antropológica, de fato, encontra reverberações nas
coleções modernas e contemporâneas.
Para Mariaux, as residências reais que abrigaram as coleções principescas e os s
gabinetes de curiosidades dos séculos XVI e XVII na Europa (especialmente na França)
exporiam a mirabilia por motivos semelhantes aos da manipulação de objetos na Idade
Média: pela consideração da memória como parte fundamental da coletividade, para
relembrar doações ou aquisições passadas e comemorar os indivíduos que as
possibilitaram e atuaram na constituição dessa reunião de objetos. Ou seja, manipular os
objetos do passado seria uma forma de fazer visível a memória e conectar a comunidade
(por extensão reino, no caso das coleções principescas, ou a nação, no caso dos museus
públicos) com a sua história.
Aline Warie, ao se indagar sobre as possíveis relações entre os gabinetes de
curiosidades renascentistas e os tesouros medievais, propõe uma leitura dos
historiadores do início do século XX que procuraram desvendar essa genealogia:
David Murray dans Museums History and their Use (1904) et Julius Von Schlosser
dans Die Kunst-und Wunderkammern das Spätrenaissance (1908) montrent les
spécificités de la constitution du trésor de reliques dans l’église médiévale qui annonce
en fait la Wunderkammer de la Renaissance dont les prémices se trouvent en Grèce
antique. En effet, les objets liés à un dieu ou une déesse, ou à un saint ou une sainte,
dégageaient une aura particulièrement puissante. 228
A autora chega a afirmar categoricamente que os tesouros eclesiásticos
medievais se situam na origem dos gabinetes de curiosidades, Wunderkammer. Isso
227 Para uma análise mais detida dessa abordagem rever o capítulo 2 desta dissertação. 228 WARIE, Aline. Dossier - Sujet: Scriptorium, trésor médiéval - une généalogie du cabinet de curiosité? 3HRM7002, 2015/16, Séminaire de Master 1, p. 1-11.
95
porque a reunião de objetos para uso litúrgico e que pertenceriam à história daquela
comunidade (objetos profanos, originários da Alta Idade Média e as regalia)
transformariam as igrejas numa espécie de “encarnação dos museus antes da hora” . 229
Para ela, o ponto em comum entre as duas formas de armazenamento e posse dos
objetos é a presença de peças antigas e curiosidades exóticas que são apropriadas pelas
instituições como peças "extraordinárias", isto é, readequadas e reformuladas de acordo
com os objetivos intrínsecos do seu novo uso, como no caso do vaso de Suger.
A águia ou o vaso de Suger, de 1147, é uma junção de uma porção oriunda do
Egito durante o período romano imperial presente no tesouro já existente em
Saint-Denis que foi ressignificado com a inclusão da águia durante o abaciado de Suger
e transformado em objeto de uso litúrgico durante as celebrações. Além dessa adição do
antigo com o novo, a autora identifica que a mistura de materiais preciosos também
pode ser sintomática da aproximação entre os tesouros das Igrejas e os tesouros
principescos que se constituem no início da Idade Moderna . 230
Seguindo as indicações de Krzysztof Pomian, a autora afirma que a partir da
segunda metade do século XIV, com o fortalecimento de novos grupos sociais, os tipos
de acumulação de objetos passam a definir dois tipos de coleções reunidas dessa vez
pelos intelectuais, humanistas, antiquários e artistas: para uns, os objetos seriam
insígnias de sua superioridade e instrumentos que permitiriam o exercício de sua
dominação. Para outros, são instrumentos de trabalho de insígnias de seu pertencimento
social . Assim, enquanto os edifícios eclesiásticos exporiam as relíquias aos olhos dos 231
fiéis, as coleções principescas reclamariam novos locais de exposição, como as
bibliotecas e os studiolo, e preconizariam pouco a pouco as primícias dos gabinetes
renascentistas.
A essa altura, Suger reaparece como um exemplo da maneira pela qual o século
XII pode ser interpretado como palco de uma mudança da relação do Ocidente medieval
com o seu passado e seus objetos. Ao rearranjar a arquitetura de Saint-Denis para mudar
a forma e o local de exposição de seu tesouro, além de aumentá-lo e descrevê-lo de
forma minuciosa defendendo sua beleza, existência e uso como meio de ascese,
229 Idem. p. 9. 230 WARIE, Aline. op.cit. 2015/16, Séminaire de Master 1, p. 11-12 231 POMIAN K., Collectionneurs, amateurs et curieux : Paris, Venise XVI-XVIIIe, Gallimard, 1987, p. 53; apud: WARIE, Aline. op.cit. 2015/16, Séminaire de Master 1, p.11
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comunicação e trânsito entre a vida monástica terrestre e a Jerusalém celeste, o abade e
a experiência produzida em Saint-Denis entre 1122 e 1151 ofereceriam um ponto de
virada (turning point) para a compreensão desses objetos . 232
Essa também parece ser a perspectiva de Brigitte Büettner em seu artigo Toward
a historiography of the sumptuous art . Como o próprio título sugere a autora propõe 233
um panorama da historiografia sobre o tema dos objetos preciosos, especialmente no
que se refere ao trabalho de ourivesaria, até o estado como ela se encontrava no ano de
sua publicação e quais as principais interlocuções identificadas sobre o tema. Os
documentos considerados fundadores dessa tradição da escrita sobre objetos preciosos e
as controvérsias que dela poderiam surgir, são, ambos, do século XII. Büettner escolhe
o tratado De diversus artibus e a controvérsia entre Bernardo de Claraval e Suger. 234
Para ela, a defesa de Suger de que as peças de metais preciosos e toda beleza inscrita no
interior do espaço eclesiástico ofereceriam um deleite para o espectador contemplativo e
um “salto anagógico” para o imaterial, pode ser considerada tal qual um momento
fundador para a valoração desses objetos e da própria noção de belo . 235
Para ela os objetos medievais, inclusive, seriam de especial interesse para os
antiquários e colecionadores franceses dos séculos XVII e XVIII. No que chamou de
“The Age of Discovery” Büettner vê o crescimento do interesse pelas “antiquidades
nacionais”. Assim, o Les monuments de la monarchie française, de Bernard de
Montfaucon, publicado entre 1729-1735, aparece como um dos primeiros compêndios a
232 Idem, p. 225. Não se trata de ignorar as mudanças importantes que o crescimento das cidades, o neoplatonismo ou as trocas comerciais intensas com o Ocidente acarretaram para a dinamização da circulação dos objetos e sua importância no século XII, mas circunscrever de que maneira elas podem ser observadas num contexto específico e analisar as reverberações dessas mudanças na longa duração. Para uma análise geral do cenário do século XII ver GREFFE, Xavier. Arte e mercado. São Paulo, Editora Iluminuras, 2013. 233 BÜETTNER, Brigitte. Toward a historiography of the sumptuous art . in: RUDOLPH, Conrad. A companion to medieval art , Blackwell Publishing, 2006, P. 466-488. 234 Segundo a autora esse teria sido o primeiro tratado sobre as artes visuais da Idade Média. O manuscrito foi descoberto em Brunswick por Goffhold Ephrain Lessing que trabalhava como bibliotecário em Woltenbüttel. 235 É importante frisar que a noção de belo durante a Idade Média é perpassada pelos pressupostos cristãos da contemplação da glória divina ou da honra à Deus e aos santos; e a controvérsia entre Bernardo e Suger se deu também sob a argumentação se o comissionamento de trabalhos e objetos ornamentados eram uma maneira legítima de louvor ou ambiente de culto. O debate entre São Bernardo e Suger levantam algo fundamental para nossa compreensão acerca da relação entre arte e experiência religiosa: para ser genuína tal experiência deve se desfazer do sensível ou aproveitar-se dele? Para uma discussão de fôlego sobre o conceito de belo ver PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo (trad. Paulo Neves), 2013 e também PASNOFSKY, Erwim. Significado nas artes visuais. São Paulo, Perspectiva, 2014 [1955].
97
incluir os objetos medievais. Em seguida, a autora menciona as obras de Seoux
d’Agincourt e de Pierre-Henri Révoil, o primeiro a se ocupar em reunir um “cabinet de
gothicités” - adquirido pelo Louvre em 1828.
O primeiro museu de arte medieval na França só aparecerá, porém, após o
estouro da Revolução. Criado e administrado por Alexandre Lenoir , o museu existiu 236
em sua forma original até a Restauração monárquica dos Bourbon, quando boa parte de
seu acervo teve de ser restituída aos particulares pelos decretos de Carlos X. Inaugurado
em 1795 o Musée des monuments français refletia a preocupação de seu fundador em
recuperar e preservar os objetos da pilhagem revolucionária. É interessante notar que os
dois maiores pontos de interesse de Lenoir eram os objetos de Saint-Geneviève e
Saint-Denis, ambas alvos da ação iconoclasta dos revolucionários. A primeira, destinada
a se tornar o Panteão nacional; a segunda, a se tornar ruína.
Em seguida, Alexandre du Sommerard (1779-1842) funda o primeiro museu
dedicado exclusivamente às artes decorativas medievais e renascentistas na França. O
arqueólogo empenha a maior parte de sua modesta fortuna em reunir, classificar e expor
tais objetos. O Musée des antiquités nationales, inaugurado em 1833, foi,
majoritariamente, composto por suas coleções. Após sua morte o museu foi adquirido
pelo Estado francês em 1843 e,rebatizado como Musée des Thermes et de l'Hôtel de
Cluny - hoje Musée national du Moyen Âge - Thermes et hôtel de Cluny, no 5º
arrondissement de Paris.
Além desses exemplos notáveis, o que a autora percebe é que, gradativamente, o
século XVIII europeu se engajou numa atividade colecionadora, ordenadora e
“museográfica” em relação aos objetos medievais . Desde os mercadores citadinos até 237
Alexander Basilunsky que, em 1888, representa como diplomata o czar Alexandre III e
adquire aproximadamente 750 peças para incorporarem o acervo do Hermitage. Ou
ainda como John Pierpont Morgan que passa a atuar na compra de peças de ourivesaria
236 Ver os anexos VIII e IX. 237 Conrad Rudolph se encarregou de sistematizar de que maneira a valoração do passado medieval se deu também no campo da literatura e das artes visuais na França. Para ele os usos da arte a partir do século XVIII podem ser vistos como a formação discursiva e política da identidade nacional. Como exemplos da importância e reabilitação da arte medieval para esse período ele aponta a publicação de Notre-Dame de Paris em 1831; os anais do MGH a partir de 1826 e ascensão, no início do século XX, da influência da abstração dos movimentos de pintura moderna que proveram uma justificativa intelectual e artística para o interesse na abstração medieval, em oposição ao naturalismo. RUDOLPH, Conrad. A sense of loss: an overview of the historiography of romanesque and gothic art. in: RUDOLPH, Cornrad (org.). op. cit. 2006, p. 1-40.
98
medieval para os museus nova-iorquinos depois da Exposição Universal de 1851, no
Crystal Palace. Exposição essa que contou com um pavilhão representativo do passado
medieval - Medieval Court - da França . 238
A reunião desses objetos por colecionadores e instituições públicas é
acompanhada por uma crescente catalogação e exposição das peças. Durante todo o
século XX a autora mapeia o crescimento de obras especializadas, catálogos de
exposições e compêndios sobre arte arte medieval. Obras essas dedicadas a não ampliar
o conhecimento do público como arregimentar prestígio para os museus que
organizavam exposições monumentais para expor a reunião de objetos. A autora dá três
exemplos que são dignos de nota: a explosão no Cleveland Museum of Art - “Arts of
the Middle Ages, 1000-14000”, de 1940; a exposição “Ars Sacra” de 1950, que teve
lugar em Munique e inspirou o título do magistral Ars Sacra de Peter Lasko, publicado
em 1972; e, por fim, “Les trésors des églises de France”, de 1964 no Musée des arts
décoratifs de Paris. Todas essas exposições foram acompanhadas pela publicação de
seus respectivos catálogos.
Em 1985 Anton Legner lança a iniciativa monumental de compilação dos
saberes já produzidos sobre os objetos preciosos da Idade Média, intitulada Ornamenta
Ecclesiae . Em três volumes a obra abre diversos caminhos e produz um impacto 239
significativo nas pesquisas e no interesse acadêmico sobre o tema.
Especificamente sobre o tesouro de Saint-Denis duas grandes iniciativas são
dignas de nota: o catálogo Le trésor de Saint-Denis au Louvre, fruto da exposição
permanente montada na Ala Richelieu do museu, e o catálogo organizado por Summer
McKnight Crosby, The Royal Abbey of Saint-Denis in the time of abbot Suger, por
ocasião da exposição realizada no Metropolitan em 1981.
Essas exposições e catálogos renovaram os interesses pelo tema e ampliaram os
objetos de pesquisa, bem como as investigações possíveis dentro do campo. Assim, o
trabalho organizado por Rudolph Conrad e publicado em 2006, A companion to
238 Ver Anexo XI. 239 LEGNER, Anton. Ornamenta Ecclesiae Kunst Und Kunstler Der Romanik: Katalog Zur Ausstellung Des Schnutgen-Museums in Der Josef-Haubrich-Kunsthalle (Volumes 1, 2, & 3) (Alemão) Capa Comum – Janeiro 1, 1985
99
medieval art , procurou levantar as possibilidades já exploradas até o momento e 240
oferecer novos caminhos plausíveis.
Este capítulo buscou explorar as nuances entre as noções de tesouro e coleção,
bem como os caminhos que levaram o tesouro de Saint-Denis (e Suger) ao centro das
discussões sobre a arte medieval e seus objetos. Nosso objetivo foi explorar não só o
estado atual das leituras historiográficas sobre o tema, mas a maneira pela qual esses
objetos são oferecidos para nós e nosso olhar atualmente.
240 CONRAD, R. op. cit. 2006. É interessante observar que essa obra acabou de ser reeditada e está disponível em versão atualizada em 2019.
100
Conclusão:
“Nossa percepção do passado é a apropriação veemente daquilo
que sabemos que não mais nos pertence. Ela exige a acomodação sobre um objeto preciso (...) Não mais uma gênese, mas o deciframento do que
somos à luz do que não somos mais.” Pierre Nora, Entre memória e história - a problemática dos lugares, 1993, p. 20.
Concluir não é um verbo de fácil execução. Sempre fica um rastro, uma ponta
solta, um ponto que pede por se tornar túnel. Concluir é retomar, relembrar, escrever em
poucas linhas o resultado que se obteve ao longo de anos. O texto que aqui se encerra
está firmado em quatro postulados dignos de figurar nessa Conclusão.
Em primeiro lugar, escrever é um ato político. Na escrita se gerencia o futuro,
estabelece-se uma memória e é possível consagrar-se como modelo. Na Idade Média a
elaboração da memória pelas autoridades que dela se incumbiam passava, em segundo
lugar, pela gestão do sagrado e de suas categorias relacionais. Nessa rede, os objetos
preciosos são privilegiados e nos ligam ao passado longínquo do século XII. A
experiência estética, para usar mais uma vez uma palavra moderna, também é, no
período medieval, uma experiência dos sentidos. Assim, nosso terceiro ponto é o de que
a exibição e a atribuição de destaque à beleza (ornamentações) durante a reforma de
Saint-Denis deixam entrever a preocupação de Suger com a experiência religiosa e a
ascese a partir do sensível e por intermédio dele. Finalmente, essa abordagem nos levou
à investigação da vivência contemporânea em relação a esses objetos que, hoje, já foram
absolvidos de suas funções originais e quedam atrás de vitrines de vidro nos grandes
museus, oferecidos ao nosso olhar para um outro tipo de experiência social - a da
constituição e aprendizado do patrimônio.
Quando começamos essa pesquisa tínhamos em mente uma questão
fundamental: desejávamos compreender que importância tinham os objetos preciosos no
período medieval. Especialmente aqueles que tinham alguma relação com o fazer
artístico e com as relações de posse e doação.
Desde a Iniciação Científica, em que trabalhamos com o relicário do Tesouro
dos Guelfos, encomendado por Henrique o Leão na Germânia do século XII, os motivos
101
que levariam à acumulação de objetos dentro de um espaço eclesiástico eram os que
moviam as investigações.
Aproximamo-nos de Suger pela leitura de La Maison Dieu, de Dominique
Iogna-Prat . Para explicar as relações entre a Igreja e o Reino durante o século XII 241
medieval, o historiador parte de Suger como um exemplo ou modelo. Em sua leitura, o
abade insere o rei Luís VII no epicentro da narrativa sobre a consagração final de
Saint-Denis pois possui um programa de vinculação da abadia ao poder monárquico
francês. Além disso, a reforma empreendida por Suger é tomada como ponto de partida
para as análises de Iogna-Prat no que se refere à constituição de novas formas de
consagração e novas leituras sobre o significado espaço eclesiástico . É por este 242
motivo que nosso primeiro capítulo buscou tratar das questões referentes ao lugar que
Suger ocupa na memória histórica francesa e, sobretudo, na historiografia cultural e da
arte sobre o período medieval. As contribuições dos autores que buscaram diferentes
aproximações de Suger permitem ver que o abade ocupa um espaço privilegiado,
mesmo em comparação com outros abades beneditinos que também se encarregaram de
reformar e enriquecer suas respectivas abadias e catedrais. Também pudemos perceber
que a obra de Suger, apesar de análises fragmentadas pelos autores, parece pedir por
uma perspectiva mais global; isto é, o diálogo entre texto, projeto arquitetônico e
objetos preciosos coloca novas luzes sobre um tema já bem consolidado.
Em seguida, a leitura de Hebert Kessler, On the state of medieval Art History,
instigou as indagações sobre a exibição dos objetos preciosos no espaço de culto
241 IOGNA-PRAT, Dominique. La Maison Dieu, Éditions du Seuil, Paris, 2006. 242 A bibliografia sobre este tema é vastíssima e La Maison Dieu é um excelente ponto de partida. Outra obra de Iogna-Prat é o Cluny, cidadela celeste. In: DUBY, Georges. LACLOTTE, Michel (org.) História artística da Europa - A Idade Média, vol II, 1998, p. 100-118. Esse texto é especialmente interesse no âmbito desta pesquisa, porque Iogna-Prat defende que a consagração de Cluny II pode ser vista como um “microcosmo onde o humano e o celeste entram em consonância (p. 109). Assim como afirma que os diferentes discursos sobre o espaço eclesiástico estabelecem a sacralidade desse lugar graças a recursos simbólicos, como os ornamentos e as representações escultóricas (p. 109) Destacamos também BULST, Neithard. DESCIMON, Robert. GUERREAU, Alain (orgs.). L’État ou le roi - les fondations de la modernité monarchique en France (XIVe-XVIIe siècle). Paris, Maison des Sciences de l'Homme, 1996. CASTELNUOVO, E. et SERGI, E. (orgs). Arti e Storia nel Medioevo, v. I: Tempi, Spazi, Istituzioni, Torino, Einaudi, 2002. Centro italiano di studi sull'alto Medioevo, Uomo e spazio nell’alto medioevo, Spoleto, 2003. ROSENWEIN, Barbara. Negotiating space. Power, restraint and privileges of immunity in Early Medieval Europe, Cornell University Press, 1999.
102
durante a Idade Média e descortinou as forças que estariam em atuação nesse fenômeno.
Kessler escreve: Powers attributed to vision gave force and persistence to art in medieval
culture. Following ancient speculation, medieval theologians praised sight as
the most spiritual of the senses and the source of divine knowledge; and so art,
because it is visual, acquired a special dignity . 243
Para Kessler, a concepção cristã de que o mundo físico é uma emanação do
mundo sobrenatural fez com que os objetos desempenhassem um papel importante na
cosmologia medieval e, portanto, na produção artística. A espiritualidade, segundo
Kessler, estaria na confluência entre os sacramentos, as relíquias e os objetos preciosos
. 244
Em agosto 2017, Adrien Bayard ministrou um curso intitulado Riqueza e
controle de territórios na alta Idade Média na Universidade Estadual de Campinas.
Participar deste curso possibilitou o contato com as elaborações medievais sobre as
noções de riqueza, posse e patrimônio, entendidas dentro das perspectivas arqueológicas
contemporâneas. A importância dessa abordagem se situa no fato de que, através das
escavações arqueológicas e da sistematização dos objetos coletados nas tumbas
merovíngias e carolíngias, é possível colocar os objetos materiais no centro da
compreensão sobre as lógicas de poder de um dado contexto histórico. Bayard destacou
a obra de W. Pohl e o conceito de “tesaurização” [tresouriser] para definir o acúmulo de
riquezas, suas possibilidades de transferência e as honras ou o prestígio que derivariam
de sua posse. Além disso, essa noção coloca em pauta o estabelecimento de uma rede de
relações e trocas, na qual o objeto ou o tesouro teria seu valor social estabelecido e
poderia fazer sentido. Por fim, destaca a participação desses artefatos na criação de uma
memória e prestígio. Ou seja, ao serem encomendados e expostos esses objetos se
transmutam em objetos de poder na medida em que estabelecem vínculos e hierarquias,
bem como legam ao futuro as ações de seus agentes. Por isso, o controle e a posse de
objetos preciosos durante o período medieval é um exercício de comunicação e
expressão da dominação, ou pelo menos, da ingerência, das esferas de poder.
243 KESSLER, Hebert. On the state of medieval Art History In: The Art Bulletin, vol. LXX, n. 2, 1988, p. 166-188. 244 Idem, p. 172.
103
Para ressaltar a relação entre a posse do tesouro e as categorias da memória ou
do esquecimento evocamos o texto de Patrick Geary, Phantoms of remembrance , 245
publicado em 1994.
Na Introdução Geary nos lembra que a memória se relaciona com a produção de
identidade e com sua representação. Na sua leitura sobre o período medieval, a memória
se articula ao exercício legítimo do poder, da dominação e da escolha entre o que criar,
preservar ou excluir. Assim, só seria possível produzir identidade por meio de textos
uma vez que os laços sociais fossem rememorados e as percepções de identidade
retomadas do passado pudessem dar significado ao presente da escrita.
Especificamente sobre o caso medieval, Geary escreveu:
The right to speak for the past also implied control over that such gave access to the
past - the ‘relics’ by which the past continued to live into the present; How these
tangible or written relics of the past where preserved then, and who could therefore
make them to disappear [or appear] were thus fundamental aspects of power and
authority 246
Nesse sentido, a memória coletiva é também uma experiência que cria
solidariedades entre um grupo específico e mobiliza os agentes em um processo
constante de seleção e supressão . Enquanto processo constante de criação a memória 247
se converte em memória para alguma coisa; ou seja, ela se torna um princípio
organizador e critério fundamental para que o presente seja julgado e o futuro planejado.
“The importance assigned to the past by medieval society was such that this past had to
be considered essentially recorded so that they could be present once more” . 248
É notável a influência dessa leitura em nossa visão dos escritos de Suger. Se o
abade registrou seus feitos em uma redação cujo objetivo era deixar para a posteridade
não só o relato mas o exemplo que oferece ao futuro, percebe-se como a questão da
memória se une ao registro e à criação de uma narrativa de si cujo propósito é perenizar
os ato e as benesses do agente que escreve. No caso de Suger, a tônica recai em suas
245 GEARY, P. Phantoms of remembrance. Memory and oblivion at the end of the first millennium. Princeton University Press, 1994. 246 Idem, p. 7. 247 Idem, p. 12. 248 Idem, p. 18.
104
motivações espirituais e teológicas, como não podia deixar de ser, mas também na sua
luta contra o esquecimento que poderia recair sobre sua obra e sua vida no futuro.
Escrever, nesse caso, se configura como uma tentativa de gerenciar o futuro e sua leitura
sobre a vida e obra do escritor.
Assim, o segundo capítulo desta dissertação colocou em debate as noções de
riqueza, prestígio, poder com a experiência estética, ritual e dos sentidos que se
procurava criar dentro da Catedral reformada. Nosso diagnóstico parte da abordagem
antropológica dos objetos do tesouro de Saint-Denis enquanto portadores de sentido e
veículos de ascese aos espectadores. No entanto, ficou claro durante a pesquisa que
compreender o sentido da experiência visual ou da criação de objetos preciosos no seio
de uma reforma abacial só pode ser feita a partir de sua ligação com as justificativas
oferecidas pelo próprio Suger em seus escritos e das implicações políticas e
memorialísticas que estes teriam. nesse sentido, Suger constrói uma noção de si
enquanto abade excepcional mas se insere, na realidade, em uma tradição de escrita de
história que também contemplou outros homens que ocupavam função semelhante à
sua.
No percurso que perseguimos nos últimos três anos, buscamos compreender de
que maneira a atuação de Suger em Saint-Denis pode ser interpretada à luz da escrita do
abade sobre seus feitos, bem como quais foram as questões e interpretações que
surgiram acerca do período do seu abaciado.
A problemática dos lugares, para usar uma expressão de Pierre Nora sobre os
lugares da memória, nos lembra de que a razão fundamental para sua existência é a de
parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento e, continuamente, reinventar seus
significados. Tais quais espelhos deformantes esses lugares não refletem a verdade, mas
a experiência sensível, fruto da elaboração abstrata do que é material, simbólico ou
funcional . 249
Ao buscar reconstruir ou mapear os sentidos do tesouro de Saint-Denis pudemos
interrogar, portanto, o estabelecimento de uma tradição e a rede que interliga esses
objetos com as cerimônias litúrgicas, a reforma arquitetônica da Catedral, os escritos de
Suger e, finalmente com a sua trajetória e ressignificação ao longo do tempo.
249 NORA, P., Entre memória e história - a problemática dos lugares, Revista Puc-Sp, v. 10, 1993, p. 22.
105
Foi assim que decidimos ir à Paris em janeiro de 2019 para experenciar e
localizar com precisão o estado atual não só da Catedral, mas dos objetos expostos no
museu do Louvre. Tal experiência, que gerou o terceiro e último capítulo deste texto,
foi mais impactante do que estas palavras poderiam sintetizar. Porém, é possível atestar
que as transformações sofridas pelo estatuto da abadia e a dispersão ou destruição de
seus objetos ao longo dos cinco séculos que separam a reforma de Suger da Revolução
Francesa, tornam o tesouro de Saint-Denis uma reunião espetacular de preciosidades e
beneplácito histórico. O fato de que estes objetos sobreviveram, foram recolhidos,
guardados, expostos, ao mesmo tempo em que foram saqueados, vilipendiados e
tomados como opressores, conta a trajetória não só da abadia, mas também da relação
fundamental entre arte e contexto, entre forma e experiência, entre um relicário e a
história da França. De que maneira nossa percepção diante de um objeto artístico é
impactada pelo momento ou contexto social que nos envolve? Tal pergunta não foi
respondida por esta dissertação, mas procuramos no conceito de tesouro uma inspiração
para nossas inquietações.
Expressão polissêmica, o tesouro foi visto pelos historiadores Bukart, Cordez,
Mariaux e Potin como expressão de um desejo de fazer a história. Um dos conceitos 250
centrais para o estudo medieval justamente porque impõe a interdisciplinaridade e o
cruzamento de correntes interpretativas distintas. Enquanto fenômeno e prática, o
tesouro e seus conteúdos articulam os jogos memoriais, as vias de acesso ao passado, a
prática do dom, as hierarquias sociais, as trocas simbólicas, a criação artística e a
acumulação de bens durante toda a Idade Média . 251
Aproximar-se dos tesouros e objetos preciosos é indagar-se sobre os aspectos
sociais, culturais e institucionais que definem as práticas de acumulação, criação e
exposição. Por isso intentamos compreender as diversas esferas que tangem o tesouro
de Saint-Denis e, especialmente, as vias pelas quais essas peças foram apropriadas pelo
discurso museológico e transformadas em coleção do museu do Louvre. Parece-nos que
essa escolha, além de comparar os diferentes usos e atribuições de sentidos para as
peças dentro de uma perspectiva genealógica e a contrapelo, também procura fechar o
250 BUKART; CORDEZ; MARRIAUX et POTIN Y. (orgs.) Le trésor au Moyen âge - Discours, pratiques et objets. Sismel, Edizioni del Galuzzo, 2010. 251 Ver a excelente Introdução dos autores para a abertura do volume que organizaram.
106
ciclo de sua história e explicar de que forma esses objetos chegaram até nós e fizeram
ser possível, inclusive, essa dissertação.
107
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115
ANEXOS:
Anexo I
Gravura de Dom Félibien publicada em 1707, em seu Histoire de l’abbey Royale de Saint-Denys em France, ilustrando um dos compartimentos do tesouro de Saint-Denis. Entre eles é possível observar o vaso de águia de Suger, o relicário (éscrain) de Carlos
Magno, a coroa do mesmo imperador, o cetro de Carlos IV e o vaso de cristal de Eleonor.
116
Anexo II
Ilustração crítica de vasos litúrgicos (Cálice de Suger) em Saint-Denis, também de
Michel Félibien.
117
Anexo III
Placa III (P) da obra de Félibien com um desenho de François Roger de
Gaignières com a Coroa dita de São Luís pertencente ao Tesouro
de Saint-Denis.
118
Anexo IV
A águia de Suger. Sala 502 (Salle Suger), Ala Richelieu, Inventário MR 422,
Departamento de Artes Decorativas do Louvre, Exposição Permanente.
A porção original, o vaso de pedra, é provavelmente datada do período imperial
romano, da região da província de Varese. Isso porque uma série de vasos de cristal
com o mesmo tipo de pedra foi descoberto ali.
Segundo o catálogo do museu do Louvre, Le trésor de Saint Denis au Louvre.
“Suger termine le De Administratione et la passage consacré aux vases liturgiques qu’il
fit entrer au trésor, en parlant de celui dont il était légitimement le plus fier : l’aigle. Il
raconte comment, après avoir retrouvé ce vase de porphyre d'un poli admirable, oublié
depuis longtemps dans un coffre, il eut l’idée de le transformer en aigle, à l’aide d’une
monture d’orfèvrerie (...) Ce gemme méritait d’être sertie dans l’or et les pierres
précieuses. Elle était de marbre mais ainsi, elle est plus précieuse que le marbre”. -
ALCOUFFE, Daniel (org.) Le trésor de Saint-Denis au Louvre , Réunion des Musées Nationaux, Paris,
1991, p. 184.
119
Anexo V
Vase d'Aliénor - Cristal de roche, argent doré, pierres précieuses, perles, émaux - VIe ou VIIe siècle (vase), avant 1147 (monture) - Hauteur 33,7 cm. - Trésor de
Saint-Denis puis Musée du Louvre, Inv n° MR 340
Descrito nas páginas p.168-69 do catálogo do Louvre.
Em De Administratione: “Ainda um outro vaso, que parece uma garrafa de cerca de um quartilho de berilo ou cristal, o qual a rainha da Aquitânia, recém casada, havia presenteado nosso senhor Rei Luís na primeira viagem deles, e o rei a nós como tributo de seu grande amor, nós oferecemos da forma mais afetuosa à mesa divina para libação. Nós registramos a sequência desses presentes no próprio vaso, depois de ele ter sido adornado com gemas e ouro, em alguns pequenos versos: ‘Enquanto noiva, Leonor deu esse vaso ao rei Luís, Mitadolus ao avô dela, o rei a mim, e Suger aos Santos’.” (Suger, De Administratione, XXXIV A. SANTOS, Selene Candian dos (trad.), 2014, p. 92-93)
120
Anexo VI
Aiguière de sardoine - Sardoine, argent doré, pierres précieuses, perles - VIIe siècle (vase), avant 1147 et XVe siècle (monture). MR 127, Département des objects d'art,
Richelieu, premier étage, salle 2 Descrito nas páginas p. 177-181 do catálogo do Louvre.
De Administratione: “Além disso, nós adicionamos outro vaso com o formato de jarro de água, muito parecido com o primeiro em material, mas não em forma, cujos pequenos versos são estes: ‘Já que devemos oferecer libações a Deus com gemas e ouro, eu, Suger, ofereço este vaso ao Senhor’.” Porque nós devemos fazer sacrifícios a Deus com ouro e pedras preciosas, eu, Suger, ofereço esse vaso ao Senhor”. (Suger, De Administratione, XXXIV A. SANTOS, Selene Candian dos (trad.), 2014, p. 93)
121
Anexo VII
Cálice de Suger - Galeria Nacional de Washington, Widener Collection - C-1.
Descrito nas páginas 174-176 do catálogo do museu do Louvre. Depositado no Gabinete das Medalhas, em 1791, nos arquivos da Biblioteca Nacional
de Paris. Em seguida, roubado em 1804 e comprado pelo antiquário inglês Charles Towneley, cuja coleção passou ao British Museum após sua morte. Vendido para Harry Harding em 1920, aproximadamente. Comprado em 1922 por Joseph Widener e transferindo para a National Gallery junto com a coleção de Widener, em 1942, onde está em exposição permanente. (WIXOM, W. For the service of the Table of God. in: CROSBY, Sumner Mcknight (org.) The Royal Abbey of Saint-Denis in the time of abbot Suger (1122-1151). The Metropolitan Museum of Art, New York, 1981, p. 111 (fig. 25).
Segundo Alcouffe, as ornamentações do cálice são uma provável referência aos modelos bizantinos do século X e XI pela forma e estilo, além do medalhão do Cristo Pantocrator na base acompanhado com um alpha e ômega.
De Administratione: “Nós também conseguimos para os serviços no já mencionado altar um cálice precioso feito de sárdonix sólida, sendo que essa palavra deriva de sardius e onyx, na qual a tonalidade vermelha do sárdio, por meio de sua propriedade variável, rivaliza tão intensamente com a negrura do ônix que uma propriedade parece ser contornada ao imiscuir-se na outra.” (Suger, De Administratione, XXXIV A. SANTOS, Selene Candian dos (trad.), 2014, p. 93)
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Anexo VIII
Jean-Lubin Vauzelle - La Salle d'introduction du musée des Monuments français (tombeau de
Diane de Poitiers, cariatides de la châsse de sainte Geneviève. Au fond, tombeau de
Mazarin par Coysevox), Salão de 1804, Musée Carnavalet.
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Anexo IX
Anônimo, Alexandre Lenoir (1761-1839) défendant les monuments de l'abbaye de
Saint-Denis, fim do século XVIII, 23,8 x 34,9 cm,Grand Palais, Musée du Louvre
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Anexo X
François Debret, Projet pour la pompe funèbre de Louis XVI du 21 janvier 1815, dessin et lavis, © Archives nationales (France), fonds Debret
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Anexo XI
Philip H. Delamotte (British, 1820 - 1889), Crystal Palace, Medieval Court, London, England, about 1854, Albumen silver print, 84.XM.643.6, 19.3 × 24.1 cm (7 5/8 × 9
1/2 in.)