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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas OLAVO ANTUNES DE AGUIAR XIMENES Aproximação à categoria de modo de produção nos Grundrisse (1857-1858) de Karl Marx CAMPINAS 2017

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

OLAVO ANTUNES DE AGUIAR XIMENES

Aproximação à categoria de modo de produção nos Grundrisse

(1857-1858) de Karl Marx

CAMPINAS

2017

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq, 131475/2015-0ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4552-3588

Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências HumanasCecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Ximenes, Olavo Antunes de Aguiar, 1985- X41a XimAproximação à categoria de modo de produção nos Grundrisse

(1857-1858) de Karl Marx / Olavo Antunes de Aguiar Ximenes. – Campinas, SP: [s.n.], 2017.

XimOrientador: Marcos Severino Nobre. XimDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas.

Xim1. Marx, Karl, 1818-1883 - Grundrisse. 2. Rosdolsky, Roman, 1898-1967. 3.

Economia marxista. 4. Capital (Economia). I. Nobre, Marcos Severino,1965-. II.Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e CiênciasHumanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Approach to the category of mode of production in Karl Marx's Grundrisse (1857-1858)Palavras-chave em inglês:Marxian economicsCapital (Economy)Área de concentração: FilosofiaTitulação: Mestre em FilosofiaBanca examinadora:Marcos Severino Nobre [Orientador]Jesus José RanieriMaurício Chalfin CoutinhoData de defesa: 22-03-2017Programa de Pós-Graduação: Filosofia

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas A comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 22 de março de 2017,

considerou o candidato Olavo Antunes de Aguiar Ximenes aprovado.

Prof. Dr. Marcos Severino Nobre

Prof. Dr. Jesus José Ranieri

Prof. Dr. Maurício Chalfin Coutinho

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo

de vida acadêmica do aluno

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À memória sempre doce

de Maria de Fátima.

Para Edson,

por seu apoio sempre presente.

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Agradecimentos Agradeço a bolsa concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (CNPq - processo 131475/2015-0), sem a qual este trabalho não teria

sido possível. Por isso, lamento profundamente o processo de corte orçamentário sofrido pelas

universidades brasileiras em todos níveis – e, mais ainda, pela educação em geral – nestes

últimos tempos, para não mencionar a terrível conjuntura política na qual nos encontramos. Na

mesma medida que a pesquisa teórica pôde ser um refúgio em meio ao caos, ela também se

mostrou um fardo. Não foi simples concentrar esforços em momentos tão difíceis da vida

nacional. O horizonte de lutas democráticas parece extenso e árduo. O terreno, minado. Só nos

resta lutar e continuar a defender a intensificação das instâncias democráticas.

A estrutura e o apoio do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas foram

imprescindíveis. O acervo da Biblioteca do IFCH foi crucial, principalmente a coleção das

obras completas de Marx e de Engels. Foi fundamental também o apoio do corpo docente do

Departamento de Filosofia e das funcionárias técnico-administrativas. Gostaria de agradecer

em particular as da Secretaria de Pós-Graduação nas pessoas de Sônia, Daniela e Maria Rita

(que já se aposentou e deixa muitas saudades). Aproveito para agradecer também funcionários

de outros setores, os quais me socorreram em momentos diversos: Fábio, Luís e Reginaldo.

Todas e todos sempre atenciosos.

Gostaria também de agradecer a orientação dedicada e o apoio constante ao longo

dos últimos anos do professor doutor Marcos Nobre, sem ele e sem o apoio do Grupo de Teoria

Crítica, coordenado por ele, este trabalho não teria sido viável. Devo muito mais do que poderia

expressar. Em particular, gostaria de agradecer aos colegas do Grupo de Teoria Crítica, que,

registra-se, teve ao longo de sua longeva existência diversas formações: Adriano, Bárbara, Bee,

Bruna, Concli, Divino (aquele abraço), Francisco, Gabi, Lira, Maria (que sufoco esse ano),

Mari (obrigado pela torcida), Palazi, Raquel, Yama. Por fim, cabe um agradecimento especial

à pesquisadora Inara.

Agradeço aos professores que aceitaram discutir meu trabalho na qualificação, prof.

dr. Jesus Ranieri e prof. dr. Sávio Cavalcante. Sei que minha prosa barroca não deve ter sido

fácil de enfrentar, mas seus comentários foram preciosos. Agradeço aos professores que fizeram

parte da banca de defesa, prof. dr. Jesus e prof. dr. Maurício Coutinho, suas arguições foram

extremamente importantes para este trabalho. Agradeço também aos professores suplentes,

prof. dr. Sávio e prof. dr. Fernando Rugitsky, pela disponibilidade.

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Meus estudos mais sistemáticos de Marx partem de um grupo de leitura de O

Capital formado nos primórdios de minha graduação em filosofia pela Unicamp. Gostaria de

saudar alguns dos camaradas desta jornada: Daví, Éder, Denis, Ortuso, Daniel, Lício e,

particularmente, Sílvio, por ter me alertado do longo e anguloso caminho à frente. Ele não sabe,

mas me avisou de quase tudo. Foi também uma oportunidade única poder conviver com o prof.

Alonso, sempre certeiro em seus comentários. Um abraço mais do que especial ao Barsotti e ao

Daví. Entre idas e vindas, mais de 10 anos de amizade, e a conversa nunca cansa, nunca acaba.

Para bem ou para mal, meus primeiros anos de faculdade foram moldados por essa amizade.

Foi muito proveitoso participar de algumas plenárias do Núcleo Direito e

Democracia (NDD) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), um abraço

especial ao Gabriel, ao Jonas e à Elaine, pela recepção calorosa e pelas conversas ao longo dos

últimos dois anos.

Não poderia deixar de registrar a oportunidade única de discutir este trabalho ainda

em andamento na II Jornada de Estudos Marxista da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) com Juliana, Diego, Tomas e com a banca avaliadora. Nesta ocasião, pude testar

algumas formulações provisórias, as quais foram alvo de críticas certeiras dos colegas assim

como da banca avaliadora. Só pude comparecer a esse evento por causa do suporte financeiro

e logístico do Departamento de Filosofia e da Diretoria Financeira do IFCH.

Não tenho palavras para descrever o apoio contínuo das minhas tias e dos meus

tios: Olívia, Sandra, Paulo, Zé, Paula, e aos mais distantes fisicamente: Vicente, Esther, Cecília

e Ana. Não sei o que teria feito sem nossas tertúlias aos sábados. Obrigado por me incentivarem

a persistir nesta trilha. Não sei também como expressar o apoio que encontrei em meu pai,

Edson, e em minha irmã, Bruna. Não poderia deixar de registrar também o apoio de José

Guilherme, meu primo.

Descobri que aprender a língua alemã demora, se a pessoa tiver sorte, uma vida

inteira. Sou muito grato às professoras e aos professores que mitigaram as dificuldades desse

longo processo: Norma, Dörthe, Paulo, Salete e Anisha. Membros do corpo docente da língua

alemã do Centro de Ensino de Línguas (CEL) da Unicamp. Um abraço especial para a Anisha,

pela amizade, e para o André, que me ensinou a navegar no mar de casos do alemão. Aliás, não

poderia deixar de mais uma vez agradecer ao André por ser um ótimo anfitrião em Leipzig.

Agradeço à Cero a acolhida sempre segura e o papo atencioso nas minhas breves passagens

pela Alemanha, sobretudo agradeço-lhe a paciência com a qual corrigia meu alemão capenga –

e por sempre me incentivar. Os papos e o esforço conjunto com a Lílian para aprender a língua

alemã foram também essenciais para progredir nos estudos.

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Agradeço ao Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) pela bolsa

Winterkurs, concedida em 2012. No mesmo ano, graças a um convênio da Unicamp, pude

cursar o semestre de inverno (2012/2013) na Universidade Técnica de Darmstadt (TUD) pela

graduação em filosofia. A estada em Darmstadt foi muito proveitosa. Agradeço às professoras

e aos professores de alemão em Berlim (DID), Düsseldorf (IIK) e Darmstadt (TUD).

Por fim, agradeço mais uma vez a orientação do prof. dr. Marcos Nobre. Além de

um pesquisador rigoroso e sério, e de um professor dedicado, o professor Marcos constitui para

mim um exemplo de intelectual atuante na esfera pública. Este trabalho, com todos seus erros

e defeitos, cuja responsabilidade é somente minha, não teria existido sem a sua orientação

paciente. Minha dívida intelectual para com ele é inestimável.

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Resumo

Este trabalho investiga a diferença entre modo de produção capitalista e modo de produção

especificamente capitalista, a partir do conceito de capital fixo nos Manuscritos de 1857-58,

conhecidos por Grundrisse, de Karl Marx. Marx, nestes cadernos, vincula internamente a

categoria de modo de produção com o capital fixo, ao postular que este é o índice de

desenvolvimento daquela. Para apresentar essa hipótese, partimos de uma seleção da literatura

secundária sobre o assunto. Assim, nos baseando em Rosdolsky, encontramos a hipótese da

centralidade do capital fixo. Isso implica não ler a trama conceitual dos Grundrisse a partir da

trama conceitual de O Capital.

Palavras Chave: Karl Marx; Grundrisse; Manuscritos de 1857-1858; modo de produção;

capital fixo; Roman Rosdolsky.

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Abstract

This dissertation investigates the difference between capitalist mode of production and

specifically capitalist mode of production from the concept of fixed capital in the Manuscripts

of 1857-58, known as Grundrisse, by Karl Marx. Marx, in these notebooks, internally links the

category of mode of production to fixed capital by postulating that such category is the

development index of the latter. To present such hypothesis, we´ve started from a secondary

literature selection on the subject. Thus, by basing ourselves on Rosdolsky, we´ve found the

hypothesis of the centrality of the fixed capital. That implies not to read the conceptual plot of

the Grundrisse from the conceptual plot of The Capital.

Key-words: Karl Marx; Grundrisse, Manuscripts of 1857-1858; mode of production; fixed

capital; Roman Rosdolsky.

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Sumário INTRODUÇÃO ----------------------------------------------------------------------------------------- 12

1. Estrutura geral da dissertação --------------------------------------------------------------------------------- 20 2. Sobre as traduções ---------------------------------------------------------------------------------------------- 28

Capítulo I – Grundrisse: textos em disputa ------------------------------------------------------- 31

1.1 Apagamento da categoria de modo produção na literatura secundária -------------------------------- 32 1.1.1 Modo de produção nos Grundrisse ---------------------------------------------------- 35

1.2 A centralidade dos Grundrisse ------------------------------------------------------------------------------ 36 1.2.1 Contexto da redação dos Grundrisse -------------------------------------------------- 36 1.2.2 – Os Grundrisse e os comentadores --------------------------------------------------- 38

1.3 Textos em disputa: Introdução e Formen ------------------------------------------------------------------ 47 1.3.1 Introdução de 1857 – o problema do começo ---------------------------------------- 50 1.3.2 Formen e a acumulação primitiva ----------------------------------------------------- 61

Capítulo II – Surgimento do modo de produção (especificamente) capitalista ------------ 68

1. Surgimento do modo de produção capitalista --------------------------------------------------------------- 69 2. As formas de estabelecimento do modo de produção capitalista ----------------------------------------- 78

2.1 Tendências progressivas: mercado mundial e efeito civilizador --------------------- 78 2.2 A questão da concorrência ---------------------------------------------------------------- 86

Capítulo III – Modo de produção capitalista e o capital fixo ---------------------------------- 90

1.1. As diferenças internas ao conceito de capital ------------------------------------------------------------- 92 1.1.1. Capital fixo e capital circulante ------------------------------------------------------- 94 1.1.2. Circulação e permanência da produção --------------------------------------------- 99 1.1.3. Capital fixo como índice de desenvolvimento capitalista ------------------------- 103 1.1.4 Tendências antagônicas do capitalismo --------------------------------------------- 106 1.2 Capital constante e capital variável ---------------------------------------------------- 112

Considerações Finais -------------------------------------------------------------------------------- 121

Referências Bibliográficas -------------------------------------------------------------------------- 126

1.1. Bibliografia Primária ---------------------------------------------------------------------------------------- 126 1.2. Traduções da Bibliografia Primária ----------------------------------------------------------------------- 126 2.1. Bibliografia Secundária ------------------------------------------------------------------------------------- 127

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação de mestrado se propõe como tarefa fazer uma primeira

aproximação ao estudo da categoria de modo de produção nos manuscritos de 1857-581 de

Marx. Particularmente, estudaremos a diferença entre o “modo de produção capitalista” e o

“modo de produção especificamente capitalista”, através do conceito de capital fixo2. Nossa

hipótese aponta para a uma mudança na conceituação da categoria de modo de produção nos

Grundrisse em relação ao Capital. Isto é, apesar de inúmeras linhas de continuidades entre

esses textos, é fundamental investigar a categoria de modo de produção para entender no que

eles diferem. Há evidentemente comentadores que já investigaram ou estudaram as diferenças

entre os manuscritos de 57-58 e O capital, porém, nenhum deles o fez no sentido de destacar a

categoria de modo de produção.

É também lugar comum afirmar a centralidade da categoria de modo de produção

para a teoria de Marx e para a recepção marxista. A categoria de modo de produção foi base

tanto de (i.) um materialismo histórico (como querem, em sentidos diferentes, Giannotti,

Althusser, Balibar, Hobsbawm, Wood etc.), cujos princípios constitutivos na literatura

secundária estão também em disputa, quanto (ii.) para uma análise do tipo sociológica ou da

estrutura de uma determinada formação social (como as três instâncias postuladas por Althusser

e seu grupo, ou até mesmo em Hobsbawm)3.

Seja como for, não pretendemos investigar os usos na literatura secundária da

categoria de modo de produção; antes, nosso objetivo é mais restrito, vamos investigar o uso

teórico desta categoria efetuado por Marx nos Grundrisse. Neste sentido, é importante

dimensionar a história de recepção destes cadernos.

1 Ao longo desta dissertação alternamos entre cadernos de 1857-1848, manuscritos de 1857-1858, ou simplesmente Grundrisse, para nos referirmos ao conjunto de cadernos editados. É sintomático, como mostra Nicolaus (1993, p-24ss) a própria ausência de um título elaborado por Marx mesmo. Essa ausência poderia ser tomada por um testemunho da incompletude, da falta de acabamento dos cadernos, assim como são testemunhos dessa qualidade de obra incompleta os lapsos gramaticais de Marx. Trata-se de um feito notável a tradução da Boitempo ter produzido um texto fluído, gostoso de ler, quase como se Marx tivesse redigido um texto pronto para publicação. Contudo, um exame conjunto da tradução com o original nos revela o esforço interpretativo e linguístico da tradução. Trata-se, sem dúvida, de um mérito, mas devemos tomar distância da beleza produzida na edição brasileira do texto para poder fazer surgir o texto tal qual Marx o produziu. 2 O texto no qual Marx apresenta mais eloquentemente a diferença entre “modo de produção capitalista” e “modo de produção especificamente capitalista” é o capítulo VI inédito do Capital, também conhecido pelo título “resultados do processo de produção imediato”, escrito na década de 1860, provavelmente no ano de 1864 (cf. Marx, 1990a e MEGA2 II/4.1). É também deste capítulo inédito que tomamos os termos “subsunção real e formal”. Esperamos mostrar ao longo dos capítulos que esses empréstimos terminológicos se justificam. 3 Vide Labica e Bensussan (1999, p744ss).

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A primeira edição dos cadernos foi em dois volumes publicados em 1939 e 1941

(Cf. Marx, 1953, Nota Editorial, s/p) pelo Instituto Marx-Engels-Lenin de Moscou (Cf. Vorwort

em Marx, 1953, p. XIV). Foram os então editores de 1939 que, a partir de algumas cartas de

Marx, escolheram o nome Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie (Rohentwurf) (cf.

Nicolaus, 1993, p. 24). A reimpressão em volume único, já pela Dietz Verlag de Berlim, é

datada de 1953. Os exemplares dos manuscritos de 1857-1858 eram raros (Cf. Rosdolsky, 2001,

p. 15ss).

A história de apropriação e de leitura destes manuscritos se inicia a partir das

décadas de 1950-60. Essa história de recepção tão rica nos é testemunhada, por exemplo, pelo

Beiträge zur Marx-Engels-Forschung (Neue Folge 2007) dedicado aos 150 anos dos

Grundrisse, particularmente o artigo de Behrens (2007) faz um levantamento extenso da

recepção desta obra, assim como por Karl Marx’s Grundrisse (Foundations of the critique of

political Economy 150 years later) editado por Marcello Musto em 2008, e pelo O Ensaio

Geral: Marx e a crítica da economia política (1857-1858)4 reunião de artigos organizado por

João Antonio de Paula em 2010. A quantidade de referências, temas e discussões que somente

estes três livros nos presenteiam é impressionante.5

Poderíamos também citar alguns livros já clássicos sobre os Grundrisse ou partes

dele, como Formações econômicas pré-capitalista6 (1964) editado por Eric Hobsbawm,

Origens da dialética do trabalho (1965) de José Arthur Giannotti, Gênese e estrutura de O

Capital (1968), de Roman Rosdolsky,7 Marx além de Marx (1979) de Antonio Negri, A

produção teórica de Marx (1985) de Enrique Dussel,8 Time, Labor, and Social Domination

(1993) de Moishe Postone.9 Para não falar de uma quantidade monstruosa de artigos e de textos

4 Curiosamente não há nenhum artigo dedicado à categoria de modo de produção. 5 Focado mais no Capital, Bidet (2010, p. 20-29) fez também um levantamento impressionante da fortuna crítica sobre Marx. 6 Trata-se de um título tendencioso elaborado por Hobsbawm como aponta Vaisman (2010, p. 75). 7 Título original era Zur Entstehungsgeschichte des Marxschen Kapital. Trata-se de uma publicação póstuma, uma vez que Rosdolsky faleceu em 1967. Um perfil intelectual de Rosdolsky pode ser encontrado em Paula (2010b). 8Agradece-se a Gabriel Gonçalves por nos fazer atentar para Enrique Dussel. 9 Uma primeira versão deste trabalho é uma tese de doutorado, cujo título é “The Present as Necessity: Toward a Reinterpretation of the Marxian Critique of Labor and Time”, de Postone na J.W. Goethe-Universität de Frankfurt defendida em 1983. Vide Postone (2003, p. xi) e o Curriculum Vitae do autor disponível em https://history.uchicago.edu/directory/moishe-postone (acessado em 8 de setembro de 2016). Seria interessante avaliar, em momento posterior, se há – e quais seriam as – diferenças entre a tese de Postone de 1983 e o livro de 1993. Nota-se também que, conforme referência bibliográfica dada ao final da dissertação, utilizamos a edição de 2003 do livro, que seria uma “reimpressão com correções”, de acordo com a ficha catalográfica. Infelizmente não constam ali quais teriam sido essas correções.

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esparsos sobre os Grundrisse.10 Por isso, cabe diante de um texto tão disputado e comentado,

como são os cadernos de 1857-1858, escolher uma abordagem teórica.

Há inúmeras formas de se abordar um texto. Poderíamos recorrer aos Grundrisse

para testar teses já existentes nos comentadores sobre alguma categoria ou tema particular

(primazia do econômico, caráter de estudo preparatório do Capital, ponto de virada teórico,

surgimento do Marx maduro com a teoria da mais-valia, dentre outras formulações). Optamos

por outro caminho. Nós não partimos do pressuposto de que as formulações posteriores

presentes no Capital (1867) são o índice de verdade das formulações dos Grundrisse, tampouco

vamos assumir que os Grundrisse são tão somente uma espécie de laboratório, de mero método

de pesquisa das obras posteriores. A princípio, vamos ler os Grundrisse pelo o que eles são - e

como eles são.11 Isto é, vamos acompanhar como o próprio Marx estabelece uma trama

categorial, com suas nuances, tensões e ambiguidades, sem pressupor encontrar nessa trama os

desenvolvimentos futuros. Em uma palavra, vamos acompanhar a escrita marxiana nesta obra

sem retroprojetar os conceitos e o modo de apresentação de O Capital.

Essa abordagem sem hierarquizar previamente um texto não é exatamente nova.

Por exemplo, Draper (2011a, p. 20) propõe o método da escavação (“excavation” method), cujo

objetivo é recolher tudo o que fosse possível sobre um certo assunto em Marx. Evidentemente

não podemos adotar esse método sem mais, afinal, Draper escreveu, ele mesmo, 5 volumes

sobre a teoria da revolução de Marx. Nosso objetivo é ir ao texto sem escolher citações para

corroborar ou não certas posições prévias.12 Em movimento semelhante, Cottret (2010, p. 10)

se propõe, ao escrever sua biografia de Marx, a recusar a tentação de conceder pesos diferentes

ao Marx filósofo, jornalista ou economista. Em suma, ele se recusa a partir de uma seleção

prévia de trechos de Marx.

Tendo esses dois métodos em mente, nosso objetivo foi não tomar como um dado,

durante essa pesquisa, uma hierarquização prévia dos textos e momentos de Marx; com isso, a

10 Deixamos de lado, por exemplo, o livro de Hiroshi Uchida Marx’s ‘Grundrisse’ and Hegel’s ‘Logic’ de 1988. E os livros de Wygodski, difíceis de se encontrar aqui, Die Geschichte einer grossen Entdeckung, wie “Das Kapital” entstand etc. 11 “(...) o que é dito sobre os Grundrisse é frequentemente muito bom, mas sempre se trata da questão de tomá-lo por gênese de um outro texto e não de tomá-lo por si mesmo.” (Negri, 1991, p. 15). 12 “A obra de Marx é um gigantesco conjunto de trabalhos teóricos fragmentados. Não consiste apenas de trabalhos não publicados e não terminados; o próprio programa de pesquisa de Marx permaneceu, em grande medida, incompleto. Acima de tudo, o desenvolvimento teórico de Marx é constituído não só de continuidades, mas também de por uma série de rupturas. Marx não deve ser utilizado, portanto, como uma fonte de citações ou representando como tendo uma única posição. Esse é, no entanto, exatamente o método comum entre muitos marxistas e críticos de Marx.” (Heinrich, 2014, p. 31). Em sentido semelhante, afirmam Dardot e Laval: “É tentador fabricar-lhe [em Marx] uma coerência imaginária, seja recuperando pura e simplesmente a disjunção, seja opondo uma de suas vertentes a outra, tida como inessencial”. (Dardot, Laval, 2012, p.10).

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discussão se desloca dos possíveis cortes teóricos ou epistemológicos, para como Marx

efetivamente articulou uma constelação de categorias em torno da categoria de modo de

produção nos cadernos que constituem os chamados Grundrisse. Evidentemente essa recusa de

partir de uma hierarquia durante a nossa pesquisa não significou adotar a atitude contraposta de

achatar todas as inúmeras diferenças de estatuto teóricos dos textos de Marx. Isto é, não

afirmamos que um texto publicado como, por exemplo, o primeiro volume de O capital (o qual

ainda foi revisto por Marx em vida) teria exatamente a mesma função de um conjunto de

cadernos de estudo não voltado para a publicação, como é o caso dos Grundrisse. Contudo,

partir como se fosse um dado que a trama conceitual do Capital seria superior à da dos

Grundrisse não nos pareceria que serviria senão para esconder as diferenças mesmas entre essas

tramas conceituais, às quais cabe primeiramente elucidar. Essa dissertação caminha neste

sentido geral de apresentar essas diferenças.

Isso significa tomar o Grundrisse como obra aberta (cf. Negri, 1991) ou sistema

aberto (cf. De Deus, 2015, p. 933), cujo longo percurso de 9 meses de estudos conduziu Marx

a um maior esclarecimento. Consequentemente, certos desenvolvimentos conceituais, como a

distinção entre capital constante e variável, só surgem ao longo da redação desses cadernos (cf.

Rosdolsky, 2001, Cap.14). Ao surgirem, esses conceitos ainda atuam de maneira incipiente

dentro da trama categorial marxiana.

Além disso, apesar de alguns comentadores como Rosdolsky (2001),13 Postone

(2003) e Mazzucchelli (2004)14 usarem indistintamente textos das décadas de 1850 e de 1860,

não se trata de um consenso na literatura secundária que seja possível assumir os Grundrisse

como um estágio preparatório para o Capital; isto é, de que podemos comparar sem maiores

mediações os textos de 1857-58 e os textos posteriores, há de ser lembrado que existem

inúmeros cadernos prévios e preparatórios ao Capital.

Atentemos para o fato de que entre os Grundrisse (1857-1858) e a primeira edição

de O Capital (1867), Marx escreveu o Urtext do Para crítica e o Para crítica propriamente dito

(1859) (MEGA2 II/2), além disso, temos o Manuscrito de 1861-1863 (Terceiro capítulo – O

13 Segundo Bidet (2000[1985], p. 20) no caso de Rosdolsky seria como se “[t]udo se passa como se aquele [Marx], com exceção [en dehors] de um aperfeiçoamento que ele traz ao seu sistema, diria no fundo, dos Grundrisse ao Capital, a mesma coisa com outra linguagem”. Por isso, neste trabalho tentaremos desligar as considerações sobre o Capital feitas por Rosdolsky. Para Bidet, trata-se de investigar as rupturas do próprio período maduro. Nesse sentido, concordamos com Bidet. 14 Vale registrar que Wolf (2007, p.47 e passim) vai em outro sentido do que o nosso, pois ele entende que “os Grundrisse e o Urtext podem ser entendidos como escritos, os quais prestam um grande serviço para o entendimento do Capital ” [“ (...) können die Grundrisse und der Urtext als Schriften verstanden werden, die für das Verständnis des Kapitals große Dienste leisten.”]. (Wolf, 2007, p. 47).

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capital em geral) (MEGA2 II/3.1),15 os manuscritos que ficaram conhecidos como Teorias da

Mais-Valia (MEGA2 II/3.2 até 3.4), além dos capítulos presentes em MEGA2 II/3.5 e 3.6, para

não citar o Manuscrito de 1863-1867 (MEGA2 II/4.1) efetivamente preparatórios para o

primeiro volume de O Capital. De Deus (2010, p. 10-11) cita, dentro da “divisão tradicional”,

ao menos quatro esboços ao Capital. Com isso, queremos frisar, que, mesmo partindo da noção

de que os Grundrisse seriam o primeiro “esboço” do Capital, caberia, a partir dessa tomada de

posição, fazer as mediações entre os demais esboços até o Capital. Isto é, há de ser colocar em

suspenso uma ligação direta entre o texto de 1857 e o de 1867.16

Segundo Dussel (1985, p. 13), os cadernos de 1857-58 seriam mais do que meros

escritos preparatórios, eles seriam um marco no contexto da produção marxiana. Com isso, o

autor data a partir desses manuscritos os estudos da maturidade de Marx. De outra forma, Negri

(1991, p.5ss) também avalia que não é de maneira alguma óbvio considerar o Capital como

uma espécie de estudo sintético de toda obra marxiana anterior; afinal, existem diversos temas

que não reaparecem no Capital, como, por exemplo, o capítulo sobre trabalho assalariado.

Haveria, assim, temas que só encontraram algum desenvolvimento nos manuscritos de 1857-

58. A tese mais forte de Negri (1991, p. 8) é a de que os Grundrisse seriam uma espécie de

texto político, tratando-se de um texto dedicado à subjetividade revolucionária, esta última tese

de Negri não será encaminhada por nós.17 Em uma espécie de meio termo entre aqueles que

creditam uma linha de continuidade entre os Grundrisse e o Capital, e aqueles que privilegiam

uma obra em relação a outra, Vaisman (2010, p.77) acredita que há nos Grundrisse diversos

15 Encontra-se vertido para português o Manuscrito de 1861-1863 por Leonardo de Deus (vide Marx, 2010). Em francês, há desde 1979 a tradução pela editora Edition Sociales. Para De Deus (2010, p. 9) o Manuscrito de 1861-1863 seria um elo importante entre os Grundrisse e O capital. Segundo De Deus (2010, p.9-11), os volumes do Manuscrito de 1861-1863 só foram publicados entre 1976 e 1982, isso significaria que qualquer comentador ou comentadora que tenha escrito antes de 1976 desconhecia o conteúdo completo destes manuscritos. Daí, possivelmente, o peso dos Grundrisse já publicado, em edição completa, entre 1939-1941 para se pensar a origem de O Capital. Contudo, partes consideráveis desse Manuscrito de 1861-1863 foram publicadas em 1905 por Kautsky como Teorias do mais-valor, como se tratasse do quarto livro de O Capital. 16 Isso envolve também a necessidade de se repensar a função dos planos de redação do Capital elaborados por Marx. Para uma discussão neste sentido, remetemos a De Deus (2015), em discussão crítica com Rosdolsky (2001). 17 Negri levanta uma dúvida de ordem filológica: “Eu me pergunto se é correto considerar a obra completa de Marx, Capital, como o livro o qual recapitula exaustivamente toda pesquisa de Marx” (Negri, 1991, p.5). Pois supõe-se que O Capital seria a obra mais bem-acabada de Marx, seu ápice. “A gênese do Capital, da qual nossos camaradas muito ilustres e bem informados [knowledgeable] nos informam, é, a meu ver, invalidada pelo fato de que ela supõe que Capital constitui o ponto mais desenvolvido da análise de Marx.” (Negri, 1991, p.5). Há uma tese de doutoramento que compara Negri e Rosdolsky: SOBRAL, Fábio. Os Grundrisse de 1857-8 como Manifesto Social. Tese de doutoramento defendida em julho de 2008 no IFCH/Unicamp.

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17

desenvolvimentos que ultrapassam o Capital; entretanto, isso não significa que os Grundrisse

não façam parte de um itinerário até o Capital.18

Entretanto, contra nosso esforço de ler os Grundrisse por si mesmos, poder-se-ia

objetar que a própria edição crítica (MEGA), dentre suas quatro seções (Abteilung),19 dedicou

a segunda seção inteira ao “O Capital” e estudos preparatórios (Vorarbeiten), sendo que esta

seção se inicia efetivamente pelos Grundrisse (MEGA2 II/1). Há de se tomar cum grano salis

as escolhas editoriais da MEGA, Stamatis (2007, p. 317), a propósito da edição da MEGA2 II/5,

ao apontar algumas escolhas curiosas dos editores sugere “ler criticamente a “MEGA2”, pois,

afinal, “editar a MEGA2 é uma enorme tarefa [Aufgabe] e um enorme feito [Tat]”.

Além disso, Marxhausen20 (2014, p. 110ss) indica a existência de uma discussão

em torno do direito de existência mesmo de uma seção (II) separada na MEGA para O Capital

e os trabalhos preparatórios. As seções I (obras, artigos, esboços), a seção III (correspondência)

e a seção IV (excertos, anotações, notas marginais) não teriam sofrido nenhuma crítica

“fundamental” (Marxhausen, 2014, p. 110). Porém, consagrar uma seção própria aos volumes

de O Capital (1867) e obras anteriores e estudos preparatórios foi fruto de uma decisão

certamente interpretativa, qual seja, de que a obra de 1867 seria a obra fundamental do

marxismo. Como afirma claramente, por exemplo, a Introdução (Einleitung) dos editores à

MEGA2 II/1: “[e]les [os textos dos Grundrisse] são uma primeira elaboração para a grande obra

econômica planejada por Marx.”(MEGA2 II/1.1, p. 11*).21 Contudo, o fato era que em 1992,

quando da reativação da MEGA, já era impossível abandonar essa seção.22

Defendemos, portanto, como uma atitude prévia ao se ler e investigar os Grundrisse

em sua qualidade própria, que se afaste as determinações conceituais desenvolvidas

18 “Texto de uma riqueza impressionante de problemas e temas, o qual ultrapassa concretamente em muito a sua consideração como ‘rascunho de O Capital’. Os Grundrisse, não obstante guardam estreita relação com a forma acabada da crítica da economia política (...)” (Vaisman, 2010, p. 77) 19 As seções da MEGA são: (i.) Erste Abteilung: Werke, Artikel, Entwürfe, esta seção ainda não foi editada completamente, é aqui será publicada a Ideologia Alemã; (ii.) Zweite Abteilung: “Das Kapital” und Vorarbeiten, a edição desta seção terminou em 2012; (iii.) Dritte Abteilung: Briefwechsel, em processo de edição; (iv.) Vierte Abteilung: Exzerpte, Notizen, Marginalien, em processo de edição. (cf. http://mega.bbaw.de/struktur acessado em 12/09/16). 20 “A crítica sempre se voltou contra a existência da seção II (O capital e trabalhos preparatórios) em termos gerais – e especificamente contra sua abertura com os Manuscritos econômicos 1857-1858 (os Esboços [Grundrisse] da crítica da Economia Politica).” (Marxhausen, 2014, p. 110). 21 “Sie sind eine erste Ausarbeitung für das von Marx geplante große ökonomischen Werke.” (MEGA2 II/1.1, p. 11*) . 22 “Prensados entre a existência da seção II e os princípios que não permitiriam essa existência, os fatos derrotaram os princípios: até 1992, já haviam sido publicados dezesseis volumes da seção II e ela foi levada adiante sem fundamentação alguma.” (Marxhausen, 2014, p. 110). Mais adiante Marxhausen (2014, p.111) matiza um pouco mais sua posição em relação as críticas de Reichelt e Backhaus à seção II, pois, para Marxhausen, o problema seria de outra ordem: qual foi o critério de escolha para incluir materiais como as resenhas de Engels do Para Crítica ou a palestra de Marx Valor, preço e lucro.

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posteriormente na década de 1860. Marx, ao redigir os Manuscritos de 1857-8, não havia

alcançado a sua própria trama categorial, os Grundrisse fazem parte deste processo de

estabelecimento de categorias próprias. Isso implica dizer duas coisas: (i.) Marx partia

efetivamente das categorias já existentes da economia política da época (como capital fixo e

circulante); (ii.) nosso autor ainda não havia estabelecido a distinção entre capital constante e

variável.

Dito isso, a hipótese desta dissertação é de que Marx tenha correlacionado o

desenvolvimento do modo de produção capitalista com do conceito de capital fixo nos

Grundrisse. O capital fixo seria tomado por nosso autor como espécie de índice de

desenvolvimento do próprio capitalismo. Isso significaria que dado um acúmulo de capital fixo

e dada uma certa figura, a da grande indústria, o capital teria finalmente colocado o modo de

produção que lhe é adequado, em uma palavra, o modo de produção especificamente capitalista.

Para fazer surgir essa trama conceitual impõe-se não ler os Grundrisse a partir do Capital, pois

Marx na década de 1860 passa a desligar a noção de capital fixo da conceituação de modo de

produção e, além disso, Marx alcança uma trama conceitual que lhe é própria, qual seja, a

distinção entre capital constante e variável. Um autor fundamental para a construção desta

hipótese é Rosdolsky (2001).

Em Rosdolsky (2001), encontramos duas pistas importantes para essa hipótese.

Primeiro, ele foi um dos primeiros comentadores a perceber a centralidade do capital fixo nestes

cadernos de estudo. (Cf. Rosdolsky, 2001, Cap.24). Segundo, Rosdolsky (2001, Cap.14) indica

que a diferença conceitual, que é própria a Marx, entre capital constante e variável só surge ao

longo dos Grundrisse.

Não obstante, há uma outra hipótese presente nesta dissertação. Apesar de Marx no

Capital ter desligado a noção de capital fixo da noção de modo de produção, há ainda uma

conceituação da categoria de modo de produção que se mantém da obra de 1857 até a obra de

1867, qual seja, a existência de duas ordens explicativas para um dado modo de produção: a

história do vir a ser e a história contemporânea. O autor chave para essa hipótese foi Giannotti

(1985).

Vimos que há duas hipóteses correlacionadas que permeiam esta dissertação. A

primeira, a partir de Rosdolsky, aponta para o capital fixo como via privilegiada para o

entendimento do modo de produção capitalista; a segunda, a partir de Giannotti, indica que há,

contudo, uma linha de continuidade na conceituação da categoria de modo de produção dos

Grundrisse ao Capital. No limite, o que propomos aqui é que (i.) essas hipóteses são

compatíveis, e que (ii.) se faz necessário conceder uma autonomia aos textos de 1857-8. São,

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portanto, duas as condições de contorno de mesma ordem para esboçar isso. A primeira

condição é ler a organização do texto de 1857-58, efetuada por Rosdolsky, sem segui-lo em sua

comparação com O Capital. A segunda condição é garantir em Giannotti a mesma autonomia

dos Grundrisse diante de O Capital. Se em Giannotti esta condição parece ser mais fácil, já que

o foco de seu livro Origens da dialética do trabalho é predominantemente o jovem Marx, a

questão já não é tão imediata para Rosdolsky. Somente o conjunto da dissertação pode mostrar

se logramos efetuar essa separação em Rosdolsky.

Há ainda um outro comentador chave no qual nos nós apoiamos, trata-se de

Postone. Em nossa construção, a argumentação de Postone (2003) aparece como uma espécie

de contraprova ou negativo do argumento, e isso por alguns motivos. Primeiramente, muito

embora Postone se concentre nos Grundrisse e em O Capital, a categoria de modo de produção

aparece esparsamente na obra do historiador, e, quando aparece, ela desempenha apenas um

papel marginal no curso geral de sua argumentação. Em segundo lugar, uma das consequências

da posição de Postone ao defender a completa imanência da qualquer teoria ao seu objeto, isto

é, de que toda teoria teria uma validade restrita, seria de que não seria possível falar de um

materialismo histórico em Marx,23 tampouco poderíamos creditar às categorias de Marx e,

particularmente, à categoria de modo de produção, uma validade para além (ou aquém) do

capitalismo – aqui suspendemos qual teria sido o papel efetivo da categoria de modo de

produção em Postone, pois estamos falando de consequências implícitas de seu

posicionamento. Para afirmar inequivocamente: a partir de Postone, seria possível dizer que

Marx nos Grundrisse implicitamente24 teria abandonado a noção de que a categoria de modo

de produção teria uma validade trans-histórica.

De todo modo, é mister frisar que não poderemos avançar aqui na questão dos

motivos da escritura dos Grundrisse, muito menos poderemos apresentar como esta obra se

relaciona com os impasses ou com as passagens do quadro teórico marxiano mais geral, como

dissemos acima. Sabemos, por exemplo, que motivação mais imediata para a escritura dos

Grundrisse25 foi a crise de 1857. Teria tido, então, esta crise algum papel na reestruturação

23 Na verdade, o problema é mais profundo. Se as categorias de Marx não podem ser aplicadas a quaisquer formações pregressas, isso implica que tanto a filosofia da história (materialismo histórico) quanto a teoria da sociedade (modelo explicativo base-superestrutura, por exemplo) teriam se modificado, já que sua categoria base, o modo de produção, seria válido tão somente no e para o capitalismo. 24 É claro que todo problema recaí nesse “implicitamente”, ao que, do ponto de vista da lógica argumentativa, caber-nos-ia explicitar. Tentamos avançar nesse tema no primeiro capítulo desta dissertação. 25 Cf. Nicolaus (1993, p.8 e p.63), Musto (2008, p.150), Krätke (2008a, p.165-6) e Krätke (2008b, p.169ss). A crise é tema de inúmeras cartas do período de 1856-58, um pequeno apanhado: Marx a Engels em 26/09/56 e 27/09/56 (Marx não crê que a crise sobreviveria ao inverno de 1857, embora a dimensão dessa crise fosse europeia); Engels a Marx em 17/11/56 (Engels parece crer que a crise vai piorar na primavera), Marx a Engels em

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teórica da categoria modo de produção? Se sim, como? Infelizmente um tratamento satisfatório

desta questão exigiria acesso a fontes primárias do próprio Marx e um profundo conhecimento

histórico do período.26 Embora, ao longo do capítulo I, o contexto da redação dos Grundrisse

tenha sido abordado de modo panorâmico. Por isso, nesta dissertação vamos nos ater

principalmente a esta questão principal: como a categoria modo de produção aparece nos

Grundrisse. Nossa hipótese indica que a categoria de modo de produção encontra-se

intimamente ligada à de capital fixo. Além disso, ao longo deste trabalho, pareceu-nos que a

categoria de modo de produção desempenhou uma espécie de dupla função, pois, de um lado,

esta categoria permitiu a Marx estabelecer e justificar teoricamente a estrutura, seus elementos,

e o caráter dinâmico do capitalismo, isto é, a categoria de modo de produção forneceu o pano

de fundo teórico para se estabelecer o que o capitalismo é; e, de outro lado, nesse mesmo

movimento de se estabelecer o que o capitalismo é, estabelecemos o que ele não é, em contraste

com modos de produção anteriores. Em suma, a categoria de modo de produção forneceu a

Marx o substrato teórico para o estabelecimento de tendências e prognósticos do capitalismo,

em comparação ao que o capitalismo não é.27

Na próxima seção vamos revisar a estrutura argumentativa geral da dissertação e

seus capítulos.

1. Estrutura geral da dissertação

A hipótese principal da dissertação é mostrar que a conceituação da categoria de

modo de produção nos Grundrisse não é a mesma da do Capital. Esse ponto principal se

desdobra em dois. Primeira hipótese: a conceituação do modo de produção é feita através do

conceito de capital fixo nos cadernos de 1857-8. Nestes cadernos, o capital fixo é o índice de

23/04/57 (A crise no mercado de ações é crônica); Marx a Engels em 11/07/57 (um curto parágrafo de uma pequena missiva, Marx afirma que a revolução caminhava); Marx a Engels em 15/08/57 (o debacle financeiro na França tomaria enormes proporções para Marx); Marx a Engels em 20/10/57 (eles teriam, já em 1850, previsto a crise americana de 1857); Engels a Marx 29/10/57 (a crise americana está longe de acabar); Marx a Engels 13/11/57 (a crise veio dois anos atrasada); Engels a Marx 15/11/57 (Engels faz um longo apanhado do desenvolvimento da crise); assim como Marx a Engels 24/11/57, Engels a Marx 9/12/57, 11/12/57 e 17/12/57, a famosa carta de Marx a Engels 18/12/57, outra famosa carta de Marx a Lassalle 21/12/57 dentre outras. 26 Além disso, um encaminhamento satisfatório demandaria uma análise pormenorizada das novas edições da MEGA. Sobra a importância dos novos cadernos da MEGA2, vide Musto (2010). Embora com outro objetivo, afirma Vadée (1998, p. 17): “Ele [Marx] se afasta de nós: em que sentido pode ser resgatada hoje uma obra enraizada nos saberes e nas realidades de um outro tempo?”, Vadée continua: “Os escritos de Marx não são de leitura fácil. Eles supõem um conhecimento de um contexto que inteiramente desapareceu: a Alemanha, a Inglaterra e a França de há 130 ou 150 anos.”. 27 Em sentido semelhante, afirma Rosdolsky: “A investigação materialista dialética do modo de produção capitalista conduz à confrontação entre este modo de produção e as formações sociais pré-capitalistas, de um lado, e entre ele e o ordenamento social socialista, de outro.” (Rosdolsky, 2001, p. 346).

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desenvolvimento do próprio capitalismo.28 Essa qualidade de ser índice permite a Marx

distinguir dois momentos do modo de produção capitalista: o primeiro, modo de produção

capitalista se refere ao momento no qual o capital fixo se estabelece na forma de manufatura,

estamos, assim, no âmbito da subsunção formal do trabalho ao capital e no nível da mais-valia

absoluta; segundo momento, modo de produção especificamente capitalista, quando o capital

fixo se reveste da forma de grande indústria, chegamos à subsunção real e à mais-valia relativa.

O próprio papel do capital fixo como índice de desenvolvimento é tríplice: (i.) O

capital fixo é a figura objetiva do próprio desenvolvimento das forças produtivas;29 (ii.) o capital

fixo, em uma figura adequada, indica o momento do modo de produção capitalista;30 (iii.) a

produção de capital fixo indica que a sociedade não precisa dedicar-se inteiramente à produção

de bens de consumo imediatos.31

A segunda hipótese, a qual, diga-se, não exploraremos à saciedade nesta

dissertação, aponta, contudo, para uma linha de continuidade na conceituação de modo de

produção nos Grundrisse e no Capital. Esta linha seria a existência de duas ordens de

explicação de um modo de produção, como Giannotti (1985) entreviu: história contemporânea

e história do vir a ser. Pretendemos, ao menos, ter indicado os caminhos desta hipótese ao

longo deste trabalho.

O movimento geral da dissertação é apresentar uma primeira síntese da literatura

secundária no capítulo I (Grundrisse: textos em disputa). A partir desta síntese, deixaremos

indicado quais conceitos, argumentos ou temas retiraremos da literatura em geral e, em

particular, de Giannotti e Rosdolsky. No capítulo II (Surgimento do modo de produção

(especificamente) capitalista), passaremos a analisar a partir da letra do próprio Marx dois

28 “(...) o capital fixo [es] expressa a acumulação das forças produtivas objetivadas e igualmente do trabalho objetivado.” (Marx, 2011, p. 583; MEGA2 II/1.2, p. 574, Caderno VII). Algumas páginas depois:“(...)no momento em que o desenvolvimento do capital fixo atingiu certa extensão – e essa extensão é, como sugerido, o índice do desenvolvimento da grande indústria em geral (...)” (Marx, 2011, p. 586-7; MEGA2 II/1.2 p.579-580). 29 “[a] força produtiva da sociedade é medida pelo capital fixo [Capital fixe], existe nele em forma objetiva [gegenständlicher Form] (...)”(Marx, 2011, p. 582; MEGA2 II/1.2, p. 573, Caderno VI, Capítulo do Capital). 30 “O capital produtivo, ou o modo de produção correspondente ao capital [oder die dem Capital entsprechende Productionsweise], só pode existir em duas formas: manufatura ou grande indústria. (...) na segunda [grande indústria], o capital fixo [Capital fixe] tem de ser grande em relação ao número dos muitos trabalhadores operando conjuntamente. (...) Nesse caso [no caso da Manufatura], o próprio modo de produção não é determinado pelo capital, mas ele o encontra pronto. (...) Por conseguinte, a sua reunião pelo capital é só formal (...)” (Marx, 2011, p. 486-7; MEGA2 II/1.2, p. 477-8, Caderno VI, grifos do autor). 31 “Há ainda outro aspecto em que o desenvolvimento do capital fixo [capital fixe] indica o grau do desenvolvimento da riqueza em geral, ou do desenvolvimento do capital. (...) A parte da produção orientada para a produção do capital fixo [capital fixe] não produz objetos [Gegenstände] da fruição imediata nem valores de troca imediatos; muito menos [wenigstens] [produz] valores de troca não imediatamente realizáveis.” (Marx, 2011, p. 589; MEGA2 II/1.2 p. 583, Caderno VII, grifado no original, trad. modificada).

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momentos chaves: (i.) a passagem do feudalismo ao capitalismo; (ii.) a passagem ao modo de

produção especificamente capitalista. A hipótese em suspensão deste capítulo é tomar o capital

fixo como critério deste desenvolvimento; porém, só vamos adentrar no conceito de capital fixo

e como ele de fato se arma como índice de desenvolvimento no capítulo III (Modo de produção

capitalista e o capital fixo). Em ambos capítulos apresentaremos dois tipos de tendências e

contratendências internas ao capital: as tendências progressivas, que apontam para o

movimento interno do capital se impor frente aos modos de produção pregressos; as tendências

antagônicas, que operam no modo de produção especificamente capitalista, indicando as

limitações históricas deste modo.

Agora vamos detalhar os temas de cada capítulo. No primeiro capítulo

(Grundrisse: textos em disputa), procuramos fazer uma primeira revisão bibliográfica mais

geral de comentadores dos Grundrisse. O objetivo do capítulo foi estabelecer as balizes para

este trabalho, e com isso tentar tornar plausível nossa escolha de autores e de recorte temporal.

Basicamente nos apoiamos em textos da década de 1960 e, como já dissemos, em Rosdolsky,

Giannotti e Postone. Além disso, ao se falar de modo de produção é incontornável em alguma

medida lidar com a escola althusseriana.

Neste capítulo abordamos também o desaparecimento da categoria de modo de

produção na literatura secundária. Com exceção de Rosdolsky (2001[1968]) e de Giannotti

([1965]1985), quase nenhum comentador atribuiu uma ênfase à categoria de modo de produção

dentro da recepção dos Grundrisse.32 Até mesmo obras inteiramente dedicadas aos cadernos de

1857-8, como as de Dussel (1985) e Negri ([1979] 1991), apesar de um esforço considerável

de apresentação dos temas deixados muitas vezes posteriormente de lado por Marx, não se

focam exclusivamente na categoria de modo de produção. Parece-nos que houve a partir de

1980-90 um movimento mais abrangente dentro da literatura secundária de apagamento da

categoria de modo de produção.33

Em seguida, ao lidarmos com a literatura secundária selecionada, imediatamente

nos deparamos com alguns trechos destes manuscritos de 1857-58 que suscitaram maior disputa

ou divergência interpretativa das leitoras e dos leitores da obra. Particularmente, identificamos

a Introdução (caderno M) aos Grundrisse, a primeira parte da passagem dialética da produção

ao consumo e a parte conhecida como “método da economia política”, como um dos mais

32 Sem prejuízo, é claro, de a categoria de modo de produção (a partir de outros textos, como O Capital) tenha servido como mote para outras discussões. 33 Uma exceção ao apagamento, dentre outras, são os livros de Bidet Que faire du capital? ([1985]2000) e Explicação e reconstrução do Capital ([2004]2010). Embora o tema de ambos livros seja sobretudo o primeiro volume do Capital. Isso, de certa forma, os excluiria de nosso levantamento.

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polêmicos. Estes trechos foram lidos das formas mais diversas. Nicolaus e Postone interpretam

a Introdução como uma recusa implícita de Marx a qualquer fundamento e início trans-histórico

para a teoria. Giannotti, em uma espécie de meio termo, apesar de reconhecer que a teoria não

pode começar por uma abstração, concede que a categoria de produção seria uma espécie de

ideia reguladora da teoria, uma abstração filosófica, cujo peso seria distinto das abstrações da

economia política, tais como a de categoria de modo de produção. Além disso, outros dois

trechos da obra de Marx foram muito debatidos: “Formas que precederam a produção

capitalista” (doravante, somente Formen), e os trechos sobre a acumulação primitiva (ou

originária). O Formen foi lido principalmente numa chave de busca de balizas para se

estabelecer um materialismo histórico (Hobsbawm, 1975; Wood, 2008); em outro sentido,

Giannotti defendeu que o Formen, antes de qualquer coisa, era um texto sobre as condições

históricas e lógicas para o estabelecimento do modo de produção capitalista, isto é, o Formen

era, em última instância, sobre o capitalismo e não sobre as formas pregressas.

Já na discussão sobre a acumulação primitiva ou originária, nós nos deparamos com

um problema intricado. A acumulação era, de um lado, uma questão dos economistas

burgueses, pois estes procuravam explicar e justificar o surgimento do capitalismo pelo ato de

poupança, entesouramento e trabalho prévio por parte dos capitalistas. Mas também a

acumulação primitiva diz respeito em Marx, por outro lado, às condições lógicas e históricas

reais para o surgimento do capitalismo, para sua efetiva história do vir a ser,34 pois, para que

houvesse a troca entre o capital e a capacidade viva de trabalho, houve duas ordens de

pressuposições: lógicas e históricas. Do ponto de vista lógico, há a necessidade de que um certo

montante acumulado de capital, na forma de dinheiro, possa se deparar no mercado com uma

mercadoria especial, a força de trabalho encarnada no trabalhador vivo. Isso significa que, além

de certo acúmulo histórico de dinheiro por parte do capitalista, foi necessário que o trabalhador

se encontrasse “duplamente” livre no mercado de trabalho. Do ponto de vista histórico, a

acumulação primitiva pressupõe a efetiva separação dos trabalhadores dos meios de trabalho,

cuja figura histórica maior foi a fuga dos servos. O problema da acumulação primitiva se

confunde não só com a história do vir a ser, caso assumamos como correta a leitura de Giannotti,

mas também poderia ser lida na chave de um problema dentro da transição especifica de um

modo de produção a outro, nesse sentido, estaríamos na discussão da escola althusseriana, a

qual procurou estabelecer uma teoria do modo de produção geral e específico, e uma teoria da

transição.

34 A partir daqui conforme Giannotti (1985, p. 183ss), em sentido semelhante Rosdolsky (2001, p.227).

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Outros comentadores procuraram encaminhar uma teoria mais abrangente seja do

materialismo histórico (Hobsbawm, 1975; Wood, 2008), seja de uma teoria particular da

transição (Balibar, 1980 e 1969 e da transição para o comunismo, vide Turchetto, 2005 [1978]).

Para Balibar, a diferença entre subsunção formal e real seria o indício de defasagem do modo

de produção capitalista (Cf. Balibar, 1980, p. 268). De acordo com Saes (2007, p. 127ss),

Althusser e seu grupo teriam fornecido duas teorias, uma teoria do modo de produção, outra da

transição. Curiosamente, apesar de Giannotti (1980) no artigo “Contra Althusser”35 se opor à

teoria deste autor, particularmente contra a distinção entre objeto real e objeto de conhecimento

ao defender a existência de um processo de constituição categorial inscrito na própria realidade,

Saes (2007, p. 128ss) consegue aproximar a distinção de Giannotti entre história contemporânea

e história do vir a ser com a distinção operada pela escola althusseriana. A história

contemporânea se referiria a uma teoria do modo de produção e a história do vir a ser seria uma

teoria da transição. No entanto, na nossa hipótese de leitura, dentro da distinção operada por

Giannotti, o modo de produção seria tanto história contemporânea quanto história do vir a ser;36

isto é, não se trataria de duas teorias distintas, embora complementares, de uma teoria do modo

de produção e de uma outra teoria da passagem ou transição.

Com isso queremos dizer que se, de um lado, pretendemos fazer uma espécie de

leitura imanente do campo de tensões do entendimento da categoria de modo de produção nos

Grundrisse; por outro lado, não existe voltar a ler uma obra sem levar em conta sua história de

recepção.

No segundo capítulo (Surgimento do modo de produção (especificamente)

capitalista), vamos investigar como a capital aos poucos passa a se impor frente aos modos de

produção tradicionais e quais armas o capital usa para colocar abaixo as resistências destes

modos tradicionais. Feito isso, analisaremos que o capital enquanto tal só pode existir sob duas

formas: manufatura ou grande indústria. Cada forma corresponderia a um estágio do

capitalismo: modo de produção capitalista e modo de produção especificamente capitalista. O

critério de passagem seria o capital fixo.

O capital, quando surge, não surge assentando em suas bases próprias, trata-se de

um longo percurso histórico e lógico para o capital criar o modo de produção que corresponde

ao seu conceito. Ao surgir, ele necessariamente parte dos meios de produção ou, em geral, das

35 “Contra Althusser” é um artigo originalmente publicado em Teoria e Prática, no.3, 1968. 36 Parece-nos que a primeira vez que Giannotti descreveu a diferença entre “estudo do devir” (história do vir a ser) e “estudo da essência” (história contemporânea) foi em um artigo de 1965 (Giannotti, 1965). Ali, contudo, parece Giannotti restringir a categoria de modo de produção a um tipo ideal, identificado somente com a história contemporânea (Giannotti, 1965, p. 104-5).

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técnicas produtivas herdadas da tradição. Somente aos poucos o capital molda conforme sua

imagem o processo produtivo em uma direção especificamente capitalista. Este momento do

capitalismo acabado é também analisado por Postone em diversos momentos de sua obra,

particularmente a partir de O Capital e do Capítulo IV de O Capital. Quando o trabalho

efetivamente se subordina ao capital, o resultado é que no processo de trabalho “o trabalho

humano direito torna-se materialmente o objeto da produção.” (Postone, 2003, p. 283). A tese

de Postone, ao analisar a subsunção real, é tentar mostrar que a própria produção é capitalista,

isto é, que a contradição do modo de produção capitalista já estaria contida no próprio processo

de produção37 - a contradição essencial do capitalismo não seria um problema meramente

distributivo.

Além disso, analisaremos as tendências progressivas ou civilizatórias do capital,

como o estabelecimento do mercado mundial, o poder do comércio e, marginalmente, o poder

corrosivo da concorrência. Neste momento, parece-nos que a categoria de modo de produção

conjugada ao conceito de capital (fixo) tem um duplo propósito ao longo do Manuscrito de

1857-1858, de um lado, Marx com esta categoria conseguiu estabelecer não só as condições

lógicas, mas também as condições históricas para o surgimento mesmo do capitalismo; de outro

lado, esta categoria serviu como um substrato teórico que permitiu o estabelecimento das

tendências e contratendências capitalistas. Procurou-se neste capítulo evitar tratar a categoria

de modo produção à maneira de uma definição escolástica, ou seja, de definir a categoria e, a

partir disso, tirar conclusões lógicas, como se tratasse de um trabalho de fixar sentidos.

No terceiro capítulo (Modo de produção e o capital fixo), vamos encaminhar a

hipótese da centralidade do capital fixo. Para tanto, ao final deste capítulo acompanharemos o

nascimento das categorias de capital constante e variável. Se, do ponto de vista da trama do

Capital, vários desdobramentos que apresentaremos serão formulados a partir da dupla capital

constante-variável, por outro lado, essa dupla só surge nos Grundrisse. Marx, nesta altura de

seu percurso intelectual, não extrai todas as consequências de seu achado. Por isso, para

entendermos como foi o processo de desenvolvimento categorial nos próprios Manuscritos de

1857-58, temos que deixar em suspenso a trama conceitual estabelecida posteriormente. Deixar

em suspenso não significa ignorar que essas categorias e esses desenvolvimentos encontram

uma outra trama conceitual e uma outra apresentação ao longo da década de 1860, mas sim

37 Em outro capítulo, Postone é direto: “Em resumo, a grande indústria não é um processo técnico que é usado para os propósitos de dominação de classe e que entra crescentemente em contradição com esta forma de dominação, segundo Marx; antes, como historicamente constituída, ela é a expressão materializada de uma forma abstrata de dominação social – a forma objetificada de dominação das pessoas por seu próprio trabalho.” (Postone, 2003, p. 348). Vide também Postone (2003, p. 182).

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significa que não devemos a todo momento tomar a trama conceitual presente no Capital como

gabarito do que Marx escreveu em 1857-1858.

Há alguns indícios que apontam para plausibilidade de nossa leitura em conceder

peso ao capital fixo, e que, por outro lado, indicam o caráter incipiente da distinção entre capital

constante e variável. Esses indícios podem ser encontrados nos planos de redação do próprio

Marx.38 Em um dos primeiros planos de redação internos aos Grundrisse39 (Marx, 2011, p. 204,

MEGA2 II/1.1, p. 187), o autor começa pelo conceito geral de capital e passa imediatamente ao

conceito de capital fixo e circulante. Atenta-se para fato de que neste plano os conceitos de

capital variável e constante não estão presentes:

1) Conceito universal do capital – 2) particularidade do capital: capital circulante [capital circulant]. Capital fixo [Capital fixe]. (Capital como meio de subsistência [Lebensmittel], matéria-prima, instrumento de trabalho). 3) Capital como dinheiro. II. 1) Quantidade do capital. Acumulação – 2) O capital medido em si mesmo. Lucro. Juro. Valor do capital; i.e., o capital em contraste consigo como juro e lucro. 3) A circulação dos capitais. a) Troca do capital por capital. Capital e preços. b) Concorrência de capitais. g) Concentração dos capitais. III. O capital como crédito. IV. O Capital como capital por ações. V. O capital como mercado monetário. VI. O capital como fonte de riqueza. (...) (Marx, 2011, p. 204, MEGA2 II/1.1, p. 187, realce do item n.2 é nosso, itálico é de Marx, Caderno II, capítulo do Capital).

Evidentemente um plano de redação que aparece relativamente cedo na obra (por

volta da p. 187 da versão editada dos cadernos, no Caderno II) não é uma prova cabal da

centralidade do conceito do capital fixo. Contudo, pelo menos este plano indica a falta da

distinção prévia ou inicial entre capital constante e capital variável.

Algumas páginas depois (Marx, 2011, p. 214, MEGA2 II/1.1, p. 199), Marx

rearranja o plano acima em um esquema hegeliano (universalidade – particularidade –

singularidade), trata-se de uma pista interessante de que nosso autor não havia abandonado a

lógica hegeliana. Neste plano de redação, o capital fixo e capital circulante aparecem em outro

momento do começo (universalidade, item 2), e novamente não há sinal da distinção entre

capital constante e variável.

Capital. I. Universalidade: 1) a) Devir do capital a partir do dinheiro. b) Capital e trabalho (mediando-se pelo trabalho alheio[fremde]). c)Os elementos do capital decompostos de acordo com sua relação com o trabalho. (Produto. Matéria-prima. Instrumento de trabalho.) 2) Particularização [Besondrung] do capital: a) Capital circulante [Capital circulant]. Capital fixo [Capital fixe]. Circuito do capital. 3) A

38 Seguimos aqui as referências de De Deus (2015). O artigo do autor é efetivamente uma discussão mais abrangente dos diversos planos de redação de Marx. Em relação a De Deus, tomamos a mesma precaução de desligar as menções que o autor faz ao Capital. Nota-se também que De Deus é explicito quanto à diferença da trama conceitual do texto de 1857-58 e os textos posteriores, escreve o autor: “Importa dizer aqui que os Grundrisse não são e não podiam ser um sistema fechado, pois Marx ainda não havia nem sequer estabelecido o conteúdo completo e rico de determinações que seria O Capital. ” (De Deus, 2015, p.933).

39 Sabemos que há outros planos disponíveis em carta de Marx no período.

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singularidade do capital: capital e lucro. Capital e juro. O capital como valor, diferente de si mesmo como juro e lucro.

II. Particularidade: 1) Acumulação dos capitais. 2) Concorrência dos capitais. 3) Concentração dos capitais (...) III. Singularidade: 1) O capital como crédito. 3) O capital como mercado do dinheiro (...) (Marx, 2011, p. 214-5, MEGA2 II/1.1 p.199, realce do item 2 é nosso, itálicos são de Marx, Caderno II, Capítulo do Capital)

Mais uma vez vemos que Marx planeja apresentar a distinção entre capital fixo e

circulante logo no início, e percebe-se, como já afirmado, que a distinção entre capital constante

e variável ainda não estava dada. Somente nos planos de redação de 1861,40 Marx explicita no

próprio plano a necessidade de se distinguir capital constante e capital variável (cf. De Deus,

2015, p. 940-1), como o mesmo cai fora do nosso recorte temático e temporal, não vamos

apresentá-lo. O que este plano de redação coloca em questão é que, só após a redação dos

Grundrisse, a distinção entre capital fixo e circulante, capital constante e variável, é plenamente

alcançada. É claro que tomamos os dois planos apenas como indícios e não como uma

demonstração de nossa hipótese. Além disso, há um outro fato interessante, ambos planos acima

mencionados foram escritos antes mesmo da noção de mais-valia ter aparecido pela primeira

nos manuscritos. Os planos constam nas páginas 187 e 199 (MEGA), a primeira aparição do

termo mais-valia é somente na página 233 (Cf. MEGA2 II/1.1 – Apparat, p. 995; Marx, 2011,

p. 247, MEGA2 II/1.1, p. 233). Nosso ponto é atentar como os Manuscritos de 1857-58 são

obra aberta, cujo percurso leva Marx a um maior esclarecimento categorial.41

Há ainda uma outra pista para a ausência de uma distinção plena e inequívoca entre

capital circulante e fixo, e constante e variável. Antes de seguirmos essa pista, cabe ressaltar

que não pretendemos entrar na discussão sobre o capital em geral versus pluralidade de

40 Para De Deus (2015, p. 949), há um pano de fundo comum entre os escritos de 1857 e 1863, uma espécie de uso comum das categorias. Poderíamos afirmar que se trataria do mesmo horizonte teórico. No entanto, se, de um lado, é inegável que a crítica da economia política é parte de um esforço continuado de Marx; por outro lado, não menos importante, temos que reconhecer que a totalidade da articulação categorial não está dada em 1857-8 e, mais do que isso, ao longo dos próximos anos certos vínculos conceituais são estabelecidos, vínculos os quais somente aparecem preliminarmente ao longo de 1857-8. Cabe se atentar a isso.

41 “Ao logo desse percurso, inegavelmente, diversas questões afloram, constituindo a maior parte do corpo temático da obra a ser efetivamente publicada por Marx e editada por Engels. No entanto, o método de exposição ainda não estava consolidado e cada passo, nos Grundrisse, representa ao mesmo tempo um esforço de sistematização, sem produzir o resultado esperado.”. (De Deus, 2015, p.935). Mais para frente, De Deus, coloca seu entendimento do significado dos planos: “Além disso, os planos são sempre formulados por ele de modo ex post, são um resultado do material produzido, geralmente lançado no meio da redação; a exposição emerge, natural e diretamente, como consequência da pesquisa, por outro lado, a redação era também parte do método de pesquisa marxiano.” (De Deus, 2015, p.939). Isto é, deve-se tomar cuidado com o uso dos planos de Marx, afinal, os planos surgem no meio do desenvolvimento da própria escrita, além disso, em certo sentido, eles são produtos de outros planos inconclusos. Talvez se trate de uma sina marxiana, para nosso infortúnio, não terminar seus planos de estudo e de redação.

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capitais. De acordo com Rosdolsky (2001, p.49 e passim), os Grundrisse teriam se limitado à

análise do capital em geral. Seja como for, deixemos o próprio autor falar. Fazendo uma

digressão sobre a forma dinheiro e a forma capital, dentro de uma discussão maior sobre o

processo de produção capitalista, Marx ressalta que se trata de analisar o capital em geral em

oposição aos capitais particulares.

Antes de prosseguirmos, ainda este comentário. O capital em geral [Capital im Allgemeinen], diferentemente dos capitais particulares [besondren Capitalien], aparece na verdade 1) só como uma abstração; não uma abstração arbitrária, mas uma abstração que captura a differentia specifica do capital em contraste com todas as outras formas de riqueza – ou modos – em que se desenvolve a produção (social). São as determinações comuns a todo capital enquanto tal, ou que fazem de cada soma determinada de valores capital. E as diferenças no interior dessa abstração são igualmente particularidades abstratas que caracterizam cada tipo de capital, à medida que esse seja sua afirmação ou negação (por exemplo, capital fixo ou circulante [capital fixe oder capital circulant]) (...). (Marx, 2011, p. 369, MEGA2 II/1.2, p. 359, grifos do autor, destaques nossos).

Como vimos, até mesmo ao apresentar as diferenças internas ao conceito de capital

em geral, Marx enumera tão somente a distinção entre capital fixo e capital circulante.

Evidentemente tomamos isso como uma indicação, não como uma prova contundente.

Durante o capítulo III apresentaremos como Marx efetivamente recebeu e

reorganizou os conceitos de capital fixo e circulante presentes na tradição da economia política.

Aliás, na maior parte das vezes, Marx escreve em francês capital fixe e capital circulant.

Mostraremos como o autor mobilizou-os para estabelecer um critério do desenvolvimento do

modo de produção capitalista. Neste momento, analisaremos algumas tendências antagônicas

do modo de produção especificamente capitalista, como a lei da queda tendencial da taxa de

lucro. E, por fim, indicaremos como Marx alcançou preliminarmente a distinção entre capital

constante e variável.

2. Sobre as traduções

Como regra geral, procuramos, sempre quando possível, cotejar a tradução com o

texto original e, na medida do possível, procuramos ler diretamente a partir do original. Por

isso, um esclarecimento geral sobre os usos das traduções é necessário. A não ser quando

indicado, todas as traduções de Postone são de minha autoria, embora eventualmente seja

fornecida a referência à edição brasileira. As traduções de Draper, Wood e Dardot e Laval são

minhas também.

Para a maior parte das obras de Marx – e particularmente para os Grundrisse –

usamos as traduções já disponíveis da editora Boitempo, as citações foram cotejadas com a

edição crítica da MEGA2. Por isso, eventualmente citamos também MEGA2 para facilitar a

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conferência da tradução com o original, e, no caso de alguma discrepância de tradução, não nos

tolhemos o direito de modificar a tradução da Boitempo – esses casos estão indicados ao longo

da dissertação.

Para termos técnicos que admitem uma pluralidade de traduções ou para termos que

são importantes para nossa linha argumentativa, nós os indicamos entre colchetes na língua

original. Nesses casos, como se pode observar, mantivemos a ortografia alemã original do

século XIX, já que isso foi uma escolha editorial da própria MEGA.42 A título de exemplo,

“Produktion” aparece como Production nos cadernos de Marx, “Verteilung” como Vertheilung,

assim por diante.43 Em alguns momentos, indicamos também junto à página da edição

consultada o caderno (M, I a VII) no qual se encontra a passagem citada ou ainda o capítulo

(Do dinheiro ou do capital). Quando recorremos à tradução em inglês dos Grundrisse,

indicamos também a página através do nome da editora “Peguin, p.”, e, em alguns casos,

citamos o número de página da edição alemã de 1953 (G., p.-). As referências bibliográficas

constam ao final da dissertação.

Ademais, ao longo deste trabalho oscilamos entre acumulação primitiva e

acumulação originária para traduzir ursprüngliche Akkumulation. Para nós, ambas traduções

(primitiva e originária) tem pleno direito de cidadania em português. Evidentemente elas não

significam exatamente a mesma coisa, mas cada tradução acentua um aspecto do que seria

“ursprüngliche Akkumulation”. A opção por originária enfatiza o aspecto lógico-histórico do

surgimento do capitalismo; por sua vez, a opção por primitiva enfatiza o caráter ainda

incompleto da relação capitalista de produção. A título de curiosidade, Rubens Enderle opta

por acumulação primitiva em sua tradução do primeiro volume do Capital (Marx, 2013) para a

editora Boitempo.

Há ainda outro termo técnico que tem suscitado debates sobre sua tradução, qual

seja, Mehrwert. Sabemos que nas traduções mais recentes dos textos de Marx têm-se optado

traduzir Mehrwert por mais-valor, particularmente as traduções publicadas pela editora

Boitempo têm seguido esse padrão. Notamos também que, em alguma medida, na literatura

42 “O texto editado segue a ordem dos manuscritos. Uma padronização ou modernização da ortografia não foi realizada, todavia efetuou-se uma revisão do texto em vistas da remoção de passagens do texto claramente com erros.”. “Der Edierte Text folgt der Anordnung der Manuskripte. Eine Vereinheitlichung oder Modernisierung der Orthographie wird nicht vorgenommen, jedoch erfolgt eine Textrevision im Sinne der Beseitigung eindeutig fehlerhafter Textstellen.”(MEGA2 II/1.1, p. 25*) 43 Seria interessante fazer um levantamento, em momento oportuno, das mudanças ortográficas da língua alemã, para poder, assim, entender essa mudança de grafia. Possivelmente, essas mudanças devem estar correlacionadas com a unificação tardia do que atualmente conhecemos por Alemanha.

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secundária mais recente ou em artigos recentes (como, por exemplo, De Deus, 2015), o padrão

geral tem sido usar o termo mais-valor.

Essa escolha tradutória é perfeitamente aceitável e justificável tanto do ponto de

vista linguístico, uma vez que “mehr” significa literalmente “mais” e “Wert”, “valor”, quanto

do ponto de vista conceitual, já que o mais-valor é um conceito estritamente dependente da

teoria do valor-trabalho em Marx. Entretanto, neste trabalho optamos por manter a tradução

canônica de Mehrwert por mais-valia, já que essa tradução se encontra consolidada na recepção

e na literatura marxista brasileira. Além disso, a princípio, não nos parece que a tradução por

“mais-valia” necessariamente impeça o entendimento correto deste conceito ou, ainda, que essa

tradução mascare necessariamente a trama categorial por trás do conceito.

Por fim, a ortografia de autores brasileiros e de traduções brasileiras mais antigas,

quando necessário, foi adequada ao novo acordo ortográfico.

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CapítuloI–Grundrisse:textosemdisputa

Neste capítulo faremos uma primeira revisão bibliográfica geral da literatura

secundária sobre a categoria de modo de produção e, mais especificamente, sobre essa categoria

nos Manuscritos de 1857-1858. Na primeira seção, ao fazermos o levantamento bibliográfico,

notamos uma espécie de apagamento da categoria de modo de produção na recepção marxista.

Esse apagamento torna-se ainda mais estranho ao lembramos da centralidade do modo de

produção em inúmeros temas dos Grundrisse, algo que deixaremos indicado.

Em seguida, na segunda seção, analisaremos brevemente o contexto de escrita dos

cadernos de 1857-1858. Feito isso, reconstruiremos a centralidade desses textos para três

comentadores-chave: Rosdolsky, Postone e Giannotti. Esse momento nos é importante porque

indica dois pontos nevrálgicos que extrairemos de Rosdolsky para armar nossa dissertação. O

primeiro elemento é o da centralidade do capital fixo na elaboração da categoria de modo de

produção nos Grundrisse, concomitante a isso, Rosdolsky aponta para a diferença crucial na

trama categorial deste manuscrito em relação ao Capital, qual seja, o caráter ainda preliminar

do surgimento da diferença entre capital variável e capital constante. O outro elemento

importante é a aproximar a leitura de Rosdolsky com a de Giannotti sobre a acumulação

primitiva, indicando, assim, que, se Marx desliga a categoria de modo de produção do conceito

de capital fixo em O Capital, nem por isso não há ao menos uma linha de continuidade entre

ambos textos, o de 1857-1858 e o de 1867, qual seja, as duas ordens de explicação: história do

vir a ser e história contemporânea. Destarte, trata-se de duas hipóteses paralelas: (i.) a

caracterização da categoria de modo de produção muda dos Grundrisse para o Capital. Nos

textos de 1857-1858, o modo de produção encontra-se vinculado ao capital fixo; (ii.) apesar

disso, há uma continuidade entre os Grundrisse e O capital na caraterização do modo de

produção como imbricado por duas ordens explicativas, tal como Giannotti observou.

Por fim, na última seção, vamos nos aproximar da fortuna crítica de dois momentos

cruciais dos Grundrisse: a Introdução de 57, o Formen e a acumulação primitiva. Essa

reconstrução da fortuna crítica aponta para um peso novo da categoria de modo de produção,

como nos mostram, em sentidos diferentes, Postone e a dupla Dardot e Laval. O modo de

produção capitalista passa a ser entendido como uma totalidade que coloca seus próprios

pressupostos e elementos.

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1.1 Apagamento da categoria de modo produção na literatura secundária

A primeira constatação ao se organizar a literatura secundária foi perceber certo

apagamento ou desaparecimento, ao menos relativo, da categoria de modo de produção.44 Se,

desde meados de 1960 até meados de 1980, a discussão sobre o estatuto teórico dessa categoria

era profícua, a discussão da categoria de modo de produção passa para um segundo plano a

partir de 1980-1990. Evidentemente não podemos provar presentemente essa posição de

leitura, pois seria algo impraticável, no entanto, um breve apanhado geral talvez seja de

interesse como ilustração desta impressão.45

Em 1960 podemos encontrar a discussão da escola althusseriana sobre esta

categoria no livro coletivo Lire le Capital (1965), particularmente no capítulo escrito por

Balibar. Posteriormente, Balibar reavalia seu posicionamento em Cinco Estudos do

materialismo histórico (1975). Em outra vertente, temos a famosa divulgação de Hobsbawm

(1975[1965]) do Pre-Capitalist Economic Formations estabelecendo as balizas para o

materialismo histórico a partir do Formen. Poderíamos também citar a extensa obra de Draper,

particularmente o primeiro volume de Karl Marx’s Theory of Revolution (1977), embora aqui

essa categoria sirva como um pano de fundo. McLellan (1979) e Villar (1979) também discutem

essa categoria no primeiro volume da História do Marxismo. Exceção à regra, em diálogo

crítico com Hobsbawm, Ellen Wood (2008), em seu capítulo intitulado Historical materialism

in “Forms which Precede Capitalista Production”, no livro Karl Marx’s Grundrisse, opera no

registro de um materialismo histórico dependente da categoria de modo de produção.46

Na recepção brasileira, há os trabalhos de Giannotti da década de 1960

(particularmente o livro Origens da dialética do trabalho), que lidam com a categoria de modo

de produção. Podemos citar também o artigo “Exposição e método dialético em ‘O Capital’”

de Müller (1983). Além disso, poderíamos lembrar do livro Modos de produção e a realidade

brasileira (1980), organizada por José Roberto do Amaral Lapa, com um capítulo mais teórico

sobre modo de produção e a pesquisa histórica escrito por Jacob Gorender. Na Introdução ao O

escravismo colonial (1978), também de Gorender, encontra-se uma longa discussão sobre a

44 Giannotti, no seu prefácio para a nova edição (de 2009) de Marx – além do Marxismo, toca diretamente nesta questão: “A crise econômica atual recoloca o problema do automatismo do capital e das contradições do sistema capitalista de produção. (...). Essa crise atualiza certos conceitos marxistas, em particular aquele de um modo de produção cuja reposição passa por crises específicas. Não sei como as ciências sociais contemporâneas lidarão com esse tópico. Mas não vejo como escapar desse conceito de modo de produção, a não ser deixando de lado a específica historicidade de nosso modo de se repor em sociedade.” (Giannotti, 2009, p. 7). 45 Para grande parte deste levantamento nos baseamos em Saes (2007). 46 Infelizmente, é patente que um levantamento bibliográfico desta magnitude é inviável no âmbito de uma pesquisa de mestrado; antes, trata-se aqui de uma tentativa de explicitar o recorte bibliográfico, que perpassa esta dissertação, calcado nos 1960 e em autoras e autores chaves.

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categoria modo de produção. No mesmo ano, publicou-se o livro, coordenado e traduzido por

Philomena Gebran, O conceito de modo de produção (1978).

Como se vê, a discussão sobre a categoria de modo de produção se concentrou em

1960 e meados de 1980. Até mesmo em Postone (2003 [1993]) essa categoria é relegada a um

segundo plano.47 Pois, para Postone, o conceito de capital deveria ser o suficiente para

estabelecer sua teoria crítica. É um indício da falta de centralidade do conceito de modo de

produção o fato de Postone não o definir em parte alguma. E, quando o usa, adjetiva-o como

modo de produção industrial. As entradas desta categoria em sua obra ocorrem, na maior parte

das vezes, quando o historiador canadense cita Marx ou outro autor,48 e estes usam a categoria

de modo de produção.

Todavia, apesar desse apanhado parcial efetuado acima, nosso foco é a categoria de

modo de produção em uma obra específica, nos Grundrisse. Caberia investigar como foi a

recepção crítica desta obra. Para isso há um atalho, vejamos a seguir.

Há um dado que pode corroborar nossa impressão de desaparecimento da categoria

de modo de produção no debate da literatura secundária, trata-se da edição do Beiträge zur

Marx-Engels-Forschung (Neue Folge 2007), dedicado aos 150 anos dos Manuscritos de 1857-

58. A Introdução Editorial ao volume explicita a importância dos Grundrisse para a recepção

da teoria econômica marxiana e do método dialético,49 calando sobre o materialismo histórico.

Uma prova disso são os artigos dedicados aos Grundrisse no volume em questão do Beiträge

que tocam extensivamente em questões de método e em questões econômicas. Outro dado que

corrobora a ênfase em questões de método é a busca, após a publicação dos manuscritos do

terceiro volume do Capital nos anos 1990, por resoluções de problema metodológicos nos

Grundrisse. (Cf. Behrens, 2007, p. 11-12). Tanto é assim, que Behrens começa seu artigo

notando que uma volta aos Grundrisse se faz necessária, já que em larga medida o

47 Parece-nos também que a categoria de modo de produção tampouco opera nos livros de Dussel (1985) e Negri (1991 [1979]). Precisaríamos testar essa hipótese de leitura em uma pesquisa futura. 48 Para ocorrências de modo de produção, vide, por exemplo, Postone (2003, p. 9, 23-29; 35-36, 68-69, 103, 129-130, particularmente p. 148, dentre outras). A categoria aparece geralmente em discussão contra o “marxismo tradicional”, conceito, diga-se, desenvolvido pelo autor. Registra-se que Postone vale-se dos conceitos de força produtiva e relação de produção, isto bastaria para afirmar que o autor opera no modelo categorial de modo de produção? É importante sublinhar que a dialética das forças produtivas e relações de produção são transformadas por Postone na dialética da transformação e reconstituição. Um último aviso: a tradução brasileira da Boitempo particularmente verte indistintamente tanto mode of production quanto mode of producing por “modo de produção”, para tanto, comparar Postone (2003, p.22-23) e Postone (2014, p.37-39). 49 “Após a nova impressão dos Grundrisse no Karl-Marx-Jahr de 1953, lhe foi concedido principalmente a partir dos anos 1960 um grande espaço na recepção da teoria econômica marxiana e no seu método dialético.” [“Nach dem Neudruck der Grundrisse im Karl-Marx-Jahr 1953 wurde ihnen vor allem seit den 1960er Jahren breiter Raum in der Rezeption der Marxschen ökonomische Theorie und seiner dialektischen Methode eingeräumt.”] (Beiträge zur Marx-Engels-Forschung, 2007, p.6).

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conhecimento desse escrito em sua própria qualidade desapareceu diante da presença universal

da economia marxista (Cf. Behrens, 2007, p.11). Esse voltar-se aos Grundrisse “em sua

qualidade própria” foi um dos nortes de nosso trabalho. Por fim, Behrens (2007, p.11ss) fez um

levantamento bibliográfico geral da recepção crítica atual dos Grundrisse, por esse

levantamento percebe-se, como argumentamos, uma tônica em questões de método. A categoria

de modo de produção é largamente marginal nessa recepção aos Grundrisse.

No ano seguinte ao lançamento do Beiträge dedicado aos Manuscritos de 1857-

1858, Marcello Musto organiza Karl Marx’s Grundrisse (2008), reunindo textos de diversos

especialistas. Mais uma vez notamos o apagamento da categoria de modo de produção, com

uma ilustre exceção: o capítulo já mencionado de Wood (2008) sobre o Formen. Alguns anos

depois, em 2010, João Antonio de Paula organiza o livro Ensaio Geral: Marx e a Crítica da

economia política (1857-1858),50 baseando-se em um seminário realizado em 2008 (cf.

Apresentação em Paula, 2010), nesta coleção nenhum dos capítulos foi dedicado

exclusivamente à categoria de modo de produção. Embora essa categoria apareça em menor ou

maior grau em alguns dos capítulos como, por exemplo, nos capítulos de Paula (2010c) e de

Ester Vaisman (2010).

No entanto, nem tudo é apagamento. O denso livro Marx, prénom: Karl (2012) de

Dardot e Laval aparece como um indício de uma possível mudança na recepção da categoria de

modo de produção em geral e, em particular, nos Grundrisse. Uma das pistas para isso, além

das inúmeras ocorrências dessa categoria ao longo do livro, está dada na oposição proposta

pelos autores para organizar a sua leitura de Marx, qual seja, a existência de duas lógicas: a

lógica do capital e a lógica estratégica (Dardot e Laval, 2012, p. 11). Ao menos a lógica do

capital parece-nos estar profundamente entrelaçada pelo modo como o próprio capital se repõe

como modo de produção.

Com isso, salvo algumas exceções, apesar do pensamento marxiano ter sido

frequentemente abordado em diversas direções, houve um processo de desaparecimento da

discussão da categoria de modo de produção. Diante desse quadro, optamos por nos focar

primordialmente na década de 1960. Consequentemente, como já dissemos, nos baseamos

principalmente em Giannotti ([1966]1985) e em Rosdolsky ([1968]2001), sem abdicar de um

diálogo crítico com a escola althusseriana (emprestamos este termo de Saes). Não cabe nos

limites deste trabalho recuperar a literatura contra e a favor a Althusser, abundante,

50 Com textos de Eduardo da Motta, Ester Vaisman, Hugo da Gama Cerqueira, João Machado Borges Neto, Leonardo de Deus, Maria Rollemberg Mollo, Maurício Coutinho e Rolf Hecker.

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particularmente no Brasil, nas décadas de 1960-1970. Faremos menções a esse debate somente

na medida em que for necessário. O livro de Postone Time, Labor, and Social Domination

(1993) seria o único exterior a esse recorte proposto. Contudo, sua pesquisa data-se de duas

décadas antes da publicação do livro em 1993. Por ora, basta de falar do apagamento desta

categoria na literatura secundária. Na próxima subseção vamos indicar a centralidade da

categoria de modo de produção nos Grundrisse.

1.1.1MododeproduçãonosGrundrisse

O apagamento da categoria de modo de produção na recepção marxista torna-se

ainda mais curioso diante da importância e da centralidade desta categoria nos Grundrisse. Ora,

a categoria de modo de produção aparece em uma série de constelações conceituais com outros

temas, discussões e conceitos nestes manuscritos. Não pretendemos apresentar todas as

constelações em torno dessa categoria, uma vez que isso nos levaria muito longe de nosso

objetivo atual de explorar a relação entre modo de produção e o conceito de capital fixo ou, em

outras palavras, de explorar a diferenciação entre modo de produção capitalista e modo de

produção especificamente capitalista, como faremos nos dois próximos capítulos.

A primeira constatação que se pode fazer é de que todas as constelações conceituais

em torno da categoria de modo de produção são perpassadas em alguma medida pela relação

entre o modo de produção e o conceito de capital.51 Isso fica mais evidente em algumas

discussões, como na sobre a acumulação primitiva e o materialismo histórico52 bem como na

discussão sobre as formas adequadas de existência do capital (manufatura e grande indústria),53

e, marginalmente, na discussão sobre o poder corrosivo do comércio frente aos modos de

produção pregressos.54

A constelação sobre o modo de produção que corresponde ao capital,

particularmente quando o capital fixo se reveste da forma maquinaria e grande indústria se

ramifica em diversas direções. A partir daqui, com a diferenciação entre capital fixo e capital

circulante, surgem, ao menos, dois problemas: (i.) o problema do tempo de rotação diferente de

cada forma do capital ou, de outro modo, o problema do tempo de circulação; (ii.) o problema

51 Por exemplo, Marx (2011, p. 215ss; MEGA2 II/1.1, p. 199ss) e Marx (2011, p. 194; MEGA2 II/1.1, p. 174, Caderno II, Capítulo do Capital). Até mesmo a “determinabilidade” das categorias capital e trabalho são dependentes do modo de produção, caberia explicitar isso posteriormente. Cf. Marx (2011, p. 231; MEGA2 II/1.1, p. 217, Caderno III, Capítulo do Capital). 52 Cf. Marx (2011, p. 377ss, MEGA2 II/1.2 p. 386ss), vide também Rosdolsky (2001, Cap. 20); 53 Cf. Marx (2011, p. 486ss; MEGA2 II/1.2, p. 477ss). 54 Cf. Marx (2011, p. 733ss, MEGA2 II/1.2 p. 721ss) e Marx (2011, p. 198ss; MEGA2 II/1.1, p. 179ss).

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da necessidade da continuação da produção e do sistema de crédito.55 O capital fixo se constitui

em um índice do próprio desenvolvimento do modo de produção fundado pelo capital.56

Além disso, a categoria de modo de produção serviu como substrato para dois

grandes grupos de tendências do modo de produção capitalista. O primeiro designamos por

tendências antagônicas57 do modo de produção capitalista, sob este guarda-chuva encontrar-

se-iam os seguintes temas: lei da queda tendencial do lucro58; questão das crises, o modo de

produção é limitado; o problema da superprodução ou superacumulação; fundamento miserável

para valorização59. O segundo grupo chamamos de tendências progressivas do modo de

produção capitalista, aqui enumeramos algumas discussões: tendência à criação do mercado

mundial; estímulo ao desenvolvimento das forças produtivas; o capital como potência

civilizadora60.

Finalmente, a categoria de modo de produção serviu como substrato à crítica

marxiana de Malthus (ou a crítica de Marx a qualquer lei populacional trans-histórica), assim

como para o estabelecimento de que para cada tipo de modo de produção corresponde um tipo

de liberdade e de personalidade.61

Desse modo, fica claro que há uma quantidade monstruosa de temas com os quais

o modo de produção encontra-se relacionado nestes cadernos de estudo de 1857-8, não vamos

entrar em todos esses assuntos no âmbito deste trabalho. Com isso, acreditamos ter alinhavado

a importância do modo de produção nas constelações categoriais dos Grundrisse. Vamos

recuperar, na próxima seção, a importância dos Grundrisse para Postone, Giannotti e alguns

outros comentadores.

1.2 A centralidade dos Grundrisse

1.2.1ContextodaredaçãodosGrundrisse

Embora nosso objetivo não seja apresentar detalhadamente o contexto de escrita

dos Grundrisse, parece-nos impossível não entrar ao menos em dois assuntos: a crise de 1857,

e o período de pobreza e de isolamento político de Marx (Cf. Musto, 2008, p. 153-4). Os anos

de 1857-1858 foram sobretudo anos de intenso trabalho intelectual.

55 Cf. Marx (2011, p.340, p. 441-448; p.600; MEGA2 II/1.2, p.328, p.434-440), Rosdolsky (2001, p. 327ss). 56 Cf. Marx (2011, p. 592; MEGA2 II/1.2, p. 585-6, Caderno VII). 57 A ideia de que o capital possui dois “caráteres”: caráter antagônico e caráter progressivo emprestamos de Mazzucchelli (2004, p. 13-4). 58 Cf. Marx (2010, p. 624ss, MEGA2 II/1.2, p. 620ss). 59 Cf. Mazzucchelli (2004, Cap.1), Rosdolsky (2001, p. 197, p.382, p.419, passim), Marx (2011, p. 339, p.347, p.583; MEGA2 II/1.2, p. 327, p. 336, p.577 e passim). 60 Cf. Marx (2011, p.332ss, p.444ss, MEGA2 II/1.2, p. 320ss, p. 436ss), Rosdolsky (2001, p.193-4, p. 352). 61 Cf. Marx (2011, p. 503; MEGA2 II/1.2, p.493) e Rosdolsky (2001, p. 213ss).

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Sabemos que a crise de 1857 foi um dos principais motivos da escritura dos

Grundrisse.62 Tratou-se de uma crise há muito aguarda por Marx63 (cf. Krätke, 2008a). Musto

(2008, p. 149-150) chega a afirmar que Marx, ao longo de 1856, deixara de lado completamente

seus estudos de economia política, sendo que essa crise o estimulou a retomar esses estudos64.

Afinal, o filósofo de Trier experimentou um refluxo dos movimentos

revolucionários de 1848, e agora com a crise, ressurgia uma esperança. No início da crise de

1857, tanto Marx quanto Engels faziam prognósticos positivos dela como sendo capaz de

desencadear uma nova revolução, porém, já entre agosto e outubro de 1858 esse otimismo se

arrefece (cf. Musto, 2008, p.150ss).

Apesar desse arrefecimento, o tema da crise acaba por perpassar os Grundrisse.

Aos olhos de Krätke (2008a, p. 166), Marx supunha - e procurava demonstrar - a existência de

uma espécie de lei das crises. Ora, se as crises se mostravam regulares, então elas não podiam

ser mero acidente, a especulação por si só não poderia ser a explicação; antes, a especulação

seria um sintoma da crise.65 Nos manuscritos de 1857-8, a crise desempenha uma dupla função,

ela aparece como um sintoma da obsolescência do capitalismo ao mesmo tempo em que ela

também é um momento capaz de atrasar e reduzir a velocidade da própria queda do sistema

capitalista. (Cf. Krätke, 2008a, p. 167; Marx, 1993, p. 749-750; Marx, 2011, p. 627-8).

Seja como for, outra novidade teórica importante nesses cadernos de 1857-8 é a

pergunta pelo começo correto da crítica à economia política (cf. Nicolaus, 1993; Postone, 2003;

Postone e Reinicke, 1974-75), esse começo só aparece ao final dos cadernos, na seção “Valor”

com a forma mercadoria66.

62 Cf. Nicolaus (1993, p.8 e p.63) e Musto (2008, p.150), Krätke (2008a, p.165-6 e 2008b, p. 169ss). 63 “ (…) é evidente que esta crise já era esperada [was already due] em outubro de 1855, e que ela tinha sido atrasada [shifted off] através de uma série de convulsões [convulsions] temporárias, e que, consequentemente, sua explosão final, tanto quanto em relação à intensidade dos sintomas quanto à extensão do contágio, vai exceder qualquer crise já vista.”. Marx no artigo “The British Revulsion” de 13/11/57, publicado em 30/11/57 (MECW, vol.15, p. 387). 64 “Ao longo de 1856, Marx negligenciou completamente o estudo da economia política, porém o surgimento [coming] de uma crise financeira internacional mudou repentinamente essa situação.” (MUSTO, 2008, p. 150). 65 “Ainda a recorrência mesma das crises apesar de todos avisos do passado, em intervalos regulares, proíbe a ideia de se procurar sua causa final na imprudência [recklessness] dos indivíduos singulares. Se a especulação em direção ao fim de um dado período comercial aparece como o imediato precursor da quebra [crash], não deveria ser esquecido que a especulação mesma foi engendrada nas fases prévias deste período, e é, portanto, ela mesma o resultado e um acidente, em vez de causa final e substância. Os economistas políticos que pretendem explicar os espasmos regulares da indústria e do comércio pela especulação se assemelham à já extinta escola dos filósofos naturais que consideravam a febre a causa verdadeira de todas doenças [maladies].” (MECW, vol.15, p. 400, “The Trade Crisis in England” de 27/11/1857.) 66 “A primeira categoria em que se apresenta a riqueza burguesa é a da mercadoria. A própria mercadoria aparece como unidade de duas determinações.”. (MARX, 2011, p.756, MEGA2 II/1.2, p. 740).

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Há ainda outra novidade, segundo Dardot e Laval (2012, p. 325), Marx passa a

rever em alguma medida sua atitude crítica ante Hegel, é notável que Marx tenha folheado a

Lógica hegeliana ao escrever os Grundrisse67 (cf. Carta de Marx a Engels de 14 de janeiro de

1858), os ecos hegelianos se encontram tanto na discussão sobre como começar a crítica da

economia política quanto em alguns planos de redação da própria crítica (para uma análise

recente dos planos, vide De Deus, 2015, e também Marx, 2011, p. 214-5, MEGA2 II/1.1, p.

199).

1.2.2–OsGrundrisseeoscomentadores

Rosdolsky e Postone

A centralidade dos Grundrisse para Rosdolsky (2001) vai sem dizer, uma vez que

o percurso geral de sua obra é tomar os Grundrisse como uma espécie de primeiro rascunho ou

como laboratório de pesquisa de Marx para o Capital. Nesse sentido, cabe dizer que Rosdolsky

de certa forma se vale da trama conceitual acabada do Capital para investigar os

desenvolvimentos presentes nos Grundrisse – exatamente o movimento interpretativo que

pretendemos afastar em nossa leitura. Para nós, ressaltamos mais uma vez, para podermos

investigar os manuscritos de 1857-1858 em sua qualidade própria devemos desligar qualquer

projeção da trama categorial elaborada posteriormente ao longo da década de 1860. Ademais,

na obra de Rosdolsky podemos testemunhar também a centralidade concedida ao conceito de

modo de produção pela enorme quantidade de vezes que esse conceito é utilizado ao longo de

seu livro.

Devemos também apontar que Rosdolsky foi um dos primeiros leitores dos

Grundrisse a perceber a centralidade do capital fixo para a formulação da categoria de modo

de produção nesses cadernos de 1857-1858.68 Contudo, o esforço de Rosdolsky em ler

retrospectivamente nos Grundrisse a trama categorial do Capital, não lhe permite levar adiante

essa intuição inicial. Quando muito, para o nosso comentador, essas longas passagens (as quais,

diga-se, não reaparecem no Capital) dos manuscritos de 1857-8 sobre o capital fixo deveriam

67 Embora, deve-se registar, segundo Krätke (2008a, p. 169-170) seria enganoso simplesmente assumir que Marx se dedicava ao estudo de Hegel neste período. Na verdade, para este comentador, Marx se dedicava plenamente ao estudo da crise, tanto é assim que Marx teria registrado em cadernos específicos o desenrolar da crise em alguns país centrais. 68 Particularmente ao final do capítulo 24 (“As determinações formais do capital fixo e do capital circulante”), na seção 4, escreve Rosdolsky (2001, p. 301): “Vejamos um aspecto que aparece muito mais rigorosamente elaborado nos Grundrisse que em O Capital: a crescente importância do capital fixo no modo de produção capitalista desenvolvido.”. A partir disso, Rosdolsky passa a transcrever em duas páginas longo excertos dos Grundrisse intercalados com alguns comentários.

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ser reportadas ao segundo volume do Capital, como uma espécie de “valioso complemento”.69

Essa tomada de posição por parte dele não lhe franqueia perceber uma certa descontinuidade

entre os Grundrisse e o Capital para além de uma relação de complementariedade de temas,

desenvolvimentos e conceitos. Nossa hipótese de leitura, a qual cabe a esta dissertação tornar

plausível, é na direção de que há, ao menos, duas formulações da categoria de modo de

produção a partir dos anos de 1857. Na primeira formulação presente nos Grundrisse, Marx

articula o desenvolvimento do modo de produção capitalista com o conceito de capital fixo,

tendo posteriormente abandonado em alguma medida essa correlação no Capital.70

Em nosso esforço de defender uma leitura inicial dos Grundrisse por si mesmos,

encontramos também outra pista interessante em Rosdolsky. Defender esse desligamento

preliminar implica tomar os manuscritos de 1857-1858 como obra aberta ou sistema aberto no

qual Marx, ao longo de 9 meses, percorreu um longo processo de autoesclarecimento, incluindo

aí um processo de elaboração de seus conceitos próprios. Um par conceitual particularmente

importante para a trama categorial do Capital, o capital variável e o capital constante, só surge

in statu nascendi ao longo da redação dos cadernos. Novamente, Rosdolsky é um dos primeiros

leitores a perceber que Marx só alcança esse par conceitual durante a redação mesma dos

Grundrisse.71 Se isso aparece-nos como um indício da necessidade de se afastar o Capital como

gabarito de leitura destes cadernos; para Rosdolsky esse mesmo fato aparece como indício de

falta ou de lacuna do manuscrito que seria posteriormente preenchida durante a década de 1860.

Por ora, basta de falar de Rosdolsky, voltaremos oportunamente a ele. Analisemos a leitura de

Postone.

O movimento argumentativo de Postone (2003), por outro lado, é exatamente o

oposto do de Rosdolsky. Postone identifica nos Grundrisse, particularmente nos conceitos de

riqueza material e de valor,72 uma nova chave de entendimento do próprio Capital. De certa

69 “Essas passagens [sobre o capital fixo] fornecem um valioso complemento ao segundo tomo de O capital. (...)” (Rosdolsky, 2001, p. 303). 70 Está em aberto como Marx pensa a categoria de modo de produção de 1858-9 até a publicação do Capital em 1867. 71 “Chegamos assim aos conceitos de capital constante e capital variável, que correspondem às diferentes funções dos meios de produção e da força de trabalho no processo de valorização. Na construção teórica de Marx, a importância dessa diferenciação conceptual é evidente, mas o próprio Marx só chegou a ela durante a redação dos Grundrisse.” (Rosdolsky, 2001, p. 189). A todo momento Rosdolsky toma o Capital como o gabarito das formulações presentes nos Grundrisse. Avisamos à leitora ou ao leitor que voltaremos a esses temas nos próximos capítulos, aqui só cabe indicar o que retiraremos da literatura secundária. 72 “O que subjaz à contradição central do capitalismo, segundo Marx, é que o valor permanece a forma determinante de riqueza e das relações sociais no capitalismo, independentemente dos desenvolvimentos na produtividade; entretanto, o valor também torna-se cada vez mais anacrônico em termos do potencial produtivo de riqueza material das forças produtivas as quais ele origina.” (POSTONE, 2003, p. 197, destaques são nosso). Vide também Postone (2003, p. 25, p.169, p. 199, p. 232, passim) e Marx (2011, p. 588).

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forma, para o historiador canadense, poderíamos afirmar que os Grundrisse tornam-se a fonte

de entendimento e de leitura do Capital. Ao mesmo tempo que essa estrutura argumentativa

acaba por conceder um forte peso aos cadernos de 1857-1858, ela acaba achatando, em Postone,

os diferentes contextos de escrita destes cadernos e de O Capital. Em uma palavra, por não

organizar os textos de 1857-58 em função de uma categoria chave como, por exemplo, a

categoria de modo de produção, tudo se passa como estivéssemos lidando com textos cujas

tramas categoriais seriam equivalentes. Não queremos dizer com isso que a empreitada teórica

de Postone esteja de saída condenada; antes, essa empreitada se insere dentro de um quadro

interpretativo mais ou menos explícito na literatura secundária de tomar conjuntamente os

Grundrisse e o Capital como um longo caminho unívoco de desenvolvimento intelectual.

Dito isso, o modelo crítico73 de Postone parte do pressuposto de que haja uma forma

única estruturante da sociedade, qual seja a forma mercadoria ou o valor. Isso traz

consequências para a própria ideia de emancipação e de dominação. No modelo proposto por

Postone haveria uma totalidade social, que a tudo englobaria, a emancipação seria entendida

em termos substanciais - e não procedimentais -74 como abolição da forma valor.75 Ou seja, a

condição necessária, mas não suficiente,76 para a emancipação seria a abolição desta forma. A

dominação característica da sociedade capitalista seria entendida como uma forma de

dominação abstrata efetuada pelo valor. As diferentes formas de se caracterizar a dominação

servem como fio condutor para comparar diferentes modelos críticos. Em modelos mais

recentes de teoria crítica, a dominação poderia ser entendida como situações de comunicação

distorcidas ou como uma falta de reconhecimento. Se a dominação agora é vista de forma

abstrata, consequentemente a dominação de classe perde sua centralidade.77

73 Para a noção de modelo crítico Nobre (2004 e 2008b). Não pretendemos reconstruir em suas inúmeras minúcias a teoria crítica extremamente abstrata proposta por Postone. 74 Em sua discussão sobre Habermas, afirma Melo que para uma teoria da emancipação ser considerada democrática, ela teria que “se limitar a apontar as condições necessárias para o desenvolvimento de uma existência humana livre e igual”. Isso significa que essa teoria da emancipação deveria “se centrar em questões procedimentais, mais do que se engajar em recomendações substantivas.”, pois a pluralidade de movimentos sociais impediria quaisquer “prescrições substantivas de uma vida boa” (MELO, 2009, p. 176). Essas diferenças entre prescrições substantivas e procedimentais nos parece útil para organizar teorias da emancipação. 75 “ (...) superar [overcoming] o capitalismo implicaria a abolição – não a realização – da ‘substância’, do papel do trabalho em constituir uma mediação social e, portanto, a abolição da totalidade.” (POSTONE, 2003, p. 157). Em outro momento, Postone toca neste mesmo assunto: “Esta ordem social [o capitalismo] não pode ser superada historicamente sem abolir a essência mesma, isto é, a função e forma historicamente específica do trabalho.” (POSTONE, 2003, p. 167). Vide também Postone (2003, p. 237, p. 333, p. 376, p.382 e passim). 76 “Embora isso [superar a regulação automática da sociedade] possa não ser condição suficiente para estabelecer o controle autoconsciente da vida social, superar a dominação abstrata é certamente um pressuposto necessário para a realização de tal autodeterminação social.” (POSTONE, 2003, p. 237). 77 “A dominação abstrata e a exploração do trabalho característica do capitalismo estão fundamentadas, em última instância [ultimately], não na apropriação de mais-valia pelas classes não trabalhadoras, mas na forma do trabalho

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Vimos que a dominação característica do capitalismo é agora entendida como

dominação abstrata, cujos imperativos são devedores da forma valor. Com isso, uma

caraterística central do modelo de Postone surge: o valor e a forma valor deixam de ser

entendidos como mera categoria de mercado, como compreendeu Pollock, cujo trabalho

forneceu o substrato para o diagnóstico de tempo presente nos textos da década de 1950 de

Adorno. Na leitura seminal de Pollock, sendo o valor eminentemente uma categoria de

mercado, o planejamento estatal teria a capacidade de suspender a validade do valor,

suspendendo, assim, parte da trama conceitual proposta por Marx. Pelo contrário, Postone

atribui ao valor uma função estrutural na sociedade, localizando nele o núcleo duro da

dominação capitalista; sendo assim, argumenta o autor, o mero planejamento estatal da

atividade produtiva não seria capaz de suspender a validade da lei do valor, já que esta categoria

não se resume a uma função distributiva dentro do mercado.

Para sustentar essas teses, os Grundrisse se tornam um texto central na obra de

Postone, naquele texto ele encontrará: (i.) a ideia de dominação abstrata; (ii.) a diferenciação

entre riqueza material e valor; (iii.) e, por fim, apontamentos para uma espécie de autocrítica

de Marx em relação a teorias trans-históricas (voltaremos a isso). Todas essas noções centrais

ao modelo de Postone estão nos Grundrisse, como dissemos. Seria, então, como se O Capital

e demais obras marxianas formassem o plano de fundo interpretativo no qual o foco seria nos

Grundrisse.78

No entanto, Postone (2003 p. 21) tem que expor os motivos dessa preferência pelos

Grundrisse. O autor encaminha essa escolha em dois níveis distintos: haveria um problema de

ordem teórica e um problema de diagnóstico de tempo presente que orientam a escolha pelos

Grundrisse. Primeiro, O Capital, em oposição àquela obra, seria estritamente imanente ao seu

objeto de apresentação, ensejando, desse modo, leituras equivocadas;79 de outro lado, por ser

uma obra inacabada e não plenamente estruturada, os Grundrisse deixariam entrever a

“intenção estratégica geral da análise categorial de Marx”. Segundo, as análises presentes nos

no capitalismo.” (POSTONE, 2003, p. 161). Para Postone, o conceito de dominação concreta não capta a estrutura da dominação mais profunda do capitalismo. Cf. Postone (2003, p. 3-4). 78 “Minha leitura dos Grundrisse de Marx, uma versão preliminar de sua crítica plenamente desenvolvida da economia política, me levou a reavaliar a teoria crítica que ele desenvolveu em suas obras maduras, particularmente no Capital.” (POSTONE, 2003, p. 15, grifos no original). Cf. Postone (2003, p. 19 e p. 21). 79 Há semelhança entre Postone e Giannotti ao insistir numa leitura coerente do modo de apresentação de Marx. “A ilusão apriorista sempre espreita o modo de apresentação: terminada a investigação pormenorizada dos casos particulares, o movimento real passa a ser refletido no plano da ideia. Estamos prontos a ceder à ilusão hegeliana e conceber o concreto como resultado duma construção a priori.” (Giannotti, 1980, p. 90). Contra essa corrente de leitura dialética ou imanente remetemos a Jacques Bidet (2010 [2004]) Explicação e reconstrução do Capital.

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Grundrisse sobre o capitalismo manteriam ainda uma significância contemporânea para

entendê-lo.

Seja como for, uma das novidades mais impactantes da teoria de Postone é postular

a validade histórica estritamente determinada das categorias de Marx a partir dos Grundrisse.

Isto é, se Marx antes de 1857-1858 tivesse efetivamente elaborado um materialismo histórico,

ele o teria abandonado implicitamente no final da década de 1850.80 Com a ressalva já

estabelecida anteriormente de que Postone não se vale explicitamente da categoria de modo de

produção, uma consequência não explícita desse seu posicionamento é a de que essa categoria

só seria válida para o capitalismo. Com isso queremos dizer, só haveria o modo de produção

capitalista, não fazendo sentido a tentativa de elaborar uma teoria geral dos modos de

produção como o fazem, em âmbitos e com objetivos diferentes, por exemplo, Draper (2011a),

Hobsbawm (1975), Wood (2008) para não falar de Althusser (1980) e Balibar81, cuja escola de

pensamento procurou estabelecer uma teoria geral dos modos de produção, uma teoria

particular e uma teoria da passagem (Saes, 2007). Caberia citar também Giannotti,

particularmente Origens da Dialética do Trabalho de 1966, que, apesar de não desenvolver

uma teoria stricto sensu do materialismo histórico, aceita a ideia de que haja uma espécie de

sucessão de modos de produção. Como se vê nesse breve quadro, só por esse posicionamento

de Postone, ele se diferencia de todas as outras leitoras e de todos os outros leitores dos

Manuscritos de 1857-1858.

O substrato da teoria de Postone – e, cabe acrescentar, de nossa leitura dele – é

tomar a teoria do valor-trabalho e, particularmente, o duplo caráter do trabalho na sociedade

capitalista como algo determinante desta sociedade. O argumento vai mais longe, o trabalho

como categoria de análise social e histórica só é determinante na sociedade capitalista, não

podendo, portanto, ser projetado para a história como tal.82 É importante frisar mais uma vez

80 “A especificidade histórica das categorias, então, é central para a teoria madura de Marx e sinaliza [marks] uma importante distinção entre ela e suas primeiras [early] obras. Esta mudança [shift] para uma determinidade histórica [historical determinateness] tem implicações abrangentes [far-reaching] para a natureza da teoria crítica de Marx – implicações que são inerentes ao ponto de partida de sua crítica madura”. (POSTONE, 2003, p. 138). É a partir deste ponto que Postone passa a se interrogar sobre o começo dos Grundrisse e a forma mercadoria. 81 “O conceito de ‘modo de produção’ e os que lhe estão imediatamente relacionados aparecem assim como os primeiros conceitos abstratos cuja validade não é, como tal, limitada a esse período ou àquele tipo de sociedade, mas dos quais depende, inversamente, o conhecimento concreto deles.”.(BALIBAR, 1980, p. 153, 1969, p. 79). 82 Trata-se de duas teses complementares de Postone que deixamos indicadas. Primeiro, o trabalho no capitalismo constitui a sociedade. Segundo, o trabalho em outras sociedades não é capaz de constituir essas sociedades. “Trabalho como tal não constitui sociedade per se; trabalho no capitalismo, no entanto, constitui esta sociedade”. (Postone, 2003, p. 157). “Trabalho em sociedades não capitalistas não constitui a sociedade, pois ele não possui o caráter sintético peculiar que marca [marks] o trabalho determinado pela mercadoria [commodity-determined labor]. Embora social, ele [o trabalho] não constitui relações sociais mas é por elas constituído.” (Postone, 2003, p. 172).

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que nossa interpretação de Postone extrai uma consequência implícita de sua teoria, se Marx, a

partir de 1857-1858, torna sua análise estritamente imanente a, e válida tão somente para, o

capitalismo, isso significaria que seu conceito chave, qual seja, modo de produção, também

sofreu essa mudança. É curioso notar que esse conceito que parece em uma profusão de

passagens dos Grundrisse e dos volumes de O Capital não tenha merecido um tratamento

minucioso por parte de Postone. Podemos indicar dois caminhos para explicar isso: Postone, de

um lado, parece acreditar que o conceito de capital bastaria para sua interpretação; e, de outro

lado, ele teria assim evitado trazer para sua interpretação uma categoria, a de modo de produção,

tão marcante para o materialismo histórico, algo que o autor procura ativamente combater.

Além disso, o autor canadense poderia argumentar que essa categoria não faria parte do núcleo

duro da teoria marxiana. Para sustentar essa interpretação, Postone precisa avançar em duas

grandes frentes:

(1.) Nosso autor precisa mostrar o abandono implícito de teses trans-históricas por

parte de Marx, para isso Postone (2003, p.138ss) apresenta quatro argumentos: (1.1) a rejeição

por Marx da produção material como ponto de partida da análise na Introdução dos Grundrisse

colocaria em questão a noção de um método trans-histórico. O trecho da Introdução dos

Grundrisse alvo de disputa teórica seria o compreendido em Marx (2011, p. 39-53).

Particularmente: “A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na

medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da

repetição.” (Marx, 2011, p. 41). Postone, nesse ponto, se baseia na interpretação de Nicolaus

(1993, p. 35ss). Como texto em disputa, esse mesmo trecho foi alvo de outra interpretação por

parte da escola althusseriana, para essa discussão remetemos a Saes (2007, p.49ss). A leitura

de Wood (2008, p.88ss) do mesmo texto seria pela postulação da existência de uma lógica

histórica interna própria a cada modo de produção.83

(1.2) Um dos pressupostos do materialismo histórico seria a existência de uma

lógica histórica constituída por relações sociais contraditórias, Postone se pergunta no que

estaria fundada essa contradição. Esta contradição não poderia estar fundada senão em uma

metafísica ou em uma ontologia. Para o autor canadense, só no capitalismo as relações sociais

83 Para Postone, se existe uma lógica histórica, ela só seria possível no capitalismo. “Sua análise [de Marx] com isso mostra que há de fato uma forma de lógica na história, de necessidade histórica, mas ela é imanente somente à formação social capitalista, não à história humana como um todo.” (Postone, 2003, p. 305). Por fim, o historiador canadense conclui: “Esta análise implica que qualquer teoria que afirme uma lógica imanente à história enquanto tal – seja dialética ou seja evolucionária – sem fundamentar essa lógica em um processo determinado de constituição social (o que é uma proposição improvável), projeta para a história da humanidade as qualidades específicas do capitalismo.” (Postone, 2003, p. 306).

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são contraditórias, e isso em função da estrutura interna da sociedade e da forma que o trabalho

assume nesta sociedade. (1.3) A própria exigência dialética de imanência da crítica ao seu

objeto, que, no caso, é um objeto histórico o capitalismo, deveria levar a conclusão de que

nenhuma teoria poderia ter validade absoluta. (1.4) A crítica marxiana se justifica tão somente

nas categorias da essência do capitalismo. Isto significa que a crítica marxiana só se justifica

como crítica do capitalismo.

(2.) Por fim, Postone precisa encaminhar e explicitar o papel único que o trabalho

cumpre no capitalismo,84 qual seja só no capitalismo o trabalho torna-se um fundamento social.

Não vamos avançar mais na reconstrução dos argumentos (1-2) de Postone.

Com isso apresentamos algumas linhas mestras de um projeto bem mais ambicioso

de interpretação de Marx por Postone, nesta reconstrução crítica que tem por objetivo

estabelecer uma teoria do núcleo do capitalismo (Cf. Postone, 2003, p. 19), em contraste com

interpretações tradicionais do marxismo,85 esta interpretação acaba por deixar de lado inúmeros

conceitos caros ao pensamento marxista, para citar alguns: a mais-valia deixa ter um sentido

crítico, a luta de classes não aponta para um superação do capitalismo, e o conceito de

exploração mediado pela ideia da extração da mais-valia perde seu sentido crítico. Neste nível

de reconstrução proposta por nosso autor, não importa qual teria sido o autoentendimento de

Marx de sua própria teoria86 (Cf. Postone, 2003, p. 19 e 2014, p. 34).

Ao reinterpretar a crítica marxiana, tentarei reconstruir sua natureza sistemática e recuperar sua lógica interna. (...) Metodologicamente, minha intenção é interpretar as categorias fundamentais da crítica de Marx da economia política em um jeito mais coerente logica e sistematicamente poderoso, para trabalhar [work out] uma teoria do núcleo do capitalismo – a qual define o capitalismo como tal através de seus vários estágios – implicada por essas categorias. (Postone, 2003, p. 19).

Esta metodologia de Postone resulta no fato de que ele precisa selecionar os

elementos e as categorias do texto marxiano que corresponderiam a análise do núcleo capitalista

e de sua trajetória. Logo, ele precisa selecionar os elementos de uma teoria do capitalismo como

um todo em oposição a elementos e categorias do texto marxiano que se refeririam a uma crítica

datada do capitalismo liberal. Isso poderia causar estranheza a olhos acostumados com

84 Registra-se que este último argumento se sobrepõe em alguma medida com os anteriores. 85 Postone cunha o conceito de marxismo tradicional, o qual englobaria todas interpretações de Marx até então elaboradas, exceto a do próprio Postone. 86 “Nesta obra, porém, eu escreverei como se o autoentendimento de Marx fosse aquele implicado pela lógica de sua teoria do núcleo da formação social capitalista.” (Postone, 2003, p. 19). Isto é, Postone parte do princípio que sua reconstrução seria aquela de Marx, apesar de que em Marx houvesse uma tensão interna entre os elementos tradicionais e os elementos pertencentes ao núcleo duro da formação social capitalista. Poderíamos perguntar a Postone: quais foram os critérios mobilizados para se determinar os elementos do núcleo duro da formação capitalista. Pois toda sua reconstrução baseia-se em delimitar um suposto núcleo duro do capitalismo.

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reconstruções tradicionais da teoria marxiana. Essa metodologia implica uma seleção brutal dos

textos de Marx. Evidentemente, poder-se-ia argumentar, o que está em jogo in extremis seria a

produção de uma teoria crítica, cuja base fosse Marx, capaz de dar conta dos desdobramentos

do capitalismo, não se tratando assim de uma reconstrução tão somente acadêmica ou

sistemática do oeuvre marxiano.

Desta forma, vimos em seus contornos gerais a centralidade dos Grundrisse para

Rosdolsky e para Postone. Tanto um quanto o outro buscam pistas nos Grundrisse para entender

o Capital. No entanto, eles fazem esse movimento em sentido inverso. Postone procura, com

os Grundrisse iluminando o Capital, produzir uma teoria crítica que dê conta do capitalismo

atual. Rosdolsky, por sua vez, usa O Capital para organizar os temas presentes nos Grundrisse.

Vamos ver, agora, como Giannotti tratou desta obra.

Giannotti

Giannotti (1985, p. 10 e 181) em Origens da dialética do trabalho identifica uma

“radical oposição epistemológica entre os textos da juventude e os da maturidade”,

identificando os textos da juventude até a redação da Ideologia Alemã. Sendo que um dos

conceitos que contribuem para a oposição epistemológica seria exatamente o de modo de

produção. Neste sentido, Giannotti assume como correta a ideia da existência de um corte

epistemológico como postulada pela escola althusseriana, o que estaria sub judice é do que se

trata essa diferença epistemológica. Se Giannotti estabelece um corte na altura da Ideologia

Alemã de Marx com seu pensamento anterior, nem por isso, a partir de então, tratou-se de um

desenvolvimento contínuo e sem quebras. Para o filósofo brasileiro, a categoria modo de

produção e o materialismo histórico teriam se alterado na década de 1850 com os Grundrisse.

Isto é, haveria, ao menos, dois momentos da formulação desta categoria no pensamento maduro

de Marx.

No primeiro, Giannotti aponta para o surgimento do conceito modo de produção na

Ideologia Alemã como chave para entender a ruptura de Marx com a tradição.87 Com este

conceito, Marx em um só movimento (i.) teria efetuado a negação de toda antropologia

fundante, (ii.) teria dissolvido a “unicidade da sociedade civil”, para dar lugar a multiplicidade

de modos de produção. No segundo momento, nos Grundrisse – é exatamente esse o ponto que

nos interessa –, Marx teria elaborado a diferença entre história contemporânea, história da

87 “Todas elas [objeções contra Feuerbach] reaparecem na Ideologia Alemã, inseridas contudo num contexto diferente, pois Marx possui agora o conceito de modo de produção que subverte por completo suas concepções filosóficas iniciais.”. (Giannotti, 1985, p. 183).

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reposição categorial de um modo de produção, e história do vir a ser, história de como

efetivamente um modo de produção veio a se instalar.88

Até os Manuscritos Econômico-filosóficos89 de 1844, Marx partia do gênero como

princípio da história, assim, a história seria a especificação das diversas formas desse ser

genérico. Agora, com o materialismo histórico que surge com a Ideologia Alemã, com seu

conjunto de pressuposições para a história, não se pode mais passar diretamente destas

pressuposições da história para a história efetiva. Ora, na primeira formulação do materialismo

histórico a produção da própria vida material, a produção de novas necessidades, a organização

de algum tipo de família, assim como o ato de procriar, são entendidos como pressupostos para

a história, mas a partir deles não poderíamos antever a história em sua efetividade.

Em outras palavras, com a categoria de modo de produção a história não seria mais

entendida como uma espécie de preenchimento de conteúdo de determinações abstratas,90 ela

não seria mais entendida como o desdobramento do gênero humano no tempo histórico. Esse

resultado da primeira formulação do materialismo histórico não bastou a Marx. A partir dos

Grundrisse, ele passa a elaborar duas ordens explicativas interlaçadas dentro de cada modo de

produção, a história do vir a ser e a história contemporânea. A história contemporânea remeteria

a um dado quadro de reprodução de uma trama categorial de um dado modo de produção,

enquanto a história do vir a ser remeteria ao processo histórico de surgimento destas categorias

que são repostas incessantemente por esse mesmo modo de produção. Por ora, isto deve bastar

para apontar a centralidade dos Grundrisse na leitura de Giannotti.

Ademais, nota-se também uma semelhança insuspeita no tratamento dos

Grundrisse por parte de Giannotti e Postone. Pois tanto ambos autores encontram nos

Grundrisse, em uma formulação mais forte, uma espécie de autocrítica de Marx ou, em uma

formulação mais amena, uma mudança teórica notável de Marx. Em Postone, isso aparece como

uma negação de que qualquer teoria possa ter uma validade trans-histórica. Em Giannotti, isso

aparece como uma segunda formulação do materialismo histórico e, consequentemente, da

88 “Como o valor, por exemplo, logrou impor-se numa sociedade é um problema histórico diferente da gênese categorial que se reproduz a todo instante”. (Giannotti, 1980, p. 93). Afinal, investigar como uma categoria se reproduz num dado modo de produção não se confunde com investigar como ela veio a se firmar neste mesmo modo de produção. “Por certo, a passagem duma categoria para outra guarda memória histórica, o que não implica a análise histórica do processo.” (Giannotti, 1985, Prefácio a 2a ed., s/p). 89 “Quando se tinha a totalidade do gênero como princípio [nos Manuscritos de 1844], era fácil ver toda a história como a realização da sociedade civil tomada como a negação do princípio originário. Mas agora a totalização deve emergir da própria história e dar conta de todas as totalizações parciais.”. (Giannotti, 1985, p. 189). 90 “O materialismo histórico, no entanto, não postula esta passagem contínua da espécie humana à diversidade dos povos e à multiplicidade dos períodos históricos.” (Giannotti, 1985, p. 186).

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categoria de modo de produção, em uma determinação mais fina através de duas ordens

explicativas.

Nas próximas seções vamos explorar mais detidamente dois momentos do texto

marxiano, a saber, a Introdução de 57, e o Formen e a acumulação primitiva.

1.3 Textos em disputa: Introdução e Formen

Nesta seção pretendemos nos aproximar de dois trechos dos Manuscritos de 1857-

8 que suscitaram maior divergência na literatura secundária. Isso significa que não pretendemos

esgotar esses trechos nem tampouco esgotar a recepção na literatura secundária destes trechos.

Estes são a Introdução (e a seção “o método da economia política”), assim como o Formen e os

trechos sobre a acumulação. A importância deles reside na tarefa de se entender a leitura de

Marx por Postone, por Giannotti e por Rosdolsky.

Particularmente a Introdução aos cadernos de 1857-58 é um dos momentos centrais

para o estabelecimento por Postone de uma virada prática de Marx em direção a uma teoria

com validade histórica restrita. Já os Formen e a acumulação primitiva nos é importante pois

nos permite aproximar a leitura de Giannotti com a de Rosdolsky. Essa importância fica mais

patente quando lembramos que há duas hipóteses paralelas de leitura de Marx nesta dissertação.

A primeira hipótese aponta para uma correlação entre capital fixo e modo de produção existente

nos Grundrisse, e posteriormente abandonada no Capital. Estabelecemos essa leitura a partir

principalmente de Rosdolsky. A segunda hipótese, a partir de Giannotti, indica que o par

história contemporânea e história do vir a ser se mantém ao longo dos escritos marxianos a

partir de 1857-8 chegando até o Capital. De um lado, a primeira hipótese aponta para uma

descontinuidade entre os Grundrisse e os escritos posteriores; de outro lado, a segunda hipótese

nos mostra que nem tudo é descontinuidade, que há sim elementos que permanecem na

formulação da categoria de modo de produção entre 1857 e 1867. Por isso, nos parece, é

necessário ao menos indicar que essas hipóteses são compatíveis, e, mais do que isso, que as

leituras de Rosdolsky e de Giannotti também o são. Ressalvamos, contudo, que esta dissertação

concentrará esforços na primeira hipótese.

Retomemos nossas considerações sobre os Grundrisse. Neles encontraríamos a

primeira versão do problema do começo para Marx, isto é, por onde deveria começar a análise

da sociedade capitalista (Cf. Nicolaus, 1993; Dardot e Laval, 2012; Postone e Reinicke, 1974-

5). Neste texto, o problema do começo é colocado uma primeira vez na Introdução. Logo em

seu início Marx ensaia começar a análise pela categoria de produção (em geral) cujo

desdobramento dialético imediato seria a categoria de consumo. Contudo, Marx descarta esse

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começo por considerá-lo hegeliano demais. Ao longo desta mesma Introdução, Marx escreve o

famoso trecho “O método da economia política”, que também resvala no problema do início da

análise de uma sociedade. O entendimento desta seção está longe de ser pacífico na literatura

secundária, Althusser, Müller, Postone – e inclua-se aqui praticamente qualquer teórica ou

teórico que tenha interpretado os Grundrisse – cada uma e cada um interpretou esse trecho de

maneiras mais diversas. O que, por si só, indica o caráter altamente fragmentário e

potencialmente contraditório do texto. Somente nas páginas finais dos cadernos de 1857-8 Marx

dá conta do problema do começo ao descobrir a mercadoria como a forma organizadora da

exposição. Neste momento, a forma mercadoria poderia ser tomada somente como uma espécie

de recurso argumentativo. Nada mais enganoso. Mais do que isso, a forma mercadoria seria não

só o ponto de início da exposição, mas também a forma correta de entendimento da própria

sociedade.91

O problema do começo é também de enorme importância para Postone, pois ele se

configura como um dos argumentos do autor para mostrar a autocrítica de Marx. Esta

autocrítica afastaria qualquer tentativa de se estabelecer alguma teoria cuja validade seria trans-

histórica. Em resumo, com o começo pela forma mercadoria Marx teria restringido sua análise

à sociedade capitalista.

Em outra frente, há o problema do entendimento do peso conceitual das categorias

marxianas da crítica da economia política, como elas aparecem na seção “o método da

economia política” na Introdução. Ora, isso significa que se formos nos fiar em uma tradição

mais cientificista, cujo representante maior seria a escola althusseriana, as categorias seriam

descrições científicas da realidade, isto é, seriam tentativas de se compreender ou de se explicar

a sociedade. Haveria uma espécie de abismo entre o objeto do conhecimento e o objeto real,

entre discurso e realidade, reintroduzindo, desta maneira, o problema da verdade (da teoria do

conhecimento) como correlação para dentro da economia marxiana. Registra-se a existência de

uma tentativa, elaborada por Giannotti em “Contra Althusser” (1968), de se criticar esta

tradição.

91 Não iremos avançar neste assunto, indicamos, porém, que a tradição de leitura que concede importância ao problema do começo e ao aspecto estruturante (não só teórico) da forma mercadoria se origina dos trabalhos de Lukács. Pois, segundo Lukács (2003, p. 193), não é casual que as obras maduras de Marx (Para crítica da economia política de 1859 e O Capital, primeira edição do primeiro volume de 1867) comecem pela mercadoria, isso só seria possível quando o problema da mercadoria aparecesse como “o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestações vitais”. Não somente a mercadoria seria um centro organizador da exposição e da sociedade, como também a partir dela poderíamos descobrir “o protótipo [Urbild] de todas as formas de objetividade [Gegenständlichkeitsformen] e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa”.(Lukács, 2003, p.191)

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Não obstante as diversas dificuldades de leitura e as inúmeras recepções na

literatura secundária desta Introdução de 1857, há ainda um problema anterior: a questão de se

estabelecer a ligação entre a Introdução (caderno M) e o restante dos cadernos (I-VII) de 1857-

58. Segundo Negri (1991, p. 41) e Nicolaus (1993, p. 13), haveria comentadores que negariam

a existência de uma continuidade entre o Caderno M (Introdução) e os Grundrisse propriamente

ditos. É importante demorar-se um pouco neste problema, pois se, por um lado, alguns autores

problematizam a ligação interna entre o Caderno M e os outros cadernos (I-VII) escritos ao

longo dos meses subsequentes; há, por outro lado, a atitude oposta de se ligar sem maiores

problematizações os temas desenvolvidos na Introdução com os temas do Capital. Como se na

Introdução pudéssemos encontrar o sempre procurado método materialista do Capital.92

Já os Formen tiveram uma fortuna crítica diferente. Desde a publicação do “Formas

que precederam a produção capitalista” (Formen) por Hobsbawm (1975), este texto se tornou

um marco para a discussão do materialismo histórico. Ressaltemos que o objeto de nossa

pesquisa não é o materialismo histórico per se; mas sim, a categoria de modo de produção. Dito

isso, nos parece impossível não resvalar em alguma medida para o materialismo histórico, uma

vez que a categoria de modo de produção foi central para a teoria da história marxista.

Hobsbawm (1975) e Wood (2008) procuraram a partir daquele texto, com objetivos

ligeiramente diferentes, estabelecer uma espécie de tábula de leis do materialismo histórico.

Em outro sentido, Negri (1991, p. 107) chama a atenção para o lugar no qual o Formen aparece

no texto dos Grundrisse; para o filósofo italiano haveria também uma espécie de lei geral do

desenvolvimento histórico dos modos de produção. Além disso, Negri (1991, p. 111) observa

que o Formen tampouco foi recepcionado pacificamente na literatura secundária, alguns

comentadores o tomaram por uma espécie de resquício do jovem Marx no Marx da

maturidade.93

Sobretudo o entendimento do Formen foi muitas vezes feito em conjunto com os

trechos sobre a acumulação primitiva, porquanto ambos textos, em última análise, dizem

92 Para Heinrich (2014, p. 12) seria enganoso tomar a Introdução de 57 como chave metodológica de O Capital. Em outro momento, escreve o autor: “Uma prática igualmente superficial pode ser observada em relação a outros textos, como a famosa ‘Introdução’ de 1857, constantemente utilizada como a ‘chave’ metódica de O Capital, que, no entanto, surgiu apenas dez anos mais tarde e em um nível de consciência teórica muito distinto.” (HEINRICH, 2014, p. 32). De modo semelhante a Negri, Dussel também indica a necessidade de se pensar mais detidamente a correlação entre os manuscritos e as obras posteriores. Pois não é trivial e tampouco pacífico tomar os Grundrisse como estudos preliminares ou preparatórios do Capital. Escreve o autor: “Os Grundrisse, para nós, não são somente escritos preparatórios para O Capital” (Dussel, 1985, p. 13). 93 “O Die Formen foi frequentemente atacado como um tipo de resíduo [remainder], nos Grundrisse, da atitude teórica que seria tanto naturalista quanto humanista, a qual seria alguma forma de transplante do primeiro Marx pré-crítico, o jovem Marx, para seu pensamento maduro.”. (NEGRI, 1991, p. 111). Infelizmente Negri não nomeia esses teóricos.

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respeito aos pressupostos e às condições históricas para o surgimento do capitalismo (Balibar,

1980, p. 242ss; 1969, p. 185ss). É exatamente nos trechos dedicados à acumulação originária

que Giannotti (1985, p. 183ss) localiza a existência de dois tipos de explicação no materialismo

histórico: a história contemporânea (ou história categorial de um modo de produção) e a história

do vir a ser (devir histórico de um modo de produção). A partir deste ponto, Giannotti extrapola

essas noções para o todo do pensamento marxiano maduro.

A própria ideia de uma acumulação originária tem por origem a tradição da

economia política que procurava em um idílico passado explicar a origem do modo de produção

capitalista. Portanto, Marx ao desenvolver esse tema está em diálogo crítico contra essa

tradição. De um lado, nosso autor procura evidenciar o erro dos economistas políticos;94 de

outro lado, ele tem que efetivamente mostrar quais foram as condições lógicas e históricas para

o surgimento do capitalismo.

1.3.1Introduçãode1857–oproblemadocomeço

Como dissemos, a Introdução aos Grundrisse foi uma fonte de disputa teórica.

Nicolaus e Postone se apropriam deste texto como uma espécie de autocrítica de Marx.

Giannotti (1985), a partir da dessa mesma Introdução, identifica dois tipos de abstração: as

filosóficas e as da economia política. Se para os primeiros, o começo pela categoria de produção

em geral se revelou um falso começo, pronto para ser descartado; para Giannotti (1985, p.192),

a categoria de produção seria uma espécie de ideia filosófica reguladora, diferente das

categorias da economia política.

Já Negri (1991, p. 45) encontra nesta Introdução o estabelecimento de uma

concepção materialista e dialética, que reservaria um espaço à subjetividade, o que, por sua vez,

serviria a sua hipótese mais geral de encontrar uma subjetividade entre as linhas dos Grundrisse.

Enquanto para Althusser (2015, p. 148; 2010, p.184), esta Introdução seria o esboço da dialética

materialista marxiana, cuja especificidade teria que ser encontrada na prática teórica de Marx.

Em outro sentido, Paula (2010c) nos alerta para um dado importante. A Introdução

de 1857 não foi escrita por Marx sem ter interlocutores. Para Paula (2010c, p. 93) o principal

material a ser criticado por Marx nesta introdução era o livro Princípios de Economia Política

de John Stuart Mill. E, mais do que isso, cada trecho da introdução teria tido um interlocutor

principal ou um material-chave a ser criticado.

94 “A história nos ensina que a acumulação primitiva foi sobretudo um sistemático roubo efetuado pela classe capitalista nascente contra os demais setores da sociedade pré-capitalistas.” (Giannotti, 1985, p. 204).

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Não só isso, Paula (2010c) matiza a recusa de Marx a uma introdução à crítica de

economia política. Para o autor, o próprio prefácio ao Para Crítica seria uma espécie de sumário

da introdução descartada.

Isto é, Marx não abandonou a necessidade de uma ‘Introdução Metodológica’, à sua crítica da economia política, senão que a sumarizou, e ela está efetivamente incluída no Prefácio, tanto na decisiva discussão sobre as determinações materiais da existência, vale dizer sobre o modo de produção, quanto na apresentação da sequência dos seis livros, que comporiam a totalidade da crítica da economia política. (Paula, 2010c, p. 90).

Paula (2010c) chega até mesmo a comparar a Introdução de 1857 com o Prefácio

da Fenomenologia do Espírito. Para esse autor, a Introdução pode efetivamente ser lida como

uma exposição do método da economia política. Algo, como assinalamos anteriormente,

Heinrich (2012) discordaria.

A crítica de Marx à economia política, por eternizar o que é histórico e socialmente determinado, resultou na criação do conceito de modo de produção, que, estando implícito na obra de Marx desde A ideologia alemã, escrita com Engels entre 1845 e 1846, reaparece e se enriquece na Introdução de 1857, adquirindo plena maturidade no Prefácio da Contribuição da Economia Política (...) (Paula, 2010c, p. 95).

Por fim, Paula (2010c, p. 95) identifica três momentos distintos da categoria de

modo de produção. O surgimento na Ideologia Alemã, o enriquecimento na Introdução de 57

e, por fim, a maturidade no Prefácio ao Para Crítica. Esse posicionamento por parte de Paula

deve ser interpretado com cuidado, uma vez que não é trivial assumir a existência de um

processo linear amadurecimento cujo ápice teria sido um Prefácio telegráfico como é o Prefácio

de 1859. De outra forma, a afirmação de Paula implica dizer que em um único parágrafo do

citado Prefácio Marx teria sido capaz de resumir toda sua teoria. Por ora, basta de falar do

Prefácio de 59, uma vez que ele não está dentro de nosso recorte temporal.

Voltemos ao problema da Introdução de 57. A primeira questão que se coloca é o

lugar dessa introdução frente aos outros cadernos. Sobre isso, observa Nicolaus:

Não há nenhuma continuidade imediatamente óbvia entre a Introdução e o primeiro capítulo. Não obstante, não há dúvida aqui (...) que a Introdução e o texto principal formam um todo orgânico dos pontos de vista bibliográfico ou textual. A dificuldade é mais profunda. Quais sejam: em que medida Marx mesmo, em revisão posterior, considerou esta Introdução um ponto de partida válido de qualquer modo [at all]; e em que medida ele, durante a escrita do corpo principal do texto, veio a considerar algumas das ideias [views] expressas na Introdução como inadequadas? (Nicolaus, 1993, p. 13).

Afinal, sabemos, como testemunha o Prefácio de 59, que Marx optou por descartar

qualquer introdução ao publicar o Para Crítica (1859). Embora, como vimos, até mesmo essa

recusa encontra uma leitura mais matizada em Paula (2010c). A correlação entre a Introdução

de 57 e os outros cadernos não deveria ser estabelecida por uma mera proximidade temporal,

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mas sim conceitual. Nesse sentido, Negri (1991, p. 41) defende a leitura conjunta da Introdução

e os cadernos, porque ela seria útil para entendê-los. Por isso, para nossos fins, assumimos que

a Introdução forma um todo orgânico com o resto dos cadernos de 1857-58.

Seja como for, estabelecida a ligação da Introdução de 57 com o resto dos cadernos,

surge uma outra questão: como cadernos inacabados, os Grundrisse, nos adverte Nicolaus, nos

permitiria adentrar no laboratório de Marx, ver seu método de trabalho (method of working)

em funcionamento (NICOLAUS, 1993, p. 25-6), portanto, ao se debruçar sobre os Grundrisse,

o leitor necessariamente teria que se perguntar pela relação entre essa obra e a lógica

hegeliana.95

Em resumo, a questão sobre Hegel dificilmente pode ser evitada ao se estudar os Grundrisse. (...) quais seriam as forças [strengths] e as fraquezas de sua [de Hegel] Lógica em relação ao método de trabalho [method of working] de Marx? Essas são questões com as quais se confrontam qualquer leitor sério dos Grundrisse, e requer ao menos um núcleo de uma resposta. (Nicolaus, 1993, p. 26).

Se para Nicolaus é óbvia a proximidade da dialética presente na Introdução com a

dialética hegeliana, o mesmo não pode ser dito de Althusser (2015), que em diversos artigos de

Por Marx, procura afastar terminantemente Marx de Hegel. Não obstante, Althusser também

vê nessa Introdução a possibilidade de se encaminhar a resposta para o que haveria de específico

na dialética materialista de Marx.

Em seus termos, Nicolaus procede a alinhavar um núcleo de resposta a essa questão.

Algo que não nos interessa em seus pormenores. Um dos problemas do método dialético96 seria

a questão de por onde começar. Nicolaus parece sugerir que Marx mimetiza o começo de Hegel.

Se esse começa pelo puro ser, aquele tentou começar pela produção. (Nicolaus, 1993, p. 35).

Tanto é assim que a primeira seção da Introdução é “1) A produção em geral” (Marx, 2011, p.

39), logo em baixo, Marx completa: “o objeto nesse caso é, primeiramente, a produção

material”.

Esse paralelismo ficaria mais evidente ao se avançar no texto. Se Hegel procura

mostrar a identidade entre o ser e o nada; Marx, por sua vez, passa da produção imediatamente

para o consumo. Como podemos testemunhar abaixo:

A produção é também imediatamente consumo. (...) todo ato de produção é, em todos seus momentos, também um ato de consumo. (MARX, 2011, p. 45).

O consumo também é imediatamente produção (...). Logo, a produção é imediatamente consumo e o consumo é imediatamente produção. (MARX, 2011, p. 47).

95 Hiroshi Uchida percorre essa vereda em Marx’s ‘Grundrisse’ and Hegel’s ‘Logic’ de 1988. 96 Devemos tomar cuidado com a expressão método dialético, estranha ao próprio Hegel. Cf. Müller (1983, p. 21, nota 16).

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Nesta altura, não nos interessa como Marx efetivamente faz a passagem dialética

de produção para consumo e a volta de consumo para produção. Mais importante é notar que

Marx percebe que esse seria um começo no mínimo problemático para a crítica da economia

política. “Com isso, nada mais simples para um hegeliano do que pôr a produção e o consumo

como idênticos.” (MARX, 2011, p. 48). Porém, antes de avançarmos é importante notar como

o próprio Marx definia a categoria de produção em geral.

A produção em geral97 [Production im Allgemeinen] é uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da repetição. Entretanto, esse Universal [Allgemeine], ou o comum [Gemeinsame] isolado por comparação, é ele próprio algo multiplamente articulado, cindido em diferentes determinações. [Certas] determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga. Nenhuma produção seria concebível sem elas (...). As determinações que valem para a produção em geral [Production überhaupt] têm de ser corretamente isoladas de maneira que, além da unidade (...), não seja esquecida a diferença essencial. (Marx, 2011, p. 41, MEGA2 II/1.1, p. 23, grifado no original).98

Algumas páginas depois, escreve Marx: “as assim chamadas condições

universais [allgemeinen Bedingungen] de toda produção nada mais são do que esses momentos

abstratos, com os quais nenhum estágio histórico efetivo [wirkliche] da produção pode ser

compreendido”. (Marx, 2011, p. 44, MEGA2 II/1.1, p. 26, grifado no original).

Esse é um dos pontos de discórdia. A partir disso, conclui Nicolaus (1993, p. 35)

que a mera substituição de ser por produção não satisfez Marx. Se Nicolaus e Postone

entreveem aí uma autocrítica de Marx ao recusar a função dessas categorias abstratas, a leitura

de Althusser vai em outro sentido. Para o filósofo francês, se os conceitos gerais (produção,

trabalho, troca etc.) são indispensáveis, nem por isso esses conceitos são resultado da prática

científica; antes, eles são tomados como base preliminar para a prática teórica (ALTHUSSER,

2015, p. 149; ALTHUSSER, 2010, p.187).

Contudo, a interpretação dessa parte da Introdução não é pacífica nem na escola

althusseriana, como nos mostra Saes (2007, p.49-50). O problema reside na interpretação de

abstração razoável e na inexistência da produção em geral. Mesmo dentro das correntes

althusserianas, há uma ambivalência nesta interpretação. Para alguns seria totalmente legítimo

97 Sublinhado na MEGA2 II/1.1, p. 23 98 Curiosamente, de certa forma, as ideias por trás deste trecho dos Grundrisse já estavam presentes na Ideologia Alemã, como lembra Giannotti (1985, p. 184). Vejamos: “A filosofia autônoma perde, com a exposição da realidade, seu meio de existência. Em seu lugar pode aparecer, no máximo, um compêndio dos resultados mais gerais, que se deixam abstrair da observação do desenvolvimento histórico dos homens. Se separadas da história real, essas abstrações não têm nenhum valor. Elas podem servir apenas para facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a sucessão de seus estratos singulares. Mas de forma alguma oferecem, como a filosofia o faz, uma receita ou um esquema com base no qual as épocas históricas possam ser classificadas.” (Marx e Engels, [1845-6] 2007, p. 95; Marx-Engels-Jahrbuch 2003, p. 116; Werke, III, p. 27).

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fazer uma construção teórica de conceitos gerais (como modo de produção, por exemplo).

Porém, a inexistência de conceitos gerais também é reconhecida, o que de fato existiria seriam

as sociedades concretas e formações sociais singulares (refletindo a diferença entre objeto de

conhecimento e objeto real). Em Por Marx, Althusser trabalha em três níveis de Generalidade

(I, II, III), cujo desdobramento não seguiremos. Para o filósofo francês:

A Introdução... não é mais do que uma longa demonstração da tese seguinte: o simples jamais existe senão numa estrutura complexa; a existência universal de uma categoria simples nunca é originária, ela só aparece ao fim de um longo processo histórico, como o produto de uma estrutura social extremamente diferenciada; nunca lidamos portanto, na realidade, com a existência de ‘concretos’, de seres e de processos complexos e estruturados. É esse princípio fundamental que recusa terminantemente a matriz hegeliana da contradição. (Althusser, 2015, p. 159; Althusser, 2010, p.201-2).

Enquanto Giannotti (1985, p. 192) interpreta o texto supracitado de Marx no âmbito

da diferenciação entre a Ideologia Alemã e os Grundrisse. As protocondições da história tal

qual estabelecidas na obra de 1846 são substituídas pela categoria abstrata de produção. Isto é,

a categoria de produção em geral seria um tipo de abstração filosófica, em oposição às

categorias da economia política.

A categoria de produção é destarte uma abstração filosófica cujos componentes são da mesma ordem das protocondições da história, consiste num mero recurso do intelecto para salientar os traços comuns dos vários sistemas produtivos a fim de evitar repetições e, sobretudo, a fim de sublinhar as diferenças. (Giannotti, 1985, p. 192).

Posteriormente Giannotti define claramente o que seriam essas determinações

abstratas construídas em torno da produção enquanto tal:

Configuram enfim a série de condições necessárias para pensar uma produção existente, mas, de forma nenhuma, o conjunto das condições suficientes para que um sistema produtivo venha a existir. (Giannotti, 1985, p. 192).

A distinção entre abstração filosófica e abstrações da economia política permite

Giannotti diferenciar a produção enquanto tal da categoria de modo de produção. As abstrações

filosóficas são “desprovidas de qualquer peso ontológico”, enquanto as abstrações da economia

política exprimem “universais-concretos cuja abstração e generalidade provêm do

funcionamento do sistema produtivo, traduzem enfim forças determinantes autônomas da

própria realidade”. (Giannotti, 1985, p. 192).

Retomemos o fio argumentativo de Nicolaus. Segundo ele, Marx não logrou

avançar com a categoria de produção em geral.

Resulta que começar com a produção social em geral, e então proceder para seu oposto direto, consumo em geral, não é passo a frente tão significante como poderia ter parecido. Isso substitui uma abstração não histórica por outra, e não progride no final das contas [ultimately] além dos ‘economistas prosaicos’ mesmo, os quais também começam suas obras com recitações precisamente de tais generalidades. (Nicolaus, 1993, p. 35).

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O problema do começo ou o problema por qual categoria começar reaparece no

“método da economia política”. Para Nicolaus (1993, p. 37), Marx ao final desse trecho

encaminha uma solução. Escreve o filósofo alemão:

Seria impraticável e falso, portanto, deixar as categorias econômicas sucederem-se umas às outras na sequência em que foram determinantes historicamente. A sua ordem é determinada, ao contrário, pela relação que têm entre si na moderna sociedade burguesa (...). (Marx, 2011, p. 60).

Porém, nesse ponto Marx ainda não teria encontrado uma solução adequada para o

problema por onde começar (Nicolaus, 1993, p. 37). A solução adequada só apareceria ao final

do manuscrito, na parte intitulada “Valor”, com a forma mercadoria. A esse respeito observa

Nicolaus:

É um começo que é a um tempo [at once] concreto, material, quase tangível, como também específico historicamente (à produção capitalista); e ele contém dentro de si (é a unidade de) uma antítese chave (valor de uso v. valor de troca) cujo desenvolvimento envolve todas outras contradições deste modo de produção. (Nicolaus, 1993, p. 38).

Apesar de criticar a reconstrução de Hegel e consequentemente da posição de Marx

efetuada por Nicolaus (1993), Postone e Reinicke (1974-75) concordam que há uma mudança

do ponto de partida que, por sua vez, acarretará diversas mudanças importantes, a principal

delas seria uma ancoragem historicamente determinada da dialética através da forma

mercadoria.

Nos Grundrisse, testemunhamos como Marx primeiramente mimetizou o começo

da Lógica de Hegel para, só após a redação dos sete cadernos, descobrir o começo “verdadeiro”:

a mercadoria. Ao final do caderno VII, escreve o filósofo alemão:

Retomar esta seção. A primeira categoria em que se apresenta a riqueza burguesa é a da mercadoria. A própria mercadoria aparece como unidade de duas determinações. Ela é valor de uso, i.e., objeto da satisfação (...) Então, como o valor de uso se transforma em mercadoria? [Em] suporte do valor de troca. (Marx, 2011, p. 756)

Isto é, Marx teria encontrado por onde o desenvolvimento dialético das categorias

da economia política deveria começar. A forma mercadoria seria necessariamente o ponto

privilegiado de desenvolvimento e do início da crítica.

De um ponto de partida trans-histórico, Marx moveu-se [nos Grundrisse] para uma forma social historicamente determinada, a qual expressa a identidade chave da identidade e da não identidade, valor de uso e valor de troca – uma contradição historicamente específica cujo desenvolvimento implica [envolves] todas outras contradições do modo de produção capitalista. (Postone e Reinicke, 1974-75, p. 134).

Logo em seguida, Postone e Reinicke explicitam sua tese lukacsiana de leitura,

afinal, o modo de existência que domina o modo de produção capitalista seria a forma

mercadoria. Nesse sentido, eles argumentam:

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O objeto da análise marxiana é a sociedade burguesa, estruturada pelo trabalho assalariado e pelo capital, e dominada por um determinado modo de existência (Existenzbestimmung) cujo desenvolvimento dialético – mediado pela luta de classe – apresenta esta história em sua forma mais pura e a mais clássica. Essa determinação de existência é a mercadoria. (Postone e Reinicke, 1974-75, p. 134).

Se a dialética tem por pressuposto a adequação do conceito ao seu objeto, então

essa virada no objeto da dialética, qual seja, a mercadoria, que representa uma forma social

historicamente determinada de um sistema produtivo, indica que a própria dialética encontra

um terreno histórico. Sendo assim, a dialética não seria um método aplicável universalmente.

O que é rejeitado ao se começar com a mercadoria é a noção de dialética como método universalmente aplicável – ou, em outras palavras, como a expressão adequada de uma realidade indeterminada cuja natureza essencial é contraditória. (Postone e Reinicke, 1974-75, p. 135).

Essa tese é mais uma vez expressada univocamente: “A adequação do conceito ao

seu objeto deve implicar, juntamente com a historicidade do objeto – sociedade capitalista – a

historicidade do conceito, o ‘método’, mesmo.” (Postone e Reinicke, 1974-75, p. 135). Com

isso, a crítica é tanto das formas sociais quanto das formas de pensamento correspondentes a

essas formas sociais. Uma consequência dessa tese seria postular a completa imanência de

qualquer teoria - e de suas categorias - ao seu objeto histórico. A categoria de modo de

produção, consequentemente, a partir da teoria marxiana desenvolvida nos Grundrisse, seria

completamente imanente ao capitalismo. Só existiria, em uma palavra, o modo de produção

capitalista.

Sendo assim, uma das diferenças entre a sociedade capitalista e as formas

pregressas seria que a sociedade capitalista formaria a primeira e a única formação social que

constituiu uma totalidade, a qual poderia ser desdobrada a partir de uma única categoria, a

mercadoria. O capitalismo seria a primeira totalidade efetiva que se desdobra no tempo.

A dialética marxiana madura compreende criticamente e expressa a sociedade burguesa desenvolvida como a primeira totalidade social real: uma cuja realidade determinada inteira pode ser desenvolvida logicamente a partir de uma forma estruturante abstrata simples – a mercadoria em seu duplo caráter como sistema total. (Postone e Reinicke, 1974-75, p. 136).

Esse argumento trazido por Postone e Reinicke pode ser remetido a uma das

tendências internas ao modo de produção capitalista, como Marx havia pensado. Para tanto,

precisamos sair brevemente do texto da Introdução e entrar nos Grundrisse mesmo. A tendência

de que falamos seria a tendência deste modo de produção a subordinar todos os elementos da

sociedade à sua própria lógica. Isto é, o capitalismo plenamente instituído forma uma espécie

de sistema fechado no qual “cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto” (Marx, 2011,

p. 217). A citação a seguir é longa:

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Se no sistema burguês acabado cada relação econômica pressupõe a outra sob a forma econômica-burguesa e, desse modo, cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto, o mesmo sucede em todo sistema orgânico. Como totalidade, esse próprio sistema orgânico [organische System] tem seus pressupostos [Voraussetzungen], e seu desenvolvimento na totalidade consiste precisamente em subordinar a si todos os elementos da sociedade, ou em extrair dela os órgãos que ainda lhe faltam. É assim que devém uma totalidade historicamente. O vir a ser tal totalidade constitui um momento de seu processo, de seu desenvolvimento. (Marx, 2011, p. 217, MEGA2 II/1.1, p. 201).

Dardot e Laval interpretam esse movimento99 de formar uma totalidade como uma

das maiores descobertas de Marx, qual seja de que “o movimento de autoposição do capital

consiste em um processo de totalização” (Dardot, Laval, 2012, p. 677), exatamente o processo

indicado acima. Esse tornar-se totalidade do capital também é indicado por Marx através da

tendência de o capitalismo formar um mercado mundial. Escreve o filósofo alemão: “O

mercado mundial, portanto, constitui ao mesmo tempo o pressuposto e o portador da

totalidade.” (Marx, 2011, p. 171, MEGA2 II/1.1, p. 152).100

O processo do capitalismo de se tornar uma totalidade resumido pelo termo

“mercado mundial” não se esgota tão somente em uma expansão geográfica ou extensiva do

capitalismo; antes, trata-se também de um processo de expansão intensiva do capitalismo, de

submeter todas as relações sociais assim como a própria subjetividade101 à lógica capitalista.

Sobre isso, escrevem Dardot e Laval:

Contudo, Marx não se contentou em prever a extensão dos territórios incorporados ao mercado mundial. São todas as relações sociais, as relações com a natureza e até mesmo dos homens mesmo que se tornam mais profundamente afetadas pela lógica do capital. (Dardot e Laval, 2012, p. 678)

Algumas linhas depois, os autores resumem sua posição:

Este devir-mundo do capital deve ser, portanto, entendido de muitas maneiras: como extensão geográfica do capitalismo, como subordinação das relações sociais e políticas, e como produção de subjetividades. (Dardot e Laval, 2012, p. 678).

Neste sentido, a acumulação de capital não se constitui apenas na criação tendencial

de dois polos, um de riqueza, outro de pobreza, mas também a acumulação de capital seria

concomitantemente um processo de expansão no íntimo da subjetividade possível neste modo

99 Indicamos que Dardot e Laval (2012, p. 416-417) pensam a partir deste mesmo trecho o processo de reprodução do capital como “um processo reflexivo [procès réflexif] (no sentido hegeliano do termo) no qual ele realiza a unidade do ato de colocar [poser] e do ato de pressupor [présupposer]”. Ora isso significa que “em tanto como ato de posição [position] ele [o capital] produz a partir de si mesmo suas condições, como ato de pressuposição ele se coloca [se pose] ao mesmo tempo como condicionado por elas [essas condições]”. 100 Sobre o mercado mundial acrescentam Dardot e Laval (2012, p. 678): “Nada menos que a constituição do capital como mundo, do mundo tornado plena e integralmente capitalista.”. 101 Os tipos de liberdade e de personalidade são engendrados eles mesmo por um dado modo de produção. Cf. Marx (2011, p. 105ss, MEGA2 II/1.1, p.90ss), Rosdolsky (2001, p. 34ss), Giannotti (1985, p. 190) e Fausto (1983, p. 50).

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de produção.

A acumulação do capital não se faz somente pela expropriação [dépossession], mas pela subjetivação, isto é, pela expansão da lógica do mercado à esfera subjetiva ela mesma, pela submissão do íntimo à lógica da ilimitação (sic) [illimitation] (Dardot e Laval, 2012, p. 679).

As formas pregressas não possuem essa qualidade da sociedade capitalista ou essa

tendência de se expandir até o íntimo da subjetividade dos sujeitos, pois nelas a forma

mercadoria não seria a forma determinante do modo de existência. (Cf. Postone e Reinicke,

1974-75, p. 136-7). Não só isso, mas também não seria possível nestas formações pregressas

atribuir a qualquer outra categoria um caráter estruturante da própria sociedade. Muito menos

essas formações formariam uma totalidade que a tudo submeteria à sua própria lógica de

reprodução categorial.

Retomemos um pouco o posicionamento de alguns comentadores. Como vimos,

Althusser pensou a Introdução de 57 em função de tipos de generalidade e da prática teórica.

Nicolaus a reconstruiu estabelecendo uma espécie de mimese de Hegel entre as categorias

marxianas e aquelas da lógica hegeliana, já Postone e Reinicke retiraram algumas

consequências insuspeitas da mudança do começo pela forma mercadoria. Giannotti, por sua

vez, estabeleceu a diferença entre abstrações filosóficas e da economia política.

Apesar das diferenças entre as posições de Nicolaus e Postone, e de Giannotti, há

uma convergência insuspeita. Para todos esses autores, a Introdução de 57 atestaria a

impossibilidade de se partir da produção enquanto tal para o estudo da riqueza social. (Cf.

Giannotti, 1985, p. 198). No final das contas, tomar a categoria de produção como uma ideia

reguladora e a categoria de modo de produção como uma abstração da economia política, como

o faz Giannotti, não afasta uma congruência mais profunda entre Nicolaus, Postone e Giannotti,

qual seja, a análise deveria ser historicamente determinada. No fundo, o problema gira no

entendimento da dialética ou do método dialético. Para Postone, existe uma ligação necessária

e interna entre o método dialético e o capitalismo, se este vier a acabar ou mudar

substancialmente, aquele perderia sua validade. Enquanto para Giannotti, parece que seria

possível pensar um materialismo histórico baseado no trabalho, em suas formas

respectivamente determinadas pelos modos de produção, cuja análise seria dialética. Tratar-se-

ia de uma forma da análise passível de ser aplicada a vários objetos.

Um estudo detido do que garantiria uma dialética materialista seria útil. O próprio

livro de Giannotti (1985) é uma tentativa de investigar os fundamentos desta dialética. No

limite, na leitura de Marx por Giannotti, a garantia da dialética materialista nas primeiras obras

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de Marx seria a categoria de trabalho; essa garantia, nas obras maduras, se deslocaria para a

forma mercadoria (mais uma convergência entre Postone e o filósofo brasileiro).

Marcos Müller, no artigo “Exposição e Método Dialético em ‘O Capital’” (1983),

também se pergunta pelo estatuto teórico de uma dialética materialista. Ele começa o artigo

constatando uma diluição do conceito de dialética na tradição marxista seja a partir de Engels,

seja a partir de Lênin; por isso, o autor procura retornar às fontes filosóficas da dialética a fim

de investigar tanto o que significa quanto o que legitima uma dialética materialista.102 Afinal,

para Hegel a dialética era possível dentro de um projeto autofundante da razão, no qual a

apresentação de um conceito é a forma de automovimento do conteúdo. Marx, pelo contrário,

não pode apelar para um saber absoluto ou para o Espírito. Portanto, o que justificaria uma

dialética que pressupõe uma realidade prévia (ou seja, um conteúdo para além do próprio

método) e o que permitiria tomar o conceito de capital como sujeito possível da apresentação?

A justificativa desse procedimento teórico se encontraria em um fato externo à própria teoria.

Só podemos justificar uma dialética que pressuponha um conteúdo prévio a si e só podemos

tomar o conceito de capital como sujeito da apresentação da dialética na medida em que o

capital tenha efetivamente se tornado um sujeito histórico. Isto é, a dialética materialista

encontraria sua justificação (e sua condição de possibilidade) em um diagnóstico de época,103

qual seja, o “modo de produção capitalista dominado pelo trabalho abstrato.” (Müller, 1983, p.

40). Porém, esse recurso à história não seria dogmático, pois história e teoria se apoiariam

mutuamente, sem que uma ou a outra fossem o pressuposto último.

Se a solução do problema da garantia da dialética de Müller e de Giannotti não são

iguais, ao menos, o sentido geral de sua argumentação é o mesmo. Para Giannotti, nas obras

maduras de Marx, o fundamento da dialética materialista passa a ser a forma mercadoria, algo

peculiar tão somente à sociedade capitalista. Para Müller, o fundamento estaria em uma relação

entre história e teoria, na qual pressupõe-se o surgimento e o estabelecimento do capital como

sujeito. Desta forma, a dialética materialista fundada pelo conceito de capital tampouco poderia

ser extrapolada para outras formações socioeconômicas. Posições, em maior ou menor medida,

congruentes com a de Postone.

Há, contudo, uma outra ordem de problema que aparece na Introdução de 1857,

qual seja, o do entendimento das categorias da crítica da economia política.

102 Não podemos esquecer que, ao final do Posfácio da 2o edição do Capital, Marx se compromete com o que haveria de racional na dialética hegeliana, com o seu caroço (Kern) racional. Não entraremos na discussão sobre o duplo significado de umstülpen, que seria tanto inverter a dialética, como virar do avesso. Para uma noção geral desta discussão vide Müller (1983, p. 25-6). 103 Não se trata aqui do conceito de diagnóstico de época ou de tempo presente da teoria crítica.

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Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias econômicas é preciso ter presente que o sujeito [Subjekt], aqui a moderna sociedade burguesa [moderne bürgerliche Gesellschaft], é dado tanto na realidade quanto na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de ser-aí [Daseinsformen], determinações de existência [Existenzbestimmungen], com frequência somente aspectos singulares, dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por isso, a sociedade, também do ponto de vista científico, de modo algum só começa ali onde o discurso é sobre ela enquanto tal. (Marx, 2011, p. 59 e 1993, p. 106).

A interpretação de Postone (2003, p. 18) dessas categorias seria no sentido de que

elas formariam uma espécie de etnografia do capitalismo.104 No entanto, compreender o peso

que o autor canadense concede a essas categorias passa por expor seu objetivo teórico ao

reconstruir a teoria de Marx.

O objetivo de Postone é “ligar a crítica da teoria a uma possível crítica social”

(Postone, 2003, p. 18). Para isso, o autor procura estabelecer uma teoria que supere as

dicotomias das ciências sociais como, por exemplo, a dicotomia entre estrutura e ação. Em

função disso, Postone tem que reinterpretar o conceito de trabalho e a função de mediação social

desempenhada pelo trabalho. Essa reinterpretação tem por objetivo mostrar que o conceito de

trabalho serviria tanto para investigar a estrutura da sociedade quanto para investigar as formas

de ação; em uma palavra, as categorias do capital referir-se-iam tanto à estrutura social quanto

às formas de subjetividade. Essa afirmação só se torna inteligível quando lembramos do

pressuposto acima estabelecido, qual seja, de que as categorias da crítica da economia política

também seriam determinações de existência. Por trás dessas consequências, há um conceito de

teoria muito particular para Postone: “[t]eoria, então, é tratada como parte de uma realidade

social na qual ela existe.” (Postone, 2003, p. 18).

Toda a chave para o projeto de uma teoria que dê conta de sua própria condição de

possibilidade, e que seja abrangente ao ponto de poder explicar tanto as estruturas sociais

quanto a subjetividade é devedora de uma tese de fundo, isto é, que as categorias marxianas

expressam não só algo teoricamente, mas expressam também formas de existência. Afirma

Postone:

As categorias da teoria crítica de Marx, quando interpretadas como categorias de formas estruturadas de prática que são determinações tanto da ‘objetividade’ e ‘subjetividade’ (do que como categorias da ‘objetividade’ social apenas, menos ainda

104 “A reinterpretação da teoria crítica de Marx apresentada aqui é baseada em uma reconsideração das categorias fundamentais de sua crítica da economia política – tais como valor, trabalho abstrato, mercadoria e capital. Essas categorias, segundo Marx, ‘expressam formas do ser [Daseinsformen], as determinações de existência [Existenzbestimmungen] ... desta sociedade específica’. Elas são, assim por dizer, categorias de uma etnografia crítica da sociedade capitalista empreendida por dentro – categorias que supostamente expressam as formas básicas da objetividade e subjetividade social que estruturam as dimensões social, econômica, histórica e cultural da vida nesta sociedade, e são elas mesmas constituídas por formas determinadas de prática social.” (Postone, 2003, p. 18).

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do que como categorias econômicas), podem fornecer a base para tal teoria histórica da subjetividade. (Postone, 2003, p. 37).

Não só as categorias da economia política seriam determinações de existência, e

ensejariam uma teoria da subjetividade, superando a antinomia ação e estrutura, mas também o

seu desdobramento seria uma espécie de metacomentário de Marx à história da filosofia.

Postone escreve:

Estou sugerindo, em outras palavras, que os argumentos de Marx da dedução do valor devem ser lidos como uma parte de um metacomentário em andamento das formas de pensamento características da sociedade capitalista (por exemplo, da tradição da filosofia moderna, assim como as da economia política). (Postone, 2003, p. 142).

Com isso, encerramos uma primeira aproximação às disputas em torno da

Introdução de 57. Um resultado provisório desta aproximação aponta para uma linha

argumentativa geral comum a Postone, Giannotti, Nicolaus e Müller em estabelecer uma

ruptura na teoria de Marx a partir desta Introdução. Em maior ou menor medida, esses

comentadores apontam para uma virada de Marx em direção a uma teoria estritamente válida

ao capitalismo. Um dos pressupostos deste tipo de abordagem é entender o modo de produção

capitalista como algo único, na medida em que ele possui a tendência de formar uma totalidade,

como mostram Dardot e Laval.

1.3.2Formeneaacumulaçãoprimitiva

Na apresentação que se segue aproximamos o Formen e a acumulação primitiva,

pois nos parece difícil separar as questões desses dois textos em problemas estanques. Ambos

se inserem no esforço argumentativo de se explicar o surgimento do modo de produção

capitalista. O Formen se demora mais em mostrar as diversas possibilidades de inter-relação

entre capacidade de trabalho, meios de trabalho, estamentos dirigentes ou ociosos, e a

sociedade. Mas, no fundo, o que está em jogo no Formen é estabelecer que a separação entre

trabalhador e meios de trabalho, que a todo momento é reposta no sistema capitalista, é fruto

de um desenvolvimento histórico. Essa separação não é óbvia, pelo contrário, é justamente a

desunião entre trabalhador e meios de trabalho o que cabe explicar. Escreve Marx:

Não é a unidade do ser humano vivo e ativo com as condições naturais (...) que precisa de explicação ou é resultado de um processo histórico, mas a separação entre essas condições inorgânicas da existência humana (...), uma separação que só está posta por completo [vollständig] na relação entre trabalho assalariado e capital. (Marx, 2011, p. 401, Formen)

Dito isso, vamos começar nossa exposição pela acumulação primitiva. Um trecho

de duas páginas dos Grundrisse (Marx, 2011, p. 377-8, MEGA2 II/1.2, p.367-9) suscitou

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interpretações diferentes. Giannotti (1985, p. 194), após ter afirmado que as categorias

marxianas teriam um peso ontológico, exprimindo tendências reais, passa a distinguir o

processo de constituição e reprodução categorial de um modo de produção do seu processo de

nascimento ou surgimento. Haveria, deste modo, duas ordens de explicação: a explicação da

essência de um fenômeno e a explicação de seu vir a ser histórico.105 Marx, segundo Giannotti,

teria observado essa distinção em diversos momentos dos Grundrisse, mas essa distinção

aparece cristalinamente aqui:

(...) tão logo tenham desaparecido os pressupostos do dinheiro transformando-se em capital, que ainda estão situados fora do movimento do capital efetivo, e o capital, por isso, tenha posto de fato as próprias condições, imanente à sua essência, das quais ele parte na produção – a condição segundo a qual o capitalista, para se pôr como capital, tem de trazer para a circulação valores criados pelo trabalho próprio ou de alguma outra maneira – menos os valores criados por trabalho assalariado passado, já existente – pertence às condições antediluvianas do capital; pertence a seus pressupostos históricos, que justamente nesta qualidade de pressupostos históricos, são passados e, por isso, fazem parte da história de sua formação, mas de maneira nenhuma da sua história contemporânea, i.e., não fazem parte do sistema efetivo do modo de produção dominado por ele. A fuga dos servos para as cidades, p.ex., se é uma das condições e dos pressupostos históricos do sistema urbano, não é uma condição, não é um momento da efetividade do sistema urbano desenvolvido, mas pertence aos seus pressupostos passados, aos pressupostos do seu devir [Werdens] que são abolidos em sua existência [Dasein]. As condições e os pressupostos do devir, da gênese do capital, supõem precisamente que ele ainda não é, mas só devém; logo, desaparecem com o capital efetivo, com o próprio capital que, partindo de sua efetividade, põe as condições de sua efetivação. (Marx, 2011, p. 377, MEGA2 II/1.2 p.367-8, grifos no original, destaques nossos).

A partir deste trecho, Giannotti (1985, p. 187ss) deixa indicado que a novidades dos

Grundrisse em relação à Ideologia Alemã seria a existência desses dois modos de explicação,

como dissemos: história contemporânea, que diz respeito à atualidade do capitalismo, à sua

reprodução categorial, e história do vir a ser, que diz respeito a seus pressupostos já passados,

que não são repostos na atualidade do sistema.106 Com isso, o modo de produção capitalista

deveria ser entendido através tanto de seus pressupostos e de suas condições de surgimento,

como, por exemplo, a fuga dos servos, o acúmulo inicial de dinheiro, quanto de sua reprodução

efetiva como sistema produtivo já estabelecido.

105 “Reputamos essencial à explicação marxista diferenciar com precisão a perspectiva propriamente histórica da perspectiva sistemática, já que pretende situar-se entre o a-historicismo da economia clássica e o cego historicismo daqueles que tomam cada comunidade como a unidade privilegiada.” (Giannotti, 1965, p.104-5). 106 “A análise dos casos particulares e das formas históricas do desenvolvimento de um certo modo de produção se opõe à análise abstrata da essência que espelha a realidade em sua Kerngestalt (figura nuclear)”. (GIANNOTTI, 1980, p. 90, em destaque no original). Segundo Giannotti (1980, p. 90), haveria um “processo de constituição categorial” que “configura a essência de um modo de produção determinado”, e, além disso, esse processo configura também “uma forma de sociabilidade”. Ao lado deste processo categorial, haveria o próprio vir a ser do modo de produção, sua constituição histórica como modo de produção.

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Rosdolsky (2001, p. 227 e p. 234) tem uma posição ambivalente quanto à

possibilidade de creditar a história do vir a ser como parte de um dado modo de produção. Em

um primeiro momento, Rosdolsky afasta a possibilidade de a história do vir a ser constituir

uma parte da atualidade do sistema; sendo assim, ela não faria parte de sua ordem explicativa.

Em momento posterior, Rosdolsky matiza essa posição. Para avançar no primeiro sentido,

Rosdolsky cita um trecho de Marx no qual o filósofo alemão parece afastar a possibilidade de

se considerar a acumulação primitiva como parte do modo de produção atual. Escreve Marx:

(..) da mesma forma o capital enquanto tal, tão logo é posto, cria seus próprios pressupostos, a saber, a propriedade das condições reais para a criação de valores novos sem troca – mediante seu próprio processo de produção. Esses pressupostos, que originalmente apareciam como condições de seu devir (...) aparecem agora como resultado de sua própria efetivação, de sua efetividade, como condições postas[gesetzt] por ele – não como condições de sua gênese, mas como resultados de sua existência. (Marx, 2011, p.378, MEGA2 II/1.2 p.368, grifos no original).

Deste trecho, Rosdolsky (2001, p. 227) conclui107 que a explicação para o devir do

capital (na terminologia de Giannotti, da história do vir a ser) não poderia ser encontrada no

próprio modo de produção, isto é, a história do vir a ser, embora essencial para a constituição

do modo de produção, lhe seria algo exterior. Consequentemente Rosdolsky não poderia aceitar

a noção de Giannotti de que um dado modo de produção seria entrecruzado por duas ordens de

explicação.

Como obra aberta, o próprio Marx dá margem para essa afirmação de Rosdolsky:

“(...) as condições que precediam a criação do capital excedente I (...) não pertencem à esfera

do modo de produção ao qual o capital serve de pressuposto.” (Marx, 2011, p.378, MEGA

II/1.2 p.368). Contudo, Rosdolsky reavalia essa posição ao final de seu capítulo 20 sobre a

acumulação primitiva. Observa o comentador:

É claro que, antes de o modo de produção capitalista se impor, foi necessário desfazer a unidade original entre os produtores e as condições de produção; os primeiros, perdendo a posse dessas condições de produção, e portanto de seu ‘fundo de trabalho’, também perderam ‘a função de acumular’. Desse ponto de vista, a acumulação primitiva é um elemento constituinte da relação capitalista e está ‘contida no conceito de capital’. (Rosdolsky, 2001, p. 234).

Essa matização da posição de Rosdolsky é em vistas de uma discussão com a

literatura secundária mobilizada por ele, como, por exemplo, Rosa Luxemburgo. Ela

considerava a acumulação primitiva apenas uma digressão de caráter histórico. Para se

contrapor à posição de Luxemburgo, Rosdolsky cita o seguinte trecho de Marx:

107 “Daí, porém, se deduz que as condições para o devir do capital não estão contidas no modo de produção capitalista; devem encontrar uma explicação fora dele”. (Rosdolsky, 2001, p. 227).

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Mas o capital, para vir a ser, pressupõe uma certa acumulação, que já está presente na antítese autônoma do trabalho objetivado frente ao trabalho vivo, na existência autônoma dessa antítese. Essa acumulação, necessária ao devir do capital, que já está contida, portanto, em seu conceito como pressuposto – como um momento -, precisa ser essencialmente diferenciada da acumulação do capital que já deveio capital, na qual já têm de existir capitais. (Marx, 2011, p. 251, MEGA II/1.1 p. 236-7, grifo no original, destaque nosso).

A questão da acumulação primitiva indica o processo histórico de surgimento do

capital. Há certos pressupostos históricos que precisam se tornar condições históricas. Um dos

aspectos deste processo de dissolução dos modos de produção anteriores é a disseminação dos

trabalhadores livres.

Aliás, ali onde esses trabalhadores livres proliferam e essa relação se dissemina, o antigo modo de produção – comunal, patriarcal, feudal etc. – está em dissolução e já se prepara os elementos para o trabalho assalariado efetivo. Mas esses serventes livres também podem surgir e desaparecer novamente, como, p.ex., na Polônia, sem que o modo de produção se altere. (Marx, 2011, p. 386, MEGA2 II/1.2 p. 377, G. p.373).

Aqui Marx diferencia o processo de surgimento do capital em relação às forças

produtivas e às relações de produção herdadas e o capital plenamente instituído como sistema

fechado no qual “cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto” (MARX, 2011, p. 217).

Assim todo modo de produção teria uma história de seu próprio vir a ser, e a história

de sua manutenção como modo de produção. Contudo, não se trata de dois momentos

estanques, a própria história efetiva se infiltraria nos modos de produção, espécie de imbricação

entre efetividade e reprodução categorial. Isso reaparece no texto de Formen na distinção entre

pressupostos externos (históricos) e internos (sistêmicos).108

Na acumulação primitiva, Rosdolsky identifica a investigação das condições

prévias do capital com a “acumulação primitiva de capital”. A partir de Marx (2011, p. 380-1),

Rosdolsky elabora uma lista de quatro condições para o surgimento da relação de produção

capitalista. (I.) Disponibilidade da capacidade viva de trabalho, isto é, a mercadoria força de

trabalho tem de estar disponível no mercado. (II.) O valor contraposto à capacidade viva deve

ser de uma magnitude tal que seja capaz de absorver a mais-valia produzida. (III.) Relação ou

contrato de trabalho tem que ser ao menos formalmente livre entre as partes. Isto é, estão

descartadas formas de coerção do trabalho extraeconômicas. Por fim, uma das condições mais

importante, (IV.) a parte que se constitui como valor autônomo frente à capacidade de trabalho

deve ter por objetivo gerar mais valor do que originalmente existente antes da troca.

108 Balibar já havia percebido a diferença entre pressupostos e condições históricas no Formen: “Esse movimento é sobremodo nítido na construção do texto das Formações Econômicas..., já que depende da atuação de dois conceitos: o dos pressupostos (Voraussetzungen) do modo de produção capitalista, pensados a partir da sua estrutura, e o das condições históricas (historische Bedingungen) nas quais esses pressupostos são satisfeitos.” (Balibar, 1980, p. 243; 1969, p. 186-7).

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O simples intercâmbio de trabalho por dinheiro, sem o objetivo de gerar mais valia,

seria simples serviço, ou seja, trabalho não capitalista. Pois “(...) a relação capitalista só se

estabelece quando o comprador da força de trabalho compra mercadorias que lhe servem como

meio para conservar e multiplicar os valores que estão em seu poder.” (Rosdolsky, 2001, p.

230).

Convém notar que não é óbvia a existência de um trabalhador “livre” ou

despossuído. Pois todos os modos anteriores se baseavam em uma certa unidade entre produtor

e condições de produção. Afirma Rosdolsky (2011, p. 230): “O modo de produção de épocas

anteriores se baseava na unidade original do produtor e das condições de produção”. Baseando-

se nos Formen, Rosdolsky elenca algumas condições do modo de produção capitalista do lado

do trabalhador: (i.) a capacidade viva de trabalho deve estar desvinculada da terra; (ii.) o

produtor direto deve deixar de ser proprietário dos instrumentos de trabalho; (iii.) o produtor

direto não deve mais possuir os meios de consumo.

Isto porque o trabalhador encontrar as condições objetivas do trabalho separadas dele como capital, e o capitalista encontrar o trabalhador privado de propriedade como trabalhador abstrato (...) supõe um processo histórico– por mais que o capital e o trabalho assalariado reproduzam essa relação e a elaborem em sua extensão objetiva, bem como em sua profundidade -, um processo histórico que, como vimos, constitui a história da gênese do capital e do trabalho assalariado. (Marx, 2011, p. 400, grifado do autor, Formen).

Em resumo, não bastam um certo acúmulo de riqueza na forma de dinheiro e um

certo desenvolvimento comercial ou um certo desenvolvimento das trocas para se estabelecer

as condições de surgimento do capital. Um outro fator também é importante. É preciso ser

possível encontrar no mercado essa nova mercadoria, a força de trabalho ou a capacidade viva

de trabalho. Este trabalhador livre tem de estar despossuído dos meios de trabalho, da posse da

terra, assim como ele não pode contar com meios próprios de consumo. A simples existência

de fortuna em forma de dinheiro não é o suficiente para surgir o capital, exemplos desta situação

histórica seriam a Roma antiga e Bizâncio. Observa Marx:

É evidente (...) que, de fato, a época da dissolução dos modos de produção precedentes e das formas anteriores de comportamento do trabalhador em relação às condições objetivas do trabalho é ao mesmo tempo uma época em que a fortuna em dinheiro, por um lado, já se desenvolveu em certa extensão e, por outro, cresce rapidamente e se amplia em virtude das mesmas circunstâncias que aceleram aquela dissolução. Ela própria é ao mesmo tempo um dos agentes daquela dissolução, assim como aquela dissolução é a condição de sua transformação em capital. (Marx, 2011, p. 416, grifo no original).

A grande vantagem dos Formen é estabelecer que ambos momentos mais gerais

necessários para o capital, tais como as condições objetivas de trabalho e a capacidade viva de

trabalho, já existiam anteriormente à própria relação capitalista de produção. Só que eles

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existiam em algum grau de união; essa separação é que foi um processo histórico. (Cf. Marx,

2011, p. 417, Formen).

Todos esses momentos [Momente] estão presentes; sua própria separação é um processo histórico, um processo de dissolução, e é este que capacita o dinheiro a transformar-se em capital. (Marx, 2011, p. 417, MEGA II/1.2, p. 409, grifado no original)

De outro lado, a análise da acumulação primitiva, além de ser um momento da

constituição categorial do capitalismo, também serve para mostrar um dos erros dos próprios

economistas burgueses:

Os economistas burgueses, que consideram o capital como uma forma de produção eterna e natural (não histórica), tentam então justifica-lo novamente expressando as condições de seu devir como as condições de sua efetivação atual, i.e., expressando os momentos em que o capitalista ainda se apropria como não capitalista – porque ele só está devindo capitalista – como as verdadeiras condições em que apropria como capitalista. (Marx, 2011, p.378, MEGA II/1.2 p.369, grifado no original).

Na reconstrução proposta por Giannotti (1985, p.203ss) para as condições da troca,

admitida a troca, toda riqueza deveria provir do próprio trabalho, mas mesmo assim há uma

evidente desigualdade de rendimentos na sociedade capitalista. Para dar conta desta questão, os

economistas clássicos estipularam uma acumulação primitiva, para explicar a riqueza antes da

sociedade capitalista como causa da riqueza na sociedade capitalista. A primeira objeção a ser

feita, como a citação de Marx acima indica, é que esses economistas confundem a história do

vir a ser com a história contemporânea. Se, assumindo a premissa deles como correta, houve

uma desigualdade de riqueza no início da troca, por que, então, o sistema capitalista a perpetua

ou, até mesmo, a aumenta? A desvantagem de ponto de partida histórico não pode explicar a

perpetuação do acúmulo de capital de um lado e de pobreza de outro na atualidade do sistema

capitalista. Com isso, teríamos que separar a questão entre, de um lado, um problema histórico

e, de outro, um sistêmico. Como sintetiza Giannotti (1985, p. 204): “É preciso em suma elucidar

por que o privilégio histórico mantém-se no sistema.”.

Neste ponto surge o problema do método dialético: se ele tem limite e se esse limite

é a história ou o recurso à história, como afirma Müller (1983, p. 35). Há dois momentos claros

nos escritos de Marx que indicam a necessidade de se tomar um certo distanciamento do

desenrolar puramente lógico das categorias:

Por outro lado, o que é muito mais importante para nós, o nosso método indica os pontos onde a análise histórica tem de ser introduzida, ou onde a economia burguesa, como simples figura histórica do processo de produção, aponta para além de si mesma, para modos de produção anteriores. (Marx, 2011, p. 378, MEGA II/1.2 p. 369).

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Mostra-se neste ponto determinadamente como a forma dialética da apresentação [Darstellung] é correta [richtig] somente quando ela conhece seus limites [Grenzen]. (Marx, 1953, p. 945 e MECW, v.29, p. 505).

Isto é, podemos afirmar que as categorias não se desdobram de modo puramente

lógico uma a partir da outra, não se trata de uma dialética meramente conceitual.109 Isso

pareceria sugerir que a forma dialética da apresentação empreendida por Marx encontraria seu

limite ao recorrer à história para explicitar seu movimento conceitual.

Em certo sentido, Giannotti também caminha nessa direção. Sobre a análise

categorial e histórica, afirma o autor: “Conforme o sistema vai se determinando, mais carregada

de história se torna a passagem duma categoria a outra. Segue-se o progressivo aumento do

grau de indefinição do sistema.” (Giannotti, 1985, Prefácio a 2a ed., s/p). Infelizmente um

tratamento minucioso desta questão nos levaria a escrever um outro trabalho. Por isso

remetemos ao artigo de Reichelt (2007).

Em resumo, há uma patente imbricação entre história e sistema. Ou, para utilizar a

terminologia proposta por Giannotti, entre história do vir a ser e história contemporânea. A

reprodução atual de um sistema de categorias possui uma história de surgimento, assim como

a própria mudança social vai se infiltrando na reprodução categorial, alterando a própria teia

categorial que uma sociedade reproduz.

Há, como vimos, diversos debates sobre o estatuto e os sentidos de partes dos

Grundrisse e do conjunto dos cadernos de 1857-1858. Parece-nos que diante disso é importante

tomar um ponto de referência. Isso se deu em duas frentes. Escolhemos como categoria

privilegiada para investigar os cadernos a categoria de modo de produção. Essa escolha

implicou afastar algumas reconstruções possíveis da obra de 1857-1858. Se Dussel e Negri

tratam do todo da obra, eles, infelizmente, não se guiam por essa categoria.

Nesse sentido, encontramos um apoio em Rosdolsky que organizou o todo dos

Grundrisse e nos forneceu uma pista: a centralidade do capital fixo. Além disso, encontramos

em Giannotti uma forma interessante de separar duas ordens de consideração existentes no

modo de produção capitalista: história do vir a ser e história contemporânea.

Nos próximos capítulos vamos investigar o capital fixo como índice de

desenvolvimento do modo de produção capitalista e a diferença entre modo de produção

capitalista e modo de produção especificamente capitalista.

109 “Tal como antes, quando foi necessário compreender a evolução das categorias econômicas como sendo o desenvolvimento dialético daquilo que já está contido no conceito de capital, também agora não podemos lidar com uma mera dialética conceptual”. (Rosdolsky, 2001, p. 227).

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Capítulo II – Surgimento do modo de produção (especificamente)

capitalista O tema subjacente deste capítulo é a relação entre a categoria de modo de produção

e a de capital. Em diversos momentos dos cadernos de 1857-1858 afirma Marx que o capital

precisa criar o “modo de produção que corresponde ao seu conceito”. Isso significa investigar

dois temas: (i.) a transição do feudalismo ao capitalismo, quando o capital herda os meios de

trabalho do feudalismo e passa a reorganizar o processo produtivo; (ii.) quando o capital produz

o modo de produção que corresponde ao seu conceito, isto é, quando chegamos ao estágio do

modo de produção especificamente capitalista. Essas passagens, como já vimos

preliminarmente ao final do capítulo I, são um longo processo histórico e lógico, vamos

investigar neste capítulo alguns desses passos.

Há, contudo, uma hipótese implícita que só encontrará uma exposição adequada no

conjunto da dissertação e, particularmente no capítulo III, qual seja, a de que o capital fixo se

torna um índice de desenvolvimento do próprio desenvolvimento capitalista.110 Há três ordens

de razões para o capital fixo desempenhar esse papel de índice de desenvolvimento: (i.) somente

em figura adequada do capital fixo, a da grande indústria, o capital se estabelece plenamente;

(ii.) a produção de capital fixo indica que a produção de bens de consumo imediato pode

esperar; (iii.) o capital fixo é a forma objetiva do desenvolvimento das forças produtivas. Dito

isso, examinemos o nosso problema.

Da ótica do surgimento do capital, este se apropria do processo de trabalho do modo

de produção pregresso. A reorganização efetuada é meramente formal. No processo de trabalho,

o capital encontra – e, não só encontra, como também precisa comprar – no mercado o material

de trabalho (matéria-prima), meios de trabalho e trabalho vivo. São condições lógicas e

históricas para o surgimento do capital. Particularmente a história do surgimento do trabalhador

livre precisou ser explicada por Marx, como vimos anteriormente. Essas são determinações do

processo produtivo como valor de uso, como processo real ou efetivo do trabalho. Mas o capital

não se esgota nisso, ele também é processo de valorização. Neste sentido, o capital pressupõe

também um certo acúmulo de riqueza na forma dinheiro para poder começar seu processo de

110 “[a] força produtiva da sociedade é medida pelo capital fixo [Capital fixe], existe nele em forma objetiva [gegenständlicher Form] (...)” (MARX, 2011, p. 582; MEGA2 II/1.2, p. 573, Caderno VI, Capítulo do Capital). Ou ainda: “(...)a dimensão que o capital fixo [Capital fixe] já possui e que sua produção ocupa na produção total é igualmente critério do desenvolvimento da riqueza fundada no modo de produção do capital.” (MARX, 2011, p. 592; MEGA2 II/1.2, p. 585-6, Caderno VII, Capítulo do Capital).

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autovalorização. Trata-se de um longo processo para o capital conseguir colocar em pé um

modo de produção que corresponda às suas determinações conceituais.

Esse primeiro apropriar-se do processo de produção da tradição não o modifica

substancialmente, sendo assim, a mais-valia é extraída pelo aumento da jornada de trabalho

(mais-valia absoluta). Com isso, vemos que o modo de produção capitalista não surge do nada,

ele necessariamente se apropria das técnicas e meios de produção já existentes. Isso significa,

de um lado, que a relação capitalista de produção surge primeiro em relação à força produtiva

especificamente capitalista. Afinal, o que teria se modificado em termos de força de produção

dessa passagem do feudalismo ao capitalismo? Se o modo de produção capitalista surgente se

apropria das condições herdadas, significa que os meios de trabalho e os meios de produção são

herdados nas formas dadas. Eles se revestem da forma capitalista formalmente, como dissemos.

Consequentemente o trabalho é subjugado formalmente ao capital, pois os meios de trabalho e

os meios de produção ainda não são adequados ao conceito de capital, o capital ainda não se

tornou seu próprio pressuposto no processo produtivo, e, deste modo, ainda não surgiu o modo

de produção que lhe é adequado. Só com o avanço das forças produtivas – e com isso dos meios

de trabalho e produção – que temos então a subsunção real. Contudo, convém lembrar de que

uma das figuras centrais que muda é o meio de trabalho, lido na chave de capital fixo. Com

isso, estando o capital fixo revestido de sua forma adequada, a extração de mais-valia é a

relativa, através da diminuição da jornada de trabalho paga em proporção à jornada de trabalho

extorquida do trabalhador.111

Ademais, o próprio processo histórico e lógico de desenvolvimento do capital está

justificado internamente através de seu próprio conceito, pois as armas do capital para trazer

abaixo os modos de produção pregressos são a expansão da circulação, a criação do mercado

mundial, o comércio e a concorrência.

1. Surgimento do modo de produção capitalista

(...) até que ponto o próprio processo de produção geral [allgemeine Productionsprocess] é modificado historicamente, tão logo aparece exclusivamente como elemento do capital, isso é algo que tem de resultar do desenvolvimento do capital (...). (Marx, 2011, p. 251; MEGA2 II/1.1, p. 237).

Em diversas passagens, como veremos ao longo desta dissertação, Marx afirma que

o capital cria o modo de produção que lhe corresponde (ao seu conceito), estabelecendo uma

111Balibar (1980, p. 193ss; 1969, p.126ss) analisa a diferença entre subsunção formal e real ao capital em termos de defasagem cronológicas dos elementos da estrutura social. Afinal, a relação capitalista surge, mas ela não é ainda especificamente capitalista. Para Balibar, a subsunção real seria a explicação da correspondência entre relações de produção e forças produtivas, formulação esta que aparece no prefácio ao Para Crítica.

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espécie de tensão entre modo de produção ainda não capitalista sendo direcionando pelo capital.

Isso fica claro no caso da agricultura moderna que é produto da ação do capital sobre a

propriedade fundiária pregressa.112

Tanto por sua natureza quanto historicamente, o capital é o criador da moderna propriedade fundiária, da renda da terra; por isso, sua ação aparece igualmente como dissolução da forma antiga da propriedade fundiária. A nova forma emerge da ação do capital sobre a antiga. (Marx, 2011, p. 215, MEGA2 II/1.1 p.199, Caderno II, Capítulo do Capital)

O capital aos poucos vai criando o trabalho assalariado na agricultura, isso não se

trata de uma simples diferença formal “mas pressupõe uma reconfiguração total do próprio

modo de produção (da agricultura)” (Marx, 2011, p. 216; MEGA2 II, p. 201, sublinhado no

original, em itálico na tradução). Pois o capital é o “criador da agricultura moderna” (Marx,

2011, p. 215). Observa Marx que o próprio trabalho assalariado em um primeiro momento é

introduzido de fora, para então se tornar fundamento semovente:

(...) o trabalho assalariado em sua totalidade é inicialmente criado pela ação do capital sobre a propriedade fundiária e, posteriormente, tão logo esta está desenvolvida como forma, pela ação do próprio proprietário fundiário (Marx, 2011, p. 215)

Não podemos esquecer que a própria disseminação do trabalha assalariado é um

indício da caducidade dos modos de produção anteriores. Em outro momento, sobre a

acumulação primitiva, escreve Marx:

Aliás, ali onde esses trabalhadores livres proliferam e essa relação se dissemina, o antigo modo de produção – comunal, patriarcal, feudal etc. – está em dissolução e já se prepara os elementos para o trabalho assalariado efetivo. (Marx, 2011, p. 386, MEGA2 II/1.2 p. 377, G. p.373).

Se, de um lado, o próprio desenvolvimento do capital, particularmente, o do capital

industrial pressupõe a dissolução de formas pregressas de renda e de trabalho, nem por isso, de

outro lado, essa nova forma surge espontaneamente. Observa Marx:

É preciso considerar que as novas forças produtivas e relações de produção não se desenvolvem do nada, nem do ar nem do ventre da ideia que se põe a si mesma; mas [o fazem] no interior e em oposição [sondern innerhalb und gegensätzlich] do desenvolvimento da produção existente e das relações de propriedade

112 “A propriedade fundiária moderna, por comparação, não pode de modo algum ser compreendida sem o pressuposto do capital, porque não pode existir sem ele e aparece historicamente de fato como uma forma engendrada pelo capital, posta como forma adequada a ele, da configuração histórica precedente da propriedade fundiária. Por essa razão, é precisamente no desenvolvimento da propriedade fundiária que podem ser estudadas a vitória e a formação progressiva do capital (...)A história da propriedade fundiária que mostrasse a transformação progressiva do senhor feudal em rentista fundiário, do arrendatário vitalício por herança, semitributário e frequentemente privado de liberdade no moderno fazendeiro, e dos servos da gleba e do camponês sujeito a prestação de serviços no assalariado rural, seria de fato a história da formação do capital moderno.”. (Marx, 2011, p. 194-5).

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[Eigenthumsverhältnisse] tradicionais herdadas. (Marx, 2011, p. 217, MEGA2 II/1.1 p.201, Caderno II, Capítulo do Capital, trad. modificada).

Marx discute, como visto, como o capital capta e parte das formas herdadas de

produção, no caso do texto trata-se das formas herdadas da agricultura, e as reconfigura em

sentido capitalista ao estabelecer o trabalho assalariado ali. Nesse sentido, neste reconfigurar

do modo de produção da agricultura poderia ser entendido que o papel histórico do capital seria

o de trazer o trabalho assalariado à propriedade fundiária ao modificar especificamente as

relações de produção e as forças produtivas no ramo da agricultura. Temos então três

movimentos: o capital herda as forças produtivas e as relações de produção tradicionais (Marx,

2011, p. 217) que ele trabalha por dissolver (Marx, 2011, p. 215) ao reconfigurar o modo de

produção. Ou seja, o capital na medida em que se consolida e produz um modo de produção

que lhe corresponde vai modificando as formas de produção ainda arcaicas a partir das quais

ele se ergueu.

Esta temporalidade múltipla do capital, o qual pode já estar estabelecido em um

dado ramo em um país, mas não em outros ramos deste mesmo país foi algo característico até

mesmo da Inglaterra. Observa Marx:

Até mesmo no interior de uma sociedade como a inglesa, o modo de produção do capital [Productionsweise des Capitals] desenvolve-se em um ramo da indústria, ao passo que no outro, como, p.ex., na agricultura, predominam [herrschen] em maior ou menor grau modos de produção que precedem o capital. (Marx, 2011, p. 610; MEGA2 II/1.2, p. 605, Caderno VII).

Em outro momento do capítulo do capital, Marx (2011, p. 486ss) discorre sobre as

diferentes formas de existência do capital e como ele se apropria dos meios de produção,

impingindo-lhes uma forma capitalista. Para o autor, só há duas formas adequadas para o modo

de produção baseado no capital: a manufatura ou a grande indústria. Escreve Marx:

O capital produtivo, ou o modo de produção correspondente ao capital [oder die dem Capital entsprechende Productionsweise], só pode existir em duas formas: manufatura ou grande indústria. (Marx, 2011, p. 486, MEGA2 II/1.2, p. 477-8, Caderno VI).

Isso significa que o capital precisa partir da base produtiva pregressa e aos poucos

vai moldando-o conforme seu conceito. Na manufatura, o capital só submete o trabalho

formalmente, aumentando a divisão do trabalho, para tanto o capital precisa de uma grande

massa de trabalhadores. Escreve Marx: “(...) [na manufatura] a massa de trabalhadores tem de

ser grande em relação a amount of capital (...) desenvolvimento peculiar da manufatura é a

divisão do trabalho” (Marx, 2011, p. 486, MEGA2 II/1.2, p. 477, em inglês no original, trad.

modificada). Contudo, quando o capital surge nem mesmo a forma da manufatura com sua

divisão do trabalho está disponível ao capital. Primeiramente, o capital que surge parte

necessariamente da simples cooperação ao reunir sob o teto de um único capitalista os

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trabalhadores. Se, sob a manufatura, o capital ainda não estabeleceu o modo de produção que

lhe corresponde, menos ainda, na altura da simples cooperação, este modo de produção

especificamente capitalista foi alcançado.

Nesse caso [da simples cooperação], portanto, o próprio modo de produção não é determinado pelo capital, mas ele o encontra pronto [Hier ist also die Productionsweise selbst noch nicht von ihm bestimmt, sondern von ihm vorgefunden] (Marx, 2011, p. 487, MEGA2 II/1.2, p. 477, em itálico no original).

A reunião dos trabalhadores pelo capital é só formal (cf. Marx, 2011, p. 487).

Somente na manufatura isso começa lentamente a mudar, e produção começa a ganhar os

contornos de uma produção capitalista adequada ao conceito de capital. Quando o capital

“reúne os trabalhadores em um local sob seu comando, em uma manufatura, não os deixa mais

no modo de produção em que os encontrara [in der vorgefundnen Productionsweise] e

estabelece seu poder [Macht] sobre essa base, mas cria como base para si um modo de produção

que lhe corresponde [sondern eine ihm entsprechende Productionsweise als Basis sich schafft].”

(Marx, 2011, p. 487, MEGA2 II/1.2, p. 478).

Neste estágio da manufatura, nós nos encontramos no estágio da subsunção formal

do trabalho ao capital, e consequentemente no estágio da mais-valia absoluta.

Considerando o mais-valor absoluto, ele aparece determinado pelo prolongamento absoluto da jornada de trabalho para além do tempo de trabalho. (...). Nesse nível, a diferença entre a produção do capital e a produção de estágios anteriores é ainda simplesmente [noch nur] formal. (...) Mas na segunda forma do mais-valor, como mais-valor relativo (...) aparece como desenvolvimento da força produtiva dos trabalhadores, nessa forma aparece imediatamente o caráter industrial e distintamente histórico do modo de produção fundado sobre o capital [das Capital gegründeten Productionsweise].113 (Marx, 2011, p. 644-5, MEGA2 II/1.2, p. 639-640, os destaques são nossos).

Marx fala em diferença somente [nur] formal quando estamos neste estágio da

mais-valia absoluta, isto é, quando o capital fixo ainda não está revestido da forma da grande

indústria. O autor deixa claro que é só na forma de mais-valor relativo que o capitalismo está

assentando em suas próprias bases. Escreve Marx:

Assimilado ao processo de produção do capital, o meio de trabalho [Arbeitsmittel] passa por diversas metamorfoses, das quais a última é a máquina (...) o automático é apenas a sua forma mais adequada, mais aperfeiçoada (...) (Marx, 2011, p. 580; MEGA2 II/1.2, p. 571, Caderno VI, grifado no original).

No trecho citado anteriormente essa forma adequada aparece como mais-valia

relativa que mostra “o caráter industrial e distintamente histórico do modo de produção fundado

113 “Na máquina e mais ainda na maquina[ria] como um sistema automático, o meio de trabalho é transformado quanto ao seu valor de uso (...) em uma existência adequada [adaequate Existenz] ao capital fixo [Capital fixe] (...)” (Marx, 2011, p. 580; MEGA2 II/1.2 p. 571, Caderno VI, destaques são nossos).

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sobre o capital [das Capital gegründeten Productionsweise].” (MARX, 2011, p. 644-5, MEGA2

II/1.2, p. 639-640). Poderíamos pensar que até aqui estamos no nível da reposição categorial

do capital, portanto, estaríamos falando de história contemporânea.

Porém, neste ponto de sua argumentação, Marx intercala considerações mais

categoriais com o devir propriamente histórico, que, na terminologia de Giannotti, seria história

do vir a ser. Quanto à primeira forma, a da subsunção formal, descreve Marx a situação

histórica com cores fortes.

A primeira forma [mais-valia absoluta] corresponde à transformação violenta da maior parte da população em trabalhadores assalariados e à disciplina que transforma sua existência na de meros trabalhadores. Durante 150 anos, p.ex., desde Henrique VII, os anais da legislação inglesa contêm, escritas com sangue, as disposições punitivas que foram empregadas para transformar em trabalhadores assalariados livres a massa da população que se tornara sem propriedade e livre. A supressão dos séquitos, o confisco dos bens das igrejas, a supressão das guildas e o confisco de suas propriedades, a expulsão violenta da população do campo por meio da transformação da terra agrícola em pastagens, o cercamento das áreas comuns etc., tinham posto os trabalhadores como simples capacidade de trabalho [Arbeitsvermögen] (...) (Marx, 2011, p. 645, MEGA2 II/1.2, p. 640-1).

Já para as considerações do devir histórico da mais-valia relativa, Marx é mais

sucinto e remete a Owen. “Algo parecido [com o que aconteceu na mais-valia absoluta] se

repete com a introdução da grande indústria, das fábricas funcionando com máquinas. Cf.

Owen.” (Marx, 2011, p. 645, MEGA2 II/1.2, p. 641, Cad. VII).

Na manufatura, está em jogo a existência de um excedente de tempo absoluto, não

relativo como na grande indústria (Cf. Marx, 2011, p.488). Descrevamos agora um pouco a

grande indústria. Nela o que está em questão é o poder [power] científico, cujo índice é o

aumento do capital fixo. Somente neste ponto temos a subsunção real do trabalho ao capital,

surgindo assim o modo de produção correspondente ao conceito de capital. Observa Marx:

[na grande indústria] combinação de forças de trabalho (...) e aplicação do Power científico (...) o capital fixe tem de ser grande em relação ao número dos muitos trabalhadores operando conjuntamente. (Marx, 2011, p. 486, MEGA2 II/1.2, p. 477, em inglês e em francês no original, trad. modificada).

O princípio de desenvolvimento do capital, qual seja, o de tornar a habilidade

específica de cada trabalhador algo supérfluo só pode ser plenamente alcançada na grande

indústria.114

O princípio desenvolvido do capital é justamente tornar supérflua a habilidade particular e tornar supérfluo o trabalho manual, o trabalho físico imediato em geral,

114 Em sentido semelhante: “(..) no capital fixo [Capital fixe], a força produtiva social do trabalho é posta como propriedade inerente ao capital; tanto a capacidade científica quanto a combinação de forças sociais no interior do processo de produção e, finalmente, a habilidade do trabalho imediato transposta para a máquina, para a força produtiva morta.” (MARX, 2011, p. 597, grifado no original, destaque nosso)

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seja como trabalho especializado, seja como esforço muscular; melhor dizendo, consiste em colocar a perícia nas forças mortas da natureza. (MARX, 2011, p. 488)

No entanto, esse princípio de desenvolvimento das forças produtivas, traduzido no

excerto acima como se valer da “perícia” das “forças mortas da natureza”, não opera

plenamente no estágio da manufatura.

Ora, como o pressuposto da gênese [Entstehung] da manufatura como gênese do modo de produção do capital [als Entstehung der Productionsweise des Capitals] (...) é pressuposto que ainda não existe a força produtiva do trabalho que é criada primeiramente pelo próprio capital. (Marx, 2011, p. 488, MEGA2 II/1.2, p. 479, destaque nosso).

É bom frisar que quando o capital surge ele não surge em sua forma plenamente

desenvolvida, mas antes em estado embrionário e, muitas vezes, dependente das formas

pregressas. Nesse sentido, observa Marx: “Enquanto o capital é fraco, ele próprio procura ainda

apoiar-se nas muletas dos modos de produção do passado ou que estão desaparecendo com o

seu surgimento.” (Marx, 2011, p. 546).

O capital tem um impulso interno para o desenvolvimento das forças produtivas115

ao mesmo tempo em que para surgir o capital precisa supor um certo acúmulo anterior dessas

mesmas forças produtivas.

(...) a tendência do capital é conferir à produção um caráter científico, e o trabalho direito é rebaixado a um simples momento desse processo. (...) o exame mais preciso do desenvolvimento do capital mostra que, por um lado, ele pressupõe um determinado desenvolvimento histórico das forças produtivas (...) por outro lado, as impulsiona e força [vorantreibt und forcirt]. (Marx, 2011, p. 583).

Seguindo essa argumentação, Rosdolsky (2001, p. 301) descreve a “crescente

importância do capital fixo no modo de produção capitalista desenvolvido”. Isto é, o capital

quando surge se apropria dos meios de trabalho já estabelecidos pela tradição, ele se apropria

dos meios de trabalho que já circulam, com essa apropriação, os meios de trabalho tornam-se

conceitualmente capital fixo. Porém, é somente quando os meios de trabalho são reelaborados

em forma capitalista, quando do surgimento da máquina, neste momento em que o capital fixo

alcança sua forma especificamente capitalista, é que temos o modo de produção

especificamente capitalista.

Portanto, o desenvolvimento pleno do capital só acontece – ou o capital só terá posto o modo de produção que lhe corresponde [das Capital hat erst die ihm entsprechende Productionsweise gesetz] – quando o meio de trabalho é determinado como capital fixo [Capital fixe] não só formalmente (...) e o capital fixo [Capital fixe] se defrontar com o trabalho como máquina no interior do processo de produção;

115 “Como vimos, a tendência necessária do capital é o aumento da força produtiva do trabalho e a máxima negação do trabalho necessário. A efetivação dessa tendência é a transformação do meio de trabalho [Arbeitsmittels] em maquinaria.” (Marx, 2011, p. 581; MEGA2 II/1.2 p. 573, Caderno VI).

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quando o processo de produção em seu conjunto, entretanto, não aparece como processo subsumido à habilidade imediata do trabalhador, mas como aplicação tecnológica da ciência. (Marx, 2011, p. 583, MEGA2 II/1.2 p. 574, Caderno VII, grifo no original, destaque nosso).

O impulso de transformar as formas herdadas na figura da maquinaria é justificado

pelo próprio conceito do capital. Em oposição a certas correntes econômicas, não é a

concorrência entre capitais a fonte explicativa para o surgimento da grande indústria; antes, o

surgimento mesmo de ambas formas (manufatura e grande indústria) está contido no

desenvolvimento conceitual do capital. Neste sentido, Marx ressalta que a passagem do meio

de trabalho (capital fixo) à maquinaria não é casual. Escreve o autor:

O desenvolvimento do meio de trabalho em maquinaria não é casual para o capital, mas é a reconfiguração do meio de trabalho tradicionalmente herdado em uma forma adequada ao capital. (...) A maquinaria aparece, portanto, como a forma mais adequada do capital fixo [capital fixe] (Marx, 2011, p. 582).

Esse movimento de herdar o meio de trabalho tradicional não é somente

característico da grande indústria, isso também ocorre durante a manufatura. No entanto, a

mudança de meio de trabalho em capital fixo, no estágio da manufatura, é apenas formal, de

acordo com Marx:

Enquanto continua sendo meio de trabalho [Arbeitsmittel] no sentido próprio do termo, tal como levado direta e historicamente pelo capital para dentro de seu processo de valorização, o meio de trabalho experimenta unicamente uma mudança formal, no sentido de que, agora, do ponto de vista material, ele aparece [erscheint] não só como meio do trabalho [Mittel der Arbeit], mas ao mesmo tempo como um modo de existência particular [besondre Daseinsweise] dele, determinado pelo processo total do capital – como capital fixo [Capital Fixe]. (Marx, 2011, p. 580; MEGA2 II/1.2 p.571, Caderno VI, destaque nosso).

Ora, mas o modo de existência particular adequado ao conceito de capital fixo não

é o herdado da tradição, o modo de existência adequado tem de ser alcançado. De um lado,

temos a primeira metamorfose formal do meio do trabalho herdado da tradição. De outro lado,

há uma outra série de metamorfoses até se alcançar a figura adequada deste meio de trabalho

no modo de produção capitalista.

Assimilado ao processo de produção do capital, o meio de trabalho [Arbeitsmittel] passa por diversas metamorfoses, das quais a última é a máquina ou, melhor dizendo, um sistema automático da maquinaria (sistema da maquinaria; o automático é apenas a sua forma mais adequada, mais aperfeiçoada, e somente o que transforma a própria maquinaria em um sistema) (...) (Marx, 2011, p. 580; MEGA2 II/1.2, p. 571, Caderno VI, grifado no original).

Lembre-se que Marx identifica capital fixo com o meio de trabalho, o qual sofre

diversas “metamorfoses”. O capital fixo torna-se até mesmo o índice de desenvolvimento do

modo de produção capitalista, de quanto o capital produz seu próprio modo de produção.

Hinc o estágio de desenvolvimento já alcançado pelo modo de produção baseado no capital – ou em que medida o próprio capital já é pressuposto, se pressupôs, como

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condição de sua própria produção – mede-se pelo volume existente do capital fixo [capital fixe]; não só por sua quantidade, mas também pela qualidade. (Marx, 2011, p. 597)

Marx retoma a todo momento a noção de que o capital fixo se torna um indicador

do desenvolvimento do capital.

(...) a dimensão quantitativa e a eficácia (intensidade) com que o capital está desenvolvido como capital fixo [Capital fixe] indica o grau [degree] em que o capital está desenvolvido como capital, como o poder sobre o trabalho vivo, e em que submeteu a si o processo de produção como um todo. (Marx, 2011, p. 583; MEGA2 II/1.2, p. 574, Caderno VII).

O grau de desenvolvimento do capital fixo aponta para um dado momento lógico

da produção capitalista, o quanto o próprio capital se torna ao mesmo tempo sujeito da produção

e pressuposto de sua própria produção e reprodução.

Na máquina e mais ainda na maquina[ria] como um sistema automático, o meio de trabalho é transformado quanto ao seu valor de uso, i.e., quanto à sua existência material [stofflichen Dasein], em uma existência adequada [adaequate Existenz] ao capital fixo [Capital fixe] e ao capital como um todo, e a forma em que foi assimilado como meio de trabalho [Arbeitsmittel] imediato ao processo de produção do capital foi abolida [aufgehoben] em uma forma posta [gesetze] pelo próprio capital e a ele correspondente. (MARX, 2011, p. 580; MEGA2 II/1.2 p. 571, Caderno VI, destaque nosso).

A forma adequada é aquela posta pelo próprio capital, quando este torna-se

pressuposto de si mesmo. Se pensarmos na terminologia proposta por Giannotti a partir do

próprio Marx, quando o capital passa a recolocar autonomamente seus pressupostos, temos o

estabelecimento da história contemporânea. Da forma adequada ser colocada pelo próprio

capital, Marx extrai uma consequência interessante de quando o processo de produção é

finalmente dominado pela maquinaria. O processo de produção não é mais processo de trabalho,

visto que esse, o trabalho vivo, é um apêndice do processo de produção. “O processo de trabalho

deixou de ser processo de trabalho no sentido de processo dominado pelo trabalho como

unidade que o governa.” (Marx, 2011, p. 581; MEGA2 II/1.2, p. 572, Caderno VI). O processo

de trabalho passa a ser governado pelos meios de produção ou pelos meios de trabalho. Mas

nem tudo é um mar de rosas com o desenvolvimento das forças produtivas, cujo índice é o

capital fixo.116 Marx faz a ligação entre a tendência do capital em aumentar a força produtiva,

116 (...) o capital fixo [es] expressa a acumulação das forças produtivas objetivadas e igualmente do trabalho objetivado.” / “(...)daß es die Accumulation der vergegenständlichten Productivkräfte ausdrückt und ebenso der vergegenständlichten Arbeit.” (MARX, 2011, p. 583; MEGA2 II/1.2, p. 574, Caderno VII). A tradução da Boitempo recorrentemente interpreta os pronomes pessoais em alemão (es, sie etc), traduzindo-os pelo seu referente. No caso acima, “es” dizia respeito claramente ao “das Capital fixe”. Contudo, cabe um certo cuidado com essa prática tradutória: se, de um lado, facilita – e muito - a leitura; de outro lado, poderia, em casos menos óbvios, embutir uma interpretação.

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a negação do trabalho necessário (expressão das tendências antagônicas do capital) e a

transformação de meio de trabalho em maquinaria117.

Como vimos, a tendência necessária do capital é o aumento da força produtiva do trabalho e a máxima negação do trabalho necessário. A efetivação dessa tendência é a transformação do meio de trabalho [Arbeitsmittels] em maquinaria. (Marx, 2011, p. 581; MEGA2 II/1.2 p. 573, Caderno VI).

Finalmente, convém atentar para o fato de que quando o capital surge ele surge ao

lado de outros modos de produção. A tendência do capital é de submeter à sua lógica o todo da

produção.

As formas históricas originais [ursprünglichen historischen Formen] em que o capital aparece primeiro de maneira esporádica ou local, ao lado [neben] dos modos de produção antigos [alten Productionsweisen], mas explodindo-os pouco a pouco em todos os lugares, são, por um lado, a manufatura (...). (Marx, 2011, p. 420, Formen, MEGA2 II/1.2, p. 413)

Na página seguinte, Marx mistura considerações de ordem da história do vir a ser

e história categorial. Do ponto de vista histórico, o capital para surgir pressupôs a separação do

trabalhador das condições objetivas de trabalho e um certo acúmulo de dinheiro. Do ponto de

vista da reprodução categorial ou sistemática, a qual designamos por história contemporânea,

o capital trabalha para acentuar a separação do trabalhador dos meios de produção e para criar,

de um lado, um polo de riqueza acumulada em forma de capital e, de outro, um polo de pobreza.

Vejamos.

Tendo constatado, assim, que a transformação do dinheiro em capital pressupõe um processo histórico que separou as condições objetivas do trabalho, que as autonomizou em relação ao trabalhador – o efeito do capital assim originado e do seu processo é o de submeter a si toda produção, desenvolver e efetivar em todos os lugares o divórcio entre trabalho e propriedade, entre o trabalho e as condições objetivas do trabalho. No desenvolvimento posterior se evidenciará como o capital destrói (...) a si próprio nas formas em que não aparece em oposição ao trabalho – no pequeno capital e nos gêneros intermediários, gêneros híbridos entre os antigos modos de produção (...) e o modo de produção clássico, adequado ao próprio capital. A única acumulação pressuposta na gênese do capital é a de fortuna em dinheiro (...). (Marx, 2011, p. 421, Formen).

E é exatamente o papel do Formen explicar não a união em diversos níveis do ser

humano com suas condições de trabalho, mas antes explicar a crescente separação, que, como

vimos, é uma das condições ou pressupostos para o surgimento da relação de capital:

Não é a unidade do ser humano vivo e ativo com as condições naturais (...) que precisa de explicação ou é resultado de um processo histórico, mas a separação entre essas condições inorgânicas da existência humana (...), uma separação que só está posta por

117 “Consequentemente, quanto mais desenvolvido o capital, quanto mais trabalho excedente [Surplusarbeit] criou, tanto mais extraordinariamente tem de desenvolver a força produtiva do trabalho para valorizar-se em proporção mínima [in gerigem Verhältniß], i.e., para agregar mais-valor – porque a sua barreira [Schranke] continua sendo a proporção [Verhältniß] entre a fração da jornada que expressa trabalho necessário e a jornada de trabalho total.” (Marx, 2011, p. 269; MEGA2 II/1.1, p. 254, Caderno III, Cap. Capital, trad. modificada).

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completo [vollständig] na relação entre trabalho assalariado e capital. (Marx, 2011, p. 401, Formen)

Marx não cansa de lembrar que esses dois polos, de um lado, trabalhador livre, de

outro lado, capitalista, são não só pressupostos, mas também recolocados na atualidade do

sistema capitalista.

Isto porque o trabalhador encontrar as condições objetivas do trabalho separadas dele como capital, e o capitalista encontrar o trabalhador privado de propriedade como trabalhador abstrato (...) supõe um processo histórico [história do vir a ser, segundo Giannotti]– por mais que o capital e o trabalho assalariado reproduzam essa relação e a elaborem em sua extensão objetiva, bem como em sua profundidade [aqui, história contemporânea] -, um processo histórico que, como vimos, constitui a história da gênese do capital e do trabalho assalariado. (Marx, 2011, p. 400, Formen, grifo do autor).

Em suma, vimos que o processo de surgimento do capital é complexo. Mesmo

quando ele já começa a assentar a sua própria base produtiva é necessário que o capital fixo

atinja a figura da grande indústria para que o capital esteja finalmente se movendo em um modo

de produção que lhe seja adequado. Vejamos a seguir algumas das formas internas ao conceito

de capital para se sobrepor às formações pregressas.

2. As formas de estabelecimento do modo de produção capitalista

O capitalismo, como vimos, surge ao lado de outros modos de produção e, aos

poucos, vai se impondo frente esses modos. Até mesmo dentro de um mesmo país pode existir

uma assimetria, o capital pode ter se apoderado de um ramo produtivo, mas não de outro. Para

isso, é necessário justificar a origem lógica deste impulso particular do capital frente às outras

formações para se expandir. Marx chega em alguns momentos a chamar esta tendência

expansionista do capital como “civilizadora”.

2.1Tendênciasprogressivas:mercadomundialeefeitocivilizador

Há, como vimos, duas formas de mais-valia: a absoluta e a relativa. Para cada

forma, corresponde um grau de desenvolvimento do capital fixo. Cada forma de mais-valia deu

ensejo a tendências e contratendências deste modo de produção em contraposição aos modos

de produção pregressos. Vejamos algumas dessas tendências.

A criação de mais-valor absoluto pelo capital (...) tem por condição a ampliação do círculo [Cirkel] da circulação, e ampliação constante. O mais-valor criado em um ponto requer [erheischt] a criação do mais-valor em outro ponto, pelo qual possa se trocar (...). Por essa razão, uma condição da produção baseada no capital [auf dem Capital basirte Production] é a produção de um círculo [Zirkels] sempre ampliado da circulação, seja o círculo [Kreis] diretamente ampliado ou sejam criados nele mais pontos como pontos de produção. (Marx, 2011, p. 332, MEGA2 II/1.2, p. 320, Cad, IV, grifado no original).

Neste ponto, observa Rosdolsky:

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Neste aspecto, a diferença entre o modo de produção capitalista e as épocas anteriores é muito mais profunda. Vimos que o modo de produção capitalista está de antemão orientado para o valor de troca, e que nele a produção de valores de uso não é uma finalidade, mas um meio. A finalidade é a valorização do capital. Isso significa que o capital deve não só extrair o mais-trabalho, mas também realiza-lo como mais-valia. (Rosdolsky, 2001, p. 194, grifo nosso).

De um lado, o problema da mais-valia encontra sentido somente assentando na base

categorial do modo de produção, e, de outro lado, vemos que o ato mesmo de enunciar as

características do capitalismo só faz sentido porque tais atributos não são, por sua vez,

característicos de outros modos de produção.

A necessidade de ampliar a circulação para que seja possível trocar a mais-valia

criada é denominada por Marx de tendência de “propagar a produção baseada no capital ou o

modo de produção que lhe corresponde. A tendência de criar o mercado mundial está

imediatamente dada no próprio conceito do capital.”118 (Marx, 2011, p. 332, MEGA2 II/1.2, p.

320). Estamos no âmbito do que Mazzucchelli (2004) chamaria de tendências progressivas do

capital. Disso se segue a tendência do capital a se estabelecer frente aos modos de produção

anteriores; para tanto o capital precisa, de um lado, se expandir extensivamente através da

ampliação da periferia da circulação e, de outro, ele precisa transformar toda produção em

produção capitalista. Neste momento, o comércio já está intimamente ligado à própria produção

capitalista. Como veremos abaixo, essa tendência é mais um indício da relação entre capital e

modo de produção:

De início, o capital tem a tendência de submeter cada momento da própria produção à troca, e de abolir a produção de valores de uso imediatos que não entram na troca, i.e., justamente a tendência de pôr a produção baseada no capital [Capital basirte (sic) Production] no lugar de modos de produção anteriores, do seu ponto de vista, espontâneos e naturais [naturwüchsiger]. O comércio não aparece mais aqui como uma função operando entre as produções autônomas para a troca do seu excedente, mas como pressuposto e momento essencialmente universais da própria produção. (Marx, 2011, p. 332, MEGA2 II/1.2, p. 321, destaque nosso).

Antes de avançarmos sobre as tendências do capital em relação à circulação, é

importante alguns comentários sobre o poder dissolvente ou transformador do próprio

comércio. Cabe lembrar que o comércio não objetiva em primeiro lugar o próprio consumo

imediato, mas antes ganhar valor de troca. Como afirma Marx: “A finalidade do comércio não

é diretamente o consumo, mas o ganhar dinheiro, valor de troca.” (Marx, 2011, p. 97). Contudo,

118 O próprio estabelecimento do mercado mundial é lido de forma dupla por Marx. De um lado, é preferível essa conexão coisal universal proporcionada pelo valor de troca aos laços meramente locais (“Essa conexão coisificada é certamente preferível à sua desconexão, ou a uma conexão local (...)” (Marx, 2011, p. 109), por outro lado, o mercado mundial é o indício de uma transição. “No mercado mundial desenvolveu-se em tal nível o nexo do indivíduo singular com todos, mas ao mesmo tempo também a independência desse nexo em relação aos próprios indivíduos singulares, que sua formação já contém simultaneamente a condição de transição para fora dele mesmo.” (Marx, 2011, p. 109).

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historicamente o comércio parte de fora, na troca de excedentes entre comunidades,119 e, ao

mesmo tempo, rearranja internamente o modo de produção. Segundo Marx:

O comércio naturalmente irá retroagir mais ou menos sobre as comunidades entre as quais ele é praticado. Submeterá cada vez mais a produção ao valor de troca; empurrará cada vez mais o valor de uso imediato para o segundo plano; na medida em que torna a subsistência mais dependente da venda que do uso imediato do produto. Dissolve as velhas relações. Com isso, aumenta a circulação do dinheiro. Em um primeiro momento, ele se apodera unicamente do excedente da produção; pouco a pouco, captura esta última. (Marx, 2011, p. 733, MEGA2 II/1.2 p. 721).

Marx designa esse efeito da troca ou do comércio exterior como civilizador.120 Pois,

embora a produção ainda não esteja totalmente capturada pelo valor de troca, o comércio e a

circulação de mercadorias passam a reorganizar em maior ou menor medida a própria

produção.121 O grau de modificação que o comércio ou a circulação impingem em um dado

modo de produção varia em função da intensidade do próprio comércio e dos elementos

internos de um dado modo de produção. Neste sentido, afirma Marx:

(...) a extensão com que o movimento que põe valor de troca afeta a totalidade da produção depende em parte da intensidade desse efeito desde o exterior, em parte do grau já alcançado pelo desenvolvimento dos elementos da produção interna – divisão do trabalho etc. (Marx, 2011, p. 198, MEGA2 II/1.1, p. 179).

A partir daqui, Marx passa a fazer considerações de ordem da história do vir a ser,

ao pensar como foi o processo de modificação do modo de produção na Inglaterra em função

da troca com a Holanda. Observa o autor:

Na Inglaterra, p.ex., no século XVI e início do século XVII, a importação de mercadorias holandesas tornou basicamente decisivo o excedente de lã que o país tinha de dar em troca. Para produzir mais lã, a terra cultivável foi transformada em pastagem para ovelhas, o sistema de pequenos arrendamentos foi desmantelado (...) (Marx, 2011, p. 198, MEGA2 II/1.1, p. 179, Cad. II).

O comércio com a Holanda foi um dos fatores que orientaram a transformação

interna da agricultura na Inglaterra, desarranjando assim o sistema de propriedade fundiária e

de relações de produção anteriores. Continua Marx:

Por conseguinte, a agricultura perdeu o caráter de trabalho visando a produção de valor de uso, e a troca de seu excedente perdeu o caráter indiferente em relação à sua estrutura interna. Em certos pontos, a própria agricultura é inteiramente determinada

119 “A troca direta, na qual o supérfluo da própria produção é trocado fortuitamente pelo supérfluo da produção estrangeira, é apenas a primeira ocorrência do produto como valor de troca em geral e é determinada por necessidades, desejos etc. fortuitos”. (Marx, 2011, p. 151). Em outro momento, afirma Marx (2011, p. 197): “A troca de excedente é um intercâmbio que põe a troca e o valor de troca. Mas afeta apenas a troca [do excedente] e transcorre à margem da própria produção. (...) o impulso à atividade que põe o valor de troca provém do exterior e não da configuração interna da produção (...)”. 120 “É isso que se denomina efeito civilizador do comércio exterior.” (Marx, 2011, p. 198; MEGA2 II/1.1, p. 178-9, Caderno II, Capítulo do Capital). 121 “A organização da própria produção interna já está modificada pela circulação e pelo valor de troca; mas ainda não foi por ela capturada nem em toda sua extensão nem em toda sua profundidade.” (Marx, 2011, p. 198).

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pela circulação, é convertida em produção que põe o valor de troca. (Marx, 2011, p. 198, MEGA2 II/1.1, p. 179, Cad. II).

Com isso, vemos que um processo de troca externo acaba por afetar o ramo

agrícola, orientando-o para a produção de valores trocáveis. Neste sentido, Marx aponta que o

comércio exterior teria um efeito civilizador porque dissolventes das relações de produção

pregressas.

Em certos pontos, a própria agricultura é inteiramente determinada pela circulação, é convertida em produção que põe o valor de troca. Com isso, não só o modo de produção foi modificado, mas foram dissolvidas todas as antigas relações de população e de produção e as relações econômicas a ele correspondentes. (Marx, 2011, p. 198; MEGA2 II/1.1, p. 179, Caderno II, Capítulo do Capital).

Marx, ao final do parágrafo, reafirma o efeito civilizador histórico do comércio:

Assim, nesse caso estava pressuposta à circulação uma produção que criava valores de troca só como excedente; mas ela deu lugar a uma produção que só tinha lugar relacionada à circulação, uma produção pondo valores de troca como seu conteúdo [Inhalt] exclusivo. (Marx, 2011, p. 198; MEGA2 II/1.1, p. 179, Caderno II, Capítulo do Capital).

De um modo de produção no qual os eventuais excedentes eram trocados, a

produção passa se voltar exclusivamente aos valores de troca. Neste ponto o poder do comércio

pareceria irrestrito, podendo moldar qualquer sociedade. Nada mais equivocado. Sabemos que

mesmo tendo havido comércio na antiguidade, não foi possível surgir a relação capitalista de

produção. Sobre isso, desenvolve Marx:

Contudo, o efeito dissolvente depende muito da natureza das comunidades produtoras [Producirenden Gemeinwesen] entre as quais opera [operirt]. P.ex., [ele] praticamente não abalou as antigas comunidades hindus nem as relações asiáticas de modo geral. (...). No entanto, o capital só surge ali onde o comércio se apodera da própria produção e o comerciante devém produtor ou o produtor simples comerciante. (Marx, 2011, p. 733-4, MEGA2 II/1.2 p. 721, Cad. VII).

Por ora, basta de falar do comércio, voltemos ao problema da circulação. Marx faz

uma grande lista de “condições” ou de tendências do capital para o cumprimento da necessidade

de se expandir a circulação. Dentre outras coisas: há o aumento de consumo dentro da

circulação já dada; a propagação de necessidades já existentes para além de um círculo restrito;

a produção de novas necessidades; ou ainda “o cultivo de todas as qualidades do ser humano

social e sua produção como um ser, o mais rico possível em necessidades (...) tudo isso é

igualmente uma condição da produção baseada no capital” (Marx, 2011, p. 333; MEGA2 II/1.2,

p.322).

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Marx resume essas tendências ou essas condições do capital com a expressão em

inglês “the great civilising influence of capital”122 (MEGA2 II/1.2, p.322). Para expandir seus

tentáculos, o capital tem que:

Primeiro, ampliação quantitativa do consumo existente; segundo, criação de novas necessidades [Bedürfnisse] pela propagação das existentes em um círculo [Kreis] mais amplo; terceiro, produção de novas necessidades e descoberta e criação de novos valores de uso. (...). Daí a exploração de toda a natureza para descobrir novas propriedades úteis das coisas [Dinge]; troca universal dos produtos de todos os climas e países estrangeiros; novas preparações (artificiais) dos objetos naturais (...). A exploração completa da Terra [Der Exploration der Erde nach allen Seiten] (...) o máximo desenvolvimento das ciências naturais (...). (Marx, 2011, p. 332-333, MEGA2 II/1.2 p. 321-2, Cad. IV).

Contudo, todos esses desdobramentos conceituais e todas essas tendências só

ganham um sentido mais pleno em comparação com outras formações econômicas que não se

baseiam em uma permanente exigência de ampliação da circulação.123 Como argumentamos,

apresentar o que é o modo de produção capitalista é simultaneamente apresentar o que ele não

é, em contraposição a outros modos.

Dessa forma, é só o capital que cria a sociedade burguesa e a apropriação universal da natureza, bem como da própria conexão social pelos membros da sociedade. Hence the great civilising influence of capital; sua produção de um nível de sociedade em comparação com o qual todos os anteriores aparecem somente como desenvolvimentos locais da humanidade (...) (MARX, 2011, p. 334, MEGA2 II/1.2 p. 322, trad. Modificada, em inglês no original)

O próprio tempo de circulação é um problema especificamente capitalista. No

processo de superá-lo, surge a tendência progressiva que Marx denomina de “propagandística

(civilizadora)” (Marx, 2011, p. 448). Escreve Marx:

Voltando agora ao tempo de circulação do capital, a sua redução (...) é em parte criação de um mercado contínuo e, por isso, um mercado continuamente ampliado; em parte desenvolvimento de relações econômicas, desenvolvimento de formas do capital, pelas quais o capital reduz artificialmente o tempo de circulação (Todas as formas de crédito) (...) (Marx, 2011, p. 447-448)

Neste ponto, Marx fala que o capital tem a tendência de assimilar todo ponto

produtivo como produção capitalista. Daí “[e]ssa tendência propagandística (civilizadora) é

exclusiva do capital – diferentemente das condições de produção anteriores” (Marx, 2011, p.

122 “A grande influência civilizadora do capital”. 123 Cf. Rosdolsky (2001, p. 328). Escreve Marx: “Os modos de produção em que a circulação não constitui condição imanente e dominante da produção não [têm], naturalmente, as necessidades de circulação específicas do capital (...)” (Marx, 2011, p. 448; MEGA2 II/1.2, p.440). Na continuação, diz Marx (2011, p. 448, MEGA2 II/1.2, p.441): “O tempo de circulação é só um obstáculo [Schranke] (...) um obstáculo resultante não da produção em geral, mas específico da produção do capital”. A circulação está contida no próprio conceito do capital: “A circulação, sendo o percurso do capital através de momentos distintos, conceitualmente determinados, de sua metamorfose necessária – de seu processo vital-, é condição indispensável para o capital, condição posta por sua própria natureza.” (Marx, 2011, p. 550, MEGA2 II/1.2 p. 542).

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448). Pois os modos de produção anteriores não tinham o problema do tempo de circulação

tampouco tinham a tendência a superá-lo submetendo qualquer ponto produtivo à sua lógica de

reprodução. Como se vê, o conceito de capital juntamente com a trama categorial do modo de

produção permite a Marx estabelecer a plausibilidade das tendências capitalistas e, neste

movimento, diferenciar o capitalismo das formas anteriores.

Antes de avançarmos mais, vamos investigar mais um pouco qual é o sentido do

tempo de circulação como barreira natural e interna ao modo de produção capitalista, pois foi

a partir desta barreira que Marx, como vimos anteriormente, afirmou a caráter “progressista”

do capitalismo em relação às formas pregressas.

Há, de acordo com Marx, um fator externo à própria relação de produção que altera

a “determinação de valor”, qual seja, o tempo necessário para o capital percorrer seus próprios

momentos alternados de produção e circulação, de compra e venda.

Desse modo, aqui intervém de fato um momento da determinação de valor que não se deriva da relação direta do trabalho ao capital. A proporção em que o mesmo capital pode repetir, em um dado período, o processo de produção (...) é evidentemente uma condição que não é posta diretamente pelo próprio processo de produção. (Marx, 2011, p. 444).

Com isso, Marx conclui:

Por isso, ainda que a própria circulação não produza nenhum momento da determinação de valor, determinação que repousa exclusivamente no trabalho, ainda assim, depende de sua velocidade com a qual o processo de produção se repete, a velocidade com que os valores são criados (...) (Marx, 2011, p. 444).

Dado isso, o capital se esforça para encurtar o máximo possível esse tempo de

circulação. Isso significa que o capital tenta conquistar toda a Terra com seu mercado ao tentar

burlar o tempo e o espaço, que, por sua vez, transtornam seu processo de valorização.

Assim, enquanto o capital, por um lado, tem de se empenhar para derrubar toda barreira local do intercâmbio, i.e., da troca, para conquistar toda a Terra com seu mercado, por outro, empenha-se para destruir o espaço por meio do tempo; i.e., para reduzir a um mínimo o tempo que custa o movimento de um local a outro. (Marx, 2011, p. 445).

Neste ponto, Marx mostrar que a mesma tendência que aparece como progressiva

do capital, qual seja, de expandir o mercado, de desenvolver as forças produtivas como uma

determinação interna ao conceito de capital, servem como base para apontar a própria limitação

histórica do capital. São também tendências que indicam a possibilidade de sua superação como

modo de produção histórico.

Aqui, aparece a tendência universal do capital que o diferencia de todos os estágios de produção precedentes. Embora limitado por sua própria natureza, o capital se empenha para [o] desenvolvimento universal das forças produtivas e, desse modo, devém o pressuposto de um novo modo de produção, fundado não no desenvolvimento das forças produtivas para reproduzir e, no máximo, ampliar um

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estado determinado, mas onde o próprio desenvolvimento das forças produtivas – livre, desobstruído, progressivo e universal – constitui o pressuposto da sociedade e, por isso, de sua reprodução; onde o único pressuposto é a superação do ponto de partida. (Marx, 2011, p. 445-6, MEGA2 II/1.2 p. 438).

Na sequência escreve Marx:

Tal tendência – que o capital possui, mas que ao mesmo tempo o contradiz como um modo de produção limitado e, por isso, o impele à sua própria dissolução – diferencia o capital de todos modos de produção precedentes e, ao mesmo tempo, contém em si o fato de que o capital é posto como simples ponto de transição. (MARX, 2011, p. 446, MEGA2 II/1.2 p. 438, tradução modificada).

Aqui se apresenta uma outra tendência, qual seja, o capital tende a desenvolver

as forças produtivas124 com o objetivo de ampliar o próprio império do capital. Porém, ao

mesmo tempo, essa tendência é o pressuposto de um outro modo de produção (pressuposto de

uma sociedade emancipada), isto é, a partir da tendência do capital de desenvolver as forças

produtivas (em sentido capitalista) podemos entrever a possibilidade de um desenvolvimento

das forças produtivas como pressuposto de uma sociedade livre (cf. Marx, 2011, p. 445-6).

Essa tendência inerente ao modo de produção capitalista serve também como

fator de diferenciação com os modos de produção pregressos. E, além disso, essa tendência

conta como uma das razões sistêmicas para a crise capitalista. Algumas páginas depois, Marx

(2011, p. 448-9) deixa isso claro: “Em determinado ponto, um desenvolvimento das forças

produtivas materiais (...) abole [aufhebt] o próprio capital.”

O desenvolvimento da riqueza ou das forças produtivas se constituía como

agente dissolvente das formações sociais anteriores. Ao passo em que esse mesmo

desenvolvimento das forças produtivas aparece como algo interno (ou como tendência) ao

próprio capital. Apesar de ser algo intrínseco - essa é a diferença com os modos pregressos - a

este modo de produção, nem por isso o desenvolvimento das forças produtivas perde seu poder

de mostrar os limites histórico do capital.

Além disso, cabe notar que o objetivo de cada modo de produção é a “reprodução

dessas condições de produção determinadas” (Marx, 2011, p. 447), isto é, de estabilizar uma

certa reprodução categorial como história contemporânea. No capitalismo isso aparece no

sentido que a reprodução é a produção de riqueza. “O capital põe a própria produção de riqueza

124 Em um primeiro momento, no Caderno II, a tendência de desenvolver as forças produtivas parece ser totalmente absorvida de modo positivo pelo capital. Escreve Marx: “Portanto, todos os progressos da civilização ou, em outras palavras, todo aumento das forças produtivas sociais, se se quiser [if you want], das forças produtivas do próprio trabalho – tal como resultam da ciência, das invenções, da divisão e combinação do trabalho, do aperfeiçoamento dos meios de comunicação, da criação do mercado mundial, da maquinaria etc. – não enriquecem o trabalhador, mas o capital; em consequência, só ampliam o poder que domina o trabalho; só multiplicam a força produtiva do capital.” (Marx, 2011, p. 241, MEGA2 II/1.1, p. 227, Caderno III, Cap. Capital).

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como pressuposto de sua reprodução e, consequentemente, o desenvolvimento universal das

forças produtivas, a contínua revolução de seus pressupostos existentes.” (Marx, 2011, p. 447).

Marx ao final do trecho é bem claro na diferença entre o capitalismo e outros

modos de produção a partir do desenvolvimento das forças produtivas: “No entanto, para isso

é necessário, sobretudo, que o pleno desenvolvimento das forças produtivas tenha se tornado

condição da produção; e não que condições de produção determinadas sejam postas como

limite para o desenvolvimento das forças produtivas.” (Marx, 2011, p. 447, grifado no original).

Neste sentido, observa Rosdolsky (2001, p. 352): “O que distingue radicalmente a

produção capitalista em relação a todos os modos de produção anteriores é o seu caráter

universal, seu impulso em direção a uma permanente revolução das forças produtivas

materiais”.

Retomemos. O capital aparece como uma potência civilizadora porque está contido

em seu conceito se expandir e dominar os modos de produção pregressos (seja por causa da

necessidade de trocar a mais-valia, seja pela necessidade de um comércio ampliado) e está

também em seu conceito desenvolver as forças produtivas.125 Esse último ponto é importante,

pois só o capital traz em si mesmo o impulso para um desenvolvimento sem precedentes das

forças produtivas. Dado esse quadro, o capital é essa potência civilizadora porque destruidora

dos limites locais.126

125 Pecando pela repetição: “Aqui, aparece a tendência universal do capital que o diferencia de todos os estágios de produção precedentes. Embora limitado por sua própria natureza, o capital se empenha para [o] desenvolvimento universal das forças produtivas (...)” (Marx, 2011, p. 445-6, MEGA2 II/1.2 p. 438, destaque nosso). Como também: “(...) o desenvolvimento das forças produtivas suscitado pelo próprio capital em seu desenvolvimento histórico (...)” (Marx, 2011, p. 627, MEGA2 II/1.2 p. 623, Cad. VII, Cap. Capital, passim). 126 Rosdolsky (2001, p. 536, nota 36) chama a atenção para a semelhança entre as tendências descritas acima (Marx, 2011, p. 332ss) e as presentes no Manifesto Comunista (1848). No Manifesto (Marx e Engels, 2011, p. 53-4), os autores afirmam que a burguesia cria o mercado mundial. “A necessidade de um mercado cada vez mais expansivo para seus produtos impele a burguesia por todo o globo terrestre.” (Marx e Engels, 2011, p. 56, grifo nosso). Assim como surgem novas necessidades que só podem ser satisfeitas com produtos de outros países (Marx e Engels, 2011, p. 57). Percebe-se que no Manifesto (Marx e Engels, 2011, p. 57-8) o sujeito desse revolucionamento é a burguesia, já nos Grundrisse (Marx, p. 333-4) é o capital (o conceito de capital). Essas seriam as semelhanças para Rosdolsky. Quantas às diferenças, segundo Rosdolsky (2001, p. 251-2), Marx no Manifesto teria uma noção sobre o salário mínimo e sobre a tese do empobrecimento que ele posteriormente teria abandonado. Já para Draper (2011a, p. 189), o núcleo do Manifesto Comunista (1848) já estava presente na Ideologia Alemã (1845-6). É claro que o ressurgimento de temas ou até mesmo de prognósticos ao longo dos trabalhos de Marx não significa por si só que eles dizem a mesma coisa. Mais importante do que defender uma tese são as razões fornecidas para essa tese. E o que está em jogo é que exatamente essas razões mudam, particularmente nos Grundrisse na união entre modo de produção e o conceito de capital. É no seguinte trecho da Ideologia Alemã que Draper localiza o núcleo do Manifesto: “Assim, a sociedade, até hoje, desenvolveu-se sempre no quadro de um antagonismo [Gegensatz] que, na Antiguidade, se dava entre homens livres e escravos, na Idade Média entre a nobreza e os servos e que, nos tempos modernos, opõe a burguesia e o proletariado.” (Marx e Engels, 2007, p. 416, “6. O Cântico dos Cânticos de Salomão ou o Único”). Comparar com Marx e Engels (2011, p. 59 e 2007, p. 61).

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O capital, de acordo com essa sua tendência, move-se para além tanto das fronteiras [Schranke] e dos preconceitos nacionais quanto da divinização da natureza, bem como da satisfação tradicional das necessidades correntes, complacentemente circunscrita a certos limites [Grenzen], e da reprodução do modo de vida anterior [Reproduction alter Lebensweise]. (Marx, 2011, p. 334, MEGA2 II/1.2, p. 334, Caderno IV)

Em suma,

O capital é destrutivo disso tudo [das fronteiras e preconceitos naturais e da satisfação natural das necessidades] e revoluciona constantemente, derruba todas as barreiras que impedem o desenvolvimento das forças produtivas, a ampliação das necessidades, a diversidade da produção e a exploração e a troca das forças naturais e espirituais. (Marx, 2011, p. 334, MEGA2 II/1.2 p. 322)

A concorrência também pode ser um dos efeitos civilizadores do capital. Neste

sentido, escreve Marx: A concorrência pode ainda, p.ex., criar a necessidade de estrada de ferro em um país em que o prévio desenvolvimento de suas forças produtivas ainda não tenha pressionado a tanto. O efeito da concorrência entre nações faz parte do capítulo sobre intercâmbio internacional. Aqui se manifestam particularmente os efeitos civilizatórios do capital. (Marx, 2011, p.438; MEGA2 II/1.2, p. 430, G.p.429, Peguin, p.530, destaque nosso, itálicos de Marx).

2.2 Aquestãodaconcorrência

Conceitualmente, a concorrência nada mais é do que a natureza interna do capital, sua determinação essencial, que se manifesta e se realiza como ação recíproca dos vários capitais uns sobre os outros, a tendência interna como necessidade externa (Marx, 2011, p. 338, MEGA2 II/1.1 p. 326, G. 317)

A concorrência é a maneira por excelência com que o capital faz prevalecer o seu modo de produção (Marx, 2011, p. 610).

Um tratamento minucioso da questão da concorrência extrapolaria os limites deste

trabalho, pois isso exigiria pensar as diferenças entre determinações imanentes e determinações

da concorrência.127 Assim como uma discussão mais pormenorizada exigiria retomar a

distinção entre pluralidade de capitais128 e capital em geral.129

Essa distinção é importante para entender, por exemplo, a introdução da

maquinaria. Ela não deve ser entendida em um primeiro momento em função da redução dos

custos de produção nem através da concorrência entre capitais; antes, temos que compreendê-

127 “A questão então se desloca para a relação que se estabelece entre as leis imanentes e as leis da concorrência ou, se se quiser, para o sentido em que se dá a ‘execução’ das ‘leis internas do capital’ por intermédio da concorrência.” (Mazzucchelli, 2004, p. 4). Cf. Rosdolsky (2001, Introdução, Cap.1 e Cap.2) 128 “Todos os momentos do capital que aparecem nele contidos quando o capital é considerado em seu conceito geral só adquirem uma realidade autônoma e se revelam quando o capital realmente se manifesta como muitos capitais.” (Marx, 2011, p. 429). 129 Há uma tese de doutorado em filosofia que amplia a discussão do capital enquanto tal para O Capital, defendida por Hélio Ázara. Cf. AZARA, H. (2012). O conceito marxiano de "capital como tal": um estudo a partir do livro primeiro d'O Capital. Tese de doutoramento defendida no IFCH/Unicamp. Sobre a pluralidade de capitais e capital enquanto tal, vide Mazzucchelli (2004, p. 40ss).

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la através da relação do capital em geral com o trabalho vivo, como uma determinação interna

ao conceito de capital (Cf. Mazzucchelli, 2004, p.40).

Além disso, nos alerta Mazzucchelli (2004, p.40ss), a análise da concorrência em

Marx ficou sempre remetida para uma obra posterior nunca redigida. De qualquer forma, a

análise da concorrência indicaria: (i.) a mediação entre o conceito do capital e seu movimento

real; (ii.) que do conceito de capital é impossível deduzir seu movimento real. A análise do

movimento real exigiria a reação intercapitais. Observa Mazzucchelli:

Ou seja, se as leis internas do capital somente se realizam através do permanente confronto entre os distintos capitais, a análise desta realização (...) deve ser remetida em primeira instância à concorrência intercapitalista, e não às relações entre capital e trabalho. (Mazzucchelli, 2004, p. 45, grifo do autor).

Feito esse aviso, podemos passar à letra marxiana. A livre concorrência possui uma

espécie de dupla função. De um lado, (i.) a concorrência aparece como realizadora das leis do

capital, se constituindo, portanto, como elemento mesmo do desenvolvimento do modo de

produção capitalista. De outro lado, (ii.) a concorrência também aparece como mais um

elemento dissolvente dos modos de produção pregressos.

Para Marx, nada mais falso do que somente considerar o aspecto negativo da

concorrência como dissolvente dos modos pregressos. Neste aspecto negativo, a concorrência

foi até mesmo saudada pelos liberais.

[a concorrência] aparece historicamente como dissolução de obrigação corporativa, regulamentação governamental (...) em suma, porque aparece historicamente como negação dos limites e barreiras peculiares às fases de produção que precederam o capital. (Marx, 2011, p. 544)

Marx passa a colocar o aspecto negativo da concorrência no esquema hegeliano de

limite [Grenze] e barreira [Schranke]. Para nós, não nos interessa os detalhes dessa

argumentação, a não ser o fato de que a concorrência só é dissolvente na medida em que ela

abole [aufhebt] os limites que não correspondiam ao modo de produção capitalista nascente.

Isto é, ao contrário dos sicofantas da livre concorrência, ela não abole por si todo e qualquer

limite ou barreira. (Cf. Marx, 2011, p. 544-5). Com isso, Marx passa a observar o aspecto

“positivo” da concorrência.

No entanto, a concorrência está muito distante de ter simplesmente esse significado histórico ou de ser simplesmente essa coisa negativa [Negative]. A livre concorrência é a relação [Beziehung] do capital consigo mesmo como outro capital, i.e., o comportamento real [reelle Verhalten] do capital como capital. (Marx, 2011, p. 545, MEGA2 II/1.2, p. 533).

Mais do que a relação do capital com outro capital, a livre concorrência é o

“desenvolvimento real do capital” (Marx, 2011, p. 545). Através dela é “posto para o capital

singular, como necessidade exterior [äusserliche Nothwendigkeit], o que corresponde à

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natureza do capital [, ao] modo de produção fundado no capital, o que corresponde ao conceito

do capital”. (Marx, 2011, p. 545, MEGA2 II/1.2, p. 534, G. p. 544).

Isso significa que o desenvolvimento do capital e o desenvolvimento da

concorrência vão pari passu. Escreve Marx:

a produção fundada no capital só se põe em suas formas adequadas na medida em que e à proporção que a livre concorrência se desenvolve, pois ela constitui o livre desenvolvimento do modo de produção fundado no capital (Marx, 2011, p. 545)

Por fim, o autor é mais uma vez enfático:

O que reside na natureza do capital só é realmente posto para fora dela, como necessidade exterior, pela concorrência, que nada mais significa que os muitos capitais impõem uns aos outros e a si próprios as determinações imanentes do capital. (Marx, 2011, p. 546, MEGA2 II/1.2, p. 534).

Na continuação do trecho, completa Marx: “nenhuma categoria da economia

burguesa (...) devém efetiva [a não ser] pela livre concorrência”. Dado esse quadro conceitual,

no qual a concorrência aparece historicamente como um aspecto dissolvente dos modos de

produção anteriores ao mesmo tempo que é a realizadora das leis do modo de produção

capitalista, podemos, assim, adiantar a discussão sobre a lei da diminuição da taxa de lucro.

Marx levanta, como veremos no próximo capítulo, algumas contratendências para a diminuição

da taxa de lucro, como, por exemplo, a desvalorização de uma parte do capital, transformação

de parte do capital em capital fixo não imediatamente produtivo, desperdício de capital, criação

de novos ramos industriais.

Contudo, essas contratendências e a própria tendência da diminuição da taxa de

lucro, em resumo, as leis do capital só se realizam plenamente através da concorrência. Para

Marx, “é só na concorrência – na ação do capital sobre o capital – que se realizam [realisirt (sic)

werden] as leis imanentes ao capital, suas tendências.” (Marx, 2011, p. 629, MEGA2 II/1.2

p.625).

O que deve ser lembrado é que se a concorrência realiza (realisirt [sic]) as leis, e

particularmente, a tendência e contratendência da queda da taxa de lucro, isso significa que a

própria concorrência não as cria, ela não pode ser a fonte de inteligibilidade dessas leis.

A concorrência só pode rebaixar permanentemente a taxa de lucro em todos os ramos da indústria, i.e., a taxa média de lucro, se, e somente se, uma queda geral e permanente da taxa de lucro, atuando como lei, também for concebível antes da concorrência e sem levar em conta a concorrência. (Marx, 2011, p. 629).

Isso significa, portanto:

A concorrência executa as leis internas do capital; faz delas leis compulsórias para o capital singular, mas não as inventa. (Marx, 2011, p. 629, MEGA2 II/1.2 p.625).

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Em suma, vimos que há uma série de pressupostos históricos e condições lógicas

para o surgimento do capitalismo. Não só isso, tratou-se também de um longo processo

histórico e lógico para o capital se assentar em um modo de produção que lhe fosse adequado.

Um dos índices para avaliar a adequação da produção capitalista foi o desenvolvimento do

capital fixo. Além disso, vimos que quando o capital surge, ele surge ao lado de outros modos

de produção ou ao lado de outras formações. Neste sentido, há uma espécie de temporalidade

múltipla do capital até ele se estabelecer completamente dentro de todos ramos produtivos de

um dado país e, mais genericamente, até se estabelecer globalmente. Para isso, vimos que há

algumas tendências internas ao conceito de capital que nos ajudam a entender o processo de

domínio deste frente aos modos de produção passados. As armas do capital foram o comércio,

o mercado mundial e a livre concorrência. O comércio e o mercado mundial se baseavam na

tendência necessária do capital expandir seu círculo de circulação, enquanto a livre

concorrência apareceu de forma dupla tanto como demolidora das barreiras locais quanto

executora das leis imanentes do capital. Essas armas do capital o conduzem ao modo de

produção que lhe seja adequado, ao modo de produção especificamente capitalista.

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CapítuloIII–Mododeproduçãocapitalistaeocapitalfixo

Este capítulo130 tem por objetivo investigar a correlação entre modo de produção e

o capital fixo. Nos Manuscritos de 1857-1858, o capital fixo aparece como critério ou índice

de desenvolvimento do próprio modo de produção capitalista.131 Isso significa que, para além

de inúmeras linhas conceituais ou temáticas de continuidade entre esses manuscritos e O

Capital (1867), há uma diferença crucial entre esses textos na conceituação da categoria de

modo de produção.

Um primeiro passo para nos aproximar desta questão é apresentar como o conceito

de capital fixo aparece nos cadernos de 1857-58. Há uma variação ou uma oscilação nesta

definição, em alguns momentos o capital fixo é considerado como meio de produção,132 em

outros, Marx considera o capital fixo mais precisamente como meio de trabalho133. Para os fins

desta dissertação, vamos assumir que o capital fixo seja meio de trabalho. Paralelamente, a

definição do conceito de capital fixo é sempre feita em vista do seu duplo, o capital circulante.

Esses dois modos de existência do capital podem ser analisados por duas óticas distintas. A

primeira, sob o signo do valor de uso, somente em uma forma dada (como, por exemplo,

maquinaria ou grande indústria) o capital fixo pode existir dentro do processo produtivo; a

segunda, sob o signo do valor, as circulações das duas determinações do capital são distintas,

uma vez que o capital fixo transfere aos poucos seu valor ao produto final ou à mercadoria,

enquanto o capital circulante transfere seu valor totalmente ao produto final.134

Esse quadro conceitual geral, que permite distinguir as duas formas de capital, nos

permite avançar na discussão sobre o modo de produção especificamente capitalista, uma vez

130 As bases deste capítulo foram, em maior medida, Rosdolsky (2001[1968]), particularmente os capítulos: cap14 – Criação e conservação do valor no processo de produção (capital variável e capital constante); cap. 20 – A acumulação primitiva e a acumulação de capitais; cap. 24 – As determinações formais do capital fixo e do capital circulante; e, em menor medida, Giannotti (1985 [1966]). 131 Adiantamos que todas as citações presentes nas próximas notas de rodapé serão retomadas ao longo do desenvolvimento deste capítulo. Por exemplo: “(...) a dimensão que o capital fixo [Capital fixe] já possui e que sua produção ocupa na produção total é igualmente critério [Maaßtab] do desenvolvimento da riqueza fundada no modo de produção do capital [auf der Productionsweise des Capitals]” (Marx, 2011, p. 592; MEGA2 II/1.2 p. 585-6, Caderno VII, grifado no original). 132 “O capital que se consome no próprio processo de produção capital ou capital fixo [Capital fixe] é, no sentido enfático do termo, meio de produção.” (Marx, 2011, p. 579; MEGA2 II/1.2 p.570, Caderno VI, G. p.582, grifo no original). 133 “A diferença no interior do processo de produção, originalmente meio de trabalho [ursprünglich Arbeitsmittel] e material de trabalho e, por fim, produto do trabalho, aparece agora como capital circulante [capital circulant] (os dois últimos) e capital fixo [capital fixe].” (Marx, 2011, p. 586; MEGA2 II/1.2, p. 579, Caderno VII). 134 “(...) como valor, o capital fixo circula (ainda que apenas em partes, sucessivamente, como nós veremos). Como valor de uso, ele não circula. (...) O capital fixo, pelo contrário, só se realiza como valor enquanto permanece como valor de uso na mão do capitalista (...)” (Marx, 2011, p. 569).

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que o modo de produção adequado ao capital é determinado, por sua vez, pela forma adequada

do capital fixo. Lembremos que a forma adequada ou a figura adequada do capital fixo é

exatamente a maquinaria ou a grande indústria. Portanto, há um processo histórico e lógico da

passagem do modo de produção capitalista para o modo de produção especificamente

capitalista. Além disso, a forma adequada da qual o capital fixo se reveste permite estruturar

outras diferenciações internas ao modo de produção capitalista, tais como os tipos de

subsunção, absoluta ou relativa, e, consequentemente, os dois tipos de mais-valia. Essas últimas

distinções, nunca é demais enfatizar, passam pela ideia contraintutiva de que os meios de

produção se servem, usam os trabalhadores, e não o contrário. Ao surgir historicamente, o modo

de produção capitalista parte das técnicas e dos meios de produção já existentes, estes meios de

produção ou, melhor dizendo, meios de trabalho herdados são revestidos formalmente como

capital fixo. O que muda, em relação aos modos de produção pregressos, é a forma pela qual o

trabalho é organizado e a forma de extração de mais-produto.

Ademais, a distinção entre capital fixo e capital circulante não é a única distinção

interna ao conceito de capital. Há uma outra distinção que surge somente no curso de redação

dos manuscritos de 1857-58, qual seja, entre a parte constante e a parte variável do capital.

Ressaltamos isso por que sabemos que essa organização da categoria de modo de produção

através do capital fixo é estranha para quem pretende ler os Grundrisse a partir da trama

categorial presente no Capital. Nesta obra, um dos principais pares conceituais que a estruturam

é a exatamente a distinção entre capital constante e capital variável. Entretanto, como

pretendemos apontar, essa dupla categorial não existia previamente à própria escrita dos

cadernos de 1857-58, Marx chegou preliminarmente a essa distinção tão somente ao longo da

redação dos cadernos. E, por isso, Marx acaba por não mobilizar essa dupla categorial ao longo

de seus estudos nos cadernos de 1857-8.

Em resumo, o capital fixo é tomado por Marx como critério de desenvolvimento do

modo de produção capitalista, pois o capital fixo, no modo de produção especificamente

capitalista, deve se revestir de uma figura específica, a da grande indústria135 e, ao mesmo

tempo, a produção de capital fixo indica até que ponto a produção pode deixar de estar voltada

para fruição imediata de produtos.136 Por isso, nos parece, o capital fixo é uma via privilegiada

135 “(...)no momento em que o desenvolvimento do capital fixo atingiu certa extensão – e essa extensão é, como sugerido, o índice do desenvolvimento da grande indústria em geral (...)” (Marx, 2011, p. 586-7; MEGA2 II/1.2 p.579-580). 136 “Há ainda outro aspecto em que o desenvolvimento do capital fixo [capital fixe] indica o grau do desenvolvimento da riqueza em geral, ou do desenvolvimento do capital. (...) A parte da produção orientada para a produção do capital fixo [capital fixe] não produz objetos [Gegenstände] da fruição imediata nem valores de

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para entender a categoria de modo de produção capitalista nos Grundrisse. Ademais, através

das considerações sobre o capital fixo, como seu tempo de rotação, se ramificam diversas

outras, como a necessidade da continuidade da produção, do sistema de crédito e assim por

diante.

Na seção seguinte, vamos indicar os dois momentos chaves nos Grundrisse, nos

quais Marx conceitua capital fixo e circulante, e capital constante e variável. A partir desse

mapeamento, vamos investigar a conceituação do capital fixo e do capital circulante.

Posteriormente vamos indicar o caráter provisório do surgimento da distinção entre capital

constante e variável.

1.1. As diferenças internas ao conceito de capital

Marx, ao criticar a economia política de sua época, apoiou-se em larga medida nos

conceitos desta tradição, particularmente os de capital fixo e capital circulante. Estes últimos

por serem conceitos herdados da tradição137 são escritos na maior parte das vezes em francês

(capital fixe e capital circulant) nos Grundrisse. O avanço conceitual marxiano teria sido

desenvolver uma outra distinção, a de capital constante e variável. Por isso, vamos apresentar

os dois momentos de discussão de ambas distinções. Há, para isso, um atalho. Sabe-se que há

um momento consagrado no primeiro volume do Capital para a introdução da distinção

conceitual, que é algo particular à teoria de Marx, entre capital constante e capital variável,

qual seja, a seção “A produção da mais-valia absoluta”. Marx dedica particularmente um

capítulo para expor esse duplo conceitual após o capítulo sobre “Processo de trabalho e

processo de valorização”. Com essa pista em mente, pareceria adequado procurar a presença

ou a ausência desta dupla conceitual no mesmo momento de discussão teórica nos Grundrisse.

Não é de modo algum inoportuno seguir essa pista, pois foi exatamente no percurso de uma

longa discussão sobre o processo de trabalho e o processo de valorização que Marx passa a

alcança preliminarmente a distinção entre as partes constante e variável do capital nos cadernos

de 1857-1858.

O primeiro momento encontra-se exatamente na discussão de Marx sobre o

processo de trabalho e o processo de valorização nos Grundrisse, particularmente na passagem

do Caderno II ao Caderno III, e finalmente no Caderno IV quando Marx pela primeira vez

troca imediatos; muito menos [wenigstens] [produz] valores de troca não imediatamente realizáveis.” (Marx, 2011, p. 589; MEGA2 II/1.2 p. 583, Caderno VII, grifado no original, trad. modificada). 137 “Antes de começarmos a tratar mais detidamente das considerações mencionadas, queremos ver primeiro que distinções os economistas fazem entre capital fixo [Capital fixe] e capital circulante [Capital Circulant].” (MARX, 2011, p. 536, MEGA2 II/1.2, p. 525, Caderno VI, Cap. Capital). Marx copia longos excertos de economistas discutindo essas noções. Cf. Marx (2011, p. 517ss, MEGA2 II/1.2, p.505ss).

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diferencia a parte constante da parte variável do capital (Cf. MEGA2 II/1 – Apparat, p. 1000).

É importante frisar que até mesmo o termo mais-valia (Mehrwerth) só surge ao longo do

Caderno III, exatamente na discussão sobre o processo de trabalho e processo de valorização

(Cf. MEGA2 II/1.1 – Apparat, p. 995; Marx, 2011, p. 247, MEGA2 II/1.1, p. 233). Isso indica

que Marx só alcançou um dos seus conceitos-chave para a crítica da exploração capitalista, a

mais-valia, ao longo dos Grundrisse. Esse apanhado geral engloba as seguintes seções em

ordem de aparição, do Caderno II ao Caderno IV: “troca entre capital e trabalho”, “processo de

trabalho e processo de valorização”, “mais-valia absoluta e relativa”, “mais-valia e lucro” (é

nesta seção que surgem as noções de valor invariável ou inalterável, e parte constante e parte

variável do capital).

O encaminhamento novo de Marx frente a economia política coetânea é o

aparecimento da dupla conceitual: capital constante e capital variável. Porém, como mostra

Rosdolsky (2001, Cap. 14), o surgimento deste conceito não foi um raio em céu azul; antes,

tratou-se de um progressivo esclarecimento conceitual, tanto é assim que em muitos trechos

dos manuscritos de 1857-8 Marx usa uma terminologia cambiante (valor constante, valor

variável, capital fluído, dentre outras formulações). Ao analisarmos os trechos indicados acima

veremos como Marx tateia seu objeto e a forma adequada de exposição. Evidentemente a

ausência de um nome já fixado ou mesmo de qualquer nome para um conceito não é prova

necessária de que esse conceito já não operasse na obra de Marx; contudo, se a terminologia

cambiante já indica, por um lado, a presença emergente da distinção entre capital constante e

variável; ela também é testemunha, por outro lado, de um progressivo autoesclarecimento por

parte de Marx. Além disso, o fato de Marx conceder um peso extraordinário ao conceito de

capital fixo nos cadernos de 1857-1858 em comparação com o Capital, já nos indica que sua

descoberta das duas partes do capital, a parte constante e variável, ainda não estava totalmente

assentada nesses anos de intenso estudo. Por isso, para expor suas descobertas conceituais Marx

ainda se apoiava largamente nas muletas da economia política clássica e de seus conceitos já

disponíveis, tais como capital fixo e circulante. É por isso que optamos como estratégia

argumentativa partir do segundo momento, qual seja, o da discussão sobre capital fixo e

circulante para só então ao final deste capítulo apontar para o processo de nascimento do capital

constante e variável.

No entanto, ainda não recuperamos o lugar da discussão sobre o capital fixo e

circulante nos Cadernos de 1857-1858. O segundo momento encontra-se basicamente nos

cadernos VI e VII, as seções em ordem de aparecimento são: “capital fixo e capital circulante”,

“capital fixo e o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade”, “circulação e

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reprodução do capital fixo e do capital circulante”. Marx, ao longo dessas seções, transcreve

longos trechos sobre capital fixo e circulante de economistas, principalmente em Marx (2011,

p. 517ss, MEGA2 II/1.2, p.505ss).

Investigaremos nas próximas seções a distinção entre capital fixo e capital

circulante, assim como suas consequências; por fim, mostraremos ao final do capítulo o caráter

incipiente da distinção emergente nos Grundrisse entre as partes constante e variável do capital.

1.1.1. Capital fixo e capital circulante

capital fixo [capital fixe], que, monstro animado [beseeltes Ungeheuer], objetiva [objektivirt] o pensamento científico e é, de fato, sua síntese [Zusammenfassende] (...) (Marx, 2011, p. 387, MEGA2 II/1.2, p. 377-8, Capítulo do Capital, Caderno IV).

É com essa descrição vívida do capital fixo como um monstro animado, resumo do

pensamento científico, que Marx antecede a discussão sobre Formas que precederam a

produção capitalista (Marx, 2011, p.388ss; MEGA2 II/1.2, p.378ss).

O capital fixo é um monstro animado porque, em sua forma adequada, é

maquinaria. A maquinaria, ao contrário dos instrumentos de trabalho pregressos que eram

usados pelo ser humano, subjuga ao modo Tempos Modernos de Chaplin a atividade laboral

humana ao seu próprio ritmo mecânico e frenético. Com o seu surgimento, impõe-se uma outra

relação entre a atividade laboral humana e seus instrumentos. Entende-se assim o monstro. O

capital fixo é também o resumo ou a síntese do pensamento científico porque é, em última

instância, o resultado do próprio desenvolvimento deste pensamento. A maquinaria, figura

adequada do capital fixo, é o produto do desenvolvimento científico em vistas de controlar o

poder do fogo, do carvão, do vapor, da água e da mecânica em um sentido produtivo útil.

Entende-se porque monstro animado. Ora, cabe a nós explicar o que é exatamente o capital fixo

– e o seu duplo, o capital circulante138 – neste momento intelectual de Marx. Comecemos por

analisar o capital pelo signo do valor de uso.

Esse estar-ligado [Gebundensein] do capital como valor a um valor de uso específico – valor de uso dentro da produção – constituiu de toda forma um aspecto importante. Com isso se está expressando mais do que com a incapacidade de circulação, com a qual na verdade só é dito que o capital fixo [Capital fixe] é o contrário de capital circulante [Capital circulant]. (Marx, 2011, p. 537, MEGA2 II/1.2 p. 526, grifado no original, Caderno VI)

138 O capital enquanto tal se determina em capital fixo ou circulante, que são “modos de existência particulares” do capital. “Ser fixo ou circulante aparece como uma determinação particular do capital, além de determinação de ser capital.” (MARX, 2011, p. 540). E também: “O mesmo capital aparece no mesmo negócio nas duas formas diferentes, modos de existência particulares, como fixo e como circulante; existe, assim, de forma dupla.” (MARX, 2011, p. 540).

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A primeira forma de se analisar o capital é através da sua figura material dentro do

processo de produção, ou como Marx escreve, o estar-vinculado [Gebundensein] a um tipo de

valor de uso determinado. Posteriormente, como já adiantamos, essa forma específica de valor

de uso do capital fixo acaba por se tornar um indício de desenvolvimento capitalista. Se ainda

na primeira forma da manufatura, nós nos encontramos em um estágio preliminar do

capitalismo; se, ao contrário, na forma de sistema de máquinas, no estágio especificamente

capitalista. Esse primeiro passo argumentativo de Marx para receber e reler este conceito da

tradição da economia política se tornará decisivo para sua própria formulação do capitalismo

acabado nos Grundrisse. Com isso, é bom frisar, afirma-se que o valor de uso desempenha um

papel econômico.139

A natureza particular do valor de uso em que o valor existe, ou que agora aparece como corpo do capital, aparece aqui como determinando ela mesma a forma e a ação do capital; conferindo a um capital uma qualidade particular em comparação com o outro; particularizando-o. (Marx, 2011, p. 541; MEGA2 II/1.2, p.530, grifado no original).

Ora, a pergunta imediata após definir o capital fixo em função do valor de uso

dentro do processo produtivo é pela forma mesma deste valor de uso. Para isso, temos que

entender os componentes nos quais o capital se divide dentro do processo produtivo, tais como

meio de produção, objeto de trabalho, meio de trabalho. É exatamente neste momento que Marx

tem uma postura cambiante. Em um primeiro momento, ele escreve: “O capital que se consome

no próprio processo de produção capital ou capital fixo [Capital fixe] é, no sentido enfático do

termo, meio de produção.” (Marx, 2011, p. 579; MEGA2 II/1.2 p.570, Caderno VI, G. p.582,

grifo no original). Ou seja, Marx parece apresentar o capital fixo como meio de produção tal

e qual, sem maiores qualificações.

Todavia, nosso autor não se apega a essa afirmação, um tanto imprecisa se

lembramos da trama categorial desenvolvida na década de 1860. Algumas páginas depois, Marx

opera uma distinção mais exata entre os componentes do capital dentro do processo produtivo:

A diferença no interior do processo de produção, originalmente meio de trabalho [ursprünglich Arbeitsmittel] e material de trabalho e, por fim, produto do trabalho, aparece agora como capital circulante [capital circulant] (os dois últimos) e capital fixo [capital fixe]. (Marx, 2011, p. 586; MEGA2 II/1.2, p. 579, Caderno VII).

Neste momento, de uma forma barroca, Marx diferencia meio de trabalho e material

de trabalho do produto final (a mercadoria). O capital fixo é, agora, mais precisamente meio de

139 “O próprio valor de uso desempenha um papel como categoria econômica”. (Marx, 2011, p. 541; MEGA2 II/1.2, p.530).

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trabalho;140 enquanto o capital circulante seria o material de trabalho e o próprio produto final

do processo produtivo. Essa distinção interna ao capital não é de modo algum trivial e acarreta

implicações mais extensas.

Agora, entretanto, na diferença entre capital circulante [Capital circulant] (matéria-prima e produto) e capital fixo [Capital fixe] (meios de trabalho[Arbeitsmittel]), a diferença dos elementos como valores de uso é posta simultaneamente como diferença do capital como capital, em sua determinação formal. (Marx, 2011, p. 580; MEGA2 II/1.2, p. 571, Caderno VI, destaque nosso, grifado no original e em francês).

Logo em seguida, Marx conclui:

A inter-relação [Verhältniß...zu einander] dos fatores, que era só quantitativa, aparece agora como diferença qualitativa do próprio capital e como determinante do seu movimento total (rotação). (Marx, 2011, p. 580; MEGA2 II/1.2, p. 571).

Se anteriormente, como vimos, Marx afirmou que o capital fixo era meio de

produção, agora Marx restringe a afirmação para: capital fixo é meio de trabalho. O “meio de

produção” é composto de “objetos de trabalho” e “meios de trabalho”. Os objetos de trabalho

seriam, a princípio, as matérias-primas. Já os meios de trabalho são tanto as pré-condições para

o trabalho quanto elementos facilitadores do próprio trabalho, ferramentas dentre outras coisas.

Essa diferença no estar-ligado do capital a uma figura específica dentro do processo produtivo

acaba por influenciar a própria rotação do capital considerado globalmente, ponto ao qual

voltaremos mais adiante. Ademais, o capital fixo só pode se apresentar em duas formas: como

manufatura ou grande indústria (sistema de máquinas).

(...) o capital só terá posto o modo de produção que lhe corresponde – quando o meio de trabalho é determinado como capital fixo [Capital fixe] não só formalmente (...) e o capital fixo [Capital fixe] se defrontar com o trabalho como máquina (...). (Marx, 2011, p. 583, MEGA2 II/1.2, p. 574, Caderno VII).

Em outro momento dos manuscritos, Marx (2011, p. 567ss; MEGA2 II/1.2, p. 560)

passa a considerar a distinção entre os capitais a partir da circulação do capital e não mais

apenas como valor de uso interno à produção; pois a forma do valor de uso do capital dentro

do processo produtivo atua de forma diferente em sua circulação. Examinar a distinção entre

capital fixo e circulante a partir da circulação implica também tomar o capital como conjunto

das fases de produção e circulação.

O capital circulante [circulirende Capital] na forma no 3 [a grande circulação do capital] inclui também a no 2 [o capital dentro do processo de produção], visto que esta também está em contraposição ao fixo [im Gegensatz zum fixen steht]; mas a no 2 não inclui a no 3. A parte do capital que, enquanto tal, pertence ao processo de produção é a parte do mesmo que materialmente só serve como meio de produção; que forma o meio entre o trabalho vivo e o material a ser trabalhado. Uma parte do capital líquido [flüssigen], como carvão, óleo etc., também serve só como meio de

140 “Pois um capital só é ‘fixo’ na medida em que, no processo de produção, adota materialmente a forma de meio de trabalho.” (Rosdolsky, 2001, p. 298).

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produção. Tudo o que só serve como meio para manter em movimento a máquina ou a máquina que a movimenta. (Marx, 2011, p. 568; MEGA2 II/1.2, p.560, Caderno VI).

Vemos que Marx, mesmo partindo das determinações presentes na literatura

econômica da época, ainda tateia a apresentação e as definições adequadas para o capital fixo

e circulante – e capital constante e variável. Na continuação do trecho supracitado, Marx

esclarece claramente como o capital fixo pode ser observado segundo as duas perspectivas que

mencionamos: (i.) sob o signo do valor ou sob o aspecto formal, aqui o capital fixo circula,

pois pequenas partes sucessivas dele passam ao produto. No entanto, (ii.) sob o aspecto

material, nessa segunda perspectiva, como valor de uso, ele não circula, uma vez que o capital

fixo nunca deixa materialmente o processo de produção, isto é, ele nunca ingressa

materialmente na circulação. (...) como valor, o capital fixo [Capital fixe] circula (ainda que apenas em partes, sucessivamente, como nós veremos). Como valor de uso, ele não circula. (...) O capital fixo [Capital fixe], pelo contrário, só realiza [realisirt (sic)] como valor enquanto permanece como valor de uso na mão do capitalista (...) (Marx, 2011, p. 569; MEGA2 II/1.2, p. 561, Caderno VI).

Em sentido semelhante, afirma Marx no caderno VII: “O capital fixo [capital fixe],

à medida que subsiste enquanto tal, não retorna, porque não ingressa na circulação; à medida

que ingressa na circulação, não subsiste mais como capital fixo [capital fixe], mas forma [bildet]

um componente ideal do componente de valor do capital circulante [capital circulant]”.141

(Marx, 2011, p. 602, MEGA2 II/1.2, p. 597)

Marx, até mesmo, parece comparar duas determinações ou formas do capital

distintas. Ele parece comparar o capital que surge comprando a força de trabalho, na forma

salário, o qual tenderíamos a designar, do ponto de vista de uma determinação posterior, de

capital variável, e o capital fixo, a fração dos meios de produção que permanecem ao longo de

diversos processos de trabalho. Vejamos o texto:

(...) a parte do capital que circula como salário [Salair(sic)] – jamais deixa a circulação e jamais ingressa no processo de produção do capital (...) inversamente, a parte do capital determinada como capital fixo [Capital fixe], como valor de uso, do ponto de vista de sua existência material, jamais deixa o processo de produção e jamais reingressa na circulação. (Marx, 2011, p.570; MEGA2 II/1.2, p.561, Caderno VI).

De certa forma, se lembramos do resultado do capítulo anterior, veremos que o

capital fixo na forma de sistema de máquinas (grande indústria) seria a forma adequada do

capital enquanto tal. Certamente o capital alcançar uma figura a partir da qual ele pode se erguer

como sujeito que tudo abrange é essencial. Mas exatamente por estar preso a uma forma dada,

141 Marx ao longo dos cadernos alterna a letra maiúscula para Capital fixe e Capital circulant com a letra minúscula capital fixe e capital circulant.

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essa relação entre capital fixo como forma adequada do capital deve ser matizada por Marx.

Vejamos:

A maquinaria aparece, portanto, como a forma mais adequada do capital fixo [Capital fixe], e o capital fixo [Capital fixe], na medida em que o capital é considerado na relação consigo mesmo, como a forma mais adequada do capital de modo geral. (Marx, 2011, p. 582; MEGA2 II/1.2, p.573, Caderno VI, grifado no original).

Porém, como costuma ser, a coisa nunca não é tão simples. O capital fixo é a forma

mais adequada do capital “na relação consigo mesmo”. Agora, sob o aspecto de sua relação

exterior, o capital circulante aparece como a forma mais adequada. Na continuação imediata do

trecho anterior, escreve o autor:

Por outro lado, na medida em que o capital fixo [Capital fixe] está preso à sua existência [Dasein] como valor de uso determinado, ele não corresponde ao conceito do capital, que, como valor, é indiferente a qualquer forma determinada do valor de uso e pode assumir ou se desfazer de qualquer uma delas como encarnação indiferente. Sob esse aspecto, sob o aspecto da relação do capital para o exterior, o capital circulante142 [Capital circulant] aparece como a forma adequada do capital diante do capital fixo [Capital fixe]. (Marx, 2011, p. 582; MEGA2 II/1.2, p.573, Caderno VI, grifado no original).

Um dos atributos essenciais do capital é ser indiferente às suas formas particulares,

a partir desta perspectiva o capital ter se prendido em uma figura particular na forma de capital

fixo joga contra algumas de suas próprias determinações internas.

Retomemos alguns pontos. Sob o signo do valor de uso, o capital fixo é considerado

meio de trabalho (embora, em uma primeira formulação, Marx o tenha tomado por meio de

produção). Como meio de trabalho, o capital fixo pode adotar duas formas no modo de

produção capitalista: manufatura ou sistema de máquinas. Nesta última, o capital teria criado o

modo de produção que lhe seria adequado, como vimos no capítulo anterior. Agora, sob o signo

do valor, vimos que a circulação do valor do componente do capital fixo é diferente do

componente do capital circulante. Pois o capital fixo transfere lentamente, ao longo de um

período de tempo, seu valor ao produto final; enquanto, por outro lado, o capital circulante se

transfere totalmente – ou, ao menos, se consome totalmente no processo produtivo – ao produto

final. Esse último ponto implica que a distinção entre capital fixo e circulante mantém uma

correlação com o tempo de rotação do próprio capital enquanto tal. Afirma Marx: “O capital

fixo [capital fixe], como vimos, só circula como valor à medida em que é gasto ou consumido

como valor de uso no processo de produção.” (Marx, 2011, p. 573). Continua Marx:

O tempo necessário de reprodução do capital fixo [Capital fixe], bem como a sua proporção em relação ao capital total, modificam aqui, portanto, o tempo de rotação do capital total e, com isso, sua valorização. (Marx, 2011, p. 573).

142 A tradução da Boitempo não traz “capital circulante” em itálico; no entanto, a MEGA indica o itálico.

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O volume de capital fixo de um dado capital altera sua valorização e seu tempo de

rotação, pois o capital fixo demora mais tempo para se consumir no processo produtivo e para

finalmente transferir seu valor ao produto final.143 Isto também significa que dada uma grandeza

crescentemente maior de capital fixo a própria continuidade do processo produtivo dentro do

modo de produção capitalista passa ser essencial. Daí surge a própria necessidade do sistema

de crédito no capitalismo já estabelecido. Analisemos mais a necessidade da permanência da

produção capitalista e do crédito na próxima seção.

1.1.2.Circulaçãoepermanênciadaprodução

Portanto, quanto maior a parte do capital composto de capital fixo – i.e., quanto mais o capital atua no modo de produção que lhe corresponde [je mehr das Capital in ihm entsprechende Productionsweise wirkt], com maior utilização de força produtiva – e quanto mais durável o capital fixo (...) tanto mais frequentemente a parte do capital definida como circulante tem de repetir o período de sua rotação, e tanto mais longo é o tempo total que o capital precisa para o percurso da trajetória total de sua circulação. (Marx, 2011, p. 600, MEGA2 II/1.2, p. 595, Caderno VII, Cap. Capital grifo no original, destaque nosso).

O capital estar assentando em um modo de produção que lhe seja adequado não

significa que sua reprodução enquanto valor se torna desimpedida ou livre de empecilhos. Pelo

contrário, do ponto de vista do capital, apesar de ser condição necessária alcançar um certo grau

de desenvolvimento expressado em um acúmulo de capital fixo, essa própria condição

necessária pode se tornar um problema para a valorização do capital. Pois, do ponto de vista da

circulação, o capital fixo apresenta uma rotação diferente do capital circulante. Isso implica, do

ponto de vista da produção, a necessidade da continuidade da produção em vistas de que não

haja perda de valor.

Por isso, quanto maior for a escala em que o capital fixo [Capital fixe] se desenvolve, no sentido em que o consideramos aqui, tanto mais a continuidade do processo de produção, ou fluxo contínuo da reprodução, devém condição externamente imposta [äusserlich zwingende] do modo de produção baseado no capital [auf das Capital begründeten Productionsweise]. (Marx, 2011, p. 587; MEGA2 II/1.2, p. 580, Caderno VII, Capítulo do Capital, destaque nosso).

A situação se torna ainda mais dramática, pois própria rotação do capital fixo passa

a ser medida em anos:

O capital fixo [Capital fixe], quanto mais sua existência material corresponde ao seu conceito, quanto mais adequado é seu modo de existência material, compreende um ciclo de anos para seu tempo de rotação. (Marx, 2011, p. 609)

143 “O capital fixo [Capital fixe], quanto mais sua existência material corresponde ao seu conceito, quanto mais adequado é seu modo de existência material, compreende um ciclo de anos para seu tempo de rotação.” (Marx, 2011, p. 609). Retomaremos esse ponto.

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Daí decorre a necessidade do sistema de crédito para garantir de um lado a

continuidade da produção e a transição sem sobressaltos entre os ciclos alternados de circulação

e de produção de um dado capital e do capital global. Do contrário, se não houver um termo

mediador entre as fases de circulação e produção, o próprio ato de parar a produção significaria

potencialmente a perda de valor ou a depreciação não produtiva do capital fixo e,

consequentemente, do capital enquanto tal.

A permanente continuidade do processo, a passagem desimpedida e fluente do valor de uma forma à outra, ou de uma fase do processo à outra, aparece como condição fundamental para a produção fundada sobre o capital em um grau muito diferente do que em todas as formas de produção precedentes. (...) O crédito é a superação dessa contingência pelo próprio capital. (Marx, 2011, p. 441; MEGA2 II/1.2 p.434, grifado no original, destaque é nosso).

Sobre isso, observa Rosdolsky (2001, p. 327-8) “(...) a possibilidade do crédito

surge da ‘natureza interna’ do modo de produção capitalista, está contida em seu ‘conceito’”.

Deste modo, podemos constatar as duas funções da categoria de modo de produção e podemos

também constatar a categoria de capital fixo operando através da discussão da continuidade da

produção e do crédito. A categoria de modo de produção serviu como um substrato para Marx

desenvolver o conceito de capital, suas tendências e contratendências. Este mesmo movimento

de expor o que o capitalismo é implica, para nós, expor o que o capitalismo não é. Marx é

explícito: “Como relação de produção essencial e desenvolvida, o crédito só aparece

historicamente na circulação fundada sobre o capital ou sobre o trabalho assalariado.” (Marx,

2011, p. 442, MEGA2 II/1.2 p. 434, grifo no original). Afirmar que o crédito é um problema

burguês implica dizer que as formações pregressas não padeciam deste mal. Ficaria em aberto

imaginar como seria este problema para as formações econômicas vindouras. Além disso, o

crédito é uma questão do modo de produção capitalista, como dissemos, ele surge, de um lado,

para garantir a continuidade da produção, e, de outro, para transpor as barreiras da circulação.

Contudo, ao fazer isso, ele também eleva a possibilidade da crise a uma forma ainda mais pura.

Se vimos anteriormente que o dinheiro só supera [aufhebt] as barreiras [Schranken] da troca direta na medida em que as generaliza –i.e., separa compra e venda -, veremos depois como o crédito, da mesma maneira, só supera [aufhebt] essas barreiras [Schranken] da valorização do capital na medida em que as eleva [erhebt] à sua forma mais geral, que põe os períodos da superprodução e da subprodução como dois períodos. (Marx, 2011, p. 521, MEGA2 II/1.2 p. 510, trad. Modificada, grifo no original).

Em outro momento, Marx recorda que “there is a limit, not inherent to production

generally, but to production founded on capital”144 (MEGA2 II/1.2, p. 327, em inglês no

144 “há um limite, não inerente à produção em geral, mas para a produção baseada no capital”.

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original). Por ora, não nos interessa analisar esses limites, só cabe saber que o crédito aparece

como uma forma de superá-los (aufheben).

O inteiro sistema de crédito e o overtrading, overspeculation [comércio especulativo, superespeculação] a ele associados baseiam-se na necessidade de estender e transpor as barreias [Schranke] da circulação e da esfera da troca. (Marx, 2011, p. 340, MEGA2 II/1.2, p. 318, trad. modificada, em inglês no original).

Por fim, o desenvolvimento das forças produtivas do capital, cujo índice era o

capital fixo, acaba por suprimir ao invés de colocar a autovalorização do capital.

(...) o desenvolvimento das forças produtivas suscitado pelo próprio capital em seu desenvolvimento histórico, alcançado certo ponto, suprime [aufhebt], em lugar de pôr, a autovalorização do capital. (Marx, 2011, p. 627, MEGA2 II/1.2, p. 623, Caderno VII).

Reforça-se nossa impressão de que não podemos comparar sem mediações a

apresentação desses temas nos Grundrisse com a do Capital (1867), cuja lógica no modo de

apresentação foi desenvolvida minuciosamente por Marx. Ora, a própria dupla conceitual chave

para Marx estabelecer, por exemplo, a lei da queda tendencial do lucro, capital constante e

variável, só surge, como já enfatizamos, ao longo da escritura dos Grundrisse.145 Deste modo,

certos desenvolvimentos que à luz de uma leitura do Capital ficaram melhor expostos em

termos de capital constante e capital variável, encontram uma outra expressão nos Grundrisse.

Até mesmo as longas discussões sobre o processo de trabalho e o processo de valorização nos

Grundrisse são colocas em termos de componentes do capital, elementos – e não em termos de

capital constante ou variável (cf. Marx, 2011, p. 237ss, MEGA2 II/1.1, p. 223ss, Caderno III,

Cap. Capital.). Voltaremos a isso posteriormente.

Retomemos nosso fio condutor. Vimos que a permanência do processo produtivo e

a resolução disto através do crédito são características tão somente do modo de produção

capitalista, isso significa dizer, por via indireta, que outras formações sociais não padeciam

deste problema.

145 Há diferenças na exposição e na conceituação entre os Grundrisse e O Capital. Principalmente na definição de capital circulante. Nos Grundrisse, o capital circulante incluía os meios de subsistência do trabalhador, os quais em nenhum momento entram no processo produtivo. Nos manuscritos de 1857-58, o capital circulante consistiria das matérias-primas e dos meios de subsistência dos trabalhadores. Agora, no Capital, a coisa muda um pouco. O que entra como capital circulante é a parte do valor que o capital desembolsa para comprar a força de trabalho. “Nos Grundrisse, porém, os meios de subsistência dos trabalhadores, ou o ‘approvisionnement’, ainda aparecem como parte do capital circulante!”. (Rosdolsky, 2001, p. 300). Em outra frente, De Deus (2010, p. 14) chama a atenção para o fato de que nos Grundrisse, Marx se vale do termo capacidade de trabalho (Arbeitsvermögen), isto é, o termo força de trabalho (Arbeitskraft) ainda não estaria presente. É bom notar que a tradução da Boitempo verte tanto Arbeitsvermögen quanto Arbeitsfähigkeit por capacidade de trabalho. Uma lista preliminar das inúmeras entradas de Arbeitsvermögen: Marx (2011, p. 227, 272-3, MEGA2 II/1.1 p.212, 257-8) Marx (2011, p. 281, 286-7, MEGA2 II/1.1, p. 266, p. 270-1) Marx (2011, p. 293, p. 298-9, MEGA2 II/1.1, p. 278, p. 284-5), Marx (2011, p. 303, 318, 323, MEGA2 II/1.1, p. 288, p. 302, p. 306). Uma lista mais exaustiva pode ser encontrada no Sachregister em MEGA2 II/1 – Apparat.

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Os modos de produção em que a circulação não constitui condição imanente e dominante da produção não [têm], naturalmente, as necessidades de circulação específicas do capital (...) O tempo de circulação é só uma barreira [Schranke] (...)uma barreira [Schranke] resultante não da produção em geral, mas específica da produção do capital [der Production des Capitals spezifische Schranke]. (Marx, 2011, p. 448; MEGA2 II/1.2, p.440-1, trad. modificada).

A circulação146 é uma condição determinada internamente ao próprio conceito de

capital, é uma condição indispensável para sua valorização.

A circulação, sendo o percurso [Verlauf] do capital através de momentos distintos, conceitualmente determinados, de sua metamorfose necessária – de seu processo vital [Lebensprocesses] –, é condição indispensável para o capital, condição posta por sua própria natureza. (Marx, 2011, p. 550, MEGA2 II/1.2, p. 542).

Sobretudo a circulação não é uma entidade autônoma frente à produção. Para que

haja a renovação da circulação novas mercadorias devem ser a todo momento jogadas na

própria circulação.

A circulação, que aparece, portanto, na superfície da sociedade burguesa como imediatamente dado, existe somente à medida que é incessantemente mediada. (Marx, 2011, p. 196; MEGA2 II/1.1, p. 177, Caderno II, Capítulo do Capital).

Outra forma de encarar isso é de que os momentos da própria circulação são

pressuposto externos a ela, aos quais ela sozinha não é capaz de pôr. Em uma palavra, “[a]

circulação é o fenômeno de um processo transcorrendo por trás dela”. (Marx, 2011, p. 196;

MEGA2 II/1.1, p. 177, Caderno II, Capítulo do Capital). O fundamento ou o pressuposto da

circulação é evidentemente a existência das próprias mercadorias a serem trocadas.

O que lhe é pressuposto são mercadorias (...); logo, seu pressuposto é tanto a produção de mercadorias pelo trabalho quanto sua produção como valores de troca. (Marx, 2011, p. 197; MEGA2 II/1.1, p. 177, Caderno II, Capítulo do Capital).

Pelo fato da circulação ser uma condição posta pelo próprio capital, e pelo fato de

o capital existir em duas formas distintas, como capital fixo e circulante, o tempo de circulação

de cada forma, particularmente, o tempo de rotação do capital fixo torna-se um problema

somente existente no capitalismo.147 Evidentemente o tempo de rotação mais longo do capital

fixo é um empecilho para um modo de produção voltado para a autovalorização do próprio

146 “O caráter global do modo de produção determinará ambas [velocidade de circulação da mercadoria e do dinheiro], e mais diretamente a circulação de mercadorias.” (Marx, 2011, p. 134; MEGA2 II/1.1, p.118, Caderno I, Capítulo do Dinheiro). No parágrafo seguinte, afirma Marx: “A circulação é o pôr [Setzen] dos preços, o movimento no qual as mercadorias são transformadas em preço: sua realização [Realisieren] enquanto preço.” (Marx, 2011, p. 134; MEGA2 II/1.1, p.118, Caderno I, Capítulo do Dinheiro). Evidentemente o nível de abstração aqui na discussão sobre o dinheiro é outro. Marx sempre remete à discussão para a categoria de modo de produção. 147 “O mesmo capital aparece no mesmo negócio nas duas formas diferentes, modos de existência particulares, como fixo e como circulante; existe, assim, de forma dupla”. (Marx, 2011, p. 540). Todas essas determinações conceituais fariam parte do que Giannotti chama de história contemporânea na exata medida em que essas determinações são repostas pela dinâmica do modo de produção capitalista.

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valor. Pois assentada a base de produção capitalista, a cessão do valor do capital fixo ao produto

final acaba por tornar o ciclo completo do capital cada vez mais longo. Observa Marx:

Visto que diferentes capitais têm diferentes tempos de circulação (p.ex, um tem um mercado distante, o outro, um próximo; um, uma transformação em dinheiro garantida, o outro, uma arriscada; um, mais capital fixo, o outro, mais capital circulante), para eles isso constitui diferenças na valorização. (Marx, 2011, p. 448)

Da mesma forma que postular a tendência à expansão deste modo de produção

capitalista seja em virtude da necessidade da expansão da circulação, seja em virtude da

tendência ao mercado mundial, só adquire um sentido mais profundo quando observamos a

inexistência de tais tendências em outras formações econômicas.148 A categoria de modo de

produção serviu a um duplo propósito ao longo dos cadernos de 1857-8, de um lado, esta

categoria permitiu a Marx estabelecer as condições lógicas e históricas para o surgimento do

capitalismo; de outro lado, esta categoria serviu como base teórica para o estabelecimento por

Marx das tendências do capitalismo, isto é, essa categoria funciona como uma base categorial

para o desenvolvimento conceitual efetuado por Marx. No capítulo anterior vimos algumas

dessas tendências, que chamamos de progressivas. Posteriormente neste capítulo

investigaremos algumas das tendências antagônicas. Por ora, vejamos o que significa o capital

ser um índice de desenvolvimento.

1.1.3.Capitalfixocomoíndicededesenvolvimentocapitalista

O conceito de capital fixo, para além de sua função como conceito para

entendimento de como o capital global se desdobra em componentes distintos tanto dentro do

processo de produção e valorização quanto no processo de circulação, serve também de forma

tríplice para indicar o grau de desenvolvimento do capitalismo. Para indicar, mais precisamente,

o surgimento do modo de produção especificamente capitalista.

Em um primeiro momento, o capital fixo serve para indicar simplesmente que o

capital alcançou o desenvolvimento do modo de produção que lhe é adequado, quando este se

encontra no estágio da grande indústria. Em outro sentido, o capital fixo seria a forma objetiva

na qual se plasma o próprio desenvolvimento das forças produtivas capitalistas e, por fim, o

capital fixo indica até qual ponto frações crescentes da produção podem se voltar para a

produção de bens não imediatamente utilizáveis, isto é, indica o quanto a sociedade pode dispor

de tempo produtivo para produzir bens não destinados à fruição imediata. Vejamos:

A força produtiva da sociedade é medida pelo capital fixo[Capital fixe], existe nele em forma objetiva [gegenständlicher Form] e, inversamente, a força produtiva do

148 “Essa tendência propagandística (civilizadora) é exclusiva do capital – diferentemente das condições de produção precedentes.” (Marx, 2011, p. 448).

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capital se desenvolve com esse progresso geral de que o capital se apropria gratuitamente. (Marx, 2011, p. 582; MEGA2 II/1.2, p.573, Caderno VI, grifado no original).

Uma primeira aproximação para o papel central do capital fixo no modo de

produção capitalista, tal como foi conceituado nos Grundrisse, é mostrar que o próprio

desenvolvimento das forças produtivas é “medido” por ele. O capital tem essa tendência de

aumentar as forças produtivas e de rebaixar o trabalho necessário a um momento cada vez

menor.149 Contudo, poderíamos perguntar sobre como o capital fixo desempenha esse papel. E

a resposta já é conhecida: a partir do momento em que ele assume uma dada figura.

Portanto, o desenvolvimento pleno do capital só acontece – ou o capital só terá posto o modo de produção que lhe corresponde – quando o meio de trabalho é determinado como capital fixo [Capital fixe] não só formalmente, mas quando tiver sido abolido [aufgehoben] em sua forma imediata, e o capital fixo se defrontar com o trabalho como máquina no interior do processo de produção (...) (Marx, 2011, p. 583; MEGA2 II/1.2, p. 574, Caderno VII).

Como se vê, um dos critérios possíveis para o modo de produção especificamente

capitalista é de que o capital fixo tenha se revestido da forma da maquinaria. O capital fixo

serve como índice para o grau de dominação do capital:

Por isso, a dimensão quantitativa e a eficácia (intensidade) com que o capital está desenvolvido como capital fixo [Capital fixe] indica o grau [degree] em que o capital está desenvolvido como capital, como o poder sobre o trabalho vivo, e em que submeteu a si o processo de produção como um todo. (Marx, 2011, p. 583; MEGA2 II/1.2, p. 574, Caderno VII, o destaque é nosso).

Essa é a forma adequada do capital como valor de uso no processo capitalista de

produção, daí não se segue que o capital seja necessariamente a melhor relação social de

produção para maquinaria em si. Essa observação é importante, pois diz respeito à possibilidade

de relações de produções emancipadas.150

O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o saber social geral, conhecimento, deveio força produtiva imediata e, em consequência, até que ponto as próprias condições do processo vital da sociedade ficaram sob o controle do intelecto geral e foram reorganizadas em conformidade. Até que ponto as forças produtivas da sociedade são produzidas, não só na forma do saber, mas como órgãos imediatos da práxis social; do processo real da vida. (Marx, 2011, p. 589; MEGA2 II/1.2 p.582-3, Caderno VII, o destaque é nosso).

149 “Como vimos, a tendência necessária do capital é o aumento da força produtiva do trabalho e a máxima negação do trabalho necessário. A efetivação dessa tendência é a transformação do meio de trabalho [Arbeitsmittels] em maquinaria”. (Marx, 2011, p. 581; MEGA2 II/1.2 p. 573, Caderno VI). 150 “Do fato de que a maquinaria é a forma mais adequada do valor de uso do capital fixo não se segue de maneira nenhuma que a subsunção à relação social do capital seja a melhor e mais adequada relação social de produção para a aplicação da maquinaria.” (Marx, 2011, p. 583).

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Isto é, o capital fixo como padrão de medida do desenvolvimento capitalista, como

forma objetiva do desenvolvimento das forças produtivas, indica um processo mais geral de

desenvolvimento do próprio domínio humano frente aos processos naturais. Algumas páginas

depois, Marx insiste no tema:

(...) é na produção do capital fixo [Capital fixe] que o capital se põe, em uma potência mais elevada que na produção de capital circulante [capital circulant], como fim em si mesmo e aparece efetivamente [wirksam] como capital. Em consequência, sob esse aspecto, a dimensão que o capital fixo [Capital fixe] já possui e que sua produção ocupa na produção total é igualmente critério [Maaßtab] do desenvolvimento da riqueza fundada no modo de produção do capital [auf der Productionsweise des Capitals]. (Marx, 2011, p. 592; MEGA2 II/1.2 p. 585-6, Caderno VII, grifado no original, destaques nossos)

Ademais, o grau de produção dedicada à produção do próprio capital fixo é também

índice de desenvolvimento da sociedade em outro sentido, pois isso significa que uma parte da

produção não precisa mais ser destinada ao consumo imediato da sociedade. (Cf. Rosdolsky,

2001, p. 302). De outro modo, significa que somente uma dada proporção da produção total já

seria o suficiente para a carestia mais imediata da sociedade. Argumenta Marx neste sentido:

Há ainda outro aspecto em que o desenvolvimento do capital fixo [capital fixe] indica o grau do desenvolvimento da riqueza em geral, ou do desenvolvimento do capital. (...) A parte da produção orientada para a produção do capital fixo [capital fixe] não produz objetos [Gegenstände] da fruição imediata nem valores de troca imediatos; muito menos [wenigstens] [produz] valores de troca não imediatamente realizáveis. (Marx, 2011, p. 589; MEGA2 II/1.2 p. 583, Caderno VII, grifado no original, trad. modificada).

Isto é, os valores de troca cristalizados na forma de capital fixo só são realizáveis

se aplicados de forma capitalista em outro processo produtivo; ou seja, a produção voltada à

produção de capital fixo não se destina a um consumo imediato pela população. Marx conclui:

Por conseguinte, o fato de que uma parte cada vez maior seja empregada na produção dos meios de produção depende do grau de produtividade já alcançado – de que uma parte do tempo de produção seja suficiente para a produção imediata. Para tanto, é preciso que a sociedade possa esperar (...) (Marx, 2011, p. 589; MEGA2 II/1.2 p. 583, Caderno VII, grifado no original).

Contudo, o processo capitalista pensado globalmente pressupõe que em algum

momento todo capital deve circular para que a mais-valia possa ser realizada. Nesse sentido, há

uma relação dialética entre capital fixo e capital circulante. O capital precisa se fixar para poder

atuar produtivamente, no entanto, simultaneamente, o capital fixo precisa circular em um

período longo de rotação para poder valorizar o capital.

O processo de produção do capital [Productionsprocess des Capitals] presume: todo capital retorna somente na forma de um capital circulante [capital circulant]; por essa razão, o capital fixo [capital fixe] só pode ser renovado pelo fato de que uma parte do capital circulante [capital circulant] se fixa; ou seja, uma parte das matérias-primas criadas é utilizada e uma parte do trabalho é consumida (...) para produzir capital fixo

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[capital fixe]. (Marx, 2011, p. 614; MEGA2 II/1.2 p. 609, Caderno VII, grifado no original).

Uma forma do capital é o pressuposto da outra: “ O capital fixo [Capital fixe] é

pressuposto da produção do capital circulante [capital circulant], do mesmo modo que o capital

circulante é pressuposto da produção de capital fixo.” (Marx, 2011, p. 614, MEGA2 II/1.2,

p.609, grifado no original). Algumas linhas depois, Marx explica o que significa esse “ser

pressuposto” da forma contraposta.

O capital circulante [capital circulant] entra segundo seu valor de uso no capital fixo [capital fixe], exatamente como o trabalho, ao passo que o capital fixo entra segundo seu valor no capital circulante e, como movimento (onde é diretamente maquinaria), como movimento em repouso, como forma, entra no valor de uso. (Marx, 2011, p. 614-5; MEGA2 II/1.2 p. 609, Caderno VII).

Deste modo, recuperamos os três momentos chaves do capital fixo no modo de

produção efetivamente capitalista. O capital fixo plasma o desenvolvimento das forças

produtivas; ele também na forma da grande indústria indica o surgimento do modo de produção

especificamente capitalista; por fim, o grau de produção de capital fixo indica que a produção

não precisa mais estar totalmente voltada à produção de bens de consumo imediatos. Nas

próximas seções, vamos investigar as tendências antagônicas do capital.

1.1.4Tendênciasantagônicasdocapitalismo

Leidadiminuiçãodataxadelucro

Por ora, vamos alinhavar alguns pontos sobre a taxa de lucro e a lei tendencial da

queda. É importante frisar que esse assunto aparece em dois momentos distintos dos

Grundrisse. O primeiro momento é no início do capítulo do capital, por volta do Caderno IV,

quando Marx, discutindo o processo de trabalho e processo de valorização, passa a investigar a

origem da mais-valia e, posteriormente, do lucro (Cf. Marx, 2011, p. 357ss). É neste momento,

na obra posterior de 1867, que Marx apresenta as noções de capital constante e variável.

Contudo, como já dissemos, essa distinção ainda não estava presente agora, em 1857-8. O

segundo momento é no final dos Manuscritos, já no caderno VII, em “Terceira Seção. O Capital

que gera frutos. Juro. Lucro. (Custos de produção etc.)” (Marx, 2011, p. 623ss).

No primeiro momento, no caderno IV, Marx começava a descobrir a diferença entre

capital constante e variável em relação a capital fixo e circulante. Portanto, sua argumentação

neste ponto ainda era tateante. Isso poderia dar a impressão que ao final dos Manuscritos de

1857-1858, já no Caderno VII, deveríamos encontrar a exposição já pronta da composição

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orgânica do capital151 como fonte explicativa da taxa de lucro. Nada mais equivocado. O

caderno VII é o resultado de uma longa discussão e acertos de conta de Marx com a tradição

da economia política contemporânea, como sabemos, a economia política da época partia dos

conceitos de capital fixo e capital circulante. Por isso, neste segundo momento, Marx mistura

tanto as noções de valor constante (capital constante) com a de capital fixo para explicar a queda

do lucro – e, com isso, expor os limites do capitalismo, pois, no fundo, é disso que se trata.152

Se falamos de capital constante e capital fixo, ainda não falamos de capital variável e capital

circulante. No segundo momento, no caderno VII, Marx privilegia a noção de trabalho vivo

para descrever a relação contraditória entre o avanço da base capitalista representado pelo

capital fixo e a dificuldade de gerar mais mais-valia, em função de uma base decrescente de

trabalho vivo (capital variável).

Até mesmo o sentido da lei da diminuição da taxa de lucro (o nome consagrado é a

lei da queda tendencial da taxa de lucro, porém este nome só surge no Capital) está em disputa.

Quanto ao sentido da queda, observa Rosdolsky:

(...) as contradições do modo de produção capitalista – que se manifestam nessas perturbações e na baixa tendencial da taxa de lucro que elas aceleram – se reproduzem em um grau cada vez mais elevado, até que finalmente a ‘espiral’ do desenvolvimento capitalista chega ao fim. (Rosdolsky ,2001, p. 419):

Contra Rosdolsky, Mazzucchelli (2004, p. 35) defende que a lei de tendência não é

uma prova do colapso do capitalismo. Para Mazzucchelli (2004, p. 35) a acumulação capitalista

progressiva ou crescente se exprime na tendência da queda da taxa de lucro. Isto é, não se trata

de uma lei se expressando na tendência ao bloqueio da acumulação. É a própria acumulação

que bloqueia o lucro, poderíamos dizer. Devemos aqui nos furtar a “uma inversão indevida: ao

invés de a lei de tendência ser concebida como a expressão de um movimento contraditório, ela

passa a ser entendida como o elemento determinante desse movimento, como a ‘chave’ para

sua compreensão.” (Mazzucchelli, 2004, p. 37). Da caracterização de um regime de produção

como limitado e determinado historicamente não se segue a necessidade de sua auto-anulação.

151 Seria necessário investigar posteriormente quando Marx desenvolve pela primeira vez a noção de “composição orgânica do capital”. De um lado, essa noção está implícita em várias partes dos Cadernos de 1857-1858, mas, mesmo implícita, Marx não extrai suas consequências, como, por exemplo, na discussão sobre a diminuição da taxa de lucro. O Sachregister (Índice de assuntos) do Aparato crítico (MEGA2 II/1 – Apparat p. 1167) tem como entrada “Organische Komposition (sic) des Kapitals”, contudo, Marx em nenhum momento escreve textualmente esse termo nos Grundrisse. Enfim, cabe investigar a primeira vez que Marx denomina a relação entre a parte constante e variável do capital como Organishe Komposition (Zusammensetzung) des Kapitals. 152 A diminuição da taxa de lucro significa que “o desenvolvimento das forças produtivas suscitado pelo próprio capital em seu desenvolvimento histórico, alcançado certo ponto, suprime [aufhebt], em lugar de pôr, a autovalorização do capital” (Marx, 2011, p. 626-7).

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Dito isso, insistimos mais uma vez que, quando Marx ainda tateava sua explicação

para origem do lucro, ele não tinha ainda desenvolvido completamente a noção de composição

orgânica do capital. Por isso, neste ponto, Marx ao discutir a taxa de lucro ainda fala em termos

de trabalho excedente contra trabalho necessário. Vejamos isso no texto marxiano.

[a taxa geral de lucro] só pode cair porque a relação entre trabalho excedente e trabalho necessário cai relativamente, e isso sucede, como já vimos, quando a relação já é muito elevada ou, dito de outro modo, quando a proporção de trabalho vivo posta em movimento – a parte do capital que se troca por trabalho vivo – é muito pequena em relação à que se troca por maquinaria e matéria-prima. (Marx, 2011, p. 357, MEGA2 II/1.2, p. 346, Capítulo do Capital, Caderno IV, destaque nosso).

Algumas páginas depois ainda dentro da discussão sobre a relação entre a parte do

capital trocada por trabalho vivo e a parte trocada por trabalho morto, Marx resvala ligeiramente

sobre a questão da superprodução. Embora nosso assunto seja a queda da taxa de lucro, convém

ao menos indicar em que termos Marx pensa a superprodução. Escreve o filósofo de Trier.

a superprodução teria lugar não porque relativamente muito pouco [teria sido consumido] das mercadorias destinadas aos trabalhadores ou das destinadas aos capitalistas, mas porque ambas teriam sido produzidas em excesso – em excesso não para consumo, mas para manter a proporção adequada entre consumo e valorização; em excesso para a valorização. (Marx, 2011, p. 364, grifado do autor)

Em outro momento, Marx é também explícito: “A superprodução tem lugar em

relação à valorização, nada mais [not else]”. (Marx, 2011, p. 347; MEGA2 II/1.2, p. 336). Para

uma discussão mais pormenorizada remetemos a Mazzucchelli (2004, p. 50ss). Vê-se que

superprodução não significa per se excesso de mercadorias, mas sim excesso em relação a uma

dada capacidade de valorização. Voltemos ao nosso fio condutor. Marx ao discutir a taxa de

lucro fala em parte do capital trocada por trabalho vivo e parte trocada por maquinaria e

matérias-primas.

Sabemos, contudo, que a maquinaria é uma das partes do capital fixo. Mais tarde,

no Caderno VII, Marx expõe a lei da queda tendencial da taxa de lucro em função do capital

fixo. Logo nas primeiras páginas da “Terceira Seção. Capital que gera frutos. Juro. Lucro.

(Custos de produção etc.)” observa Marx:

Portanto, na proporção [Verhältniß] mesma em que, no processo de produção, o capital enquanto capital ocupa um espaço proporcionalmente maior ao do trabalho imediato, ou seja, quanto mais cresce o valor excedente relativo [relative Surpluswerth] – a força criadora de valor do capital -, tanto mais cai a taxa de lucro. (Marx, 2011, p. 625, MEGA2 II/1.2 p. 621, Cad. VII)

Se Marx tivesse parado de escrever aqui, não haveria nenhuma estranheza.

Contudo, na continuação imediata deste trecho, nosso autor passa a articular o capital fixo na

discussão sobre a taxa de lucro.

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Vimos que a grandeza do capital já pressuposto, pressuposto da reprodução, se expressa especificamente no crescimento do capital fixo [capital fixe] como crescimento da força produtiva produzida, do trabalho objetivado [vergegenständlichen] dotado de uma vida aparente [Scheinleben]. (Marx, 2011, p. 625, MEGA2 II/1.2 p. 621, Cad. VII o destaque é nosso).

Entretanto, Marx logo em seguida aponta o caminho da exposição posterior ao falar

em “valor constante”. É curioso notar a mistura de ambas determinações, valor constante (que

se tornará o conceito de capital constante) e capital fixo, para expor a queda da taxa de lucro.

Observamos também que Marx não fala em capital variável ou em capital circulante, mas sim

em trabalho vivo. Vejamos:

A grandeza total do valor do capital produtivo se expressará em cada porção do mesmo, em comparação com a parte do capital que existe como valor constante, como proporção reduzida do capital trocado por trabalho vivo. Considere, p.ex., a indústria manufatureira. Na mesma proporção em que cresce o capital fixo [capital fixe], a maquinaria etc., também tem de crescer, nesse caso, a parte do capital que existe como matérias-primas, ao passo que a parte trocada por trabalho vivo diminui. Em consequência, a taxa de lucro cai em relação à grandeza de valor do capital pressuposto à produção – e da parte do capital atuante enquanto capital na produção. (Marx, 2011, p. 625, MEGA2 II/1.2 p. 621, Cad. VII destaques são nossos).

Neste ponto, Marx faz uma afirmação forte, de que a lei de desenvolvimento do

capital seria também uma lei de desenvolvimento do capital fixo. Para Marx, supor que a taxa

de lucro possa crescer proporcionalmente ao aumento do capital é não ter compreendido a lei

de desenvolvimento. Haveria tão somente uma possibilidade para a taxa de lucro crescer

proporcionalmente, qual seja, quando o capital ainda não estiver assentado sobre suas próprias

bases. Escreve o autor:

De fato, o capital e, na mesma proporção, a taxa de lucro, podem crescer se a proporção da parte do capital pressuposta como valor, existente na forma de matérias-primas e capital fixo [capital fixe], aumenta de maneira uniforme com a parte do capital trocado por trabalho vivo. (Marx, 2011, p. 625, destaque nosso)

Porém, como dissemos, a condição para isso é supor um desenvolvimento ainda

não capitalista. Continua Marx:

Essa uniformidade, no entanto, presume um crescimento do capital sem crescimento nem desenvolvimento da força produtiva do trabalho. O primeiro pressuposto anula [aufhebt] o outro. Isso contradiz a lei de desenvolvimento do capital e, especialmente, a lei do desenvolvimento do capital fixo [capital fixe]. (Marx, 2011, p. 625, destaque nosso).

A única possibilidade para a taxa de lucro crescer proporcionalmente ao capital

empregado é nas formas ainda inadequadas da produção capitalista.

Tal progresso [da taxa de lucro] só pode ocorrer em estágios em que o modo de produção do capital ainda não lhe é adequado [wo die Productionsweise des Capitals ihm noch nicht adaequate ist], ou em esferas da produção em que ele arrogou a si o

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domínio apenas formalmente153 (...) (Marx, 2011, p. 625; MEGA2 II/1.2, p. 621, Caderno VII, destaque nosso).

Emprestando a noção de tendências antagônicas e progressivas do capital de

Mazzucchelli (2004, p.13-4), a queda da taxa de lucro se enquadraria na tendência antagônica,

pois a (queda da) taxa de lucro seria um indício dos limites históricos do modo de produção

fundado no capital. Embora a taxa de lucro por si não seja um bom indício do grau de

exploração capitalista. Segundo Marx:

(...) a taxa de lucro jamais expressa a taxa real com que o capital explora o trabalho, mas sempre uma proporção muito menor, e a proporção que ela expressa é tão mais falsa quanto maior for o capital. (Marx, 2011, p. 639).154

O peso tanto teórico quanto histórico da lei da queda da taxa de lucro é reconhecido

explicitamente por Marx:

Em todos os sentidos, essa é a lei [a da diminuição da taxa de lucro] mais importante da economia política moderna e a mais essencial para compreender as relações mais complicadas. Do ponto de vista histórico, é a lei mais importante. É uma lei que despeito de sua simplicidade, até agora nunca foi compreendida e muito menos conscientemente expressa. (Marx, 2011, p. 626)

Cabe agora explicar o significado dessa lei. Marx (2011, p. 626-7, MEGA2 II/1.2,

p. 622-4, Caderno VII) levanta três sentidos principais para a lei da diminuição da taxa de lucro:

(i.) ela significa um enorme desenvolvimento das capacidades científicas; (ii.) assim como ela

significa uma diminuição da parte do capital trocado por trabalho imediato concomitantemente

com aumento da massa de produtos; (iii.) e, por fim, com essa lei “fica patente que a força

produtiva material já existente (...) na forma de capital fixo [capital fixe] (...) que o

desenvolvimento das forças produtivas suscitado pelo próprio capital em seu desenvolvimento

histórico, alcançado certo ponto, suprime [aufhebt], em lugar de pôr, a autovalorização do

capital”. (Marx, 2011, p. 627, MEGA2 II/1.2, p. 622-3, Caderno VII, destaque nosso).

Quanto ao terceiro ponto, uma leitura mais ligeira de Marx poderia dar ensejo a

uma interpretação fatalista do fim necessário (notwendig) do modo de produção capitalista.

Neste ponto, Marx passa a falar como o próprio desenvolvimento das forças produtivas se torna

153 Marx falar em domínio do capital apenas formal em certo ramo da produção reforça a legitimidade de usarmos a nomenclatura de subsunção formal e real. 154 Para Marx, “(...) a taxa de lucro do capital não expressa de maneira nenhuma a taxa em que o trabalho vivo aumenta o trabalho objetivado (...)” (Marx, 2011, p. 298). Sobre isso, argumenta Rosdolsky: “O grau de exploração do trabalho pode ser o mesmo em diversos setores produtivos, e desse modo a taxa de mais-valia pode ser a mesma; porém, como a composição orgânica do capital varia entre os setores, eles produzirão diferentes massas de mais-valia, que se expressarão em diferentes taxas de lucro.” (Rosdolsky, 2001, p. 310-1). Como se vê, Rosdolsky discute a taxa de lucro a partir da formulação posterior do Capital. No entanto, o sentido geral de sua argumentação pode ser transposto, neste caso, para os Grundrisse. Mesmo que Marx em 1857-1858 ainda não tivesse alcançado a formulação da composição orgânica do capital, Marx já havia percebido claramente a relação não linear entre a exploração capitalista e a taxa de lucro.

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uma barreira (Schranke) para o capital. A partir disso, a relação capitalista se tornaria um

grilhão que seria necessariamente removido (notwendig abgestreift).

Para além de certo ponto [Punkt], o desenvolvimento das forças produtivas devém uma barreira [Schranke] para o capital; assim [also] a relação de capital [Capitalverhältniß] [devém] uma barreira para [o] desenvolvimento das forças produtivas do trabalho. Ao atingir esse ponto, o capital, i.e., o trabalho assalariado, entra na mesma relação com o desenvolvimento da riqueza social e das forças produtivas que o sistema de corporações, a servidão, a escravidão, como grilhão [Fessel], é necessariamente removido [notwendig abgestreift]. (Marx, 2011, p.627, MEGA2 II/1.2, p. 623, Cad. VII, trad. modificada).

Deste modo, uma estratégia revolucionária possível seria simplesmente deixar o

sistema capitalista trabalhar para chegar neste ponto de inflexão. Como costuma ser, a coisa

nunca é tão simples. Marx passa a alinhavar, de um lado, como o caminho até esse momento

seria uma espiral de convulsões sociais e de crises; e, de outro lado, Marx passa a assinalar

contratendências internas ao modo de produção capitalista para evitar esse ponto. O que está

em jogo aqui é mostrar que a servidão ou a exploração capitalista é tão histórica quanto qualquer

outra figura precedente; portanto, a rigor, como figura histórica também é ultrapassável.

Contudo, ao contrário de outros modos de produção, o capitalismo através de uma tendência

sistêmica cria as bases para uma possível sociedade emancipada. Mas isso não implica de forma

alguma postular uma necessidade cega e automática de superação, de passagem para essa

sociedade livre.

A última figura servil que assume a atividade humana, a do trabalho assalariado, de um lado, a do capital, de outro, é com isso esfolada [Abhäutung], e essa própria esfoladura é o resultado do modo de produção correspondente ao capital; as condições [Bedingungen] materiais e intelectuais da negação do trabalho assalariado e do capital, elas mesmas já sendo a negação de formas anteriores da produção social não livre,155 são elas próprias resultado de seu processo de produção. (Marx, 2011, p. 627, MEGA2 II/1.2, p.623, Caderno VII).

A partir disso, Marx formula um prognóstico pessimista:156

Em consequência, o máximo desenvolvimento da força produtiva e a máxima expansão da riqueza existente coincidirão com a depreciação do capital, a degradação do trabalhador e o mais estrito esgotamento de suas capacidades vitais. (Marx, 2011, p. 627, MEGA2 II/1.2 p. 624, Caderno VII).

Essas crises e convulsões que são expressões da inadequação do capital, em um

primeiro momento levam a uma readequação das condições de reprodução do capital

155 É impossível não deixar de notar os ecos da famosa passagem da “negação da negação” ao final do primeiro volume de O capital. 156 A favor da brevidade, pulamos uma mediação conceitual entre população e crescimento da capacidade científica medido pelo capital fixo. Se, de um lado, essa mediação é mais um indício forte da centralidade do capital fixo, por outro lado, apresentá-la nos levaria muito além do nosso escopo agora. Convidamos a leitora ou o leitor a ler o seguinte trecho: Marx (2010, p. 627, MEGA2 II/1.2, p. 623-4).

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Contudo, essas catástrofes regularmente recorrentes levam à sua repetição em uma escala mais elevada e finalmente à destruição violenta do capital [to its violent overthrow]. (Marx, 2011, p. 627-8; MEGA2 II/1.2 p. 624, Caderno VII, originalmente em inglês).

Imediatamente Marx passa a elencar as contratendências à crise: (i.) desvalorização

de uma parte do capital; (ii.) transformação de parte do capital em capital fixo não

imediatamente produtivo; (iii.) desperdício improdutivo do capital; (iv.) a criação de novos

ramos de produção. (Cf. Marx, 2011, p. 628, MEGA2 II/1.2 p. 624). Com isso, afasta-se uma

visão da queda necessária do capitalismo por si só.

Entretanto, as contratendências assim como as próprias tendências só de fato se

aplicam no âmbito da concorrência entre capitais.157 Na verdade, diz Marx, a concorrência

realiza as leis internas do capitalismo, como vimos no capítulo anterior.

1.2 Capital constante e capital variável

Na construção teórica de Marx, a importância dessa diferenciação conceptual [entre capital constante e capital variável] é evidente, mas o próprio Marx só chegou a ela durante a redação dos Grundrisse. (Rosdolsky, 2001, p. 189).

Uma primeira aproximação do que será posteriormente a diferença entre capital

constante e variável encontra-se no final da seção Troca entre capital e trabalho (Marx, 2011,

p. 213ss; MEGA2 II/1.1 p.198ss, Caderno II, Capítulo do Capital).

A única separação [Diremtion] que é posta pelo próprio processo de produção é a separação original [ursprüngliche Diremtion] entre trabalho objetivado e trabalho vivo, i.e., a diferença entre matéria-prima e instrumento de trabalho. (Marx, 2011, p. 233, MEGA2 II/1.1 p.220, Caderno III, Capítulo do Capital).

Nesta seção, Marx (2011, p. 232, MEGA2 II/1.1 p.219, Caderno III, Capítulo do

Capital) diferencia o trabalho vivo (ou o trabalho como atividade ou capacidade) do trabalho

objetivado. Neste momento, na diferenciação interna ao trabalho objetivado, aparecem as

figuras de matéria-prima e instrumento de trabalho, que posteriormente serão entendidas como

capital fixo ou como capital constante. Afirma o autor:

O próprio trabalho objetivado aparece, por sua vez, em relação ao trabalho vivo, como matéria-prima e instrumento de trabalho. (Marx, 2011, p. 232, MEGA2 II/1.1 p.219, Caderno III, Capítulo do Capital).

Imediatamente Marx passa a usar a nomenclatura que perpassará boa parte das

próximas seções. Marx identifica matéria-prima e instrumento como componentes do capital.

Podem parecer triviais essas constatações, mas é ao longo deste curso de argumentação, na

diferenciação interna ao conceito de capital entre suas partes ou entre seus componentes que

157 Há ainda uma outra tendência antagônica: a da base ou fundamento miserável para a valorização do capital. Não entraremos neste assunto.

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Marx, particularmente na discussão sobre o processo de trabalho e de valorização, alcançará

pela primeira vez a distinção tão aguardada entre parte constante e parte variável do capital.

Como componentes [Bestandtheile] do capital, todavia, matéria-prima e instrumento de trabalho já são eles próprios trabalho objetivado, logo, produto. (...)matéria-prima e instrumento de trabalho aparecem [auftreten] como momento do próprio capital (Marx, 2011, p. 233, MEGA2 II/1.1 p.219, Caderno III, Capítulo do Capital).

Com essa diferença interna, Marx passa a considerar o processo de trabalho e o

processo de valorização (Marx, 2011, p. 237ss, MEGA2 II/1.1, p. 223ss, Caderno III, Cap.

Capital). Em uma primeira visada, o processo de trabalho aparece como processo enquanto tal,

isto é, indiferente a qualquer determinação econômica ou histórica. Contudo, mesmo assim, o

capital já se divide em produto, instrumento e matéria-prima.158 Isso basta quanto ao processo

de trabalho, o próprio Marx dedica a maior parte da seção ao processo de valorização. Neste

momento o autor diferencia entre a determinação do capital enquanto valor e enquanto

substância determinada. Nota-se que a partir do campo conceitual de O Capital a formulação

seguinte seria considerada imprecisa. Todavia, ainda assim podemos notar o processo de

surgimento das categorias bases, as quais procuramos: capital constante, variável, fixo e

circulante.

Do ponto de vista da forma, o capital não consiste de objetos de trabalho e trabalho, mas de valores, e, de maneira ainda mais precisa, de preços [Preissen]159. O fato de que seus elementos de valor assumiram diferentes substâncias durante o processo de produção não interessa à sua determinação como valor; não são modificadas em função disso. (Marx, 2011, p. 244, MEGA2 II/1.1, p. 230, Caderno III, Cap. Capital).

Com isso, avançamos nas diferenças de cada componente segundo o processo de

trabalho e o processo de valorização: matéria-prima, trabalho e instrumento.

A matéria-prima foi completamente consumida, o trabalho foi completamente consumido, o instrumento foi consumido apenas parcialmente, logo, continua possuindo uma parte do valor do capital em seu modo de existência [Existenzweise] determinado que lhe era próprio antes do processo. (Marx, 2011, p. 244-5, MEGA2 II/1.1, p. 230-1, Caderno III, Cap. Capital).

Porém, a princípio, é indiferente a divisão do capital como valor:

158 “(...) o capital devém produto, ou que é instrumento de trabalho ou também é matéria-prima do trabalho.” (Marx, 2011, p. 237, MEGA2 II/1.1, p. 224, Caderno III, Cap. Capital). 159 Deve-se atentar para o fato de que, embora a noção de preço possa ser imprecisa neste contexto, Marx já havia diferenciado preço de valor no capítulo do dinheiro. “O seu preço é esse seu valor de troca expresso em dinheiro.” (Marx, 2011, p. 87; MEGA2 II/1.1, p. 72, Caderno I, Cap. Dinheiro). “O preço diferencia-se também do valor, não apenas como o nominal se diferencia do real; não apenas pela denominação em ouro e prata, mas pelo fato de que o último aparece como lei dos movimentos que passa o primeiro.” (Marx, 2011, p. 88; MEGA2 II/1.1 p. 73, Caderno I, Cap. Dinheiro). Logo em seguida, Marx torna a coisa ainda mais clara: “O preço das mercadorias situa-se continuamente acima ou abaixo do valor das mercadorias, e o próprio valor das mercadorias existe somente na flutuação [up and down] dos preços das mercadorias”. (Marx, 2011, p. 88; MEGA2 II/1.1 p. 73, Caderno I, Cap. Dinheiro).

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[durante o processo, o capital] decompõe-se em componentes quantitativos [quantitative Bestandtheile] de início completamente indiferentes, como valor do trabalho (salário), valor do instrumento de trabalho e valor da matéria-prima. (Marx, 2011, p. 246, MEGA2 II/1.1, p. 232, Caderno III, Cap. Capital).

Ora, se o capital se decompõe em componentes quantitativos, nem por isso “(...) o

capital enquanto tal não é a simples adição de seus componentes de valor [Werthbestandtheile]”

(Marx, 2011, p. 250, MEGA2 II/1.1, p. 235, Caderno III, Cap. Capital). Marx tateia aqui sua

descoberta, sua própria trama conceitual. No entanto, neste ponto, o filósofo resolve postergar

a investigação para outro momento: “Será visto mais tarde que essas quantidades nas quais é

decomposta a unidade original têm elas próprias determinadas relações entre si, mas isso ainda

não nos interessa aqui.” (Marx, 2011, p. 246, MEGA2 II/1.1, p. 232, Caderno III, Cap. Capital).

São exatamente as relações entre esses componentes do capital que darão origem às noções de

capital constante e de capital variável. Ou, para se valer da nomenclatura dos cadernos de 1857-

8, da parte constante e variável do capital.

Nota-se que neste momento teórico Marx avança a discussão também partindo dos

termos da economia política de então. Portanto, para explicar o processo de valorização

capitalista, Marx ainda se apoia na terminologia de custos de produção e preço, as quais,

sabemos que, no Capital, estarão consagradas às determinações contidas no terceiro volume.

Para tanto, remetemos a Marx (2011, p. 247, MEGA2 II/1.1, p. 233, Caderno III, Cap. Capital).

Trata-se de uma boa pista de como Marx ainda tateava seus conceitos.160

Voltemos, o capital não é a simples soma de seus componentes de valor, pois se

assim o fosse, o caminho para o entendimento da mais-valia estaria bloqueado. Afinal, como

de uma soma inicial de, digamos, 100 unidades monetárias teríamos ao final 110 unidades?

O mais-valor que o capital tem ao final do processo de produção (...), tal mais-valor significa, expresso de acordo com o conceito geral [allgemeinen Begriff] do valor de troca, que o tempo de trabalho objetivado [vergegenständlichte Arbeitszeit] no produto (...) é maior do que o tempo de trabalho presente nos componentes originais do capital [grösser ist als die in den ursprünglichen Bestandtheilen des Capitals vorhandne]. (Marx, 2011, p. 251-2, MEGA2 II/1.1, p. 237, Caderno III, Cap. Capital).

Ao final do processo de produção, o produto possui mais-valor do que a soma

original dos componentes de valor do capital. Sublinha-se que Marx não determina

conceitualmente quais seriam esses componentes e no que eles se diferenciariam.

A solução do enigma da mais-valia para nós que já lemos o romance de formação

do capital é clara. Ela fia-se na diferença entre o valor de troca da força de trabalho como

mercadoria, e o seu valor de uso, capaz de produzir mais valor de troca do que o necessário

160 É, aliás, neste ponto que o termo Mehrwerth (mais-valia) aparece pela primeira vez nos manuscritos. (Cf. MEGA2 II/1.1 – Apparat, p. 995; Marx, 2011, p. 247, MEGA2 II/1.1, p. 233).

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para sua própria reprodução.161 Contudo, como costuma ser, nos manuscritos a primeira solução

do enigma do mais-valor aparece em outros termos. Escreve Marx: “Agora, isso somente é

possível se o trabalho objetivado no preço do trabalho [Arbeitspreiß] é menor do que o tempo

de trabalho vivo que é comprado com ele.” (Marx, 2011, p. 251-2, MEGA2 II/1.1, p. 237-8,

Caderno III, Cap. Capital).

Ressalta-se que Marx fala ainda em tempo de trabalho objetivado, trabalho vivo e

preço de trabalho, o que basta para perceber que o autor ainda tateava a exposição adequada

dos conceitos. Como o objetivo de nosso trabalho não é o de se arrogar o direito de corrigir a

apresentação de Marx a partir de O Capital, não aprofundaremos as diferenças entre ambos

escritos. Neste trabalho cabe, quando necessário, somente indicar o surgimento dos conceitos

marxianos. Convém, agora, recuperar quais eram os elementos ou partes do capital. Marx os

descreve da seguinte forma:

O tempo de trabalho objetivado no capital aparece [erscheint], como já vimos, como uma soma composta de três partes [3 Theile bestehnde Summe]: a) o tempo de trabalho objetivado na matéria-prima; b) o tempo de trabalho objetivado no instrumento; c) o tempo de trabalho objetivado no preço do trabalho [Arbeitspreiß]. (Marx, 2011, p. 252, MEGA2 II/1.1, p. 238, Caderno III, Cap. Capital).

Se Marx ainda fala em preço e em tempo de trabalho objetivado (e não em valor),

nem por isso estamos longe do início da diferenciação entre as partes inalteradas

(posteriormente capital constante) e as partes alteráveis do capital (posteriormente capital

variável). Vejamos a continuação do trecho:

Agora, as partes a) e b) [matéria-prima e instrumento] permanecem inalteradas como componentes do capital [unverändert als Bestandtheile des Capitals]; muito embora alterem sua figura [Gestalt] no processo, seus modos de existência material [ihre materiellen Daseinsweisen], permanecem inalteradas como valor. É só c) [a parte correspondente ao trabalho] que o capital troca por alguma coisa qualitativamente diferente: um quantum dado de trabalho objetivado por um quantum de trabalho vivo. (Marx, 2011, p. 252, MEGA2 II/1.1, p. 238, Caderno III, Cap. Capital, destaque nosso).

Dentre as inúmeras condições para a produção capitalista tais como certo acúmulo

de dinheiro, a disponibilidade de trabalhador “livre”, existe uma condição primordial, qual seja,

de que uma dada jornada de trabalho seja mais do que o suficiente para manter vivo o próprio

trabalhador. Esta última é uma condição para o processo de valorização. Em outras palavras, o

preço (conforme o termo do próprio Marx) da capacidade de trabalho deve corresponder a tão

somente uma parcela da jornada de trabalho inteira desempenhada pelo trabalhador, do

161 “O trabalhador troca a atividade ponente de valor por um valor predeterminado, independentemente do resultado de sua atividade.” (Marx, 2011, p. 253, MEGA2 II/1.1, p. 239, Caderno III, Cap. Capital).

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contrário, a própria valorização estaria logicamente impedida, já que este preço corresponderia

tão somente ao que o próprio trabalhador produziu. Marx torna esse ponto explícito:

Se fosse necessária uma jornada de trabalho para manter vivo um trabalhador, o capital não existiria [existirte], porque a jornada de trabalho seria trocada por seu próprio produto e, portanto, o capital como capital não se valorizaria e, por isso, também não poderia se conservar. (Marx, 2011, p. 254; MEGA2 II/1.1, p. 240, Caderno III, Cap. Capital).162

Por ora, basta da seção sobre processo de trabalho e processo de valorização.

Vimos que Marx fala em componente do capital (inalterado) e em tempo de trabalho objetivado

nestes componentes (matéria-prima, instrumento etc). Vamos seguir agora a seção mais-valia

absoluta e relativa (Marx, 2011, p. 270, MEGA2 II/1.1, p. 255, Capítulo do Capital, Caderno

III).

Nesta seção, Marx (2011, p. 282ss, MEGA2 II/1.1, p. 267ss, Capítulo do Capital,

Caderno III) continua a discutir o processo de produção e o processo de valorização. Nosso

autor procura mostrar como o trabalho não só incrementa o valor, mas também ajuda a transferir

e conservar os valores dos meios de trabalho. É a partir dessa discussão da mais-valia, de como

a capacidade de trabalho conserva as outras partes do capital, que Marx avança para distinguir

as partes “constantes” e “variáveis” do capital. O filósofo fala em três partes do valor do produto

do capital (cf. Marx, 2011, p. 286, MEGA2 II/1.1, p. 270, Capítulo do Capital, Caderno III). A

parte referente ao salário, o lucro, a dos instrumentos e matérias-primas.

Segundo Rosdolsky (2001, p. 187) há aqui uma diferença grande no modo de

apresentação dos Grundrisse em relação ao do Capital quando se trata da conservação e

transmissão de valor da matéria-prima. Nos Grundrisse lemos que o que é diferencial não é a

quantidade de trabalho, mas a qualidade do trabalho. Escreve Marx (2011, p. 287, MEGA2

II/1.1, p. 271):

O fato de que o tempo de trabalho contido na matéria-prima e no instrumento é simultaneamente conservado não é resultado da quantidade do trabalho, mas de sua qualidade como trabalho enquanto tal; e sua qualidade universal, que não é nenhuma qualificação particular do trabalho – não é trabalho especificamente determinado -, mas significa que o trabalho como trabalho é trabalho -, não é especificamente paga, porque o capital comprou esta qualidade na troca com o trabalhador. (Marx, 2011, p. 287, MEGA2 II/1.1, p. 271, Caderno III, Capítulo do Capital, destaque nosso).

A tese de leitura de Rosdolsky (2001, p. 188) é de que Marx teria corrigido a

formulação inicial dos Grundrisse no Capital. Como afirmamos anteriormente, neste presente

trabalho não partimos do pressuposto de que o Capital seja a fonte de entendimento das obras

162 Pois a “autoconservação do capital é sua autovalorização” (Marx, 2011, p. 254; MEGA2 II/1.1, p. 240, Caderno III, Cap. Capital). O capital só se mantém como capital se se valorizar a todo momento.

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anteriores, isso significa que se, de um lado, podemos seguir a organização dos Grundrisse

efetuada por Rosdolsky, por outro lado, não precisamos necessariamente acompanhá-lo na tese

de que a formulação original teria sido corrigida, tampouco precisamos expor essa correção.

Para os fins da nossa apresentação basta saber que as formulações dos Grundrisse e de O

Capital são diferentes. Nota-se também que nos Manuscritos de 1857-58 Marx faz uma

distinção do trabalho vivo, seu aspecto quantitativo (que agrega valor) e qualitativo (que

conserva valor), e não entre trabalho concreto e abstrato. Escreve Marx (2011, p. 290; MEGA2

II/1.1 p.290):

O trabalho vivo adiciona um novo quantum de trabalho; porém, ele não conserva o quantum de trabalho já objetivado por essa adição quantitativa, mas por sua qualidade como trabalho vivo, ou pelo fato de que relaciona-se como trabalho com os valores de uso em que existe o trabalho passado. (Marx, 2011, p. 290; MEGA2 II/1.1 p.290, grifos no original).

Os conceitos de capital constante e capital variável, afirma Rosdolsky (2001, p.

189), “correspondem às diferentes funções dos meios de produção e da força de trabalho no

processo de valorização”. Isto é, a definição de capital constante e variável só se apresenta do

ponto de vista do processo de valorização. Sabemos que o processo capitalista de produção é a

unidade de processo de trabalho e processo de valorização. Porém, Marx só encaminha a

distinção entre capital constante e variável ao longo dos manuscritos:

Esse ponto realmente tem de ser investigado, porque é de fundamental importância a diferenciação entre o valor invariável como uma parte do capital que fica conservada, o outro que é reproduzido (reproduzido para o capital; do ponto de vista da produção efetiva, do trabalho, produzido) e o valor novo que é produzido. (Marx, 2011, p. 309; MEGA2 II/1.1, p. 294, G. p. 289, destaque é nosso).

Como se vê acima, Marx ainda não estabeleceu a sua nomenclatura. Segundo

Rosdolsky (2001, p. 189), Marx usava os termos “valor inalterado”, “valor inalterável” em

oposição a “valor alterável” ou “reproduzido”, algo que posteriormente será designado como

capital constante e variável.163 Ou, ainda, Marx fala em tempo de trabalho inalterado do

componente do capital.

A partir da seção mais-valia e lucro (Marx 2011, p. 292ss, MEGA2 II/1.1, p. 277ss,

Capítulo do Capital, Caderno III), particularmente na passagem para o Caderno IV, há inúmeras

entradas dos termos: “valor inalterado” [unveränderter Werth] (Marx, 2011, p. 300, MEGA2

II/1.1, p. 286, Capítulo do Capital, Caderno IV), “valor inalterável” [unveränderlicher Werth].

(Marx, 2011, p. 301, MEGA2 II/1.1, p. 286, Capítulo do Capital, Caderno IV). Em algumas

163 Ver também Marx (2011, p. 300; MEGA2 II/1.1, p. 286, G. 280). Ao se referir ao instrumentos e condições de trabalho, Marx fala em “valor inalterável” e “valor inalterado”. Assim como Marx (2011, p. 319; MEGA2 II/1.1, p. 303, G. 299) e Marx (2011, p.292-319, p. 321, p. 347-9, p. 544)

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tabelas das páginas, Marx mais uma vez escreve “valor inalterado” [unveränderlicher Werth]

(Cf. Marx, 2011, p. 301-2, MEGA2 II/1.1, p. 287, Capítulo do Capital, Caderno IV).164 Toda

essa parte do texto diz respeito ao lucro ou à mais-valia, Marx mistura a discussão sobre a taxa

de lucro com o processo de valorização, o que torna ainda mais difícil navegar por essas

páginas. Para tentar tornar seu desenvolvimento conceitual mais palatável, Marx passa a

elaborar diversos exemplo com proporções diversas entre as partes constantes e variáveis do

capital. Exatamente por servir para cálculos e principalmente por conter diversos erros

aritméticos é extremamente difícil pinçar citações destes trechos. Para piorar, Marx às vezes

utiliza tabelas para montar as proporções. Uma breve passagem de vista nas páginas acima

citadas serve para mostrar que o conceito de capital constante e variável não estavam dados

ipsis litteris.

Seja como for, Marx se aproximava de seus conceitos. A citação a seguir torna claro

que o que Marx chamava de valor inalterado [unveränderter Werth] seria o capital constante.

Vejamos:

Isso seria inteiramente correto, porque, quando de uma dada soma, tal como 100, é despendido mais em ‘valor inalterado’ [in ‘unverändertem Werth’], menos pode ser despendido em tempo de trabalho e, por essa razão, relativamente ao capital despendido, menos valor novo pode ser criado. (Marx, 2011, p. 303, MEGA2 II/1.1, p. 289, Capítulo do Capital, Caderno IV)

Segundo a aparato crítico da Mega (Cf. MEGA2 II/1 – Apparat, p. 1000) somente

aqui Marx (2011, p. 311, MEGA2 II/1.1, p. 296) diferencia pela primeira vez a parte constante

e a parte variável do capital. “Mas se o capital fosse 200 [táleres], com a mesma proporção

entre parte constante e variável [mit demselben Verhältniß des constanten und variablen Theils]

(...)” (Marx, 2011, p. 311, MEGA2 II/1.1, p. 296, Capítulo do Capital, Caderno IV). Em seguida

Marx fala em elemento constante [constantes Element], depois valor constante [constanter

Werth] e parte invariável [invariables Theil], e, por fim, em valor invariável [invariabler

Werth].165 Marx fala até mesmo em “capital invariável” (invariables Capital).166 Percebe-se

uma clara variação na nomenclatura.167

Até mesmo o aumento da produtividade do capital é pensando em termos de parte

constante e variável.

164 Valor inalterado e parte inalterada: Marx (2011, p. 311, MEGA2 II/1.1, p. 295-6, Capítulo do Capital, Caderno IV). Marx na “tabela no.II” também escreve valor inalterado. Marx (2011, p. 302, MEGA2 II/1.1, p. 288, Capítulo do Capital, Caderno IV). 165 Cf. Marx (2011, p. 311-2, MEGA2 II/1.1, p. 296, Capítulo do Capital, Caderno IV). 166 Cf. Marx (2011, p. 312, MEGA2 II/1.1, p. 297, Capítulo do Capital, Caderno IV). 167 Parte invariável reaparece em Marx (2011, p. 312, MEGA2 II/1.1, p. 297, Capítulo do Capital, Caderno IV).

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(...) o crescimento da força produtiva supõe, se o valor total do capital permanece o mesmo, que a sua parte constante (consistindo de material e máquinas) cresce em relação à variável, i.e., em relação à parte do capital que se troca com o trabalho vivo, e que forma o fundo do salário. (Marx, 2011, p. 313, MEGA2 II/1.1, p. 29, Capítulo do Capital, Caderno IV)

Finalmente, Marx (2011, p. 316, MEGA2 II/1.1, p. 300, Capítulo do Capital,

Caderno IV) escreve textualmente capital constante. É difícil acompanhar e expor

minuciosamente o argumento de Marx nestas páginas porque, como dissemos, ele comete

diversos equívocos matemáticos, porém o mais importante é o espírito da argumentação:

mostrar a correlação entre aumento de produtividade e as partes do capital com o lucro. Para

isso, Marx chega até mesmo a cunhar a expressão “fundo constante” para designar a parte do

capital que é trocada por instrumentos de trabalho e meios de trabalho. Porém, Marx (2011, p.

317, MEGA2 II/1.1, p. 301, Capítulo do Capital, Caderno IV) não insiste no termo “fundo

constante”, logo em seguida ele volta a utilizar a escrever “capital constante”, e “parte

constante”. Na página seguinte, o filósofo alemão escreve capital constante e capital

variável.168 Escreve Marx: “O novo capital total expressa justamente a soma total de capital

constante e variável (...)”. Contudo, imediatamente, o autor volta à nomenclatura anterior,

escrevendo sobre a parte inalterada do valor do capital e a parte variável (Marx, 2011, p. 319,

MEGA2 II/1.1, p. 303, Capítulo do Capital, Caderno IV).

O termo capital constante reaparece em Marx (2011, p. 352, MEGA2 II/1.2, p. 341,

Capítulo do Capital, Caderno IV). Porém, imediatamente Marx volta a usar o termo “valor

constante” (Marx, 2011, p. 355). Algumas páginas depois, Marx retoma o termo “capital

constante” [constante Capital] (Marx, 2011, p. 361, MEGA2 II/1.2, p. 351, Capítulo do Capital,

Caderno IV). Algumas entradas:

O próprio valor novo, portanto, é posto mais uma vez como capital, como trabalho objetivado [vergegenständliche Arbeit] entrando no processo de troca com o trabalho vivo e, por isso, dividindo-se em uma parte constante [in einem constanten Theil] – as condições objetivas do trabalho [die objektiven Bedingungen der Arbeit], material e instrumento – e as condições para a condição subjetiva do trabalho, a existência [Existenz] da capacidade de trabalho viva [lebendigen Arbeitsvermögen], necessárias [necessaries], meios de subsistência [Lebensmittel] para o trabalhador. (Marx, 2011, p. 370, MEGA2 II/1.2, p. 360, Capítulo do Capital, Caderno IV, tradução ligeiramente modificada, destaque nosso).

Frisamos que é somente durante a discussão sobre o processo de valorização do

capital – e, portanto, na discussão sobre o processo capitalista de produção, unidade de processo

de trabalho e processo de valorização – que os conceitos de capital constante e capital variável

surgem pela primeira vez. Afirma Marx (2011, p. 544; MEGA2 II/1.2, p. 532, G. p. 542):

168 Cf. Marx (2011, p. 318, MEGA2 II/1.1, p. 302, Capítulo do Capital, Caderno IV).

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Anteriormente, dividimos o capital em valor constante e variável; isso está correto sempre que for considerado dentro da fase de produção, i.e., em seu processo de valorização imediato (grifado no original).

Na tradição, a divisão feita anteriormente do capital era entre capital fixo e

circulante. Agora, Marx chama a atenção para uma divisão dentro do processo produtivo e,

particularmente, no processo de valorização entre capital constante e variável (que como vimos

na citação ainda aparece como valor constante e variável). Analisar o capital no processo de

valorização foi um dos passos decisivos para a teoria marxiana. Contudo, essa descoberta não

ecoou plenamente nos cadernos de 1857-1858, foi necessário mais algum tempo de esforço

intelectual concentrado de Marx para que essa novidade ficasse assentada em seu quadro

categorial.

Aqui cabe um parêntese, se a divisão entre capital constante e variável remete ao

processo produtivo – e particularmente ao processo de valorização do modo de produção

capitalista – a definição de Marx de capital fixo e circulante passa pela circulação e pela

produção como momentos alternados do processo capitalista169 (Marx, 2011, p. 518ss; MEGA2

II/1.2 p.507ss; G. p.514ss): O capital, como o sujeito que atravessa todas as fases, como a unidade movente, unidade processual de circulação e produção, é capital circulante [circulirendes Capital]; o capital, como capital confinado em cada uma dessas fases, como capital posto em suas diferenças, é capital fixado [fixirtes Capital], capital engajado. (Marx, 2011, p. 519, MEGA2 II/1.2 p. 508, grifado no original).

*

Neste capítulo vimos, portanto, como Marx se utiliza de uma maneira própria dos

conceitos herdados da economia política da época. Através do conceito de capital fixo, Marx

estrutura uma passagem do surgimento do capitalismo ao modo de produção capitalista e, por

fim, ao modo de produção especificamente capitalista. Além disso, o capital fixo se torna um

índice geral do desenvolvimento deste modo de produção a partir de três perspectivas: como

forma objetiva do desenvolvimento das forças produtivas; como indício do modo de produção

adequado na forma da grande indústria; como indício de que a produção não precisa estar

inteiramente voltada aos bens de consumo imediatos. Vimos também algumas das tendências

antagônicas que surgem quando o capitalismo se instala plenamente como modo de produção

dominante. Por fim, indicamos que a trama categorial existente no Capital, particularmente a

dupla capital constante e variável, só aparece de uma maneira ainda incipiente nestes cadernos

de 1857-8.

169 “Todo capital é originariamente capital circulante, produto da circulação e produtor da circulação, descrevendo-a como a sua própria trajetória” (Marx, 2011, p. 443; MEGA2 II/1.2, p.435).

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ConsideraçõesFinais

Esta dissertação de mestrado teve por objetivo uma primeira aproximação à

categoria de modo de produção nos cadernos conhecidos por Grundrisse. Essa aproximação

implicou uma tomada de posição frente à literatura secundária, uma vez que não existe uma

leitura de uma obra sem se levar em consideração a história de sua recepção.

A primeira tomada de decisão foi uma seleção da imensa literatura secundária,

objeto principal do capítulo I. Resolvemos nos apoiar principalmente em Giannotti, Rosdolsky

e Postone. Um fruto desta decisão foi ter encontrado o capital fixo como um primeiro caminho

de apresentação das constelações em torno da categoria de modo de produção, objeto dos

capítulos II e III. Essa centralidade pretendida por nós – e, convém insistir, a ideia já está em

Rosdolsky – implicou uma série de procedimentos. O mais importante foi desligar da leitura

dos Grundrisse a trama categorial presente nos livros de O Capital. Como resultado, pudemos

então analisar o surgimento das categorias em seu próprio contexto, sem supor que Marx

necessariamente já havia estabelecido um arcabouço categorial (capital constante e variável).

Para defender isso, mostramos que os cadernos de 1857-58 eram, antes de tudo, cadernos de

estudo, cuja a própria ausência de título atribuído pelo autor é um forte indício de seu

inacabamento. Mobilizamos também outros comentadores que efetuaram esse movimento de

desligamento dos Grundrisse do Capital. Finalmente, defendemos que para aqueles que

assumem os Grundrisse como laboratório do Capital far-se-ia necessário estabelecer as

mediações conceituais entre estes cadernos e os outros manuscritos intermediários ao Capital.

Seja como for, Rosdolsky nos ofereceu um caminho expositivo através da pista do

capital fixo; enquanto, que o quadro categorial proposto por Giannotti a partir de Marx se

mostrou uma forma rica, complexa e adequada para se compreender as próprias constelações

desenhadas por Marx nos Grundrisse (objeto dos capítulos II e III). Neste sentido, essa posição

implicou uma certa operação de compatibilização entre Rosdolsky e Giannotti. Neste arranjo,

o historiador canadense Moishe Postone apareceu como uma contraprova. A partir de sua teoria

crítica seria possível afirmar que, se a categoria de modo de produção de fato é operacional no

capitalismo, ela só se aplicaria exatamente ao capitalismo. Em uma palavra, só existiria o modo

de produção capitalista. De um lado, a posição teórica de Postone é muito interessante e forte,

com vários desdobramentos teóricos e políticos. De outro lado, sua posição teórica é mais uma

reconstrução possível de Marx em vistas de uma teoria crítica renovada, do que uma

apresentação meramente escolástica de Marx. Deste modo, algumas escolhas interpretativas de

Postone são, de alguma forma, externas ao corpo de textos do próprio Marx. A justificativa do

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autor é o estabelecimento de uma teoria do núcleo duro do capitalismo. O que estaria em jogo

é exatamente o processo de escolha do que faz parte deste núcleo e do que está fora.

Enfim, nossa predileção pela dupla Rosdolsky e Giannotti implicou afirmar que a

caracterização de ambos da categoria de modo de produção era, em alguma medida, mais

adequada do que a oferecida pela escola althusseriana. Althusser e Balibar em grande medida

são os interlocutores mais ou menos ocultos dessa dissertação. Parece-nos que, no sentido mais

forte, a melhor prova da justeza de nossas escolhas ou, no sentido mais fraco, o melhor indício

da possível correção de nossa leitura aqui proposta só pode ser a dissertação e seus capítulos

tomados em conjunto.

Em suma, apesar de todos os três comentadores, Giannotti, Rosdolsky e Postone,

ligarem de maneiras mais ou menos mediadas os Manuscritos de 1857-58 e O Capital (cuja

primeira edição do primeiro volume é de 1867), restringimos nossa dissertação aos Grundrisse,

esse procedimento teve por base uma precaução liminar. A precaução é não assumir que os

Grundrisse constituem-se tão somente com uma espécie de laboratório de O Capital, como se

tratasse de ler os cadernos “incompletos” de 1857-58 a partir do “acabamento” do livro de 1867.

Com isso, evitamos o procedimento de tomar a obra de 1867 como o índice de verdade dos

textos de 1857-58.

Além disso, procuramos mostrar que uma boa parte do esforço relacionado a se

entender o conceito do capital e como ele estabelece as bases para o modo de produção que lhe

corresponde passa por entender o que ele não é. Desta forma, entender o que é o modo

capitalista de produção passaria necessariamente por compará-lo às formas pregressas ou aos

modos de produção passados. Assim como definir o capital, isto é, apresentar e desenvolver as

tendências do capitalismo, seja a lei da queda tendencial da taxa de lucro, seja a tendência

civilizadora do capital, pressupõe também um quadro categorial que lhes forneça uma lógica

de entendimento e as justifique teoricamente. A nosso ver, esse quadro categorial que organiza

ambas formas de definição seria o modo de produção. Vejamos.

Marx (2011, p. 332ss e p. 444ss)170 nos Grundrisse afirma que o capitalismo tem a

tendência de “propagar a produção baseada no capital ou o modo de produção que lhe

corresponde”, em seguida, diz nosso autor que o capitalismo tem a tendência “de criar o

mercado mundial” e, na página seguinte, ele afirma que este modo de produção tem a tendência

de explorar completamente a Terra. Poderíamos resumir todas essas afirmações no seguinte

enunciado: o capitalismo tende a se universalizar como modo de produção. Porém, afirmar isso

170 Cf. Rosdolsky (2001, p. 194) e particularmente o capítulo 15.

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só faz sentido se, de um lado, houver outras formações econômicas que não possuíssem essa

tendência à universalização, constituindo-se assim essa tendência como algo único e

característico do modo de produção capitalista; e, se, de outro lado, houver uma trama

conceitual que permita afirmar isso e justificar essa tendência. Essa trama conceitual seria o

modo de produção. Neste caso, a tendência à universalização encontraria uma justificativa

teórica na necessidade da mais-valia ser trocada, essa necessidade implica a extensão da

circulação, que, por sua vez, implica a expansão do consumo e a criação de novas necessidades.

Sendo o modo de produção capitalista baseado na extração de mais-trabalho na forma de mais-

valia, e sendo este modo de produção orientado para a criação de riqueza, justificar-se-ia assim

a tendência à universalização, já que para realizar essa mais-valia a circulação capitalista

precisaria ser continuamente ampliada (cf. Marx, 2011, p. 322ss).

Nesse primeiro momento a categoria modo de produção aparece como que

possuindo uma espécie de dupla função, de um lado, ela nos permite estabelecer e justificar

conceitualmente o que é o capitalismo; de outro lado, essa categoria nos permite comparar o

capitalismo com o que ele não é.

Ademais, essa categoria ao longo do texto marxiano aparece conectada a inúmeras

outras discussões sobre o que é e como funciona o capitalismo. Já vimos que a categoria de

modo de produção fornece o substrato para a tendência à expansão da circulação (Marx, 2011,

p. 332s), também ela aparece como substrato da discussão sobre a necessidade da permanente

continuidade da produção capitalista (Marx, 2011, p. 441), dessa necessidade decorre a

necessidade do sistema de crédito (Marx, 2011, p. 442s e Rosdolsky, 2001, p. 327-8), esse

sistema de crédito, convém frisar, é algo único ao capitalismo, pois só no capitalismo o tempo

de circulação torna-se um problema (cf. Rosdolsky, 2001, p. 328). Além disso, o crédito ajuda

a superar as barreiras da valorização do modo de produção capitalista. (Marx, 2011, p. 340 e p.

512). A categoria modo de produção também fornece a base de entendimento da tendência do

capitalismo de desenvolver as forças produtivas (Marx, 2011, p. 445), a qual se mostra uma das

possíveis explicações para as crises capitalistas (Marx, 2011, p. 448-9).

O próprio desenvolvimento das forças produtivas no modo de produção capitalista

ganha expressão no acúmulo de capital fixo (Marx, 2011, p.301 e p. 592). Essa discussão se

ramifica em várias direções. De um lado, quando o capital surge, ele se apropria a partir da

circulação dos meios de trabalho já existentes, tornando-os capital fixo. Porém, essa não é ainda

a sua forma adequada. O capital só se desenvolverá plenamente quando o capital fixo se

apresentar como maquinaria (e, por sua vez, a maquinaria é consequência do desenvolvimento

e do acúmulo das forças produtivas). Assim, evidencia-se o processo de surgimento do modo

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de produção realmente adequado ao capital. De outro lado, esse próprio acúmulo de capital

fixo, que como vimos é a expressão da tendência do capital para desenvolver as forças

produtivas, também é o que torna a base de valorização do próprio capital miserável (cf. Marx,

2011, p. 583 e Rosdolsky, 2001, cap. 24). A partir da discussão da tendência do modo de

produção capitalista a estreitar sua base de valorização, se estruturou também uma discussão

sobre o prognóstico da derrocada ou do fim do capitalismo. Com isso, têm-se a chamada lei da

queda tendencial da taxa de lucro e suas contratendências (cf. Marx, 2011, p. 627ss). Essa lei

da tendência seria a expressão do movimento contraditório do capital sobre seu modo de

produção adequado. (Cf. Mazzucchelli, 2004, cap.1).

O capital fixo também se encontra vinculado à discussão mencionada anteriormente

da necessidade da continuidade da produção capitalista, uma vez que o tempo de circulação do

capital fixo é mais demorado do que o do capital circulante. (cf. Marx, 2011, p. 600). Como

observa Marx:

O tempo necessário de reprodução do capital fixo [Capital fixe], bem como a sua proporção em relação ao capital total, modificam aqui, portanto, o tempo de rotação do capital total e, com isso, sua valorização. (Marx, 2011, p. 573).

Em outra frente, a concorrência aparece como executora das leis do modo de

produção capitalista ao mesmo tempo em que é o agente dissolvente das formações pregressas

(Marx, 2011, p. 544ss e p.629). A concorrência é um elemento estruturante deste modo de

produção (Marx, 2011, p. 326).

Em resumo, vimos que a categoria modo de produção aparece como o substrato em

diferentes graus e níveis de inúmeras discussões sobre a natureza interna do desenvolvimento

capitalista. Um mesmo aspecto deste modo de produção, como o capital fixo, serve como fio

condutor para diferentes níveis de discussão, ele pôde servir como critério para o surgimento

de modo de produção especificamente capitalista, quando o capital fixo se torna a maquinaria

da grande indústria. Tendo isso acontecido, o capital fixo acaba por influenciar o tempo de

rotação do capital total, pois o tempo de circulação do capital fixo torna-se proporcionalmente

maior em relação ao tempo de circulação do capital circulante. Com isso, dada a necessidade

da continuidade da produção para que não haja perda desse mesmo capital, surge a necessidade

do sistema crédito. Aliás, sendo o capital fixo a expressão do acúmulo de forças produtivas, ele

é também a expressão do estreitamento da base de valorização do próprio capital.

*

A partir dos resultados deste trabalho há duas linhas de pesquisa possíveis e

complementares. Se tivermos tornado plausível a conceituação do modo de produção capitalista

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através do capital fixo e se tivermos tornado plausível a diferença entre essa conceituação e a

presente no Capital, caberia então passar a investigar mais profundamente como Marx ao longo

da década de 1857-1867 passa a repensar a categoria de modo de produção capitalista. Em que

momento Marx, na formulação mais forte, abandona o capital fixo para estabelecer o modo de

produção especificamente capitalista? Ou, na formulação mais fraca, em que momento Marx

joga para o segundo plano o papel do capital fixo como índice de desenvolvimento?

A segunda linha de pesquisa possível é voltar, ao contrário, para a primeira aparição

da categoria de modo de produção na Ideologia Alemã (1845-6) e investigar como se dá o

primeiro estabelecimento desta categoria dentro de um quadro teórico no qual estão ausentes

considerações mais profundas da economia política. Pois, afinal, é somente a partir dos

Grundrisse, que Marx efetivamente desenvolve um conceito próprio de capital. No limite, a

tese implícita, é de que o conceito de capital acaba por reorganizar o próprio conceito de modo

de produção.

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ReferênciasBibliográficas

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MARX, K. (1953). Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie (Rohentwurf). Berlin:

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__________________. (2008). Gesamtausgabe. Berlim: Dietz, 2008. v. II/13 – Apparat.

__________________. (1990). Gesamtausgabe. Berlim: Dietz, 1990. v. III/8.

__________________. (2003). Gesamtausgabe. Berlim: Dietz, 2003. v. III/9.

1.2. Traduções da Bibliografia Primária

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________. (2011). Manifesto Comunista. São Paulo: Hedra. [1848].

________.(2007). A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo. [1845-1846]

MARX, K. (1993). Grundrisse – Foundations of the Critique of Political Economy (Rough

Draft). Translated by Martin Nicolaus. - London: Peguin Books. [1857-58]

_________.(1990). Capital – Volume I. Introduced by Ernest Mandel. Trans. Ben Fowkes.

London: Peguin Books. (Penguin Classics).

_________.(1990a). Results of the Immediate Process of Production. [Appendix] In: Marx

(1990).

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