universidade do estado de santa catarina centro de ... · a legiÃo brasileira de assistÊncia e os...
TRANSCRIPT
-
1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E DA EDUCAO FAED
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA - MESTRADO
MICHELE RODRIGUES TUMELERO
A LEGIO BRASILEIRA DE ASSISTNCIA E OS INVESTIMENTOS
FEITOS SOBRE AS MULHERES E AS CRIANAS NA CONSTRUO
DE UMA NOVA CHAPEC-SC (1940 1960)
FLORIANPOLIS,SC
2010
-
2
MICHELE RODRIGUES TUMELERO
A LEGIO BRASILEIRA DE ASSISTNCIA E OS INVESTIMENTOS
FEITOS SOBRE AS MULHERES E AS CRIANAS NA CONSTRUO
DE UMA NOVA CHAPEC-SC (1940 1960)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, rea de Concentrao em Histria do Tempo Presente, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Histria. Orientadora: Profa. Dra. Cristiani Bereta da Silva
FLORIANPOLIS,SC
2010
-
3
MICHELE RODRIGUES TUMELERO
A LEGIO BRASILEIRA DE ASSISTNCIA E OS INVESTIMENTOS
FEITOS SOBRE AS MULHERES E AS CRIANAS NA CONSTRUO
DE UMA NOVA CHAPEC-SC (1940 1960)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, rea de
Concentrao em Histria do Tempo Presente, como requisito parcial para a
obteno do ttulo de Mestre em Histria.
Banca Examinadora Orientadora: _____________________________________________
Profa. Dra. Cristiani Bereta da Silva
UDESC
Membro: ______________________________________________
Profa. Dra. Lidia Maria Vianna Possas
UNESP
Membro: ______________________________________________
Profa. Dra. Silvia Maria Fvero Arend
UDESC
Suplente: ______________________________________________
Profa. Dra. Marlene de Fveri
UDESC
Florianpolis, SC, 25/02/2010
-
4
AGRADECIMENTOS
Nessa caminhada percorrida durante o mestrado, pude vivenciar momentos
de amizades e de solidariedade na construo de um projeto de vida. Mesmo
correndo o risco de deixar de citar pessoas que tomaram parte nessa trajetria,
gostaria de lembrar e agradecer algumas pessoas especiais. Meu primeiro
agradecimento ser sempre minha me, que se tornou um exemplo para que eu
nunca desistisse de meus objetivos.
minha av Maria Jorgina e minha tia Maria Gleci, que me acolheram em
sua casa durante a escrita da dissertao.
Denise, por ter ficado ao meu lado me incentivando durante a pesquisa.
professora Cristiani Bereta da Silva, que, alm de ser uma orientadora
segura, atenta e paciente, mostrou-se uma verdadeira amiga. Sou grata a ela por
suas crticas, sugestes e pelo permanente estmulo.
Ao Willian, colega de jornada acadmica que se tornou um grande amigo.
Agradeo tambm aos professores do Programa de Ps-Graduao em
Histria da UDESC, em especial s professoras Silvia Maria Fvero Arend e Marlene
de Fveri, por haverem participado da minha qualificao e pelas contribuies
minha pesquisa.
Aos funcionrios do Centro de Memria do Oeste Catarinense, do Arquivo
Pblico do Estado de Santa Catarina e do Arquivo da Legio Brasileira de
Assistncia da Previdncia Social de Florianpolis, em especial Roseli Machado,
que contribuiu muito na captao das fontes.
Ao seu Antonio de Camargo, que abriu as portas de sua casa, na busca de
fonte para a minha pesquisa. Pessoa querida, amvel, gentil e que tenta de todas as
maneiras guardar a histria de vida de seu pai, Darcy de Camargo.
UDESC pela concesso da Bolsa Promop, que possibilitou a mim maior
tranquilidade no ltimo ano da pesquisa.
Ao Daniel Mendona pela reviso primorosa.
Meu eterno carinho a todos.
-
5
RESUMO
TUMELERO, Michele Rodrigues. A Legio Brasileira de Assistncia e os investimentos feitos sobre as mulheres e as crianas na construo de uma nova Chapec-SC (19401960). 2010. 132 f. Dissertao (Mestrado em Histria rea: Histria do Tempo Presente). Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em Histria, Florianpolis, 2010.
Esta dissertao problematiza o processo de disciplinamento das prticas e costumes na cidade de Chapec entre as dcadas de 1940 e 1960, sobretudo, e principalmente, a partir da implantao da Legio Brasileira de Assistncia na cidade. A pesquisa realizada a partir de diferentes fontes documentais revela que esse processo enfatizava sobremaneira um determinado projeto de civilidade que teve como principais alvos as crianas e as mulheres. Tal projeto buscava intervir na organizao familiar no que toca ao cuidado das crianas pela famlia e tambm visava moralizar e disciplinar o corpo infantil e o feminino dentro de uma lgica voltada ao higienismo e ao eugenismo. A criao de polticas sociais, bastante evidentes a partir da implantao da Legio Brasileira de Assistncia na cidade, voltava-se sade e educao. Era a partir desses lugares que se buscava a reformulao dos hbitos e costumes da famlia nos espaos pblico e privado, elegendo-a como construtora e mantenedora de uma sociedade sadia, educada e organizada. O esforo em civilizar Chapec foi feito num contexto de recrudescimento do nacionalismo e na busca de se integrar a cidade ao territrio catarinense. Antes representada como terra violenta, de ndios e caboclos, Chapec vai ser alvo de projetos que objetivam deslocar essa ideia para a de terra de trabalho, de povo desbravador e educado, disposto a concretizar o ideal de cidade moderna e civilizada.
Palavras-chave: Legio Brasileira Assistncia, infncia, mulheres.
-
6
ABSTRACT
This dissertation discusses the process of disciplining the practices and habits in the city of Chapec between the 1940s and 1960s, especially from the implementation of the Brazilian Legion of Assistance in the city. The research carried through different documental sources reveals that this process greatly emphasized a certain project of civility which aimed children and women, mainly. Such project sought to interfere in family organization with regard to the care of children and also tried to moralize and discipline the infantile body as well as the feminine one through a system based on hygienism and eugenism. The creation of social policies, quite evident from the implementation of the Brazilian Legion of Assistance in the city, was directed to health and education. It was from these places that a recast of the familiar habits and customs in the public and private spaces was sought, choosing it as a builder and maintainer of a healthy, educated and organized society. The efforts to civilize Chapec took place in the context of a recrudescence in nationalism and a seeking to integrate the city to the territory of Santa Catarina. Inicially represented as a violent land, of Indians and caboclos, Chapec has been the subject of projects that aimed to change this idea to the concept of work land, of pioneer and educated people willing to achieve the ideal of a modern and civilized city. Keywords: Brasilian Legion of Assistance. Childhood. Women.
-
7
SUMRIO
AGRADECIMENTOS ........................................................................................................................ 4
RESUMO .............................................................................................................................................. 5
ABSTRACT .......................................................................................................................................... 6
INTRODUO .................................................................................................................................... 8
PRIMEIRO CAPTULO - CIDADE DAS ROSAS OU TERRA DE NINGUM?
REPRESENTAES SOBRE CHAPEC E A INSTAURAO DE UMA NOVA
ORDEM ............................................................................................................................................... 22
1.1 A ocupao e o desejo de integrar o Oeste ao Estado catarinense ..... 34 1.2 A preocupao em salvar a populao: a vinda do mdico Dr. Darcy de Camargo e a implantao de uma poltica higienista ...................................... 47
SEGUNDO CAPTULO - A LEGIO BRASILEIRA DE ASSISTNCIA E AS
INTERVENES EM BUSCA DE UMA NOVA NORMA FAMILIAR .............................. 53
2.1 A Legio Brasileira de Assistncia e os cuidados com a criana: intervenes em busca de uma nova norma familiar ...................................... 63 2.2 A incorporao da Legio Brasileira de Assistncia nos discursos do jornal A Voz de Chapec .................................................................................... 76 2.3 A Semana da Criana e os concursos infantis ........................................... 79
TERCEIRO CAPTULO - O PRIMEIRO-DAMISMO E AS INTERVENES DAS
POLTICAS ASSISTENCIAIS SOBRE AS MULHERES ..................................................... 89
3.1 Um novo conceito de educao para as famlias ..................................... 101 3.2 Mes cuidadosas, filhos saudveis: interveno da Legio Brasileira no disciplinamento da mulher em Chapec ......................................................... 111
CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................................ 119
FONTES ........................................................................................................................................... 123
REFERNCIAS .............................................................................................................................. 125
-
8
INTRODUO
A presente dissertao tem como cenrio de investigao a cidade de
Chapec1, e neste espao se pretende analisar em que medida a instalao da
Legio Brasileira de Assistncia esteve relacionada ao projeto de civilidade e
moralizao do Oeste Catarinense no perodo de 1940 a 1960.
A Legio Brasileira de Assistncia, a partir de 1945, teve como objetivo
estender sua luta em defesa da maternidade e da infncia, em prol do Estado
nacional. Essa instituio, preocupada em garantir a moralizao e o reajustamento
infantil, se disseminou por todo o territrio nacional imbuda do discurso de proteo
maternidade, infncia e adolescncia desprovidas de recursos materiais. Tal
poltica estava diretamente associada preservao e manuteno da clula familiar
responsvel, em primeira instncia, pela formao de bons cidados e cidads.
A delimitao temporal dada a partir da instalao da Legio Brasileira de
Assistncia em Chapec, no ano de 1943. Com a instalao dessa instituio
observam-se intervenes bem especficas, com o objetivo de construir uma
Chapec mais moderna e civilizada. Essas intervenes acontecem, sobretudo, a
partir de uma distribuio discursiva produzida sobre as mulheres e as crianas
chapecoenses, que circulam visando fixar na cidade modelos hegemnicos de
famlia e infncia. Nesse sentido, a presente pesquisa problematiza diferentes
questes relacionadas s mulheres e infncia, a partir das categorias de gnero e
de representaes. Tanto os temas quantos as categorias analticas que pretendo
utilizar vm norteando dezenas de pesquisas que fizeram uma renovao na
historiografia construda sobre o Brasil, pelo menos a partir dos anos 1980 do sculo
XX.
Para entendermos o processo de construo de civilidade e moralizao da
sociedade chapecoense, precisamos compreender o processo de colonizao no
Oeste Catarinense. Convm lembrar que esse processo ampara-se na ideologia da
colonizao europeia no pas. Sobre os descendentes de europeus vindos das
colnias velhas do Rio Grande do Sul investiam-se ideias e depositavam-se
expectativas de civilidade e progresso. E, se considerarmos que as teorias 1 Cidade localizada no Oeste Catarinense, a 650 quilmetros da capital do Estado, Florianpolis. Ver mapa na pgina 21.
-
9
evolucionistas e eugenistas ainda estavam latentes nos anos 1920, supe-se que o
branqueamento da populao tambm era bastante desejvel com a vinda desses
imigrantes. Esse projeto colonizador da regio deixava bem claro tambm que a
preferncia por descendentes de europeus exclua ou ocultava o elemento caboclo
do Oeste Catarinense.
Abandonada pelos poderes pblicos, essa regio era vista como uma terra de
ningum, violenta, incivilizada. Foi marcada por conflitos tnicos e econmicos, bem
como por disputas de fronteiras, levando construo de um imaginrio social que
remetia a uma regio do caos. Com a chegada dos imigrantes descendentes de
italianos oriundos do Rio Grande do Sul, comea a configurar-se outra imagem para
a regio. Atravs de colonizao de terras pela Colonizao Bertaso, percebe-se,
nos discursos, uma srie de enunciados que procuraram constitu-la como regio
opulenta em recursos naturais e extenso geogrfica; com uma populao voltada
para o trabalho, fadada ao progresso. Nesse mesmo perodo havia toda uma
preocupao do ento interventor Nereu Ramos (1937-1945) de integrar o Oeste
Catarinense ao territrio de Santa Catarina. Para o governo, a regio s se integraria
a partir da implantao de polticas pblicas relacionadas sade e educao
como um caminho racional para consolidar o ideal de famlia brasileira.
Entre o perodo de 1920 a 1940, consolidavam-se discursos sobre civilidade e
progresso ligados chegada dos imigrantes regio. Observa-se tambm a partir
disso a efetivao do recorte regional do Oeste Catarinense como terra do trabalho
ou celeiro do Sul do pas, juntamente com um discurso que procurava forjar novas
identidades de gnero e novas formas de definio e redefinio de famlia, em
oposio a uma imagem de terra de ningum, de banditismo e de caudilhismo, mais
visvel e divisvel.
A partir da dcada de 1950, esses discursos pem em perspectiva novas
questes na cidade Chapec. Essas questes foram construdas com a interveno
da Legio Brasileira de Assistncia e as polticas pblicas trazidas por ela regio.
As mulheres e as crianas so os principais sujeitos dessas aes e polticas, alvos
de intervenes centralizadas em um processo de civilidade e de moralizao em
que o controle e a limpeza do espao pblico eram emergenciais, e s possveis por
meio da educao e sade da populao. A emergncia , portanto, a entrada em
cena das foras; sua interrupo, o salto pelo qual elas passam dos bastidores
-
10
para o teatro. 2
Como instituio catalisadora e veiculadora dessas intervenes, a Legio
Brasileira de Assistncia ocupa lugar privilegiado nesse processo. De acordo com
Ren Lourau3, denomina-se instituio o conjunto de foras sociais em atuao
numa situao aparentemente regida por normas universais em vista de uma
produo precisa. Dessa forma, a instituio pode ser entendida como aquela que
assume a reproduo e a produo de relaes sociais num dado momento. A
instituio , assim, uma dinmica que se constri na histria e em relao a esta,
devendo ser tomada sempre como um movimento, jamais como imobilidade.4 E,
ainda segundo esse estudo, a noo de instituio abarcaria trs movimentos: o
institudo, significando o jogo de foras que atuam no sentido de produzir certa
imobilidade; o instituinte, que se define como conjunto de foras que tendem a
transformar as instituies ou produzi-las quando no existem; e a
institucionalizao, que o produto contraditrio do instituinte e do institudo, em luta
permanente, em constante transformao como as foras que entram em
dissoluo.5
Cumpre destacar que a partir da ideia de instituio diferencia-se a noo de
estabelecimento, sendo este ltimo definido como um local geogrfico onde se
utilizam as diferentes instituies, como estrutura, hierarquia, horrios, utilizao do
tempo, regulamento, entre outras. O estabelecimento pode ser definido como
espao ocupado por muros, mobilirios etc. As instituies seriam o oposto, no
podem ser apreendidas atravs da realidade das coisas das organizaes.
Os estudos sobre a histria da infncia sofreram impactos significativos a
partir da publicao do trabalho pioneiro de Philippe Aris, que analisa, por meio de
pesquisa iconogrfica, como se deu a produo da infncia na Europa6. Uma srie
de acontecimentos localizados entre o final da Idade Mdia e o sculo XIX
possibilitou a emergncia, na Europa, da preocupao com a criana como um ser
particular, separado do adulto e alvo dos princpios da disciplina e da racionalidade.
A partir dessas mudanas a criana passaria a ser observada, paparicada, mimada
2 FOUCAULT, Michel, 1993, p. 24. 3 LAPASSADE, Georges & LOURAU, Ren, 1971, p. 45. 4 LOURAU, Ren,1992, p.12 5 Idem. 6 ARIES, Philippe, 1981
-
11
e definitivamente amada. Segundo Van Ussel7, antes dessa poca no havia uma
fronteira formal entre a criana e o adulto, ou entre o jovem e o adulto, mesmo em
relao ao afeto. A linguagem no oferecia conceitos diferentes para o adulto e para
as crianas. Tampouco havia a preocupao em medir exatamente o tempo de vida
dos sujeitos ou mesmo das coisas, o que resultava na falta de marcos ou comeos
definidos de quando uma criana passava a ser um jovem ou de quando este
passava a ser um adulto.
Essa preocupao em salvar a criana, despertada no sculo XVIII, gera a
necessidade da insero de uma norma familiar burguesa. Tornava-se essencial
organizar as famlias, evidenciando a figura das mulheres, como mes, responsveis
em garantir a eficcia na gesto do carter infantil. Assim, a famlia desenvolveu
uma aliana com a medicina, atravs da submisso higiene, que resultou na
intimizao e estatizao dos indivduos. Produzem-se indivduos preocupados com
sua intimidade fsica e emocional, desprendidos de suas razes familiares extensas e
centrados na famlia nuclear, preocupada com cuidados fsicos e sentimentais. A
produo do indivduo moderno necessitou de uma ruptura com as relaes de
casta, religio e propriedade.
A emergncia dessa nova ordem burguesa reflete-se no Perodo Republicano
no Brasil, com a necessidade de romper com as vises estereotipadas de um pas
arcaico, conservador, atrasado e pouco desenvolvido em seus conceitos sociais,
culturais e econmicos. Para isso, era preciso acabar com a imagem que assolava
as cidades, de insalubridade e insegurana com a construo de um modelo de
urbanizao que atingisse as expectativas de um pas civilizado e nos caminhos do
progresso sob a ideia de modernizao. Para Nicolau Sevcenko, essa situao s
mudaria na medida em que somente oferecendo ao mundo imagem de plena
credibilidade era possvel drenar para o Brasil uma parcela proporcional da fartura,
conforto e prosperidade em que j chafurdava o mundo civilizado. 8
Para que essa imagem de credibilidade, fartura e conforto viesse a se
concretizar, era necessrio investir na regenerao da famlia brasileira. Como
objeto de interveno e interdio, a famlia passa a ser preparada dentro dos
aspectos higinicos para acomodar-se e participar na criao dos valores de classe,
7 VAN USSEL, Jos, 1980. p. 47. 8 SEVCENKO, Nicolau, 1989. p. 29.
-
12
corpo, raa e individualismo caracterstico do Estado Burgus.9 A partir disso, os
pais modificaram suas relaes com seus filhos, e a famlia passou a ser concebida
como um lugar exclusivo de proteo e cuidados da infncia.
Nietzsche, em sua obra A Genealogia da Moral10, contextualiza que a
moralidade no um trao natural e nem um legado da graa de Deus, ela foi
adquirida atravs de um processo de adestramento que tornou o homem um ser
previdente e previsvel. Foi preciso que se construsse uma memria sobre a moral.
Nesse sentido percebe-se como a Legio Brasileira de Assistncia apropriou-se de
uma memria da moralidade traada na disciplina, na ordem e na norma para atuar
como um programa de condicionamento das famlias, das mulheres e das crianas,
atravs de representaes de prticas higinicas, estabelecendo um novo olhar no
comportamento da populao e modelando seus hbitos e costumes.
A Legio Brasileira de Assistncia estabelece uma parceria atravs de
convnios com a sade e a educao que vo ser os grandes motores da
implantao do programa almejado por ela em todo o Brasil. Desempenharia um
papel especial de grande importncia no progresso de um mecanismo do processo
civilizador do homem civilizado. 11 O desenvolvimento de uma nova individualizao
dos agentes sociais como frutos de um processo civilizador, atravs de uma
conteno prpria de comportamento, aparece na constituio da civilidade, a partir
do sculo XVI.
As novas abordagens da histria permitem pensar a Histria do Tempo
Presente, domnio de estudos que busca problematizar questes contemporneas
ao historiador. Narrar, interpretar, buscar explicaes para acontecimentos,
fenmenos sociais, culturais, prticas, enfim, encetar uma produo historiogrfica
situada no domnio do tempo presente no significa propriamente fazer um trabalho
relacionado a um perodo muito prximo. Segundo Franois Dosse, a Histria do
Tempo Presente diferente tambm porque participa de um paradigma buscado na
ruptura com o tempo nico e linear e que pluraliza os modos de racionalidade, no
deve limitar seu objeto ao instante12. Os longos debates sobre o estatuto da Histria
e a busca por outros paradigmas explicativos da realidade nas ltimas dcadas
impem reflexes sobre as implicaes e tenses sobre as fronteiras, alcances,
9 COSTA, Jurandir Freire, 1983, p.151 10 NIETZSCHE, Friedrich, 2007. 11 ELIAS, Norbert, 1994, p. 23. 12 DOSSE, Franois, 2001, p.93.
-
13
possilidades das pesquisas realizadas sob esse domnio. As fontes utilizadas, os
temas e problemas assumidos nesta pesquisa notadamente possuem elementos
para a realizao de uma histria consequente sobre temas do presente e das
questes que lhe so inerentes.
Essas politicas pblicas relacionadas infncia e maternidade
implementadas durante o Estado Novo tinham a criana como o futuro da nao.
Era preciso inserir na sociedade um sentimento de infncia, para que ela crescesse
saudvel, feliz, bem educada dentro do seio da famlia. Essa problemtica sobre a
infncia continua sendo questo de estudo para a Histria do Tempo Presente, visto
que o maior controle por parte do Estado ainda no tem garantido proteo e direitos
as crianas e adolescentes no Brasil.
A partir da pesquisa emprica nos arquivos do Estado de Santa Catarina
pretende-se analisar a implantao da Legio Brasileira de Assistncia e seus
compromissos com a integrao de Chapec no cenrio modernizante da nao
brasileira. Esta pesquisa, portanto, justifica-se por contribuir para a compreenso da
histria de Chapec e da regio, durante o perodo do Estado Novo, a partir do
estudo da Legio Brasileira de Assistncia e dos discursos proferidos por ela. Dessa
maneira busca-se compreender os aspectos da histria de uma instituio que atuou
como representante da histria e da memria da sociedade, e que, em sua atuao
e produo de discursos, em parte centrada na ideia do progresso e da civilizao
da regio, contribuiu para mapear e reorganizar a cidade de Chapec, no Oeste
Catarinense.
A pesquisa histrica caracteriza-se sobremaneira pela utilizao frequente de
fontes escritas e iconogrficas. Essa relao com as fontes marca significativamente
o fazer do historiador. Assim, a investigao que resultou neste trabalho foi
realizada em diferentes arquivos do Estado de Santa Catarina, nesses lugares foram
pesquisados documentos tais como: relatrios das atividades realizadas pela Legio
Brasileira de Assistncia durante os anos de 1943, 1944, 1945, 1965 e 1978 nas
cidades de Santa Catarina; o Arquivo da Previdncia Social, em Florianpolis, em
que se encontra toda a documentao da Legio Brasileira de Assistncia de
Chapec e de outras cidades catarinenses. Esse arquivo contm oramentos para
aberturas de centros de puericultura no Estado, dossis com prestaes de contas
do dinheiro que foi entregue ao estabelecimento para construo dos projetos, todos
os gastos com notas fiscais anexadas de infraestrutura, alimentao, material
-
14
didtico, contratao de funcionrios etc., cartes-ponto em que constam os dias de
trabalho dos funcionrios e as portarias em que esto as mudanas de normas da
instituio, contrataes, frias e demisses de funcionrios. Quando a Legio
Brasileira de Assistncia foi extinta em 1995, toda a sua documentao foi
armazenada nesse local.
Alm desses documentos foram trabalhados tambm impressos jornalsticos,
como o jornal A Voz de Chapec, fundado em 3 de maio de 1939, durante o Estado
Novo, pelo Coronel Ernesto Francisco Bertaso, pelo juiz em disponibilidade Antonio
Selistre de Campos e pelo advogado e futuro prefeito de Chapec (1947) Vicente
Cunha. Tratava-se de um jornal que dava total cobertura ao pessedismo,
defendendo os interesses do partido nos mbitos federal, estadual e municipal,
principalmente nos perodos de campanhas eleitorais, promovendo suas
realizaes, bem como as da Empresa Colonizadora Bertaso e de pessoas ligadas
famlia.13 Tambm foi pesquisado o Jornal Imparcial, fundado em 17 de julho de
1946 na cidade de Palmitos. O referido jornal depois migrou para Chapec, onde
obteve maior circulao. Esses jornais se encontram no Centro de Memria do
Oeste Catarinense (CEOM), em Chapec. Nesses jornais encontramos os discursos
que eram enunciados pelas autoridades locais e pela sociedade em geral sobre a
formao de cidadozinhos catarinenses.
Partindo-se da pressuposio de que a linguagem jornalstica se apresenta
com pretenses de subjetividade, visando como se deram as formas de ao,
silncio e divises de papis. Portanto, as fontes escolhidas para este estudo se do
pela riqueza de informaes, bem como por fornecer caminhos metodolgicos que,
no caso especfico, ainda no foram explorados dessa forma. H uma srie de
questes a serem observadas, tendo em vista que a linguagem enquanto discurso
uma interao, um modo de produo social; no neutra, inocente, e nem natural,
por isso um lugar de manifestao de ideologia. 14
No momento em que a linguagem como palavra disseminada, se torna um objeto de conhecimento, eis que aparece sob uma modalidade estritamente oposta: silenciosa, cautelosa deposio da palavra sobre a brancura de um papel, onde ela no pode ter nem
13HASS, Monica, 1999, p. 161. 14 BRANDO, Helena H. Nagamine, 1997, p. 12.
-
15
sonoridade, nem interlocutor, onde nada mais tem a dizer seno a si prpria, nada mais a fazer seno cintilar no esplendor de seu ser. 15
O trabalho com a imprensa exige que o pesquisador perceba as
intencionalidades tecidas nos discursos jornalsticos em que o mundo da infncia
torna-se um fenmeno crescente de noticiabilidade a partir da prpria realidade do
pas e de seu jornalismo nas ultimas dcadas. Essas intenes vo ao encontro de
como o jornalista encara a infncia e a criana enquanto potencial noticioso e em
que medida considera que o jornalismo deve ter um papel social de compromisso
com a lei aprovada pelas Naes Unidas, e com as crianas de cada pas e do
mundo. 16
Para Cristina Ponte a criana torna-se um material noticivel a partir da
realidade da imprensa norte-americana, a partir do ps-Guerra, nomeadamente nas
batalhas pelos direitos cvicos ocorridas nas dcadas de 1950 a 1960, e no esforo,
sobretudo, nos finais dos anos de 1960 e nas dcadas seguintes, em prol de
sistemas facilitadores de integrao social da maioria da tnica, nomeados por um
programa de compensao educativa e de assistncia pblica. Nos anos de 1960 a
1970, a educao e a assistncia foram marcadas por discursos engajados
socialmente, que impulsionam a sua democratizao e alargamento das
possibilidades de acesso e o sucesso de crianas socialmente desfavorecidas.17 A
autora destaca, ainda, que o jornalismo trabalha como uma espcie de agenda
pblica feita com base na auscultao de grupos locais, com contraponto s
agendas oficiais.18
Dessa forma o jornalismo aparece como uma forma de democracia cujo
objetivo final no fazer notcia, reputao, manchetes, mas simplesmente fazer a
democracia funcionar. Assim, quem continua a decidir o que notcia so os
jornalistas. Para Cristina Ponte o interesse noticioso pela cobertura dos temas
ligados infncia e famlia tem crescido, e como o uso de imagens de crianas em
matrias nacionais e internacionais recente. A criana passa a ser eleita como
smbolo da pureza e da inocncia, e tomada como referncia moral. Salvar a
democracia implica salvar as crianas da fome e dos maus-tratos. 19
15 FOUCAULT, Michel, 1999, p.416 16 PONTE, Cristina, 2005, p. 84 17 Idem, p. 85. 18 Idem, p. 86. 19 Idem, p. 86-87
-
16
O acesso a essas fontes possibilitou uma leitura acurada a respeito dos
diferentes discursos, mensagens, artigos, propagandas e publicaes de decretos,
leis, atos do poder municipal relativos necessidade de identificar a formao do
cidado em Chapec e regio. Outro acervo que pude analisar pertence a famlia do
mdico Darcy de Camargo, que trabalhou na Legio Brasileira de Assistncia. Esse
acervo encontra-se na casa de seu filho Antonio de Camargo, um senhor muito
simptico e comprometido em guardar a histria no s de seu pai, mas tambm da
cidade. No acervo pude encontrar o dirio de anotaes do mdico, documentos e
tambm vrias fotos dos concursos de Robustez Infantil, Garoto do Ano, Rainha
das Bonecas e desfile de moda infantil. Todos esses concursos ocorriam na
Semana da Criana em Chapec. Essas fotos estavam em seu poder, pois afinal
quem fazia a inscrio era o mdico da Legio Brasileira Darcy de Camargo.
A escolha das fontes depende no apenas do objeto de pesquisa, mas
tambm da delimitao do problema da pesquisa, isto , dos recortes efetuados. As
investigaes no dirio de anotaes do mdico Darcy de Camargo foram muito
importantes para a realizao desse trabalho. No que se refere a esses relatos,
convm no esquecer do alerta de Pierre Bourdieu sobre a iluso bibliogrfica20.
Ou seja, aquela gerada pelo individuo que conta sua histria e expe sua memria.
Para Bordieu, esse processo evidencia o sujeito que conta como idelogo de sua
prpria histria, selecionando certos acontecimentos significativos em razo de uma
inteno global e estabelecendo conexes adequadas para dar-lhes coerncia, nos
quais os sentidos so produzidos por uma retrica ordenadora marcada pela
descontinuidade do real. Trata-se a de um esforo de representao, ou melhor, de
produo de si mesmo, realizada pelo memorialista.21 Certamente as anotaes do
mdico Darcy de Carmargo sobre as prticas de sade da regio e seu prprio
posicionamento sobre essas prticas, dizem muito sobre as prticas de sade
levadas a cabo naquele momento e lugar, em meio ao processo de instaurao de
um saber autorizado pela medicina oficial - sob os auspcios da Cincia - em
contraposio as prticas de sade caseiras da populao local.
Partindo da premissa que toda a fotografia um resduos do passado22 o
trabalho com as imagens fotogrficas encontradas no acervo particular da famlia do
20 BOURDIEU, Pierre, 1996. 21 Idem, p.57. 22 KOSSOY,Boris, 2001, p.45.
-
17
mdico Darcy de Camargo possibilitou a construo de fragmentos da memria,
como descries visuais, situando o investigador no tempo e no espao. O
pesquisador Boris Kossoy lembra que toda fotografia tem atrs de si uma histria23.
Nesse sentido, reconhecer essa histria significa reconhecer a existncia pelo
menos de trs estgios que marcaram sua trajetria: em primeiro lugar, a inteno
para que a fotografia existisse; em segundo o ato do registro que deu origem a
materializao da fotografia e, finalmente, os caminhos percorridos por ela.24 No
caso das fotografias em questo, trata-se de artefatos em cuja descrio se
encontra os sinais da inteno do ato fotogrfico e dos caminhos por ela percorrido:
registrar os acontecimentos relativas a constatao e efetivao da construo das
polticas pblicas de sade envolvendo famlias, mulheres e criana no municpio de
Chapec. Desse modo, ainda, segundo Boris Kossoy:
Ver, descrever e constatar no suficiente na analise de uma fotografia. necessrio buscar o significado do contedo do assunto registrado que quer ser concebido como resultado de uma seleo de possibilidades de ver, optar, fixar um certo aspecto da realidade primeira, cuja a deciso coube exclusivamente ao fotgrafo, quer estivesse ele registrando o mundo para si mesmo, quer a servio de seu contratante. Haveria, nessa seleo, uma primeira manipulao/interpretao da realidade, pelo fotgrafo que pode ser, consciente ou inconsciente premeditada ou ingnua, estando ele a servio ou no do contratante25.
Evidentemente que as fotografias usadas nesse trabalho, embora sejam
tomadas como fragmentos do passado, no so cpias do real, mas uma emanao
do real passado26. As fotografias relativas as comemoraes da Semana da Criana
mostram a criana como foco principal de intervenes, sugerem interpretaes
sobre um contexto histrico bastante especfico, local, em suas articulaes e
referncias com polticas pblicas nacionais e internacionais. Sugerem ainda, que
eram sim usadas para fixar sentidos sobre essas polticas entre a populao local,
lembrando que eram publicadas nos jornais locais, eram dadas a ver, circulavam
nos jornais locais, eram expostas nos postos de sade, mostradas para amigos e
parentes.
Para Michel Foucault, em toda a sociedade a produo do discurso ao
mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero
23 Idem. 24 Idem. 25 Idem, p. 95. 26 BARTHES, Roland, 1984, p. 132.
-
18
de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade27. Foucault
lembra que no se tem o direito de dizer tudo, que no se pode falar tudo em que
qualquer circunstncia, que qualquer um enfim, no pode falar de qualquer coisa.
Tudo isso remete a um tabu do objeto, ritual de circunstncia, direito privilegiado ou
exclusivo do sujeito que fala. Temos a o jogo de trs tipos de interdies que se
cruzam, se reforam ou se compensam, formando uma grande e complexa rede que
no cessa de modificar o discurso. Chama ateno, ainda, para o fato de que as
discusses cerradas so as regies da sexualidade e da poltica: como se o
discurso, longe de ser um elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se
desarma e a poltica se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo
privilegiado, algum de seus temveis poderes. Por mais que o discurso seja
aparentemente bem pouca coisa, as interdies que atinge revelam logo,
rapidamente, sua ligao com o desejo e com o poder, ou seja, o discurso no
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominao, mas aquilo pelo
que luta o poder do qual queremos nos apoderar.
Nesse sentido, o presente trabalho visa problematizar quem foi o produtor dos
discursos, de que forma e como se produziu sem perder de vista as questes
referentes para quem produziu e quais as consequncias dessa produo para a
sociedade. De igual modo, contribui com os estudos de gnero na medida em que
se trata de investigar a histria das mulheres e das crianas que foram ocultadas,
mas que desempenharam papel to importante quanto os homens na histria.
Assim, a categoria gnero pode ser usada para refletir acerca do convvio
entre homens e mulheres, relaes que foram construdas historicamente, calcadas
nos discursos sobre a diferena sexual. A categoria gnero deve ser intercalada com
outras categorias especialmente para o estudo das relaes familiares , como
classe, raa/etnia. Para a historiadora norte-americana Joan Scott:
O termo gnero alm de um substituto para o termo mulheres tambm utilizado para sugerir que qualquer informao sobre as mulheres necessariamente informao sobre os homens, que um implica o estudo do outro. Essa utilizao enfatiza o fato de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele criado nesse e por esse mundo masculino. 28
27 FOUCAULT, Michel,1996, p. 8-10. 28 SCOTT, Joan, 1995, p. 75.
-
19
A investigao proposta trabalhar a partir de problematizaes da histria
cultural para lidar tambm com a categoria de representao. Segundo Roger
Chartier o principal objetivo dessa corrente historiogrfica identificar o modo como,
em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social construda,
pensada, dada a ler.29 So esses esquemas intelectuais incorporados que criam as
figuras graas s quais o presente pode adquirir sentido, o outro torna-se inteligvel
e o espao, decifrado. Dessa forma as representaes do mundo social so sempre
determinadas por interesse de grupos que as forjam. Portanto, para cada caso
torna-se necessrio relacionar os discursos proferidos com a oposio de quem os
utiliza.
O primeiro captulo, Cidade das Rosas ou Terra de Ningum?
Representaes sobre Chapec e a instaurao de uma nova ordem, pretende
principalmente situar a cidade de Chapec no tempo e nas relaes que lhe
conferiam lugar especfico no territrio catarinense. Alm disso, se quer aqui
problematizar, a partir da literatura disponvel, as representaes tecidas sobre a
cidade de Chapec e as ideias de civilidade influenciadas pela lgica das prticas
higienistas e eugenistas. O discurso de moralidade e disciplinamento imposto
famlia na remodelao de hbitos, costumes e prticas higinicas e a atuao da
Legio Brasileira de Assistncia, atuando na cidade para construir essas
representaes sociais de civilidade so objetos de anlise centrais nesse primeiro
captulo.
O segundo captulo, intitulado A Legio Brasileira de Assistncia e as
intervenes em busca de uma nova norma familiar, historiciza brevemente a
criao da Legio Brasileira de Assistncia e se prope a pensar e discutir como
suas intervenes passaram a impor, sobretudo a partir de polticas pblicas, uma
nova ordem voltada sade e educao da criana. As representaes sobre a
criana e as mulheres, principalmente no que toca maternidade e famlia,
inserem todo um conjunto de prticas em que tanto a criana como as mulheres
adquirem um novo lugar, a partir de um discurso higinico de moralidade e
disciplinamento da famlia. Essas aes buscavam a sensibilizao da sociedade
chapecoense sobre cuidados e proteo da criana. Era necessrio acabar com a
mortalidade infantil para almejar um projeto de civilidade.
29 CHARTIER, Roger, 1998, p.16-17.
-
20
No terceiro captulo, O primeiro damismo e as intervenes das polticas
assistenciais sobre as mulheres, buscaremos discutir a participao das mulheres
na atuao das polticas assistenciais da Legio Brasileira de Assistncia e suas
conseqentes intervenes sobre as mulheres mes. Com a participao das
primeiras damas as mulheres so chamadas a ser voluntrias dessa instituio
durante e aps a Segunda Guerra Mundial. A atuao das mulheres foi marcada por
intervenes nas polticas pblicas destinadas infncia e a mes, em que se
buscou internalizar e legitimar o papel das mulheres como guardis da vida das
crianas e com isso garantir que ela nascesse e crescesse feliz. As intervenes
sobre o corpo das mulheres procurou conduzi-las para dentro do lar, afinal elas
cabia a importante misso de regenerar a familia. Alm disso, as mulheres foram
alvo do discurso mdico, que procurou transformar a atividade maternal em
sanitria, incitando valores de como deveria ser e o que deveria fazer uma me.
-
21
Figura 1 - Mapa poltico-administrativo de Santa Catarina.30
30 Disponvel em . Acesso: 15 de dezembro de 2009.
-
22
PRIMEIRO CAPTULO
CIDADE DAS ROSAS OU TERRA DE NINGUM? REPRESENTAES
SOBRE CHAPEC E A INSTAURAO DE UMA NOVA ORDEM
Era aproximadamente meia-noite do dia 4 de outubro de 1950 quando um
incndio, na igreja de Chapec, abalou os habitantes do lugar. Assustados, pois
despertados pelos sons de tiros e pelo badalar dos sinos, os habitantes viram sua
igreja em chamas. Tal acontecimento foi como um desfecho tanto material quanto
simblico dos embates e combates que marcaram o processo eleitoral da cidade
naquele ano.
O calor da apurao dos votos da eleio aquecia os nimos das pessoas,
que de fato mudaria o cenrio poltico existente, estabelecido desde 1917. Como a
Unio Democrtica Nacional (UDN) estava ganhando as eleies, em oposio ao
Partido Social Democrtico (PSD), os primeiros comentrios davam conta de que o
incndio tinha conotao poltica. O delegado Arthur Lajus, que pertencia ao PSD,
foi atrs dos culpados. Foram presos Romani Ruani, Ivo Oliveira Paim, Orlando Lima
e seu irmo Armando Lima. Os irmos Lima negavam participao no incndio. Os
moradores da cidade exigiam os nomes dos culpados, e o padre Roberto clamava
por justia. Diz-se que os presos foram torturados at confessarem. O povo estava
sendo agitado atravs de um abaixo-assinado que circulava na cidade e que pedia o
linchamento dos presos acusados de ter incendiado a igreja. A revolta contra eles
crescia a cada momento. No apenas o incndio, mas tambm os acontecimentos
posteriores tornaram-se o assunto principal dos homens da cidade nas rodas de
chimarro em frente s lojas e aos botecos, onde a conversa era acompanhada de
baforadas em cigarros de palha.31 As mulheres, claro, circunscritas aos seus
espaos tambm delimitados social e culturalmente , provavelmente tratavam do
mesmo assunto.
Nesse meio-tempo Romani Ruani e Ivo Oliveira Paim inocentam os irmos
Lima e assumem a culpa pelos incndios que estavam ocorrendo na cidade, mas
mesmo assim o delegado no solta os irmos. Uma das causas era que Orlando
31 HASS, Mnica, 1999, p.72.
-
23
Lima tinha um desentendimento com o delegado Lajus e tambm pertencia ao
diretrio do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que havia se coligado com a UDN,
tendo envolvimento na campanha poltica das eleies de 1950.
O padre Roberto, da Congregao Franciscana, no acreditava em incndio
acidental. No dia seguinte ao incndio j havia pregado, num sermo, que quem
queimou a igreja tem que ser queimado, como as imagens dos santos da igreja o
foram. 32 O padre era muito respeitado na regio, afinal o vigrio de batina, junto
com o juiz, o prefeito e o delegado, estava entre as autoridades mais importantes do
lugar. O pedido de justia do padre contribuiu fortemente para incitar a populao
local a tomar uma atitude, o desfecho seria trgico, como veremos a seguir.
Numa noite fria de 18 de outubro de 1950, duzentos homens armados de
revlveres, paus, faces e foices entraram na cadeia descarregando tiros, pauladas
e golpes de faces nos acusados. Depois de mat-los, os homens arrastaram os
corpos para os fundos da cadeia, empilharam uns sobre os outros e, em seguida,
despejaram em cima dos cadveres um galo de gasolina e colocaram fogo neles.
As pessoas envolvidas no massacre ficavam ao redor da fogueira observando os
quatro corpos empilhados em chamas. Em seguida dispersaram pelas ruas escuras
do povoado, acompanhados pelo cheiro acre da morte. A ordem havia sido
estabelecida na comunidade.33
Consideramos essa descrio construda tanto a partir de pesquisas
realizadas sobre o tema quanto de histrias preservadas pela tradio oral
necessria por pelo menos duas razes: alm de o episdio ter sido utilizado para
reafirmar a ideia de uma cidade violenta e sem lei, vai assinalar uma srie de
intervenes havidas na cidade, em busca de um projeto civilizador. Em seu livro O
linchamento que muitos querem esquecer, Chapec, 1950-1956, Mnica Hass
analisa, a partir das pginas de revistas e jornais regionais, nacionais e at
internacionais, como esse crime projetou negativamente a regio, mas tambm
colaborou para o desenvolvimento regional, inserindo um novo contexto de
mudanas que punham no horizonte os ideais modernizador e civilizador to
desejados para a cidade. Tal contexto traria mudanas estruturais na economia
local, sobretudo aquelas resultantes da intensificao do processo de
industrializao, que ocorria em nvel nacional. Segundo aponta Mnica Hass,
32 Idem, p.79. 33 Idem, p. 75-88.
-
24
comum ouvir dos antigos moradores da cidade que Chapec comeou a se
desenvolver depois da chacina34. Ou seja, a chacina teria ao mesmo tempo um tom
trgico e de ruptura entre uma Chapec incivilizada e atrasada e outra moderna e
civilizada.
Chapec, nos anos 1950, era uma cidade em evidente transformao.
Naquele momento se efetivou a constituio do recorte regional do Oeste
Catarinense como terra do trabalho ou celeiro do Sul do pas, juntamente com um
discurso que procurava forjar novas identidades de gnero e novas formas de
definio e redefinio de famlia no contexto da prpria produo do Oeste do
Estado. Porm, ao mesmo tempo que a cidade passava a ser identificada com a
ideia de trabalho, prosperidade, progresso e civilizao, ainda permanecia a imagem
de terra de ningum, de banditismo, de caudilhismo35 e sem acesso a polticas
pblicas, principalmente aquelas relacionadas educao e sade.
O violento incidente ocorrido em Chapec provocou o declnio poltico do
segmento ligado ao Coronel Bertaso. Mais ainda, provocou o esfacelamento do
poder institudo, bem como atritos e lutas polticas acirradas, diante dos diferentes
interesses de grupo em choque na luta pela afirmao do espao e da dominao
locais. Quer dizer, a quebra da hegemonia poltica municipal nas eleies de trs de
outubro, proporcionada pelos trabalhistas, veio acompanhada de fatos que mudaram
totalmente a vida da comunidade chapecoense.
Mais de meio sculo depois do episdio do massacre na cidade, Chapec
quer ser conhecida como Cidade das Rosas. Com 187 mil habitantes36, esfora-se
para se legitimar como uma terra de povo acolhedor, desbravador, como terra do
trabalho. Passados quase cem anos da chegada das primeiras levas migratrias de
descendentes de italianos ao Oeste catarinense, os discursos oficiais reiteram e
atualizam a representao da lgica do trabalho. Exemplo disso pode ser visto no
principal monumento da cidade: o Desbravador, esttua de quatorze metros de
altura, que representa um gacho empunhando numa mo um machado,
simbolizando o trabalho e na outra, um louro, simbolizando a vitria, que reina
solene, ao lado da Catedral Catlica, no corao da cidade.
34 Idem, p.14. 35 Caudilhismo, neste caso, pressupe a submisso da populao local aos mandos e desmandos dos patres da regio. Cf. BREVES, Wenceslau de Souza, 1985, p. 29. 36 IBGE. Censo Demogrfico Estado de Santa Catarina 2007. Disponvel em: . Acesso: 13 de maro de 2009.
-
25
possvel que essas representaes tanto as relacionadas ao trabalho
quanto ao gacho comearam a ser construdas no inverno de 1917, quando as
terras do Oeste Catarinense tornaram-se mercadoria lucrativa para as companhias
colonizadoras, que se utilizaram dos jornais e dos cultos religiosos como meios de
divulgao das belezas das novas terras, fazendo com que diariamente chegassem
caravanas e caminhes abarrotados de colonos37 descendentes de italianos, vindos
do Rio Grande do Sul.38 Ao adquirir a nova propriedade, o trabalho familiar era
empregado no desmate, na formao da roa, na construo da moradia e das
benfeitorias; bem como na construo e manuteno dos caminhos e traados da
nova cidade. A fora do trabalho familiar foi base desse esforo produtivo. O
trabalho era dividido entre adultos, jovens, crianas e idosos, e todos trabalhavam
com a mesma intensidade.
Dessa forma o processo de colonizao instituiu novas relaes econmicas
e sociais na regio, e os colonos produziam gneros alimentcios para subsistncia
o excedente era vendido no comrcio local e regional.
A leva de imigrantes descendentes de italianos vinda do Rio Grande do Sul e
estabelecida em Chapec e a configurao de uma identidade italiana para a cidade
apresentam-se como fatores de sucesso e progresso, assinalando fortemente a
discriminao de caboclos e ndios que habitavam a regio. Para a antroploga
Arlene Renk39, o governo decidiu colonizar o Oeste Catarinense, contratando para
isso as companhias colonizadoras as reas de floresta e campo foram divididas
em pequenos lotes, chamados colnia e vendidas aos colonos do Rio Grande do
Sul. 40
A colonizao patrocinada pela Empresa Colonizadora Francisco Bertaso era
intensa. A compra de lotes era facilitada com as terras sendo vendidas com 30% de
desconto e o restante dividido em duas parcelas semestrais. A maioria delas
consistia em pequenas propriedades caracterizadas pela agricultura familiar. A
Empresa Colonizadora Francisco Bertaso priorizava os descendentes de italianos,
mas tambm vieram para a regio descendentes de poloneses, alemes, russos,
37 Como expresso de uma identidade camponesa, o termo colono foi atribudo aos imigrantes pelas leis e regulamentos que nortearam a poltica de colonizao desde a sua implantao, no sculo XIX. Acabou se transformando numa identidade assumida pelos indivduos descendentes de imigrantes europeus na regio. Cf. RENK, Arlene, 2004, p.19. 38VICENZI, Renilda, 2003, p. 116. 39 RENK, Arlene, 1999, p.10. 40 Idem, p.12.
-
26
entre outros, o que tornou o Oeste Catarinense uma regio bastante pluritnica. Faz-
se necessrio no esquecer, porm, que antes da chegada dessas populaes a
ocupao humana da regio contava com a presena de comunidades indgenas, as
quais, segundo observa Dlcio Marquetti, vivenciariam:
a partir da penetrao do elemento portugus a fase cabocla. Indgenas e caboclos foram responsveis pela proto-colonizao. No entanto tais grupos foram condenados ao silncio imposto pelos colonizadores, caindo praticamente no esquecimento. 41
As dificuldades enfrentadas nos primeiros anos mato, solido, trabalho
rduo, via de acessos difceis, mercado praticamente inexistente fizeram existir um
forte esprito comunitrio entre moradores na regio. Os colonos se reuniram para
abrir estradas, construir a escola, a igreja, o clube. Na religiosidade encontraram
consolo para as dificuldades passadas naquela terra desconhecida. A vida social
girava ao redor da religio. O padre em lombo de cavalo visitava regularmente a
comunidade.
O espao de diverso e lazer configurava-se em momentos de socializao
das experincias cotidianas. Segundo pesquisas realizadas pelos historiadores
Juara Nair Wollf e Marcos Batista Schuh, a ideia de lazer para os habitantes do
Oeste Catarinense fazia-se a partir de espaos delimitados entre homens e
mulheres. Diversas formas de brincadeira acompanharam vrias geraes de
moradores.
Preocupados com a questo da moral familiar, as brincadeiras que envolviam meninos e meninas, homens e mulheres eram bem delimitadas. Espaos masculinos como campo de futebol, jogo de quatrilho, de bisca e bate-papo regado a bebidas exclusivamente dos homens. (...) No entanto, roda de chimarro, cantorias e brincadeiras com a criana configuravam-se espao eminentemente feminino, sobretudo porque a educao das crianas era tambm uma responsabilidade da mulher. 42
Arlene Renk mostra que a eficcia do projeto colonizador requereu agentes
humanos cujo modelo foi o descendente de europeu oriundo das colnias velhas do
Rio Grande do Sul. Este aspecto traz simultaneamente com a ideologia da
colonizao europia do pas, tendo como protagonistas os colonos trabalhadores,
41 MARQUETTI, Dlcio, 2002, p.320. 42 WOLLF, Juara Nair; SCHUH, Marcos Batista, 2000, p.160.
-
27
construtores do progresso e da civilizao.43 Se considerarmos as teorias
evolucionista e eugenista, justificaremos a provvel preferncia de descendentes de
europeus para o branqueamento da populao do Oeste Catarinense e a excluso
do caboclo. De acordo com esse projeto, constitua-se a imagem do colono
trabalhador, construtor do progresso e da civilizao, que passaria a ocupar o
Oeste Catarinense, antes chamada de terra de ningum, e em processo de
transformao em terra do trabalho. Dessa forma, os indgenas e caboclos que
povoavam esses territrios foram gradativamente expropriados da posse da terra e
expulsos da regio. Nesse sentido:
A colonizao do Oeste Catarinense foi um empreendimento de natureza econmica, e que empresrios do estado do Rio Grande do Sul, baseado na experincia da expanso nos ncleos coloniais em seus estados, investiram vultuosos capitais em Santa Catarina. Era inteiramente diferente das colnias militares do sculo anterior, em que o objetivo fundamental, de natureza poltica, foi de posse de terra.44
A imagem do colono trabalhador, construtor do progresso, agenciada como
projeto civilizador da regio em questo, o que no difere muito da justificativa dos
projetos de colonizao do sculo XIX. Alm disso, antes da chegada dessas
desejadas gentes para a colonizao, era necessrio superar alguns obstculos
como associao da rea imagem de caos sendo que a debelao do
Contestado teria sido a vitria sobre uma situao catica ao caudilhismo.45
Reforamos que essa a imagem residual que se tem do Oeste Catarinense:
regio ainda associada imagem do caos, violenta, incivilizada e abandonada.
Outro aspecto importante a ser enfrentado e vencido foi o caudilhismo, o faroeste,
intrinsecamente associado ao Oeste Catarinense, que se construa na disputa do
campo poltico, por cargos pblicos e pelo poder.
Em Chapec, aps o Contestado, foram acirradas as disputas entre dois coronis locais: de um lado Fidncio de Mello e de outro Santo Marinho, com alianas polticas, rupturas e arbitrariedades. Estas disputas implicaram em contnuos deslocamentos da sede da comarca, que, simbolicamente, no passava de uma medio de fora entre os dois coronis. Tudo isso deixava a populao
43 RENK, Arlene, 2006, p. 55. 44 VOJNIAK, Fernando, 2004, p. 373. 45 Idem, p. 55.
-
28
desnorteada, por via comarca andando sobre cargueiro de pra l e pra c. 46
O xito do projeto colonizador em Chapec requereu a pacificao. Coube
ento ao Coronel Passos Maia, vindo do Rio Grande do Sul, ficar responsvel pela
venda das terras de Bertaso.47 De acordo com a jornalista Mnica Hass, o poder
chapecoense, desde a criao do municpio, em 1917, at por volta de 1950,
caracterizou-se por um forte mandonismo local, que se identifica com aspectos do
coronelismo brasileiro. O poder poltico do municpio, durante esse perodo, esteve
na maior parte do tempo nas mos dos coronis ou de pessoas ligadas a eles. A sua
dominao tinha por base a supremacia econmica e os laos de dependncia. A
estrutura de dominao e as formas de controle social faziam parte de toda a cultura
social e poltica resultante das relaes de poder da poca em que o pblico e o
privado tornam-se complementares.
Sobre essa importante questo, relacionada ao mandonismo local, cabe uma
observao. De acordo com o historiador Paulo Pinheiro Machado, o Coronelismo
caracterizado como um fenmeno poltico essencialmente ligado ao perodo da
Primeira Repblica (1889-1930).48 Essa prtica expressou o poder local dos
grandes fazendeiros. Fortaleceu-se em muitas regies do pas antes da Repblica e
tambm aps a Revoluo de 1930. O alicerce do poder poltico dos coronis era a
grande propriedade fundiria, geralmente habitada por muitos pees e agregados,
homens de sua confiana, que junto com os fazendeiros, posseiros e lavradores
vizinhos colocavam sua lealdade a servio do Chefe Poltico local. 49
Os coronis influenciavam os eleitores de forma a persuadi-los e, assim,
terem o poder de decidir as eleies municipais, estaduais e nacionais. Alm disso,
estavam investidos de um poder sobre as pessoas, resolvendo rixas, discursando
sobre julgamentos e agindo como rbitros. Faziam parte da base das polticas
regionais, estaduais e federais, e obtinham aliana para afirmar e reproduzir seu
46 Idem, p. 56. 47O Coronel Passos Maia, recm chegado ao Passo dos ndios (Hoje, Chapec) para iniciar a colonizao juntamente com Bertaso, deslocou-se da rea comprada para uma fazenda em Passo Bormann. O Coronel Fidncio Mello impediu-o de entrar sob o pretexto que aquelas terras pertenciam aos seus moradores e que ali no havia terras para colonizar. Mello e o delegado haviam avisado a populao moradora da fazenda comprada de que seriam expulsos. Diante disso, o colonizador apelou para o governo do Estado, que interessado na ocupao da regio, nomeou o delegado especial do municpio, a quem coube instaurar a paz. Cf. BREVES, Wenceslau de Souza, 1985, p.15. 48 MACHADO, Paulo Pinheiro, 2004, p. 90. 49 Idem, p. 91.
-
29
poder. Com isso conseguiam influenciar na nomeao de funcionrios pblicos
como delegados de polcia, juzes, promotores, coletores de impostos e, em nvel
federal, coletores de impostos, agentes de correios, telegrafistas etc. Os coronis
tinham de cuidar dos encaminhamentos e solues das demandas provenientes da
clientela poltica, que incluam alguns setores urbanos, como os pequenos
comerciantes.
Paulo Pinheiro Machado chama a ateno, ainda, para o fato de que os
coronis eram respeitados em relao fora de seu contingente de milicianos
particulares, no apenas por seus vizinhos e adversrios, mas tambm pelos
prprios grupos oligrquicos estaduais que neles se apoiavam. Esse poder atingia
de diferentes formas a rea urbana do municpio de Chapec. Este o ponto
decisivo: a clientela poltica dos coronis no era a mesma clientela de empregados
e agregados no qual recrutavam suas milcias, pelo menos nas primeiras dcadas
da Repblica.
O coronelismo no expressa apenas um sistema poltico, mas como o desdobramento poltico de uma forma de dominao de classe. E apenas a partir de 1930-1940 que o eleitorado rural ter um peso mais significativo no conjunto do eleitorado nacional, dando espao s prticas coronelistas. 50
O domnio econmico e consequentemente poltico da regio passaria a ser
exercido pelas companhias colonizadoras, a partir de 1920. Vrias empresas
atuaram no Oeste Catarinense. Em Chapec salienta-se o papel da Colonizadora
Bertaso, Maia e Cia., que se instalou na localidade de Passo dos ndios (atual
Chapec) por volta de 1920 e, a partir de 1923, passou a pertencer somente aos
Bertaso, com o nome de Empresa Colonizadora Ernesto Francisco Bertaso.
Quando os colonizadores chegaram ao Oeste Catarinense, o ambiente estava
tenso por causa da luta poltica entre os coronis Manoel dos Santos Marinho, de
Passo Bormann, e Fidncio Mello, de Xanxer, que disputavam o poder poltico local
e o domnio sobre o comrcio de erva-mate e sobre as mercadorias da regio.
Preocupados com a consolidao do projeto de ocupao da regio, o
governo do Estado nomeou o coronel Manoel dos Santos Maia, scio da
Colonizadora Bertaso, Maia e Cia., delegado de polcia de Chapec, em 1919.
50 Idem, p. 93.
-
30
Coube a ele cuidar da ordem e consequentemente o progresso para a regio,
seguindo os princpios de uma ideologia liberal orientada na Primeira Repblica.
Esse seguimento dos colonizadores teve sua fora poltica reproduzida no
governo Vargas, de 1931 a 1944, com os representantes das empresas
colonizadoras perdendo espao no poder local. Durante a maior parte do governo
Vargas, as nomeaes para o executivo municipal incluram uma burocracia militar
de altas patentes e elementos que nem sempre possuam identificao com o lugar
(eram oriundos do Rio Grande do Sul ou do litoral catarinense). Durante quatorze
anos, o municpio de Chapec teve dez prefeitos nomeados e um eleito que no
tomou posse. O governo de 1930 amenizou as disputas polticas locais, instalando a
sede do municpio da comarca, em 1931, em territrio neutro Passo dos ndios,
onde ficava a sede da Colonizadora Bertaso, responsvel pela colonizao dessa
rea. Evidencia-se o interesse do governo em atrair aqueles que representavam o
poder econmico local. Por outro lado, houve a introduo, atravs das nomeaes
dos interventores, de elementos estranhos aos quadros polticos locais, tambm
reduzindo os violentos atritos. Ficou claro ento o fortalecimento do Estado.
Somente no final do Estado Novo, mais precisamente em 1944, o filho do
Coronel Ernesto Bertaso, o engenheiro civil Serafim Enoss Bertaso, foi nomeado
prefeito de Chapec. A famlia Bertaso j dominava politicamente a regio,
restabelecendo a participao do grupo vinculado s empresas colonizadoras, que
na ocasio j haviam diversificado ainda mais seus interesses econmicos.
A colonizadora Bertaso tinha uma grande preocupao com o
desenvolvimento da cidade. Era a grande patrocinadora e organizava festas de
integrao comunitria, alm de facilitar o pagamento e doar lotes de terra para
estabelecimento pblico, religioso e de entidades com fins recreativos e esportivos.
Tambm se preocupava com a infraestrutura da localidade ruas traadas, lotes
urbanos, casa comercial, igreja, escola e hotel como forma de viabilizar o progresso
dos ncleos de povoao.
Nas representaes construdas pelos moradores de Chapec, o coronel
Bertaso era tido como o colonizador que utilizava a maior parte de suas terras para
a comercializao, existindo uma relao de paternalismo entre eles e os migrantes
-
31
que incentivou a explorao na regio.51 A dominao poltica de Bertaso tinha
como base o prestgio que possua junto ao governo estadual e populao local.
Figura 1 Coronel Ernesto Francisco Bertaso.52
A cidade crescia, estava cada vez mais movimentada e a vida social tambm
se intensificou. Um grupo de pessoas se reuniu e fundou em 1938 o Clube Esportivo
Chapecoense, chamado mais tarde de Clube Recreativo Chapecoense. A
construo da sede, que tambm se incendiaria no carnaval de 1950, iniciou com a
reunio da comunidade e um terreno doado pelo Coronel Bertaso. Festas, reunies
danantes, rifas foram realizadas, e os lucros foram direcionados para a edificao
da sede. Os madeireiros doavam madeira e os comerciantes colaboravam com o
que podiam. Esse espao passou a ser um lugar de festas, jantares e
comemoraes da comunidade, mas nem todos os que residiam na regio podiam
usufruir dele. Afinal, uma das clusulas de seu estatuto proibia a entrada de negros
no lugar.
A extrao de madeira era umas das principais atividades econmicas da
regio, principalmente entre as dcadas de 1930 e 1960, e praticamente toda a
madeira extrada era exportada para a Argentina. O principal meio de transporte
utilizado era a balsa, tambm chamada de remoque. Nesse sentido representava
uma realidade vivida em praticamente toda a regio, principalmente nos municpios
51 HASS, Monica, 1999, p.31. 52 O coronel Bertaso no tempo em que era caixeiro viajante, antes de sua atuao poltica e empresarial na Regio Oeste. Possivelmente essa foto de 1910. Acervo Fotogrfico do Centro de Memria do Oeste de Santa Catarina CEOM/UNOCHAPEC. Chapec.
-
32
e vilas localizados s margens do rio Uruguai. Mas no eram s a extrao de
madeira e seu transporte que interligavam essas vilas e municpios. A explorao de
madeira passou a ser substituda gradativamente pela explorao de erva-mate.
Faz-se necessrio dizer que os ervais eram nativos da regio. No passado as
folhas eram colhidas e beneficiadas por caboclos que depois as vendiam para
comerciantes das vilas mais prximas. A produo do mate era extremamente
trabalhosa, envolvendo a mo de obra de toda a famlia cabocla, normalmente nos
meses de inverno, quando a pecuria e a agricultura no davam muito servio. O
processo de produo at meados do sculo XX seguia o modelo indgena. A
intensificao da explorao dos ervais resultou no esgotamento e na morte das
rvores. A lei Estadual no 700, de novembro de 1906, procurou regular a extrao da
erva-mate em terras de domnio estatal, evitando a exausto das reservas. Para isso
fixou-se o perodo de corte entre 1o de maio e 30 de setembro e proibiu-se novo
corte nas mesmas rvores por prazo de 3 meses. A erva-mate era o principal artigo
de exportao do Estado entre o final do sculo XIX e o incio do XX. Os principais
consumidores e importadores eram a Argentina, o Uruguai e Chile.53
Desde a dcada de 1940, a cidade de Chapec vinha se destacando na
regio por sua madeira e pela explorao de erva-mate. Estabeleciam-se na cidade
algumas casas comerciais de secos e molhados que abasteciam a populao. A
falta de mercadorias era constante, pois elas vinham de Erechim (RS) e Joaaba
(SC) e atrasavam por causa das poucas e pssimas estradas e das habituais
enchentes. Alm das lojas, havia um escritrio bancrio, um hospital, um campo de
aviao, um jornal, uma rdio, um posto de gasolina, advogados, mdicos,
engenheiros, obras assistenciais e sociedades recreativas e desportivas. Alm da
instalao de novas casas comerciais e indstrias, das construes de residncias e
edifcios pblicos (agora j de alvenaria), o progresso se fazia presente na abertura
de novas ruas, no alargamento e calamento das antigas e na remodelao da
praa, tudo facilitado pela colonizao planejada. 54
Chapec nos anos 1940 e 1950 estava passando por grandes mudanas em
sua estrutura demogrfica, econmica, social e poltica. Nesse perodo houve um
crescimento populacional de 117,34% na rea urbana e 116,09% na rea rural. O
comrcio quase quadruplicou, apresentando um crescimento de 246,97%. A
53 MACHADO, Paulo Pinheiro, 2004, p.133-134. 54 HASS, Monica, 1999, p. 47.
-
33
indstria tambm dobrou, passando de 57 para 118 estabelecimentos. No obstante
esse crescimento Chapec ainda seguia com caractersticas rurais bem marcadas. A
agricultura foi a que apresentou maior desenvolvimento ampliou suas atividades
para 4.056 estabelecimentos agrcolas, numa expanso de 1.597,47%,
transformando o municpio num grande produtor de milho e feijo55.
No entanto, no foram somente os fatores econmicos os responsveis pela
transformao na configurao do poder poltico de Chapec. O novo contexto
poltico que surgiu a partir de 1945, com a derrubada de Getlio Vargas e a criao
de novos partidos polticos, contribuiu para essa significativa mudana. Inaugurou-
se, na poca, uma fase mais pluralista de poder, com a expanso da representao
poltica entre vrias faces partidrias. Sete partidos foram criados no municpio
entre 1945 e 1965: Partido Social Democrtico (PSD), Unio Democrtica Nacional
(UDN), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido de Representao
Popular(PRP), Partido Social Progressista (PSP), Partido Libertador (PL) e Partido
Democrtico Cristo (PDC). 56
Os grupos tradicionais prosseguiram dominando a poltica municipal ps-1945
em torno do Partido Social Democrtico (PSD), liderado por Serafim Bertaso, filho do
Coronel Ernesto Francisco Bertaso. Estes, como j vimos, estavam frente do grupo
que dominava a poltica municipal desde 1944. Eles venceram as eleies
municipais de 1947, elegendo o prefeito, o advogado e o diretor do jornal A Voz de
Chapec, Vicente Cunha.
A ruptura do domnio dos colonizadores e dos madeireiros ocorre na dcada
de 1950, quando o Partido Social Democrtico (PSD) derrotado nas eleies
municipais pela coligao opositora, formada pelo Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), pela Unio Democrtica Nacional (UDN) e pelo Partido Social Democrtico
(PSD), agremiaes lideradas por polticos vinculados a atividades urbanas, de
cunho industrial, comercial e de profisses liberais. Na vitria da oposio esteve
expressa a resistncia em torno dos que se consideravam donos do poder. Era em
meio a esse cenrio que ocorriam tambm intervenes no espao urbano,
sobretudo sobre as famlias, como veremos a seguir.
55 IBGE. Censo Demogrfico Estado de Santa Catarina 1940-1950. Disponvel em: . Acesso: 13 de maro de 2009. 56 HASS, Mnica,1997, p. 250.
-
34
1.1 A ocupao e o desejo de integrar o Oeste ao Estado catarinense
Desde a dcada de 1920 a literatura disponvel sobre Santa Catarina mostra
o desejo e a necessidade de integrar a regio Oeste ao Estado, pois:
at 1916 podia-se dizer que realmente catarinense eram somente as terras do litoral e o planalto, at o rio do Peixe, no Meio-Oeste. Parte disto e todo o extremo-Oeste, at a fronteira com a Argentina, era territrio sobre o qual se discutia a posse, apesar de j existir um incio de colonizao em toda a regio, aumentada a partir dessa data, realizada por vrias empresas particulares, principalmente gachas.57
Vale lembrar que a delimitao territorial de Santa Catarina foi marcada por
diferentes contestaes e conflitos com a Argentina e o Estado do Paran. Os
embates com o vizinho Paran juntaram-se aos demais problemas sociais da regio
e contriburam para a configurao de conflitos armados entre caboclos e
representantes dos poderes locais e estaduais que ficaram conhecidos como a
Guerra do Contestado, que durou de 1912 a 1916.
Para o historiador Carlos Humberto Correa o Oeste catarinense foi criado,
desenvolveu-se e organizou-se com a mnima interferncia das demais regies do
Estado, criando um verdadeiro hiato entre os territrios separados pelo rio do
Peixe.58 Esse hiato certamente constitua-se como uma importante preocupao
para o poder estadual que via necessidade de integrar a regio ao Estado.
Representativos desse desejo so os registros de viagem do governador Adolfo
Konder, primeiro governador a visitar oficialmente o Oeste catarinense, em 1929. Os
escritos do ento governador evidenciam o investimento tanto na construo da
brasilidade quanto na prpria divulgao identitria relacionada representao do
catarinense. Mas quem seria esse catarinense? A heterogeneidade histrica e
cultural de Santa Catarina, marcada por diferentes ascendncias como a
portuguesa, mais predominantemente no litoral; a germnica no Vale do Itaja e
Nordeste do Estado; a italiana no Sul; e assim por diante, revela tanto a
singularidade da ocupao do territrio catarinense como a variedade cultural da
57 CORREA, Carlos Humberto P., 1997, p.181. 58 Idem, p. 181-182.
-
35
advinda. A regio Oeste escancarava ainda mais as fissuras e fraturas do processo
que visava amalgamar a regio como catarinense e brasileira.
Para garantir a posse e integrao definitiva, o governo do Estado de Santa
Catarina implantaria uma poltica de povoamento que se arrastava desde os fins do
sculo XIX, com imigrantes de origem italiana e alem, procedendo do Rio Grande
do Sul. Afinal, a populao de ndios, africanos e portugueses vivia do extrativismo e
da agricultura de subsistncia, o que contrastava com um ideal do Brasil de vocao
agrcola. Preencher esse vazio demogrfico significava preencher os espaos com
o progresso pautado numa cultura que fizesse frente cultura dos antigos
habitantes da regio. Sobre as razes oficiais da viagem do governador Adolfo
Konder, afirmava-se que o objetivo era inteirar-se das necessidades da regio, para
integr-la definitivamente comunidade catarinense, demonstrando aos vizinhos do
Rio Grande do Sul, do Paran e da Argentina a inteno do Estado de Santa
Catarina de exercer soberania sobre a terra do Oeste.
Figura 3 Visita de Adolfo Konder, 1929. 59
Os historiadores Maria Bernardete Ramos Flores e lio Cantalicio Serpa60
pontuam trs razes que justificam a viagem do governador Adolfo Konder ao Oeste
59 Autoridades reunidas em Passo dos ndios em 1929, na ocasio da passagem da comitiva de Adolfo Konder (Bandeira Konder), local em que hoje se encontra a Avenida Getlio Vargas, em Chapec. Acervo Fotogrfico do Centro de Memria do Oeste de Santa Catarina CEOM/UNOCHAPEC. Chapec.
-
36
de Santa Catarina e se constituem eixos da discusso deste texto: a questo da
fronteira nacional com a Argentina e a consequente construo da brasilidade; a
permanncia da ocupao do Oeste Catarinense como expanso de um processo
civilizador para o interior do interior no s do Estado, como tambm do pas; o
empenho em debelar as acusaes da Guerra do Contestado, vencendo poderes
locais, em torno dos quais gravitavam grupos conflitantes. Ao elencar os pontos, os
autores ressaltam que todos so apenas facetas de uma nica questo: a
interiorizao do pas, projeto que pretendia eliminar os considerados vazios
demogrficos e fazer com que as fronteiras econmicas, geogrficas e culturais
coincidissem com as fronteiras polticas.
No incio do processo de colonizao do Oeste Catarinense, a terra servia de
uso aos grupos que historicamente a habitavam, constitua-se num privilgio aos
latifundirios, que de diferentes maneiras se apropriaram de grandes extenses, e
transformou-se em mercadoria nas mos das empresas colonizadoras. Numa
perspectiva diferente daquela, tambm se tornou de uso aos migrantes. Como se
procurou mostrar, no incio do sculo XX o ponto de vista dos governantes era de
difundir a imagem da regio como uma grande rea abandonada, com escassa
populao e que, por isso, necessitaria de efetiva colonizao para garantir a sua
posse. Sobre essa necessidade, a historiadora Eunice Nodari61 afirma que se
desencadeou um processo de colonizao e povoamento a partir da juno de
interesses e que isso competia a dois grupos de interesses distintos, mas que se
aliavam para atingir seus fins e incrementar o aumento populacional. De um lado
temos o Estado de Santa Catarina, que necessitava povoar urgentemente a regio
para garantir a sua posse, e, de outro, as companhias colonizadoras, com seus
proprietrios e agentes de vendas que, em troca do assentamento dos colonos na
regio e da construo de estradas, recebiam do governo as chamadas terras
devolutas, que eram por eles demarcadas e vendidas aos imigrantes.
A estratgia de ocupao e delimitao do Oeste Catarinense envolveu um
casamento entre o governo estadual e as empresas colonizadoras, que incentivaram
a vinda de imigrantes, dando incio ao processo de ocupao capitalista na regio.
A soluo viria com a colonizao, cujo modelo dar-se-ia pelo assentamento de
60 FLORES, Maria Bernadete Ramos; SERPA, lio Cantalcio, 1999, p. 12. 61 NODARI, Eunice; NODARI, Renato, 1999, p.30-31
-
37
descendentes europeus, portadores do progresso e da civilidade 62. Os relatos da
viagem do governador evidenciam fortemente o desejo da transformao de um
vazio, o deserto num den, numa nova canaan 63, objetivo que seria alcanado com
a participao da inteligncia e do brao do homem disposto a trabalhar,
representado pelos imigrantes. Os obreiros da civilizao so os colonos nascidos
no Rio Grande do Sul, descendentes de alemes e italianos, toda uma gente forte e
decidida, disposta ao trabalho, levando aqueles rinces, at h pouco incultos por
abandonados a prosperidade e riquezas. 64
Em relao existncia de vazios demogrficos, o historiador Jos Carlos
Radin65 nos mostra que o serto trazia consigo a ideia de ausncia de civilidade, e
se entendia que sua conquista efetiva faria parte de um projeto patritico, de esprito
bandeirante. Assim, nesse perodo, nas representaes construdas no Oeste de
Santa Catarina, implcita ou explicitamente, convocavam-se os mais corajosos para
a tarefa de efetivar tal projeto. Os colonizadores brancos, descendentes de italianos,
alemes e poloneses, na maioria das vezes apareciam com uma espcie de misso
atribuda de levar a civilizao aos espaos no civilizados.
Por isso, colocava-se a necessidade de superar esse modo de ser e de
trabalhar, pois no interessava aos governantes, nem s elites, por no se inserir na
perspectiva do progresso e da civilizao almejados. Mas era nesse sentido que,
oficialmente, colocava-se a ocupao efetiva do territrio e a conquista do serto
como forma de tornar plena a construo do Brasil, pois, alm de dar unidade
territorial, tal conquista era considerada imprescindvel na construo da prpria
nao.
Em se tratando da idia de construo de regio, dentro dessa idia de
territorialidade, convm no esquecer que os aspectos relacionados as divises
naturais acabam sendo os que menos importam. Para os historiadores Bernardete
Ramos Flores e lio Cantalcio Serpa,
Na delimitao de fronteiras, a lngua, o habitat, a realidade social, tanto quanto as classificaes mais naturais, apiam-se em traos que no tem nada de natural, sendo em ampla medida, o produto de uma imposio arbitrria, quer dizer, de um estado anterior de relao de foras no campo de lutas pela delimitao legtima.(...) O discurso regionalista , portanto, um discurso performtico, que visa
62 RENK, Arlene, 2006, p. 32. 63 BOITEUX, Jos Arthur, 1931, p. 7-8. 64 Idem, p.10. 65 RADIN, Jos Carlos, 2006.
-
38
impor como legtima uma nova definio de fronteiras, e fazer conhecer e reconhecer a regio assim delimitada.66
A preocupao com a sade pblica e com a educao que agrega-se mais
tarde a Legio Brasileira de Assistncia, como a instituio que contribuiu na
legitimao desse progresso - voltado para o interior do Brasil - passou a ser o mote
mobilizador das chamadas prticas higienistas e civilizadoras. Convm notar, porm,
que essas prticas levadas a cabo pela Legio Brasileira de Assistncia no interior,
j circulavam como necessidades prementes a partir de diferentes lugares. O interior
era atrasado, revelava a face de uma nao que se queria deixar pra trs, precisava,
portanto, de interveno urgente. O intelectual Monteiro Lobato, com a sua
coletnea de ensaios intitulada Urups, j destacava essa questo por meio do
personagem Jeca Tatu. Intelectuais ligados Semana de Arte Moderna de 1922,
como Plnio Salgado, Graa Aranha e Cassiano Ricardo, lanaram o manifesto
Nhengau Verde e amarelo, de cunho integralista; o segundo manifesto
Antropofgico, em defesa do nacional e o terceiro a Marcha para o Oeste,
argumento para que a bandeira penetrasse o interior.67
Para que o Brasil alcanasse a modernidade, segundo Jos Carlos Radin68,
necessitava tambm ocupar e civilizar o serto, o interior do Brasil. Mesmo em
interpretaes nas quais o sertanejo era visto como legtimo brasileiro, nem sempre
era apresentado como o elemento ideal para a chamada efetiva ocupao do
territrio ou para dar suporte propalada construo da nao. Isso no quer dizer
que o sertanejo seja literalmente um Jeca Tatu. Porm, quem viaja e v pelo serto
o fatalismo sertanejo, a limitao de sua agricultura, a instintiva desconfiana pela
civilizao, a sua habitual indolncia [...] a sua palestra, a sua ignorncia poltica,
enfim, os remdios populares, a ingnua crendice dos curandeiros e das meizinhas
ver a imensa verdade das pginas vivas de Urup 69. Esses discursos voltados a
brasilidades evidenciam o discurso de poder que traduzia a brasilidade a parmetros
geogrficos e econmicos. Para Alcir Lenharo o povoamento ocupao e a
integrao constituam os novos movimentos da Nao em busca de sua
plenitude.70 Nos discursos dos intelectuais ligados ao Estado, a palavra-chave era a
66 FLORES, Maria Bernadete Ramos; SERPA, lio Cantalcio, 1999, p 217. 67 RADIN, Jos Carlos, 2006. 68 Idem, p. 40. 69 CASCUDO, Cmara. Apud LUCA, Tnia Regina de, 1999, p. 203. 70 LENHARO, Alcir, 1986, p.57.
-
39
brasilidade, mobilizadora de homens e mulheres e crianas. Assim, o controle social
teve um deslocamento significativo do espao privado para o pblico.
Se a poltica do Estado Novo estava voltada constituio de uma nao
forte e homognea, no Oeste Catarinense e mais especificamente em Chapec,
percebemos que a construo desse estado promoveu o surgimento de polticas
pblicas que colaborassem tambm para a consolidao desta nao brasileira.
Questes que podem ser constatadas nos relatrios do interventor Nereu Ramos a
partir de aes que deflagraram o processo inicial de integrao da regio ao
territrio catarinense.
Para a historiadora social da rea da famlia Silvia Maria de Fvero Arend,
essas polticas pblicas de proteo maternidade e infncia implementadas no
Estado Novo so visualizadas a partir das obras de caridades desenvolvidas por
instituies ligadas Igreja Catlica Apostlica Romana em relao assistncia
dos infantes pobres de Florianpolis nas primeiras dcadas de sculo XX. 71 Essas
instituies ligadas Igreja so como marco na assistncia infncia desprovida
pobre e inauguraram na cidade de Florianpolis as polticas sociais de
abrigamento.72 Outras aes foram realizadas pela famlia Ramos, que foram os
provedores das aes assistenciais em Florianpolis, as quais elenco:
J. Otaviano Ramos era provedor da Irmandade do Divino Esprito Santo, em 1941. Alcimiro Silva Ramos presidente da Unio Recreativa Beneficente Recreativa Operaria, na gesto 1940-1941. Ambos os irmos do Interventor Federal Nereu Ramos. Os presidentes de honra da sociedade de Assistncia aos Lzaros e o Combate a Lepra, responsvel pela construo no municpio de So Jos do Asilo denominados preventrio onde seria alojados os filhos dos portadores de mal de Hansen, era Nereu Ramos e sua esposa Beatriz Pederneiras Ramos, o arcebispo D. Domingues de Oliveira e o prefeito Mauro Ramos e sua esposa Dulce Ramos. A primeira-dama do Estado Beatriz Pederneiras Ramos, da mesma forma que Darcy Vargas, a esposa do presidente da Repblica, anualmente patrocinava festas para angariar fundos para crianas carentes. As barraquinhas da festa Pessegueiro em Flor em prol dos infantes do Preventrio instalada na praa Getlio Vargas no centro da cidade.73
A autora lembra, ainda, que a partir de 1930, com a emergncia do cl dos
Ramos ao poder poltico em Santa Catarina, as prticas desenvolvidas pela Elite na 71 AREND, Silvia Maria Fvero, 2005, p.189. 72 Idem, 192 73 Idem, 199.
-
40
capital h aproximadamente 250 anos que objetivavam a preservao da vida dos
infantes despossudos, mesmo sem mudana do status quo econmico e cultural
dos mesmos passam a ser controlada pelo Estado. 74 E ressalta que tais aes
foram denominadas pela historiografia e pelos pesquisadores das Cincias Sociais,
do Servio Social e do Direito, de polticas sociais assistencialistas. Os pobres da
cidade eram de fundamental importncia no projeto urbano-industrial do grupo que
passou a administrar a federao no perodo de Getlio Vargas.
Nas discusses da historiadora Cynthia Machado Campos pode-se observar
as especificidades desse processo em Santa Catarina, centrado, em grande parte,
no reordenamento do contexto escolar do Estado e na criao das instituies de
recluso e de assistncia, especialmente em Florianpolis.
O crescimento da interveno junto s escolas nas dcadas de 30/40 foi contemporneo ao processo que afastou do campo de viso das modernas elites catarinenses, a populao intolervel como pobres, loucos e prostitutas. H que se considerar que, alm da simples excluso, como foi o caso da fixao de alguns segmentos da populao nos morros e arredores das cidades de Santa Catarina, ou do confinamento em instituies de isolamento, o movimento parece ter-se orientado no sentido de garantir um certo retorno sociedade, atravs de educao eficiente para adaptar corpos e comportamentos s novas condies que configuraram