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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ELIANA CAMPOS POJO GAPUIAR DE SABERES E DE PROCESSOS EDUCATIVOS E IDENTITÁRIOS NA COMUNIDADE DO RIO BAIXO ITACURUÇÁ, ABAETETUBA-PA CAMPINAS 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ELIANA CAMPOS POJO

GAPUIAR DE SABERES E DE PROCESSOS EDUCATIVOS E IDENTITÁRIOS NA

COMUNIDADE DO RIO BAIXO ITACURUÇÁ, ABAETETUBA-PA

CAMPINAS

2017

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ELIANA CAMPOS POJO

GAPUIAR DE SABERES E DE PROCESSOS EDUCATIVOS E IDENTITÁRIOS NA

COMUNIDADE DO RIO BAIXO ITACURUÇÁ, ABAETETUBA-PA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas da Universidade Estadual de Campinas como

parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de

Doutora em Ciências Sociais.

Orientador: Dr. Carlos Rodrigues Brandão

Este exemplar corresponde a versão

Final da Tese defendida pela aluna

Eliana Campos Pojo, e orientada pelo

Professor Dr. Carlos Rodrigues

Brandão.

CAMPINAS

2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 30 de outubro de 2017,

considerou a candidata Eliana Campos Pojo aprovada.

Prof. Dr. Carlos Rodrigues Brandão (orientador)

Prof. Dr. Carlos Jorge Paixão

Profª. Dra. Valéria Oliveira de Vasconcelos

Profª. Dra. Neusa Maria Mendes de Gusmão

Profª. Dra. Nashieli Cecilia Rangel Loera

A Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de

vida acadêmica da aluna.

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A todas as mulheres negras que nos antecederam, trilhando rios na Amazônia paraense.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pela luz e o meu porto seguro na vida.

Ao orientador, professor Carlos Rodrigues Brandão, pelo apoio incondicional e por me auxiliar,

de forma ímpar, com seus ensinamentos.

À Professora Neusa Maria Mendes de Gusmão, que produziu sentidos múltiplos desde os

primeiros passos dessa fase acadêmica, sempre com sábias orientações e confiança.

Às professoras Emília Godói e Nachieli Loera, por terem contribuído para o desenvolvimento

dessa pesquisa, com dicas etnográficas valiosas.

Aos Membros da Banca Examinadora, pelas ricas contribuições.

Ao professor Carlos Paixão, por estar disposto a ajudar, seja com debates de ideias, seja com

trocas de experiências.

Às amig@s Maria Adelaide Araujo Monteiro, Kátia Homobono, Maria Natalina Freitas, Magali

Gouveia e Fádhia Ribeiro, pelas mãos dadas...

Às colegas de trabalho Lina Gláucia D. Elias e Vivian da Silva Lobato, pelo compartilhamento

de experiências profissionais e de vida.

Às professoras Nazaré Vilhena e Jalma Prado, pelas leituras fecundas e palavras sábias nessa

escritura.

Às irmãs Eliete Pojo e Elizete Sidônio, pela força e auxílio.

À família, pelo estímulo e elo, que marcam seus lugares no texto pela experiência de vida.

Aos funcionários do PPGCS/IFCH, pela acolhida.

À Ana Paula A. Pedrosa, pela amizade e companhia.

À CAPES-FAPESPA-UFPA, pela concessão da bolsa de doutorado contribuindo para a

realização desta pesquisa.

E, em especial, os quilombolas, pelo compartir de suas histórias de vidas e por embarcarem

comigo, na travessia ao rio Itacuruçá por meio dos sentidos produzidos em suas identidades e

saberes.

Minha gratidão eterna.

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RESUMO

Nesta tese analiso o modo de vida de quilombolas, circunscrito por uma territorialidade e

temporalidade marcadamente regidas pelas águas dos rios, destacando as relações entre os

saberes locais e a educação, na comunidade do rio Baixo Itacuruçá, Abaetetuba/PA. Busco

apreender a prática cotidiana, através da qual os sujeitos reproduzem e revelam uma forma

singular de produção de saberes e de organização social com foco na estruturação da

subsistência familiar, que se faz por meio de atividades agrícolas e extrativistas. Para esse fim

o estudo apoiou-se em recursos etnográficos dirigidos a enfocar a prática social, em que a

cultura é uma dimensão essencial dos processos educativos e das resistências locais. As

dinâmicas socioculturais exigiram um esforço analítico que explicasse a situação comunitária

e identitária da realidade local. Descrevo como uma sociabilidade e uma educação vividas na

comunidade permeiam as ações colaborativas entre os sujeitos, o domínio dos fazeres-saberes

imbricados com a natureza e, ainda, os processos identitários sedimentados socialmente pelo

grupo e que se articulam, na maioria das vezes, por meio do convívio com as águas. Em

consequência, o estudo poderá contribuir tanto para se pensar a organização social de povos

tradicionais na Amazônia paraense, no tocante a uma consciência política de luta no e pelo

território, como também poderá ser útil para se pensar possíveis (re)configurações educacionais

em contextos rurais na região do Baixo Tocantins/PA.

Palavras-chave: Cultura popular. Sistemas agrícolas. Educação. Quilombolas. Rio Itacuruçá -

Abaetetuba-PA.

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ABSTRACT

In this dissertation I analyze the way of life of quilombolas, circumscribed by a territoriality

and temporality strongly governed by river waters, highlighting the relations between local

knowledge and education, in the Itacuruçá lower river community, Abaetetuba/PA. I seek to

apprehend the daily practice, through which the subjects reproduce and reveal a unique form of

production of knowledge and social organization focused on the structuring of family

subsistence, which is done through agricultural and extractive activities. In order to do that, the

study was based on ethnographic resources focusing on the social practice, in which culture is

an essential dimension of educational processes and local resistance. Sociocultural dynamics

required an analytical effort that could explain the communitarian and identity situation of the

local reality. I describe how the sociability and the education lived in the community permeate

the collaborative actions among people, the domain of know-how imbricated with nature and,

also, the identity processes socially sedimented by the group that are articulated, in most cases,

by the contact with the waters. As a result, the study may contribute to instigate other ways of

thinking about social organization of traditional peoples in the Paraense Amazon region, in

terms of a political awareness of struggle in and through the territory, as well as to thinking of

possible educational (re)configurations in rural contexts in the Lower Tocantins/PA region.

Keywords: Popular culture. Agricultural systems. Education. Quilombolas. Itacuruçá river -

Abaetetuba-PA.

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LISTA DE DESENHOS

Desenho 01 – Retratando o “Ser quilombola” .................................................................... 14

Desenho 02 – Esboço de parte do rio ................................................................................. 75

Desenho 03 – ‘Parque Encantado’....................................................................................... 87

Desenho 04 – A roça ........................................................................................................... 112

Desenhos 05 e 06 – ‘Meu lugar’ ......................................................................................... 177

Desenho 07 – ‘Meu lugar’ ................................................................................................... 177

Desenho 08 – Onde moro .................................................................................................... 178

Desenho 09 – Vila de casas ................................................................................................. 178

Desenho 10 – O circuito na comunidade ............................................................................. 179

Desenho 11 – Percurso até a escola ..................................................................................... 179

Desenho 12 – Do comer o açaí ............................................................................................ 196

Desenho 13 – Cultura do açaí .............................................................................................. 196

Desenhos 14 e 15 - O igarapé atrás da escola...................................................................... 199

LISTA DE FIGURAS

Figura 01 – Mapa da cidade do Município de Abaetetuba .................................................. 56

Figura 02 – Croqui do percurso da beira até ao rio .... ........................................................ 69

Figura 03 – Croqui da área que circunscreve o rio ............................................................. 72

Figura 04 – Memorial fotográfico da roça .......................................................................... 108

Figura 05 – Croqui de localização dos retiros .................................................................... 115

Figura 06 – Outras informações sobre o açaí ..................................................................... 127

Figura 07 – Esquema da cadeia produtiva do açaí – Tipo 1 ................................................ 129

Figura 08 – Esquema da produção da farinha ..................................................................... 158

Figura 09 – Esquema ‘Gapuiando ideias’/No centro, uma fotografia do espaço da gapuia

............................................................................................................................................. 175

Figura 10 – Fazição da farinha ............................................................................................ 190

Figura 11 – Sobre o açaí ...................................................................................................... 195

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LISTA DE FOTOS

Foto 01 – Produtor de montaria do rio Alto Itacuruçá ........................................................ 38

Foto 02 – A beira, às seis horas da manhã .......................................................................... 59

Foto 03 – Paisagem do Miriti às margens do rio ................................................................. 62

Foto 04 – Rio Alto Itacururá ............................................................................................... 66

Foto 05 – Casas, na beira do rio .......................................................................................... 87

Foto 06 – Senhor Dilo de Couto (In memoriam) ................................................................. 103

Foto 07 – Senhor Domício ralando mandioca ..................................................................... 121

Foto 08 – Apanhador de açaí ............................................................................................... 124

Foto 09 – Banda feita com miriti ......................................................................................... 133

Foto 10 – Artesanatos expostos durante a feira da escola ................................................... 133

Foto 11 – Olaria ................................................................................................................... 136

Foto 12 – Retiro do senhor Dilo e Arlete ............................................................................ 152

Foto 13 – Dona Benedita na roça ........................................................................................ 167

Foto 14 – Dona Benedita e o ajudante no poço, descascando mandioca ............................ 167

Foto 15 – Crianças retornando da escola ............................................................................. 171

Foto 16 – Criança apreciando a tarde .................................................................................. 176

Foto 17 – Criança tomando banho no rio ............................................................................ 176

Foto 18 – Criança no colo, à beira do rio ............................................................................ 176

Foto 19 – Criança brincando no quintal .............................................................................. 179

Foto 20 – Futebol com a maré seca .................................................................................... 183

Foto 21 – Balanço, à beira do rio......................................................................................... 183

Foto 22 – Criança na prancha .............................................................................................. 183

Foto 23 – Crianças brincando o formô ................................................................................ 184

Foto 24 – O Grupo Infantil na roça ..................................................................................... 197

Foto 25 – Trapiche da escola ............................................................................................... 202

Foto 26 – Vista externa da escola ........................................................................................ 202

Foto 27 – Cartaz de boas vindas .......................................................................................... 205

Foto 28 – Cartaz com o tema da X Feira ............................................................................. 205

Foto 29 – Faixa em exposição na escola ............................................................................. 206

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LISTA DE TABELAS

Tabela 01 – Dissertações e Teses ....................................................................................... 30

Tabela 02 – Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia/Pará ....................................... 32

Tabela 03 – Dados do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e Outros ................. 33

Tabela 04 – Pesquisas desenvolvidas no âmbito da região tocantina .................................. 35

Tabela 05 – Localização e serventia dos espaços ................................................................ 52

Tabela 06 – Terras de Quilombo em Abaetetuba ................................................................ 57

Tabela 07 – Situações em que ocorre a movimentação do rio ............................................ 71

Tabela 08 – O viver no entorno do rio................................................................................. 71

Tabela 09 – Principais atividades praticadas conforme o tempo da maré ........................... 82

Tabela 10 – Cultivo da mandioca ........................................................................................ 106

Tabela 11 – O quantitativo de roças .................................................................................... 107

Tabela 12 – Relatos sobre as roças e alguns preços de serviços ......................................... 111

Tabela 13 – Os retiros de farinha......................................................................................... 119

Tabela 14 – Categorias de trabalhadores tomando como base a comercialização do açaí .. 125

Tabela 15 – Especificações dos trabalhadores do açaí ........................................................ 126

Tabela 16 – Cultivos de quintal ........................................................................................... 132

Tabela 17 – Artesanato com talas e outros .......................................................................... 134

Tabela 18 – Atividades de trabalho existentes na comunidade ........................................... 138

Tabela 19 – Periodicidade de algumas atividades ............................................................... 142

Tabela 20 – Preços e quantidades de rasas .......................................................................... 144

Tabela 21 – Outros elementos e preços ............................................................................... 144

Tabela 22 – Outros elementos e valores utilizados nos retiros............................................ 168

Tabela 23 – Jogos e Brincadeiras ........................................................................................ 185

Tabela 24 – Outras significações sobre o território ............................................................. 200

Tabela 25 – Quantitativo de alunos matriculados em 2017................................................. 203

Tabela 26 – O “Ser Quilombola” na visão de crianças-adolescentes-estudantes ................ 208

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SUMÁRIO

Desenho Capa ..................................................................................................................... 14

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 15

Aspectos teórico-metodológicos ......................................................................................... 20

O trabalho de campo ............................................................................................................ 23

Estudos realizados sobre saberes locais na Amazônia paraense ......................................... 26

CAPÍTULO I – A COMUNIDADE É NOSSA - ABORDAGENS CONCEITUAIS SOBRE

COMUNIDADE TRADICIONAL ................................................................................... 38

1.1 – Comunidade Tradicional ............................................................................................ 41

1.2 – Comunidade Tradicional na Amazônia ..................................................................... 45

1.3 – Sobre a Comunidade Tradicional onde realizei a pesquisa ........................................ 51

1.4 – A cidade de Abaetetuba .............................................................................................. 56

CAPÍTULO II – O RIO, ELE É FUNDAMENTAL – O COTIDIANO DA COMUNIDADE

DO RIO BAIXO ITACURUÇÁ ....................................................................................... 66

2.1 – A geografia do lugar .................................................................................................. 69

2.2 – Imbricações com a natureza ....................................................................................... 78

2.3 – Condicionantes sociais e de organização comunitária .............................................. 85

2.4 – O processo territorial quilombola .............................................................................. 90

2.5 – Nem todo mundo quer se identificar .......................................................................... 93

CAPÍTULO III – ENTÃO, CADA UM VAI SE VIRANDO COMO PODE – OS FAZERES

NA VIDA COTIDIANA .................................................................................................... 103

3.1 – Os fazeres nos retiros ................................................................................................. 113

3.2 – Processos e produções do fazer ................................................................................. 144

CAPÍTULO IV – EU NÃO SOU MUITO CHEGADA NISSO, MAS POR NECESSIDADE

FUI APRENDENDO [...] – OS SABERES-FAZERES: ÊNFASE AO CONHECIMENTO

LOCAL ............................................................................................................................... 148

4.1 – O saber da fazição da farinha ..................................................................................... 152

4.2 – Alguns outros processos do fazer-saber .................................................................... 162

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CAPÍTULO V – QUILOMBOLA É DESENVOLVER A CULTURA –CONSIDERAÇÕES

SOBRE O APRENDIZADO DAS CRIANÇAS NA VIDA E NA ESCOLA ................ 171

5.1 – Caminhos do espiar e do produzir com as crianças .................................................... 172

5.2 – Mediações do saber-aprender através do brincar ...................................................... 175

5.3 – O aprendizado no laborar .......................................................................................... 186

5.4 – Da criança que brinca ao adolescente que trabalha e brinca ...................................... 189

5.5 – Saberes e aprendizados do açaí e da roça .................................................................. 194

5.6 – A Educação escolar e o “Ser Quilombola” ................................................................ 202

DO ATÉ AQUI... DA(S) TRAVESSIA(S) ....................................................................... 212

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 221

ANEXOS ............................................................................................................................ 231

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INTRODUÇÃO

Viver na Amazônia paraense significa conviver, bem mais do que em outros territórios e

cenários, com a tríade fundamental à vida: a terra, as águas e as florestas através de uma cultura

própria, ou de diversas culturas refletidas no cotidiano dos amazônidas1. Essa imbricação

humano-natureza é bastante visível aos sentidos e saberes. Para compreender tal singularidade

amazônica é que venho, desde 2012, no meu exercício docente na Universidade Federal do

Pará/Campus Universitário de Abaetetuba, desenvolvendo projetos de pesquisa e extensão

junto a comunidades de ilhas. E esta experiência inicialmente docente, acabou sendo a origem

e o tema desta investigação2.

Durante todo este período realizei os primeiros contatos com populações das

comunidades dos rios Itacuruçá e Arapapuzinho, aproximando-me de quilombolas e

ribeirinhos. Desde o início chamou minha atenção os ‘jeitos’ de lidarem com a natureza e,

principalmente, as suas ancestrais formas peculiares de reprodução da vida. Ressalto que as

próprias longas travessias de barco até a comunidade me fizeram refletir sobre suas vidas e, por

meio dessas experiências, fui pensando questões sobre como, por exemplo, são articuladas

relações de reciprocidades e de trocas de saberes na prática cotidiana.

Parto dessa experiência para, no doutorado, assumir o desafio de aprender um pouco da

cultura e do “ser quilombola”. Paulatinamente, observando a própria dinâmica da realidade

através da qual a vida cotidiana acontece e, também, realizando diversas leituras acredito haver

chegado ao objetivo principal da pesquisa: compreender os modos de vida de comunidades

quilombolas circunscritos por uma territorialidade e temporalidade marcadamente regidas pelas

águas. Assim, busco destacar as relações entre os saberes locais e a ‘educação da vida’ tal como

elas acontecem na Comunidade do Rio Baixo Itacuruçá3. Assim, procurei realizar um

mapeamento dos saberes compondo uma possível caracterização simbólica e territorial do

lugar, enquanto uma experiência de gapuiar saberes tanto do ponto de vista metodológico

quanto do aprendizado cultural do lugar4.

1 Esta nomenclatura é usual por autores que escrevem sobre a Amazônia. Utilizam as denominações: amazônico,

amazônida, amazonidades para caracterizar os povos e os movimentos dentro da região. Para aprofundar o tema,

recomendo a obra “Amazônia: modos de (o)usar”, de Armando Dias Mendes (MENDES, 2001). 2 Refiro-me a dois projetos acadêmicos: Travessias, identidades e saberes das águas - Cartografias de saberes de

populações ribeirinhas no Município de Abaetetuba/PA e Integrando conhecimentos e saberes: uma experiência

educativa na primeira escola Quilombola de Abaetetuba/PA, ambos vinculados ao Grupo de Estudo, Pesquisa e

Extensão Sociedade, Estado e Educação: ênfase nos governos municipais e educação do campo (GEPESEED). 3 Em seguida, ficam os territórios do rio Médio e Alto Itacuruçá, discriminados no capítulo II. 4 Mocooca: espécie de tapage feita com pedaços de pau e barro para evitar que o camarão e o peixe escapem no

momento da gapuia. Logo, gapuiar, é um tipo de pesca no igarapé ou furo. Significa retirar a água de poços que

se formam nos igarapés (olho d’água) durante a maré seca, para, deles, apanhar o peixe e/ou o camarão

aprisionados (grifos meus).

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Outras questões somam-se nesta investigação. Elas me conduziram a estudos teóricos e

as minhas incursões na pesquisa de campo: Quais processos identitários estão postos para os

quilombolas e os ribeirinhos? Quais modificações estão diferenciadamente vigorando em meio

a processos de reprodução do saber, ao longo das transformações vividas na comunidade? Quais

práticas sociais oriundas do que estarei chamando aqui de saberes locais estão presentes no

cotidiano, e podem servir como elementos para repensar a Escola Quilombola em suas matrizes

étnico-raciais e curriculares?5

Enquanto possibilidade de organização, acrescento ao meu objetivo principal outros que

apresento a seguir:

- Mapear os fazeres-saberes oriundos do modo de vida da comunidade do rio Baixo

Itacuruçá, buscando a compreensão de suas lógicas próprias.

- Registrar as principais dimensões do cotidiano que geram e afirmam processos identitários

entre os moradores, buscando compor uma possível caracterização simbólica e territorial da

comunidade, como forma de registro do lugar.

- Descrever e caracterizar o aprendizado das crianças e dos adolescentes em seus processos

educativos e culturais, com vistas a compreender como elas e eles participam da vida e do

trabalho, e apreendem saberes e significados do universo amazônico-camponês-

quilombola6.

O locus da pesquisa – a Comunidade do rio Baixo Itacuruçá7 ou Comunidade Nossa

Senhora do Perpétuo Socorro – foi escolhido em razão da facilidade de acesso comparado a

outras comunidades. Além disso, reforçam a minha escolha os vínculos previamente

estabelecidos com algumas lideranças e agricultores locais8. Outro ponto importante é que nesta

Comunidade foi implantada a primeira Escola Quilombola do município.

O rio Itacuruçá localiza-se na área de Ilhas do município de Abaetetuba, abrange uma

comunidade constituída por aproximadamente 204 famílias, contabilizando um total

5 Me reporto às ações simbólicas e materiais empreendidas naquele mundo camponês quilombola: as

manifestações culturais, o trabalho, a convivência social familiar e de vizinhança, entre outras. 6 Com as crianças e adolescentes realizei interlocuções por meio de um grupo infantil, conforme detalho no

capítulo V. 7 Embora existam outras denominações, os termos “Comunidade do rio Baixo Itacuruçá” e “Comunidade” são

usados pelos quilombolas para a identificação do lugar. O termo comunidade se dirige a organização e ação da

igreja católica, com o histórico movimento das Comunidades Eclesiais de Base. Quanto a ideia do comunitário

vinculam a ação gestada pela associação quilombola, pela vizinhança, por grupos familiares, por agricultoras(es)-

lideranças e, ainda, pelas formas de mobilização e organização da escola (SILVA, 2015, grifos meus). 8 Utilizo os termos agricultor(a) e lavrador(a) conforme são usados pelos moradores, isto é, para o primeiro

designam para quem lida com a terra (açaizal, plantio de quintal e roça) e, o segundo, diz respeito aos que realizam

atividades na lavoura, refiro-me as roças – plantio, colheita e a roçação; dentro da mata – derrubando árvores,

carregando lenha e a produção de carvão e, nos retiros – carregando mandioca e fazendo farinha.

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aproximado de 960 pessoas entre crianças, jovens e adultos9. Em 2001, a comunidade foi

reconhecida como quilombola pelo governo do Estado do Pará e pela Fundação Cultural

Palmares.

Este território de seres humanos se constituiu a partir de diferentes processos

socioeconômicos decorrentes do trabalho pesado nos canaviais e demais atividades na terra, nas

florestas e nas águas. Desta feita, a trajetória de vida dos ancestrais precursores tem dado

sentido à produção de subsistência dos moradores, ao modo comunitário e coletivo e as lutas

do povo no e pelo território. Ao mesmo tempo, a ideia de Terras de Marinha e de cotidiano das

águas, matizam um reconhecimento cujo título quilombola se construiu de fora para dentro, no

jogo de relações que ali são estabelecidas.

Assim, a Comunidade do rio Baixo Itacuruçá caracteriza-se pela presença de um grupo

de famílias negras residindo em um território demarcado como “remanescente de quilombo”,

convivendo atualmente com novos processos sociais oriundos da abertura dos ramais, de

caminhos e com a intensificação das embarcações nos rios, ou seja, convive com o crescimento

da cidade de Abaetetuba que chega até o rio Itacuruçá. E, esse processo instiga os quilombolas

a se posicionarem para além das fronteiras territoriais. Seus modos de vida, suas raízes

ancestrais e de coletividade não se balizam tão somente pelas leis e escritos, mas

substancialmente por processos educativos transmitidos pela memória e vitalidade dos

antepassados de forma oral, pela ideia de uma descendência africana, por uma história de

resistência e de escravização contada pelos mais velhos, em suma por um ‘jeito’ de produção

da vida.

Ademais, além de tudo o que configura um espaço, uma cultura e um conjunto de fazeres-

saberes visíveis a um primeiro olhar, existe sempre algo ainda mais diferenciado e peculiar.

Afirmo isto porque ao trabalhar com uma comunidade tipicamente amazônica, estive diante de

caboclos “meio índios/meio brancos”, não apenas na cor da pele e nas afirmações de identidade,

mas também devido às suas relações peculiares com a natureza, e devido ainda à configuração

de um modo de vida próprio que mesmo depois das recentes e crescentes inovações vindas “de

fora”, reproduzem-se de geração a geração. Noto que a própria distinção entre ribeirinhos e

quilombolas, entre vários posicionamentos por parte dos moradores, tornou-se uma questão

importante a ser considerada no estudo. Assim, ao admitir essa distinção e dependendo da

situação, adoto na tese as duas especificações.

9 Dados informados pelas Agentes Comunitárias de Saúde da comunidade, em 28/11/2016.

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Na região estudada as estratégias e os modos de reprodução da vida por meio do trabalho

estão vinculados às áreas da varja10 e da terra firme, assim, ao longo do movimento cotidiano

da vida local eu pude circular, por entre homens, mulheres, crianças e adolescentes, em meio

aos seus espaços sociais, ‘espiando’ o pescador, o homem que apanha e a mulher que disbulha

o açaí, o(a) lavrador(a) da roça e o produtor da farinha, os oleiros das telhas e dos tijolos, como

os protagonistas principais 11. Além de conhecer a natureza dos conflitos12, a imbricação com a

natureza e o trabalho deles, sendo esses alguns pontos cruciais da pesquisa.

Entretanto, ser pedagoga e cursar um doutorado em Ciências Sociais implicou sair de um

universo de referentes teóricos e metodológicos e aprender os de uma outra tradição científica.

Assim, importou o aprofundamento sobre a pesquisa etnográfica e aprender o essencial sobre

novos temas e caminhos epistemológicos. Significou, de certa forma, aprender um outro jeito

de escrever que, sem dúvidas, foi o meu maior desafio.

No entanto, quando no campo, contei com a acolhida e a generosidade dos quilombolas

para participar de suas vidas cotidiana. Devo ressaltar que fui favorecida também pela minha

experiência de acompanhamento a Escolas do Campo, durante um período de dez anos,

convivendo com ribeirinhos de comunidades de algumas Ilhas de Belém/PA.

Ao mesmo tempo, durante o fluxo da investigação e entre o experienciado e o vivido,

deparei-me com um exercício de aproximação em muitos aspectos experimentado em minha

própria história de vida. Eu nasci no município de Moju/PA, em um pequeno vilarejo no rio

Jambuaçu, porém, desde os meus sete anos de idade vivi na Ilha de Mosqueiro, em Belém, uma

localidade com belas praias e, ao mesmo tempo, com traços de um bucolismo peculiar. Sou

parte de uma família de cinco irmãos. Meus pais, que nasceram e se criaram no município onde

também nasci, aprenderam desde muito cedo a trabalhar, e por isso estudaram pouco como

costumava acontecer com as pessoas das classes populares naqueles tempos. A minha mãe era

costureira e lavadeira e o meu pai trabalhou ora como agricultor ora como “braçal”.

Minha formação básica ocorreu em escolas públicas localizadas entre Mosqueiro e Belém

(antigos 1º e 2º graus). Aliado a isso, eu e mais duas irmãs vivemos experiências semelhantes

às vividas por outras centenas de adolescentes do Estado do Pará. Ainda muito presente

10 Termo dicionarizado na Língua Portuguesa: várzea. No estudo sobre o mundo social da várzea de Quilombolas,

do município de Cachoeira do Arari – Marajó/PA, Rodrigues (2013, p.17), tomando a visão dos moradores, arguiu

que “varja constitui um sistema de cultivo coletivo com características pedológicas, morfológicas e culturais

resultantes da ação direta destes agentes sociais. Nesse sentido, ela é um recurso material, socialmente,

construído”. 11 Disbulha é o mesmo que debulhar, retirar o açaí do cacho. 12 De modo geral, na região das ilhas os moradores e as organizações que as representam, lidam com conflitos

como os decorrentes da venda da terra, do uso dos espaços comuns como a beira do igarapé, em situações entre

vizinhos e entre parentes.

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nos dias atuais, a de meninas que se mudam para estudar em Belém e lá trabalham como

empregadas domésticas ou babás.

Em 1987, após a conclusão do Curso Normal (antigo 2º grau) eu comecei a me inserir na

docência, na Ilha de Mosqueiro, ministrando aulas particulares de ‘reforço’ para alunos dos

anos iniciais do Ensino Fundamental, em um barracão no quintal da casa dos meus pais. Cinco

anos depois, em 1992, assumi o Magistério por meio de aprovação em concurso público

municipal, e então comecei a atuar como professora de Educação Infantil na Escola Municipal

Donatila Santana Lopes. Foi com base nessas primeiras experiências como professora que eu

senti a necessidade de maior aprofundamento na área, o que me levou a escolher em seguida, o

curso de licenciatura em Pedagogia, na Universidade da Amazônia (UNAMA).

Desde cedo tive que estudar e trabalhar ao mesmo tempo. Mas durante o curso de

Pedagogia essa realidade representou para mim uma fase difícil, considerando que eu

trabalhava durante o dia em Mosqueiro e estudava no período da noite, em Belém. De segunda

a sexta eu deslocava-me junto com um grupo de estudantes até a Universidade, em um percurso

de ônibus que totalizava quatro horas de viagem, considerando os percursos de ida e volta.

Concomitante ao término do curso, fui convidada a integrar um grupo de educadores para

exercer atividades de formação continuada no projeto popular da “Escola Cabana”, em 1997.

Esta experiência perdurou por um tempo longo em minha vida profissional, durando mais ou

menos vinte e dois anos, sendo que encerrei este vínculo profissional recentemente, em razão

da minha aprovação em concurso público para carreira do Magistério Superior na Universidade

Federal do Pará, onde atualmente exerço as minhas atividades profissionais.

Tanto as minhas origens como também as experiências profissionais em comunidades

rurais, tornou-se um referencial significativo para mim. Considero-me parte integrante desse

local, sou uma amazônida. E, foi com base nesse percurso de vida que aprendi a reconhecer o

saber popular e local destes povos e a afirmar minha identidade de mulher negra frente aos

desafios profissionais e pessoais.

Como já mencionei, as minhas origens e experiências de ‘cabocla amazônica’ guardam

muitas semelhanças com a comunidade quilombola escolhida para a investigação. Trata-se de

um contexto que se realiza através de um modo de vida em que os quilombolas lançam mão de

saberes locais como uma atitude de sobrevivência e de resistência. Contexto que articula

modalidades de ações por meio das quais os seus sujeitos articulam, geram e modificam

sistemas próprios de organização sócio produtiva de grupos e de comunidades.

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Aspectos teórico-metodológicos

Geertz (1989, p.89) defende a etnografia como uma experiência interpretativa. Nesses

termos, o meu estudo sobre a reprodução da vida com base nos saberes, nos fazeres e em seus

aprendizados inscreve-se de algum modo no interior de tal abordagem por pautar-se na

subjetividade dos sujeitos, em meio a situações e fatos que se mostram encharcados de

significados e relações. Julgo importante situar que a ideia de cultura que se define por uma

“rede de significados”, ou seja, como um processo dinâmico e de relações simbólicas que as

pessoas tecem o tempo todo (GEERTZ, 1989), alinhou-se consideravelmente com o estudo.

Assim, com base neste pressuposto a investigação teve como foco de análise o cotidiano e suas

gentes, quando a partir de uma descrição, eu registro e interpreto os dados de uma prática

artesanal, em uma quase dimensão microscópica e detalhista.

Ao mesmo tempo, o estudo ensejou um diálogo entre as áreas da Educação e da

Antropologia, dada a aproximação entre ambas, por estarem sintonizadas com os modos de

vida, sociabilidades e relações entre seres humanos (GUSMÃO, 2012). A interface entre essas

áreas vem de longa data, tanto em pesquisas que focalizaram a Educação em contextos rurais

ou de comunidades negras rurais (BRANDÃO, 1999; DEMARTINI, 2003) como em estudos

cujos interlocutores da pesquisa foram crianças (GUSMÃO, 1996). A priori, visualizei nexos

entre as áreas devido à pesquisa aglutinar aspectos que abrangem uma diversidade de raízes

culturais entremeadas com processos educativos.

Como aprendiz de um modo ‘artesanal’ de fazer, não apenas transitei entre leituras que

trataram do tema, como também procurei realizar uma significativa experiência com o trabalho

de campo. As leituras me ajudaram a reconfigurar o meu próprio percurso formativo e o da

pesquisa. As narrativas e os depoimentos de agricultores/as, crianças e adolescentes me

possibilitaram no percurso retomar, em vários momentos, as teorias; bem como a obrigação de

ir e vir entre outros povoamentos quilombolas em comunidades próximas. Busquei também

inventariar algo das histórias de Abaetetuba, o que me levou à busca de aprender um pouco

sobre a história da África, participando de um curso que tratou da afrodescendência13.

No estudo bibliográfico priorizei a dimensão do saber local, com base nas pesquisas da

região Norte e a do Baixo Tocantins14. Procurei dialogar com autores de abordagens e questões

13 Curso de atualização - Diálogos e Resistências: a África no Brasil e o Brasil na África, pela Universidade de

São Paulo. Período de março a junho de 2015. 14 Comportam os municípios pertencentes a essa mesorregião denominada Baixo Tocantins: Abaetetuba,

Barcarena, Acará, Moju e Igarapé-Miri, Limoeiro do Ajuru, Cametá, Mocajuba, Baião e Oeiras do Pará

(Fonte: Sistema de Informações Territoriais - http://sit.mda.gov.br).

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que se relacionavam com o meu objeto, tais como: a) pesquisas sobre Comunidades tradicionais

e sobre modos de vida no “mundo rural”; b) estudos sobre povos de territórios quilombola e

ribeirinho; c) pesquisas que abordam o cotidiano amazônico e a geografia de águas no Pará; e,

d) pesquisas que focalizam experiências das crianças em contextos rurais, sendo estes eixos que

perpassam a presente Tese.

Nessa empreitada, autores importantes do campo antropológico em suas múltiplas

concepções, foram pertinentes à investigação. Cardoso (1988) e Brandão (2003), por exemplo,

acentuam reflexões importantes sobre as técnicas do trabalho de campo, notadamente as que se

utilizam da observação participante como referência. Zaluar (1988, p.109) enfatiza o aspecto

da subjetividade dos sujeitos afirmando que, “as duas subjetividades não têm o mesmo

estatuto”. Para Geertz (1989, p.04) aprender um fazer etnográfico se faz no exercício prático de

“estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear

campos, manter um diário, e assim por diante”, entre outras contribuições de pesquisadores da

criação etnográfica.

A leitura dos referenciais foi fundamental para que eu pudesse compreender algo das

possíveis ‘armadilhas’ do trabalho campo, em especial no âmbito das relações com os

interlocutores e sobre o registro das observações. No que se refere a este aspecto, estive

preocupada durante o meu percurso, com as questões de cunho teórico-metodológicas,

principalmente após da leitura de alguns artigos que se reportavam aos diversos problemas e

incoerências de uma pesquisa etnográfica (FONSECA, 1999; CARDOSO, 1998).

Nesse sentido, direcionei o meu olhar para alguns referenciais que amenizariam essas

dúvidas, inclusive, os indicados durante o meu exame de qualificação. Uma das indicações

durante o exame foi o artigo intitulado “Quando cada caso NÃO é um caso: pesquisa

etnográfica e educação”, de autoria da antropóloga Cláudia Fonseca (1999). No artigo, a autora

discute o método etnográfico e sua aplicabilidade por profissionais de diversas áreas, centrando

sua análise nos equívocos do uso do método e, ao mesmo tempo, discorrendo sobre algumas

possibilidades adequadas.

A autora deixa claro que essa forma de fazer pesquisa prescinde do diálogo com o

conteúdo formativo do pesquisador e os conhecimentos da Antropologia, isto é, não cabe

apenas a utilização de procedimentos e técnicas, mas a compreensão das bases epistemológicas

da ciência com a qual se está dialogando, àquela em que se construiu o método. Aprendi que a

abordagem etnográfica exige um espiar às espreitas, somado a isto um conjunto de

procedimentos metodológicos que dão sustentação à aproximação com o Outro (lugar,

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cotidiano, acontecimentos, costumes, práticas) e com as relações sociais produzidas, que

constituem o ethos do antropólogo (FONSECA, 1999).

Sobre a intencionalidade política da investigação, Fonseca (1999) pondera sobre a

importância dos sujeitos envolvidos, pois eles estão envolvidos em maneiras de agir e de

compreender um determinado contexto. No caso do meu estudo, são pessoas que narram suas

manifestações culturais, suas rotinas cotidianas de suas atividades laborais, e os fatos e

acontecimentos vividos no lugar. Elas e eles são também detentores de saberes patrimoniais,

não podendo tais domínios serem ignorados ou diminuídos na pesquisa.

O percurso da pesquisa foi sendo consolidado a partir da minha presença contínua na

comunidade, percebendo as diversas recorrências dos discursos e das narrativas dos

quilombolas, com o suporte das leituras sobre os escritos etnográficos e, ainda, na medida que

alcancei maior clareza das perguntas e do objeto da minha investigação.

Outro condicionante deste processo diz respeito à produção escrita sobre impressões e

ponderações do vivido e experenciado na pesquisa. Assim, considerei pertinente refletir que

[...] os textos antropológicos são eles mesmos, interpretações e, na verdade, de

segunda e terceira mão [...]. Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que

são algo construído, algo modelado – o sentido original de fictio – não que sejam

falsas, não-factuais ou apenas experimentos de pensamento [...] (GEERTZ, 1989,

pp.25-26, grifos do autor).

A partir de Geertz pude perceber que a escrita se configura em mais um ponto de vista, o

que não desmerece o valor e o rigor com que foi construída. Com efeito, essa escrita não

comportará jamais a totalidade dos processos e das produções que estão presentes naquele

território, pois, trata-se de uma narrativa que busca representar uma dada realidade em um

tempo histórico e social, a partir de uma vivência no interior da comunidade.

Durante todo o tempo da investigação, o meu itinerário perpassou a pesquisa

bibliográfica, a incursão em campo e a recolha dos dados. Assim sendo, procurei refletir sobre

a realidade vivida na região do rio Itacuruçá, possibilitando um maior conhecimento

antropológico e educacional deste povo nas dimensões quilombola e dos saberes locais.

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O trabalho de campo

O resultado do trabalho etnográfico, cujo material foi realizado em duas fases, durou mais

ou menos três anos. A primeira fase foi entre 2012 e 2013, quando realizei um mapeamento

situacional das Comunidades dos rios Baixo Itacuruçá e Arapapuzinho, como parte integrante

do projeto acadêmico, buscando adentrar e compreender as práticas sociais dos “povos das

águas”, entre coletivos de quilombolas e de ribeirinhos.

Uma segunda fase, já com o locus da pesquisa definido, ocorreu entre 2015 e 2016,

período intercalado entre os estudos das disciplinas do doutorado e a pesquisa de campo. Nesses

dois períodos foi possível fazer um levantamento do material documental do lugar, da escola e

da Associação15; compilar alguns registros históricos encontrados na Paróquia das Ilhas e,

principalmente, estabelecer um diálogo com as pessoas. Outra ação, e não menos importante,

foi a das observações realizadas no decorrer das muitas caminhadas e travessias entre as pontes,

os trapiches e a escuta das narrativas entre locais de trabalho, de lazer e de viagens.

Durante todo o período de trabalho de campo, o meu ponto de referência foi a escola, em

virtude dos primeiros contatos com alguns educadores que me auxiliaram com informações e

com o apoio logístico16. A escola também foi parada obrigatória durante os meus intervalos do

campo, momentos que eu aproveitava para registrar no caderno de campo as observações e as

minhas impressões, além de parar para almoçar e conversar com os professores que ficavam no

espaço. No entanto ressalto que versando sobre saberes e a educação, a pesquisa não teve a

escola como o locus principal.

As travessias, algumas vezes, eram feitas na embarcação17 que levavam os professores à

escola, outras vezes a travessia era feita no barco de linha ou, ainda, em algum barco

independente. Quando já dentro da comunidade, era preciso pegar outra embarcação para que

eu pudesse transitar nas beiradas do rio.

À medida que intensifiquei as minhas travessias com idas ao lugar, as pessoas foram se

colocando mais à vontade nas conversas e demais interações. Alguns quilombolas ofereciam

suas casas para que eu pudesse dormir e ficar por lá, ou para entrar e tomar um café. Então eles

15 Associação dos Remanescentes de Quilombos das Ilhas de Abaetetuba (ARQUIA). 16 Rinaldo Gomes e Maria da Conceição Quaresma, gestores da escola, não só participaram como interlocutores

da pesquisa, como também foram “ajudantes” durante os anos que estive no lugar (2012-2016), levando-me até as

lideranças e moradores, inserindo-me nas reuniões da escola e da comunidade. Deram-me todo o suporte para a

pesquisa quanto a barqueiros, alimentação, deslocamento nos espaços, entre outras demandas que foram surgindo. 17 São várias as denominações das embarcações: rabudo, rabo azedo, canoa, montaria, lancha, rabudinho, casco,

batelão e bajara, sendo que se diferenciam pela arquitetura, tamanho, tipo de motor e seu uso. As rabetas, que são

pequenas e motorizadas, cobertas (com toldo) ou não e normalmente de pequeno porte são as mais utilizadas.

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não só informavam os caminhos que me conduziriam aos espaços de trabalho como

disponibilizavam as filhas ou filhos para me acompanhar. Eles informavam também os

prováveis dias de trabalho nos retiros e os horários das marés para as viagens. Não foi raro, eles

pedirem a minha opinião sobre episódios de suas vidas cotidianas. Tornou-se comum alguns

estudantes trazerem alguma informação que me auxiliava no trabalho de campo ao me

avistarem no trapiche da escola ou em outro espaço.

Por diversas vezes fui interpelada pelos moradores sobre a pesquisa e os seus

desdobramentos. Como cheguei lá? Onde eu trabalhava? Em qual casa estava ‘ficando’ na

comunidade. Ou simplesmente com a fala: se precisar, estamos aqui. Tais questionamentos e

opiniões configuram frações das diversas formas de interlocuções, a meu ver fundamentais para

compor o percurso etnográfico. Assim, depois de aceita e relacionada com as pessoas, passei a

ser identificada como a mulher (ou a professora) que faz pesquisa na comunidade. Houve um

misturar-se no seio do grupo social a partir das interações e diálogos, ensaiando uma prática

etnográfica que educa e forma outras percepções.

Devido o estudo obrigar-me a me mover “da comunidade para a escola”, dediquei atenção

especial ao convívio com quilombolas em diferentes espaços e tempos. Ao longo desta

mediação, busquei participar do cotidiano da vida deles, especialmente nos momentos em que

estavam dedicados no trabalho agrícola, e em menor grau nos afazeres nos açaizais. Além de

participar de alguns festejos sociais que ocorrem na comunidade e em reuniões realizadas na

escola. Acompanhei a circularidade das pessoas no movimento que elas fazem da beira do rio

para terra. Como diria Malinowski (1978), busquei conhecer participando dos “imponderáveis

da vida real”.

Grande parte dos dados coletados ocorreram durante as viagens a campo registrados em

um caderno de campo. Utilizei-me de entrevista para o registro das trajetórias de vidas, de ciclos

dos fazeres e dos discursos sobre a questão quilombola. O leitor verá que isso se reflete na

condução como os dados estão apresentados ao longo da tese. Os depoimentos curtos estão

sinalizados com uma especificação emitida pelo sujeito (funcionário da escola, poeta, agricultor

etc), as entrevistas estão identificadas com os nomes dos participantes e, ainda, as ‘categorias

locais’ em frases curtas e expressões de uso local estão destacadas no decorrer do texto em

itálico (GODOI, 2014, notas de aula). De modo aproximado participaram diretamente da

pesquisa: a) vinte famílias; b) vinte e cinco agricultores, sendo a maioria mulheres; c) dez

funcionários da escola entre docentes, gestores e de apoio; e) cinco representantes dos

Movimentos Sociais (ARQUIA e STTR); f) três agentes comunitárias de saúde; g) oito

trabalhadores nominados de freteiros, barqueiros e marreteiros. Destaco ainda que, por várias

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vezes, foi adensando conteúdos e sentidos de alguns moradores, os quais identifiquei no texto

pelo nome dos rios onde eles moram, quais sejam: o furo do Gaita, o rio Médio e Alto Itacuruçá,

o rio Ipanema e o rio Ararapuzinho; territórios circunvizinhos da comunidade do Baixo

Iatacuruçá.

De forma sucinta, relaciono a seguir as técnicas utilizadas durante os vários momentos

do trabalho de campo:

a. Observação participante na vida social e sócio produtiva, e em diversos outros momentos do

cotidiano da comunidade. Aqui pude interagir com agricultores, jovens, crianças e educadores

da escola, por meio de conversas informais e andanças na comunidade, auxiliando o registro

etnográfico sobre a vida local18.

b. Entrevistas com quilombolas representantes de movimentos sociais e outros.

Ocorreram de forma individual e/ou em pequenos grupos, especialmente com as(os)

agricultoras(es)-lideranças, com os membros da Associação e do Sindicato Rural, com docentes

e gestores da escola, e ainda adolescentes-estudantes que ajudavam seus pais no trabalho da

lavoura. São quilombolas disseminadores dos saberes locais e conhecedores da dinâmica étnica

e social da comunidade, e alguns são reconhecidos como legítimos contadores de histórias.

c. Elaboração de mapas, de esquemas e de croquis de alguns espaços sociais e do trabalho19.

A produção desses registros ocorreu durante as reuniões que eram promovidas pela

escola. Houve momentos também que eu me reunia com grupos específicos e, sempre após

discussões, eu coordenava a elaboração de sínteses versando sobre a geografia das águas com

os furos e os igarapés do entorno, o calendário agrícola, a paisagem natural do território, entre

outras temáticas.

d. Acompanhamento dos fazeres-saberes nas roças, nos retiros e nos açaizais.

Durante tais momentos detinha-me a observar e registrar as práticas do fazer-saber,

interagindo com agricultores, rabeteiros e apanhadores de açaí. Acompanhei, ainda, algo dos

brincares e outros fazeres de algumas crianças e adolescentes.

e. Produção em áudio de algumas histórias de vida, relatos sobre o “ser quilombola” e os

serviços da roça e do açaizal, buscando documentar uma experiência de campo. Também

realizei a produção de registro fotográfico de ações laborais, eventos e cenas da vida cotidiana.

18 No caso dos adultos, houve consenso e consentimento para declaração de seus nomes quando trato das

entrevistas. 19 Detidamente, quando trato dos croquis, de alguns mapas e desenhos rascunhados, de vídeos, pontuo na escrita

outra forma gramatical, a de uma construção coletiva.

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No tocante às fotografias, a exemplo do que fez Rodrigues (2013, p.166), busquei dar a

elas um sentido interativo junto às pessoas e durante a escrita da tese. Desde o início da

pesquisa, utilizei-as na perspectiva da troca, como mecanismo relacional entre eu e os

quilombolas. Ao devolver algumas imagens aos agricultores, como forma de agradecer suas

contribuições à pesquisa, quase sempre eles comentavam a respeito daquela fotografia. Ocorria

uma espécie de “consciência social” e/ou “expressão de conteúdos manifestos” (GUSMÃO,

1993 apud GUSMÃO, 2012, p.164). Observei, então, que ao se verem nas fotografias,

praticando alguma atividade de trabalho, estes agricultores expressavam satisfação e sentiam

então vontade de falar algo ‘mais’ sobre o conteúdo daquela imagem.

Estive no campo atenta às narrativas e às falas, aos silêncios, às risadas, à autorização ou

não de algum depoimento, assim como aos rumos da pesquisa. Fui, vagarosamente, observando

a forma de organização social, o significado de ser agricultor(a) e/ou lavrador(a) ‘negro’ e

‘remanescente de quilombos’20.

Estudos realizados sobre saberes locais na Amazônia paraense

Nós temos que recuperar os vínculos entre educação e terra, trabalho, produção, vida,

cotidiano de existência: aí é que está o educativo (Miguel Arroyo).

Na perspectiva de construir subsídios teóricos que relacionem culturas, saberes locais e

processos educativos, utilizei-me de referenciais contidos em teses, dissertações, artigos

científicos e em outras publicações. Considerando a importância que esses estudos incidem em

minha pesquisa, consultei trabalhos que abarcam saberes e fazeres do cotidiano e que me

levaram a pensar em uma questão específica: como os moradores geram, partilham e dinamizam

processos educativos com base em seus modos peculiares de vida? Relaciono aqui alguns

estudos que situam experiências significativas vividas na Amazônia paraense com pressupostos

teóricos de uma cartografia social. A minha seleção ocorreu porque em alguns momentos

ensaiei procedimentos nesta linhagem, especialmente quando da construção de mapas,

esquemas, tabelas, croquis e desenhos.

Tomando uma citação a seguir, da antropóloga e professora Neusa Gusmão, vejo como o

nexo ‘culturas locais-quilombola-e-educação’ ganha sentido.

[...] a luta de comunidades negras revela a face de sua relação com o Estado, mas

revela também seu outro lado: aquele em que a organização da luta nutre-se de um

saber popular que nega os caminhos hegemônicos da cultura oficial e faz valer o

20 Nos termos da legislação pertinente, a Constituição Federal de 1988.

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direito à especificidade, colocando em jogo o campo político das relações raciais

(GUSMÃO, 1994, p.98).

Há alguns anos observando o viver desta comunidade, ouso dizer que são os movimentos

dos povos quilombolas e ribeirinhos no ambiente, atravessados por um viver em comunidade e

ditados por sociabilidades e certas tradições, aqueles que se convertem em processos educativos

de alguma maneira. Esta é a questão que busco aprofundar ao longo da tese.

Dos estudos entre as várias teses e dissertações que tratam de quilombos, observo que

alguns pontos são convergentes, embora haja singularidades. Eles são: a etnicidade, a questão

da terra e da luta agrária, as questões envolvendo políticas públicas, a afirmação de uma

identidade própria e a ideia de um “quilombo contemporâneo” (ARRUTI, 2006; GUSMÃO,

1996; ALMEIDA A, 2008).

Um estudo oportuno foi realizado no Laboratório de Antropologia dos Processos de

Formação do Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

(PUC-RIO), por Cardoso e Arruti (2011), enfatizando que, desde o ano de 2004, houve um

aumento considerável da produção científica referente ao tema ‘quilombo’. Sobre este aspecto,

Arruti (2006) pondera que “[...] o debate acerca das comunidades negras rurais passou a ser

pautado pela problemática relativa à aplicação jurídica “comunidade remanescente de

quilombo” e por sua relação imediata com a postulação legal da regularização fundiária

(ARRUTI, 2006 apud CARDOSO; ARRUTI, 2011, p.02).

Devido a questões didáticas relativas à organização e ao recorte temático, destaco nos

estudos selecionados aspectos das culturas locais, de processos educativos e dos territórios

quilombolas no Pará. Posteriormente, aproximando-me da questão ribeirinha e quilombola na

região do Baixo Tocantins21 abordo os estudos de cartografia social desenvolvidos por

estudiosos e pesquisadores no âmbito da Amazônia paraense.

Realizei o levantamento em dissertações e teses defendidas nos Programas de Pós-

Graduação em Educação e Antropologia, no âmbito do Estado do Pará, com ênfase em

instituições públicas22, sendo o período delimitado entre 2011 e 2015. Outro critério utilizado

na seleção dos trabalhos recaiu sobre palavras-chave, pois selecionei trabalhos contendo pelo

menos um dos termos: culturas locais, saberes, quilombolas/quilombos, ribeirinhos/as e

educação. Valendo-me deste critério, identifiquei alguns trabalhos de outros Programas de Pós-

21 A escolha se deve à abrangência do município de Abaetetuba, onde está situada a pesquisa. 22 Para catalogação do material analisado, foram consultados os sites da Universidade Federal do Pará (UFPA) e

da Universidade Estadual do Pará (UEPA), assim como as bases eletrônicas de estudos acadêmicos da Capes,

Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, Biblioteca Digital da Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP) e da Universidade de São Paulo (USP).

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Graduação. Reúno, em apêndice, a síntese de cada trabalho, com o detalhamento do objeto de

pesquisa, o caminho metodológico e alguns excertos dos resultados.

Quanto à seleção de artigos científicos e outras publicações, tomei como referencial os

estudos cartográficos de quilombolas e ribeirinhos em Comunidades tradicionais da região

Tocantina. São enfatizados os trabalhos de Almeida A. (2008, 2008a); Oliveira (2008);

Acevedo Marin e Castro (1998, 1999); entre outros.

As dissertações oriundas de Programas de Pós-Graduação em Educação envolvem

conteúdos diversos, enfatizam pressupostos teóricos e discussões e, ao mesmo tempo, trazem

ponderações, proposições e conceituações como parte dos resultados de pesquisa e com os

seguintes enfoques:

O diálogo entre as categorias educacionais e o cotidiano das comunidades locais em relação

ao currículo escolar e à identidade quilombola;

Uma tímida inter-relação entre os conhecimentos escolares e os da comunidade no que tange

a construção e à afirmação da identidade local;

O cotidiano das crianças na comunidade e seus vínculos de aprendizagem com os saberes

locais como processos educativos culturalmente construídos;

As discussões teóricas enfatizando a Educação do Campo e a Educação Quilombola, assim

como a ancestralidade quilombola e as territorialidades amazônicas, entrelaçadas pelo modo de

vida em uma dada comunidade, inclusive utilizando como suporte teórico referenciais da

Antropologia.

Além desses enfoques, os temas perpassam pelas relações dos saberes (escolar, local,

cultural, comunitário, tradicional, científico)23, assim como o processo formativo escolar; a

juventude quilombola (PEREIRA, 2014). Eles enfatizam também a construção identitária, o

cotidiano quilombola e o ribeirinho, a pedagogia da alternância diante da integração dos saberes

locais no currículo, e a contribuição da escola quilombola na questão do fortalecimento político-

identitário24.

A partir do levantamento, percebi que a maioria dos trabalhos está situada entre o fazer

educativo da escola (Ensino Fundamental e Médio) e os saberes e os fazeres da comunidade

23 Especificações a tipos de saberes que foram encontrados nas dissertações. Fazem referência aos “saberes

culturais” como fruto das experiências de vida apreendida pela “educação que é tecida de sentidos e significados

pelos sujeitos, os quais, por meio de suas ações e interações com o outro e com o mundo constroem e transformam

os próprios contextos, que apresentam particularidades na forma de fazer e se fazer culturalmente”

(NASCIMENTO, 2014, p.62). 24 Essa ideia de reconhecimento identitário visto por dentro da educação formal é a tônica dos estudos de Cardoso

(2012) e de Silva (2015), cujas investigações ocorreram no rio Itacuruçá. O primeiro tratando da Educação de

Jovens e Adultos na parte do Alto Itacuruçá e, o segundo, enfatiza as manifestações culturais na Escola Santo

André, na parte do Baixo do rio.

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29

local. Apenas uma dissertação não situa o lugar, mas tão somente a experiência curricular

(SANTOS, 2013).

Outro foco presente nos trabalhos é a ideia de comunidade tradicional na Amazônia

paraense, caracterizada, entre outros, como um espaço de “comunidades remanescentes de

quilombo” sob a forma de territórios negros originados de diferentes maneiras, mas,

fundamentalmente, advindos da sociedade escravocrata e da “realidade agrária brasileira”

(GUSMÃO, 1996). Tal vertente aborda os aspectos anteriormente mencionados sobre

comunidade tradicional na Amazônia ao evocar: os sentidos do território, o simbolismo

amazônico, a temporalidade das águas e a dinamicidade de um modo de vida peculiar.

De um modo geral os estudos selecionados apontam fortemente para a valorização das

culturas locais, assim como para uma visão centrada nos moradores da comunidade (embora

timidamente), como aspectos importantes para pensar as questões educacionais oficiais, em

especial, as práticas educativas das escolas no campo. Portanto, cabe dizer que, embora com

situações que possam parecer próximas quanto aos modos de vida e processos educativos,

verifico que cada lugar território possui uma dinâmica própria que é influenciada pelas formas

tradicionais de organização social e comunitária.

Nesta configuração, a relação entre culturas locais e educação quilombola, em sua

dimensão curricular, é estruturante. Sobre esta questão, as Diretrizes Curriculares Nacionais

para a Educação Escolar Quilombola, em seu artigo 1º, ratificam que o ensino ministrado

considere: a memória coletiva; as línguas reminiscentes; as práticas culturais; os festejos; os

usos e as tradições e os demais elementos que conformam o patrimônio cultural das

comunidades quilombolas; as tecnologias e as formas de produção do trabalho; a

territorialidade. O que em parte traduz que são levados em conta elementos da organização da

educação escolar de tais populações (BRASIL, 2012). Ainda neste documento, os pressupostos

são esmiuçados e com destaque sobre a garantia de que os conhecimentos tradicionais sejam

trabalhados com estudantes e com a comunidade em geral.

Evidencia-se, portanto, que os processos educativos de uma comunidade são ricos e

ímpares, pois os remanescentes de quilombos, assim como os ribeirinhos, ao longo de suas

histórias, promovem também uma endoeducação nos termos referidos por Brandão (2002,

p.26).

Educar é criar cenários, cenas e situações em que, entre elas e eles, pessoas,

comunidades aprendentes de pessoas, símbolos sociais e significados da vida e do

destino possam ser criados, recriados, negociados e transformados. Aprender é

participar de vivências culturais em que, ao participar de tais eventos fundadores, cada

um de nós se reinventa a si mesmos.

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Ou tal como na epígrafe apresentada: “[...] recuperar [...] vida, cotidiano de existência: aí

é que está o educativo” (ARROYO, 2004).

No que se refere a culturas locais, encontrei duas teses e quatro dissertações provenientes

de diferentes programas25. Mas, na impossibilidade de abarcar os detalhes, na tabela a seguir,

procuro estabelecer uma síntese sobre o conteúdo desenvolvido nas pesquisas.

Tabela 01 – Dissertações e Teses

Eixo: Culturas locais e quilombola no Pará (2011-2015)

Nº TEMA FOCO DA PESQUISA

2

01

Práticas e saberes relacionados

ao fazer político de

quilombolas.

As práticas e saberes relacionados ao fazer político de quilombolas

organizados em Associações e no Conselho de Associações das

Comunidades Remanescentes de Quilombos do Jambuaçu, Moju-PA.

2

02

Patrimônio arqueológico e

territorialidade quilombola no

vale do rio Capim, Pará.

A compreensão dos usos e significados que o patrimônio arqueológico

assume no âmbito das relações sociais contemporâneas, em específico,

aqueles construídos segundo a lógica dos povos e comunidades

tradicionais do Aproaga- São Domingos do Capim-PA.

Educação, identidade e saberes

cotidianos.

O brinquedo de miriti numa perspectiva cultural que contempla em seu

conjunto várias dimensões enfatizando o aspecto educativo, em

Abaetetuba-PA.

O cuidar cotidiano em

comunidade quilombola.

O cuidado cotidiano em situações de urgência e emergência dos

moradores de uma comunidade Quilombola da Amazônia Paraense.

Saberes sociais e luta de

classes.

Aborda a relação entre saberes sociais e luta de classes, analisando a

atuação dos pescadores como elementos potencializadores de uma

consciência de classe para si.

2

03

Territorialidade, identidade e

conflitos.

Analisa o mundo social da várzea, destaca relações sociais, estratégias

de reprodução social e trajetória de quilombolas no noroeste do

arquipélago de Marajó-PA.

Palavras-chave (recorrência): Territorialidade. Identidade. Cultura/identidade amazônica. Tradição.

Saberes/saberes populares/culturas locais. Quilombo. Quilombola. População tradicional. Ribeirinhos.

Fonte: elaboração da autora, a partir das Dissertações e Teses.

Dentre os trabalhos pesquisados, dois são da área da Educação (SILVA, 2012;

RODRIGUES, 2012), um é da área da Saúde (OLIVEIRA, 2012), um da área do Planejamento

e Desenvolvimento Sustentável (FONSECA, 2011) e dois da Antropologia (MORAES, 2012;

RODRIGUES, 2013).

As pesquisas tratam de temas e discussões que envolvem a ideia de território e

organização social nas comunidades, além do mapeamento antropológico. Elas também

aportam significados, temporalidades e memórias dos povos em seus territórios, juntamente

com a dimensão cultural-educativa presente na vida cotidiana cabocla e no entrelaçamento do

mundo social da várzea, por meio de estratégias de reprodução social de quilombolas. Outro

ponto contemplado nas pesquisas é a cultura local e os seus saberes, acentuando a relação entre

25 Programas de Pós-Graduação em: Antropologia; Educação; Enfermagem (UEPA-UFAM) e Planejamento do

Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (NAEA-UFPA).

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trabalho e identidade. Em síntese, os estudos revelam que as comunidades pesquisadas foram

constituídas através da construção de suas territorialidades.

Para Edna Castro, docente da UFPA e que realiza pesquisas em contextos da Amazônia

paraense, o território quilombola abrange a dimensão de pertencimento, de luta e de

engajamento para além da demarcação das terras. São territórios que materializam modos de

vida singulares de povos africanos. Diz ela:

[...] O processo de resistência à violência imposta pelo regime escravagista

espacializa-se nos séculos XVIII e XIX para o vasto território que se estende do delta

do Amazonas até o seu curso médio, nos rios Tocantins, Tapajós e Trombetas, e mais

à proximidade do sul de Belém nos rios Moju, Acará, Capim e Bujaru, como faz prova

a documentação oficial encontrada nas correspondências da administração colonial

14. Sob essa paisagem de rios e floresta, de ecossistemas diversos, construíram a

experiência coletiva, saberes e práticas singulares que lhes permitiram viver e se

reproduzir em territórios onde hoje ainda encontramos seus prováveis remanescentes

(CASTRO, 2003, s/p).

Considero, também, importantes os estudos da professora Rosa Elizabeth Acevedo Marin

para o debate. Segundo esta autora, as comunidades tradicionais na Amazônia constituem-se

em uma “fronteira étnica e território tradicional”, na condição de lugares de resistência aos

grandes projetos. Em Acevedo Marin (2009, p.225) encontrei um maior detalhamento no que

toca a relação entre a questão quilombola e o território “[...] Grupos dominantes da elite têm-se

mostrado céleres e eficientes para coagir esses processos encontrando apoio na tecnoburocracia

do Estado. Essas terras figuram nos planos de expansão do agronegócio, da mineração, da

pecuária extensiva, dos projetos de infraestrutura”.

Encerrando o retrospecto das pesquisas, penso que é pertinente ressaltar dois outros

enfoques dos trabalhos que, a meu ver, perpassam por elas e dialogam com minha pesquisa:

A identidade e o Território Quilombola preserva uma relação com os saberes próprios de

quem vive na região amazônica. Nesses termos “[...] o sítio histórico, o igarapé e até árvores,

fazem parte de um conjunto de símbolos com o qual o grupo se relaciona e também está

relacionado” (ACEVEDO MARIN; CASTRO, 2004, p.129).

A Educação é praticada também na escola da vida. Sobre este enfoque, comungo com a

concepção de que os conhecimentos advindos de um saber não-escolar necessariamente,

ajudaram e ajudam na organização e na sedimentação das comunidades quilombolas e/ou

ribeirinhas (FONSECA, 2011).

Cartografia Social e outros estudos

Em uma segunda ordem de considerações, darei destaque às produções cartográficas,

situando-as a partir de um contexto específico, o de povoações quilombolas e ribeirinhas no

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âmbito da região do Baixo Tocantins. Assim, recorro aos estudos de pesquisadores envolvidos

no debate.

O intuito foi compreender o sentido e o valor da cartografia utilizada junto e com os Povos

e as Comunidades Tradicionais. Para tanto, sem fazer uso de uma teoria mais apropriada para

a discussão reconheço o valor da cartografia social, entendendo-a como uma prática inovadora,

coletiva e francamente participativa, que em muito contribui para o protagonismo das

comunidades, ao valorizar e potencializar os conhecimentos das pessoas e de seus territórios,

de acordo com os preceitos ancorados por Almeida A. (2008)26.

Tal perspectiva remete ao ‘fazer com’, ou seja, a proposta de um trabalho de

“mapeamento da diversidade de apropriações” realizado pelos sujeitos “a partir do trabalho de

campo e de técnicas várias de observação direta”, no sentido de compor o mapeamento social

do próprio povo ou grupo (ALMEIDA A. 2008, pp.21-22).

Na Amazônia, os estudos cartográficos têm abrangido diferentes Estados da Federação

que por meio deles evidenciam tanto as práticas socioculturais quanto os principais conflitos

vivenciados por povos do campo, das florestas e das águas. Especificamente no Estado do Pará,

as cartografias sociais somam aproximadamente trinta e cinco trabalhos desenvolvidos em

vários municípios. São estudos que abrangem as seguintes dimensões temáticas e lugares,

conforme discriminado na tabela a seguir:

Tabela 02 – Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia/Pará

Fonte: Elaboração da autora, com informações extraídas da XI Plenária do Conselho Nacional de Segurança

Alimentar e Nutricional, Brasília, 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/consea/eventos. Acesso em

15 fev. 2016.

26 O início do projeto assentado na cartografia social vem desde as experiências do “Programa Grande Carajás”,

em 1991-93. Registra-se que o primeiro exemplar traduzindo esse fazer é o chamado Guerra dos Mapas. Em 2006,

o Projeto expandiu os trabalhos de mapeamento social para fora da Amazônia com a identificação de Projeto Nova

Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil (PNCSA). No Pará, o projeto tem substancial

colaboração e coordenação da pesquisadora Rosa Acevedo Marin, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos

(NAEA) da UFPA. Disponível em http://novacartografiasocial.com/apresentacao. Acesso em 15 fev. 2016.

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Na tabela seguinte estão descritas as principais publicações que interagem com as

questões da minha tese no âmbito de conceitos e formulações sobre comunidade, sujeitos,

modos de vida e saberes locais. Assim, o levantamento está subdividido em: a) produções sobre

Comunidades Tradicionais; b) produções oriundas do Projeto Nova Cartografia Social da

Amazônia (PNCSA), no âmbito da região; c) estudos de pesquisadores paraenses que se

alinham às questões da cartografia social.

Tabela 03 – Dados do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e Outros

Produções sobre Comunidades Tradicionais

VIEGAS & BURIOL (2014) Resistência das Comunidades através da tradição.

ALMEIDA &

FARIAS (2013)

Povos e Comunidades Tradicionais – Nova cartografia social.

ALMEIDA (2011) Quilombolas e as novas etnias.

Cartografias Sociais - Região do Baixo Tocantins

FASCÍCULO Nº. 30 (2009) Ribeirinhos e Ribeirinhas de Abaetetuba e sua diversidade cultural.

FASCÍCULO Nº. 02 (2008) Jovens e Comunidade Tradicionais do Baixo Tocantins.

FASCÍCULO Nº. 21 (2007) Movimento das Peconheiras e Peconheiros da Ilha de Itacoãzinho,

Igarapé Caixão e Igarapé Genipaúba – Baixo Acará.

FASCÍCULO Nº. 01 (2007) Crianças e Adolescentes Ribeirinhos e Quilombolas de Abaetetuba.

FASCÍCULO Nº. 02 (2007) Quilombolas de Jambuaçu – Moju.

Outros estudos cartográficos produzidos por pesquisadores paraenses

OLIVEIRA (2008) Cartografias Ribeirinhas: Saberes e representações sobre práticas

sociais cotidianas de alfabetizandos amazônidas.

OLIVEIRA (2008b) Cartografia de saberes: representações sobre religiosidade em práticas

educativas populares.

OLIVEIRA & SANTOS (2007) Cartografia de Saberes: representações sobre a cultura amazônica em

práticas de educação popular.

TEIXEIRA (2010) Cartografia de Saberes: o cuidar, a saúde e a doença em práticas

educativas populares em comunidades hospitalares de Belém.

TEIXEIRA (2008) Cartografia simbólica do cuidado: reflexões à luz do pensamento de

Boaventura de Sousa Santos.

SARRAF- PACHECO; SILVA

(2015)27

Cartografia de Memórias: Pesquisas em Estudos Culturais na

Amazônia Paraense.

Fonte: elaboração da própria autora.

* Cabe dizer que não constam os muitos trabalhos (dissertações e teses) que vinculam em seus títulos o termo

“cartografia”. Restringi aos trabalhos de pesquisadores que retratam estudos de pesquisas desenvolvidos por

grupos de pesquisas e/ parcerias com entidades e outros.

Quando se trata do debate sobre cartografia e saberes locais, tem ganhado visibilidade a

professora e pesquisadora Ivanilde Apoluceno de Oliveira28, que vem realizando pesquisas cuja

27 Sobre o autor, também consta a seguinte obra “Pesquisas em Estudos Culturais na Amazônia: cartografias,

literaturas & saberes interculturais” (SARRAF-PACHECO et al, 2015). 28 A professora compõe a linha de pesquisa intitulada Saberes Culturais e Educação na Amazônia, vinculada ao

Programa de Pós-Graduação em Educação, e coordena o grupo de pesquisa pelo Núcleo de Educação Popular

Paulo Freire (NEP/UEPA).

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referência epistemológica está assentada na cartografia de saberes. Sobre o sentido, Oliveira

(2013, pp.87-88) pondera que:

[...] ao mapear os saberes, os imaginários e as representações dos sujeitos de diferentes

práticas educativas desenvolvidas na Amazônia, a cartografia caracteriza-se como

uma metodologia e um debate teórico multidisciplinar, permeando diversos campos

de conhecimento: filosofia, sociologia, literatura, linguística, educação ambiental,

saúde, entre outros.

As publicações indicadas enfatizam práticas educativas em suas mediações com as

diversas formas de sociabilidades, de culturas e de engajamento político junto às Comunidades

Tradicionais. Revisitando as suas produções, fica evidente a vinculação entre o fazer

cartográfico e as vivências de uma educação popular que:

[...] se apresenta como ação cultural, entendendo-se a cultura como aquela inerente

aos movimentos, práticas e relações sociais humanas. Os saberes e as práticas

cotidianas das classes populares se dimensionam como cultura sendo trabalhados

pedagogicamente nas ações educativas populares (OLIVEIRA, 2013, p.87).

Para esta autora, a cartografia contribui para “o mapeamento de traços da história e da

cultura das comunidades ribeirinhas estudadas, mantidos pela comunicação oral, mas sem

registro”, na mesma medida em que ela aporta notoriedade às representações sociais e às

práticas educativas populares (OLIVEIRA, 2013, p.89).

Encerrando este breve levantamento do estado da arte sobre dos estudos que focalizam

os saberes locais e a cartografia na Amazônia e no Pará, cabe apresentar aqui os trabalhos que

são desenvolvidos no âmbito da região tocantina. Eles configuram fascículos produzidos pelo

PNCSA, por meio de experiências junto às comunidades ribeirinhas e quilombolas. Dentre

todos os assuntos tratados nos fascículos, destacam-se os seguintes:

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35

Tabela 04 – Pesquisas desenvolvidas no âmbito da região tocantina

Fonte: elaboração da própria autora.

As leituras dos estudos apresentados contribuíram como subsídios teóricos para a minha

investigação, principalmente no que toca uma para melhor compreensão a respeito da questão

quilombola que permeava a maioria das dissertações e teses. Pude constatar que as dissertações

vinculadas aos Programas de Educação e, pontualmente, as realizadas no município de

Abaetetuba, construíram os seus percursos investigativos de um modo ou de outro tangenciando

dimensões da educação formal. Diferente será a minha abordagem, pois nela procuro abordar

uma trajetória quase oposta, “da comunidade para a escola”. Outrossim, com as leituras e

reflexões sobre os estudos cartográficos, eu amadureci a ideia de potencializar a escuta das

crianças por meio de seus desenhos e depoimentos, buscando retratar alguns de seus

aprendizados na vida e na escola.

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Até aqui apresentei a constituição do objeto de estudo, a abordagem metodológica, a

minha incursão no trabalho de campo e alguns estudos oriundos de pesquisas realizadas na

Amazônia paraense que enfatizam os saberes locais. Descrevo a seguir como o trabalho final

está dividido.

Nesta Introdução procurei discorrer a respeito das minhas travessias para chegar a

presente formulação, assinalando a condução da pesquisa. Busco situar o meu percurso diante

da temática quilombola e de aprendiz da etnografia, assim como das formulações teóricas e

metodológicas das Ciências Sociais. Na sequência, como forma e maior clareza, organizei esta

Tese em cinco Capítulos e mais as minhas Considerações Finais.

No Capítulo I – A comunidade é nossa – Abordagens conceituais sobre Comunidade

Tradicional, apresento as considerações derivadas de leituras realizadas, junto com algumas

conceituações sobre esta categoria, enfatizando certas derivações do “mundo amazônico”, em

especial as relacionadas ao município de Abaetetuba. Busco refletir, ainda, sobre algumas

visões dos quilombolas acerca dos sentidos e dos sentimentos do ‘comunitário’ na Comunidade

do rio Baixo Itacuruçá, locus da pesquisa.

Pormenorizar os modos de vida que se realizam entre as áreas de ‘terra firme’ e de

‘várzea’ configura parte do Capítulo II – O rio, ele é fundamental – O cotidiano da comunidade

do Rio Baixo Itacuruçá, com o objetivo de descrever os principais aspectos da geografia do

lugar, os condicionantes sociais e de organização comunitária, bem como os processos de

identificação dos sujeitos, situando, em parte, a dimensão sociocultural do território. Assim,

busco registrar e problematizar as tessituras do cotidiano no que tange o “ser quilombola da

beira do rio”, considerando que é por meio deste território natural e social que os quilombolas

vivenciam as suas múltiplas práticas sociais.

No Capítulo III – Então, cada um vai se virando como pode! – Os fazeres na vida

cotidiana, trato da produção social, cultural e econômica a partir das atividades do trabalho

cotidiano. Para tanto, situo e analiso os modos locais de praticar substancialmente a agricultura

e o extrativismo do açaí. Ao analisar a vida cotidiana sob uma perspectiva relacional, o trabalho

reflete formas de comercialização e negociação e de ensinar-aprender; também condensa

procedimentos do agir/pensar/fazer que se relacionam a saberes locais, à sobrevivência familiar,

e às estratégias de reprodução e organização social das famílias e entre vizinhos.

No Capítulo IV – Eu não sou muito chegada nisso, mas por necessidade fui aprendendo

[...] – Os saberes-fazeres: ênfase ao conhecimento local, problematizo a questão do saber

tradicional dos remanescentes quilombolas, a partir da vivência dos seus fazeres e saberes nos

retiros com a produção da farinha, insistindo em refletir sobre as relações sociais de troca de

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saberes e as relações do tipo ensinar-aprender fora do contexto formal, como por exemplo no

contexto das escolas.

No Capítulo V – Quilombola é desenvolver a cultura – O aprendizado das crianças na

vida e na escola, analiso a infância e o “ser quilombola”, com foco sobre os aprendizados de

crianças e adolescentes tal como eles são vividos nas práticas cotidianas do brincar, entre as

relações escolares e de convivência com adultos por meio de algumas atividades laborais.

Mesmo reconhecendo que realizo uma síntese inicial, busco focalizar através dela produções

culturais desses sujeitos que muito têm a dizer sobre os saberes locais.

Nas Considerações Finais, ao retomar os objetivos da pesquisa, apresento uma súmula

dos resultados da investigação, expondo a travessia realizada, e enfatizando que existem outras

por fazer, a partir dos resultados alcançados.

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CAPÍTULO I

Foto 01 – Produtor de montaria do rio Alto Itacuruçá

Fonte: POJO, E.C. Ago. 2015.

A COMUNIDADE É NOSSA

ABORDAGENS CONCEITUAIS SOBRE COMUNIDADE TRADICIONAL

Em minhas andanças pelo rio Baixo Itacuruçá, várias vezes fui interpelada por causa de

problemas que a escola quilombola enfrenta29. Nessa convivência, pude levantar elementos de

um tema que me interessava: o que é ser uma comunidade quilombola e quais os sentidos do

comunitário ali. Usualmente, o termo ‘comunidade’ era associado a cada um quer saber de si.

E, de fato, mesmo diante das problemáticas da escola, essa forma individualista de ver as coisas

era a dominante. Assim, durante as reuniões na instituição de que eu participei, insistentemente

as pessoas enfatizavam: A nossa comunidade tá dormindo; a gente precisa se organizar para

tá tocando em frente, precisa tá unido em ação coletiva. Cadê a mobilização comunitária?

Enfim, em suas falas, as pessoas presentes manifestavam inquietações quanto ao convívio e a

uma correponsabilidade pela vida comunitária.

Certa feita, em uma das reuniões de que participara na instituição, a qual tinha como pauta

as condições de funcionamento da escola, estavam aproximadamente duzentas pessoas, entre

lideranças da associação e das comunidades vizinhas, trabalhadores da educação, alunos e

moradores. Por parte das lideranças, que dirigiam a acalorada discussão, o que ressoava era o

29 Segundo os quilombolas, a Escola Santo André é um dos ganhos da luta do povo na comunidade. No entanto

reclamam da sua condição de funcionamento, o qual detalho no capítulo V.

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‘comunitário da comunidade’. Sobre essa questão, o professor responsável, depois de situar os

vários conflitos pelos quais a comunidade e a escola passavam, questionou:

E aí, estamos fazendo alguma coisa? […] A escola era pra tá bem organizada porque

não é possível que mais de seis comunidades não possam resolver o problema de uma

escola. Tem comunidade menor que a gente e praticamente tudo que ela precisa tem.

E, a nossa, é uma comunidade grande, mas vai acabar não conseguindo nada. Já

tiraram nosso posto médico aqui, se não der certo vão tirar a escola […]30.

E finalizou sua exposição afirmando:

[…] Infelizmente eu queria dizer pra vocês: é que hoje nós estamos muito

individualistas, só quero pensar em mim. E, não tem que ser assim, se nós formos

pensar assim, a gente não vai muito pra frente, não. Quando eu penso coletivamente,

eu posso ir mais longe. Temos que mudar esse pensamento.

Outro depoimento enfático foi o de uma mãe de aluno, durante a mesma reunião: […] nós

precisamos lutar pelos nossos direitos porque a escola e o emprego aqui é pra comunidade,

pois a comunidade é nossa (grifos meus).

Nessa breve descrição, é possível notar que a comunidade convive com os desafios do

comunitário na realidade social atual, nos termos da dificuldade de uma sociabilidade

comunitária expressa por Bauman (2003). As lideranças e os demais moradores se debatem

correntemente com questões sociais, culturais e econômicas, ao mesmo tempo em que lidam

com uma vida cotidiana permeada por saberes, lutas e ações comuns, numa cadeia associativa

entre o coletivo da comunidade e o cada um por si.

Apoiada nessa cena corriqueira, procuro delinear o fio condutor deste capítulo: o sentido

de comunidade tradicional, por meio de derivações do “mundo amazônico”, em especial o do

nordeste paraense, nas suas relações com a natureza e em suas práticas sociais. Para tanto, tomei

como base a sociabilidade específica do lugar, como território31 quilombola, com o intuito de

30 Depoimento do senhor Rinaldo Gomes, gestor da escola. Fala proferida em reunião ocorrida em novembro de

2015. No momento, deliberavam especialmente sobre o funcionamento do Sistema Estadual para o ano seguinte.

Participavam pessoas das comunidades dos rios Ipanema, Arapapu, Arapapuzinho, Piquiarana, Médio e Alto

Itacuruçá, Piquiarana Miri e furo do Gaita. 31 Optei por empreender, na tese, as definições abaixo discriminadas, tomando os referenciais das pesquisadoras

Rosa Acezedo Marin e Edna Castro, a saber: Território. Ancorada nos estudos de Godelier (1984) Castro (2000)

define território “[…] como o espaço sobre o qual um certo grupo garante aos seus membros direitos estáveis de

acesso, de uso e de controle sobre os recursos e sua disponibilidade no tempo”. Nesses termos, o território é

fundamental à reprodução de sua existência, combinando formas materiais e simbólicas, e a manutenção de

processos identitários latentes e em transformação (CASTRO, 2000, p.166-167). Territorialidade. Diz respeito

“[…] as práticas cotidianas, na perseguição de estratégias de vida e de trabalho, na execução de ações que são

criadoras de existências material e social” (ACEZEDO MARIN e CASTRO, 1998, p.30). Territorialização. Para

Acezedo Marin (2009) a “diversidade dos processos de territorialização (terras de preto, mocambos, comunidades

negras rurais) evidencia a pluralidade de categorias de uso na vida social que demandam reconhecimento. […] A

questão central é onde esbarra o reconhecimento dos direitos territoriais e étnicos desses grupos” (ACEVEDO

MARIN, 2009, p.225).

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delinear a compreensão que os sujeitos possuem acerca do sentido e do sentimento do

comunitário.

A ideia é estabelecer uma atualização de leituras e conceituações sobre comunidade

tradicional, evidenciando quem elas são, pois assim como elas existem no Rio Grande do Sul e

no Norte de Minas, assim também existem na Amazônia. Portanto os argumentos são reflexões

contingenciais que relativizam tais conceituações. Especialmente no contexto amazônico,

existem muitas particularidades, dentro das quais o próprio ribeirinho e o quilombola, aqui

situados, se mesclam, associam-se, interagindo práticas e identidades sociais de sujeitos

localizados no território em que uma das distinções é a que trata do modo de viver na beira do

rio.

Na esteira das mudanças e da institucionalidade, a legislação brasileira (Constituição

Federal de 1988), no que concerne à questão, afirma que Povos e Comunidades tradicionais são

grupos possuidores de culturas diferentes da cultura predominante na sociedade e reconhecem-

se como tal. Tais grupos devem se organizar de forma distinta, ocupar e usar territórios e

recursos naturais buscando manter a comunidade, tanto nos aspectos da organização social

quanto nos da religião, da economia e da ancestralidade. Devem desenvolver a sustentabilidade

social, a cultural e a da natureza. Tais comunidades devem fazer uso de conhecimentos, de

inovações e de práticas que foram criados por eles próprios e ainda são transmitidos oralmente,

estando preservados, na prática cotidiana, pela tradição.

Compreendo aqui a ideia de comunidade tradicional preocupando-me menos com a sua

intencionalidade a partir de leis, de decretos e de créditos institucionais outorgados aos seus

povos, pois acredito que ela possui a sua validade no fazer político e cultural dos seus sujeitos

que dinamizam os lugares, os espaços, os modos de vida, as formas de convivência múltiplas,

as relações culturais e de grupo. Portanto a minha opção prioriza o discutir e o rever as

concepções que procuram classificar esses povos e as suas comunidades e, substancialmente,

compreender as relações comunitárias e os processos identitários implicados.

Considero, inicialmente, o termo comunidade tradicional uma categoria genérica de

contraste étnico32 e cultural, dirigida por uma funcionalidade com condicionantes imateriais e

materiais de vida. Em outros termos, o olhar volta-se às comunidades locais33 da Amazônia

32 Tomo as reflexões de Cunha (1987) sobre a etnicidade como uma “bagagem contrastiva”. 33 Termo referenciado com base nas considerações de Mauro Almeida, antropólogo, com pesquisas desenvolvidas

no Acre. Para ele, trata-se de uma “categoria política”, a qual engendra “[…] tecnologias de baixo impacto

ambiental, relações sociais face a face como base para o autogoverno, diferenças de savoir-faire como patrimônio

cultural”. Refiro-me ao artigo “Narrativas agrárias e a morte do campesinato”, em que o autor enfatiza o fim da

grande narrativa sobre o campesinato processado concomitantemente ao fortalecimento de soluções locais,

descompromissadas com certezas ditadas por leis históricas e estruturais (ALMEIDA, M., 2007, p.177).

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paraense e, restritamente, ao que passo a chamar de comunidade quilombola da beira do rio34,

situada em um contexto camponês ou do campo, rio Baixo Itacuruçá, Abaetetuba, Pará.

1.1 – Comunidade Tradicional

Comecemos com uma pergunta: o que é tradicional?

Comumente, encontramos o emprego do termo ‘tradicional’ referindo-se a ‘antigo’,

‘arcaico’, ‘ultrapassado’, ‘conservador’, e outras tantas palavras representando sentidos

próximos a esses, ou referindo-se à tradição. Tradição diz respeito a costumes, modos culturais,

legado. Roué (2000, p.73), em seu estudo sobre saberes tradicionais, situa o tradicional

referindo-se à evolução das culturas e das populações que se transformam.

Para a antropóloga Neusa Gusmão (1991), no artigo intitulado “A questão política das

chamadas terras de preto”, tradição é “produto da experiência comum compartilhada”,

acrescentando, no caso do Brasil e de seu estudo, para o cômputo dos “elementos da cultura

africana” (GUSMÃO, 1991, p.28)35. A difusa e abrangente forma de pontuar uma definição

para o termo é enfaticamente tratada por Cunha (2009), questão levantada mais adiante.

Detenho-me em reter o caráter autêntico da tradição, não entendida como isolamento ou

atraso, mas eminentemente evocando o valor das diversas peculiaridades socioculturais de um

agrupamento específico, logo algo que se historiciza na realidade. Alfredo Wagner Almeida,

antropólogo que desenvolve pesquisas na Amazônia, discorre sobre a compreensão do

tradicional e de tradição enfatizando:

Embora a noção de tradição [bem como os termos daí derivados, em forma e

significação] apareça em textos clássicos associada ao postulado de ‘continuidade’,

conforme sublinha Foucault in ‘Resposta ao Círculo Epistemológico’ (1968), importa

sublinhar que o termo ‘tradicional’ da expressão ‘povos tradicionais’, aqui

frequentemente repetida, não pode mais ser lido segundo uma linearidade histórica ou

sob a ótica do passado ou ainda como uma ‘remanescencia’ das chamadas

‘comunidades primitivas’ e ‘comunidades domésticas’ [...]. O chamado ‘tradicional’,

antes de aparecer como referência histórica remota, aparece como reivindicação

contemporânea e como direito involucrado em formas de autodefinição coletiva. [...].

Deste ponto de vista, além de ser do tempo presente, o ‘tradicional’ é, portanto, social

e politicamente construído. Ao problematizar a historicidade da ‘tradição’ e

reinterpretá-la criticamente estamos de fato produzindo uma análise arqueológica,

porquanto a libertamos da noção de passado, remetendo-a para os conflitos

contemporâneos (ALMEIDA, 2006, pp.9-11).

34 De autoria do senhor Marinaldo Maciel de Araújo. A esse respeito Nahum (2011) e Cardoso (2012) adotam o

termo ribeirinho quilombola. Ambos desenvolvem pesquisas no rio Itacuruçá (grifos meus). 35 A afirmação é parte integrante de sua tese de doutorado: A dimensão política da cultura negra no campo: uma

luta, muitas lutas. São Paulo, PPGAS/USP, 1990.

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Quanto ao termo comunidade, normalmente, ele nos faz lembrar o lugar coletivo, de

convivência e de trabalho. Ela nos sugere o diálogo com nossas raízes de sujeito na sociedade.

De forma bastante peculiar, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2003) discorre sobre a

comunidade nas sociedades contemporâneas, destacando a impossibilidade de manutenção dos

parâmetros clássicos para definir uma sociabilidade comunitária nos tempos atuais e ele se

refere à comunidade “entendida como um lugar de compartilhamento do bem-estar”. Ela está

associada a um bom convívio social, sendo, porém, um ideal não visível e partilhado na

realidade presente. Para ele, a realidade é, ao contrário, “não comunitária” (BAUMAN, 2003,

p.60).

No tocante à comunidade tradicional, o termo é abrangente e ambíguo. Na literatura

detida a estudos que abordam questões ambientais, antropológicas, sociológicas e legais,

encontramos muitas variações do termo36. Na Amazônia, uma das referências é a de “cultura

cabocla”. São nominações permeadas por ambiguidades nas quais se cruzam olhares do ‘outro’

e, ao mesmo tempo, nos alertam para a não homogeneização das práticas e seus sujeitos e,

paradoxalmente, situam aspectos de um modus vivendi e suas relações com o território

(DIEGUES & ARRUDA, 2001; RIBEIRO, 2006).

No cômputo dos estudos sobre comunidade tradicional, estudiosos vêm defendendo o

caráter da diversidade e do respeito às diferenças étnicas e culturais como contribuição para um

viver societário humano (MARTINS, 2014; DIEGUES & ARRUDA, 2001; ACEVEDO

MARIN & CASTRO, 1999).

Nessa direção, Diegues e Arruda (2001) enfatizam os aspectos do simbolismo presente

nas práticas sociais, de que resulta, em boa medida, o caráter comunitário do viver, e das

imbricações com a natureza das comunidades tradicionais. Para eles, esses povos de tais

comunidades possuem uma representação simbólica do espaço, com valor de um pertencimento

mítico/lendário, o que “lhes fornece os meios de subsistência, os meios de trabalho e produção

e os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais, isto é, os que compõem a

estrutura de uma sociedade [...]”. Sintetizam eles que há um ‘saber acumulado’ por esses povos,

colocando em confronto os conhecimentos do saber tradicional e do científico-moderno

(DIEGUES e ARRUDA, 2001, p.65).

Da extensa literatura sobre comunidades tradicionais, verifico uma interface com a

história dos povos que evidencia uma forma de atuação resistente e de continuidade das

36 São referências os escritos de Diegues e Arruda (2001). Na Amazônia, destaca-se a obra intitulada

“Desmatamento e modos de vida na Amazônia”, com ênfase nos processos sociais de desmatamento em Rondônia

e no Sudeste do Pará. Disponível em: http://nupaub.fflch.usp.br/. Acesso em 23 ago. 2015.

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tradições. Isso ao lado do fato de que, visivelmente, as comunidades tradicionais são, hoje,

permeadas por outros contornos sociais (mídia, internet, abertura de ramais, grandes empresas

de monocultivo), que se somam às das políticas públicas (programas sociais e projetos

específicos). Políticas que solidificam outros processos identitários nessas comunidades, de que

é um exemplo o contexto do nordeste paraense. Em outras palavras, estamos diante de um

‘tradicional’ e uma ‘tradição’ que resistem e persistem, estabelecendo relações ou imbricadas

com outras formas sociais, culturais e econômicas. Há, portanto, nelas, “[…] saberes, tradições,

memórias; fazeres” (ALMEIDA, M., 2007, p.177).

Numa possível síntese, a tradição é social e politicamente construída, sendo, portanto,

reinventada, alterada, atualizada e histórica, à medida que se processa no cotidiano e nos jeitos

do viver por parte do povo.

No dizer de Brandão (2012), parece haver uma comunidade tradicional na convivência

dos que “ali estavam” frente aos que “ali chegaram”, ou seja, “em algum momento – ancestral,

antigo, recente ou presente – uma comunidade tradicional existiu ou convive ainda com uma

situação de fronteira” (BRANDÃO, 2012, p.372).

Retomo a questão inicial a ser discutida aqui: os povos e as comunidades tradicionais.

Neste mesmo sentido, Diegues e Arruda (2001) sublinham um conjunto de elementos

característicos dos povos tradicionais:

a) dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais

renováveis a partir dos quais se constrói um modo de vida; b) conhecimento

aprofundado da natureza e dos seus ciclos que se reflete na elaboração de estratégias

de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido de geração

em geração por via oral; c) noção de território ou espaço onde o grupo social se

reproduz econômica e socialmente; d) moradia e ocupação desse território por várias

gerações, ainda que alguns membros individuais possam ter se deslocado para os

centros urbanos e voltado para a terra de seus antepassados; e) importância das

atividades de subsistência, ainda que a produção mercantil possa estar mais ou menos

desenvolvida, o que implica uma relação com o mercado; f) reduzida acumulação de

capital; g) importância dada a unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações

de parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas e culturais;

h) tecnologia utilizada é relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio

ambiente. Há reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal,

cujo produtor (e sua família) domina o processo de trabalho até o produto final; i)

fraco poder político, que em geral reside com os grupos de poder dos centros urbanos;

j) auto-identificação ou identificação pelos outros de se pertencer a uma cultura

distinta das outras (DIEGUES & ARRUDA, 2001, pp.87-88).

De forma geral, a caracterização apontada pelos autores acentua a imbricação humano-

natureza e, também, o valor do pertencer a um coletivo ao lado do sentir-se autoidentificado

com o lugar e com um modo próprio de viver. Ela passa também pelo produzir os bens de

subsistência, e esta produção não está reduzida a uma mera dimensão mercantil. Ela está

imbuída por outras lógicas, como a do respeito ambiental e a da interação social. São aspectos

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importantes quando pensados em oposição à sociedade dita urbano-industrial37, determinada,

na maioria das vezes, por outros interesses.

No entanto os condicionantes políticos mudam constantemente e, com eles, mudam as

categorizações sociais38. No caso, são ditadas outras (novas) formas sobrepostas às

“comunidades tradicionais”. Elas, então, subordinam-se, em parte, ao âmbito do poder

local/regional e, por que não dizer, mundial, constituindo-se, assim condicionantes políticos em

movimento. Condicionantes vivenciados pelos seus integrantes na oposição entre os desejos e

os sentidos coletivos e os interesses e projetos individuais.

Sobre essa questão, Cunha (2009) afirma que o aspecto característico de amparo legal na

prática conflitua-se com as situações concretas das comunidades. Ela enfatiza que há distinções

e alerta para o não engessamento das práticas e dos sujeitos em termos de definições e categorias

construídas socialmente. Por isso considera ser mais prudente definir “populações tradicionais”

de maneira “extensional”, remetendo a categoria para os que são “membros”, e os candidatos a

“membros”, pois leva em conta a constituição de suas práticas e identidades. Visando melhor

detalhamento, cito literalmente Cunha e Almeida (2009):

Termos como índio, indígena, tribal, nativo, negro, aborígene são todos criações da

metrópole, são frutos do encontro colonial e, embora tenham sido genéricos e

artificiais quando foram criados, esses termos foram progressivamente habitados por

gente de carne e osso, sobretudo quando tais termos ganham status administrativo ou

jurídico (CUNHA; ALMEIDA, 2009, p.278).

Além dos aspectos atribuídos às definições, somam-se “outras dimensões cruciais: a

dimensão cultural e a da inclusão social39”. Estão em jogo a prevalência de um modo de vida,

assim como a luta por transformações sociais em direção a condições dignas do viver,

permeadas por um sentido identitário dos sujeitos com o território, inclusive, as formas de

políticas públicas demandadas.

37 É sabido que há locais, de cunho tradicional, que esse processo mercantil e o da produção das famílias se

alteraram significativamente. Do mesmo modo, os novos meios técnico-científicos voltados à agricultura fazem

com que as tecnologias utilizadas por esse grupo se alterem, impactando o ambiente. Isso modifica, inclusive, as

formas de organização e atuação do trabalho. Exemplo típico, na Amazônia paraense, é o caso da massificação da

dendeicultura na região do Baixo Tocantins (NAHUM; SANTOS, 2013).

38 Além da categoria eminentemente política que a temática evoca, se acresce contornos acadêmicos que, como

bem diz Gusmão (2013), são olhares “[…] social e politicamente comprometidos” e, por isso, no processo de

investigação “não se separam – o campo, a academia e os nossos sujeitos; a teoria, nossas categorias nossos

princípios e os da sociedade da qual vivemos” (GUSMÃO, 2013, p.232-233). Nesses termos, as próprias pesquisas

e grupos de pesquisas das instituições de ensino vão se alterando em relação às mudanças e aos tempos sociais

implicados. Para exemplificar a área temática do doutorado em Ciências Sociais da UNICAMP, que foi

estabelecida em 1985, com o nome de “Agricultura e Questão Agrária” e, atualmente, intitulam-se “Processos

Sociais, Identidades e Representações do Mundo Rural”, desde 2001. 39 Excertos contidos na entrevista da autora intitulada: “Povos tradicionais têm um pacto com o meio ambiente”.

In: ISPN - Instituto Sociedade, População e Natureza, disponível em http://www.ispn.org.br. Acesso em 26 out.

2015.

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Na própria legislação voltada para as comunidades tradicionais, ficam evidentes as

relações e as produções dos sujeitos no território. São “Territórios Tradicionais: os espaços

necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais,

sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos

povos indígenas e quilombolas [...]” (BRASIL, 2007, p.01).

Brandão (2004) discorre sobre a tradicionalidade rural, afirmando que há uma

campesinidade não caracterizada tão somente pela sua ética e pela sua identidade, mas pela

cumplicidade e afetividade com a terra, com a vizinhança, com os seus parentes, com a vida em

comunidade. E isso é que levaria a comunidade tradicional a ser dinâmica e diversa.

As formulações dos autores e os documentos oficiais acima mencionados ratificam as

relações entre territórios, saberes e fazeres, as partilhas de vida, as culturas e a natureza,

confirmando uma ideia de comunidade tradicional, eminentemente histórica, sociocultural e

política, com base na prática social exercida em determinado contexto. Alicerçada por essas

visões, ouso afirmar que a comunidade tradicional tem-se constituído como o lugar/território

de múltiplas trocas e aprendizados do bem viver, nos termos de suas populações locais.

Entendo que as várias contribuições teóricas só ganham real valor se forem colocadas em

consonância com o modo como esses povos preservam as suas memórias e (re)constroem as

suas histórias. Como eles se denominam e se afirmam como sujeitos? Que reconhecimento tem

sido dado a essas populações em nome de sua contribuição à sociodiversidade brasileira? Como

vivem e o que precisam para o bem viver, tal como enunciado por eles? Ou, simplesmente,

como lembra o poema amazonense de Thiago de Mello: “Junto com outros sendo/ E noutros se

prolongando/ E construir o encontro/ Com as águas grandes/ Do oceano sem fim. Mudar em

movimento, mas sem deixar de ser o mesmo ser que muda. Como um rio”40, expressando o

devir e a coragem dos povos e das comunidades tradicionais41.

1.2 – Comunidade Tradicional na Amazônia

Julgo pertinente pensar o objeto da pesquisa de forma relacional e, neste caso, a Amazônia

paraense é o cenário. Um cenário dirigido pela questão: quem ou quais são as comunidades

tradicionais na Amazônia? O intuito é adentrar neste aspecto levando em conta a complexa e

diversa realidade amazônica contida nos estudos e na riqueza das pesquisas existentes42.

40 Poema disponível em http://pensador.uol.com.br/poemas de thiago de mello. Acesso em 28 out. 2015. 41 Sobre nominações desses povos ver Almeida, M. (2007); Almeida, A. (2008a). 42 Devido à extensão bibliográfica, centrei-me nos estudos que refletem a Amazônia paraense Maués (1999) e, em

particular, as pesquisas realizadas na mesorregião do Baixo Tocantins Acevedo Marin & Castro, (1998); Nahum

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Para Moreira (1956), a realidade amazônica é diversa, dada sua rica biodiversidade, suas

etnias e suas diferentes culturas, estando a prevalecer a condição humana, quando se pensa a

base de sua concepção. O autor enfatiza a inter-relação entre os aspectos políticos,

hidrográficos, econômicos, geográficos e botânicos, quando se pensa numa possível

conceituação para a Amazônia.

Em sua sociodiversidade junto ao complexo da natureza, o humano é parte indissociável,

sendo um ser ativo no processo de constituição do que é a Amazônia. Suas vivências atuais

marcam um campesinato amazônico que se forma por processos étnicos, culturais e de saberes

ancestrais, imbricados por relações de parentesco, comunitárias, políticas e religiosas

(CASTRO, 1999).

São muitas as visões sobre a região amazônica; algumas delas, até contestadas e outras,

em construção, considerando os aspectos econômicos, geográficos e sociais43. No entanto

outros olhares surgem agora, como os da Amazônia fronteiriça, em que diferentes atores estão

em permanente situação de conflito social (MARTINS, 2014). Existe, também, o da valorização

da diversidade cultural, com a sua nova (outra) realidade associada à autodefinição dos agentes

sociais e à sua condição de sujeitos (ALMEIDA, A.; FARIAS, 2013), entre tantos outros.

No Brasil e especialmente na região amazônica paraense, não podemos deixar de

mencionar a força dos habitantes indígenas com o legado de saberes e de culturas de povos das

florestas. Assim, guardamos em nossa herança os modos de vida indígena e da origem afro, no

conjunto das imbricações com o ambiente, assim como nas formas de resistência à hegemonia

da cultura branca, entre tantos outros aspectos, ou seja, sabemos que “A influência indígena

também se manifestou nas formas de organização do trabalho e nas formas de sociabilidade

[...]”. Além dessas, lembro as contribuições voltadas para as técnicas de fabricação de

instrumentos de trabalho, na agricultura, na alimentação (ARRUDA, 2000, p.276).

No dizer de Maués (1999), constituem-se na realidade muitas Amazônias, de muitas

visões: a do olhar dos viajantes e suas histórias, a do processo colonizador; a dos narradores de

saberes - povos da floresta. Existem Amazônias situadas entre as suas diversidades: uma

Amazônia Continental, ou Pan-Amazônica; as Amazônias nacionais, incluindo a brasileira; a

Amazônia Legal (limitada pela Região Norte) e, finalmente, as Amazônias dentro da Amazônia:

(2011); Nahum & Santos (2013) e Nahum & Malcher (2012). E, do ponto de vista mais amplo, os referenciais de

Almeida, A. & Farias (2013) e Martins (2014). 43 São várias caracterizações sobre a Amazônia, datada por âncoras histórica e cronológica. Sobre o assunto, ler

Castro (2000, 1999) e Maués (1999).

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seus grandes rios, planícies, lagos, planaltos, montanhas, florestas, cerrados e campos naturais

(MAUÉS 1999, p.58, apud Maués, 1991, p.26).

Para discutir as especificidades históricas e culturais amazônicas, a ideia de sua

“invenção”, de seu mito e de seu enraizamento caboclo, são profícuos os estudos de caráter

antropológico do professor Heraldo Maués, um dos estudiosos da Amazônia.

Segundo o autor, os índios, somados aos portugueses, aos negros da África e a tantos

outros povos e etnias, estabeleceram diferentes formas de organização das comunidades como

os aldeamentos, as localidades, os quilombos, as vilas e as povoações no interior da Amazônia.

Em artigo específico tratando de religião e da medicina popular na Amazônia, ele salienta os

aspectos étnicos e culturais em construção:

Tudo isso parece indicar um padrão que é seguido pelas populações amazônicas, o

qual, se tem relações com representações e práticas importadas da Europa e da África,

desde o período colonial, tem também muito a ver com a influência cultural indígena,

sobretudo Tupi, como é facilmente percebido. Mas tem a ver, ainda, com a natureza

amazônica, suas grandes florestas, seus grandes rios, seus grandes espaços e, no

litoral, a relação entre as águas fluviais, imensas, do maior rio do mundo – o

Amazonas [...] (MAUÉS, 2007, p.178).

Em sua obra “Uma outra invenção da Amazônia: Religiões, Histórias, Identidades”,

Maués (1999) enfatiza que, na Amazônia, além

[...] dessa diversidade étnica indígena, temos populações regionais não índias, entre

as quais se incluem algumas categorias étnicas - caboclos, seringueiros, pescadores,

camponeses, garimpeiros, ribeirinhos, negros remanescentes de quilombos,

urbanistas, pessoas de todas as classes e categorias sociais – que portam uma

diversidade muito grande de formas de organização social e de patrimônio cultural

[...] (MAUÉS, 1999, p.58).

A riqueza sociocultural desses povos, defendida por Moreira (1956) também é ressaltada

por Maués (1999). E, no bojo da sociodiversidade, encontra-se uma rica arena mítica cabocla,

traduzida, por vezes, no culto pelo encantado (causos, assombrações e mitos), ao que encanta

(manifestações e paisagens) e ao encantamento (acolhimento aos que chegam)44. Essa visão

mítica, da pajelança e do simbólico, é uma particularidade das populações tradicionais

amazônicas cunhada por suas “lendas”, “crendices”, “superstições”: simbologias da ação

concreta dos sujeitos (MAUÉS, 1999).

Entro, agora, na dimensão fronteiriça da Amazônia e em sua diversidade.

44 Outra obra que trata do tema e correlatos é o de Loureiro (2015): “Cultura Amazônica: uma poética do

imaginário”. Nela, o autor enfatiza a existência de uma cultura amazônica construída entre os elementos mágicos,

místicos e da natureza afirmando a partir disso que os diferentes povos amazônicos possuem uma cultura que se

apresenta de forma diferenciada das outras regiões que compõem o Brasil.

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Sobre este enfoque, o sociólogo José de Souza Martins, em sua obra “Fronteira: a

degradação do Outro nos confins do humano”, traz-nos uma instigante problematização: a dos

encontros e dos desencontros na/da fronteira no contexto da Amazônia Legal45. Ele nos mostra

como o capitalismo engendra contornos específicos, alterando formas de organização social, da

gestão do Estado e da organização do trabalho e, principalmente, no estabelecer outra forma de

posicionamento humano em relação ao outro (MARTINS, 2014, pp.11/78).

Sobre a compreensão da fronteira, adverte:

Se entendermos que a fronteira tem dois lados e não um lado só, o suposto lado da

civilização; se entendermos que ela tem o lado de cá e o lado de lá, fica mais fácil e

mais abrangente estudar a fronteira como concepção de fronteira do humano. Nesse

sentido, diversamente do que ocorre com a frente pioneira, (na frente de expansão)

sua dimensão econômica é secundária (MARTINS, 2014, p.141).

Nessa direção, somos instigados a pensar o conceito de fronteira para além dos territórios

distantes, como Martins (2014, p.11) analisou:

A fronteira de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica. Ela é fronteira

de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que

nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira

de etnias, fronteira da história e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira

do humano (idem, grifo do autor).

De fato, em várias regiões da Amazônia paraense, existe um conjunto de fatos e realidades

que revelam situações de conflitos sociais, de confrontos entre comunidades tradicionais e

empresas, de disputas entre os posicionamentos do Estado e o dos movimentos sociais e assim

por diante. Na realidade do campo, são vários os elementos que configuram as situações de

fronteira como a produção agrícola, a luta pela terra, a sustentabilidade da terra e os demais

recursos naturais, o fechamento de escolas etc.

Socialmente, muitas lutas e culturas são redesenhadas e, a começar com elas, são geradas

novas ou outras perspectivas de pensar o ser humano na relação com o mundo. Assim, fica

confirmado que, sobre os povos tradicionais na Amazônia, não se pode esquecer a condição de

enfrentamento em defesa de suas territorialidades, diante dos interesses predatórios tão

secularmente enraizados. De acordo com Almeida, A. (2012, p.67),

A Amazônia consiste num locus privilegiado para se observarem, empiricamente, tais

transformações. Aí não se veem muralhas nem foram erguidos “guetos”, mas se sente,

com todo vigor a força das pressões de políticas que articulam a ação governamental,

objetivando uma “organização hierarquizada dos territórios”. Essa ação tem sido

rápida, com objetivos de curtíssimo prazo, que exigem prontos resultados

(hidrelétricas, gasodutos, minerodutos, hidrovias, rodovias, portos, aeroportos, linhas

45 A obra é fruto de pesquisas em diferentes pontos da região amazônica, cujo enfoque é a ideia de fronteira,

direcionada pelo limite entre o campesinato e o capitalismo, nas dimensões frentes de expansão e pioneira

(MARTINS, 2014).

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de transmissão de energia), cujos efeitos referem-se a acidulados debates jurídicos e

à intensificação de conflitos sociais [...].

Alfredo Wagner de Almeida coordena um conjunto de produções acerca da Amazônia,

enfaticamente versando sobre povos e comunidades tradicionais. Em seus escritos faz uma

contudente afirmação sobre as alterações e os entrelaçamentos étnicos, assim como a

autodefinição frente a uma atitude coletiva em relação ao território. Para ele há uma “[...]

emergência de identidades coletivas objetivadas em movimentos sociais. Tais identidades são

múltiplas e configuram uma diversidade sociocultural amazônica” (ALMEIDA, A., 2013,

p.28). Especialmente, referindo-se a eles, pondera que

[...] tem conhecido aqui deslocamentos no seu significado desde 1988, sendo afastada

mais e mais do quadro natural e do domínio dos “sujeitos biologizados” e acionada

para designar agentes sociais, que assim se auto-definem, isto é, que manifestam

consciência de sua própria condição. Ela designa, neste sentido, sujeitos sociais com

existência coletiva, incorporando pelo critério político-organizativo uma diversidade

de situações correspondentes aos denominados seringueiros, quebradeiras de coco

babaçu, quilombolas, ribeirinhos, castanheiros e pescadores que têm se estruturado

igualmente em movimentos sociais. A despeito destas mobilizações e de suas

repercussões na vida social, não têm diminuído, contudo, os entraves políticos e os

impasses burocrático-administrativos que procrastinam a efetivação do

reconhecimento (ALMEIDA, A., 2008, p.38).

As pesquisas e os estudos sobre comunidades tradicionais, especialmente em se tratando

de ribeirinhos e quilombolas na Amazônia, ganharam força e intensificaram-se, em virtude da

afirmação de direitos e da legitimidade do território coletivo e comunal, assentadas por uma

natureza étnica na produção histórica do Brasil, como também impulsionadas pelos conflitos e

modos de vida.

No limiar, no território das comunidades campesinas46 amazônicas, o que se torna

evidente, muitas vezes, é um resistir de várias formas ou, como bem diz Cunha (2009; 1987),

um vivenciar uma vida comunitária que se tradicionaliza como estratégia de defesa frente ao

poder do capital e de suas contradições. De outra parte, a institucionalidade e o discurso sobre

esses povos instauram outras significações, pois são constantemente reinventados,

recompostos, investidos de outras reconfigurações sociais e políticas.

E neste fazer a luta e a transformação social, as construções identitárias são controversas

e sedimentadas socialmente por ações coletivas e por suas autodefinições pelos diversos povos

(ALMEIDA, 2013).

Embora haja similitudes e distinções, os autores mencionados enfatizam em seus

aprofundamentos teóricos e de pesquisas na e sobre a Amazônia, o plural e o diverso das

46 Compreendo a abordagem do campesinato como aporte de uma cultura e de laços de integração, ancorada nos

referenciais de autores como Antônio Cândido, José de Souza Martins e Carlos Rodrigues Brandão.

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comunidades tradicionais, seja pela presença viva de conhecimentos em várias dimensões: o

mítico, o simbólico, o imaginário como criação cultural dos habitantes, sua etnodiversidade no

dizer de Maués (1999), seja pela evidência de movimentos de resistências e de lutas, desde sua

organização ao longo dos anos até as reivindicações por condições de vida em seus territórios

na atualidade (ALMEIDA, A.; FARIAS, 2013), seja, ainda, em virtude das potencialidades

rurais em interlocução com a natureza de territórios na Amazônia, porém convivendo com

constantes conflitos e diferenças que atravessam a relação fronteiriça do humano (MARTINS,

2014).

Evidentemente, as abordagens aqui trazidas não são antagônicas, mas imbricadas. Em seu

conjunto, ajudam a compreender a sociabilidade humana e histórica no uso do território, em

que o debate gira em torno da constituição desse sujeito social, diante da reprodução da vida no

campo amazônico.

Como se observa, são relações de força entre atores individuais e coletivos diferentes,

num modus vivendi em e entre constantes mudanças, conflitos e reciprocidades. Por isso ratifico

a ideia comum de que “precisamos falar deles situados firmemente no seu interior”, isto é, a

partir de suas vidas e representações de suas vidas (ALMEIDA, M., 2007, p.173).

De outro modo, para ‘dizer’ sobre uma comunidade tradicional, a busca é a de conhecer

os meandros da vida em seu cotidiano.

Desta forma, respeitadas as diferenças entre os autores mencionados, as ideias convergem

para pensar que, a partir das experiências das comunidades, são expressas diferentes concepções

sobre elas pelos sujeitos. Ao mesmo tempo, alertam para a condição de pesquisadora quanto à

interface entre as margens ‘direita’ (o discurso da pesquisadora) e ‘esquerda’ (o discurso do

nativo47) na relação do conhecer, equivalendo o adentrar as margens, no caso da feitura da

pesquisa de uma comunidade.

Assim, uma das margens da presente tese é a vertente da racionalidade dialética e histórica

como campo político daqueles que, na Amazônia, se aproximam da categoria ‘povos da

floresta’, ‘povos das águas’ ou, utilizando-me do dizer do senhor Marinaldo Maciel de Araújo

e repetido por outros moradores, somos da área quilombola ou quilombola da beira do rio,

como identificam a comunidade onde realizei a pesquisa (ALMEIDA, M., 2003; ALMEIDA,

A., 2008a; CASTRO, 2003).

47 Os quilombolas utilizam o termo referindo-se aos que nasceram e se criaram ali.

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1.3 – Sobre a Comunidade Tradicional onde realizei a pesquisa

Introduzo, aqui, alguns excertos que caracterizam a comunidade onde realizei a pesquisa.

Quanto à região Tocantina e a paraense, constam de alguns apontamentos sobre a temática da

pesquisa (Introdução) e no item 1.4 deste capítulo.

Restrinjo-me a dizer que na Amazônia paraense, entre os rios/águas e a

terra/floresta/mata, entre povos ribeirinhos e quilombolas, entre ‘campo e cidade’ há

imbricações/interpenetrações sociais e culturais, visualizadas pela lógica de circulação de

produtos e de saberes, inteiramente diversa, entre poucas ordens e linearidades. No concreto da

vida, visualizamos intercâmbios que atravessam as vivências das pessoas na ação de trabalhar,

de lidar com o rio, de interagir e de se comunicar, envolvendo um mundo definido por diferentes

relações.

No caso das comunidades rurais ou do campo na região Tocantina e, em especial, as

comunidades quilombolas de Abaetetuba, como comunidades tradicionais, elas situam-se em

ilhas; e outras, nas estradas e nos ramais. De modo geral, trata-se de uma região de rios e de

matas48, com características campesinas que comportam uma pluralidade de ribeirinhos,

pescadores, colonos, assentados, peconheiros49, quilombolas etc., eminentemente agricultores

de hortaliças, do intenso cultivo do açaí e da mandioca, da produção da farinha, da criação de

animais, do artesanato, da carpintaria, da pesca e, agora, com força, de trabalhadores das

empresas que estão atuando no monocultivo do dendê. Os sujeitos do campo não só criam suas

estratégias sociais como também eles possuem “[…] saberes e práticas sobre os variados

ecossistemas, fato que lhes confere conhecimento e habilidades diversas e plurais acerca do

complexo roça-mata-rio-igarapé-quintal” (OLIVEIRA, 2008, p.37).

Os territórios dessa região assentam-se em particularidades e interconexões geográficas,

políticas, econômicas e culturais expressas por relações sociais, institucionais e a partir da

convivência das pessoas e destas com o ambiente.

Na cidade de Abaetetuba, entre os ditos ribeirinhos, assentados e quilombolas, há também

imbricações/interpenetrações sociais, econômicas e culturais que se mostram por meio das

práticas cotidianas que ocorrem na beira, no rio, na cidade e nas estradas. Nela, o rio signo

cultural dissemina e exerce algo mais do que uma simples prática social. Nesse sentido, pela

48 Denominação utilizada pelos moradores, ao contrário do usual, floresta. 49 Atuam na apanhação do açaí. E, a peconha é o instrumento de subir no açaizeiro e coletar o fruto, produzida

com a folha da palmeira.

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sua estética e encantamento, no ir e vir das gentes, o rio-mar expressa beleza, fronteira,

território, originado, em certa medida, nos saberes das águas50.

A comunidade quilombola, locus da pesquisa, delimita-se entre uma unidade territorial e

outras. Pelo limite territorial, os interlocutores referem-se a ela, repetidas vezes, como área

quilombola por ter uma divisa que dá o limite da terra. Um outro olhar lembra a luta frente a

questões sociais e econômicas em prol de todos. Daí a alegação do diretor da Escola Santo

André ao chamar atenção de que estamos muito individualistas. Em outros termos, o ser

comunidade quilombola à beira do rio reporta-se a um conceito aparentado dos processos e das

dimensões empírica e política, em que está presente a realidade de um espírito comunitário,

muitas vezes, pouco visível, evocando os pressupostos de Bauman (2003). Isso ao lado de

contrastes por um comunitário que se tradicionaliza em outros parâmetros tão bem refletidos

por Cunha (2009).

Os sentidos de comunidade associam-se, entre outros aspectos, com o uso dos recursos

da mata, o curso d’água e o trânsito nos rios. Por isso, pela dimensão empírica, faço notar a

tecedura social da comunidade quilombola, com ênfase a sua dinamicidade cotidiana, em que

uma das distinções é o estar situada à beira rio51. Ainda que venha a ser uma questão

pormenorizada mais à frente, na tabela abaixo apresento os espaços classificados como terra

firme (centro/mata) e varja (beira) como marcadores do território.

Tabela 05 – Localização e serventia dos espaços

Ambientes Espaços Sentidos Localização

Beira do

rio -

Várzea

Trapiches – Lá

na cabeça da

ponte

Embarque e desembarque de passageiros e

mercadorias

Ponto de encontro

Sociabilidade

nas margens dos rios

Pontes Ligação entre uma casa e outra

Sociabilidade em áreas de várzea (terreno)

Ilhinha Quando seca despraia e é utilizada como

área de lazer no meio do rio

Poços

artesianos Retirada de água potável por vizinhos

Em algumas casas de moradores e no

retiro do senhor Dilo

Casa do Sr.

Lazico

Jogo de cartas (conhecido como baralho)

Entretenimento

na margem do rio, ao lado do trapiche

da escola

Igreja

evangélica Espaço de celebrações próximo à Ilhinha, às margens

50 Trago uma ideia que caracteriza o rio para além da geografia, a qual admite uma dualidade entre rio e mar.

Presencia-se na Amazônia a existência de um rio-mar que não é metafórico, é literal, ou seja, não existe do mar

ou do rio, porque o rio é mar. Inclusive, Opará, conforme construção indígena significa rio-mar. Este enfoque é

detalhado no escrito de minha autoria “As águas e os Ribeirinhos – beirando sua cultura e margeando seus saberes”.

In: Revista Margens. v. 08, nº 11, p. 176-198, Ago/2014. 51 Beira rio, termo adotado por Velho (1972) na célebre obra Frentes de expansão e estrutura agrária e, também,

utilizado por Brandão (2013).

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53

Igreja católica

Prédio de identificação na entrada na

comunidade

Espaço para colocar santas, para rezar

celebrações dominicais

na entrada do rio, na margem do rio

Salão Paroquial Ponto de encontro, local de eventos, Festa

de Nossa senhora do Perpétuo Socorro ao lado da Igreja católica, em várzea

Ambos

Mercearias ou

baiucas Lugar de compra e venda de produtos nas margens dos rios, em terra firme

Escola

Quilombola

Lugar de educação e de reuniões

comunitárias em terra firme, próximo do ramal

Casas Moradia em terra firme, nas margens

Olarias Sociabilidade

Trabalho nas margens dos rios, em terra firme

Retiros de

farinha

Sociabilidade

Trabalho

em terra firme, no centro, próximos da

escola, do igarapé do Aricuru e do

igarapé Patauá, do ramal

Terra

Firme -

Centro

Roças

Sociabilidade

Trabalho

Ponto de encontro

em terra firme

Caminhos Acesso as casas, aos retiros e à escola em terra firme e várzea (terreno)

Ramal Santa

Rosa

Acesso à comunidade por terra, caminho

para a roça, para o retiro, para o campo de

futebol, arena e barracão.

terra firme

Quintais Sociabilidade

Trabalho em terra firme

Campos de

futebol

(tamanhos

diferentes)

Sociabilidade

em frente à escola.

No terreno da Elisa, do Lucindo e da

Nelita (próximos à escola)

Associação

comunitária

Santo André

Sociabilidade. Espaços de eventos, Festa

de Santo André em frente à escola

Fonte: Pesquisa de campo, 2015.

Os espaços, os lugares e as formas de uso dos recursos naturais dão notoriedade aos

processos sociais, culturais e de produção que existem na comunidade. Por exemplo, os próprios

rios, igarapés e furos são espaços utilizados para o trânsito de pessoas e embarcações, para o

entretenimento e o trabalho. Assim, os diversos espaços congregam em si interações, modos de

agir e de representar o lugar território52 em sua diferença e diversidade.

Nesse sentido, não somente a relação de organização sistêmica de produção assentada

relativamente na unidade familiar e na utilização de recursos naturais, que pouco impacto

provoca no ecossistema, são pontos de diferenças e contradições, como também a própria

52 Uso o termo partindo da compreensão de Santos (1997), em que “[...] cada lugar é, à sua maneira, o mundo. [...]

Mas também cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se exponencialmente

diferente dos demais” (SANTOS, 1997, p.252). Nessa perspectiva, os quilombolas são impulsionados pelo

cotidiano a situarem o lugar que habitam, e fazem-no à sua maneira. Lá, no Baixo Itacuruçá, constantemente, a

ideia de lugar associa-se ao espaço cotidiano (referenciado) dinamizado pela reprodução de sua existência, de

forma material e simbólica, conforme subscrevo com alguns trechos extraídos de conversas. Têm aquele que chega

e se instala no lugar e não tem vínculo com parentes do lugar; a droga está em todo lugar dessa ilha. Ademais,

a categoria lugar é usual em outros contextos etnográficos, baseada na noção de pertencimento ao espaço habitado,

como no estudo de Godoi (1999). Por isso, punha-se um lugar em devir, um lugar território.

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imbricação humano-natureza-cultura é distinta e singular, como quando os quilombolas se

questionam: aqui, a comunidade é um território coletivo, isso gera o que chamo de limite de

respeito entre os moradores em relação ao pedaço de terra de cada um (Pesquisa de campo,

2016).

Cabe salientar que o rio constitui uma fronteira em que situam ribeirinhos e quilombolas.

Classificam-se os territórios por esse limite, somos ribeirinhos por estarmos em terra de

Marinha e a nossa terra é quilombola. Daí, derivam-se, inclusive, muitas políticas públicas

(programas de habitação, projetos de agricultura, seguro defeso). Assim, ancorada pelas águas

e rios, a designação de comunidade e terra quilombola foi sendo incorporada como parte da

linguagem de direitos, de demandas sociais e, nesse processo, os quilombolas desse lugar vão

devagar reconhecendo e aprendendo de sua ancestralidade comum.

Com essa simples apresentação de alguns espaços existentes na comunidade e os sentidos

atribuídos a cada um deles, ratifico a ideia comum de que a identidade da mulher, do homem,

do jovem, do idoso e da criança do campo está centrada na vida em comunidade. É na

comunidade que se encontram os principais meandros de sua definição, tanto em relação a si

mesmo quanto ao outro. São exemplos: as carteirinhas das associações e dos sindicatos que os

situam como ribeirinhos ou como quilombolas; a parentela com seus repetidos sobrenomes; os

agrupamentos familiares dividindo a mesma moradia; os caminhos, as pontes e os trapiches que

ligam as casas e a vizinhança; o gostar de viver ali e, também, o nativo e o que chega no lugar.

Tais aspectos das famílias e das pessoas, individual e coletivamente, configuram a base do viver

comunitariamente em contraste. Ou seja, os quilombolas manifestam sua definição com base

em suas demandas, suas necessidades e por condicionantes sociais da comunidade.

Essencialmente, os processos de identificação estão voltados à prática cotidiana do

trabalho familiar e comunitário, seja expresso por formas tradicionais, como é o caso da pesca

de camarão com matapi, o fazer artesanal com talas e cipós, seja até mesmo pela agricultura da

roça. Evidencio, também, como elementos identitários as questões étnicas, a demarcação

territorial e a escola quilombola e, ainda, a organização comunitária por meio da Associação

quilombola, aspectos detalhados no capítulo seguinte.

Além do situar-se à beira rio, outro aspecto importante na vida das pessoas, o que

apareceu bastante nos seus comentários durante as reuniões de que participei na escola, foi o

resistir53. Na comunidade, as resistências contornam as lutas e os modos do viver que se alteram,

53 Foi uma opção espraiar as significações sobre o resistir ao longo da tese. E um dos referenciais foi o estudo de

Buriol & Viegas (2014), intitulado “Resistência das Comunidades através da tradição”, o qual focaliza as

resistências de povos tradicionais.

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salientadas por eles pelo reconhecimento real e efetivo de suas culturas, com suas estratégias

de interação com a sociedade e com a natureza. Neste sentido, valendo-me dos comentários de

Buriol (2014), lembro que as resistências dos povos tradicionais envolvem o cuidar deles, uma

vez que devem ser considerados e respeitados em seus peculiares modos de vida, assim como

é necessário evitar a tendência de massificação, de uniformização cultural. “As políticas

públicas devem levar em conta a cultura da pessoa ou grupo social a quem se destinam. Assim

começa o reconhecimento efetivo, a visibilidade real [...]” (BURIOL, 2014, p.91). Reitera o

autor, “[...] sem respeito aos valores culturais desses povos estará sendo violada a dignidade da

pessoa humana [...]” (p.94).

Tomando o referencial acima, o resistir pode ser percebido quando, repetidamente, se

manifestam que ali é um lugarzinho bom pra se viver, ou por meio do agir laboral, imbricado

ao afeto à terra, eu gosto do trabalho na roça, até porque, pra comer uma boa farinha temos

que fazer. Pelo modo de falar peculiar ou, ainda, pela percepção deles sobre as mudanças que

muitas vezes chegam e não trazem benefícios, mas imprimem outros valores. Em suma,

resistem pela teimosia em viver ali com seus costumes e modos próprios, embora em constante

transformação.

No caso específico, a vivência do ser negro e quilombola da beira rio (enquanto

resistência) em um território com características próprias, ao lado de diferenciais

socioeconômicos e culturais de pertença à região amazônica do Pará constitui a base da tradição

e dos processos identitários. E, no caso da comunidade estudada, o cotidiano ribeirinho é um

fato social e geográfico na condição do modo de ‘ser quilombola’, que na atualidade funciona

também como uma estratégia política.

Na representação da vida na comunidade quilombola do rio Baixo Itacuruçá são nítidos

os processos que se mostram por conflitos internos e externos, historicidades, tempos, tessituras

e por tantos outros aspectos que escapam ao pesquisador e que se manifestam pela estreita

sujeição de laços pessoais, comunitários e institucionais. Em síntese, a comunidade local tem

se constituído um lugar território de múltiplas trocas e aprendizados do bem viver, não

eximindo as contradições do comunitário trazidas anteriormente.

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56

1.4 –A cidade de Abaetetuba54

As informações e alguns dados da cidade de Abaetetuba visam subsidiar a compreensão

do contexto social, político e econômico bem como o processo de territorialização de seu povo

o que, de alguma forma, espelha a diversidade étnico-racial na região Amazônica e, em

particular, na região nordeste paraense.

Abaetetuba localiza-se à margem direita do Rio Meruú (Maratauíra), afluente do

Tocantins. Segundo dados oficiais, pertence à microrregião de Cametá, compondo a

mesorregião do nordeste do Pará. Fica a uma distância de 101,5 km, em linha reta, da capital

do Estado, Belém, e seu nome é originário da língua tupi guarani e significa: Terra de homens

fortes e valentes. Abaixo, o mapa da cidade com os respectivos limites territoriais.

Figura 01 – Mapa da cidade do Município de Abaetetuba

Fonte: IBGE 2002.

54 O município tem uma população estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em

150.431, sendo que 60% deste total residem na cidade; e 40% no campo, totalizando 58.102 habitantes residentes

em área rural (Censo 2010). Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br. Acesso em 24 jul. 2015.

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57

A cidade ficou conhecida como a “terra da cachaça”55. O legado dos canaviais e de seus

muitos rios mereceu homenagem, por meio da canção “Esse rio é minha rua”, do compositor

paraense Rui Barata.

No Estado do Pará, segundo dados da Fundação Cultural Palmares, são 227 comunidades

remanescentes de quilombos cujas informações estão atualizadas até fevereiro de 201556. Em

se tratando dos territórios em Abaetetuba, cabe dizer que, mesmo com as especificidades, uma

característica comum entre todas é a luta por direitos nas comunidades por meio da deliberação

comunitária coordenada por associações, organizações rurais e lideranças locais.

No município, as seguintes categorizações de distribuição geográfica são utilizadas:

centro para discriminar a área urbana da cidade e, a área do campo para situar os ramais, as

estradas e as ilhas. Nas ilhas são várias as comunidades rurais demarcadas, assim como é

significativa a distinção dos territórios quilombola e ribeirinho57.

A tabela a seguir consta dos dados sobre os territórios quilombolas titulados na cidade58.

Tabela 06 – Terras de Quilombo em Abaetetuba

Terra Quilombola Comunidades Órgão Expedidor Data da Titulação

Ilhas de Abaetetuba

Acaraqui Iterpa* 2002

Alto Itacuruçá Iterpa 2002

Arapapu Iterpa 2002

Arapapuzinho Iterpa 2002

Baixo Itacuruçá Iterpa 2002

Jenipaúba Iterpa 2002

Médio Itacuruçá Iterpa 2002

Rio Tauerá-açu Iterpa 2002

Igarapé São João Iterpa 2002

Campompema Iterpa 2002

Bom Remédio Bom Remédio Iterpa 2002

Moju-Miri Moju-Miri Iterpa 2008

Samaúma (PA) Samaúma Iterpa 2008

55 No período de 1891 a 1970 foi forte a produção, nos engenhos. Vale mencionar como patrimônio cultural o

Engenho Pacheco, o único ativo do município, que resiste ao tempo, às dificuldades e à alta tecnologia na produção

da cachaça. 56 Importante frisar que dependendo da fonte os dados numéricos sobre comunidades remanescentes de quilombos

são totalmente diferenciados. Mais informações disponíveis em http://www.seppir.gov.br/ e

www.palmares.gov.br. Acesso em 23 fev. 2016. 57 Tais povos são classificados como habitantes de Terras de Marinha, como bens da União. Informação disponível

em http://www.planalto.gov.br. Acesso em 09 dez. 2015.

58 Em nível local, existe a polêmica sobre o território quilombola do rio Campompema quanto à sua titulação e

reconhecimento étnico, isto é, a polêmica situa-se em torno de alguns moradores do rio posicionarem-se como

ribeirinhos e outros como quilombolas. Inclusive, posicionamentos acalorados de lideranças dos movimentos

sociais instituídos, o Movimento dos Ribeirinhos e Ribeirinhas das Ilhas e Várzeas de Abaetetuba (MORIVA) e a

ARQUIA.

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Ramal do Piratuba Ramal do Piratuba Iterpa 2010

Ramal do Bacuri Ramal do Bacuri Fund. Palmares 2013

Laranjituba e África Laranjituba e África Fund. Palmares 2013

Caeté Caeté Fund. Palmares 2013

* Instituto de Terras do Pará (ITERPA).

Fontes: Comissão Pró índio de São Paulo e Fundação Cultural Palmares, em 2015.

Como foi, antes, mencionada, a insularidade é uma das referências da cidade de

Abaetetuba, pois ela é abastecida com a produção vinda da agricultura, da caça, da pesca, do

artesanato, das plantas medicinais e de outros produtos das ilhas, dinamizando o comércio da

beira, à frente do rio Maratauíra ou Meruú59.

A título de ilustração, a beira é um espaço singular e de fronteira humana entre o dito

interior e a cidade. Nela, desde as cinco da manhã há uma grande concentração de pessoas, de

embarcações e de produtos. A beira é símbolo da cidade, sendo, do ponto de vista cultural, uma

manifestação popular (inclusive, é parte do roteiro turístico) e, ao mesmo tempo, de intercâmbio

relacional (da produção e de pessoas) na construção da identidade local.

O antropólogo e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Flávio Barros

desenvolve estudos sobre aspectos culturais e do ecossistema do município. Um dos seus

trabalhos é sobre a movimentada beira60. Segundo ele:

A beira de Abaetetuba constitui-se, sem sombra de dúvidas, num importante espaço

de produção da vida, do trabalho e da cultura local. Traduz-se como um locus de ricas

interações sociais, troca de saberes e reflexões dos principais temas que interferem no

cotidiano das sociedades contemporâneas, sobretudo a violência, a educação, a

política e a economia. Num espaço comunal, que aglutina, simultaneamente, sujeitos

de diferentes origens sociais, o protocolo da formalidade, que quase sempre funciona

como componente inibidor, não existe (BARROS, 2009, p.160).

A obra “A hora das crianças Narrativas radiofônicas de Walter Benjamin” foi uma das

minhas leituras durante o tempo do doutorado61. Pautado na experiência radiofônica para

crianças, o autor enfatiza o aprender da linguagem de um lugar ouvindo e observando as práticas

sociais, o saber delas e o saber popular veiculado, por exemplo, na feira. Sobre isso, destaca o

autor: “A feira é um dos melhores lugares para se apurar os ouvidos e perceber o modo de falar

berlinense”.

Seguindo o pensar de Benjamin e o de Barros, na beira veicula um rico arsenal de

expressões culturais como as que encontramos também na música, no teatro, na dança e na

59 O rio Maratauíra faz fronteira com as marés da ilha de Sirituba, nas proximidades do rio Campompema e da

famosa Ilha da Pacoca. 60 Termo adotado neste escrito para referir-se à feira. Nela, estão as feiras do açaí, do peixe e de alimentos. 61 Leitura feita por meio do texto: “Walter Benjamin e as crianças na era do rádio”, de José Ribamar Bessa Freire,

24/05/2015 - Diário do Amazonas, disponível em http://www.stellabortoni.com.br. Acesso em 23 nov. 2015.

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literatura do lugar. No caso amazônico em estudo, a beira e, também, os retiros de farinha, as

margens dos rios ou a cabeça da ponte, como dizem, são espaços privilegiados de

situações/acontecimentos marcantes e de relações comunitárias, de interatividade e de troca, ditadas pelo

saber e fazer dos diferentes sujeitos sociais.

Para fazer as muitas travessias até o campo, o lugar inicial é a beira. Várias vezes,

observei o amanhecer ali e chamou-me atenção a vivacidade das pessoas em suas atividades de

trabalho para produção da vida. Nela, encontram-se o dizer espia62, termo recorrente na

linguagem do lugar; o trançado de mototaxistas e taxistas gritando aos que chegam, em busca

de uma corrida; os freteiros oriundos de diversos rios, trazendo pessoas e objetos que ali são

desembarcados; a comercialização ‘escondida’ de carne de animais; os docentes que se

deslocam diariamente para ministrarem aulas nas escolas do campo e, ainda, as iguarias do café

da manhã: mingau de açaí ou de miriti com arroz, sopa, tapioquinha. Eu mesma, além de

conversar sobre o movimento da feira, tomei repetidas vezes o café com tapioca da Dona Lira,

uma das feirantes da beira há mais de dezoito anos. A fotografia abaixo ilustra a famosa beira.

Foto 02 – A beira, às seis horas da manhã

Fonte: POJO, E.C. Ago. 2015.

62 Espia é um modo de falar do lugar. Com base nos usos e sentidos empregados por moradores, percebi o espiar

como o apreciar as coisas nas entrelinhas, o dar atenção, o olhar à espreita, o deleitar-se no tempo sem pressa. Em

analogia com os estudos de Loureiro (2015) sobre o tema, espiando vão aprendendo e ressignificando a realidade,

formulam leituras de mundo já que na condição de “caboclo amazônico, na sua jornada diária, seja na caça, na

pesca, nas viagens, vive a doçura obcecante do olhar”. Reproduzo aqui algumas falas em que o verbo aparece:

espia, como o moleque faz para subir na açaizeira; espia a quantidade de mandioca para descascar; os alunos

estão espiando para ver se os professores vieram! O espiar é fonte de observação (LOUREIRO, 2015, p.147).

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As águas e as embarcações formam na beira um ritual à parte. Esse movimento com as

pessoas dá viveza ao cotidiano do município e, também, à comunidade do rio Itacuruçá.

Constituem os rios e as águas espaços da ação do sujeito amazônico, em que as águas abundam

e fundam o ethos63 do quilombola, do habitante de ilha, do ribeirinho, do caboco, do embarcado.

Em grande parte de Abaetetuba, o rio é a rua, com nomes oriundos da sabedoria indígena,

sendo o principal rio o Pará, fora os outros, que também são importantes para a vida social e

econômica do lugar. Os inúmeros rios, igarapés e furos diferenciam o município em razão da

dinamicidade das suas águas. Na cidade, há setenta e duas ilhas, além das trinta e cinco

‘colônias’ (ramais e estradas) e dos dezessete bairros na área urbana. Grande parte das ilhas é

habitada. Em anexo apresento o mapa com todas as ilhas do município de Abaetetuba.

Na parte urbana da cidade, o movimentar-se nos espaços e no tempo é visível: às cinco

da manhã, começa o trânsito de pessoas do lugar e de municípios vizinhos que se avolumam às

portas das agências bancárias e dos comércios. Nas ruas, mototaxistas, pedestres, carros,

carroças, batalhadores de bicicletas64 movimentam-se freneticamente dando um aspecto

singular ao cotidiano. Por volta das doze horas, um clima de calmaria toma conta daquele lugar.

O comércio fecha as portas, o barulho oriundo de seu grande movimento dá lugar a um quase

silêncio.

A história da cidade encontra-se disseminada em várias publicações, canções, poesias e

estudos acadêmicos, constituindo um acervo significativo65. Entre os trabalhos, o de Paes

Loureiro tem sua importância.

Nascido no lugar e atuando como poeta, o professor e pesquisador João de Jesus Paes

Loureiro (2015) em seu livro “Cultura amazônica: uma poética do imaginário”, assim o

apresenta:

[…] a condição de origem cabocla do autor nascido em uma cidade do interior

amazônico, Abaetetuba, debruçada no rio Tocantins e circundada de floresta, mata,

crenças, mitos encantados, estetizações da vida e da cultura. A circunstância cabocla

de “ver maravilhas nas coisas” que o modo ribeirinho de conviver e “estranhar” a sua

realidade cotidiana, transfigurada tantas vezes pelo devaneio (LOUREIRO, 2015,

p.40).

Nesse sentido, o lugar natural e social de Abaetetuba apresenta-se culturalmente marcado

pela resistência e pelo encantamento, o que, na visão de Loureiro (2015), é um situar-se por

63 Nos termos do antropólogo Clifford Geertz (1989).

64 São moradores da cidade que trabalham transportando pessoas em uma bicicleta. Ficam em pontos de referência,

por exemplo, na esquina da praça da Igreja de Nossa Senhora de Conceição ou no Terminal Rodoviário.

65 As canções, a do compositor e músico Ney Viola (Canção de Abaetetuba) retratam a cidade em sua

dinamicidade. Na poesia, temos Paes Loureiro (2001) e tantos outros. Nos estudos acadêmicos ressoam as obras

do professor da UFPA Jorge Ricardo Coutinho Machado. Além, das dissertações e teses, constam as cartografias

sobre os ribeirinhos das ilhas de Abaetetuba (PNCSA, 2008, 2009).

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uma simbologia mítica e lendária como forma de criação e inventividade social do povo. Eu

mesma, ao entrar na sala de aula pela primeira vez, no Campus de Abaetetuba (2011), fui

convidada por uma estudante, moradora de ilha, a conhecer uma das histórias mais bonitas que

contam no lugar, assim como visitar a ilha da Pacoca ou ilha encantada. Veementemente, a

aluna afirmava: “professora, é verdade, essa história existe”66. Eis a versão contada pela

estudante:

Há muitos anos existia duas tribos rivais e os jovens de ambas se apaixonaram. Uma

moça chamava-se Pacoca e o homem Honorato, contudo havia outra moça da tribo de

Honorato que o amava e que estava destinada a ele. Pacoca e Honorato se

encontravam às escondidas, mas sua noiva descobriu o relacionamento e resolveu se

vingar. Os jovens apaixonados souberam da vingança e fugiram, não obstante sua

noiva procurou o pajé da tribo, o qual os enfeitiçou. Pacoca se transformou em uma

ilha e Honorato em uma cobra grande, mas o amor dos dois era tão grande que

permanecem juntos até hoje. Honorato que se transformou em cobra grande, mora

embaixo da Ilha da Pacoca. Alguns moradores daquela região que geralmente

pescavam a noite dizem que a meia noite eles avistavam a Ilha da Pacoca, em forma

de um navio todo iluminado e ouvia-se também perfeitamente barulhos do motor,

ficando parado por algumas horas. Em um certo momento as luzes do navio

começavam a se movimentar da proa a poupa e vice- versa, e assim nesse movimento

das luzes o navio desaparecia. Pela manhã avistava-se a ilha em seu lugar intacta, em

sua volta apenas a tranquilidade. Conta-se também que para quebrar este encanto e

eles se transformarem em seres humanos, é necessário que um homem corajoso corte

com um golpe só a cabeça da cobra, assim a Ilha da Pacoca se transformará em uma

cidade, e como recompensa o corajoso ficará muito rico. Muitos foram os que

tentaram esta proeza, mas nunca chegaram ao resultado final e, por maldição eles

enlouqueciam e com poucos dias, morrem (Maria José Ferreira, 24 anos, 2012).

Arlete Botelho Carvalho, nativa, produtora artesanal e agricultora, num dos momentos de

campo narrava a sua versão: O melhor é não duvidar, porque é antiga essa história. Faz parte

da criação da cidade. Quem sabe, pode mudar a nossa vida, ficar melhor para nós viver aqui,

quando ela for desencantada (Pesquisa de campo, 2015). O certo é que, debaixo das águas,

pode estar o suspiro da mudança que sairá, com a cobra, uma outra (nova) versão da cidade,

transformada, de melhoria da qualidade de vida. Pelo narrar das histórias, as pessoas do lugar

sugerem diferentes visões de mundo permeadas por mitos, lendas, religiosidade que povoam o

imaginário e o simbolismo dos sujeitos, pois, no caso “[...] do fundo do rio emergirá uma nova

Abaetetuba, sem dor e sofrimento, cheia de paz, amor e prosperidade [...]” (MACHADO,

2008a, p.67).

No dizer de Loureiro (2000, s/p), a história possui um conteúdo simbólico aos munícipes.

Assim diz,

Todos os que nascemos à beira do rio Tocantins, em Abaetetuba – uma das cidades

encantadas na geografia mágica do Pará Amazônico – temos certeza que a boiúna faz

seu leito preferido no perau, sob a antiga ponte-grande da rua da frente e costuma sair

66 Ex-estudante do curso de Pedagogia/2012. A versão consta em seu Trabalho de Conclusão de Curso que versou

sobre o currículo escolar e o contexto ribeirinho.

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pelo rio, ora como navio iluminado, ora para estirar-se, lânguida, ao longo da praia da

ilha em frente, a ilha da Pacoca.

Sabemos, também, na minha terra de canaviais e sonho, que todo alguém que, no cair

da tarde, se aproximar e cortar a ponta da cauda dessa cobra-grande mítica,

desencantará a cidade submersa na aparência visível da cidade atual.

Outra distinção da cidade é o miriti, tal como na entrada da cidade é enunciado na seguinte

assertiva: “Abaetetuba capital mundial do artesanato de miriti”67. A produção do miriti faz-se

presente pelos artefatos68 produzidos nos barracões, nas salas de aula enfeitadas com os

brinquedos e na retórica dos moradores, como forma de identificação, além de ser maciçamente

divulgada no Círio de Nazaré em Belém e em evento próprio, o Festival do Miriti - o Miriti

Fest69.

A palmeira, cientificamente denominada Mauritia flexuosa, é conhecida como miriti e

faz parte do cotidiano das famílias ribeirinhas do estado do Pará, especialmente dos habitantes

do município. À medida que seu fruto alimenta as pessoas, seu tronco vira as pontes das casas,

e os braços da folhagem servem de matéria-prima para a confecção de vários utensílios e dos

famosos brinquedos de miriti.

Foto 03 – Paisagem do Miriti às margens do rio

Fonte: POJO, E.C. Ago. 2015.

Como foi citado, há uma vasta produção sobre Abaetetuba, e os extratos aqui

mencionados não dão conta da amplitude, tampouco da dinamicidade do cotidiano da vida ali

existente. A tentativa foi trazer apontamentos a respeito dela, especialmente o entrelaçamento

67 O miriti é a fibra do buritizeiro (palmeira que dá fruto chamado buriti). 68 No município, existem duas renomadas associações que desenvolvem uma produção intensa de brinquedos e

outros artefatos com o miriti, são: a Associação dos Artesãos do Município de Abaetetuba (ASAMAB) e a

Associação Arte-Miriti de Abaetetuba (MIRITONG). Quanto aos artefatos, os barcos são parte significativa,

somados a uma variedade de animais (pássaros, peixes, cobras e tatus), casas, quadros, dançarinos, bonecos. 69 Festival que encontra-se na XII edição, promovido pela Prefeitura e pela Associação dos Artesãos de Miriti.

Disponível em http://www.abaetetuba.pa.gov.br. Acesso em 01 dez. 2015.

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das paisagens campo e cidade, que de alguma forma situa o contexto campesino em que a

pesquisa se construiu.

Muitos outros aspectos poderiam ser trazidos aqui, mas, no presente trabalho a minha

escolha foi a de apenas ‘marcar’ a cidade por suas margens (varja, rios e águas), em razão da

sua importância social, econômica e cultural. Não é à toa a fala de alguns ribeirinhos e

quilombolas: é o povo das ilhas que movimenta o comércio da cidade.

A fala de uma professora, quilombola do rio Arapapuzinho, de que o rio nos identifica

evidencia a existência de inter-relações e realidades do município e da comunidade do

Itacuruçá. Uma delas é a de um contexto campesino (de ribeirinhos, de quilombolas, de

agricultores e de colonos), por meio do qual, como produtores de bens materiais e imateriais,

eles nutrem a vida e, ao mesmo tempo, ratificam valores. Os quilombolas, nos diferentes lugares

e com suas culturas, são produtores e disseminadores de alguns, entre os muitos, simbolismos

amazônicos.

A partir de agora, busco sintetizar as ideias centrais trazidas até aqui. Com base nos

estudos dos autores e em percepções de uma mulher que cresceu na Amazônia paraense, ouso

afirmar que a Amazônia é representada de muitas maneiras e significações. Dentre as muitas

versões, estão a que envolve o mito, a que se funda no simbólico, a que ressalta a resistência

por um viver digno e a que retraça a diversidade espraiada no modo de vida com foco na poesia

sobre ela.

A comunidade local do rio Baixo Itacuruçá traz em sua prática social a imbricação com

a terra, com a mata, com a várzea e com o rio em sua gênese. Tais imbricações relacionam-se

à forma como os quilombolas vivenciam e manuseiam os seus materiais de trabalho, assim

como enfocam a maneira como eles, tradicionalmente, realizam o plantio. Em suma, como

interagem com a comunidade, com a vizinhança, com as trocas e com a natureza.

Quando os quilombolas se referem à comunidade, ela assume a configuração de um

território étnico e coletivo, na medida em que sua construção é forjada por diferentes categorias

de seus agentes em processo. Tais categorias são chamadas a afirmar identidades e

pertencimentos quanto ao território em seu fazer comunitário e tradicional.

Para afirmar o caráter processual e controverso desse espaço social (comunidade) levando

em conta a concepção dos quilombolas, alguns significados ressoam:

a) a interconexão natureza-cultura70, pois de acordo com palavras dos quilombolas, a terra é

a mesma, é da terra firme para varja. Há, sem dúvida, efetivos momentos do fazer-saber

70 Uso o termo natureza-cultura tomando-o na sua indistinção, como sugerido por Chauí (2013), em palestra

evocando o tema “Cultura e transformação social da sociedade brasileira hoje” pelo Fórum do pensamento Crítico

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(cultura) atravessados por um verdadeiro mostruário vegetal, animal e paisagístico. Os açaizais,

os artesanatos, as roças e os retiros, por exemplo, são produções que seguem normas

estabelecidas pelas famílias71, entre vizinhos e pelo grupo e, são reproduzidas nesse

entrelaçamento;

b) o ser um lugar território material e simbólico, pois se trata de um patrimônio coletivo e

atuam nele, com base em regras de uso comum e comunitárias, numa relação com os saberes

próprios de quem vive na região amazônica;

c) o disseminar complexos de saberes e tradições ainda em vigor por laços de afeto e formas

integradas, embora não elimine conflitos;

d) o engendrar em seu processo social o resistir, afirmando-se, inclusive, como coletivo, pois

no dizer de um diretor, quando eu penso coletivamente, eu posso ir mais longe (grifos meus).

Ao buscar compreender tais territórios e comunidades sob essa perspectiva, posso

asseverar que, de certo modo, “inventa-se a comunidade, inventa-se o quilombo e surge, daí, a

comunidade quilombola” como grupos sociais “sujeitos de direitos”, na medida em que seus

integrantes assumem essa identidade que lhes é, num certo sentido, oferecida, mas ao mesmo

tempo construída por eles, porque é também política (MAUÉS, 2010, p.18).

Apoiada neste contexto, compreendo que a comunidade é a expressão de suas práticas

socioculturais, ambientais, relacionais, estando fronteiriçamente espraiada em um fazer-saber

marcado por uma territorialidade e uma temporalidade regidas pelas águas. Ou tal como

expressou o quilombola Lucindo Rodrigues com a poesia, recitada em evento da escola, em

junho de 2016:

[...]

Gosto da vida na roça, lugar bom pra se viver. Vejo o dia amanhecer, o sol saindo da terra

escondido atrás da serra, aparece bem grandão, eu não sei porque razão eu vejo uma fumaça,

eu acho que ele embaça pra não me dá calorão [...].

Quem mora na minha rua também falou para mim, a nossa história é assim, igualzinho a essa

tua.

Lá no campo é tão bonito o encontro com a natureza e, rodeando a mesa, eu como uma paçoca

ou café com tapioca.

Minha vó levanta cedo quero aprender o segredo de tanta energia. Faz tudo com alegria, ela

é forte como um penedo.

Para ir pra minha cidade levanto de madrugadinha, apanho o barco da linha levo urucum,

levo ingá, miriti, maracujá, limão, banana, uxi, tucumã, levo açaí. Ela é bonita e completa, é

a cidade das bicicletas, é a capital mundial do miriti (Lucindo Rodrigues, morador do rio)72

.

(Fundação Pedro Calmon e UFBA), Bahia, 2013. Disponível em http://www.agendartecultura.com.br. Acesso em

22 set. 2016. 71 Como relata Woortmann (2001) “O caráter familiar da produção tem sido visto como a pedra de toque para a

compreensão do campesinato seja na antropologia, na sociologia ou na economia” (p.2). Sobre o assunto ver

também Brandão (1995), Martins (1975) e Castro (1999). 72 Ele é um dos poetas da comunidade, residente do famoso Parque Encantado. O local, no dizer dos quilombolas

foi um espaço de encantamento antigamente, devido a episódios de visagens e de barulhos estranhos na cabeceira

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É nesse lugar território, espaço de relações sociais, antagonismos e resistências, que se

constrói a comunidade quilombola da beira do rio, com base em estratégias e formas de

reprodução da vida a que resistem, intencionalmente, construindo uma territorialidade

específica, subsumida nos termos varja e terra firme – como parte simbolicamente explicativa

do que seja o existir ali.

do igarapé que ficava atrás da casa. O espaço possui um grande barracão, que funcionou como espaço de atividades

artísticas e musicais até meados do ano 2000, por isso os quilombolas lembram do espaço como o lugar das

apresentações culturais.

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CAPÍTULO II

O RIO, ELE É FUNDAMENTAL

O COTIDIANO DA COMUNIDADE DO RIO BAIXO ITACURUÇÁ

Minha Identidade (Lucindo Rodrigues, incompleta).

Sou negro sou quilombola,

Carrego sempre a viola

Não me canso de dançar,

Danço samba, danço roda

E nunca saio da moda,

Não fico a desejar.

Cabelo duro pele escura,

Porém nobre criatura

De um amargo passado,

Das cinzas se levantando

Aos poucos engatinhando

Porém ainda discriminado.

Hoje sendo criatura

Desenvolvo a cultura

Que trago na minha alma.

Com o meu tambor me arranjo,

Minha viola, meu banjo

E a turma batendo palma.

É carimbo é simbolada

Até alta madrugada

Tem quadrilha e boi-bumbá.

Não esqueço a feijoada

A maniçoba a coalhada E o gostoso tacacá.

Querem ver como é gostoso

Cair nessa brincadeira

E passar a noite inteira

Ouvindo coisas bonitas

Desde a viola de fita até o samba quadrado?

Lá ninguém fica parado, vem comigo,

Vamos lá! No Baixo Itacuruçá

No sítio Parque Encantado.

Foto 04 – Rio Alto Itacururá

Fonte: POJO, E.C., Set. 2015.

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Neste capítulo busco descrever o contexto do rio Baixo Itacuruçá73, como área

quilombola, a partir das seguintes dimensões: a geografia do lugar, os condicionantes sociais e

de organização comunitária e, ainda, os processos de identificação dos sujeitos. O foco é

registrar e problematizar as tessituras do cotidiano no que tange ao “ser quilombola”, umas das

questões centrais da presente tese. Para tanto, procuro compreender o como as pessoas se

reconhecem através de seus processos identitários. Trabalho com base em aspectos teóricos e,

substancialmente, com base também nos aprendizados nativos em situações concretas.

Era agosto de 2015, eu estava em mais uma vivência de pesquisa na comunidade. Naquele

dia, no intervalo do almoço na Escola Santo André, escrevi em meu diário de campo o seguinte

registro:

Dia 08 de agosto de 2015.

Cheguei cedo, por volta de 5:30 da manhã na beira de Abaetetuba. Vi muitas pessoas

no trapiche conversando, tomando café, transportando produtos. A beira fervilhava

em sua prática diária: rabetas, rabudos e barcos grandes chegando com produtos e

seus donos, moradores de ilhas e de municípios vizinhos; feirantes e trabalhadores

envolvidos com o ouro do momento, como dizem, o açaí; carros e caminhões vindo

de outros lugares (Castanhal, Ananindeua, Belém).

Eu seguia em mais uma travessia! De logo, avistei a famosa ilha da Pacoca, com sua

magia e encanto, pois no atravessar vê-se uma paisagem por si poética, pelo designer

dos rios, casas, olarias, embarcações e árvores. Já, na entrada do rio Itacuruçá, percebi

sob o sol raiando mães e filhos atravessando até as escolas próximas; marreteiros de

açaí indo pra cima do médio e alto do rio atrás das rasas74 de açaí. Espiei, também,

pessoas pescando camarão, assim como outras situações: olarias em pleno

funcionamento; batelões com seus respectivos donos indo retirar o barro; vizinhos

sentados na cabeça da ponte a conversar e a apreciar o movimento cotidiano. Depois

de uma hora, aportamos no trapiche da escola. Ali, alguns alunos estavam embarcados

e outros na ponte aguardavam a confirmação se, naquele dia, teriam aula. Em caso

negativo, de lá mesmo, voltam nas embarcações do transporte escolar.

E, percebendo o cotidiano do lugar eu tentava gapuiar as histórias que eles contam,

ouvir o que queriam dizer; conversar pelo simples prazer de sentir as pessoas no que

fazem, no que gostam, no que acreditam. Hoje minha atividade ficou dirigida para o

acompanhamento da fazição da farinha no retiro do seu Domício75 (Diário de campo,

agosto de 2015).

O trecho acima, ao tratar do atravessar da beira até a comunidade ao longo do cotidiano

da vida destes sujeitos, passou a ser um registro também da minha vida, por um período razoável

de tentativas de apreender a complexa rede de significados do viver ali. Concomitantemente, o

apreciar a paisagem durante cada travessia tornou-se um exercício do meu espiar. Heller (2014)

explica que a condução da vida se faz no cotidiano banal, fugaz e de acordo com as

73 Às proximidades do lugar, ficam os rios Quianduba, Capim, Guajará, Campompema, Piquiana, Assacú; Alto,

Baixo e Médio Itacuruça, Genipaúba, Arapapú e Arapapuzinho, Tauerá-açú. Também existem os igarapés

Tauerázinho, Aricuru, Patauá, Batista, assim como os furos: Panacuerazinho, Tucumanduba, Gaita, Grande, Gentil

e Limão. 74 Rasa é um utensílio para armazenar o açaí, e serve também como uma medida local - o equivalente a 14 kg. 75 Esclareço que é comum conhecerem as pessoas por apelidos e não pelos nomes. O senhor Sebastião Batista

Neri, 65 anos, é conhecido por Domício.

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circunstâncias dadas. Os risos, os silêncios, as conversas, o fazer de todo dia, os espaços

preenchidos, os encontros de pessoas e as trocas festivas são composições e articulações de um

modo de viver e constroem o mundo vivido, coletivo e comunitário através da simples poética

que insiste em dar fluidez à banalidade da vida.

Ainda, segundo a autora (2014, p.33), “[...] o homem nasce já inserido em sua

cotidianidade [...]”76. Partindo desse pressuposto, compreendo que tal adição se faz de forma

singular, em que cada um aprende e ensina através das situações do cotidiano, por meio de atos

e valores presentes no dia a dia. Nesse processo do participar, as interações sociais subjazem

entre rupturas, descontinuidades, aprendizagens, positividades e oposições. Significa dizer que:

A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida

cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela

colocam-se em funcionamento todos os seus sentidos, todas as suas capacidades

intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias,

ideologias [...] (HELLER, 2014, p.30).

Cabe notar então que ao buscar captar a cotidianidade das relações, das ações e das

expressões, minha presença não passou desapercebida. Ao contrário, desde logo as pessoas

ficaram sabendo da minha inserção no lugar, e conforme fui sendo familiarizada com os

moradores, eles me diziam: Você que é a mulher que está estudando as coisas do lugar? Se

precisar, estamos aqui. Por essas falas e outras tantas dei-me conta da responsabilidade em

realizar este trabalho, com zelo relacional e científico; por isso mesmo, desde a minha primeira

incursão em campo, tomei como desafio o aprendizado de uma boa convivência com as famílias

que me recebiam. Coloquei-me no aprendizado que o campo e a prática etnográfica

representam, quando volto-me para a história dos sujeitos rememorando, inclusive, a minha

própria história de mulher negra e da Amazônia.

Para o objetivo desta análise serão enfatizados os dados etnográficos na perspectiva do

habitar que constitui o lugar. Um ato social que entrelaça relações entre humanos e não-

humanos, e que comporta cenários, formas, usos, sons e até cheiros como partes de um ambiente

específico. Trazendo os interlocutores da pesquisa, os aspectos sociais, culturais e da natureza

estão integrados (SANTOS, 1997).

76 A autora assume sua teoria a partir da revisão de alguns pressupostos da tradição marxista. Por isso, emprega o

termo “vida cotidiana” com referência às formas que a vida assume em sociedades anteriores e de estrutura diversa

da sociedade burguesa (HELLER, 2014). A vida cotidiana auxilia o indivíduo e, consequentemente, a sociedade

por meio das diversas formas e contrastes de reprodução do viver. Por exemplo, os diversos nomes dados às

atividades de trabalho tais como: oleiro, roceiro, apanhador e disbulhadeira; os brinquedos criados por adultos e

pelas próprias crianças, como um aro de bicicleta pendurado em uma árvore à beira do rio é balanço e, ainda os

catitus construídos pelos produtores da farinha, evidenciando que a vida humana está em constante transformação.

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2.1 – A geografia do lugar

O Itacuruçá é um rio comprido, que forma um conjunto paisagístico com áreas de terra

firme, de várzea, de matas e, também, com faixas de areia. Partindo de Abaetetuba (da beira),

leva-se em torno de 30 a 60 minutos para chegar até a comunidade, em um percurso entre

águas77. Também, é possível chegar à comunidade e dela sair pela rodovia PA 151, na altura

do Km 16, antes de se chegar ao município de Igarapé Miri, percorrendo o ramal Itacuruçá ou

Santa Rosa. Aprender os percursos até a localidade foi uma necessidade para compreensão

daquele espaço e sua área. Algo que foi desenhado por quilombolas e por mim durante um

encontro pedagógico78.

Figura 02 – Croqui do percurso da beira até ao rio

Fonte: Pesquisa de campo, 2015 / Arte: Marinaldo Araújo.

Uma das distinções da área quilombola é o que chamam de beira do rio e de terra firme,

uma vez que o rio e a mata são espaços referenciais para esse grupo camponês. Tais espaços

compõem os cenários sociais de onde eles veem e vivem o mundo. De acordo com Oliveira e

Neto (2004, p.35) o rio é o “articulador fundamental e imprescindível para a organização e a

qualidade de vida e de trabalho nessas comunidades”. As pessoas lidam não somente com ele,

mas igualmente com os furos e os igarapés.

77 A variação é devido à maré e ao tipo de embarcação. Na comunidade existem pelo menos sete embarcações ou

barcos de linha (freteiros) que realizam viagens até a beira, saindo do rio das 4h até 6h e retornando às 11h da

beira, no valor de R$ 5,00. 78 Realizei o estudo sobre Projeto Político Pedagógico, a pedido da direção da escola, e nessa ação produzimos o

mapeamento do lugar com mapas e outros croquis. Realizar atividade dessa natureza foi constante no período da

pesquisa e se configurou em uma forma de colaborar com a comunidade.

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Machado (2005), no livro “Glossário abaeteense: palavras e expressões do linguajar

regional”, faz menção aos termos: furo como “pequeno canal estreito de um rio que contorna

uma ilha e, adiante, reencontra-se com o mesmo rio”; e Igarapé: “Pequeno rio. É palavra tupi

que, literalmente, significa ‘caminho de canoa’” (MACHADO, 2005, pp.17-18).

Relembrando as travessias realizadas, lembro que o rio é também um cenário de

interações positivas entre os moradores, a partir do que lhes é comum, daí situar o termo beira

do rio. Através dele é possível perceber uma vida cotidiana acontecendo: crianças escovando

os dentes e mães lavando roupas na cabeça das pontes; embarcações fazendo a travessia até a

cidade; pessoas à beira da ponte acompanhando o movimento das embarcações. Ao entardecer

nos trapiches, as pessoas põem-se a iscar79 o matapi para a pesca do camarão. O rio se manifesta

então como uma espécie de linguagem da vida amazônica.

Na Amazônia os rios margeiam temporalidades. É costumeiro ouvir das pessoas do lugar:

a gente foi criado n’água, por configurar-se a própria água da natureza como um sinalizador da

vida. São tão fortes os rios e suas águas na vida da comunidade que é pelo nome deles que a

escola e a comunidade quase sempre são identificadas, ou seja, é quase sempre por um rio que

uma comunidade se orienta, se identifica, se conhece e se reconhece. Seu Dilo afirmava que

para uma pessoa viver às margens é preciso aprender todas as manobras dele: as pedras, as

marés, a remar. O morador traz belamente um conhecimento local, talvez indecifrável para

quem não interagiu com esse contexto, que diz acerca desse ser criado n’água, que trata de um

mapa do lugar na cabeça e, que diz muito como é fazer comunidade e da construção social pelas

pessoas pautada no dia a dia das pessoas.

No entanto, o rio se alterou significativamente nas últimas décadas, ocasionado com isso

alguns desajustes. À guisa de exemplo, as corridas de embarcações velozes praticadas por

jovens terminam em confusão durante os fins de semana. Mais grave acontece com as pessoas

de fora que chegam para pescar, o que acaba por também gerar conflitos.

Depois de duas semanas consecutivas, observei o mover-se das pessoas e das

embarcações, consubstanciando uma dinâmica social que, dependendo do período, entre verão

ou inverno80, altera a sua rotina, como demonstra a tabela a seguir.

79 É o preparo do matapi para a pesca do camarão. 80 Certamente que as denominações das estações climáticas são produzidas socialmente, por isso indicar verão e

inverno amazônicos em suas peculiaridades. Os quilombolas vivenciam uma mobilidade territorial de acordo com

as duas épocas: chuvas intensas e o período de verão.

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Tabela 07 – Situações em que ocorre a movimentação do rio

Horários Usos Recorrência

A - Entre três e seis horas (manhã) Freteiros transportam pessoas até o porto da cidade

(beira).

Diariamente

B - Entre cinco e oito horas

(manhã)

Moradores deslocam-se para os locais de trabalho. Diariamente

C - Entre seis e sete horas (manhã) Rabeteiros do transporte escolar ou moradores em suas

embarcações conduzem os estudantes para a escola.

Diariamente

D - Entre oito e dez horas (manhã) Moradores deslocam-se para casas (de vizinhos) para

apanhar água potável.

Diariamente

E - Dia todo (manhã e tarde) Dependendo da maré, os moradores pescam com redes

de malha (rede – rio), com linha (pesca no rio – fundo),

de caniço (pesca própria do igarapé – seco), com matapi,

o camarão.

Diariamente

F - Dia todo (manhã e tarde) Moradores banham-se e crianças brincam. Diariamente

G - Dia todo (manhã e tarde) Moradores, em embarcações próprias, vão até o porto da

cidade (beira).

Eventualmente

H - Dia todo (manhã, tarde e noite) Trabalhadores vão para o barreiro, dependendo da maré. Diariamente

Fonte: Pesquisa de Campo, 2015.

Essa rotina me fez pensar que o rio e as suas imediações (furos e igarapés) posicionam-

se como um território e fronteira, devido a sua expressão cultural, por constituir-se ele em um

espaço dinâmico e de interatividade. Um espaço ao mesmo tempo naturalmente fluido e

socialmente denso em que se processam ricas experiências étnicas, de classe, de valores, de

vizinhança, dos ciclos diversificados de produção e de relações. Parafraseando Martins (2014),

o rio e a terra movem conflitos e alteridades.

De forma simbólica, imagine-se no rio Itacuruçá. Na margem direita, observe as

representações delineadas por diferentes habitantes em experiências do viver entre os tempos.

Eles, em sua maioria eles justificam tais representações acionadas pela ideia do ontem e hoje,

como sendo resultado de suas memórias, como sintetizadas abaixo.

Tabela 08 – O viver no entorno do rio Ontem81 Hoje

Único acesso

Transporte somente de canoa a remo

Tranquilo, sossegado e útil. Pouca gente

Rio largo e com a mata a vista

Trabalho intenso na lavoura

Rio produtor

Acesso pelo ramal e pelos caminhos

Uso de embarcações motorizadas

Circula muita gente e com vários interesses

Estreito e com o ambiente alterado

Um lugar especial, mas vive-se assustado

Rio Consumidor

Fonte: Pesquisa de campo, 2016. Inspirado pela síntese de SOUZA, A. F. (2012, p.67).

81 A distinção ontem e hoje é bastante utilizada pelos moradores, normalmente, para se referirem as mudanças

ocorridas no lugar, embora haja diversas maneiras de lidar com o tempo conforme descrevo mais adiante.

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O ontem e o hoje do viver no entorno do rio Baixo Itacuruçá, a partir das informações dos

moradores, sugerem algumas reflexões. Houve modificações devido à exploração das matas e

da própria terra, alterando a ordem das relações entre as pessoas e a natureza. Mesmo quando

as pessoas assumem o rio como símbolo, pertença e usufruto, elas retratam, quase sempre um

passado em que foi bom se viver ali, oposto a um viver agora regido pela insegurança. O rio e

os seus habitantes são imaginados como participando de tudo, sendo sempre considerados como

produtores e, hoje, percebidos como consumidores das coisas que são vendidas nas suas

margens.

Do mesmo modo, após algumas travessias, com a ajuda do rabeteiro e de um funcionário

da escola elaboramos um mapa da parte do Baixo Itacuruçá, como mais uma forma de

representá-lo dentre tantas outras.

Figura 03 – Croqui da área que circunscreve o rio

Fonte: Pesquisa de campo, 2015 / Arte: Marinaldo Araújo.

As diversas formas de significar o lugar território aproximam-se daquela que realiza

Almeida, A. (2008) em suas pesquisas na Amazônia, a partir da cartografia social, tal como

sumariamente tratei na Introdução, destacando, inclusive, a maneira de construir alguns mapas

e croquis junto e com os sujeitos.

Do outro lado, na margem esquerda estende-se a outra face de fronteira do rio, e ali ele

apresenta oposições ainda tão arraigadas e vigentes, tais como as que se referem à cidade-

campo, à tradição-modernidade, ao conhecimento-saber principalmente quando se trata de uma

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comunidade tradicional. Sobre este aspecto, ressoa por toda parte entre os moradores a imagem

de que ali tudo está mudado e tudo chega. Afirmava um deles: aqui você não tá mais no sítio,

aqui se tá dentro de uma cidade. Tudo que tem na cidade tem aqui. É um lugazinho bom, da

casinha da gente e se num tivesse esses homens que gosta de mexer as coisas dos outros82.

Utilizo-me do depoimento para dizer que o fluxo da reprodução social é ditado por processos

inacabados, abertos e possíveis de alterações, contrariando as oposições mencionadas

(Raimundo Dilo de Couto, 87 anos - in memoriam).

As duas margens aqui simbolizadas desenham relações sociais vivenciadas a partir do

espaço-tempo das águas.

Os rios, os furos e os igarapés, que delimitam e contornam a área da comunidade,

possuem diferenças e usos também diferenciados, pois de certa forma existe uma hierarquia

entre eles. O rio é entre todas a maior referência, fazendo com que haja um movimento contínuo

de embarcações e de pessoas, assim como a circulação de informações. Exemplificando com o

rio Itacuruçá, a parte do Baixo é a mais larga e é por onde se dá o acesso principal, mas a sua

nascente está no Alto do rio. Na parte do Baixo, as marés permanecem por mais tempo o que

permite o trânsito em toda a sua extensão, sendo que a exceção da Ilhinha. Já os furos e os

igarapés são mais restritos em seus usos, devido ao fluxo das águas e, ainda, por possuírem um

quantitativo pequeno de pessoas que moram cerca deles.

Essa formação hidrográfica remete ao que encontramos nos estudos de Rezende (2016),

referenciada em Cunha (1998) e Postigo (2010), através de pesquisas que ocorreram nos rios

do Acre. Admitem os autores um entrelaçamento histórico em que a hidrografia e a hierarquia

guardam uma relação íntima e estão relacionadas ao poder quanto à dimensão dos usos e das

estratégias sociais de sobrevivência. Trago aqui uma tese de doutorado em Antropologia Social,

intitulada “Camponeses da bacia do rio Tejo: economia, política e afeto na Amazônia”, cujo

estudo enfatiza o processo de uma economia peculiar em comunidade amazônica, precisamente

na Reserva Extrativista do Alto Juruá – Acre. Ao longo do trabalho, o autor esmiúça as relações

de troca praticadas pelas pessoas da comunidade em um contexto campesino específico

(REZENDE, 2016).

Ocorre que o rio em toda a sua extensão, abarca muitos ambientes e foram os próprios

quilombolas que dividiram as áreas para eles se localizarem, conforme discrimino abaixo:

82 Também fiz associação com os postulados de Cunha (2009) tratando de oposições e conhecimentos, cuja

discussão ocorreu na conferência “Relações e Dissensões de Saberes Tradicionais e Saberes Científicos”, na 59ª

Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em Belém, no ano de 2007.

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Baixo: corresponde a porção do curso do rio com residências, olarias, o centro

comunitário e a capela da igreja católica, o ramal Santo André, entre outros. Faz limite com os

rios Arapapu, Arapapuzinho e Ipanema; com os furos do Gaita, São Pedro, Filhote, Filhotinho,

Sacaizal, Andreza e Cuteua; com os igarapés: Aricuru, Patauá e Porão. O final da área é

delimitado pela ilhinha e a igreja evangélica. A área do Baixo também faz limite territorial com

o sítio Oiapoque (Arapapauzinho) e com o campo da natureza (área de preservação). Na entrada

do rio é que se coloca, segundo os próprios moradores das redondezas, a dificuldade em definir

uma parte da área: se ela é ribeirinha ou se é quilombola. O esboço da área, traçado com alguns

quilombolas, é ilustrativo da situação.

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Desenho 02 – Esboço de parte do rio

Fonte: Pesquisa de campo, 2016.

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Segundo Castro (1997), o termo ‘ribeirinho’ na Amazônia serve para designar povos

tradicionais que habitam às margens dos rios e que sobrevivem através de articulações com os

recursos da terra e da mata, e com os cursos d’água. Os “[...] denominados ribeirinhos, na

Amazônia, possuem uma referência, na linguagem, as imagens de mata, rios, igarapés e lagos,

definindo lugares e tempos de suas vidas na relação com as concepções que construíram sobre

a natureza. Os sistemas classificatórios dessas populações fazem prova do patrimônio cultural

[...]” (CASTRO, 1997, pp.226-227). Especialmente, próximo à comunidade pesquisada há

ribeirinhos nesta condição social especificada, tal como uma parte dos moradores do rio

Ipanema, conforme ilustra o desenho acima. Outro exemplo é o senhor João Carvalho Pinheiro,

morador do furo do Gaita, que se identifica ribeirinho e jamais quilombola, como retrucava

cada vez que eu tocava no assunto, e cuja experiência de marreteiro trato no capítulo III.

Médio: curso do rio com casas nas margens direita e esquerda, e olarias de ambos os

lados. Os quilombolas delimitam como marco inicial a casa do seu Pinto, próxima ao igarapé

São João e o limite fim na casa do Preto. Lá se encontram a Escola Raimundo Bandeira, a igreja

católica e o ramal São João, desde onde saem ônibus diariamente até a cidade. O nome da

comunidade é o mesmo do igarapé (São João) e a santa padroeira é Nossa Senhora do Pau

Podre.

Alto: inicia no meio do São João e termina no fim do rio, na cabeceira. Há o ramal da

Brasília e lá se concentram: a produção mais intensa da farinha e das roças; a produção de

montarias e outras embarcações, além da produção de carvão e de lenha. Nomeiam-na de

comunidade Nazaré, como o nome da santa padroeira. Esta parte é apontada pelos quilombolas

como o lugar primário de refúgio dos negros.

As diversas famílias que habitam em toda extensão do rio, assim como as comunidades

próximas, tanto as da área de terra firme quanto as de várzea, sejam ribeirinhos ou quilombolas

convivem na interdependência com os recursos naturais, visto que potencializam através deles

os seus serviços e produtos.

Ao apurar as informações coletadas em campo, ficou nítida a diversificação das

atividades, ao lado de um complexo intercâmbio de relações sociais e comerciais entre as

comunidades próximas. Como um exemplo, a comunidade do Arapapuzinho possui

comunicação por terra através dos caminhos e dos ramais. Inclusive, o acesso pela terra tem

aumentado gradativamente nas comunidades quilombolas e ribeirinhas. As relações se dão

através do parentesco, religião, da convivência entre vizinhos, de parcerias de trabalho, e

também através de transações comerciais simples por meio de produtos como a farinha e o açaí.

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Também, realizam-se por meio das lutas e confrontos na escola e em outras organizações

sociais.

A denominação terra firme, tal como empregada pelos mais antigos moradores, assume

vários sentidos. Na terra firme discriminam os diversos caminhos e os retiros; de centro para a

área das roças; e de mata a dentro discrimina-se a área da floresta, onde concentram-se algumas

espécies da fauna e da flora. Na terra firme ficam os locais distantes da beira do rio ou o lá em

terra, como por exemplo, o campo de futebol, o ramal ou a escola. Além de especificar os

espaços do agir cotidiano, ela envolve o lugar afastado que exige cuidado redobrado, pois

segundo eles existem situações e ‘pessoas estranhas’, vindas de fora. Repetidas vezes fui

alertada sobre o cuidado que devia ter ao sair para o trabalho de campo em terra firme; e por

isso, sempre estive acompanhada por pessoas da comunidade.

O ‘povo do campo’ costuma dizer: nesse lugar criei meus filhos e tiro meu sustento;

nessa terra tudo dá. Esses são fragmentos de falas repetidas pelos quilombolas e estão imbuídos

de valoração e não apenas referente à sua utilidade. Esse povo vive entre práticas do comer, do

comunicar, do trabalhar, do emprestar/emprestar-se na precisão e aquele é também um canal e

transmissor de saberes. As pessoas não consideram somente o aspecto físico pois, ao contrário,

ali está a terra, o espaço das muitas práticas sociais do viver. Como diz Gusmão (1991, p.31):

A terra é um patrimônio comum das comunidades que a tomam como tal em razão de

fatores étnicos, da lógica endogâmica, casamento preferencial, regras de sucessão, e

outras disposições. A condição de posse comunal e indivisa é o ponto central para sua

compreensão. Investida pela história própria, torna-se um território e sobre ele, os

grupos negros constroem sua territorialidade.

Ou seja, a terra manifesta-se como campo fértil do processo identitário daquele grupo

quilombola.

Pela mata processam-se fazeres do tipo: retirar a lenha para produção de carvão; caçar;

apanhar o açaí dos açaizeiros sem dono; caminhar entre a vizinhança e as localidades

próximas, retirar as poucas madeiras existentes.

A varja é a área representada por diferentes espaços, como a cabeça ou cabeceira da

ponte, a boca do rio, a beira do rio, o trapiche, além de abarcar os furos e os igarapés, por

exemplo, quando dizem: lá na cabeceira, estão se referindo à parte do Alto Itacuruçá, ou, ainda,

quando dizem: deixa eu ir na beira, comprar comida, referem-se à cabeça da ponte da casa ou

o trapiche da escola.

Na cabeça das pontes, nos trapiches, nos caminhos, nos rios, nos retiros, nas roças e nos

quintais, as pessoas não só compartilham o espaço físico, como também interagem mutuamente.

Nesses espaços partilhados por grupos familiares, os adultos, os jovens e as crianças, por meio

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das atividades rotineiras ou de algum entretenimento, utilizam seus espaços ou circulam entre

eles. Pelas pontes caminham de uma casa para outra; de um local para o outro, vivenciando as

trocas, os pedidos, os empréstimos e as informações.

Em síntese, vivenciam formas de dar, de receber e de retribuir, de serem solidários uns

com os outros (MAUSS, 2013). Outros lugares como as igrejas, as olarias, as tabernas, o

barracão e o ramal Santo André promovem outras interações. Estar na beirada83, em um

caminho, no campinho ou em uma vila de casas, também pode significar estar no Itacuruçá

Baixo.

2.2 – Imbricações com a natureza

Habitar no rio Itacuruçá, transitar pelas águas e ramais, caminhar em terra firme, morar

em uma cidade ribeirinha são situações que revelam uma diferenciada experiência com um

espaço da natureza transformado em um lugar social. E isto se torna mais real se compararmos

este lugar com o lugar da maioria das cidades e das comunidades do Brasil. Refletir sobre o que

tais experiências representam significa perceber as imbricações pelas quais as pessoas

manifestam intimidade e valoração com ele e, simultaneamente, mapear as interações sociais

estabelecidas com a natureza. Para entender o estar no território, um dos caminhos é buscar

compreender a interatividade entre as pessoas e as formas através das quais fazem usos

cotidianos dos recursos da natureza.

Os quilombolas da beira do rio e demais comunidades ribeirinhas da cidade possuem

particularidades em termos de manejo, de ecologia, da circulação de embarcações, da feitura e

uso dos cultivares que se estendem ao longo de toda a área das ilhas habitadas, por meio das

maneiras como cotidiana e historicamente elas se situam no lugar que habitam. Através de seus

marcadores socioculturais de um território de natureza é que elas vivenciam as suas múltiplas

práticas sociais.

Em uma visão geral, os recursos da varja, da mata e do rio são impregnados do

imaginário e dos sentidos atribuídos pelo grupo quilombola. A conversa sobre o uso do remédio

com o sarará peua é ilustrativa no trecho a seguir:

83 O termo delimita o final das pontes das casas ou o lá naquela beirada, referindo-se para um conjunto de casas

que ficam às margens do rio ou do furo. Por exemplo, a beirada em frente ao trapiche da escola possui um conjunto

de casas de parentes interligadas por pontes feita com tábuas e paus dos açaizeiros ou de miritizeiros, constituindo

uma vila. É o caso da família da senhora Helena Brandão Pinheiro, mais os irmãos Rosalina, Maria, Aladi,

Antonica e Agostinho, e os sobrinhos Zé Maria, Rosinete, José Mauro e Nilda (Pesquisa de campo, 2016).

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I84: O sarará peua é muito bom pra nervosismo, é bom pra aperto, pessoa que tá com

asma, faz o caldo paresque bebe e ele é também calmante. Quando foi na entrevista

da aposentadoria dela, era em Belém e ela tava muito nervosa, mas não tinha passado

aqui. Só sei que o Seu Brasi também conhecia essa cultura e disse: Pera aí que eu vou

fazer um caldo de sarará peua, vou acabar com esse teu nervosismo. Rapaz foi pru

rego do garapé e catu catu sarará peua e haja sarará pra encher uma panela. Catu, fez

o caldo e disse, agora bebe.

E: É sarará peua?

I: É. Tem um sarará grande e branco que é da praia e tem o sarará peua que a

gente encontra ele assim embaixo de pau. I: E o agricultor usa para matar os bichos.

I: Agrotóxico. Os agricultores diziam que quando eles iam prantar cana tinha o sarará

peua que prejudicava, não podia prantar cana antes do mês de maio e junho porque

era quando dava muito sarará peua, segundo a coisa deles.

I: Eles sobem na terra. Sobem na terra porque a maré parece que fica quente e eles

sobem prum lugar mais frio. Porque o sarará peua ele só vive mesmo nessa área.

I: Esse sarará peua na cana ele subia e comia o grelo.

E: Ia atrás de se alimentar?

I: Era, e o alimento dele prejudicava a plantação do pessoal. E o que ele fazia com o

sarará peua e também a saúba? Onde a saúba tava dando eles prantavam o gergelim,

pois a saúba gosta de folha.

I: Aí ela pegava e levava a folha do gergelim, ela nem comia mas levava pra dentro e

acho que ela soltava alguma coisa, sabe? E matava a saúva dentro do ninho tudinho,

assim que eles falavam.

M: O gergelim é muito venenoso.

I: É venenoso.

E: Ou seja, eles arrumavam um jeito na própria natureza.

I: Arrumavam um jeito sem usar agrotóxico, nadinha. Aí também tinha o sarará peua.

Só sei que ela se atolou no calmante pra ir para Belém e disse assim: Olha eu fui

chegar pra Belém, leve assim, avoando (Pesquisa de campo, 2015).

Esse diálogo foi obtido quando eu percorria os retiros, acompanhando a fazição de farinha

realizada pela família de dona Morena, juntamente com suas filhas e com seus netos. Naquele

momento conversavam, entre tantas coisas, sobre o saber que circulava durante o trabalho na

lavoura entre os agricultores antigos. A narrativa mostra como as pessoas se relacionam com a

natureza e com aspectos culturais. No caso especificado, é valorizada a crença no uso das

plantas e dos bichos como remédios para possíveis enfermidades, assim como para a própria

agricultura, no cuidado do solo.

Ainda, sobre o aspecto cultural, o próximo excerto, narrado por uma professora do rio

Arapapuzinho, retrata considerações sobre visagens e assombrações que permanecem fortes na

memória dos moradores.

[...] eu pedi pra tomar banho e ela disse [avó]: olha, após as seis horas ninguém desce

pro rio. Então, sabe o que é menina levada, a gente fugiu dela e foi pro rio, perto de

casa. Lá tem aquela tronqueira e a gente pulou no rio, minha gente quando antes de

chegar começou [a professora imita algo estranho] todo mundo ficou atento! E, nesse

atentar, eu vi ali aquela mulher belíssima, com os cabelão, assim, toda cheia de brilho.

Aquilo me assustou muito, fiquei desesperada, só que não passei mal, mas assim,

quando eu fui querer focar nela, fixar o olhar, cadê? Entendeu? Então, tem muitas

84 As letras são iniciais dos nomes dos participantes da conversa e o E para se referir a mim. Utilizo-me dessa

forma para os demais diálogos.

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pessoas que diz assim: ah, isso é mito, é lenda, não sei o quê, mas pra quem já passou

por algumas situações com a Iara – que minha avó me disse depois, me brigou, falou

era a Iara, Boto. Então, como quilombola que sou não duvido, não duvido dessas

coisas. [...]. Nessas estradas aqui, nessas encruzilhadas a gente já passou poucas e

boas, cansou de ver e não vinha só um, vinham de dois, três; todos vestidos de branco,

às vezes, ele não dava a frente, eles ficavam de costa pra gente. Então, a pessoa sentia

medo, dor de cabeça, mal estar e eram situações muito complicada. A minha avó dizia

que era o boto, que ele subia, se virava em gente, vinha e assombrava. Então algumas

pessoas já passaram por essas situações na comunidade, inclusive, tem um menino

aqui mais em baixo, nessas estradas pra cá, que ele já se perdeu, que a Iara tentou

manipular ele, ele chegou na casa todo sujo de areia: aonde tu tava? Até hoje ele não

sabe dizer o lugar lindo que ele passeou. Entendeu? Então, pra quem nunca passou

por essa situação, diz: é mito! mas pras pessoas que tão aqui no quilombo, que já

passaram por várias situações, a gente sabe que existe essas coisas, pode ser visagem,

pode não ser, mas que pra alguns é assustador, porque já passei várias situações, e não

foi nada legal (Rosilda Pinheiro, entrevista, 06/2015).

Existe, no cotidiano da vida ribeirinha o tempo reservado ao contar e ao narrar. As pessoas

do lugar param para conversar nos fins de tarde na cabeça da ponte e trocam informações na

ilharga do garapé. Embora a narrativa apresentada seja de uma jovem professora, atualmente

são os mais velhos que contam histórias, e quase todas evidenciam alterações na natureza, assim

como misturam crenças e questionamentos sobre visagens e assombrações. Sob esta ótica,

natureza e simbolismo convergem. Para os moradores, elas diminuíram e até sumiram, porque

a mata está desaparecendo, e com isto existe muito barulho e elas precisam de silêncio, por

isso desapareceram as visagens. A afirmativa se confirma quando os povoadores se veem

impactados com a crescente exploração dos recursos da natureza, tanto por pessoas de fora,

entre madeireiros e “atravessadores”, quanto por quem mora no lugar. Por muitos moradores,

as mudanças no lugar são perceptíveis por meio dos sentidos.

Os dois excertos transcritos acima demonstram que a memória85 sinaliza como o ordinário

da vida é reconstruído, tal como relatada através de sujeitos atados a um simbolismo amazônico,

seja pelas crenças na ilha da Pacoca, na Matinta Pereira, no Boto e na Cobra Grande; seja pelo

convívio com árvores e animais; ou pela constituição do ir e vir à beira; seja, ainda, pela

mudança do convívio comunitário, constituidores da territorialidade local.

Pude perceber ainda que um dos tempos é o tempo da maré, pensado e vivido como modo

de vida em que o social está inteiramente integrado com o meio natural. Assim, os tempos da

natureza estão em relação à produção agrícola ou extrativa, com a vida social, e com as tarefas

cotidianas. No convívio com o ambiente aprendem e se relacionam com ele, isso se manifesta

pelo domínio de conhecimentos sobre os aspectos da fauna e da flora e das épocas do ano em

relação ao uso da terra, por exemplo.

85 A inspiração exposta neste texto é, evidentemente, de Eclea Bosi (1997) em sua concepção de memória que não

é sonho, é trabalho: uma operação realizada no presente que suscita indagações.

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81

Na comunidade, são muitas e diferentes as práticas sociais de produção de bens primários

desenvolvidas por meio do trabalho com a mata/terra/águas – agricultura, pesca, coleta vegetal,

olaria, carpintaria, carvoaria – realizadas em escala camponesa e com o trabalho em geral, em

escala familiar a partir de modelos técnicos tradicionais, que assim se configuram:

a) Formas próprias de percepção e de significação do meio ambiente em geral e, em um sentido

mais social, de territórios ambientais da vida cotidiana como os sistemas culturais, do que

chamaremos aqui de uma lógica da natureza.

b) Orientações de conduta social, sobretudo no contexto de práticas patrimoniais produtivas,

nas relações cultura/natureza ou sociedade/ambiente, como sistemas culturais de uma ética do

ambiente e pela dinâmica terra firme e beira do rio.

c) Padrões culturais de socialização da natureza e de manejo concreto do meio ambiente, em

quatro dimensões do saber fazer/pensar/agir que aqui nos interessam mais de perto, sempre as

interações entre práticas tradicionais camponesas e meio ambiente:

técnicas do saber fazer, como as tecnologias diretas do trabalho produtivo, de que são

exemplos o arar a terra, a prática da gapuia, o arrancar mandioca, a fazição da farinha, a

extração de cipós, folhagens, fibras do miriti e de outras árvores; a apanhação do açaí; o

transporte pelo leito dos rios e igarapés; cujos fazeres estão alicerçados em saberes próprios;

éticas do agir, como os sistemas patrimoniais de preceitos e princípios da ação social

produtiva, tais como os que estabelecem a gramática das relações entre familiares, parentes

e vizinhos camponeses no processo do trabalho cotidiano como, por exemplo, a troca de

serviço;

ideologias do trabalho como os diferentes sistemas legitimadores de

percepções/compreensões de relações sociais da produção (ideologia da prática econômica)

e das relações sociais a elas associadas ou delas derivadas, com foco sobre aqueles que

embasam e legitimam os relacionamentos entre sociedade e meio ambiente;

visões de vida e de mundo, como sistemas mais amplos e integrativos do que ideologias

parciais, e que as integram, de que são bons exemplos as religiões populares ou as outras

manifestações culturais condutoras de sistemas de crenças 86.

Nesse sentido, o estar no território perpassa por um simbolismo cultural peculiarmente

amazônico, e como já afirmei, por uma prática social imbricada à natureza. Vale notar que a

caracterização desse sistema cultural reflete as dimensões acima citadas, contornando outros

detalhamentos:

86 Tais práticas sociais de produção serão aprofundadas nos capítulos III e IV.

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a) há uma relação direta entre o tempo da maré e o agir, ancorado em um saber e experiência

do viver sob o signo das águas. Assim dizia, uma professora do lugar: [...] a nossa festa de

padroeiro é programada de acordo com a maré, porque se a gente fazer numa maré que dá

seca, a gente não vai ter visitante, de outras comunidades, porque, de onde eles vão chegar? É

nítida a imbricação entre a territorialidade do lugar e a temporalidade das águas, já que esse

tempo interfere diretamente nas ações que envolvem o trabalho, o brincar, o locomover-se, as

tarefas domésticas nas quais os quilombolas vivem e agem levando em consideração o

movimento do rio. A enchente, a cheia, a vazante e a seca estabelecem as variações do tempo

da maré. A síntese abaixo aporta algumas atividades que são praticadas sob essa lógica.

Tabela 09 – Principais atividades praticadas conforme o tempo da maré

Atividades/Dinâmica Prática

Carregamento da mandioca pelo rio Na enchente e cheia. Prática: ocasional (ano todo), somente em

casos em armazenamento no fim de semana.

Pegar o açaí no garapé Na cheia. Prática: frequente (ano todo)

Pesca na rede* Na enchente e cheia. Prática: frequente (ano todo), com

diminuição da atividade no período do defeso.

Pesca do camarão No quarto minguante. Maré baixa ou morta. Todo o ano, mas

intensificado de março a junho.

O brincar e o banhar Na enchente e cheia. Prática: frequente (ano todo). Realizam pela

manhã e no fim da tarde

Travessia Na enchente, cheia, seca e vazante. Prática: frequente (ano todo)

Entrada e saída do barreiro87

Na enchente e cheia. Prática: frequente (ano todo). Atuam

prioritariamente na dependência do encher e secar das marés (águas

grandes/lançante), sendo mais intensa no verão.

Comercialização no rio (compra e venda).

Produtos: telhas, tijolos, gêneros alimentícios,

açaí.

Na enchente, cheia, seca e vazante. Prática: frequente (ano todo).

Envolve moradores, marreteiros (atravessadores).

* Identificação de alguns peixes: pescada, ituí, mandubá, sarda, bacú.

** Período de águas grandes, março e abril. Fonte: Pesquisa de campo, 2016.

b) a organização da vida cotidiana se orienta por outra racionalidade, distante do relógio

‘moderno’, isto é, as pessoas exercitam diariamente o relógio da roça, das marés, das chuvas

intensas. Pode-se dizer que o depender do período e época justifica o saber e o cotidiano

entrelaçados, assim como o tempo e a produção. Em uma das incursões ao campo, ao questionar

uma moradora sobre a produção do açaí, ela afirmava: tudo varia muito, pois levam em

consideração se a maré está cheia ou seca, se o dia está com sol ou chuva, se é período de

inverno ou verão, se apareceu um bico88 a ser realizado com algum vizinho. Em suma, o agir e

o produzir assentam-se, no interior de um tempo amazônico, e de acordo com uma lógica

própria. Nesta mesma direção, a senhora Iracema Rodrigues afirmava: a gente sabe que um

hectare de roça a gente planta em um dia só, com três pessoas. Enquanto um plantava, o outro

87 Nome dado ao local onde tiram barro para as olarias. 88 Segundo os moradores, bico é a realização de algum serviço braçal com um parceiro vizinho ou parente.

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roçava, outro cortava maniva, outro furava [interrompeu]. Tais processos configuram-se como

uma espécie de cultura vivida, nos termos de Paixão (2012).

c) as pessoas orientam-se socialmente através de tempos flexíveis e dinâmicos, inclusive

percebendo os tempos do corpo, horário que o corpo precisa de descanso. Nas olarias é comum

os trabalhadores deitarem nas redes no intervalo do almoço. Em muitas situações de campo,

especialmente nas primeiras estadias, alguns deles dedicavam-se a comentar comigo algo sobre

a vida ali, talvez devido à notícia que se propagou de que eu era a mulher que faz estudo da

comunidade e, assim, iam retratando episódios vividos por eles. A título de ilustração, cito dois

exemplos do cansaço corporal devido aos muitos anos de trabalho na lavoura.

[...] de primeiro eu aguentava o dia inteiro na roça. Trabalhava o dia inteiro com minha

mãe. Desde a idade de 13 anos quem disse que estava em casa, tava na roça,

apanhando açaí, mas agora não dou conta de fazer nada, assim mesmo, às vezes, eu

ainda vou aí pro mato fazer lenha, mas devagar [interrompeu] (aposentada e

agricultora).

Às vezes, fico pensando certas coisas. Eu vou fazer sessenta e dois anos, sempre

nessa luta. Só que agora, com pouco tempo daqui, as minhas forças já tá baixando.

Não tinha medo, eu sacava dez, ainda sacava cinco cavalada de mandioca, aprontava

cinco cavalada de mandioca por fornada. Era dez cavalada de mandioca que nós

botava na água, fazia tudinho. Seis e meia pulava pra uma tábua dessa. Montar massa.

Era oito tipitis, jogar no forno maior que esse. E aí a gente tem que fazer né, pra não

ficar muito parado, pelo menos de manhã, tem que pular (Maria da Conceição Maciel,

entrevista, 09/2015, grifos meus).

Trata-se de uma lógica do tempo diferenciada, pautada em valores que os povoadores

ribeirinhos e quilombolas acreditam e que fazem parte de seus sistemas de imaginários. As

atividades do dia a dia levam em consideração a safra dos frutos e o calendário de festas

religiosas. Em caso de morte89 de algum vizinho ou parente, alteram datas e horários das

reuniões e dos eventos comunitários da associação e da escola. Se chove, muda também a hora

de sair para o retiro ou os dias de plantio da mandioca. São situações muito simples, algumas

delas, mas demonstram que bem mais do que moradores de cidades, os quilombolas/ribeirinhos

têm até mesmo as atividades mais cotidianas reguladas em boa medida por fatores estritamente

naturais.

Neste mesmo sentido, mas em uma dimensão mais propriamente social, Antônio Cândido

(1997) analisou formas de solidariedade em áreas rurais, denominadas por ele de “caipiras”,

demonstrando como povoadores de um bairro rural de São Paulo vivenciam as trocas e o

trabalho coletivo. Afirmava então que a religiosidade, as rezas e as festividades eram formas de

89 Presenciei o falecimento de um dos marreteiros de peixe, causado por piratas, que são criminosos que atacam

embarcações nos rios da Amazônia. Por ser um morador da comunidade, a escola decidiu paralisar suas aulas. Parou

as atividades de muitas pessoas nos retiros e roças e, também, as viagens de alguns barcos de linha (Pesquisa de

campo, 2016).

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aproximação entre as pessoas e, com isso, promoviam maneiras de organização e de

convivência no meio em que viviam.

Uma vez mais, há um misto de natureza e de cultura engendrado por elementos presentes

no cotidiano, entrevisto também em algumas relíquias antigas (correntes de ferro, bala de

canhão, lamparina, potes) e demais artefatos culturais. Em tudo está presente um certo domínio

das regras de fabricação e de uso de utensílios primitivos de produção (machado, enxada),

embora faça parte também dos serviços da lavoura o uso de motosserras, assim como grande

parte das embarcações é motorizada. Também, através de práticas como a simbolada e o

cambi90. Considero que tais práticas são parte da cultura, tecendo o existir que consubstancia

uma partilha de vida gerada na teia das relações ali estabelecidas (LATOUR, 1994;

BRANDÃO, 2002; 2005). Assim, segundo Brandão (2002, p.24):

A cultura configura o mapa da própria possibilidade da vida social. Ela não é a

economia e nem o poder em si mesmos, mas o cenário multifacetado e polissêmico

em que uma coisa e a outra são possíveis. Ela consiste tanto de valores e imaginários

que representam o patrimônio espiritual de um povo, quanto das negociações

cotidianas através das quais cada um de nós e todos nós tornamos a vida social

possível e significativa.

Este conjunto de fazeres-saberes sobre a vida camponesa-ribeirinha-quilombola remete

ao que nos ensinou Lévi-Strauss (1976) em suas formulações acerca de uma ciência primeira,

próxima de uma lógica do sensível, porque tomando a lógica dos interlocutores da pesquisa,

vemos que se criam e se recriam inúmeras possibilidades em sintonia com os recursos da

natureza91, ou seja, há uma atitude prospectiva de reinvenção dos conteúdos culturais existentes

no lugar (o matapi com garrafa pet, o maquinário das olarias, o catitu92), consequência não

apenas de razões práticas de gestão da vida, mas também de uma curiosidade que os move e

que os coloca na condição de ‘atravessados’ à natureza, ao mesmo tempo que seus valores do

conviver, suas tradições ricas de simbologias amazônicas convertem-se em processos

educativos no ordinário da vida.

90 São, respectivamente, cantoria e dança existentes na comunidade e vivenciadas pelos moradores antigos do rio

Arapapuzinho, apresentando-se como uma manifestação cultural. 91 Neste aspecto faz sentido o “habitar-brincando” das crianças, em que a natureza é percebida como espaço e

instrumento. Para uma delas: na canoa se brinca de remar. Abordo isto no capítulo V. 92 Espécie de ralador manual que serve para trituração das raízes.

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2.3 – Condicionantes sociais e de organização comunitária

Os quilombolas, ao fazerem referência ao lugar onde moram, usam as seguintes

expressões: no interior, no Itacuruçá, no sítio, no centro, na beira do rio. Mas, há outras

designações usuais de identificação para quem mora em territórios de beira rio: o caboco, das

ilhas, do rio fulano ou cicrano. Dona Helena, moradora do Baixo, assim identifica: Daqui do

Baixo Itacuruçá. Aí sobe, Santo André que acompanha e faz a misturada dos quilombolas.

Também, reconhecem a comunidade por Santa Rosa ou ainda, comunidade do Itacuruçá

Baixo93. Só não dizem: ‘moro no quilombo’ ou algo similar, embora reconheçam habitarem em

área quilombola (Pesquisa de campo, 2016).

Na comunidade, encontra-se o atendimento dos serviços de saúde, por uma equipe do

Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), composta por três agentes. No entanto,

quando as pessoas precisam de algo mais específico, recorrem à cidade. Na educação, dispõe

de uma única escola quilombola. E também, o serviço técnico do Centro de Referência de

Assistência Social (CRAS quilombola).

Sabemos já que o movimento da comunidade é sempre ditado pelas águas. Porém, o uso

de água potável ainda é um problema para muitas famílias: algumas utilizam a água do rio,

outras constroem poços artesianos para uso próprio e para disponibilizar para a vizinhança.

Algumas pessoas fazem também a comercialização com essa água.

Os homens e as mulheres quilombolas trabalham como oleiros, apanhadores de açaí,

lavradores, braçais, marreteiros, barqueiros. De outra parte, uma quantidade razoável de adultos

atua nos pequenos comércios em suas próprias casas, entre tabernas, mercearias ou baiucas,

dedicando-se à venda de produtos alimentícios e combustível. Poucos são os assalariados;

muitos são aposentados e outras tantas famílias possuem vínculo com o Programa Bolsa

Família.

Verifiquei que todas as crianças e os adolescentes frequentam a escola, e quando não

estão neste espaço, permanecem na comunidade sob o cuidado das mães, das avós ou dos

irmãos mais velhos. Além da escola, estes se socializam no brincar em casa, no rio ou no quintal,

e, também, ajudando seus responsáveis no trabalho diário, especialmente na apanhação do açaí.

No âmbito do lazer, para os homens, os jovens e os ditos veteranos, a diversão praticada

quase diariamente é o futebol94. Outro espaço de diversão é a Ilhinha que, com o secar da maré,

93 Santo André é o nome da escola e do padroeiro do lugar. E, como Santa Rosa, identificam o maior campo de

futebol, além de ser o nome do barracão de festa. 94 Inclusive ocorre, anualmente, o campeonato dessa modalidade de esporte, envolvendo pessoas de localidades

dos arredores e é promovido pela Associação Santo André.

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transforma-se em praia e nela as pessoas se divertem praticando lazeres nas águas. São ainda

recorrentes as festas com as grandes aparelhagens elétricas e eletrônicas. A devoção aos santos

católicos é fortemente vivenciada durante o ano todo por meio das festas dos santos padroeiros

das diversas comunidades vizinhas.

Os grupos domésticos são constituídos por um agregado familiar nuclear95. Desses,

alguns são nativos, cujos descendentes vieram de localidades próximas, dos rios Arapapuzinho,

Piquiarana e do furo do Gaita; outros são oriundos da cidade de Abaetetuba. Embora seja forte

o laço entre parentesco e vizinhança, nem sempre as relações são harmoniosas entre eles. A

título de ilustração, os quintais não possuem cercas e, vez por outra, ocorrem desentendimentos

por conta da criação de animais, os quais causam estragos nas plantas das roças e à terra, bem

como pelo roubo dos cultivos: mandioca, milho, açaí e gergelim.

Normalmente, as casas são espaços que comportam muitas pessoas e estruturam-se

conforme a proximidade de parentesco entre pais, filhos e irmãos. Exemplos desta forma de

organização são as casas das irmãs Iracema, Igarina e Idelma, filhas da Senhora Maria Santana

Rodrigues, cujas moradias são próximas, fazendo parte do mesmo terreno de família; no caso,

o famoso Parque Encantado, em terra firme. A área que delimita a propriedade serve para

outros usos, como espaço de passagem das pessoas e de espaço de convivência dos adultos e

do brincar das crianças. Esta conformação ambiental e familiar é bem ilustrada em um desenho

e escrito de uma menina do grupo infantil, realizados por ocasião de uma atividade de campo:

95 Composto por um conjunto de pessoas entre pai, mãe, netos, filhos, genros e avós, ou seja, em uma mesma

família há subgrupos que a compõe, residindo no mesmo espaço.

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Desenho 03 – ‘Parque Encantado’

Fonte: Pesquisa de campo, 2016 / Autoria: R.G., (11a).

No geral, as casas da beira do rio são construídas em madeira enquanto é comum as que

ficam na área de terra firme serem construídas em alvenaria. São edificadas a partir de um

padrão: uma sala grande, que funciona como espaço para dormir à noite, em redes. Quarto,

cozinha espaçosa, banheiro fora e uma área coberta na lateral onde são concentrados utensílios

como máquina de açaí, fogão de lenha, bomba d’água.

Foto 05 – Casas, na beira do rio

Autora: POJO, E.C., Ago. 2015.

Nos seus modos de vida e de produção, os quilombolas preservam formas tradicionais

ancestrais em termos da linguagem, dos costumes, de crenças e ritos. No entanto, eles convivem

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pari passu com novas formas e adaptações, como a internet, a energia elétrica, a antena

parabólica, a televisão e o celular. Durante as andanças em campo, junto com outras pessoas,

fui ouvindo suas falas sobre o pensado e o vivido. Faço aqui a síntese de uma conversa informal

e corriqueira, tal como a que ouvi e observei em uma manhã quando se fazia a derriba de uma

roça. Atentei para um assunto que eles muito repetiam em suas rodas de conversa: o das relações

humanas e as suas versões das modificações ocorridas no lugar, expressadas na síntese a seguir.

Ontem Hoje

Respeito e consideração entre as pessoas.

Cuidar da terra e da natureza.

Transporte somente de canoa a remo.

Troca entre as pessoas.

Prática do plantio e colheita.

Não existe respeito.

Se planta e outro vai apanhar.

Não há preservação por parte do coletivo.

Cada um por si.

Tudo se compra e pouco se planta.

Fonte: Pesquisa de campo, 2015-2016.

A síntese acima evidencia a modificação do e no convívio comunal no que se refere a

ideia de respeito e de consideração entre pessoas e com a natureza, configurando uma visível

alteração de condutas nas relações comunitárias, conforme já mencionado no capítulo I.

No tocante à organização comunitária, os quilombolas convivem com várias

organizações, como o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Abaetetuba

(STTR), a ARQUIA e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) – região Guajarina. Existe ainda a

organização comunitária da Paróquia das ilhas (igreja católica), assim como a Associação de

moradores do Santa Rosa96. Elas mantêm uma relação direta com a comunidade, por meio de

suas representações e de algumas poucas ações, todas elas vinculadas com a execução de

programas e de projetos institucionais. No caso da associação quilombola, além dessas ações,

atuam encaminhando os moradores para a aposentadoria, para o auxílio maternidade e para

alguns cursos. Vale salientar que a constituição da associação quilombola é uma exigência para

o processo de reconhecimento legal de um território e, na comunidade, a ARQUIA é a

associação local, cumprindo o papel de articuladora no processo de organização das demandas

e lutas coletivas.

Dentre as ações desempenhadas pela associação quilombola está a de coibir a venda das

terras. Uma situação emblemática sobre essa questão, presenciada por mim, ocorreu numa das

idas para acompanhar o trabalho da senhora Benedita Couto no seu retiro, quando percorria o

trecho entre o rio e a sua casa. Neste ínterim, conheci a Ilhinha e o rabeteiro que me conduzia,

além de dar explicações sobre a ilha, disse: a Ilhinha foi comprada por pessoa de fora. Segundo

96 Esta Associação foi fundada em 25 de dezembro de 2002, por um grupo de 10 pessoas, com o objetivo de realizar

comemoração dos pais e promover o lazer na comunidade. Atualmente faz arrecadação financeira a partir da

promoção de festas, sendo que o valor arrecadado é utilizado em benfeitoria da igreja católica.

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os quilombolas, tais situações têm sido recorrentes, apesar dos problemas que causam as vendas

e do controle por parte da entidade. A ARQUIA expõe tal problemática nos debates e atua

incisivamente no sentido de afirmar o respeito e o reconhecimento do território. Não foi à toa

que o empresariado do agronegócio tentou se apossar indevidamente da terra. O atual

coordenador da associação, senhor Edilson da Conceição da Costa, durante assembleia declarou

que “a Bio Vale invadiu nossas terras aqui, mas a área foi recuperada na justiça e hoje tá tudo

bem demarcado, titulado” (Diário de campo, 2013)

Ainda, sobre a atuação da associação, ela promove assembleias que versam sobre

assuntos de interesse coletivo, como a agricultura e o vestibular específico97. Dentre aquelas

que tive oportunidade de participar, sempre ouvia tanto dos moradores como das lideranças da

associação, que falta união e engajamento por parte de todos. E, também, da parte das

comunidades remanescentes que a associação coordena, sua credibilidade e confiança

depositada envolve opiniões divergentes, embora haja uma presença maciça de pessoas nas

reuniões.

Ainda permanece um forte enraizamento com o lugar, seja porque existem moradores

que desde sempre viveram ali ou porque naquele lugar as famílias conseguem se manter, pois

a gente planta, colhe, pesca.

[...] nunca deu vontade de sair para outro lugar. Eu tô acostumada, a dormida. Eu vou

na cidade, mas não vou dormir como eu durmo aqui. Aqui a gente tem pra onde pular;

pra cá, pra ali e, na cidade, se você não tem o dinheiro, tá meio ruim, tudo é pago

(Maria da Conceição da Silva Maciel, entrevista realizada em setembro de 2015).

Eu gosto de morar aqui, porque aqui meu pai em criou. Como dizia a minha vó: meu

umbigo tá enterrado aí. Tenho meus amigos, meus vizinhos e é um rio que produz, é

um rio de produção, tanto faz ser a venda como a compra. Marreteiro tá tudo passando

aqui. E a gente se acostuma nesse rio, tem gente que vem e não quer voltar mais,

porque é um rio demais doce, rio Itacuruçá. O camarada acha demais bonito. Tem

coisa boa, por exemplo, tem, às vezes, até a dança (Dilo de Couto, entrevista, 09/

2015).

Nesse gostar do lugar e de produção da vida, não estão ausentes as dificuldades que

muitas famílias encontram para preservar uma condição digna. Disse-me das agricultoras: eu

trabalho na roça e no retiro o ano todo, mas estamos com dificuldade de manter nossa família,

já fui atrás da assistência social para nos darem uma cesta básica e não conseguimos nada

(Pesquisa de campo, 2016). Não obstante, a precariedade de uma vida de “mínimos vitais” –

para relembrar Antônio Cândido (1997) – não conduz a uma ausência de zelo para com a

natureza, associada a um respeito mútuo entre as pessoas, em que pesem se depararem com

97 A UFPA realiza processo seletivo especial para quilombolas e indígenas para estudantes de vários municípios

do Estado e, em vários cursos de licenciatura. Os candidatos precisam comprovar o vínculo social, cultural, político

ou familiar com as comunidades e seus territórios.

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situações sociais críticas, como a droga, decorrentes do acesso de diferentes categorias de

pessoas pelos ramais e outras situações98. Assim, vemos que além desses fatores que invadem

o cotidiano da comunidade, é perceptível pelos próprios moradores que o território é também

palco de disputa de poderes e de facções políticas.

2.4 – O processo territorial quilombola

Pesquisar uma comunidade quilombola envolve a compreensão do campo de tensões e

das diferentes formas de resistências das comunidades remanescentes de quilombos brasileiras.

No caso, do locus de investigação, isto significa perceber que tipo de relações estão sendo

processadas, entre as formas de organização social, os processos de construção do ser

quilombola e as implicações institucionais e territoriais enfrentadas. É em nome desta

compreensão que me permito um recuo histórico que me parece relevante.

Do ponto de vista conceitual, a primeira menção a “quilombo” foi ditada pelo Conselho

Ultramarino, em 1740, em um Brasil colonial e escravocrata99. A segunda (última menção),

realizada no contexto republicano e democrático, está presente na Constituição Brasileira de

1988. Pelo Conselho Ultramarino, a definição afirmava que “toda habitação de negros fugidos,

que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se

achem pilões neles” (ALMEIDA, A., 2002, p.47). No segundo documento, o artigo nº 68 do

Ato das Acomodações Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, a

promulgação de que aos “remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando

suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos

respectivos”.

Ainda, sobre aspectos legais, o Estado brasileiro compreende comunidades quilombolas

como:

I - os grupos étnico-raciais definidos por auto atribuição, com trajetória histórica

própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade

negra relacionada com a resistência à opressão histórica;

II - comunidades rurais e urbanas que:

98 Esse aspecto de abertura dos ramais, por vezes aliado ao agronegócio, me fez lembrar das considerações sobre

a Amazônia, na obra de Otávio Guilherme Velho, intitulada “Frentes de expansão e estrutura agrária”, na qual o

autor, naquele momento, alertava para mudanças na vida rural a serem impulsionadas pelas frentes de expansão

na Amazônia Legal. Referia-se que a construção da rodovia Belém-Brasília, na década de 70, se instaurou

alterando o sistema de transportes e de comunicações, primordialmente da navegação fluvial para o domínio do

transporte rodoviário. Tal envergadura política e econômica vigora nos dias atuais, talvez sob expansão de outra

natureza ou ainda que da mesma, a da expropriação do trabalhador camponês em que os ramais são construídos

com o propósito de expandir o cultivo do dendê, subtraindo a agricultura diversa e os modos culturais peculiares

do lugar. 99 Para saber mais ver Leite (2000).

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a) lutam historicamente pelo direito à terra e ao território o qual diz respeito não

somente à propriedade da terra, mas a todos os elementos que fazem parte de seus

usos, costumes e tradições, b) possuem os recursos ambientais necessários à sua

manutenção e às reminiscências históricas (que se conserva na memória) que

permitem perpetuar sua memória;

III - comunidades rurais e urbanas que compartilham trajetórias comuns possuem

laços de pertencimento, tradição cultural de valorização dos antepassados calcada

numa história identitária comum, entre outros (BRASIL, 2012, p.04).

Na sua obra “Mocambo”, Arruti (2006) enfatiza os diferentes discursos do quilombo

(resistências cultural, política e negra) como ponderações importantes para a atualidade vivida

pelas comunidades quilombolas, a nível do país.

Partindo de uma compreensão mais contemporânea e diante da polêmica sobre a definição

de quilombo no que tange à identificação dos grupos, a Associação Brasileira de Antropologia

(ABA) elaborou um parecer acerca dos remanescentes de quilombo que pretende auxiliar na

aplicabilidade da lei. Segundo a Associação,

Contemporaneamente, portanto, o termo Quilombo não se refere a resíduos ou

resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica.

Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente

homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos

insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram

práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida

característicos e na consolidação de um território próprio. A identidade desses grupos

também não se define pelo tamanho e número de seus membros, mas pela experiência

vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum e da continuidade

enquanto grupo. Neste sentido, constituem grupos étnicos conceitualmente definidos

pela antropologia como um tipo organizacional que confere pertencimento através de

normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão (ABA, 1995, p.2).

No caso da Amazônia paraense, a diversidade dos agrupamentos de quilombos incluía

um composto que abrigava negros fugitivos, índios, colonos e caboclos ribeirinhos, como

coletividades que foram se formando a partir da revolta da Cabanagem (SALLES, 2005).

O território quilombola do rio Itacuruçá relaciona-se ao contexto histórico da presença

negra africana na formação do território nacional e, também, a nível regional100. Os seus novos

habitantes refugiados chegaram à nascente desse rio, por efeito de obstáculos territoriais, como

a extensão do rio, com curvas sinuosas e muitas pedras no seu leito, o que dificultava o acesso.

A constituição do quilombo ocorreu com a chegada de um grupo de escravos refugiados de um

engenho e da fazenda chamada Cafezal, situada perto da Província do Grão Pará, atualmente o

município de Barcarena, onde desenvolviam atividades nas lavouras de cana-de-açúcar

(QUARESMA et al, 2014).

100 Constam informações da Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2003) que “[...] em quase todo o Estado do Pará,

mas principalmente em: Belém, Vigia, Acará, Cametá, Óbidos, Alenquer, Santarém, Muaná, Chaves, Soure,

Igarapé-Miri, Abaetetuba, Barcarena, Cafezal, Cachoeira do Arari, Capim”, houve aglomerados de refugiados à

época.

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De acordo com Salles (2004, p.34): “Pretendeu-se com isto estimular a produção agrícola

e dar início à substituição do braço do indígena, pelo do negro, nos trabalhos da lavoura”. Ainda,

complementa o autor “[...] No furo do cafezal, próximo da baia de Carnapijó, ainda estão de pé

as monumentais edificações do engenho e fazenda cafezal, hoje transformado em serraria e

pertencente aos frades xaverianos [...]” (p.41).

Consta nos documentos oficiais da cidade que, no final dos anos 90, os povos das ilhas

foram identificados como povos ribeirinhos por ocasião em que foi realizado um estudo

coordenado pela Diocese101 de Abaetetuba, quando por esse estudo se reconhece a identidade

de “remanescentes de quilombos”, desencadeando uma série de outros estudos e procedimentos

destinados à titulação e à certificação das comunidades das ilhas do município (NAHUM,

2011).

Em 2000, foi a primeira ocupação no INCRA do Movimento social chamado de

Fórum do Nordeste paraense e região Guajarina de Abaetetuba foram 14 pessoas. [...].

Foi entregue a primeira demanda das Ilhas no INCRA e negociadas as ilhas para serem

trabalhadas.

Em 2001, foi criada a ARQUIA – Associação dos Remanescentes de Quilombos das

Ilhas de Abaetetuba, com os objetivos de administrar as terras dos Quilombos, de

buscar projetos de geração de renda e de resgatar a cultura negra. O primeiro

presidente foi o Gercino. Conseguimos vários projetos como rabeta, barco, manejo de

açaí, piscicultura, criação de galinhas brancas e gigantes negras, porcos e viveiros de

mudas.

No ano seguinte, a primeira grande conquista da ARQUIA, CPT e STR: dois títulos

de reconhecimento de domínio para os Remanescentes de Quilombos. Foi feita uma

grande festa de comemoração desta conquista.

O 1º título envolveu as Comunidades Quilombolas de Genipaúba, Acaraqui, Tauerá-

açu, Arapauzinho, Baixo Itacuruça, Médio Itacuruça e Alto Itacuruça.

O 2º, as Comunidades Quilombolas de Nossa Senhora do Bom Remédio e Assacu

(CPT, 2005, p.20, grifos meus).

Atualmente, as comunidades que se reconhecem “remanescentes de quilombos” na área

das ilhas estão sob a coordenação da ARQUIA, e de outras associações as que se localizam nas

áreas de estradas e dos ramais. Foi uma concessão de direito conquistado através do embate

político de várias entidades específicas dos quilombolas e demais organizações sociais. Nahum

(2011, p.82), um professor da UFPA que também realiza pesquisas no Baixo Tocantins e

coordenou um trabalho em Abaetetuba, afirma:

O território da ARQUIA tem uma área de pouco mais de 12 mil hectares, onde

segundo dados da associação, vivem aproximadamente 1.700 famílias e uma

população próxima de 7.500 pessoas distribuídas irregularmente pelas comunidades

ao longo dos rios, furos e igarapés.

101 Procedimento desta instituição por meio da Paróquia das ilhas e em parceria com a Associação dos Moradores

das Ilhas (AMIA).

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Ainda hoje na comunidade, estão presentes, as roças e os retiros de farinha, a memória

dos velhos sobre os engenhos e sobre o vestígio histórico que associa quilombo ao refúgio de

escravos e da lenta formação dos grupos originais, em contextos rurais, em geral com

dificuldade de acesso. Talvez, por meio de uma representação quase sempre negativa do ser

negro, o processo de identificação por parte dos moradores, na maioria das vezes, atravessa

contradições e contrastes.

Desta forma, não somente existe um aspecto histórico negativo do ser negro, mas a

situação da comunidade local, devido a ela pertencer até 2001 à área territorial intitulada como

Terras de Marinha e, posteriormente, situar-se como terra de remanescentes das comunidades

dos quilombos, configurou um complexo referencial nas relações sociais e na própria identidade

do grupo quilombola, somado a outros fatores de que já fiz referência aqui.

2.5 – Nem todo mundo quer se identificar

[...] a crise da identidade seria o novo mal do século. Quando hábitos seculares vêm

abaixo, quando gêneros de vida desaparecem, quando velhas solidariedades

desmoronam, é comum, certamente, que se produza uma crise de identidade. A

verdade é que, reduzida a seus aspectos subjetivos, uma crise de identidade não

oferece interesse intrínseco. Melhor seria olhar de frente as condições objetivas das

quais ela é sintoma e que lhe reflete [...] (LEVI-STRAUSS, L. 1977, pp.10-11)102.

Partindo dos estudos de Lévi-Strauss, debater identidade como categoria analítica

significa atravessar linhas sinuosas e tênues, principalmente quando questões étnicas e

territoriais entram contraditória e conflituosamente na ordem do dia, devido aos novos (outros)

fatos e às experiências de grupos sociais específicos.

Na citação inicial deste item o autor alerta-nos para os aspectos subjetivos da identidade

e nos convoca a darmos atenção às condições objetivas por meio das quais ela se produz. Assim,

tomando o locus da pesquisa, vemos que ele se alinha muito em direção a um contexto em que

os processos identitários estariam em uma linhagem, talvez, de caráter mais contingencial e

relativo, do que absoluto e fechado. Vale repetir, então, que a intenção é elucidar significações

do processo identitário e do identificar-se quilombola ou não, ao invés de me arriscar em uma

síntese de grande amplitude, até porque entender o que é uma comunidade quilombola e o que

é ser quilombola representaram um exercício mental constante nas minhas investidas de

pesquisa, sendo que eu procurei buscar muito mais e compreender as suas observações diretas,

em lugar de questioná-los sobre isto e aquilo.

102 Nos anos 70, Claude Lévi-Strauss e Jean-Marie Benoist, organizaram um célebre seminário interdisciplinar

para colocar em discussão a questão da identidade.

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Para Lévi-Strauss, a identidade desdobra-se em três níveis distintos, quais sejam: a) o

“mínimo de identidade” que funda a unidade do humano; b) a identidade que sempre se esconde

ao nos referirmos a ela para explicar coisas sem existência real; c) a identidade, então múltipla,

inacabada, instável e sempre experimentada mais como uma busca que como um fato. Em

termos lévi-straussianos não há identidade sem alteridade (LÉVI-STRAUSS, 1977, p.332).

A identidade é um processo de construção histórica e subjetiva, relacionada com a ideia

da diferença. Brandão (1986), na obra “Identidade e Etnia”, parte da compreensão do “outro”

para a identificação do “eu”.

As identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo confronto com o

outro; [...] o poder ou não construir por conta própria o seu mundo de símbolos e, no

seu interior, aqueles que qualificam e identificam a pessoa, o grupo, a minoria, a raça,

o povo. Identidades são, mais do que isto, não apenas o produto inevitável da oposição

por contraste, mas o próprio reconhecimento social da diferença (BRANDÃO, 1986,

p.42).

Logo, a noção de identidade insere-se na dimensão da individualidade dos sujeitos e, ao

mesmo tempo, ela é construída na relação com o outro e no ambiente social em que um-e-outro

interagem.

Com base nesses pressupostos, a ideia de identidade define-se pelas dimensões do

simbólico e cultural, bem como do social e individual. Assim, o que está em jogo é o ser

quilombola ‘naquele território’, através de um processo que se constrói ao longo das práticas

sociais em uma perspectiva relacional e, não somente pelo seu discurso ou pela

institucionalidade interposta. Portanto, a identidade não ‘é em si’ mas, ao contrário, envolve

processos simbólicos dentro de um determinado contexto. Cito o qualificador dado à professora

Rosilda Gomes Pinheiro, conhecida popularmente como Pérola, como um símbolo de

resistência do ser negro, pela sua vivacidade e atuação nas comunidades, por sua disposição em

assumir-se quilombola, e estabelecida, também, por sua imagem estética: ‘negra’. Dizia a mim

uma moradora: ela é nossa afirmação do ser quilombola e ela diz sobre si: olha, eu bato no

peito com muita convicção. Isso tudo aqui é origem, sou quilombola.

Ademais, tem a ver com a memória de alguns moradores que contam a historicidade

vivida, e narram como construíram o movimento de resistência e as formas de relações com o

território a partir de suas vivências socioculturais por meio das danças, músicas, benzeções,

macumba103. Outrossim, são narrados pelos mais velhos o trabalho em forma de mutirão, o

103 Cabe dizer que, sobre rituais religiosos de matriz africana, notei como algo silenciado pela maioria dos

quilombolas. Durante todo o tempo de pesquisa só acompanhei tratarem em duas situações: a) quando conheci a

comunidade do Ararapuzinho na qual foi citado o pai de santo, o senhor Zica, como uma referência da história e

dessa prática no lugar; b) por um morador do Ipanema e professor que muito cautelosamente tratou do assunto

informando os locais onde realizam a prática da macumba. Quanto à benzeção já foi bem mais exercida, mas,

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convívio comunal, as práticas religiosas com festejos de folia de reis e rezadores de ladainhas,

a prática das parteiras. E mais a diversão cotidiana através do samba com cantador, viola,

violão. Tinha cordão de boi e fogueira. Era uma cultura muito boa e ainda hoje tá fazendo

falta. O senhor Marinaldo Araújo, propagador da ideia da cultura quilombola ser disseminada

por meio do currículo escolar, discorre sobre a constituição do grupo, após ouvir,

repetidamente, os mais velhos:

A gente vai conversando com os mais velhos, eles vão contando as histórias de

antigamente. Muita coisa a gente grava e outras não. Eles falam aquelas histórias de

antes, que aqui tinha muitos engenhos, muitos escravos, senhores [pausa para lembrar]

muita coisa eles contavam. Que os escravos apanhavam, trabalhavam muito. Que

meus antepassados vieram do Congo, fugiram pro Amazonas, trabalharam muito pros

seus senhores. Dizem que o meu avô fugiu com a mulher do senhor, atravessou o

Amazonas à noite e chegou aqui no Pará, se refugiou aí no município de Barcarena.

Vieram pra Abaetetuba, fugido [pausa, silêncio] trabalharo muito tempo, até se

refugiarem aqui no Alto Itacuruçá. Trabalharo vivero, tivero filhos. E eu sou um

descendente deles né (Marinaldo Araújo, entrevista, 06/2015).

O depoimento dele demonstra como a memória coletiva de alguns quilombolas possibilita

eles dizerem dos ancestrais as reminiscências de outrora, e por meio dela se visualiza uma

historicidade vivida em diferentes momentos. Rememoram a seu modo estes fatos, validando

em parte a organização e o reconhecimento do quilombo. E ressalto o fato de aparecer no relato

a referência ao continente africano, para se entender a formação do grupo.

Outros interlocutores da pesquisa manifestam esse tempo antigo e comentam:

[...] esse registro começou a acontecer a partir do comportamento de pessoas que

viveram há muito tempo atrás. Bem aqui nesse porto morava um grupo de pessoas

que segundo os antigos contam, eram pessoas que fugiam e vieram formar o quilombo

deles aqui. Se a gente for andar por aqui a gente encontra pedaços de construções,

panelas de barros, uma série de coisas (Rinaldo Santos, entrevista, 09/2015).

Aqui essa área é quilombola. Quilombola é do trabalho, da roça, da lavoura. A raça

negra né? [pausa, silêncio] porque antes os negros eram essas negrona mesmo. Não

presta mais a gente chamar preto pro outro né? Bem morenona, cada mulherona.

Homem trabalhava todo descalço, saiona. Agora não, nós trabalhamos de calça

comprida. Era o dia com o pé, assim, na terra. Era uma mulherona, o dia inteiro

lavrava, plantava, capinava. Nesse tempo que eu trabalhava, mamãe trabalhava com

ferro de cova. Agora mudou, pessoal mudou pra enxada. Tem a enxada, tem o

enxadeco, e nós plantava com isso, de cova. Depois se largou. Amolava terçado,

machado, tudo na pedra, agora mudou é tudo na lima [pausa, silêncio]. Foi escravidão.

Os negros eles foro muito maltratado. Um maltrato, assim, ruim, tinha que fazer,

entendeu como é? Tu trabalhavas o dia inteiro sem comer, sem beber, trabalhava.

Agora tá melhorando, mas ainda existe os negão (Maria da Conceição Maciel,

entrevista, 09/2015).

Onde mora o Mário agora. Lá tinha o Agostinho Carvalho. Um capitão [pausa,

silêncio]. É a primeira Olaria. Ele era o dono. Disque lá tinha a sala do branco e do

preto. Eram separados. Nesse tempo da escravatura lá, ele era um dos chefes, esse

Agostinho Carvalho. O senhor. Tinha um tronco, pau grande e tinha um parafuso. O

atualmente, apenas o senhor Jorge Barão, vez por outra, realiza tal prática. Como parteiras foram citadas as

senhoras Margarida Maciel (Bibita) e a velha Rosa, como dizem, do rio Arapapuzinho (Pesquisa de campo, 2016).

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criado errava, metia na corrente. Ficava no tronco, aí ele não saia [...]. O tronco eu

não cheguei a ver, mas meu pai me contava. Meu pai, minha avó. Não faz tempo, essa

casa era uma casa forte. Muito bonita. Era só sucupira. Era um casarão grande (Dilo

de Couto, entrevista, 09/2015).

Somos descendentes de negros, significa que meus antepassados eram negros e tinha

uma questão escrava. Meu avô era desse tempo (agente de saúde, moradora do rio

Ipanema).

Embora sejam fragmentos, os depoimentos retratam a constituição do quilombo marcado

pela incessante busca de condições de sobrevivência. Eles remetem a um aprendizado de uma

história construída a partir de valores, de costumes e de saberes compartilhados, em que lembro

uma vez mais, a terra possui um valor incomensurável. Ainda, são também lembrados, os

processos de escravização porque passaram muitos negros ascendentes dos atuais quilombolas.

O “ser quilombola” parece haver sido apropriado por eles como um modo de evidenciar as suas

raízes aos ‘visitantes’ e, também, para incentivar os moradores menos engajados com a

comunidade. Enfatizo que são os sujeitos mais envolvidos aqueles que narram as histórias das

lutas dos primeiros moradores em momentos coletivos da comunidade, confirmando que de

alguma forma, no território, existe todo um processo de se identificar que também é do grupo.

A relação com o trabalho da lavoura foi fundamental para o enraizamento do grupo.

Outrossim, diz respeito à propriedade da terra como parâmetro de identificação, mesmo que

sob controvérsias levadas em conta pelos próprios moradores, como já mencionei neste texto.

O território é quilombola e não pode vender a terra, mas alguns não gostam e não se

identificam como quilombola (Elisangela Torres, entrevista, 04/2015).

Essa região aqui é tudo quilombola, não pode vender. Eles [Arquia] têm conversado

pra não ter gente estranha como eles falaram, se não é bronca, só que às vezes não

entendem. Olha, eu tenho um tio que é irmão dela aí, ele quer um preço que não regula.

O seu Japaca queria vender a terra lá, mas não deixaram ele vender, porque você não

sabe quem vem, o que vai fazer, pode ser um vizinho bom ou com outros interesses

(Nilson dos Santos, entrevista, 09/2015).

Pelo que sei dos quilombos, a terra é para quem quer trabalhar. Mas, há casos de

venda, tipo loteamento. E há terra parada! Pessoas não estão nela e, muito menos,

produzindo (Iracema Correa, entrevista, 09/2015).

Essas questões e fatos levantados por muitos moradores suscitam opiniões diversas e

constituem ‘a situação’ da comunidade, até porque tais ocorrências de venda de terras negam o

sentido do comum do território, conforme a compreensão da associação e de grande parte dos

quilombolas.

Prosseguindo a questão do identificar-se como quilombola ou não, passo a evidenciar

as peculiaridades a partir do foco sobre: quilombolas da beira do rio.

Como acentuei anteriormente, a trama geográfica e identitária do viver às margens dos

rios é relevante e controversa. Durante o meu período no campo, detive-me, por longo tempo,

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buscando compreender melhor o contingencial étnico e, por isso, passei a perguntar coisas do

tipo: Como se constitui esta conjuntura de ‘ribeirinho’ e ‘quilombola’? É a mesma coisa? Qual

a diferença entre uma palavra e a outra? Como vocês gostam de serem identificados?

Sobre esse aspecto, do conjunto das opiniões que foram sendo colocadas, a do professor

que mora no rio Ipanema e trabalha na escola, parece bastante salutar. Diz ele:

Quando vieram fazer a demarcação da Marinha consideraram que, de um lado

formava uma ilha, aí então era Marinha. Por exemplo, o caso do Arapapu de um lado

é quilombola e de outro é Marinha. Aí do lado daqui segue que pega Acaraqui,

Genipauba, Tauerá, tudo quilombola. Pra lá tudo Marinha. Vai do Ipanema e entra

pro furo do Gaita, tudo ribeirinho. E vai até, são nove casas pra dentro do lado de lá é

quilombola e das nove pra lá já é Marinha e do outro lado também, é uma complicação

que [pausa, silêncio]. [...]. Então, aqui é quilombola e do lado de lá é Marinha

[referindo-se ao Baixo Itacuruçá]. Isso já deu muita polêmica, porque, na visão do

povo, embaralhou toda a cabeça dele, de muitos né, quando surgiu os quilombolas.

Aquela questão: quando vieram demarcar terras da Marinha, eles falaram que

ribeirinho era quem morava na beira do rio, aí se eu sou da beira do rio onde é que eu

me enquadro? Eles estavam com aquilo na cabeça, aí chegam os quilombolas dizendo

que não, que ali era quilombola. Mas, como vieram uns dizendo que era ribeirinho e,

agora, é quilombola? Foi essa confusão e até hoje, se você perguntar, tem uns que

respondem ribeirinho. [...]. A gente hoje tem dificuldade na questão da aceitação, tanto

do ser quilombola quanto do ser negro, porque quando surgiu os quilombolas,

precisava esclarecer. O quilombola surgiu, mas eu não era quilombola, porque eu

nasci numa área quilombola, eu era quilombola porque eu era negro, essa é a minha

visão. E essa visão ficou por muito tempo. Se você conversar com muitos desses

alunos aqui, ainda fazem essa complicação, ele é quilombola, porque ele é negro; ele

é quilombola, porque ele estuda numa escola quilombola e muitos não sabem nem se

querem ser quilombolas. A questão de demarcação, de pertencer a uma comunidade

quilombola, tem muitos que ainda não têm isso [interrompeu]. Ainda tem novatos que

não estão associados, que estão na área quilombola, mas não tá associado e foi fazer

associação lá na Marinha por conta do seguro defeso e os quilombolas não têm esse

seguro, esse benefício. Como dizem: imagine só! (Marinei Pinto, entrevista, 05/2016).

Sua opinião enfatiza vários elementos relevantes para o debate que busco desenvolver

nesta pesquisa. Parece que o processo de demarcação do território quilombola ocorreu muito

mais focado na sua institucionalização do que considerando o valor histórico e étnico. Assim,

desde aí emergem questões quanto ao ser negro ou quilombola, quanto ao identificar-se visando

algum benefício, tendo a beira do rio, em alguns casos, como o elemento de classificação de

quilombola ou ribeirinho. A seguir, apresento depoimentos de outros interlocutores da pesquisa

e que complementam o que fora destacado pelo professor.

O lado direito e esquerdo do rio é quilombola. Há o quilombola da terra/centro e o

quilombola da beira do rio. Agora, tem que se declarar. E os ribeirinhos são os de terra

de Marinha (Maria Santana Rodrigues, entrevista, 06/2016).

[...] devido à comunidade ter área de várzea e área de terra firme, a relação com o rio

é desde que eu me entendo por gente. Primeiro, que eu morava na beira do rio, então

o rio é o nosso meio de transporte, é por onde a gente vai pra cidade. Hoje, a gente já

tem acesso pelo ramal, mas não deixa de ser pelo rio, a maioria das vezes. Então, pra

mim, o rio, ele é fundamental. O que seria da nossa comunidade de Arapapuzinho

sem o rio? Eu já tive canoa, aquelas montarias, então eu já remei muito, porque,

também, era o meio que eu usava pra trabalhar. Porque, pra mim, tem todo uma

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identificação [pausa, silêncio]. Porque, pra mim, há um diferencial muito grande,

quando eu falo assim: ah, eu não sou quilombola, eu sou ribeirinho ou eu sou

quilombola. Tem uma junção sim. Devido à gente ter essa acessibilidade do rio,

devido à gente se alimentar dele, mas o quilombola é por que? Porque as nossas

ações, a nossa cultura, ela tá vinculada nisso. Então, o forte pra nós, esse foco

maior, com certeza, é quilombola. Por mais que seja: ah, o quilombola é ribeirinho,

porque mora na beira do rio, eu tô dentro do território quilombola e o foco é

quilombola (Rosilda Pinheiro, entrevista, 05/2015, grifos meus).

Estes depoimentos trazidos aqui aportam alguma nitidez sobre o convívio com o rio como

parte do processo de identificação quilombola. O fato é que, se há uma distinção sociocultural

entre ribeirinhos e quilombolas, a geografia é responsável pela distinção territorial. Desta

distinção deriva, inclusive, a inserção destas comunidades nas políticas sociais demandadas,

conforme mencionei no capítulo I.

Em mais uma manhã de andança em duas roças acompanhando agricultores, eu retornara

para a Escola Santo André. Estava lá um grupo de pessoas que normalmente permanecem

durante o intervalo do almoço, entre moradores e funcionários. E naquele momento, eles

discutiam sobre o ser quilombola. A questão aflorava em razão de ter ocorrido uma reunião no

dia anterior sobre o funcionamento da instituição, ocasião em que a condição quilombola foi

colocada em evidência sob vários aspectos: currículo, apoio das comunidades vizinhas,

ausência de luta coletiva104. Quase sem nenhuma interferência, eu ouvia os posicionamentos e

os argumentos, buscando compreender os matizes do assunto. Escrevo abaixo alguns excertos

daquela conversa:

[...] bem, nós moramos em área remanescente de quilombo e trazemos no sangue

também a história do negro. Eu vi como o meu povo vivia (poeta).

Me reconheço quilombola, a gente tem as raízes, às vezes o avô, a avó, algum parente

a gente tem. Eu sou assim, a minha cor é assim, meus avós eram negros (oleiro).

[...] Têm pessoas que nem diz que é negro e nem quer saber das culturas. Tem gente

que não sabe nada, eu sei um pouquinho (funcionário da escola).

[...] assim o negócio do quilombo, veio surgindo, surgindo, surgindo, até que a gente

não sabia que era quilombolista, mas com os estudos é que foi descobrindo e agora

nós somos quilombola mesmo [risos] (agricultor).

[...] a tendência é essa identificação, porque, às vezes, as pessoas, elas não conhecem

o que tá por trás. Uma coisa é ser quilombola, porque hoje em dia eu falo com orgulho,

porque eu sei mais ou menos o que é que tem por trás desse negócio quilombola

(funcionária da escola).

Os meus avós foram remanescentes. Eu sou, eu passei, eu sobrevivi a esses momentos.

Me considero quilombola. E pra nossa escola sair aqui, eu lembro que foi feito uma

assembleia grande e nós vimos que nós nos identificamos como povo quilombola,

mas grande parte que participou da assembleia não se identificou como quilombola.

Por quê? Porque ele olhou só do tempo dele pra cá, ele não olhou seus antepassados,

ele não fez uma busca pra lá. Poxa, aqui onde eu tô teve várias gerações na minha

104 Reunião ocorrida em novembro de 2015. Estavam presentes aproximadamente duzentas pessoas entre pais e

funcionários, membros da diretoria da ARQUIA, diretor e responsável pela escola, representante da Unidade

Regional da Secretaria de Educação do Estado e do governo municipal, entre outros.

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frente ou pra trás de mim, teve várias gerações e, se não peguei nada de lá pra cá, eu

vou continuando daqui pra frente. E, se eu não sou quilombola daqui pra frente eu vou

ser o quê? Essa situação que colocou a associação. Então pra nós entrando do

Genipaúba todinho, rodando essa parte que vem por aqui, todos são remanescentes de

quilombo, são quilombolas, mas têm alguns que dizem: Não, não quero, eu vou ficar

de fora. O governo, ele vai liberar recurso pros quilombolas na escola em cima de uma

memória que eu tenho. O Joãozinho, ele optou pelo sindicato rural. Quando eu fizer a

mesma coisa, eu tô numa área quilombola, mas não posso me associar como

quilombola, por quê? Porque eu sou funcionário público de uma área quilombola, mas

eu não tenho uma carteirinha para provar. Mas se nós formos buscar uma parte atrás

da gente, porque hoje é considerado quilombola não só o que tem o cabelo agarrado,

o que é preto. Não, o negro já se passou várias gerações e foi se misturando, veio se

misturando e tem uns aqui na escola que se olha e vê branco, mas você olha as

gerações dele pra trás (funcionário da escola).

Vários fatores são destacados no processo de autoafirmação como quilombola, tais como:

a cultura quilombola, a cor da pele, a apropriação dos costumes e das histórias ancestrais do

lugar, o vínculo de associado, a luta por sobrevivência. O ser ‘negro’, utilizado como fator de

autoafirmação, é levantado por algumas pessoas, na mesma medida em que muitas outras não

querem esta referência, devido à autoimagem negativa construída ao longo da história

brasileira. Diversos fatores contribuem para pensarmos que os processos identitários ou as

significações de uma identidade não se dão unilateralmente, mas na diversidade de significados

e, por isso mesmo eles são dinâmicos e se alteram com o tempo, conforme lembrado por Lévi-

Strauss (1977).

Outro fator a ser ponderado tem a ver com a construção social do ser quilombola pela

escola e também na vida comunitária da comunidade, no sentido da disseminação de uma

bagagem política, cultural e ancestral levada aos moradores do lugar. Sobre isto algumas

considerações dos integrantes da coordenação da ARQUIA são relevantes:

Pela questão da associação, hoje, juridicamente, as comunidades são quilombolas.

Agora o que acontece? Por falta de informação, muitas pessoas não se consideram, e

aí é que entra essa questão que a gente tem, essa luta aqui na educação, que seria, no

caso, a educação fazer esse papel na escola. Nós temos a Lei 10.639 que até hoje, já

depois de 10 anos, não se trabalha. Seria a conscientização dos jovens, das crianças,

ou seja, falar para diminuir o valor dado aos europeus e dar a verdade, ser atribuído a

nós, os negros (Edilson Costa, entrevista, 05/2013).

A juventude precisa vir para essas organizações, vir ajudar. É importante que o jovem

chegue e diga: olha, eu sou coordenador da ARQUIA, para fortalecer nossa

identidade. Nós temos mais de 150 alunos que têm a carteirinha da associação e que

pegam declaração para fazer a prova como membro dessa comunidade aqui e tão na

Universidade. Eu vou fazer um pedido pra essa turma: que essa comunidade que

ajudou vocês na Universidade, vocês têm um compromisso social e precisam dar um

retorno aqui [pausa, silêncio], precisam ajudar a organizar esse povo, a defender os

direitos da nossa população, não pode só querer. Quando quer uma declaração, vem

para cá se filiar e querer os benefícios. Tem que querer também ajudar e contribuir

(membro da coordenação da ARQUIA).

No que tange à escola, em seus termos e limites ela contribui com algumas apresentações

e performances culturais que se desdobram, também, na programação festiva da igreja católica

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em seus eventos específicos, quando buscam disseminar conteúdos da temática quilombola,

questão que pormenorizo com mais detalhes no capítulo V.

Quanto à ausência de participação dos jovens, especialmente em se tratando de jovens

estudantes, ela é sempre comentada nas assembleias da Associação e, também, nas reuniões da

escola, quando alguns participantes afirmam, repetidamente, que eles não conhecem a cultura

quilombola e estão muito mais vinculados aos atuais meios eletrônicos e seus derivados vindos

de fora. Este pequeno e contínuo clamor é levantado, porque muitos quilombolas insistem em

dizer que se os novos não se apropriarem das histórias, das memórias e das formas de

resistência, daqui a um tempo não haverá mais nada disso.

Em síntese, não foi ao acaso a escolha do fragmento item deste no capítulo: nem todo

mundo quer se identificar; ao contrário, considerei representativo do processo vivido pelo

grupo. O fragmento acima é parte de uma longa entrevista com o senhor Dilo de Couto, falecido

durante o decurso da pesquisa. Vale dizer que ele era um dos moradores mais velhos, fora citado

e reconhecido por outros como uma espécie de arquivo vivo da história do lugar e um militante

da questão quilombola, por isso, procurei dialogar muito com ele. Sempre gentil e amoroso,

narrava a sua vida em família, rememorava os tempos antigos e criticava acontecimentos e

situações do presente. Embora seja longa a entrevista, destaco excertos dela, por situar o item

e complementar as ponderações.

D: Quando eles começaram a fazer a lavoura, os negros, eles não tinham nem o boi,

eles empurravam com o empurrador mesmo, naquela época tinha o torrador de barro,

só para comer a farinha, eles não vendiam era só pra comer.

E: Era torrador de barro para cozinhar?

D: Fizeram uma arte com isso aí, nessa época não tinha forno. Porque os índios é que

usavam tudo de barro. Era panela de barro, as coisas deles era tudo de barro, até a casa

deles era de barro. Aí começou a misturar, a parte negra se misturava com os índios

[risos]. A cultura do índio é aquela arma, aquela flecha.

E: E hoje, como é isso para os moradores?

D: nem todo mundo quer se identificar!

D: Tem vergonha de ser quilombola, negro, não aceitam. E tem também muito branco

no meio de nós, mas não é considerado. Mas o negro que tá sendo valorizado.

E: Como assim?

D: Tá sendo valorizado é. Aquelas perguntas você é negro, pardo, branco. Aí a

pequena lá me explicou: olha, a pessoa tem que dizer que é negro, porque se ele não

falar que ele é negro no livro do cadastro, porque é mais fácil pra vim o aquele dele.

E: O benefício?

D: O benefício dele. É mais fácil porque ele tá sendo considerado, o negro tá sendo

valorizado. Aí, se você falar que você é branco é mais difícil já não tá dando tanto.

Esse conselho ela deu (Dilo de Couto, entrevista, 09/2015, grifos meus).

Após o intervalo para o café ele seguiu conversando. Reportou-se a histórias e a

lembranças do passado. Lamento não poder expô-las todas, por isso escolhi o trecho que ratifica

sua visão sobre a identificação quilombola.

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Somos negros, sim. Esse é o meu filho, veja a cor dele. [pausa, silêncio]. Essa beira

aqui tudinho é quilombola. É, isso aqui, por exemplo, a terra é a mesma: é da terra

firme pra varja. Agora tem problema, depende muito da pessoa, ele não quer dizer que

ele é quilombo, mas eu não, eu sou do quilombo, prefiro dizer que moro aqui e, ainda,

bato no peito. Então, isso não importa, não importa a cor, não foi nós que fizemos essa

cor. Já passou pela televisão que a pessoa mandou se descascar, não foi? [...] Aí, pra

ser quilombola, tem que tá na ARQUIA. Tem que ter a carteirinha dele, né? Tá sendo

bom, porque o pessoal quilombola tão sendo valorizado (Dilo de Couto, entrevista,

09/2015).

Penso que todos os depoimentos aqui trazidos sinalizam o identificar-se quilombola ou,

em direção oposta, a sua recusa ao longo de controvérsias e processos sociais do conviver. Cabe

inclusive dizer que outras comunidades nas proximidades do Itacuruçá vivenciam dilemas

similares.

As diversas opiniões justificam a necessidade de as pessoas se afirmarem quilombolas

para melhor vivenciarem a dimensão coletiva de suas vidas e ações, ao longo de um aprendizado

ainda incipiente. Outrossim, as diferenças nas formas de identificação, trazidas pelos

interlocutores da pesquisa, evidenciam a complexidade do “ser quilombola” para o grupo. Um

coletivo que se ancora em referenciais simbólicos, fundamentados em aspectos fenotípicos, na

cultura ancestral e nos seus costumes, assim como no viver dos antepassados associado durante

os tempos de escravização, através de histórias de resistência e de luta. De modo geral, todos

os que se afirmam como quilombolas, justificam-se com base na luta dos seus antepassados e,

porque, na atualidade, viabiliza direitos.

Dizia um dos membros da associação: nosso povo é difícil, nega a raça, que é quilombola.

Não dá valor. Esse depoimento fez-me pensar no quão difícil é assumir-se negro e quilombola

em uma sociedade que não valoriza e nem reconhece o diferente, sabendo que o assumir-se

exige uma densa e conflituada compreensão das tramas sociais em que estamos envolvidos e

de que participamos.

Finalmente, devo lembrar que foi minha intenção neste capítulo elucidar o modo de vida

do território quilombola entre as suas relações comunitárias e territoriais, juntamente com as

regras de relação com a natureza e, ainda, envolvendo as configurações do identificar-se

quilombola. Detive-me em trazer aspectos da vida cotidiana sob os pontos de vistas dos

interlocutores, com vistas a observar e compreender interações mais amplas. Tais fatos e

ocorrências do cotidiano expressam um viver dotado de experiências concretas e abstratas, de

acordo com Lévi-Strauss (1976).

Os quilombolas demonstram e agem sempre em busca de resolver situações, problemas

e dilemas da vida. Dilemas atravessados por aspectos natureza e geografia, que se aproximam

do que leva o professor Paes Loureiro a afirmar a sua matriz teórica sobre a cultura amazônica:

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“[...] em que predomina a motivação de origem rural-ribeirinha e na visualidade que caracteriza

suas produções de caráter utilitário – casas, utensílios, barcos, etc” (LOUREIRO, 2015, p.79-

86).

Quanto ao comunitário do lugar, sobressaem através dele as relações de convivência

familiar e de vizinhança, e que do ponto de vista da organização comunitária (em especial a

associação quilombola), esta dimensão parece estar em construção junto à comunidade.

A noção da identidade mais intrínseca ao quilombola da beira do rio encontra-se na

comunidade. Por ela, são edificados os principais parâmetros de sua definição. E noto que eles

estão refundados nas seguintes dimensões: a) reconhecer-se pela vinculação com a terra, com

regras e modos comuns dinamizados através da convivência entre-si e pela associação; b)

reconhecer-se na memória histórica de constituição do grupo, contada pelos mais velhos, quase

sempre entrelaçada aos rios, com os engenhos e com a lavoura; c) reconhecer-se a partir do

aspecto geográfico e hidrográfico, porque, como dizem, antes éramos do Itacuruçá e hoje

estamos em território quilombola, demarcado legalmente a partir da lei. Tais dimensões

conformam a base de interação entre eles, instaurando um processo identitário quilombola que

perpassa aceitações e recusas, em transformação contínua.

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CAPÍTULO III

ENTÃO, CADA UM VAI SE VIRANDO COMO PODE!

OS FAZERES NA VIDA COTIDIANA

Foto 06 – Senhor Dilo Couto (In memoriam)

Fonte: POJO, E.C., Set, 2015.

Como mencionei antes, Brandão (2015a) costuma relacionar as diferentes dimensões dos

fazeres-saberes de pessoas e de comunidades sociais da seguinte maneira: a) práticas do fazer

– as ações individuais destinadas à realização de uma finalidade prática, como o apanhar e o

preparar o açaí para consumo; b) éticas do agir – o domínio em que práticas do fazer e ações

de relacionamentos entre categorias de sujeitos sociais são reguladas por preceitos que se

organizam como códigos sociais, como gramáticas culturais do agir humano em diferentes

relacionamentos, como, por exemplo, nas regras de cortesia que regem a oferta de açaí ao redor

da mesa, para uma pessoa que nos visita, ou nos princípios que regulam a própria

comercialização do açaí; c) lógicas do pensar – os sistemas simbólicos que atribuem valor e

sentido a práticas e a éticas, configurando-se como os diferentes campos dos imaginários

humanos, entre as ciências, as crenças religiosas, as ideologias, os mitos fundadores e assim

por diante. Neste capítulo estarei trabalhando com prioridade entre as práticas do fazer e as

éticas do agir.

Assim, trato das atividades produtivas difundidas pelos fazeres dos quilombolas no correr

de seus cotidianos e ao longo das estações do ano. Para tanto, descrevo os modos locais do

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praticar substancialmente a agricultura e o extrativismo do açaí, cujo fluxo comercial ocorre na

beira do rio e junto aos marreteiros que ficam às suas margens105.

A produção local destina-se basicamente ao sustento familiar. Assim sendo, somente o

excedente é comercializado, para que, com o saldo da venda de parte da produção as famílias

possam comprar outros produtos de que precisam. As pesquisas do sociólogo José de Souza

Martins (1975, 2000), sublinham a situação apresentada. Para esse autor, o que em boa medida

o camponês vivencia em sua prática é uma economia do excedente, através da qual os seus

participantes dedicam-se principalmente à própria subsistência, secundariamente reservando

parte do produto de seu trabalho à comercialização obtidos do que excede às suas necessidades

de reprodução da vida (CF MARTINS, 1975, p.45, grifos do autor).

Como exemplo de um “fato social total”, o trabalho familiar abarca estratégias de

sobrevivência, como forma de comercialização e, de uma complexa negociação, como um

‘fazer’ que condensa procedimentos relacionados a técnicas corporais, aos saberes tradicionais

e às sociabilidades, tecidas entre famílias e vizinhos, numa teia entrelaçada com a natureza e

entre as pessoas (MAUSS, 2003)106. Assim, as relações naturais e sociais do trabalho podem

ser tomadas como um dispositivo da cultura campesina-quilombola. Entre os seus atos

misturam-se trabalhos, produções, categorias de produtores, trocas entre diversos sujeitos,

saberes, símbolos e significados.

No estudo em tela, os fazeres das diferentes modalidades de atividades produtivas, além

de outras de teor mais simbólico, entendidos como elementos culturais, envolvem a coleta do

açaí, a pesca, a fazição da farinha, o fazer a roça, as práticas artesanais do tecer com talas e

cipós, as rezas antigas nos festejos religiosos ou o brincar formô (especificada mais adiante), e

configuram-se como processos educativos na vida das pessoas, já que, conforme proposto por

Brandão (2005), “[...] Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos

a vida com a educação” (BRANDÃO, 2005, p.07).

Com base na contextualidade amazônica, o propósito aqui é mapear os fazeres oriundos

de um peculiar modo de vida, através de um exercício de compreensão de suas lógicas próprias.

O maior detalhamento e reflexão centram-se no cultivo das roças e na extração do açaí (Euterpe

oleacea), os demais fazeres, apresento-os com dados, com imagens e com descrições

construídas ao longo da pesquisa, pois eles compõem o conjunto da análise sobre o trabalho na

105 Em geral, nas terras amazônicas, muitos são os produtos agrícolas com preponderância de alguns e, no caso,

das ilhas de Abaetetuba, a cana de açúcar e o miriti, assim como a extração da argila, foram fortes e vítimas de

uma economia capitalista em evolução até meados da década de 1990 (MACHADO, 2008). 106 Concebido como labuta do viver no sentido dado pelos agricultores, constitui-se saber, produção e manifestação

da cultura dos quilombolas. O trabalho tem valor ético (BRANDÃO, 1999; WOORTMANN, 1990).

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vida cotidiana. Vale dizer que o acesso às informações, o foco da pesquisa e o tempo de incursão

no campo foram sinalizadores de meu esforço de adensamento etnográfico. E isto resultou em

que alguns fazeres foram mais pesquisados e discutidos do que outros, levando em conta o

recorte da tese.

Lavoura de subsistência

* As roças

Recitada no quintal de sua casa, quando eu realizava uma vivência de campo com

crianças, a poesia do senhor Lucindo Rodrigues faz-se oportuna aqui:

Maio estou roçando

Junho derribando

Dou dois meses para secar

Para setembro queimar

com toda dedicação

meto a maniva no chão

vejo o rebento brotar

aí é só esperar

Pra da terra tirar meu pão

Pra completar a beleza

capricho bem na limpeza

pra mandioca crescer

assim não meço esforço arranco e jogo no poço

que é pra ela amolecer

Da mandioca eu tiro

o gostoso tucupi e também a tapioca

que encontra-se aqui e ali

que fazemos o tacacá que é a

cara do Pará, igualando ao açaí.

Descasco, preparo a massa e

espremo no tipiti, depois levo

a peneira para transformá-la em cuir

Em seguida levo ao forno

não tão quente e nem morno

depois de vê torradinha

eu a chamo de farinha [...].

Numa linguagem muito própria, a poesia ilustra com palavras o fazer da roça, entre o

cultivo da mandioca e o beneficiamento da farinha. Ressoa nela o saber do fazer, as bases da

alimentação do povo e os segredos do viver na floresta.

No centro encontra-se o plantio principal, o da mandioca (Manihot esculenta). Além da

mandioca, eles cultivam macaxeira, gergelim, arroz, milho, jerimum, cana de açúcar e maxixe.

No entanto, diferenciam-se os cultivares entre os agricultores e entre as diversas formas de

cultivá-los. Por exemplo, há os(as) lavradores(as) que plantam levando em consideração o

tempo da lua enquanto outros não.

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106

Os que plantam, cultivam espécies diferenciadas de mandioca nas roças, a qual apresento

na tabela abaixo, segundo tipos especificados e seus respectivos nomes, dados pelos

quilombolas.

Tabela 10 – Cultivo da mandioca

Plantio Relatos de saber

Tipos de mandioca:

pacajá, pretinha,

zulhuda, saracura, são

tomé, tachi vovó,

caramujo, cardosa,

tomazia.

Tipos de macaxeira:

barcarena, madalena,

santo antônio, amarela.

Nomes: feixe ou

maniveira107.

O mato da capina vai apodrecer e é o melhor adubo que tem pra maniva é o mato

que apodrece. E se não for bem queimada fica trabalhosa de mato. O mato tira a

força da raiz, por isso tem que ter a primeira capina, com mais ou menos dois meses

de plantio. Até porque quem manda na roça é a capina no tempo certo, senão não dá

mandioca.

A maniveira põe dois em cada buraco, porque pelo menos um vai brotar.

Na área de varja não dá para fazer roça e se for lugar baixo também não serve

para o plantio.

O replantio, na apropriação deles é quando tiramos a mandioca, a terra descansa e

plantamos novamente nesse lugar. Dona Morena relatou sobre esse saber: Porque

você faz uma roça agora na mata, quando for pro ano que vem, você pode replantar.

Aí ela vai começando enfraquecer e se não adubar, se não fazer um preparativo, ela

não dá. O meu irmão replantou aqui umas três vezes; teve a última vez não deu

nadinha. Não deu mandioca e, também, não cresceu a maniva, porque a gente não

tem aquele de [pausa, silêncio], uma máquina pra adubar essa terra. Porque, assim,

tem lugar que eles fazem isso; todo ano eles adubam a terra pra tornar replantar e

aqui a gente não tem essa coisa de ter condição pra fazer isso (grifos meus).

Fonte: Pesquisa de campo, 2015-2016.

Para os(as) lavradores(as), os nomes das manivas são denominações da antiguidade,

porque a gente já conheceu assim, evidenciando o domínio de um saber que eles detêm na

comunidade e entre os que praticam o cultivo, bem como confirmando uma atitude relacional

de troca das mudas a partir dos vínculos sociais entre os agricultores parceiros.

As roças são porções de terra, que, no dizer deles, é um pedacinho, distribuídas na

propriedade de alguns moradores ou por agrupamento familiar108. No geral, os quilombolas

agricultores possuem duas roças, uma do verão e outra do inverno, em que atuam sob a forma

de revezamento; isto é, quando estão preparando uma, estão colhendo a outra, fato que também

foi verificado em outros estudos (TRINDADE, 2015; FARIA, 2009; RODRIGUES, 2013).

Ainda com relação às roças a tabela a seguir apresenta o quantitativo delas, com base nas

informações dos entrevistados, e das visitações aos espaços. Ele é algo impreciso devido às

próprias alterações ocorridas durante a pesquisa.

107 É o pedaço (muda) da raiz da mandioca, plantado na roça. 108 Um pedacinho, mede aproximadamente 25 x 25 metros. Há outros de no máximo cem metros ou um hectare.

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107

Tabela 11 – O quantitativo de roças

Nº Dono Roças Localização

01 Nelita e Francisco 03 Próximo do Ramal Santo André, afastado de sua casa

02 Carlinho109 03 Próximo do Ramal Santo André, próximo de sua casa e do igarapé

Aricuru

03 Nilson/Domingas 04 No terreno, próximo de sua casa

04 Benedita 04 No terreno, próximo de sua casa e do ramal

05 Domício 03 No terreno, próximo de sua casa

06 Elisa 02 No terreno, atrás de sua casa

07 Dilo e Arlete 02 No centro, afastado de sua casa

08 Mucito 02 Ao lado da Escola Santo André

09 Pelé 01 No centro, afastado de sua casa

10 Morena 02 No centro, afastado de sua casa

11 Zoca 02 No terreno, atrás de sua casa

12 Rosana 03 No centro, afastado de sua casa

13 Onória 02 No centro, afastado de sua casa

14 Sabá 01 Próximo do Ramal Santo André e em frente ao retiro da Elisa.

Total 34

Fonte: Pesquisa de Campo, 2015 a 2017.

Tanto na comunidade como em outras localidades do entorno, em se tratando do trabalho

na roça ou no roçado110, ele é dividido entre as seguintes etapas: a preparação da área de a ser

cultivada, com a derriba das árvores; a queima que ocorre em novembro na espera das chuvas;

o plantio numa sequência de cultivares que os agricultores vão adicionando continuadamente,

sendo em maior número a maniva; as capinas das plantas que entre o tempo de cultivo e o da

colheita levam em média entre seis meses a um ano para amadurecer. Este processamento do

fazer roça é bastante similar à descrição que faz Motta-Maués (1993). E falando da apropriação

do saber por um quilombola, o senhor Santana Diogo de Couto:

É 25 por 25. Vai, roça tudo, depois deixa secar um pouquinho aquele mato. A pessoa

vai com a motosserra, uma enxada derruba o pau maior. Deixa secar de novo, passa

um mês, mês e meio para meter fogo. Depois de meter fogo, vem a limpa da roça.

Tira o pau maior, tira os paus menores; depois de tirado tudo, vai ser plantado, deixa

de novo crescer uma faixa de um palmo e pouco de maniva e já vem a capina, a

primeira e segunda capina. Deixa amadurecer, põe a mandioca pro puçu [poço] e deixa

passar uns cinco dias para fazer a farinha. É só mesmo pra quem gosta de trabalhar

nisso mesmo, mas não é um serviço muito manso (Santana de Couto, entrevista,

04/2016).

Durante a observação fiz algumas fotografias deles lavrando, e aqui exponho algumas

que discriminam os passos dos fazeres.

109 Senhor Carlos Gomes. A área onde fica sua casa, roça e retiro fica próximo do igarapé Aricuru, cedida pelo

Mesak de Carvalho Araújo, a mais de dez anos. Ele é referência para outros agricultores por conta do seu búfalo

que faz o carreio de lenha e de mandioca para maioria deles. 110 Referem-se ao roçado a área que ainda não houve a derriba das árvores grandes.

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108

Figura 04 – Memorial fotográfico da roça

Autora: POJO, E.C., Jan. 2015.

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109

Por meio das narrativas percebi que a maior parte dos entrevistados se reconhece como

agricultores e/ou lavradores. Esta é uma identificação dada às pessoas que realizam atividades

produtivas na terra, na roça, conforme especifico melhor em uma das primeiras notas.

Quando se trata do domínio do saber, as pessoas são incisivas no argumento: quem tem a

prática da roça são os pais. Assim, afirma Rosana, uma jovem agricultora de 33 anos, filha do

seu Nilson: Eu não estudei muito, porque ia mais pra roça com o papai. Nessa mesma direção,

Carlinho afirma:

Meu pai tinha roça e trabalhava com ele, aprendi. Passando de nove, dez anos a gente

já começava a caminhar pra roça e eu fiquei com esse dom deles desde pequeno.

Aprendi com eles. Três filhos ficaram com o saber. Porque naquela época a gente

estudava de manhã, eles trabalhavam meio tempo na roça e quando a gente chegava

ia levar a comida lá no serviço que era pra gente não empatar de fazer outras coisas.

Quando chegava lá eles estavam plantando, capinando. [...]. Os meus tios trabalhavam

com meus avós. Eu tenho um tio que antes de morrer sempre me aconselhava e dizia

que não dá para enricar, mas dá pra comer e manter, todo tempo vai fazendo. É uma

coisa que gostei, porque a gente depende da gente mesmo, o que faz é lucro. Esse ano

vou roçar quatro tarefas de roça que a gente fala, mesmo que quatro hectares de roça.

Se eu roçar esse ano, no outro ano tenho que fazer o mesmo plantio se a gente for

vender [...] (Carlos Gomes, entrevista, 04/2016, grifos meus).

Neste fazer, a divisão do trabalho entre os gêneros ocorre da seguinte forma: o derribar

e a roçação é de responsabilidade do homem; do plantio, participa toda família, inclusive

algumas poucas crianças, sem obrigação de “dar conta de qualquer produção”. A capina é quase

sempre praticada pelas mulheres, com pouca interferência dos homens enquanto que a colheita

é partilhada por todos. Observei que nas famílias envolvidas com este trabalho nem sempre é o

homem quem possui o controle, tal como encontrei em outros estudos (FERNANDES, 2011;

MOTTA-MAUÉS, 1993). Identifiquei no campo mulheres (Arlete, Benedita e Morena)

exercendo atividades e tomando decisões sobre o trabalho na lavoura, assim como na condução

das atividades do retiro, relativizando o caráter do ‘agricultor familiar masculino’, com a

evidência de um certo protagonismo da mulher e de valorização do seu trabalho.

Com base nas minhas observações e acompanhando alguns fazeres em campo, constatei

que a maioria dos que fazem roça são produtores da fazição da farinha. Entretanto, a recíproca

não é verdadeira. É o caso do senhor Mucito, produtor de roça. Ele utiliza o serviço de diarista

da Elisa (dona de retiro e de roça) para fazer a farinha, afirmando não dar mais conta e por não

ter mais tempo, já que é dono de uma mercearia. De resto, nem todos os produtores de roça e

os que fazem farinha possuem um retiro. Mas, há uma relação direta entre o cultivo da

mandioca, a produção da farinha e o ser dono de retiro por conta das relações de ajuda, de

negociação, de amizade, de vizinhança e de parentesco.

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110

Uma fala recorrente por parte dos quilombolas envolvidos com a lavoura é a de que o

plantar diminuiu consideravelmente, pois muitos não querem mais essa prática, justificado por

ser um serviço pesado e com pouco ganho para a família. E também, devido à ausência de uma

infraestrutura adequada para fazê-lo, obrigando-os a pagarem diárias para realização de parte

dos fazeres como a roçação ou derriba. Ela é uma prática exercida por quilombolas mais

velhos, e vários estão morendo ou não “dão mais conta do serviço”, acrescento a isto os

frequentes roubos nas plantações como um fator de desestímulo. Finalmente, muitos pais

julgam que o trabalho na roça é uma outra forma de criação dos filhos, mas eles cada vez mais,

não querem o trabalho com a terra.

Dona Nelita, trabalhadora da roça, relatou-me como aquele é um serviço pesado.

Afirmava ela que para fazer quatro tarefas de roça, precisa de no mínimo quatro pessoas

distribuídas nas ações: quatro plantando, uma abrindo a terra e outra fechando a cova com a

maniva. Ela e seu esposo para abrirem uma roça usando esta estratégia, contam com o serviço

de um filho e de um vizinho, pagos pela diária. E sintetizou: é muito serviço e pouco dinheiro,

o que se produz é somente para o consumo da família. Elisa e seu esposo dialogando comigo

quando visitava sua roça faziam uma comparação entre o trabalho da olaria e o da lavoura,

referindo-se à escolha dos jovens em laborar nas olarias. Dizia ela:

E: Ele [marido] fala que o serviço da roça ganha mais do que na olaria. É que uma

diária de limpeza é 45 e na olaria ele faz 500 telhas e não ganha 45 reais.

Eliana: Eles pagam por quantidade de telha ou na diária?

E: Quantidade de telha. Aí sai menos. Se ele fizer 500 telhas, ele ganha uns 25 reais,

por aí. Olha, sai 30 reais, são 6 reais o cento.

Eliana: Na capina é mais?

E: Mas também é mais pesado o serviço.

M: É, se ele ir umas 5 horas da manhã faz umas 500 telhas quando for meio dia, 11

horas já tá parado, já ganhou os 30 reais dele, mas aqui na roça, pra ele ganhar 50

reais, ele vai ter que pular de 7 horas e parar só 4 e meia. É um dia inteiro. No sol, no

pesado, o cara que não tá acostumado, não dá conta (Elisângela Ferreira, entrevista,

06/2016).

Complementando e confirmando as explicações das agricultoras e agricultores

mencionados acima, a tabela abaixo traz outros depoimentos e preços de serviços nessa

atividade.

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111

Tabela 12 – Relatos sobre as roças e alguns preços de serviços

Relatos de saber Valores e Tempos

O tempo para a roça amadurecer é, em média, um ano.

Trabalho às vezes, porque não tem outro ramo.

O que a gente faz não tem valor o que se produz, só o do

comércio que dão valor.

Tem gente que não trabalha, porque não dá lucro e, ainda,

tem o caso de jogar na justiça, pagar se a pessoa adoecer no

serviço.

No trabalho da roça, o valor da diária é maior, só que é no

sol e serviço pesado. É o dia todo de serviço.

Se a gente tivesse capital, ficava só numa área, abria mais

um pouco e pronto, parava. Ficava só dobrando, só dobrando.

* Drenar a terra. Valor: R$100,00 (por 01

hora)

* Roçar com terçado. Valor: R$25,00 = 01

diária (manhã)

* Capinar. Valor: R$40,00 = 01 diária (de 06

as 11h da manhã)

* Derrubar com motosserra. Valor: R$50,00 =

a diária ou R$120,00, por área.

* Roçar e desmatar. No dizer deles, a

empreitada é acordada para uma tarefa,

correspondendo a um dia na atividade de roçar

ou derrubar, com duas pessoas trabalhando.

Valor: R$ 60,00 a R$250,00.

* Plantio (1 hectare de terra) – 4 dias – 6

diárias – 6 pessoas. Valor: R$40,00 = diária

(metade do dia).

Fonte: Pesquisa de campo, 2015-2016.

A tabela reúne depoimentos e informações sobre o saber fazer da roça, bem como

apresenta visões sobre as condições deste trabalho. Sobressai a sentença: o trabalho na lavoura

tem que se pagar tudo, pois grande parte dos fazeres demandam pagamento em dinheiro,

mesmo sendo a maior parte da produção para o usufruto da família. Segundo o depoimento da

maioria, para fazer uma roça, mesmo que pequena, recorre-se à diária, à troca de serviço ou se

paga através de um produto, como farinha ou lenha. E os valores variam conforme o diarista, o

dono da roça, o tamanho da área, o tempo gasto e o tipo de mata ou roça. Dizia sobre isto dona

Morena, agricultora desde sempre.

Desde criança, nós ia pra roça. Meu pai com a minha mãe e a gente ajudava. A roça é

uma coisa que tem que ser a família trabalhando, principalmente quem não tem o

capital. Se não tiver o capital, fica difícil, a gente não tem dinheiro para pagar o

trabalhador, né? Assim, nós sempre trabalhemos assim, juntos. Desde o princípio [...]

(Maria Santana Rodrigues, entrevista, 06/2016).

Durante as muitas andanças no território, somado ao conjunto de explicações que ouvi e

registrei, ficou evidente que as pessoas enfrentam dificuldades para manterem o sustento

familiar somente com o que produzem, embora atuem em várias alternativas laborais para

complementar a renda. Continuando a análise do trabalho na lavoura, os seguintes depoimentos

enfatizam as mudanças que vêm ocorrendo.

[...] a gente já não depende só, digamos assim, do trabalho da lavoura, porque uma

das situações é essa: algum tempo atrás, na comunidade, as famílias passavam muitas

necessidades por conta de depender só disso, da mandioca e, hoje, algumas pessoas,

por não terem levado tão a sério o trabalho da mandioca, estão sendo penalizadas,

porque olha o valor da farinha. Então, a gente tá tentando buscar formação dentro

desse perfil pra você produzir mais, trabalhando menos [...] (professora e agricultora,

2015).

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[...] a minha avó era uma das maiores lavradoras da comunidade e, também, meu avô.

Estão idosos e eles não conseguem mais trabalhar e vivem só da aposentadoria. E os

jovens que tão começando, muitos não querem saber da roça, aí se não tiver um

trabalho voltado pra agricultura, pra lavoura, como vai ser? A tendência é ficar ainda

mais caro a farinha, principalmente aqui na nossa região, que nós somos os ditos

lavradores. Mas, cadê as roças? Porque teve essa quebra do vínculo em relação a roça,

principalmente depois que entrou, por exemplo, o Bolsa Família. Tem gente que só

quer depender da renda do Bolsa Família em vez de investir na sua produção, ele se

acomodou [...] (agricultora e moradora do rio Arapapuzinho, 2015).

Em se tratando da reprodução da vida, em certa medida, “o homem continua a trabalhar

mesmo quando a sua produtividade marginal é inferior ao seu custo de subsistência” (VELHO,

1972, p.164). Por meio da manutenção da família em suas necessidades cotidianas e de suas

motivações da escolha de permanência no mundo rural, eles resistem e persistem com suas

práticas sociais, atividades laborais e saberes partilhados e consagrados.

Em uma outra versão, o desenho e escrito do estudante pode contribuir nesta análise. Ele

foi produzido por ocasião do projeto acadêmico no GEPESEED e, bem demonstra os saberes

das crianças sobre as atividades laborais na comunidade, detalhados no capítulo V.

Desenho 04 – A roça

Fonte: Arquivo GEPESEED, 2013 / Autoria: P.S., (12a).

Ao mesmo tempo, a presente criação do estudante sobre a lavoura corrobora com as

afirmações trazidas pelos agricultores, lembrando aqui, de que eles estão envolvidos não só

material, como também culturalmente com a terra. Por outro lado, as crianças e os adolescentes

vão incorporando, na convivência cotidiana, símbolos e saberes do trabalho e da vida local, tal

como estão representados pelo desenho acima.

Termino esta seção afirmando a relevância social da lavoura por parte dos agricultores.

Presenciei o casal Francisco e Nelita relatarem sobre a importância que o trabalho da roça

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possui para eles. Suas duas roças ficam próximas do ramal Santo André e das do Carlinho. Eles

trabalham em conjunto com os diaristas (Pelé e um filho) e ao lado de outras pessoas que atuam

em outras roças. Tanto ele quanto sua mulher conhecem tudo de roça. Eles ressaltam com

admiração os pais por terem ensinado a eles esse saber fazer, pois assim conseguiram criar os

filhos, além de comerem uma boa farinha. Já em sua casa, entreguei uma foto dela capinando

a roça; ela a recebeu dando-me um abraço e com uma declaração que dizia: vou guardar para

mostrar para meus netos o quanto é bonito meu trabalho na roça [risos].

3.1 – Os fazeres nos retiros

Como consta do capítulo I, a economia do município é movimentada pelo comércio,

sendo a beira o seu maior canal social e econômico. Além do açaí, a cidade é uma das

produtoras do pescado na região, junto com as atividades de construção naval e das olarias.

Agora, mesmo a mandioca (Manihot esculenta Crantz) sendo um dos principais produtos da

agricultura do lugar, ainda é necessário completar o que falta com a compra de parte da farinha

vinda de fora para o consumo da população.

Nahum & Santos (2013) em seus escritos sobre a expansão da dendeicultura no nordeste

paraense enfatiza a importância do cultivo da mandioca no Pará, em especial no Moju,

município vizinho de Abaetetuba:

A cultura da mandioca tem importância social e econômica para milhares de famílias

distribuídas em inúmeras comunidades dos diferentes rincões desta fração da

Amazônia. Os pequenos agricultores têm seu sustento advindo do cultivo da mandioca

e da produção de farinha, que representa 80% a 85% da renda familiar. [...]. Essa

cultura é fundamental na composição da dieta alimentar de colonos das comunidades

do interior do município (NAHUM; SANTOS, 2013, p.66).

De acordo com os documentos oficiais da Embrapa produzidos por técnicos e

pesquisadores da agricultura familiar.

O Pará, nos últimos anos, vem liderando a produção nacional de mandioca,

destacando-se como maior produtor, o que tem permitido atender à demanda interna

de farinha, principal produto comercializado, e gerar excedentes que são exportados

para os estados vizinhos da Amazônia e de outras regiões do Brasil (CARDOSO et

al., 2001, p.05).

Além de geradora de trabalho, a farinha é um alimento indispensável na mesa dos

quilombolas. A fertilidade de sua produção como um elemento essencial de trocas, de tradição

e de fomento da cultura, ela se faz importante quando se pensa nas relações individualistas

versus as comunitárias em tempos atuais e, em diálogo, com formas organizativas de fazer o

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saber, uma das questões da presente tese. Assim, uma das minhas questões é: o que circula em

termos relacionais durante e no processo de fazição da farinha nos retiros, enquanto realidade

educativa, sociocultural e econômica?

O espaço das fazição é identificado pelos agricultores como retiro, uma espécie de

barracão coberto com telhas ou palhas e sem paredes. Constam de toras de pau que funcionam

como bancos, de alguns tijolos arrumados com lenha onde fazem a boia, uma panela preta,

copos e garrafas com água, além dos utensílios e equipamentos utilizados no processamento da

mandioca. Somente alguns produtores possuem o tanque em alvenaria para o amolecimento da

raiz e o búfalo, que serve de força de tração no translado da lenha e da raiz. A maioria dos

agricultores utilizam a bicicleta para o carregamento. Em muitos municípios do Pará costumam

identificá-lo como Casa de Farinha (CARDOSO et al., 2001).

Os espaços do trabalho localizam-se mais ou menos próximos uns dos outros. Todos estão

cercados por árvores, ficando distantes das roças e próximos aos arredores das casas dos

respectivos donos. Dois deles ficam ao lado dos igarapés Aricuru e Patauá, como é o caso dos

espaços de dona Benedita e seu Dilo, respectivamente. O da Nelita, da Morena, da Elisa e do

Domício ficam nas proximidades da escola Santo André. Eles foram mapeados geográfica e

socialmente da seguinte maneira:

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Figura 05 – Croqui de localização dos retiros

Fonte: Pesquisa de Campo, 2016 / Arte: Marinaldo Araújo.

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É comum produzirem, além da farinha d’água, outros derivados como: beijús, bolos de

macaxeira, paçoca, farinha de tapioca, tucupi, goma e crueira111. Retiram a folha da maniva

para ser utilizada na feitura do prato típico paraense, a maniçoba. Toda esta produção é

maciçamente para o consumo doméstico, sendo pouco utilizada para a venda, e quando ela

acontece, é sempre sob encomenda. Iguarias locais estas recheadas de sabores e de saberes112.

Também sobressai no local uma dinâmica peculiar do alimentar-se. Todas as pessoas que

ali chegam, ou que lá estão, alimentam-se do que tem: tomam o tradicional cafezinho e na hora

da merenda, como dizem, tomam mingau de açaí ou de arroz. Muitas vezes o almoço é feito no

próprio retiro, em outras ocasiões chega pronto, acompanhado do bom e gostoso açaí.

Frequentemente fui convidada pelos agricultores a compartilhar destes momentos: - Tome

mingau de arroz com açaí; é o que temos. Tratando de contextos similares, Brandão (2007,

p.51) afirma que:

[...] o que aproxima as comunidades indígenas, quilombolas, e as ainda existentes (e

cada vez mais raras) comunidades regionais tradicionais camponesas semi-isoladas, é

o fato de que entre elas o tempo ainda é mais “comida” do que “dinheiro”. E o correr

da vida se passa no interior de uma natureza ainda pouco socializada, ainda apenas

aos fragmentos, realizada e pensada como cultura.

Não é à toa que muitos moradores dizem: - Trabalhamos para ter o que comer. Presenciei

durante minhas andanças, em tempos diferentes, mulheres e homens pescando camarão,

carregando lenha para o fogão, no plantio da roça, na produção da farinha, debulhando o açaí,

todos atrás de defender o da boia.

Sabemos já que os retiros são espaços sociais. E, semelhante às demais atividades, nesses

espaços a mão de obra é familiar, e com o emprego de intensa força física. Atualmente mudou

o nível de produtividade da farinha ocasionado por vários fatores: diminuição do cultivo das

roças devido à escassez da mão obra dos agricultores, à falta de infraestrutura nos espaços e ao

alto preço da farinha em relação ao esforço dispensado no fazer.

O casal Lucindo e Morena, junto com sua filha Iracema, durante uma das nossas

conversas comentou sobre a situação, após eu perguntar sobre o ganho deles:

L: É como eu estava te falando, se a gente fosse vender a farinha pelo preço justo pra

nós, vendemos barato porque é um processo de economia de subsistência como diz,

porque tudo que a gente gasta pra fazer a roça, capinar, trabalho e o dinheiro da venda

111 A goma é extraída da mandioca e serve para fazer a famosa tapioca, iguaria típica paraense. A crueira, são

pequenos pedaços de mandioca ralada que não passam na peneira onde se coa a massa, utilizada para mingau. 112 A exemplo, dona Nelita, gentilmente, durante uma conversa informal descreve como se produz o delicioso

beiju: amassa a mandioca amarela e rala a castanha. Prepara a massa; espreme, coa, põe a castanha e sal. Põe

a massa na folha da bananeira ou pororoca, arma o beiju e leva ao forno para assar (Pesquisa de campo, 2016,

grifo meu).

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não compensa. Então, tem outro processo que é mais industrializado que é uma

maquinaria que mexe a farinha no forno. Já com o catitu é pouco serviço, a quantidade

é maior e nesses outros processos compensa o preço, vai da produção. Na verdade não

é que seja barato, o nosso processo que continua o mesmo. O processo de

industrialização barateou a farinha e nós não acompanhamos. [...] Agora, o cara

manda fazer uma roça com trator, o trator vai revira tudo e deixa pronto para plantar,

joga adubo, então olha a diferença, num dia eles aprontam e adubam a roça. Espia o

tamanho da mandioca!

M: Daqui com um pouco de tempo ainda vão nos processar porque estamos fazendo

queimada [risos]. Eles querem fazer uma lei, mas eles não ajudam porque se pra cada

localidade ele desse um trator para ajudar o povo, não tinha esse negócio de queimada.

Mas a gente não tem capital nem para fazer a farinha, nem para plantar. A gente planta

essas coisas que é pra ajudar.

L: A lei só é pra pobre, essas leis.

I: O farinheiro, o roceiro, ele não investe no trabalho dele, né? Olha, eles fazem uma

casa dessa comum, só coberta, tendo um forno e uma tábua para coar. Não investem

numa estrutura adequada devido condição financeira, do lucro que não dá. Não tem

aquilo “ah, fulano ajudou”, “o governo ajudou”, a não ser que pegue dinheiro

emprestado [pausa, silêncio]. Mas aqui o que faria: alvenaria, piso bem feito, cercado

para animal não entrar, o cocho também. Porque existe lugares que fazem farinha

muito pior do que esse aqui, mas a gente não tem [...]. Aí o farinheiro não investe nos

retiros. Pra nós é normal, nem faz mal, porque nós nos sentimos melhor com essa

farinha aqui do que com a que vem ralada. Nós já estamos acostumados, mas uma

pessoa que vê não vai querer, mas nós nem adoece, acho que nosso remédio é essa

raiz. Até porque ela passa por um cozimento, um processo muito longo [...] (Pesquisa

de campo, 2016).

Suas observações sobre a lavoura expressam uma consciência das particularidades do

fazer, do saber, do que ocorre na produção e do que eles reivindicam, reclamando sobre a dureza

do trabalho, das condições estruturais e do espaço.

Segundo os escritos de Cardoso et al. (2001) os tipos de unidade de processamento da

farinha de mandioca, no Estado do Pará, são: casa de farinha de mandioca tradicional e a

mecanizada. No caso da comunidade o processo ocorre de maneira similar ao definido como

tradicional, sendo

[...] artesanal, onde todas as fases do processamento são feitas manualmente,

utilizando utensílios rústicos. Nesta unidade, a trituração das raízes é feita em

raladores manuais, denominados caititus. A prensagem da massa é realizada em

prensas rústicas, confeccionadas de fibras de folhas de palmeiras (tipiti) ou de

madeira. A torração da massa é feita manualmente, em fornos com chapa de ferro,

usando lenha como combustível. Algumas destas casas de farinha já introduziram a

prensa de madeira, em que a força de prensagem é feita através de eixo de fuso. Outra

melhoria introduzida, em algumas casas de farinha, refere-se aos caititus (ralador),

tracionados por motores movidos a óleo diesel, gasolina, ou eletricidade, conforme as

facilidades do local. Neste último caso, diz-se que a casa de farinha é semi-

mecanizada (CARDOSO et al., 2001, pp.10-11).

A forma mecanizada é utilizada pelos grandes produtores de farinha, presentes em

fábricas e cooperativas. Eles possuem maquinário tecnológico moderno e normalmente estão

localizados próximos às cidades. Na comunidade a maioria dos retiros não possui o catitu para

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a trituração da mandioca. Para a queima, os produtores de farinha utilizam a lenha para produzir

o fogo nos fornos.

Em seu relato, o quilombola Carlinho instigava:

[...] Agora se tivesse um recurso assim pra gente ter e fazer uma coisa melhor. Porque

tudo aqui é resultado da pessoa, porque se o cara ficar parado ele não faz nada. Quando

a senhora foi a primeira vez lá, a senhora viu como é. Agora esse ano graças a Deus

ele nos ajudou e trabalhamos um monte aí, já fizemos um barraco melhor, é assim que

eu penso. Porque a maioria vendeu muitas terras e vão mudando, também construindo

fazenda e ficou pouca gente. Não tem mais aquele interesse como era de primeiro. É

como te falei é mais para consumo da gente. Olha! Eu tenho toda essa idade de 44

anos e não sei dizer quanto custa um quilo de farinha na cidade (Carlos Gomes,

entrevista, 04/2016).

O relato evidencia a incessante luta por um viver digno através do trabalho113.

Perguntando para o trabalhador sobre o que faltaria para melhorar a comunidade, ele enfatizou

a ausência de compromisso e o engajamento das pessoas, enquanto atitude e ação coletiva do

território, tal como procurei retratar no capítulo I.

O que falta pra mim é união, que cada um quer fazer pra si. Se tivesse uma união pra

fazer pra todos era mais importante. A gente podia ter uma casa de farinha boa que

nem tem uma no Alto Itacuruçá, ali na beira da estrada tem outra. Se tivesse uma

união aqui a gente fazia um ritiro e a gente estaria melhor, pra trabalhar (Idem).

As explicações dos produtores a respeito dos retiros existentes, enfatizam os seguintes

aspectos: linguagem própria, valores, utensílios, formas de negociação dos espaços e usos estão

descritos na tabela a seguir.

113 A título de ilustração, seu Dilo reparte roça e o labor com a nora. Ela me ajuda a plantar e o que dá nós divide.

(Pesquisa de campo, 2015).

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Tabela 13 – Os retiros de farinha

Identificação dos retiros

Negociação e Uso

Quem trabalha

Quantidade

diária de

produção

Instrumentos Utilizados

01 Do Domício. Fica às proximidades da

Escola Santo André

Cede sem nada em troca

Troca com farinha

Cobra um valor (depende da

situação)

Uso próprio

Família e parentes.

Família do senhor

Nilson

Em média, 08

sacos de 30kg

cada.

Aturá – Cesto em forma de paneiro que carregam a

mandioca.

Forno – local onde se processa o cozimento de

farinha;

Cuia Pitinga – utensílio para tirar a farinha do forno

e levada à tábua para esfriar;

Tábua de farinha - local de colocar a farinha para

esfriar;

Tábua de moer ou masseira – local de colocar a

massa de mandioca para ser amassada e coada;

Rodo – utensílio de mexer a massa da farinha no

forno, feito artesanalmente em madeira;

Tipitieiro – local de prender o tipiti;

Tipiti – utensílio de colocar a mandioca para

espremer o tucupi, tipo de prensa;

Catitu – maquinário acoplado à madeira, utilizado

para triturar a mandioca;

Peneira – utensílio feito de tala e serve para coar a

massa da mandioca;

Mão de pilão – utensílio utilizado para bater a massa

da mandioca.

Paneiro – utensílio de retirar a mandioca do poço.

Balde de plástico - utensílio de retirar a mandioca do

poço.

Poço – área de olho d'água e cavado onde

armazenam a mandioca para amolecer.

Tanque – área quadrada e em alvenaria que serve

para colocar mandioca para amolecer.

02 Do Francisco e da Nelita. Fica uns 200

metros da Escola Santo André

Cede (empresta) e os produtores

recompensam com farinha

Uso Próprio

O casal;

Vizinhos quando

solicitam

Em média, 05

sacos de 30kg

cada.

03 Da Elisa e do Cural. Fica às proximidades

do ramal Santo André e, também da

Escola Santo André

Uso próprio

Às vezes empresta para vizinhos

O casal;

Vizinhos

Em média, 04

sacos de 30kg

cada.

04 Da Bena. Fica na mesma área do senhor

Dilo, por serem aparentados

Cede para conhecido

Uso próprio.

Família

Vizinhos

Em média, 05

sacos de 30kg

cada.

05 Do Dilo e da Arlete. Fica às proximidades

do igarapé Patauá

Empresta, mas está suspenso

devido a um problema com o forno

Família Em média, 04

sacos de 30kg

cada.

06 Do Carlinho. Fica no meio da mata e

distante da Escola Santo André

Negocia em troca de farinha

Uso próprio

Família

Vizinhos

Em média, 06

sacos de 15kg

cada. 07 Da dona Morena. São dois retiros: um fica

atrás de sua casa e o outro na extremidade

do rio Arapapuzinho

Uso próprio Família Em média, 06

sacos de 15kg

cada.

08 Da Corinta Desativado, pois a família mudou para a cidade de Abaetetuba

* Segundo dona Onória, sua família encontra-se em processo de construção de um retiro, atrás da escola. Fonte: Pesquisa de campo, 2016.

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Reitero que os quilombolas geralmente negociam o uso dos retiros de diferentes maneiras:

emprestam ou trocam com farinha; cedem e não pedem nada em troca ou: deixo fazer para

ajudar, pois ele é meu parente, como disse seu Domício, confirmando nexos de parceria, ajuda

e troca. É assim que estes espaços promovem diversos fazeres com a atuação dos trabalhadores

seja como diarista, seja como ajudante, seja, ainda, prestando serviço de carreio114.

Ainda sobre o uso dos retiros solicitei para dona Benedita relatar como ocorre esse

processo.

Tem o pessoal do seu Nilson, eles não têm retiro. Eles emprestam do Carlinho e tem

vez que eles emprestam o nosso para fazer. É assim que funciona, a gente dá pra eles

fazerem a farinha, mas tem gente que aluga. É dois quilos de farinha por fornada no

Médio que cobram. Às vezes eles me dão farinha por eles mesmo, né? que eu não

peço, às vezes eu tenho. Só quando tenho pouco, já tá acabando a minha, eu digo:

olha, me dá só uma comida, mas às vezes não. Porque também a deles é pouco, pra

gente ainda pedir farinha deles [...]. Faço troca e venda direto com a Nelita, se ela não

tem farinha ela manda me emprestar [pausa, silêncio] se não tenho eu empresto dela

(Benedita Couto, entrevista, 08/2015).

Segundo alguns agricultores, no Arapapuzinho e Médio Itacuruçá os donos de retiros

cobram uma cabeça de farinha para o empréstimo115. Carlinho exige normalmente para cada

duas cabeças de farinha, quinze quilogramas. Santana explica

[...] agora o retiro aqui é do rapaz aí [Carlinho]. E ele disse olha coloca a mandioca de

vocês, fica na amizade ou na lata de farinha. A gente tira uma lata e já dá pra ele, a

gente só paga mesmo o boi pra ele. Porque quando a gente pede um aliado a gente dá

pra ele no retiro. A gente vem e ajuda. Um aliado é uma equipe de duas a três pessoas

para ajudar. Pede para os amigos ajudar no serviço, fincar um esteio na casa. Uma

ajuda de comunidade (Santana do Couto, entrevista, 06/2016).

As regras de organização de tais espaços se efetivam a partir do que cada membro conhece

a respeito do fazer prático e da ética das relações estabelecidas. Em termos de práticas do fazer,

assemelham-se aos exercidos em outras atividades como o fazer roça ou a produção das olarias.

Nos procedimentos do gerenciamento entre vínculos familiares, os espaços do trabalho

individual ou coletivo funcionam como círculos de convívio social pois estabelecem múltiplas

formas de negociação visando a produtividade necessária.

Estes espaços procedem da tradição da lavoura pelas famílias quilombolas, sendo uma

das atividades mais antigas. Os donos preservam não só o seu saber local como também um

resistir ancestral, como é o caso dos retiros do Domício e do Dilo. Na família do primeiro o

retiro existe a mais de quarenta anos, passando de pai para filho. Atualmente ele, por problemas

de saúde estendeu à filha Selma a responsabilidade das roças e do retiro. Ainda assim ele

114 É o carregamento da mandioca ou de madeira na carroça. 115 É uma forma de medida utilizada na pesagem da farinha, o equivalente a 30kg = 01 cabeça.

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preserva a atividade de ralação da mandioca em sua casa com o catitu extraindo tucupi e goma.

A fotografia abaixo foi registrada durante uma visita.

Foto 07 – Senhor Domício ralando mandioca

Autora: POJO, E.C., Jun. 2015.

Seu Dilo foi outro exemplo de agricultor, direcionado pela herança de seus pais.

Através de relações familiares e de vizinhança vai sendo consolidada a fazição da farinha

como um trabalho produtivo. E, aliado às condições e contradições envolvidas neste fazer, entre

negociar e conviver, os agricultores estão em constantes relações de ensinar-aprender, pois

dialogam sobre situações, dinâmicas e pequenas estruturas simbólicas fazendo fluir o saber e o

ensino do saber (BRANDÃO, 1983).

* Extração, manejo e comercialização do açaí116

As palmeiras do açaizeiro (Euterpe oleracea Mart.) fazem parte da paisagem do Itacuruçá

e compartem a sua movimentação econômica, já que nos açaizais a extração, o manejo e a

comercialização do fruto, o açaí (Euterpe oleracea), compõem no seu todo uma outra atividade

importante e que auxilia no sustento familiar. Não obstante, o fruto se destaca como símbolo

cultural, tal como recitou o senhor Lucindo Rodrigues em sua poesia, durante a Feira de

Ciências da escola em novembro de 2015:

[...] Iaça de traz pra frente eu gosto de todo jeito

Apanho com peconha e aperto a árvore no peito

No mingau e no almoço, mamãe amassa do grosso

116 Segundo os moradores, em 2010, desenvolveu-se um projeto de cultivo de açaí pela Empresa de Assistência

Técnica e Extensão Rural do Pará (EMATER), visando o apoio técnico e o empréstimo para organização do plantio

dos agricultores.

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Eu gosto mesmo do preto, por isso eu limpo e planto

Pra não faltar na mesa ter ele todo dia isso pra mim

É riqueza, assim de dentro do mato, eu encho bem o

meu prato e preservo a natureza

Preservar infelizmente é o meu lema e inteligência

Quando não tenho do grosso

A lavagem do caroço pra mim é mais que aparência.

Os açaizais são cultivados em toda extensão territorial; porém, segundo a lógica dos

quilombolas, há diferenças quanto ao tipo de açaí, dependendo da área. Dizem que na terra

firme as árvores crescem fracas por conta do solo, produzindo cachos menores e com poucos

caroços.

A extração do fruto, fazer inicial para a preparação do suco, quando acompanhado da

farinha e de algum tipo de carne, é a base da alimentação das famílias do Itacuruçá e da cidade

de Abaetetuba, junto da farinha de mandioca (CARDOSO, 2012). Não pode faltar na mesa e

[...] quando não tenho do grosso, a lavagem do caroço pra mim é mais que aparência – o

aguado (chula), conforme dito na poesia acima117.

Eu tive a oportunidade de acompanhar as atividades de extração, de manejo e de

comercialização do açaí junto de alguns moradores118. Nesta empreitada, num primeiro

momento, acompanhei o conjunto das atividades junto ao senhor Jota e, em outros momentos,

fui captando diferentes opiniões de forma mais oportuna junto a moradores que se detinham a

comentar, ou estavam realizando alguma ação desse fazer. Do mesmo modo, várias conversas

informais e interlocuções ocorreram na beira, com marreteiros do açaí.

Durante o acompanhamento da atividade segui o itinerário desde a saída para o terreno

onde fica o açaizal, passando pela apanhação119, até a comercialização no trapiche da casa do

morador. Normalmente, envolviam-se no trabalho Jota, o irmão, a esposa, seus dois filhos e um

apanhador que trabalha com ele. Ele me contou que começou a trabalhar com o açaí desde os

onze anos de idade, junto dos pais, permanecendo na atividade até hoje. Quando mais jovem,

ele apenas apanhava o açaí. Hoje ele administra a extração e o cuidado dos açaizais, além de

realizar a marretagem.

Ele relatava não ter frequentado a escola, mas, devido lidar com o processo de compra e

venda, aprendeu com a esposa a escrever seu nome para assinar os cheques. Domina a

117 Chula – como é chamado no Amapá e no Pará, refere-se para o açaí diluído com grande quantidade de água;

aguado. É considerado um açaí de baixa qualidade. 118 Além destes, houve a recolha dos dados junto a família do senhor João Carvalho Pinheiro, 48 anos, conhecido

como Jota. Em sua casa, convivem dois agrupamentos familiar: a do Jota, composta por sua esposa, filho e irmão.

E do seu outro filho mais esposa e filho, confirmando modos de organizarem as famílias, descrita no capítulo II. 119 É o processo de colheita dos cachos, a debulha e o armazenamento dos frutos nas rasas.

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matemática utilizada no dia a dia, sem dificuldades para fazer os cálculos exigidos nas

negociações durante a comercialização do produto.

Mesmo sendo a atividade desenvolvida em parceria com os filhos, cada qual possui sua

área de terra. Essa é uma situação que acontece com a maioria dos moradores da comunidade.

A parceria aqui diz respeito à união em alguns fazeres; isto é, eles se ajudam na apanhação, no

carregamento das rasas, no traslado até o local do embarque em canoas, no plantio e no cuidado

do açaizal. No entanto, cada um negocia e vende com ganho próprio.

Subir no açaizeiro, fazer peconha, identificar o açaí parol, fazer o corte dos cachos,

disbulhar o fruto, são práticas exercidas no cotidiano de quem vive ali, conformando um saber

que configura, em certa medida, a própria identidade dos moradores e do lugar120. Em todo o

processo de conhecimento está envolvido um conjunto de fazeres, de saberes e de técnicas que

em conjunto são exigidos para uma boa produção. Literalmente, a atividade da apanhação do

açaí exige certas habilidades dos quilombolas para subir nas árvores. Apenas esta atividade

aparentemente tão simples evidencia toda uma arte quilombola-ribeirinha-cabocla na paisagem

amazônica.

Até as crianças experimentam dessa arte brincando. E, na maioria das vezes, esta é uma

prática incorporada como a atividade que ajuda a reproduzir a vida individual e a familiar,

quando adultos, casados e pais de filhos.

Além dos adolescentes que são partes de tais práticas, homens e mulheres adultos sobem

nos açaizeiros. O carregamento das rasas até as canoas fica a cargo dos homens, enquanto o

debulhar é realizado predominantemente por mulheres, as disbulhadeiras. Como regra geral,

no período da safra a família inteira ajuda na extração. Os donos de açaizais, na condição de

pequenos agricultores121 contam, na maioria das vezes, com a força de trabalho de vizinhos.

Neste caso, uns recebem uma pontinha ou algumas rasas do fruto; enquanto outros são

contratados de boca para atuarem durante a safra como apanhadores e pagos pela quantidade

de rasas122. A fotografia a seguir é do jovem Tiago Quaresma, carregando a rasa com o açaí

para a margem do igarapé, a ser transportada na rabeta tão logo a maré encha.

120 Parol ou parau - quando o fruto ainda não está totalmente maduro, parte está preta e outra verde. O açaí pronto

para a colheita é conhecido como o açaí tuíra.

121 No caso do açaí, o pequeno agricultor, além de tirar o fruto para alimentação, alcança diariamente mais de 20

rasas, pagam diárias para a apanhação e, possui, uma área de açaizal em local específico. 122 A rasa é um utensílio para armazenar o açaí e serve também como uma medida local, o equivalente a 14 kg.

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124

Foto 08 – Apanhador de açaí

Autora: POJO, E.C., Ago. 2015.

Segundo Jota, no período de safra (junho a dezembro) o açaí é apanhado e comercializado

diariamente. Afirmava que, ao longo desse período, ele obtém uma renda suficiente para manter

a família durante todo o resto do ano. Já no período da entressafra (janeiro a maio), diminuem

os cachos nas árvores e, com isso, o preço aumenta consideravelmente. Com o preço alto, ele,

juntamente com os seus filhos, viaja para comprar o produto em municípios vizinhos,

principalmente em Igarapé-Miri. Constam nos dados das instituições de agricultura que os

municípios de Abaetetuba e de Igarapé Miri são os maiores produtores do açaí 123.

Também, no período da entressafra, realizam a atividade de cuidar do açaizal, que é tirar

o palmito, roçar, adubar e plantar, buscando obter uma maior produção. O fato é que os donos

tratam a terra e os açaizeiros visando a extrair o fruto o ano todo, embora com menor intensidade

no inverno.

E, mesmo com a retórica de que os jovens não querem se envolver no trabalho da

agricultura, como o fazer farinha e o cultivo das roças, porém, no serviço das olarias e dos

açaizais o fato é que eles estão presentes nos trabalhos. Afirmo isto ainda que não tenha apurado

o fato numericamente124. Na extração e comercialização do açaí, eles realizam atividades

braçais na limpeza dos açaizais, de peconheiros, atuam como apanhadores, como carregadores

do produto na beira e nas embarcações, como condutores de rabetas com as rasas vindas dos

123 Cabe dizer que, embora essa palmeira se propague quase naturalmente em toda a região amazônica, porém

enquanto fonte econômica, é creditada, basicamente, às microrregiões de Cametá, Furos de Breves e Arari que, ao

longo dos últimos 10 anos, comportam mais de 90% da produção estadual no Pará. Quanto ao manejo e à

comercialização do fruto, são destaques os municípios de Cametá, Limoeiro do Ajuru, Abaetetuba, Igarapé-Miri,

Ponta de Pedras e Mocajuba, os quais são responsáveis por cerca de 80% da produção paraense (EMBRAPA,

2014, s/p). 124 Discrimino aqui a faixa etária entre 16 a 24 anos, muitos são estudantes da escola e de ambos os sexos.

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125

igarapés, tornando presente e efetiva a participação deles na produção da comunidade e,

ajudando as suas famílias.

Em termos de pesquisa acadêmica existem disponíveis vários trabalhos sobre o manejo

do açaí. Um deles faz parte do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), na série

“Movimentos Sociais e Conflitos nas Cidades Amazônicas”, com pesquisa junto aos feirantes

e ribeirinhos de Belém. Outro trata das “Peconheiras e peconheiros da ilha de Itacoazinho,

Igarapés Caixão e Genipaúba”, destacando o cotidiano de trabalhadores no município do Acará,

região do Baixo Tocantins. No primeiro trabalho, há o registro de várias categorias de

trabalhadores do açaí, agrupando-as numa sequência de “A” a “G”, conforme transcrevo aqui

(PNCSA, 2007; 2008a).

Tabela 14 – Categorias de trabalhadores tomando como base a comercialização do açaí (PNCSA)

A Produtor Responsável pela extração do açaí, nem sempre transporta e ou/comercializa na cidade de

Belém.

B Atravessador Que praticamente mora no barco e compra açaí do produtor para entregá-lo ao marreteiro.

C Marreteiro Negociante que mora em Belém e desloca-se bem cedo às feiras; muitas vezes, o atravessador

já trabalha para o marreteiro.

D Carregador

Responsável por retirar o produto (açaí) do barco, ou, se portuário, encontra nos portos

organizados em pequenas associações ou trabalha para o próprio atravessador, ou mesmo

para os marreteiros.

E Carregador Responsáveis por transportar o produto chegado no porto por meio de grandes carros de mão,

conhecidos como burro sem rabo, até as máquinas de açaí.

F Maquineiro Que é o produtor do vinho do açaí, o que vem até os portos negociar o açaí dos produtores e

atravessadores.

G Feirante Que possui um boxe fixo nos portos e comercializa o açaí.

Fonte: PNCSA, 2008a.

Por haver relação com a pesquisa, julguei pertinente trazer aqui as nominações dos

trabalhadores, utilizando-a para evidenciar as formas através das quais a comunidade adequa as

suas especificações e outros sentidos enquanto formulações cognitivas (GEERTZ, 1989).

Assim, num exercício de síntese, eis a listagem abaixo segundo a versão deles.

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126

Tabela 15 – Especificações dos trabalhadores do açaí

Apanhador Pessoa que sobe na palmeira do açaí, apanha os cachos, debulha e carrega até o destino

final, geralmente, as casas dos produtores. O apanhador atua intensivamente na safra.

Peconheiro Pessoa que somente apanha os cachos do açaí nas árvores.

Disbulhadeira Pessoa, geralmente mulheres, que debulha os cachos do açaí. A atividade é praticada por

pessoas da família, que ajudam na produção.

1º Marreteiro

Pessoa, morador do lugar e homem, que compra o açaí em rasas de pequenos e médios

produtores do lugar e proximidades, espécie de intermediário entre o produtor e a

empresa beneficiadora. Possui barco de transporte de frutos.

2º Marreteiro Pessoa que compra o açaí em rasas do 1º Marreteiro, geralmente é morador de ilhas ou de

rios próximos. Espécie de intermediário. Possui barco de transporte de frutos.

3º Marreteiro

Pessoa que compra o açaí em rasas do 2º Marreteiro, geralmente é morador de ilhas ou de

rios próximos. A figura do 3º Marreteiro é mais rara. Espécie de intermediário. Possui

barco de transporte de frutos.

Trabalhador do açaí

Pessoa que comercializa e gerencia a apanhação do açaí junto a sua família.

Pessoa que vai junto com o marreteiro na embarcação e atua carregando as basquetas e/ou

rasas, além de auxiliar no momento de pesar o produto.

São trabalhadores, os que desembarcam e pesam para entregar aos representantes das

fábricas na beira.

Fonte: Pesquisa de campo, 2015.

No trabalho com o açaí os quilombolas, além dos fazeres próprios da apanhação e da

marretagem, envolvem-se com vigilância frente aos piratas durante a travessia pelos rios. São

disponibilizados conhecimentos peculiares que se vinculam ao cuidar do solo, ao tempo da

maré, às especificações quanto aos tipos de touceiras e de cachos, a formas de armazenamento.

São sistemas de saberes que se realizam envolvendo dimensões interativas: culturais, sociais,

ambientais, econômicas e alimentares, todas elas relativas aos açaizais e ao açaí. São

conhecimentos compartidos no ordinário de uma vida, não inteiramente domesticados, o que

nos faz lembrar Levi-Strauss (1976).

Nesses termos, a figura abaixo resume outras especificações no âmbito da alimentação,

de custos, do cultivo, evidenciando o conhecimento e as práticas a partir de suas vozes,

complementando assim as mencionadas anteriormente.

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Figura 06 – Outras informações sobre o açaí

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Concomitante à extração do açaí, acontece o processo de marretagem, que, no dizer local

refere-se à venda, à compra e à negociação do fruto tanto entre moradores e entre eles e os

marreteiros, quanto entre os próprios marreteiros. Jota compra o açaí nos trapiches das casas do

rio e nas proximidades, constituindo-se como uma espécie de primeiro marreteiro. A seguir, o

desenho esquemático abaixo busca retratar como se dá o cultivo e a venda, especificado como

Tipo I, por não abarcar outras dimensões da cadeia produtiva, como, por exemplo, a

comercialização junto às fábricas, assim como as formas de escoamento da produção.

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Figura 07 – Esquema da cadeia produtiva do açaí – Tipo 1

* Há negociações que passam por mais de dois marreteiros até o destino final. E, o 2º marreteiro condiciona entre 1.800/2.000 rasas.

Fonte: Pesquisa de campo, 2015-2016.

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O esquema foi construído a partir de diálogos junto a alguns trabalhadores do açaí. Após

várias observações e ouvindo opiniões, arrisquei-me a elaborar uma primeira versão do

esquema, em seguida, mostrei a eles, que indicaram outros elementos com razões cabíveis para

alterações, levando em consideração suas vivências e seus saberes. Nessa construção, tomei

como referencial as produções cartográficas contidas no Projeto Nova Cartografia Social da

Amazônia.

Geralmente às tardes, as embarcações chegam à beira e os trabalhadores de açaí começam

a descarregar as rasas com os frutos nos caminhões para serem transportados até às fábricas.

Secundariamente, as rasas são transportadas em bicicletas cargueiras ou mototaxis até os

batedores de açaí, local onde o vinho do fruto é vendido em litro para o povo.

Os quilombolas salientam a produção do açaí como uma atividade lucrativa e de mercado

favorável. Consideram que ela requer menos esforço de trabalho quando comparado às roças,

já que, mesmo carecendo do cuidar da terra e do açaizal, a produção oferece uma maior escala

e durante maior tempo em um mesmo ano, sem contar no valor dos produtos. O açaí você

apanhou, tá com o dinheiro no bolso. Eu, quando chego em casa com o açaí no porto, só coloco

na ponte, já tô pagando o apanhador, comentava um dos produtores.

Num dos momentos em que eu esperava o barco, aproveitei para conversar informalmente

com alguns agricultores marreteiros que por ali passavam. Perguntando sobre esta prática eles

discorriam sobre preços e sobre como conduzem o trabalho. Um deles relatava que por meio

desse fazer: criamos nossos filhos, sustentamos a família e nos alimentamos dele. E, tem mais

uma coisa dona: quando acaba essa safra, passamos para o palmito. O agricultor e marreteiro

é morador do rio Guajarazinho; ele atua na marretagem e cultiva o açaí há mais de vinte anos,

em parceria com um filho.

Mesmo que muitos marreteiros e agricultores julguem que o açaí é o nosso ouro preto,

dado o caráter econômico local e de trabalho para ribeirinhos e quilombolas das ilhas, são

notórias as péssimas condições do porto da cidade - a beira, bem como as do embarque e da

comercialização, que são feitas ‘no escuro’125. Sobre essa questão, Nahum & Santos (2013)

lembram que esta maneira informal de comercialização, junto com a ausência de controle por

parte do produtor e mais as condições estruturais para potencializar o cultivo e a extração de

parte das secretarias municipais de agricultura e demais órgãos é difícil se obter dados reais do

montante da produção e de seus derivados. Permanecem os agricultores na invisibilidade e à

125 Segundo a fala dos feirantes e professores, não é recolhido nenhum imposto da produção e comercialização.

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margem de políticas públicas que subsidiem a melhoria deste tipo de trabalho e,

consequentemente, melhorem as condições de vida no território rural.

Apesar de todo um ancestral saber tradicional que se realiza como fonte econômica e

como criação cultural, ainda são ínfimas, por parte do poder político, as ações voltadas a favor

da melhoria do viver dos agricultores. Ademais, essa forma de agricultura tal como é

empreendida na região enseja importantes reflexões sobre as interações sociedade-natureza, de

forma ampla.

Vale dizer que o acompanhamento deste fazer tradicional configurou-se como momentos

de ricas experiências para mim, ainda que tenha clareza de que várias informações e situações

me escaparam. Por isso a opção em mostrar algumas imagens, em anexo, que se somam ao

escrito, no sentido de melhor explicitar a extração, o manejo e a comercialização.

* Cultivos nos quintais

Os quilombolas aprenderam a praticar ao longo dos anos uma variedade de cultivos. Na

várzea a predominância é para o cultivo do açaí, do miriti e de plantas ornamentais e medicinais

em vasos e em panelas; e na terra firme cultivam nos quintais, além das espécies citadas, as de

uso doméstico, como os legumes e os temperos.

Em suas terras de família, fica o quintal ou terreiro, como chamam no local, e quase

sempre atrás ou ao lado das casas existe um pedaço de roça ou o açaizal; às vezes os dois. Um

exemplo é o caso da família da Elisângela Ferreira, cuja área de terra da qual possui a posse, é

composta por sua casa, o quintal com plantio e, logo atrás, duas roças em parceria com o irmão

do seu marido. Além de servir de produção o espaço é vivido como local de socialização e do

brincar dos sobrinhos e dos filhos.

Nos quintais também são criados animais como porcos, galinhas e patos, com os

costumeiros chiqueiros e galinheiros. Os animais servem de alimentos e são consumidos

principalmente no período de inverno, quando entra na entressafra do açaí e fica difícil o cultivo

das roças.

Cabe destacar que o uso para o plantio especificado acima não é igual em todos os

quintais, e a título de ilustração a tabela seguinte resume alguns cultivos e arranjos deste saber

fazer.

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132

Tabela 16 – Cultivos de quintal Plantas e usos Frutos Relatos de saber

açaí, limão, coco, jaca, graviola, carambola,

taperebá, banana, ingá, miriti, cacau, milho,

manga, bacaba, acerola, pupunha, caju, jambo,

cupuaçu, muruci, mamão, abacate, limão,

ameixa, maracujá, caju, goiaba, acerola,

tucumã, gergelim.

Preparo do gergelim: a gente corta ele, faz os feixinhos,

fecha e põe no sol, tira as sementes numa vasilha. Quando

seca a gente bate pra fazer a paçoca. Torra, soca no pilão,

mistura a massa coada com açúcar e come.

Uso medicinal e alimentar Relatos de saber

sucurijú, sabugueiro, acapu, arruda, andiroba,

amor crescido, mastruz, catinga de mulata,

babosa, caju do mato, boldo, canela, bussú da

palheira, mucuracaá, marupazinho, noni,

pirarucu, oriza, erva cidreira, amapá, erva doce,

hortelã, canarana, capim marinho, anador,

quebra pedra, salva, manjericão.

Siritada. Garrafada que servia para limpar a barriga,

depois do parto.

Para gastrite é só fazer mastruz com leite e tomar em jejum.

Banho de ervas faz com água de coco e laranja da terra,

serve para alergia.

Manjericão, faz chá fortificante para o peito, mistura com

ovo cru batido e toma.

Temperos Relatos de saber

turanja, hortelã, favaca, alho, pimenta de cheiro,

cebolinha, chicória, urucum.

Para fazer o tucupi, rala a mandioca, espreme no tipiti,

deixa sentar (por 12h), escorre e põe para ferver com os

temperos: alho, chicória, favaca.

Ornamental

papoula, roseira, crista de galo, comigo

ninguém pode, samambaia, dinheiro em penca,

tajá, espada de são Jorge.

Fonte: Pesquisa de campo, 2015-2016.

Os moradores afirmam, recorrentemente, que os cultivos no quintal vêm diminuindo,

justificado por ser uma prática dos antigos, assim como devido às alterações do solo, sobretudo

no verão, o que dificulta o plantio. No entanto, mesmo afirmando que o costume de plantar

esteja cada vez mais escasso, notei que persiste tal prática visualizada, por exemplo, na

fruticultura ativa e em pequena escala. Também, faz-se notar pela própria experiência da roça,

descrita anteriormente.

O certo é que a prática do plantar é visível e contínua. Em todas as casas, há plantações.

Quando algum vizinho está acometido de alguma doença, além de fazerem uma visita, indicam

quase sempre algum remédio caseiro. A troca de mudas é um costume, principalmente entre as

mulheres, pelo uso comum das plantas. Dessa forma, o cultivo dos quintais é mais uma

evidência da interlocução entre o humano e a natureza.

Na área da mata existem outros cultivos que obrigam a outras atividades. Assim, a caça

de animais selvagens já foi uma prática mais comum. Hoje em dia, restringe-se a poucos

moradores, em razão da proibição do governo e da própria escassez dos animais. Quando ocorre

é para alimentação da família e, geralmente, quando acontece capturam tatus, cutias, pacas,

mucuras, veados e preguiças. Outra atividade é a da extração de madeiras, de forma artesanal,

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para a construção de moradias ou para a produção de embarcações. Esta última é atividade

predominante no Alto Itacuruçá.

A base da alimentação encontra-se nos produtos que são plantados pelos moradores do

lugar, e complementada com o peixe e com o camarão. Cabe dizer ainda que na dieta alimentar

é intensamente completada com produtos ‘de fora’, vendidos por marreteiros que se

movimentam diariamente na beirada dos rios, dos furos e dos igarapés126.

Outras atividades

* A pesca

A atividade é regular e as pessoas que a realizam fazem interagirem a geração e o gênero.

São jovens, adultos e idosos praticando; mulheres e homens realizando, cotidianamente, a

coleta do camarão e a do peixe com uso de rede.

A pesca de camarão, particularmente, é praticada muito mais por quem mora às margens

do rio do que pelos residentes em terra firme. Normalmente, ela é iniciada no fim da tarde de

um dia com o preparo e com a distribuição dos matapis nas varas às margens dos rios ou dos

igarapés e, somente, noutro dia, é finalizada com a coleta do crustáceo. A produção é para a

alimentação, ocorrendo a venda somente no período da safra.

* Produção artesanal com talas e cipós

Foto 09 – Banda feita com miriti Foto 10 – Artesanatos expostos durante a feira

da escola

Autora: POJO, E.C., Nov. 2015.

A produção do artesanato é realizada com raízes, folhas, cipós e talas retiradas de árvores

e de caules específicos (arumã, miriti, cipó titica). Entretanto há artesanatos confeccionados

com materiais recicláveis. São tecedores de utensílios domésticos e de uso nas atividades de

126 As pessoas compram carne, frango, e outras verduras e frutas.

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134

trabalho, tal como apresento na tabela abaixo. Outro dado relevante é que a produção local tem

diminuído devido à escassez do material que vem da natureza, em sua maioria.

Interessante experiência é a do jovem Oziel Pinheiro Gomes, que descreveu com

entusiasmo o seu artesanato com a utilização do miriti. Afirmava ele que este tipo de atividade

artesanal precisa andar de mãos dadas com a inovação. Seus produtos vão além dos conhecidos

“brinquedos de miriti”, ele produz quadros com emblema dos times de futebol, bandas de

música, instrumentos musicais além, dos típicos pássaros, barcos e cobras.

Alguns tecedores relataram terem aprendido com seus pais e avós127. No entanto, não há

uma propagação deste fazer entre os filhos ou demais parentes, assim como poucas vezes

presenciei oficina didáticas ou algo parecido na escola, embora quatro produtores sejam

funcionários. Durante os festejos, eles são convocados a trazerem suas peças para exposição na

Feira de Ciências da escola.

Sendo um costume dos antigos e de algumas famílias não existe a pretensão de venda em

grande escala, ainda que ela dê uma ajudinha vez por outra e, segundo os produtores, sirva

também para ocupar o tempo, pois quando estão em casa os moradores sempre utilizam o tempo

com alguma atividade. Dizem eles uma ajudinha, porque a comercialização é reduzidíssima, e

somente a partir de encomenda feita pelos próprios moradores ou por pessoas que moram nos

rios próximos.

Durante as minhas andanças, conversando com as pessoas, elas indicavam os produtores

artesanais com os seus nomes ou apelidos, e a localização de suas casas. Com esta ajuda, mapeei

a produção com os seus respectivos produtos e custos.

Tabela 17 – Artesanato com talas e outros

Produtores Produtos/Preços Parte da

folha/utilidade Situação de produção

1. Edilson Botelho

(conhecido como Bicudo –

46 anos)

Matapi. Valor:

R$10,00 (unid.)

Fibra/utensílio usado na

captura de camarão

Produz por encomenda e

somente quando sobra tempo

2. Rosenilda Gomes Nery

(37 anos)

Paneiro. Valor: R$5,00

(unid.)

Fibra/Carregar frutas,

mandioca e algumas aves

Produz por encomenda. Sua

dificuldade é a falta da fibra

(Urumã ou miriti)

3. Izolete Gomes Maciel

(conhecida como Zoca –

35 anos)

Paneiro. Valor: R$5,00

(unid.)

Fibra/Carregar frutas,

mandioca e algumas aves

Produz por encomenda. Sua

dificuldade é a falta da fibra

(Urumã ou miriti)

Tipiti. Valor: R$ 30,00

(o par)

Fibra/Espremer a

mandioca

127 Estes produtores não são ‘conhecidos’ como artesãos, sendo que o forte é o tecer. Por isso, optei nomeá-los de

tecedores.

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135

4. Sebastiana Gomes

(conhecida como Sabá - 47

anos)

Rasa. Valor: R$6,00

(unid.)

Paneiro pequeno.

Valor: R$4,00 (unid.)

Arataca. Valor:

R$12,00

Cestas. Valor: entre

R$5,00 a R$10,00 (por

tamanho)

Carregamento do açaí e

miriti

Idem

Produz por encomenda e

frequentemente

Peneira. Valor:

R$10,00 (unid.)

Fibra/Coar o açaí, miriti

e a massa da mandioca

5. José Maria Gomes

(conhecido como Caju)128

Artesanato de miriti.

Valor: vários

Medula/Ornamental. Produz por encomenda e atua

ajudando a produção do filho

6. Oziel Pinheiro Gomes

(filho do senhor Caju - 27

anos)

Artesanato de miriti

Valor: vários

Medula/Ornamental. Produz por encomenda e

frequente, inclusive com

encomenda de outro município,

onde trabalha. (Tailândia)

7. Arlete Botelho Carvalho

(48 anos)

Tipiti. Valor: R$ 30,00

(o par)

Idem. Produz por encomenda, mas

pouco, somente quando precisa

do objeto ou algum parente

solicita Paneiro. Valor: R$5,00

(unid.)

Rasa. Valor: R$6,00

(unid.)

8. Lidiane Pinheiro Gomes Enfeites em vidro.

Valor: vários

Garrafa/Ornamental

Produz por encomenda e

somente quando sobra tempo. Abanos. Valor: R$6,00

(unid.)

Fibra/Ventilar o fogão de

carvão

Mão de juda. Valor:

R$5,00 (unid.)

Fibra/Suporte de guardar

temperos

9. Maria Domingas Nunes

dos Santos (66 anos)

Tipiti, abano, aricá,

paneiro, peneira

Valor não informado

Instrumentos utilizados

no retiro

Produz por encomenda e

somente quando sobra tempo

10. Idelma Nery Rodrigues

(35 anos)

Peças feitas da palha e

de material descartável.

Quadros, vasos, flores

e outros

Valor: vários

Enfeites de casa e

utensílios para guardar

objetos

Produz por encomenda e para ter

um quantitativo de reserva

disponível para venda

11. Dinha Nunes (45 anos) Peneira e paneiro Instrumentos utilizados

no retiro

Produz por encomenda e

somente quando sobra tempo

12. Marinaldo Maciel de

Araújo (45 anos)

Vários (pássaros,

barcos, vasos)

Valor: vários

Medula. Ornamental Pratica eventualmente, mas sabe

fazer

13. Helena Brandão

Pinheiro – (70 anos)

Rede e paneiro

Envira/Fibra da folha

nova/grelo.

Para uso

humano/descanso e

carregamento.

Por falta de material, no

momento não está produzindo.

14. Marinei Brandão – (35

anos)

Diversos enfeites e

utensílios de casa

Folhas, raízes e materiais

recicláveis.

Produz por encomenda e

somente quando sobra tempo.

128 O produtor é também o coordenador-local do STTR.

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136

Valor: vários Objetos variados.

Características dos

produtores

Donas de casa, trabalhadores da roça e da pesca, funcionários públicos.

Fonte: Pesquisa de campo, 2015-2016.

* Produção de telhas e tijolos

Foto 11 – Olaria

Autora: POJO, E.C., Maio. 2017.

Outra atividade produtiva advém das olarias129. No entanto, das dezenove olarias

dispostas nas margens direita e esquerda do rio, e ao lado ou próximo da residência do dono,

onde também ocorre o escoamento da produção; somente treze estão em pleno funcionamento.

O trabalho das olarias é praticado artesanalmente, configurando uma atividade insalubre,

cansativa e exercida com intensas horas de trabalho. São fazeres que demandam muito esforço

físico, desde a produção de tijolos e de telhas até a preparação e a separação da argila nas

marombas (local onde se faz as telhas e os tijolos) e, mais, a queima da argila e da sua secagem

natural.

De maneira natural e pedagógica, o ofício do oleiro envolve a participação maciça dos

jovens e dos adultos, em sua maioria parentes da família do dono das olarias, que já trabalham

há muitos anos na ocupação e, por isso, experimentam uma história de vida e de trabalho.

Normalmente é um fazer transmitido de pai para filho, evidenciando uma tradição cultural tanto

129 Relaciono a seguir as olarias e seus respectivos donos: a) lado direito do rio: São Jorge (Zé Gomes), Flutuante

(Dadinho/Gato), Vandico (falecido), Taroba, Eralclides (Kelé), Martinho (Lili), Gustavo (recente), Mesak Araújo

(Confiança), Manassés Araújo, Jacó Wanderlei, Otacila (Milagre); b) lado esquerdo do rio: Ramo Quaresma

(falecido), Mário Quaresma, Raimundo Filho, Dulor Nery, Caboco Neri (falecido), Braz (Deus é que sabe),

Francisco (Hei de vencer), Mesak Araújo (Marinei).

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137

no aspecto do fazer quanto do empreendimento comercial. Por meio do convívio coletivo e de

exposição oral os mais velhos (donos ou não) vão, paulatinamente, ensinando, trocando,

mostrando o saber fazer desta produção.

O trabalho na olaria movimenta a comunidade e é um dos geradores de renda para um

elevado número de pessoas que atuam não só como como diaristas no barreiro, como também

com os aluguéis dos batelões para o transporte do barro. E, há ainda os que trabalham como

lenhadores, queimadores, barqueiros, marombeiros somados aos atravessadores constituindo

uma cadeia produtiva complexa e específica (CARDOSO, 2012).

Em toda esta atividade é reduzida a presença de mulheres, mas há algumas. Elas se

envolvem principalmente quebrando cacos de telha e ensacando-os para serem vendidos.

As olarias atuam livremente no que diz respeito às condições dos trabalhadores e no

escoamento da produção. Segundo alguns quilombolas, as olarias que funcionam são as que

estão teimando. Outras funcionam entre aspas, já que dois a três dias não tem barro e param.

Não existe nenhuma organização comunitária, trabalhista ou por parte do poder público, razão

pela qual obter informações e tratar do assunto é algo difícil130. Os valores pagos aos

trabalhadores são baixos como um exemplo lembro que os trabalhadores recebem atualmente,

em média, por produção de 500 tijolos ou telhas o valor de R$30,00 na queima.

Por conta desta dificuldade e também por não ser o foco da pesquisa, busquei apenas

sinalizar a existência deste labor, através de alguns excertos citados por trabalhadores durante

minhas observações aos espaços. O fato é que a atividade vem resistindo às dificuldades

históricas, ao tempo e à tecnologia.

Expostas, em parte, as atividades laborais, a tabela abaixo traz as diversas denominações

somadas a outros dados e interpretações pertinentes à questão em tela.

130 A irregularidade ainda é comum no Pará. Sobre a questão, foi noticiado no dia 15/11/2016, pelo jornal liberal

(emissora afiliada da rede Globo) o acidente de um adolescente que estaria trabalhando em olaria e perdeu um braço

– no município de Bragança, nordeste do Pará.

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138

Tabela 18 – Atividades de trabalho existentes na comunidade

Nº Tipos de

Atividades Especificação Quem prática Tempos e valores Ocorrência

Instrumentos de

trabalho 01 Rabeteiro Condutor do transporte escolar Homens

Mulheres

(poucas)

Valor: mensal, por meio de contratação pelas

Secretarias de educação, municipal e estadual

Durante o período

letivo escolar

Rabeta coberta

02 Telheiro Espécie de engenheiro e construtor de

embarcações

Homens Valor: conforme a capacidade e o tipo de

embarcação

Ano todo

Ferramentas

próprias

03 Freteiro Condutor no transporte de moradores e

mercadorias da comunidade até a beira e vice-

versa

Homens:

moradores.

Saem entre três a cinco horas e retornam às

onze horas, pegando e deixando as pessoas

nas pontes de suas casas

Ano todo

Rabeta coberta

04

Diarista

Atua na roça com a capina, o plantio e a queima Homens

Mulheres

Valor da diária: R$ 25,00 a R$ 40,00

(homem) R$ 20,00 (mulher).

De 6h às 11h da manhã

Ano todo

Terçado, faca,

machado, foice,

enxada, motosserra

Atua na fazição da farinha Agrupamento

familiar

Trabalha o dia todo Intensifica no

verão

Materiais do retiro

Roceiro/derrubador/Motosserrista: atua na

derrubação das árvores na roça

Homens Gasta o tempo necessário para abranger uma

área delimitada

Normalmente pela manhã

Ano todo

Terçado

Motosserra

Tirador de barro (barco próprio ou não):

atividade de jogar barro, vendido para os

oleiros

Embarcações específicas

Segundo alguns quilombolas, encontram a

argila no Muricutu, município de Igarapé Miri

Homens (no

mínimo, duas

pessoas)

Valor da diária: R$190,00. Média de uma

semana de trabalho, incluindo no valor as

despesas com combustível e o pagamento do

ajudante

O valor do ajudante é de R$50,00 a R$100,00

dependendo do tamanho do batelão e da

distância do local onde fica o barco. Outra

variante nos preços é o que dizem de

barcada131

Ano todo

Barreiro - local

onde tem o barro.

Batelão, pá, faca

Oleiros: donos e trabalhadores na produção de

telhas e de tijolos

Homens

Jovens e

adolescentes

Valor: variável conforme o tempo e o tipo de

trabalho. Os jovens trabalham em um turno e,

noutro, vão à escola

Ano todo

Maquinário (prensa,

ganafo, maromba e

arco) etc

131 Trata-se da quantidade de barro (argila) que comporta na embarcação.

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139

05

Apanhador e

Disbulhadeira

Consta na tabela referente aos trabalhadores do açaí

Homens e

mulheres

Por

agrupamento

familiar

Os valores alteram conforme a ação: a) apanhador

R$7,00 a R$ 10,00 (a rasa), b) peconheiro R$5,00

(a rasa) e, c) disbulhadeira R$5,00 (a rasa).

Consideram a quantidade e da distância para o

carregamento, na atribuição dos valores

Ocorre entre 6 às 11h da manhã. Rara a prática no

final da tarde e, quando ocorre, é a partir das 16h

Ano todo,

intensificada na

safra

Peconha, saca, rasa,

bota, luva, faca,

basqueta, balança,

rabeta ou canoa,

plástico ou lona

06

Marretagem

Marreteiro do lugar: atua com venda. São

moradores do rio e de outros próximos que

comercializam, diariamente, produtos alimentícios

entre outros.

Foram contabilizados quatro marreteiros que atuam

no rio

Homens

Os valores dos produtos são maiores em relação

aos da cidade

Ano todo

Rabeta, balança,

sombrinha, chapéu,

sacos plásticos

Marreteiro de fora: compram açaí, madeira, telhas

e tijolos na comunidade e levam para fora.

Homens

(jovens)

Idem

Barco grande, rabeta,

balança, rasa,

basqueta

0

07

Outras

atividades

Quebrador de caco de telha Mulheres

Homens

(jovens)

O produto é vendido e, às vezes, doado para

vizinhos que precisam.

- R$2,00 por saca (2 latas em cada saca)

Idem

Marreta, luva.

Carrear: atividade realizada para o

carregamento de lenha ou mandioca, utilizando

búfalo (boi)

Homens Valor de R$ 4,00, o metro da lenha

Valor de R$ 70,00, entre três a cinco sacas de

mandioca ou em troca de farinha

Durante o ano

todo, com menor

intensidade no

inverno

Búfalo, chapéu,

terçado.

Rodeiro ou mexedor de farinha no forno. Homens Trabalha o dia todo Idem Rodo

Vendedor ambulante ribeirinho: atua com

venda de produtos aos comércios da

comunidade (tabernas e baiucas). O transporte

é feito nos regatões. Produtos: alimentos,

material de limpeza, combustível e outros.

Homens

Produtos

Embarcação

* Existem, ainda, os funcionários públicos atuando na escola, na saúde e na assistência social.

Fonte: Pesquisa de campo, 2015.

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Tanto as roças quanto o açaizal, assim como o artesanato, as olarias e a pesca envolvem

recursos naturais e saberes culturais, indo além da mera produção econômica, envolvem

também aspectos de resistência e de educação, pois, levando em consideração as

particularidades de cada atividade, a regra está em relação direta com aspectos sociais do lugar

assim como os critérios de valor das pessoas. E, com base no que observei durante o trabalho

de campo, as relações estabelecidas são exemplos de intersecções culturais e históricas que se

reproduzem entre gerações, e estão em constante transformação, como a forma do cultivo do

açaí e do escoamento dos produtos das olarias (ALMEIDA, M., 2007).

As diferentes práticas sociais de trabalho assentam-se num contexto campesino peculiar;

derivando daí a divisão técnica, social, etária e de gênero, assim como as habilidades, os

modelos técnicos tradicionais, e a força motriz, reproduzindo no seu conjunto um leque de

saberes que, em geral, são socializados por transmissão oral. E este ciclo interativo de aprender-

e-ensinar, no cotidiano, é quase imperceptível para quem o observa de longe.

Tomo aqui como referência de análise a pesquisa de Godoi (1999) sobre campesinato no

sertão do Piauí, realizado nos povoados da Rua Velha, Barreiro Grande, Barreirinho e Zabelê.

São vários aspectos do viver camponês analisados pela autora, com especial destaque para a

memória coletiva, na história de ocupação de suas terras; e para as formas de relações e uso dos

espaços, cujos fluxos cotidianos são “resultantes das relações que os sujeitos estabelecem com

a sociedade abrangente, entre si e com a natureza” (p.31), ou seja, no meu modo de ver elas são

relações que se conectam com o saber veiculado entre pessoas, processos e aprendizados.

No âmbito do trabalho afirma a autora haver participação de homens e mulheres, como

no caso da roça, mas com distinções. Torno a lembrar, que acompanhar os momentos de intenso

trabalho agrícola nos açaizais e nas roças junto de algumas famílias do Itacuruçá foi o meu foco.

Notei a condição fronteiriça entre as famílias e os espaços, pois circulavam a todo momento e

interativamente ideias, conflitos, trocas, afetos, disposições. Circulava também o ensinar-e-

aprender. O cultivo do açaí como um dos fazeres mais essenciais, envolve uma organização

sistemática entre os moradores. Ele se inicia nas pontes ou trapiches das casas, seguindo o

itinerário do açaizal, do igarapé e, em muitos casos, ele finaliza dentro dos barcos ou rabetas.

É fácil observar a circulação pelos espaços e fazeres que evidenciam muito da produção social

e cultural da comunidade.

Tudo no dizer de Godoi desagua em que: “[...] Cada aspecto, cada detalhe dos lugares,

possui um sentido inteligível somente para os membros do grupo porque todas as partes do

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espaço por ele ocupadas passaram a se constituir em pontos de marcação de um tempo por ele

vivido” [...] (p.113).

Ainda segundo a autora, no cotidiano dos povoados existem domínios distintos para o

exercício de um trabalho permeado por relações e interações entre a casa, a roça, o muro e o

quintal. Em minhas observações identifiquei na comunidade, vários domínios fundamentais de

manutenção da vida, que por eles são construídas formas de atuação que envolvem, além das já

citadas na apanhação do açaí, as matas, os quintais, as beiras dos rios e os furos. Compreender

tal domínio de relações tornou mais evidente para mim a expressão de um morador: No inverno,

trabalho com o camarão e, no verão, com o açaí.

Nestes termos, um denominador comum do trabalho pelas famílias na comunidade é a

diversificação das atividades, dos cultivos, do uso dos recursos, dos espaços e das maneiras

como lidam com o tempo. As várias modalidades de trabalho acontecem de forma múltipla e

simultânea. Assim, no mesmo dia capinam a roça, carregam lenha e apanham o açaí, por

exemplo.

Eles aprendem e reproduzem o saber na prática cotidiana, na medida que vão

experimentando as relações do fazer, reorientando, quando necessário, as formas de executar

uma ou outra tarefa. Por exemplo, não atuam mais o dia inteiro sob o sol escaldante; ficam nas

roças das 5h30 às 10h, e raras vezes de 15h30 às 18h, afirmando não aguentarem a quentura.

Na apanhação do açaí, utilizam luvas e botas, protegendo-se contra possíveis machucados, e

das manchas da tinta do fruto.

A caracterização de tal sistema ao mesmo tempo agrícola, extrativo e pesqueiro reflete as

dimensões de uma lógica da natureza e de uma ética do agir, incisivamente pontuado no capítulo

II. E, os dados abaixo aportam informações sobre algumas atividades de trabalho e do ciclo

social, considerando a sua periodicidade, ‘marcando’ mais uma vez tais dimensões.

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142

Tabela 19 – Periodicidade de algumas atividades

Natureza (Trabalho- Águas)

Especificações de atividade Época/tempo

Retirada de barro para olarias Todo o ano, especialmente no verão e com a variação

da lua

Pesca Todo o ano, considerando o tempo das marés

Comércio dos marreteiros Todo o ano, independente do tipo de maré

Natureza (Vegetal)

Manejo do açaizal para o verão (cuidar do açaizal) De janeiro a maio

Colheita do açaí (safra intensa) De maio a setembro

Cultivo de roça (mandioca) e outros plantios Todo o ano, especialmente no verão

Plantio do milho e do arroz Em dezembro, próximo da chegada das chuvas

Frutos regionais, de quintal Todo o ano

Tirar carvão para fogões e fornos das olarias Especialmente no verão

Fazição da farinha Todo o ano, especialmente no verão

Criação de animais (galinhas, porcos, patos) Todo o ano

Natureza (Vida Social)

Reuniões de escola e da associação Ano todo

Festa de São Jorge – Olaria do Gomes Abril

Festa de Santo Antônio – Casa da Rosalina Junho

Prática do banho de cheiro Junho (Dia de Santo Antônio)

Festa de Santana – No Porão Julho

Encontro de bandas evangélicas – Igreja Agosto

Jogos das comunidades vizinhas – Campo Santa Rosa Outubro/Novembro

Festa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – Barracão Novembro

Fonte: Pesquisa de campo, 2016.

No verão, tempo da safra do açaí e do cultivo da roça, é o momento de se poupar uma

graninha, ou de fazer farinha para guardar, munindo-se desses bens para o período de chuvas

intensas que pouco favorece a produção132. O valor agregado é utilizado para manter a família

e para ocasiões especiais, como a formatura de um filho, a reforma ou a compra de uma

embarcação, para uma situação de doença na família, ou o nascimento de uma criança.

Ainda que as(os) agricultoras(es) participem de um processo de comercialização quase

diariamente na beira, ou negociando com os marreteiros nos trapiches de suas casas, bem como

cada família realizando sua reprodução material e social individualmente, produzido dentro de

uma relação econômica e, ao mesmo tempo, comunitária; porque grande parte do que se produz

é dirigida à manutenção da reprodução da família. Ainda que estejam sedimentados por um viés

eminentemente econômico, não é a imposição do ter e do acumular o que prevalece, mas a

alternativa do produzir para viver.

132 Nos dias 18 e 19/04/2017 estive novamente na comunidade e, naquele momento ouvi vários relatos de que

muitos agricultores perderam toda a plantação da mandioca devido às intensas chuvas.

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Retomo aqui o diálogo com o sociólogo e professor José de Souza Martins lembrado no

início do capítulo. Sobre o modo típico de produzir os meios de vida no mundo rural, o autor

ressalta que: “[...] Em sua produção de subsistência se produzia (e se produz ainda) um mundo

de relações sociais não capitalistas: não só as técnicas são primitivas (ainda é uma agricultura

baseada na enxada), mas as relações sociais são familiares e comunitárias” (MARTINS, 2012,

p.32).

A agricultora Benedita Couto afirma ter pelo menos seis fregueses, que são comerciantes

de tabernas no Médio do rio e, sobre isso, ela diz: quando apronto a farinha já tem venda certa,

eles vêm na minha porta buscar. Outra produtora de farinha, dona Nelita, quando procurada

por funcionários da escola e pessoas da comunidade vende o produto por valor irrisório,

justificando são pessoas da comunidade e podemos ajudar, baseando-se em outra matemática

local.

A organização do trabalho na comunidade se assemelha ao que Rodrigues (2013, p.103),

em sua tese intitulada “A gente faz a varja”, denominou ser um “modelo familiar”, onde a “[...]

forma de exploração ocorre através da unidade familiar; a área é pequena e a forma de

exploração envolve a diversificação de atividades com outras formas de extração vegetal,

produção da roça, criação e pesca”. Os quilombolas para manterem as suas famílias, realizam

concomitante várias atividades, exercendo uma sociabilidade e uma economia com

características específicas, de acordo com os dados apresentados ao longo do capítulo.

Aqui acontece assim: sai de manhã de um serviço e de tarde, se ele quiser, ele vai tirar

o barro, ele pode fazer uma telha, ele pode fazer uma estiva, tanto faz. Ele aluga um

barco do fulano ali e vai tirar um barro para vender e não demora muito ele é até

patrão, porque ele aluga o barco e tem que pagar mais um pra ir com ele, que só um

não vai, aí já é patrão, pagando outro. É isso que acontece mesmo, ele tem patrão e é

patrão. A pessoa pode hoje fazer uma telha e amanhã apanhar açaí, pode querer ir pra

roça, vai pra roça. Aqui varia muito (Igarina Rodrigues, entrevista, 05/2015).

Esta complexa teia do laborar assumida por mulheres e homens atravessa os ‘tempos’ de

maneira singular. Lembro que ela teve seu início na história da comunidade e do município,

com os engenhos e com a produção da cachaça, os quais foram extintos diante do avanço do

capital na Amazônia. De modo geral, e, talvez, da mesma forma, o mesmo esteja acontecendo

com a produção da farinha e com as olarias, conforme lembrei no capítulo I (MACHADO,

2008).

Como já disse, as formas de trabalho carregam histórias, costumes, memórias,

aprendizagens e saberes que povoam o ordinário da vida de ribeirinhos e quilombolas das ilhas

de Abaetetuba. Ao mesmo tempo, a condição de ser trabalhador configura-se como um modo

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de resistir na medida em que ela vai construindo a vida, o que lembra o ditado popular que eles

repetem rotineiramente: barco parado não ganha frete.

3.2 – Processos e produções do fazer

Das atividades descritas, o trabalho produtivo essencial com a agricultura da roça e do

açaí, ao lado da produção das olarias formam o composto econômico principal e de maior

produtividade na comunidade local. Esta constatação justifica-se pelo fato de a roça, de a

extração do açaí e de a produção das olarias gerarem trabalho, consumo, excedentes e renda

para as famílias durante o ano todo, diferenciando-se das demais atividades aqui descritas, nas

quais os produtos são pontuais e gerados em períodos específicos do ano. À guisa de exemplo,

em se tratando da produção do açaí, o valor da rasa varia conforme o preço estipulado pelas

fábricas e a variação entre o período de safra ou entressafra. Também, a colheita varia, entre

outros fatores, em decorrência do quantitativo de apanhadores. A tabela a seguir evidencia a

produção em uma semana de apanhação e venda pela família do Jota.

Tabela 20 – Preços e quantidades de rasas

Semana Quantidade de rasas

(terreno + comprado)

Valor da rasa comprada

nas casas (1º marreteiro)

Valor da rasa vendida ao 2º

marreteiro

Segunda 30 + 28 = 58 R$19,00 R$21,00

Terça 40 + 23 = 63 R$16,00 R$17,00

Quarta 28 + 40= 68 R$17,00 R$18,50

Quinta 40 + 20 = 60 R$15,00 R$16,00

Sexta 05 + 70= 75 R$17,00 R$18,00

Total 324

* Dados estimados no período de 23 a 27/11/2015.

Fonte: Pesquisa de campo, 2015.

Devido à baixa produtividade e a uma comercialização reduzidíssima da farinha o

excedente não foi mensurado, assim como os demais frutos e a pesca. No tocante à produção

de telhas e de tijolos, não foi possível apurar nem o modo de comercialização nem a produção.

A seguir, são expostos outros valores de outros fazeres e produções.

Tabela 21 – Outros elementos e preços Ação/Espaço/Produto Valores/medidas

Construir rabetas e canoas (Alto Itacuruçá) Menor valor: R$ 150,00

Aluguel do batelão Valor: R$50,00 a R$70,00.

Carregamento de lenha Valor: R$120,00 = 50 metros (olaria) e R$25,00 = 01 m. (fogão)

Milheiro da telha Valor: R$300,00

Garrafa do urucum Valor: R$ 10,00

Litro do açaí, na safra Valor: R$ 3,00 = 01 rasa dá três batidas na máquina de açaí

Quilo do camarão (fresco), na safra Valor: R$ 10,00

Fonte: Pesquisa de campo, 2016.

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Os quilombolas sabem que somente o esforço individual não gerará condições adequadas

de trabalho, e muito menos de produção e, por isso, eles se ressentem da falta de infraestrutura

quanto a projetos e a ações específicas para a agricultura. E se ressentem também, como já

mencionei, da falta de união em prol de todos enquanto empreendimentos comunitários.

Arriscam-se a propor a adoção de um cultivo diversificado incentivado por parte do poder

público.

Com suas atividades de produções tradicionais os moradores mantêm uma vida material

bastante igualada entre eles. Obviamente, algumas pessoas possuem mais bens que outras,

inclusive a propriedade das terras. Um dos aspectos de diferenciação é o tipo de agrupamento

familiar, dado que um pai com muitos filhos, geralmente conta com a ajuda dos maiores para o

sustento e o trabalho. A família que possua mais terras conta com ajuda ou troca de serviço para

condução da produção agrícola. De outra parte, o funcionário público ou o aposentado que

compõe um grupo familiar de maneira geral, acaba por assumir parte das despesas da casa.

Levando em consideração tal organização e o quantitativo de pessoas de uma família,

assim como a periodicidade das estações e o tamanho de suas terras, é evidente que a produção

de frutos da terra e do trabalho e os seus rendimentos resultam em números diferenciados. E

devo recordar aqui que as relações de parceria, de ajuda e de troca são fatores que também

alteram e favorecem a produtividade de uma família. Assim, como um exemplo, na família da

agricultora Benedita Couto, é ela que dirige o fazer da roça e do retiro, que domina o cultivo e

o cuidar da terra. Ela negocia com vizinhos a troca de maniva ou de algum serviço (bico). É

ainda ela que faz parceria com o genro na divisão das atividades, quem conta com a ajuda da

filha nas tarefas de apoio, como o fazer o almoço e, ainda, responde pela qualidade de seus

produtos, farinha, açaí e bolo de macaxeira, resultando na venda segura, rápida e contínua.

Tais peculiaridades mostram o domínio de um saber fazer, bem como a experiência

acumulada que propicia acordos entre familiares e/ou vizinhos. Essa dinamização no trabalho

constitui e classifica os sujeitos pelas diferentes especificações elencadas na tabela 18.

Em uma outra dimensão, os processos educativos exercidos na comunidade, sobretudo

com relação às crianças (aspecto que abordarei no capítulo V), estão assentados no exercício

dos fazeres e saberes a partir do partilhar a produção material da vida. Parafraseando Mauss

(2013), a constituição de uma teia de vínculos acontece devido ao fato de os quilombolas serem

sujeitos morais, ou seja, além de pertencerem a uma sociedade composta de regras e de

condutas, os sujeitos são dotados de um espírito fundamental de dádiva, obrigando-os a

manterem ativas entre eles relações de confiança mútua que permitem a existência de trocas de

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bens, não apenas econômicos, mas também simbólicos. Vizinhos e familiares aprendem

vivendo a labuta da vida, como tão bem representou e afirmou o estudante no desenho da roça

da página 112. Torno a lembrar, com suas ações as pessoas dinamizam atividades em relações

de:

a) parceria - quando estabelecem estratégias para a divisão nos trabalhos da roça e de uso do

retiro, visando a uma melhor produção. Em alguns casos, tais estratégias destinadas a lograr e

gerir acordos, os quilombolas chamam de roça de sociedade, de trabalho de meia, ou

similares133. Em uma das manhãs em campo, passando pelo retiro do Carlinho, encontrei duas

mulheres (Rosana e Domingas) que já me conheciam, são da família do senhor Nilson. Ao me

verem, disseram: olha nós aqui n'água, estavam no poço, a descascar mandioca. Elas haviam

negociado o uso do retiro com farinha.

b) ajuda134 - forma de colaborar na labuta a partir do apoio dos pares, sejam eles membros da

família ou não, sem nenhuma negociação prévia, embora esperem receber algo. Reconhecem

como ajudante o trabalhador que realiza algum serviço em troca de algum produto ou, como

dizem, por uma pontinha pela ajuda. Também, é o caso do empréstimo do retiro para algum

vizinho sem exigir nada em troca.

As formas de parceria, de troca e de ajuda mútua entretecem a trama das negociações e,

ao mesmo tempo, tornam-se geradoras de sociabilidades, de convivências, de inter-

combinações e de arranjos comerciais, mesmo em meio às contradições sociais e comunitárias

presentes. O fluir do trabalho de campo revelou que as práticas de trabalho estão mediadas por

agricultoras-lideranças135, por acordos entre vizinhos/familiares e pela produção familiar. Em

outros termos, cada um vai se virando como pode diante do bem estar nos moldes de um viver

dignamente.

Desvendar esses círculos e circuitos, situações e momentos entre pessoas, entre pessoas

na comunidade e, também o como eles representam e pensam os contornos sociais, auxiliam a

traduzir sentidos que remetem aos saberes locais e, ainda, ao como enfrentam e como

dinamizam os seus processos educativos e culturais. Numa paisagem do pensado e do vivido,

as pessoas sedimentam o compartilhamento de saberes, de fazeres, enfim, de decisões sobre a

construção da própria vida (SOARES, 1981).

133 O trabalho de meia, conforme explicação do lavrador Carlinho, é um jeito de negociação e de produção coletiva

que vizinhos ou parentes organizam no serviço da roça. 134 Sob outros arranjos sociais, troca e ajuda, são esmiuçadas na tese de Rezende (2016). 135 Aspectos também levantados na pesquisa de Lima (2015) cuja dissertação trata da “Roça como categoria de

análise e de afirmação identitária”.

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Ainda que raros e nem sempre visíveis, está sempre presente em tudo uma atividade de

uma ‘pedagogia patrimonial’: crianças saem da escola e vão para roça ou retiro com alguma

tarefa específica ou não. Vão levar algo para os trabalhadores ou simplesmente acompanhar os

pais ou avós. Em outras situações professores realizam visitas com estudantes à lavoura, pais

levam merenda à filha na roça, conduzem os adolescentes na apanhação do açaí e vivenciam

didaticamente outras situações semelhantes.

No próximo capítulo procuro descrever com mais detalhes as relações entre o fazer, o

compartir fazeres e o aprender.

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CAPÍTULO IV

EU NÃO SOU MUITO CHEGADA NISSO, MAS POR NECESSIDADE FUI

APRENDENDO [...]

OS SABERES-FAZERES: ÊNFASE AO CONHECIMENTO LOCAL

Neste capítulo trato especificamente do saber tradicional dos remanescentes quilombolas,

a partir da vivência dos retiros com a produção da farinha. Para tanto, ensaio uma primeira

aproximação através das modalidades do saber que são ensinados-e-aprendidos dos processos

de trabalho e de suas práticas e produções, enquanto dimensões distintas e relacionais nesses

espaços de trocas.

Devo alertar quem me leia para o fato de que este é um terreno pouco trabalhado tanto

por pedagogos quanto por estudiosos vindos das Ciências Sociais. Estamos acostumados a

considerar as relações sociais de troca de saberes e de relações do tipo ensinar-aprender

usualmente em contextos formais, como o das escolas. Em outros cenários, sobretudo aqueles

representados pelo trabalho individual, familiar ou comunitário no dia a dia da vida cotidiana,

parece que as trocas de saberes e as atividades diretamente dirigidas a ‘ensinar alguma coisa a

alguém’ quase que desaparecem no meio da rotina das atividades e dos fazeres exercidos ao

longo da vida do dia a dia.

Neste mesmo sentido, devo dizer que não adentro nos cenários da escola como o eixo de

questões a serem problematizadas. A minha pesquisa não esteve dirigida tanto para a resposta

a perguntas como: qual o lugar e o papel da escola local na formação das pessoas, inclusive

para o trabalho tal como ele está sendo descrito nesta tese? Ou, como os saberes locais e

tradicionais são influenciados pelo que as crianças e os jovens aprendem na escola? Em outra

direção, na qual estive mais preocupada em olhar esta questão ‘da comunidade para a escola’.

Minha opção é a de procurar compreender como as pessoas, inclusive as crianças, adquirem

saberes do fazer através de seus envolvimentos e participações em situação de fazeres que são

também transmissores ‘naturais’ dos saberes que vão da arrumação de uma casa até aos

processos de fazição da farinha.

Convém esclarecer então de qual dimensão do saber estou tratando. Para Cunha (2009),

o saber encontra-se configurado na categoria do histórico e do cíclico, como dimensões que se

alteram a partir das práticas e das relações sociais dos seus sujeitos. Ele se constitui como um

potencial renovador aos próprios paradigmas de ciência. A autora lembra ainda, que há “muito

mais regimes de conhecimento e de cultura do que supõe nossa vã imaginação metropolitana”,

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ou seja, o saber abarca um conjunto de intertrocas, maneiras de fazer, de criar que, ensinadas

informalmente, transcendem gerações constituindo um dado construto cultural (CUNHA, 2009,

p.329).

Neste mesmo sentido, Brandão (1997) reconhece a existência do saber a partir das devidas

interlocuções sociais. Para ele “o saber surge e circula” enquanto possibilidade criativa do

humano aprender “uns com os outros e uns entre os outros, culturalmente” (BRANDÃO, 1997,

p.14).

Na comunidade, os moradores vivenciam saberes que circulam no cotidiano, daí porque

parto da premissa de que homens e mulheres apropriam-se do saber local e, de posse dele,

desempenham seus trabalhos nos diversos espaços que ficam na várzea e na terra firme. Embora

se assemelhem a outros contextos, esse saber é usado em situações e especificações próprias

devido ser aplicado em distintos sistemas produtivos, reconfigurando e transformando esse

mundo camponês, étnico e territorial. E, sendo um dos objetivos do estudo, compartilhar os

fazeres e os saberes dos remanescentes quilombolas, verificando como eles educam no

ordinário da vida, percebo a pertinência do debate.

Quando entrevistadas e diante da pergunta: ‘como você aprendeu a fazer este trabalho?’,

costumam responder espantadas. Afirmam então quase sempre que tudo aconteceu

naturalmente, ‘ali mesmo’. E sempre acontece quando crianças espontaneamente ou

convocadas pelos mais velhos para ajudarem em alguma coisa, observam como se faz, imitam

e, assim, ‘vão aprendendo’. Aprende-se por observação direta e através da repetição de gestos

e de atos. Mesmo quando há uma intencionalidade de ensinar alguma coisa, este momento se

passa de forma tão corriqueira no contexto de uma atividade, que a sua ‘dimensão pedagógica’

parece ficar quase invisível136.

No capítulo anterior e, neste mais um pouco, pretendo estabelecer uma discussão sobre

as relações entre parentes e vizinhos na produção do trabalho, visando deixar claro que é por

meio de tais relações e circuitos que ocorrem a disseminação e a reprodução do saber.

Inicialmente, mesmo não tratando da produção dos retiros, exemplifico aqui saberes que

transcorrem por meio de outras atividades entremeando fazeres e saberes. Na atividade de

manejo e de comercialização do açaí são exercidas atividades vivenciadas como fazeres típicos

e tradicionais, como o cuidar do açaizal ou o subir no açaizeiro pelo peconheiro na apanhação

do fruto. Tais fazeres, enquanto desmembramento de uma atividade, estão imbuídos não apenas

136 Contribuição de Carlos R. Brandão, em abril de 2017 (notas de orientação).

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de valores, mas de saberes. São sistemas de conhecimentos que perpassam aspectos sociais,

cognitivos, educativos e culturais. Saberes advindos da experiência, e essenciais às ações

produtivas sendo socializados pelos agricultores e entre estes e os aprendizes, quase sempre

crianças e adolescentes.

No rio Itacuruçá, presenciei o saber migrar de uma geração à outra, entre parentes, e são

tais elaborações sociais que elucido deste ponto em diante. Em conjunto, as modalidades do

saber configuram compreensões sociais e culturais em um tempo histórico e dentro de um modo

de produção, através do qual o trabalho recebe um valor também ético, para além de critérios

meramente econômicos (WOORTMANN, 1990). De outro modo, a ênfase recai no como se

aprendeu/aprende os diferentes ofícios137 da fazição da farinha, incidindo sobre modificações

que estão diferencialmente vigorando como formas de reprodução do saber e das

transformações vividas pelos produtores culturais, ao mesmo tempo que reforçam uma

sociabilidade específica na comunidade, conforme busquei retratar nos capítulos anteriores.

Isto porque, de fato, o que se aprende não são apenas algo que tenha a ver com as práticas

do fazer, mas também com as éticas do agir.

Vindo das categorias acima, para estabelecer esta contextualização, além dos dados da

pesquisa optei pelas reflexões sobre a produção e a disseminação de saberes, entre os estudos

de Brandão (1983, 1999, 2005), de Cunha (2009) e de outros. A temática é recente, ainda mais

em se tratando do contexto amazônico, que se apresenta através de uma sociodiversidade com

ricas experiências dos povos tradicionais. Os sujeitos amazônicos criam temporalidades,

engendram novos espaços, reconstroem o cotidiano dos territórios narrando - provavelmente

como uma forma de resistência - do fazer o saber. E, assim de mutuamente se educarem.

Foi lembrado por um estudioso da Amazônia e jornalista paraense, que é mister um espiar

sensível e observante sobre as práticas sociais e a dinamicidade das identidades socioculturais,

em virtude “[...] da dialética do local, absorvendo esse conhecimento, que tem milhares de anos,

e, ao mesmo tempo, introduzir a ciência, como capaz de abreviar a tessitura do tempo” (PINTO,

2014, p.14)138.

137 Trata-se de ação e/ou trabalho em que a técnica, a habilidade e a especialização são necessárias. Dicionário

online de Português. Disponível em: http://www.dicio.com.br. Acesso em 25 jan. 2017. 138 O jornalista e paraense, Lúcio F. Pinto, analisa a questão admiravelmente quando, em seus escritos, reflete o

embate político dos discursos sempre ‘bem intencionados’ das emissoras de TV, que se contrapõe à defesa por

uma Amazônia que valoriza o humano diante das identidades, das culturas e dos modos de vida dos povos, em

especial os do Pará. Neste ponto, especialmente, tomei como referência o artigo intitulado Amazônia: uma página

ainda escrita em garranchos (PINTO, 2014).

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Relembro que aquilo que estou pensando e pesquisando como um sistema peculiar de

aprendizagens de saberes a partir de uma experiência individual e coletiva de prática de

fazeres, envolve na realidade mais dimensões do que se poderia imaginar.

Nesses termos, posso dizer que no simples ciclo que envolve desde o preparo do terreno

para o plantio das manivas até a comercialização da farinha de mandioca o que se vê é todo um

complexo e interligado sistema de fazeres: de relações de pessoas com a natureza e entre elas.

Aquilo que as crianças e os adolescentes assistem sendo feito, aquilo de que elas

participam, fazendo e aprendendo, e aquilo que elas aprendem perguntando e sendo instruídas

pelos ‘adultos sabedores’ abarca sistemas de saberes que se fossem levados para a universidade

resultariam em diversas disciplinas. Não vou entrar em detalhes aqui, porque os complexos de

fazeres das atividades das mulheres e dos homens quilombolas foram já descritos nos capítulos

anteriores. Lembro apenas que entre um polo e o outro há ‘segredos do oficio’ que vão da pura

e simples tecnologia de uma agricultura rústica, até conhecimentos de economia capitalista,

quando se passa da produção à manufatura e dela à comercialização do produto final.

Assim, buscando compreender todos os momentos e todas as dimensões dos fazeres-

saberes envolvidas, retomo o esquema de Brandão (2015a) para afirmar que em tudo, existe

uma primeira dimensão e ela recai sobre as práticas do fazer. Esta própria dimensão é bastante

complexa, como vimos já no simples processo da fazição da farinha, pois vista em seus detalhes,

o que existe na verdade é toda uma sequência interligada que envolve vários tipos de ações e

de saberes e, envolve em um mesmo momento várias categorias de pessoas dando conta de

diferentes atividades.

Mas não é somente um ‘como se faz (operativamente) cada coisa’ o que está envolvido

no que se realiza e no que se aprende. Além de atividades práticas que, insisto, colocados sob

um olhar mais atento são bem complexas, existe uma outra dimensão. Ela é aquela que Brandão

(2015a) denomina de éticas do agir. Ele entende que todo o fazer prático está acompanhado de

um agir ético. E, assim, ao lado da pergunta: ‘como se faz isto?’ sempre existe uma outra: ‘como

se deve fazer isto?’. Esta segunda pergunta espera respostas que vão desde princípios éticos

relacionados à natureza, até preceitos que envolvem uma ‘ética econômica’ na hora de contratos

de trabalho ou de comercialização dos produtos. Uma das polêmicas inclusive a respeito do que

a escola deveria ensinar às crianças parece que se prende a qual deveria ser o seu foco principal:

uma educação mais funcional e dirigida a práticas do fazer, ou uma educação mais centrada

em ‘éticas do agir?’ Penso que a grande dificuldade está em como balancear e integrar os dois

polos.

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Uma terceira dimensão do que se aprende com a vida e o trabalho é o que podemos

chamar com Brandão (2015a) de lógicas do pensar. Pois sabemos que desde as coisas mais

práticas e funcionais até as que envolvem as dimensões mais ‘filosóficas’, todas as culturas

envolvem também uma dimensão múltipla de saberes sobre não apenas o ‘como’ prático e o

ético, mas também o ‘porque’. E essas ‘lógicas’ são compostas de saberes teóricos, de

fundamentos de verdadeiras ciências populares (campo das etno-antropologias), as filosofias

tradicionais, as crenças no sobrenatural, envolvendo religiões vindas de fora, mas também

sistemas de crenças, como as que são tão difundidas e partilhadas em toda a Amazônia. Basta

vermos como um adulto quilombola povoa a floresta, os rios, o mundo, enfim de seres como o

boto, a cobra-grande e tantos mais, para termos uma ideia de como os imaginários indígenas,

quilombolas, camponeses criam e perpetuam sistemas às vezes bem articulados e complexos

de crenças, de mitos, de lendas, de saberes, enfim.

4.1 – O saber da fazição da farinha

Foto 12 – Retiro do senhor Dilo e Arlete

Autora: POJO, E.C., Ago. 2015.

Desejo pontuar as minhas reflexões, agora em um plano mais descritivo, a partir de

minhas próprias vivências. Eu, mulher negra, nascida no interior do Estado do Pará, no

município de Moju, cresci interagindo com o modo de vida rural, na convivência com meus

avós e pais, praticantes da lavoura. Por isso, bem no início de minha estada entre os

quilombolas, o primeiro contato com o retiro me fez recordar tempos da minha infância e

adolescência, como períodos da minha vida que aprendi a gostar de estar próxima da terra, dos

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rios amazônicos e admirar afetuosamente os saberes locais. Provavelmente, tais experiências

ajudaram-me a compreender alguma coisa a respeito do sentido ancestral do ‘ser negra’

substanciada pelas histórias, entre saberes e segredos que escondidos ou socializados me

ensinaram a aprender com a educação da vida, a lutar em seu nome e buscar compreender o

mundo agrário na e da Amazônia.

As minhas lembranças foram motivadas em direção a outras vivências e aprendizados do

mundo camponês na Amazônia paraense, como a dos quilombolas do rio Itacuruçá.

Andarilhando pelos diversos retiros e roças fui notando que os saberes locais realçam o viver

ali assim como o existir e a cultura são agenciados no cotidiano. Ademais, a dinâmica do resistir

historiciza-se enquanto marca de uma tradição que se atualiza, por meio da produção da farinha,

como um entre tantos exemplos.

Sobre esta questão, destaco o estudo realizado por Silva (2015) nessa mesma comunidade,

que tratou das manifestações culturais na Escola Santo André, e o resistir aparece nos termos

aqui transcritos.

A resistência desses sujeitos se caracteriza da seguinte forma. Os remanescentes

quilombolas estão enraizados não somente ao local (ao território) de sua casa, família

e de seu trabalho, também estão encharcados de cultura (memória social). Essa cultura

se concebe de diversas maneiras na comunidade, por exemplo, o cultivo da terra revela

a insistência em permanecer no local, a produção de farinha; o trabalho na olaria, a

pesca, o cultivo do roçado sem visar grandes lucros e sem o uso de tecnologias

modernas [...]. A resistência também se caracteriza na forma de sentimento de

pertencimento, compromisso e engajamento com as questões da comunidade (SILVA,

2015, pp.70-71)139.

Estou tratando também de valores sociais, de éticas do agir. E repensando o que trouxe

acima desde Brandão (2015a), aquilo que ouvi de um agricultor torna ainda mais vivas

expressões como: você tem que trabalhar com suas forças, confirmando quão forte é a

resistência camponesa enquanto força motriz na produção de alimentos, por meio da qual o

agricultor sobrevive, e até mesmo se afirma. Nessa perspectiva, relembro que o resistir abarca

as dimensões sociocultural, educativa, ancestral e produtiva. E ela é uma resistência na direção

de uma outra capacidade de reprodução que nega a lógica mercantil como única.

Ainda sobre o resistir, Gusmão (1993, p.81) assinala que:

O processo de constituição como grupo rural e etnicamente diferenciado, revela

mecanismos de uma condição historizada que permitiu a existência de tais grupos e

também, sua persistência no tempo. Persistir é então, resistir como camponês,

reproduzindo a família para si e se reproduzindo como força de trabalho. Não isolado,

139 O processo de construção da identidade quilombola é contribuição singular na dissertação de Silva (2015).

Enfatiza as possíveis relações de fortalecimento identitário que são (ou não) estabelecidas na escola em diálogo

com a comunidade por meio das manifestações culturais.

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o negro camponês encontra-se articulado à realidade mais ampla e como tal, organiza

a vida e a existência, confrontando-se com problemas relativos à pequena produção

(subsistência), ao parentesco e à propriedade.

A autora enfatiza a força motriz do camponês e sua resistência para viver enquanto grupo

e enquanto sujeito individual, legitimada por vínculos parentais e pelo grau de pertença com o

território, compreendido como bem de todos.

No território, entre as múltiplas e as diferentes experiências encontram-se um conjunto

de práticas-saberes que serve de base para a adequação dos sujeitos na manutenção do grupo

na comunidade. Nesses termos, vejo que esta peculiaridade de saberes e reciprocidades ditam

o existir comunitário do lugar, e dão nitidez ao imaginário construído do ‘ser negro’ e ser

remanescente quilombola ali (GUSMÃO, 1993).

O saber da produção da farinha vem se perpetuando como prática social da comunidade,

de outras próximas e em outras localidades do município. No Médio Itacuruçá, por exemplo,

os dados mostram que aproximadamente 400 agricultores sócios da ARQUIA, 120 dedicam-se

ao cultivo da mandioca segundo padrões tradicionais (CARDOSO, 2012)140.

É através de tais experiências que os espaços dos retiros mencionados no capítulo anterior

representam focos de ancestralidade e autonomia coletiva para várias famílias. Acrescento que

tal tradição permite aos agricultores continuarem a feitura de seus pedacinhos de roça tirando

dali parte do seu comer para viver, e almejando que o poder público possa ajudá-los na

promoção de um cultivo diversificado e em benefício do grupo.

Vemos que entre práticas, éticas e lógicas tudo perpassa dilemas humanos, sociais e até

mesmo metodológicos clássicos no campo da Antropologia e das Ciências Humanas, de modo

geral, por isso considerá-la pertinente ao debate sobre comunidades tradicionais.

Concordo com a crítica de Cunha (1998), quando enfaticamente ela defende a

relativização dos lugares de poder aí implicados. O certo é que o trânsito entre fronteiras de

conhecimentos (conhecimento científico e saber local) é por si só estimulador de formulações

poéticas, científicas, acadêmicas, culturais. A comparação entre conhecimentos, e entre

dimensões e modalidades de ciências em muitos casos pautou-se pelo argumento da

irracionalidade da ‘cultura dos outros’. No artigo intitulado “Relações e dissensões entre

saberes tradicionais e saber científico”, a autora pontua especificidades, diferenças e

140 A dissertação de Cardoso (2012) ocorreu no Médio Itacuruçá, cuja investigação tratou da experiência da

Educação de Jovens e Adultos na inter-relação com os saberes da comunidade quilombola. Ratifica que o contexto

amazônico tem particularidades, exigindo repensar os desafios postos à escolarização dos jovens trabalhadores.

Confirma tratar-se de uma realidade integrada à natureza, aos rios, à terra, ao trabalho agrícola na região

amazônica, além da defesa contundente do termo “ribeirinho quilombola” (CARDOSO, 2012, p.55).

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semelhanças e, especialmente, os elos entre as diferentes modalidades, em prol de suas

potencialidades e benefícios à humanidade141.

A diferença em vários aspectos de diversas culturas mostra-se essencialmente através do

caráter da validade e abrangência entre umas e outras. Segundo a autora todas elas envolvem

os dois conhecimentos que contribuem para o entendimento sobre o agir e estar no mundo e, à

semelhança do que foi demonstrado por Lévi-Strauss em “O pensamento selvagem” (1976) elas

são perfeitamente coerentes dentro do seu próprio sistema imaginário e produtivo.

Ainda, tomando os referenciais de Cunha (1998), considero que o saber tradicional, não

raro visto como improdutivo e arcaico, passa a ter ‘um valor’ relevante para o desenvolvimento

e progresso da sociedade moderno-contemporânea, dentro de uma compreensão dele como algo

também ao mesmo tempo tradicional e dinâmico, comunitário e aberto a inovações. Suas

contribuições cada vez mais são hoje consideradas entre pesquisadores e educadores como um

aporte básico para o nosso próprio saber científico.

Sabemos que o saber tradicional constitui “um potencial de renovação dos próprios

paradigmas” em relação ao saber científico. Para Cunha (2009), as diferenças entre os

conhecimentos em questão devem ser consideradas para além do plano dos meros resultados,

pois eles se encontram em níveis bem mais profundos.

Poderíamos começar notando que, de certa maneira, os conhecimentos tradicionais

estão para o científico como religiões locais para as universais. O conhecimento

científico se afirma, por definição, como verdade absoluta, até que outro paradigma o

venha sobrepujar, como mostrou Thomas Kuhn. Essa universalidade do conhecimento

científico não se aplica aos saberes tradicionais, muito mais tolerantes, que acolhem

frequentemente com igual confiança ou ceticismo explicações divergentes, cuja

validade entendem seja puramente local (CUNHA, 2009, p.301).

Os conhecimentos se diferenciam na direção do que propõe a autora, pelas suas

perspectivas, sendo uma mais universal, e a outra mais local. E também devido a uma

disposição do conhecimento tradicional em reconhecer outras interpretações e outras

abordagens como legítimas e válidas.

141 No texto “Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica”, resultado de uma conferência

apresentada ao Instituto de Estudos Avançados da USP, a autora traz importante reflexão sobre o saber dos povos

tradicionais, dada a expansão dos estudos científicos ocidentais nesses territórios. No texto, o saber local é

percebido como “uma ciência viva, que experimenta, inova, pesquisa”, associado como relevante para expansão

do mercado tecnológico e de manipulação científica. Conforme Cunha (1998, p.159) “são essas condições

essenciais de produção do saber local que as propostas de direitos intelectuais coletivos querem preservar”.

Tomada a questão mercadológica e de usufruto dos saberes locais, a autora aponta o desafio de mediar os interesses

dos diversos agentes envolvidos em diálogo entre os interessados.

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Os pressupostos mencionados corroboram as situações analisadas na comunidade. A

primeira delas refere-se à conduta pedagógica informal dos quilombolas, por habitarem um

lugar território cuja prática social e cotidiana obriga-os a lidarem com o conhecimento local em

que todos aprendem, sabem e utilizam de algum modo: pilotar uma rabeta, caminhar nas pontes,

iscar matapi, nadar no rio, subir no açaizeiro e tantos outros. E este é o cenário educativo

comum que se reproduz e manifesta-se através da organização dos espaços, do fabrico de alguns

instrumentos de trabalho e demais manifestações socioculturais. No tocante as coisas do lugar,

dona Morena afirma:

Eu dizia para meus filhos vai ter que fazer. Por quê? Cada um vai ter uma família, né?

A mulher vai casar, vai parir [pausa, silêncio] ela tem que aprender. O homem também

tem que aprender. Eles têm que aprender, tanto faz ser um como o outro, fazer tudo

pra não se enrascarem em parte nenhuma. Olha, não sei pra onde vocês vão parar.

Tem que saber trabalhar naquela área. Vocês têm que aprender pescar, gapuiar,

lanciar, tapar igarapé [pausa, silêncio]. Eu tenho duas filhas que moram em Belém,

mas quando elas chegam aqui, vão tapar igarapé, lanciar. Eu aprendi. Aprendemos,

né? Era o nosso trabalho, porque antigamente não tinha negócio de aposentadoria

(Maria Santana Rodrigues, entrevista, 05/2015).

O receio dos adultos é que os seus filhos se casem, sem antes aprenderem o essencial da

vida local de trabalho. Que permaneçam no lugar e não saibam se virar na vida, por não

haverem aprendido a fazer as coisas daqui, pois eles entendem que a continuidade do grupo e

a dignidade da pessoa do lugar está em boa medida em possuir habilidades para trabalhar em

múltiplas atividades, como condição para se viver ali. Não por acaso brincavam comigo,

dizendo: vou lhe levar com seu Dilo para aprender uma aula com ele; ou ainda: venha se

mundiar com o trabalho, confirmando que o saber se aprende de fios complexos do dizer, do

pensar e de um participar envolvente e ativo.

Associando ao aprendizado das crianças, percebi que elas vão galgando espaços entre os

saberes aprendidos com os adultos ‘ali mesmo’. Praticando, dominam tanto o andar de bicicleta

como os sentidos do trabalho, aprendem discriminar os tipos de embarcações e identificar a

maré cheia da seca; aprendem a gostar de andar descalços nos terreiros, e assim por diante.

Agora, referindo-se ao como se aprendeu/aprende os ofícios da fazição da farinha, lembro

o valor dos mais velhos, pois é sobretudo deles um saber transmitido entre quilombolas mais

experientes, os mais idosos, a partir de seus saberes-fazeres específicos. Aprendi muito com

as(os) agricultoras(es) Benedita, Nelita, Iracema, Carlinho e outros.

Voltemos à fazição da farinha, os seus ofícios delineiam-se em uma sequência mais ou

menos assim: inicialmente, ocorre o transporte da raiz madura da roça até o retiro e o

armazenamento para amolecer, que leva em média cinco dias. Após esse tempo, e no dia da

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fazição propriamente dita, as famílias chegam cedo e trabalham até cumprirem tantas

fornadas142 com a quantidade de mandioca retirada ou a carrada/carroçada como dizem,

trabalhando em no máximo três dias consecutivos e em períodos alternados do mês.

Quanto à qualidade da farinha, os produtores consideram o tipo de raiz, se amarela ou

branca. Também, levam em conta a forma de armazenamento da mandioca. Alguns produtores

depositam as raízes em sacas plásticas antes de colocarem nos poços para não misturá-las com

restos de folhas e galhos. Há ainda o cuidado durante a técnica de extração da casca, com

lavagem minuciosa nessa etapa143. Eis como descreve isto a Iracema:

É nesse processo de uma carrada de mandioca. A gente faz em dois dias. Existe dia

que a gente faz duas fornadas, seis sacas de mandioca dão duas fornadas, vão pegar

sessenta quilos. Vai depender da quantidade das pessoas. Se forem duas pessoas, uma

hora a gente tá indo, se forem quatro pessoas termina antes. Enquanto um tá aqui,

outro tá ali. Às vezes é rápido, alguém tem que descascar, enquanto o outro fica

amassando, coando, porque é um bocado de servicinho e não dá só pra um tá fazendo

a mesma coisa. A gente tem que trabalhar muito, tá jogando água pra lavar, pra tirar

o excesso [...]. O que tá no tipiti fica lá olhando, enchendo e [...]. Depois que estiver

uma pronta, aí que vai queimar, tocar fogo. O outro já fica aprontando o resto. Esse

processo de queimar é demorado, porque a gente não usa técnica de raspar. [...]. Para

ela ficar grossa ou fina, é conforme a cozição, o jeito de mexer. Você começa com o

fogo brando logo no começo, depois ela fica fina, mexendo bastante no fogo brando,

tem que ser bem baixinho, assim vai pegando um processo de escaldação, dizem “tá

escaldada”. Aí você acelera o fogo para ela cozinhar mesmo. Se você colocar logo do

jeito que esse forno tá com fogo alto vai comer pedra [risos]. Tem gente que paga

certos farinheiros para mexer, alguns pegam com paciência, mas outros querem saber

de botar fogo (Iracema Rodrigues, entrevista, 09/2015).

E tudo isso faz parte de um processo de trabalho coletivo, onde ao mesmo tempo cada

integrante do grupo desenvolve uma atividade. Normalmente são as mulheres as responsáveis

por peneirarem a massa, embora eu tenha observado ambos realizando a tarefa. As partes que

exigem maior esforço físico são o carregamento das raízes e da lenha até o retiro, a escaldação

e a torração da massa, executadas quase sempre por homens. Às vezes quando não tem o

rodeiro, da torração, negociam com algum parente ou vizinho para fazê-lo mediante a troca

com farinha ou o pagamento em dinheiro.

Computando informações no trabalho de campo visando compreender esse saber-fazer,

consegui distinguir três procedimentos: a) pondo a mandioca para amolecer; b) somente

triturada no catitu; c) uma parte com a mandioca amolecida, e a outra metade triturada no catitu.

Esses procedimentos correspondem aos principais tipos de farinha produzidos no Pará: a farinha

d’água, a farinha mista e a farinha seca, diferenciadas no modo de fazer. Na comunidade,

142 É a quantidade, de três a quatro tipitis de massa da mandioca que vai ao forno para o cozimento. 143 A casca é a parte da raiz, recolhida e utilizada como comida dos porcos.

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basicamente subsiste e desenvolve-se a pequena produção com a farinha d’água (CONTO et al,

1997).

Tais distinções ocasionam mais ou menos tempo de trabalho e conforme o fazer diferem

os tipos de farinha. De modo geral, produzem no modo de fazer I, demonstrado no esquema a

seguir:

Figura 08 – Esquema da produção da farinha

Fonte: Pesquisa de campo, 2015.

Por entre os retiros e as roças todo um complexo de conhecimento local e patrimonial se

atualiza através dos novos conhecimentos apropriados. O complexo do trabalho da roça, muda,

não somente por conta das alterações do clima e do solo mas também por causa das relações de

transações com o mundo de fora, e devido ainda a alterações nas formas de trocas de serviços

entre as pessoas envolvidas. Nos retiros, são exemplos a substituição gradativa dos

instrumentos de trabalho e as formas de organizarem as atividades no espaço.

Quero retomar as minhas reflexões a partir de Brandão (2015a), ressaltando que cada

etapa envolve uma relação de ação-aprendizagem que vai do como se faz ao como se deve

(socialmente) fazer, e daí ao porque se deve fazer assim, tanto como uma prática do trabalho,

quanto como uma ética de relações entre as pessoas através de cada momento do fazer, e deste

conjunto interligado, tudo se conecta também com sistemas de crenças e de práticas da vida

relacional e mesmo espiritual ou religiosa.

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A fazição da farinha, é uma entre as várias atividades regidas por normas e trocas. Ela é

muito rica de sabenças, e algumas vezes envolta de silêncios e segredos. Assim o seu saber

disponibilizado não se resume à escolha do melhor dia para a atividade, mas envolve os seus

desdobramentos: o tempo de amolecer a mandioca, a quantidade de pessoas e o tempo de

produção, os gastos e ganhos, a linguagem específica e a técnica necessária. Também envolve

a afeição pessoal depositada no fazer, através da ética e da lógica dos laços de amizade e de

familiaridade entre os parceiros. Assim, a distribuição da farinha com parentes são sintonias de

um saber que não aparece no momento da ação, mas que está presente no conhecimento prático

realizado.

Estas reflexões sobre o ‘fazer farinha’ me levaram a leituras de Ellen e Klaas Woortmann

(1997, p.44), quando afirmam que em tudo existe “o domínio tanto cognitivo como simbólico

do saber que orienta o processo de trabalho”.

Para Brandão (1983, n/d), o saber diz respeito aos “conhecimentos da cultura do lugar e

da reprodução de um ethos”. Remeto esse posicionamento à discussão teórica sobre a

apropriação e os modos de saber, na questão analisada em “A Interpretação das Culturas”, pelo

antropólogo Clifford Geertz (1989, pp.143-144), quando ele reflete sobre os símbolos sagrados

da religião em Java. Ele afirma que de tanto algo ser um modo de vida, acaba sendo também o

seu modo de ser.

Na discussão antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos) de uma dada

cultura, os elementos valorativos, foram resumidos sob o termo “ethos”, enquanto os

aspectos cognitivos, existenciais, foram designados pelo termo “visão de mundo”. O

ethos de um povo é o tom, o caráter, a qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético

e sua disposição, é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu mundo que

a vida reflete. A visão de mundo que esse povo tem é o panorama que elabora das

coisas como elas são na simples realidade, seu conceito de natureza, de si mesmo, da

sociedade. Esse panorama contém suas ideias mais abrangentes sobre a ordem. A

crença religiosa e o ritual confrontam-se e confirmam-se mutuamente; o ethos torna-

se intelectualmente razoável porque é levado a representar um tipo de vida implícito

no estado de coisas real que a visão de mundo descreve, e a visão de mundo torna-se

emocionalmente aceitável por se apresentar como imagem de um verdadeiro estado

de coisas do qual esse tipo de vida é a expressão autêntica [...].

Com efeito, os quilombolas demonstram configurar um ethos, quando durante a fazição

ocorrem os contatos sociais, não só porque através deles congrega-se um grupo de pessoas, mas

também porque ali eles constroem um estilo moral próprio. Eles articulam vendas, solicitam

ajudas, socializam informações, contam histórias antigas, riem e comem. O trabalho possui em

todos os seus momentos um valor também simbólico. Isto significa dizer que ele envolve o

respeito, o compartir momentos através de regras de gramáticas sociais típicas, envolve ainda

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a reforçarem laços de reciprocidade e a se fazerem pessoas e coletivos afeiçoados com a terra144.

Acredito ainda que todo esse processo transparece uma ética do ambiente e uma lógica da

natureza, ambas construídas por eles, tal como descrevi nos capítulos II e III.

Neste fazer coletivo transcorre um conhecimento local entre os que sabem e praticam,

ensinando mostrando, demonstrando corrigindo, incentivando, deixando fazer, dentro de uma

pedagogia camponesa de reprodução da vida. Os que não sabem espiam e vão exercitando;

aprendem ajudando; são instruídos com o exemplo. Aos poucos, os que têm interesse em

aprender o fazer - quase sempre por necessidade - vão galgando o saber em um exercício de

participação. No dizer de Brandão (2003), estes vão captando os elementos culturais

indispensáveis ao alcance e ao aprimoramento humano, com base em conhecimentos

compartidos, em partilhas e em sentimentos co-participados.

Aprendi com pai e mãe; até de machado eu corto, afirmava Rosana Santos, quando eu a

acompanhava no retiro do Carlinho em junho de 2016. Esse aprender e tantos outros, acontecem

mais ou menos segundo uma mesma rotina, e são retratados com argumentos similares ao da

Rosana. Afirmam quase todos os adultos que pouco aprenderam na escola, pois os pais davam

prioridade ao trabalho na lavoura, tal como passo a evidenciar com alguns fragmentos.

Eu aprendi com o meu pai quando estava vivo. Um tempo atrás eu ia pro retiro com

ele que ficava mexendo e eu só espiando. Ele ia tomar água deixava o rodo assim, já

pegava e foi o jeito que aprendi. Graças a Deus da roça eu sei tudo roçar, fazendo esse

negócio aí, tipiti que chamam sei bater isso. É importante a pessoa aprender certas

coisas, só não o mal. Até porque nosso ramo pra cá é esse (Santana Couto, entrevista,

05/2016).

Começou da minha mãe. Foi, foi ela que nos ensinou. Porque com dez anos tava na

beira da roça, era o nosso destino sabe. Quando nós crescemos assim, molequinha, a

mamãe já trabalhava na roça, era da roça, do ensino do pai e aí nós começamos. Minha

mãe chamava vumbora trabalhar, nós tinha que ir. Para fazer esse serviço, mexer

farinha, ensacar mandioca, venha [...]. Eu sempre digo pros meus filhos e pros meus

netos. Mais de mim se eu não tivesse aprendido, né? Porque se eu não tivesse

aprendido eu não sabia o que eu tava passando, ainda não tinha conseguido nada,

porque quando foi pra eu me aposentar, a primeira coisa foi pelo meu trabalho. Os

meus filhos a metade aprendeu e sabe bem negócio de roça: capinar, plantar, mexer

farinha, sacar mandioca. Também no retiro, eles sabe tudo (Maria da Conceição

Maciel, entrevista, 04/2016).

Os dois agricultores narram mediações educativas e culturais por meio da dinamização

do fazer e da atenta e ativa observação dos momentos de um trabalho. Os depoimentos fazem

144 Sobre o assunto, na obra “O afeto da terra” Brandão (1999a) enfatiza alguns elementos para compreensão da

relação homem natureza, de camponeses. Traz instigante afirmação de que a natureza é tão humana como a cultura,

ratificando que o ser humano é um ser questionador do seu existir no mundo por meio do diálogo com os demais

seres envolventes. Afetos pressupõe sentimentos, transcendências, subjetividades com algo ou alguém, afeiçoar-

se ou ser afeiçoado, estar implicado com o outro. Nesses termos, diz um dos camponeses de sua pesquisa sobre tal

imbricação “é que eu sou muito amoroso com a terra, eu tenho um grande afeto por ela” (p.63).

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referência ao ensino dos pais, ao labor relacionado com o conhecimento local, tal como afirma

Brandão (2005, pp.17-18), “[...] Tudo o que se sabe aos poucos se adquire por viver muitas e

diferentes situações de troca entre as pessoas, com o corpo, com a consciência, com o corpo-e-

a-consciência”. Nas diversas redes tradicionais dos(as) quilombolas-agricultores(as), o saber

acontece “pelos atos de quem sabe e faz, para quem não-sabe-e-aprende”.

De alguma maneira houve, e ainda há o incentivo dos agricultores mais velhos para com

aqueles que desde cedo se interessam e passam a gostar da lavoura, mesmo em meio às

problemáticas mencionadas anteriormente. Sob uma perspectiva antropológica o princípio da

reciprocidade diz respeito à dimensão compreensiva pelos sujeitos, e não apenas a uma permuta

utilitária de bens ou de coisas. Ou seja, ele não se reduz a uma troca apenas coisificada, mas

antes, a permutas práticas, éticas e simbólicas. Como um ato recíproco, o aprender se faz a

partir da ajuda do neto à avó: Nós trazemos ele para nos ajudar, porque ele come também.

Agora, roça, não adianta que ele não vai. Aqui [retiro] vem sem reclamar e sabe quase tudo

desse trabalho.

As(s) agricultoras(es) mais jovens, como já mencionei, aprendem em mediações

familiares. Elisa, uma das mais jovens agricultoras da roça e dona de retiro, afirma bem isto:

Eu não comecei a trabalhar com isso, meus pais trabalhavam na olaria. Meu marido

no barreiro, como ficou escasso, passamos para a roça. Aprendi a roça no nosso

terreiro com ele. E bom aprender porque é o que tem. Eu não sou muito chegada

nisso, mas por necessidade fui aprendendo, para ajudar ele [esposo]. Vi que ajudava

nas despesas. Fiz meu retiro, plantei roças e é a minha sobrevivência. Nós pagava o

Domício, a Morena, agora o Mucito que nos paga a diária (Elisângela Ferreira,

entrevista, 04/2016, grifos meus).

Embora tenham sido criados por lavradores e/ou agricultores(as), cuja experiência foi

com a mão na terra eles não aprenderam com os pais. Mas em nome do sustento familiar,

passaram a aprender fazendo.

Na realidade, acompanhando os retiros, deparei-me com diferentes alternativas de

iniciação familiar neste fazer por parte dos agricultores, entre mães e pais que ensinaram aos

descendentes, e que atualmente trabalham juntos. Mães e pais que preferem trabalhar para

produzir o que ganham, esforçando-se para manter os(as) filhos(as) apenas dedicados aos

estudos, justificando não desejarem para elas e eles uma vida como a deles. Este é o caso de

dona Benedita: eu queria mesmo que elas aprendessem porque jovem né [...] pra elas não terem

essa vida aqui de roça, muito embora saibam um pouco da lavoura. Ou simplesmente, pensa-

se que as pessoas que aprenderam com os pais, trabalham como aprenderam, mas não repassam

mais como antes os seus saberes aos seus descendentes. Por exemplo, a apropriação do fazer

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roça pela filha do seu Domício ocorreu por meio de uma situação concreta: ela não sabia, mas

agora ela tá aprendendo e gostando por sobrevivência e sustento de seus filhos (Pesquisa de

campo, 2015). O fato é que mesmo com as mudanças geracionais na prática, os mais jovens se

socializam, aprendendo e ensinando uns com os outros, os saberes que os constituem e os

legitimam como pessoas de uma família e de uma comunidade.

4.2 – Alguns outros processos do fazer-saber

A circulação e promoção do saber envolve dimensões pedagógicas interpessoais,

familiares e comunitárias, sem uma estrita organização formal. No entanto, dentro de suas

lógicas e estratégias desenvolve-se um educar-aprender-ensinar através de um constante

movimento de mútua socialização, ainda que, com diferenças em tais lógicas e estratégias.

Assim, na comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é menos um saber artístico e

mais um agrícola. E, o bom entendimento com parentes e vizinhos, bem como o êxito em suas

produções oriundas das atividades do trabalho, depende das relações de convivência que os

quilombolas estabelecem entre si e com os recursos disponíveis no território, demonstrando a

estrutura e a lógica de um saber que é, ao mesmo tempo, prático e relacional.

Os agricultores não têm clareza, na maioria das vezes, do que realizam socialmente, e

nem reconhecem como aprendizado motivado as suas atividades, fazeres, tarefas, técnicas,

habilidades durante o empreendimento do trabalho de fazição nos retiros, entre atividades que

começam na roça. Fica meio às escondidas o como acontece e o como eles se relacionam para

produzir. Minha tentativa será então a de tentar elucidar o ‘miudinho’ do saber através desta

atividade e, de forma ampla, a reprodução do saber na comunidade.

Primeiro: o saber-aprender ocorre em situações formais de ensino. Neste caso ele está posto

em funções e propósitos definidos, cujo caráter é a transmissão de conteúdos e padrões

educativos previamente estabelecidos. Na comunidade, a Escola Santo André é o espaço

institucional de promoção destes conhecimentos. E embora o saber esteja presente no território,

a escola é o espaço oficial do conhecimento, congregando em si disputas, lutas e informações

envolvendo grande parte das demandas sociais que chegam de fora, como os projetos de

agricultura, as eleições da ARQUIA, e outras ações comunitárias. Até ela, chegam e circulam

conjuntos de situações e manifestações do cotidiano quilombola que abordo, ao menos em

parte, no capítulo V.

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O saber local adentra a escola, especialmente os da roça e do retiro, através dos próprios

estudantes. Entra também por meio do ensino de algumas disciplinas quando os docentes aqui

e ali problematizam o trabalho agrícola, e os estudantes dialogam com os pormenores dos seus

fazeres. Os estudantes sabem informar sobre os locais, os ciclos e os agricultores envolvidos

com a lavoura. Sabem expor os processos e a produtividade de cada cultura nos seus espaços.

Sabem explicar as regras, as formas e os instrumentos utilizados nos retiros. E, ainda, são vários

os estudantes envolvidos diretamente com o trabalho agrícola. Diante de suas mestras, nesse

aspecto são eles os mestres.

Segundo: o saber-aprender propaga-se de forma intencional, porém sem formalização.

Sobre esta dimensão lembro a transmissão do saber de pai para filho. Em situações e momentos

intencionalmente dirigidos, existe o interesse em ensinar e um encontro motivado com o

aprender. A mãe ou o pai mobiliza o filho ou a filha para que este participe ativamente da

fazição da farinha; leva-o para o retiro e o coloca em uma posição de observação e de

explanação, ajudando-o em seus fazeres. Assim, vez por outra pode acontecer de uma(um)

filha(o) exercitar alguma tarefa específica, como coar a massa de mandioca, ou mexer a farinha.

Esta sistemática de ensino me lembrou a experiência do seu Dilo, um mestre quilombola do

Itacuruçá que transferiu o que sabe para os seus filhos e me explicava o exercício de seu

aprendizado. Eis o caso dele

[...] Teve uma época, sabe como é, não tinha muito trabalho e era acostumado desde

zito, o pai levava. Se acostumava com o sol, acostumando com o trabalho. Quando

vinha da escola, ia com papai pra roça, mamãe dizia “vai pra roça”. Faziam muita

roça. Papai fazia um paneirinho pra nós, botava, às vezes uma mandioca dentro e

vinha atrás dele. Quer dizer, já começava aprendendo, ficava animado com aquilo.

Quando casei, em companhia do meu sogro e com pouco saber. Lá [Arapapuzinho] o

serviço era roçar, derrubar, carregar mandioca e fazer farinha. Saía para roçar e

quando dava meio dia eu tava com a mão que não podia fechar. Aí fui, fui [pausa,

silêncio] fui pegando o jeito do negócio. Mexer farinha eu não sabia. Minha mulher

carregava mandioca e fazia farinha. Tinha três mulheres lá para carregar, era ela, a

irmã dela e uma que já morreu. Elas eram só pra fazer farinha. Botar mandioca e fazer

farinha. Meu sogro era só para roçar roça. Derrubar, plantar. No machado, derrubava

mata, me butava pra derrubar quinze tábua maior [...]. Vernizero, era copiubera, só

daquelas [pausa, silêncio]. A gente bebia o leite de maçaranduba com uma farinha

torrada. Era muito gostoso. [...]. Como eu ia vendo o pessoal fazendo, ia aprendendo.

Mas pra gente aprender, tem que fazer a física, mexer farinha. Se você só olhar, você

não vai aprender. Tem que passar a mão no rodo e fazer uma visagem por aí [risos].

E vai, vai, que você se habilita. Tipiti surra a gente, pra quem não sabe. Nem que ele

apanhe umas duas surras dele, ele aprende [...]. [...]. Eu vou lhe dizer, é um lugar

muito especial Itacuruçá. Eu me criei e criei tudinho eles, meus filhos. Não sabe muito

ler nem escrever, mas todos sabem trabalhar fazer roça, fazer farinha, plantar

mandioca, cortar lenha, enfim, tudo que mandarem fazer eles sabem fazer (Dilo do

Couto, entrevista, 05/2015).

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Na sua fala se confirma que o saber aprendido com seus pais foi transmitido aos seus

filhos; o saber do trabalho.

Esta é também a experiência da família de dona Morena, como um outro exemplo que

apresento para elucidar a forma de propagação do saber. Em sua família são as filhas, sobrinhos

e netos os que praticam o ofício da fazição conforme descrevi em vários momentos. No

convívio familiar os pais conseguem articular e garantir o envolvimento de muitos parentes na

lavoura e em seus derivados. A atuação de vários agrupamentos familiares fez com que eles

construíssem dois retiros, e edificassem entre eles algumas estratégias de trocas dos saberes e

dos procedimentos do ‘ensinar alguma coisa a alguém’. Eu presenciei crianças circulando por

entre as maceiras, espiando os adultos a bater o tipiti, ou escutando as conversas sobre aqueles

fazeres145. Presenciei um dos netos de dona Morena, licenciado em Biologia e atualmente

desempregado, ajudando na produção, como me disse ele. Acompanhei numa tarde alguns

parentes com dona Morena, organizando a fazição e, noutro dia, desenvolvendo tarefas

específicas no retiro. E por tais ensaios, como disse dona Morena, vamos trazendo, e devagar

eles vão aprendendo.

Nos dois exemplos citados há algo essencial. Os participantes, percorrendo idas e vindas

entre as roças e os retiros, estão envolvidos em constantes e diversos processos de ensinar-

aprender. Nas caminhadas até os espaços mães e/ou pais deslocam-se levando objetos e

materiais na companhia de filhos e sobrinhos, os quais devagar vão captando aqueles saberes.

Ainda que, como lembrei antes, esteja cada vez mais escassa a intenção de ensinar algo a

alguém interessado em aprender, no caso, aprender os fazeres da lavoura.

Terceiro: veicula-se o aprendizado espontâneo por observação e por repetição. Neste caso,

sem uma ação dirigida e motivada, ocorrem os contatos pelos quais um saber circula. As

pessoas espiam por conta própria e buscam aprender quando há interesse. Notei crianças e

adolescentes sendo conduzidos aos retiros para que não fiquem sozinhos em casa. E sem

nenhuma pretensão vi como estes interagiam com os que trabalhavam e, assim, aprendiam as

primeiras lições do fazer farinha e comercializar o produto. Ao mesmo tempo elas brincam e

assistem o que ocorre no retiro: as conversas, os vínculos, os tempos, os jeitos peculiares de

dizer e traduzir o mundo, que podem ser explorados146. A narrativa de acontecimentos e meios

daquele fazer é um momento de ensino e, elas aprendem convivendo diretamente com o

145 Maceira – objeto feito em madeira que serve para colocar a massa (mandioca) de fazer farinha. 146 Detalho no capítulo V, um caso emblemático, o do senhor Santana conduzindo um dos filhos para o retiro.

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trabalho dos outros. Relacionando com a aprendizagem da arte dos foliões, no estudo de

Brandão (2003, p.47), vejo que acontece mais ou menos assim,

Tradicionalmente, o saber popular que faz o folclore flui através de relações

interpessoais. As crianças e os adolescentes aprendem convivendo com a situação em

que se faz aquilo que acabam sabendo. Aprendem fazendo, vivendo a situação da

prática do artesanato, do auto ou do folguedo. Do trabalho cultural.

Eu mesma, ainda hoje consigo realizar alguns fazeres do mundo rural amazônico com os

quais convivi desde quando criança, como: descascar, amassar e coar a mandioca, cortar a

maniveira, debulhar o açaí, remar, descascar castanha do Pará. Entendo ainda algo sobre a

feitura da farinha e até mesmo os passos e os tempos da rotina entre as roças. Aprendi por meio

do ‘espiar’ e do ‘ajude aqui’, participando com familiares em situações práticas. Meus pais e

avós, sem uma intencionalidade pedagógica assumida, colocavam as(os) filhas(os) e netas(os)

entre as experiências dos vários saberes da lavoura.

Quarto: acontece espontaneamente um autoaprendizado. Existem pessoas que desenvolvem

o ‘dom’ para um determinado ofício, isto é, a habilidade talentosa em algum fazer especial.

Trago o exemplo da família de dona Sabá. Em sua casa são visíveis as ferramentas e objetos do

tecer, do pintar, do desenhar, do lixar, do amarrar e do ajudar. Por toda a parte estão presentes

objetos da prática do artesanato com talas e cipós. Dona Sabá faz rasas e paneiros; o pai e um

dos filhos confeccionam artesanatos de mirit; duas filhas, além de tecerem peneiras, mãos de

juda e abanos, são exímias na arte dos fios de lã e outras linhas. Ao conversar com eles, o casal,

ressaltava que aprendeu espiando, experimentando e ajudando ‘aqui e ali’ nos fazeres. O saber

do tecer, sobretudo, segundo dona Sabá, foi aprendido com seus pais e avós.

Assim, as três últimas dimensões do aprender o saber configuram-se como apropriações

que acontecem fora de uma marcada institucionalidade, ou seja, fora dos contextos

institucionais que se destinam a ensinar com um propósito. Faço notar com isto que existem

outras formas de aprender-ensinar para além da escola. Como procurei mostrar, além do

artesanato com talas e cipós, são usuais as práticas artesanais como o fabrico de telhas, o plantio

de mudas de açaí, a produção de utensílios com materiais recicláveis, a pesca com matapi e de

gapuia, evidenciando como diversamente se promove a reprodução do saber entre os

quilombolas. Assim, existem formas educativas sempre ocorrendo por meio das práticas sociais

que geram situações contínuas de uma verdadeira pedagogia quilombola no território estudado.

Nesses termos, a visão de educação preconizada por Brandão (2005) como categoria

repleta de sentidos faz-se importante. Um dos sentidos, o da troca e partilha entre sujeitos, é

talvez a mais fecunda. De fato, para o autor, tanto o processo de educar-se quanto o fazer

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educativo ocorrem entre pessoas e em meio a imbricações socioculturais. Tal perspectiva

corrobora para o reconhecimento de uma espécie de “criação de saberes” que são gerados,

produzidos e partilhados (BRANDÃO, 2005; 2003).

Aprender é constituir-se sujeito de si e do mundo. Aprendemos captando o ambiente

físico e social, as interações e as relações com outros, em uma pessoal e social passagem da

natureza à cultura. Trata-se, portanto, de compreender o aprender-ensinar através de saberes

diversos capazes de comportar demandas que, ao mesmo tempo, são práticas, éticas e políticas,

como sentidos sociais e individuais em relação à sociedade (BRANDÃO, 1986).

Outro aspecto assinalado pelo autor a respeito da educação é o que trata da “criação de

conectividades”, aproximando-se da experiência das agricultoras-lideranças, que constroem um

sistema de rede interpessoal, tendo a produção, inclusive, como um foco de destaque sobre a

condição da mulher (BRANDÃO, 2003, p.21). Elas se constituem como lideranças referidas

pela tradição, pelo jeito de coordenar e do agir efetivo também na lavoura. Participam

ativamente na agricultura da comunidade e são reconhecidas por outros moradores como as que

estão na linha de frente

Normalmente, tais lideranças envolvem pessoas que nasceram e se criaram no trabalho

da lavoura; e na condução do serviço com a terra elas e eles se utilizam de estratégias de pensar

e de agir. Ações que colocam em evidência as relações sociais, econômicas e de políticas locais;

mobilizando e instigando a criação de outros produtores culturais, e conformando novas

legitimidades e demandas na história quilombola do lugar.

Trata-se, portanto, de uma endoeducação diretamente vinculada à memória e ao

imaginário dos quilombolas, difundido por meio da cultura local147.

Transcorrido o caráter sociocultural e educativo do saber, passo a elucidar o caráter

produtivo desse labor, embora alguns extratos já tenham sidos pontuados linhas atrás. Ressoa a

consciência do aprender por necessidade – é o serviço que tem, mais o gostar de fazer a farinha

do seu consumo e o afeto com a terra.

Nesse aspecto trago a experiência do saber-fazer de dona Benedita Couto, com 48 anos,

quilombola e agricultora do rio Baixo Itacuruçá148.

Sua área de terra mede 1.900 metros de comprimento, com 900 de frente, envolvendo os

dois tipos de solos. Além do cultivo da roça com mandioca, maxixe, macaxeira, gergelim,

147 Nos termos de uma cultura campesina-ribeirinha-quilombola, constante nos capítulos I e II. 148 A escolha se deu em virtude de realizar muitas incursões no retiro dela, e também por sua experiência de

organização produtiva, comercial e de circulação junto de vizinhos e parentes.

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abacaxi e milho, existem outros plantios149. Para chegar ao seu retiro, temos duas alternativas:

pelo rio em um percurso até o igarapé Aricuru ou pelo ramal Santo André.

Conheci dona Benedita (ou Bena, 47 anos) durante as minhas andanças no lugar em 2012.

Naquele momento o seu nome fora citado por moradores em razão do seu aprendizado na

lavoura, e a sua postura de liderança, exercida junto às pessoas da comunidade e dos rios

próximos. O sogro, seu Dilo, confirmou seu aprendizado: Ela gosta da roça e não era da roça,

ela trabalhava na olaria, o irmão dela tem uma olaria ali embaixo. Depois foi trabalhar com

roça e foi pegando a prática e largou a olaria. Já meu filho largou a roça e passou pra olaria

[risos]. Reitero que a parceria com o sogro não durou muito tempo, devido a desentendimentos

quanto ao uso do retiro. A seguir, trago duas imagens da agricultora trabalhando.

Foto 13 – Dona Benedita na roça

Foto 14 – Dona Benedita e o ajudante no poço,

descascando mandioca

Fonte: POJO, E.C., Set. 2015.

Segundo dona Benedita, no seu agrupamento familiar150 todos participam do trabalho.

Nós nos ajudamos e, mesmo assim, ela recorre a um ajudante151; um vizinho que comumente

atua trocando seu serviço com algum produto (farinha, açaí), mais uma ajudinha. Várias vezes

em que acompanhei as atividades na roça, no retiro e no quintal de sua casa, ela me falou, com

orgulho, do seu afeto em trabalhar na terra.

É sobre essa plantação que eu tenho. Eu trabalho na roça, eu tenho o meu açaizal, e

eu gosto muito de trabalhar na roça pois temos sempre trabalho e dá para viver bem,

porque tudo que eu planto lá eu como. Se planta, colhe e a farinha tem gosto. Está ao

149 Possui as seguintes árvores frutíferas: açaí com mil palmeiras, manga, caju, coco, piquiá, castanha, miriti,

cupuaçu. Cria galinhas e porcos, e realiza a bateção do açaí com venda, por litro. 150 Formado por ela, o esposo, a filha, o genro e uma neta com dois anos. 151 Trata-se de um senhor, sua esposa e quatro filhos que ainda são crianças. Vieram do rio Arapapuzinho, em

2012, que não tinham trabalho e nem casa. Dona Benedita cedeu uma área de terra ao lado do retiro para morarem.

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nosso redor. Assim, não só pra mim, mas para vender também. Reparto com a minha

família, pros meus vizinhos, para os queridos que eu tenho na cidade [...]. Agora o

povo não quer mais fazer esse serviço, só querem o que está pronto. Eu sei que daqui

coloquei minhas filhas para estudarem e tiro o sustento da minha família (Benedita

Couto, entrevista, 09/2012).

A agricultora manifesta um conhecimento do trabalho, ao lado de um sentimento e de

uma identidade que sustentam o seu possuir, viver e trabalhar.

Certo dia, acompanhando a sua rotina, ao me ver, ela foi logo dizendo: Fique à vontade.

Estamos aqui fazendo farinha para nosso consumo. No espaço do trabalho estavam todos os de

sua casa, e mais outras duas crianças que são filhas do ajudante. Dona Benedita circulava entre

as tarefas com a massa da mandioca: triturar no catitu, bater o tipiti, coar e por massa no forno.

Seu genro exercia o fazer do rodeiro. A filha, além de cuidar da criança, servia café e cuidava

do almoço; e o ajudante descascava mandioca no poço. Afetuosamente, ela explicou-me sobre

o preço da farinha, a quantidade produzida, o uso de cada instrumento. Quando perguntei sobre

a produção daquele dia, obtive a seguinte resposta: iniciamos de manhã e vamos até umas duas

horas, fazendo três fornadas, mas quem ganha mesmo é o comerciante, vendendo no quilo.

Sobre a produção, mesmo considerada trabalhosa e com um ganho reduzido, dona Benedita

foge à regra de uma produção somente para o consumo familiar, pois ela vende constantemente

e, por isso, é a que tem mais roças durante o ano. Os moradores sabem que ela comercializa e,

sempre a procuram para comprar o açaí, a tapioca e a farinha.

A frase veementemente dita por eles, segundo a qual a produção é para o consumo, e que

a venda não dá lucro, constitui a lógica de uma explicação local, frente à oscilação dos preços.

Ficou explícito que, para ter farinha na mesa, os agricultores precisam custear muitas atividades.

Sobre elas eu trago aqui alguns detalhes sobre os valores que se relacionam ao fazer.

Tabela 22 – Outros elementos e valores utilizados nos retiros

Ação/Espaço/Produto Valores/medidas Linguajar

Carregar lenha para uso em fogão ou

forno

Valor: R$25,00 = 01 metro carrear

Carrear mandioca Valor: R$70,00 a R$80,00 carrada

Fazer uma fornada de farinha Quantidade: 15kg -

Venda da farinha (mandioca) Valor: R$6,00 (média) = quilo

Valor: R$70,00 (média) = 15kg = 01 fornada= 01 alqueire

Valor: R$140,00 (média) = 30kg = 01 cabeça

cabeça ou

alqueire

avortado

Venda do quilo da macaxeira ralada Valor: R$8,00 (média) = quilo -

Diária do serviço Valor: R$40,00 ou 50,00, depende do serviço

Fonte: Pesquisa de campo, 2016.

A oscilação do preço ocorre em função do aumento ou da diminuição da produção. O

quilo da farinha varia entre R$ 5,00 a R$7,00, valor considerado elevado pelos quilombolas da

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comunidade e, também, pelo povo da cidade. No início do ano, os noticiários locais informavam

sobre o aumento súbito da farinha e, na visão do Carlinho, confirmava-se a notícia: às vezes o

pessoal sabe, faz logo encomenda, uma cabeça, duas cabeças de farinha. Se tivesse condição

de fazer todo dia, vendia. Olhe agora esses dias tá com pouca farinha nessa área e, quando tá

em falta assim, o preço vai lá pro alto (Pesquisa de campo, 2016). Ainda, sobre a variação do

preço, os agricultores-produtores, explicam:

Olha, é por isso que nós estamos nessa situação, que a farinha tá nesse preço imenso.

E vai pegar dez reais o quilo, se não passar. Porque, quem tem roça aqui nesse meio

somos nós e a Nelita, que é mais avortado. Tem alguns que tem um pedacinho, mas é

só pra boia. E essa população inteira que usa farinha de onde é que vai ter? Porque

eles não têm, não querem trabalhar na roça. Eu sempre dizia: olha, a minha filha, ela

estudou muito assim, mas ela vinha pra roça comigo. Ela não era dessa assim de dizer

assim: ah, eu vou só estudar, não. E hoje quer só estudar e não sabe plantar uma

maniva. Não sabe o que é uma macaxeira pra uma mandioca [...] (Benedita Couto,

entrevista, 06/2015).

A maioria tudo é comprado. Antes, quando a farinha não estava boa de vender o

pessoal nem ligava, quando foi ano retrasado a farinha quase chega R$10,00 o quilo

e, gente que nunca tinha plantado roça começaram a fazer. Deu umas quantas roças

na nossa área. Agora, ano passado a farinha já baixou o preço e já se esqueceram,

ninguém cuida em roça, até aqui não vi ninguém se mexer [risos]. [...] o meu pai me

criou na farinha, da gente andar com a farinha pra vender e ninguém queria comprar

porque todo mundo tinha. Agora o pessoal diz que a terra é pior, dura pra sacar. Aqui

no verão a terra fica seca, onde é barro, área de barro fica dura a terra pra arrancar o

tronco e onde é areia fica mais macia. Também a areia quente estraga a mandioca,

tudo isso tem, com o tempo a mandioca vai ficando murcha, quando tá seco, seca

também a areia (Dilo do Couto, entrevista, 06/2015).

[...] farinha tem muita encomenda, mas não tem a mandioca. Produz o ano todo

depende de fazer a roça. E aqui todo mundo sabe quem faz, onde faz (Igarina

Rodrigues, entrevista, 08/2015).

O certo é que todos os que podem produzem, em meio às contradições do mercado e às

necessidades do próprio sustento e, para isso, cotidianamente entra em cena as diversas

temporalidades e lógicas na complexa gramática das relações e dos cálculos locais.

Buscando encerrar o capítulo, teço algumas considerações pertinentes. A prática da

fazição é parte da experiência de todas as comunidades do rio Itacuruçá, constituindo-se

patrimônio da região e da Amazônia paraense. E, tal prática retroalimenta o dizer de um

estudante152 segundo aqui quilombo é cultura, posto que seus habitantes aportam solidez ao

processo de construção de um mundo social construído por eles.

A prática do saber fazer a farinha é transmitida oralmente pelos quilombolas, confirmando

a ancestralidade herdada de seus antepassados, ainda quando dos primeiros ensaios dos

quilombos em terras amazônicas.

152 Identifico esta estudante, de 11 anos de idade e que cursa o 6º ano do Ensino Fundamental, com as iniciais A.S.

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Através da fazição da farinha, vimos como se processa o intercâmbio entre localidades,

trabalhos e vidas. Em resumo, ao confiar à fazição da farinha a produção e a reprodução física

e cultural, os agrupamentos familiares logram realizar e conformar um certo grau de autonomia

e um jeito de estar, viver e produzir em um território.

Notadamente os retiros, além do produzir, vender e alimentar as pessoas, funcionam como

catalizadores de atos educativos entre elas. Em contrapartida, como atividade econômica o

cultivo da roça geradora da farinha passa agora por mudanças, seja por conta das condições do

solo; seja pelo avanço e impacto do agronegócio, ou ainda por meio dos constantes roubos nos

retiros e nas roças, e também devido à crescente desvalorização do trabalho da lavoura, ao lado

de outros tantos fatores presentes no território quilombola e na região amazônica. Fatores que,

de modo geral, ocasionam continuamente alterações nas formas de reprodução e perpetuação

das comunidades tradicionais.

Espero que minha descrição de uma prática tenha evidenciado que há um regime de

produção social em movimento, o qual deve suas características às experiências e, que pode ter

exercido ou pode realizar-se ainda como uma forma ativa de resistência. Pois ele funciona como

instrumento ativo de saberes assentados para além dos rigores da ciência moderna. E assim, ele

se situa em um compartir a vida, que tal como exemplificado pelo dizer de dona Benedita,

significa tô aqui dando um estudo pra essa moça153. E, de fato, os quilombolas potencializam

conhecimentos e reinventam seus modos de vida em um contexto que se apresenta em

transformação entre os aspectos socioambientais, sociais e econômicos.

153 Usou ao apresentar-me para uma vizinha, Nelita, sua amiga e parceira de trabalho.

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CAPÍTULO V

Foto 15 – Crianças retornando da escola

Autora: POJO, E.C., Ago. 2016.

QUILOMBOLA É DESENVOLVER A CULTURA

CONSIDERAÇÕES SOBRE O APRENDIZADO DAS CRIANÇAS NA VIDA E NA ESCOLA

Neste capítulo, a ideia é evidenciar com mais detalhes o aprendizado das crianças em seus

processos educativos e culturais, de modo que seja possível visualizar a infância no “jeito de

ser quilombola”. Assim, mapeei, com elas, as formas próprias de intervirem ativamente na

prática social, isto é, espiei como as crianças participam, como aprendem e como apreendem o

universo amazônico-camponês-quilombola. Busquei interagir com os seus modos desde o

embarque, em passeios de casquinho nos fins de tarde e ao acompanhá-las em seus pisares por

entre as folhas das árvores, galhos, frutos e paus na sonoridade da mata e no convívio com os

adultos. Gastei tempo, perambulando por entre os seus brincares, tal como lembra Gusmão

(2012, p.170) “[...] sobrevém a importância da sociabilidade que se expressa em meio a

brincadeiras, jogos, cantos e danças, entre muitas outras formas de expressão no mundo

infantil”.

Assim, não me proponho esmiuçar toda uma ‘cultura infantil’154 existente na comunidade;

tão somente, busco estabelecer um diálogo com as considerações defendidas e pormenorizadas

154 Um livro de Florestan Fernandes (1979) traz uma excelente visão sobre pesquisar com crianças, e a leitura da

obra foi um dos meus ‘incentivos’ para a escrita do capítulo. No que tange ao termo cultura infantil, segundo o

autor, é uma categoria de análise que permite entender, compreender, investigar os processos de inserção e de

socialização da criança na cultura. O trabalho do autor com crianças é relevante na produção científica brasileira

quando diz respeito ao cotidiano infantil, bem como quando dá voz às crianças como sujeitos da pesquisa, a partir

das “Trocinhas” - forma de organização delas, normalmente agrupadas pela condição de vizinhança. Em sua

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na tese, sobretudo os processos educativos por meio do trabalho. Levo em conta,

principalmente, os encontros com um grupo infantil em momentos de algumas vivências de

campo, nas rotinas da escola e da família ou, simplesmente, a ação de espiá-las.

5.1 – Caminhos do espiar e do produzir com as crianças155

Em 2012, quando eu desenvolvia projetos acadêmicos na comunidade, numa breve

andança pelo território, visualizei algumas crianças circulando por entre os adultos e, outras,

vivenciando a ação principal da infância, o brincar. Fiquei contagiada com seus olhares atentos

diante da minha presença, com seus brincares e as trocas entre elas no quintal, nos retiros, na

beira do rio, nas pontes e na escola. Esse cenário, levou-me à leitura de Fernandes (1979), por

presumir que as crianças do rio Baixo Itacuruçá transitam na rua, no caso o rio e na mata,

enquanto espaços de sociabilidades e de experiências de vida. Além disso, foi impossível não

ser envolvida pelos seus gingados do corpo, pelos sorrisos e pela aparente descontração, que

presenciei na área livre da escola, onde agrupavam-se crianças e adolescentes entre linhas

marcadas com sandálias para, como dizem elas, brincar formô na escola.

Foi observando tais processos que, como aprendiz da etnografia, coloquei-me na

iniciativa de ir encontro com elas, pois tais momentos aguçaram a minha curiosidade para

compreender um pouco mais da comunidade e da identidade quilombola. Assim, resolvi incluí-

las em um dos projetos como sujeitos da pesquisa e, no doutorado, aprofundo tal interlocução,

que foi se dando gradualmente, conforme fui ‘ruminando’ as questões da investigação e a minha

efetiva inserção no território.

Esta interlocução exigiu ensaiar uma participação ativa e criativa da pessoa pequena, pois

“as crianças, de qualquer grupo, sociedade ou cultura, sabem de si, sabem onde estão, o que faz

parte de suas vidas; conhecem seu mundo; e se confrontam com os princípios de pertença e

identidade que lhes são atribuídos” (GUSMÃO, 2012, p.164). Partindo deste pressuposto, estar

em campo demandou um espiar atento aos acontecimentos, assim como um agir no sentido de

troca entre sujeitos, com especial atenção ao que elas diziam e faziam, valorizando os seus

modos de vida.

pesquisa evidenciou a criança como sujeito de memória, de criatividade e de intuição, um ser ativo, capaz de

interpelar e de compreender o mundo com base em elementos elaborados por ela. 155 Para Gusmão (2012), as crianças são sujeitos sociais com uma mente cultural inestimável. Na comunidade,

contabilizam aproximadamente 168 na faixa etária entre zero e quatorze anos (dados das agentes comunitárias de

saúde, 2016).

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Com este intuito, convivi com um grupo de quinze crianças e adolescentes entre nove e

quinze anos de idade, estudantes do 4º e 5º anos do Ensino Fundamental156. A maioria delas já

me conhecia das muitas andanças na comunidade, porém, durante as vivências, depararamo-

nos com ocasiões de estranhamento, de entusiasmo e de disposição, por estarmos juntas em

uma nova interação. As crianças fizeram alguns questionamentos sobre como cheguei lá, qual

a minha atuação e sobre a minha origem. Inicialmente, expliquei o propósito do trabalho e

procurei saber o que elas entendiam por pesquisa, obtendo os seguintes comentários: saber das

coisas do lugar e procurar alguma coisa olhando o que tem. Elas deram ênfase ao espiar como

sendo significativo. No dizer das crianças, elas iriam participar de um projeto por um tempo,

com a professora que faz pesquisa na comunidade. Ademais, muitas mães ou responsáveis

estavam familiarizadas comigo, o que facilitou conversar sobre as crianças e obter o

consentimento delas para, o que considero na tese, um mapeamento inicial.

As vivências do grupo infantil ocorreram por meio de ‘encontros’ durante três meses e

em horários diversos dos das aulas, semanalmente. Comparti algumas rotinas vivenciadas nos

intervalos entre a escola e a comunidade. Assim, denomino de ‘encontros’ os momentos em

que busquei captar as ocorrências do brincar, as vozes do rio e da mata, quando ‘gapuiava’

saberes. Essa denominação, tal como um espaço de trocas, para Brandão (2008), configura

momentos vividos, onde o “aprender significa abrir-se ao fluxo impermanente e inesgotável do

saber. Aprender é um encontro. É um sempre ir-ao-encontro-de” (BRANDÃO & BORGES,

2008, p.19, grifos meus).

Nesse contexto, as crianças se afirmavam crianças. Certifiquei-me disso a partir de dois

meninos, os de mais idade; eles não só pediam para brincar, como também narravam os seus

brincares espontaneamente. Em campo, muitas vezes, presenciei esses meninos e, em muitas

ocasiões, meninas e meninos maiores de treze anos juntos de crianças menores envolvidos com

algum fazer, inclusive o de brincar. Além disso, chamou-me atenção a fala de Elisa. Ela,

capinando a roça ao lado da escola, observava adolescentes que se movimentavam em frente

da instituição e, comentou: tem umas que já namoram e brincam fio, pulam corda. O brincar

não tem idade. Outrossim, tais afirmações evidenciam que a brincadeira e a ludicidade na

comunidade são vistas como ações do cotidiano exercidas por grupos infantis e com valorização

156 Foi opção delas não revelar seus nomes e, percebi que este acordo deixou-as mais à vontade nas produções.

Assim, uso apenas as letras iniciais de seus nomes, buscando garantir-lhes o anonimato, mesmo assim, solicitei

autorização dos responsáveis das que participaram da pesquisa. Os demais estudantes que participaram

informalmente e os do projeto acadêmico (2012-2013) deixei sem nenhuma identificação.

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dos adultos. Sobre como identificá-las, Brandão (2015), no artigo: “Olhar o mundo e ver a

criança: ideias e imagens sobre ciclos de vida e círculos de cultura”, nomeia-as de criança-

adolescente, de criança-estudante e de pessoa-estudante157.

No território diverso, eu atravessava as margens e andarilhava pela terra firme,

priorizando ações, mas conversando com as crianças-adolescentes-estudantes sobre os fatos ali

vivenciados. Muitas vezes, adentrei situações do dia a dia que ocorriam no trapiche, nos

terreiros, no caminho da escola até o Arapapuzinho ou, ainda, no Parque Encantado.

Acompanhava o movimento do recreio, os brincares nos fins de tarde, os grupos de crianças e,

eventualmente, as crianças isoladas. No intuito de estar com o grupo infantil, fiz-me presente

algumas vezes nas salas de aula e, prioritariamente, atuei nas vivências de campo, produzindo

com elas discussões e registros sempre com a preocupação de como me inserir, não passando a

ideia de mais uma aula ou de mais uma tarefa escolar. Os contatos familiares foram importantes,

pois esclareceram aspectos observados na escola e no campo, além de nos aproximar ainda

mais.

Em meio a tudo isso a travessia metodológica das vivências incluiu conversas informais

e entrevistas em grupo; sessões de brincadeiras, visitas aos espaços, caminhadas na mata,

discussões com base em alguns temas, buscando, como já mencionei, captar o universo dos

saberes locais e as nuances do ser quilombola. Alterando a metodologia quando necessário,

seguir as vivências em campo conforme coloco no esquema abaixo. Igualmente, para configurar

os dados utilizei uma máquina fotográfica e outros registros escritos e orais.

157 Nesse texto, sugere indicações metodológicas e epistemológicas para se pensar a pesquisa com e sobre crianças

no que propõe olhar a partir do porto cotidiano de chegadas-e-saídas, isto é, pelo seu espiar o mundo. São eixos

que tematizam os círculos de reciprocidades e de interações de que participam na vida; os espaços-tempos da

escola como integrados no complexo da vida comunitária; a participação na vida cotidiana, o ciclo a ciclo; em

suma, busca refletir e pormenorizar a “compreensão mais viva e mais fecundante da vida comunitário-cotidiana

das crianças” (BRANDÃO, 2015, p.123). Além do autor, para a escrita do capítulo, utilizei como referências

conceituais, metodológicas, bem como sobre a infância quilombola e da Amazônia, entre outros, os autores

Gusmão (1990, 2012), Freire (1996) e Souza (2015), que me auxiliaram nas reflexões.

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Figura 09 – Esquema ‘Gapuiando ideias’ / No centro, uma fotografia do espaço da gapuia

Autora: POJO, E.C., Abril. 2016.

No percurso dos encontros, presenciei olhares, cochichos, aproximações, descontrações,

constituindo os dados para a análise e para a produção do conhecimento neste capítulo,

considerando as crianças como sujeitos sociais. Muitos lugares e andanças foram indicados

pelas próprias crianças, emitidos por suas falas e seus relatos, por desenhos e por brincadeiras,

por fotos e por vídeos produzidos conjuntamente.

5.2 – Mediações do saber-aprender através do brincar

Rio-mar reluzente [...] Fui gapuiar histórias de rio e da mata! O barco aportou. Durante

a travessia, chamou minha atenção a imbricação das crianças com a natureza na

constituição do brincar, do ajudar nas taferas laborais, do estudar, ou seja, interagem

com o fluxo cotidiano da comunidade. Elas transitam por costumes, jeitos, tempos,

cultura(s) que marcam o viver ali. Eu, nos meus intencionais desencontros, faço o

encontro com outras ideias, (in)certezas e aprendizagens, buscando compreender

aspectos culturais do lugar, espiando dentre outros, o espiar delas (Diário de campo,

2013).

As impressões acima são rascunhos do meu diário, e as fotografias que seguem são

algumas que tirei durante três dias consecutivos em campo, quando realizava o mapeamento

inicial da comunidade, que compunha um dos projetos acadêmicos. Naquele momento, fui

percebendo que tramas educativas eram costumeiras ali, mesmo quando escondidas atrás de

outras práticas.

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Foto 16 – Crianças apreciando a tarde Foto 17 – Criança tomando banho no rio

Foto 18 – Criança no colo, à beira do rio

Fonte: POJO, E.C., Jun. 2013.

Todos somos sabedores que desde o nascimento as crianças são envolvidas em diversos

contextos sociais. Assim, no cotidiano, por várias vezes, observei, que logo cedo da manhã,

elas ficavam na cabeça da ponte tomando banho ou escovando os dentes; outras estavam

remando em pequenos grupos, indo para a escola e outras, simplesmente, apreciando a natureza.

Percebi que compartiam cada uma as singularidades de sua faixa etária.

Verifiquei que uma das formas de mediação simbólica construída no e através do trabalho

de campo foi captar impressões do lugar por adultos, crianças e adolescentes. Entre o ir e vir,

algumas vezes, sem nenhuma tarefa específica, as crianças me indicavam a escola e alguns

espaços próximos de suas casas como lugares sociais. Locais que diziam muito sobre o

comunitário e a comunidade no rio Baixo Itacuruçá. Indicavam estarem integradas com a

natureza, espraiada entre os seus movimentos nos espaços, nas formas de identificação e nos

usos dos objetos. Deste modo a representação do território se apresenta com uma paisagem

colorida, com animais, com casas, com barcos, com gentes, com árvores e com o rio

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interligando os diversos ambientes. Tais significações se aproximam em muitos aspectos das

visões dos agricultores que apresento no item que trato sobre a imbricação humano-natureza.

Desenhos 05 e 06 – ‘Meu lugar’

Fonte: Pesquisa de campo, 2016 / Autoria: M.G., (10a).

Desenho 07 – ‘Meu lugar’

Fonte: Pesquisa de campo, 2016 / Autoria: F.C., (15a).

As crianças circulam e convivem entre si e com adultos, em diferentes lugares e tempos,

em e entre “círculos culturais da vida” (Brandão, 2015). Destaco aqui o trânsito entre a vila de

casas, como é o caso da família de Z.P.(11a). Quando um quilombola faz menção à vila, à

beirada ou a pedaço, ele está se reportando à sua família, à propriedade de sua terra. Observei

que o trânsito pelos lugares faz com que as crianças se percebessem parentes e integrantes de

uma mesma família. Assim, como afirma Woortmann (1994, p.08): “A árvore é associada ao

tempo - um tempo genealógico, poder-se-ia dizer”. Parafraseando a autora, digo que os

quilombolas mais velhos são a parte estrutural da árvore: a raiz. E é nesse cenário familiar e da

comunidade que ocorrem situações formadoras de uma identidade e de uma consciência social.

Um exemplo está no aprendizado comunitário e geográfico do território.

Eu moro na beira do rio, próximo da ponte da escola Santo André. Todo mundo passa

na frente da minha casa. Eu amo onde moro e também gosto de todos os meus

vizinhos. Tenho amigos e na minha casa tem uma mercearia do meu pai. Na beira do

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rio tem muitos barcos e rabetas, eu passeio de canoa de tarde e vejo os trabalhadores

passando pro barreiro. Na terra firme, eu passeio de bicicleta com o meu pai e passo

por muitas casas. Agora, vou morar pra terra firme, porque o papai comprou um

terreno e vai dividir com vovô (R.B., 10a, grifos meus).

Ainda citando a autora: “O parentesco, portanto, se relaciona à memória de diversas

maneiras, mas poder-se-ia dizer que, na medida da ênfase posta na descendência - e a aliança

se destina a assegurar a descendência, a ‘casa’ e a ‘árvore’ - o parentesco é memória” (Idem,

p.13).

Abaixo, o registro sobre o território e a ideia de vila e família:

Desenho 08 – Onde moro Desenho 09 – Vila de casas

Fonte: Pesquisa de campo, 2016 / Autoria: M.M.; Z.P.

Esses dois registros traduzem aspectos da natureza e da vida social. No desenho da vila,

a menina apresenta as pontes que interligam as casas de seus vários parentes, inclusive fazendo

um detalhamento do quantitativo de pessoas por família, assim como o brincar e a partilha entre

elas. Em seus termos os usos dos espaços e as mediações cotidianas corroboram para uma dada

interatividade articulada às culturas próprias e apropriadas, por meio de um aprender coletivo

entre crianças e adultos. De outra forma, além do aspecto prático em que a paisagem e o

conteúdo do ambiente natural são utilizados pelas pessoas, vemos que eles se constituem da

terra, do rio, da mata, elementos da criação simbólica sobre o mundo quilombola.

Os desenhos a seguir, de dois interlocutores da pesquisa, representam relações íntimas

com a mata e o aprendizado adquirido durante o percurso do rio Arapapauzinho até à escola,

assim como o transitar no dia a dia, na vivência prática.

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Desenho 10 – O circuito na comunidade Desenho 11 – Percurso até a escola

Fonte: Pesquisa de campo, 2016 / Autoria: N.S., (14a); F.C.

A fotografia abaixo demonstra um pouco do que se passava ali. Ela foi tomada no terreiro

de um dos quilombolas que colaboraram com a pesquisa. No momento do registro, uma de suas

netas, encontrava-se imersa no silêncio da terra e do seu brincar, sendo vigiada por outras

crianças e animais e está protegida pela sombra das árvores, fração do mundo rural.

Foto 19 – Criança brincando no quintal

Autora: POJO, E.C., Fev. 2016.

Passados alguns dias, levei a foto para R.R.(08a). Ela, recebendo-a sorridente, afirmou

que o pedaço do galho em sua mão é um pau de brincar e o desenho são coisas na terra, dando

visibilidade à construção de suas brincadeiras e instrumentos do brincar. Visualizei que, além

dos materiais da natureza transformados em brinquedos, elas utilizam também, alguns

comprados para o brincar.

Durante as atividades de campo, foram vários os momentos de vida presenciados por

mim. Momentos que não só evidenciaram um repertório simbólico e lúdico das crianças, como

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também me ajudaram a pensar a infância a partir da realidade que elas estão envolvidas e como

elas se colocam diante dos sistemas socioculturais e territoriais. Elas possuem uma vida dividida

entre a convivência com a família, o convívio com a escola e o brincar. Tais convívios podem

ser visualizados na vizinhança, na igreja, na reunião de grupos brincantes, nas conversas por

entre as pontes das casas e os trapiches ou nos arredores de árvores.

As novas abordagens do desenvolvimento e de formação das crianças sinalizam que o

brincar auxilia na construção de esquemas mentais e simbólicos. Por meio da brincadeira, elas

se expressam, cooperam e representam um momento real de uma dada situação de

pertencimento de uma realidade. Nesse sentido, “O brincar da criança é o eixo central de sua

experiência pessoal, familiar (entre irmãos) e grupal (dentro de grupos de idade e de grupos de

interesse) de vida. Ele equivale à obsessiva importância que damos ao trabalhar nas culturas

dos adultos” (BRANDÃO, 2015, p.113, grifos do autor).

Faço menção às palavras com que dei ao título para este capítulo. Ele veio de uma das

crianças-adolescente e tem a seguinte explicação: Para mim, quilombola é desenvolver a

cultura. Assim como os nossos antepassados desenvolveram a feijoada, a maniçoba, a farinha,

o tacacá e outras coisas cultivadas até hoje no meio do nosso povo (R.G.,13a, grifos meus)158.

Partindo desta visão de mundo acerca do território com ‘coisas, memórias e costumes

representando cultura, o brincar no rio e na mata representam, também, desenvolver a cultura,

pois por meio de seus brincares elas apreendem e interpretam o contexto vivido, o convívio

com as pessoas e com a natureza. Aprendem através de gestos, de atos, de crenças, de causos e

de gramáticas sociais e de suas linguagens, demarcando territórios naturais, sociais e

simbólicos. Territórios que influenciam e que são influenciados pela cultura. Territórios que

atravessam e que atravessados por saberes e fazeres, vão tecendo o ser criança quilombola da

beira do rio.

Nessa perspectiva Pojo e Vilhena (2013) consideram que

O rio é a rua, e o quintal é o espaço da interlocução de vivências de uma geração que

ainda brinca de nadar no rio, de subir na árvore, de pular da ponte no rio, [...].

Traduzem, afirmam e recriam formas culturais por meio da linguagem, aliás,

expressam pela oralidade todo o conhecimento e sabedoria que aprendem desde cedo

(POJO; VILHENA, 2013, p.143).

Os locais onde brincam as crianças são espaços do território que elas transitam

cotidianamente e estão empapados de significações identitárias, históricas, ambientais e de

raízes ancestrais do grupo. Pelo brincar as crianças vão intermediando a dimensão individual

158 Descrição de quilombola por estudante do 6º ano do Ensino Fundamental.

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de suas vidas com o tornar-se um ‘ser social’ e dessa forma vão incorporando modos próprios

de espiar, de sentir e de agir que elas não aprenderiam espontaneamente. Agem assim

culturalmente e na cultura, como afirma Brougère (2000, p.76):

A brincadeira é, antes de tudo, uma confrontação com a cultura. Na brincadeira, a

criança se relaciona com conteúdos culturais que ela reproduz e transforma, dos quais

ela se apropria e lhes dá uma significação. A brincadeira é a entrada na cultura, numa

cultura particular, tal como ela existe num dado momento, mas com todo seu peso

histórico. A criança se apodera do universo que a rodeia para harmonizá-lo com sua

própria dinâmica. Isso se faz num quadro específico, por meio de uma atividade

conduzida pela iniciativa da criança, quer dizer, uma atividade que ela domina, e

reproduz em função do interesse e do prazer que extrai dela. A apropriação do mundo

exterior passa por transformações, por modificações, por adaptações, para se

transformar numa brincadeira: é a liberdade de iniciativa e de desdobramento daquele

que brinca, sem a qual não existe a verdadeira brincadeira.

Diante de tais considerações, vemos que o brincar constitui-se em uma aparente

espontaneidade como uma tarefa obrigatória, diária e franca é ativamente socializadora. Brinca

com o irmão, com o amigo, com o primo. Ao perguntar para M.G. sobre com quem aprendeu

as brincadeiras que sabe, ele me disse: [...] espiando os outros brincarem, brincando [...] com

outras pessoas (pai e tios) e outras crianças.

E algumas brincadeiras são intensamente construtivas. São frequentes nos terreiros, as

casinhas feitas com folhagens, pedras e galhos. As crianças brincam por entre as casas ou

sentadas na terra. Nas árvores, elas amarram pedaços de elástico delimitando a área do pula-fio

para, como disseram algumas meninas, ver quem consegue pular mais alto sem tocar no fio. A

menina de três anos com naturalidade amarra uma corda na árvore e brinca. Nos retiros, elas

brincam por entre as raízes das árvores, com ou sem brinquedo, enquanto os pais labutam.

A significação dada à natureza como brinquedo foi observada por Nascimento (2014), na

comunidade remanescente de quilombo Campo Verde, município de Concórdia do Pará-PA.

Lá, as crianças quilombolas utilizam galhos, folhas, mandioca, casca de frutas para seus

brinquedos e brincadeiras. No dizer da autora, aquelas são criações oriundas da natureza. Ela

evidencia que os saberes presentes nos brinquedos e nas brincadeiras das crianças são tessituras

lúdicas que se constituem em processos culturalmente construídos, por meio do que se produz

conhecimento e faz-se educação. Segundo a pesquisadora:

[...] a natureza e seus elementos são as principais inspirações e possibilidades para as

vivências de suas brincadeiras e criação de seus brinquedos. [...] Ao considerar as

manifestações das crianças de Campo Verde/PA é possível compreender que em cada

brinquedo se esconde uma relação educativa. Quando falamos do brinquedo artesanal,

a construção deste já pode ser considerada como o próprio brincar. Crianças e adultos

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aprendem a transformar os elementos fornecidos pela natureza em novas criações e

instrumentos para muitas brincadeiras (NASCIMENTO, 2014, p.58, 95)159.

De acordo com a autora todo este processo de criação cultural do brincar está inserido em

um contexto empreendido pelo diálogo com os saberes que são veiculados na comunidade.

Assim, de muitos modos uma variada dimensão socializadora está sempre presente. Os locais

da pura brincadeira a cada dia rivalizam com a casa, a família e a escola, e as complementam

como momentos e situações de um aprendizado que recobre as três dimensões que nos

acompanham aqui. Brincando também se aprende práticas do fazer, éticas do agir e lógicas do

pensar.

Do mesmo modo, no quilombo de Brotas, em Itatiba-São Paulo, Souza (2015) evidencia

a integração entre a natureza e o brincar das crianças. Ela apresenta em várias partes de sua tese

como as crianças usam, por exemplo, as árvores como brinquedos de subir, de descer, de se

esconder, de disputar alturas, de pendurar cordas, de montar balanços. No Itacuruçá Baixo,

também são comuns atividades do brincar subindo em árvores, desenhando e sentando na terra,

correndo no terreiro, como ações corriqueiras e criativas das crianças. Nesse fazer, elas

aprendem a atentar se chove ou se faz sol, se tem vento ou não, se o quintal está seco ou

molhado, o tamanho do espaço etc. Brincamos todo dia no quintal (Z.P.); Empinar pipa na

beira do rio por conta do vento (B.P.,10a).

Na várzea, aprendem a sinergia do que dizem: a gente foi criado n’água, pois as águas e

o rio animam o brincar. Constantemente, a canoa ou a rabeta transforma-se em brinquedo que

serve para balançar, para passear ou para disputar corridas. As crianças conversam sentadas nas

pontes que unem as casas. Durante o banho no rio, elas conversam, riem, brincam. Em certa

medida, posso afirmar que “o tempo do rio, o tempo do brincar, o desafio do contato do corpo

com a água é que determinam o momento de iniciar ou de terminar a brincadeira, o jogo” (POJO

& LOUREIRO, 2011, p.23). Acompanhei o curso das narrações e ouvi esta: - Brinca e toma

banho tudo junto quando a maré tá grande (cheia), agora tem o risco do bicho, sucuriju

(cobra). O banhar e o brincar em uma prancha, feita pela própria criança, retrata o destemor

com as águas, embora, como afirmou o menino, esteja tudo totalmente ordenado pelos pais, por

causa dos acidentes, cujo controle exige outros cuidados160.

159 A pesquisa analisou a atuação das crianças no cotidiano daquela comunidade, buscando desvelar os saberes

presentes nos brinquedos e nas brincadeiras, já que as percebe como “sujeitos de suas vivências e criações lúdicas,

as quais não estão desvinculadas da realidade vivida, pois os processos criativos envolvem-se na prática do brincar,

ressignificando objetos e contextos, a fim de saciarem-se ludicamente” (NASCIMENTO, 2014, p.08). 160 Fui informada que as pessoas estão receosas pois existe um peixe mordendo as crianças e não temos

tranquilidade (Pesquisa de campo, 2015-2016).

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Disponho a seguir algumas fotografias que ajudam a situar tais vivências, ilustrando

variedades do brincar.

Foto 20 – Futebol com a maré seca Foto 21 – Balanço, à beira do rio

Foto 22 – Criança na prancha

Autora: POJO, E.C., Ago. 2015-2016.

Além desses brincares, tal como acontece hoje em todos os lugares, as crianças divertem-

se com os aparelhos eletrônicos, principalmente quando estão em casa. Mas não exageram, por

terem ainda espaços naturais para brincar. Em um dos momentos que eu dialogava

informalmente com uma mãe sobre o assunto, as crianças circulavam pelo quintal. Na casa de

dona Sabá, em frente da escola, repetidas vezes, observei crianças de idades diferentes

andarilhando no terreiro, apanhando frutos (caju, goiaba, araçá) nas árvores, durante a tarde.

Na escola, brincar de formô é do que as crianças e os adolescentes mais gostam, embora

esta atividade não esteja incorporada nas ações pedagógicas. A título de exemplo, na semana

dos jogos estudantis da escola (31/06 a 04/07/2016), essa brincadeira ficou fora da lista dos

jogos selecionados para o evento. No entanto, a cada chance que tinham, elas brincavam. Nos

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dias letivos as crianças nos intervalos das aulas ficam atentas à liberação da área para se

organizarem, formarem os grupos e jogarem161.

Foto 23 – Crianças brincando o formô

Autora: POJO, E.C., Ago. 2013.

Inúmeras vezes, observei o brincar de formô para entender a sua dinâmica, inclusive

construí um vídeo sobre esse brincar com eles. As crianças e os adolescentes da comunidade,

ao brincarem, não só dominam a regra, como também se mostram desafiadas umas pelas outras

e pelos grupos não fixos. Ao perceberem que eram observadas por mim, continuavam brincando

sem nenhuma inibição a não ser quando enxergavam a máquina fotográfica. Pareciam querer

mostrar aquele brincar aos que, como eu, não o conheciam. Durante a disputa do jogo,

vivenciavam relações afetivas e, por vezes, conflituosas, pois, na organização, são postos em

evidência os seguintes critérios: sexo, idade, agilidade, tamanho, força física e disposição. Ao

mesmo tempo, na maioria das vezes, elas tomavam por base outros critérios, como a vizinhança,

a série que estudam ou, ainda, baseando-se na convivência primária do cotidiano familiar.

Segundo moradores e com base nas minhas andanças e observações pelas ilhas, a

brincadeira do formô é praticada somente na comunidade e em algumas outras próximas.

161 Modo de execução: Componentes: duas equipes (A e B), com três participantes em cada equipe. Objetivo:

ultrapassar e voltar pelas três linhas, sem ser tocado pela equipe adversária. Como se brinca: a brincadeira consiste

na demarcação do espaço em que cada integrante do grupo impede a invasão do adversário correndo em sentido

contrário, os quais só podem se movimentar horizontalmente, com exceção do primeiro, que pode movimentar-se

em todas as direções. Primeiro, faz-se um quadrado no chão e o divide em quatro partes, a equipe B, que está fora

do quadrado, deve tentar ultrapassar os três participantes da equipe A, que ficam posicionados um em cada linha

do quadrado, e estes devem se movimentar somente em cima da linha horizontal, com exceção do primeiro, que

pode se movimentar tanto na linha horizontal quanto na linha vertical do meio do quadrado. A brincadeira começa

quando o participante da equipe A, que está na primeira linha do quadrado, grita: - Formô! Se pelos menos um

dos participantes da equipe B conseguir ultrapassar e voltar por dentro do quadrado, sem ser tocado pela equipe

A, vence a brincadeira. Agora, se pelo menos um da equipe B for tocado, eles mudam de posicionamento com a

equipe A. A equipe A vai para fora do quadrado, tentando ultrapassar, e a equipe B fica na linha (Pesquisa de

campo, 2013).

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Nenhum adulto ou criança soube dizer como chegou na região a brincadeira e, muito menos,

quais foram os primeiros a desenvolvê-la. Reconheço que esta brincadeira das crianças e dos

adolescentes não está dissociada dos seus interesses lúdicos e, ao mesmo tempo, pareceu-me

uma vocação de um resistir que visibiliza as feições do ser negro e quilombola no território,

como desdobramento da cultura. Brandão (2002) afirma que os saberes são produzidos na

experiência cotidiana dos sujeitos, considerando as relações, as simbologias, os costumes e as

significações socioculturais, quase sempre ditados pelo senso prático, por sua vivência. Penso

que o circuito criativo de uma brincadeira ou jogo é construído de acordo com a experiência

cultural daquele contexto quilombola.

Este restrito mapeamento do brincar foi entrecortado por observação de sessões de

brincadeiras, buscando obter impressões das crianças sobre o universo brincante. Ao final de

cada momento, pedia que escrevessem, desenhassem ou comentassem sobre a vivência. Três

brincadeiras foram citadas como as de que mais gostam: formô, futebol, fio ou pula corda.

Tabela 23 – Jogos e Brincadeiras162 Especificação do brincar/jogo Onde brinca? Quem brinca?

Formô; pula fio escola, terreiro/quintal

Crianças e

adolescentes

Pira pega, pira ajuda, pira alta, pira cola, pira se esconde rio, escola e terreiro

Escravo de jó

Corrida na água; remar e passear na canoa; pular de um

aro no rio; tomar banho brincando de pular; natação.

rio, igarapé ou furo

Subir nas árvores; separação; bandeirinha; queimada;

mata no meio; correr atrás do outro.

quintal/terreiro

Peteca terreiro e casa

Pata cega; taco Terreiro

Futebol terreiro, campo, arena Crianças,

adolescentes, jovens

e adultos Empinar pipas campo, terreiro, ramal.

Período das férias.

* Para as crianças o rio é grande em extensão e, o igarapé, é pequeno.

Fonte: Pesquisa de campo, 2013-2016.

Repeti essa mesma estratégia destinada a socializar o brincar junto aos adultos

responsáveis, quando eu discorria sobre os objetivos da pesquisa. Segundo eles, antes

brincavam de boneca feita com a vassoura do açaí e com barro, no rio de pira ajuda, de macaca,

de pira cola, de pula corda, de bambolê, de bole bole, de esconde-esconde e de roda. Disse uma

mãe: brincava no mato, e agora não deixo meu filho, muito perigoso. Com base nas

declarações, notei que o brincar das crianças reproduz experiências dos mais velhos, talvez

reflexo da criação cultural própria, e ainda não inteiramente invadida do que chega pela Tv e

pela internet.

162 Construir a tabela durante as sessões, que se compuseram de circuitos dirigidos e momentos livres do brincar.

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Na maioria das vezes, as crianças-adolescentes brincam entre si, meninos e meninas, sem

fazerem muitas distinções de idades. Por exemplo, no futebol e no formô, levam em conta a

estatura das pessoas visando à disputa. No pula fio ou corda, não fazem distinção da idade e

tampouco de tamanho. Normalmente, ao brincarem, envolvem um número considerável de

crianças, por meio da organização de grupos diversos e plurais. E criteriosamente observam ou

constroem regras e práticas de sociabilidades, compartilham experiências com seus pares. O

brincar acontece mesmo quando elas estão em companhia de adultos, desde que haja condições

para fazê-lo, quando estão livres e, como vimos, também na escola.

Em suma, esses momentos de expressões dos corpos e das mentes, junto com as inter-

combinações das crianças conectam-se intensamente com outras dimensões e situações do

aprendizado da cultura camponesa, já que com tais ações as crianças lidam com e criam em sua

sociedade as estratégias e os ‘jeitos’ de serem sujeitos infantis no relacionamento familiar e no

território. Pelo brincar as crianças aprendem a conviver, reunindo-se em lugares específicos

para tanto e construindo coletivamente formas de apreender e formas de perceber o mundo.

5.3 – O aprendizado no laborar

Concomitante ao brincar e à rotina escolar, as crianças convivem com processos de

aprendizagem e de socialização através do trabalho, cuja presença está mais em alguns fazeres

do que em outros163. No fim da tarde, é comum as crianças-adolescentes brincarem na cabeça

da ponte enquanto os pais realizam suas tarefas. Elas acompanham os pais na pesca, no açaizal,

na beira do rio durante a lavagem de roupas, na coleta dos frutos nos quintais, e ainda na venda

das rasas de açaí nos trapiches das casas. Desde cedo o trabalho está colocado diante de suas

vidas. Elas são instruídas sobre regras de convivência com e entre sujeitos sociais e de

sobrevivência frente ao mundo natural, dentro de um viver simples que a cada ano atravessa os

tempos das marés, dos cultivos, do inverno e do verão, entre os espaços lá em terra e na varja.

E ainda através do ir e vir até a cidade. E, dessa forma, elas vão espiando e compreendendo

dimensões e articulações do desenrolar humano nas experiências sociais e nos fazeres, que

busquei trazer aqui ao longo da tese.

163 Na prática cotidiana, as crianças e os adolescentes possuem um envolvimento com os fazeres da agricultura de

subsistência e dos açaizais. Na olaria, atuam adolescentes e jovens. Na pesca, basicamente acompanham adultos

nos espaços e, no que diz respeito ao artesanato, não visualizei a interação deles. A questão do trabalho na

experiência infantil é aprofundada na tese de doutorado de Maria do Socorro Rayol Amoras Sanches pela UFPA

(2014).

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A infância, neste contexto, transcorre através de um percurso singular: algumas crianças

ajudam no trabalho, estudam e brincam; outras estudam e brincam; as menores só brincam. O

adulto serve de ‘referência’, pois veem nos pais, nos avós e nos tios o aprendizado diário

entretecido entre a convivência, que contribui para a formação social de futuros pais e mães de

família. As crianças aportam ainda elementos novos para os adultos como acontece, por

exemplo, com o cotidiano da escola, muitas vezes, alheio a estes. Nesse sentido, Brandão alerta,

“[...] A regra do saber é a de que o primeiro aprendizado se dê no interior da família nuclear,

do grupo doméstico ou, por extensão, da parentela, entre gerações contínuas ou alternadas”

(BRANDÃO, n/d, p.03).

É recorrente na fala das crianças-estudantes a questão do trabalho familiar. Relaciono

abaixo o trabalho coletivo, rotineiro e diário por meio dos fazeres e dizeres vivenciados entre

algumas famílias das crianças do grupo infantil.

Minha mãe levanta às seis horas da manhã para arrumar a casa.

Meu pai vai às sete horas para o mato roçar.

Meu pai vai para a olaria trabalhar.

Minha mãe arranca mandioca e o pai, ajuda o vizinho a fazer casa.

Capina no caminho que fica na frente da casa.

Enche água, lava louça e varre a casa (mãe).

Vai para o retiro fazer farinha (mãe e pai).

Arruma a roupa dos meninos, faz comida, bate açaí, bate miriti na máquina, ela

gapuia, ela pesca peixe.

Apanha pupunha, apanha bacaba, planta mandioca, apanha açaí.

Pai e mãe faz o trabalho da roça.

O meu pai trabalha fazendo casa na cidade e a mamãe na taberna.

Meu pai faz artesanato de miriti, corta talas, vai vender telha, tijolo, lenha em Abaeté

A água tá lançante, não dá para pegar camarão, aí o meu pai trabalha com lenha,

vendendo para o Japaca (Grupo infantil, maio de 2016).

M.G. afirmou: os meus pais e meus tios da parte da minha mãe apanham açaí. Minha

avó já faz parte da mandioca. Meus outros tios da parte do meu pai vão pra pesca. Ele, mesmo

não atuando diretamente em nenhuma atividade junto dos pais, é alguém conhecedor daquele

contexto. Ouvi vários exemplos do tipo: meu pai trabalha na roça que fica na beira da estrada.

Eu vou com meu pai de manhã, quando não tem aula (J.M.,07a), trata-se de um estudante que

mora no rio Arapapuzinho e que vem com o irmão para a escola, de bicicleta. V.S.(10a), filha

do Carlinho, discorre com desenvoltura sobre o uso e o serviço no retiro do pai, o qual justifica:

Vão acompanhando porque não tenho com quem deixar (Pesquisa de campo, 2016).

No cotidiano das crianças, laborar e brincar se misturam em múltiplas e em diferentes

experiências. Percebi, durante minhas observações e registrando as suas falas, o ecoar das vozes

do rio e da mata entre os seus atos de ajuda, de trocas, de lições e de ensaios do labor,

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procurando com isso compreender e contar como acontece o ensino do saber na comunidade

por parte dos pequenos.

Em várias manhãs, saí pelo ramal sem rumo ou hora marcada, queria apenas apreciar o

tempo e o lugar. Nesse relato, especificamente, estive, como dizem, lá em terra. Ao passar pelo

caminho que corta o Parque Encantado, Idelma capinava seu quintal e três filhos a

acompanhavam. O menino, com mais ou menos 6 anos, calçado com botas, andarilhava junto

da mãe. A filha menor espiava de longe e o menor pedalava um velocípede. A mãe com a

enxada ia capinando e eles circulavam junto do mato e da capina. Ali, entre o brincar com

pedaços de paus e folhas, espiando a mãe, de um modo ou de outro aprendiam aquele fazer.

Vão espiando e ajudam quando peço para ensacar as folhas, carregar o mato, a mãe foi

dizendo, quando pedi para relatar o procedimento daquela capinação. Ela explicava como é a

rotina dos filhos e como se dá a interação deles com o trabalho da família. O menino ficou

envergonhado e apenas escutava a conversa. Idelma insistiu, chamando-o e pedindo que

mostrasse o porquê de estar calçado com botas. O filho sorriu, foi aos poucos se afastando para

brincar com a irmã. Dizia ela: ele me ajuda, mas é envergonhado, afirmando que aprende para

ajudar nas tarefas da casa.

Fui no retiro do meu avô e tentei coar a massa. De vez em quando, eu vou, quando não

tenho com quem ficar em casa. É comum crianças chegarem da escola e irem direto para os

retiros, quando almoçam e por lá ficam brincando. Atravessam de uma margem à outra, indo

comprar algo na mercearia, como se em uma outra brincadeira. Assim procedem as crianças

que têm a obrigação de levar o almoço ou a merenda, o mingau, para os pais ou avós nos dias

em que eles estão na lavoura.

Outras crianças, como vimos, colaboram com os afazeres domésticos e alguns fazeres do

quintal. São ações corriqueiras: alimpar o quintal capinando o mato, carregar água do rio para

uso doméstico, reparar o irmão ou levá-lo até a escola em uma embarcação. Assim, vivenciam

em suas rotinas o labor, o estudar e o brincar em situações e em ocorrências diferenciadas.

Entre as crianças do grupo infantil, a grande maioria lembrou situações e processos

estruturais de trocas e fazeres através dos quais flui o saber do trabalho. Não são todas as

crianças que descrevem com riqueza de detalhes atividades como a fazição da farinha, a roça,

a pesca do camarão. E, com menos propriedade, falam da tiração do barro ou a extração do

palmito. Ao que tudo indica a apropriação dos saberes por elas tem relação com as atividades

praticadas pelos pais, pois o que elas sabem com detalhes provem em linha direta das ações

deles.

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5.4 – Da criança que brinca ao adolescente que trabalha e brinca

Até aqui tratei de percepções e momentos instrutivos do labor. Situo de agora em diante

a presença ativa nas obrigações dos adolescentes no contexto de suas famílias. Nesse sentido

os relatos, os desenhos e as minhas observações oferecem indícios para afirmar que, na prática

social da comunidade, um número considerável deles auxilia no sustento familiar, recebendo

pagamento em dinheiro ou, então, recebendo algum produto pelo serviço, semelhante as ações

de adultos constantes nos capítulos III e IV.

Todavia, além do trabalho dirigido e com pagamento, especialmente na produção da

farinha e no cultivo do açaí, são vários os adolescentes participando sob a forma do que os

quilombolas chamam de ajuda. São inúmeras as situações dessa natureza. Assim, o neto de

dezesseis anos, criado por dona Nelita, ajuda na produção da farinha; um dos produtores de

embarcações no Médio Itacuruçá desenvolve a sua atividade com o auxílio do neto de quinze

anos. Elisa e o esposo possuem roça e retiro, dizem que seu filho de dezesseis anos resiste em

trabalhar na lavoura junto deles, mas não reclama de atuar na olaria do avô pela manhã,

diariamente. No caso destes, os três são estudantes.

Por meio das atividades com o grupo e das conversas informais, não só escutei várias

narrativas, como também observei episódios interessantes. No dia em que acompanhava o labor

do seu Santana, faziam farinha ele, sua esposa e um filho de doze anos, que os ajudava mexendo

farinha. Isso ocorreu no dia 17/05/2016 no retiro do Carlinho, que diante da minha presença o

pai ficou inquieto, achando que podia ter problemas com a justiça, em virtude da situação164.

Logo depois, a mãe encaminhou o menino aos cuidados higiênicos e em seguida, mandou-o

para a escola. Eu aproveitei a situação para explicar um pouco as nuances da lei referida. O pai

disse que leva o menino para que não fique solto e assim aprende a trabalhar. Não havia ali uma

imposição, ao contrário, o adolescente agia quando o pai precisava tomar água ou descansar o

braço, pedindo ao menino que tomasse conta do rodo165. Processava-se o “exercício ativo de

fazer circular o conhecimento. De educar, portanto” (BRANDÃO, 1983, s/p).

Trabalho ajudando o papai, descascando mandioca, socando e coando, e o dono do

retiro dá a comida e, às vezes, paga em dinheiro, disse um dos meninos do grupo infantil. Como

grande parte das comunidades do Itacuruçá se dedica à produção da farinha, muitos

164 Foi-me relatado que houve denúncias de trabalho infantil nas olarias e na lavoura. Em decorrência disso, as

instituições sociais municipais (Educação e Assistência Social) se organizaram para dispor à comunidade o

Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), que vigorou nos anos de 2011-2014. 165 Especifico o utensílio na tabela 13, capítulo III.

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adolescentes atuam com os pais. F.C. e o primo N.S. são moradores do rio Ararapuzinho e suas

famílias praticam a lavoura. A seguir, trago fragmentos do relato e do registro deles retratando

como acontece a produção da farinha:

No Arapapuzinho, são dois fornos que têm no retiro do Bira e diariamente trabalham

nesse espaço. O valor é conforme, 30kg é R$150,00, vendendo para qualquer pessoa

interessada em comprar. Várias pessoas trabalham lá; pra isso, elas têm que deixar

quinze quilos de farinha, como forma de pagamento (F.C.; N.S, entrevista, 04/2016).

Seguindo, a expressão do modo de fazer farinha na visão deles:

Figura 10 – Fazição da farinha

Fonte: Pesquisa de campo, 2016 / Autoria: N.S.

F.C., afirmou que trabalha auxiliando o pai o ano inteiro. Eu mesma, várias vezes,

presenciei-o praticando a apanhação do açaí, ou no percurso a caminho da roça.

Trabalho porque gosto de ter meu dinheiro para comprar minha roupa, sandália.

Quando é preciso, vou capinar na roça; não cobro, é da família. [...]. Mas trabalho

para outras pessoas, vizinhos - capinar quintal, roçar açaizal, fazer roça, apanhar açaí,

descascar mandioca, coar a massa na peneira, mexer farinha. Para ajudar comprar a

boia. O açaí ora é pago, ora ajudo o papai. Ah! Também, às vezes, reparo os irmãos,

lavo louça e até comida eu faço, arroz escorrido com mortadela (F.C., entrevista,

04/2016).

Por uma tal experiência com o lugar e com o exercício do fazer, os jovens vão aprendendo,

através da ajuda no trabalho os adultos, a construir as suas próprias vidas, reconhecendo-se

como sujeitos e aprendendo na prática algo da vida e da história do território.

Os estudantes contaram com entusiasmo como gostam do lugar onde moram e

demonstraram domínio dos aprendizados do trabalho e da vivência com os amigos, o brincar.

No caso dos dois, o tempo deles é dividido entre o brincar, o ajudar os pais no sustento familiar

e o estudar. Incluindo nessa rotina, o percurso casa-escola.

Geralmente, enquanto eu ficava aguardando o barco para retornar à cidade, encontrava

pelo caminho até o trapiche crianças e adolescentes trazendo ferramentas da lavoura, outras

carregando mandioca na bicicleta até a beira do igarapé, acompanhadas por algum adulto. De

certa forma, muitas delas são criadas para se tornarem: quilombolas do lugar - de dentro, como

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justificou dona Morena no momento em que a encontrei no retiro, na presença das filhas e de

dois netos, crianças: [...] vai levando, desde zito. Eles já vão olhando e vão aprendendo. Aí,

quando tá grande, começa a ajudar a gente também, né? Um vai descasca mandioca, outro

vem ajuda a ralar ou amassar. Dona Luzia, assim como dona Morena e outras mães com quem

ouvi, comenta que as atividades das crianças são consideradas como simples: elas fazem mais

é ajuntar a mandioca; vão plantar fazendo um serviço mais leve.

Em se tratando da tiração do açaí e/ou do manejo dos açaizais nativos, estes possuem um

forte significado no cotidiano das crianças e de suas famílias, pois eles assumem o caráter de

trabalho, de alimentação, de economia, de cultura. Um dos meninos afirmou: Eu apanho no

inverno para beber e no verão para vender. Chego apanhar até quatro rasas, às vezes (B.P).

Logo pela manhã, Idelma e um de seus filhos, um menino de 11 anos, saem juntos rumo ao

açaizal para apanhar o fruto para o almoço, prática rotineira em razão de ser um alimento básico

no Itacuruçá. Aprendem brincando de subir no açaizeiro, mas depois esta mesma atividade

torna-se um fazer exercido como um trabalho solicitado pelos pais. Todos sabem descrever com

detalhes este fazer. E, como lembram Woortmann (1990) e Brandão (2007), “comida” ou a

boia é uma das categorias do discurso camponês e expressão de uma relação axiológica entre

as pessoas e destas com a natureza-cultura.

Há relatos por parte de algumas lideranças e de professores das escolas de que um

quantitativo considerável de adolescentes-trabalhadores falta às aulas constantemente em

virtude da apanhação durante o período intenso. Numa das travessias até a escola este tema foi

o assunto da viagem. Umas das professoras afirmava: existem alunos do 6º ao 9º ano que trocam

de horário da turma por conta própria, alegam que nesse período de safra intensa é o tempo

que tem para ganharem algum trocado. Para aqueles professores, esse fazer traz prejuízos ao

desempenho dos estudantes. Não fiz uma análise dessas observações, todavia não deixei de

refletir que, sendo uma situação frequente, parece conveniente repensar o currículo escolar

quilombola diante destas e de outras situações limites166. Devido o foco do trabalho e a sua

amplitude eu não objetivei aprofundar tais questões. Contudo, ouvi depoimentos e outros dados

166 Estive na escola nos dias 18 e 19/04/2017, e durante uma manhã presenciei a conversa entre um estudante de

15 anos e um funcionário da escola. O adolescente explicava: preciso trocar de turno, porque preciso trabalhar,

eu fico a semana toda aqui na escola e fim de semana não tenho um tostão no bolso. O funcionário dizia da

dificuldade de troca e o estudante retrucou: o que vai acontecer é que vou parar de estudar. Outro funcionário

argumentou: é que ele trabalha na olaria que inicia de madrugada e quando é onze horas, param. Tudo aqui é

mais pela manhã. Ao final da conversa, não se chegou a um consenso e o estudante sinalizou que desistirá dos

estudos.

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importantes que me alertaram para a realização, noutro momento, de uma discussão da temática

sobre esta questão nas ilhas de Abaetetuba.

Pude identificar outras explicações que se somam à análise, contrastando. Existem

famílias que entendem a atuação das crianças como um aprendizado destinado a um saber viver

dignamente através ‘da labuta’. Nas palavras de Brandão (1999, pp.84-85):

[...] Aqui a diferença entre trabalho e o estudo é fundamental. Ainda que o exercício

do trabalho precoce, sob controle dos pais e irmãos mais velhos, seja sempre definido

como um ensino através do trabalho dos princípios éticos e técnicos para o próprio

trabalho e para a vida da pessoa, individualmente, ele, é na realização cotidiana do

exercício, uma questão da família. É uma necessidade diretamente ligada às condições

de reprodução da vida física da família. Filhos e filhas têm que “ajudar” com seu

trabalho, mesmo que não aprendam com ele, no interior da unidade doméstica efetiva

e produtiva da ordem camponesa. Ele é, portanto, um direito dos pais sobre os filhos

e um dever dos filhos para com os pais. Na linguagem do lugar, ele é uma “obrigação”

por meio da qual o pequeno trabalhador retribui o que recebe através do trabalho dos

outros integrantes do grupo. Mais do que isto, os próprios pais, educadores quase

exclusivos da socialização primária são obrigados a responder pela formação de seus

filhos e, vimos o lugar excelente de sua realização é o trabalho. Que outro tempo e

lugar haveria? Assim, visto como um dever dos filhos para com os pais, o exercício

do trabalho reveste-se de uma função pedagógica indispensável a que os pais se

obrigam, como um dever essencial que possuem para com os seus filhos.

Um morador assim se posicionou: As crianças têm que ir à escola estudar, mas também

têm que aprender a trabalhar no mato, que é de onde vem nosso sustento. Dois agricultores

acrescentam comentários que sinalizam, inclusive, para uma certa rejeição da juventude a

respeito da lavoura:

O pai, fica com medo de levar o filho pra trabalhar por conta dessas leis. Eu sou do

tempo que o cara andava a pé pra poder trabalhar, o trabalho não mata ninguém. A

pessoa trabalhando aprende até a respeitar o outro. Não tem tempo de pensar besteira.

Agora essa garotada não trabalha e só quer andar na marca (agricultor e morador do

rio).

Ficou ruim essa lei e a Bolsa Família, porque não se coloca mais os menores para

aprender a trabalhar e com muita droga e bebida, acabam uns se desencaminhando.

Muitos jovens e adolescentes estão nessa situação (pai de aluno e morador do rio).

Os depoimentos proporcionam reflexões acerca da preocupação dos pais com os filhos e

filhas quanto ao aprendizado das atividades que são exercidas na comunidade. Entre vários

argumentos afirmam que muitos jovens estão crescendo sem o devido envolvimento com a

agricultura.

Por outro lado, esta visão, somada à expectativa de os filhos aprenderem as ‘estratégias

de sobrevivência’ na comunidade envolve questões essenciais sobre o caráter socioeducativo e

de subsistência comum a quem compartilha uma vida quase que totalmente dependente de

relações diretas de trabalho com a natureza. Razão pela qual muitos pais valorizam uma

endoeducação, aquela vivida em casa, com a família e nas ajudas de crianças e de jovens durante

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as rotinas diárias. Processa-se no dizer deles a educação de casa, do respeito, da escuta, da

ajuda, em uma relação sem a formalidade da escola. São complexos de aprendizados que para

os quilombolas devem ser ensinados em casa, sobretudo quando afirmam que mudou os

costumes e hoje em dia essas práticas de uma ‘pedagogia nativa’ estão desaparecendo. Eis o

que revelaram uma mãe do rio Ararapuzinho e outra, do Baixo Itacuruçá:

Eu me lembro que a minha vó fazia muito gapuiar. A minha mãe faz. Eu faço menos,

mas se a gente não preservar, se a gente não cultivar isso, daqui um tempo vai acabar

porque vai surgindo outras profissões e o povo não quer mais se atolar, não quer ir

mais pro igapó, e aí, como é que vai ficar? Então, é muito importante a gente passar

para as crianças, pros adolescentes, pros jovens, incentivar. Você aprende como é que

faz porque se um dia você não tiver o alimento, sabe da forma que vai pegar. Porque

é um saber que a gente aprende e leva pro resto da vida. A questão de plantar a maniva

o meu filho sabe. Tem sete anos, mas desde pequenininho ele já ia junto. Então, já

nasceu ardendo igual à mãe, aprendendo e tenho certeza que, se levarem ele na roça

ele vai saber fazer essa atividade (Rosilda Gomes Pinheiro, entrevista realizada em

setembro de 2013).

O trabalho do açaí foi de geração para geração. Era o que ele [pai] sabia e foi o que

ensinou para os filhos. E, hoje, eles trabalham com isso (agricultora, mãe de aluno e

moradora do rio).

Brandão (1999), em o “O trabalho de saber: cultura camponesa e escola rural”, destaca

os principais aspectos da vida dos estudantes: trabalho familiar, lazer e escola, que em sua

interação e dinamicidade constituem o processo de reprodução material e simbólica do

camponês-estudante. Foi fundamentada em tais dimensões que busquei refletir a respeito das

narrações das crianças-adolescentes-estudantes.

Compreendo que a rotina diária, de que as crianças participam ajudando os adultos no

sustento familiar, não deixa de fora o tempo do ócio no mundo brincante e nem compromete o

tempo escolar. Do mesmo modo, os valores e a trilha de sociabilidades por elas incorporados e

aprendidos. O trabalho familiar constitui uma obrigação e vale como a ajuda diária

desempenhada através de um diferenciado convívio entre sujeitos de uma mesma unidade

familiar. O lazer/brincar ocorre na vizinhança, na família e na escola por meio de ações

brincantes entre grupos da mesma idade e de idades diferentes praticadas em determinada

realidade territorial. O tempo-escola inclui desde o percurso no transporte escolar ou a

caminhada até a instituição. Na pesquisa de Brandão (1999), são expostos estes aspectos da

seguinte maneira:

A “ajuda” é o trabalho ou é o serviço dos filhos. A vida cotidiana de uma criança em

idade escolar divide-se entre: a) os cuidados caseiros, as pequenas tarefas pelas quais

se obriga cada vez mais, à medida em que avança em idade; b) os tempos de lazer

roceiro divido com os outros irmãos, quando a família vive isolada o bastante para

que vizinhos sejam assunto e presença de fim de semana, ou com os outros meninos

e meninas de seus grupos de idade, quando a proximidade de casas e famílias de um

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bairro pode facultar a formação destas pequenas e tão importantes unidades de

experiência de vida e aquisição do saber; c) o tempo de estudo na escola (pp.71-72).

Cabe dizer que nem todas as famílias adotam a mesma prática. Há casos de crianças que

não vivenciam nenhuma inserção em atividades laborais, e talvez elas sejam a maioria. E,

aquelas que se envolvem diretamente, os seus pais justificam como algo que atende também,

como já assinalei linhas atrás, o caráter pedagógico educativo, quando elas aprendem o saber

local e um viver solidário na família. Penso que aqui estão presentes as contradições entre

comunidade e escola que deveriam levar a um repensar as matrizes curriculares no ensino

formal, até porque, segundo os adultos e parafraseando Brandão, o cotidiano do camponês da

criança-adolescente divide-se entre os tempos do brincar, do ajudar os pais e o da escola.

As crianças e adolescentes respondem por atividades cotidianas, cujas obrigações

crescem proporcionalmente com a idade. Correspondem tais envolvimentos com o trabalho

familiar um labor com característica de aprendizado, pois eles vão aprendendo as práticas do

fazer, as éticas do agir e as lógicas do pensar.

Esta é uma situação semelhante a de outras localidades da Amazônia no que tange ao

trabalho. Em que pesem discordâncias com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e

com documentos da Organização Internacional do Trabalho, a inserção nas atividades dos

membros da família, incluindo as crianças-adolescentes é tida como necessária e, como vimos

até aqui, comum. Através do ‘dever do trabalho’ entre crianças e adolescentes ocorre a

socialização entre gerações gerando através da experiência ativa, a continuidade de uma

tradição ancestral e, consequentemente, construindo uma identidade social centrada no

empoderamento social através de um território.

5.5 – Saberes e aprendizados do açaí e da roça

Mais uma vez trago a esta tese o exemplo dos fazeres e saberes envolvendo o açaí e a

roça, como práticas exercidas no dia a dia de algumas famílias. E o faço para expor situações

vividas e alguns escritos dos pequenos, que se somam aos sentidos atribuídos pelos demais

interlocutores da pesquisa.

Culturalmente falando, as crianças aprendem com os adultos, mas elas também produzem

saberes, e os compartem, como quando estão brincando e vivem lazeres pautados por regras de

conduta que mais tarde valerão para outros planos de suas vidas.

Para descrever este processo foi necessário seguir alguns passos. Assim, trilhando o

‘gapuiando ideias’, realizei pelo menos três caminhadas na mata, e uma delas foi de observação

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dos açaizais localizados no entorno da escola. Caminhei com os estudantes por quintais em

busca de ouvi-las sobre o cultivo. De forma espontânea, foram dizendo como aprenderam a

subir na palmeira: olhando; minha mãe me ensinou; indo junto para o açaizal; brincando de

subir no açaizeiro; ajudando meus pais, e assim por diante.

Na sequência, um dos meninos disserta sobre o que conhece do açaí praticado por seus

familiares e interage com tal prática, o apanhar o fruto e o preparo em sua casa.

Figura 11 – Sobre o açaí

Fonte: Pesquisa de campo, 2016 / Autoria: M.G.

É comum os moradores mais velhos que não conseguem mais apanhar o fruto trocarem

rasas de açaí, ou darem algum trocado para que adolescentes o façam, porque o fruto é

obrigatório na mesa deles, independente da safra. Por exemplo, do grupo de vinte estudantes

com quais convivi, a maioria deles, além de gostar do açaí, sabe apanhar, debulhar ou tecer a

peconha.

Observei com cuidado o ato de se alimentar, no comer entre as crianças e eu mesma. Elas

me pediam merenda durante os encontros, assim além atender à solicitação, aproveitava o

pedido para falar do costume de se alimentarem com o fruto. Durante uma dessas conversas,

disse uma das meninas: Nós bebemos com farinha e come junto com pedaço de charque ou

frango ou mortadela ou ovo frito. Um menino advertiu: A gente come o açaí, porque mistura

com farinha, vira um pirão e acompanha com peixe frito, é o mais típico. Eu gosto com

mortadela e com mapará.

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Desenho 12 – Do comer o açaí

Fonte: Pesquisa de campo, 2016 / Autoria: M.G.

Ainda sobre o plantio, dois deles assim o sistematizaram:

Pega a muda de açaí. Acha um solo bom para plantação. Fazemos um buraco e

colocamos a muda do açaizeiro (filho do açaí) e fecha com terra ao redor da plantinha.

Depois, não precisa jogar água, porque o sol e chuva já são úteis para o crescimento

da planta. Também, as pessoas jogam os caroços num certo lugar e crescem filhos de

açaizeiros (R.G. e A.C.).

Encerro esta exposição de significações do açaí com mais um escrito que articula o fazer

cultural quilombola, isto é, duas estudantes aportam notoriedade ao costume, à tradição e ao

labor na agricultura, que, nos dias atuais é substancialmente o plantio.

Desenho 13 – Cultura do açaí

Fonte: Pesquisa de campo, 2013 / Autoria: F.F., (12a) e F.C., (13a).

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Com base na experiência compartilhada, noto que as crianças aprendem desde cedo as

primeiras lições do trabalho que alicerça a vida camponesa. Oscilando entre demonstrações,

obrigações e brincares nos locais de produção, os menores aprendem os fazeres e as formas de

negociar, aprendem as atividades de extração e do tratamento do açaí. E aprendem também,

como vimos já, os preceitos e os códigos da cultura local sobre o ‘como agir’ em diferentes

situações. Neste sentido, aquelas crianças que cometem qualquer ‘atrapalho’ durante os fazeres

são repreendidas por seus responsáveis.

Percebi como muitos e diferentes saberes são elucidados por tais sujeitos. Realizando

mais uma vivência de campo com o grupo infantil, fomos visitar duas roças: a da dona Nelita e

a do Carlinho, as quais ficam uma ao lado da outra. Para chegar ao destino, o percurso foi o

caminho que corta o Parque, o ramal e, em seguida, toma outro caminho estreito que leva aos

espaços. Durante o trajeto, observei que elas queriam falar sobre a natureza, então aproveitei

tal motivação provocando-as com perguntas sobre os nomes dos pássaros que se viam nas

gaiolas, nas casas. Do mesmo modo, instiguei-as a identificar alguns bichos dispostos pelo

caminho. Segundo elas, eram a ‘tarara’, a ‘tucandeira’ e a ‘formiga de fogo’, que ferram

deixando um ardor que incomoda por horas. Um menino alertou-me sobre o cuidado que

deveria ter para não me encostar em algumas plantas, como ‘ortiga braba’ e ‘tiririca puxa puxa’,

pois causam coceira e podem ferir o corpo. A maioria das crianças sabia discriminar casas de

cupins e de formigas; o açaí parol, o branco, o maduro e o verde.

Foto 24 – O Grupo Infantil na roça

Autora: R.G., Jun. 2016. A foto foi tirada por uma das crianças do grupo.

Todas as crianças já tinham visto uma roça até porque há duas próximas da escola. Elas

também reconhecem os demais processos e produções com este plantio. Antes de reunir o grupo

na grande mesa do Parque Encantado para avaliar e brincar, finalizando esta vivência, pedi um

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registro escrito sobre o que elas achavam que sabiam sobre as roças, buscando apurar mais este

saber. Dentre os registros produzidos, escolhi a construção feita pelo neto do senhor Domício,

sobre a produção de sua família.

O retiro é do meu avô Domício.

Atualmente, trabalha meu avô, minha vó Joaninha, minha mãe. Na maior parte das

vezes, eles trabalham, dois dias na semana, fazendo farinha. Para fazer a farinha, é

assim: traz a mandioca na saca até o retiro para amolecer. Tira do poço para descascar.

Põe a mandioca descascada na macieira e soca para ficar a massa. Põe a massa no

tipiti para ser espremida. Depois da massa espremida, coa na peneira. Joga a massa

coada no forno para torrar a farinha. Deixa esfriar para pôr na saca. A farinha é para

o consumo da família (B.P., entrevista, 04/2016).

Noutro momento, caminhar até o igarapé que fica atrás da escola mapeando-o foi a

atividade por mim escolhida. Ao longo desta andança elas demonstraram que desde cedo vão

se exercitando no território e, durante a caminhada foram identificando os animais, nomeando

árvores e embarcações167. A conversa enveredou sobre o ambiente, com a afirmação de que a

sujeira do caminho e do rio é praticada pelos próprios moradores, pois eles já não preservam

este espaço comum. Ressalto que na história daquela comunidade e da cidade, havia uma

riqueza de espécies da fauna, da flora, de águas límpidas, de fartura de peixes, o que dava aos

quilombolas outras formas nativas para as atividades laborais.

O garapé atrás da escola foi registrado por uma das crianças da seguinte maneira:

167 Identificaram animais que estão ao redor da casa: curió, urubu, pipira, galinha, macaco, galo, cachorro, cavalo,

boi, vaca, pato, cobra. Animais caçados e se come: tatu, veado, paca, mucura, preguiça, tamanduá, pombo. Mais

as plantas ao longo do caminho e as que ficam ao redor da escola: jupati, juruzeiro, castanheira, bananeira,

bacurizeiro, najazeiro, sororoqueira, mangueira, cajueiro, cupuaçuzeiro, árvore de pirulito, coqueiro, bacabeira,

açaizeiro, miritizeiro, tucumanzeiro, limoeiro, laranjeira, jambeiro, ameixeira, ingazeiro, árvore de vapão (fruta

pão), urucum (Pesquisa de campo, 2016).

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Desenhos 14 e 15 – O igarapé atrás da escola

Fonte: Pesquisa de campo, 2016 / Autoria: M.G.

O que vivemos ali foi sob o espiar de várias pessoas em geral, funcionários da escola e

também estudantes. No retorno do igarapé encontramos um morador e pai de aluno, que,

escutando a nossa conversa, retrucou:

Aqui, quando as crianças vão crescendo, elas já vão aprendendo: quando a água tá

alta, eles já sabem que tem muita pedra, sabem a rota. Vão aprendendo onde tem

pedra, onde tem praia, onde é seco e, quando pessoas de fora entram no rio que não

conhecem, eles vão orientando [...]. E é só aprender a nadar que já começa a pilotar.

Pega a canoa, começa a remar devagar, devagar. Já tem mais um amadurecimento,

pega o rabudinho, assim eles tão voando no rio, é! (pai de aluno e morador do rio).

Encerrei a atividade naquela manhã em um banco ao redor de uma árvore, em frente da

escola, ouvindo seus comentários sobre a vivência e, logo após as crianças ‘brincaram’ umas

três partidas do formô. Durante a caminhada, fui gravando todos os assuntos e posicionamentos

tratados, que os resumi e apresento-os na tabela abaixo.

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Tabela 24 – Outras significações sobre o território Aspectos Relatos de saber

Lugar O lugar é onde nós moramos, no rio Arapapu e existe a comunidade Nossa Senhora do Perpétuo

Socorro (A.G.).

Moro no rio Ipanema e lá tem plantas e frutos (J.G.).

Rio/Terra O rio, a gente utiliza para tomar banho, pescar, passear (B.A.A.).

Eu gosto do rio porque dá para tomar banho e passear de canoa (G.R.).

Terra é onde pisamos (B.A.).

A terra significa tudo em relação à vida humana, por exemplo, o açaí e as frutas são importantes

para nós e para os seres vivos (R.G.).

Roça O fogo vem lembrar a roça, porque a gente tem que primeiro roçar deixar secar o mato pra poder

queimar e plantar a maniva (L.B.).

Maniva é uma árvore que dá a mandioca para os quilombolas fazerem a farinha que é típica da

nossa área (A.C).

Açaí Lá em casa, se não tiver, nós não come [açaí], tem vezes que nós chora. É o costume (Z.P.).

Eu consigo, agora a mamãe não consegue, é preciso procurar no mato ao menos um cacho e bater

pra ela beber [açaí] (F.C.).

O açaí é um fruto que existe na nossa terra. Na nossa comunidade trabalhamos muito com ele

(F.F., F.C).

Fonte: Pesquisa de campo, 2015-2017.

O exposto traduz um conjunto de fazeres-saberes que são parte da experiência e das

experimentações desses sujeitos.

Aqui, faço mais uma vez o diálogo com Brandão (n/d)168, agora por meio de sua pesquisa

sobre o saber-aprender através da experiência de foliões de Santos Reis, na qual ele detalha as

maneiras de empreender essa arte-ofício entre os seus postos de hierarquias rituais, a que todos

respondem vivenciando por tipos diferentes de poder, de trabalho simbólico e de exercício do

saber.

No caso do aprendizado das crianças quilombolas, reafirmo esta linhagem ativa, criativa

e produtiva do habitar brincando e ‘laborando’ inteirada na prática social, em que elas não só

aprendem, como também produzem significados culturais, pois estou pensando em crianças e

adolescentes não apenas enquanto consumidores de aspectos da cultura em que elas e eles se

inserem, mas como também ativos criadores de expressões culturais, desde as suas posições na

vida social da família, da comunidade e até mesmo da escola.

Trata-se de um saber relacional, perceptivo e sensitivo, imbricado em situações de

ensinar-e-aprender, veiculadas e aproveitadas pelas pessoas sem, necessariamente, haver uma

ação intencional e dirigida. Tal como acontece durante uma travessia quando o adulto, ao encher

168 Disserta sobre a rica noção de um saber existente entre os devotos, “o saber da devoção”, que pode ser

apreendido por meio das falas dos foliões, atos de ofício e lições dadas durante os dias de uma “jornada”. Tais

artistas formam no dizer do autor, uma “equipe corporada de um ofício de especialistas”; no caso da experiência

do saber fazer Folia de Reis, uma arte da devoção e de cunho religioso (BRANDÃO, n/d).

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o tanque da rabeta, pede para a criança conduzir a embarcação, ou também através das

andarilhagens diárias circulando entre os afazeres.

No entanto, quando se trata do aprendizado delas na escola e fora dela as opiniões dos

adultos são diversas. Alguns adultos são enfáticos em dizer: criança não vai pra roça por conta

do tempo da escola. Inclusive, como mencionei anteriormente, existem os quilombolas que

consideram que muitos responsáveis não levam os filhos ao trabalho e, por isso, eles não

aprendem, ainda que percebam como sendo importante eles aprenderem.

Corroborando com essa linha de pensamento trazida aqui, eis a reflexão de uma das

artesãs entrevistada:

Por causa da nova criação. Antigamente, se não quisesse ir pra roça, ele tinha o castigo

dele, não vai brincar pra casa de ninguém. O galho de cuia ficava na beira da rede. Tá

aqui, quando eu chegar, se eu saber da notícia. Quando ela chegava, ela olhava lá:

cadê o fulano? tá dormindo. Às vez, ficava sentado triste na beira do rio lá [...]. Noutro

dia, bora pra roça, ele era o primeiro. Pulava e ia. [...] Mas hoje em dia, não tem isso,

ainda mais com essas leis. Tô dizendo que desde a casa não tem educação, não tem.

Se a mãe diz assim: minha filha, lava essa louça aqui, ah, só mais tarde, eu vou ali e

já venho [risos]. Na própria casa, os filhos não respeitam a mãe. Acho que o pai e a

mãe têm que dão educação de casa pros seus filhos pra poder respeitar os de fora –

tio, tia, parente e tudo, porque tá faltando e muito. Tava acostumada no ritmo mais

antigo [...]. Só querem saber de dizer: fulano faz pra mim. Criança não quer saber de

cultura, de nada! (Helena Brandão, entrevista, 06/2016).

Portanto, como dizem em geral, aceita-se que a criação é outra, diferente. Afirmam que

os velhos têm mais educação, sabem mais e melhor o que é respeito e o que seja ouvir os outros.

De fato, não existe agora ao ver deles a mesma estrutura de constituição da sociedade e de

formação humana, porque ocorreram alterações visíveis e crescentes na comunidade, na

sociedade, na estrutura familiar e nos valores culturais. Atualmente, é forte a influência dos

meios eletrônicos, da televisão, dos próprios costumes vindos ‘de fora’, entre tantos outros

fatores sociais, econômicos e culturais que todos na comunidade reconhecem.

Os mais velhos lembram da escola por onde passaram, quando se estudava pouco e

aprendia muito. Refletindo sobre a escola atual, alguns moradores, especialmente agricultores,

retrucam: Na escola, não há vínculo com o saber do lugar. Falta uma educação na prática.

Eles não têm um exercício físico. Eles avaliam que o aprendizado das crianças e dos jovens na

escola quilombola não é suficiente para que eles compreendam algo de essencial sobre a vida

e, menos ainda, se posicionem diante das situações apresentadas no que diz respeito à qualidade

da educação escolar. A seguir, comento um pouco dessa travessia: a da educação escolar.

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5.6 – A Educação escolar e o “Ser Quilombola”

Foto 25 – Trapiche da escola Foto 26 – Vista externa da escola

Autora: POJO, E. C., Jun. 2013.

A ‘Primeira Escola Quilombola do Município de Abaetetuba - Santo André’ ganhou este

título em razão do legado de luta dos movimentos sociais com o apoio da comunidade local,

ratificando o direito à educação dos povos tradicionais na perspectiva de valorização da

diversidade cultural e humana, cujo rastro encontra-se, ainda, nas leis da educação brasileira.

Olhando o processo ocorrido, assim definiu o poeta Lucindo Rodrigues:

Essa escola foi fundada como a primeira escola quilombola, porque realmente foi

quando aconteceu a oportunidade pros remanescentes. Foi a primeira escola fundada

e seu estudo é também para fazer eles assumirem suas cores, a sua tradição.

Assumirem ser quilombola, porque nós moramos em área remanescente de quilombo

e trazemos no sangue também a história do negro (entrevista, 09/2013)169.

No curso do rio, existem três escolas. Porém, na parte do Baixo, esta é a única existente.

As demais que ficam próximas são: Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no rio Arapapu; Felipe

Santiago Campelo, no rio Piquiarana; Raimundo Bandeira, no rio médio Itacuruçá, e São João

Bosco, no rio Arapapuzinho. Essas somente oferecem a pré-escola e os anos iniciais do Ensino

Fundamental. Os nomes das escolas, geralmente, referem-se aos santos padroeiros da

localidade, e os rios definem a localização delas. Ao perguntar aos barqueiros onde ficava tal

escola, a resposta era sempre uma nova pergunta: fica em que rio?

169 A luta esteve nas mãos de organizações que se voltam às questões do mundo rural, citadas nos capítulos I e II.

Contudo, na memória de alguns moradores, a escola existe desde 1963, na versão de salas de aulas improvisadas

na casa do senhor Quinca, em que a professora Lulu reunia pessoas para ensinar. Anos depois, o Estado construiu

prédio escolar numa área de várzea e, em 1997, pelo poder público municipal, foi transferida para o local onde

funciona hoje. Em 2005, a ARQUIA solicitou ao Governo Federal a expansão e revitalização do prédio por conta

do aumento de estudantes (Projeto Pedagógico da Escola/2015).

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Como foi dito, por causa da proximidade com os vários rios, o acesso faz-se por eles. No

entanto, é possível chegar à escola pelos ramais São João e Santo André. A Escola Santo André

é considerada de grande porte, pois atende estudantes de outras comunidades nos níveis da

Educação Básica. Possui a especificidade de comportar em uma única estrutura física dois

sistemas de ensino: o municipal e o estadual. O primeiro atende à Educação Infantil (pré-escola)

e aos anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano) e o segundo atende a estudantes dos

anos finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) e do Ensino Médio regular.

Outra questão estrutural diz respeito ao fato de a instituição funcionar como anexo de

duas outras escolas que ficam na parte urbana da cidade. Pela rede municipal de ensino, os

procedimentos administrativos são geridos pela Escola Municipal Magalhães Barata; e pela

rede estadual, a responsabilidade legal é da Escola Benvinda de Araújo Pontes. Abaixo, a tabela

com a distribuição de turmas e o quantitativo de alunos referente ao ano letivo de 2017.

Tabela 25 – Quantitativo de alunos matriculados em 2017

Sistemas Nível ou etapa Turno Total

Rede Municipal

de Ensino

Pré-escola / Período I e II Manhã 19

Fund. Menor: 04 turmas Manhã e Tarde 68

Total 87

Rede Estadual

de Ensino

Ens. Fund. (6º ano) = 02 turmas Manhã e Tarde 66

Ens. Fund. (7º ano) = 02 turmas Manhã e Tarde 65

Ens. Fund. (8º ano) = 02 turmas Manhã e Tarde 66

Ens. Fund. (9º ano) = 02 turmas Manhã e Tarde 59

Ensino Médio (1º ano) = 02 turmas Manhã e Tarde 47

Ensino Médio (2º ano) Manhã 17

Ensino Médio (3º ano) = 02 turmas Manhã e Tarde 57

Total 377

Total Geral 464

Fonte: Secretaria da Escola Santo André.

Para o seu funcionamento, dispõe de oito docentes da rede municipal de ensino e doze da

rede estadual. Conta com uma coordenadora pedagógica, onze funcionários de apoio e o diretor.

Além desses, fazem parte dos profissionais, os oito rabeteiros que realizam o transporte escolar.

No município, as escolas destinadas aos povos do campo abarcam 60% de seu total (dados

de relatórios da Coordenação de Educação do Campo-2014). No caso do contexto de ilhas, as

especificidades geográficas e culturais exigem um fazer educativo imbricado, articulado e

coadunado com os sujeitos moradores e seus saberes, suscitando inclusive, reflexões sobre a

própria organização das atuais turmas multisseriadas e multietapas170.

170 São séries e conteúdos acompanhados no mesmo horário e pelo mesmo professor. Nessa escola, o Ensino

Fundamental menor está assim enturmado: uma turma do 1º e 2º ano; uma do 3º ano e uma do 4º e 5º ano.

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204

O Plano Municipal de Educação do município, no item que trata da Educação do Campo,

os seus respectivos usuários são ribeirinhos, quilombolas, pescadores e colonos. Entre as

escolas do campo somam as dezenove cadastradas no censo educacional como “escolas

quilombolas”, atendendo estudantes nos níveis da Educação Infantil e do Ensino Fundamental,

assim como a modalidade de Educação de Jovens e Adultos171. Existe ainda uma única casa

familiar rural, fruto de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Educação e Cultura

(SEMEC) e a Secretaria de Estado de Educação (SEDUC/PA).

Nesse mesmo plano, se explicita a ausência de um currículo e política educacional

específicos. Consta no documento:

As escolas do campo de Abaetetuba têm peculiaridades da população ribeirinha, das

estradas, ramais e territórios quilombolas, por trazer como marca identitária,

características dos rios, igarapés, matas, pesca, produção agrícola e criação - seu povo

vive, se alimenta e habita ao redor das águas e florestas. Além disso, trazem raízes

quilombolas. Povo negro, agregados familiares, cultura marcante nas representações

religiosas, benzeções, ervas medicinais, comidas típicas, memória de vida

quilombola. Portanto, no educar amazônico, os sujeitos ribeirinhos e quilombolas

possuem forte relação com a diversidade de fauna e flora nas manifestações de seu

cotidiano cultural para dentro do espaço escolar. No entanto, as escolas do campo e

quilombolas seguem o Plano Curricular das Diretrizes Nacionais e da Secretaria

Municipal de Educação de Abaetetuba, sem adequação curricular específica para os

povos do campo e quilombolas, inclusive, aquisição de livros didáticos

descontextualizados da Amazônia Paraense e cultura quilombola [...] (SEMEC, 2015,

p.10).

Em se tratando do currículo diferenciado da Escola Quilombola Santo André, convém

dizer que no período das chuvas intensas dificulta o deslocamento dos professores oriundos da

cidade e dos estudantes. No entanto, nem as chuvas nem as variações das marés, nem a

agricultura sazonal alteram o calendário escolar, que segue o padrão das demais escolas do

município, contrariando os dispositivos legais que validam a peculiaridade do mundo rural,

entre outros aspectos que podiam ser incluídos aqui.

Lembro mais uma vez que muitos pais de estudantes são incisivos na afirmação de que

a escola necessita melhorar o ensino e a aprendizagem, consolidando uma pedagogia

direcionada à valorização da cultura quilombola. Não obstante, desde sua inauguração a escola

enfrenta problemas estruturais, curriculares e pedagógicos decorrentes, entre outras situações,

da conjugação dos dois sistemas de ensino172.

171 São 133 escolas, situadas 51 nas estradas e nos ramais e 82 nas ilhas, atendendo nos níveis da Educação Infantil

e do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano). Fonte: SEMEC/Abaetetuba, 2017. 172 O assunto é recorrente na escola e na comunidade. Até Audiência Pública houve, em junho de 2013, que contou

com a participação maciça das comunidades, somando-se às autoridades municipais, estaduais e do Ministério

Público Estadual, debatendo os problemas estruturais e curriculares. Porém, decorridos todos esses anos, segundo

os moradores, não houve modificações relevantes.

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205

No tocante ao ser quilombola, reafirmo que essa dimensão é algo latente nos debates da

escola, e na comunidade. Nesse sentido, uma das ações coletivas dirigidas à questão pela escola

é a “Feira de trabalhos artesanais e científicos escolares quilombola (FEITRACESQ)”, que

ocorre anualmente no mês de novembro. Em 2016, desenvolveu-se o tema: “Experiências

Quilombolas - fonte de história”, por meio de atividades voltadas à produção e à venda de

artesanatos, à ‘contação de estórias’ e a palestras, além dos espaços de visitação com a

participação das escolas próximas e da comunidade escolar. No momento, educadores e

funcionários da escola colaboram e se apresentam diferentes manifestações e criações culturais,

entre as variadas formas de atuação dos quilombolas. Não só tornam visíveis as ocorrências

culturais das comunidades, como também colocam em debate o ser quilombola173. Cabe dizer

que sinalizam uma prática esporádica e eventual, através de algumas atividades festivas e de

culminância relacionadas com à cultura quilombola.

Foto 27 – Cartaz de boas vindas Foto 28 – Cartaz com o tema da X Feira

Autora: POJO, E.C., Jun. 2016.

173 Neste ano, os educadores do município estão desenvolvendo o projeto de Leitura: “Minha escola lê”, cujas

ações perpassam tal dimensão por meio de diversos gêneros textuais e apresentações culturais.

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Foto 29 – Faixa em exposição na escola

Autora: POJO, E.C., Jun. 2016.

Sobre a dimensão quilombola no interior da escola, foi realizada uma pesquisa de

Mestrado intitulada “Educação escolar e identidade quilombola: um enfoque na comunidade

Nossa Senhora do Perpetuo Socorro, município de Abaetetuba-PA”, cujo teor principal foi o de

“recolhimento de evidências” no território e no cotidiano escolar sobre a questão. E,

pontualmente, sobre a feira cultural, a autora da pesquisa chegou a seguinte síntese:

[...] foi um momento de resgate da memória sobre as lutas e as conquistas alcançadas

pela comunidade, especialmente a que se refere a educação como dificuldade de

estudar longe de casa ou até mesmo de parar os estudos, ressaltando a importância da

Escola para o acesso à educação pelos moradores. Os representantes da Arquia

discursaram sobre essas dificuldades enfrentadas e conquistas alcançadas enfatizando

que titulação das terras e aquele momento de comemoração de resgate da cultura era

importante para as crianças e outras pessoas que estavam ali. As atividades culturais

promovidas pela escola e aspectos culturais observados na comunidade foram os

elementos que mais representaram o fortalecimento da identidade quilombola e o

fortalecimento político, para além de ocasiões de comemoração ou atos simbólicos

eles representam o momento de união da comunidade, de resgate e exaltação da

memória, dos costumes. Ou seja, esses momentos de exaltação da cultura reforçam as

relações e as marcas que caracterizam a comunidade, e revelam nessas pessoas o

orgulho em ser quilombola em fazer parte de uma comunidade (SILVA, 2015, pp.87-

88).

Sobre o cotidiano escolar, a autora afirma que a escola, promove o resgate e a manutenção

da cultura quilombola por meio de ações culturais. E este é o meio pelo qual ela tem conseguido

se estabelecer como uma fortalecedora da identidade quilombola (SILVA, 2015).

No entanto, durante minhas observações nos espaços de trabalho e, ainda, participando

de reuniões ocorridas na escola, percebi que moradores em geral e também os funcionários

ressentem-se de uma ação mais coletiva, aprofundada e incorporada ao currículo. Dizem, está

ausente do cotidiano da escola em seu currículo e conteúdos a questão do “ser quilombola”, de

se ter uma cultura própria etc. Inclusive, fica de lado, na maioria das vezes, as diretrizes

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curriculares para a Educação Escolar Quilombola no que tange as considerações para o ensino,

que discrimino na Introdução.

Bem, a escola precisa mudar seu agir. É quilombola, em algumas reuniões a gente

também frisa que nós também somos quilombolas. E, deveria ter uma aula, muitas

perguntas, pelo menos a pergunta do dia: O que é remanescente de quilombo? Essa

pergunta hoje [pausa, silêncio]. E aí noutro dia: olha essa pergunta anota no teu

caderno, como vieram os negros para o Brasil? Isso aqui vai ficar pra todo o tempo,

cada dia é uma palavra pra vocês. Como foi a história de Zumbi dos Palmares? (avô

de aluno e morador do rio).

Sendo uma escola quilombola, tinha que ir buscar essas raízes, mas o professor daqui!

Na aula, por exemplo, é uma outra metodologia pra eles e você não vê isso aqui. Uma

vez ou outra que tem um evento aqui, que nossas raízes aparecem um pouquinho e

esquecem. [...] Os alunos não sabem nada de quilombola, a raiz não sabe. Querem

saber da modernidade, do búfalo do Marajó, wi-fi, 007 (funcionário público e morador

do rio).

[...] a gente ainda vê muito aluno aqui de dentro da escola que ele não aceita, que ele

não quer se identificar, mas a escola está fazendo esse papel de resgatar essa cultura

com as crianças. Pelo menos a gente faz danças e músicas, porque a gente sabe que é

difícil resgatar uma cultura que às vezes a pessoa não aceita (funcionária pública e

moradora do rio Piquiarana).

Além do aspecto curricular e pedagógico, registro afirmações no sentido dos conflitos

existentes na prática pedagógica, sobressaindo críticas a condição estrutural em virtude dos dois

sistemas de ensino haverem sido recorrentes durante a pesquisa de campo.

A escola, pelo que eu vejo, quando a gente tá só com o nosso pessoal no município,

muitas coisas estão sendo feitas, tanto prova que, agora pro dia das mães, nós estamos

preparando os alunos pra que eles possam fazer apresentações para as mães. Fica

complicado pra gente quando tem que envolver todo mundo, com a parte do Estado.

E a verdade de todo esse processo é que o Estado está sendo cobrado pra que ele

também possa fazer o papel dele (funcionário público e morador do rio).

Decadente [pausa, silêncio]. E até mesmo, segundo a lei quilombola, se uma escola

tiver, por exemplo, cem alunos, mas que não sejam quilombolas, mas tiver um

quilombola, ela já é, automaticamente uma escola quilombola. Então, a Benvinda, lá

em Abaeté, ela já se torna quilombola por causa da anexa aqui, o Santo André, que é

quilombola (mãe de aluno e moradora do rio).

As narrativas indicam que os moradores possuem consciência das necessidades e dos seus

anseios em relação à escola. No tocante aos seus direitos fazem destaque em nome de a

associação ter uma atitude mais incisiva perante o poder público, nesse sentido.

Daqui em diante complemento a discussão sobre a cultura e sobre o ser quilombola com

algumas vozes das crianças e adolescentes, relembrando o propósito inicial do capítulo de tão

somente estabelecer um diálogo com as considerações defendidas ao longo da tese, compondo

com os outros relatos o que acontece no contexto escolar que se somam aos mencionados no

capítulo II.

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Para apreensão dos sentidos e dos significados, ainda que eu tenha focado meu olhar nas

práticas sociais, direcionei o debate entre as dinâmicas grupais, com base na questão geradora:

“o que sei sobre o ser quilombola?”. Inicialmente, ‘gapuiando saberes’, utilizei-me de palavras-

chave como pistas para evocar ou associar experiências, resultando dessa dinâmica as palavras:

negro, branco, escravo, moreno, escola, barco, Arquia - nós já estudamos isso174. Após este

momento, entre o brincar e o conversar, fui coletando visões por meio de depoimentos, de

relatos de situações, de escritos e de desenhos. Aqui, dou ênfase a alguns escritos.

Tabela 26 – O “Ser Quilombola” na visão de crianças-adolescentes-estudantes Aspectos Relatos de saber

Tradição e

Autoafirmação

Comunidade quilombola significa a resistência da coletividade.

Quilombola, para mim, é plantar roça, mandioca, manga, najá e brincar de bola. Ser quilombola é ser uma raça negra, numa comunidade de muita atividade, como a

festividade de Santo André.

Tenho pele parda, mas meu sangue é de negro, porque minha descendência é de negros.

Eu me identifico como quilombola sim. Eu conheço de quilombola [pausa, silêncio]. A

comunidade quilombola vem desde o tempo antigo, porque o meu pai, ele se considera um

quilombola, o pessoal dele tudinho se considerava como quilombola. Eles têm uma

tendência desde o tempo antigo dos negros, é a mistura de raças.

História

Quilombo, pra mim, são os negros que foram escravos.

Eu sei que quilombola começou a surgir com a escravidão, que começaram a pegar

pessoas pra fazer de escravos e também pra trabalhar no engenho. Inclusive, aqui no rio,

tinha pessoas que eram parentes de algumas pessoas que eram escravos, e por esse motivo

ficou conhecida a palavra quilombola. Eu me acho quilombola, eu tenho sangue de

quilombola, eu estudo na escola que é quilombola então, foi assim que eu comecei a saber

mais ou menos o que é quilombola (grifos meus).

Quando os escravos não obedeciam os seus senhores, eles eram acorrentados e

apanhavam bastante, isso acontecia muito quando os portugueses trouxeram os negros da

África e por causa disso os escravos fugiram e começaram a se esconder e formaram os

quilombos. Em homenagem ao grande líder dos quilombos, Zumbi dos Palmares, existe e

se comemora no dia 20/11 o dia da consciência negra.

Quilombola, para nós, significa muito, porque antes as pessoas eram forçadas a

trabalhar escravizadas, não se alimentavam bem, não recebiam pagamento pelo trabalho

que faziam. E quando os escravos não queriam trabalhar, eles eram presos e chicoteados

e, às vezes, até morriam. Hoje, as coisas mudaram muito, porque nós, os descendentes de

negros, podemos trabalhar livremente e ir para qualquer lugar. Para nós, isso é muito

bom. Hoje nós sentimos muito orgulho de ser quilombola.

Importância

Quilombola é muito importante para a vida de todos os ribeirinhos e é dedicado para nós.

Ouvir dizer que o quilombola é muito legal e divertido (grifos meus).

Moro no Rio Ipanema, eu sou da área dos quilombolas. Eu estudo na escola quilombola e não

sei muito a respeito, porque já ouvi falar pouco, não o bastante para que eu pudesse entender

(grifos meus).

Ser quilombola é um orgulho para mim. É um povo que lutou, conseguiu sair da escravidão e

hoje tem vários descendentes. Eles deixaram a tradição de brincar, dançar e de pescar e etc.

Ser quilombola é uma comunidade muito popular, onde as pessoas se comunicam com outras

pessoas de outra comunidade.

Fonte: Pesquisa de campo, 2012-2013; 2015-2016.

174 Informo que, no dia 19/05/2017, fiz uma primeira socialização dos resultados da pesquisa na comunidade e,

para incentivar o debate, encaminhei uma dinâmica sobre o termo Quilombola. Após alguns diálogos, foi

produzido o desenho do rio enfeitado com as seguintes palavras: resistência, cultura, rio, remanescente, liberdade

e racismo.

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Os escritos retratam aspectos relevantes sobre a formação dos quilombos, ao lado de uma

versão da história da escravidão e de suas marcas na vida das pessoas. Soma-se a esses a

consciência de que moram em um território e estudam em uma escola quilombola. Revelam

ainda que possuem a clareza da discussão do serem negros e/ou quilombolas. São contrastes e

significações que estão imbricadas na cultura escolar e na comunidade, carecendo, no entanto,

de aprofundamento. Daí alguns estudantes revelarem o ‘acaso’, o ‘talvez’ e o ‘eu sei pouco’,

quando interpelados.

Nessa história narrada, contada e apreendida, alguns interlocutores se autorreconhecem,

enquanto outros não. Outros ainda, não se posicionam entre uma posição e a outra. Inclusive,

chamou-me a atenção a autoafirmação por parte de alguns membros do grupo infantil e,

também, o espiar deles sobre mim, como mulher negra, tal como aparece num desenho

elaborado no momento de umas das atividades, o qual escolhi apresentá-lo na capa da tese.

Posso dizer que a cultura local ainda não atravessa radicalmente o currículo e a ambiência

escolar, de forma que ajude na consciência política e de compreensão do “ser quilombola” por

parte do povo. A escola segue as normas gerais de qualquer escola do sistema oficial e, ainda,

não consegue incorporar ao processo educativo o cotidiano quilombola, embora atue como uma

das instâncias de articulação quando das reinvindicações por garantia de direitos na

comunidade. Embora, esteja circunscrita por compromissos e por concepções, por

conhecimento técnico e legal, somado a atos coletivos e de autoafirmações, persiste uma

ausência do empoderar-se de ‘primeira escola quilombola’, ensaiando uma outra criação

curricular levando em conta as especificidades do grupo e do lugar175.

Na escola, os conteúdos étnicos se espraiam no miudinho das práticas educativas, nos

discursos e nas mediações identitárias que chegam com os quilombolas e, que podem servir

para muitas reflexões. Até porque, concordando com Brandão (2015), “a escola na

comunidade é uma unidade de laços, eixos, feixes e redes de interações entre pessoas e tipos

de pessoas bastante mais dinâmico e mais complexo do que uma imagem formal que sua

dimensão institucional revela” (BRANDÃO, 2015, p.118, grifos do autor).

Em paralelo e, não atravessando à escola, existe uma educação quilombola concreta e

efetiva, a qual encontra-se articulada com o fazer, com o saber e com o aprender tal como

175 Seria um possível exercício intercultural. Um modo criativo de fazer a ação pedagógica com projeto quilombola

próprio, com experiências interconectadas, de fecundas trocas em pé de igualdade entre saberes legitimados e

outros saberes.

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enunciado especialmente pelos quilombolas agricultores, e relativo também às crianças que

transcorre no encontro em que “aprendemos uns com os outros” (BRANDÃO, 1985, p.74).

Através de um complexo de relações que partem de dentro das casas, atravessam a floresta

e o rio, passam pelas roças e os retiros, e chegam até a escola processa-se todo um conjunto de

saberes aprendidos de forma espontânea ou motivada. Saberes e teias de saberes que contribuem

para que crianças, adolescentes e adultos quilombolas se conectem com a dinâmica

sociocultural e educativa do lugar. Por essas experiências interconectadas, crianças e

adolescentes interagem com coletivos pedagógicos dentro e fora da escola. Eles misturam

tempos geracionais proporcionando uma transmissão do saber a partir da unidade familiar.

Este conjunto de saberes e de transmissão do saber que ocorre por essas experiências

interconectadas entre os tais sujeitos provoca considerações dirigidas à escolarização do campo,

principalmente quando se propõe construir uma pedagogia escolar centrada na valorização da

pessoa humana, até porque a educação escolar nesses distantes lugares possui uma importância

comunitária incomensurável. Vimos que mesmo entre críticas o espaço escolar é respeitado e

prestigiado pela maioria dos moradores, principalmente devido à expectativa colocada na

melhoria de vida que a certificação e o percurso formativo podem proporcionar.

No âmbito da questão quilombola, partindo das vozes dos agricultores e das crianças,

reafirmo que há um discurso latente e acalorado na comunidade e na escola, o qual se apresenta

por meio de discussões e de visões que perpassam contornos sociais, comunitários, produtivos

e econômicos dentre tantos outros que balizam toda essa questão.

Para as crianças e adolescentes, de modo geral, o tema em questão está estritamente ligado

à ideia de pertencimento. Além das relações de parentesco, dos vínculos com a terra e da

tradição descrita e narrada pelos mais antigos (avós ou moradores velhos e negros), os

depoimentos vinculam a ideias que retratam valores, costumes, narrativas lendárias e míticas.

E, ainda, associam a cor da pele a processos discriminatórios. Elas sabem o que dizer sobre a

trama social tecida com base nas ações da associação/escola, como uma teia de valores e saberes

que dão notoriedade à vertente dos quilombolas que vivem em uma comunidade, e constituem

um povo.

Por último, mas como algo necessário, assumo o fato de que pesquisar a infância e a

criança quilombola necessitaria de bem mais tempo, devido à complexa teia de significações

que o tema evoca e envolve. Assim, o que busquei descrever e narrar aqui são os meus espiares

sobre o aprendizado infantil, baseado em um olhar que reconheço aligeirado e carente de

aprofundamento. Nestes termos, ao escrever o capítulo, reconheço que o trabalho de campo foi

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algo insuficiente para uma densa descrição e análise do eixo proposto: o aprendizado das

crianças na vida e na escola. Reconheço que aprofundar tais temas exige investigá-los durante

um tempo que envolva todo um ciclo anual da vida local e do calendário escolar. E exige ainda

um adentrar, ciclo a ciclo, pela vida e os vários tempos-espaços cotidianos de que participam.

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DO ATÉ AQUI... DA(S) TRAVESSIA(S)

À guisa de finalização da escrita da tese, retomo a interpretação e a análise em torno do

modo de vida de quilombolas na comunidade do rio Baixo Itacuruçá, especialmente, com

reflexões fundadas em dois prismas: o primeiro descrito e enunciado por meio das narrativas

que eles mesmos formulam sobre os seus fazeres-saberes, suas trocas comunitárias e seus

processos identitários de grupo, entendidos como uma prática social cotidiana, dinâmica e

socialmente construída; e o segundo, através da relação entre esses saberes locais e

comunitários e a educação praticada no território, tal como em sua interação esses dois campos

de saberes sintetizam uma reprodução simbólica e cultural.

Conforme assinalei a partir dos escritos do professor de História Jorge Machado (2008),

os quilombolas e os ribeirinhos são os mais antigos agricultores, pescadores, oleiros e

extrativistas da região das ilhas de Abaetetuba. Alguns deles, inclusive, participaram do

trabalho dos engenhos e da época de uma agricultura mais forte e promissora em toda a região.

Relembro que a comunidade onde realizei a pesquisa é constituída por quilombolas que

ali trabalham entre gerações, que reproduzem seus fazeres e saberes e que narram como ocorreu

o processo de constituição do território, ao mesmo tempo, que descrevem como transmitem e

ensinam os fazeres e saberes do trabalho na terra, na olaria, na pesca, na extração do açaí e até

o artesanato local. Pois essas e outras atividades configuram o conjunto sócio produtivo do

trabalho e de uma possível produção de comunidade, tal como abordei no capítulo III.

Entre eles e entre suas comunidades e outras os quilombolas vivem diferentes cotidianos

em suas relações com a natureza, intercalando ciclos de produção para garantir a subsistência

da família, decorrendo de tal práticas e suas rotinas a comercialização de alguns produtos

oriundos de suas atividades produtivas. Na visão de Nahum & Santos (2013, p.66) “As

comunidades tradicionais rurais da Amazônia historicamente cultivam, criam, extraem e

produzem seus alimentos, vendendo-os na beira […]”, caracterizando-a enquanto “[…] gênero

de vida camponês tradicional”.

Tal como ocorre em outros lugares da Amazônia e do Brasil, no presente momento os

agricultores convivem com diversos fatores de mudanças nas relações do trabalho agrícola, e

como consequência eles aprendem também a alterar as suas estratégias de produção e de

circulação de bens e de serviços, assim como as dos aprendizados de seus saberes locais. São

alterações desfavoráveis em maioria, como as que passam pela infertilização do solo, pelos

constantes roubos nas plantações, pela perda de valor e o ganho monetário das produções

agrícolas e extrativas, entre outros aspectos. Mas ainda assim persiste uma agricultura familiar

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exercida sobretudo pelos mais velhos que praticam o fazer-saber e, transmitem, aos interessados

o seu arsenal de modos do fazer/agir/pensar; pois é o nosso trabalho, como dizem muitos deles.

Através das atividades que realizam na roça, nos retiros, nos quintais e nos açaizais, os

agricultores preservam um sistema cultural que articula as diferentes formas de trocas, de

equipes de trabalho e de reciprocidades entre os agrupamentos familiares e entre os vizinhos.

A atividade de extração do açaí e do cuidar do açaizal ocorre por meio de um coletivo de

pessoas e a produção é partilhada entre os que participam. Sob uma outra estratégia ocorre uma

participação negociada e com ganhos definidos, antecipadamente. De modo geral, sendo a

atividade realizada em grupo, os tempos do trabalho, da viagem até à beira e o livre são

organizados mantendo uma certa concordância entre os participantes. Assim, além de tais

lugares funcionarem como espaços de convivência dentro de uma unidade socioeducativa e/ou

interativa, a produção resultante contribui para a formulação de redes sociais e comerciais na

vizinhança, na comunidade e na beira da cidade. Nesse caso, são perceptíveis o agir e o produzir

guiados por uma lógica e temporalidade amazônica própria.

Trata-se de uma complexa rede produtiva e sociocultural que se evidencia por meio de

habilidades manuais e artesanais, bem como de usos próprios em termos da linguagem, da

organização sócio produtiva, do conhecimento popular e de costumes e rituais, conforme consta

nas tabelas, sínteses e esquemas distribuídos ao longo dos capítulos. Por outro lado, toda esta

rede é parte das preocupações dos quilombolas, ao lado das mudanças estruturais no que se

refere às condições produtivas do trabalho a que me referi linhas atrás, todo um conjunto das

tradições da comunidade.

Segundo a opinião dos moradores mais velhos, os jovens encontram-se envolvidos entre

outros interesses e convivências e não querem mais saber de coisa antiga. Eles convivem de

uma forma cada vez mais rápida e impositiva com a incorporação de novos valores, hábitos e

conhecimentos, envolvendo todas as esferas da vida, desde o tipo de diversão e de lazer, as

formas de vestir e do linguajar, até as preferências alimentares e musicais, e a própria adesão a

alguma modalidade de trabalho. Os seus próprios pais ‘desejam’ a continuidade dos estudos

dos filhos e muitos estimulam a saída deles para a cidade ou, como dizem alguns, a eles restará

o trabalho pesado da agricultura. Mesmo assim, na prática cotidiana circulam e se aprendem

muitos ‘conhecimentos comuns’ entre os quilombolas, tal como descrevi ao falar sobre os

aprendizados das crianças e dos adolescentes. E relembro aqui que é um fato visível a

significativa presença dos jovens no trabalho de extração do açaí e na produção de telhas e

tijolos nas olarias.

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São vários os condicionantes sociais que se transformam ao longo do tempo, oscilando

entre várias demonstrações no campo das relações sociais e simbólicas entre as pessoas e no

interior da comunidade. Destaco como uma alteração substancial no modo de vida dos

moradores a diminuição dos plantios e dos cultivares. Em contrapartida, lembro a presença cada

vez mais acentuada dos ‘regatões’ que chegam diariamente pelos rios ou pelos ramais trazendo

uma variedade de produtos alimentícios e, também, os de outras necessidades básicas. As

‘farturas’ vegetais e animais antes conhecidas, cultivadas e utilizadas pela população local não

passam de lembranças dos mais antigos, e continuadamente elas se perdem na memória dos

mais jovens.

Lembro ainda, que as comunidades quilombolas desta região, e com considerável

analogia também as comunidades de ribeirinhos enfrentam crescentes obstáculos na garantia

de direitos aos seus territórios. No dizer de Gusmão (1991, p.28):

[...] a realidade das comunidades negras contemporâneas é marcadamente um

momento de confronto e de transição. Suas terras, tanto quanto sua força de trabalho,

cada vez mais transformam-se em mercadorias e perdem a condição de bens úteis a si

e à família. Perdem a condição de bens simbólicos conformadores do universo de

sentido e significado que permitiu desde sempre, ser, pertencer e pensar como parte

de um grupo particular.

Elas são comunidades que constroem coletivamente a vida sob uma base geográfica,

física e social, formadora de uma territorialidade específica. Dentro dela produzem-se formas

específicas de resistências (existência e identidade) enquanto um modo camponês, em um meio

rural complexo nada uniforme (GUSMÃO, 1991).

Os sujeitos quilombolas vêm insistindo em sua luta por um viver de modo comunal e

coletivo, na perspectiva de preservar e proteger o território, bem como da valorização e da

recriação do seu patrimônio cultural. Isto apesar de eles conviverem com um sentimento

comunitário cada vez mais precário e até mesmo insustentável.

Retomo aqui um eixo da pesquisa, ao relembrar que os lugares do ‘labor’ são espaços do

‘saber’, como cenários cotidianos em que se presencia um persistente trabalho pedagógico, na

maioria das vezes invisível, através do qual formas de uma vida solidária e mais ancestralmente

humana são ensinados.

Tal como ocorre em incontáveis comunidades patrimoniais pelo mundo afora, no

território que estudei as estratégias de transmissão do saber tiveram a sua origem através da

comunicação oral pelos quilombolas mais velhos, por meio de suas memórias, histórias e

narrativas de lutas e de resistências, como sinalizadores de uma ancestralidade quilombola.

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Ainda hoje, na vida cotidiana destes quilombolas alguns costumes antigos prevalecem. O

que se privilegia é o ir e vir pela redondeza, as viagens até a beira da cidade pelos rios, os

banhos n’água, os vínculos afetivos entre os parceiros da roça e do retiro. Através destas e de

outras experiências, consolida-se uma modalidade própria de um sistema sociocultural que se

reproduz, entre outras razões, pelo fato de que muitas pessoas aparentadas não só dominam um

certo tipo de conhecimento local, como também são, elas próprias, recriadoras de formas

culturais criadas e reinventadas ali.

Tentei demonstrar ao longo da tese que os saberes encontrados no mundo quilombola

constituem verdadeiros sistemas de conhecimentos que perpassam aspectos intelectuais,

sociais, cognitivos, educativos e culturais. Enfim, todas as dimensões através das quais a vida

é vivida, compartida e pensada. Constituem sistemas simbólicos oriundos de processos

interativos entre pessoas, por meio das mais diversas experiências. E, como disse anteriormente,

é por meio de tais processos que são transmitidos os fazeres e os saberes aos ‘menores’ e aos

adultos que não sabem, mas que por necessidade, passam a se interessar em aprender, mesmo

que tardiamente.

Entre as várias compreensões da educação escolho uma que me soa mais contemporânea:

a “formação e humanização plena”, podendo então ela ser formal ou não-formal (ARROYO,

2003). Na comunidade estudada presencia-se uma prática de ensinar os filhos e uma dinâmica

socializadora com os fazeres-saberes cotidianos, configurando a educação/formação no

movimento da vida. Os menores, na maioria das vezes convivem com um aprender que antecede

a educação formal. Assim sendo, através de processos de uma verdadeira endoeducação quando

uma criança de quatro anos é inserida na escola ela já sabe o caminho da roça, ou como faz para

apanhar o açaí que come diariamente. Sabe também dominar o mais essencial das ‘gramáticas

da vida’: a das práticas do fazer, as da ética do agir e, em menor escala, as da lógica do pensar

local.

Nos espaços dos retiros, por exemplo, pratica-se um processo educativo vinculado a “uma

forma concreta de produção da existência”, mesclando-se a troca de saber com a labuta pelo

‘pão de cada dia’ (ARROYO, 2003). Nesse caso, perpetua-se um modo pedagógico da tradição

quilombola na confluência entre a parentela e a vizinhança, entre a várzea e a terra firme, entre

a comunidade e a cidade, ao mesmo tempo, esses processos socioculturais produzidos pelas

atividades agroextrativistas mostram-se inseparáveis de rudimentos voltados à organização

social.

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Não foi meu propósito estudar se este modo tradicional de vida é benéfico ou não. A

pergunta que norteou a pesquisa buscou explicitar a cultura e o “ser quilombola” naquela

realidade social, bem como evidenciar a circularidade dos atos de aprender-e-ensinar no

cotidiano das práticas sociais, entre as gerações e os coletivos. Desta forma, neste ensaio

etnográfico apresento considerações sobre capacidades e potencialidades para o ‘saber’ e para

o ‘fazer’, através de um processo educativo e social. Um complexo processo vivenciado,

pensado e narrado por quilombolas adultos, crianças e adolescentes.

Minha abordagem se aproxima de outras pesquisas etnográficas e afins (estudos de

comunidade) que desde meados dos anos sessenta e setenta começaram a investigar a respeito

dos sistemas de sentidos, de saberes e de sociabilidades de diferentes povos tradicionais,

especialmente os que ocorreram nas regiões norte e nordeste do Brasil. Mais recentemente noto

que aumentaram os estudos que focam o enraizamento sociocultural e as significações de

diferentes frentes de luta camponesa em comunidades tradicionais de ribeirinhos e quilombolas

da Amazônia paraense. Porém, mesmo com a intensificação das pesquisas nesses territórios,

quando se trata das relações sociais de troca de saberes e de relações do tipo ensinar-e-aprender

em outros cenários que não o da escola, ou focalizando o como se processam os saberes locais

na prática cotidiana, acredito que ainda há muito a ser desvendado e a ser aprofundado sobre o

complexo de relações envolvidas e as suas possíveis oposições, como a que existe entre

sujeitos que potencializam e reproduzem saberes locais versus a participação algo contrária da

juventude quilombola ou ribeirinha no trabalho agrícola e extrativista.

Por meio dos saberes locais veicula-se um modo de agir e de pensar o território,

envolvendo teias de saberes e significados que vão desde o seu valor simbólico e subjetivo até

a sua utilidade mais elementar na reprodução da vida cotidiana. Sob a condição de produtores

de subsistência e de excedentes mínimos, o saber local diferenciadamente revela-se por meio

de uma expressão cultural, como o modo próprio de brincar das crianças, ou ainda pelos ‘jeitos’

de viver e de atribuir significados a resistência quilombola. O saber local funciona, também,

como um instrumento do agir e pensar humano, na medida em que por meio dele está presente

uma dinamicidade de ações e relações entre pessoas, famílias e vizinhos. Enfim, tudo o que faz

desse processo um mecanismo de poder e de produção de transformações sociais, como por

exemplo a estratégia que os agricultores utilizam para fazer uma roça, dividida entre vizinhos

e/ou parentes, espraiando por tal estratégia e fazer o complexo de trocas de símbolos, bens e

poderes.

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De um ponto de vista mais subjetivo, as trocas do fazer-saber proporcionam outros

aprendizados nas relações familiares e de trabalho, pois elas conduzem a novas/outras

representações sobre o ambiente natural, sobre a convivência comunitária, e consequentemente,

sobre a ideia de comunidade e de território.

Pelo domínio de alguns conhecimentos próprios e apropriados os quilombolas

evidenciam maneiras de lidar com as mutantes circunstâncias frente aos acontecimentos do

mundo, não só para suas vidas individuais, como também para a comunidade. Nas histórias

contadas e narradas por eles, vemos articularem-se saberes como os dos ‘tempos da natureza’,

como as áreas da várzea e da terra firme, como o sobrenatural (as aspirações da cobra grande,

do boto), como os seus antepassados e, ainda, como o simbolismo das águas. São formas sociais

de produção simbólica cuja formulação de estratégias (de fazer, de agir e de pensar) individuais

e coletivas remetem diretamente à transmissão e à formulação de uma cultura. E, enquanto

dimensão simbólica da realidade humana a cultura, algo que se apresenta “como realidade

múltipla, plural e diversa” (GUSMÃO, 2008, p.60).

Os agricultores e lideranças da comunidade com os quais interagi durante o trabalho de

campo apontam interesses e alternativas para que as ‘coisas’ pudessem melhorar na vida. E

como demonstrei ao longo da tese, o trabalho na terra, na mata e na beirada dos rios não se

restringe tão somente ao valor econômico, mas também possui um valor cultural e de

autoestima para estes sujeitos. Sem contar, é claro, o valor de aprendizado humano e de

convivência comunitária. E, embora a maioria das pessoas da comunidade entenda que este

trabalho seja importante e que devam manifestar satisfação por sua realização, alguns se

referem ao trabalho apenas como uma necessidade de sobrevivência e de aquisições. Estas

visões envolvem tanto as condições socioeconômicas como também o significado, o sentido e

o valor sociocultural dessas experiências.

Ao longo dos capítulos, procurei elucidar os pormenores a respeito das ‘teias e tramas’

dos fazeres-saberes locais, com um foco sobre as tradições histórica e cultural, construídas ao

longo do tempo pelos quilombolas do rio Baixo Itacuruçá.

Busquei investigar como uma forma dinamizadora de produção da existência se processa

através de interações e estratégias sócio produtivas. Nessas últimas linhas da tese enfatizo outro

aspecto social que os identifica como pertencentes a um território quilombola e tradicional.

Trata-se da imbricação humano-natureza, cujo registro mais comum e relevante é o

reconhecimento de uma prática social que se apresenta margeada pelas águas amazônicas. Na

pesquisa foi fundamental compreender o modo de ser quilombola da beira do rio. Ademais,

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enredados em sua teia identitária, os quilombolas se posicionam como uma “comunidade

remanescente de quilombo”, formada inicialmente no Alto do rio. Eles se identificam como

mulheres e homens pertencentes a ‘comunidades’ que são originárias de outros imaginários e

cotidianos entre o Médio e o Alto Itacuruçá, do rio Arapapuzinho.

A forma de organização quilombola possui ali conteúdos culturais ancorados no modo de

viver a beira rio, isto é, nessas comunidades não há como falar de quilombolas sem nos

defrontarmos com a condição ribeirinha e, vice-versa, pois as práticas culturais entremeiam-se,

dialogam e se completam. Por isto busquei, na pesquisa, inteirar-me das principais dimensões

do cotidiano conformadores de alguns processos identitários que estão sendo gestados na

comunidade, ou seja, procurei compreender como os sujeitos dialogam com suas tradições e

autoafirmações (ribeirinho e/ou quilombola), e como de alguma forma relacionam-se a

estratégias institucionais, sociais e políticas.

Comungo a ideia de que os territórios quilombolas foram constituídos como espaços de

resistência do povo e de afirmação dele como ocupante de um território em contraposição às

condições de vida impostas pelo sistema escravista antecedente. No caso da Amazônia paraense

as comunidades foram se organizando junto de outros coletivos, como os ribeirinhos, os

assentados, os indígenas. Hoje, tais comunidades tradicionais envolvem protagonistas que se

reconhecem como quilombolas, empreendendo modos de vida peculiares.

No caso das comunidades do rio Itacuruçá suas identidades são ressoantes nas práticas

sociais que vivenciam e no aprendizado de que estão vivendo um movimento de conquista de

direitos assegurado pela Constituição de 1998, que lhes garante o direito à terra e ao seu

patrimônio material e imaterial. Tais comunidades passaram a sedimentar uma nova identidade

local com base também na valorização do conceito de “quilombo”, formulando e exercitando

novas configurações sociais de viver e de se posicionar diante do ser ‘negro’ e ser

‘remanescente’.

Tomando os dados construídos no trabalho de campo, percebo que ainda se faz

necessário, por parte dos sujeitos quilombolas ou não, um profundo aprendizado sobre o

‘remanescente’ e o ‘negro que, embora distintos, que fazem parte da nossa Constituição

brasileira, ao lado de um aprendizado que proporcione um conhecimento mais adequado sobre

a nossa formação social e cultural.

Este é um desafio ainda posto no que se refere à questão do negro e do quilombola,

envolvendo tanto o passado como o presente desses contingentes. Nesses termos, comungo com

a assertiva de Gusmão (1997, p.2), ao afirmar que “[...] historicamente, a nossa sociedade e a

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escola que lhe é própria não desenvolviam – e não desenvolvem – mecanismos democráticos

perante as diversidades social e cultural”. Por isso, vivenciar a interlocução entre os

conhecimentos científicos e as culturas pode ser uma boa inspiração para se retomar a questão

sempre latente da diversidade e humanização.

Buscando encerrar estas considerações, ouso afirmar que a sociabilidade e a educação,

vividas na comunidade em que realizei a pesquisa, perpassam por ações colaborativas entre os

sujeitos, pelo domínio de fazeres-saberes imbricados à natureza e, ainda, por processos

identitários sedimentados socialmente pelo grupo e que se derivam, entre outras situações, pelo

convívio com as águas.

Não só demonstram como também, a seu modo, praticam um modo de vida que pode

servir para outras reflexões sobre a realidade amazônica paraense por pesquisadores e pelos

próprios sujeitos quilombolas-camponeses, que vão além das considerações evidenciadas neste

trabalho. Pode ser minimamente reconhecido que os sujeitos sociais, em sua organização social

sustentam âncoras sociais diversas, não exclusivos ao ethos local, mas dentro de uma realidade

mais ampla, educacional e cultural. Assim, o estudo poderá servir de reflexão sobre a

organização social de povos tradicionais na Amazônia paraense, no tocante a uma consciência

política de luta no e pelo território.

Pontualmente, com base nos resultados trago aqui algumas recomendações de teor mais

pedagógico, enquanto reflexões sobre a ‘escola do/no campo’ e amazônica, na medida em que

os saberes locais veiculados na comunidade podem ser vistos como pontos de partida e de

chegada para ações educativas, dada sua dimensão transformadora, coletiva, diferenciada e

diversa.

A singularidade camponesa-ribeirinha-quilombola, expressa na valorização do campo

como espaço de vida, de cultura e de trabalho pode imprimir a aprendizagem coletiva no sentido

de:

Articular diferentes dimensões da vida dos sujeitos do campo na dinâmica formativa dos

envolvidos com a escola;

Conhecer as histórias da população do campo e tomá-las como eixos importantes para uma

prática educativa que se quer transformadora e de formação plena;

Envolver a escola com os movimentos sociais existentes, enquanto um possível processo de

humanização e de aprendizado das experiências e lutas democráticas (ARROYO, 2003);

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Atuar na perspectiva da metodologia da alternância, enquanto exercício ‘outro’ do fazer

curricular, sendo este agregador das experiências culturais das comunidades, ratificando uma

troca interativa entre cultura, os saberes locais e o conhecimento científico;

Trazer a cultura para o centro das discussões do currículo no sentido de elucidar hábitos,

costumes e tradições na perspectiva da autonomia e um fazer consciente por parte dos sujeitos

envolvidos com a escola e na comunidade.

Considero que a pesquisa ganha sentido como forma de registro dos fazeres-saberes

locais, como elementos para se pensar possíveis configurações educacionais em contextos

rurais na região do Baixo Tocantins, no Pará. Eu mesma percebi dois eixos que suscitaram a

minha curiosidade para uma possível continuidade dos meus estudos: a inserção dos jovens nos

espaços de trabalho, com foco nas olarias e nos açaizais; e o aprofundamento sobre os

aprendizados de crianças e adolescentes nos tempos-espaços cotidianos nos quais participam.

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Entrevistas

ARAÚJO, M. M. de. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jan. 2013]. 1 arq. mp3 (3 h).

COSTA, E. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jan. 2013]. 1 arq. mp3 (45 min.).

COUTO, B. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jan. 2013-2016]. 1 arq. mp3 (4 h).

COUTO, R. D. de. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jan. a dez. 2015-2016]. 1 arq. mp3 (3 h).

COUTO, S. D. de. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [dez. 2015]. 1 arq. mp3 (30 min.).

FERREIRA, E. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jan. a dez. 2013-2016]. 1 arq. mp3 (2 h).

GOMES, C. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jan. a dez. 2015-2016]. 1 arq. mp3 (1 h).

GOMES, R. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jun. 2015]. 1 arq. mp3 (2 h).

MACIEL, F. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [ago. a dez. 2015-2016]. 1 arq. mp3 (50min.).

MACIEL, M. da C. da S. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jan. a dez. 2015-2016]. 1 arq. mp3

(2 h).

PINHEIRO, J. C. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [ago. a dez. 2015]. 1 arq. mp3 (2 h).

PINHEIRO, R. G. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jun. 2015]. 1 arq. mp3 (50 min.).

RODRIGUES, I. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jan. a dez. 2013-2016]. 1 arq. mp3 (3 h).

RODRIGUES, L. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jan. a dez. 2013-2016]. 1 arq. mp3 (2 h).

RODRIGUES, M. S. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [ago. a dez. 2015-2016]. 1 arq. mp3 (1

h).

SANTOS, N. D. dos. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jan. a dez. 2013-2015]. 1 arq. mp3 (2

h).

GOMES, C. Entrevista a Eliana Pojo. Abaetetuba, [jan. a dez. 2015-2016]. 1 arq. mp3 (1 h).

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APÊNDICE

Apêndice A - Síntese das Dissertações, Teses e Escritos Cartográficos

Eixo: Educação e Escola Quilombola no Pará (2011-2015)

QUADRO 01- PESQUISAS EM EDUCAÇÃO

Nº Referência Objeto

Instrumento Síntese dos resultados

01

PAVÃO,

Madalena

Corrêa. UEPA,

2012.

Dissertação.

A construção identitária

do grupo, bem como as

expectativas dos

Moradores em relação à

escola e as estratégias de

mobilização dos

quilombolas em relação à

Preservação de sua

cultura, na comunidade

remanescente de

quilombo de Abacatal,

situada no município de

Ananindeua-PA.

Palavras-chave:

Educação Escolar.

Identidade quilombola.

Remanescente de

quilombo.

Procedimentos

metodológicos da

história oral,

observação

participante, análise

de documentos e

registros fotográficos.

O local, desde os anos de 1980, se

mobilizava para a manutenção da

escola. Quanto à educação escolar

constatou-se que ainda há

resquícios da ideologia do

branqueamento e um movimento

dialético que ora silencia, ora

afirma a identidade do grupo.

Promove, ainda que timidamente,

um diálogo entre os

conhecimentos escolares e os

saberes que circulam na

comunidade, o que possibilita o

processo de construção e

afirmação da identidade

quilombola.

02

CARDOSO,

Maria Barbara da

Costa. UFPA,

2012.

Dissertação.

Relação entre os saberes

ribeirinhos quilombolas e

Educação de Jovens e

Adultos da comunidade

de São João do Médio

Itacuruça, Abaetetuba-

PA.

Palavras-chave:

Educação de Jovens e

Adultos- Ribeirinhos

Quilombolas; Saberes

Sociais e culturais.

Pesquisa de cunho

qualitativo, com

trabalho de campo e

aporte em fontes

bibliográficas (livros,

dissertações, teses,

artigos).

Os resultados pontuam a

relevância dos saberes

ribeirinhos quilombolas na

comunidade e, como o quefazer

da Educação de Jovens e

Adultos, que se constitui em

meio à organização política vem

contribuindo com os novos

direcionamentos de uma

educação voltada às

especificidades de seus sujeitos.

Entretanto a comunidade de São

João, com os saberes próprios,

diante de suas organizações

políticas, ainda não conseguiu

inovar pedagogicamente na

Educação de Jovens e Adultos,

embora perspectivas de

mudanças já se façam presente.

03

SANTOS,

Manuela

Tavares. UFPA,

2013.

Dissertação.

Problematiza como a

Pedagogia da Alternância

está se materializando

enquanto orientação

metodológica de

integração dos saberes

científicos com os saberes

tradicionais na

experiência de formação,

do PROEJA quilombola.

A partir dos

referenciais do

materialismo

histórico, recorre

inicialmente à revisão

bibliográfica e,

posteriormente, faz

uso de observações e

entrevistas para a

Verificou-se a valorização dos

saberes dos alunos, a

participação nos processos de

ensino e aprendizagem, a

tentativa de articulação dos

saberes com a realidade dos

alunos e a referência assumida

de formar para a agricultura

familiar. Destaca negativamente

a separação entre teoria e prática

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232

Palavras-chave:

Pedagogia da Alternância,

Saberes, PROEJA

Quilombola.

realização da pesquisa

de campo.

nos processos de ensino, a pouca

formação dos professores em

relação à Pedagogia da

Alternância, a desvalorização da

leitura como atividade formativa

e as dificuldades de

compreensão e de trabalho com

o tempo-comunidade.

04

PEREIRA,

Ricardo Augusto

Gomes, UFPA,

2014.

Dissertação.

Relação entre educação e

identidade cultural de

jovens na comunidade

quilombola de Itaboca no

Município de Inhangapi–

PA.

Palavras-chave:

Quilombo, Educação,

Identidade cultural,

Juventude do campo,

Juventude Quilombola.

Pesquisa participante e

a análise de conteúdo

para examinar as

narrativas de sujeitos e

jovens da referida

comunidade.

Ficou acentuado que a

comunidade ainda está em

processo de apropriação do

processo de reconhecimento de

seu território, tendo a educação

um valor indelével,

especialmente para os jovens que

veem nela uma chance de

continuidade de estudos e

profissionalização. Ficou nítida a

necessidade de maior

mobilização em torno da

educação com a perspectiva da

ampliação da igualdade social.

05

NASCIMENTO

Shirley Silva do.

UEPA, 2014.

Dissertação.

Desvelar os saberes

presentes nos brinquedos

e brincadeiras das

crianças da comunidade

remanescente de

quilombo Campo Verde,

localizada no município

de Concórdia do Pará/PA.

Palavras-chave: Saberes.

Brinquedos. Brincadeiras.

Crianças. Educação.

Percurso

metodológico

abrangeu a pesquisa

de campo.

Levantamento

bibliográfico,

realização de rodas de

conversas, de

observação, de

entrevistas e de

registros fotográficos.

Observou-se a concretização de

saberes que perpassam por

relações culturais, estabelecidas e

movidas pela espontaneidade das

crianças na relação com seus

brinquedos e brincares, os quais

podem ser interpretados como

saberes que envolvem a natureza,

saberes sobre os possíveis

perigos presentes nos rios, nas

matas, nos ramais, o saber do

cuidar, entre tantos outros

saberes.

06 MACHADO,

Joana Carmen do

Nascimento.

UEPA, 2014.

Dissertação.

A Identidade Quilombola

efetivada por meio dessas

lutas é incorporada ao

processo formativo da

Casa Familiar Rural Pe.

Sérgio Tonetto, revelando

os contextos de

aproximações entre

Educação do Campo,

Quilombos e a Identidade

Quilombola.

Palavras-chave:

Identidade Quilombola,

Educação do Campo,

Pedagogia da Alternância.

Os procedimentos

metodológicos que

norteiam a inserção

em campo estão

baseados em

entrevistas e

observações

sistemáticas,

realizados na

comunidade com os

sujeitos, e análise do

Projeto Político-

Pedagógico da CFR, a

partir de uma

abordagem

qualitativa de caráter

descritivo.

A pesquisa revelou que a

Identidade Quilombola é

invisibilizada no processo

formativo da CFR Pe. Sérgio

Tonetto, assim como aponta para

descaracterização da Pedagogia

da Alternância no processo

formativo em análise. As

perspectivas do presente estudo

apontam para o fortalecimento

da Identidade Quilombola no

processo formativo dos

quilombolas do Jambuaçu, na

CFR “Pe. Sérgio Tonetto”.

07

SILVA, Luciane

Teixeira da.

UFPA, 2015.

Dissertação.

As interfaces entre a

educação escolar e os

processos organizativos e

identitários na

comunidade

Uso de entrevistas

abertas e

semiestruturadas,

observações in loco e

análise documental a

A conclusão geral que se chegou

foi a de que apesar dos conflitos

e tensões comunitárias, a escola

pode ser compreendida como um

espaço imprescindível para o

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233

remanescente

quilombola, Abaetetuba-

PA.

Palavras-chave:

Educação Escolar.

Identidade Quilombola.

Organização

Comunitária.

partir de investigação

de campo de cunho

qualitativo.

fortalecimento da identidade

quilombola e da organização

comunitária.

Eixo: Culturas locais e quilombolas no Pará (2011-2015)

QUADRO 02 - PESQUISAS EM EDUCAÇÃO E ANTROPOLOGIA

Nº Referência Objeto Instrumento Síntese dos resultados

01

FONSECA,

Haydeé

Borges, UFPA,

2011.

Dissertação.

As práticas e saberes

relacionados ao fazer

político de quilombolas

organizados em

Associações e no Conselho

de Associações das

Comunidades

Remanescentes de

Quilombos do Jambuaçu-

PA.

Palavras-chave:

Populações Quilombolas.

Saberes culturais. Práticas

educativas, movimentos

sociais, Jambuaçu, Pará.

Procedimentos,

como a pesquisa

de campo, por

meio dose

seguintes

instrumentos:

observação,

entrevistas e

diversos registros

fotográficos como

forma de retratar

as práticas sociais

das famílias.

Houve, ainda,

levantamento

bibliográfico e

documental.

Vários fatores contribuíram no

processo de politização dos

quilombolas, entre os quais se

destacam as mobilizações,

negociações coletivas, encontros,

assembleias e, nessa reflexão

melhoram as ações realizadas em

prol da comunidade, pela

experiência e o conhecimento

adquirido, dentro da comunidade e

com grupos externos.

Há um saber não formal no

ambiente de construção política,

ampliando o referencial cultural

dos quilombolas, potencializando

novos desempenhos nas atividades

políticas e sociais do lugar.

02

MORAES,

Irislane

Pereira de.

UFPA, 2012.

Dissertação.

Compreensão dos

significados,

temporalidades, pessoas e

memórias dos povos do

Aproaga, município de São

Domingos do Capim-Pa.

Palavras-chave: Povos do

Aproaga, territorialidade

quilombola, patrimônio

arqueológico, arqueologia

pública.

Abordagem

etnográfica.

A territorialidade quilombola

construída pelos Povos do

Aproaga implica pensar de

maneira crítica sobre as políticas

do patrimônio na Amazônia e,

mais amplamente, a reflexividade

da pesquisa tendo em vista uma

práxis descolonial da ciência.

03

SILVA,

Claudete do

Socorro

Quaresma da.

UEPA, 2012.

Dissertação.

O brinquedo de miriti numa

perspectiva cultural que

contempla em seu conjunto

várias dimensões

enfatizando seu aspecto

educativo, em Abaetetuba-

PA.

Palavras-chave:

Brinquedo de miriti.

Saberes populares. Cultura

Abordagem

qualitativa com

elementos

etnográficos.

Elucidou-se os saberes:

ambientais, do cuidar, do fazer, da

união, da partilha, matemáticos,

gerenciais, organizacionais,

lúdicos, estéticos, do diálogo, do

respeito ao outro, da permuta e da

comercialização, os quais são

compartilhados entre gerações por

meio da oralidade e da observação

como um modo de viver, educar e

expressar pela arte seu olhar sobre

o mundo em que vivem.

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234

e identidade amazônica.

Educação não escolar.

04

OLIVEIRA,

Vera Lúcia

Gomes. UEPA,

2012.

Dissertação.

O cuidado cotidiano em

situações de urgência e

emergência dos moradores

de uma comunidade

Quilombola da Amazônia

Paraense.

Palavras-chave: Urgência

e Emergência;

Enfermagem; Cuidar

Cotidiano; População

Tradicional.

Estudo

exploratório e

descritivo, de

natureza

qualitativa. A

produção de dados

foi por meio de

entrevista semi-

estruturada.

Foram identificados três modos de

cuidar: os que cuidam com

procedimentos realizados na

própria comunidade; os que

cuidam com procedimentos e

encaminham para fora da

comunidade e, os que só

encaminham para fora da

comunidade.

Aponta-se que há limites e

desafios enfrentados no cuidado

cotidiano e sugere-se o

desenvolvimento de ações-

intervenções educativas; e a

ampliação do

acesso/acessibilidade à rede de

atenção local.

05

RODRIGUES,

Doriedson do

Socorro. UFPA,

2012.

Tese.

Aborda a relação entre

saberes sociais e luta de

classes, analisando a

atuação desses saberes

como elementos

potencializadores de uma

consciência de classe para

si.

Palavras-chave: Saberes

sociais; classe social;

consciência de classe;

saberes de pescadores.

Pesquisa de cunho

qualitativa, do tipo

estudo de caso.

Para o

levantamento de

dados, fez-se uso

de entrevista

semiestruturada e

aberta, de análise

documental e de

observação

participante.

Foram constatados novos

processos de produção de saberes,

sob influência do

sociometabolismo do capital,

impactando os modos tradicionais

de existência dos pescadores,

impondo-lhes a necessidade de

requalificação profissional e,

consequentemente,

redimensionamento dos saberes

relacionados ao mundo do

trabalho que desenvolvem.

06

RODRIGUES,

Eliana Teles,

UFPA, 2013.

Tese.

O mundo social da várzea

com destaque para as

relações sociais, estratégias

de reprodução social e

trajetória de quilombolas no

noroeste do arquipélago de

Marajó.

Palavras-chave:

Territorialidade,

Identidade, Quilombolas,

Várzea.

Etnografia,

culminando com

diálogos e

entrevistas

abertas,

observações,

assim como

participação em

reuniões,

assembleias

gerais, registros

orais e escritos,

filmagem e

fotografias.

Assiste-se a mudanças sucessivas,

resultantes de necessidades,

projetos, lutas e reivindicações

pelo território étnico, ao mesmo

tempo que persistem esquemas de

judicialização dos conflitos. A

construção de uma visão de

direitos territoriais e econômicos,

pelos quilombolas, é confrontada

diretamente com projetos do

agronegócio, com a regularização

fundiária e ambiental do Estado e

com as políticas sociais que

suprimem o fator étnico.

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235

Apêndice B – Fotos sobre a rotina de trabalho no manejo e comercialização do açaí

Autora: POJO, E.C., Jan. 2015.

a) Organização e saída dos trabalhadores para o açaizal

b) Arrumação dos materiais

a) Apanhação do açaí nas palmeiras.

Trabalhadores preparando o espaço onde será debulhado o açaí

Peconha

Chegada ao açaizal

Trapiche da casa do Jota

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236

c) Apanhação de açaí

d) O debulhar.

e) Carregamento para as margens dos igarapés

No açaizeiro, retirando o cacho

Debulhando o açaí

Trabalhador carregando as rasas.

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237

f) Condução das rasas até a casa

g) Pesagem, negociação e venda

Rasas, próximo ao igarapé

Pesagem do açaí

Outra pesagem do açaí, com o marreteiro

Rabeta que transporta o açaí.

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238

Apêndice C – Fotos de alguns Quilombolas e de Ribeirinhos (narradores e parceiros da pesquisa)

Dona Sabá e a filha (Lidiane Pinheiro)

Morena e Lucindo.

Em sentido horário a partir de cima: Morena (66), Igarina (40) e sobrinho, Iracema (45) e Lucindo.

Nelita (62) e Francisco (65)

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239

Domingas e Nilson

Em sentido horário a partir de cima e da esquerda: Nilson (68), a filha Rosana (32) e a mãe, Domingas (69). No

retiro, Rosana e seu esposo que está mexendo a farinha, Santana (43); além de outros parentes.

Elisa (35) e ‘Cural’

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240

Trabalhadores da Escola Quilombola Santo André

Em sentido horário a partir de cima e da esquerda: Rinaldo Gomes, Manoel Baia Santos, Maria da Conceição

Quaresma, Marinaldo Araújo, Claudelmiro Gomes.

Momentos de nos educarmos

Socialização da pesquisa, 2017. Poeta Lucindo, recitando uma poesia para o Grupo Infantil durante

trabalho de campo (POJO, 2016).

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Reunião com a comunidade na escola, 2015. Recreio de crianças na Escola Santo André, 2015.

Brincando de brincar ‘escravo de jó’, com o Grupo Infantil (POJO, 2016)

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Apêndice D – MODELO DO TERMO DE CONSENTIMENTO

Eu, Eliana Campos Pojo, aluna do doutorado do curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais,

pela Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, residente na Rua

Travessa Lomas Valentina 1492, Al. Ana Laura Casa 18, Marco – Belém/PA, realizo a pesquisa

intitulada “Saberes locais e processos identitários da Comunidade Quilombola do rio Baixo

Itacuruça”. Para realizar o estudo, pretendo realizar mapeamento das atividades laborais e culturais dos

moradores, enfatizando os saberes e fazeres praticados no lugar e, adentrando também, no cotidiano de

crianças da comunidade em suas vivências. A pesquisa envolve a observação e escuta das crianças, suas

brincadeiras e suas conversas, e também entender seus desenhos e escritas e, analisar as imagens

contidas em fotos tiradas por elas e por mim. Além disso, o estudo também envolve a obtenção de

depoimentos orais (entrevistas) com adultos sobre os saberes e fazeres do lugar.

A realização desse estudo contribui para compreender os modos de ser ribeirinho e quilombola

do rio Baixo Itacuruça, Abaetetuba-PA, circunscritos por uma territorialidade e temporalidade

marcadamente regidas pelas águas e pela floresta, destacando a relação entre os saberes locais e

comunitários e processos de educação estabelecidos no lugar. Diante desse contexto, as estratégias e os

modos de reprodução da vida constituem uma territorialidade específica, que sintetizam nos termos

“beira de rio e terra firme” – como parte explicativa do existir ali, ao mesmo tempo, que perpassam

questões da diversidade étnico-racial e da cultura negra, bem como a história das comunidades

quilombolas.

Por isso, solicito aos pais e responsáveis da Comunidade Quilombola do rio Baixo Itacuruça,

autorização para a realização das observações e das entrevistas. Ao finalizar a pesquisa, tenho o

compromisso de disponibilizar os resultados obtidos. Esclareço que o trabalho não envolve recursos

financeiros, e tem apenas fins acadêmicos e de divulgação científica no campo da Educação e das

Ciências Sociais. Em caso de dúvidas poderão me contatar através dos telefones (91) 987429596.

Declaro que autorizo a realização das entrevistas e observações para a pesquisa “Saberes locais e

processos identitários da Comunidade Quilombola do rio Baixo Itacuruça”.

Assinatura do responsável legal: ________________________________________

(Presidente da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos das Ilhas de Abaetetuba –

ARQUIA) (Morador do rio Baixo Itacuruçá)

Data: ____________

Assinatura da pesquisadora:____________________________________________

Data: ____________

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243

ANEXOS

1. Mapa com todas as ilhas do município de Abaetetuba-PA

Fonte: CPT/MORIVA, 2009.