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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO – PPGT MESTRADO EM TEATRO CARINE ROSSANE PIASSETTA XAVIER NARRATIVAS QUILOMBOLAS: SABERES E TEATRALIDADE DE MULHERES IDOSAS DA COMUNIDADE ADELAIDE MARIA TRINDADE BATISTA, EM PALMAS, PR FLORIANÓPOLIS 2016

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO – PPGT

MESTRADO EM TEATRO

CARINE ROSSANE PIASSETTA XAVIER

NARRATIVAS QUILOMBOLAS:

SABERES E TEATRALIDADE DE MULHERES IDOSAS DA

COMUNIDADE ADELAIDE MARIA TRINDADE BATISTA, EM

PALMAS, PR

FLORIANÓPOLIS

2016

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CARINE ROSSANE PIASSETTA XAVIER

NARRATIVAS QUILOMBOLAS:

SABERES E TEATRALIDADE DE MULHERES IDOSAS DA

COMUNIDADE ADELAIDE MARIA TRINDADE BATISTA, EM

PALMAS, PR

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Teatro, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica.

Orientadora: Profª. Drª. Tereza Mara Franzoni.

FLORIANÓPOLIS

2016

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Aos meus pais, Cid Rogério e Hermínia, pelo amor incondicional. Aos meus amados filhos, Augusto, Arthur, Luiz e Giovanna, pelo amor sublime e pelo incentivo nesta jornada. À minha família, principalmente aos meus amados avós e avôs (Nona, Nono, Bisavó Rosa, Vó Odete e Vô Júlio, in memoriam). A todos os que acreditaram na minha pesquisa e que a apoiaram. À comunidade quilombola brasileira. E a todas as mulheres negras, por sua força e determinação.

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AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus por me amparar nos momentos

difíceis, por me dar força interior para superar as dificuldades, mostrar o caminho nas horas incertas e me suprir em todas as minhas necessidades.

Sou grata aos meus pais por terem acreditado sempre em mim, mesmo nos momentos difíceis da minha vida.

Este trabalho é o fruto do incentivo dos meus pais durante toda a minha formação educacional e profissional, por acreditarem que a educação é a melhor herança que os pais podem deixar para os filhos.

Aos meus filhos, Augusto, Arthur, Luiz e Giovanna, por terem me proporcionado a dádiva de ser mãe, dando-me amor sublime e incentivo nesta jornada.

Aos meus avós, Nona, Nono, Odete e Júlio, e à minha querida bisavó Rosa, pela herança cultural e por terem concebido momentos marcantes na infância com as suas narrativas que deixaram memórias maravilhosas, as quais reverberaram durante todo o processo da escrita dissertativa, muitas vezes me deixando emocionada.

À minha família, que amo muito, pelo carinho, pela paciência e pelo incentivo.

Às minhas irmãs Cindy, Cristine e Catherine, e ao meu irmão Cid, pelas palavras de estímulo durante esta caminhada. Em especial, à minha irmã Cindy, pelos inúmeros momentos norteadores.

Agradeço à minha querida orientadora Tereza Mara Franzoni, pela confiança, paciência, incentivo, amizade e exemplo profissional.

Aos meus professores do PPGT e colegas de turma do ano de 2014, pela busca e pela troca de conhecimentos.

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Em especial, às comunidades quilombolas de Palmas, por me incentivarem nesta pesquisa dissertativa.

À minha pequenina Ana Maria, que passou poucos momentos comigo, mas que sempre ficará na minha memória.

Ao meu amigo Olinto Simões, o meu aplauso. Às minhas amigas Rosemary, Ariadni e Arlete, pelo

apoio nos momentos difíceis. Ao IFPR, pelo apoio ao conceder a licença para a

capacitação. Ao meu Nego, que, sem perceber, me deu esse

presente, o despertar pela busca do conhecimento cultural quilombola.

A todas as pessoas que diretamente e indiretamente me auxiliaram nesta jornada.

Ao meu amigo Antônio, pelo estímulo cultural ao me presentar com um livro sobre a cultura quilombola.

À minha amada amiga Domingas e a seu esposo, Osvaldo Bento (in memoriam).

À Adelaide Maria Trindade Batista, pelo exemplo de mulher guerreira (in memoriam).

Aos presidentes das comunidades quilombolas palmenses, o meu aplauso.

A todas as Marias da comunidade quilombola, o meu carinho e louvor.

À minha pequenina Gigi, sempre sentada atrás de mim na cadeira para estudar com a mamãe. Ao meu cachorrinho Zero, que, durante toda a escrita da dissertação, estava sempre perto de mim, mas precisamente deitado perto dos meus pés. Essa dupla foi parceira durante todo o período de estudo.

Aos meus amores incondicionais, primeiramente peço desculpas pelas falhas e ausências. Ao meu melhor amigo e parceiro, meu filho Augusto, pelos incentivos virtuais com as suas inúmeras mensagens engraçadas.

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Ao meu amado filho Arthur, pela parceria e amizade como também por ser de suma importância no trato dos irmãos menores durante os meus dias de aula. Ao meu filho Luiz Fernando, que pedia “Mãe, venha assistir a um vídeo meu... Só tem quarenta e cinco segundos” e que se transformavam em minutos de minha atenção para ele. E à minha princesinha Giovanna, que durante todo o processo aprontou inúmeras molecagens para chamar a minha atenção.

Sem o apoio de cada um de vocês este trabalho não seria realizado. A todos vocês, o meu muito-obrigada!

Que Deus proteja cada um de vocês!    

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Figura 1 - Poema musicado- Gritaram-me negra

GRITARAM-ME NEGRA.mp4

Fonte: YOUTUBE. Cruz, Victoria Santa Gritaram-me negra (1969). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RljSb7AyPc0>. Acesso em: 25 jul. 2016.

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RESUMO

XAVIER, Carine Rossane Piassetta. Narrativas

quilombolas: saberes e teatralidade de mulheres idosas da comunidade Adelaide Maria Trindade Batista, em Palmas, PR. 2016. 293 f. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2016.

O presente trabalho tem como objetivo a descrição

da teatralidade nas narrativas quilombolas de um grupo de mulheres, líderes quilombolas, da região centro-sul do Paraná. As narrativas foram e são utilizadas com significativa frequência nessa comunidade como forma de criação e pertencimento, vinculando a comunidade a uma linha ancestral, referenciando antepassados comuns e mantendo vivas as questões relativas à territorialidade. A opção pelo recorte de pesquisa se dá pela possibilidade de trazer os elementos e as teorias do teatro para a análise de um objeto cuja teatralidade é elemento fundamental. Além disso, as narrativas são também uma forma de projeção e estratégia de reconhecimento da cultura quilombola para a sociedade não quilombola. A presente pesquisa discute a possibilidade de se considerar essa forma de transmissão de saberes locais como uma ação cênica, à luz de teorias oriundas do teatro, em diálogo com as demais áreas que vêm trabalhando tanto com o contexto quilombola e suas implicações sócio-antropológicas como com as narrativas e sua complexidade. A abordagem metodológica é de caráter qualitativo, utilizando as estratégias de observação e entrevista, com registros visuais e sonoros, além do convívio e envolvimento comunitário. Apresenta-se um panorama do contexto histórico da região e da

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comunidade quilombola em pauta e, em seguida, é oferecido um relato sobre as narradoras e suas narrativas. O último capítulo traz a análise da produção das narrativas quilombolas, possibilitando a reflexão sobre a teatralidade dessas narrativas.

Palavras-chave: Teatralidade. Narrativa.

Quilombo.

 

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ABSTRACT

XAVIER, Carine Rossane Piassetta. Maroons

Narratives: knowledge and theatricality of elderly women Community Maria Adelaide Trinity Baptist in Palmas, PR. 2016. 293 f. Dissertation (Masters in Theatre). Universidade do Estado de Santa Catarina. Graduate Program in Theatre, Florianópolis 2015.

The Present Work aims a Description of theatricality

NAS Maroons Narratives, hum group of Women Leaders Maroons, the South of Paraná Center. As Narratives Were and are used with significant frequency in this community, as form creation and belonging, linking the Line Community One ancestor, referencing ancestors Commons and keeping alive as Issues related to territoriality. Option on the Search clipping is given by the possibility of bringing OS elements and Theories of Theatre For hum object analysis whose theatricality and fundamental element. In Addition, as Narratives are Also a form of projection and Recognition Strategy quilombola culture Paraná a society NOT quilombo. A Present Research discusses the possibility of considering this form of knowledge transmission LOCAL, A How Scenic Action, the light coming from the Theatre Theories in Dialogue with other areas which has been working with both the quilombo context and ITS Socio-anthropological implications as with so Narratives is his complexity. A methodological approach and qualitative character, using as observation strategies, and interview with visual and sound recording, Beyond Coexistence and Community Involvement. In this text for the Defense presents hum overview of the historical context of the region and the Quilombo Community in question. It is then offered hum About account as narrators and YOUR Narratives. The last

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chapter provides an analysis of the production of quilombo narratives, bringing the debate on the theatricality of these narratives.

Keywords: Theatricality. Narrative. Maroon.

 

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Fogo de chão ........................................................... 52 Figura 2 – Entrada do quilombo Adelaide Maria Trindade Batista

................................................................................. 54 Figura 3 – Trecho da região de baixo do quilombo Adelaide

Maria Trindade Batista ............................................ 55 Figura 4 – Mapa da população negra e das comunidades

quilombolas no Estado do Paraná ........................... 69 Figura 5 – Ermelina Ferreira com o seu filho de criação, Antônio

Eloir ......................................................................... 78 Figura 6 – Região do quilombo Adelaide Maria Trindade Batista

................................................................................. 82 Figura 7 – Localização do município de Palmas, no Paraná .... 83 Figura 8 – Ervas medicinais do quilombo ................................. 85 Figura 9 – Etapas de regularização quilombola no Brasil ........ 88 Figura 10 – Mapa cartográfico das comunidades quilombolas do

município de Palmas ............................................... 91 Figura 11 – Maquete da antiga igreja do bairro São Sebastião do

Rocio ........................................................................ 96 Figura 12 – Caldeirão que pertenceu a um dos primeiros

moradores do quilombo ........................................... 97 Figura 13 – Moradores antigos da região na manifestação

cultural, a Festa de São Sebastião ........................ 100 Figura 14 – Registro familiar de moradores do quilombo ......... 103 Figura 15 – Grupo de Dança, o início ....................................... 106 Figura 16 – Grupo de Dança Pérola Negra .............................. 108 Figura 17 – Imagem do Santo São Sebastião .......................... 111 Figura 18 – Moradoras do bairro São Sebastião do Rocio lavando

roupa na beira do rio Passo................................... 114 Figura 19 – Foto de antigos moradores do quilombo durante a

Festa de São Sebastião, manifestação cultural da comunidade ........................................................... 115 

Figura 20 – Puxirão no quilombo .............................................. 132 Figura 21 – Modelo das casas antigas do quilombo ................. 133 Figura 22 – Igreja São Sebastião, localizada no quilombo

Adelaide Maria Trindade Batista ............................ 135 Figura 23 – Fachada do Colégio Estadual Quilombola Maria

Joana Ferreira ....................................................... 139 

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Figura 24 – Gravura representando a avó da Arlete narrando as suas histórias ........................................................ 162 

Figura 25 – Tia Laida com a sua sobrinha Mary narrando histórias ................................................................. 165 

Figura 26 – Gravura que representa narração ......................... 166 Figura 27 – Cida com a sua avó ............................................... 168 Figura 28 – As três Marias de Adelaide Maria Trindade Batista

.............................................................................. 173 Figura 29 – Narradora Cida no local de costume da narração

quilombola ............................................................. 182 Figura 30 – A caminhada noturna ............................................ 184 Figura 31 – Desenho representando a narradora Trindade

contando a história ................................................ 186 Figura 32 – Gravura do velório ................................................. 189 Figura 33 – Gravura do homem pilchado ................................. 194 Figura 34 – Expressão corporal da quilombola Cida durante a

sua narração ......................................................... 199 Figura 35 – Gravura representando a procissão das almas ..... 202 Figura 36 – Desenho da expressão de Arlete ao contar suas

narrativas ............................................................... 208 Figura 37 – Gravura simbolizando a noiva da imbuia .............. 211 Figura 38 – Imagem da árvore imbuia da região do quilombo

Adelaide Maria Trindade Batista ........................... 213 Figura 39 – Visita de uma universidade da região à comunidade

Adelaide Maria Trindade Batista ........................... 241 Figura 40 – Posições corporais de Cida ao contar suas histórias

.............................................................................. 247 Figura 41 – Desenho das principais posições de Trindade ...... 249 Figura 42 – Algumas das posições de Arlete ........................... 250 Figura 43 – Cida narrando histórias ......................................... 251 Figura 44 – Alusão às mãos da narradora Trindade ................ 257 Figura 45 – Festival de Curitiba (2016) .................................... 263 Figura 46 – Personagem Maria, da Peça Narrativas quilombolas

.............................................................................. 264 

 

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LISTA DE NARRATIVAS

Narrativa 1: A caminhada noturna ............................................ 185 Narrativa 2: O homem de terno ................................................. 191 Narrativa 3: A procissão ............................................................ 200 Narrativa 4: Urutágua ................................................................ 203 Narrativa 5: Sundária ................................................................ 208 Narrativa 6: Noiva da Imbuia, por Arlete ................................... 214 Narrativa 7: Noiva da imbuia, por Cida ..................................... 215 Narrativa 8: Noiva da imbuia, por Trindade .............................. 220 

 

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

DCE Diretrizes Curriculares Educacionais GTCM Grupo de Trabalho Clóvis Moura FCP IBGE INCRA MEC ONU PBQ

Fundação Cultural Palmares Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária Ministério da Educação Organização das Nações Unidas Programa Brasil Quilombola

PPP PSSPR SEMEL SEPPIR SESC

Projeto Político-Pedagógico Processo Seletivo Simplificado Paraná Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República Serviço Social do Comércio

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................. 29 

2 QUILOMBO - FILHOS DA TERRA (CAPÍTULO I) ........... 51 

2.1 INFÂNCIA E CINEMA: MEMÓRIA. ................................... 53 2.1.1 Reminiscências do quilombo e suas novas composições:

comunidade quilombola .................................................... 58 2.1.2 Comunidade quilombola e políticas públicas .................... 63 2.1.3 Ser quilombola .................................................................. 77 2.2 SABERES DA TERRA - OS QUILOMBOS DA REGIÃO

CENTRO-SUL DO PARANÁ ............................................. 81 2.2.1 Comunidade quilombola Castorina Maria da Conceição .. 92 2.2.2 Comunidade Quilombola Tobias Ferreira ......................... 93 2.2.3 Comunidade Adelaide Maria Trindade Batista .................. 95 

3 OS SABERES DA TERRA - REMINISCÊNCIAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA ADELAIDE TRINDADE BATISTA ......................................................................... 109 

3.1 ESPAÇOS DE TRANSMISSÃO DOS SABERES DA TERRA ............................................................................ 119 

3.1.1 Vivências no local de encontro: a casa ........................... 131 3.1.2 Vivências no local de encontros: a igreja ........................ 134 3.1.3 Vivência no local de encontros: o Colégio Estadual Maria

Joana Ferreira ................................................................. 136 

4 NARRADORAS E SUAS NARRATIVAS (CAPÍTULO III) ........................................................................................ 143 

4.1 O ENCONTRO COM AS NARRATIVAS ............................. 143 4.1.1 Reflexões sobre ser idosa na sociedade ........................ 147 4.1.2 Reflexões sobre ser transmissora do conhecimento – líder

quilombola ....................................................................... 151 4.1.3 Narradoras antigas, suas práticas e a escolha das futuras

narradoras ....................................................................... 160 4.1.4 As mulheres e a mudança significativa na comunidade . 169 4.2 AS TRÊS MARIAS DA COMUNIDADE ADELAIDE MARIA

TRINDADE BATISTA ...................................................... 171 4.2.1  Maria Arlete Ferreira da Silva (Arlete) ............................. 174 4.2.2  Maria Adelaide Trindade (Trindade) ................................ 175 4.2.3  Maria Aparecida Souza Santos (Cida) ............................ 176 

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4.3 REFLEXÕES SOBRE NARRATIVAS DE TRADIÇÃO ORAL QUILOMBOLA ...................................................... 177 

4.3.1 Repertório narrativo quilombola ...................................... 181 4.3.1.1 Narrativas sobre caminhadas noturnas ........................ 183 4.3.1.2 Narrativas com o tema animais noturnos ..................... 202 4.3.1.3 Narrativas com o tema noiva da imbuia ....................... 211 

5 OS DISPOSITIVOS CÊNICOS NAS NARRATIVAS QUILOMBOLAS ............................................................. 225 

5.1 A PRÁTICA DA NARRAÇÃO DE HISTÓRIAS ENTRE AS MULHERES IDOSAS ...................................................... 230 

5.2 A TEATRALIZAÇÃO DO COTIDIANO ............................ 232 5.2.1 Narrativas quilombolas da região centro-sul do Paraná . 233 5.3 PRÁTICA DAS NARRATIVAS NO QUILOMBO ............. 237 5.3.1 Corporeidade das narradoras ......................................... 245 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A VISIBILIDADE DOS DISPOSITIVOS CÊNICOS DO CONTEXTO QUILOMBOLA ................................................................ 259 

REFERÊNCIAS ........................................................................ 267 

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1 INTRODUÇÃO Repertório acadêmico. Minha base, minha bisavó Rosa

Quando era adolescente, meu pai escutou da sua

avó Rosa o seguinte: “Filho, seus irmãos estão na faculdade”. Essa frase também eu escutei em toda a minha infância e adolescência, faz parte do meu repertório narrativo pessoal, e hoje utilizo para lembrar e compreender todo o meu traçado acadêmico. Para melhor entendimento do escopo desta pesquisa, faz-se necessário explicar a minha trajetória profissional e, consequentemente, como surgiu a escolha do tema. Na qualidade de profissional, atuei como professora e teatróloga há vinte e dois anos, sendo que sou formada em licenciatura em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná. E, ainda, é pós-graduada em Fundamentos no Ensino da Arte (FAP) e em Arte, Educação e Tecnologia Contemporâneas pela Universidade de Brasília (UNB). Com isso, tive contato com diversas realidades sociais e espaços educativos de teatro tanto no ambiente escolar formal do ensino fundamental, nas cidades de Curitiba e de Pinhais, quanto em ambientes não formais, como o Centro Cultural de Pinhais, tendo dirigido peças teatrais desenvolvidas por grupos de crianças e de adolescentes.  

Em 2009, na Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer de Pinhais (SEMEL – Pinhais), tive uma oportunidade diferenciada ao ser convidada para desenvolver oficinas de teatro para jovens e crianças no Centro Cultural. No ano seguinte, a Secretaria de Ação Social inaugurou o Centro de Convivência do Idoso e solicitou uma parceria com o Departamento de Cultura para a operacionalização de oficinas de teatro para idosos, convocando esta profissional pelo perfil apresentado e por seu modo de trabalho.

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Como desafio, a oficina de teatro no Centro de Convivência do Idoso gerou uma série de situações novas sobre o público e expectativas em relação ao teatro. Particularmente, esse fato despertou nesta profissional diversas inquietações voltadas à prática dramatúrgica para o idoso e com o idoso.

Em 2012, após ter passado em concurso federal para o Instituto Federal do Paraná (IFPR - Câmpus Palmas), assumi como docente no curso superior em Artes, ficando responsável pelas disciplinas de teatro. Configurava-se aí uma nova realidade profissional para mim. Nessa oportunidade, foi possível aprimorar o projeto com idosos no interior de Santa Catarina, em Passos Maia.

Com as oficinas desenvolvidas com idosos, entre os anos de 2010 e 2011, no Centro de Convivência do Idoso de Pinhais, e em 2013, com a prática cênica no Centro de Convivência de Idosos de Passos Maia/SC, foi confirmado que a experimentação cênica para os idosos é uma atividade relevante, uma vez que proporciona a possibilidade de eles ressignificarem as próprias histórias de vida se representadas para uma plateia. Há ainda outros benefícios: a realização de sonhos antigos, o resgate da autoestima, a melhoria da expressão gestual e vocal, entre outros. Tendo em vista a busca por teorias dessas situações e experiências com o teatro para idosos, esta postulante aguçou a ampliação do conhecimento e consequentemente a entrada no Mestrado em Teatro. Tendo um grupo de idosas como profundidade temática na dissertação, me deparo com a viabilidade atual, na qual a longevidade humana é uma revolução mundial (PAPALÉO NETO, 2007).

A vivência em ambientes de ensino formais e não formais proporcionou uma gama de conhecimentos

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práticos para com um público diversificado, principalmente com idosos.

Conheci o trabalho com idosas durante a minha atividade profissional como professora de Teatro no município de Pinhais, Estado do Paraná, ao participar de alguns experimentos que utilizavam práticas teatrais com o grupo de teatro do Centro de Convivência de Idosos do município. Com o grupo de idosas, algumas práticas cênicas tiveram de se adequar à realidade, então eu associava estratégias de expressão corporal para a criação cênica desse grupo de pessoas com idade avançada.

Mas o processo que mais me influenciou, tornando-se uma experiência marcante, foi um experimento feito em 2014 como docente do Instituto Federal do Paraná (IFPR) na disciplina Educação para a Diversidade, durante um bate-papo com algumas lideranças quilombolas e com os alunos do curso de Artes. Esse experimento não só transformou a visão dos acadêmicos com relação à comunidade quilombola como também modificou a visão sobre as formas de discutir a questão no Dia da Consciência Negra1. Aquele foi o início de uma nova possibilidade de criação cênica por atores sociais.

No ano de 2014, um dia que antecede o da Consciência Negra, um grupo de pessoas, entre estudantes de graduação e comunidade, reuniu-se em uma sala do IFPR, na cidade de Palmas, para a transmissão de narrativas quilombolas para não quilombolas. A ambientação escolhida foi sobre a

                                                           1 Segundo o site Sua pesquisa.com, esta data foi estabelecida pelo projeto de Lei n. 10.639, no dia 9 de janeiro de 2003. Foi escolhida a data de 20 de novembro, pois foi neste dia, em 1695, que morreu Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/datascomemorativas/dia_consciencia_negra.htm>. Acesso em: 25 maio 2015.

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comunidade quilombola e o contexto social, escolhida para tal empreitada a narrativa de algumas lideranças. A troca de experiência tinha como base a comunidade quilombola, que focaliza e desenvolve o senso de indivíduo e de humanidade. A proposta central era que cada participante compreendesse sobre o contexto quilombola com histórias do povo.

Muitos pensamentos vêm à tona, entre eles o meu envolvimento pela temática da dissertação, mesmo antes de eu saber que descreveria pessoas que de alguma maneira eram perseguidas social ou moralmente. Esse sentimento como pesquisadora passou por mim e então me fez repensar sobre a minha ascendência, fazendo-me lembrar de momentos de intimidade familiar.

No município de Palmas, eu pretendia continuar essa proposta de trabalho com idosos, porém, com o encontro com a comunidade quilombola e a observação da teatróloga e pesquisadora, captei outra dinâmica, em que a comunidade valoriza as idosas, que ressignificam o seu papel no contexto social. Descrevo com detalhamento o encontro com as narradoras e as narrativas no Capítulo 4. 

Como teatróloga, inicio a convivência diferenciada com um grupo de mulheres que, em suma, constitui um meio de compreensão da realidade em que vive a sociedade e transcende qualquer limite. Nisso, começo a perceber dispositivos cênicos nas trocas de conhecimento tradicional quilombola.

Nessa troca de conhecimento tradicional, a arte do teatro passa a ser um jogo de construção que promove o desenvolvimento da criatividade e abre as possibilidades de compartilhar descobertas, ideias, sentimentos e atitudes. Não se pode perder de vista que a prática teatral está ligada às tradições da época e da cultura nas quais foi criada.

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O encontro com a cultura e a identidade quilombola A dissertação aqui apresentada aborda as

narrativas quilombolas acenadas e desenvolvidas pelas líderes quilombolas, caracterizadas pelas mulheres mais antigas das comunidades localizadas na região do sudoeste do Paraná, no município de Palmas, num processo de criação de pertencimento nas suas narrativas sobre antepassados e sobre a questão de identidade quilombola. Essas narrativas configuram-se também como uma oportunidade de reconhecimento e contribuição significativa da cultura quilombola para a sociedade não quilombola. Atribuem significado a uma comunidade de brasileiros, os quilombolas, grupo representativo da cultura nacional com muitos meios de expressão e histórias para contar e que precisam de voz para ter o seu conhecimento organizado e divulgado.

A palavra kilombo deriva da língua mbundo do tronco linguístico banto, com significado provável de sociedade como manifestação de jovens guerreiros/as. Em julho de 2015, a assembleia realizada em Brasília pela Organização das Nações Unidas no Brasil (2015) instituiu oficialmente a década de 2015 a 2024 como a década “Internacional de Afrodescendentes”, ressaltando que é pela quarta vez que é instituída, numa busca pela valorização da promoção de respeito, proteção e realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais dos povos afrodescendentes.

Essa discussão é uma oportunidade de reconhecimento territorial e de promoção de medidas concretas para a inclusão desse grupo de pessoas quilombolas. Para Alves (2013), o direito à terra se inclui como um direito elementar e sustentável dos quilombolas a partir do advento da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 68, que trata dos Atos e Disposições

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Constitucionais Transitórios, que garantem aos remanescentes de quilombos a titulação das terras em que vivem.

Examinando a historiografia de Wachowicz (2002) sobre a questão quilombola, essa discussão sempre foi abordada como uma estratégia de invisibilidade de outros não europeus. O Estado do Paraná sempre foi considerado como uma região prioritariamente de colonização europeia.

Com a proposta de políticas públicas nacionais, grupos de trabalhos antropológicos começam a cartografar as comunidades quilombolas. Em destaque no Paraná, está o Grupo de Trabalho Clóvis Moura, que foi o responsável pelo mapeamento oficial das comunidades remanescentes de quilombos, e comunidades negras tradicionais, que até então viviam no anonimato e começam a ter visibilidade. Com a inserção de novas políticas públicas relacionadas a essa etnia e aos grupos de trabalhos antropológicos (GOMES JR.; SILVA; COSTA, 2008), constatei que no Estado do Paraná, demonstrado na Figura 1, existem em média 90 comunidades, das quais 36 já foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Entre elas, algumas se encontram com o processo de certificação parado, e outras aguardam o reconhecimento.

Atualmente, as pesquisas começam com a desconstrução social do preconceito e da discriminação racial, conforme afirmam Pinto e Mezzomo (2012, p. 10):

É indiscutível a importância e necessidade da desconstrução social do preconceito e da discriminação racial que são atribuídos à população negra, bem como a ampliação dos conhecimentos sobre esta etnia presente no Paraná e pouco mencionada pela historiografia. É necessário viabilizar formas que recuperem a autoestima e o

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orgulho de ser negro, bem como promover ações que contribuam para extirparem as representações sociais negativas calcadas à população negra por meio de estigmas e estereótipos.

Em meio a essa questão da promoção de ações

para modificar a visualização de estigmas e estereótipos sobre a população negra na região do município de Palmas, os conflitos sobre a temática da territorialidade estão a cada dia mais intensos. “Somos filhos da terra e nela cultivamos toda nossa cultura e passado. Sempre vivemos aqui e aqui é o nosso lugar” (SILVA, 2015a) (Alcione). As lideranças locais do quilombo, num processo que se assemelha a um ato teatral, ou melhor dizendo, teatro de narração, devido aos dispositivos cênicos, justificam o pertencimento pelo uso da prática das narrativas quilombolas com enredos que abordam a descrição dos seus antepassados.

Conforme o mapa cartográfico da comunidade, o município de Palmas tem três comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares: comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade; comunidade Castorina Maria da Conceição; e comunidade Tobias Ferreira. Descobri a existência dos quilombos quando fui morar na região em 2012, por causa do concurso Federal do qual participei concorrendo ao cargo de docente em Teatro. Mas nesse período, eu ainda tinha uma carga horária de trabalho de 20 horas semanais e não desenvolvia projetos de extensão universitária. Só obtive contato efetivo com as comunidades no ano de 2014, como descreverei mais adiante, com um projeto de extensão que desenvolvi.

Tenho interesse pela questão da territorialidade, o qual despertou em mim ainda mais desejo de estudar o tema durante a participação no evento das Comunidades

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Tradicionais do Sul, no início do mês de maio de 2015, no município de Paranaguá-PR, oferecido pelo IFPR - Câmpus Paranaguá. Esse interesse aflorou devido às abordagens e, principalmente, às argumentações dos participantes oriundos das comunidades tradicionais da região Sul.

Com o tempo de convivência na comunidade, a descoberta de novas narrativas que não descreviam o território, e sim as atividades culturais, interessei-me pela troca de conhecimentos de geração para geração desse grupo de pessoas. Assim, mudei o foco de estudo, não sendo mais só o estudo com um grupo de teatro com pessoas idosas, mas um grupo de idosas – as líderes quilombolas2– com a troca de saberes da terra.

Essa troca de saberes da terra, nesta dissertação, será chamada de dispositivos cênicos teatrais – as narrativas quilombolas. A ideia inicial desta dissertação era o estudo do processo cênico com o grupo de teatro de idosos, mas com o conhecimento e a aproximação com a comunidade quilombola modifiquei o objeto de estudo para um grupo específico de idosos, as mulheres negras com mais de sessenta anos. Esse fato se deu devido à articulação das líderes quilombolas pelas narrativas e por suas características marcantes.

Escutei diferentes narrativas, que chamavam a atenção principalmente pela memória autobiográfica das

                                                           2 Segundo as pessoas mais antigas da comunidade quilombola Adelaide Maria Batista Trindade, a definição de líder quilombola pode ser caracterizada pelo conhecimento transmitido pelos mais velhos. Assim, na comunidade quilombola da região centro-sul do Paraná, nem todos os idosos e as idosas são líderes quilombolas. A liderança começa a despertar em cada pessoa na sua juventude e amadurece com os conhecimentos transmitidos por uma liderança já instaurada. Um líder quilombola, com o passar dos anos, começa a compreender o seu povo e a amar todos como se fossem da sua família. Existem poucos líderes quilombolas.

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pessoas idosas, visto que no quilombo algumas delas são nomeadas de líderes. Em algumas narrativas, transpareceram momentos de troca de geração, histórias que as avós das narradoras contavam quando crianças. Outra característica marcante dessas idosas contadoras é que elas conseguem descrever relatos de cinco gerações, com nomes e sobrenomes. Às vezes, pedem desculpas por terem mencionado tantas Marias. E refazem a narrativa quando erram o nome, posteriormente lembrando-se dele. Arlete, uma das lideranças, cita que devia ter escutado mais as histórias da sua avó para poder repassá-las aos seus filhos e netos, mas na época achava as histórias chatas.

Inicialmente, surgiram alguns imprevistos na realização da pesquisa: o fato de eu ser uma pesquisadora, questão de gênero que descrevo melhor no Capítulo 3. Com o passar do tempo, essa questão foi amenizada devido à aproximação e, principalmente, às conversas que tive com a idosa mais antiga, a qual auxiliou a mudança de visão dos demais membros da comunidade. Eles perceberem o meu interesse e a presença da guia quilombola durante todo o processo de pesquisa, além da inserção social com a matrícula do meu filho adolescente no Colégio Quilombola. Todo esse processo auxiliou na aproximação dos saberes da comunidade com a pesquisadora não quilombola.

Em conversa informal com uma quilombola, ela afirmou que ficou surpresa com o entrosamento que tive com a sua mãe e pela forma como eu tinha conseguido as histórias, que só eram repassadas de pai para filho. O entrosamento com a líder mais antiga da comunidade auxiliou a dinâmica da pesquisa. A resposta para a questão ficou e ainda fica até o presente momento sem compreensão. Como sou uma pessoa que está sempre

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pronta para o aprendizado, provavelmente a líder sentiu vontade de transmitir a mim o seu conhecimento.

Lembro-me de outro fato marcante para a minha inserção na comunidade. Uma das líderes desmarcou a entrevista quando soube que eu iria sozinha, e só depois de um tempo, e com a convivência, aceitou ser entrevistada sem a presença de outra quilombola. Durante a dissertação, descrevo como era a sua recepção com as pessoas que não são quilombolas, e percebi que geralmente essa líder possui essa relação com pessoas de fora.

Nesse ínterim, após a identificação das principais lideranças do quilombo para desencadear ações associadas com a comunidade, e por se tratar de uma comunidade tradicional, tive o meu primeiro contato com a líder mais antiga da comunidade. Posteriormente aconteceria o contato com as lideranças locais, de modo que eu pudesse explicar a proposta de trabalho. Essas lideranças eram os presidentes quilombolas, visto que é sabido que nesse município existem atualmente três quilombos3, dois na área urbana e um na área rural. Após a reunião em que solicitei a autorização para o trabalho no quilombo, começa a identificação das principais lideranças da comunidade quilombola no que diz respeito às narrativas quilombolas.

O ser humano, desde sempre, narra as suas conquistas e os seus fracassos. A narração de histórias quilombolas pode ser descrita como uma manifestação cultural de um povo que transmite os seus saberes de geração para geração, uma prática que vem das suas origens africanas, e mesmo com tantos sofrimentos, continuam a despertar essa dinâmica no Brasil. A África,

                                                           3 Os quilombos de Palmas eram conhecidos como quilombos do Rocio 1, Rocio 2 e Rocio 3. As lideranças locais resolveram homenagear os seus antecessores, como explico logo adiante.

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mesmo sendo um continente muito extenso e com um grande número de povos e de culturas com características distintas, mostra que na diversidade existem elementos comuns entre seus povos, e um deles é o Griô ou Djeli. O Griô, como é chamado aqui no Brasil, é o contador de histórias, que na África era responsável por ensinar as lendas e os costumes do seu povo. Mesmo antes da invasão dos europeus ao continente africano, o Griô já existia e transmitia os seus ensinamentos. A transmissão das narrações do Griô é muitas vezes cantada. Os membros do Griô utilizam instrumentos musicais para ajudar a dar ritmo e musicalidade à narrativa. Na comunidade, inicialmente existia um griô que, segundo Arlete, fazia narrativas que eram trovas, ele trovava em verso. Era o tio Joaquim Nebino, que gostava de provocar as pessoas com as suas trovas.

Mesmo modificando o objeto de estudo, conforme mencionei anteriormente, destaco que nos dias atuais repensar o envelhecimento para novas possibilidades de inserção em novas atividades, principalmente artísticas, torna-se cada vez mais necessário. Conforme afirma Mendes (2008), envelhecer é um processo natural que caracteriza uma etapa da vida do homem e dá-se por mudanças físicas, psicológicas e sociais que acometem de forma particular cada indivíduo com sobrevida prolongada. É uma fase em que, ponderando sobre a própria existência, o indivíduo idoso conclui que alcançou muitos objetivos, mas também sofreu muitas perdas, das quais a saúde destaca-se como um dos aspectos mais afetados.

Dentro dessa linha, a presente pesquisa Narrativas quilombolas: saberes e teatralidade de mulheres idosas da comunidade Adelaide Maria Trindade Batista, em Palmas, PR, discute a possibilidade de se considerar a transmissão de saberes locais como uma ação cênica,

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devido aos seus dispositivos cênicos, à luz de teorias teatrais e sociológicas. A pesquisa tem como objetivo a descrição das teatralidades nas narrativas quilombolas relatadas pelas líderes mais antigas da comunidade, através de uma pesquisa qualitativa. Durante o processo de pesquisa, foram utilizadas as estratégias de observação, pesquisa bibliográfica e entrevistas.

No processo, obtivemos algumas entrevistas e relatos das narrativas, até chegar ao encontro das três idosas, com idades entre 70 e 83 anos, que participaram durante o ano de 2015 de encontros semanais, na média de três horas de duração. No ato do registro das entrevistas, já tinham acontecido mais de dez encontros com cada idosa, geralmente tendo a presença de familiares ou de entes queridos.

O desenvolvimento da experiência ocorre com cada idosa na sua residência localizada no quilombo de origem, mas também menciono momentos de transmissão do saber quilombola no ambiente escolar, devido ao fato de uma das líderes não ser apenas matriarca, mas ser líder de referência política. Isto é, existem diferentes termos de lideranças que descrevo no Capítulo 2. Nas comunidades quilombolas da região de Palmas, prevalece uma sociedade matriarcal4, sendo o papel de liderança e poder exercido pela mulher e, especialmente, pelas mães da comunidade. Como foi citado por uma das lideranças, os líderes mais idosos do sexo masculino da comunidade faleceram, prevalecendo

                                                           4 Historicamente, em algumas civilizações, os grupos familiares tinham a sua origem na matriarca, ou seja, a família se originava da mãe. Naquela época, as mulheres se relacionavam com qualquer homem que integrasse a tribo a que pertenciam. Era a chamada endogamia (VENOSA, 2008, p. 3). Como consequência, era possível conhecer, com certeza, apenas a mãe da criança gerada, arcando sozinha a genitora com o sustento, o zelo e o carinho para com o seu filho.

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assim o sexo feminino com idade superior a sessenta anos.

Menciono ainda que existem líderes quilombolas do sexo masculino, porém direciono a pesquisa para as mulheres pelo fato de que convivi muito pouco com os homens e, na maioria das vezes, eles tinham idade inferior a sessenta anos. O fator determinante que direcionou a pesquisa para as lideranças do sexo feminino deveu-se ao fator tempo, por se tratar de uma pesquisa dissertativa, como também ao horário da pesquisa, que ocorria de segunda a sexta-feira, no período da tarde.

Como no início eu não era conhecida da comunidade, essa situação direcionou-se para o grupo feminino, de modo que o andamento teórico e prático da pesquisa não fosse prejudicado. Alguns líderes masculinos ainda se encontram na ativa profissional, levando-me a optar pela convivência e troca de saberes com as mulheres com mais de sessenta anos e que são líderes familiares, as matriarcas. Em conversa com a líder mais antiga da comunidade, Adelaide Maria Trindade Batista, sobre a proposta em questão e sobre o fator tempo, eu resolvo me dedicar ao grupo das “Três Marias”, e no trabalho dissertativo descrevo o motivo que me levou a essa nomenclatura.

Para tanto, a pesquisadora usufrui da pesquisa qualitativa, com uma abordagem na prática, num grupo de idosas quilombolas, sobre a importância do processo criativo de sentido. A arte dramática implica que o ator deve desaprender as usuais regras que reduzem o seu corpo a ser um simples porta-voz, como também o fornecimento de conhecimentos teóricos e técnicos que os preparam para o trabalho e o cotidiano da ação no âmbito de criação teatral e a correlação na promoção de saúde de um grupo de idosos ativo.

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Com as líderes quilombolas, a troca de experiências teatrais é despertada pelas narrativas, guiadas pela busca do prazer e da satisfação pessoal. Conforme Debert (2004, p. 14), “as experiências vividas e os saberes acumulados são ganhos que oferecem oportunidades de realizar projetos abandonados em outras etapas e estabelecer relações mais profícuas com o mundo dos mais velhos”.

Por outro lado, devo considerar que, conforme Barros (2006), na categoria velhice há uma pluralidade marcada também por gerações. Como mostra Motta (2004, p. 119), “a velhice deve ser pensada no plural, não só pela constatação da pluralidade de formas de envelhecer dentro do mesmo grupo etário, mas porque há vários grupos etários dentro desta única denominação genérica de velhice”.

Ao reconfigurar as narrativas do ambiente quilombola, contado pelas idosas, modifico tanto uma tradição oral como também a questão do respeito e da troca de saberes quilombolas para um novo contexto, o não quilombola. Trata-se de um processo de teatralização com caraterísticas performáticas, em que os atores sociais fazem um espetáculo quase diário para um grupo específico – a própria comunidade quilombola.

Voltando à realidade no teatro, a historiadora teatral alemã Margot Berthold (2001, p. 6) afirma:

A forma e o conteúdo da expressão teatral são condicionados pelas necessidades da vida e pelas concepções religiosas. Dessas concepções um indivíduo extrai as forças elementares que transformam o homem em um meio capaz de transcender-se e a seus semelhantes.

No contexto da realidade quilombola, a troca de

saberes culturais geralmente ocorre nos espaços de

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sociabilidade. Para avaliá-los, tive como base o teórico Simmel (1999) e a pedagogia do estar junto de Marques (2008), que cita os locais de troca de saberes cultural: a casa, a igreja e a escola. Entraremos em detalhes sobre essa questão no Capítulo 1, que trata da contextualização dos espaços de transmissão culturais.

Para uma melhor compreensão, nesse momento é necessário organizar os dados sobre as pesquisas nacionais e internacionais relacionadas ao gênero teatral com idosos. Busquei trabalhos cujo escopo principal estivesse diretamente relacionado com o desenvolvimento de teatro com idosos, comunidade quilombola, narrativas e contação de histórias. O objetivo geral da dissertação refere-se às metodologias de projeto, descrição e interpretação à luz teatral e sociológica das narrativas ou contações de histórias quilombolas. Para tal enfoque, existe a pesquisa realizada por citar uma dissertação relevante ao tema, a pedagogia do estar junto de Marques (2008) que, após análise de diversas pesquisas sobre quilombola, narrativas e contação de histórias, conclui que: quanto às pesquisas nacionais, investiguei a produção científica disponibilizada em periódicos e anais de congressos recentes das áreas de etnias – negros e quilombola, teatro e contação de histórias. Também busquei as produções disponibilizadas no Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Isoladamente, a palavra quilombola corresponde a mais de cento e vinte quatro pesquisas dentro do Banco de Teses da CAPES, até o período de 2014, com variadas linhas de pesquisas, em áreas que vão da matemática às ciências sociais. Com o direcionamento para a área teatral, as pesquisas começam a diminuir. Encontrei uma dissertação sobre a pedagogia teatral afro-brasileira, a qual não utilizei na pesquisa em questão devido ao fato

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de que estou descrevendo um processo narrativo quilombola, e não criando esse processo.

Em relação ao tema de investigação, até o presente momento, na busca no sistema, identifiquei variados trabalhos entre teses e dissertações, porém com nula busca de trabalhos específicos na área teatral sobre Teatro no ambiente quilombola. Buscando por Narrativas quilombolas, aparecem 12 trabalhos, mas nada específico na área teatral. Não encontrei nenhum trabalho no ambiente de pesquisa da CAPES sobre Teatralidade nas narrativas quilombolas.

A presente pesquisa fundamentou a sua coleta de dados nos diversos momentos, quais sejam: na pesquisa bibliográfica, na pesquisa documental e na pesquisa de campo.

Em um primeiro momento, busquei a compreensão da temática, embasando-me em referencial teórico. No segundo momento, compreendi a rotina da comunidade quilombola, com a observação, a inserção da questão do pertencimento. E no terceiro momento, o momento das entrevistas e coletas de dados: as narrativas.

De acordo com Gil (2008), as pesquisas descritivas possuem como objetivo a descrição das características de uma população, de um fenômeno ou de uma experiência. Essa dinâmica descrita pelo autor fora usufruída durante todo o processo de trabalho na comunidade quilombola, pois, com a inserção na pesquisa, pude compreender o espetáculo cênico quilombola, que em pequenos detalhes transforma os espectadores devido às narrativas do pertencimento.

Tecendo palavras com as filhas da Terra

Para tecer as palavras das filhas da terra apresento

de maneira diferenciada a composição do trabalho. Uso a

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caixa que se assemelha às da partitura cênica que apresento no Capítulo 4, assim o leitor já fica familiarizado com a proposta desta dissertação.

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Quilombo, filhos da Terra

Capítulo 1 Neste capítulo, elaboro a argumentação do

trabalho mostrando os motivos que me fizeram compreender o quilombo, filhos da Terra, como um norte para a possibilidade de dispositivos cênicos nesse grupo comunitário. Na busca de pesquisas bibliográfica, acervo pessoal, entrevista com líderes da comunidade quilombola, inicio a reflexão. Busco elementos audiovisuais para compreender o contexto histórico da localidade como também os filhos da terra. Com o filme Quilombo, proposto por Cacá Diegues, tive a oportunidade de refletir sobre o passado e, consequentemente, olhar com mais atenção para o presente. A visibilidade do quilombo está paulatinamente sendo reescrita nesse início de século e, com as reminiscências do quilombo e suas novas possibilidades, o não quilombola pode compreender a importância dessa raça para a cultura nacional através das narrativas. Utilizarei teóricos da História e da Antropologia, além de artigos e de dissertações que descrevem as comunidades quilombolas do município de Palmas. Para melhor compreensão da formação das comunidades quilombolas, é necessária uma apresentação das primeiras impressões sobre o quilombo, as reminiscências do quilombo e as suas novas composições, como também sobre a comunidade quilombola, as políticas públicas e o ser quilombola no início do século XXI.

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Os saberes da terra – Reminiscências da

comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade

BatistaCapítulo 2

Neste capítulo, abordarei o contexto da

comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista, os saberes da terra desses entornos e as reminiscências da comunidade até o presente momento. Nessa comunidade quilombola, é no contato, no estar junto nas socializações, que ocorre a troca dos saberes, das tradições e da sua cultura local. Conforme as palavras de Ong (1998), a comunicação oral sempre existiu “sem qualquer escrita, mas nunca escrita sem a oralidade”. Nesse segundo capitulo, foi o momento em que conheci um pouco mais sobre esse universo quilombola e a valorização do estar juntos. Para Simmel (1983), a socialização é um processo básico, que Marques (2008) completa com a pedagogia do estar juntos. Os espaços de transmissão de saberes da cultura local ocorrem nos locais de encontros e de vivências: a casa, a igreja e o Colégio Estadual Maria Joana Ferreira sintetizam este capítulo.

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Narradoras e suas narrativas

Capítulo 3

Neste capítulo, descrevo as etapas do processo narrativo das narradoras quilombolas, o encontro com a pesquisadora e a abordagem teórica sobre oralidade e narrativa. Enfatizo o aprendizado que tive durante o processo dissertativo e as reflexões da escrita da dissertação. Inicio apresentando o encontro com as narrativas, as reflexões sobre as idosas na sociedade e as lideranças quilombolas, como era o processo das antigas narradoras quilombolas e as suas práticas de transmissão de conhecimento. Com essa base teórica, começo a refletir sobre as Três Marias da comunidade Adelaide Maria Trindade Batista, apresentando um pouco das suas particularidades e das suas características. Como suporte teórico, optei pelo pensamento de Walter Benjamin (1995), com o texto O narrador, considerando a leitura que o autor faz sobre a figura do narrador. Adoto ainda a teórica Gancho (2006), que descreve que a narrativa é estruturada considerando cinco elementos principais: enredo, personagens, tempo, espaço e narrador. Assim, faço uma análise das narrativas coletadas durante a pesquisa com base no pensamento de Gancho (2006). A descrição e a análise das narrativas são divididas pelas temáticas e por seus enredos. Suas narrativas giram em torno de alguma situação. Para tal, a história contada é apresentada como um alerta e̸ ou aconselhamento.

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Os dispositivos cênicos nas narrativas quilombolas

Capítulo 4 Neste capítulo, elaboro as bases teóricas que

suportam esta dissertação no que diz respeito aos dispositivos cênicos das narrativas quilombolas. Traço um diálogo com a teatralidade, o teatro do oprimido e as narradoras de histórias quilombolas, e suas narrativas relacionadas ao teatro. Os dispositivos cênicos são sempre correlacionados com bases nas teorias do teatro de Brecht (1978), a teatralidade de Caballero (2011) e as indagações sobre narrador do filósofo Walter Benjamin (1995). Busquei compreender as narrativas do quilombo, correlacionando-as com as reflexões sobre aquele que transmite o seu saber através das narrativas.

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A visibilidade dos dispositivos cênicos do

contexto quilombola Capítulo 5

Neste capítulo, elaboro as considerações finais do

processo dissertativo.

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2 QUILOMBO - FILHOS DA TERRA (CAPÍTULO I)

Quilombo, filhos da terra. A reivindicação de direitos sociais das comunidades remanescentes de quilombo é associada à autoidentificação.

(O´DWEYR, 2002).

A presente pesquisa dissertativa tem como objeto

de estudo as narrativas desenvolvidas por um grupo de mulheres idosas oriundas da comunidade tradicional quilombola do bairro São Sebastião do Rocio, localizado no município de Palmas. Essas narrativas giram em torno de alguma situação e, para tal, a história contada é apresentada como um alerta e/ou aconselhamento (Figura 1)5. As histórias são geralmente contadas numa roda de conversa, com chimarrão e pinhão (como veremos no capítulo 4). Para melhor compreensão das narrativas sobre a comunidade quilombola mencionada, este capítulo tratará das histórias da região, procurando identificar os espaços de transmissão cultural.

                                                           5 Fogo de chão organizado para demonstração pelos moradores da comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista.

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Figura 1 – Fogo de chão

 Fonte: produção da própria autora (2015)

O quilombo do município de Palmas6, assentado na região centro-sul do Paraná, sofreu inúmeras transformações que o levaram a uma subdivisão em três comunidades quilombolas: (1) comunidade quilombola Castorina Maria da Conceição, (2) comunidade quilombola Tobias Ferreira e (3) comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista.

                                                           6 Palmas fica a 392 km de distância da capital do Estado do

Paraná, Curitiba. Com o comércio de carne (BAUER, 2002; NAZARO, 1999), há a necessidade de escoamento da produção. Alguns historiadores (RODERJAN, 1992; RODRIGUES, 2012; SILVA, 2006) fazem menção à extensão geográfica do município de Palmas, que compreendia o atual oeste catarinense. Porém, a própria colonização e o estabelecimento de conflitos permanentes pela posse de terra na região despertaram inúmeros eventos que levaram à redefinição e à redução do tamanho do município. Entre esses conflitos, estava a Guerra do Contestado (BAUER, 2002).

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2.1 INFÂNCIA E CINEMA: MEMÓRIA. Quilombo, comunidade tradicional negra,

comunidade quilombola. Assim foi apresentado e explicado o espaço de troca de tradições de descendentes de escravizados e ex-escravizados brasileiros. As primeiras impressões dos quilombos da região do município de Palmas foram delineadas como um lugar dos negros (Figuras 2 e 3). Esse lugar se constituiu como local do encontro das narrativas e, principalmente, do meu encontro com as Marias, as Marias de São Sebastião do Rocio. Posteriormente, descobrirei que todas elas são oriundas da comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista, localizada no bairro São Sebastião do Rocio.

O caminho para entrar na comunidade (Figura 2) já de início remete à minha infância, com lembranças que se misturam ao ar puro do bairro São Sebastião do Rocio, provavelmente devido às árvores nativas e a algumas chácaras presentes na localidade. Como era a primeira vez que eu estava adentrando um quilombo, as minhas referências imagéticas sobre esse universo correspondiam a algumas produções cinematográficas sobre o tema, logo vindo à tona a memória visual do filme Quilombo7.

                                                           7 O filme Quilombo é do gênero drama, de coprodução brasileira e francesa, datado de 1984. O roteiro foi baseado nos livros Ganga Zumba, de João Felício dos Santos, e Palmares, de Décio de Freitas. Conta a história de um escravizado chamado Zumbi. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=v7CYGqJsFvU>. Acesso em: 24 out. 2015.

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Figura 2 – Entrada do quilombo Adelaide Maria Trindade Batista

Fonte: produção da própria autora (2015)

Durante a pesquisa, assisti novamente ao filme,

marcando assim um contraste significativo com as minhas impressões sobre o que via na comunidade quilombola do bairro São Sebastião do Rocio no início do século XXI. 

O filme Quilombo, dirigido por Cacá Diegues, mostra um panorama de como a expressão artística e social bordou a imagem histórica do que seria de fato um quilombo nos anos 1980, quase no final do século XX. No filme, a personagem Dandara marca a consciência e a defesa da liberdade e do direito à terra. Na cena logo após a luta dos negros com um grupo de pessoas que os escravizavam, uma vez libertos, os negros começam uma discussão do que deveriam fazer, e a personagem

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Dandara, ao ser indagada, responde: “Eu nasci aqui. Eu não conheço outra terra. África está longe. África está longe demais”. Esse pensamento da personagem Dandara reverberou ainda mais na minha busca sobre a efetiva definição de quilombo e do ser quilombola nos dias de hoje. Com esses exemplos reunidos, não pretendo só dar conta das imagens essenciais, mas de um potencial indutor reflexivo, o pensar e o repensar no que está presente na memória (Figura 3). Figura 3 – Trecho da região de baixo do quilombo Adelaide Maria Trindade Batista

Fonte: acervo pessoal da pesquisadora (2016)

Na tentativa de compreensão sobre a temática

quilombo do início do século XXI, percebi que a questão do pertencimento à comunidade de iguais e o direito à terra permaneceram como elementos importantes. Os moradores do bairro São Sebastião do Rocio valorizam o seu lugar e a sua memória. Na região, é considerado um

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bairro periférico do município, e no contexto das comunidades quilombolas brasileiro, é um quilombo urbano.

Os moradores do quilombo da região de Palmas, antes mesmo de o espaço ser dividido em três comunidades, marcam outras batalhas, ainda que, em muitos casos, pelos mesmos motivos. Entre esses motivos, encontramos os moradores e o reconhecimento da sua história e dos seus direitos. É uma busca pela memória da sua história e do esquecimento que Ricoeur (2015) descreve como “ameaça da memória feliz”. Esse fundo silencioso está relacionado a “situações-limites em que o esquecimento vem se juntar ao envelhecimento e à mortalidade” (RICOEUR, 2015, p. 435).

Meados dos anos 1980, a vinda da certificação quilombola instaura a busca pela efetivação da demarcação territorial na região, e o quilombo de Palmas se subdivide em regiões que acompanharam também a demarcação municipal por bairros. Com isso, as lideranças locais participam de eventos representando o seu povo, e a memória esquecida vem à tona, a memória impedida, a memória manipulada começa a sair do luto, luto esse que valoriza o conhecimento transmitido por gerações e que se reflete não só nas comunidades, mas no seu entorno também.

Contam os moradores que havia um projeto para uma placa ou marco indicando o início do território quilombola de cada uma das três comunidades. Pois quem não sabe, vê ali apenas bairros periféricos, totalmente desprovidos de políticas públicas. Esse é o caso do bairro São Sebastião do Rocio, pois se nota esse fato já pela precariedade da estrada de acesso, que é de pedras e com desníveis que prejudicam a condução de carros e de bicicletas. É fato corriqueiro alguns moradores preferirem fazer esse trajeto a pé. Mesmo assim, os

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moradores contam que, antes da abertura da estrada, entrar no quilombo só era possível pelo carreador8, ou seja, por pequenas trilhas, algumas das quais ainda existem.

Retornando às minhas impressões acerca da comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista, com relação à imagem visual de quem chega pela estrada, é possível observar do lado esquerdo uma chácara e do lado direito um lago. Estes, porém, desaparecem do campo de visão após a curva da estrada de pedras, dando lugar a diversas casas de tamanhos e de padrões diferenciados. Em minha primeira visita, fiquei admirando essas casas e comparando-as àquelas dos demais bairros do município.

As pessoas andam por todos os lados, às vezes no meio da rua, em pequenos ou grandes grupos, dependendo da hora e do dia da semana. A lentidão é corriqueira, e os cumprimentos e os acenos de boas-vindas aos visitantes fazem parte da rotina. A cada momento, percebo que para compreender esse local é preciso se inserir no cotidiano das relações.

Após três minutos dirigindo bem devagar, chego à localidade que é considerada o coração da comunidade, próximo à igreja São Sebastião. Em seu entorno, encontro uma das habitantes mais antigas da comunidade, a senhora Maria Arlete Ferreira da Silva, que será uma narradora das histórias com as quais desenvolvi a pesquisa. Com o tempo, percebi que a valorização de uma comunidade quilombola é o mesmo que usufruir do uso político de sua memória, quando constatamos os sofrimentos e as torturas passadas por seus entes em suas narrativas de interação, o que nos leva a repensar a figura do escravizado e a sua invisibilidade no Paraná.

                                                           8 Carreador: caminho aberto no meio da lavoura ou da mata.

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2.1.1 Reminiscências do quilombo e suas novas composições: comunidade quilombola

Rosemary Ferreira da Silva Câmara (2016),

moradora quilombola e uma das lideranças nas questões da comunidade e etnia racial, apresentou-me o quilombo como “não sendo um lugar ao léu, mais sim um pedacinho do céu”. Um dito poético que parece revelar tanto a realidade histórica da conquista de um lugar seguro como a imagem de um lugar mítico9, sem as mazelas da vida ordinária. Para Nogueira (2002), as imagens simbólicas não constituem a realidade concreta, mas personagens fictícios. “Exatamente porque era imaginário, ele nos deu uma distância para explorar questões íntimas relacionadas com a realidade”. Isto é, para Nogueira (2002), dar voz a diferentes setores da comunidade para selecionar uma codificação, e a forma de se criar uma codificação, é frequentemente muito explícito, caindo muitas vezes em argumentos que não vão além de uma discussão mediada.

Para Bauman (2003), o termo comunidade está diretamente ligado a um lugar cálido, confortável e aconchegante. Não ter comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isso ocorrer, poderá em breve significar perder a liberdade. A segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e desejados, que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem atrito. O autor continua alertando sobre os paradoxos enfrentados na                                                            9 O conhecimento mítico também é expresso por meio de linguagem simbólica e imaginária. Assim, ainda que o conhecimento mítico crie representações para atribuir um sentido às coisas, ele se baseia na crença de seres fantásticos e de suas histórias. Para Bauman (2003), os mitos não são histórias divertidas. Seu objetivo é ensinar, por meio da reiteração sem fim de sua mensagem, um tipo de mensagem que os ouvintes só podem esquecer ou negligenciar se quiserem.

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questão da busca de identidade, a qual, por exigir singularidade e diferença, faz em si uma perspectiva de unidade de comunidade, descrevendo e criticando determinados pressupostos de comunidade pela diferença e pela igualdade – a “identidade” significa aparecer.

Bauman (2003, p. 16) confirma que

O tipo de entendimento em que a comunidade se baseia precede todos os acordos e desacordos. Tal entendimento não é uma linha de chegada, mas o ponto de partida de toda união. É um “sentimento recíproco e vinculante” — “a vontade real e própria daqueles que se unem”; e é graças a esse entendimento, e somente a esse entendimento, que na comunidade as pessoas “permanecem essencialmente unidas a despeito de todos os fatores que as separam”.

O autor mostra, assim, que atualmente a

desigualdade é visualizada de modo compassivo pelos culturalistas, sendo um direito inevitável que toda comunidade deve viver de acordo com a sua preferência.

A partir do momento em que a informação passa a viajar, independentemente de seus portadores, e numa velocidade muito além da capacidade dos meios mais avançados de transporte, a fronteira entre o “dentro” e o “fora” não pode mais ser estabelecida e muito menos mantida (BAUMAN, 2003, p. 18-19).

Segundo Bauman (2003), o que os indivíduos

identificam na comunidade é a garantia de “certeza, segurança e proteção”. Essas qualidades fazem falta nos afazeres da vida e não são obtidas em conjunto no

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individualismo, dependendo dos recursos escassos de que dispõem as pessoas individualmente. Assim, a “comunidade ética” proposta por Bauman (2003, p. 68) “seria tecida de compromissos de longo prazo, do tipo compartilhamento fraterno, de direitos inalienáveis e obrigações inabaláveis, com perspectiva de futuro”. Num tom de alerta sobre as relações entre indivíduos e a sociedade, a autora diz que:

Comunidade não se define apenas em termos de localidade. […] É a entidade à qual as pessoas pertencem, maior que as relações de parentesco, mas mais imediata do que a abstração a que chamamos de “sociedade”. É a arena onde as pessoas adquirem suas experiências mais fundamentais e substanciais da vida social, fora dos limites do lar (NOGUEIRA, 2013 apud COHEN, 2009, p. 8).

Nogueira (2013 in COHEN, 2009, p. 6) define

comunidade como “não sendo um lugar da homogeneidade, mas o espaço para a construção ou articulação de pessoas que dialogam sobre suas diferenças, na busca de estruturação de uma presença que ajude a deixar suas vidas melhores”.

Com base nos estudos de Kershaw, a teatróloga Nogueira (2013 in KERSHAW, 2009) descreve que existem dois tipos de comunidade: (1) a comunidade local – uma rede de relacionamentos formada por interações face a face, numa área delimitada geograficamente; (2) a comunidade de interesse, formada por uma rede de associações que são predominantemente caracterizadas por seu comprometimento em relação a um interesse comum.

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No primeiro sentido, acredita-se que pessoas que vivem e/ou trabalham numa mesma região possuem determinadas vivências e problemas comuns, enquanto o segundo indica que algumas pessoas comungam de ideias, identificam-se por um olhar preconceituoso com que são vistas, ou por sofrerem uma mesma exclusão, como por exemplo: mulheres, homossexuais, negros, meninos de rua, domésticas, entre outros (NOGUEIRA, 2013, p. 7).

O que Nogueira (in KERSHAW, 2013) define como

diálogo mediado pela realidade é o principal instrumento na construção de uma comunidade. É o caso das comunidades quilombolas. Para compreender a terminologia quilombo, busco o entendimento da origem da palavra.

Santos (2010) esclarece que o termo quilombo é originário dos povos de língua bantu e que se refere a um conjunto composto por habitação, acampamento, floresta e guerreiro. Já na região central da Bacia do Congo, significava ser um “lugar para estar com Deus”. Para Munanga (1995), a presença deste termo no Brasil bem como o seu significado têm a ver com alguns ramos desses povos bantu cujos membros foram trazidos para esta terra e aqui escravizados.

Santos (2010) apontou também que os termos quilombo, quilombola, mocambo ou comunidades remanescentes de quilombos têm adquirido diferentes significados e passado por transformações ao longo da história.

Ao nos reportarmos à palavra quilombo, automaticamente buscamos o passado da escravidão, conforme exposto por Leite (2008) em seu artigo intitulado O projeto político quilombola: desafios, conquistas e

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impasses atuais. Leite (2008) aponta a etimologia bantu da palavra quilombo, que no Brasil se popularizou no sistema escravista como “rebeldia”, sendo o Quilombo dos Palmares10 o caso emblemático de resistência.

Santos (2010) refere que ainda no século XIX se entendia quilombo como “uma reunião no mato ou em lugar oculto de mais de três escravizados”, ou ainda, “habitação clandestina nas matas e desertos que servia de refúgio a escravizados fugidos”. Mas o significado começa a se ampliar quando o termo quilombo evidencia ser um local ou um campo de iniciação. Pode-se dizer ainda que é uma associação de homens, aberta a todos os que buscavam a liberdade do sistema escravagista. Santos (2010) ressalta o quilombo como o lugar onde esses homens eram submetidos a rituais de iniciação que os integravam como guerreiros, num regimento de super-homens contra as armas inimigas. O quilombo era considerado como unidade-base de resistência do escravizado, não importando a localização geográfica. Como afirma Munanga (1995), o quilombo estava onde quer que a escravidão estivesse, tanto que, devido às definições e às menções no âmbito mundial, o surgimento dos quilombos não é um fenômeno exclusivamente brasileiro.

                                                           10 O quilombo mais conhecido no território brasileiro é o Quilombo dos Palmares, da região no estado brasileiro de Alagoas, antes pertencente à capitania de Pernambuco, na região da Serra da Barriga, no período regido pelas capitanias hereditárias. O nome se deu devido à vasta e densa vegetação predominantemente formada por palmeiras na região. Os primeiros escravizados chegaram ao Quilombo dos Palmares supostamente em 1580. Esse quilombo teve o seu ápice em população e organização no centenário de 1600, quando mais de 35 mil habitantes se espalharam por uma área de mais de 200 km de extensão. Disponível em: <http://quilombo-dos-palmares.info>. Acesso em: 24 out. 2015.

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Essas definições ecoam até meados do século XX, e só agora, no início do século XXI, paulatinamente isso está se modificando devido ao cenário mundial em torno dos direitos humanos e das políticas públicas mundiais, que se adequam gradativamente ao território nacional. Atualmente, o entendimento sobre o termo quilombo, de acordo com Santos (2010), não mais se dá por pessoas marginalizadas do sistema, como era no período escravagista, mas amplia o horizonte para os saberes da terra, as trocas culturais e sociais realizadas em seu meio e que originam as suas características. Em sua averbação, Santos (2010) refere-se também ao maior símbolo de quilombo no Brasil: a República dos Palmares. O autor salienta que no Brasil não só existiu a República do Palmares, mas, devido à ênfase do país pela proporção de habitantes, ela ficou mais conhecida. Com as políticas públicas nacionais no que tange à questão racial, outras experiências de resistência e luta quilombola tornaram-se conhecidas. 2.1.2 Comunidade quilombola e políticas públicas

Para Silva e Nascimento (2012), houve várias formas de resistência à escravização. A materialização dessa resistência pelos quilombos foi uma das primeiras formas de defesa dos negros contra não somente a escravidão, mas também contra a discriminação racial e o preconceito que se estenderam para além da abolição da escravatura. Hoje a comunidade quilombola é caracterizada como ponto de resistência e reafirmação de direitos, resistindo às pressões de fazendeiros, de especuladores imobiliários e até mesmo do poder público.

A termologia comunidade quilombola, definida por Lima (2013), possui uma relação direta com o processo de identificação dos territórios e dos conhecimentos das

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formas de sociabilidade, cultura e produção da vida dessas comunidades. Para Lima (2013), a comunidade quilombola está diretamente relacionada com a construção de memórias coletivas, consequentemente questões políticas e identitárias vividas no tempo presente. A questão de territorialidade para a comunidade quilombola consiste em:

[...] poder e autonomia para estabelecer determinado modo de vida em um espaço, as condições de continuidade da reprodução material e simbólica deste modo de vida. A sobreposição de territórios implica necessariamente em uma disputa de poder. As comunidades quilombolas, ao se organizarem pelo direito aos territórios ancestrais, não estão apenas lutando por demarcação de terras, às quais elas têm absoluto direito, mas, sobretudo, elas estão fazendo valer seus direitos a um modo de vida (SILVA; NASCIMENTO, 2012, p. 26).

Nessa linha de pensamento, as autoras Silva e

Nascimento (2012) defendem que atualmente muitas comunidades quilombolas no país lutam pelo seu modo de vida, pela permanência ou pela reconquista de seus territórios ancestrais. Essa luta entra em choque com variados interesses, sejam eles oriundos do poder público ou privado. Muitos desses territórios são reservados como “áreas disponíveis à expansão de atividades econômicas, ou como reservas intocáveis destinadas à preservação ambiental” (SILVA; NASCIMENTO, 2012, p. 23).

Essa discussão vem à tona efetivamente no Brasil quase na metade do século XX, com o surgimento de movimentos sociais e projetos oficiais para o reconhecimento de terras para os descendentes de escravizados.

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Em 1988, a Constituição Federal Brasileira preconiza, no Art. 68 das disposições constitucionais transitórias, o seguinte: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Com isso, recrudescem inúmeras discussões que a princípio eram tratadas como fundiárias, tal como menciona Valdélio Santos Silva em seu artigo Rio das Rãs à Luz da Noção de Quilombo, datado de 2000. Nesse processo, a noção de quilombo passa a ter uma conotação mais ampla e acordada em inúmeros segmentos da área acadêmica.

Arruti (1997) anuncia que a utilização do termo remanescente, presente no Art. 68, surge para elucidar a relação de continuidade e descontinuidade com o passado histórico, passado esse para o qual a descendência não se constitui como requisito principal. O autor salienta que a termologia vem efetivar nas comunidades presentes formas apenas atualizadas por antigos quilombolas, a memória dos ascendentes passa a se tornar um simbolismo de um grupo de pessoas, a sua identidade, a busca pela sua cultura e, sobretudo, de um modelo de luta e militância negra, dando ao termo uma positividade, um valor cultural absolutamente novo:

Os laços das comunidades atuais com grupos do passado precisam ser produzidos hoje, através da seleção e recriação de elementos da memória, de traços culturais que sirvam como os “sinais externos” reconhecidos pelos mediadores e o órgão que tem a autoridade de nomeação (ARRUTI, 1997, p. 17).

A escritora nigeriana Chimamanda Adichie, em sua

palestra O perigo de uma única história (2009), mensura bem a articulação do momento ocasionado pelo Art. 68 da

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constituição brasileira e que ainda tem reflexos paulatinos em todos os âmbitos de conhecimento e de reconhecimento quilombola. Adichie (2009) relata no seu discurso as suas experiências pessoais de histórias, num tom de alerta sobre o perigo de uma única história. A respeito disso, Adichie (2009) afirma:

Nessa história única não havia a possibilidade de africanos serem iguais a ela de forma alguma. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos do que a pena. Nenhuma possibilidade de conexão como humanos. [...] Então, depois de ter passado alguns anos nos EUA como uma africana, comecei a entender a reação da minha colega de quarto para comigo. Se eu não tivesse crescido na Nigéria e tudo o que eu soubesse sobre África viesse das imagens populares publicadas, eu também pensaria que a África era um lugar de paisagens bonitas, animais bonitos e pessoas incompreensíveis, disputando guerras insensatas, morrendo de pobreza e AIDS, incapazes de falar por si mesmas. Esperando para serem salvas pelo estrangeiro branco e gentil. [...] Então comecei a perceber que minha colega de quarto deve ter visto e ouvido, durante toda a sua vida, diferentes versões da história única (ADICHIE, 2009).

A história única que Adichie (2009) descreve também pode ser comparada aos quilombos do Brasil. A partir do momento em que ocorre o reconhecimento da territorialidade e, em paralelo, pesquisas acadêmicas sobre a questão, começam a se concretizar outras possibilidades de leituras quilombolas do início do século XXI. As memórias esquecidas vêm à tona e, consequentemente, a busca por outras histórias. Assim,

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aproximando-me da reflexão de Adichie (2009), sugiro que, conhecendo as histórias de seu lugar simbólico e de sua própria territorialidade, o quilombola passa também a escrever sobre as coisas em que se reconhece. Wachowicz (2002) chama a atenção para o fato de que a questão quilombola é como uma estratégia de invisibilidade de outros não europeus. Assim, destaco o Estado do Paraná, que historicamente sempre foi caracterizado por ter uma população que na sua maioria era de colonização europeia.

Essa configuração se modifica com as políticas públicas e pesquisas na área antropológica. Arruti (1997, p. 18) descreve que os integrantes pertencem a uma comunidade aglutinada:

Ao mesmo tempo, a maior visibilidade do grupo lhe dá uma nova posição em face do jogo político municipal e, por vezes, estadual. Enfim, a adoção da identidade de remanescentes por uma determinada coletividade, ainda que possa fazer referência a uma realidade comprovável, é, com muito mais força, a produção dessa própria realidade.

A produção de uma realidade comprovável surge

com propostas de políticas públicas nacionais, consequentemente alguns grupos de trabalhos antropológicos começaram a cartografar as comunidades quilombolas. No Paraná, o grupo de trabalho Clóvis Moura11 foi o responsável pelo mapeamento oficial dos                                                            11 Segundo o site do grupo de trabalho Clóvis Moura, esse grupo foi intitulado assim para homenagear o jornalista Clóvis Steiger de Assis Moura, que nasceu em 1925, em Amarante, no Piauí. Nos anos 1970, destacou-se pela militância no movimento negro brasileiro. Clóvis Moura produziu importante obra sociológica, histórica e poética. Para Moura, a sociedade escravista brasileira era subdividida em duas

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remanescentes de quilombos e das comunidades negras tradicionais que até então viviam no anonimato (Figura 4), dando visibilidade acadêmica e jurídica a elas à medida que eram reconhecidas. Com a inserção de novas políticas públicas relacionadas à questão racial e com os estudos sobre os remanescentes de quilombos (GOMES JR.; SILVA; COSTA, 2008), constatou-se que, no Estado do Paraná, existem em média 90 comunidades, das quais 36 foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares12. Entre elas, algumas se encontram com o processo parado, e outras aguardam o reconhecimento pela entidade.

                                                           classes antagônicas: os senhores de escravizados (classe dominante) e os escravizados (classe dominada). Os escravizados produziam os bens materiais e as riquezas, enquanto os senhores de escravizados detinham a propriedade e os meios de produção. Após a abolição, os escravizados, apesar de terem produzido as riquezas que alicerçaram a economia brasileira, não tiveram direito à propriedade. 12 A Fundação Cultural Palmares preocupa-se com a igualdade racial e com a valorização das manifestações de matriz africana, formula e implanta políticas públicas que potencializam a participação da população negra brasileira nos processos de desenvolvimento do país. Foi o primeiro órgão federal criado para promover a preservação, a proteção e a disseminação da cultura negra. Na defesa, a banca mencionou como estaria a Fundação Cultural Palmares. No dia 5 de outubro de 2016, visitei o site oficial e verifiquei a entrevista do presidente da Fundação, o senhor Erivaldo Oliveira da Silva, que comenta sobre os desafios para os próximos anos e sobre as ações que estão sendo trabalhadas pela gestão. Além disso, entre as grandes conquistas desses anos, estão políticas de promoção da igualdade, da memória da cultura afro-brasileira e as cotas raciais. A caminhada, entretanto, ainda é longa e envolve, sobretudo, dar mais visibilidade a Palmares e à cultura afro-brasileira, além de gerar oportunidades de mobilidade social pela cultura a jovens da periferia.

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Figura 4 – Mapa da população negra e das comunidades quilombolas no Estado do Paraná

Fonte: GRUPO DE TRABALHO CLÓVIS MOURA (GTCM, 2010). Disponível em: <http://www.gtclovismoura.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=62>. Acesso em: 10 out. 2015.

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Em 2004, surge um marco da política federal para as áreas quilombolas, o Programa Brasil Quilombola13 (BRASIL, 2004). Entre as ações desse programa, que foi reforçado com o Programa Temático 2034, estão temas como o Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, que prevê iniciativas de coordenação, monitoramento e avaliação das ações governamentais voltadas para as comunidades quilombolas de responsabilidade da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)14. Com o Decreto n. 6.261, de 2007, o Programa Brasil Quilombola (2013) agrupou algumas ações voltadas às comunidades em diversas áreas, conforme segue:

Eixo 1: Acesso à Terra – execução e acompanhamento dos trâmites necessários para a certificação e regularização fundiária das áreas de quilombo, que constituem título coletivo de posse das terras tradicionalmente ocupadas. Eixo 2: Infraestrutura e Qualidade de Vida – consolidação de mecanismos efetivos para destinação de obras de infraestrutura (saneamento, habitação, eletrificação, comunicação e vias de acesso) e construção de equipamentos sociais

                                                           13 Durante o fechamento da revisão final desta dissertação, o quadro político nacional ainda não havia configurado algumas políticas públicas no contexto quilombola, como o próprio Programa Brasil Quilombola. Na minha busca, encontro uma possibilidade com o edital para a preservação dos quilombolas, lançado no dia 12 de agosto de 2016. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/meio-ambiente/2016/08/governo-lanca-edital-para-preservacao-de-quilombos>. Acesso em: 5 out. 2016. 14 A Medida Provisória nº 726, publicada no Diário Oficial da União no dia 12 de maio de 2016, estabeleceu a nova estrutura organizacional da Presidência da República e dos Ministérios que compõem o governo federal.

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destinados a atender as demandas, notadamente as de saúde, educação e assistência social; Eixo 3: Inclusão Produtiva e desenvolvimento local – apoio ao desenvolvimento produtivo local e autonomia econômica, baseado na identidade cultural e nos recursos naturais presentes no territórios, visando a sustentabilidade ambiental social, cultural, econômica e política das comunidades. Eixo 4: Direitos e cidadania – fomento de iniciativas de garantia de direitos promovidas por diferentes órgãos públicos e organizações da sociedade civil, junto às comunidades quilombolas considerando critérios de situação de difícil acesso, impacto por grandes obras, em conflitos agrários, sem água e/ou energia elétrica e sem escola (BRASIL, 2013) .

Os eixos propostos pelo Programa Brasil

Quilombola (2013) paulatinamente colaboram com a visibilidade das comunidades quilombolas, em conjunto com as visitas mais contínuas de pesquisadores das universidades e a declaração de remanescente de quilombo fornecida pela Fundação Cultural Palmares. Entre os eixos propostos pelo Programa Brasil Quilombola (2013), muitos dependem da certificação da demarcação territorial emitida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária15 (INCRA) para a sua efetiva

                                                           15 Durante a revisão da dissertação, eu ainda aguardava um novo panorama no contexto quilombola. Porém, após o afastamento da presidenta Dilma Roussef do exercício da Presidência da República, o golpista Michel Temer editou a Medida Provisória nº 726 para reorganização dos ministérios. Essa medida contida no artigo 27, IV, j, compete ao Ministério da Educação e Cultura realizar “a delimitação

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participação. Na comunidade em questão, encontrei algumas ações do PPQ, tais como: mesa Brasil do Serviço Social do Comércio (SESC)16, bolsa-família17, projeto luz fraterna18, projetos de desenvolvimento sustentável19 e                                                            das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos bem como determinação de suas demarcações, que serão homologadas mediante decreto”. Ou seja, coloca no novo Ministério da Educação e Cultura a responsabilidade por demarcar e homologar territórios quilombolas. 16 Mesa Brasil do SESC é um programa efetivado pelo Serviço Social do Comércio (SESC) em âmbito nacional. No Paraná, a sede de Francisco Beltrão é comprometida na realização entre as comunidades tradicionalistas do estado com o objetivo de contribuir para a segurança alimentar e nutricional dos indivíduos em situação de maior vulnerabilidade como também reduzir o desperdício de alimentos. 17 Bolsa-família é um programa realizado pelo governo federal com o objetivo de promover a emancipação das famílias em situação de maior pobreza no país, associando a transferência do benefício financeiro do acesso aos direitos sociais básicos – saúde, alimentação, educação e assistência social. Através do Programa Bolsa-Família, o governo federal concede mensalmente benefícios em dinheiro para as famílias mais necessitadas. 18 O Programa Luz Fraterna é um benefício criado pelo Governo do Estado do Paraná cujo objetivo é realizar o pagamento da conta de luz das famílias de baixa renda desde que beneficiárias da Tarifa Social de Energia Elétrica, em conformidade com a Lei n. 17.639/2013. Na comunidade quilombola, algumas famílias dispõem de instalações de luz diferenciada, chuveiro para economia e uma geladeira de porte pequeno. 19 Projeto de desenvolvimento sustentável é uma ação do governo federal que busca promover o desenvolvimento sustentável dos povos e das comunidades tradicionais, com ênfase no reconhecimento, no fortalecimento e na garantia dos seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, às suas formas de organização e às suas instituições. Por meio do Decreto n. 6.040, foi instituída em 2007 a política nacional de desenvolvimento sustentável dos povos e das comunidades tradicionais (PNPCT). As ações e as atividades são voltadas para o alcance dos objetivos da PNPCT, responsável pelo projeto de desenvolvimento sustentável de maneira integrada e

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carta de anuência para ministrar aulas no Colégio Quilombola.

Destaco aqui a carta de anuência que foi instituída com a criação do Colégio Estadual Quilombola, utilizada no ingresso no processo seletivo simplificado (PSS) da Secretaria Estadual da Educação do Paraná (SEED), para os cargos necessários na composição do quadro de funcionários do colégio. O candidato se inscreve no PSS de acordo com os critérios estabelecidos pela SEED, e logo após a pré-seleção ele entra em contato com a comunidade para solicitar a carta de anuência. O papel da comunidade nessa política pública tem sido muito significativo. Na proposta governamental, a comunidade deve fazer uma reunião com todos os candidatos pré-selecionados para repassar os costumes, as crenças, a estrutura da organização social e as tradições quilombolas. A emissão da carta de anuência só é efetivada logo após a reunião da comissão das lideranças locais, sendo soberana. No início da seleção dos candidatos para trabalhar no colégio quilombola Maria Joana Ferreira, eles eram predominantemente professores não quilombolas, porém atualmente os próprios quilombolas estão se aprimorando profissionalmente e participando dos cargos destinados à escola.

Em 2008, a Lei n. 11.645 (Art. 26-A) tornou obrigatório nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. O Art. 215, na Ementa Constitucional n. 48 (BRASIL, 2005), defende o direito à valorização do patrimônio cultural, a

                                                           intersetorial, através da participação efetiva de membros da comunidade em diversas comissões e conselhos, bem como dos povos de comunidades tradicionais do Paraná, da saúde, da alimentação e da educação.

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democratização dos bens culturais e o seu acesso. Já o Art. 216 descreve bens de natureza material e imaterial tomados individualmente ou em conjunto, referenciando a identidade, a ação e a memória da sociedade brasileira tanto no seu direito do modo de expressar como criar, fazer e viver.

Arruti (1997) alerta em seu artigo A emergência dos “remanescentes: notas para o diálogo entre indígenas e quilombolas que, ao descrever sobre um grupo étnico vinculado aos quilombos, não se deve buscar “pequenas Áfricas”, e que isso poderia remeter a uma ideia de resistência cuja contrapartida seria a conservação e/ou o retorno ao passado.

Sobre esse tema, o autor continua discorrendo:

[..] que os conteúdos culturais possam variar no tempo, no espaço e na própria origem dos indivíduos que venham a compor o grupo étnico, a análise deve recair sobre os mecanismos de criação e/ou manutenção de uma forma organizacional que prescreve padrões unificados de interação e que regula quem faz e quem não faz parte do grupo, além das relações entre aqueles que fazem parte e entre estes e aqueles que não fazem (ARRUTI, 1997, p. 20).

À medida que o tempo passa, outras políticas

públicas são implementadas, e a conceptualização do termo ‘quilombo’ pronuncia novas possibilidades, pois novas questões surgem para compreender a rede das relações sociais nas quais os negros estão inseridos para além da herança direta de um passado de escravidão.

Atualmente, as pesquisas começaram a desconstrução social do preconceito e da discriminação racial, conforme afirmam Pinto e Mezzomo (2012, p. 10):

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É indiscutível a importância e a necessidade da desconstrução social do preconceito e da discriminação racial que são atribuídos à população negra, bem como a ampliação dos conhecimentos sobre esta etnia presente no Paraná e pouco mencionada pela historiografia. É necessário viabilizar formas que recuperem a autoestima e o orgulho de ser negro, bem como promover ações que contribuam para se extirparem as representações sociais negativas calcadas à população negra por meio de estigmas e estereótipos.

Colaborando com esse pensamento, encontramos

Arruti (1997), que ressalta a importância do reconhecimento da comunidade como remanescente e aponta essa estratégia como a única via para garantir suas terras e, principalmente, sua voz política para a construção de um juízo de valor político.

Em 2012, a visibilidade das relações sociais e históricas das comunidades quilombolas se torna uma possibilidade efetiva com a regulamentação da política pública sobre a educação quilombola, descrita nas Diretrizes Curriculares Educacionais (DCE) – Educação Quilombola (BRASIL, 2012). Essas diretrizes trazem a questão da territorialidade das comunidades quilombolas, do resgate da memória dos antepassados, das transformações culturais que criaram e recriaram valores.

A busca pela condição de dignidade quilombola, segundo as DCE, pode ser estruturada pela luta e pelo reconhecimento da terra das comunidades quilombolas. A terra é uma necessidade cultural e política, vinculada diretamente ao direito de autodeterminação. Para as comunidades quilombolas da região centro-sul, os negros envolvidos diretamente na produção econômica pastoril contribuíram de forma significativa não só na mão de obra,

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mas também na configuração cultural da região. Sobre essa questão, Arruti (1997, p. 24) afirma que:

A importância de percebê-los como emergentes está em reconhecer que o seu lugar, porque ainda maldefinido tanto com relação às condições de acesso aos seus novos direitos, quanto com relação às condições de exercício de sua nova identidade, antes de fazer aqueles que o ocupam, ainda está por ser feito por aqueles que conseguirem ocupá-lo.

A valorização da memória cultural dos indivíduos

negros da região centro-sul, no contexto quilombola, tornou-se ainda mais forte com a política internacional da ONU no Brasil20. Nesse pensamento, a ONU21 estabeleceu pela quarta vez a Década Internacional Afrodescendente, com o lema “reconhecimento, justiça e desenvolvimento”, que iniciou em 2015 e vai até 2024. As articulações de entidades dispostas pela ONU, com a Década Afrodescendente, e os documentos oficiais colaboram para o reconhecimento de autodeterminação do grupo de pessoas que vive e convive nas comunidades quilombolas. Com essa proposta, a ONU lança novas questões para compreender o “ser quilombola” nas redes das relações sociais, articulando e constituindo em grupos

                                                           20 No dia 13 de maio de 2016, a presente dissertação já estava em processo de finalização para a defesa quando tive acesso a uma carta da CONAQ lançando pautas contra o MINC, o que demonstra o panorama da Comissão Nacional de articulação das comunidades negras rurais quilombolas, no governo em transição. Disponível em: <https://elegbaraguine.wordpress.com/2016/05/17/nota-da-coordenacao-nacional-de-articulacao-das-comunidades-negras-rurais-quilombolas-conaq-contra-a-pauta-quilombola-no-minc>. Acesso em: 5 out. 2016. 21 Década Internacional Afrodescendente. Disponível em: <http://www.decada-afro-onu.org>. Acesso em: 24 out. 2015.

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da população negra a valorização da sua identidade como quilombola.

Com as transformações ocorridas para o caminho da construção da identidade quilombola, os espaços de transmissão cultural começam a ter visibilidade. Essa transmissão é responsabilidade de algumas pessoas com mais idade, que na comunidade estudada são chamadas de líderes quilombolas.

Os líderes quilombolas são os principais transmissores das representações dos tempos passados, sendo muito importantes na construção da identidade quilombola. Não são todas as pessoas que são líderes, mas cada líder tem a sua responsabilidade (como irei explanar logo adiante).

O que pode ser observado é que a tradição quilombola existe em espaços marcantes para a comunidade onde há sociabilidade, onde o negro se sente protegido e em grupo para transmitir as suas tradições.

2.1.3 Ser quilombola

A termologia quilombola está diretamente ligada

àquela pessoa que reside dentro do quilombo, como é o caso de Maria Joana Ferreira (Figura 5)22. Essa afirmação pode ser conferida com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (CONAQ, 2012), que descreve a comunidade quilombola como um grupo étnico, um grupo de indivíduos predominantemente constituído pela população rural ou urbana. Esses indivíduos se definem a partir das relações com a terra, do parentesco, do território e da ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, com tradições e práticas culturais próprias.                                                            22 No final do século XX, com a inserção do Colégio Quilombola, a comunidade faz uma homenagem a essa mulher guerreira local.

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Figura 5 – Ermelina Ferreira com o seu filho de criação, Antônio Eloir

Fonte: acervo pessoal de Maria Arlete Ferreira da Silva (1950). A constituição da identidade quilombola é

pormenorizada como:

Uma necessidade de luta pela manutenção ou reconquista de um território material e simbólico. Por isso, talvez melhor do que discutir o conceito de território, seja discutir o processo de territorialização dessas comunidades. A territorialidade adquire um valor particular, pois reflete a multidimensionalidade do vivido territorial pelos membros de uma coletividade. Os homens vivem, ao mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações produtivistas e simbólicas. Há interação

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entre os atores, que procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações sociais. O homem transforma a natureza e a natureza transforma o homem (SILVA; NASCIMENTO, 2012, p. 26).

Nesse sentido, ser quilombola implica em ter uma

relação direta com a terra. A luta quilombola possui uma marca predominante: a territorialidade, a qual durante anos foi obstaculizada por impedimentos legais, sociais e econômicos que dificultaram a titulação das terras tradicionalmente ocupadas. Essa configuração vem mudando significativamente nas últimas décadas com a criação de políticas públicas relacionadas a questões étnico-raciais.

Já Santos e Chaves (2007, p. 7) complementam que atualmente

O quilombola enfrenta as condições adversas da vida assumindo uma dupla tarefa (individual e coletiva): garantir a sua sobrevivência (e de sua família) e fortalecer a comunidade na luta contra o preconceito e a discriminação [...]. Os quilombolas mais velhos são os difusores e mantenedores das representações mais antigas e estáveis, a partir das quais são ancorados os novos conhecimentos (SANTOS; CHAVES, 2007, p. 7).

De acordo com Santos e Chaves (2007), a difusão

do conhecimento para o quilombola se dá basicamente pela oralidade. Porém, a tradição oral aqui não remete a uma ingenuidade infantil que se acreditava no início do século XX, conforme aponta Gouveia (2005), remete mais a um comprometimento histórico com a própria comunidade e a resistência quilombola.

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Santos (2010) afirma que ser quilombola não significa viver num refúgio de escravizados fugidos, mas se trata de uma reunião fraterna e livre, com solidariedade e convivência. Alguns teóricos, contudo, ainda definem quilombolas como aqueles homens e mulheres que se recusaram a viver sob o regime da escravidão e desenvolveram ações de rebeldia e de luta contra o sistema escravista.

Essa última definição remete para a época da abolição, quando negros habitaram territórios rurais desocupados ou mantiveram-se nas terras de seus antigos donos, ou ainda, compraram ou receberam terras como pagamento por serviços prestados ao Estado. Esses diferentes grupos, com os fugitivos, deram origem às comunidades quilombolas.

Para Arruti (1997), o reconhecimento da construtividade do quilombola está ligado à plasticidade identitária que marca grande parte das comunidades. Melhor dizendo, marca o seu lugar, ainda que maldefinido tanto com relação às condições de acesso aos seus novos direitos quanto no que tange às condições de exercício de sua nova identidade, a etnogênese. Assim, Arruti (1997, p. 21) afirma que não se trata de recuperar etnias,

mas de produzir novos sujeitos políticos, que se organizam mobilizando uma série de elementos de identidade comum e de caráter localizado que remetem a um mesmo passado de escravidão e submissão, a fim de alcançarem novos recursos, em particular os de natureza territorial.

Os moradores das comunidades da região de Palmas, quando fazem menção ao termo quilombola hoje, relacionam a palavra a laços de guerreiros e de guerreiras, o que aponta para as dificuldades e as conquistas referentes àquele território. O termo

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quilombola, no início do século XXI, está em constante mudança, mas na comunidade a líder quilombola Rosemary Ferreira da Silva Câmara o define da seguinte forma:

Viver minha cultura, minha origem e cultura quilombola, assumindo as minhas raízes e amando tudo o que faço. Ser quilombola hoje pra mim é tudo de bom. Adoro a minha raça e também gosto muito da minha cultura. Ser quilombola pra mim hoje é ser uma vencedora, uma guerreira, fazendo o diferencial dentro daquilo tudo que posso correr atrás na busca pelo conhecimento. Hoje é sim uma vitória ser quilombola (CÂMARA, 2016).

2.2 SABERES DA TERRA - OS QUILOMBOS DA REGIÃO CENTRO-SUL DO PARANÁ

Com base no Art. 2º do Decreto n. 4.887/2003, são

considerados remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

O morador Alcione Silva (2015a), em suas falas, diz o seguinte: “Somos filhos da terra, e nela cultivamos toda a nossa cultura e passado. Sempre vivemos aqui, e aqui é o nosso lugar”.

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Figura 6 – Região do quilombo Adelaide Maria Trindade Batista

 Fonte: acervo pessoal da pesquisadora (2015)

Na comunidade quilombola (Figura 7), o

conhecimento tradicional ou os saberes da terra constituem todo o acúmulo de conhecimento transmitido pelos mais antigos, um acervo sobre o meio onde vivem identificados pelo aprendizado com os antepassados. Para o grupo de trabalho Clóvis Moura (2010), as comunidades tradicionais quilombolas são compostas por parentes próximos, e esses laços familiares estreitos facilitam a troca e o respeito aos costumes dos seus ancestrais.  

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Figura 7 – Localização do município de Palmas, no Paraná

Fonte: WIKIMEDIA (2010). Mapa da localização do município de Palmas. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Parana_Municip_Palmas.svg>. Acesso em: 20 mar. 2016.

Santos (2010) discorre sobre esse tipo de contexto

no qual ocorre um processo de aprendizagem que se inicia desde a infância. Esse movimento de transmissão é apreendido pela convivência e pela sobrevivência no meio. Santos (2010) ainda ressalta que a criança é guiada pela curiosidade, acompanhada pelas experiências narradas pelas pessoas com mais idade. Ela dá conta de referências históricas e míticas que envolvem a própria comunidade, conferindo assim a sua identidade e alteridade.

Esse movimento de aprendizagem leva a um domínio das situações e do próprio corpo, a um conhecimento peculiar da natureza e da relação

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estabelecida com ela para se viver na floresta. Reforça, concomitantemente, saberes que são essenciais para assegurar a essas crianças o seu pertencimento a um grupo, a um coletivo (SANTOS, 2010, p. 301).

As buscas pelo pertencimento nas comunidades quilombolas são contínuas. Na comunidade quilombola do bairro São Sebastião do Rocio, esse processo é claro, e pude observá-lo durante toda a pesquisa de campo. A troca de experiências entre os remanescentes quilombolas dá-se pela movimentação da sua memória local, porém com uma particularidade: por se tratar de uma comunidade quilombola urbana, há momentos em que os descendentes quilombolas apresentam rotinas comuns ao contexto urbano, e há outros em que a dinâmica específica das relações para intenção e o fortalecimento do quilombo sobressaem. Muitas vezes, a cultura urbana ofusca a transmissão dos saberes da terra, mas quando os quilombolas sentem a necessidade de aconselhamentos, buscam a sabedoria dos mais antigos da comunidade, como, por exemplo, a crença no poder das ervas medicinais (Figura 8). Na figura, pode-se observar a narradora quilombola Cida demonstrando com a sua mão o nascimento de uma planta típica do quilombo, classificada como erva medicinal.

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Figura 8 – Ervas medicinais do quilombo

Fonte: acervo pessoal da pesquisadora (2015)

 

No final do século XX, conforme apresenta Tanussa Simas (2013) em seu artigo Quadra23: um estudo sobre descendência negra e a construção da identidade quilombola, os quilombos ganham um novo sentido, e as suas memórias do passado adquirem outra conotação no presente. Essa nova conotação garante que a memória do coletivo contribua na formação da identidade, aliada às noções de territorialidade e pertencimento.

Os saberes da terra estão diretamente correlacionados com a questão de territorialidade. Em

                                                           23 A banca de defesa tem uma dúvida com relação à existência de quadras na comunidade. Ressalto que essa comunidade não apresentou na sua conjuntura atual elementos poéticos da quadra. Porém, no início, uma das narradoras salienta que havia sim um senhor que fazia quadra, só que esse costume foi se perdendo no contexto da cultura local.

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2004, o Programa Brasil Quilombola apresentou algumas normativas para a sua efetivação. Primeiro, ocorre a certificação para depois acontecer a regularização fundiária e, consequentemente, a possibilidade da participação dos direitos dispostos nos eixos descritos no Programa Brasil Quilombola.

Segundo o site do INCRA, a política federal para quilombo está vinculada ao Programa Brasil Quilombola (PBQ), coordenado pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República24 (SEPPIR). Esse programa foi lançado em 2004 com o objetivo de consolidar os marcos da política de Estado para as áreas quilombolas e, como desdobramento, foi instituída a Agenda Social Quilombola (Decreto n. 6261/2007), que agrupa as ações de diversos ministérios voltadas às comunidades em quatro eixos principais: 1) Acesso a Terra; 2) Infraestrutura e Qualidade

                                                           24 Durante o fechamento deste trabalho, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial foi fechada em função do contexto político do impeachment da presidenta Dilma. Um novo panorama acontece no contexto político nacional. A Medida Provisória nº 726, publicada no Diário Oficial da União no dia 12 de maio de 2016, estabeleceu a nova estrutura organizacional da Presidência da República e dos Ministérios que compõem o governo federal. O documento oficializou a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, que foi criado em 13 de outubro de 2015 pela MP 696, com a junção da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR); Secretaria de Políticas para as Mulheres, Secretaria de Direitos Humanos e Secretaria Nacional de Juventude. A secretaria teria sido extinta. Contudo, durante o processo de revisão, a informação que obtive com a nova reforma administrativa, que extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, foi que a SEPPIR permanece na condição de Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, passando a ser vinculada ao Ministério da Justiça e Cidadania. 

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de Vida; 3) Inclusão Produtiva e Desenvolvimento Local; e 4) Direitos e Cidadania. É válido ressaltar que o INCRA é responsável apenas pelo primeiro eixo (Acesso a Terra), ficando os demais eixos da política quilombola sob a responsabilidade de outros órgãos e ministérios. Cabe ainda aos estados e municípios a devida participação nessa política, conforme legislação e atribuições específicas (Figura 9).

Na busca da efetivação do Programa Brasil Quilombola, o primeiro passo é a autoidentificação para a regularização fundiária, o reconhecimento da identidade da comunidade como remanescente de quilombo. A partir daí, são postas em execução ações de proteção, preservação e promoção da própria comunidade. No caso da região de Palmas, as comunidades buscaram a sua certificação com a Fundação Cultural Palmares.

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Figura 9 – Etapas de regularização quilombola no Brasil

 

Fonte: INCRA - Quadro Geral da política de regularização quilombola no Brasil. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/quilombola>. Acesso em: 24 mar. 2016.

Com a certificação das comunidades na Fundação

Cultural Palmares25, segundo a Figura 9, começa a fase                                                            25 Tabela ainda utilizada para a certificação territorial que antecede o panorama politico nacional.

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inicial para a política de regularização quilombola. As comunidades quilombolas da região de Palmas estão gradativamente garantindo esses direitos através da luta das lideranças locais. Uma das consequências foi essa maior visibilidade como comunidades remanescentes de quilombo em diversas pesquisas acadêmicas. Um dado interessante é ressaltar que até o final do século XX as comunidades quilombolas, em algumas pesquisas acadêmicas, eram referenciadas como sendo da região de Palmas. Também são indicadas como Quilombo do Rocio ou Quilombo São Sebastião do Rocio, ainda fazendo menção ao início do quilombo da região.

Porém, com a inserção da política pública para quilombolas, a partir do Programa Brasil Quilombola (PBQ, 2004), lideranças locais reuniram-se e, em comum acordo, decidiram dividir o quilombo em três regiões. Essas regiões foram divididas com base nos bairros e considerando a base estrutural familiar que se instalou no trecho delimitado para cada comunidade, garantindo assim uma melhor estratégia de luta na questão da territorialidade. Um fato histórico relevante que contribuiu para o processo de divisão foi o número expressivo de membros, isso em consequência dos casamentos.

Em 2007, com a certificação fornecida pela Fundação Cultural Palmares (FCP), instaura-se uma nova jornada para esse grupo de pessoas. Na busca por seus direitos, as lideranças locais começam a participar de eventos que abordam a temática quilombola, ressaltando os seus direitos como remanescentes de quilombo. Com a certificação, as comunidades foram reconhecidas com as seguintes denominações: comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista, nº 4117062-IBGE26 e comunidade quilombola Castorina Maria da Conceição, nº                                                            26 IBGE é a sigla para Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O número corresponde à localização geográfica do município.

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41170602-IBGE, ambas consideradas urbanas. A terceira comunidade fica localizada na região rural e foi certificada como comunidade quilombola Tobias Ferreira, nº 4117062-IBGE, em 2013.

A pretensão da titulação territorial levou as lideranças a organizarem associações de moradores nas respectivas comunidades com o propósito de perpetuar os saberes da terra e a luta pela territorialidade. As três comunidades remanescentes quilombolas atualmente estão em fases diferenciadas no processo de reconhecimento fundiário pelos órgãos federais compatíveis, conforme mostra a Tabela 1 e de acordo com a instrução normativa INCRA nº 57, de 20 de outubro de 2009. Apresento nos próximos subcapítulos as origens das nomenclaturas das três comunidades da região de Palmas.

A seguir, um demonstrativo do mapa cartográfico (Figura 10) produzido durante os estudos antropológicos do grupo de trabalho Clóvis Moura (2010).

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Figura 10 – Mapa cartográfico das comunidades quilombolas do município de Palmas

Fonte: NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS DO BRASIL (ALMEIDA, 2010). Croqui da comunidade quilombola do município de Palmas. Disponível em: <file:///C:/Users/User/Downloads/03-Comunidade-Quilombola-Rocio%20(2).pdf>. Acesso em: 10 out. 2015. Utilização do mapa para localizar as comunidades quilombolas por cores.

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2.2.1 Comunidade quilombola Castorina Maria da Conceição

Segundo relatos locais, a comunidade quilombola

Castorina Maria da Conceição está fixada na região desde as expedições iniciais de povoamento, as quais eram nomeadas bandeiras, quando os primeiros moradores criaram o município de Palmas (Figura 7). Essa comunidade aparece no mapa cartográfico com o trecho em azul e está localizada no bairro Fortunato, com a autoidentificação como comunidade tradicional negra. Porém, no dia 16 de abril de 2007, recebe a certificação da Fundação Cultural Palmares, tornando-se assim a comunidade quilombola Castorina Maria da Conceição. Atualmente, busca a sua regularização para usufruir das políticas públicas descritas no Programa Brasil Quilombola.

Primeiro fora nomeada como Fortunato, tendo sido posteriormente registrada como comunidade Castorina Maria da Conceição, na Fundação Cultural Palmares. Essas afirmações foram feitas pelo GTCM (2010), que assinala a origem do nome Castorina Maria da Conceição como uma homenagem à matriarca da comunidade, uma das primeiras moradoras da localidade. Segundo uma das moradoras mais antigas e atualmente uma das transmissoras das narrativas quilombolas, a senhora Maria Trindade Batista (2015), sua avó Castorina Maria da Conceição era “uma matriarca exigente com os seus filhos e netos. Sempre estava de cara fechada, mas pronta para ajudar o próximo”.

O relatório do GTCM (2010) apresenta o quilombo Castorina Maria da Conceição como uma das comunidades negras que fomentam as práticas tradicionais e as tradições religiosas. Em relação à cultura e à tradição, o grupo de trabalho Clóvis Moura ressalta a

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romaria de São Gonçalo27. O GTCM (2010) faz menção também ao grupo de Dança Afro Maria Morena, que se originou em 2001 e se apresentava em vários locais da região.

Essa comunidade também tem o hábito dos ensinamentos costumeiros da lavoura, do cotidiano e da medicina tradicional, como os chás com ervas medicinais de origem africana.

2.2.2 Comunidade Quilombola Tobias Ferreira

A comunidade quilombola Tobias Ferreira aparece

no mapa cartográfico com o trecho em amarelo, somente sendo reconhecida pela Fundação Cultural Palmares no dia 19 de setembro de 2013. A partir dessa data, a comunidade tradicional negra Tobias Ferreira é certificada como comunidade quilombola Tobias Ferreira, recebendo o número 4117602, fornecido pelo INCRA. Atualmente, está buscando a sua regularização para usufruir das políticas públicas descritas no Programa Brasil Quilombola. Há evidências de que a comunidade já teve dois nomes anteriormente: quilombo Lagoão e/ou quilombo Pitanga.

De início, a referida comunidade era conhecida como quilombo Lagoão devido à sua localização na região rural do bairro que possui esse nome. Já relatos de

                                                           27 A descrição está baseada no depoimento da líder quilombola Arlete. “A Romaria de São Gonçalo é uma homenagem a São Gonçalo, um santo considerado milagroso. A romaria que os quilombolas faziam era a Dança para São Gonçalo. Depois da dança, havia comes e bebes. Tinha a Festa de São Gonçalo e depois, à noite, a dança. A Romaria de São Gonçalo e a Dança de São Gonçalo são a mesma coisa. A dança era uma promessa. Os quilombolas davam oito ou dez voltas, conforme a promessa que faziam para o santo. Por exemplo: vou fazer uma promessa para sarar de tal coisa, daí vou ter de dançar a noite inteira”.

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moradores afirmam que a comunidade pertencia ao bairro Pitanga e que antigamente era conhecida como comunidade da Pitanga. Esse nome provavelmente era usado com base em um relato de que antigos negros saíram de uma fazenda conhecida como “Fazenda Pitanga”. Após a libertação, eles se fixavam nos arredores da fazenda, continuando o trabalho naquele mesmo local. O texto do GTCM (2010) pormenoriza situações de sofrimento dos escravizados que viveram nessa região.

No processo de certificação da comunidade, as lideranças locais decidem homenagear o patriarca Tobias Ferreira, um dos primeiros moradores que ali chegaram com as expedições de origem da cidade, em meados de 1836. Segundo relatos dos moradores, Tobias vivera naquelas terras até o fim dos seus dias, vindo a falecer com mais de 100 anos.

No que tange à cultura e à tradição local, o GTCM (2010) observou algumas diferenciações nas práticas cotidianas com o uso de tecnologias utilizadas para a construção civil, além de costumes e de práticas tradicionais. O grupo destaca a dança de São Gonçalo como uma das práticas recorrentes nessa comunidade.

No que diz respeito à religiosidade, no GTCM encontram-se a umbanda, o candomblé e o catolicismo, tendo ainda aqueles integrantes que são evangélicos. Nessa comunidade, há relatos sobre roda de conversa em volta do fogo de chão, ocasião em que eram contadas histórias acerca da comunidade e do sofrimento dos ancestrais. Entre outras curiosidades do costume local, há o cultivo do conhecimento sobre as ervas medicinais utilizadas para tratamentos de saúde (GTCM, 2010). De acordo com dados fornecidos pelos relatos e confirmados pelos estudos do GTCM (2010), logo após a libertação dos escravizados, a violência com os negros ainda era presente na região, principalmente com aqueles que

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viviam nos arredores do lugar. Porém, muitos resistiram e hoje moram na região do bairro Lagoão. As memórias narradas sobre esse período mostram o orgulho pela resistência e pela luta. As narrativas remetem aos antigos, que são lembrados pelos mais novos.

2.2.3 Comunidade Adelaide Maria Trindade Batista

A comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade

Batista foi a primeira a ser registrada no cartório de Palmas, já na certificação na Fundação Cultural Palmares. Recebe a sua certificação em 2007 (Figura 7) e aparecem no mapa cartográfico no trecho em verde, sendo a mais referida em pesquisas acadêmicas, a que demostra as lutas e as conquistas de seus moradores. A quantidade expressiva de pesquisas pode ser devido à circunscrição das escolas municipais Tia Dalva e São Sebastião, e também pela luta das lideranças locais conquistam o primeiro colégio estadual quilombola do Estado do Paraná. Mas pode também ser devido à localização inicial do quilombo da região de Palmas, nos arredores da igreja São Sebastião (Figura 11). Tudo indica que as efetivas lutas das lideranças locais projetaram a comunidade.

Essa comunidade foi a escolhida para a pesquisa, pois nela estão as narradoras quilombolas de que trata o trabalho.

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Figura 11 – Maquete da antiga igreja do bairro São Sebastião do Rocio

Fonte: acervo pessoal de Maria Arlete Ferreira da Silva (1980)

Sobre a origem do nome da comunidade, as

lideranças locais relatam que ele está relacionado com o próprio bairro, sendo uma homenagem a uma das primeiras moradoras locais, a escrava Adelaide Maria Trindade Batista. Em diversas narrativas, é feita a menção sobre a vinda de Adelaide com as primeiras expedições do Rio Grande do Sul, que chegaram e se instalaram na região onde hoje é o município de Palmas. Adelaide trouxe consigo seus símbolos e os santos que são venerados até a atualidade. Já um homem que se tornou morador do quilombo trouxe o costume da culinária.

Meu avô lutou na Guerra do Paraguai, lutou na Guerra dos Farrapos e fugiu pra

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ingressar nas expedições das bandeiras28, nessa expedição das bandeiras ele se tornou o cozinheiro oficial. Essa expedição foi patrocinada pelo Zeca Santos29, filho de José Ferreira dos Santos (SILVA, 2015b) (Arlete).

A Figura 12 ilustra um caldeirão que era utilizado

para fazer a comida na comunidade quilombola: Figura 12 – Caldeirão que pertenceu a um dos primeiros moradores do quilombo

Fonte: acervo pessoal de Maria Arlete Ferreira da Silva (2000)

                                                           28 No município de Palmas, ocorreram duas expedições das bandeiras, sendo chefiadas uma por José Ferreira dos Santos e a outra por Pedro dias Cortez. Os grupos tinham na época autorização do Estado de São Paulo para povoar os campos de Palmas. 29 Pelas induções e considerando-se onde ficou localizado o quilombo, tudo indica que a maioria dos negros veio com as expedições de José Ferreira dos Santos. A fazenda dele tinha como divisa do quilombo três rios: rio Caldeira, rio bandeira e rio Chopim.

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Amplia-se a articulação do movimento quilombola dos moradores daquela região pela busca da sua identidade e de suas raízes e, consequentemente, dos direitos territoriais e artísticos na comunidade.

No tocante à organização territorial quilombola, relatos de moradores indicam que efetivamente os primeiros conflitos aconteceram na metade do século XX. A mudança de caracterização dessa comunidade quilombola, que até então era rural, começa por causa da gestão pública local, já que foram colocados novos moradores naquela região. Para Arlete Silva (2015b), “com a vinda dessas famílias, começa uma nova realidade para a comunidade quilombola, as pessoas se obrigam a mudar suas criações de animais e plantações”.

A comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista se torna uma área urbana do município de Palmas, e normativas da vigilância sanitária local passam a vigorar na localidade, como, por exemplo, a proibição da criação de animais. Assim, os moradores antigos da localidade, os remanescentes de quilombo que tinham uma vida de costumes vinculados com a terra, começam a procurar outros tipos de trabalho para sua sobrevivência. O trabalho profissional dos quilombolas, historicamente sob responsabilidade dos homens, sempre estava relacionado a serviços pesados, pois eles construíam as sedes das fazendas com pedras e cercas de taipas30, que dividiam as terras. Alguns relatos também especificam que antigamente alguns homens exerciam nas fazendas os papéis de capatazes e tropeiros, sendo que um número reduzido deles tinha o seu pedaço de terra para poder criar animais. Com o contato urbano, atualmente alguns

                                                           30 Taipa, segundo os quilombolas, é uma cerca feita com pedras grandes catadas no campo. Era utilizada para dividir as fazendas. Segundo relatos, havia um morador chamado “Seu” Germano que construía tudo de pedras, usando-as para dividir hortas, açudes, etc.

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homens ainda continuam a fazer trabalhos relacionados com a lida do gado, porém como responsáveis por fazendas ou mesmo chácaras da região. Já outros homens fazem diversos serviços: atuam como caminhoneiros, no setor administrativo público ou privado, em madeireira, ou ainda como professores, vendedores e músicos. As mulheres no passado sempre trabalharam em serviços domésticos. Até meados dos anos 1970 ainda se encontravam algumas mulheres lavando roupa nos rios de joelho, na tábua. Elas passavam e engomavam a roupa com ferro a brasa ou trabalhavam para as famílias na cidade31.

Hoje ainda existem alguns costumes similares a esses. Em muitas casas, algumas mulheres continuam lavando roupa para fora, mas de maneira diferente, agora elas lavam as roupas em tanquinhos e centrífugas. Estão adequando-se às novas tecnologias, porém ainda utilizando de alguma maneira o antigo costume de lavar roupa para fora e um pouco do trabalho braçal. Ao indagar sobre a situação de lavar roupa utilizando pouca tecnologia, algumas senhoras me explicaram que a máquina de lavar roupas não limpa tão bem como o tanquinho.

Atualmente, também ainda encontramos homens que preservam o costume da lida com os animais, e o que antes era uma obrigação passa a ser uma rotina no momento de lazer. Um costume comum entre homens e adolescentes é o de laçar uma vaquinha empalhada guiada por uma moto, simulando o gado correndo. Quando indagados sobre esse costume, eles o relacionam com uma prática esportiva. A laçada consiste em um nó ou laço corrediço que se desmancha facilmente ao lançar o seu objetivo, no caso a vaquinha empalhada,                                                            31 Segundo os quilombolas, as pessoas que moram no centro da cidade eram nomeadas de “famílias da cidade”.

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que é guiada por um guincho de uma moto. Basicamente, consiste no cavaleiro montado no seu cavalo girando um laço, que é lançado quando fica próximo à vaquinha mecânica guiada por uma moto. Muitos participam de rodeios da região, representando a comunidade quilombola, e essa “prática esportiva” contribui para a preparação dos participantes assim como para entretenimento dos brincantes. Figura 13 – Moradores antigos da região na manifestação cultural, a Festa de São Sebastião

 

Fonte: acervo pessoal de Maria Arlete Ferreira da Silva (1960)  

De acordo com dados fornecidos por membros da comunidade, a prática de preparação para tornar-se uma liderança sempre foi e ainda é um costume local. A liderança mais idosa é responsável pela transmissão dos

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saberes da terra. Historicamente, em conformidade com o Projeto Político-Pedagógico (PPP, 2014) do Colégio Quilombola, a primeira líder do quilombo foi Adelaide Maria Trindade Batista32, que durante a sua vida preparou outras lideranças para assumir o seu posto, pois tinha que não só cuidar da comunidade como também da igrejinha. Logo após o seu falecimento, assumiram a liderança do quilombo e da igrejinha, respectivamente, Maria Joana Ferreira e a segunda Maria Adelaide, que teve o sobrenome de Ferreira da Silva, e era nora da primeira Adelaide. E assim vem acontecendo a sucessão na comunidade. Com relação à mudança de lideranças, Dona Arlete discorre que:

Foi quando a segunda Adelaide33 assumiu a liderança da igreja e do bairro que marcou uma diferença, pois a mesma aprendeu com sua sogra como liderar com amor, conservando sempre os costumes e ensinando os mais novos. Adelaide nunca teve filhos com Joaquim, mas criou seus sobrinhos, filhos de Sebastião Silveira, irmão de Joaquim, que são filhos de Adelaide primeira. Criou Auri Silveira, que mora hoje em Guarapuava, Alcides Silveira, que veio a ser esposo de Ermelina, filha de Maria Joana e José Ferreira. Os netos de Adelaide Maria Trindade Sebastião e o seu irmão Auri foram terminados de ser criados pela segunda Adelaide (nora) (SILVA, 2015b) (Arlete).

                                                           32 A escrava vinda das expedições do Rio Grande do Sul, primeira Adelaide. 33 A segunda Adelaide se chamava Maria Adelaide Ferreira da Silva, filha de Maria Joana e de José Ferreira. O nome que lhe fora dado era uma homenagem à sua avó.

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Atualmente, a responsabilidade de transmissão dos saberes locais está em torno principalmente da líder Maria Arlete Ferreira da Silva, a qual não só é responsável pelo quilombo em seu conjunto, mas também pela igreja local. Na comunidade, prevalece na grande maioria a religião católica. Esse dado é relevante, pois, devido aos ensinamentos da primeira Adelaide, esse cuidado com a paróquia seria uma tradição quilombola local. A líder Maria Arlete cita que recebeu todos os ensinamentos religiosos e costumes tradicionais do quilombo na forma oral, e geralmente nas suas narrativas frisa a importância da liderança mais antiga. Presenciei momentos em que a líder mais antiga aconselha outras lideranças no cuidado com a igreja e com seus pertences, a parte material da igreja.

O processo de aprendizagem da líder Maria Arlete iniciou efetivamente na sua adolescência (Figura 14)34, quando recebeu ensinamentos sobre a comunidade com a sua avó, sua tia Maria Adelaide (segunda Adelaide) e sua mãe Mila (Ermilina Ferreira). Destaco a importância da memória oral na comunidade quilombola, pois os detalhes que descrevem os momentos que Maria Arlete recebeu seus ensinamentos religiosos são de uma precisão que até parece que o ouvinte está vivenciado aquilo. A líder, muitas vezes emotiva, faz gestos com braços para demonstrar algumas características da sua avó, sua tia e sua mãe. Destaca ainda que, para ser uma líder quilombola religiosa, teve de aprender a dobrar, engomar e passar as toalhas da igreja. Até o presente momento todas as líderes são católicas

                                                           34 Da esquerda para a direita: atrás são seus tios, mãe e tia Laida. Maria Arlete está sentada.

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Figura 14 – Registro familiar de moradores do quilombo

Fonte: acervo pessoal de Maria Arlete Ferreira da Silva (1960)

No plano político-pedagógico (PPP, 2014) do

colégio quilombola, a líder Maria Arlete é referida como transmissora da história de luta dos antigos para a sua geração: “Muda-se a forma de viver, mas não se pode perder a tradição” (SILVA, 2015b) (Arlete). O documento assinala que a comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista não perdeu as suas origens e perpetua a transmissão dos seus saberes através das lideranças locais mais antigas.

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Acerca das atividades culturais locais antigas, o PPP (2014) aponta o carnaval, a catira, o artesanato, o boi de mamão, o jogo de escopa e, na Quaresma, a Matraca35 para a Recomenda das Almas – foi a maior recorrência que encontrei – e a festa de São Sebastião36. Porém, logo adiante, a líder cita que essas manifestações culturais foram se modificando e se adaptando à nova realidade, prevalecendo apenas a festa de São Sebastião, uma antiga celebração composta de três bailes:

Na sexta-feira, era dos brancos, no sábado só dos pretos, e no domingo todos dançavam. Os bailes não acontecem mais, pois hoje vieram para o bairro de São Sebastião do Rocio outras famílias de várias etnias, que não conhecem e não valorizam a tradição negra [...]. E daí no domingo, no baile, os fazendeiros iam pedir autorização para a vovó Adelaide. Eles queriam dançar com as moças negras da comunidade (SILVA, 2015).

Atualmente, o festejo ocorre apenas durante o dia

como uma homenagem a São Sebastião, em 20 de janeiro, ainda conservando a cultura da dança e da

                                                           35 Matraca: instrumento de madeira com que os antigos, ou mascates, anunciavam-se nas ruas e nos caminhos. 36 Essa configuração da festa de São Sebastião do Rocio tem semelhanças com o movimento que ocorreu no mesmo período na África, na metade do século XX, o sistema da Apartheid – o “desenvolvimento separado” ou “liberdade separada”. Com o tempo, começam as mudanças no discurso, uma verdade velada, com os afrikanders, que basicamente iniciam os seus direitos como negros e desenvolvem a sua própria nação, tal como os brancos faziam. Não seriam mais considerados inferiores, apenas diferentes. Colaborando com essa afirmação, os moradores citam pessoas mal-intencionadas que praticavam atos de vandalismo e de violência, modificando assim uma tradição local.

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música. Os alimentos presentes na festa são oriundos da mandioca, do feijão, do milho, da abóbora, da batata e da costela fogo de chão.

Durante os festejos em homenagem ao padroeiro da comunidade quilombola, acontecem uma procissão e uma missa especial, as quais são finalizadas com um churrasco, jogos e um ‘matibaile’37 no período da tarde. Nos nove dias que antecedem a festa, é realizada uma novena38. Muito tempo atrás, contavam os antigos, não havia padres na localidade. Quem rezava a missa era um “preto velho”39, o qual chamavam de Capelão. O nome dele era João Rezador.

No início do século XXI, surge a música Ilê Pérola Negra, também conhecida como O canto do Negro, gravada por Daniella Mercury, uma nova roupagem de duas composições distintas: O Canto do Negro, de Miltão, e Pérola Negra, de Guiguio e Rene Veneno. Nesse ínterim, os versos da canção Tens o brilho tão forte, por isso te chamo de pérola negra ecoaram na comunidade Adelaide Maria Trindade Batista, surgindo o grupo de dança Pérola Negra (Figura 15).

                                                           37 Matibaile, segundo os quilombolas, é um baile que acontece durante o dia. É também chamado de domingueira, era realizado nas casas dos quilombolas. 38 Novena é uma prática católica que consiste em encontros para orações, realizados durante o período de nove dias consecutivos. 39 Preto velho, segundo os quilombolas, era um apelido para o senhor com mais idade, responsável pelas orações na comunidade. Lembro aqui que preto velho também é o nome dado na umbanda para uma entidade, um espírito que se apresenta em corpo fluídico de velhos africanos que viveram nas senzalas majoritariamente como escravizados e morreram no tronco ou de velhice. O preto velho adora contar as histórias do tempo do cativeiro. Provavelmente, para que continuassem os costumes africanos e o respeito na inserção da religiosidade local, os primeiros moradores ainda tinham o preto velho, pois na região não havia padre na igreja São Sebastião.

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Figura 15 – Grupo de Dança, o início40

Fonte: acervo pessoal de Maria Arlete Ferreira da Silva (1995) 

Até o presente momento, o grupo apresentou três fases: inicia na Escola Municipal São Sebastião do Rocio. Posteriormente, é formado apenas por integrantes mulheres (as mulheres quilombolas da comunidade). E hoje está formado por integrantes adolescentes e pré-adolescentes do colégio estadual quilombola e da comunidade.

O grupo Pérola Negra surge no final do século XX, com as mulheres quilombolas, sob a responsabilidade de Auriane Boeze da Silva Moreira e Isabel Cabral Silva.

                                                           40 Alunos da escola municipal São Sebastião dos anos 1980, século XX. Grupo de dança da escola.

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Nesse período, participavam do grupo somente mulheres quilombolas e suas herdeiras.

Em 2012, novamente o grupo passa por mudanças, iniciando a terceira fase sob a responsabilidade de uma esposa de quilombola, a coreógrafa Luciane Silva. Nessa terceira fase, as mulheres saem de cena, agora participando apenas as adolescentes quilombolas e as pré-adolescentes.

Atualmente, o grupo é dividido em dois: (1) o grupo 1 é formado por pré-adolescentes, do qual participam meninas de 10 a 14 anos; e (2) o grupo 2 é composto por adolescentes maiores de 15 anos. No total, o grupo Pérola Negra possui 37 integrantes que dançam músicas africanas e afro-brasileiras. O intuito do grupo é resgatar a cultura dos ancestrais da comunidade e promover a integração de todas as meninas, como também das moças da comunidade quilombola. Na figura a seguir, Apresentação do grupo no Centro Cultural Dom Augustinho, em Palmas-PR. 

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Figura 16 – Grupo de Dança Pérola Negra41

Fonte: acervo pessoal da coreógrafa Luciane Silva (2015)

Outro dado marcante da comunidade é a tradição do nome Maria. O costume teve início com a primeira Adelaide Maria, que tinha o nome composto. Como sinal de respeito à religião católica42, muitas quilombolas colocavam em suas filhas esse nome, em homenagem à mãe de Deus. Geralmente, as meninas da comunidade têm o primeiro ou o segundo nome Maria. Fica clara essa tradição com as netas de Maria Joana, que possui Maria como primeiro nome.

                                                           41 Apresentação no Centro Cultural Dom Augustinho, em Palmas-PR. 42 Aqui é algo que vale a pena esclarecer, visto que a banca ficou em dúvida no que tange ao conflito com a igreja. Naquilo que me foi relatado, não há um conflito explícito com relação à igreja. Ao contrário, esses negros quilombolas estão inseridos nos vários serviços e processos religiosos. A maioria deles estão envolvidos com os fiéis da igreja.

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3 OS SABERES DA TERRA43 - REMINISCÊNCIAS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA ADELAIDE TRINDADE BATISTA

A partir desse momento, apresento ao leitor

reminiscências relevantes sobre a comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista. Seus traços e seu marco histórico devem-se à veemência dos seus moradores e das suas lideranças locais. Disserto sobre a região e sobre os seus espaços de socialização tendo como base relatos de moradores da comunidade Adelaide Maria Trindade Batista e de teóricos como Alves (2013), Bauer (2002), GTCM (2010), Machado (2004) e Rodrigues (2012).

A localização territorial auxiliou as marcas presentes na referida comunidade quilombola no que diz respeito à sua rotina e aos seus espaços de transmissão do conhecimento tradicional ou saberes da terra. Esses espaços podem ser definidos como todo acúmulo de conhecimento transmitido oralmente pelos antigos habitantes do lugar. Na comunidade, os moradores comentam que as mulheres sempre foram as responsáveis pela transmissão do conhecimento, as quais

                                                           43 Saberes da terra é uma terminologia que os moradores da comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista utilizam para os ensinamentos repassados de geração para geração, valorizando o seu entorno e os seus pares. Já o MEC lança o Programa ProJovem Campo – Saberes da Terra, que tem como finalidade proporcionar formação integral ao jovem do campo por meio de elevação de escolaridade, tendo em vista a conclusão do ensino fundamental com qualificação social e profissional, bem como potencializar a ação dos jovens agricultores para o desenvolvimento sustentável e solidário de seus núcleos familiares e de suas comunidades por meio de atividades curriculares e pedagógicas, em conformidade com o que estabelecem as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo – Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002.

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nomeio neste trabalho dissertativo de narradoras quilombolas.

Para o grupo de trabalho Clóvis Moura (GTCM, 2010), os saberes da terra são indicados pela preservação da cultura, que reúne um verdadeiro universo de tradições. Contudo, no ano de 2005, essa terminologia já tinha sido utilizada pelo Ministério da Educação (MEC) com o Programa Saberes da Terra, o qual posteriormente também ficou conhecido como Escola da Terra. O intuito do programa é a promoção das condições de acesso, permanência e aprendizagem dos estudantes do campo e quilombolas em suas comunidades por meio do apoio à formação de professores, fortalecendo as escolas de comunidades quilombolas como espaço de vivência social e cultural, como veremos mais adiante.

Com relação às reminiscências da região, os pesquisadores Alves (2013), Bauer (2002), GTCM (2010) e Nascimento e Ferreira (2009) citam que os primeiros afrodescendentes que se estabeleceram em Palmas vieram do Rio Grande do Sul acompanhando as bandeiras44 dos fazendeiros Zacarias Corte e José Ferreira dos Santos. Conforme Nascimento e Ferreira (2009), os afrodescendentes iniciaram a comunidade na região, além dos escravizados que vieram libertos, como é o caso de uma das fundadoras da comunidade de que se tem conhecimento, a ex-escrava Adelaide Maria Trindade45.

                                                           44 As Bandeiras, nome que recebiam as expedições organizadas por particulares, ou Entradas, expedições oficiais financiadas pela Coroa, de início visavam à captura dos índios para uso de sua mão de obra nas plantações. Os bandeirantes embrenhavam-se na mata, geralmente seguindo o curso de rios, abrindo trilhas e vez ou outra fixando postos de descanso que, mais tarde, viriam a dar origem às cidades. 45 Com o crescimento do bairro São Sebastião do Rocio, os líderes dividem o grupo em três famílias, transformando assim esse bairro

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Maria Arlete Ferreira da Silva relata que a sua tia Adelaide não só trouxe a imagem de São Sebastião (Figura 17)46 como também o fortalecimento da fé dos moradores do lugar, identificando o bairro com o nome do santo:

Figura 17 – Imagem do Santo São Sebastião

Fonte: acervo pessoal da moradora Maria Arlete Ferreira da Silva (1990)

Tia Adelaide trouxe com ela a imagem de São Sebastião, São Benedito e Nossa Senhora dos Remédios, pois os negros e os fazendeiros eram muito devotos desses santos e ainda o são, porque São Sebastião

                                                           em três comunidades quilombolas. Uma das comunidades leva o nome de uma das fundadoras, homenageando a ex-escrava Adelaide Maria Trindade Batista.

46 Imagem do santo trazida pela ex-escrava Adelaide Maria Trindade Batista, o qual deu origem ao nome do bairro e da igreja local. A foto é do acervo da igreja São Sebastião.

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é o protetor das criações, livra os animais da peste, das matas, as pessoas de todo os males do corpo e da alma (SILVA, 2015b)47.

Os autores Bauer (2002) e Nazaro (1999) também

indicam que, logo depois das expedições das bandeiras, chegaram mais escravizados fugidos da Revolução Farroupilha, que estava em andamento no Rio Grande do Sul. Há relatos de moradores que dizem que, naquele período, os seus ascendentes que eram escravizados recebiam convites para se juntar à luta na região do Contestado, como também muitos fugidos da Guerra do Paraguai, da qual vinham em busca da promessa de serem libertos.

Com relação aos limites territoriais da comunidade, a moradora Maria Arlete Ferreira da Silva (SILVA, 2015b) descreve que o limite era o rio Caldeira. Ela conta que ouvia os mais velhos dizendo que o rio Caldeira servia de divisa, de limites: “Do lado de cá, ficaram os negros, e do lado de lá, os fazendeiros brancos”.

Nascimento e Ferreira (2009) defendem a ideia de que, provavelmente, os escravizados que viviam nas diversas fazendas de Palmas tinham como trabalho a lida com o gado48 ou os serviços domésticos, como, por

                                                           47 A partir deste momento, identifico os entrevistados também pelo nome devido à variedade de sobrenomes Silva. As comunidades quilombolas se caracterizam por ser da mesma família. Com isso, entrevistei diversos familiares e assim, para melhor compreensão do leitor, utilizo o sobrenome e o nome da pessoa entre aspas. 48 No comércio de carne (BAUER, 2002; NAZARO, 1999), é criada a necessidade de expansão produtiva. Alguns historiadores como Rodrigues (2012), Roderjan (1992) e Silva (2006) fazem menção ao trabalho quando citam a abrangência da extensão geográfica do município de Palmas, que no princípio compreendia também o atual oeste catarinense. Em sua fase de colonização pioneira, mesmo que tardia, os fazendeiros reproduzem o modelo socioeconômico de base escravista, incorporando características próprias da região.

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exemplo, lavar roupas para fora – antigamente, as mulheres lavavam roupas para fora na beira do rio Passo (Figura 18)49. Segundo os autores, esses habitantes “tinham um relacionamento estreito com os ex-escravizados da comunidade de São Sebastião do Rocio, ou do Rocio dos Pretos” (NASCIMENTO; FERREIRA, 2009, p. 3).

                                                           49 Chamo a atenção para o fato de que a banca de defesa da dissertação faz menção a crianças brancas na fotografia das lavadeiras. Muitas pessoas da comunidade casaram com outras etnias, um processo natural no convívio social. Agradeço a banca por ressaltar esse fragmento visual que, para a presente pesquisadora, foi descontruído durante o processo de pesquisa em diversos momentos de convivência com a comunidade. As lideranças locais sempre ressaltaram a ideia de que numa comunidade “nem todo negro é quilombola e nem todo quilombola é negro. Mas afrodescendentes todos são”.

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Figura 18 – Moradoras do bairro São Sebastião do Rocio lavando roupa na beira do rio Passo

Fonte: acervo pessoal da moradora Maria Arlete Ferreira da Silva (1970)

Outro dado interessante sobre os antigos

moradores da comunidade, alguns deles representados na Figura 13, é que os primeiros habitantes da região eram das famílias Ferreira, Batista, Lima, Silva, Silveira e Santos, tanto que hoje, para receber a certificação de quilombola50, os descendentes devem comprovar que são oriundos de uma dessas famílias.

Conforme dados históricos, outro fato marcante dessa região foi a guerra civil, que ficou conhecida como a Guerra do Contestado, a qual Machado (2004) identifica                                                            50 A certificação quilombola é utilizada para que os descendentes possam participar de políticas públicas voltadas a quilombolas e negros.

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como um movimento rebelde, fruto da marginalização crescente dos caboclos e negros. Figura 19 – Foto de antigos moradores do quilombo durante a Festa de São Sebastião, manifestação cultural da comunidade

Fonte: acervo pessoal de Maria Arlete Ferreira da Silva (1960)

Para o dramaturgo paranaense João Luiz Fianni

(2011), na sua peça O Contestado - A Guerra dos Fanáticos, a voz da população está diretamente ligada ao personagem “Homem”, situando todas as pessoas sobre todos os fatos omitidos pela imprensa da época:

HOMEM - A imprensa da época tinha coisas mais importantes pra se preocupar. A guerra, lá na Europa, era a notícia. E depois, o que são 20 mil camponeses mortos... Aqui, entre o Paraná e Santa

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Catarina! Pra eles, isso era nada! Mas não pra nós, que devemos pensar o passado e compreender o significado de cada vida perdida! A Guerra do Contestado foi. E do jeito que veio, deixou cicatrizes profundas num povo marcado pelo sofrimento! Aprender a respeitar nossas raízes, entender cada momento que construíram nossa história, é obrigação de cada um de nós. Contestar é um verbo transitivo... Contestar é recusar o reconhecimento de um direito: contestar uma sucessão. Pôr em discussão a justeza ou a veracidade de uma coisa; negar, objetar (FIANNI, 2011, p. 1).

O personagem “Homem” representa e anuncia a voz do povo em diversos momentos da peça, contestando a sucessão de fatos omitidos pela imprensa da época. Já as cicatrizes profundas de um povo marcado pelo sofrimento e que busca apenas o direito e o respeito por suas tradições, o teatrólogo Fianni (2011) representou muito bem com o personagem Adeodato, nome de um dos principais líderes caboclos do Contestado, o qual o dramaturgo indica como sendo um afrodescendente: “Isso está acontecendo! As raízes destruídas uma a uma [...]”. E continua logo depois: “Eu não vou sair daqui... Só morto!”.

Paulo Pinheiro Machado (2004), no texto Lideranças do Contestado: a formação e atuação de lideranças caboclas, comenta sobre o negro Adeodato como personagem histórico e um dos principais líderes do conflito. Ao ser julgado, Adeodato recita uns versos que provavelmente devem ter sido em trovas, afirmando valentia e orgulho de seu pertencimento étnico:

Sô iguar a pica-pau Que quarqué madera fura Sô nas carta o Rei d´Espada

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Desafora não atura Sô qui nem toro de briga Por nadinha armo turra, Nego bão da minha raça Não tem chão que se apura. (MACHADO, 2004, p. 319)

Com relação aos dados expostos ancorados nas suas ancestralidades, o negro Adeodato em seu verso finaliza: “Nego bão da minha raça, não tem chão que se apura”. Adeodato representa o grupo de negros da região de Palmas, e faço um paralelo com as descrições do grupo de trabalho Clóvis Moura (2010), que cita que esse grupo étnico tem especificidades como a prática de ensinamento. O grupo de trabalho Clóvis Moura (2010) cita essa prática como uma pedagogia de ensinar e de aprender, como o ato de transmitir o conhecimento de forma geracional, do mais velho para o mais novo, na convivência do cotidiano na comunidade. Possivelmente, as trovas da região centro-sul do Paraná foram se modificando para um ato de narrar e caracterizam atualmente as mulheres, as “Marias” de São Sebastião.

Nessa localidade, a preocupação da área ancestral é marcante, como no caso da narrativa do senhor Alcione Ferreira da Silva51, que afirma:

[...] a nossa comunidade surgiu lá por meados de 1836 a 1839, veio vindo o nosso povo pra cá. Na época, uns vinham de Guarapuava, naquele descobrimento, quando vieram descobrir Palmas, outros vieram do Rio Grande do Sul, na época em que teve aquela guerra, uns vieram meio

                                                           51 Entrevista concedida à Carine Xavier, em 27 de maio de 2015, na cidade de Palmas/PR.

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fugidos pra cá, e teve uns que vieram na frente desmatando, abrindo as picadas com as bandeiras de Zacarias Corte e José Ferreira dos Santos [...] O nosso povo veio vindo e aqui foi ficando neste lugar, onde foi formando nossa comunidade (SILVA, 2015a).

As informações se complementam, os fatos

históricos contidos na peça do teatrólogo paranaense Fianni (2011), a presença do negro nas articulações da Guerra do Contestado descritas por Machado (2004) e o trecho retratado pelo presidente de uma das comunidades quilombolas local, tudo aponta para a luta pelo território e para a organização do espaço que hoje é conhecido como quilombo, na região de Palmas, mais precisamente na comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista.

Essa comunidade quilombola está localizada no bairro São Sebastião do Rocio, posicionado na região leste do município de Palmas. Ele é considerado um dos primeiros bairros da cidade, tendo sido criado pela Lei Municipal nº 10.020/91.

De acordo com Marques (2008), São Sebastião do Rocio era conhecido vulgarmente como o “bairro dos pretos” ou o “bairro dos negros”. A autora afirma que seus moradores preservavam a terra como um bem precioso e que deveria ser explorada para consumo próprio.

Com o tempo, o bairro modificou-se devido à expansão da cidade, principalmente a partir de 1980. A transformação é nítida em virtude da alocação de muitas famílias para o bairro São Sebastião do Rocio, na região chamada do baixo Rocio e que, segundo moradores, foi uma estratégia dos governantes para não prejudicar o embelezamento de algumas regiões da cidade: deslocar as famílias desprovidas para a região dita periférica. Os habitantes locais começam a ter de mudar a sua realidade cotidiana, que até então girava em torno do cultivo da

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terra. Com a alocação e a aproximação da sede do município, o bairro, que era rural, foi se urbanizando. O tempo passou, ocorreram casamentos entre familiares e pessoas da cidade e, consequentemente, a comunidade quilombola cresceu, surgindo novas oportunidades para as pessoas negras.

Entre as mudanças nessa conjuntura que se instaura, aconteceu a busca por novas profissões, conforme os relatos das pessoas residentes no bairro. Muitas mulheres mudaram o ramo profissional e saíram do serviço doméstico, passando a estudar e a ter outras profissões: professoras, funcionárias públicas, atuantes nas áreas de administração e saúde, além de algumas passarem a atuar em empresas privadas.

Atualmente, a comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista fica a uma distância de quatro quilômetros da sede municipal. Tem como acesso principal uma rua pavimentada de pedras. No bairro São Sebastião do Rocio, moram cerca de 4.200 habitantes (IBGE, 2012), entre os quais uma média de 200 famílias que se intitulam como “remanescentes de quilombo”. Seus líderes reivindicam desde 2005 o direito de serem reconhecidos como quilombolas. Os moradores apontam como principal preocupação a busca por território e o pertencimento à identidade dos descendentes de escravizados e ex-escravizados que fundaram o quilombo.

3.1 ESPAÇOS DE TRANSMISSÃO DOS SABERES DA TERRA

Os espaços de transmissão dos saberes da terra

são caracterizados por locais de socialização quilombola: a casa, a igreja e, atualmente, o colégio. Trata-se de uma prática cultural marcada efetivamente pela oralidade,

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numa busca paulatina de reconstrução da identidade dos habitantes quilombolas. A transmissão dos saberes da terra é referida pelos moradores como sendo a transmissão de conhecimento entre gerações, como muitas vezes alguns moradores narram “dos antigos”, de modo que os atuais quilombolas tenham orgulho das suas raízes.

Nessa linha de pensamento, encontramos Laraia (2013), que discorre sobre a cultura como um comportamento dos indivíduos que depende de um aprendizado, em um processo chamado endoculturação. Basicamente, a endoculturação consiste na aprendizagem cultural iniciada com a assimilação de experiências a partir do nascimento de um indivíduo e que se completa com a morte. É um aprendizado que ocorre através da comunicação oral, em que a criança recebe informações sobre todo o conhecimento acumulado pela cultura que vivencia.

Nesse sentido, a comunicação pode ser caracterizada como um processo cultural diretamente relacionado com a herança cultural, desenvolvido através de inúmeras gerações. Laraia (2013) alerta que a cultura é dinâmica, sendo dois os tipos de mudança cultural: (1) a primeira é predominantemente interna, resultante da própria dinâmica do sistema cultural, e (2) a segunda é resultado do contato de um sistema com outro sistema cultural. A linguagem é um produto da cultura (LARAIA, 2013), e não existiria cultura se o homem não tivesse a possibilidade de desenvolver um sistema articulado de comunicação oral.

Segundo Ong (1998, p. 22), a comunicação oral sempre existiu “sem qualquer escrita, mas nunca escrita sem a oralidade”. Para o autor, a oralidade básica da linguagem é constante. O autor continua afirmando que a fala é inseparável da nossa consciência, trazendo à tona

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reflexões importantes sobre a oralidade desde sempre. Numa cultura oral, a redução das palavras a sons determina não apenas os modos de expressão, mas também os processos mentais. E para este teórico,

O pensamento prolongado, quando fundado na oralidade, até mesmo nos casos em que não se apresente na forma de versos, tende a ser altamente rítmico, pois o ritmo auxilia na recordação, até mesmo psicologicamente. Jousse (1978) demonstrou a íntima ligação entre padrões rítmicos orais, processo de respiração, gesticulação e simetria bilateral do corpo humano [...] (ONG, 1998, p. 45).

Quanto mais complexo o pensamento oralmente padronizado, maior a probabilidade de que seja caraterizado por expressões fixas, utilizadas com habilidade. Para Ong (1998), a cultura oral é uma experiência intelectualizada mnemonicamente, estimulada pela fluência, pelo excesso e pela loquacidade. Numa cultura oral, o conhecimento conceitual que não é reproduzido em voz alta logo desaparece. Assim,

A originalidade narrativa reside não na construção de novas histórias, mas na administração de uma interação especial com sua audiência, em sua época – a cada narração, deve-se dar à história, de uma maneira única, uma situação singular. [...] haverá tantas variantes menores de um mito quantas forem as repetições dele, e a quantidade de repetições pode aumentar indefinidamente. Poemas encomiásticos52

                                                           52 Poesia encomiástica: poemas que louvam ou contêm louvor. Os narradores também introduzem novos elementos em velhas histórias.

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de líderes exigem um espírito empreendedor, pois as velhas fórmulas e os velhos temas devem interagir com novas e muitas vezes complexas situações políticas. Porém, as fórmulas e os temas são antes remodelados do que suplantados por novo material (ONG, 1998, p. 53).

Ong (1998) discorre também que a narrativa oral é

muitas vezes caracterizada por uma descrição entusiástica da violência física. Para tal, toda comunicação verbal deve ser feita com personagens, do enredo narrativo oral, nas culturas orais ou residualmente orais. Ong (1998) situa que o enredo está no conhecimento imerso na vida cotidiana, num contexto de luta.

Muitas das culturas orais ou residualmente orais – senão todas –impressionam as pessoas pertencentes a uma cultura escrita pelo tom extraordinariamente agonístico de seu desempenho verbal e certamente por seu estilo de vida. [...] Ao manter o conhecimento imerso na vida cotidiana, a oralidade o situa dentro de um contexto de luta. [...] Na narrativa, é comum depararmos, nos embates entre personagens, com passagens e que eles alardeiam suas próprias façanhas e/ou investem verbalmente contra um oponente: na Ilíada, no Beowulf, em todos os contos medievais europeus, no Teh Mwindo Epic e em inúmeras outras histórias africanas (OKPWHO, 1975; OBIECHINA, 1975 apud ONG, 1998, p. 55).

                                                           Para Ong (1998), esses narradores são oradores de poemas encomiásticos de cunho religioso.

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Para o autor, a comunicação oral trabalha eficientemente com personagens “fortes” cujas façanhas são memoráveis e geralmente notórias, ou seja, tem um papel poético. Essa comunicação é caraterizada, muitas vezes, pela descrição entusiástica da violência física. Ong (1998) continua frisando que personalidades apagadas não podem sobreviver na mnemônica oral. Nesse contexto, os personagens dessas personalidades vivem preponderantemente num presente que as mantém em equilíbrio ou homeostase, descartando-se de memórias que já não são relevantes para esse presente.

Na cultura oral, a memória vive presente de acordo com o equilíbrio ou homeostase. Assim, segundo Ong (1998), as palavras possuem camadas de significados. Isto é, a memória do antigo significado de antigos termos possui certa durabilidade.

As palavras adquirem significam somente de seu hábitat real sempre constante, que não consiste meramente, como um dicionário, em outras palavras, mas inclui também gestos, inflexões vocais, expressão facial e todo o cenário humano e existencial, em que a palavra real, falada, sempre ocorre. Os significados da palavra nascem continuamente do presente, embora os significados presentes em muitos e diferentes aspectos já não reconhecidos (ONG, 1998, p. 58).

Com isso, as formas artísticas orais, tais como o

poema épico, segundo Ong (1998), conservam algumas palavras pelo uso corrente dos poetas épicos comuns, que preservam as formas arcaicas em seu vocabulário especial. O autor continua ainda relatando sobre as apresentações que fazem parte do cotidiano, da vida social. As formas são arcaicas nessas apresentações.

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Para Ong (1998, p. 58), a “memória do antigo significado de antigos termos, desse modo, tem certa durabilidade, que não é, no entanto, ilimitada”. Nesse sentido, o autor afirma que, quando a transmissão do conhecimento é passada para as gerações, a narrativa já não faz parte da experiência presente, vivida, e o seu significado é alterado:

O pensamento oral, contudo, pode ser bastante sofisticado e, a seu próprio modo, reflexivo. Narradores navajos de histórias folclóricas de animais podem dar explicações minuciosas das várias implicações das histórias para uma compreensão de questões complexas da vida humana, do fisiológico ao psicológico e ao ético, e estão perfeitamente conscientes de coisas como incongruências físicas [...] e da necessidade de interpretar simbolicamente elementos das histórias (ONG, 1998, p. 69).

Nessa linha, o pensamento de Ong (1998) sobre a

memorização das formas artísticas orais foca-se na repetição. A única maneira da repetição literal de passagens longas seria a recitação simultânea das passagens por duas ou mais pessoas juntas. “Os narradores narram o que o público deseja ou permite” (ONG, 1998, p. 80). Em seguida, o autor ressalta que as palavras proferidas são sempre modificações de uma circunstância total, existencial, o corpo. Na comunicação oral, a atividade corporal não é eventual ou arquitetada, mas acontece de maneira natural ou mesmo inevitável.

A comunicação oral agrupa as pessoas. Ong (1998), ao tratar sobre aspectos relacionados com o som, na oralidade, indica que o som só existe quando está desaparecendo e que possui também outras características na sua evanescência, ou na relação com o

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tempo, uma relação importante para a interioridade em comparação com os outros sentidos, com a consciência e com a própria comunicação humana.

Assim, para Ong (1998), o som forma uma unidade entre o orador e os seus ouvintes. O autor diz que a forma interiorizada no mundo oral possui uma ligação especial com o sagrado. A palavra deve-se à sua constituição física:

a palavra falada origina-se do interior humano e revela seres humanos a outros seres humanos como interiores conscientes, como indivíduos; a palavra falada agrupa os seres humanos de forma coesa (ONG, 1998, p. 88).

Com relação à primazia do enredo, Ong (1998) diz

que a narrativa propõe estudos oralidade-cultura escrita através dos tempos, conforme as mudanças na organização política, os acontecimentos religiosos, os intercâmbios culturais e muitos outros. Para Ong (1998), a narrativa é uma arte sempre presente tanto nas culturas primárias como na alta cultura da escrita e no processamento eletrônico da informação.

Em certo sentido, a narrativa é a mais importante de todas as formas artísticas verbais, em virtude do modo com subjaz a tantas outras formas artísticas, muitas vezes até às mais abstratas [...] Com base na narração, podem ser formuladas certas generalizações ou conclusões abstratas [...] jaz a memória da experiência humana disposta no tempo e submetida ao tratamento narrativo (ONG, 1998, p. 158).

Para o autor, os discursos nascem da experiência.

Em suma, na cultura oral o narrador normalmente

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desenvolve uma série de molde episódio, e a eliminação da voz narrativa é fundamental. A composição oral trabalha com núcleos informativos, os quais fazem parte da vida social agrupando pessoas.

Nesse pensamento sobre a convivência em grupo, Simmel (1986) e Marques (2008) articulam espaços de transmissão de saberes. O primeiro autor descreve a sociabilidade dos indivíduos na sociedade, e o segundo trata sobre a pedagogia do estar junto.

De acordo com Simmel (1986), a compreensão dos fenômenos históricos é apreendida pelas ações recíprocas e conjuntas dos indivíduos, pela somatória e pela sublimação das contribuições individuais, ou seja, pela sociabilidade. A sociedade é então um conjunto de ações recíprocas que variam em grau de intensidade, de acordo com o conteúdo ou com a matéria de socialização. Para Simmel (1986), a forma é algo que torna um conteúdo social socializável. Para esse autor, “a sociedade só é possível pela existência de formas de associação” (SIMMEL, 1983, p. 22). O autor ainda ressalta que as formas só funcionam com o tipo de ideais obtidos, com o exagero de certas caraterísticas dos dados reais. A socialização é o processo social básico que denota o dinamismo constitutivo da vida social, a forma com que os indivíduos se agrupam em unidades que satisfazem os seus interesses.

Já para Marques (2008), a transmissão de saberes está relacionada com a “pedagogia do estar junto”. A autora ressalta que a convivência dos moradores em uma comunidade quilombola configura espaços de aprendizagem e de sociabilidade, pois esses espaços são significantes para a transmissão dos saberes identificados a partir do vínculo emocional entre os familiares. A necessidade de se expressar é uma busca pela significação e pela representação naquele espaço de

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convivência e, consequentemente, também o é para as narrativas que demarcam o estar junto: “a casa, a comunidade, a igreja e escola” (MARQUES, 2008, p. 134).

O estar junto possui uma relação com o poder, que para Foucault (1999) é uma questão que está em toda parte, não porque englobe tudo, e sim porque provém de todos os lugares. É o conjunto de múltiplas correlações de forças, certa potência de que alguns sejam dotados, ou melhor, “o jogo que através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça” (FOUCAULT, 1999, p. 88). Porém, onde há poder, também há resistências a ele, por isso as relações entre discurso e poder tanto podem apresentar relações de afinidade quanto de conflito.

As relações de poder, para o teórico Foucault (1979), refletem a luta contra padrões de pensamentos e de comportamentos, mas é impossível a ausência das relações de poder. O tema principal de Foucault (1979) é o poder, que não está localizado em uma instituição, nem tampouco é algo que se ceda por contratos jurídicos ou políticos. Em Foucault (1979), o poder reprime, mas também produz efeitos de saber e verdade.

Trata-se [...] de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações [...] captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que ultrapassa as regras de direito que o organizam e delimitam [...]. Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício (FOUCAULT, 1979, p. 182).

Foucault (1979) acreditava que os acontecimentos

deveriam ser considerados em seu tempo, história e espaço. Na busca de compreender a terminologia da

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palavra poder, originária do latim e que significa “ser capaz de”, na prática o uso do termo, na esfera social, exprime a capacidade de conseguir algo para se obter um resultado, seja indivíduo ou instituição. Para Ferreirinha e Raitz (2010), o estudo de Foucault (1979, p. 370) sobre poder não surgiu para criar uma teoria do poder, “mas para identificar os sujeitos atuando sobre os outros sujeitos”.

O poder como verdade vem se instituir, ora pelos discursos a que lhe é obrigado a produzir, ora pelos movimentos dos quais se tornam vitimados pela própria organização que o acomete e, por vezes, sem a devida consciência e reflexão (FERREIRINHA; RAITZ, 2010, p. 370).

Em seu livro A Ordem do Discurso, Foucault (2006)

relaciona os discursos que permeiam na sociedade e que são controlados e perpassados pela relação de poder e regressão. O filósofo sugere que existem diferentes procedimentos de repressão do discurso e que todo discurso é controlado pela interdição, vista como um recurso que limita a enunciação do indivíduo em discurso. Ou seja, existem tabus para o discurso, tendo em vista que não é tudo o que pode ser dito por qualquer pessoa, em qualquer lugar ou circunstância.

Para Foucault (1979), os principais tabus presentes na sociedade são a política e a sexualidade, cujos discursos são marcados pela busca de desejo e de poder, pela luta do controle daquilo que enunciam. O autor acrescenta que “por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder (FOUCAULT, 1996, p. 10)”. Foucault (1979) relaciona a população não só como força soberana, mas como sujeito de necessidades e de

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aspirações, consciente daquilo que quer e inconsciente em relação de poder. O autor explica ainda que os “discursos de verdade” da sociedade, por meio de sua linguagem, comportamento e valores, são relações constituídas de poder e, portanto, aprisionam os sujeitos. Cada sociedade possui o seu regime de verdade, isto é:

os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros, os meios pelos quais cada um deles é sancionado, as técnicas e procedimentos valorizados na aquisição da verdade; o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdadeiro (FOUCAULT, 1979, p. 12).

O fato é que os discursos sofrem influências de

regras sociais, institucionais e detentoras de saber, que por sua vez lhes garantem o poder de serem aceitos como verdadeiros. Foucault (1996) determina condições para que os indivíduos possam formular os seus discursos. A primeira forma discutida é o ritual que determina a qualificação que os sujeitos que falam devem ter, definindo o comportamento e as circunstâncias sobre aqueles a quem o discurso é dirigido.

A segunda forma são as sociedades de discursos “cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas” (FOUCAULT, 1996, p. 39). As relações de poder determinam também o modo como o indivíduo criará o seu discurso, procurando difundi-lo para o maior número de pessoas possível, contudo, com o reconhecimento das mesmas verdades e em conformidade com os discursos validados.

A última maneira de relações de poder é o sistema de educação. Trata-se de “uma maneira política de

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manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, 1996, p. 44).

Para Foucault (1996), verdade e poder estão mutuamente interligados através de práticas específicas, que, por sua vez, estão ligadas à produção do discurso, que é, em todas as sociedades, regulado, selecionado, organizado e redistribuído, reunindo poderes e perigos em qualquer sociedade. Como exemplos, podem-se citar os discursos inseridos nas narrativas quilombolas e o espaço em que são elaborados, no entorno do contexto quilombola: a casa, a escola e a igreja.

Confirmado no pensamento de Foucault (FERREIRINHA; RAITZ apud FOUCAULT, 2010, p. 371), “somos forçados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar”. Os espaços de sociabilidade, segundo Simmel (1996) e Marques (2008), a casa, a igreja e a escola, perpassam pelo pensamento analítico do poder de Foucault, que reflete a ideia de que o sujeito se constitui historicamente, a partir das relações de poder. Cada grupo produz mecanismos disciplinares, elabora a sua história e a arquiva, distribuindo no espaço de forma particularizada, na elaboração, no controle e no relacionamento do seu tempo, combinado com outros indivíduos. Esse discurso pode estar destacando o opressor e o oprimido. Diante dessas reflexões, Foucault (1996, p. 24) declara que:

o discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo e libera do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la.

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3.1.1 Vivências no local de encontro: a casa O ambiente familiar é o primeiro espaço de troca

dos saberes da terra. Na sua residência, o quilombola apreende e compreende os saberes antigos. Sua casa tem caraterísticas de acolhimento aos seus moradores, que se prolonga para as suas visitas. Esse acolhimento é descrito já durante a construção do novo lar. Antigamente, as residências eram construídas no puxirão53 (Figura 20). Muitos quilombolas auxiliavam na construção da nova casa e, ao fim do mutirão, havia uma confraternização com festa e churrasco.

                                                           53 Puxirão: convite feito aos vizinhos para realizar uma determinada tarefa, como, por exemplo, capinar/roçar uma determinada área ou realizar uma construção conjuntamente. O vizinho beneficiado oferecia em troca café da manhã, almoço, janta e uma festa à noite. Esse era um hábito muito comum em comunidades de agricultores nos anos 1960 e 1970.

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Figura 20 – Puxirão no quilombo

Fonte: acervo pessoal de Maria Arlete Ferreira da Silva (1960)

A residência do quilombola54 é simples e caprichosa

na decoração, que gira em torno do gosto pessoal da pessoa mais velha que nela habita. A casa sempre está bem arejada, limpa por dentro e no seu entorno. Geralmente, é uma casa de pequeno porte, contendo dois quartos, um conjugado de sala-cozinha e o banheiro.                                                            54 A casa dos quilombolas era toda feita de madeira, até a sua cobertura, composta de tabuinhas.

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Figura 21 – Modelo das casas antigas do quilombo

 Fonte: acervo pessoal de Maria Arlete Ferreira da Silva (1960)

Como espaço de experiências e de local para

transmissão dos saberes da terra, a casa também possui essas particularidades. Conforme me indicou Maria Aparecida (SOUZA, 2015), se a visita é direcionada para o ambiente da cozinha, a troca de experiências

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acontecerá numa relação de intimidade, mas se a visita é direcionada para a sala, é porque a formalidade irá prevalecer.

Marques (2008) também afirma que o processo do estar junto está associado às relações vividas, ao aprendizado das formas de comportamentos em outros espaços sociais, etc. A cozinha é um espaço de vivência coletiva. A sala, por sua vez, demonstra a limpeza, a arrumação, é um lugar diferenciado do cotidiano, “a visita importante não comungava da intimidade, não era do bairro” (MARQUES, 2008, p. 142).

Quando as casas ainda eram de chão batido, o entorno do fogo de chão era um local perfeito para a roda de conversa, principalmente para as crianças, que ficavam com as suas avós, enquanto as suas mães trabalhavam. Com o passar do tempo, à medida que o fogão a lenha toma o lugar do fogo de chão, aí é que passa a se constituir o espaço para a roda de conversa. Essa experiência é ainda mais frequente no inverno, quando a temperatura é muito baixa. Então, prepara-se um chimarrão e coloca-se o pinhão para assar.

Nesse local, o estar junto, como esclarece Marques (2008), é uma oportunidade de ensinamento do processo narrativo. Atualmente, as configurações das residências quilombolas são de cozinha e sala sem separação.

3.1.2 Vivências no local de encontros: a igreja

A vivência na igreja, ilustrada na Figura 22,

configura-se como outro espaço de troca de saberes quilombolas. Presenciei, durante o processo de pesquisa, várias palestras e conversas cujo tema eram as tradições e os costumes quilombolas dirigidos. Essas palestras eram proferidas por pessoas de outras localidades, que nesta dissertação nomeio como não quilombolas, assim

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como por estudantes e professores do ensino fundamental e superior. A igreja é o único local na comunidade com um espaço grande o suficiente para acomodar muitas pessoas. Figura 22 – Igreja São Sebastião, localizada no quilombo Adelaide Maria Trindade Batista

 Fonte: acervo pessoal da pesquisadora (2016)

A utilização do espaço sagrado para visitação dos

não quilombolas é precedida de um pequeno ritual. Os moradores quilombolas pedem licença e evitam barulhos elevados dentro do recinto. Mesmo para subir ao altar, os palestrastes pedem licença para usar o espaço religioso.

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Em uma das performances que presenciei, logo após a demonstração das práticas pedagógicas realizadas pelos professores do colégio, a pedagoga responsável pela apresentação pede que todos se retirem do recinto para assistirem do lado de fora a uma demonstração de capoeira e passos de dança afro.

A roda de conversa que recebe os visitantes geralmente se fixa na frente da igreja, a qual representa um marco para a comunidade. A grande maioria dos relatos mostra que a comunidade começou naquele espaço, com a vinda do santo que deu o nome ao bairro, conforme descrição da origem da própria comunidade.

A igreja é também um espaço de sociabilidade religiosa e festiva, principalmente no período da festa de São Sebastião, ocasião em que os laços e o desejo de estar juntos ficam mais fortes, e os momentos são compartilhados. Marques (2008) acompanhou, durante a elaboração da sua tese, a festa de São Sebastião e as narrativas. Isso possibilitou que confirmasse a importância da festa e do espaço de sociabilidade, sendo uma forma de cooperação para o entrosamento dos moradores do bairro com os da cidade. A igreja é também muito usada pelo colégio quilombola devido à falta de um prédio próprio, extensão da escola.

3.1.3 Vivência no local de encontros: o Colégio Estadual Maria Joana Ferreira

Historicamente, segundo relatos locais, a

comunidade quilombola, na metade do século XX, sofria muito por causa da distância em relação às escolas. Com a possibilidade de criação do colégio, no início do século XXI, essa conjuntura muda. Atualmente, o colégio tornou-se um importante espaço de transmissão da cultura quilombola. Ele marca também a inserção das políticas

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públicas nacionais na comunidade. No Estado do Paraná55, o colégio quilombola Maria Joana Ferreira é um dos primeiros a ser registrado dentro de uma comunidade quilombola. Esse fato auxiliou a repercussão da comunidade no contexto de pesquisadores e de simpatizantes com questões étnico-raciais.

Em 2009, no município de Palmas, foi inaugurada a Escola Estadual Quilombola Maria Joana Ferreira – Ensino Fundamental, situada na zona urbana, mais precisamente na rua Rui Barbosa Nunes, 855, em São Sebastião do Rocio, Palmas, Paraná, com oferta do ensino fundamental (do 6º ao 9º ano). A escola é mantida pelo Governo do Estado do Paraná e pertence ao Núcleo Regional de Educação (NRE) de Pato Branco, tendo sido criada pela Resolução n. 5.242/08, de 14 de novembro de 2008, DOE, de 2 de fevereiro de 2009 e Ato de Autorização de Funcionamento nº 2.580/09, de 14 de agosto de 2009, além do DOE publicado em 22 de outubro de 2009.

No ano de 2013, a nomenclatura da escola muda para colégio devido à inserção do ensino médio, ofertado especificamente no período noturno por não existir espaço físico, como também pelo fato de que alguns alunos são trabalhadores, e esse horário possibilitaria a continuidade dos estudos daqueles que concluem o ensino fundamental na escola. No presente momento, a escola se chama Colégio Estadual Quilombola Maria Joana Ferreira.

Segundo relato da liderança Maria Arlete Ferreira da Silva (SILVA, 2015b), tudo o que acontece na comunidade é discutido em grupo, por isso a existência dos líderes, que se reuniam para dar o nome ao novo local                                                            55 No Estado do Paraná, há duas escolas quilombolas. Uma delas está localizada na comunidade quilombola da Ribeira, e a outra fica na comunidade quilombola Adelaide Maria Batista Trindade.

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de transmissão de conhecimentos quilombolas, o colégio. Para tal, resolveram homenagear a antiga líder da própria comunidade, a patronesse Maria Joana Ferreira.

A necessidade de se criar o colégio quilombola de ensino fundamental (anos finais) e médio se deu para ampliar a identidade cultural do povo quilombola, adequando-se ao entorno de uma comunidade quilombola da área urbana e se tornando também um espaço efetivo para a transmissão dos saberes locais. Outra necessidade foi também oportunizar o conhecimento para todos os moradores da região, que muitas vezes só estudavam até a conclusão do ensino fundamental, primeiro ciclo, por somente haver na localidade escolas do primeiro ao quinto ano. Esse era o ensino oferecido pela prefeitura da região. A escola estadual mais próxima situa-se aproximadamente a cinco quilômetros desses bairros. Como os alunos não dispõem de transporte adequado, isso dificultava a permanência deles na escola, levando-os à evasão e à reprovação.

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Figura 23 – Fachada do Colégio Estadual Quilombola Maria Joana Ferreira

Fonte: acervo pessoal da pesquisadora (2016) Atualmente, a estrutura física do colégio ainda

utiliza o espaço emprestado pela prefeitura de Palmas, local em que antes funcionava uma creche. Trata-se de um espaço muito pequeno para um colégio estadual. Com isso, as turmas possuem geralmente de 10 a 20 alunos. Devido à falta de um prédio próprio, o colégio ainda utiliza uma sala da igreja católica, que fica ao lado do prédio mencionado, como também a própria igreja usa o colégio

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quando necessita receber visitas ou mesmo realizar palestras. Segundo as lideranças locais, o terreno para a construção do colégio já existe, faltando apenas a verba para iniciar os trabalhos.

A filosofia da escola quilombola é:

a promoção de um espaço educativo dialógico entre o conhecimento escolar e a realidade local. Tendo como pauta os valores sociais e culturais históricos econômicos da comunidade, fazendo com que cada indivíduo, principalmente o(a) indivíduo(a) negro(a) quilombola se faça autor de sua história. Assumindo-se como cidadão autônomo, crítico e participativo em uma sociedade excludente. Visando a compreensão de que a sociedade é formada por pessoas que pertencem a grupos étnico-raciais distintos, que possuem cultura e histórias próprias, igualmente valiosas, e que em conjunto constroem na nação brasileira a sua história (PPP, 2014, p. 10).

No processo da pesquisa, presenciei uma atividade

pedagógica da escola em que pude observar a questão de territorialidade e sociabilidade na comunidade escolar. A educação escolar quilombola está paulatinamente demarcando o seu território educativo, traçando um repertório para os docentes que despertará novas lideranças para a compreensão e o respeito pela memória dos seus antepassados. Provavelmente, com as trocas de saberes quilombolas, sempre mencionados pelos moradores, os discentes puderam compreender a causa maior do quilombola: o pertencer à terra e fazer parte de uma comunidade. A união do grupo é evidente devido ao fato de que a escola continua sendo um espaço da

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comunidade, o quilombo, em que tudo é resolvido em grupo.

O PPP (2014) propõe o ensinamento educacional com base nas necessidades e nos anseios educacionais da comunidade quilombola, a interação de prioridades estabelecidas pela comunidade e um novo olhar tendo como base as diretrizes curriculares nacionais da educação quilombola e as diretrizes curriculares do Paraná (DCEs). Isso exige um comprometimento diferenciado de todos os envolvidos no processo educativo no colégio quilombola Maria Joana Ferreira.

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4 NARRADORAS E SUAS NARRATIVAS (CAPÍTULO III)

Sabe, quando era pequena, me lembro de que vivia dizendo: não quero mais escutar esses causos sobre essas pessoas antigas. O tempo passou, e agora me lembro de tudo e sei de tudo. E me arrependo porque não prestei mais atenção nos causos antigos da minha avó, minha mãe e minhas tias (SILVA, 2015b) (Arlete).

4.1 O ENCONTRO COM AS NARRATIVAS

No segundo semestre de 2014, tive o primeiro

contato efetivo com as lideranças quilombolas. Nesse momento, eu tinha como objetivo a parceria do Instituto Federal do Paraná (IFPR) - Campus Palmas com a comunidade quilombola do bairro São Sebastião do Rocio. A proposta era uma abordagem sobre a visão de quilombolas para não quilombolas, isto é, uma troca de experiências com os acadêmicos do curso de Arte e com as moradoras da comunidade quilombola. O bate-papo antecederia o Dia Nacional da Consciência Negra, com a temática Conscientização Racial. Foi nesse primeiro contato com uma das lideranças mais antigas da comunidade quilombola que surgiu a proposta de pesquisa sobre o reconhecimento da cultura local, tendo como foco a memória desse grupo.

No início de 2015, resolvo estreitar os laços com a comunidade com um projeto de extensão universitária. Durante as minhas visitas como docente do ensino superior do IFPR, na busca da autorização das lideranças locais para desenvolver um projeto cultural na localidade, eu me surpreendi com a notícia de que não só existia uma comunidade tradicional, mas três comunidades

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quilombolas. Como já descrevi no Capítulo 1, a líder quilombola Arlete Ferreira da Silva recomendou o meu retorno no dia seguinte para conversar com o presidente e o vice-presidente da comunidade, o senhor Alcione e o senhor Valuir, respectivamente.

No dia seguinte, ocorre a reunião com o presidente Alcione, o vice-presidente Valuir e a líder mais antiga da comunidade, a senhora Arlete. Nesse momento, conheci Cleni Fortunato, presidente da comunidade quilombola Castorina Maria da Conceição, e José Ataíde Ferreira, presidente da comunidade quilombola Tobias Ferreira. Foi uma conversa que também oportunizou momentos de descontração e de risadas, finalizando com a autorização necessária para a formalização do projeto de extensão universitária nas outras duas comunidades.

Um tempo depois, o projeto é aprovado pela Reitoria da universidade, representando o IFPR perante o MEC no que se refere à questão de extensão universitária. Nesse intervalo, as visitas à comunidade se tornam rotineiras, geralmente no período da tarde, de segunda a sexta-feira, tendo como intuito o reconhecimento e a observação do melhor encaminhamento proposto para o projeto de extensão com as referidas comunidades. Entretanto, em alguns momentos como pesquisadora, eu me pego também observando as narrativas do contexto quilombola sobre a territorialidade e o detalhamento diferenciado feito pelas lideranças locais. As moradoras mais idosas contam sobre as suas ascendentes e sobre a cultura local. Nessas observações, começo a fazer comparações com grupos que tive a oportunidade de dirigir no âmbito das artes cênicas e visualizo a possibilidade de realizar um trabalho na área.

Nesse processo, pude confirmar que as pessoas mais idosas são nomeadas líderes quilombolas. Existem algumas lideranças de meia-idade, porém os

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transmissores oficiais da cultura local são os idosos e as idosas. Eles se utilizam da comunicação oral para narrar e transmitir histórias sobre os conhecimentos dos seus, os ascendentes da localidade.

Nesse ínterim uma das líderes mais antiga da comunidade Adelaide Maria Trindade Batista, a senhora Arlete Ferreira da Silva também fica me observando e sugere que eu não fique aguardando a resposta do projeto de extensão e que fizesse sim, como disse ela, um projeto de vida. Aceitando o desafio, direciono a pesquisa para esse grupo e a jornada para a compreensão da cultura local. Como pesquisadora, torno-me uma não quilombola no encontro paulatino com a cultura quilombola, tendo sempre como direção-base a dinâmica da troca de experiências com os envolvidos.

Algo que me chamou a atenção nessa interação com a comunidade foi o cuidado com o relacionamento que as mulheres têm entre si e com o seu entorno. Devido às minhas visitas quase diárias, as lideranças escolhem uma de suas líderes de meia-idade para me acompanhar durante todo o processo, a qual nomeio de guia quilombola. Com a minha guia quilombola, compreendi que havia momentos em que eu poderia me aproximar de determinados acontecimentos e deveria esperar a ocasião certa para isso, principalmente pelo fato de que uma comunidade quilombola é composta por familiares que compartilham intimidades específicas.

Assim, ocorre não só uma proposta de extensão universitária, mas um novo olhar do ponto de vista da pesquisa. E é claro, uma amizade surge também com a minha guia quilombola. Essa amizade possibilitou com que muitas vezes eu pudesse ler em voz alta parte de meus escritos sobre a cultura local para a minha guia quilombola e para uma das senhoras mais antigas da comunidade, sempre perguntando se o conteúdo estava

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de acordo com os seus ensinamentos. Com o retorno dessas escritas, eu podia perceber a valorização que ambas sentiam com a troca de experiências e também o cuidado com que a pesquisadora deixava fiéis os relatos quilombolas, que não eram mais analfabetos, e sim pessoas comuns, porém integrantes de um grupo específico tradicional.

A minha guia quilombola é a senhora56 Rosemary Ferreira da Silva Câmara. Ela ensinou-me a compreender a cultura de seu grupo, sempre destacando um lado marcante repassado pela líder mais antiga, o amor pela sua causa e pela cultura dos seus ascendentes. Afirmou ela: “Os antigos lutaram por todos, e as lideranças têm que perpetuar as suas lutas”.

À medida que construía o meu percurso dentro da comunidade, fui me dando conta de questões que eu não havia percebido anteriormente e sobre as quais precisava tirar dúvidas. Para isso, era só procurar a minha guia quilombola. Foi ela quem me auxiliou na escolha das narradoras quilombolas da comunidade, as Marias de São Sebastião do Rocio, conforme as designei em algumas partes desta dissertação. De agora em diante, situo o leitor sobre as narradoras quilombolas, primeiramente apresentando alguns aspectos teóricos que norteiam e sustentam os estudos científicos sobre idosos e/ou idosas, e posteriormente sobre as lideranças quilombolas. Esse fato se dá devido ao respeito que esse grupo atribuiu aos idosos e às idosas da comunidade, que são os transmissores oficiais da cultura local. No segundo momento, relaciono as narrativas quilombolas da comunidade quilombola da região palmense e para as respectivas análises.

                                                           56 Terminologia comum do município de Palmas para todas as mulheres. Os moradores dizem que é uma questão de respeito.

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4.1.1 Reflexões sobre ser idosa na sociedade No Brasil, são consideradas idosas as pessoas

com idade igual ou superior a 60 anos (BRASIL, 2003). Entre 2000 e 2050, a proporção da população mundial com mais de 60 anos vai dobrar, mudando de cerca de 11% para 22%. Isso é reflexo de ações no controle das doenças da infância, da mortalidade infantil e da natalidade, que impactam no envelhecimento da população de muitos países (BRASIL, 2010; ONU, 2010).

Estudos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam uma tendência exponencial de crescimento da população idosa brasileira e uma diminuição da população infantil. A expectativa de vida do brasileiro ao nascer, em 1999, era de 70 anos. Já em 2009, mudou para 73 anos. Com essa probabilidade, o prolongamento da vida, em 2025, deve exceder os limites propostos pelo IBGE, que é de 80 anos.

Com a expressividade numérica, o Brasil não é mais o país do futuro, e sim o país que pode modificar o futuro ao tornar-se o sexto maior em números de idosos. Essa expressividade é vista principalmente na pirâmide populacional, que compunha um formato triangular com a sua base maior para baixo. Em 2025, terá na base uma inversão expressiva no formato mais cilíndrico. Para tal, é preciso preocupar-se com a promoção da saúde e com a melhoria da qualidade de vida dessa população. Essa inversão da pirâmide populacional demonstra o novo papel do idoso em nossa sociedade, como também a necessidade de se desenvolverem mecanismos para a sua independência e autonomia na vida social (BRASIL, 2010).

Em 2002, durante o segundo Encontro Mundial das Organizações das Nações Unidas (ONU), foi elaborado o Plano de Ação Mundial sobre o Envelhecimento (PAME).

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Em seu artigo 6º, o Plano aponta que quando o envelhecimento é aceito com êxito, consequentemente o aproveitamento da competência e a experiência dos recursos humanos dos grupos mais velhos são assumidos com naturalidade, como uma vantagem para o crescimento de sociedades humanas maduras e plenamente integradas.

No Brasil, a menção ao direito dos idosos na Constituição de 1988, disposto no artigo 230 sobre a responsabilidade desse grupo na comunidade, aponta que é dever da família, da sociedade e do Estado amparar as pessoas idosas, assegurando-lhes a sua dignidade, defendendo o seu bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

Como marcos para a proteção social do cidadão idoso, há a estruturação da Política Nacional do Idoso (PNI), a Lei n. 8.842, de 4 de janeiro de 1994, e o Estatuto do Idoso, Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003. No artigo 4 do PNI, consta uma complexa articulação de ações políticas e pedagógicas na implantação de projetos envolvendo o incentivo a programas que estimulem os idosos a desenvolverem atividades culturais que despertem a valorização do registro da memória, a transmissão de informações e a habilidade com os mais jovens, como meio de garantir a continuidade e, consequentemente, a identidade cultural.

Em certa medida, pautadas na tradição, as comunidades quilombolas vêm desenvolvendo valores e políticas internas de valorização de seus idosos, e esta dissertação, como forma de registro, pode também contribuir para tal. A ideia é colaborar com o registro da memória de um grupo de idosas com base nas suas narrativas e como essa ação pode despertar a continuidade, como também aguçar uma prática para a valorização dos remanescentes quilombolas. É nesse

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sentido que a presente dissertação vai ao encontro de iniciativas de políticas públicas que demonstrem a valorização de um grupo de idosas, nomeadas pelo grupo de quilombolas, como sendo líderes quilombolas. O incentivo da prática da oralidade e os aconselhamentos que ficam ao encargo dos idosos ou das idosas da localidade promovem a sua interação social. Contudo, antes de tratar da interação social do idoso nas comunidades quilombolas, ressalto algumas teorias sobre o envelhecer.

O ato de envelhecer foi sendo representado e significado de modo distinto ao longo da história e, apesar dessa recente explosão de discursos sobre os idosos, vem sendo pensado, constituído e produzido desde os tempos “mais remotos”.

A velhice é um estado próprio do ser humano, caracterizada como a última fase do processo de envelhecimento. Para Farias e Santos (2012), a longevidade é um processo mundial, permitindo-se afirmar que o mundo está “ficando grisalho”. Com idosos cada vez mais longevos, a regra é envelhecer com qualidade, configurando-os como protagonistas de suas próprias histórias, e não meros expectadores dos acontecimentos (BRASIL, 2005). No texto (BRASIL, 2005), ainda afirma que, à medida que um indivíduo envelhece, a sua qualidade de vida é fortemente determinada por sua habilidade de manter autonomia e independência.

Kalache (2006) relaciona o envelhecimento a um processo natural do ciclo da vida – nascer, crescer, amadurecer, envelhecer e morrer –, e as transformações que caracterizam tal ciclo originam-se no próprio organismo e ocorrem gradualmente, no dia a dia. Já Mascaro (2004) complementa que os seres humanos são

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indivíduos inteiros, visto que a vida é uma sequência de acontecimentos e etapas, e não de meros fragmentos.

Estudos sobre o ato de envelhecer têm visto esse processo de maneira dinâmica e progressiva, no qual há modificações morfológicas, funcionais, bioquímicas e psicológicas que determinam perda da capacidade de adaptação do indivíduo ao meio ambiente, ocasionando maior vulnerabilidade e maior incidência de processos patológicos que terminam por levá-lo à morte (PAPALÉO NETTO, 1996).

Contudo, Bretas (2003) diz que o ato de envelhecer é como um movimento revestido por aquisições individuais e coletivas, por acontecimentos inseparáveis e simultâneos. Mesmo que o ato de envelhecer seja individual, a influência da sociedade é determinante. A vida não é só biológica, ela é social e culturalmente construída, e os estágios apresentam diferentes significados e duração.

Nesse sentido, Aranha (2004) confirma que, quanto maior a rigidez em lidar com os sentimentos de períodos anteriores, mais severos são os sintomas de ansiedade e insegurança na velhice.

Portanto, é necessário ressignificar a velhice para o idoso. Alvarez (2010) complementa dizendo que a velhice é como um processo de reconstrução, um sonho não estático, mas ligado a motivações pessoais e passível de ser realizado coletivamente. Auxiliar o indivíduo é ajudá-lo a ajudar-se, fazendo-o agente de sua própria recuperação, numa postura consciente e crítica perante os seus problemas. Já Freire (2007) propõe refletir sobre si mesmo, sobre seu tempo e sobre suas responsabilidades.

A longevidade é um processo mundial, e podemos dizer que o mundo está “ficando grisalho”. Ressalto ainda mais uma vez que o processo da longevidade não inicia

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aos 60 anos, consiste no acúmulo e na interação de processos sociais. Em comunidades tradicionais, esse processo de acúmulo tem um papel de certa importância, pois quando a pessoa envelhece, ela torna-se responsável pela transmissão do conhecimento social. Nessas localidades, essa pessoa é nomeada líder quilombola.

4.1.2 Reflexões sobre ser transmissora do conhecimento – líder quilombola

No desenrolar da pesquisa, eu me deparo com

terminologias oriundas da África, tais como griô ou griot e djeli, que basicamente têm como significado a responsabilidade da transmissão do conhecimento da tradição e da cultura da sua localidade, indícios da oralidade africana.

Segundo Bernart (2008), griot é o mestre da palavra, o qual não permite que a cadeia de transmissão dos conhecimentos fundamentais de uma vida se apague. A rotina de uma griot é constituída pela promoção de encontros. A tradição africana é transmitida pela oralidade e, conforme Souza (2011), realizada pelos que são as testemunhas da memória viva, os depositários da herança, que nessa cultura são chamados tradicionais.

Existem variações para a termologia que vão depender muito da região onde o transmissor reside e, consequentemente, de sua língua matriz.

Em bambara, são chamados de Doma ou Soma, os “Conhecedores”, ou Donikeba, “fazedores de conhecimento”. Já para os fulas, conforme a região, de Silatigui, Gando ou Thiorinki, palavras que, segundo Hampâté Bâ (1982), possuem o mesmo sentido de “Conhecedor” (SOUZA, 2011, p. 24).

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Em seu artigo Negros pingos nos “is”: djeli na África

ocidental; griô como transcriação; e oralidade como um possível pilar da cena negra, Santos (2015) articula sobre uma nova possibilidade na cena negra no ocidente. Trata-se de uma ressignificação em que agentes negros têm pleiteado outro valor positivo do griô como termo referencial para profissionais que fazem a cena negra. Já a termologia djeli provém de uma casta, uma família:

A grande maioria dos grupos étnicos africanos transmite seu aprendizado através da oralidade, há tradições orais em diversos segmentos dessas sociedades, embora existam, em alguns povos, castas em que as pessoas são formadas para contar histórias e resguardar a genealogia, como é o caso do djeli (SANTOS, 2015, p. 162).

Santos (2015) compara o djeli ao tecedor, aquele que tece a sua matéria-prima artesanalmente, a palavra. Historicamente, o djeli era o guardador da memória de sua comunidade, mas na atualidade esse tipo social tem ocupado outras funções. O autor destaca ainda a denominação griot, cujo uso deve ser repensado no território nacional.

No primeiro momento, as denominações não aparentam diferenças, mas, como mostra o próprio site sobre a lei nacional griô, o grupo que tem origem nos músicos, genealogistas, poetas e comunicadores sociais, mediadores da transmissão oral, bibliotecas vivas de todas as histórias defende o repensar do uso griot. O grupo elaborou um site esclarecedor tanto para o processo de implementação como para o contexto histórico da origem da palavra griot, com o intuito

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primordial de valorizar as tradições imateriais com a lei griô57.

Conforme o site, no Brasil, a lei griô foi adaptada para griot, uma transgressão da palavra original oriunda do período de colonização, satirizando a língua geral dos negros com a junção de crioulo devido à pronúncia. As amarras invisíveis no universo da tradição africana se deram no período colonial. Em praças públicas, os griôs buscavam as suas vozes, mas elas foram distorcidas com a mudança para griot. Esse período deixa tantas marcas que provavelmente algumas comunidades não utilizam os termos devidos às amarras invisíveis. Atualmente, com a lei griô a situação dos griôs pode ser mudada com a criação efetiva do plano de esboço da versão para discussão da política nacional griôs.

No início do século XXI, efetiva-se a discussão sobre as políticas públicas culturais no Encontro Nacional da Cultura, que ocorreu em 2010, com o esboço da versão do projeto de lei griô. Essa lei tem como base, a institucionalização de políticas públicas no âmbito nacional de proteção e fomento aos saberes e fazeres das culturas tradicionais de transmissão oral. Esse projeto de lei, que atualmente tramita na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, incorpora termos e conceitos presentes no Projeto de Lei n. 1.786/2011, conhecido como Lei Griô, apresentado pela Deputada Jandira Feghali (PCdoB – RJ) e no Projeto de Lei n. 1176/2011, conhecido como Lei dos Mestres, de autoria do deputado Edson Santos (PT-RJ). Com a efetivação do processo de institucionalização da Política Nacional Griô (PNG), busca-se garantir a proteção e o fomento a saberes e fazeres de tradição oral. Para tal situação, as comissões permanentes que se alicerçam no plano nacional de                                                            57 Lei Griô Nacional. Disponível em: <http://www.leigrionacional.org.br>. Acesso em: 3 maio 2016.

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cultura criam condições para que sejam aprovadas no Congresso várias estratégias e ações previstas por esse plano. O texto preliminar da PNG (2011), no seu art. 2º, define:

1 - griôs e mestre(a): Griô todo(a) cidadão(ã) que se reconheça e/ou seja reconhecido(a) pela sua própria comunidade como herdeiro(a) dos saberes e fazeres da tradição oral e que, através do poder da palavra, da oralidade, da corporeidade e da vivência, dialoga, aprende, ensina e torna-se a memória viva e afetiva da tradição oral, transmitindo saberes e fazeres de geração em geração, garantindo a ancestralidade e identidade do seu povo; que discorre sobre. 2 - griô aprendiz: todo(a) cidadão(ã) que exerce um papel de aprendiz vinculado formalmente aos Griôs e Mestres de tradição oral que lhe iniciam nos saberes e fazeres tradicionais ao longo de toda a sua vida, que possui uma linguagem artística e uma pedagogia, cuja missão é mediar suas aprendizagens com o universo da educação formal e informal.

Os estudos e o esboço da política pública relacionam-se ao reconhecimento oficial do modo de transmissão dos saberes e fazeres da tradição oral como patrimônio imaterial brasileiro das griôs mestres da comunidade tradicional da região de Palmas. Com a aprovação e a regularização da política pública da PNG (2011), o grupo de mulheres, que nesta dissertação nomeio como narradoras quilombolas, as griôs mestres, como citado pelo PNG (2011), e djeli para o teatrólogo Santos (2015), pode ter indícios de luz da valorização da cultura do seu grupo tradicional. Consequentemente, as

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narradoras quilombolas podem também participar da fomentação cultural do patrimônio imaterial. Destaca-se ainda a possibilidade da efetivação do PNG, tendo como base a escrita de 2011, no Brasil. Serão reconhecidas como griôs todas as pessoas que transmitem o conhecimento profissionalmente em comunidades tradicionais, como também artistas que trabalham com essa prática.

Após o trabalho de compreensão das terminologias, volto para a pesquisa de campo. No momento em que pergunto para as narradoras sobre a existência de djeli ou griôs na região, elas me respondem negativamente. Uma delas até faz menção ao griot como algo antigo, de longe, que só existia na África e carregava consigo o bastão do conhecimento. As narradoras afirmam que na comunidade existem pessoas que transmitem o conhecimento, mas com um bastão invisível.

A comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista, da região centro-sul do Paraná, não se identifica com as categorias que apresentei para as pessoas com quem conversei. Aqueles que transmitem o conhecimento da tradição e da cultura local são identificados como líderes da família ou da comunidade. Por isso, anteriormente expôs-se sobre idosos e, apoiada nessa situação, menciono a terminologia líder quilombola. Existem algumas semelhanças com as teorias e com os programas de políticas públicas, contudo constituindo-se uma realidade específica. Pode ser que em outras localidades sejam utilizadas as terminologias citadas, mas na região centro-sul do Paraná nomeiam-se como líder quilombola os transmissores de conhecimento desde o tempo dos antigos desse local.

No Brasil, as comunidades quilombolas ou quilombos contemporâneos geralmente prevalecem ainda em áreas rurais, tendo como um dos seus propósitos a

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garantia de continuidade dos seus costumes. Porém, devido ao crescimento das cidades, existem comunidades que se transformaram em urbanas e, consequentemente, sofreram algumas adaptações, como é o caso da liderança quilombola.

Historicamente, os primeiros líderes quilombolas do Brasil que se destacaram foram Gangazumba e Zumbi, ambos identificados por sua capacidade de articulação política e organizacional no grupo. Para Medeiros (2013), tais espaços, de vivência coletiva contribuíram para a formação da identidade desse povo, bem como para sua marca de resistência e sobrevivência. No passado, o quilombo lutava pela liberdade, e sua organização social compreendia a diversidade não como fronteiras-limites, mas como diferenças que se somavam.

Medeiros (2013) ainda configura esse grupo como gerenciado coletivamente, não priorizando grupos étnicos ou indivíduos, mas indo no caminho da busca pela resistência e pela luta contra o regime colonial. Complementando o pensamento de Arruti (1997), que descrevia o modelo de sociabilidade com base na preservação do trabalho coletivo, o quilombo usufruía do uso da terra e, consequentemente, da produção econômica de mantimentos, os quais eram revendidos nos arredores da localidade.

De acordo com Valentim e Trindade (2011), o quilombo hoje retoma esse conceito e o amplia como dimensão de garantia de direitos no acesso à terra e às políticas públicas, antes tão distantes e negligenciadas. Em consequência disso, gera as lutas pelo reconhecimento e a ativação de vozes sociais que buscam legitimar a identidade agora necessária para o acesso à terra e aos recursos descritos pelo programa Brasil quilombola (PBQ, 2013). Arruti (2006) afirma que a necessidade desse povo no presente é a atualização de

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suas lutas e de suas histórias. Essas vozes sociais são categorizadas nesse grupo como lideranças quilombolas.

As vozes sociais na comunidade tradicional quilombola do Brasil dão continuidade ao costume oriundo dos seus ascendentes: a valorização das pessoas com mais idade. Atualmente, nomeiam como líderes quilombolas os seus integrantes com mais idade e os aprendizes desses integrantes. Ser um líder quilombola é representar a sua comunidade. Antigamente, a pessoa mais velha era a líder da localidade, um papel que se assemelha ao de presidente da comunidade atual. É válido ainda ressaltar que hoje encontramos diversas lideranças numa mesma comunidade, tudo devido à quantidade expressiva de membros que a ela pertencem.

As lideranças quilombolas vêm garantindo sua organização, que permite à comunidade tanto se defender como inserir-se nos espaços de gestão, pois, até pouco tempo atrás, a comunidade mantinha contato escasso com as instituições governamentais e conhecia muito pouco sobre o modo de viver fora do seu espaço étnico (BRASIL, 2011, p. 32).

Um fato marcante da organização desse grupo é

que continua o costume, de tudo ser resolvido em grupo, porém a palavra final é sempre da liderança mais antiga da comunidade. Nesse processo organizacional, as lideranças se reúnem para discutir situações conflituosas, articulações da comunidade, aconselhamentos ou mesmo autorização de pesquisadores no contexto quilombola.

O papel da liderança na comunidade quilombola, para Mendonça (2008, p. 19), tem as seguintes características:

Cada indivíduo sofre influência da sociedade em que vive, mas, ao mesmo

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tempo, exerce alguma influência sobre ela. O simples facto de existir, ocupando um espaço, sendo visto ou ouvido [...]. Concepção similar é partilhada por Amaro (2002) quando afirma que a liderança comunitária deve: valorizar a diversidade, partilhar responsabilidade, ser orientada pela a ação e focalizar-se no desenvolvimento da sua comunidade, construindo e desenvolvendo as capacidades locais.

Com base na análise de Mendonça (2008) sobre a

liderança comunitária da região do Ceará, faço uma aproximação com as lideranças na comunidade quilombola da região centro-sul do Paraná. Existem diversos líderes quilombolas, mas alguns estão em processo de aprendizado para serem os transmissores da tradição e da cultura na comunidade. Eles podem ser comparados com o que na África se denomina de futuros griôs. Com isso, percebo que os próximos narradores quilombolas são líderes que partilham responsabilidades. Existem outros tipos de lideranças, mas cito aqui apenas alguns: a liderança que traça o processo político da comunidade, representando em eventos públicos e na organização administrativa. Com o advento do colégio quilombola, surgem lideranças responsáveis pela descrição da educação quilombola para os que não pertencem ao quilombo. Há ainda líderes que assumem a responsabilidade dos costumes da capoeira, como também algumas lideranças que cuidam da administração da igreja local (catequese, missa, festividades, patrimônio, adornos). Existem também líderes incumbidos pela logística das residências ou espaços em que as famílias podem construir as suas casas no território quilombola e a líder que cuida dos ensinamentos da terra, lidando com as ervas medicinais.

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Desse modo, nessa comunidade quilombola, as mulheres mais antigas são responsáveis pela transmissão do conhecimento, como também pelo ensinamento de novas lideranças. Essas transmissoras são nomeadas neste trabalho de narradoras quilombolas. Tal denominação vai de acordo com o pensamento de Souza (2011), visto que no Brasil passou a ser comumente associada às mulheres, pois foram as negras que se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias.

Na comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista, conforme a descrição de algumas lideranças antigas, as narradoras podem ser encontradas em duas situações: na primeira, elas se apresentam na sua sociabilidade familiar, ensinando somente os seus entes queridos sobre os costumes e as tradições do lugar. Contudo, também há aquelas narradoras quilombolas que apresentaram características de liderança comunitária que, além de transmitir os seus saberes para o contexto familiar, aconselham toda a comunidade quilombola e a ligação desta com os não quilombolas.

A ligação de líderes quilombolas com o contexto não quilombola se dá também em decorrência das políticas públicas. As comunidades tradicionais quilombolas estão em voga e, consequentemente, recebem muitas visitas dos não quilombolas. Há narradoras quilombolas que evitam se apresentar para um grande grupo ou mesmo se preocupam com a comunidade, preferem se responsabilizar somente pelo contexto familiar.

Entre as lideranças que atualmente detêm o poder na comunidade da região centro-sul do Paraná, prevalecem as mulheres, o que para os quilombolas não é estranho, ao contrário:

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Desde o princípio foi assim, as mulheres tomaram as rédeas para não ter mais maus-tratos físicos e psicológicos. Aqui na comunidade foi diferente. A liderança sempre foi responsabilidade das mulheres. Só agora que temos um presidente homem no quilombo e isso é pra somar forças (SILVA, 2015b) (Arlete).

Arlete instala um mundo possível pela voz das

mulheres na liderança da comunidade. A sua expressividade nesse momento transformou-se, o peito ficou mais elevado, o movimento dos braços mais definidos e a voz com uma tonalidade mais forte. Essa situação também foi indicada pelas outras duas contadoras. No começo, como afirma Cida, os homens até tentaram bater nas mulheres. Arlete confirma que tudo mudou com o tempo e, principalmente, dizer a partir do momento em que as mulheres avançavam nos estudos. Já Trindade não menciona, só faz uma expressão facial mudando o formato da boca para um lado do rosto e mantendo os olhos um pouco fechados, parecendo uma reprovação ou mesmo querendo evitar lembrar sobre o assunto. 4.1.3 Narradoras antigas, suas práticas e a escolha das futuras narradoras

Como já foi descrito anteriormente, a prática de

narrar histórias é das líderes mais antigas. A função em cada comunidade é repassada para a pessoa que gosta de escutar e de transmitir. A escolha dá-se pela observação tanto de quem quer aprender como de quem ensina. A líder mais velha observa tudo e transmite o conhecimento para um ente querido, mantendo o legado familiar. Nesse processo, cada narradora tem uma maneira corpórea de transmitir o conhecimento,

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destacando o que não pode ser esquecido e nem deixado de lado.

Na comunidade da região centro-sul do Paraná, foram relatadas algumas situações em que as narradoras antigas transmitiam os seus conhecimentos, o legado da comunidade. Essas narradoras utilizavam o entorno do fogo de chão para transmitir os seus saberes, podendo ser um momento de lazer entre avó e netos como também no momento de arrumação dos cabelos das sobrinhas. Antigamente, as narrativas sempre ocorriam no período da noite, no entorno da fogueira, nos momentos que antecediam a hora do sono.

A narradora Arlete menciona que a sua avó tinha um costume diferente para fazer as suas narrativas, e provavelmente era uma maneira de acalmar o grupo de crianças das quais cuidava, conforme o relato abaixo:

Minha avó colocava umas latas perto das cinzas do fogo do chão pra fazer comida do cachorro, o trempe pra cozinhar feijão. À noite, ela tinha um banquinho comprido (demonstra com o gesto) e colocava um tijolo assim e ficava meio deitada assim (SILVA, 2015b) (Arlete).

Essa posição da avó relatada por Arlete era com o

braço segurando a cabeça, deixando o corpo inclinado (Figura 24). A narradora cita ainda que a avó ficava com os netos, uma média de seis a oito crianças, porque as mães dessas crianças trabalhavam na fazenda. Entre os enredos das narrativas da sua avó, estava o seu finado avô, que brigou na Guerra do Paraguai depois de ter ingressado na Guerra dos Farrapos, mas fugiu para seguir as expedições que vieram para Palmas, as bandeiras.

Minha avó dizia: as bandeiras. Eu nem sabia o que era bandeira, mas minha avó

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dizia que ele cozinhava em um panelão, até hoje temos esse panelão. Era o cozinheiro das expedições. Ela dizia que vinha na frente pra cozinhar pra todos. E os outros vinham muito atrás. Mas, o meu avô que cozinhava pra todos na expedição (SILVA, 2015b) (Arlete).

Figura 24 – Gravura representando a avó da Arlete narrando as suas histórias

Fonte: gravura feita pela autora (2016)58.

A narração da história do fogo de chão era feita por

uma contadora que ficava na posição deitada, tinha um banquinho escuro, comprido. Deitava no banquinho com a cabeça um pouco levantada. Esse processo era diário, porém, antes da narrativa, era necessário ter a

                                                           58 As gravuras tiveram como inspiração elementos presentes em desenhos de dançarinos africanos e também em tecidos africanos.

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concentração, que era conquistada pelo sono das crianças.

Toda noite era assim, já sabíamos o horário da narração de histórias quando a vovó ia perto do banquinho. Ela tinha que contar história pra nós e cochilar naquele banquinho. Primeiro ela cochilava um sono e depois ia contar histórias. E nós tudo em volta se esquentando. Deus me livre se movimentasse ou falasse durante o sono da vovó. E se acordasse ela, socorro! Ela acordava e dava umas chineladas. Nós tínhamos que respeitar aquele momento, falar bem cochichado ou nem falar. Eram bastantes netos que paravam com ela: eu (Arlete), Carminha, Dino, Vardo, Dide, Valdemar. Nós conversamos demais, minha avó dizia que eu era rinchadeira, porque vivia dando risada. A Baia (não era muito negra) para de rinchadeira. Lembro que no fogo de chão fazíamos o borralho – o pinhão com brasa. (SILVA, 2015b) (Arlete).

Pela descrição da narradora de história, a sua

inquietação durante a infância foi o que a destacou entre os primos, como também a sua avó já tinha percebido que Arlete poderia ser a futura líder da comunidade. As outras duas narradoras também descreveram situações semelhantes, eram muito ativas e prestavam muita atenção nas histórias dos antigos.

Outra maneira por meio da qual as antigas narradoras repassavam os seus conhecimentos era no momento de lazer ou quando resolviam arrumar os cabelos das meninas, fazendo pequenas trancinhas. Tia Laida narrava costumes da comunidade enquanto arrumava os cabelos ou passava os seus cremes na pele.

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Como eram momentos íntimos, poucas pessoas participavam da situação:

Já a tia Laida contava as histórias quando fazia tranças nas meninas. Geralmente fazia trancinha na Mary e contava alguma história junto, as tranças eram a coisa mais linda, começava de dentro pra fora, sempre em círculo. Não fazia reta, aliás, era raramente. O que mais gostava era das tranças miúdas e circulares. Outro costume da tia Laida era passar um creme da Vitamoinst ou Nívea, ela contava história e ficava passando creme nos braços e nos pés. Tinha que ver os braços e as pernas da tia. Morreu com oitenta e poucos anos, mas não parecia. A gente conhece a idade da pessoa devido às rugas das mãos e dos braços. Da tia Laida não, era um braço bem bonito. Contava os causos e ia passando os cremes no corpo. Não é que nem agora, que passa os cremes e pronto. Ela levava horas, contando e passando o creme. Às vezes, eram as meninas que passavam os cremes nos pés dela e junto contava a histórias (SILVA, 2015b) (Arlete).

Tia Laida deixou marcas na vida das suas

sobrinhas, tanto que durante o momento em que estão relatando esse costume, uma das sobrinhas que são filhas da narradora Arlete começa a fazer tranças na sua irmã. De vez em quando, vai ao espelho para ver se o resultado é ou não satisfatório. No semblante, a sobrinha parece lembrar-se da sua tia e fica um tempo parada. Logo em seguida desmancha o penteado (Figura 25). Outro fato é que, segundo a sobrinha-neta, enquanto passava creme no corpo, muitos eram os causos para se contar; causos de assombração ou causos de costumes da comunidade.

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Figura 25 – Tia Laida com a sua sobrinha Mary narrando histórias

Fonte: gravura59 feita pela autora (2016).

Segundo as narradoras, a região era habitada

primeiramente pelos indígenas que moravam perto dos negros, e certos costumes foram inseridos na rotina tanto quilombola como indígena. Assim, ambos os grupos – quilombola e indígena – aprenderam um com o outro. Já o costume de narrar histórias no quilombo é repassado de uma mulher para outra: de mãe para filha; de tia para sobrinha; e de avó para neta.

A transmissão de conhecimento que caracterizava um momento de lazer dependia também das práticas

                                                           59 Desenho simbolizando uma mulher quilombola adulta fazendo trancinhas em uma quilombola criança. Nesse momento, acontecia a narrativa quilombola da tia Laida para as sobrinhas Rosemary e Zany.

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cotidianas. A região de Palmas é muito fria, e era comum usar a casa como abrigo, reunindo a família na cozinha e em volta do fogo de chão e, posteriormente, do fogão a lenha. Esses eram os lugares privilegiados dessa reunião. Mas, se o tempo estivesse bom, geralmente no verão, a conversa acontecia mesmo era no terreiro, no final da tarde, logo após o trabalho, ou no domingo. Nos dias de calor, ainda hoje vigora esse costume antigo.

Já o momento de preparação de alimentos era bem propício para a troca de saberes, como mostra a Figura 26. Figura 26 – Gravura que representa narração60

 Fonte: gravura elaborada pela autora (2016)

                                                           60 Gravura que representa o momento das narrativas contadas durante o preparo do alimento, com trempe para fogo de chão.

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Ao mesmo tempo que ensinava, a contadora de histórias preparava o alimento temperado pelas narrativas e pelos aconselhamentos. Vivenciei também muitos momentos assim, porém não com trempe, conforme a Figura 26. Hoje nas casas quilombolas o fogão a lenha é corriqueiro. Duas das narradoras quilombolas, apesar de terem fogão a gás em suas casas, utilizam somente o fogão a lenha. Dizem que a comida fica mais bem preparada e com um sabor totalmente diferente.

Para Cida, as antigas narradoras faziam a contação de forma diferente. Ela se lembra da sua avó lhe contando sobre a vinda para Palmas como uma saga de sacrifícios.

Ela teve o seu bebê e logo teve que fugir. Como estava de dieta, correu muito, mas não aguentou e caiu no banhado. Depois disso, não conseguiu mais levantar. O neném faleceu e ela ficou tetraplégica. Correu por muito tempo dentro dos banhados e não podia consigo mesma (SOUZA, 2015) (Cida).

Quando a contadora narra sobre a forma como a

sua avó lhe contava a história, não demonstrou em nenhum momento tristeza, e sim um grande gosto pela vida. A figura faz menção a momentos em que a avó de Cida narra os costumes quilombolas. Quando descreve a avó, Cida faz gestos muito leves e fluidos (Figura 27).

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Figura 27 – Cida com a sua avó

Fonte: gravura elaborada pela autora (2016)

A contadora Cida tem a expressividade corporal

marcante, e tudo indica que foi um legado de sua avó, usava os braços como, provavelmente a avó tetraplégica, que gesticulava bastante os braços e o tronco durante as narrativas. A expressividade corporal de Cida destaca-se pelos detalhes, como também, da mesma forma, a sua tonalidade vocal. Durante as narrativas de Cida, ela convidava os ouvintes para se sentarem perto do fogo a lenha. Iniciava a narrativa com poucos gestos, mas logo depois ampliava os movimentos dos braços, sempre intensificando quando precisava chamar a atenção para algo ou mesmo para marcar com expressões corporais e vocais outros personagens da sua fala.

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4.1.4 As mulheres e a mudança significativa na comunidade

Em um contexto mais amplo e relacionando ao

período de mudança significativa na comunidade, que ocorreu na década de 1970 e 1980, do século XX, as mulheres começam não só a trabalhar com atividades domésticas, mas buscam formação escolar para desenvolver outras aptidões profissionais, como do setor administrativo, educacional e da saúde. Provavelmente, essas mudanças estão de acordo com o que Rodrigues (2013) delineia no seu artigo Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e prática feminista no Brasil, ao reconstruir o percurso histórico de formação do ativismo negro e do movimento de mulheres no Brasil contemporâneo, bem como os seus dilemas para incorporar pautas específicas das mulheres negras.

Para Rodrigues (2013, p. 8),

a consciência de que a identidade de gênero não se desdobra automaticamente em solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres negras a enfrentar, no interior do próprio movimento feminista, as contradições e as desigualdades que o racismo e a discriminação racial produzem entre as mulheres, particularmente entre negras e brancas no Brasil.

Em suma, no movimento descrito por Rodrigues

(2013), as mulheres feministas brancas buscavam os seus direitos igualitários aos dos homens. Todavia, as mulheres negras possuem demandas específicas, querem a sua visibilidade como ser humano no contexto social e pessoal.

As mulheres negras se protegem e protegem aqueles que estão no seu entorno, as narrativas

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quilombolas geralmente são difundidas para o grupo de mulheres em todas as fases de sua vida. O desconhecimento dessas formas de proteção por parte dos não quilombolas é proposital. E nesse sentido é necessário cuidar daquilo que pode ficar acessível. Durante todo o meu processo de pesquisa, sempre fui acompanhada por minha guia com aconselhamentos, e a sua presença me permitia acessar lugares e práticas que sozinha eu possivelmente não conseguiria por não ter autorização para tal. O conceito de interseccionalidade, na sua origem, permite dar visibilidade às múltiplas formas de ser mulher. A interação com a realidade sócio-material da vida de mulheres na (re)produção e na transformação de relações de poder.

Ao acentuarem que há uma multiplicidade de identidades femininas, e de ações políticas a elas vinculadas, as mulheres negras chamam a atenção, sobretudo, para o fato de que, ao proporem uma unidade entre as mulheres contra a opressão do modelo patriarcal da sociedade ocidental, as mulheres brancas se esquecem de que elas próprias oprimem outras mulheres, ou seja, ao mesmo tempo que são subordinadas numa dada situação social pelos homens, também oprimem mulheres negras e de estratos sociais inferiores (RODRIGUES, 2013, p. 8).

As questões de gênero estão bem imbricadas em

relações de poder bastante complexas. A questão do poder apontada por Michel Foucault (2002) no seu livro Em defesa da sociedade é a relação do poder e dos seus efeitos na história na composição de uma nova visão das intercorrências que estabelecem as relações de força e dominação. O desenvolvimento de princípios de defesa social contra aqueles indivíduos ou classes considerados

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“perigosos”. Nesse sentido, o pensamento de Foucault (2002) está preocupado com o governo dos vivos ou, como ele afirma posteriormente, com as formas de poder e saber que tornam os indivíduos sujeitos.

No caso, os sujeitos são as mulheres que buscam compreender as relações sociais e que desejam modificá-las. Dentre essas relações, as narrativas quilombolas apresentam o saber que tornam as vozes dessas mulheres legítimas na relação opressor-oprimido.

4.2 AS TRÊS MARIAS DA COMUNIDADE ADELAIDE MARIA TRINDADE BATISTA

As Marias da comunidade Adelaide Maria Trindade

Batista são mulheres que representam a Comunidade quilombola da região Centro-Sul do Paraná, responsáveis pela transmissão dos costumes dos ascendentes para os seus descendentes. As narrativas dessas mulheres apresentam um sistema de sentidos em torno do contexto comum quilombola: o pertencimento, a valorização da cultura local e o resgate da memória. Com a convivência na comunidade, percebo que certos códigos estavam implícitos na própria rotina pessoal e comunitária, uma inter-relação iniciada com o engajamento local, como também o grande número de mulheres que se chamam Maria.

A princípio, o bairro São Sebastião do Rocio me chamou a atenção devido ao fato de que entre dez moradoras, oito tem o nome Maria. A grandiosidade de moradoras que tem em seu nome Maria, parece ser um sinal de respeito à Maria, mãe de Jesus Cristo. Contudo, ao serem apresentadas ou reportadas a outras pessoas, todas são conhecidas pelo seu segundo nome. Maria simbolicamente nos remete às Marias da comunidade

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Adelaide Maria Trindade Batista. Com isso, busco compreender o significado do nome Maria.

No dicionário Aurélio, Maria tem o significado de “senhora soberana”, “mulher que ocupa o primeiro lugar”, “vidente”. As mulheres na comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista ocupam sim o primeiro lugar, ou buscam o seu lugar na vida, e não são poucas Marias: Maria Arlete, Maria Adelaide, Maria Luz, Maria Aparecida, Adelaide Maria, Maria Conceição, Maria Lucia, Maria Aparecida, Maria Trindade, Maria Eduarda, Maria Clara, Maria Joana, Anamaria, Maria Claudia, Maria Isabel, Maria Júlia, Maria Claudia, Maria da Conceição, Maria Catarina, Maria Sol, Maria Poncidónia, Maria das Dores, Maria do Socorro, Maria Lua, Mariana, Maria... Dar esse nome às mulheres que nascem na família acaba se tornando uma tradição familiar. Para uma melhor condução desta dissertação, vamos nos concentrar nas três Marias, as líderes que são oriundas da comunidade Adelaide Maria Trindade Batista.

As narradoras de histórias quilombolas Maria Arlete Ferreira da Silva (Arlete), Maria Adelaide Trindade (Trindade) e Maria Aparecida Souza Santos (Cida) são mulheres negras, idosas, líderes quilombolas e remanescentes de pessoas que foram escravizadas. Essas estrelas61 (Figura 28) estão sempre presentes para

                                                           61 Popularmente, na Astrologia, o nome dado a um asterismo

de três estrelas que formam o cinturão da constelação de Orion é chamado de Maria, ou melhor, três Marias, que para a Astrologia se chama o caçador. Nossas três Marias não têm o papel de caçar, mas as suas teatralidades representam um momento expressivo da diversidade cultural do povo para o povo. Na Astronomia, as estrelas são facilmente identificáveis quando visualizamos o céu, devido ao seu brilho e por estarem de alguma maneira alinhadas. Fazendo essa alusão à constelação das Três Marias, apresentamos as nossas Marias de São Sebastião do Rocio, que pelo brilho e principalmente pela fácil identificação dos moradores quilombolas apresentarão nas

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aconselhar e principalmente difundir os seus conhecimentos quilombolas para os seus entes e também para os não quilombolas.

Figura 28 – As três Marias de Adelaide Maria Trindade Batista62

 

Fonte: Acervo pessoal da autora (2016)

As nossas Marias são oriundas de histórias de luta

pela sobrevivência. Todas elas assumem papéis sociais diversos de acordo com o momento e a situação que estão vivenciando. A cada período da história de vida pessoal, a agitação mencionada pelas três quando eram crianças parece ter sido a marca para serem as escolhidas como líderes. Ser líder não é apenas

                                                           suas narrativas características diferenciadas e de grande repercussão para o grupo a que pertencem. 62 Esquerda para a direita: Maria Arlete (Arlete), Maria Aparecida (Cida) e Maria Trindade (Trindade).

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comandar, como cita Silva (2015). Quem é líder tem de ter a paciência e, principalmente, um olhar atento para todos os sinais.

4.2.1 Maria Arlete Ferreira da Silva (Arlete)

A primeira contadora tem 72 anos e é mãe de sete

filhos, sendo cinco homens e duas mulheres. Possui ainda, em média, 17 netos e alguns bisnetos. Aprendeu a ser líder familiar e líder política com a sua avó Maria Joana Ferreira. É uma mulher que se nomeia guerreira e batalhadora. Foi lavadeira e agora é professora aposentada. Cursou Filosofia na universidade e gosta muito de ler. É uma pessoa muito procurada pelos pesquisadores por ser uma líder política, é um laço entre a comunidade quilombola e os não quilombolas.

Maria Arlete Ferreira da Silva é considerada uma das mais antigas da Comunidade Quilombola Adelaide Maria Trindade Batista. Transmite os saberes quilombolas para a comunidade e sempre está fazendo palestras na região. Tornou-se uma líder política devido à sua articulação na comunidade e para a comunidade. Assumiu a condição de líder quando a comunidade foi ocupada por pessoas não quilombolas, conforme menciono no Capítulo I. Com isso, não só teve de cuidar da sua família, da igreja católica local, mas também da comunidade. “Passei por tantas situações que nem acredito. Tudo é um aprendizado” (SILVA, 2015b) (Arlete).

Ela participa tanto de conselhos municipais como também estaduais nas áreas de saúde, alimentação saudável e educação. Participa também das ações da igreja católica local e da associação Lions Club63. Como é

                                                           63 Lions Club é uma das maiores organizações internacionais de clubes de serviço do mundo, fundada por Melvin Jones e voltada para ações humanitárias. Seus membros, denominados de “Companheiro

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filósofa e professora aposentada, lê muito, o que influencia sempre nas suas narrativas.

As histórias que prefere contar são as que citam nomes dos antigos. Arlete lista sempre diversos nomes e pede desculpas caso tenha se esquecido de alguém. Gosta de ser chamada por Arlete e tem um ar jovial, o que se percebe por seu modo de falar e de vestir. Nas suas roupas, prevalece a tonalidade de cores fortes, e observa-se que ela é muito vaidosa. Não gosta que tirem fotos dela ou que a filmem se os trajes não forem adequados sob o seu ponto de vista. Várias vezes não me autorizou a filmá-la ou mesmo a tirar fotos dela porque estava com o que citou de “roupas de batalha”, uma roupa que usa em casa, mais simples.

A narração informal da Arlete acontecia no âmbito familiar, geralmente em ocasiões em que estavam presentes netas, sobrinhas e esposas dos seus filhos. Já a narração formal acontecia durante os eventos, quando visitantes iam à escola para conhecer um pouco mais da realidade quilombola. Nesses eventos, Arlete se arrumava para recebê-los usando “trajes de domingo64”.

4.2.2 Maria Adelaide Trindade (Trindade)

A senhora mais idosa da comunidade Adelaide

Maria Trindade Batista possui 83 anos. A sua estatura é baixa, e ela gosta de usar cores mais claras. Em seus trajes prevalecem calça, blusas claras ou coloridas e                                                            Leão” ou “Companheira Leão”, são associados aos Lions Clubes espalhados pelo mundo. 64 Trajes de domingo é uma expressão em sinal de respeito religioso que as pessoas usavam e algumas ainda usam para evidenciar quando estão com roupas mais apresentáveis. Logo que chegam em casa, elas tiram esse “traje” para colocar uma roupa de ficar em casa. Esse é um costume ainda forte na região.

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chinelos, já que fica muito dentro de casa. A tonalidade do seu cabelo é cinza, com corte curto e encaracolado miudinho. A sua voz tem um timbre forte, e ela fala pausadamente. Sempre sorridente, é vaidosa não só com a sua aparência, como também com a sua residência, que está sempre impecavelmente arrumada e bem arejada. Maria Adelaide Trindade relata que se casou com apenas 14 anos. Na época, achava que era nova demais, mas mesmo assim aprendeu os ensinamentos de uma líder familiar com a sua avó. Separou-se com apenas 22 anos. Aprendeu a viver com a escola da vida, e as suas narrativas sempre transmitem a sua alegria de viver.

Trabalhou por muito tempo como empregada doméstica, mas por 32 anos foi zeladora da Câmara Municipal de Palmas. Em 2012, recebe reconhecimento municipal com uma homenagem da própria Câmara como Cidadã Honorária.

É a primeira bisneta da primeira Adelaide Maria Trindade Batista, e atualmente é o nome em voga da comunidade quilombola, a nossa segunda Maria. Trindade relata o fato de ter nascido no mesmo dia que a sua bisavó, o que fez com que seus pais colocassem nela o mesmo nome. Nasceu quando a sua bisavó ia fazer 70 anos.

Atualmente, tem nove filhos, 40 netos e 46 bisnetos. É conhecida pelas pessoas da comunidade como Dona Trindade, em sinal de respeito, mas nesta dissertação será referida apenas como Trindade.

4.2.3 Maria Aparecida Souza Santos (Cida)

A terceira narradora é Maria Aparecida Souza Santos. Ela sempre se refere à sua memória de menina que desconfiava de todos, observando múltiplas possibilidades. É a idosa mais nova das três Marias. Cida tem 70 anos e sempre se dedicou à família e à criação

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dos seus filhos. Deixou de estudar, conforme conta, para garantir um futuro melhor aos seus entes.

Trabalhou como gari e exerceu atividades de serviços gerais em diversas escolas municipais de Palmas, mas se aposentando na escola municipal São Sebastião. Ainda hoje trabalha esporadicamente na casa de uma comadre que está com problemas de saúde e adora cuidar dos netos e das netas. Seu sofrimento pessoal se tornou gana para novas conquistas e lutas. Sempre menciona nas suas histórias a disposição, porém escolhe o momento e a quem pretende transmitir os seus ensinamentos.

4.3 REFLEXÕES SOBRE NARRATIVAS DE TRADIÇÃO ORAL QUILOMBOLA

A palavra narrativa, na literatura, tem uma relação

direta com o processo ou efeito de narrar. Trata-se da exposição de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos encadeados, reais ou imaginários, por meio de palavras ou de imagens, que o autor Walter Benjamin compara com o ato de narrar e com o fluxo do que é dito.

A narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos [...] que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito (BENJAMIN, 1985, p. 220-1).

O pensamento de Benjamin (1985) sobre narração

chama a atenção para a importância da figura do narrador como aquele mestre e sábio que oferece conselhos. Para o autor, o narrador é um acervo de toda uma vida. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua

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narração consumir completamente a mecha de sua vida. O pensar do teórico Benjamin sobre narrador, a junção das palavras narrativas com quilombola, fazem refletir sobre o discurso narrado perante a carga simbólica da comunidade tradicional, e, por isso, apresento as narrativas quilombolas como um repertório de valores culturais, com raízes e personalidades regionais. Para tal, faço uma análise com base no fluxo da voz, os gestos se adequando à tradição oral.

A tradição oral ocorre geralmente durante o ato da narração, onde são transmitido os conceitos e as tradições culturais da comunidade. Este é o caso das narrativas quilombolas da região centro-sul do Paraná, que podem ter semelhanças com outras regiões brasileiras mas que, devido à sua colonização e por questões geográficas e climáticas, apresentam características específicas, tendo também o propósito de manter a ligação entre gerações de uma mesma comunidade. Certos valores podem ser repassados por códigos, tal como a maneira de se expressar no início ou no fim das narrativas, considerando-se a oralidade ou a expressividade corporal.

As narrativas falam sobre os problemas com os quais os indivíduos se defrontam na sua rotina comunitária. Ao mesmo tempo, os elementos simbólicos acionados permitem criar um distanciamento para reflexão. O momento da comunicação ocorre geralmente em situações informais de sociabilidade do indivíduo, tornando-se um conhecimento-base para a convivência em grupo nas sociedades a partir da transmissão pela oralidade. Institui-se uma relação do mais experiente com o menos experiente, com os espaços de aprendizagem em torno da família e dos encontros comunitários.

As narrativas selecionadas a partir de vários encontros com as líderes quilombolas apresentam

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momentos diferenciados, assim como os locais de socialização – a casa, a igreja e a escola.

Classificar as narrativas quilombolas como uma prática cultural cênica é algo a ser feito com certo cuidado, pois os conceitos oriundos do teatro se diferenciam da forma e dos conceitos com que esse fenômeno é visto pelos moradores e transmitido de geração para geração pelo contador quilombola.

Para Faria (2011), o contador é visto como produto de uma narrativa oral teatralizada, e a forma das narrativas é aberta a múltiplos significados. O autor ainda afirma que a presença da arte possui papel fundamental na formação do trânsito entre o real e o imaginário. Com a exploração do imaginário, conseguimos encontrar soluções para a construção de uma sociedade que se aproxime de valores de justiça, de igualdade e de oportunidades.

Minha condição de pessoa não pertencente à comunidade, de não quilombola, fez identificar a teatralidade presente nas narrativas que foram por mim observadas em todo momento. Utilizo as características gerais da narrativa com princípios da literatura para transcrevê-las e posteriormente fazer análises com base na fundamentação sobre os griôs proposto no esboço do Plano Nacional Griôs (2011).

Gancho (2006) afirma que narrar é uma manifestação que acompanha o homem desde a sua origem, uma atividade cotidiana praticada por pessoas comuns, e que toda narrativa tem elementos fundamentais sem os quais não pode existir. Em outras palavras, a narrativa é estruturada considerando cinco elementos principais: enredo, personagens, tempo, espaço e narrador.

Desde a forma, a autora descreve o enredo como um conjunto de fatos de um acontecimento narrado. Ela

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retrata as personagens como sendo geralmente o núcleo principal da narrativa. Um ou dois personagens que são os indivíduos que participaram dos acontecimentos e que são narrados efetivam a ação.

Com relação ao terceiro elemento presente na narrativa, caracterizado como o tempo para Gancho (2006), aborda-se o tempo fictício, interno ao texto, estranhado no enredo. Percebe-se a época em que se passa a história, a duração da história, o tempo cronológico que é explicado durante a narrativa e o tempo psicológico, visto que existe um intervalo em que as ações ocorreram, mas não se consegue distingui-lo ao certo. Já em relação ao quarto elemento estruturante da narrativa – o espaço –, Gancho (2006) o define como o lugar em que se passa a ação de uma narrativa. O espaço tem como função principal situar a ação dos personagens para que se possa imaginar com maior facilidade a ação, é o ambiente carregado de características socioeconômicas, morais e psicológicas em que vivem os personagens.

Para Gancho (2006), não existe narrativa sem narrador, pois ele é o elemento estruturante da história. Assim, tudo na narrativa depende do narrador e da sua expressividade. Podem suceder três tipos de foco narrativo: (1) o narrador personagem (onipresença), que conta a história da qual é participante; (2) o narrador observador, que narra a história como alguém que observa tudo o que acontece e transmite essa observação; e (3) o narrador onisciente, aquele que sabe tudo sobre o enredo e as personagens, revelando os seus pensamentos e os seus sentimentos mais íntimos.

Com base nos elementos estruturantes dispostos por Gancho (2006), todos os elementos (enredo, tempo e contexto da história) das narrativas se relacionam entre si, formando o enredo que constituirá um desfecho que depende do ponto de vista do narrador. Primeiramente,

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apresento o repertório narrativo quilombola para depois mostrar as unidades que o compõem.

4.3.1 Repertório narrativo quilombola

Neste trabalho, identifico algumas narrativas que

foram coletadas durante a pesquisa, numa espécie de partitura diferenciada. As narrativas são apresentadas utilizando-se o contexto e o colchete para as rubricas em uma caixa de texto para destacar as narrativas que escolhi e que vão representar a teatralidade. Ressalto que, no decorrer da pesquisa de campo, várias narrativas foram apresentadas para mim. Para esta dissertação, selecionei aquelas que me pareceram mais interessantes ao foco do trabalho. Entre os elementos cênicos, destaco o som da madeira sendo queimada no fogão a lenha (Figura 29)65.

                                                           65 No primeiro plano, a narradora Cida e, no segundo plano, o fogão a lenha utilizado corriqueiramente nessa residência. Consegui essa imagem depois que pedi para tirar uma foto dela. Para bater a foto, trocou logo a roupa, de modo que pudesse ficar mais “apresentável”.

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Figura 29 – Narradora Cida no local de costume da narração quilombola

Fonte: acervo pessoal de Carine Xavier (2016)

Em todas as narrativas, esse som está presente, às

vezes o estralo da madeira marca momentos importantes nas narrativas. Como a coleta do material de campo aconteceu no período do inverno, era comum o uso do fogão a lenha para aquecer a residência, caracterizando também a sonoplastia das narrativas.

O fogo é um elemento que está sempre presente nas casas das narradoras, sendo o entorno do fogão a lenha um lugar de acolhimento para parentes e amigos mais próximos que visitam a casa.

Para as análises das narrativas, utilizo também preceitos (tema, assunto e mensagem) norteados pela autora Gancho (2006):

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O tema é a ideia em torno da qual se desenvolve a história [...]. Assunto é a concretização do tema, isto é, como o tema aparece desenvolvido no enredo. Pode-se identificá-lo nos fatos da história e corresponde geralmente a um substantivo (ou expressão substantiva) concreto(a). Mensagem é um pensamento ou conclusão que se pode depreender da história lida ou ouvida. Configura-se como uma frase. Mas cuidado: nem sempre a mensagem equivale à moral da história (GANCHO, 2006, p. 30).

Nesse momento, apresento as narrativas

selecionadas na comunidade pesquisada, as quais foram divididas pelas temáticas que abordaram assuntos como caminhadas noturnas em proximidade com a morte, animais noturnos e a noiva da imbuia.

4.3.1.1 Narrativas sobre caminhadas noturnas

As narrativas quilombolas que classificamos com a

temática caminhadas noturnas em proximidade com a morte tinham como objetivo alertar sobre os perigos de sair à noite. Para a composição, escolhi algumas versões apresentadas pelas narradoras. Sobre essas versões, posteriormente farei um estudo comparativo falando de suas variações.

Nessa localidade, a valorização do passado é configurada pela presença marcante de muitos membros durante o ritual de velar uma pessoa que faleceu. Ao longo da pesquisa, participei de dois velórios em companhia das narradoras quilombolas. Uma delas soube que eu iria ao velório na comunidade e logo me convidou para auxiliar nas orações de outro velório. Em ambos os casos, eu estava preparada para gravar as histórias contadas, o que

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mudou a situação devido ao falecimento e à ida ao velório. Com isso, as narradoras pediam que eu esperasse o momento propício, dizendo muitas vezes que primeiro devemos vivenciar os costumes da comunidade.

Nessa comunidade, as narrativas com a temática caminhadas noturnas ocorrem geralmente no período noturno e apresentam a saga de mulheres no retorno da sua residência tarde da noite, geralmente por causa de um velório ou retornando de um baile. As protagonistas geralmente enfrentam situações de visagens ou de alerta do perigo (Figura 30). Figura 30 – A caminhada noturna

Fonte: gravura feita pela autora (2016)

As narradoras quilombolas fazem questão de utilizar certos gestos, mesmo que por muito pouco tempo, para exemplificar as atitudes dos personagens. Procuram

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imitar igualmente aquilo que imaginam que deve ser o comportamento, como é o caso do homem de terno que é mencionado em uma das narrativas. Este, mesmo arrumado com trajes formais, varre rapidamente.

Às vezes, os elementos da natureza – chuva, neblina, vento, vegetação – auxiliam no clima de mistério da narrativa. As personagens, mesmo sendo castigadas em uma situação, acabam por sair geralmente vitoriosas. As pessoas que ouvem as narrativas normalmente simpatizam com a personagem.

As três narrativas que se seguem descrevem situações nas quais as mulheres passam o período da noite fora de casa caminhando, mas que enfrentam visagens que surgem como alerta dos perigos da mata e que nela se escondem. Trindade afirma que “à noite, tudo pode acontecer”.

Narrativa 1: A caminhada noturna Trindade normalmente conta as suas histórias em

um ambiente de socialização caracterizado pela sua casa, mais precisamente a sua cozinha. Ela fica sentada em uma cadeira de palha, com os braços cruzados e com um olhar fixo (Figura 31).

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Figura 31 – Desenho representando a narradora Trindade contando a história

Fonte: gravura feita pela autora (2016)  

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A CAMINHADA NOTURNA

Contado por Trindade

O ambiente em que ocorre a narrativa é a cozinha. Essa cozinha tem a parede toda branca, que se destaca ainda mais pela claridade do ambiente vinda de todas as janelas abertas. Do lado esquerdo, tem uma mesa com seis cadeiras rústicas, com uma toalha colorida sobre a mesa e um cesto com frutas. Um pouco mais à frente, à geladeira, o fogão a gás e o banquinho de lenhas. No outro a frente tem a geladeira branquinha, enfeitada de ímãs. Logo adiante, um banco de guardar as lenhas utilizadas no fogão a lenha. O fogão a lenha está posicionado no outro lado da cozinha, ficando em frente de quem entra na porta principal. Do seu lado, há outra porta que dá para os fundos da casa. Essa porta sempre está aberta, deixando a casa bem ventilada. Do lado direito, há um armário de cozinha, uma porta que vai para os outros cômodos da casa, uma cadeira e a pia. Essa é a cadeira onde Trindade sempre está sentada. É o ponto estratégico em que a narradora senta para observar tanto a visita que chega pela porta quanto quem está passando pela rua. As portas e as janelas da cozinha estão todas abertas. As narrativas são contadas de tarde, tendo assim a iluminação do sol nesse período. A

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narradora fica bem no meio da cozinha, destacando-se em meio ao ambiente. Fica sempre sentada na cadeira perto da porta que dá para os outros cômodos da residência ao lado da pia. O fogão a lenha aquece o corpo dos ouvintes no frio do inverno, com o som da madeira queimando. A narradora está com uma blusa colorida, uma calça escura e com chinelos do tipo Havaianas. O seu cabelo está preso com um lenço amarrado, aparecendo um pequeno maço de fios brancos. Trindade me recebe com um sorriso no rosto, mas continua sentada na sua cadeira de palha. Quando contou a história da caminhada noturna, no relato estavam a sua neta adolescente, uma senhora de meia-idade e uma criança. Sempre com o braço cruzado e o rosto sem uma expressão marcante, ela dá início à narrativa.

[Pensa um pouco antes de começar, balança a cabeça de um lado para o outro. Depois o corpo. Dá um suspiro forte e faz uma pequena pausa]. Outra vez, estava voltando de um velório de uma tia [bate uma mão no peito], minha madrinha [o olhar fica mais fixo, abrindo ainda mais os olhos] que morava lá pra baixo e ela era a parteira da região [joga o corpo para o lado direito duas vezes] (Figura 32).

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Figura 32 – Gravura do velório

 Fonte: Desenho feito pela autora (2016)

Tinha dado uma chuva bem forte [treme o corpo rapidamente. Faz um som com os lábios fechados e os dentes junto para parecer a chuva], e quando abaixou, resolvemos subir [joga o corpo um pouco para a frente, sem descruzar os braços]. Quando estávamos vindo, tinha um cachorrinho bem pequenininho na nossa frente [muda o tom de voz para mais lenta e fina]. Mas, cada vez que a gente se aproximava, aquilo lá ficava grande, mas tão grande que me arrepiou tudo [descruza o braço, passa a mão no braço inteiro mostrando que está arrepiada]. Ele veio direto perto de mim... [dá um pulinho curto na cadeira e volta a cruzar os braços]. Mas daí saímos correndo e voltamos pra trás. Estava eu, a comadre Nice, a Fátima, umas cinco

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mulheres [faz som de passos rápidos com o lábio e balança a cabeça levemente]. Não contei pra ninguém, mas digo agora que ficamos lá no velório até o dia clarear. Amanhecemos sentadas. O pior que começou a voltar gente com o clarear do dia do trabalho. Daí sim, voltamos pra casa. Isso só acontece à noite, de dia fica tudo bem. É verdade! [coloca a mão na boca e começa a rir rapidamente balançando o corpo].

Trindade é uma narradora onipresente ou

narradora personagem nessa primeira narrativa. O enredo gira em torno de mulheres que encontram um animal dito indefeso num primeiro momento, mas adquire uma mudança exagerada de tamanho, tanto que as personagens, as mulheres, retornam correndo para o velório. A mudança da tonalidade vocal no trecho que descreve o pequeno animal, o descruzar dos braços, o som produzido pelos lábios, tudo são estratégias utilizadas durante a narrativa visando contribuir para a ambientação da história. Da mesma forma, a revelação do segredo que vem com a frase Não contei pra ninguém, mas digo agora que ficamos lá no velório até o dia clarear torna os ouvintes cúmplices da história e prontos para o desfecho final, é um alerta. Como Trindade pronuncia a frase Isso só acontece à noite, de dia fica tudo bem. É verdade!., o ar de comicidade deixa a narrativa mais branda, principalmente por se tratar de uma narrativa rápida e que finaliza com uma risada continuada.

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Narrativa 2: O homem de terno Na narrativa O homem de terno, Cida apresenta a

temática Caminhadas noturnas em proximidade com a morte, tendo o seu enredo em torno de uma saga de duas mulheres e de uma visagem. As personagens passam uma situação-limite com uma visagem de um homem. Porém, não é um homem qualquer, é um quilombola que, após a sua morte, é incumbido de cuidar do cemitério local. No primeiro momento, o homem usa um terno e, posteriormente, roupas típicas da região devido à origem dos antepassados, o traje gaúcho. Ressalto que ambos os trajes são formais na região – terno e roupas típicas. O ambiente da socialização da narrativa é caracterizado pela residência da narradora, no período da tarde. A casa possui diversas vegetações em seu entorno, o que a deixa mais escura, e as suas paredes são de madeira do tipo compensado. O ambiente parece acolhedor e, ao mesmo tempo, escuro. Cida evita usar a luz elétrica, deixando um clima quase noturno no ambiente.

O Homem de terno

Contado por Cida

A imagem de um homem de terno, cuidando de longe sempre vem à tona quando alguém faz menção a situações de perigo, como acontece na narrativa quilombola, parecendo um conto em que aumentamos um ponto. A narradora Cida recebe os visitantes em alguns momentos na sua sala e em outros na cozinha. A

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narrativa sobre o homem de terno aconteceu na sua cozinha. Sua residência é de madeira compensada, e para entrar nela, solicito licença. Antes de entrar, passo por uma pequena varanda com diversas vegetações. A sua cozinha fica do lado direito da casa. Logo quando entro, no lado esquerdo, observo o fogão a lenha e duas cadeiras para sentar bem na frente do fogão. Na frente desse fogão, há uma mesa com uma toalha azul e branca, com quatro cadeiras de madeira clara. Do lado da mesa, vejo uma porta de acesso para o quarto. Ainda em frente, no cantinho esquerdo, tem uma geladeira branca cheia de ímãs coloridos, já no canto direito, uma porta e um fogão a gás. Do lado direito, observo uma porta com cortina de lençol colorida que dá acesso ao banheiro. Um pouco antes, um armário de cozinha com a pia embutida. A narradora está sentada do lado do fogão a lenha, tendo acesso direto para a porta da cozinha, que dá visualização total da rua. O som das narrativas acontece direto devido a lenha estar sempre aquecida no fogão a lenha. Às vezes, o estralo da madeira queimando auxilia a narrativa. Nesse dia, Cida usa como enfeite uma faixa preta na cabeça. Ela tem cabelos curtos e com cachos bem miúdos. Escolheu como traje uma blusa vermelha, uma calça azul e um chinelo de dedo. A narradora está sentada numa cadeira amarela, muitas vezes fica na ponta, quase saindo da cadeira. Tem uma gestualidade fluída.

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[Antes de começar, faz bico com os lábios como se fosse um beijo] Essas histórias de visagens aconteceram mesmo... [muda o tom de voz e balança um braço rapidamente]. Hoje ninguém mais quer saber, mas eu vi, de eu mesmo correr da lenda, da visagem66. Ihhhh... Eu vi homem de terno na frente do cemitério [bate na cadeira forte] (Figura 33). Então... [faz uma pausa longa]. Estava vindo eu e minha comadre Mariza, já era meio tarde [balança o braço de um lado para o outro, muda a fisionomia do rosto], tipo uma hora e pouco da manhã, de lá pra cá. Nós estávamos na noite, voltando do baile. Aí, quando eu e a comadre Mariza estávamos chegando bem perto do cemitério [faz uma careta e um som], ela vinha muito bem [cantarola uma música], vinha cantando [para de repente, faz uma pausa grande]. Ouvi aquele chepchepchep [imita o som de varrer o chão com vassoura de folhagem e faz os gestos corporais, continuando sentada] na calçada. Aí pensei comigo [solta um som]: quem é que está areando a calçada [fala pausadamente]? Parei, olhei e fiquei bem quieta.

                                                           66 Visagem - na comunidade quilombola, os habitantes explicam que visagem é algo que aparece para alertar, como uma mensagem do sobrenatural.

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Figura 33 – Gravura do homem pilchado67

Fonte: gravura feita pela autora (2016)

Só que ele varria só assim [faz o gesto com o corpo, para frente e para trás, e com o braço faz como se estivesse varrendo] e de lá ele voltava [gira o corpo tentando visualizar de lado. O olhar também fica bem de canto]. Nunca dava a frente, só as costas [abaixa o rosto, tenta olhar meio de lado].

                                                           67 Traje típico gaúcho se chama pilcha. Homens ou mulheres que estão usando este traje são considerados pilchados.

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[Muda a tonalidade da voz] Dizem que pessoas assim que nunca dão a frente pra gente, só as costas, são visagens [fala pausadamente]. Pra não mostrar o rosto. [faz o gesto enquanto fala]. Daí vai pra lá e vem pra cá, sem mostrar o rosto. Daí eu olhei assim [faz uma careta, com a bochecha mais levantada do lado esquerdo da face]. Quando ela [aponta o dedão para mostrar a outra pessoa], a comadre Mariza chega perto e aiaiaiaiai... [começa a se arcar para a frente quando pronuncia o aiaiaiai]. Eu já fui dizendo, o que houve, comadre [muda a voz]? Você viu, tem um homem varrendo [muda novamente a voz]! Que homem varrendo, mulher [balança o rosto para o lado rapidamente]? Eu estava enxergando até, mas não queria assustar. Ah, deixe de lado. Aí... [uma pausa pequena] parei e comecei a dar risada [balança muito o corpo para frente e para trás]. E ele ia bem ligeirinho, chepchepchepchepchep [faz som de varrer o chão com a vassoura, faz posição com os braços como se estivesse varrendo e movimenta-se enquanto fala chepchepchep], e voltava. Daí eu disse assim: [fala paulatinamente] de terninho marrom. Eu já sei quem é, meu falecido sogro. [muda a voz] Pare, louca [volta a falar paulatinamente e mais grave]! É meu sogro sim, olhe o tamanhinho dele. Olhe lá! [bate palma] [muda a voz mais fina e nervosa] Eu não tô vendo tamanhinho nenhum.

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[fala intensivamente e rapidinho] É meu sogro sim. [muda para mais grave e paulatinamente] Varra sogro, varra. [fala normalmente]. Daí ele veio novamente com aquela corridinha, aquela varrida chepchepchepchepchep [arca o corpo e imita uma pessoa varrendo]. Passei, pedi benção [une as duas mãos como se fosse rezar] pra passar de frente do cemitério e, quando cheguei perto, fiz assim [vira o rosto de lado quase se encostando ao ombro] quando o enxerguei na esquina. Eu fiquei bem quieta [faz uma pausa bem grande]. [muda o tom de voz]. Ela, aiaiaiaiaiai, onde está o homem? [volta a mudar a voz] Eu não tô vendo homem nenhum [mas eu estava vendo, pra não apavorar ela dizia que não tinha homem nenhum]. Daí, quando nós cheguemos ali mais pra frente, perto da panificadora nova que desce do cemitério, olhei assim [olha de lado], e ele já não estava com aquela roupa, estava de gaúcho. De gaúcho, de bombacha68, preta, tudo de preto, casaco tudo, como eles usavam antes. Tudo de preto. [passa a mão no corpo todo e depois faz uma posição de imponência]. Está bem, fique com Deus, o Gaúcho veio [balança o braço bem devagar dando adeus]. É meu sogro, era domador, né? E daí eu perdi ela que ia têtêtêtê na minha frente e eu bem devagarinho.

                                                           68 Bombacha – uma espécie de calça franzida na perna muito utilizada para se montar a cavalo e participar de rodeio.

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Quando cheguei cá em cima do ginásio, eu olhei ele, estava no mesmo lugar parado lá, aquele homem. Nem dei bola, eu peguei e vim. Encontrei de novo com ela, que se pendurou em mim e que estava quase me deixando pelada [arca o corpo para o lado como se tivesse alguém e mexe na roupa]. Viemos, e eu disse assim: Mariza, eu vou pelo aeroporto. Eu não vou atorar pelo aeroporto. Eu disse: vai sim. A estrada é mais perto do que ir por lá. E fomos pelo aeroporto. Quando chegamos ali, bem na pista do campo, por ali. Daí, eu enxerguei aquele vento, e deu aquela claridade e logo escureceu. Mas eu não falei nada pra ela. Aí eu peguei e me concentrei e vim, vim. Daí, quando nós chegamos, pra nós passar pro nosso lado, quando vi já estava uns vinte metros longe do nosso carreador69. Daí aquela voz dizia assim: pra cá não, pra cá não. Eu já fui falando pra cá não nada [tom de voz alta e grossa]. Ah, pra cá não nada. [muda a voz]. Como pra cá não? Eu vou sim pra minha casa [muda a voz pra mais grave de novo]. E a voz repetia: Pra cá não. E a Mariza gritava. Eu dizia: não grite, não grite. [pula da cadeira, faz uma pausa grande]. [muda a voz novamente]. Então tá, se não é pra cá, então vamos pra cá [faz o gesto com o corpo ao contrário] que eu acho aonde ir. Fiquei mais uns cinco metros no carreador, entramos no carreiro e viemos. E a voz ficou lá

                                                           69 Carreador – é o mesmo que carreirinho, uma estradinha bem pequena que passa pela mata adentro.

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longe dizendo vá vá vá vá... [quando pronuncia o vá...vá...vá faz som como se fosse eco] quando nós chegamos ali. Quando cheguei ali naquelas casas, no último mercadinho que vem ali onde era do Vanderlei antes, indo pra cá, é o primeiro ali, né? Ali tinha o pinheiro, que era o pinheiro do descanso. Aí, não sei só sei que ela achou um... De repente, aparece um outro louco, e ela já vai embora com ele. Eu já disse [faz um gesto com o braço balançando as mãos rapidamente pro lado] vávává vai com ele... [fala rapidinho], eu não vou. Daí, vamos, dona Cida. Não, eu não vou. Daí vai eu e Deus a pé.

Cida é uma narradora personagem que traz nesse

enredo uma visagem da noite. Apresenta a figura masculina usando trajes formais, tais como roupa tradicional gaúcha e terno, trabalhando em serviços braçais enquanto duas mulheres estão voltando da festa. A narradora personagem tenta descobrir quem é o homem de terno, e logo que isso acontece, a sua vocalidade se expressa com um tom mais alto. Sua corporeidade é fluida e contínua (Figura 34).

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Figura 34 – Expressão corporal da quilombola Cida durante a sua narração

Fonte: desenho feito pela autora (2016)

A narrativa é ambientada na madrugada, ainda

escuro, tendo como lugar as proximidades do cemitério local. A narradora já apresenta de início que se trata da saga de duas mulheres um pouco alteradas por causa de substâncias alcoólicas, justificando e ao mesmo tempo alertando para os perigos desse estado e de mulheres andando sozinhas à noite.

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Narrativa 3: A procissão Trindade é configurada como uma narradora

observadora. A terceira narrativa tem como tema duas mulheres que se deparam com uma visagem, na região próxima ao cemitério local, a procissão das almas. No folclore brasileiro, a procissão das almas possui diversas versões, sendo esta uma narrativa comum no meio popular. Na narrativa em questão, pretende-se chamar a atenção para a diversão exagerada.

A Procissão

Contado por Trindade

A narrativa 3 é contada por Trindade. Os elementos presentes cenicamente são similares aos da narrativa 1. O ambiente de troca de saberes da terra continua sendo a sua residência, a sua cozinha. O tempo psicológico da cena é no período da noite, e o tempo cronológico da cena acontece de dia.

[Uma pequena risada. Sentada com braços cruzados, fala pausadamente]. Uma noite, duas vizinhas estavam voltando de um baile que tinha lá no Operário, a Vanuza e uma tal de Eva [faz uma pequena pausa]. [muda o tom de voz] De repente, elas estavam vindo, e em sentido contrário vinha uma procissão [muda o semblante, enruga a testa e com os lábios fechados eleva pra um lado do rosto]. Saiu de lá

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de dentro tudo de cabeça baixa [arca o corpo para a frente e balança a cabeça]. Um atrás do outro, assim ó..., mas um monte de gente. Elas tiveram que parar pra poder passar a tal procissão70 [faz gesto com os braços, mesmo ainda cruzados. Olha de um lado para o outro movimentando a cabeça]. Elas até tentavam passar, mas parecia até que brotava gente, cada vez que tentavam, mais pessoas apareciam. Ficavam barrando pra não passar [mudou o tom de voz, está mais grossa]. [Começa a falar rapidinho]. Tiveram que esperar a procissão passar e, quando entraram no cemitério, sumiu tudo [fala pausadamente e baixinho]. [Fala grosso] Tarde da noite tem coisa. Mas eu não facilito [diz a frase paulatinamente] Pra começar, nem velório de noite eu vou... A gente não tem tanto medo, mas arrepia, né [estremece o corpo, pausa longa]? É verdade! [Balança a cabeça e depois coloca uma mão na frente da boca e repete a letra i várias vezes, dá risada].

O terceiro exemplo de narrativa com a temática

velório gira em torno de uma situação de um grupo de mulheres que enfrentam problemas no retorno para as suas residências (Figura 35). As mulheres estavam                                                            70 Procissão – um grupo de pessoas desenvolvendo um ato religioso em louvor a um santo e a várias promessas. Existem diversas formas e variações.

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voltando de uma festa, tendo como localização espacial a frente do cemitério do município de Palmas. As visagens aparecem tentando esconder o rosto e tentando atrapalhar o retorno dessas mulheres para casa. Nessa narrativa, Trindade se torna uma narradora onisciente por apresentar todos os sentimentos que as suas personagens vivenciaram na ocasião.

Figura 35 – Gravura representando a procissão das almas

Fonte: desenho feito pela autora (2016)  

4.3.1.2 Narrativas com o tema animais noturnos As narrativas com a temática animais noturnos

apresentam geralmente o assunto em torno de aves noturnas, elemento esse que tem a simbologia da liberdade. Simbolicamente, a paz é expressa com a figura de uma ave. Nessa busca pela liberdade, as narrativas apresentam animais que têm o direito de ir e vir. Alguns são raros, como também era a liberdade para os

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ascendentes, principalmente com as mulheres que, mesmo libertas, tinham que tomar cuidados com o poder implícito na região. As meninas eram alertadas para se cuidarem com todos os que as cercavam, principalmente na fase de mudança corporal, com a trama dos personagens narrados. Essas narrativas eram apresentadas geralmente no período religioso da Quaresma, época em que as pessoas deviam se resguardar durante 40 dias que antecedem a principal celebração do cristianismo: a Páscoa, a Ressureição de Cristo. Segundo Arlete, os antigos alertavam sobre os perigos e as visagens noturnas com narrativas que giravam em torno de animais, como o lobisomem, a mula sem cabeça, o boitatá – elementos da natureza (namoro entre comadre e compadre) e bichos indefesos que se transformam em monstros. Nesta dissertação, escolhi narrativas com o assunto da temática animais noturnos, aves.

Narrativa 4: Urutágua

A quarta narrativa tem como temática os animais

noturnos, com assunto em torno de aves noturnas, e o foco é a urutágua71. Trata-se de uma ave rara de hábitos noturnos presente na região do quilombo e no Estado do Paraná. O nome dessa ave apresenta algumas versões, como urutau, jurutatui e mãe-da-lua. No Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo (2002) testemunha que essa ave noturna tem um canto agourento, “melancólico e estranho, lembrando uma gargalhada de

                                                           71 A urutágua é um pássaro pequeno e noturno. De dia, essas aves deitam na floresta e dormem com a boca aberta. Têm a boca fedida. As moscas chegam perto por causa do mau cheiro e pousam na boca da ave. Elas são o seu alimento. Esse tipo de ave é meio marronzinho, sarrameadinho (mesclado).

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dor”, cercada de um “misterioso prestígio assombrador”. O canto do urutau72 é associado ao mau agouro, à negatividade (Som 1). Na literatura brasileira, diversos autores também se utilizam dos simbolismos dessa ave, como é o caso da sua pele que seca ao sol, serve contra os encantos da luxúria, protegendo as donzelas das tentações do sexo. Arlete, nessa narrativa, apresenta os costumes antigos da sua avó.

Som 1 - Som da urutágua

2.mp3  

Fonte: canto do pássaro raro urutau. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ylPiq-7W5Iw>. Acesso em: 20 mar. 2016.

Urutágua

Contada por Arlete A narrativa ocorre em alguns momentos na sala e em outros na cozinha. Nesse dia, a residência estava com a porta aberta, e fui recebida com um sorriso bem largo da filha da narradora Arlete. A casa é de madeira, com sala e cozinha conjugadas.

                                                           72 Também encontrei outras situações sobre o pássaro, como descreve o autor Coutinho (1991), que afirma que as penas dessa sinistra ave são um poderoso “amuleto de preservação da castidade feminina”.

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Tem dias em que Arlete muda de cor de alguns elementos decorativos do ambiente da sua casa, para mudar um pouco a rotina. Tem dias em que é vermelha, noutros laranja, as suas cores prediletas. Hoje a sala estava com um tom avermelhado. Tudo está combinando na sala, o sofá com uma capa vermelha, combinando com a cortina vermelha e as rendas da estante, todas também vermelhas. Um pouco adiante, na cozinha, a sua filha lava a louça, auxiliando na organização dos afazeres. Ao entrar na sua residência, logo se vê do lado esquerdo um sofá de dois lugares e a cortina. Ainda de frente, na porta, visualizo um sofá de três lugares. No lado direito, a estante com a televisão e cheia de enfeites (presentes de entes queridos e de amigos) e mais para a frente a cozinha. Esse cômodo é composto por alguns elementos, tais como uma geladeira cheia de ímãs coloridos, um armário com pia embutida, com diversos enfeites em cima dele, um fogão a gás com uma toalha rendada e do seu lado o famoso fogão a lenha. Arlete está sentada numa cadeira, e sua filha e duas netas estão próximo do fogão a lenha. Mesmo com a parede da cor da madeira, o ambiente tem a claridade do sol da tarde. Geralmente, Arlete está sentada no sofá que dá de frente para a rua.

Nesse dia, a narradora usa uma blusa vermelha, uma calça escura e chinelos do tipo pantufas. O seu cabelo é bem escuro, com corte pelo ombro, mas nesse dia está preso em formato de coque. Começa a narrativa sentada, porém, durante todo

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momento, ela se levanta para se expressar e representar as aves. Faz gestos com as mãos imitando o pássaro. Demonstra com os braços para olhar pela janela, como se tivesse um pássaro no quintal. [Levanta e fala rapidamente] Tem a da urutágua [muda o tom de voz]. Minha avó contava que durante a noite inteira ela grita [imita o som], quá quá quá... Parece com um choro. Diz que perguntavam pra ela: urutágua, urutágua, por que estás chorando? [faz gestos com o braço, está em pé caminhando pela sala e pela cozinha] [muda a voz] Ouvia uma voz dizendo: Sua mãe morreu, seu bem morreu. Diz que ela gritava mais forte ainda [imita o som da ave]. Gritavam pra ela: [muda a voz e se expressa com peito para a frente e braços abertos] – Urutágua, o seu bem morreu [imita o pássaro chorando], ela chorava mais ainda. [muda o tom da voz e se expressa com braços abertos] Quando falavam: Urutágua, sua mãe morreu [muda a voz], ela já respondia [muda o tom de voz para mais fina]: – Antes ela do que eu. [muda a voz] Daí dava uma gargalhada: quá quá quá. [muda o tom de voz para mais fina]. Antes ela do que eu. [o corpo vai para a frente e começa a caminhar pelo espaço cênico e com uma das mãos e voz mais forte] Daí Deus deu esse castigo pra ela, ficar com aquele grito que parece um choro. Respondia... [uma grande pausa, caminha de um lado para o outro].

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[muda o tom de voz para mais fina]. Minha avó contava o significado de cada grito de passarinho [volta a sentar e dá um grande suspiro].

Segundo Arlete, antigamente no quilombo existiam

muitos pássaros, e os mais velhos sempre tinham uma narrativa referente ao sentido dos cantos dessas aves, suas cores, sua forma e alerta. Assim, podiam explicar essa simbologia para as crianças. Mas, conforme vimos na narrativa, a presença da urutágua era para alertar as meninas no cuidado com a sua castidade e para ressaltar o respeito com os mais velhos. Como a ave noturna urutágua fazia brincadeira com a situação – “Antes ela do que eu. Daí dava gargalhada, quá quá quá. Antes ela do que eu” –, teve um castigo vindo das mãos de Deus: “Daí Deus deu esse castigo pra ela ficar com aquele grito que parece um choro”.

A narrativa também possui outros simbolismos. Por se tratar de uma ave noturna, a urutágua serve como alerta para o cuidado que se deve ter ao caminhar sozinho pela comunidade. Como era uma raridade pouco vista aos olhos dos outros, ela, a ave tem como bem mais precioso a sua vida que para os quilombolas o bem mais precioso é a sua vida, somos únicos e raros. Nessa relação, as moças pensavam antes de caminharem sozinhas (Figura 35), cuidavam-se e lembravam-se do castigo, não era de alguém comum, mas era sim um castigo de Deus. As duas narrativas sobre aves (mais à frente, será apresentada a narrativa da ave sundária) esboçam o tempo psicológico noturno, mas foram narradas durante o período da tarde. Porém, Arlete comentou posteriormente que a sua avó narrava sempre à noite, antes de dormir.

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Figura 36 – Desenho da expressão de Arlete ao contar suas narrativas

Fonte: gravura feita pela autora (2016)

A narradora, em partes, é onisciente, revelando os

pensamentos da avó, que vão além da própria palavra. A pausa no final na narrativa alerta que era da avó fazia pensar sobre a vida e o significado de cada ave.

Por se tratar de uma ave com hábitos noturnos, o tempo em que ocorre a narrativa configura-se no entorno da casa quilombola. Tive a oportunidade de escutar uma urutágua, mas não consegui vê-la.

Narrativa 5: Sundária

Várias narrativas de animais foram apresentadas

por Arlete. Cascudo (2001) apresenta a sundária como uma espécie de coruja que traria mau agouro a quem a

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tocasse. Ela indicaria presságio de morte de alguém querido na família. Na comunidade quilombola, antigamente, essa ave também indicava um presságio, principalmente no período da Quaresma.

Sundária

Contado por Arlete Os elementos cênicos presentes já foram descritos na narrativa 4. Agora nessa narrativa, Arlete caminha pelo espaço da cozinha e da sala.

[Sentada, dá um suspiro. Bate as mãos nas pernas e levanta]. A rotina de antigamente era que às seis horas tinha que fechar as janelas por causa das coisas sobrenaturais [Enquanto fala, caminha em direção à janela da sala, volta e fala pausadamente]. Diz que às seis horas da tarde é o horário de todos os espíritos, todos saem [faz uma pausa grande e senta]. Dizem também que tem as essências, tem a sundária73, um bicho que passa gritando por cima das casas [imita o som], principalmente na Quaresma [fala baixinho e pausadamente], que vaza por cima da casa, tem o pássaro que faz um som de rasgado longo [imita o som] (SOM 2) [faz como se fosse duas garras com as mãos e juntas parecem arranhar algo, de dentro para fora o movimento do braço].

                                                           73 A sundária é uma ave noturna, agourenta (que pressagia a morte de alguém).

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[olha para o teto e fica em pé. Modifica a tonalidade da voz] Minha avó dizia que, quando passavam por cima da casa, ia morrer alguém da família, ele estava rasgando a mortalha74 com aquele barulho [imita o som novamente, parecido com um rasgar de papel longo e contínuo]. [arca o corpo para a frente, pega um chinelo e faz uma cruz com ele]. Ela pegava a chinela e fazia uma cruz nas cinzas, que era pra não se realizar aquela situação, aquele profetizado [uma pequena pausa e muda a voz] ou sundária.

Som 2 - Gravação do som da sundária

O canto da Suindara.mp3 Fonte: Arlete (2015)

A narrativa Sundária também é transmitida por uma

narradora onisciente, que também se insere na narrativa que trás a avó, ocorrendo sempre à noite e que alerta para o cuidado com o período da Quaresma, pois a presença da ave era um chamado para a morte de alguém da família, devendo todos respeitarem os costumes desse período. As personagens são animais, alguns deles com reações humanas (como quando a ave começa a chorar ou quando recebe o castigo) e, em outros momentos, com características simplesmente de animais.

                                                           74 Mortalha: antigamente, comprava-se tecido e se costurava a noite toda a roupagem da pessoa que seria enterrada no dia seguinte.

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4.3.1.3 Narrativas com o tema noiva da imbuia

Na literatura, existem várias versões sobre as narrativas com a temática noiva, a noiva-fantasma, a noiva no cemitério, na estrada, a noiva de branco, a noiva enfeitada, entre outras. No contexto quilombola, não poderia ser diferente. A noiva se adaptou à realidade da região com a configuração da imbuia – noiva da imbuia75 (Figura 37). Figura 37 – Gravura simbolizando a noiva da imbuia

 Fonte: desenho feito pela autora (2016)

                                                           75 Imbuia é uma árvore classificada como madeira de lei.

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A árvore imbuia é típica da região paranaense por causa das florestas com araucárias. Os teóricos dizem que essa árvore é uma espécie cuja madeira possui alto valor comercial e que está na lista das espécies em extinção da flora paranaense. Na comunidade quilombola, existem ainda diversos exemplares dessa árvore, como também nessa região as primeiras explorações tinham o direcionamento para a cultura madeireira. Provavelmente, os antigos quilombolas uniram essas duas situações para valorizar a sua região. A narrativa com assuntos em torno da noiva da imbuia, com a união da palavra imbuia e noiva, provavelmente foi para representar a importância do casamento e servir como um alerta para o abandono com vento forte e a expressão do corpo com um chute na bunda de quem passa perto da noiva.

Esse fato pode ser revisto nos saberes culturais locais, como um simbolismo ao casamento, Mulheres que se vestem de noiva são raridades e devem ser preservadas. Aquelas que não se casam com o vestido de noiva se tornam uma imbuia, a noiva da imbuia (Figura 38). A noiva até faz um ato de molecagem com quem passa perto dela, o balanço é a relação com a vida, e o chute da noiva para quem passa pela imbuia representa o despertar. As narrativas da noiva representa um alerta para as mulheres da localidade. As três narradoras quilombolas fazem alusão à referida noiva de maneira diferenciada.

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Figura 38 – Imagem da árvore imbuia da região do quilombo Adelaide Maria Trindade Batista

 

Fonte: acervo pessoal da pesquisadora Carine Xavier (2015)

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Narrativa 6: Noiva da Imbuia, por Arlete

Noiva da imbuia

Contado por Arlete

Os elementos cênicos são semelhantes aos da narrativa 4. O espaço cênico continua sendo a casa, mas nesse dia Arlete está sentada no braço do sofá. Como figurino, usa uma calça vermelha, blusa de malha fina preta e um casaco marrom. Nos pés, está com um chinelo fechado cinza. A luz da cozinha está ligada devido ao tempo fechado. Há um grupo de três mulheres adultas e duas crianças em torno do fogão a lenha assistindo à contação da narrativa. Ouve-se o som da madeira queimando, e há momentos que dá um estalo na madeira queimando. [Caminha pelo espaço da cozinha e da sala. Senta por um tempo no braço do sofá e, depois de uma longa pausa, começa a narrar paulatinamente.] Perto de uma chácara tem uma imbuia próxima ao carreirinho76, que era passagem de todos, eu morava ali perto da Maria Adelaide e Maria Trindade. E pra chegar ali, todo mundo tinha medo de passar por ali, por aquelas imbuias. Diz que aparecia uma noiva que ficava se balançando na árvore bem alto e dava um coice na bunda das pessoas que passavam. A noiva da imbuia.

                                                           76 Carreirinho é uma passagem estreita feita pelo povo no mato, o qual vai amassando o mato nativo.

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A primeira contadora descreve rapidamente a

narrativa sobre a noiva da imbuia. Arlete cita mesmo a narração por causa da minha pergunta, pois lhe questionei se conhecia alguma noiva da imbuia. Primeiramente, muda o rosto, coloca a boca para um lado do rosto e fica pensativa. Depois de um tempo, comenta rapidamente sobre a narrativa.

Narrativa 7: Noiva da imbuia, por Cida

A segunda narradora é a Cida, a mais nova das três

contadoras. A narradora comenta sempre comigo das suas caminhadas pelo mato do quilombo, retrata a história da noiva durante o seu episódio de retorno de uma festa, quando ainda gostava de sair à noite.

Noiva da imbuia

Contado por Cida A narradora está sentada, conforme mencionado na narrativa anterior. O cenário continua sendo aquele de transmissão cultural, a cozinha e o figurino são os mesmos.

[Coloca a mão fechada sobre a boca, só com o

dedo indicador esticado]. Eu pensei assim, ai [fala “ai” como se estivesse cantando e repetindo várias vezes], eu não vou passar na avó. Aí eu olhei no meio da rua aquela noiva, coisa mais linda. [estica o braço direito para a frente como se tivesse visualizando algo.

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Começa a falar mais pausado, admira balançando a cabeça de um lado para o outro. Passa a mão no braço, demonstrando o vestido. Abaixa a cabeça e levanta o olhar para ver o rosto da pessoa na sua frente. Mexe a boca de um lado para o outro].

Primeiro saiu aquele cachorrinho pequeno que queria pegar pra mim. Ai, cachorrinho mais lindo, cachorrinho mais lindo [continua sentada, as pernas estão separadas, abaixa o corpo para a frente, tenta pegar algo no chão com os braços se fechando. Volta na posição de noventa graus. Encosta na cadeira. Faz essa movimentação pausadamente]. Eu corri pra pegar aquele cachorro, ele sumiu. [Fala bem baixinho, quase sussurrando]. De repente, assim, quando eu passei pra ver aquela noiva coisa mais linda, linda mesmo [fixa o olhar para uma direção e balança a cabeça bem devagar, de um lado para o outro. Três vezes]. Linda aquela noiva [com os lábios quase unidos, articula a frase] que me encantou, menina do céu! A noiva estava toda de branco, toda de branco assim [passa a mão pelo corpo todo], coisa mais linda. Eu olhei assim... mas... meu Deus, que coisa mais linda, [abaixa a cabeça e olha meio de canto] mas não queria mostrar o rosto, né? Não podia, mais queria ver o rosto dela, né? Aí, né, eu peguei e disse assim: que coisa mais linda. E fez assim com as mãos... [acena com os dois braços para a frente esticados]. Eu olhei assim, ai, meu Deus é da família. É da família.

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[começa a dar pulinhos na cadeira e fala com um sorriso grande. Bate com uma mão várias vezes no outro braço, parece bater palmas, mas tocando no antebraço]. É da família que casou, e Deus já tirou daqui. É da família, eu não conheci, mas é da família. [vai falando como se já estivesse longe. Acena com o braço]. Tchau, Tchau, Tchau... [pausa longa. Fala sussurrando] É a tia. E tchau. [mexe os ombros como se estivesse andando, mas continua sentada]. E vim toda faceira. Passei na frente da comadre Arlete, até quando cheguei ao colégio do quilombo, mas me jogaram aquele punhado77 de pedrinha, sabe [coloca as mãos sobre a cabeça, começa a se mexer parecendo se proteger]? Mas sabe aquela força daquelas pedrinhas? Chuáááááááááá [imita o som, balança os dedos rapidinho]. Eu vi que tinha muitas pedrinhas, mas não vi ninguém. [olha para todas as direções]. Daí, quando entrei no carreiro, me jogaram três punhados de pedra. Vi que caiu, caiu até em mim, mas não dei bola. A gente, olhei e não vi nada. Aí peguei, assim, entrei no carreiro da imbuia. A gente meio no gole, sabe como é, tomava uns golinhos meio escondidos. Quando cheguei na imbuia, eu fui passar a imbuia, assim olhei, estava aquela balança. Uma balança, pensei comigo.

                                                           77 Punhado: encher a mão com uma quantia grande de algum objeto.

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E até que vi a noiva, que se balanceava e voltava. Balanceava e voltava. Daí foi quando eu passei. Mas, menina, quando eu passei, deu aquele vento, aquele vento que parece que [imita um som -vuuuuuuuuu], mas aquele vento mesmo, sabe? Aquele vento horrível, aquele de arrepiar, [se mexe rapidamente, parecendo arrepiada] de fazer gandola78 assim na roupa, sabe aquele vento? Ai, gente credo, nunca vi dessa e não quero e não quero ver. Daí desci, quando cheguei no rio, pra atravessar, e olhei, estava um cachorrinho bem no meio do carreiro, e eu olhei a noiva bem no pé da imbuia, bem assim [olhos bem abertos fixos em um direção, mexe com os braços desenhando no ar uma pessoa] bem de frente pra mim... mas a gente quando é criança é atentado, né [estica a cabeça para a frente, fica parada por um longo tempo e dá um pulo na cadeira]? É a tia Mariiiiiiiiiiiiiia, a tia Maria do tio Dey [começa a dar risada e para de repente] Ô, tia Maria, nossa, mas que bonitinha que você está.... A tia Maria... [faz uma pausa curta], porque foi ali onde ela morreu [olha fixamente para o espectador com tom de voz forte]. A finada do tio Dey, a primeira mulher dele. Do tio José Dey Batista, foi ali que ela morreu... [articula os braços abrindo e fechando. Aponta para um canto e depois para outro, na direção que desenhou a noiva] lá que eles tinham casa. Mas que bonitinha a tia Maria! Ela era pequeninha assim [com a mão direita esticada e aberta e baixa. Volta à posição, encostando na cadeira]. Mas tudo dela, tudo tudo [fala incisiva e com lábios

                                                           78 Gandola: estufar a roupa ou uma roupa frouxa.

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quase juntos]. Tchau, tia Maria, eu já vou pra casa, tia. [Balança o braço e com a mão esquerda de um lado para o outro rapidinho, no nível alto. Depois começa a jogar para o lado o braço, no nível mediano, e com a mão vai virando com os dedos unidos, só mexendo rapidinho a mão e o braço devagar]. Vai com Deus, tia, vai com Deus. [Coloca a mão em cima da cabeça para proteger os olhos]. Mas clareou até eu passar a água, clareou aquele sol, que eu não tinha visto aquele sol. [Cada vez que fala “lindo”, vai abrindo os braços] Aquele sol, lindo, lindo, lindo. Daí passei e subi pro tio Bilo, subi tudo, que era tudo mato. Quando cheguei ca ca [repete duas vezes, rindo] em cima que eu olhei assim, passou aquela pombinha, assim, voando, voando, voando [faz o movimento com os braços de uma ave voando]. E daí não vi pra onde ela foi, mas era coisa mais linda. [fecha a boca, faz um movimento para a frente com os lábios até formar um bico. O rosto todo acompanha até fechar quase os olhos]. E eu falo, gente, ali tem [mostra com o braço para uma direção] e é uma noiva, mas como é que pra gente não aparece. De certo que, quando a pessoa aparece pra gente, é porque quer bem né? Muitos dizem, ai, porque eu não quero ver.

Cida, na narrativa 7, continua sendo a narradora personagem. Ela tem a sua expressividade gestual marcante, quase sai da cadeira para demonstrar os movimentos, mas parece que não faz isso por causa do

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calorzinho do fogão a lenha. Durante toda a sua narrativa, ela deixa os seus fluxos de desejo falarem por si. A narradora Cida tem como cenografia a sua cozinha. Um fato interessante é que ela espera as suas visitas sempre com um cafezinho na térmica, e a própria visita se serve durante a sua performance ao longo das narrativas.

Entre fatos marcantes da narradora, observa-se que há diversas formas de ela receber as suas visitas. Percebe-se que gosta de se arrumar de acordo com a ocasião. Nesse dia, quando narrou sobre a noiva da imbuia, estava com uma calça escura, blusa de linha vermelha e uma faixa cinza no cabelo. Ela tem o cabelo bem curto e gosta de colocar faixa para se enfeitar. Usa sempre chinelo de dedo quando está dentro de casa, como ela mesma especifica. Durante toda a narrativa, a sua voz muda de acordo com a situação. Há momentos em que os braços acompanham a voz pela sonoridade.

As sonoridades nas narradoras quilombolas, como observado na Arlete e na Cida, são pelo movimento labial. Elas não usam adereços como os contadores de histórias africanos.

Na visão de Bussato (2005), ao contar uma história, estamos doamos o nosso afeto, a nossa experiência de vida. Abrimos o peito e compactuamos com o que o conto quer dizer. Por isso, torna-se fundamental que haja uma identificação entre o narrador e o conto narrado.

Narrativa 8: Noiva da imbuia, por Trindade A terceira narradora diz que, de tanto ver visagem

à noite, evita sair. Já a convidei várias vezes para caminhar comigo durante a noite na comunidade, mas ela disse que não queria e que tem muitas dores no corpo. Não anda a pé sozinha, nem em grupo.

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Noiva da Imbuia

Contado por Trindade

A presença dos elementos cênicos se repete como nas outras narrativas de Trindade: o cenário, o figurino e o posicionamento no ambiente. Aqui também continua a sonoridade da madeira queimando no fogão a lenha. [Joga o corpo para a frente, sem descruzar o braço]. O compadre Miguel veio convidar pra comer um doce lá na comadre [dá um sorriso. Pausa curta. Suspira] Era um dia comum, e peguei todas as crianças pra visitar a comadre que morava mais lá adiante da minha casa. Arrumei as crianças, e devagar fomos lá andando até lá embaixo, no Rocio [mostra com a cabeça a direção, balançando de um lado para o outro. Duas vezes]. Já era tarde, e resolvemos voltar. Quando passamos bem perto daquele pinheiro, tinha algo de pé e no alto. Pensei comigo, meu Deus, não é uma sombra. O que será que é [bate com a mão fechada na madeira três vezes]? Eu não sei, eu só sei que aquela lá... Estava lá um troço com a cabeça caída, estava com uma roupa bem clara, que ficava voando com o vento, até parecia uma noiva [muda a expressão do rosto. Arregala os olhos e fala bem pausadamente].

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Ficou de pé aquela coisa e não erguia a cabeça. Fiquei pensando como íamos passar por ali, e para não assustar as crianças, fiquei bem quietinha. Bem devagar, começamos a caminhar, e eu ia orando em silêncio. Aquele troço, quando chegamos perto, ficou enorme, mas passamos e não mexeu com a gente [muda a voz. Volta a falar normalmente]. Até hoje tenho medo de passar por lá de dia... [pausa pequena]. É verdade!

A narradora Trindade conta a sua história bem

rapidinho. Mesmo tendo um texto maior do que o da narradora Arlete, Trindade transmite rapidamente a sua ideia. Com relação às suas narrativas, ela tem a vocalidade voltada para o cômico. No dia em que fui agraciada com as narrativas, o riso dela era muito espontâneo. O seu corpo sempre fechado, expresso pelos braços cruzados, pelas pernas juntas, pelo rosto que só articulava as palavras e por uma risada quando terminava a história, transparecia um ar de que Trindade tinha a forma de contar dos mais antigos contadores da comunidade. Ela senta mais distante do fogão a lenha, pois a sua cadeira fica do lado da pia, num local estratégico para visualização de quem passa pela rua e pela janela. A mais velha das contadoras transmite os seus aconselhamentos de maneira rápida e cômica (NARRATIVA 12).

Como Mellon (2006) aponta, não importa o tamanho da história, ela pode ser sentida como uma sinfonia composta por palavras, circulando pelos átrios de um coração que se expande com alegria.

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Narrativa 8: O causo da noiva

O causo da Noiva

Contado por Trindade

Os elementos cênicos da teatralidade continuam os mesmos: o cenário, a iluminação, o figurino e o posicionamento no ambiente transformado para ser um espaço cênico. [Com o braço cruzado]. Uma vez, o tio Dirceu estava voltando da igreja pedalando, e quando a gente pedala, fica leve, né? Mas de repente, ele viu que pesou a garupa79 atrás. [continua com o braço cruzado, abaixa o ombro um pouco para a frente e vira a cabeça bem devagar]. Quando ele olhou pra trás, diz que tinha uma noiva sentada. Ele olhou naquele rosto desfigurado e começou a rezar. [Muda a tonalidade da voz] Ele clamando: em nome de Jesus!!! Foi rezando até perto de casa, e a tal noiva foi junto com ele. A costa dele pesava de tanto peso que a moça arcava nele, só largou quando chegaram à encruzilhada80.

                                                           79 Garupa é uma pessoa que vai à traseira de um modo de transporte, como bicicleta, cavalo, moto. 80 Encruzilhada é o local onde se cruzam duas ou mais ruas.

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Eu [uma pausa]... Não vou naquele lado da comunidade. [faz o sinal da cruz... uma pausa grande]. É verdade. [risada com a vogal i várias vezes, coloca a mão na frente da boca].

As narrativas que têm como enredo a Noiva da

imbuia nesse contexto representam o costume local e o respeito. Essas narrativas parecem se completar. Todas as narradoras descrevem que há uma noiva e que geralmente aparece perto da imbuia. A narradora Trindade, com o seu detalhamento, afirma que a noiva é negra e que também é parente, confirmando o processo de pertencimento àquele local. Já a narradora Arlete não confirma a presença da noiva, pois nunca enxergou a visagem, tanto que, quando solicito mais informações sobre a narração, ela conta, mas rapidamente. Contudo, Trindade não só conta como insere a noiva em contextos atuais, pois a coloca na garupa da bicicleta de um parente.

A narrativa da noiva da imbuia transparece cuidados para a menina e para a mulher. Até hoje, presenciei situações de alerta para as crianças, os meninos também inseridos nesse contexto, indicando que não devem caminhar naquela região, pois podem ser atacados ou mesmo molestados sexualmente.

Há outra situação que pode ser analisada, em que a noiva da imbuia é transformada em um conto de fadas pela narradora Cida, visto que, conforme a narrativa, mesmo falecida, a negra continua bela e em busca do amor. E são poucas as que têm esse direito de visualizar a beleza da noiva. Quem apronta, a noiva dá um “chute na bunda”, o que parece até ser um alerta para acordar para a vida.

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5 OS DISPOSITIVOS CÊNICOS NAS NARRATIVAS QUILOMBOLAS

Tendo como base as teorias relacionadas ao teatro de Brecht81 (1978) e as indagações sobre narrador do filósofo Walter Benjamin (1995), busquei compreender as narrativas do quilombo, correlacionando-as com as reflexões sobre aquele que transmite o seu saber em narrativas. Utilizo o termo teatralidade para descrever alguns dos aspectos da prática na narrativa quilombola. Caballero (2011) afirma que insistir na teatralidade como prática é reafirmar a sua condição de fato, “de atividade inserida no tecido dos acontecimentos da esfera vital e social”. Para Caballero (2011), os dispositivos cênicos têm propiciado formas de teatralização do cotidiano, invocando territórios fronteiriços de ficção. Nesse sentido, Caballero (2011, p. 69) ressaltou que os dispositivos cênicos são modificados e questionados e que “os atores, criando a partir de dores vividas no presente, transformaram-se em visionários de uma realidade quase fantasmagórica e foram portadores de visões e vozes que expressavam teatralmente a densidade do momento”.

Ainda podemos ressaltar que Caballero (2011) utiliza o termo texto performático para caracterizar a teatralidade, ou seja, para indicar uma escrita gestual, uma prática corporal, a performance. Nesse caso, a performance é usada para sinalizar a representação ou a execução de uma obra teatral, em geral cênica, a expressividade simbólica de situações performáticas produzidas de forma espontânea na vida cotidiana. Para Caballero (2011, p. 41), “a oralidade é um fenômeno imerso nas relações de convívio, pois a transmissão ao                                                            81 Agradeço aqui à banca pela indicação para as próximas pesquisas, incentivando-me a buscar um olhar mais direcionado ao teatro didático de Brecht.

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vivo e in situ dos textos implica, no mínimo, a presença de outros ou de um grupo de ouvintes, estimulando vínculos sociais”.

O fato é que nesse processo as relações de convívio têm como fundamento a experiência de vida: ideias, conhecimentos e sentimento. A sua ação é a ordenação desses conteúdos individuais e grupais. Para Dóris (2009), o ser humano é um narrador de histórias.

Dessa forma, Caballero (2011) expõe que a teatralidade utiliza dispositivos cênicos para a valorização da cena coparticipativa. O teatro sem teatro, segundo o artigo Razões práticas da teatralidade expandida de Ileana Diéguez Caballero e dois dispositivos cênicos do dramaturgo/ativista João Dias Turchi de Santana (2016), complementa o pensamento de Caballero:

Pretende ressaltar a ativação do público, que, recebendo e vivenciando tal realidade artística, educa-se de modo crítico e coautoral para observar, compreender e ser capaz de transformar, quando necessário, sua realidade cotidiana (SANTANA, 2016, p. 112).

 

Faço uma aproximação do artigo citado com a realidade social quilombola, em que dispositivos cênicos são expandidos para a realidade social e política na qual o fenômeno é constituído. Ao constituir uma ação cênica, conforme o pensamento de Caballero (2011), as construções e as desconstruções são constantes para a transformação da população de um determinado local.

Nessa condição, busco também dispositivos cênicos com o teatro épico atribuído por Brecht (1978, p. 32), que “[...] utiliza, da forma mais simples que se possa imaginar, composições de grupo que exprimam claramente o sentido dos acontecimentos [...]. Os

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princípios à luz dos quais se estabelece tal organização são de índole histórico-social”.

Na representação épica, por exemplo, os acontecimentos devem ser apresentados de maneira significativa, como qualquer acontecimento histórico. Para Brecht (1978), o ator épico está a serviço de uma arte não dramática, não aristotélica, esforçando-se para que o espectador reconheça nele um intermediário entre si e o acontecimento. Conforme Brecht (1978, p. 39), uma das questões capitais é a simplificação. Para compreender o teatro épico, é preciso que saibamos que na sua estrutura:

Simplicidade, porém, não significa primitivismo. No teatro épico, é perfeitamente possível que uma personagem se dê a conhecer num espaço mínimo de tempo [...]. A dicção e o gesto precisam ser cuidadosamente selecionados e, além disso, devem ter amplitude [...]. A encenação deve ter um sentido histórico [...]. Determinadas falas das personagens só poderiam ser completamente entendidas quando se sabe o que estas personagens dizem mais adiante. Assim, é necessário dar aos acontecimentos e às falas um cunho especial que os enquadre na memória.

Em relação ao ambiente de apresentação, o teatro épico tem como base propor que se manifeste independentemente, ou melhor, um ambiente em que viviam os homens. No contexto quilombola, isso pode se assemelhar ao “estar juntos”. Nessa linha de pensamento, Brecht (1978) desenvolve o teatro épico, o qual tem como entorno das suas temáticas o propósito não só de moralizar, mas de politizar. Nele, o espectador faz uma

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análise crítica político-social com os fatos narrados, com a técnica de identificação e a técnica do distanciamento.

A tendência nesse teatro, conforme Pavis (2011), é a de que a solução da trama seja conhecida antecipadamente, e as frequentes interrupções (sons, comentários, coro) impedem qualquer aumento de tensão.

Para Pavis (2011, p. 130), do mesmo modo, o teatro épico tenta “encontrar e acentuar a intervenção de um narrador, isto é, de um ponto de vista sobre a fábula e sobre sua encenação”. Assim, essa forma, acentua os talentos do construtor da ficção cênica discurso após discurso, gestos após gestos. Sobre essas características, afirma Mello (2009, p. 21-22):

Neste palco, os acontecimentos desenrolam-se em curvas, apresentam uma construção articulada e configuram o homem como ser social que determina o próprio pensamento [...] pelos efeitos de estranhamento (Verfremmdungseffekte), ou seja, pelo uso da música (coros ou canções), [...] entre outros elementos, como o emprego do gestus pelos atores [...].

A obra de Brecht (1978) tem como característica elementar apresentar à sociedade fatos cotidianos a fim de que o espectador seja o detentor do poder de seu pensamento e julgamento, numa espécie de documentação e depoimento, um processo dialético para o qual Brecht (1978) apresentava duas funções: o divertimento e a reflexão. Conforme explica Oliveira (2013, p. 3) tinha como objetivo a desalienação:

A alienação do homem, para Brecht, não se manifesta como produto da intuição

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artística. Brecht ocupa-se dela de maneira consciente e proposital. Mas não basta compreendê-la e focalizá-la. O essencial não é a alienação em si, mas o esforço histórico para a desalienação do homem.

Algumas dessas reflexões podem ser utilizadas para o caso do quilombo, onde as mulheres idosas narradoras encontram momentos importantes para transmitir os seus saberes e assim o fazem. Essas narrações podem acontecer durante uma festa, na hora de dormir ou na visita de alguém, mas não têm um espaço específico teatral para que o evento ocorra, ainda que, conforme já foi mencionado no capítulo anterior, existam espaços privilegiados, que são os espaços de sociabilidade: a casa, a igreja e a escola.

Essa relação do público com o contador também ocorre de forma específica na teatralidade quilombola, mas com diferenciações para a realidade local. As contadoras crescem aprendendo a prática de narrar histórias pela observação das moradoras mais antigas.

Fazendo ainda uma alusão à realidade quilombola com a teoria de Brecht (1978), vemos que a memorização se dá por um processo de repetição das narrativas de uma pessoa com mais idade para os seus entes, sendo que quem tem o interesse de compreender a cultura local depois de alguns anos de aprendiz começa a transmitir as histórias para outras pessoas.

As narrativas entre os quilombolas nessa região se caracterizam como uma prática exercida pelas mulheres mais velhas, que, à medida que se tornam depositárias das histórias e tradições do grupo, desenvolvem a sua própria teatralidade, dando significado às suas formas narrativas. Os dispositivos cênicos apresentados nas narrativas quilombolas usufruem efetivamente tanto na

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teoria de Caballero (1978), com os dispositivos cênicos do espetacular do cotidiano, como no teatro épico de Brecht (2011), com a luta pela emancipação social da humanidade. A criação das teatralidades tem o intuito de ser uma expressão da consciência humana em uma imagem metafórica única, que na comunidade quilombola ocorre em criações cênicas de pessoas com mais idade.

As narradoras quilombolas ressignificam a sua condição dando voz às suas histórias antigas, cada uma com a sua expressividade e as suas vontades. As contadoras, líderes familiares, gostariam que as suas narrativas fossem ouvidas por mais gente e que os seus conselhos fossem mais bem aproveitados. Querem ter mais voz

A pesquisa, em alguma medida, contribui para ampliar o alcance e a publicização dessas histórias, assim como do próprio reconhecimento das narradoras enquanto tal. A narradora Arlete, por exemplo, faz questão de mencionar que as narrativas que contou para mim eram inéditas e que nunca haviam sido relatadas para outra pesquisadora. A partir da pesquisa, as suas narrativas vieram à tona mais rotineiramente. 5.1 A PRÁTICA DA NARRAÇÃO DE HISTÓRIAS ENTRE AS MULHERES IDOSAS

A prática da teatralização, com elementos da performance narrativa quilombola, tem se articulado num verdadeiro espaço de construção de saberes. Com a proposta da presente pesquisa dissertativa, o grupo de idosas se sentiu renovado e com vontade de registrar as narrativas dos antigos. A inovação dessas práticas pode ser comprovada quando lemos sobre a realidade brasileira no século XXI no que diz respeito à narração de histórias e à inserção da idosa, como cita Brandão (2012).

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Constatei o que é facilmente verificável nas experiências pessoais, que a narração de histórias traz uma infinidade de benefícios para as idosas, principalmente no que diz respeito à autovalorização e à sua importância para o grupo. Uma vez iniciadas na contação, através das histórias ouvidas e contadas, como narradoras poderão continuar se encantando e se emocionando, e também se identificando e aprendendo com as suas histórias e com a de outras, pelo resto de suas vidas, com autonomia.

Brandão (2012) indica que lembrar é reconstruir o passado a partir dos quadros sociais do presente, tornando o passado uma lembrança consciente. A autora chama a atenção também para o tempo socialmente referido, pois a memória está no grupo, como acontece no caso das narrativas apresentadas no Capítulo 3, e o trabalho de reconstrução do passado só pode ser realizado nesse contexto.

Despertar a prática da narração de histórias através de histórias pessoais, além de prazeroso, pode aproximar as pessoas. Brandão (2012) afirma que, ao compartilhar lembranças, os tempos individuais se cruzam, formando o tempo presente no grupo.

No teatro com idosas, segundo Fernandes e Loureiro (2009), no processo cênico da narração de histórias com idosas a matéria-prima fundamental é a memória, e nesse percurso entendo memória como o ato de lembrar. Com isso, nesta dissertação, busco acessar essas lembranças, reminiscências, recordações, garantindo ao indivíduo a liberdade de expressão e, assim, a seleção pessoal do que ele está interessado em lembrar, em contar, e da forma como ele vai expressar isso.

Vale ainda saber que o passado lembrado nunca é linear. Para Fernandes e Loureiro (2009), a narração

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avança e recua sobre a linha do tempo, como que transbordando a finitude espaço-temporal que é própria dos acontecimentos vividos. As lembranças abrem portas para o que veio antes e depois.

Nesse sentido, as narrativas contadas por idosas quilombolas conduzem a uma reflexão sobre as experiências individuais e coletivas, que possibilitam a aquisição de vivências em prol de uma ótica subjetiva em contato com o registro integral e singular do narrador. Diante disso, o encontro entre as idosas e o público promove relações e embate de gerações, tradições, valores e costumes, viabilizando a troca construtiva de práticas cotidianas, nas quais cada um reflete sobre os seus próprios valores e papéis sociais.

As histórias são o alimento do espírito humano, e a prática da narrativa na comunidade quilombola amplia ainda mais a vivência, a valorização das mulheres idosas e o papel social dessas mulheres que atribui poder às histórias. A narrativa, com os recursos cênicos – os gestos, as pausas, a hora, o contexto (casa, fogão, etc.) –, quando contada, é algo que nos contamina pela riqueza. Não há riqueza na história sem isso. 5.2 A TEATRALIZAÇÃO DO COTIDIANO

A narração de histórias no quilombo é um ato de transmissão dos saberes locais. Entre as histórias que me foram contadas, escolhi algumas para abordar neste trabalho.

A narração de histórias, primeiramente, aparece apenas como relato de acontecimentos, e posteriormente, com a confiança em relação ao ouvinte (no caso das visitas e dos pesquisadores), vêm a tona outro tipo de história, e as narrativas focam nos ensinamentos e nos costumes passados de geração para geração. Todas as

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histórias são apresentadas como relatos de memória, envolvem a identidade do grupo e são conhecimentos repassados entre gerações. Isto é, se a pessoa está inserida no local, as contadoras mudam de postura, e as histórias começam a sair do enredo sobre os antepassados para causos e lendas locais.

A compreensão da realidade local incentivou a pesquisadora a analisar o processo de formação das narradoras ainda na infância. As três narradoras comentaram que foi durante a sua infância e adolescência que aprenderam as narrativas. O tema das histórias era sobre visagens e assustava muito as crianças. Hoje elas continuam repassando as histórias para as crianças, porém os adolescentes já começam a achar graça de toda a situação contada, não se envolvendo com os relatos.

Para ser aceita pelos moradores como alguém que poderia ouvir as histórias cotidianas, tive que presenciar algumas situações da comunidade e das contadoras. Cada dia era uma surpresa quando eu ia passar à tarde com as líderes quilombolas, que me convidavam para diversas atividades, entre as quais o velório de um dos moradores. Posteriormente, eu me dei conta de que a minha posição de pesquisadora e professora universitária podia ser requisitada para outros eventos públicos, servindo também, algumas vezes, como forma de ampliar o alcance do evento. Durante a pesquisa, quando outro morador faleceu, novamente foi solicitada a minha presença.

5.2.1 Narrativas quilombolas da região centro-sul do Paraná

A comunidade quilombola tem no ato de narrar uma tradição. A observação dessa tradição, nas performances das três Marias, permitiu que eu identificasse aquilo que

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Caballero (2014, p. 125) chama de teatralidade, ou seja, “un discurso y una estrategia que atraviesa el teatro y lo trasciende, posibilitando incluso la expansión y el desplazamiento de los límites de lo teatral y de lo artístico”. Caballero (2014) fala de uma forma teatral que faz parte da vida dessas mulheres, que se constitui também em estratégia política de consolidação da identidade quilombola e dos valores comunitários, uma forma artística própria que habita a vida dessas mulheres e da comunidade da qual fazem parte.

Para Caballero (2014), a teatralidade não é um conceito que se restrinja ao campo das artes, tampouco à polêmica em torno do teatral nas artes dos anos 1960. A teatralidade emerge da vida e das representações sociais:

La práctica de la acción in situ ha ido implicando el despliegue escénico de un arte que ya no quería ser visto en la caja blanca de las galerías y museos, pero tampoco en su reverso o en las cajas negras del teatro. Las transformaciones y expansiones de lo performativo, lo teatral y lo escénico no han venido sólo por las contaminaciones y las diseminaciones indisciplinares de las artes, sino insistentemente por las solicitudes y contaminaciones que los acontecimientos de la vida proponen al arte, por la urgencia con que nos interpelan las escenas y teatralidades de las polis. De manera que la teatralidad como campo expandido no sólo nos solicita reconocer las otras escenas y el otro teatro que emerge en los intersticios artísticos, sino que también nos conmina a reconocer la teatralidad que habita en la vida y las representaciones sociales, tal y como lo hicieron Artaud y Evreinov. La teatralidad como campo expandido más allá de las artes (CABALLERO, 2014, p. 128-9).

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A seguir, indico alguns aspectos do que estou chamando de teatralidade no contexto das narrativas que observei: a criação de níveis de textos que se modificam de acordo com o momento e a plateia em questão; a forma de comunicação e interação com a plateia; a utilização de expressões corporais e faciais; o domínio do enredo da história e das dinâmicas do improviso; a escolha das pessoas mais antigas da própria comunidade, predominantemente mulheres; o detalhamento da descrição; a forma da narração de roda como momento ritual de estar junto e os locais e “cenários” privilegiados: em torno do fogão, ouvindo o barulho da lenha, etc.

Com base nesses aspectos de teatralidade no contexto quilombola, trago a contribuição de Ester (2010) sobre o contar histórias, que ressalta a dialética das sensibilidades internas e a necessidade externa. É interessante ainda a afirmação da autora quando cita sobre o uso terapêutico das histórias, ao mencionar que, na maioria das vezes, contamos histórias quando somos convocados por elas, e não o contrário. Não é uma atividade inútil. E, mais ainda, a autora afirma que, apesar de algumas pessoas usarem as histórias apenas para a diversão, no seu sentido mais antigo, elas são uma arte medicinal.

A cada encontro, pude perceber que as lembranças vinham à tona e que as narradoras de histórias sempre se lembravam de alguma quando liam os seus próprios contos. As líderes queriam saber o que estava sendo escrito sobre a comunidade. Nesse momento, a oralidade se transformava em escrita. No contexto quilombola, o sentido terapêutico das narrativas está principalmente no estado de humor do espectador. Elas traziam um chá ou um café para posteriormente iniciar uma conversa, ou mesmo durante a conversa pediam a alguém buscar uma planta no quintal para preparar o chá.

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Dessa forma, confirmo que transmitir uma história é uma responsabilidade muito grande e advirto que o processo que antecede o ato de contar é importante para certificar que as pessoas estejam preparadas para as histórias que contam. Essa menção transparece nitidamente na preparação das contadoras no contexto do quilombo para compreender uma riqueza maior: a realidade quilombola.

Dohme (2009) também defende a ideia de que a narrativa é uma rica transmissora de valores, do desenvolvimento do raciocínio, da imaginação, da criatividade, do senso crítico, da memória e da disciplina.

Para Bettelhein (2003), com a linguagem simbólica, as histórias agem como bálsamos para as feridas emocionais que os adultos sentem, como a violência, a instabilidade financeira, as perdas emocionais. Ao contar histórias, é muito mais fácil atingir a criança, que é pura fantasia e imaginação.

Contudo, para Benjamin (1995, p. 89), a narração tem o poder na nossa consciência, pois

Além disso, acontece que o choque com que um instante penetra em nossa consciência, como algo já vivido, nos atinge, o mais das vezes, na forma de um som. É uma palavra, um rumor ou um palpitar, aos quais se confere o poder de nos convocar desprevenidos ao frio jazido do passado [...].

Ao trabalhar com narrativas, entramos numa terra

fantástica, em que quase tudo pode acontecer: é o mundo dos sonhos sem marcas específicas de tempo ou espaço. Para Cavalcanti (2010), trata-se de um universo de metamorfose constante em que o jogo de aparências, do tempo linear, da verdade abertamente declarada, forma textos cheios de surpresas e de sutilezas. A autora

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também afirma que uma história bem contada não tem idade. Pode e deve ser repetida ao longo da vida. Aconselha ainda que as histórias precisam ser lidas e contadas, ainda que não possam ser totalmente compreendidas. Segunda Cavalcanti (2010), os bons livros, como a própria vida, deixam no ar certo enigma, um sabor de desconhecido que pode ser e deve ser desfrutado.

Quando se apropria dos valores da contação de histórias descritos por Cavalcanti (2010) e dos conhecimentos necessários para se fazer boas escolhas, o ato de narrar para não quilombolas tem um olhar minucioso pelas contadoras, que citam que a preparação é importante para saberem com quem estão conversando e lidando. 5.3 PRÁTICA DAS NARRATIVAS NO QUILOMBO

Na tentativa de traçar a trilha sobre a teatralidade de Caballero (2011), a teoria do oprimido de Brecht (1978) vem para compreender a prática das oralidades das narrativas no quilombo. Não há limites nem territórios, mas ações e percepções do que seja a prática da narração de histórias a partir dos indivíduos quilombolas. Busco narrar as descobertas coletadas com a convivência na comunidade quilombola do município de Palmas, no Estado do Paraná. Enfatizo que a prática dessas narrativas está intercalada com os movimentos das lideranças locais e com a convivência familiar dos quilombolas. As lideranças ampliam ainda mais a transmissão de conhecimento quilombola para a comunidade não quilombola com práticas de visitação e palestras que esboçam o movimento da própria comunidade e de suas articulações.

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Inicio com um esboço de uma das ações que acontece nos ambientes de socialização, o “estar junto” e esteve ao alcance na trajetória da pesquisa. A comunidade quilombola Adelaide Trindade Batista tem uma movimentação de transmissão de conhecimento quilombola para instituições educacionais ou grupos interessados na compreensão sobre o quilombo, no Colégio Estadual Quilombola Maria Joana Ferreira.

Aqui, utilizo a partitura cênica que apresentei no Capítulo 3 para descrever um momento que antecede a prática da narrativa de Arlete, no ambiente de socialização, a igreja, para um grupo de não quilombolas. Uso termos do teatro como os sinais que antecedem o início do espetáculo para relacionar a narradora quilombola com elementos do contexto teatral.

A narradora Arlete

Primeiro sinal.

[O dia estava ensolarado, e havia algo diferente no ar. Naquela tarde, encontrava-se um ônibus parado na frente do portão da escola. Um grupo grande de moças e de rapazes estava aguardando, e logo adiante duas senhoras conversavam com o presidente do quilombo, o senhor Alcione, com uma vestimenta que chamava a atenção. Mas ele não fora ao encontro do grupo. Retorno, pois percebo a ausência da protagonista, que não estava ainda no local, a nossa personagem principal desse dia... Vou ao seu encontro].

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[A porta sempre está aberta.] - Entre... Seja bem-vinda! [Sempre sou recebida assim, com um sorriso e um bom gostinho de café, pois não tomo chimarrão, que sempre está pronto para ser servido. Uma casa simples, para muitos olhos, mas cheia de tanto carinho e dedicação. Há dias em que é vermelha, noutros laranja, as cores prediletas da moradora. Hoje, a sala estava com um tom avermelhado. Tudo está combinando na sala, o sofá com uma capa vermelha, combinando com a cortina vermelha e as rendas da estante, também todas vermelhas. Um pouco adiante, na cozinha, sua filha lava a louça, auxiliando na organização dos afazeres. A personagem principal está como de rotina se arrumando em seu quarto.]

Segundo sinal.

[Busco compreender um pouco mais sobre a contadora no seu lar. Primeiro, peço licença para entrar na casa, e a filha logo me avisa que a sua mãe já estava me aguardando como de costume. Como já me considera da família, dona Arlete autoriza a tirar fotos enquanto se arruma para a sua performance com o grupo visitante. Nesse dia, a sua vestimenta chama a atenção, era diferente dos outros dias: ela estava com uma blusa de manga comprida, de tons claros e com desenhos de flores muito delicadas. Usava uma calça escura, e a sua sapatilha combinavam com a sua blusa. O cabelo estava preso com grampos, e no rosto um

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batom demonstrava a sua alegria de viver. Vaidosa, como sempre. Uma pessoa vai chamá-la dizendo que já estavam todos esperando para a sua apresentação. Típico atraso de uma atriz antes da sua apresentação.] Terceiro sinal. [O chamado da pedagoga me remeteu ao momento que o espetáculo inicia, com o terceiro sinal. O público já tinha entrado na igreja, local que a comunidade utiliza para as suas performances. Os visitantes já estavam ansiosos com a presença da nossa personagem. Seus olhares pareciam que a seguiam a todo o momento. Ela se posiciona na frente do altar da igreja, usado nesse momento como palco dramático, tendo do seu lado o presidente e o vice-presidente do quilombo. A narração quilombola inicia (Figura 39)].

A Figura 39 representa o espaço de socialização quilombola – a igreja – para os visitantes não quilombolas. A descrição que antecede é uma demonstração do preparativo para a comunidade com todo zelo e atenção para com os seus visitantes. Nesse dia, a narradora Arlete se arrumou para se apresentar ao grupo. Durante a sua entrada na igreja, todas as pessoas se voltam para olhar para a narradora. Para a minha observação como pesquisadora, transpareceu um momento que antecede o espetáculo, por isso, na descrição utilizo os três sinais que

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alertam a entrada da atriz, que nesse caso é a narradora quilombola. Figura 39 – Visita de uma universidade da região à comunidade Adelaide Maria Trindade Batista

Fonte: acervo pessoal da pesquisadora (2015)

A Figura 39 mostra o interior da igreja São Sebastião, que está localizada na comunidade quilombola, representando a visita de uma universidade na comunidade Maria Adelaide Batista Trindade. Nesse dia, os moradores utilizam a igreja como espaço para a reunião, de forma a poder recepcionar o grupo. À frente do grupo, estão a narradora Arlete, o presidente do quilombo e o vice-presidente. A narradora fica

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responsável por contar sobre a origem da comunidade e fazer algumas narrativas acerca da história local.

Devido às políticas públicas nacionais referidas no Capítulo 1, a busca pela transmissão dos saberes quilombolas está cada vez mais presente em todos os âmbitos educacionais, como pude presenciar nos meses de junho e julho de 2015. As lideranças locais tiveram que recusar algumas vezes a troca de experiências devido à agenda dos líderes e do colégio, visto que o ensino já estava sendo prejudicado por causa da intensidade de visitantes.

No dia em que participei das narrativas quilombolas, eu me senti num espaço cênico. A contadora Arlete entra na igreja com um sorriso e recepciona todas as pessoas. Parecia um sinal de que todos eram bem-vindos. Já nessa situação, diferentemente de quando narra no contexto familiar, usa um microfone para ampliar a sonoridade da fala, transmitindo o conhecimento quilombola para um grupo maior de pessoas. Mas, como ela mesma disse que não gosta de ficar sentada, prefere andar quando está dando uma palestra. Sim, essa performance para a contadora é considerada uma palestra, não uma prática de narrativa quilombola. Nesse dia, ela não estava se sentindo muito bem e preferiu sentar-se para proferir a sua explanação. Na ocasião, teve também a fala do presidente do quilombo, o senhor Alcione, e uma menção ao vice-presidente, Valuir.

Voltando à contadora, nesse dia ela estava responsável por contar a origem da comunidade. Conforme os costumes locais, a pessoa com mais idade é responsável pela transmissão de cultura, em alguns eventos. Nesse dia, o tempo para as suas narrativas foi curto, e ela pediu para deixar outros comentários para as próximas situações. Arlete gosta de transmitir os seus

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saberes, principalmente quando as pessoas dão atenção ao que ela diz.

Para Monteiro Lobato (1996), as histórias que andam na boca do povo não são como as escritas. As histórias escritas conservam-se sempre as mesmas, são fixas. Mas as histórias que correm na boca do povo vão se modificando com o tempo. No exemplo da visita de um grupo de universitário, a contadora Arlete, como é uma filósofa, muda totalmente a sua postura corporal e a entonação vocal. Às vezes, cita filósofos, como Sócrates, Platão e Aristóteles. Como também, outros teóricos, Paulo Freire. Parece até modificar o estilo da sua narrativa, que no contexto familiar é de uma maneira, e na comunidade, perante outras pessoas, é bem diferente. Outra situação pode ser verificada quando citei o exemplo das narrativas sobre a noiva da imbuia, apresentada anteriormente. Todas as contadoras falam da noiva, mas de maneiras diferenciadas, devido à sua experiência de vida e familiar.

A oralidade trabalha com contextura na narração de histórias, visto que as narradoras remetem para a história, a cultura e a identidade do seu povo. A riqueza dessa oralidade e, consequentemente, a teatralidade de cada narradora traz à tona os dispositivos cênicos. Esse é o caso da narradora Cida, que aprendeu todo o repertório dos saberes da terra com a sua avó, mas, devido a todo o processo cultural que está passando por modificações, sempre alterou a sua forma de transmitir o conhecimento. Cida comenta que atualmente precisa resgatar os valores quilombolas que estão sendo perdidos devido à aproximação com a cidade.

Já a narradora Trindade, quando reporta na sua entrevista sobre como era o processo de narração das antigas contadoras de história na comunidade, diz que:

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Eram com as senhoras mais idosas da comunidade, as líderes que faziam uma roda de conversa para transmitir conhecimento. Naquele tempo, era só banco, não tinha cadeira. Tudo que minha avó estava fazendo eu estava no meio. Ficava sempre atrás observando (BATISTA, 2015 (Trindade)).

E, sobretudo, não podemos nos esquecer de que os encantos que as histórias proporcionam não dependem dos recursos segundo os quais são narradas, mas sim da riqueza da história em si. Para a narradora Arlete, todas as pessoas, sem exceção, gostam e precisam de histórias. As histórias são o alimento do espírito humano.

As histórias quilombolas correspondem a momentos de distração e de entrosamento com os entes queridos, como especifica a contadora de histórias Arlete, que durante uma narração pede para observar a sua neta de dois aninhos que fica prestando atenção na sua fala e algumas vezes faz intervenções, como “É, vó?”.

Essa vai ser uma líder, veja como fica observando minhas histórias. É assim que aprende a ser uma líder quilombola, estar sempre junto. Como os seguidores de Sócrates, que sempre estavam junto com o seu mestre. Eu sou como Sócrates, gosto de ter minhas aprendizes comigo, sempre em minha volta. As minhas filhas são aprendizes de líder quilombola, como minhas netas Erineia e a Bel. A Erineia se interessou pelos cuidados da igreja, já a Bel é responsável também pelos ensinamentos quilombolas no colégio da comunidade. A minha filha Mary está aprendendo a ser uma líder da comunidade, hoje ela é presidente da Associação do bairro e

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responsável pela escolha do melhor lugar que uma família quilombola pode construir sua casa na comunidade lá de baixo, no Rocio. E a minha outra filha Zane já gosta de trabalhar na área da saúde, sempre é procurada no posto pra ajudar as pessoas. E assim, sempre que precisam de um conselho para alguma situação, vêm conversar aqui comigo (SILVA, 2015) (Arlete).

Constatei que as narradoras tecem as suas narrativas pelos pequenos detalhes, buscando ter o tato de observar o que o outro está precisando ouvir. Muitas vezes, um chá de uma erva tradicional pode curar não só o sentimento bem como alimentar a alma. 5.3.1 Corporeidade das narradoras

Esse novo fazer teatral mistura a teatralidade com a corporeidade, um instrumento em que os dispositivos cênicos das narrativas quilombolas apresentam um expressar corporal específico que vem de acordo com a realidade local e histórica do ambiente das narradoras. Esse expressar tem como base o pensamento de Caballero (2011) sobre a política do poder (no cenário peruano), que se assemelha à realidade quilombola pesquisada, na qual a práxis corporal e as práticas são empreendidas pelos movimentos de protesto e têm revertido as estratégias de poder.

Para Caballero (2011, p. 60-61),

A noção de escritura cênica que caracteriza as produções deste coletivo acentua a práxis corporal como produtora de textualidade, sem a necessidade de que se

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represente fielmente um texto prévio [...]. Os espaços da vida se misturaram com os da arte; a imersão em zonas de ficção, a partir de memórias de acontecimentos recentes ou de intuições desesperadas sobre o futuro incerto, gerava uma suspensão metafórica, um espaço de ambiguidades poético/reais.

Com base no coletivo que acentua a práxis corporal

descrita por Caballero (2011) acerca da região peruana, o autor equipara com os espaços da vida que se misturaram com os da arte, nas vozes das narradoras quilombolas da região centro-sul do Paraná, devido ao fato de terem enredos e expressividade corporais diferentes por causa das suas idades, experiências de aprendizado e idiossincrasias.

Conforme as teorias sobre o envelhecimento, a relação com a idade e a vivência pessoal caracterizam não só os atos cotidianos, mas as atitudes para com a vida. Para as narradoras que acompanhei, isso fica nítido quando contam as histórias. Isso também se manifesta na expressividade corporal: no momento em que vão transmitir costumes locais elas modificam os seus corpos.

As três Marias contam as suas narrativas quilombolas com movimentos corporais mais contidos, de dimensões menores do que aqueles utilizados no cotidiano, quando narram as suas histórias normalmente sentadas.

A narradora Cida, mesmo sentada, tem a sua gestualidade bem expressiva. Nesse momento, descrevo um pouco sobre a sua expressividade com os seus braços e as pernas em uma das suas transmissões de saberes da terra. Quando faz a transmissão sempre está sentada e valoriza a vocalidade como forma expressiva na narração, repetindo pequenas sílabas ou vogais. A sonoridade das suas narrativas muda de acordo com a

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tonalidade vocal das personagens. Faz voz grossa quando apresenta a fala de sua avó e uma voz fina quando faz referência à sua condição de criança. As personagens da história passam a ser reconhecidas pelo ouvinte, pela diferença de sonoridade. Cida relatou as histórias que eram mencionadas de dia, e à noite contou as histórias de assombração. Ela relatou simplesmente a sua vivência com as visagens do Rocio e de lobisomem. Gesticula sempre de acordo com o enredo. Quando mencionou sobre o lobisomem, ensinou que os braços devem ser trançados para trás da cabeça e bate palmas várias vezes. Assim eles faziam para ter orelhas grandes.

Figura 40 – Posições corporais de Cida ao contar suas histórias

Fonte: desenho elaborado por Carine Xavier (2016)

Diz ela: “Ainda existe lobisomem e, se quer saber, repare nas pessoas que só usam mangas compridas mesmo no dia de calor”. Ela demonstrou com os braços como um lobisomem caminha e frisa que isso acontece

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geralmente no período da quaresma (SOUZA, 2015) (Cida).

As histórias narradas por Cida primeiramente mencionam as transições corporais de uma criança para uma adolescente. E tem também o detalhe da sua criação, pois a sua avó, a narradora com quem aprendeu a contar histórias, era tetraplégica e fazia as suas narrativas sempre sentada.

Trindade, a terceira contadora de história considerada como uma das líderes mais idosas da comunidade Castorina, sempre narra as suas histórias com os braços cruzados e sentada na cadeira ao lado da sua pia. Contudo, Trindade conta histórias curtas e com um tom de comicidade que surpreende. O enredo das suas narrativas trata de visagens tanto de cunho pessoal como de entes próximos. Ela se destaca mais pela expressão facial. Evita de articular os braços e o corpo, deixando o braço quase sempre cruzado e dando um ar de suspense na finalização das suas narrativas com a expressão “É verdade!”.

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Figura 41 – Desenho das principais posições de Trindade

Fonte: desenho elaborado por Carine Xavier (2016)

A narradora Arlete começa as suas narrativas sentada, porém já modifica a sua expressão corpórea ficando em pé, mudando diversas vezes de posição para narrar as histórias. Contudo, Arlete é uma contadora que tem elementos-base correlacionados com a sua profissão.

Ela atuava como docente do ensino fundamental no segundo ciclo, e seus enredos são detalhados, sendo muito cuidadosa com o que fala. Sempre remete a um pensador ou mesmo a cursos que fez durante a profissão. Isso confirma o pensamento de Marques (2008), já que a narradora Arlete geralmente cuida das palavras e sempre tem alguma explicação científica para justificar a sua história. Ela também sempre se arruma para apresentar a

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narração, transformando-se num personagem. A sua expressividade é amena, poucos movimentos, articula bem as palavras e modifica a tonalidade vocal principalmente para sons marcantes, como animais, facão, etc. Figura 42 – Algumas das posições de Arlete

Fonte: desenho elaborado por Carine Xavier (2016)

Todas as narradoras quilombolas têm diferenças corporais que marcam o processo de narração e a memorização deste, conforme estamos observando em cada apreciação das narrativas. Porém, é nítida a influência das suas avós nesse ato de transmitir os saberes, como podemos observar no trecho que relato sobre as maneiras de narrar das mais antigas narradoras, logo adiante.

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Durante toda a pesquisa, vivenciei momentos em que parecia não fluir a pesquisa de campo. Mas, ao analisar as situações, as narradoras quilombolas mostravam-me que não adiantava eu querer forçar a pesquisa, mas que devia vivenciar a cultura local quilombola. Outra situação que encontrei foi quando a segunda contadora, a Cida (Figura 43), escolhia os dias que queria apresentar as suas narrativas.

Figura 43 – Cida narrando histórias

Fonte: acervo pessoal da pesquisadora (2015)

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Com a narradora Cida, tudo deveria ser combinado com antecedência, e eu não podia faltar. Ela mesma diz que há dias que não quer contar histórias ou mesmo receber visitas, e arruma desculpas, dependendo muito do seu estado de humor. Porém, quando estava com ânimo para narrar as histórias, a emoção vem à tona e ela apresenta diversos causos de assombração e de contato com uma pessoa que amava muito, a sua avó.

Como a nossa terceira contadora é uma líder familiar, o fato de frisar várias vezes que seus entes queridos não queiram escutar as suas narrativas é que muitas delas soam a aconselhamento. E como sabemos, às vezes procuramos nos aconselhar com as pessoas mais velhas quando estamos com problemas, quase no limite. Trindade me relata que os seus netos não querem mais escutar as narrativas, só quando vêm pessoas de fora é que acontece a roda de conversa. Mas nos momentos em que acompanhei as suas narrativas, sempre estavam presentes pessoas queridas e familiares. Não eram muitos, e provavelmente nesse sentido é que a contadora menciona sentir falta de várias pessoas escutando os seus relatos.

Ressalto que as narrativas quilombolas, para quem não é quilombola, têm como enredo a territorialidade, tema que não foi abordado na análise das narrativas escolhidas para esta dissertação. Arlete percebeu que era o momento de repassar o conhecimento da comunidade para ser registrado, de modo que não se perdesse com o tempo. Lembro-me de Benjamin (1985) e da sua relação com os narradores com a importância da sabedoria, que principalmente nos faz recordar o quanto esse conceito está desaparecendo: “A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção” (BENJAMIN, 1985, p. 201).

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Para Benjamin (1985, p. 215), a narrativa é um ato artesanal de comunicação, em que o narrador “deixa a sua marca” na narrativa contada.

Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de suas experiências, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens – é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais o profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento (BENJAMIN, 1994, p. 215).

No contexto quilombola, pude encontrar marcas diferenciadas na transmissão do conhecimento local: quando o grupo é composto por pessoas não quilombolas, as histórias giram em torno do passado e dos costumes quilombolas. Porém, quando é num ambiente familiar, a questão já muda de figura. As histórias começam a ser narradas de acordo com a situação, e as narradoras geralmente as contam com o intuito de proteção, como, por exemplo, para as pessoas cuidarem com as visagens na Quaresma ou com o lobisomem. Vale lembrar sempre que o ato de narrar histórias é de costume familiar. Quando há mais filhos homens, automaticamente as histórias são de pai para filho. Porém, a tradição local mostra que as filhas são preparadas para contar sobre o povo para o seu povo.

Assim definindo, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda

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uma vida uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer (BENJAMIN, 1994, p. 221).

Nesse sentido, a corporeidade das contadoras possui diferenças que já demonstramos pelas gravuras, mas semelhanças que podem ser vislumbradas pelo olhar atento a quem está sendo transmitido o conhecimento, o comprometimento com as narradoras passadas e as futuras narradoras, que geralmente ficam observando atentamente todo o processo.

Como Benjamin (1994, p. 201) define, o narrador figura entre mestres e os sábios.

Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. [...] O narrador é o homem que poderia deixar luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida.

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Figura 44 – Alusão às mãos da narradora Trindade

Fonte: acervo pessoal pesquisadora (2016)

 

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A VISIBILIDADE DOS DISPOSITIVOS CÊNICOS DO CONTEXTO QUILOMBOLA

Tecer, fazer as tramas, está relacionado

diretamente com tecer palavras. Antes de iniciar propriamente esses aspectos dos dispositivos cênicos, ressalto que fecho um ciclo muito especial da minha vida, o contato contínuo com a comunidade quilombola Adelaide Maria Trindade Batista no que diz respeito às narrativas quilombolas. Inicio também o meu reconhecimento da visibilidade dos dispositivos cênicos do contexto quilombola.

Descrevo sensações que vieram à tona durante todo o processo com esse grupo de mulheres. Nesse processo, não só encontrei laços de pesquisa, mas pessoas que ficarão marcadas para sempre na minha vida, as minhas Marias. Sim, elas são as minhas Marias, pois hoje as considero não só como grandes amigas, mas como mães do coração, avós, irmãs e confidentes. As lágrimas que insistem em cair continuamente, a vontade de abraçar cada uma sem parar, o corpo que levemente começa a sentir a pressão do tempo que se encerra com ciclos da vida.

É um filme que passa na minha cabeça, o primeiro contato com a Arlete, todos os encontros e desencontros com a Cida e o sorriso marcante da Trindade, tanto que hoje percebo novas possibilidades de estudos cênicos naquela localidade. Se eu pudesse voltar ao passado, com certeza teria feito da mesma maneira. O encontro com as Marias fizeram com que eu me reencontrasse como uma descendente negra, com a minha bisavó Rosa, que sempre incentivou o meu pai com estudos através dos seus dizeres e trovas.

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No presente, surge outra mulher negra que incentiva a bisneta da Rosa, esta pesquisadora, a tornar a pesquisa quilombola a minha vida, a Arlete. Tanto no passado como no presente, fui marcada pelo incentivo, pela visibilidade e pela conquista no conhecimento de uma tradição. A força das mulheres quilombolas me fez valorizar ainda mais a minha vida pessoal, estudantil e profissional.

As especificidades presentes nos dispositivos cênicos das narrativas quilombolas demonstram um novo olhar para elementos presentes na cultura local e na sua visibilidade-identidade. Demonstram também características marcantes que na realidade brasileira foram se adequando com as Djelis e as Griôs, que por mim foram nomeadas como narradoras, as quais, no contexto local, são referenciadas como líderes quilombolas mais antigas

Cada capítulo foi construído tecendo uma proposta com as palavras. Para compreender as narrativas, era necessário o entendimento do contexto local e regional, a importância para o grupo da transmissão do conhecimento, os saberes da terra que até então eram invisíveis para a comunidade não quilombola. Um exemplo disso é a origem do município, que mostra que, devido ao fato de as primeiras expedições serem oriundas do Rio Grande do Sul, elementos ainda presentes na cultura local têm a sua marca, como o chimarrão e o estilo das vestimentas. 

Nossa proposta era, ao trazer para reflexão a realidade quilombola, que paulatinamente tal realidade fosse reconhecida também na realidade teatral, que, estando em uma situação de identificação, encontra-se em um processo constante de (re)construção de sua identidade quilombola.

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Desse modo, a comunidade quilombola do início do século XXI apresenta como responsáveis pela transmissão dos saberes locais as mulheres idosas da sua localidade. Essas mulheres, na região de Palmas, são nomeadas como líderes quilombolas, o que é diferente da realidade africana, que caracteriza a pessoa como transmissora dos saberes, djelis ou griôs. As nossas djelis, tecedoras das palavras, são mulheres que não saem do seu habitar, as suas narrativas referem-se à sua realidade local, o que difere dos griôs africanos, que geralmente se caracterizaram por serem homens e viajantes que transmitem os seus saberes em momentos festivos ou em reuniões familiares.

Como pesquisadora, percebi a importância da valorização da mulher nesse contexto, como também da pessoa com mais idade. É um grupo que devemos seguir como exemplo na realidade dos não quilombolas, considerando-se que o Brasil é um país que está envelhecendo. Mas destaco que o clima que predomina na localidade (frio na média de 0 a 10 graus em grande parte do ano) auxilia o entrosamento familiar e a troca dos saberes da terra. Nesse instante, recordo que uma comunidade quilombola é composta por pessoas da mesma família. Com isso, muitas vezes as narrativas são repassadas para aconselhamento e como um presente maternal.

Entretanto, os dispositivos cênicos apresentados pelas narradoras quilombolas demonstram ainda que é nos momentos do estar junto que os saberes da terra são repassados. A voz das narradoras é a voz do passado, do presente e a esperança de um futuro melhor para as mulheres da região. É uma indicação clara de que todo o sentido, desde a preparação do fogão a lenha até o ápice da narrativa, com uma bebida, a interação da narrativa quilombola reside em um diálogo oprimido entre a

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ausência e a presença. Essa coordenação movimenta a narradora (corpo, voz e texto) na presença, e ao mesmo tempo a ausência (visagens, temáticas e alertas) revela uma alternância de responsabilidade com a sua realidade local entre a visibilidade e o repensar do ser quilombola, a sua identidade.

Esses dispositivos cênicos coordenam uma das práticas da região, a narrativa, um tesouro que é revelado a poucos que têm na presença das lideranças quilombolas uma alternância entre a vida e a morte da tradição. Instauram-se o ciclo vital da vida, a mobilidade e a imobilidade do saber da terra, configurando-se assim uma nova prática cênica que permite a possibilidade corporal diferenciada. Outra relação que percebo durante o processo é que o contato direto com as narrativas quilombolas, sendo eu uma não quilombola, também trouxe à tona a vontade de atuar, surgindo a partir daí a peça teatral Narrativas quilombolas, na qual trago para a comunidade artística uma possibilidade cênica, com poucos movimentos expressivos e dispositivos cênicos semelhantes à realidade que tive o prazer de vivenciar durante o processo de pesquisa. Como atriz, essa possibilidade corporal não tão expressiva me aglutinou a uma práxis cênica com a peça Narrativas quilombolas. Nesse espetáculo, apresento o movimento corporal das narradoras da comunidade Adelaide Maria Trindade Batista (Figura 45).

Ainda saliento que o início do século XXI configura uma distorção pela palavra quilombo. Quilombo está relacionado diretamente a movimentos com a terra: plantar, colher e criar. Assim, não se pode movimentar efetivamente a terra no contexto urbano devido a algumas políticas públicas, como a saúde pública, como também não se pode relacionar uma comunidade quilombola com um pequeno trecho de terra, ou melhor, um bairro.

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Quilombo não é bairro. A comunidade precisa de espaços para a sua convivência e disseminação da sua cultura, os seus saberes culturais.

Durante o fechamento do trabalho, a pesquisa estava dentro de um contexto que se reconfigurou completamente após a saída da presidenta Dilma e principalmente pelo pronunciamento do novo presidente, visto que muitas ações governamentais não seriam mantidas. Entre algumas situações, as lideranças do Estado do Paraná estão se reunindo e articulando para que muitas das ações governamentais que eram mantidas pelo governo federal possam passar ao governo estadual.

Figura 45 – Festival de Curitiba (2016)

 

Fonte: site do Festival de Curitiba (2016)

A personagem da peça, Maria, trazia em suas narrativas os dispositivos cênicos das narradoras da comunidade quilombola. Para a sua criação, utilizei

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relatos sobre as vestimentas antigas. O cenário transmitia o aconchego das casas através dos tecidos coloridos e o apresentar contínuo do fogo de chão no multimídia. Como as mulheres não usavam maquiagem, optei por não usar também na personagem (Figura 46).

Figura 46 – Personagem Maria, da Peça Narrativas quilombolas

 

Fonte: site oficial do Festival de Curitiba (2016) Com a peça, a compreensão da realidade

quilombola se ampliou ainda mais. Hoje na minha vida pessoal, percebo que o ato de narrar é tão marcante e de suma importância para todas as instâncias sociais, e às vezes, um ato tão simples como a troca de saberes da terra, saberes invisíveis que vêm à tona paulatinamente com textos acadêmicos e que nesta dissertação busquei apresentar pelos dispositivos cênicos das narrativas quilombolas.

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Narrar histórias quilombolas é conviver diretamente com a terra. Sendo filhas da terra, as narrativas buscam sempre encantar com relação à identidade quilombola.

Muitas vezes, um quilombola não percebe o seu contexto, tanto ao se distanciar um pouco da sua realidade e mesmo quando consegue percebê-lo nitidamente. Na região centro-sul do Paraná, devido à colonização inicial por pessoas oriundas do Rio Grande do Sul, as narrativas têm muita relação não só com o contexto quilombola, como também com as características gaúchas, um ato que constitui as relações, o “estar junto” e as estratégias de consolidação da identidade quilombola e dos valores comunitários. No ambiente artístico, é a valorização da mulher com uma práxis artística própria.

A práxis artística no ambiente quilombola é exercida pelas lideranças com mais idade, valorizando não só a pessoa, mas um grupo de pessoas que a comunidade não quilombola geralmente deixa à margem, tornando-se assim um exemplo a ser seguido não só no contexto quilombola, mas no entorno não quilombola. Valoriza-se também a importância da mulher para essa comunidade, a qual exerce um papel fundamental na transmissão dos saberes culturais.

Como já pudemos constatar em diversos autores, é também facilmente verificável nas experiências pessoais que narrar histórias traz uma infinidade de benefícios para as idosas. No contexto quilombola, principalmente no que diz respeito ao resgate social, uma vez iniciadas através das histórias ouvidas e contadas, elas poderão continuar se encantando, emocionando, identificando e aprendendo com histórias pelo resto de suas vidas, com autonomia. Como diz Arlete, uma das narradoras:

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O quilombola é como essa árvore, que tem raízes profundas, é dessa terra. Ficamos como os galhos da árvore, diferentes, mas sempre ligados à terra. Narrar histórias quilombolas é sempre relacionar com a terra, cuidar do próximo e conviver em harmonia.

Para a busca dessa autonomia e do cuidado com o

próximo, com o ato de narrar histórias de geração para geração, os mais novos também contam histórias quilombolas, porém estão ainda no processo de aprendizagem. São os aprendizes das líderes quilombolas.

É justamente por ser essa coexistência entre o que acontece e o que aguarda que as narrativas quilombolas propiciam um encontro de alteridades, uma situação que só é possível por causa da conexão entre os envolvidos. A realidade do narrador quilombola também é de magia, um ato de carinho familiar, um aconselhamento, principalmente levando-se em conta a sonoridade da fogueira ou do fogão a lenha.

Como toda arte, a de narrar histórias também possui segredos e técnicas que na realidade quilombola só quem nasce no quilombo consegue perceber e participar efetivamente desse processo de transmissão de geração para geração.

Finalizo com a frase que marcou minha trajetória na comunidade e que pode ser um instrumento de desconstrução para muitos pensamentos: “Nem toda negra é quilombola e nem toda quilombola é negra! Mas, afrodescendentes todas são”. Pense, reflita e reverbere...

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