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Filosofia TEXTOS E COMENTÁRIOS JORGE NUNES BARBOSA

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Page 1: Textos e Comentários

Filosofia

TEXTOS E COMENTÁRIOS

J O R G E N U N E S B A R B O S A

Page 2: Textos e Comentários

INTRODUÇÃO

Page 3: Textos e Comentários

Este conjunto de textos destina-se prioritariamente, se não exclusivamente, aos meus alunos de Filosofia do Ensino Secundário.

Não me move qualquer motivação doutrinária, mas tão só a intenção de fornecer aos estudantes alguns modelos de resposta a perguntas, ou modelos de comentários de textos de autor.

Para cada pergunta ou texto a comentar, foram elaborados dois modelos de resposta. Na maior parte das vezes, a distinção entre eles é de natureza estritamente técnica. No entanto, em alguns casos, para além das diferenças estruturais, existem também algumas diferenças de substância. Nem sempre as interpretações, presentes nos dois modelos, são coincidentes.

Os temas abordados dizem respeito:

❖ Juízos de gosto;

❖ Conceito de educação (Rousseau);

❖ Verdade e dúvida;

❖ Crença e razão;

❖ Dever e verdade;

❖ Trabalho e utilidade;

❖ Estado e liberdade (Espinosa);

❖ Estado e liberdade;

❖ Uma Boa Lei (Hobbes).

Tenham bom proveito.

Julho de 2012

Jorge Nunes Barbosa

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Page 4: Textos e Comentários

• CAPÍTULO 1 •

Admitindo que nem todos os artistas contemporâneos são charlatães, e que as suas obras são, apesar de tudo, reconhecidas por um público esclarecido, podemos, então, perguntar-nos se, para apreciar uma obra de arte, precisamos de ser cultos.

APRECIAR OBRAS DE ARTE

Page 5: Textos e Comentários

É preciso ser-se culto para apreciar uma obra de arte?

Perante a nossa desorientação quando nos é pedido que avaliemos as obras de

arte contemporâneas, somos tentados a seguir uma de duas formas de reagir:

✤ Considerar que o artista nos propõe qualquer coisa, sem critério visível;

1. Ser-se culto não é uma condição necessária para se ser sensível à beleza ou à arte em geral. Mas a cultura é necessária se quisermos cultivar o nosso gosto.

2. A cultura afina o gosto, tal como o gosto gera a vontade de cultura, ou de nos cultivarmos.

3. Todos os homens, porque são homens, possuem uma cultura. É por isso que todos os homens reúnem as condições para apreciar a arte?

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Primeiro Modelo

Page 6: Textos e Comentários

✤ Considerar, com muita modéstia, que somos incompetentes e que não temos cultura bastante para apreciar essas obras.

Admitindo, no entanto, que nem todos os artistas contemporâneos são charlatães, e que as suas obras são, apesar de tudo, reconhecidas por um público esclarecido, podemos, então, perguntar-nos se, para apreciar uma obra de arte, precisamos de ser cultos. O problema está em saber o que é que se entende por “ser culto”, sabendo-se, como se sabe, que a cultura não se reduz à erudição e que o apreço não é talvez um simples juízo de gosto subordinado a normas, mas também uma forma de obtenção de prazer, de gozo, que nos deve ser dado por uma obra artística. Qual é, então, o papel da cultura, isto é, de todos esses hábitos e aptidões aprendidas que pertencem à nossa educação e participam nos nossos juízos? Deveremos questionar-nos sobre se nos basta ter bom gosto, ou se nos é necessário ser cultos para apreciar uma obra de arte. Finalmente, interrogar-nos-emos sobre a própria existência da obra de arte, independentemente dos juízos de apreço que possamos formular a seu respeito.

I. A instrução e o conhecimento são necessários para apreciar uma obra de arte.

1. A cultura é indispensável para saborear, no seu justo valor, uma obra de arte, porque é a cultura que nos permite situarmo-nos a nós próprios e situar o artista numa época e num espaço particulares.

2. A cultura fornece-nos as chaves para a compreensão de uma obra de arte: permite julgar, no sentido de avaliar uma obra, respeitando os critérios de gosto de uma época determinada. Se nos ficarmos, no entanto, por estas reflexões, teríamos de assumir que avaliar uma obra de arte corresponderia ao uso de critérios, de normas. A obra de arte inscrever-se-ia numa história particular

3. O que aprendemos, pelo esforço de nos cultivarmos, são regras, mas não é garantido que a obra de arte se reduza a uma linguagem e que as regras (ou a gramática dessa linguagem) que percebemos sejam aquelas que o artista

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desejaria transmitir. Neste aspeto, a arte escapa às categorias que se transmitem pelo ensino, e depende da liberdade de pensar e de se ser artista.

II. A obra de arte não é hermética, tem a ver com o prazer.

4. É a relação que o espectador mantém com a obra de arte que é decisiva na sua apreciação, e não um aparelho técnico, um léxico por exemplo, ou dados históricos. Essa relação entre observador e obra de arte é necessariamente subjetiva: trata-se da relação entre uma sensibilidade e uma matéria. Vale pouco a pena saber tudo sobre um artista, ou sobre o movimento no qual se inscreve a sua criação; isso não basta para a apreciar.

5. Se a cultura nos ajuda a compreender a arte, tratando-se de a apreciar, a situação é diferente, pois a apreciação tem a ver com o gosto, com o prazer e não com a reflexão. Temos de distinguir, à maneira de Kant, os juízos de gosto

dos juízos de conhecimento. Os primeiros são determinantes, isto é, partem do universal para se aplicar ao caso particular, os segundo são determinados. Com efeito, o gosto é a relação de um sujeito com uma obra de arte particular, que permite tomar a decisão de dizer, com toda a sua subjetividade, “isto é belo”.

6. A obra de arte, por seu turno, tem a ver com o livre jogo da imaginação e do entendimento. Na ausência de um conceito que possa limitar a liberdade desse jogo, diz-nos Kant, tudo se passa como se não pudéssemos impedir-nos a nós mesmos de julgar e dizer “isto é belo”. Só que este processo não se explica pela cultura; na verdade só se desencadeia quando, perante uma obra de arte, experimentamos prazer que tendemos, implicitamente, a partilhar com os outros: existe um juízo de gosto universal que é, de alguma forma, esta pretensão em partilhar o nosso próprio gosto com os outros.

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Page 8: Textos e Comentários

III. Uma obra de arte basta-se a si mesma.

7. Esquecemo-nos muitas vezes, sobretudo perante a arte abstrata, que a obra de arte é uma matéria que não se refere a outra coisa senão a si mesma. Neste sentido, o artista não comunica, não envia uma mensagem por intermédio da sua obra. A criação é muito mais do que isso e, como afirmava Kant, nenhum Homero, nenhum poeta seria capaz de relatar aquilo que a obra de arte veicula. A obra de arte não remete nem para regras, nem para conceitos.

8. A cultura pode ajudar a compreender, a situar uma obra de arte no seu contexto, mas não permite apreciá-la no seu justo valor. Com efeito, a obar de arte não é um signo que se referiria a um significado, a um sentido. Ela está para além da própria cultura, na medida em que se constitui numa manifestação da liberdade humana e da sua infinita capacidade tanto para criar como para apreciar as obras de arte.

9. Qualquer que seja a obra de arte, ela pertence a uma cultura sem hierarquia, sem critério de reconhecimento. O que se aprende e pertence a uma cultura determinada, é uma maneira de ver, de ouvir, de sentir, em resumo, de participar na obra de arte. Mas isto acontece espontaneamente, pois todas as crianças são candidatas à cultura do seu país e do seu tempo, tal como todas as obras de arte são candidatas a apreciação.

Conclusão: Uma obra de arte pode ser apreciada, sem ser explicada, compreendida e encerrada em regras ou normas culturais. Neste sentido, pode dizer-se que a obra de arte é independente do facto de se ser culto ou não. Entendamos por “ser culto” pertencer a uma cultura particular, ter recebido uma educação determinada, qualquer que seja a sua forma. O que os etnólogos nos ensinaram foi que cultura não significa necessariamente uma caminhada no sentido do progresso, e muito menos é a soma de conhecimentos de uma elite reservada a alguns povos. Todos os

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homens, porque são homens, possuem uma cultura. É por isso que todos os homens reúnem as condições para apreciar a arte? Sem dúvida, na condição de todos compreenderem que a obra de arte não obedece a nenhuma norma, mas é o fruto do seu criador e da apreciação do observador.

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Problematização/Introdução.

A obra de arte é uma criação livre do espírito humano, que ao contrário da produção artesanal, não depende de um fim ou finalidade particular. Pode obedecer a certas regras de realização ou de composição, mas pode também desligar-se delas, deixando o artista livre de inventar as suas próprias regras ou até de não ter nenhumas. Esta ideia implica que aquele que recebe a obra de arte seja também livre de apreciar o seu valor de acordo com o seu gosto pessoal. Por outro lado, deve notar-se que podemos gostar de uma obra de arte sem, antes, conhecer o tema ou o assunto que a inspirou. Pelo contrário, um especialista de história de arte pode conhecer muito bem em detalhe a obra de um artista, sem a achar bela.

No entanto, a arte é uma manifestação cultural do homem. As formas artísticas, os temas, as técnicas utilizadas dependem de contextos históricos e culturais particulares. O artista pertence sempre a uma época, e parece, pelo menos, difícil considerar uma obra de arte separando-a das significações culturais que possuem necessariamente, mesmo se o artista quis desligar-se da sua época e propor uma nova forma artística. Sendo assim, podemos realmente separar conhecimento de arte e gosto artístico?

Primeira parte: O juízo estético não requer conhecimentos particulares.

À partida, para apreciar uma obra de arte não é requerido nenhum conhecimento particular. Porquê? Porque se gosto de uma obra de arte e a acho bela, não é devido a qualidades objetivas que ela possua. Por

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exemplo, posso achar belo o retrato de uma mulher disforme, objetivamente pouco graciosa, ou então uma natureza morta representando o cadáver de um animal, que, em condições reais seria para mim pouco agradável.

Do mesmo modo, posso apreciar um trecho de música sem compreender o significado das palavras. Parece, nesta ordem de ideias, que a apreciação estética é desligada do conhecimento de eventuais significados culturais de uma obra (o seu tema, o seu lugar na história da arte, o seu autor, etc.).

Segunda parte: A arte é uma atividade significante (com significado).

Todavia, temos muitas vezes a experiência de que o nosso gosto estético não nasce sem um mínimo de conhecimentos. Por exemplo, podemos realmente adquirir o gosto pela ópera ou pelo teatro, sem dominar os códigos e as regras destes géneros artísticos? Por vezes, dizemos não gostar de um género artístico, quando, na realidade, o que queremos dizer é que ele não nos interessa. Mas, se for esse o caso, não será

porque não o conhecemos? Para apreciar uma obra de arte não será preciso saber o que ela significa e, portanto, possuir uma forma de cultura artística? A obra de arte, com efeito, possui um conjunto de significados como as intenções do autor, os temas escolhidos ou os meios de composição, que não se manifestam, talvez, de forma imediata ao olhar ou à audição, mas que a constituem de facto.

Poderíamos objetar que certas obras de arte não respeitam nenhuma regra definida ou que há artistas que inventam o seu próprio género, que criam um estilo a partir de nada. Neste sentido, isso reforçaria a tese precedente, segundo a qual a arte é independente de um saber cultural e, nesta ordem de ideias, se o artista se consegue libertar da tradição cultural, o observador pode fazer o mesmo. No entanto, parece haver aqui alguma precipitação, na medida em que, mesmo que o artista se desligue da tradição para inventar novas formas artísticas, não deixa de pertencer a uma época e a uma cultura particulares. Como podemos apreciar, no seu justo valor, o movimento surrealista, sem conhecer o contexto cultural, histórico e até político em que surgiu? Quando um movimento artístico se apresenta

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como revolucionário, isso não significa que essa revolução se produz exclusivamente no seio da história da arte. A revolução artística tem também causas sociais que não podem ser isoladas do contexto em que surgem as obras de arte.

Terceira parte: Ser-se culto reforça a apreciação estética

Assim, mesmo que nada nos impeça de experimentar prazer numa obra de arte de que não se conhece o contexto de criação, ou a biografia do autor, poder-se-á dizer que ser-se culto reforça o gosto artístico. Com efeito, esse gosto, sendo uma tarefa individual antes de ser uma questão de conhecimento, pode e deve ser cultivado. Neste sentido, a cultura afina o gosto, tal como o gosto gera a vontade de cultura, ou de nos cultivarmos.

Conclusão: Ser-se culto não é uma condição necessária para se ser sensível à beleza ou à arte em geral. Mas a cultura é necessária se quisermos cultivar o nosso gosto.

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• CAPÍTULO 2 •

“Cada um de nós é, assim, formado por três tipos de mestres. O discípulo, em que as suas diversas lições se contrariam, é mal educado, e nunca estará em conformidade consigo mesmo; aquele no qual elas caem todas nos mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, encontra sozinho o seu caminho e vive consequentemente.”

TEORIA DA EDUCAÇÃO - ROUSSEAU

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Explicação de Texto - Rousseau, Émile

O texto: “Cuidamos das plantas através da cultura, e os homens através da

educação. Mesmo que o homem nascesse grande e forte, o seu tamanho e a sua força ser-lhe-iam inúteis antes de aprender a servir-se deles; ser-lhe-iam prejudiciais por impedir os outros de lhe prestar assistência; e, abandonado a si

1.Esta teoria da educação (muito ao contrário do que defendem, sobretudo, alguns políticos muito apressados em tirar as conclusões que lhes convêm) está em perfeita conformidade com o ideal do século das Luzes, mesmo concedendo Rousseau um lugar privilegiado ao sentimento (linhas 1 a 6) e às lições da experiência.

2. O desafio colocado por Rousseau é crucial, pois a questão da educação é a questão da realização do homem, do processo necessário (e desejável) de transformação da criança num indivíduo autónomo.

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mesmo, morreria de miséria, mesmo antes de ter conhecido as suas necessidades. Lamentamo-nos da infância; não vemos que a raça humana teria perigado, se o homem não começasse por ser criança. Nascemos fracos, temos necessidade de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, temos necessidade de juízo. Tudo o que não temos na altura do nascimento, e de que precisamos quando somos adultos, é-nos dado pela educação. Esta educação vem-nos da natureza, dos homens e das coisas. O desenvolvimento interno das nossa faculdades e dos nossos órgãos corresponde à educação da natureza; o uso que aprendemos a fazer deste desenvolvimento vem da educação dos homens; e o que adquirimos através da nossa experiência com os objetos que nos afetam correponde à educação pelas coisas. Cada um de nós é, assim, formado por três tipos de mestres. O discípulo, em que as suas diversas lições se contrariam, é mal educado, e nunca estará em conformidade consigo mesmo; aquele no qual elas caem todas nos mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, encontra sozinho o seu caminho e vive

consequentemente. Só deste se pode dizer que é bem educado”.

Tese: Neste texto, Rousseau estabelece um paralelo entre a cultura das plantas e a educação dos homens. O seu objetivo, para além de sublinhar a necessidade da educação e a feliz condição do homem apesar da sua fraqueza natural, é o de definir o que é uma boa educação. Este texto não é, como veremos, incompatível com a crítica que faz Rousseau da cultura como desnaturação no Second Discours e no Discours sur les sciences et les arts. A tese dos três mestres (coisas, natureza e homem) permite repensar a educação e descobrir o fundamento das teorias mais modernas da educação. Trata-se de um texto com atualidade, na medida em que lembra que a educação não deve reduzir-se ao treino.

Elementos de explicação:

★ Linhas 1 a 6: Após um paralelo entre as plantas e os homens (associando a cultura a um

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acompanhamento do movimento da natureza, ao facto de cuidar dela), Rousseau sublinha que a fraqueza natural do homem (ser inacabado, teoria da neotenia, ser de Prometeu) é na realidade um dom feliz da natureza. É o que quer dizer quando imagina um recém-nascido grande e forte, mas incapaz de usar as suas forças. Se o recém-nascido, a criança, não tivesse essa aparência fraca, não cuidaríamos dela, nem se pensaria na hipótese de lhe prestar assistência. Talvez Rousseau queira sugerir que é a vulnerabilidade da criança que nos leva a cuidar dela. A fraqueza, a fragilidade da criança sublinha o seu inacabamento, a sua imaturidade e faz apelo à maturação pela cultura, pela educação. Conclui, assim, que não nos devemos queixar dessa fragilidade da infância (aliás, uma demasiada robustez seria o sinal de um acabamento, que esconderia a plasticidade que é o ponto chave da possibilidade de aperfeiçoamento que caracteriza o homem por oposição à rigidez do instinto no animal).

★ Linhas 7 a 10: Rousseau limita-se a sublinhar que essa fraqueza exige cuidados tanto ao nível do corpo

como do espírito (“nascemos estúpidos”). Na verdade, tudo é compensado pela educação. Poderíamos pensar que Rousseau sugere que nós só somos cultura e que tudo nos é dado pelos outros (o que colocaria questões inultrapassáveis à sua crítica contra a cultura desnaturante; com efeito, se nada existe de natural, como poderíamos falar de desnaturação?)

★ Mas nas linhas 11 a 15, vai sublinhar que a educação não se reduz àquela que é recebida dos homens; há também a educação através da natureza e através das coisas. Mesmo sendo verdade que nascemos inacabados, a natureza encarrega-se de, através do “desenvolvimento interno das nossas faculdades e órgãos”, de nos assegurar o cumprimento de objetivos naturais; é portanto possível um movimento natural e um movimento contra natura. E, tal como a cultura para a planta, a educação é já pré-orientada por este movimento natural, inato. O adquirido não se opõe, então, ao inato, não vem preencher um vazio, vem prolongá-lo, ajudar a fazer uso do que em nós é inato. À educação recebida dos outros acrescenta-se a

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experiência pessoal das coisas. O mundo físico, o mundo dos outros e a nossa própria natureza (são estes os nossos mestres) são as três fontes de educação que impede qualquer tentativa de reduzir a educação a um treino, deixando espaço para a autoformação e colocando limites à estruturação de si pelos outros.

Estes últimos esclarecimento permitem a Rousseau distinguir a boa da má educação: a boa educação seria aquela que concilia os três mestres, que permite salientar no ser educado aquilo para que tenderia naturalmente. A educação não é, portanto, um treino, uma formatação, ela só é aquilo que permite ao indivíduo tornar-se por si mesmo aquilo que ele é. Esta teoria da educação (muito ao contrário do que defendem, sobretudo, alguns políticos muito apressados em tirar as conclusões que lhes convêm) está em perfeita conformidade com o ideal do século das Luzes, mesmo concedendo Rousseau um lugar privilegiado ao sentimento (linhas 1 a 6) e às lições da experiência.

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Explicação de Texto. Rousseau

O texto: “Cuidamos das plantas através da cultura, e os homens através da educação. Mesmo que o homem nascesse grande e forte, o seu tamanho e a sua força ser-lhe-iam inúteis antes de aprender a servir-se deles; ser-lhe-iam prejudiciais por impedir os outros de lhe prestar assistência; e, abandonado a si mesmo, morreria de miséria, mesmo antes de ter conhecido as suas necessidades. Lamentamo-nos da infância; não vemos que a raça humana teria perigado, se o homem não começasse por ser criança. Nascemos fracos, temos necessidade de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, temos necessidade de juízo. Tudo o que não temos na altura do nascimento, e de que precisamos quando somos adultos, é-nos dado pela educação. Esta educação vem-nos da natureza, ou dos homens ou das coisas. O desenvolvimento interno das nossa faculdades e dos nossos órgãos corresponde à educação da

natureza; o uso que aprendemos a fazer deste desenvolvimento vem da educação dos homens; e o que adquirimos através da nossa experiência com os objetos que nos afetam correponde à educação pelas coisas. Cada um de nós é, assim, formado por três tipos de mestres. O discípulo, em que as suas diversas lições se contrariam, é mal educado, e nunca estará em conformidade consigo mesmo; aquele no qual elas caem todas nos mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, encontra sozinho o seu caminho e vive consequentemente. Só deste se pode dizer que é bem educado”.

Elementos de problematização e de Introdução.

“O Emílio” constitui um tratado consagrado por Rousseau à questão da educação. Para Rousseau, neste excerto, trata-se de nos interrogarmos sobre a

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articulação entre a natureza e a cultura e a passagem de uma para a outra. A educação é, com efeito, o processo que permite ao homem sair do seu estado natural para que se realize e atinja o seu estado final. Ora, este processo tem os seus perigos. Se a educação nos faz sair da natureza para acedermos à cultura, como garantir que não se trata de um processo de desnaturação? Rousseau aborda, então, a noção de educação para estudar as suas modalidades, o seu sentido, a sua função. Mas porque é que o homem precisa de educação? Esta pergunta parece ter uma resposta óbvia. Trata-se, no entanto, de uma questão essencial que desempenha um papel fundamental na atribuição de sentido à educação, concebida não como uma desnaturação, mas como uma forma de prolongar e perfazer ou aperfeiçoar a natureza do homem.

Estes elementos são apresentados em dois momentos, em dois tempos, digamos assim. Primeiro, Rousseau esclarece a necessidade da educação. Poder-se-ia lamentar que a natureza não tenha criado o homem completo desde o nascimento, mas a fraqueza da infância preenche uma função que Rousseau esclarece na primeira parte do texto, dando à educação todo o seu

sentido. Num segundo tempo (que corresponde às últimas linhas), Rousseau deduz dessa primeira abordagem a natureza da educação, que não é um simples processo artificial, mas que tem origem em três “mestres”.

❖ Num primeiro tempo, então, Rousseau explica por que razão a educação é necessária. O paralelo com a cultura, a transformação de uma semente insignificante numa planta vistosa, indica que a educação tem uma função que poderíamos comparar com o amanho das terras. A noção de “amanho” ou de cultivo remete para a noção de produção. É a educação que produz o homem.

❖ Esta primeira abordagem é justificada pelo facto de o homem nascer fraco e desprovido (como já dizia Platão no Protágoras) o que, no final de contas, é uma coisa boa: é esta fraqueza que faz com que os outros homens se interessem pela criança e cuidem dela. Não fosse assim, o homem morreria antes de tomar consciência das suas necessidades, nas suas palavras “antes de ter conhecido as suas necessidades”, expressão esta um pouco enigmática,

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que significa simplesmente que sem a ajuda dos seus semelhantes, o homem não acederia ao conhecimento de si mesmo, muito menos a ser capaz de assegurar a sua sobrevivência. No seu Second discours, Rousseau completa esta ideia descrevendo este sentimento que leva os homens a preocupar-se com os seus semelhantes sempre que estes parecem mais fracos (na velhice, na infância, na doença...).

❖ A fraqueza do homem recém-nascido é portanto uma feliz providência da natureza (não temos de nos lamentar por o homem nascer inacabado), e é ela que explica a necessidade da educação, definindo, por essa via, o seu sentido. A educação é o processo que deve permitir dotar o homem de tudo aquilo de que originalmente ele é desprovido. Ela organiza a passagem da infância para a idade adulta, dotando o indivíduo de tudo o que lhe falta, para fazer dele, retomando a fórmula do Contrato Social, “um ser inteligente, e um homem”.

❖ Esta educação é proteiforme (polimorfa) e não se reduz à educação académica. Rousseau identifica três mestres: a natureza, os homens e as coisas. A

educação da natureza educa-nos muito simplesmente fazendo-nos crescer e transformando-nos espontaneamente em homens (“desenvolvimento interno”). Mas isto não basta, pois ainda nos falta saber e poder conhecer o ser em que nos tornamos para saber como fazer uso dele. A educação dos homens, inculcando-nos saberes e princípios, ensina-nos a fazer bom uso das liberdades e das faculdades com que a natureza nos vai progressivamente completando. Por fim, a “lição das coisas” corresponde à aprendizagem pela experiência, pela prática.

❖ A parte final do texto atribui a estes três mestre as suas respetivas funções. Nenhuma é mais importante do que as outras e esta ideia de igual importância dos três mestres parece ser a ideia central que Rousseau quer transmitir no “Emílio”. A educação só tem sucesso e a criança só é bem educada se a educação respeitar a natureza da criança e a natureza em geral. Por isso, é absolutamente indispensável garantir a harmonia entre os três mestres, que devem prosseguir os mesmos objetivos tendo em vista assegurar a

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coerência do indivíduo consigo mesmo. A noção de harmonia é fundamental, pois trata-se, antes de mais, de não desnaturar o homem, mas de preservar aquilo que ele é naturalmente. Temos, então, de prestar atenção àquilo que a natureza e as coisas – e não só os homens – têm para nos ensinar.

Conclusão: Este excerto do início do livro “O Emílio” permite compreender o interesse que Rousseau concede à educação. O desafio colocado por Rousseau é crucial, pois a questão da educação é a questão da realização do homem, do processo necessário (e desejável) de transformação da criança num indivíduo autónomo.

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• CAPÍTULO 3 •

A busca da verdade exige que tenhamos algumas certezas, por exemplo, a respeito dos passos que nos permitem alcançar o conhecimento.

BUSCA DA VERDADE E DÚVIDA

Page 23: Textos e Comentários

A busca da verdade pode dispensar a dúvida?

Problematização/Introdução.

Sentimos dúvidas quando não estamos seguros de nada, quando não

conseguimos elaborar um juízo definitivo, isto é, dizer “isto é verdadeiro” ou “isto é falso”. Estar em dúvida significa, ou suspender totalmente o juízo, ou afirmar algo, tendo consciência de que nos podemos estar a enganar.

1. A busca da verdade exige que tenhamos algumas certezas, por exemplo, a respeito dos passos que nos permitem alcançar o conhecimento.

2. Acontece que a dúvida em filosofia não é uma incerteza que, de forma negativa, nos distancia do verdadeiro.

3. A dúvida é o meio seguro para filosofar, isto é, para pôr à prova as nossas crenças, as nossas ilusões e falsos saberes que ensombram o nosso espírito.

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Page 24: Textos e Comentários

Neste caso, o juízo é provisório. Estar na verdade, pelo contrário, exclui a dúvida. Mas, como indica a pergunta, buscar a verdade não é ainda estar na posse dela. Muito frequentemente, para obter a verdade, é preciso começar por pôr em dúvida aquilo em que se acredita, pois os nossos preconceitos, as nossas opiniões, as nossas ideias recebidas encerram no seu interior juízos sem fundamento ou juízos falsos. Por outras palavras, a dúvida seria o motor da busca da verdade: é por duvidar que estamos em busca da verdade.

No entanto, a busca da verdade exige que tenhamos algumas certezas, por exemplo, a respeito dos passos que nos permitem alcançar o conhecimento. Com efeito, para progredir na pesquisa da verdade temos necessidade de nos apoiar em certezas. Não podemos, portanto, duvidar sempre, ou duvidar de tudo, se quisermos progredir na via da ciência e do saber.

Primeira parte: Duvidar é a primeira etapa do conhecimento.

Aquele que não duvida corre o risco de não progredir no conhecimento e na verdade. Com efeito, se não duvidar,

corro o risco de não tomar consciência da minha ignorância. A dúvida permite tomar consciência da ignorância. Duvidando, sei, pelo menos, que não sei. Ou que aquilo em que acredito não é seguro ou não está provado; portanto, pode ser falso. Nesta ordem de ideias, a dúvida oferece-me uma primeira verdade, é certo que pobre em conhecimento, mas mesmo assim fundamental para me pôr a caminho em busca da verdade. Revela-me que aquilo em que acredito é um preconceito, isto é, uma opinião que se impôs a mim, sem que eu próprio a tenha fundamentado, ou sequer analisado.

Segunda parte: A busca da verdade exige a posse de certezas.

Podemos admitir que a dúvida é inseparável da busca da verdade, mas a busca da verdade deve também ser capaz de dispensar a dúvida. Com efeito, se estou a fazer, por exemplo, uma demonstração matemática, não posso deixar de fundamentar a minha argumentação em princípios que aceito sem os demonstrar e sem duvidar da sua verdade. Neste sentido, a busca da verdade pode dispensar a dúvida, pelo menos, em certos etapas da

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Page 25: Textos e Comentários

demonstração. Se, no momento em que utilizo o teorema de Pitágoras para determinar a superfície de um triângulo, fosse necessário voltar atrás para me assegurar da verdade desse teorema, não seria capaz de avançar na resolução do meu problema, até porque antes de encontrar os fundamentos do teorema teria ainda de demonstrar os fundamentos desses fundamentos e assim por diante. A busca da verdade corresponderia a uma regressão sem fim, e recuaria em vez de avançar. É, então claro: saber duvidar é também saber quando não ou já não duvidar, para progredir no caminho da verdade

Terceira parte: A certeza nunca é absoluta; temos sempre de encarar a hipótese de nos estarmos a enganar.

Até agora, o que foi já exposto não permite afirmar que existem verdades absolutas que escapem a todos os tipos de dúvida. Com efeito, uma teoria da Física só é verdadeira, por exemplo enquanto não existir uma prova (um acontecimento natural ou uma experiência de laboratório) que contradiga as predições que podem ser estabelecidas a partir dela. Por outras palavras, uma

teoria é verdadeira até ao momento em que se demonstre que ela é falsa. Isto implica que mantenhamos a ideia de que ela possa ser falsa, mesmo que nenhum facto, nenhuma prova tenha, até ao momento, estabelecido a possibilidade da sua falsidade. Considerar que a verdade é, de alguma forma, provisória ainda é o melhor meio para fazer avançar a busca dela. A dúvida desempenha, portanto, a função de motor da descoberta.

Conclusão.

A busca da verdade não pode, de facto, dispensar a dúvida. Ela é o motor desta busca num duplo sentido: é a dúvida que desencadeia essa busca, e é também ela que alimenta o movimento de pesquisa. E isto é assim, mesmo que, por vezes, a busca da verdade deva dispensar a dúvida para que possa progredir.

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A busca da verdade pode dispensar a dúvida?

Ávido de certezas, o senso comum não confia na dúvida. Com efeito, é vulgar haver quem critique o juiz por não ter a certeza dos atos de um criminoso, ou o médico que afirma não ter a certeza do diagnóstico e do tratamento de uma doença. No entanto, a dúvida não significa uma renúncia à verdade, se for utilizada como um meio de a procurar. Duvidar é não receber no nosso espírito o que nos vem do exterior sem o ter submetido a um exame crítico. As nossas sensações, as nossas perceções parecem estar ao abrigo da dúvida, por exemplo, quando admitimos saber alguma coisa por ouvir dizer, ou quando vemos aquilo que consideramos uma evidência. Assim, os prisioneiros da caverna no célebre texto da República de Platão não duvidam das imagens que percecionam no fundo da caverna, mesmo que saibamos que elas não passam de sombras, de imagens

com forma de objetos ou realidades sensíveis. Estes homens são prisioneiros das aparências, pois não põem em dúvida aquilo que veem. A dúvida relativamente ao conhecimento é, então, definida como o contrário do conformismo, da adesão, sem provas, a uma ideia, a dúvida é o recuo necessário da reflexão contra a crença. Será que, mesmo assim, ela desempenha um papel na busca da verdade? Mais do que isso, será ela é tão necessária que podemos afirmar que a busca do verdadeiro não pode dispensá-la? A busca da verdade, os antigos chamavam-lhe filosofia, implica que compreendamos paradoxalmente que esta exigência da dúvida é sempre um meio, uma maneira particular de pesquisar a verdade, sem estar seguro de a encontrar. Se não pode dispensar a dúvida, então a filosofia nunca está acabada.

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Page 27: Textos e Comentários

I. A busca da verdade é a busca do saber, não de certezas.

✤ Platão afirmava que a origem da filosofia é o espanto, isto é, a atitude que consiste em interrogar-se, em não se satisfazer com respostas indiscutíveis e com opiniões. A filosofia não possui a verdade, procura por ela.

✤ O reconhecimento da sua própria ignorância é a condição para a pesquisa da verdade. Como pensava Sócrates que pretendia não saber nada, mas procurar o saber, a busca da verdade é uma pesquisa e não uma posse. É preciso, portanto, num primeiro tempo, pôr em dúvida as nossas certezas e preconceitos.

✤ A dúvida é um momento essencial da busca da verdade, pois permite interrogar a realidade sem a confundir com o que vemos nela. A verdade não é a realidade; a verdade é definida como a adequação de uma representação com o que ela representa. O verdadeiro, neste sentido, é um enunciado que corresponde à realidade. Tomemos o exemplo do

lógico Tarski que diz que a proposição “a neve é branca” é verdadeira, se e somente se a neve for branca! Neste caso, a dúvida pode ser o meio de interrogar a realidade e fazê-la corresponder a um discurso verdadeiro

II. A dúvida como método de pesquisa da verdade.

✤ Foi Descartes quem utilizou a dúvida no Discurso do método explicitamente para alcançar a verdade. Descartes começa por pôr em dúvida os dados dos nossos sentidos, sob o pretexto de que eles são enganadores e nos conduzem a ilusões. Claro, não basta duvidar para fazer cessar as nossas ilusões, mas a dúvida permite detetar certezas que podem enganar-nos, como é o caso das ilusões óticas.

✤ O segundo momento da dúvida no Discurso do método é o questionamento dos erros de raciocínio. Desta vez, o argumento para pôr em dúvida os nossos erros é a possibilidade de todos nós, e até os melhores matemáticos, fazermos erros de cálculo, por desatenção ou precipitação. Neste caso, a dúvida

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Page 28: Textos e Comentários

é aplicada também às ciências, apesar de parecerem ao abrigo de incertezas e serem um meio seguro de pesquisar o verdadeiro.

✤ Finalmente, Descartes utiliza a dúvida para pôr à prova da verdade a própria realidade. Utiliza o argumento do sonho para mostrar que não possuímos nenhum critério fiável para distinguir a realidade do imaginário. Para aceder ao real, somos obrigados a fiar-nos nos nossos sentidos, sem sabermos se estamos a dormir ou se estamos acordados.

III.A busca da verdade necessita da dúvida, desde que seja capaz de sair dela, isto é, de a utilizar como um meio.

✤ Para os céticos, a dúvida consiste em suspender o juízo, isto é, em não negar nem afirmar nada: “a dúvida é um agradável travesseiro para uma cabeça bem feita”, dizia Montaigne. Embora a dúvida seja necessária para nos desembaraçarmos dos preconceitos, das opiniões, das crenças, ela não é o objetivo da filosofia. Tal como acontece com os

céticos que duvidam por duvidar de maneira confortável, a dúvida cartesiana seria insustentável, a partir do momento em que já não sabemos distinguir o real do imaginário.

✤ Para os céticos, a dúvida torna-se uma espécie de filosofia de vida que consiste na suspensão do juízo e a só colocar uma questão sem esperar resposta: “O que é que eu sei?”. No termos da dúvida, isto é, tendo-a levado ao extremo de duvidar da nossa própria realidade e do que nos envolve, Descartes alcança a verdade: “penso, logo existo”. Este é o primeiro princípio, o fundamento que lhe permitirá com certeza construir a árvore do saber: a dúvida cética já não terá qualquer razão de ser.

Conclusão:

A busca da verdade define o trajeto do filósofo em busca do saber. Ora, a questão era saber da possibilidade de dispensar a dúvida na busca da verdade. Acontece que a dúvida em filosofia não é uma incerteza que, de forma

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Page 29: Textos e Comentários

negativa, nos distancia do verdadeiro. A dúvida é um método, uma exigência de fazer corresponder o discurso à realidade sem precipitações, mas com o recuo necessário da reflexão. É neste sentido que a dúvida nos permite pesquisar o verdadeiro e que essa busca não pode evitar a dúvida. A dúvida é o meio seguro para filosofar, isto é, para pôr à prova as nossas crenças, as nossas ilusões e falsos saberes que ensombram o nosso espírito.

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• CAPÍTULO 4 •

A distinção platónica entre opinião (doxa) e opinião adequada (ortodoxa) permite pensar, pelo menos, em crenças não são contrárias à razão por serem razoáveis, diríamos nós.

CRENÇA E RAZÃO

Page 31: Textos e Comentários

A Crença é contrária à Razão?

Problemática:

Enquanto, por um lado, a crença é espontaneamente associada ao que não tem fundamento na razão, ao irracional,

e a razão não se reduz ao racional, uma vez que o excesso de razão pode não ser razoável (talvez convenha distinguir os dois sentidos de razão: racional e razoável), por outro lado, o irracional não se reduz ao que é contrário à razão;

1. Podemos, então, pensar que precisamos de crenças para viver e que as crenças são uma espécie de reação defensiva da natureza contra a razão. É o “resgate da inteligência” que temos de pagar por a termos aprisionado.

2. A razão é limitada: não pode demonstrar tudo cientificamente, mas pode apreender o momento em que a crença pode intervir no exercício do espírito. Ela pode fornecer uma gramática de consentimento, de conformidade.

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• Secção 1 •

Primeiro Modelo

Digite para introduzir texto

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pode ser também o que está para lá da razão, o que é estranho à razão (“o coração tem as suas razões que a razão não conhece de todo”, segundo Pascal). A pergunta formulada convida portanto a interrogarmo-nos sobre os fundamentos da crença, sobre o que é contrário ou não à razão e sobre a distinção entre razoável e racional.

Esquema

I. Se o uso da razão exige a rejeição da crença, então a crença parece contrária à razão.

✤ As pesquisas, que pretendemos que sejam objetivas e rigorosas, exigem que façamos uma crítica das opiniões recebidas, dos preconceitos, das crenças comuns que constituem os primeiros “obstáculos epistemológicos” (Bachelard), por se fundamentarem exclusivamente no “ouvir dizer”, nos desejos, na experiência espontânea, na força da adesão comum, e portanto por não se fundamentarem na razão. É esta a perspetiva que nos é transmitida pela alegoria da caverna de Platão,

mas também pela análise freudiana e marxista da ilusão religiosa.

✤ Foi através da rutura com as explicações religiosas ou míticas, em resumo, com as abordagens baseadas na fé, na crença religiosa, que o pensamento científico ou filosófico nasceu.

✤ A preocupação com a verdade, exigência da razão, opõe-se à adesão à crença; a razão convida ao distanciamento crítico, à dúvida.

Transição:

A crença parece, então contrária à razão, tanto nos seus fundamentos quanto na adesão que ela implica; mas será que podemos dizer, a partir daqui, que todas as crenças são irracionais?

II. Certas crenças não são contrárias à razão.

✤ A distinção platónica entre opinião (doxa) e opinião adequada (ortodoxa) permite pensar, pelo menos, em crenças não são contrárias à razão por serem razoáveis, diríamos nós.

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✤ Por outro lado, a crença religiosa pode apoiar-se numa teologia racional, por exemplo, através das provas da existência de Deus, ainda que nelas possamos ver algumas contradições lógicas.

✤ O pensamento racional parece também apoiar-se em certas crenças, postulados admitidos sem serem demonstrados ou provados racionalmente. “Não há ciências sem pressuposições”, diz Nietzche. A ciência, apesar da sua racionalidade, não desemboca em verdades absolutas, mas tão só em verdades provisórias, que não são mais do que crenças racionais.

✤ Então, a crença não é necessariamente contra a razão, pode ser que esteja para além da razão: Pascal. A crença sublinha os limites do poder da razão, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista prático (por exemplo: Kant e o seu postulado da existência de Deus, um dos três postulados da moral; os outros são a liberdade e a imortalidade da alma).

Transição:

Assim sendo, a crença não é necessariamente contrária à razão; se há crenças que não se opõem à razão, em que condições crença e razão podem coexistir?

III.Uma coexistência possível, embora não pacífica.

✤ O que o uso da razão rejeita liminarmente e em absoluto não é a crença propriamente dita, mas as suas derivas que são o fanatismo (ideológico, religioso, sectário) cego, e a superstição que alimenta o medo e impede, ao mesmo tempo, o progresso do conhecimento (uma vez que a superstição só pode viver da ignorância) e a vida razoável, isto é, sábia (por exemplo, a filosofia epicurista, que desenvolve princípios de vida sábia e feliz, começa por uma física, que tem por objetivo desmistificar e desmitificar o mundo, de separar o divino do puramente físico, pois é o medo dos deuses que perturba a alma e impede os homens de alcançar a felicidade, a ataraxia). Por outras palavras, o que o uso da razão rejeita, é a crença que nega a ciência,

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que ignora que ela não é uma crença, ou uma mera opinião.

✤ A opinião é, por vezes, o único ponto de apoio, a que podemos recorrer para conduzir a nossa vida, na falta de regras objetivas sobre a felicidade, por exemplo. E se assim fizermos, ser-nos-á possível ter uma conduta consciente, enquanto a dúvida permanente nos impede de viver e de agir (a moral provisória de Descartes).

✤ Podemos, então, pensar que precisamos de crenças para viver e que as crenças são uma espécie de reação defensiva da natureza contra a razão. É o “resgate da inteligência” que temos de pagar por a termos aprisionado. A ilusão é, nesta ordem de ideias, uma necessidade razoável, isto é, que não se opõe à razão, mas que se faz a partir da multiplicidade de razões e do seu agrupamento diverso, não unificado num modelo único.

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Page 35: Textos e Comentários

A crença é contrária à razão?

Concordamos facilmente com a ideia de que a crença é um saber fraco, ora ingénuo (a criança acredita no Pai Natal), ora perigoso (o fanático que mata em nome de Deus). Pelo contrário, o que é racional parece-nos fiável porque é logicamente coerente, ou porque corresponde à realidade, ou porque é eficaz, ou por todas estas razões juntas. Numa primeira abordagem, então, crença e razão parecem estar em oposição uma à outra: a fé não é o saber, ela remete para uma convicção pessoal, enquanto a razão pretende a objetividade. Mas não será esta oposição demasiado simplista? Não haverá crenças compatíveis com as exigências da razão? Como poderemos explicar o fracasso relativo do positivismo ou o sucesso, limitado é certo, da religião na época da ciência? Podemos racionalizar e acreditar em certas crenças, ou temos de defender que a razão se demite

quando se compromete com a fé?

Veremos que, embora o exercício da razão consista, antes de mais, em pôr em causa a crença, é mesmo assim necessário tolerar algumas crenças, e até relativizar as próprias ambições da razão em proveito de uma crença que ainda não somos capazes de qualificar.

A crença (pistis) é o mais baixo dos saberes. Como demonstra Platão com a metáfora da linha dividida em quatro secções, a crença é o saber daqueles que confundem as coisas com o seu reflexo. Crer é, do ponto de vista epistemológico, atribuir à sensação um poder excessivo de juízo. Assim, os escravos aprisionados no fundo da caverna acreditam na realidade exclusiva das sombras e, deste modo, se enganam convictamente. Todavia, a razão libertar-se totalmente da crença. Se o percurso racional consiste em pôr em dúvida as

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• Secção 2 •

Segundo Modelo

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aparências, nem por isso essa razão pode deixar de se apoiar num fundamento “firme e seguro”, como diz Descartes. Ora, se o exercício hiperbólico da dúvida tem de parar perante a evidência de que o sujeito que duvida não pode ser posto em dúvida, esse mesmo sujeito tem de admitir que, quando pensa, a sua razão não é traída por um “génio maligno”. Como correlato, Descartes admite um Deus verdadeiro conhecido por intuição e não por demonstração.

Há crenças, então, que a razão reprova como as que são veiculadas pela superstição, e outras que a razão aprova porque simplesmente não consegue fundamentar-se completamente em si mesma. A escola positivista procurou, no entanto, demonstrar que esta concessão feita à crença deveria ser ultrapassada. Assim, Comte distingue três estados (teológico, metafísico e positivo) tendo em vista defender que entrámos numa época de ordem e de progresso, onde a razão deve reinar sem partilhas, mesmo nos domínios onde as demonstrações parecem mais difíceis de realizar, como é o caso das representações coletivas que fazem apelo a estudos sociológicos. É também o caso do inconsciente que penetra a psicanálise com as armas da ciência. Freud,

um espírito positivo, também pretendia que só o demonstrável pudesse ser considerado verdadeiro. A própria crença torna-se objeto de uma análise apertada, através dos estudos de Freud sobre as motivações profundas da crença religiosa. Aquilo que Freud concede às crenças é que elas têm as suas razões (consolar o homem perante a angústia da morte) e portanto um futuro próprio.

Contra esta captura da fé pelo saber, podemos opor duas opções filosóficas: a da continuidade entre os dois domínios, ou as de rutura em benefício da fé. A primeira opção é ilustrada pelo pensamento de S. Tomás de Aquino que queria ver na filosofia a serva da teologia. Segundo ele, a razão deve estender a sua influência, as suas luzes, a todos os objetos de conhecimento. Poderá, assim, aproximar-se da ideia de Deus. Mas não será capaz de penetrar no domínio das verdades ditas reveladas. A segunda opção é ilustrada pelo existencialismo de Kierkgaard. A sua tese consiste em aceitar a ideia de uma salto no absurdo. O verdadeiro filósofo é o que se faz “cavaleiro da fé” e que corre deliberadamente o risco de passar do estado ético ao

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Page 37: Textos e Comentários

estado religioso, nas etapas que marcam o caminho da vida.

Kant, no seu célebre prefácio à Crítica da razão pura, escreveu que teve de “substituir a fé ao saber”. A razão é limitada: não pode demonstrar tudo cientificamente, mas pode apreender o momento em que a crença pode intervir no exercício do espírito. Ela pode fornecer uma gramática de consentimento, de conformidade.

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• CAPÍTULO 5 •

A busca da verdade é realmente um imperativo absoluto, mesmo em detrimento da nossa felicidade ou da dos outros? Esta questão não pode ser resolvida só no plano moral.

O DEVER DA VERDADE

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Temos o dever de procurar a verdade?

Elementos de problematização.

A verdade parece imediatamente conotada positivamente, por oposição aos seus contrários (a mentira, o erro) que aparecem como devendo ser

1. Buscar a verdade (tal como a sinceridade) é expor-nos a ser feridos por ela.

2. A referência à alegoria da caverna na “República” de Platão ilustra perfeitamente esta ideia: o prisioneiro que se liberta da caverna e procura (e encontra) a verdade acaba por pagar um alto preço pela sua ousadia, sendo linchado pelos antigos companheiros de cativeiro que se recusam ouvir o que ele tem para dizer.

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• Secção 1 •

Primeiro Modelo

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evitados. A pergunta aborda este tema num ângulo particular: não se trata de saber se se deve dizer a verdade, mas se devemos procurá-la, não se devemos desvendar o que sabemos ou guardar segredo, mas se devemos dedicar-nos a pesquisar o que ignoramos. Trata-se, no fundo, de nos perguntarmos sobre se podemos ficar satisfeitos com a nossa ignorância ou se temos o dever de sair dela. Não é, portanto, tanto a questão do dizer, do desvendar a verdade, mas sobretudo a da ou das ações a levar a cabo para a encontrar. Se fizermos a pergunta ao contrário (podemos ficar satisfeitos com a nossa ignorância?), a verdade parece impor-se como um dever: Que género de homens seríamos nós, se pudéssemos ficar satisfeitos com nada saber? Não será a capacidade de conhecimento, de compreensão e de explicação do mundo que nos envolve, aquilo que distingue o homem dos outros animais?

Mas não nos basta ficar por aqui. Se reconhecermos a verdade como um dever, faltará ainda esclarecer a natureza desse dever. Um dever desta natureza não é, com efeito, evidente. Podemos condenar o ignorante pela sua ignorância? Como, de resto, pode ele saber que

ignora o que ignora? (paradoxo do Ménon de Platão: como saber que verdade procurar, uma vez que, por definição, se estamos em busca dela é porque não a sabemos). Assim, se a lei reconhece, em certa medida, o dever de dizer a verdade e castiga a mentira ou o perjúrio, buscar a verdade não é, de modo nenhum, uma obrigação jurídica. Mas o dever não é a mesma coisa que uma obrigação: o dever não nos é imposto do exterior, mas uma prescrição que impomos a nós próprios. Tem, por esta razão, uma dimensão moral que põe em jogo a nossa humanidade. Como já foi dito, renunciar a buscar a verdade parece consistir em renunciar a nos colocarmos à altura da nossa humanidade. Mas não podemos fazer outras escolhas? A busca da verdade é realmente um imperativo absoluto, mesmo em detrimento da nossa felicidade ou da dos outros? Esta questão não pode ser resolvida só no plano moral. Coloca também um desafio político e social. Ora, nestes domínios, não é evidente que se deva buscar a verdade em todos os casos, pois a verdade pode ter efeitos devastadores para cada um de nós e para os outros. O segredo, a mentira podem igualmente ter utilidade social, política, íntima e, pelo contrário, a

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verdade pode ter efeitos negativos. Nestas condições, em nome de quê haveremos de fazer da verdade um dever, um imperativo? Não valerá a pena, pelo contrário, ter algumas precauções.

Ficamos, assim, retalhados entre a representação que fazemos de nós mesmo e da nossa humanidade, segundo a qual a busca da verdade é o que faz de nós seres vivos distintos dos outros, e uma dimensão mais prática, segundo a qual a busca da verdade pode revelar-se prejudicial e perigosa, portanto, não um dever absoluto.

I. Fazer da busca da verdade um dever absoluto parece perigoso e prejudicial...

Podemos começar por explorar, nesta parte, a pista que é talvez a mais intuitiva: sabemos espontaneamente que a verdade é perigosa e pode revelar-se prejudicial. Temos, aliás, em geral experiência disso mesmo. A verdade pode fazer-nos infelizes (alguém que tenha dúvidas sobre a fidelidade do seu cônjuge deve

empregar todos os meios ao seu alcance, mesmo moralmente condenáveis, para se certificar da verdade?); é perigosa na esfera política (um jornalista deve trazer à luz do dia verdades que o Estado mantém secretas para o bem dos cidadãos?). A verdade tem, então, uma conotação positiva, mas há, no fim de contas, uma razão que nos pode levar a sentir, muitas vezes, dificuldades em cumprir o nosso dever de verdade. Por esta razão, buscar a verdade a qualquer preço não será um dever, se atribuirmos a esse dever uma natureza absoluta: fazer da busca da verdade um imperativo, é expor-nos a sofrer consequências negativas.

✤ Buscar a verdade (tal como a sinceridade) é expor-nos a ser feridos por ela. Queremos procurar sempre saber o que os outros pensam de nós, por exemplo? A verdade é difícil de dizer e de ouvir, ela prejudica o bom funcionamento das relações sociais. Esta é uma ideia explorada nomeadamente por Pascal nos seus Pensamentos.

✤ Esta perigosidade estende-se ao domínio político: o segredo é necessário em certos domínios –

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diplomático, militar. O nosso dever de cidadão, vivendo numa democracia, é respeitar o bom funcionamento das instituições, não prejudicando o interesse geral, tentando desvendar o que é e deve manter-se (pelo menos, durante um certo tempo) um segredo de Estado.

✤ Em “Reações políticas”, Constant opõe-se ao dever de dizer a verdade em todas as circunstâncias. Podemos retomar as suas palavras para nos opormos a um dever de procurar a verdade em todas as circunstâncias. Por outras palavras, não podemos falar em dever de procurar sempre a verdade, porque, sendo ela por vezes útil, por vezes prejudicial, não tem as características de um imperativo.

Conclusão 1:

Fazer da busca da verdade um dever é não ter em conta as suas consequências práticas, por vezes prejudiciais. Não podemos impor a nós próprios a busca da verdade de maneira incondicionada, porque nos exporia a

efeitos negativos, do ponto de vista afetivo, político, social...

Mas o próprio do dever, na sua dimensão moral, não será precisamente o ele ser desinteressado? A nossa humanidade não se joga justamente na nossa capacidade para agir em nome de valores, mesmo que saibamos que isso é arriscado para nós? Porque a busca da verdade pode ser prejudicial, quer isso dizer que devemos renunciar a ela?

II. ... mas isso não é razão para renunciar a fazer dela um dever moral...

Nesta parte podemos conduzir a reflexão de um modo mais moral, para além das consequências práticas. Se a verdade for considerada uma coisa boa, então devemos lutar por ela a qualquer preço. O característico do dever moral é justamente ir para além dos nossos interesses pessoais, imediatos, sensíveis. Podemos mesmo dizer que é precisamente aquilo que não é imediatamente útil ou proveitoso que tem condições para ser considerado

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um dever. Não temos necessidade de impor a nós próprios o dever de procurar a verdade quando ela é útil. A busca da verdade por interesse científico não levanta verdadeiramente problemas de dever. A explicação e a compreensão do mundo que nos envolve permitem-nos dominá-lo e portanto viver melhor nele. Podemos interrogar-nos sobre as consequências técnicas que são retiradas da ciência, que, elas, podem ser catastróficas para a natureza e para o homem. Mas a verdade, em si mesma, definida como a adequação do discurso e do real, remete para o discurso. Por isso, as suas consequências práticas diretas são nulas. Buscar a verdade no domínio científico não tem portanto necessidade de ser erigida em dever. Os homens fazem-no espontaneamente, pois procuram conhecer o seu ambiente, por necessidade de sobreviver nele. A noção de dever só se coloca verdadeiramente nos domínios em que há uma contradição com os nossos interesses diretos. É pois, paradoxalmente, porque a investigação da verdade pode ser perigosa, que devemos impô-la a nós mesmos como um dever. Aqui se define a moralidade do homem, que consiste justamente em se ser capaz de ultrapassar os seus interesses em nome de

valores que são reconhecidos e se impõem como bons. Neste sentido, aliás, o dever não é um dado. Nós não o “temos”, não, pelo menos, de modo imediato: o dever é uma regra que impomos a nós próprios.

✤ Seria sem dúvida útil ter começado por trabalhar a noção de dever para estabelecer o elo com a ideia de que este é desinteressado e incondicionado: o dever é um fim em si mesmo, não é um meio com vista a uma finalidade que lhe seja exterior (não podemos, por exemplo, dizer que a verdade deve ser pesquisada somente quando é útil, pois, então, como já foi dito, não temos necessidade de fazer disso um dever, para que os homens o façam). Os texto de filosofia moral de Kant, nomeadamente os “Fundamentos da metafísica dos costumes”, permitem trabalhar a noção de dever moral neste sentido. O mesmo acontece com o conceito de humanidade, como afirma Kant em “Qu’est-ce que les Lumières”?

✤ A verdade constitui, assim, um bem que nos é necessário obter. A referência à alegoria da caverna na “República” de Platão ilustra perfeitamente esta

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ideia: o prisioneiro que se liberta da caverna e procura (e encontra) a verdade acaba por pagar um alto preço pela sua ousadia, sendo linchado pelos antigos companheiros de cativeiro que se recusam ouvir o que ele tem para dizer.

✤ Este texto permite, de resto, estabelecer a ligação entre o dever moral e a utilidade, pois a pesquisa da verdade não diz somente respeito à moral, nem à epistemologia: buscar a verdade é também um empreendimento de libertação. Através do conhecimento, os homens libertam-se de uma natureza, a que teriam de se submeter, se não procurassem a verdade, mas também das suas ilusões que os alienam. É este o sentido, por exemplo, do incentivo à investigação que faz Marx na “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, por considerar que essa é a única maneira de destruir as ilusões da religião, que se constituem como um instrumento de alienação e de dominação.

Conclusão 2:

Embora a busca da verdade possa produzir, por vezes, efeitos nefastos, isso não é razão suficiente para renunciar a ela. Moralmente, só encontramos a nossa humanidade na condição de fazer passar os nossos valores antes dos nossos interesses; nesta ordem de ideias, a busca da verdade impõe-se como um dever.

Como podemos, então, conciliar estes dois aspetos? Podemos seguir cegamente o nosso dever sem nos preocuparmos com as suas consequências? Haverá um meio de procurar a verdade, evitando o que ela pode ter de perigoso?

III. … desde que não o sigamos cegamente.

Foi dito na introdução que a formulação da pergunta nos convida a refletir sobre a ação (buscar a verdade) mais do que sobre a palavra (dizer a verdade). Já agora que reconhecemos na pesquisa da verdade um dever

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moral porque nela está em jogo a nossa humanidade, podemos ir um pouco mais longe interrogando-nos sobre as formas que toma essa pesquisa, tendo em vista limitar as suas consequências catastróficas. Para além das formas típicas dos domínios morais e científicos, a busca da verdade pode ainda tomar outras formas que permitam torná-la compatível com os nossos afetos e a nossa felicidade, e justifiquem que a imponhamos a nós próprios, sem por isso seguir esse dever cegamente, de uma maneira que seja contraprodutiva.

✤ O dever, pensado independentemente das suas consequências práticas, pode ser contraprodutivo por correr o risco de não ter sequência prática. Podemos conceber a possibilidade de pensar no dever sem, por isso, renunciar a refletir nas suas condições práticas de aplicação. Não podemos exigir dos homens que, como o prisioneiro da alegoria de Platão, ponham tudo em jogo em nome da verdade. Talvez valha a pena recorrer ao conceito de prudência de Aristóteles.

✤ Nestas condições, importa refletir em modalidade de busca da verdade que tornem esse dever realizável e

permitam que a busca da verdade não acabe por ser letra morta. A forma da verdade interessa tanto como o seu conteúdo. Se a verdade fere, não será tanto pelo que ela diz, mas mais pela forma como é dita.

✤ Assim, buscar a verdade é também e, talvez, em primeiro lugar procurar a linguagem adequada para encontrar uma verdade que seja audível e útil. A arte, por exemplo, constitui uma das múltiplas formas de busca da verdade, que pode evitar que esse dever nos conduza a odiar e a fugir da verdade, mais do que a procurá-la. É o que nos diz Proust, referindo-se à função de verdade da arte no tempo reencontrado.

Conclusão.

Temos o dever de procurar a verdade, pois nela se joga a dignidade humana. Todavia, esse dever deve ser adaptado à natureza da verdade que, por muito útil que seja, pode, mesmo assim, revelar-se destruidora se não for manuseada com precaução, ou com prudência.

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Page 46: Textos e Comentários

Temos o dever de procurar a verdade?

Problemática :

A formulação do tema pode surpreender. A verdade é um valor do conhecimento, que pertence ao domínio da ciência; a noção de dever é um valor da existência, que pertence ao domínio da moral ou da ética. Portanto, a ideia de um dever de procurar a verdade pode parecer estranha, na medida em que supõe que se pesquise a verdade na ciência e em outros domínios. Temos desejo de verdade, experimentamos o dever de a dizer quando a conhecemos, mas porque haveremos de ter o dever de a procurar? Para compreender esta noção de dever, temos de ter em conta que, contrariamente àquilo em que muitos acreditam, o homem não procura a verdade espontaneamente, nem procura a verdade só pela

verdade (conforto da ilusão), e que, se existe o desejo, ou até a necessidade, de verdade, este não é um desejo como os outros: talvez o homem, enquanto animal racional, tenha o dever de procurar a verdade, mesmo que ela seja contrária aos seus desejos e aos seus interesses imediatos. Este tema coloca, então, o problema da nossa relação com a verdade, do seu valor, da nossa liberdade perante ela e também das origens desse dever. Qual é a origem deste dever? A razão, a sociedade?

I. Embora tenhamos o dever de dizer a verdade, parece que somos livres de procurar ou não a verdade:

A moral impõe-nos que digamos a verdade, que sejamos verdadeiros nas nossas declarações (talvez dentro de certos limites, por muito que esses limites desagradem a Kant e à sua moral rigorosa)

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• Secção 2 •

Segundo Modelo

Page 47: Textos e Comentários

A sociedade, uma vez que se baseia em contratos e na confiança recíproca, exige igualmente que sejamos verdadeiros (salvo quando a verdade ameaça a vida em comum: dizer a verdade àquele que pretende prejudicar alguém, por exemplo, dizer a um assassino onde se encontra uma potencial vítima, ou a um terrorista onde é mais eficaz a colocação de uma bomba)

A busca da verdade é um desejo natural do homem, que o leva a condenar a mentira e a tentar aumentar os seus conhecimentos, na medida em que o conhecimento lhe permite adquirir poder sobre si mesmo e sobre o que o envolve.

Poderíamos pensar que a procura da verdade só tem valor pelas suas consequências, como pensou Epicuro que renunciou a uma pesquisa de conhecimento em si e por si. Se a verdade não nos permitir viver melhor, ela seria inútil e portanto melhor seria que não a procurássemos.

Transição:

Se é verdade que aspiramos quase naturalmente à verdade quando parece que ela está sempre distante de nós, será que podemos contentar-nos com essa relação “utilitarista” com a verdade?

II. Temos o dever de procurar a verdade.

Na nossa qualidade de seres racionais, mesmo que, no limite, a verdade nos incomode e não nos traga nada de interessante, podemos preferi-la à ilusão reconfortante ou à mentira vantajosa.

Enquanto seres humanos, dotados de consciência reflexiva, é nosso dever libertarmo-nos da inconsciência e da ignorância para aceder à verdade.

A verdade vale por si mesma, tal como o conhecimento. É uma valor, do mesmo tipo do Bem e do Belo. Devemos esforçar-nos por ela. A verdade vale por si e por nós.

Fazer da procura da verdade um dever e não somente uma necessidade é obrigarmo-nos a não

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Page 48: Textos e Comentários

nos satisfazermos com os conhecimentos que tenhamos, mesmo que sejam eficazes. É este sentido do valor da verdade que anima o cientista e que faz com que não se contente com o que descobriu, verificou, provou, e que qualifique as suas explicações ou teses como probabilidades, verdades provisórias, práticas. A verdade mantém-se no horizonte da sua investigação. O mesmo acontece com o filósofo, que busca incessantemente a verdade, sem alguma vez pretender tê-la alcançado.

Portanto, conceber a verdade como objeto de um dever é concebê-la como uma exigência que impõe exigências.

Transição:

Parece, então, que a busca da verdade nos é imposta pela nossa humanidade; no entanto, podemos perguntar-nos se esse dever de procurar a verdade não é discutível.

III. Um dever discutível de buscar a verdade.

Nietzsche vê nesta exigência de verdade, considerada como um valor da existência humana, uma posição herdada de Sócrates: “A enunciação da verdade a qualquer preço é socrática”, escreve Nietzche no Livro do filósofo. Esta exigência de verdade pode ter efeitos perversos, como a rejeição da arte reduzida a uma força de ilusão; Essa ilusão, segundo Nietzche, é uma força salvadora que nos liberta da verdade.

O dever de verdade, concebido como valor absoluto, traz consigo também a desvalorização de outros valores vitais. Em nome desse dever de verdade, rejeitamos o mundo sensível: “filosofar é aprender a morrer”.

O dever de procurar a verdade mascara a sua origem social, utilitarista: “O homem exige a verdade e realiza-a no comércio moral com os homens; é em cima dela que se baseia toda a vida em comum. Antecipamos as consequência malignas das mentiras recíprocas. É aí que nasce o dever de verdade.”, e de

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Page 49: Textos e Comentários

a procurar. Mas, se admitirmos esta origem, admitimos também que a mentira e a ilusão são aceitáveis, se forem vantajosas e agradáveis, o que põe em causa o dever de verdade.

Esta busca da verdade pode afastar-se perigosamente da vida.

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Page 50: Textos e Comentários

• CAPÍTULO 6 •

Compreende-se, então, que a diferença entre trabalho e lazer deve, à luz destas considerações, ser posta em causa. Se o trabalho também é criação, então também partilha as características do lazer.

TRABALHO E UTILIDADE

Page 51: Textos e Comentários

A Utilidade é o Único Valor do Trabalho?

Introdução/Problematização.

E geral, é considerado útil um meio que permite atingir um fim, que se ajusta a uma finalidade. Ser útil é sinónimo de ser eficaz, produzir um efeito esperado,

1. O trabalho é uma atividade produtora orientada para a busca de finalidades.

2. O trabalho deve ser pensado para além da esfera da utilidade social

3. O trabalho possui um valor em si mesmo independentemente do seu valor económico.

4. No Mito de Prometeu, que Platão relata no diálogo “Protágoras”, o trabalho tem origem na fraqueza dos homens.

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Primeiro Modelo

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um ganho uma mais-valia: em resumo, ser útil é ser operacional. Diz-se de um método, de um instrumento, de uma função que são úteis quando cumprem o objetivo que lhes foi previamente atribuído. O trabalho, enquanto atividade produtora, cria também utilidade de duas maneiras possíveis. Por um lado, trabalhar é transformar uma matéria para fazer uso dela - os bens –, ou realizar um serviço. Por outro lado, o trabalhador participa naquilo a que se chama a “divisão social do trabalho” que permite a uma sociedade criar, reproduzir as condições de sobrevivência e de desenvolvimento. Ao colocar a sua pedra no edifício, o trabalhador, para além de ser útil, sente-se útil.

Mas esta atividade fundamental deve ser somente analisada em termos de utilidade? Com efeito, se o trabalho só fosse útil, isso implicaria que, se as máquinas ou os robots pudessem fazer tudo em nosso lugar, deixaríamos de ter qualquer motivo para trabalhar. Ora, não é garantido que o facto de trabalhar não tenha, em si mesmo, valor e interesse para aquele que trabalha. Quando eu me imponho um trabalho quotidiano de prática de um instrumento musical, por exemplo, não sou, por isso, útil à sociedade e não

transformo nada com o fim de obter um valor económico. Postas as coisas assim, poderemos dizer que uma vida sem trabalho seria, no fundo, desejável? Questionarmo-nos sobre se a utilidade é o único critério de valor que permite justificar o trabalho é o mesmo que refletir sobre a questão de saber se o trabalho, enquanto atividade produtora, possui um fim em si mesmo, independentemente de objetivos como a rentabilidade, a eficácia ou a produtividade que avaliam o trabalho pelo seu resultado e não por si mesmo.

Primeira parte: Trabalhar é participar na divisão social do trabalho.

O trabalho é uma atividade produtora orientada para a busca de finalidades. Um carpinteiro, trabalhando um bocado de madeira, dá-lhe uma forma que permite, em seguida, atribuir-lhe uma utilização. Torna-se, por exemplo, numa peça de uma mesa. Podemos atribuir-lhe, assim, uma utilidade. E, fazendo o que fez, podemos também dizer que o carpinteiro foi útil, porque participou num processo de trabalho coletivo. Com efeito, pertence a uma cadeia de intervenientes que começa com o lenhador e acaba com o comerciante que

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vende a mesa ao consumidor. Quanto mais especializado numa tarefa é o trabalhador, mais ele é útil económica e socialmente: cada sociedade baseia-se, com efeito, numa divisão social do trabalho. Se o carpinteiro também tivesse de ser lenhador, a construção da mesa exigiria muito mais tempo e talvez não fosse tão perfeita, porque não é fácil que um único indivíduo domine o conjunto de técnicas necessárias.

Por outro lado, a distinção entre trabalho e lazer reforça a ideia segundo a qual trabalhar é ser-se útil, isto é, visa responder a necessidades. O tempo da lazer começa justamente quando já não se coloca a questão da utilidade ou do nosso papel social. O tempo de lazer é o momento em que nos afastamos da vida social comum, em que deixamos de exercer uma função. Podemos gastar o nosso tempo, realizar atividades gratuitas ou desinteressadas, sem finalidade económica reconhecida.

Consequentemente, um trabalho não produtivo não pode ser verdadeiramente considerado um trabalho. O mesmo se pode dizer do trabalhador não produtivo, que não é um verdadeiro trabalhador. Aquele que não é útil

para o conjunto da sociedade não é considerado um trabalhador. É o caso, por exemplo, do artista.

Segunda parte: O trabalho humaniza.

O trabalho não é só uma atividade com finalidade, no sentido referido até aqui. Ao trabalhar, o homem produz também um efeito sobre si mesmo, que não é, à partida, especificamente procurado. Por exemplo, o trabalho leva-nos a desenvolver as nossas faculdades, a adquirir competências, a disciplinar-nos. O trabalho também nos socializa. Aprendemos a colaborar com os outros, portanto a viver com eles. O trabalho, uma das ligações da rede social, tem, então, um papel civilizador e humanizante para o homem. É frequente ouvir dizer que o homem se humaniza pelo trabalho. Neste sentido, produzindo as suas condições de existência, o homem produz-se a si mesmo. Dito de outro modo e utilizando uma imagem, ao cultivar o seu campo, o homem cultiva-se a si mesmo: adquire traços especificamente humanos que lhe permitem distinguir-se da animalidade. Pour le dire autrement et en utilisant une image parlante, en

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Page 54: Textos e Comentários

Terceira parte: O trabalho também é criação.

O trabalho é, portanto, fator de cultura. Neste sentido, podemos mesmo dizer que, longe de ser uma atividade unicamente governada pela busca da utilidade social e económica, tanto do trabalhador como dos bens e dos serviços, o trabalho é criador do próprio homem e de disposições – faculdades – de que os homens não dispõem naturalmente.

Compreende-se, então, que a diferença entre trabalho e lazer deve, à luz destas considerações, ser posta em causa. Se o trabalho também é criação, então também partilha as características do lazer. Nesta ordem de ideias, deveremos admitir que mesmo um desenhador aprendiz, que faz exercícios de aperfeiçoamento no seu tempo de lazer, está a trabalhar. Na verdade, não procura uma utilidade a curto ou médio prazo, pois nem sequer sabe aonde o seu trabalho o conduzirá. Pelo contrário, o nosso aprendiz de desenhador pode experimentar prazer na sua atividade de lazer, ao verificar, apesar da dificuldade, os progressos dos seus gestos e a forma como a sua mão domina cada vez melhor o traço. Esta atividade não tem nenhuma função

ou utilidade social. No entanto, trata-se de uma atividade que se aparenta bem com o trabalho.

Em conclusão:

Este tema convida-nos a tomar consciência de que o trabalho deve ser pensado para além da esfera da utilidade social e de que ele possui um valor em si mesmo independentemente do seu valor económico. Mas, para que esta ideia seja de facto consequente, é indispensável, paradoxalmente, que os homens tenham acesso a verdadeiros tempos de lazer.

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Page 55: Textos e Comentários

A Utilidade é o Único Valor do Trabalho?

O trabalho define-se, em sentido lato, como a atividade humana que consiste em transformar a realidade, fazendo do homem o “senhor e o proprietário da natureza” (Descartes). Diferentemente dos animais, o homem utiliza a técnica para explorar e melhorar os resultados do seu trabalho. Assim, existe sempre uma certa utilidade e uma finalidade na atividade de trabalhar, o que constitui um círculo virtuoso: trabalho / produção e técnica / aumento da eficácia do trabalho / nova melhoria técnica, etc. Se “útil” significa “aquilo que serve para alguma coisa”, aquilo que produz um rendimento, temos, então, de admitir que trabalhar é ser útil e que esta utilidade é a produção de um efeito esperado. Mas será suficiente este critério para seja

legítimo reduzir o trabalho a este único fim? O trabalho opõe-se ao lazer; será que as atividades agradáveis de jogo e lazer que não produzem nada, que não servem para nada são, então, inúteis?

Por outro lado, o trabalho define o ingresso do homem na cultura, isto é, tem um sentido não somente de satisfação das suas necessidades, mas também de passagem da natureza à cultura, da animalidade à humanidade. Podemos questionar-nos sobre qual a utilidade visada pelo trabalho, para depois verificarmos se a utilidade é a sua única função, e finalmente pôr em relevo a verdadeira dignidade do trabalho.

I. Trabalhar é útil.

A origem da cidade, segundo Platão, é a satisfação das necessidades possibilitada pela repartição de tarefas. Assim, o trabalho é indispensável aos homens para que possam viver em comunidade, o

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Segundo Modelo

Page 56: Textos e Comentários

que corresponde a uma exigência de racionalidade. Na “República”, explica esta necessidade de dividir o trabalho: “o resultado é que bens serão produzidos em grande quantidade, que serão de melhor qualidade e produzidos mais facilmente, se cada um se ocupar só de uma coisa, seguindo as suas disposições naturais e no momento oportuno.”

No entanto, o trabalho não é só útil para a cidade. É-o também para a sobrevivência da espécie. No Mito de Prometeu, que Platão relata no diálogo “Protágoras”, o trabalho tem origem na fraqueza dos homens. Ao contrário das outras espécies, o homem nasce nu e sem defesas; a sua sobrevivência depende só das suas próprias forças. Então, Prometeu rouba aos deuses o fogo necessário à produção dos instrumentos, o que permite ao homem desenvolver a metalurgia, a agricultura e, finalmente, a cultura que criará as condições para que o homem possa superar a sua fraqueza original.

O trabalho permite aos homens o domínio da natureza. Como afirma Descartes, o trabalho permite o domínio da natureza. A utilidade do trabalho é,

assim, definida não como uma finalidade última do homem (que continua a ser o conhecimento pela razão), mas como um meio de agir eficazmente sobre a realidade.

II. Trabalhar não é só uma coisa útil.

Para Adam Smith, uma coisa pode ser trocada por uma certa quantidade de trabalho. Nesta ordem de ideias, o trabalho não é somente a produção de bens, mas tem também um certo valor. O trabalho dos outros gera prazer, pois um homem será "rico ou pobre de acordo com a quantidade de trabalho que possa encomendar ou que seja capaz de comprar”. Neste sentido, segundo Adam Smith, não é o trabalho que é útil, mas mandar ou pôr os outros a trabalhar. O trabalho é a medida real de troca; o trabalho é a primeira moeda de todas as coisas.

Trabalhar é o esforço que permite uma certa estima de si. Para Kant, “a natureza quis que o homem retirasse de si mesmo tudo o que ultrapassa o

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arranjo mecânico da sua existência animal”. Trabalhar é um sinal de autonomia; o trabalho é o instrumento concedido pela natureza, que permite ao homem aceder ao uso da razão. Pelo trabalho, o homem torna-se autónomo, é o próprio autor dos seus progressos, dos seus sucessos e liberta-se do círculo das necessidades. Por esta via, alcança a estima razoável de si mesmo.

O trabalho foi caracterizado por A. Smith, através da distinção da utilidade de um qualquer objeto daquilo que esse objeto transmite àquele que o possui e que o pode usar para comprar outras coisas (valor de troca). Embora essencial, a utilidade de um objeto não basta para fazer dele uma finalidade em si. É o trabalho que é a fonte principal do valor.

III. A dignidade do trabalho.

Marx considera que o que dá valor ao trabalho não é tanto a utilidade, mas a intervenção da vontade. A finalidade da atividade humana distingue-se da

atividade animal. O animal, através da sua atividade, satisfaz as suas necessidades; o homem, pelo seu trabalho, modifica a sua natureza: “desenvolve, diz Marx, as faculdades que estão nele adormecidas”.

O trabalho, cujo produto é destinado ao consumo e que, por isso, tem de ser sistematicamente renovado, distingue-se da obra, cujo objetivo é a subsistência. Esta é a diferença essencial, estabelecida por Hannah Arendt. As obras dão existência a um mundo propriamente humano e não se enquadram numa finalidade estritamente utilitária.

Finalmente, importa ainda considerar o valor psicológico do trabalho. Por exemplo, Freud vê na atividade profissional um fator poderoso de organização dos desejos inconscientes face à realidade.

Conclusão:

O trabalho, na sua versão mais comum, pode estar de acordo com o sábio conselho de Voltaire, no “Cândido”: “é preciso cultivar o nosso jardim”. O significado do

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trabalho não se reduz à sua utilidade. Parece garantido que a maioria dos homens não trabalharia, se não fosse levada a isso pela necessidade. No entanto, não é por isso que o trabalho deve ser reduzido à sua dimensão utilitarista. Pelo contrário, a aversão ao trabalho, que, a muitos, parece natural, só mostra que o trabalho não serve somente como meio para atingir um fim; ele é visto com muito mais apreço pelos homens quando se constitui numa via de desenvolvimento e satisfação humana.

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• CAPÍTULO 7 •

Uma vez que, de facto, o juízo livre dos homens é extremamente diverso, que cada um pode ser o único a saber tudo, e que é impossível que todos opinem de forma semelhante e falem a uma só voz, não poderiam viver em paz se os indivíduos não tivessem renunciado ao seu direito de agir, seguindo só o que determina o seu pensamento.

ESPINOSA - ESTADO E LIBERDADE

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Explicação de Texto : Espinosa, Tratado teológico-político

O Texto:

“A finalidade do Estado não faz passar os homens da condição de seres dotados de razão para a de animais selvagens ou de autómatos, mas, pelo contrário, ele é

1. Realista, Espinosa faz incidir a sua reflexão, não sobre novos regimes, mas sobre a maneira de gerir as paixões na cidade, no interior dos regimes existentes.

2. É necessário não somente que seja garantida a segurança, mas também que o exercício dessa liberdade seja harmonioso.

3. Renunciar a agir em conformidade com as suas opiniões, não impede o indivíduo de pensar por si mesmo, e esta é a verdadeira liberdade, que não pode ser cedida ao Estado.

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Primeiro Modelo

Page 61: Textos e Comentários

instituído para que a sua alma e o seu corpo desenvolvam em segurança todas as suas funções, para que eles próprios usem de uma Razão livre, para que não se guerreiem com ódio, com cólera ou com manha, para que se suportem sem malevolência de uns para com os outros. O fim do Estado é, portanto, na realidade a liberdade. Já vimos também que, para formar o Estado, só uma coisa é necessária: que todo o poder de decretar pertença, ou a todos coletivamente, ou a alguns, ou a um único. Uma vez que, de facto, o juízo livre dos homens é extremamente diverso, que cada um pode ser o único a saber tudo, e que é impossível que todos opinem de forma semelhante e falem a uma só voz, não poderiam viver em paz se os indivíduos não tivessem renunciado ao seu direito de agir seguindo só o que determina o seu pensamento. É portanto só ao direito de agir, exclusivamente com base na sua determinação, que ele renunciou, não ao direito de raciocinar e de julgar; por conseguinte, ninguém na verdade pode sem perigo para o direito do soberano, agir contra a sua ordem, mas pode em toda a liberdade opinar e julgar e, por conseguinte, também falar, de modo a não ultrapassar a fala ou o ensino, e defender a

sua opinião só através da razão, não através da cólera ou do ódio.”

Neste texto, Espinosa, autor racionalista do século XVII, interroga-se sobre o que deve ser a finalidade do Estado. Responde claramente que o fim visado deve ser a liberdade. Diz, no entanto, também que o bom cidadão deve renunciar à sua liberdade de agir. Não haverá aqui uma contradição? Por outro lado, Espinosa não parece propor neste texto uma teoria do melhor regime possível. Como será possível sustentar que a finalidade do Estado é a liberdade sem privilegiar a democracia como condição para a sua realização?

Para esclarecer este excerto, procuraremos, em primeiro lugar, mostrar qual seria a outra finalidade possível do Estado e porque é que Espinosa a rejeita; veremos, em seguida, como é que Espinosa desloca a questão antiga do melhor regime para um outro desafio político, o que lhe permite requalificar a liberdade que o Estado deve honrar.

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No início do extrato, Espinosa procura desqualificar qualquer teoria que defendesse que o Estado teria por finalidade garantir a segurança do cidadão em detrimento da sua liberdade. Podemos conjeturar que Espinosa, neste ponto, critica Hobbes, mas também todas as teorias monárquicas do século XVII que fazem dos homens seres submetidos ao rei, como crianças aos seus pais ou como as criaturas ao se Deus. Se a finalidade do político fosse desta natureza, o cidadão desumanizar-se-ia: tornar-se-ia “num animal ou num autómato”, porque não realizaria o seu conatus que é, para o homem, atualizar a sua liberdade. Claro que Espinosa não nega que a “segurança” seja a condição do exercício da liberdade correlativa do nosso corpo e da nossa alma. Mas esta condição não é suficiente.

É necessário não somente que seja garantida a segurança, mas também que o exercício dessa liberdade seja harmonioso. Para atingir a sua finalidade, é necessário que o Estado não se transforme, na sua ação, na expressão da cacofonia das opiniões. Pouco importa, então, que o regime seja monárquico ou democrático; o que conta é que os seus decretos sejam unívocos, que a decisão que preside à ação tenha origem numa só voz. É

por isso que Espinosa vê na separação da opinião e da ação a chave do político. Um Estado livre é aquele que consegue instaurar esta separação, convencendo o cidadão a renunciar ao seu direito de agir, e a salvaguardar a sua liberdade de opinião, “o seu direito a raciocinar e a julgar”.

O Estado liberal idealizado por Espinosa corresponde, assim, às suas convicções antropológicas: não podemos limitar quem quer que seja em matéria de opinião. Tal como Locke, Espinosa faz apelo à tolerância. Não se pode obrigar ninguém a crer em algo, sem gerar uma hipocrisia que seria prejudicial para o Estado. Mas a liberdade de opinião só pode ser plenamente respeitada se retirarmos ao cidadão o poder de agir que deriva dela. Podemos considerar, contra Espinosa, que a liberdade que o seu sistema tolera é uma liberdade truncada, apesar de ele acrescentar à liberdade de opinião a liberdade de expressão.

Este texto, típico de Espinosa na medida em que substitui a linguagem do contrato proposto por Hobbes e por Locke para a substituir pelo equilíbrio das paixões, aborda os novos custos dos fundamentos racionais da

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política. Realista, Espinosa faz incidir a sua reflexão, não sobre novos regimes, mas sobre a maneira de gerir as paixões na cidade, no interior dos regimes existentes.

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Page 64: Textos e Comentários

Explicação de Texto : Espinosa, Tratado teológico-político

O Texto:

“A finalidade do Estado não faz passar os homens da condição de seres dotados de razão para a de animais selvagens ou de autómatos, mas, pelo contrário, ele é instituído para que a sua alma e o seu corpo desenvolvam em segurança todas as suas funções, para que eles próprios usem de uma Razão livre, para que não se guerreiem com ódio, com cólera ou com manha, para que se suportem sem malevolência de uns para com os outros. O fim do Estado é, portanto, na realidade a liberdade. Já vimos também que, para formar o Estado, só uma coisa é necessária: que todo o poder de decretar pertença, ou a todos coletivamente, ou a alguns, ou a um único. Uma vez que, de facto, o

juízo livre dos homens é extremamente diverso, que cada um pode ser o único a saber tudo, e que é impossível que todos opinem de forma semelhante e falem a uma só voz, não poderiam viver em paz se o indivíduos não tivesse renunciado ao seu direito de agir seguindo só o que determina o seu pensamento. É portanto só ao direito de agir, exclusivamente com base na sua determinação, que ele renunciou, não ao direito de raciocinar e de julgar; por conseguinte, ninguém na verdade pode sem perigo para o direito do soberano, agir contra a sua ordem, mas pode em toda a liberdade opinar e julgar e, por conseguinte, também falar, de modo a não ultrapassar a fala ou o ensino, e defender a sua opinião só através da razão, não através da cólera ou do ódio.”

Tese:

Neste extrato, Espinosa opõe-se à ideia segundo a qual o Estado reduziria os homens a uma obediência

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• Secção 2 •

Segundo Modelo

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mecânica, transformando-os em animais ou autómatos. Defende portanto que a finalidade do Estado é a liberdade, cujo exercício ele torna possível através da segurança e da paz nas relações humanas (linhas 1 a 7), que Espinosa pressupõe no ato de submissão voluntária ao soberano (linhas 7 a 16), mantendo-se intacta a liberdade de julgar e de opinar (linhas 16 até ao fim).

Este texto convida-nos a questionar as relações entre Estado e liberdade e a repensar a noção de liberdade através das distinções entre independência e autonomia, e direito de agir e direito de raciocinar e de julgar. Poderemos, também, interrogar-nos sobre o valor desta liberdade de pensar e de julgar, que, na impossibilidade da desobediência, poderia parecer reduzir-se a “falar com os seus botões”, ou a uma liberdade bem pouco útil.

Explicação:

Linhas 1 a 7: Espinosa expõe a ideia daqueles que veem no Estado uma instituição liberticida (que mata a liberdade) e desnaturante, pois, através do exercício do seu poder, passaríamos de uma situação

de seres racionais para uma situação de animais, destituídos de razão, incapazes de determinarem o seu comportamento, submetendo-se às ordens de outros do mesmo modo que aos seus impulsos naturais. Espinosa contesta esta ideia, mostrando que, pelo contrário, o Estado permite que cada um realize a sua natureza (agir de acordo com a necessidade da sua própria natureza) e que, em lugar de controlar as suas paixões pelo medo, se liberte delas nas relações com os outros e consigo mesmo. O Estado permite que o corpo e a alma possam cumprir as suas funções, assegurando a ordem e a segurança. Ele desapaixona as relações humanas, permitindo assim que deixemos de ser escravos das nossas paixões. De uma vida dominada pelo ódio, pela cólera, pela manha, podemos, sob a proteção do Estado, passar para uma vida conduzida pela razão (encontra-se esta mesma ideia na passagem do estado de natureza para o estado civil em Rousseau). Portanto, longe de se impor pelo medo (ideia de Hobbes), para Espinosa o Estado liberta-nos dele e é por esta razão que os homens aceitam submeter-se à sua autoridade que, no final de contas, não é mais do

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Page 66: Textos e Comentários

que a consequência deste consentimento. É por estas razões que Espinosa defende que a finalidade do Estado é “na realidade” a liberdade e não a submissão e a obediência. A segurança não exige a renúncia à liberdade.

Linhas 7 a 16: A ideia de que a segurança não exige a renúncia à liberdade é reforçada através da explicitação das condições da instituição do Estado e das suas razões de ser. Tendo os homens juízos diferentes (em consequência de compleições distintas e dos limites dos conhecimentos), se cada um agisse em conformidade com o seu juízo, poderia haver conflitos e insegurança. Por isso, cada um renuncia a agir segundo o seu decreto e aceita renunciar (voluntária e livremente) a esse direito, e confiá-lo, transferi-lo para o soberano (qualquer que seja o regime: democrático, aristocrático ou monárquico).

Linhas 17 até ao fim: Espinosa conclui, distinguindo direito de agir e de “raciocinar e pensar” e de expressão, de difusão e de publicação das ideias (ensino). Submetendo-se aos decretos do soberano

nos seus atos, o homem não renuncia à sua liberdade de pensamento. Obedece às leis, porque concorda com isso em nome da paz e da sua segurança, portanto para usufruir dos seus direitos naturais, mas não submete a sua alma. Mantém-se inteiramente livre de pensar o que lhe parecer melhor e tem o direito de exprimir o seu pensamento, recorrendo a meios razoáveis. De uma relação de força, ou da propaganda, passa-se para relações de razão, para a vontade de convencer. Para Espinosa, portanto, o Estado não fere a liberdade; pelo contrário, torna-a possível, efetiva, e exige-a para não ultrapassar os seus poderes. Renunciar a agir em conformidade com as suas opiniões, não impede o indivíduo de pensar por si mesmo, e esta é a verdadeira liberdade, que não pode ser cedida ao Estado. A liberdade não está na desobediência, mas na resistência e na vigilância cidadã.

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• CAPÍTULO 8 •

Marx não é, todavia, anarquista: propõe a abolição do Estado só na sua forma histórica, isto é, que ele passe a ser o que deve ser, a incarnação da vontade geral do povo e defensor do interesse geral.

SERÍAMOS MAIS LIVRES SEM ESTADO?

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Seríamos mais livres sem Estado? Introdução/Problematização

O Estado designa o conjunto das instituições políticas, administrativas, judiciais, policiais e militares, que uma

1. Impondo uma limitação coletiva, isto é, uma lei perante a qual todos os cidadãos são iguais, o Estado acaba por ser um instrumento da nossa liberdade.

2. Com efeito, compete também aos cidadãos serem vigilantes face ao Estado, mobilizar-se e intervir no debate público, para se constituírem como um verdadeiro contrapoder.

3. A liberdade só é ameaçada pelo Estado, se o preferirmos à segurança, ao usufruto dos bens materiais e à paixão pela igualdade.

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• Secção 1 •

Primeiro Modelo

Page 69: Textos e Comentários

dada sociedade humana atribui a si mesma num território. Para o cidadão comum, o Estado é sobretudo o conjunto de instituições que votam as leis e as fazem aplicar e respeitar. Apresenta-se, portanto, numa primeira abordagem, como uma limitação da nossa liberdade. Com efeito, a lei é uma tentativa de compatibilizar a nossa liberdade com a dos outros, limitando por essa via a liberdade de cada um.

Sabemos, no entanto, também que, sem a existência de leis e de um Estado que as faça cumprir, os homens não usufruiriam de nenhuma liberdade real, pois os projetos de uns entrariam fatalmente e violentamente em conflito com os dos outros. Paradoxalmente parece, então, que o Estado representa uma limitação da liberdade, sem a qual não seríamos verdadeiramente livres. Por outro lado, o Estado representa um risco real de abuso de poder, lembrando-nos que talvez seja um mal menor para a liberdade, isto é, algo sem o que não seríamos livres, mas que gostaríamos de dispensar, de não ter de nos submetermos a ele. Este tema é, portanto, um convite para nos esforçarmos por encontrar outras soluções políticas e de conceções de Estado que nos assegurem as nossas liberdades. Por

outras palavras, será que todas as sociedades humanas precisam de se organizar em Estado para garantir a liberdade aos seus cidadãos?

Primeira parte: Sem Estado, não há liberdade.

Se projetarmos a existência do homem fora de uma sociedade organizada em Estado, estaremos certamente a enquadrá-lo numa espécie de estado de natureza, onde os homens seriam, sem dúvida, independentes uns dos outros, mas não livres. Com efeito, na ausência de regras comuns e de um árbitro para as fazer cumprir, os homens opõem-se uns aos outros, pois os seus interesses são concorrentes e inconciliáveis. Não conseguem, portanto, fazer verdadeiramente aquilo que querem. No fundo, a independência não é a mesma coisa que a liberdade. A esta primeira forma de ver as coisas poderíamos chamar o paradoxo da liberdade absoluta: se todos forem totalmente livres de fazer o que querem, ninguém será livre de fazer o que quer que seja, isto é, de levar a cabo uma ação ou um projeto.

Impondo uma limitação coletiva, isto é, uma lei perante a qual todos os cidadãos são iguais, o Estado acaba por

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Page 70: Textos e Comentários

ser um instrumento da nossa liberdade. Sem Estado, não podemos ser realmente livres.

Segunda parte: O Estado é, por natureza, repressivo e abusivo.

Todavia, como testemunha a história das instituições e a psicologia humana, deter o poder é também correr o risco de abusar dele. O Estado é um conjunto de instituições administradas por homens, a quem o desejo de poder conduz por vezes a utilizar a força de que dispõem para fins pessoais ou para fins desviados da sua orientação inicial (interesse geral, segurança pública...). Neste sentido, o Estado nunca é verdadeiramente o árbitro neutro que, em teoria, gostaria de ser. Por exemplo, na Assembleia da República, nada garante, no fundo, que a lei seja realmente a expressão da vontade geral, e que não seja, na realidade, a expressão de um compromisso entre interesses particulares ou privados, representados pelas forças políticas em presença.

Assim sendo, afirmar que não podemos ser livres sem Estado na atualidade não significa que não tenhamos o

direito de nos perguntarmos sobre a possibilidade futura de uma sociedade política sem Estado que, garantindo as nossas liberdades, nos coloque ao abrigo do risco de tirania, de ditadura ou, no mínimo, de abuso de poder inevitável, a partir do momento em que de um lado se encontram os governantes e do outro os governados.

Terceira parte: Será possível uma sociedade livre sem Estado?

A história e a realidade atual mostram que existem sociedades sem Estado, sociedades de tipo tribal, por exemplo. Mas essas sociedades são uma exceção à regra e consistem basicamente em fazer uma opção entre ausência de Estado e desenvolvimento histórico. Com efeito, para se desenvolver, a sociedade exige a presença de um Estado para organizar, em parte, esse desenvolvimento e prevenir ou arbitrar os conflitos que surgem necessariamente da complexificação social ligada ao progresso técnico e económico.

No entanto, certos teóricos anarquistas (e, de certo modo, alguns libertários) pensam que o progresso

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histórico e o aumento de liberdade que ele representa podem ser alcançados sem Estado (ou com um Estado mínimo), organizando a sociedade a partir dos indivíduos e de associações livres entre eles, sem nunca entregar o princípio da sua soberania a uma instituição colocada acima deles, numa posição de árbitro supremo. Segundo este princípio, os homens seriam, então, mais livres sem Estado do que com ele, mesmo que a existência do Estado represente um progresso para a liberdade, se comparado com o estado de natureza.

Ora, é precisamente neste ponto que devemos reafirmar, contra o anarquismo (e também contra o libertarismo) a necessidade de Estado para garantir a liberdade. O Estado é sobretudo a lei, e a lei, antes de ser um limite imposto à minha liberdade, é o que protege o fraco contra o forte, neutralizando as relações de força sociais através da submissão de todos – quaisquer que sejam as suas riquezas, a sua condição de nascimento, os seus talentos – a uma autoridade neutra, acima dos indivíduos, que não dependa de nenhum deles em particular.

Conclusão:

Ao reafirmar a necessidade do Estado como instrumento da lei a favor da liberdade, não devemos esquecer a necessidade de contrapoderes no interior do Estado para evitar os abusos. Do mesmo modo, mesmo que recusemos a ideia segundo a qual uma sociedade sem Estado seria mais livre do que uma sociedade com Estado, não devemos pôr de lado a necessidade de promover a participação da sociedade civil para garantir a manutenção das liberdades públicas. Com efeito, compete também aos cidadãos serem vigilantes face ao Estado, mobilizar-se e intervir no debate público, para se constituírem como um verdadeiro contrapoder. Para garantir o progresso das liberdades políticas, o cidadão deve reconhecer que o Estado é indispensável e, ao mesmo tempo, um perigo para a sua liberdade.

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Seríamos mais livres sem Estado?

Esquema:

Problemática: O Estado é um poder político institucionalizado, distinto da sociedade civil, que detém o monopólio da violência legítima no exercício do seu poder, tendo em vista promover a organização da sociedade e a instauração de um estado de direito. Pode ser visto espontaneamente como um poder exterior a cada um, coercivo e portanto oposto à liberdade no sentido de “direito ilimitado a tudo o que o homem procura e pode alcançar”, isto é, no sentido de liberdade natural, de independência; a sujeição à autoridade do Estado corresponde à adesão ao estado civil e às suas leis, e o abandono do estado de natureza sem leis, a não ser a lei do mais forte para alguns (Hobbes). O problema é saber se esta oposição entre

Estado e liberdade é pertinente, pois a instituição do Estado pressupõe uma vontade humana e o Estado surge também como o que permite a coexistência das liberdades. Devemos, portanto, interrogar-nos sobre o realismo do sonho anarquista de abolição do Estado, e sobre se este sonho não corre o risco de se transformar em pesadelo. A abordagem deste tema pressupõe que somos, apesar de tudo, livres sob o poder do Estado, e que somos detentores de uma liberdade anterior ao Estado que é reduzida sob sua influência.

III. A abolição do Estado parece prometer mais liberdade.

1. O Estado é um poder que impõe leis e, por conseguinte, limites à liberdade; podemos pensar que a liberdade deveria ser ilimitada (tese anarquista). A cada limitação que fosse derrubada, corresponderia um aumento proporcional da liberdade.

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• Secção 2 •

Modelo 2

Page 73: Textos e Comentários

2. O Estado é um poder exterior ao indivíduo, seja porque o indivíduo não se reconhece nas suas decisões (princípio da maioria), seja porque o que se espera de cada um como cidadão não corresponde às suas aspirações individuais imediatas.

3. O Estado não é a incarnação da vontade geral; está nas mãos dos poderes dominantes (Marx). Marx não é, todavia, anarquista: propõe a abolição do Estado só na sua forma histórica, isto é, que ele passe a ser o que deve ser, a incarnação da vontade geral do povo e defensor do interesse geral.

Transição: O Estado pode, então, parecer contrário à liberdade; a sua abolição pode parecer libertadora; mas, sem Estado, será que os homens seriam senhores de si mesmos?

II. O Estado como condição da liberdade:

1. Sem Estado, podemos pensar que as sociedades humanas seriam desordenadas (tese de Hobbes), que o estado de natureza corresponderia a um estado de guerra generalizada (de todos contra todos), e que, nem

por isso, deixaríamos de estar sujeitos à heteronomia, uma vez que não obedeceríamos só a nós mesmos. A lei do Estado reduz a necessidade de senhores dos outros, de “mestres” que condicionam a nossa conduta.

2. Para que fosse possível a abolição do Estado e, simultaneamente, uma vida em sociedade aceitável (que o homem não pode dispensar), seria necessário pressupor uma coesão social por outras vias: sociedades holistas ou compromissos sacrificiais, que obrigariam, em qualquer caso, que cada um sacrificasse uma parte da sua liberdade. Sem Estado, a liberdade não seria total, como pretendem os anarquistas.

3. Segundo Rousseau, é a passagem do estado de natureza ao estado civil que permite ao homem conquistar a sua liberdade, passando da submissão à impulsão, da escravatura do desejo à escuta da razão. É no e através do Estado que o homem acede à liberdade como autonomia, liberdade certamente limitada, mas protegida pelas leis do Estado.

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4. O Estado é o fruto da vontade dos homens. Pressupõe a liberdade e pode conservá-la se os homens não renunciarem a ela.

Transição: O Estado não é, portanto, o coveiro da liberdade e das liberdades; pode ser visto como instrumento e condição de uma existência livre. Melhor do que abolir o Estado, talvez seja, então, reformá-lo, vigiar para que seja o deve ser. Em que condições poderíamos ser mais livres com o Estado?

IV. O Estado só ameaça a liberdade se nós não a protegermos.

1. A obediência e a resistência são as “duas virtudes do cidadão”, segundo Alain. A obediência garante a ordem, condição da liberdade, e a resistência garante a liberdade através da recusa à submissão cega ao Estado.

2. O Estado é só o representante do povo, “o ministro do povo” como diz Rousseau no seu Contrato Social. O povo deve, portanto, estar atento para impedir que o

Estado escorregue pela sua encosta natural, praticando abusos.

3. Tocqueville lembra também que é porque nós pedimos sempre mais ao Estado, dando-lhe sempre mais poder, que a democracia pode degenerar num agradável paternalismo, nova forma de despotismo. A liberdade só é ameaçada pelo Estado, se o preferirmos à segurança, ao usufruto dos bens materiais e à paixão pela igualdade.

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• CAPÍTULO 9 •

Quando colocamos a questão de saber “O que é uma boa lei?”, normalmente é porque nos sentimos no direito de questionar uma injustiça, porque essa lei nos parece contrariar um ideal de justiça.

O QUE É UMA BOA LEI? - HOBBES

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Texto de Hobbes

Texto:

“O que é uma boa lei? Por boa lei, não entendo uma lei justa, pois nenhuma lei pode ser injusta. A lei é feita pelo poder

soberano e tudo o que é feito por esse poder soberano é seguro e aprovado por todo o povo. E aquilo que todos os homens querem dificilmente poderá ser considerado injusto. As leis da comunidade política são como leis do

L o r e m I p s u m

1. A definição que dá o autor é que uma boa lei é aquela que é necessária para o bem do povo e fácil de compreender.

2. As leis da comunidade política, de acordo com o autor, são decididas pelos próprios atores do jogo político, tal como num jogo de lazer.

3. O desafio deste texto é o de responder à questão “o que é uma boa lei?”, de tal modo que cada um não procure impor aos outros uma certa ideia de justiça, que legitimaria alguma forma de contestação das leis.

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• Secção 1 •

Primeiro Modelo

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jogo: aquilo sobre que os jogadores concordaram não pode ser uma injustiça para nenhum deles. Uma boa lei é aquela que é, ao mesmo tempo, necessária para o bem do povo e fácil de compreender. Com efeito, o papel das leis, que não são mais do que regras revestidas de autoridade, não é impedir a ação voluntária, mas dirigir e conter os movimentos das pessoas, de forma a que não se prejudiquem a si mesmas pela impetuosidade dos seus desejos, pela sua sofreguidão, ou pela sua cegueira; tal como levantamos barreiras, não para parar os viajantes, mas para os manter no caminho. É por isso que uma lei que não seja necessária, isto é que não alcance aquilo que pretende, não é uma boa lei.” Leviathan

1. Formule a tese deste texto e mostre como foi estabelecida.

2.

a) Explique: “As leis da comunidade política são como leis do jogo.”

b) Explique: “Uma boa lei é aquela que é, ao mesmo tempo, necessária para o bem do povo e fácil de compreender”.

c) Explique: “Tal como levantamos barreiras, não para parar os viajantes, mas para os manter no caminho”.

3. O único papel das leis é o de impedir os homens de se prejudicarem a si mesmo?

Pergunta 1

A tese deste texto é a resposta à questão: “O que é uma boa lei?” A definição que dá o autor é que uma boa lei é aquela que é necessária para o bem do povo e fácil de compreender. Esta definição não é tão óbvia quanto, à primeira vista parece, porque muito frequentemente confundimos o conceito de uma boa lei com o de uma lei justa, universal e indiscutível.

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O texto começa por enunciar a tese do autor (uma boa lei é aquela que é necessária para o bem do povo e fácil de compreender).

Para demonstrar esta tese, Hobbes utiliza dois argumentos que constituem as duas grandes partes seguintes do texto. O primeiro consiste em opor lei boa a lei justa; o segundo argumento consiste em mostrar que o papel das leis é garantir a paz civil.

Na segunda parte, onde se opõe a boa lei à lei justa, Hobbes explica:

que a lei é feita pelo poder soberano e aprovada pelo povo;

que a lei da comunidade política é semelhante às leis do jogo;

Daqui resulta que a lei é necessária ao bem do povo e fácil de compreender.

Na terceira parte, relativa ao papel das leis, Hobbes explica:

que a lei deve dirigir e conter os desejos prejudiciais à vida em comunidade;

que as leis são como as barreiras que mantêm os viajantes no caminho certo;

daqui resulta que a lei é necessária, quando alcança aquilo que ela visa. A lei não deve reprimir os indivíduos, mas garantir a ordem.

Pergunta 2

a) Explique: “As leis da comunidade política são como leis do jogo”.

As leis da comunidade política, de acordo com o autor, são decididas pelos próprios atores do jogo político, tal como num jogo de lazer. Tal como no jogo, os homens devem definir regras. Em política, a este dever chama-

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Page 79: Textos e Comentários

se princípio de autonomia. Uma vez enunciadas essas regras, devemos cumpri-las, assumindo este compromisso connosco próprios e com os outros atores em jogo. Como no jogo, há uma parte de acaso, de aleatório ou até de arbitrário nessas regras, mas isso não pode ser considerado como uma injustiça.

b) Explique: “Uma boa lei é aquela que é, ao mesmo tempo, necessária para o bem do povo e fácil de compreender”.

Hobbes define o que é uma boa lei, subentendendo-se desse modo que haverá algumas que são más. Ora, a boa lei não é a lei justa, mas a lei que respeita dois critérios:

É necessária para o bem do povo, isto é, permite a ordem e garante a segurança dos cidadãos que são os seus autores. Deste modo, os cidadãos limitam-se a obedecer a si mesmos no interesse de todos.

É fácil de compreender: isso significa que ela se dirige a todos no interesse de todos e que não pode parecer como se fosse feita pelos mais fortes, por

uma elite que disporia de uma linguagem obscura e complexa.

c) Explique: “Tal como levantamos barreiras, não para parar os viajantes, mas para os manter no caminho”.

Esta metáfora das barreiras que ladeiam o caminho mostra a necessidade de respeitar a ordem que tem origem nas leis. Comparadas às barreiras, as leis mantêm os homens num quadro, sem os limitar, pois são eles que são os autores da lei; são eles próprios que montam as barreiras que não devem ultrapassar.

Pergunta 3

O papel das leis é manter os homens a uma boa distância uns dos outros e impedi-los de se prejudicarem uns aos outros e a si mesmos? Será esse o único papel das leis? Este é o problema colocado na pergunta 3.

O desafio do texto de Hobbes é mostrar que uma boa lei não é forçosamente uma lei justa, pois cada um tem a

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sua própria ideia de justiça e quereria impô-la aos outros. Devemos então perguntar-nos, não se uma lei é justa, mas se é necessária. Se for necessária, diz Hobbes, então contribui para manter o equilíbrio social. Mas é este o seu único papel? Esta pergunta remete-nos para a discussão sobre as leis que têm por fim o bem comum, que são feitas para todos e por todos. Neste sentido, o papel primordial de uma lei não deveria ser sobretudo a liberdade, que não se pode limitar à manutenção da ordem de equilíbrio de forças que, segundo Rousseau, deve submeter-se ao destino das leis, e não submetê-las a elas?

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Hobbes : “O que é uma boa lei?

Texto:

“O que é uma boa lei? Por boa lei, não entendo uma lei justa, pois nenhuma lei pode ser injusta. A lei é feita pelo poder soberano e tudo o que é feito por esse poder soberano é seguro e aprovado por todo o povo. E aquilo que todos os homens querem dificilmente poderá ser considerado injusto. As leis da comunidade política são como leis do jogo: aquilo sobre que os jogadores concordaram não pode ser uma injustiça para nenhum deles. Uma boa lei é aquela que é, ao mesmo tempo, necessária para o bem do povo e fácil de compreender. Com efeito, o papel das leis, que não são mais do que regras revestidas de autoridade, não é impedir a ação voluntária, mas dirigir e conter os movimentos das pessoas, de forma a que não se prejudiquem a si

mesmas pela impetuosidade dos seus desejos, pela sua sofreguidão, ou pela sua cegueira; tal como levantamos barreiras, não para parar os viajantes, mas para os manter no caminho. É por isso que uma lei que não seja necessária, isto é que não alcance aquilo que pretende, não é uma boa lei.” Leviathan

Resumo da Tese:

Quando colocamos a questão de saber “O que é uma boa lei?”, normalmente é porque nos sentimos no direito de questionar uma injustiça, porque essa lei nos parece contrariar um ideal de justiça. Para Hobbes, a resposta é muito clara: a boa lei não é a lei justa, mas aquela que é necessária por garantir a ordem social. Por outras palavras, não é por ser justa que a lei é necessária, mas é porque é necessária que ela é boa e,

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• Secção 2 •

Segundo Modelo

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portanto, justa. Hobbes inverte, assim, a ideia mais comum, segundo a qual o critério de uma boa lei é a sua justiça.

O texto divide-se em três partes:

Na primeira (do início até “não pode ser uma injustiça para nenhum deles”) Hobbes argumenta pela negativa: uma boa lei não é uma lei justa. Com efeito, falar de uma “lei justa” não tem sentido, porque uma lei é forçosamente justa. Hobbes apresenta, a favor desta ideia, dois argumentos: primeiro, um argumento de autoridade (a lei é feita por um soberano), depois, um argumento de bom senso (tudo o que é feito por esse poder tem de ser aprovado por todos): por outras palavras, a partir do momento em que reconheço a legitimidade do poder e que ele me representa, só posso aceitar as suas decisões, como sendo também, de alguma forma, as minhas decisões. Donde o paralelo que Hobbes estabelece entre as leis e as regras do jogo: se aceito o jogo, também reconheço que as suas regras são boas e não posso, depois, contestá-las.

Na segunda parte (“Uma boa lei é aquela que é”... até...”para os manter no caminho”) Hobbes enfrenta a questão “o que é uma boa lei?”. Mais concretamente: ela é ao mesmo tempo necessária ao bem do povo e clara. O autor desenvolve o que ele considera ser a vocação da lei: agir tendo em vista o bem público. Deste modo, define a escala de medida que determina se uma lei é boa ou má. Será boa a lei que salvaguarde a ordem social, ainda que desperte em alguns um certo sentimento de injustiça. A lei é fundamentalmente limitadora, e a boa lei não poderia nunca ser permissiva. Ela pode mesmo, em nome do bem comum, contrariar alguns dos nossos desejos. Mas a imagem das barreiras lembra que a lei não poderá fazer da sua força limitadora o seu principal objetivo: ela não limita pelo simples prazer de limitar; a sua ambição é simplesmente a de manter a paz social, impedindo que certos membros da sociedade invadam a liberdade dos seus concidadãos, seguindo um caminho errado.

Na terceira parte, Hobbes deduz logicamente da sua demonstração o que permite considerar uma lei má: o facto de ela ferir o seu primeiro princípio: a salvaguarda da ordem social.

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Conclusão:

O desafio deste texto é o de responder à questão “o que é uma boa lei?”, de tal modo que cada um não procure impor aos outros uma certa ideia de justiça, que legitimaria alguma forma de contestação das leis. A questão não consiste, portanto, em saber se a lei é justa – esta é uma falsa questão – mas se ela é necessária, isto é, se contribui para o seu primeiro fim: a salvaguarda do equilíbrio social.

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