universidade do estado de santa catarina centro de ... · a legiÃo brasileira de assistÊncia e os...

Download UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA CENTRO DE ... · A LEGIÃO BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA E OS INVESTIMENTOS ... elegendo-a como construtora e mantenedora de uma sociedade sadia,

If you can't read please download the document

Upload: lamquynh

Post on 16-Nov-2018

219 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • 1

    UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E DA EDUCAO FAED

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA - MESTRADO

    MICHELE RODRIGUES TUMELERO

    A LEGIO BRASILEIRA DE ASSISTNCIA E OS INVESTIMENTOS

    FEITOS SOBRE AS MULHERES E AS CRIANAS NA CONSTRUO

    DE UMA NOVA CHAPEC-SC (1940 1960)

    FLORIANPOLIS,SC

    2010

  • 2

    MICHELE RODRIGUES TUMELERO

    A LEGIO BRASILEIRA DE ASSISTNCIA E OS INVESTIMENTOS

    FEITOS SOBRE AS MULHERES E AS CRIANAS NA CONSTRUO

    DE UMA NOVA CHAPEC-SC (1940 1960)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, rea de Concentrao em Histria do Tempo Presente, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Histria. Orientadora: Profa. Dra. Cristiani Bereta da Silva

    FLORIANPOLIS,SC

    2010

  • 3

    MICHELE RODRIGUES TUMELERO

    A LEGIO BRASILEIRA DE ASSISTNCIA E OS INVESTIMENTOS

    FEITOS SOBRE AS MULHERES E AS CRIANAS NA CONSTRUO

    DE UMA NOVA CHAPEC-SC (1940 1960)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, rea de

    Concentrao em Histria do Tempo Presente, como requisito parcial para a

    obteno do ttulo de Mestre em Histria.

    Banca Examinadora Orientadora: _____________________________________________

    Profa. Dra. Cristiani Bereta da Silva

    UDESC

    Membro: ______________________________________________

    Profa. Dra. Lidia Maria Vianna Possas

    UNESP

    Membro: ______________________________________________

    Profa. Dra. Silvia Maria Fvero Arend

    UDESC

    Suplente: ______________________________________________

    Profa. Dra. Marlene de Fveri

    UDESC

    Florianpolis, SC, 25/02/2010

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Nessa caminhada percorrida durante o mestrado, pude vivenciar momentos

    de amizades e de solidariedade na construo de um projeto de vida. Mesmo

    correndo o risco de deixar de citar pessoas que tomaram parte nessa trajetria,

    gostaria de lembrar e agradecer algumas pessoas especiais. Meu primeiro

    agradecimento ser sempre minha me, que se tornou um exemplo para que eu

    nunca desistisse de meus objetivos.

    minha av Maria Jorgina e minha tia Maria Gleci, que me acolheram em

    sua casa durante a escrita da dissertao.

    Denise, por ter ficado ao meu lado me incentivando durante a pesquisa.

    professora Cristiani Bereta da Silva, que, alm de ser uma orientadora

    segura, atenta e paciente, mostrou-se uma verdadeira amiga. Sou grata a ela por

    suas crticas, sugestes e pelo permanente estmulo.

    Ao Willian, colega de jornada acadmica que se tornou um grande amigo.

    Agradeo tambm aos professores do Programa de Ps-Graduao em

    Histria da UDESC, em especial s professoras Silvia Maria Fvero Arend e Marlene

    de Fveri, por haverem participado da minha qualificao e pelas contribuies

    minha pesquisa.

    Aos funcionrios do Centro de Memria do Oeste Catarinense, do Arquivo

    Pblico do Estado de Santa Catarina e do Arquivo da Legio Brasileira de

    Assistncia da Previdncia Social de Florianpolis, em especial Roseli Machado,

    que contribuiu muito na captao das fontes.

    Ao seu Antonio de Camargo, que abriu as portas de sua casa, na busca de

    fonte para a minha pesquisa. Pessoa querida, amvel, gentil e que tenta de todas as

    maneiras guardar a histria de vida de seu pai, Darcy de Camargo.

    UDESC pela concesso da Bolsa Promop, que possibilitou a mim maior

    tranquilidade no ltimo ano da pesquisa.

    Ao Daniel Mendona pela reviso primorosa.

    Meu eterno carinho a todos.

  • 5

    RESUMO

    TUMELERO, Michele Rodrigues. A Legio Brasileira de Assistncia e os investimentos feitos sobre as mulheres e as crianas na construo de uma nova Chapec-SC (19401960). 2010. 132 f. Dissertao (Mestrado em Histria rea: Histria do Tempo Presente). Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em Histria, Florianpolis, 2010.

    Esta dissertao problematiza o processo de disciplinamento das prticas e costumes na cidade de Chapec entre as dcadas de 1940 e 1960, sobretudo, e principalmente, a partir da implantao da Legio Brasileira de Assistncia na cidade. A pesquisa realizada a partir de diferentes fontes documentais revela que esse processo enfatizava sobremaneira um determinado projeto de civilidade que teve como principais alvos as crianas e as mulheres. Tal projeto buscava intervir na organizao familiar no que toca ao cuidado das crianas pela famlia e tambm visava moralizar e disciplinar o corpo infantil e o feminino dentro de uma lgica voltada ao higienismo e ao eugenismo. A criao de polticas sociais, bastante evidentes a partir da implantao da Legio Brasileira de Assistncia na cidade, voltava-se sade e educao. Era a partir desses lugares que se buscava a reformulao dos hbitos e costumes da famlia nos espaos pblico e privado, elegendo-a como construtora e mantenedora de uma sociedade sadia, educada e organizada. O esforo em civilizar Chapec foi feito num contexto de recrudescimento do nacionalismo e na busca de se integrar a cidade ao territrio catarinense. Antes representada como terra violenta, de ndios e caboclos, Chapec vai ser alvo de projetos que objetivam deslocar essa ideia para a de terra de trabalho, de povo desbravador e educado, disposto a concretizar o ideal de cidade moderna e civilizada.

    Palavras-chave: Legio Brasileira Assistncia, infncia, mulheres.

  • 6

    ABSTRACT

    This dissertation discusses the process of disciplining the practices and habits in the city of Chapec between the 1940s and 1960s, especially from the implementation of the Brazilian Legion of Assistance in the city. The research carried through different documental sources reveals that this process greatly emphasized a certain project of civility which aimed children and women, mainly. Such project sought to interfere in family organization with regard to the care of children and also tried to moralize and discipline the infantile body as well as the feminine one through a system based on hygienism and eugenism. The creation of social policies, quite evident from the implementation of the Brazilian Legion of Assistance in the city, was directed to health and education. It was from these places that a recast of the familiar habits and customs in the public and private spaces was sought, choosing it as a builder and maintainer of a healthy, educated and organized society. The efforts to civilize Chapec took place in the context of a recrudescence in nationalism and a seeking to integrate the city to the territory of Santa Catarina. Inicially represented as a violent land, of Indians and caboclos, Chapec has been the subject of projects that aimed to change this idea to the concept of work land, of pioneer and educated people willing to achieve the ideal of a modern and civilized city. Keywords: Brasilian Legion of Assistance. Childhood. Women.

  • 7

    SUMRIO

    AGRADECIMENTOS ........................................................................................................................ 4

    RESUMO .............................................................................................................................................. 5

    ABSTRACT .......................................................................................................................................... 6

    INTRODUO .................................................................................................................................... 8

    PRIMEIRO CAPTULO - CIDADE DAS ROSAS OU TERRA DE NINGUM?

    REPRESENTAES SOBRE CHAPEC E A INSTAURAO DE UMA NOVA

    ORDEM ............................................................................................................................................... 22

    1.1 A ocupao e o desejo de integrar o Oeste ao Estado catarinense ..... 34 1.2 A preocupao em salvar a populao: a vinda do mdico Dr. Darcy de Camargo e a implantao de uma poltica higienista ...................................... 47

    SEGUNDO CAPTULO - A LEGIO BRASILEIRA DE ASSISTNCIA E AS

    INTERVENES EM BUSCA DE UMA NOVA NORMA FAMILIAR .............................. 53

    2.1 A Legio Brasileira de Assistncia e os cuidados com a criana: intervenes em busca de uma nova norma familiar ...................................... 63 2.2 A incorporao da Legio Brasileira de Assistncia nos discursos do jornal A Voz de Chapec .................................................................................... 76 2.3 A Semana da Criana e os concursos infantis ........................................... 79

    TERCEIRO CAPTULO - O PRIMEIRO-DAMISMO E AS INTERVENES DAS

    POLTICAS ASSISTENCIAIS SOBRE AS MULHERES ..................................................... 89

    3.1 Um novo conceito de educao para as famlias ..................................... 101 3.2 Mes cuidadosas, filhos saudveis: interveno da Legio Brasileira no disciplinamento da mulher em Chapec ......................................................... 111

    CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................................ 119

    FONTES ........................................................................................................................................... 123

    REFERNCIAS .............................................................................................................................. 125

  • 8

    INTRODUO

    A presente dissertao tem como cenrio de investigao a cidade de

    Chapec1, e neste espao se pretende analisar em que medida a instalao da

    Legio Brasileira de Assistncia esteve relacionada ao projeto de civilidade e

    moralizao do Oeste Catarinense no perodo de 1940 a 1960.

    A Legio Brasileira de Assistncia, a partir de 1945, teve como objetivo

    estender sua luta em defesa da maternidade e da infncia, em prol do Estado

    nacional. Essa instituio, preocupada em garantir a moralizao e o reajustamento

    infantil, se disseminou por todo o territrio nacional imbuda do discurso de proteo

    maternidade, infncia e adolescncia desprovidas de recursos materiais. Tal

    poltica estava diretamente associada preservao e manuteno da clula familiar

    responsvel, em primeira instncia, pela formao de bons cidados e cidads.

    A delimitao temporal dada a partir da instalao da Legio Brasileira de

    Assistncia em Chapec, no ano de 1943. Com a instalao dessa instituio

    observam-se intervenes bem especficas, com o objetivo de construir uma

    Chapec mais moderna e civilizada. Essas intervenes acontecem, sobretudo, a

    partir de uma distribuio discursiva produzida sobre as mulheres e as crianas

    chapecoenses, que circulam visando fixar na cidade modelos hegemnicos de

    famlia e infncia. Nesse sentido, a presente pesquisa problematiza diferentes

    questes relacionadas s mulheres e infncia, a partir das categorias de gnero e

    de representaes. Tanto os temas quantos as categorias analticas que pretendo

    utilizar vm norteando dezenas de pesquisas que fizeram uma renovao na

    historiografia construda sobre o Brasil, pelo menos a partir dos anos 1980 do sculo

    XX.

    Para entendermos o processo de construo de civilidade e moralizao da

    sociedade chapecoense, precisamos compreender o processo de colonizao no

    Oeste Catarinense. Convm lembrar que esse processo ampara-se na ideologia da

    colonizao europeia no pas. Sobre os descendentes de europeus vindos das

    colnias velhas do Rio Grande do Sul investiam-se ideias e depositavam-se

    expectativas de civilidade e progresso. E, se considerarmos que as teorias 1 Cidade localizada no Oeste Catarinense, a 650 quilmetros da capital do Estado, Florianpolis. Ver mapa na pgina 21.

  • 9

    evolucionistas e eugenistas ainda estavam latentes nos anos 1920, supe-se que o

    branqueamento da populao tambm era bastante desejvel com a vinda desses

    imigrantes. Esse projeto colonizador da regio deixava bem claro tambm que a

    preferncia por descendentes de europeus exclua ou ocultava o elemento caboclo

    do Oeste Catarinense.

    Abandonada pelos poderes pblicos, essa regio era vista como uma terra de

    ningum, violenta, incivilizada. Foi marcada por conflitos tnicos e econmicos, bem

    como por disputas de fronteiras, levando construo de um imaginrio social que

    remetia a uma regio do caos. Com a chegada dos imigrantes descendentes de

    italianos oriundos do Rio Grande do Sul, comea a configurar-se outra imagem para

    a regio. Atravs de colonizao de terras pela Colonizao Bertaso, percebe-se,

    nos discursos, uma srie de enunciados que procuraram constitu-la como regio

    opulenta em recursos naturais e extenso geogrfica; com uma populao voltada

    para o trabalho, fadada ao progresso. Nesse mesmo perodo havia toda uma

    preocupao do ento interventor Nereu Ramos (1937-1945) de integrar o Oeste

    Catarinense ao territrio de Santa Catarina. Para o governo, a regio s se integraria

    a partir da implantao de polticas pblicas relacionadas sade e educao

    como um caminho racional para consolidar o ideal de famlia brasileira.

    Entre o perodo de 1920 a 1940, consolidavam-se discursos sobre civilidade e

    progresso ligados chegada dos imigrantes regio. Observa-se tambm a partir

    disso a efetivao do recorte regional do Oeste Catarinense como terra do trabalho

    ou celeiro do Sul do pas, juntamente com um discurso que procurava forjar novas

    identidades de gnero e novas formas de definio e redefinio de famlia, em

    oposio a uma imagem de terra de ningum, de banditismo e de caudilhismo, mais

    visvel e divisvel.

    A partir da dcada de 1950, esses discursos pem em perspectiva novas

    questes na cidade Chapec. Essas questes foram construdas com a interveno

    da Legio Brasileira de Assistncia e as polticas pblicas trazidas por ela regio.

    As mulheres e as crianas so os principais sujeitos dessas aes e polticas, alvos

    de intervenes centralizadas em um processo de civilidade e de moralizao em

    que o controle e a limpeza do espao pblico eram emergenciais, e s possveis por

    meio da educao e sade da populao. A emergncia , portanto, a entrada em

    cena das foras; sua interrupo, o salto pelo qual elas passam dos bastidores

  • 10

    para o teatro. 2

    Como instituio catalisadora e veiculadora dessas intervenes, a Legio

    Brasileira de Assistncia ocupa lugar privilegiado nesse processo. De acordo com

    Ren Lourau3, denomina-se instituio o conjunto de foras sociais em atuao

    numa situao aparentemente regida por normas universais em vista de uma

    produo precisa. Dessa forma, a instituio pode ser entendida como aquela que

    assume a reproduo e a produo de relaes sociais num dado momento. A

    instituio , assim, uma dinmica que se constri na histria e em relao a esta,

    devendo ser tomada sempre como um movimento, jamais como imobilidade.4 E,

    ainda segundo esse estudo, a noo de instituio abarcaria trs movimentos: o

    institudo, significando o jogo de foras que atuam no sentido de produzir certa

    imobilidade; o instituinte, que se define como conjunto de foras que tendem a

    transformar as instituies ou produzi-las quando no existem; e a

    institucionalizao, que o produto contraditrio do instituinte e do institudo, em luta

    permanente, em constante transformao como as foras que entram em

    dissoluo.5

    Cumpre destacar que a partir da ideia de instituio diferencia-se a noo de

    estabelecimento, sendo este ltimo definido como um local geogrfico onde se

    utilizam as diferentes instituies, como estrutura, hierarquia, horrios, utilizao do

    tempo, regulamento, entre outras. O estabelecimento pode ser definido como

    espao ocupado por muros, mobilirios etc. As instituies seriam o oposto, no

    podem ser apreendidas atravs da realidade das coisas das organizaes.

    Os estudos sobre a histria da infncia sofreram impactos significativos a

    partir da publicao do trabalho pioneiro de Philippe Aris, que analisa, por meio de

    pesquisa iconogrfica, como se deu a produo da infncia na Europa6. Uma srie

    de acontecimentos localizados entre o final da Idade Mdia e o sculo XIX

    possibilitou a emergncia, na Europa, da preocupao com a criana como um ser

    particular, separado do adulto e alvo dos princpios da disciplina e da racionalidade.

    A partir dessas mudanas a criana passaria a ser observada, paparicada, mimada

    2 FOUCAULT, Michel, 1993, p. 24. 3 LAPASSADE, Georges & LOURAU, Ren, 1971, p. 45. 4 LOURAU, Ren,1992, p.12 5 Idem. 6 ARIES, Philippe, 1981

  • 11

    e definitivamente amada. Segundo Van Ussel7, antes dessa poca no havia uma

    fronteira formal entre a criana e o adulto, ou entre o jovem e o adulto, mesmo em

    relao ao afeto. A linguagem no oferecia conceitos diferentes para o adulto e para

    as crianas. Tampouco havia a preocupao em medir exatamente o tempo de vida

    dos sujeitos ou mesmo das coisas, o que resultava na falta de marcos ou comeos

    definidos de quando uma criana passava a ser um jovem ou de quando este

    passava a ser um adulto.

    Essa preocupao em salvar a criana, despertada no sculo XVIII, gera a

    necessidade da insero de uma norma familiar burguesa. Tornava-se essencial

    organizar as famlias, evidenciando a figura das mulheres, como mes, responsveis

    em garantir a eficcia na gesto do carter infantil. Assim, a famlia desenvolveu

    uma aliana com a medicina, atravs da submisso higiene, que resultou na

    intimizao e estatizao dos indivduos. Produzem-se indivduos preocupados com

    sua intimidade fsica e emocional, desprendidos de suas razes familiares extensas e

    centrados na famlia nuclear, preocupada com cuidados fsicos e sentimentais. A

    produo do indivduo moderno necessitou de uma ruptura com as relaes de

    casta, religio e propriedade.

    A emergncia dessa nova ordem burguesa reflete-se no Perodo Republicano

    no Brasil, com a necessidade de romper com as vises estereotipadas de um pas

    arcaico, conservador, atrasado e pouco desenvolvido em seus conceitos sociais,

    culturais e econmicos. Para isso, era preciso acabar com a imagem que assolava

    as cidades, de insalubridade e insegurana com a construo de um modelo de

    urbanizao que atingisse as expectativas de um pas civilizado e nos caminhos do

    progresso sob a ideia de modernizao. Para Nicolau Sevcenko, essa situao s

    mudaria na medida em que somente oferecendo ao mundo imagem de plena

    credibilidade era possvel drenar para o Brasil uma parcela proporcional da fartura,

    conforto e prosperidade em que j chafurdava o mundo civilizado. 8

    Para que essa imagem de credibilidade, fartura e conforto viesse a se

    concretizar, era necessrio investir na regenerao da famlia brasileira. Como

    objeto de interveno e interdio, a famlia passa a ser preparada dentro dos

    aspectos higinicos para acomodar-se e participar na criao dos valores de classe,

    7 VAN USSEL, Jos, 1980. p. 47. 8 SEVCENKO, Nicolau, 1989. p. 29.

  • 12

    corpo, raa e individualismo caracterstico do Estado Burgus.9 A partir disso, os

    pais modificaram suas relaes com seus filhos, e a famlia passou a ser concebida

    como um lugar exclusivo de proteo e cuidados da infncia.

    Nietzsche, em sua obra A Genealogia da Moral10, contextualiza que a

    moralidade no um trao natural e nem um legado da graa de Deus, ela foi

    adquirida atravs de um processo de adestramento que tornou o homem um ser

    previdente e previsvel. Foi preciso que se construsse uma memria sobre a moral.

    Nesse sentido percebe-se como a Legio Brasileira de Assistncia apropriou-se de

    uma memria da moralidade traada na disciplina, na ordem e na norma para atuar

    como um programa de condicionamento das famlias, das mulheres e das crianas,

    atravs de representaes de prticas higinicas, estabelecendo um novo olhar no

    comportamento da populao e modelando seus hbitos e costumes.

    A Legio Brasileira de Assistncia estabelece uma parceria atravs de

    convnios com a sade e a educao que vo ser os grandes motores da

    implantao do programa almejado por ela em todo o Brasil. Desempenharia um

    papel especial de grande importncia no progresso de um mecanismo do processo

    civilizador do homem civilizado. 11 O desenvolvimento de uma nova individualizao

    dos agentes sociais como frutos de um processo civilizador, atravs de uma

    conteno prpria de comportamento, aparece na constituio da civilidade, a partir

    do sculo XVI.

    As novas abordagens da histria permitem pensar a Histria do Tempo

    Presente, domnio de estudos que busca problematizar questes contemporneas

    ao historiador. Narrar, interpretar, buscar explicaes para acontecimentos,

    fenmenos sociais, culturais, prticas, enfim, encetar uma produo historiogrfica

    situada no domnio do tempo presente no significa propriamente fazer um trabalho

    relacionado a um perodo muito prximo. Segundo Franois Dosse, a Histria do

    Tempo Presente diferente tambm porque participa de um paradigma buscado na

    ruptura com o tempo nico e linear e que pluraliza os modos de racionalidade, no

    deve limitar seu objeto ao instante12. Os longos debates sobre o estatuto da Histria

    e a busca por outros paradigmas explicativos da realidade nas ltimas dcadas

    impem reflexes sobre as implicaes e tenses sobre as fronteiras, alcances,

    9 COSTA, Jurandir Freire, 1983, p.151 10 NIETZSCHE, Friedrich, 2007. 11 ELIAS, Norbert, 1994, p. 23. 12 DOSSE, Franois, 2001, p.93.

  • 13

    possilidades das pesquisas realizadas sob esse domnio. As fontes utilizadas, os

    temas e problemas assumidos nesta pesquisa notadamente possuem elementos

    para a realizao de uma histria consequente sobre temas do presente e das

    questes que lhe so inerentes.

    Essas politicas pblicas relacionadas infncia e maternidade

    implementadas durante o Estado Novo tinham a criana como o futuro da nao.

    Era preciso inserir na sociedade um sentimento de infncia, para que ela crescesse

    saudvel, feliz, bem educada dentro do seio da famlia. Essa problemtica sobre a

    infncia continua sendo questo de estudo para a Histria do Tempo Presente, visto

    que o maior controle por parte do Estado ainda no tem garantido proteo e direitos

    as crianas e adolescentes no Brasil.

    A partir da pesquisa emprica nos arquivos do Estado de Santa Catarina

    pretende-se analisar a implantao da Legio Brasileira de Assistncia e seus

    compromissos com a integrao de Chapec no cenrio modernizante da nao

    brasileira. Esta pesquisa, portanto, justifica-se por contribuir para a compreenso da

    histria de Chapec e da regio, durante o perodo do Estado Novo, a partir do

    estudo da Legio Brasileira de Assistncia e dos discursos proferidos por ela. Dessa

    maneira busca-se compreender os aspectos da histria de uma instituio que atuou

    como representante da histria e da memria da sociedade, e que, em sua atuao

    e produo de discursos, em parte centrada na ideia do progresso e da civilizao

    da regio, contribuiu para mapear e reorganizar a cidade de Chapec, no Oeste

    Catarinense.

    A pesquisa histrica caracteriza-se sobremaneira pela utilizao frequente de

    fontes escritas e iconogrficas. Essa relao com as fontes marca significativamente

    o fazer do historiador. Assim, a investigao que resultou neste trabalho foi

    realizada em diferentes arquivos do Estado de Santa Catarina, nesses lugares foram

    pesquisados documentos tais como: relatrios das atividades realizadas pela Legio

    Brasileira de Assistncia durante os anos de 1943, 1944, 1945, 1965 e 1978 nas

    cidades de Santa Catarina; o Arquivo da Previdncia Social, em Florianpolis, em

    que se encontra toda a documentao da Legio Brasileira de Assistncia de

    Chapec e de outras cidades catarinenses. Esse arquivo contm oramentos para

    aberturas de centros de puericultura no Estado, dossis com prestaes de contas

    do dinheiro que foi entregue ao estabelecimento para construo dos projetos, todos

    os gastos com notas fiscais anexadas de infraestrutura, alimentao, material

  • 14

    didtico, contratao de funcionrios etc., cartes-ponto em que constam os dias de

    trabalho dos funcionrios e as portarias em que esto as mudanas de normas da

    instituio, contrataes, frias e demisses de funcionrios. Quando a Legio

    Brasileira de Assistncia foi extinta em 1995, toda a sua documentao foi

    armazenada nesse local.

    Alm desses documentos foram trabalhados tambm impressos jornalsticos,

    como o jornal A Voz de Chapec, fundado em 3 de maio de 1939, durante o Estado

    Novo, pelo Coronel Ernesto Francisco Bertaso, pelo juiz em disponibilidade Antonio

    Selistre de Campos e pelo advogado e futuro prefeito de Chapec (1947) Vicente

    Cunha. Tratava-se de um jornal que dava total cobertura ao pessedismo,

    defendendo os interesses do partido nos mbitos federal, estadual e municipal,

    principalmente nos perodos de campanhas eleitorais, promovendo suas

    realizaes, bem como as da Empresa Colonizadora Bertaso e de pessoas ligadas

    famlia.13 Tambm foi pesquisado o Jornal Imparcial, fundado em 17 de julho de

    1946 na cidade de Palmitos. O referido jornal depois migrou para Chapec, onde

    obteve maior circulao. Esses jornais se encontram no Centro de Memria do

    Oeste Catarinense (CEOM), em Chapec. Nesses jornais encontramos os discursos

    que eram enunciados pelas autoridades locais e pela sociedade em geral sobre a

    formao de cidadozinhos catarinenses.

    Partindo-se da pressuposio de que a linguagem jornalstica se apresenta

    com pretenses de subjetividade, visando como se deram as formas de ao,

    silncio e divises de papis. Portanto, as fontes escolhidas para este estudo se do

    pela riqueza de informaes, bem como por fornecer caminhos metodolgicos que,

    no caso especfico, ainda no foram explorados dessa forma. H uma srie de

    questes a serem observadas, tendo em vista que a linguagem enquanto discurso

    uma interao, um modo de produo social; no neutra, inocente, e nem natural,

    por isso um lugar de manifestao de ideologia. 14

    No momento em que a linguagem como palavra disseminada, se torna um objeto de conhecimento, eis que aparece sob uma modalidade estritamente oposta: silenciosa, cautelosa deposio da palavra sobre a brancura de um papel, onde ela no pode ter nem

    13HASS, Monica, 1999, p. 161. 14 BRANDO, Helena H. Nagamine, 1997, p. 12.

  • 15

    sonoridade, nem interlocutor, onde nada mais tem a dizer seno a si prpria, nada mais a fazer seno cintilar no esplendor de seu ser. 15

    O trabalho com a imprensa exige que o pesquisador perceba as

    intencionalidades tecidas nos discursos jornalsticos em que o mundo da infncia

    torna-se um fenmeno crescente de noticiabilidade a partir da prpria realidade do

    pas e de seu jornalismo nas ultimas dcadas. Essas intenes vo ao encontro de

    como o jornalista encara a infncia e a criana enquanto potencial noticioso e em

    que medida considera que o jornalismo deve ter um papel social de compromisso

    com a lei aprovada pelas Naes Unidas, e com as crianas de cada pas e do

    mundo. 16

    Para Cristina Ponte a criana torna-se um material noticivel a partir da

    realidade da imprensa norte-americana, a partir do ps-Guerra, nomeadamente nas

    batalhas pelos direitos cvicos ocorridas nas dcadas de 1950 a 1960, e no esforo,

    sobretudo, nos finais dos anos de 1960 e nas dcadas seguintes, em prol de

    sistemas facilitadores de integrao social da maioria da tnica, nomeados por um

    programa de compensao educativa e de assistncia pblica. Nos anos de 1960 a

    1970, a educao e a assistncia foram marcadas por discursos engajados

    socialmente, que impulsionam a sua democratizao e alargamento das

    possibilidades de acesso e o sucesso de crianas socialmente desfavorecidas.17 A

    autora destaca, ainda, que o jornalismo trabalha como uma espcie de agenda

    pblica feita com base na auscultao de grupos locais, com contraponto s

    agendas oficiais.18

    Dessa forma o jornalismo aparece como uma forma de democracia cujo

    objetivo final no fazer notcia, reputao, manchetes, mas simplesmente fazer a

    democracia funcionar. Assim, quem continua a decidir o que notcia so os

    jornalistas. Para Cristina Ponte o interesse noticioso pela cobertura dos temas

    ligados infncia e famlia tem crescido, e como o uso de imagens de crianas em

    matrias nacionais e internacionais recente. A criana passa a ser eleita como

    smbolo da pureza e da inocncia, e tomada como referncia moral. Salvar a

    democracia implica salvar as crianas da fome e dos maus-tratos. 19

    15 FOUCAULT, Michel, 1999, p.416 16 PONTE, Cristina, 2005, p. 84 17 Idem, p. 85. 18 Idem, p. 86. 19 Idem, p. 86-87

  • 16

    O acesso a essas fontes possibilitou uma leitura acurada a respeito dos

    diferentes discursos, mensagens, artigos, propagandas e publicaes de decretos,

    leis, atos do poder municipal relativos necessidade de identificar a formao do

    cidado em Chapec e regio. Outro acervo que pude analisar pertence a famlia do

    mdico Darcy de Camargo, que trabalhou na Legio Brasileira de Assistncia. Esse

    acervo encontra-se na casa de seu filho Antonio de Camargo, um senhor muito

    simptico e comprometido em guardar a histria no s de seu pai, mas tambm da

    cidade. No acervo pude encontrar o dirio de anotaes do mdico, documentos e

    tambm vrias fotos dos concursos de Robustez Infantil, Garoto do Ano, Rainha

    das Bonecas e desfile de moda infantil. Todos esses concursos ocorriam na

    Semana da Criana em Chapec. Essas fotos estavam em seu poder, pois afinal

    quem fazia a inscrio era o mdico da Legio Brasileira Darcy de Camargo.

    A escolha das fontes depende no apenas do objeto de pesquisa, mas

    tambm da delimitao do problema da pesquisa, isto , dos recortes efetuados. As

    investigaes no dirio de anotaes do mdico Darcy de Camargo foram muito

    importantes para a realizao desse trabalho. No que se refere a esses relatos,

    convm no esquecer do alerta de Pierre Bourdieu sobre a iluso bibliogrfica20.

    Ou seja, aquela gerada pelo individuo que conta sua histria e expe sua memria.

    Para Bordieu, esse processo evidencia o sujeito que conta como idelogo de sua

    prpria histria, selecionando certos acontecimentos significativos em razo de uma

    inteno global e estabelecendo conexes adequadas para dar-lhes coerncia, nos

    quais os sentidos so produzidos por uma retrica ordenadora marcada pela

    descontinuidade do real. Trata-se a de um esforo de representao, ou melhor, de

    produo de si mesmo, realizada pelo memorialista.21 Certamente as anotaes do

    mdico Darcy de Carmargo sobre as prticas de sade da regio e seu prprio

    posicionamento sobre essas prticas, dizem muito sobre as prticas de sade

    levadas a cabo naquele momento e lugar, em meio ao processo de instaurao de

    um saber autorizado pela medicina oficial - sob os auspcios da Cincia - em

    contraposio as prticas de sade caseiras da populao local.

    Partindo da premissa que toda a fotografia um resduos do passado22 o

    trabalho com as imagens fotogrficas encontradas no acervo particular da famlia do

    20 BOURDIEU, Pierre, 1996. 21 Idem, p.57. 22 KOSSOY,Boris, 2001, p.45.

  • 17

    mdico Darcy de Camargo possibilitou a construo de fragmentos da memria,

    como descries visuais, situando o investigador no tempo e no espao. O

    pesquisador Boris Kossoy lembra que toda fotografia tem atrs de si uma histria23.

    Nesse sentido, reconhecer essa histria significa reconhecer a existncia pelo

    menos de trs estgios que marcaram sua trajetria: em primeiro lugar, a inteno

    para que a fotografia existisse; em segundo o ato do registro que deu origem a

    materializao da fotografia e, finalmente, os caminhos percorridos por ela.24 No

    caso das fotografias em questo, trata-se de artefatos em cuja descrio se

    encontra os sinais da inteno do ato fotogrfico e dos caminhos por ela percorrido:

    registrar os acontecimentos relativas a constatao e efetivao da construo das

    polticas pblicas de sade envolvendo famlias, mulheres e criana no municpio de

    Chapec. Desse modo, ainda, segundo Boris Kossoy:

    Ver, descrever e constatar no suficiente na analise de uma fotografia. necessrio buscar o significado do contedo do assunto registrado que quer ser concebido como resultado de uma seleo de possibilidades de ver, optar, fixar um certo aspecto da realidade primeira, cuja a deciso coube exclusivamente ao fotgrafo, quer estivesse ele registrando o mundo para si mesmo, quer a servio de seu contratante. Haveria, nessa seleo, uma primeira manipulao/interpretao da realidade, pelo fotgrafo que pode ser, consciente ou inconsciente premeditada ou ingnua, estando ele a servio ou no do contratante25.

    Evidentemente que as fotografias usadas nesse trabalho, embora sejam

    tomadas como fragmentos do passado, no so cpias do real, mas uma emanao

    do real passado26. As fotografias relativas as comemoraes da Semana da Criana

    mostram a criana como foco principal de intervenes, sugerem interpretaes

    sobre um contexto histrico bastante especfico, local, em suas articulaes e

    referncias com polticas pblicas nacionais e internacionais. Sugerem ainda, que

    eram sim usadas para fixar sentidos sobre essas polticas entre a populao local,

    lembrando que eram publicadas nos jornais locais, eram dadas a ver, circulavam

    nos jornais locais, eram expostas nos postos de sade, mostradas para amigos e

    parentes.

    Para Michel Foucault, em toda a sociedade a produo do discurso ao

    mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero

    23 Idem. 24 Idem. 25 Idem, p. 95. 26 BARTHES, Roland, 1984, p. 132.

  • 18

    de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu

    acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade27. Foucault

    lembra que no se tem o direito de dizer tudo, que no se pode falar tudo em que

    qualquer circunstncia, que qualquer um enfim, no pode falar de qualquer coisa.

    Tudo isso remete a um tabu do objeto, ritual de circunstncia, direito privilegiado ou

    exclusivo do sujeito que fala. Temos a o jogo de trs tipos de interdies que se

    cruzam, se reforam ou se compensam, formando uma grande e complexa rede que

    no cessa de modificar o discurso. Chama ateno, ainda, para o fato de que as

    discusses cerradas so as regies da sexualidade e da poltica: como se o

    discurso, longe de ser um elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se

    desarma e a poltica se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo

    privilegiado, algum de seus temveis poderes. Por mais que o discurso seja

    aparentemente bem pouca coisa, as interdies que atinge revelam logo,

    rapidamente, sua ligao com o desejo e com o poder, ou seja, o discurso no

    simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominao, mas aquilo pelo

    que luta o poder do qual queremos nos apoderar.

    Nesse sentido, o presente trabalho visa problematizar quem foi o produtor dos

    discursos, de que forma e como se produziu sem perder de vista as questes

    referentes para quem produziu e quais as consequncias dessa produo para a

    sociedade. De igual modo, contribui com os estudos de gnero na medida em que

    se trata de investigar a histria das mulheres e das crianas que foram ocultadas,

    mas que desempenharam papel to importante quanto os homens na histria.

    Assim, a categoria gnero pode ser usada para refletir acerca do convvio

    entre homens e mulheres, relaes que foram construdas historicamente, calcadas

    nos discursos sobre a diferena sexual. A categoria gnero deve ser intercalada com

    outras categorias especialmente para o estudo das relaes familiares , como

    classe, raa/etnia. Para a historiadora norte-americana Joan Scott:

    O termo gnero alm de um substituto para o termo mulheres tambm utilizado para sugerir que qualquer informao sobre as mulheres necessariamente informao sobre os homens, que um implica o estudo do outro. Essa utilizao enfatiza o fato de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele criado nesse e por esse mundo masculino. 28

    27 FOUCAULT, Michel,1996, p. 8-10. 28 SCOTT, Joan, 1995, p. 75.

  • 19

    A investigao proposta trabalhar a partir de problematizaes da histria

    cultural para lidar tambm com a categoria de representao. Segundo Roger

    Chartier o principal objetivo dessa corrente historiogrfica identificar o modo como,

    em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social construda,

    pensada, dada a ler.29 So esses esquemas intelectuais incorporados que criam as

    figuras graas s quais o presente pode adquirir sentido, o outro torna-se inteligvel

    e o espao, decifrado. Dessa forma as representaes do mundo social so sempre

    determinadas por interesse de grupos que as forjam. Portanto, para cada caso

    torna-se necessrio relacionar os discursos proferidos com a oposio de quem os

    utiliza.

    O primeiro captulo, Cidade das Rosas ou Terra de Ningum?

    Representaes sobre Chapec e a instaurao de uma nova ordem, pretende

    principalmente situar a cidade de Chapec no tempo e nas relaes que lhe

    conferiam lugar especfico no territrio catarinense. Alm disso, se quer aqui

    problematizar, a partir da literatura disponvel, as representaes tecidas sobre a

    cidade de Chapec e as ideias de civilidade influenciadas pela lgica das prticas

    higienistas e eugenistas. O discurso de moralidade e disciplinamento imposto

    famlia na remodelao de hbitos, costumes e prticas higinicas e a atuao da

    Legio Brasileira de Assistncia, atuando na cidade para construir essas

    representaes sociais de civilidade so objetos de anlise centrais nesse primeiro

    captulo.

    O segundo captulo, intitulado A Legio Brasileira de Assistncia e as

    intervenes em busca de uma nova norma familiar, historiciza brevemente a

    criao da Legio Brasileira de Assistncia e se prope a pensar e discutir como

    suas intervenes passaram a impor, sobretudo a partir de polticas pblicas, uma

    nova ordem voltada sade e educao da criana. As representaes sobre a

    criana e as mulheres, principalmente no que toca maternidade e famlia,

    inserem todo um conjunto de prticas em que tanto a criana como as mulheres

    adquirem um novo lugar, a partir de um discurso higinico de moralidade e

    disciplinamento da famlia. Essas aes buscavam a sensibilizao da sociedade

    chapecoense sobre cuidados e proteo da criana. Era necessrio acabar com a

    mortalidade infantil para almejar um projeto de civilidade.

    29 CHARTIER, Roger, 1998, p.16-17.

  • 20

    No terceiro captulo, O primeiro damismo e as intervenes das polticas

    assistenciais sobre as mulheres, buscaremos discutir a participao das mulheres

    na atuao das polticas assistenciais da Legio Brasileira de Assistncia e suas

    conseqentes intervenes sobre as mulheres mes. Com a participao das

    primeiras damas as mulheres so chamadas a ser voluntrias dessa instituio

    durante e aps a Segunda Guerra Mundial. A atuao das mulheres foi marcada por

    intervenes nas polticas pblicas destinadas infncia e a mes, em que se

    buscou internalizar e legitimar o papel das mulheres como guardis da vida das

    crianas e com isso garantir que ela nascesse e crescesse feliz. As intervenes

    sobre o corpo das mulheres procurou conduzi-las para dentro do lar, afinal elas

    cabia a importante misso de regenerar a familia. Alm disso, as mulheres foram

    alvo do discurso mdico, que procurou transformar a atividade maternal em

    sanitria, incitando valores de como deveria ser e o que deveria fazer uma me.

  • 21

    Figura 1 - Mapa poltico-administrativo de Santa Catarina.30

    30 Disponvel em . Acesso: 15 de dezembro de 2009.

  • 22

    PRIMEIRO CAPTULO

    CIDADE DAS ROSAS OU TERRA DE NINGUM? REPRESENTAES

    SOBRE CHAPEC E A INSTAURAO DE UMA NOVA ORDEM

    Era aproximadamente meia-noite do dia 4 de outubro de 1950 quando um

    incndio, na igreja de Chapec, abalou os habitantes do lugar. Assustados, pois

    despertados pelos sons de tiros e pelo badalar dos sinos, os habitantes viram sua

    igreja em chamas. Tal acontecimento foi como um desfecho tanto material quanto

    simblico dos embates e combates que marcaram o processo eleitoral da cidade

    naquele ano.

    O calor da apurao dos votos da eleio aquecia os nimos das pessoas,

    que de fato mudaria o cenrio poltico existente, estabelecido desde 1917. Como a

    Unio Democrtica Nacional (UDN) estava ganhando as eleies, em oposio ao

    Partido Social Democrtico (PSD), os primeiros comentrios davam conta de que o

    incndio tinha conotao poltica. O delegado Arthur Lajus, que pertencia ao PSD,

    foi atrs dos culpados. Foram presos Romani Ruani, Ivo Oliveira Paim, Orlando Lima

    e seu irmo Armando Lima. Os irmos Lima negavam participao no incndio. Os

    moradores da cidade exigiam os nomes dos culpados, e o padre Roberto clamava

    por justia. Diz-se que os presos foram torturados at confessarem. O povo estava

    sendo agitado atravs de um abaixo-assinado que circulava na cidade e que pedia o

    linchamento dos presos acusados de ter incendiado a igreja. A revolta contra eles

    crescia a cada momento. No apenas o incndio, mas tambm os acontecimentos

    posteriores tornaram-se o assunto principal dos homens da cidade nas rodas de

    chimarro em frente s lojas e aos botecos, onde a conversa era acompanhada de

    baforadas em cigarros de palha.31 As mulheres, claro, circunscritas aos seus

    espaos tambm delimitados social e culturalmente , provavelmente tratavam do

    mesmo assunto.

    Nesse meio-tempo Romani Ruani e Ivo Oliveira Paim inocentam os irmos

    Lima e assumem a culpa pelos incndios que estavam ocorrendo na cidade, mas

    mesmo assim o delegado no solta os irmos. Uma das causas era que Orlando

    31 HASS, Mnica, 1999, p.72.

  • 23

    Lima tinha um desentendimento com o delegado Lajus e tambm pertencia ao

    diretrio do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que havia se coligado com a UDN,

    tendo envolvimento na campanha poltica das eleies de 1950.

    O padre Roberto, da Congregao Franciscana, no acreditava em incndio

    acidental. No dia seguinte ao incndio j havia pregado, num sermo, que quem

    queimou a igreja tem que ser queimado, como as imagens dos santos da igreja o

    foram. 32 O padre era muito respeitado na regio, afinal o vigrio de batina, junto

    com o juiz, o prefeito e o delegado, estava entre as autoridades mais importantes do

    lugar. O pedido de justia do padre contribuiu fortemente para incitar a populao

    local a tomar uma atitude, o desfecho seria trgico, como veremos a seguir.

    Numa noite fria de 18 de outubro de 1950, duzentos homens armados de

    revlveres, paus, faces e foices entraram na cadeia descarregando tiros, pauladas

    e golpes de faces nos acusados. Depois de mat-los, os homens arrastaram os

    corpos para os fundos da cadeia, empilharam uns sobre os outros e, em seguida,

    despejaram em cima dos cadveres um galo de gasolina e colocaram fogo neles.

    As pessoas envolvidas no massacre ficavam ao redor da fogueira observando os

    quatro corpos empilhados em chamas. Em seguida dispersaram pelas ruas escuras

    do povoado, acompanhados pelo cheiro acre da morte. A ordem havia sido

    estabelecida na comunidade.33

    Consideramos essa descrio construda tanto a partir de pesquisas

    realizadas sobre o tema quanto de histrias preservadas pela tradio oral

    necessria por pelo menos duas razes: alm de o episdio ter sido utilizado para

    reafirmar a ideia de uma cidade violenta e sem lei, vai assinalar uma srie de

    intervenes havidas na cidade, em busca de um projeto civilizador. Em seu livro O

    linchamento que muitos querem esquecer, Chapec, 1950-1956, Mnica Hass

    analisa, a partir das pginas de revistas e jornais regionais, nacionais e at

    internacionais, como esse crime projetou negativamente a regio, mas tambm

    colaborou para o desenvolvimento regional, inserindo um novo contexto de

    mudanas que punham no horizonte os ideais modernizador e civilizador to

    desejados para a cidade. Tal contexto traria mudanas estruturais na economia

    local, sobretudo aquelas resultantes da intensificao do processo de

    industrializao, que ocorria em nvel nacional. Segundo aponta Mnica Hass,

    32 Idem, p.79. 33 Idem, p. 75-88.

  • 24

    comum ouvir dos antigos moradores da cidade que Chapec comeou a se

    desenvolver depois da chacina34. Ou seja, a chacina teria ao mesmo tempo um tom

    trgico e de ruptura entre uma Chapec incivilizada e atrasada e outra moderna e

    civilizada.

    Chapec, nos anos 1950, era uma cidade em evidente transformao.

    Naquele momento se efetivou a constituio do recorte regional do Oeste

    Catarinense como terra do trabalho ou celeiro do Sul do pas, juntamente com um

    discurso que procurava forjar novas identidades de gnero e novas formas de

    definio e redefinio de famlia no contexto da prpria produo do Oeste do

    Estado. Porm, ao mesmo tempo que a cidade passava a ser identificada com a

    ideia de trabalho, prosperidade, progresso e civilizao, ainda permanecia a imagem

    de terra de ningum, de banditismo, de caudilhismo35 e sem acesso a polticas

    pblicas, principalmente aquelas relacionadas educao e sade.

    O violento incidente ocorrido em Chapec provocou o declnio poltico do

    segmento ligado ao Coronel Bertaso. Mais ainda, provocou o esfacelamento do

    poder institudo, bem como atritos e lutas polticas acirradas, diante dos diferentes

    interesses de grupo em choque na luta pela afirmao do espao e da dominao

    locais. Quer dizer, a quebra da hegemonia poltica municipal nas eleies de trs de

    outubro, proporcionada pelos trabalhistas, veio acompanhada de fatos que mudaram

    totalmente a vida da comunidade chapecoense.

    Mais de meio sculo depois do episdio do massacre na cidade, Chapec

    quer ser conhecida como Cidade das Rosas. Com 187 mil habitantes36, esfora-se

    para se legitimar como uma terra de povo acolhedor, desbravador, como terra do

    trabalho. Passados quase cem anos da chegada das primeiras levas migratrias de

    descendentes de italianos ao Oeste catarinense, os discursos oficiais reiteram e

    atualizam a representao da lgica do trabalho. Exemplo disso pode ser visto no

    principal monumento da cidade: o Desbravador, esttua de quatorze metros de

    altura, que representa um gacho empunhando numa mo um machado,

    simbolizando o trabalho e na outra, um louro, simbolizando a vitria, que reina

    solene, ao lado da Catedral Catlica, no corao da cidade.

    34 Idem, p.14. 35 Caudilhismo, neste caso, pressupe a submisso da populao local aos mandos e desmandos dos patres da regio. Cf. BREVES, Wenceslau de Souza, 1985, p. 29. 36 IBGE. Censo Demogrfico Estado de Santa Catarina 2007. Disponvel em: . Acesso: 13 de maro de 2009.

  • 25

    possvel que essas representaes tanto as relacionadas ao trabalho

    quanto ao gacho comearam a ser construdas no inverno de 1917, quando as

    terras do Oeste Catarinense tornaram-se mercadoria lucrativa para as companhias

    colonizadoras, que se utilizaram dos jornais e dos cultos religiosos como meios de

    divulgao das belezas das novas terras, fazendo com que diariamente chegassem

    caravanas e caminhes abarrotados de colonos37 descendentes de italianos, vindos

    do Rio Grande do Sul.38 Ao adquirir a nova propriedade, o trabalho familiar era

    empregado no desmate, na formao da roa, na construo da moradia e das

    benfeitorias; bem como na construo e manuteno dos caminhos e traados da

    nova cidade. A fora do trabalho familiar foi base desse esforo produtivo. O

    trabalho era dividido entre adultos, jovens, crianas e idosos, e todos trabalhavam

    com a mesma intensidade.

    Dessa forma o processo de colonizao instituiu novas relaes econmicas

    e sociais na regio, e os colonos produziam gneros alimentcios para subsistncia

    o excedente era vendido no comrcio local e regional.

    A leva de imigrantes descendentes de italianos vinda do Rio Grande do Sul e

    estabelecida em Chapec e a configurao de uma identidade italiana para a cidade

    apresentam-se como fatores de sucesso e progresso, assinalando fortemente a

    discriminao de caboclos e ndios que habitavam a regio. Para a antroploga

    Arlene Renk39, o governo decidiu colonizar o Oeste Catarinense, contratando para

    isso as companhias colonizadoras as reas de floresta e campo foram divididas

    em pequenos lotes, chamados colnia e vendidas aos colonos do Rio Grande do

    Sul. 40

    A colonizao patrocinada pela Empresa Colonizadora Francisco Bertaso era

    intensa. A compra de lotes era facilitada com as terras sendo vendidas com 30% de

    desconto e o restante dividido em duas parcelas semestrais. A maioria delas

    consistia em pequenas propriedades caracterizadas pela agricultura familiar. A

    Empresa Colonizadora Francisco Bertaso priorizava os descendentes de italianos,

    mas tambm vieram para a regio descendentes de poloneses, alemes, russos,

    37 Como expresso de uma identidade camponesa, o termo colono foi atribudo aos imigrantes pelas leis e regulamentos que nortearam a poltica de colonizao desde a sua implantao, no sculo XIX. Acabou se transformando numa identidade assumida pelos indivduos descendentes de imigrantes europeus na regio. Cf. RENK, Arlene, 2004, p.19. 38VICENZI, Renilda, 2003, p. 116. 39 RENK, Arlene, 1999, p.10. 40 Idem, p.12.

  • 26

    entre outros, o que tornou o Oeste Catarinense uma regio bastante pluritnica. Faz-

    se necessrio no esquecer, porm, que antes da chegada dessas populaes a

    ocupao humana da regio contava com a presena de comunidades indgenas, as

    quais, segundo observa Dlcio Marquetti, vivenciariam:

    a partir da penetrao do elemento portugus a fase cabocla. Indgenas e caboclos foram responsveis pela proto-colonizao. No entanto tais grupos foram condenados ao silncio imposto pelos colonizadores, caindo praticamente no esquecimento. 41

    As dificuldades enfrentadas nos primeiros anos mato, solido, trabalho

    rduo, via de acessos difceis, mercado praticamente inexistente fizeram existir um

    forte esprito comunitrio entre moradores na regio. Os colonos se reuniram para

    abrir estradas, construir a escola, a igreja, o clube. Na religiosidade encontraram

    consolo para as dificuldades passadas naquela terra desconhecida. A vida social

    girava ao redor da religio. O padre em lombo de cavalo visitava regularmente a

    comunidade.

    O espao de diverso e lazer configurava-se em momentos de socializao

    das experincias cotidianas. Segundo pesquisas realizadas pelos historiadores

    Juara Nair Wollf e Marcos Batista Schuh, a ideia de lazer para os habitantes do

    Oeste Catarinense fazia-se a partir de espaos delimitados entre homens e

    mulheres. Diversas formas de brincadeira acompanharam vrias geraes de

    moradores.

    Preocupados com a questo da moral familiar, as brincadeiras que envolviam meninos e meninas, homens e mulheres eram bem delimitadas. Espaos masculinos como campo de futebol, jogo de quatrilho, de bisca e bate-papo regado a bebidas exclusivamente dos homens. (...) No entanto, roda de chimarro, cantorias e brincadeiras com a criana configuravam-se espao eminentemente feminino, sobretudo porque a educao das crianas era tambm uma responsabilidade da mulher. 42

    Arlene Renk mostra que a eficcia do projeto colonizador requereu agentes

    humanos cujo modelo foi o descendente de europeu oriundo das colnias velhas do

    Rio Grande do Sul. Este aspecto traz simultaneamente com a ideologia da

    colonizao europia do pas, tendo como protagonistas os colonos trabalhadores,

    41 MARQUETTI, Dlcio, 2002, p.320. 42 WOLLF, Juara Nair; SCHUH, Marcos Batista, 2000, p.160.

  • 27

    construtores do progresso e da civilizao.43 Se considerarmos as teorias

    evolucionista e eugenista, justificaremos a provvel preferncia de descendentes de

    europeus para o branqueamento da populao do Oeste Catarinense e a excluso

    do caboclo. De acordo com esse projeto, constitua-se a imagem do colono

    trabalhador, construtor do progresso e da civilizao, que passaria a ocupar o

    Oeste Catarinense, antes chamada de terra de ningum, e em processo de

    transformao em terra do trabalho. Dessa forma, os indgenas e caboclos que

    povoavam esses territrios foram gradativamente expropriados da posse da terra e

    expulsos da regio. Nesse sentido:

    A colonizao do Oeste Catarinense foi um empreendimento de natureza econmica, e que empresrios do estado do Rio Grande do Sul, baseado na experincia da expanso nos ncleos coloniais em seus estados, investiram vultuosos capitais em Santa Catarina. Era inteiramente diferente das colnias militares do sculo anterior, em que o objetivo fundamental, de natureza poltica, foi de posse de terra.44

    A imagem do colono trabalhador, construtor do progresso, agenciada como

    projeto civilizador da regio em questo, o que no difere muito da justificativa dos

    projetos de colonizao do sculo XIX. Alm disso, antes da chegada dessas

    desejadas gentes para a colonizao, era necessrio superar alguns obstculos

    como associao da rea imagem de caos sendo que a debelao do

    Contestado teria sido a vitria sobre uma situao catica ao caudilhismo.45

    Reforamos que essa a imagem residual que se tem do Oeste Catarinense:

    regio ainda associada imagem do caos, violenta, incivilizada e abandonada.

    Outro aspecto importante a ser enfrentado e vencido foi o caudilhismo, o faroeste,

    intrinsecamente associado ao Oeste Catarinense, que se construa na disputa do

    campo poltico, por cargos pblicos e pelo poder.

    Em Chapec, aps o Contestado, foram acirradas as disputas entre dois coronis locais: de um lado Fidncio de Mello e de outro Santo Marinho, com alianas polticas, rupturas e arbitrariedades. Estas disputas implicaram em contnuos deslocamentos da sede da comarca, que, simbolicamente, no passava de uma medio de fora entre os dois coronis. Tudo isso deixava a populao

    43 RENK, Arlene, 2006, p. 55. 44 VOJNIAK, Fernando, 2004, p. 373. 45 Idem, p. 55.

  • 28

    desnorteada, por via comarca andando sobre cargueiro de pra l e pra c. 46

    O xito do projeto colonizador em Chapec requereu a pacificao. Coube

    ento ao Coronel Passos Maia, vindo do Rio Grande do Sul, ficar responsvel pela

    venda das terras de Bertaso.47 De acordo com a jornalista Mnica Hass, o poder

    chapecoense, desde a criao do municpio, em 1917, at por volta de 1950,

    caracterizou-se por um forte mandonismo local, que se identifica com aspectos do

    coronelismo brasileiro. O poder poltico do municpio, durante esse perodo, esteve

    na maior parte do tempo nas mos dos coronis ou de pessoas ligadas a eles. A sua

    dominao tinha por base a supremacia econmica e os laos de dependncia. A

    estrutura de dominao e as formas de controle social faziam parte de toda a cultura

    social e poltica resultante das relaes de poder da poca em que o pblico e o

    privado tornam-se complementares.

    Sobre essa importante questo, relacionada ao mandonismo local, cabe uma

    observao. De acordo com o historiador Paulo Pinheiro Machado, o Coronelismo

    caracterizado como um fenmeno poltico essencialmente ligado ao perodo da

    Primeira Repblica (1889-1930).48 Essa prtica expressou o poder local dos

    grandes fazendeiros. Fortaleceu-se em muitas regies do pas antes da Repblica e

    tambm aps a Revoluo de 1930. O alicerce do poder poltico dos coronis era a

    grande propriedade fundiria, geralmente habitada por muitos pees e agregados,

    homens de sua confiana, que junto com os fazendeiros, posseiros e lavradores

    vizinhos colocavam sua lealdade a servio do Chefe Poltico local. 49

    Os coronis influenciavam os eleitores de forma a persuadi-los e, assim,

    terem o poder de decidir as eleies municipais, estaduais e nacionais. Alm disso,

    estavam investidos de um poder sobre as pessoas, resolvendo rixas, discursando

    sobre julgamentos e agindo como rbitros. Faziam parte da base das polticas

    regionais, estaduais e federais, e obtinham aliana para afirmar e reproduzir seu

    46 Idem, p. 56. 47O Coronel Passos Maia, recm chegado ao Passo dos ndios (Hoje, Chapec) para iniciar a colonizao juntamente com Bertaso, deslocou-se da rea comprada para uma fazenda em Passo Bormann. O Coronel Fidncio Mello impediu-o de entrar sob o pretexto que aquelas terras pertenciam aos seus moradores e que ali no havia terras para colonizar. Mello e o delegado haviam avisado a populao moradora da fazenda comprada de que seriam expulsos. Diante disso, o colonizador apelou para o governo do Estado, que interessado na ocupao da regio, nomeou o delegado especial do municpio, a quem coube instaurar a paz. Cf. BREVES, Wenceslau de Souza, 1985, p.15. 48 MACHADO, Paulo Pinheiro, 2004, p. 90. 49 Idem, p. 91.

  • 29

    poder. Com isso conseguiam influenciar na nomeao de funcionrios pblicos

    como delegados de polcia, juzes, promotores, coletores de impostos e, em nvel

    federal, coletores de impostos, agentes de correios, telegrafistas etc. Os coronis

    tinham de cuidar dos encaminhamentos e solues das demandas provenientes da

    clientela poltica, que incluam alguns setores urbanos, como os pequenos

    comerciantes.

    Paulo Pinheiro Machado chama a ateno, ainda, para o fato de que os

    coronis eram respeitados em relao fora de seu contingente de milicianos

    particulares, no apenas por seus vizinhos e adversrios, mas tambm pelos

    prprios grupos oligrquicos estaduais que neles se apoiavam. Esse poder atingia

    de diferentes formas a rea urbana do municpio de Chapec. Este o ponto

    decisivo: a clientela poltica dos coronis no era a mesma clientela de empregados

    e agregados no qual recrutavam suas milcias, pelo menos nas primeiras dcadas

    da Repblica.

    O coronelismo no expressa apenas um sistema poltico, mas como o desdobramento poltico de uma forma de dominao de classe. E apenas a partir de 1930-1940 que o eleitorado rural ter um peso mais significativo no conjunto do eleitorado nacional, dando espao s prticas coronelistas. 50

    O domnio econmico e consequentemente poltico da regio passaria a ser

    exercido pelas companhias colonizadoras, a partir de 1920. Vrias empresas

    atuaram no Oeste Catarinense. Em Chapec salienta-se o papel da Colonizadora

    Bertaso, Maia e Cia., que se instalou na localidade de Passo dos ndios (atual

    Chapec) por volta de 1920 e, a partir de 1923, passou a pertencer somente aos

    Bertaso, com o nome de Empresa Colonizadora Ernesto Francisco Bertaso.

    Quando os colonizadores chegaram ao Oeste Catarinense, o ambiente estava

    tenso por causa da luta poltica entre os coronis Manoel dos Santos Marinho, de

    Passo Bormann, e Fidncio Mello, de Xanxer, que disputavam o poder poltico local

    e o domnio sobre o comrcio de erva-mate e sobre as mercadorias da regio.

    Preocupados com a consolidao do projeto de ocupao da regio, o

    governo do Estado nomeou o coronel Manoel dos Santos Maia, scio da

    Colonizadora Bertaso, Maia e Cia., delegado de polcia de Chapec, em 1919.

    50 Idem, p. 93.

  • 30

    Coube a ele cuidar da ordem e consequentemente o progresso para a regio,

    seguindo os princpios de uma ideologia liberal orientada na Primeira Repblica.

    Esse seguimento dos colonizadores teve sua fora poltica reproduzida no

    governo Vargas, de 1931 a 1944, com os representantes das empresas

    colonizadoras perdendo espao no poder local. Durante a maior parte do governo

    Vargas, as nomeaes para o executivo municipal incluram uma burocracia militar

    de altas patentes e elementos que nem sempre possuam identificao com o lugar

    (eram oriundos do Rio Grande do Sul ou do litoral catarinense). Durante quatorze

    anos, o municpio de Chapec teve dez prefeitos nomeados e um eleito que no

    tomou posse. O governo de 1930 amenizou as disputas polticas locais, instalando a

    sede do municpio da comarca, em 1931, em territrio neutro Passo dos ndios,

    onde ficava a sede da Colonizadora Bertaso, responsvel pela colonizao dessa

    rea. Evidencia-se o interesse do governo em atrair aqueles que representavam o

    poder econmico local. Por outro lado, houve a introduo, atravs das nomeaes

    dos interventores, de elementos estranhos aos quadros polticos locais, tambm

    reduzindo os violentos atritos. Ficou claro ento o fortalecimento do Estado.

    Somente no final do Estado Novo, mais precisamente em 1944, o filho do

    Coronel Ernesto Bertaso, o engenheiro civil Serafim Enoss Bertaso, foi nomeado

    prefeito de Chapec. A famlia Bertaso j dominava politicamente a regio,

    restabelecendo a participao do grupo vinculado s empresas colonizadoras, que

    na ocasio j haviam diversificado ainda mais seus interesses econmicos.

    A colonizadora Bertaso tinha uma grande preocupao com o

    desenvolvimento da cidade. Era a grande patrocinadora e organizava festas de

    integrao comunitria, alm de facilitar o pagamento e doar lotes de terra para

    estabelecimento pblico, religioso e de entidades com fins recreativos e esportivos.

    Tambm se preocupava com a infraestrutura da localidade ruas traadas, lotes

    urbanos, casa comercial, igreja, escola e hotel como forma de viabilizar o progresso

    dos ncleos de povoao.

    Nas representaes construdas pelos moradores de Chapec, o coronel

    Bertaso era tido como o colonizador que utilizava a maior parte de suas terras para

    a comercializao, existindo uma relao de paternalismo entre eles e os migrantes

  • 31

    que incentivou a explorao na regio.51 A dominao poltica de Bertaso tinha

    como base o prestgio que possua junto ao governo estadual e populao local.

    Figura 1 Coronel Ernesto Francisco Bertaso.52

    A cidade crescia, estava cada vez mais movimentada e a vida social tambm

    se intensificou. Um grupo de pessoas se reuniu e fundou em 1938 o Clube Esportivo

    Chapecoense, chamado mais tarde de Clube Recreativo Chapecoense. A

    construo da sede, que tambm se incendiaria no carnaval de 1950, iniciou com a

    reunio da comunidade e um terreno doado pelo Coronel Bertaso. Festas, reunies

    danantes, rifas foram realizadas, e os lucros foram direcionados para a edificao

    da sede. Os madeireiros doavam madeira e os comerciantes colaboravam com o

    que podiam. Esse espao passou a ser um lugar de festas, jantares e

    comemoraes da comunidade, mas nem todos os que residiam na regio podiam

    usufruir dele. Afinal, uma das clusulas de seu estatuto proibia a entrada de negros

    no lugar.

    A extrao de madeira era umas das principais atividades econmicas da

    regio, principalmente entre as dcadas de 1930 e 1960, e praticamente toda a

    madeira extrada era exportada para a Argentina. O principal meio de transporte

    utilizado era a balsa, tambm chamada de remoque. Nesse sentido representava

    uma realidade vivida em praticamente toda a regio, principalmente nos municpios

    51 HASS, Monica, 1999, p.31. 52 O coronel Bertaso no tempo em que era caixeiro viajante, antes de sua atuao poltica e empresarial na Regio Oeste. Possivelmente essa foto de 1910. Acervo Fotogrfico do Centro de Memria do Oeste de Santa Catarina CEOM/UNOCHAPEC. Chapec.

  • 32

    e vilas localizados s margens do rio Uruguai. Mas no eram s a extrao de

    madeira e seu transporte que interligavam essas vilas e municpios. A explorao de

    madeira passou a ser substituda gradativamente pela explorao de erva-mate.

    Faz-se necessrio dizer que os ervais eram nativos da regio. No passado as

    folhas eram colhidas e beneficiadas por caboclos que depois as vendiam para

    comerciantes das vilas mais prximas. A produo do mate era extremamente

    trabalhosa, envolvendo a mo de obra de toda a famlia cabocla, normalmente nos

    meses de inverno, quando a pecuria e a agricultura no davam muito servio. O

    processo de produo at meados do sculo XX seguia o modelo indgena. A

    intensificao da explorao dos ervais resultou no esgotamento e na morte das

    rvores. A lei Estadual no 700, de novembro de 1906, procurou regular a extrao da

    erva-mate em terras de domnio estatal, evitando a exausto das reservas. Para isso

    fixou-se o perodo de corte entre 1o de maio e 30 de setembro e proibiu-se novo

    corte nas mesmas rvores por prazo de 3 meses. A erva-mate era o principal artigo

    de exportao do Estado entre o final do sculo XIX e o incio do XX. Os principais

    consumidores e importadores eram a Argentina, o Uruguai e Chile.53

    Desde a dcada de 1940, a cidade de Chapec vinha se destacando na

    regio por sua madeira e pela explorao de erva-mate. Estabeleciam-se na cidade

    algumas casas comerciais de secos e molhados que abasteciam a populao. A

    falta de mercadorias era constante, pois elas vinham de Erechim (RS) e Joaaba

    (SC) e atrasavam por causa das poucas e pssimas estradas e das habituais

    enchentes. Alm das lojas, havia um escritrio bancrio, um hospital, um campo de

    aviao, um jornal, uma rdio, um posto de gasolina, advogados, mdicos,

    engenheiros, obras assistenciais e sociedades recreativas e desportivas. Alm da

    instalao de novas casas comerciais e indstrias, das construes de residncias e

    edifcios pblicos (agora j de alvenaria), o progresso se fazia presente na abertura

    de novas ruas, no alargamento e calamento das antigas e na remodelao da

    praa, tudo facilitado pela colonizao planejada. 54

    Chapec nos anos 1940 e 1950 estava passando por grandes mudanas em

    sua estrutura demogrfica, econmica, social e poltica. Nesse perodo houve um

    crescimento populacional de 117,34% na rea urbana e 116,09% na rea rural. O

    comrcio quase quadruplicou, apresentando um crescimento de 246,97%. A

    53 MACHADO, Paulo Pinheiro, 2004, p.133-134. 54 HASS, Monica, 1999, p. 47.

  • 33

    indstria tambm dobrou, passando de 57 para 118 estabelecimentos. No obstante

    esse crescimento Chapec ainda seguia com caractersticas rurais bem marcadas. A

    agricultura foi a que apresentou maior desenvolvimento ampliou suas atividades

    para 4.056 estabelecimentos agrcolas, numa expanso de 1.597,47%,

    transformando o municpio num grande produtor de milho e feijo55.

    No entanto, no foram somente os fatores econmicos os responsveis pela

    transformao na configurao do poder poltico de Chapec. O novo contexto

    poltico que surgiu a partir de 1945, com a derrubada de Getlio Vargas e a criao

    de novos partidos polticos, contribuiu para essa significativa mudana. Inaugurou-

    se, na poca, uma fase mais pluralista de poder, com a expanso da representao

    poltica entre vrias faces partidrias. Sete partidos foram criados no municpio

    entre 1945 e 1965: Partido Social Democrtico (PSD), Unio Democrtica Nacional

    (UDN), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido de Representao

    Popular(PRP), Partido Social Progressista (PSP), Partido Libertador (PL) e Partido

    Democrtico Cristo (PDC). 56

    Os grupos tradicionais prosseguiram dominando a poltica municipal ps-1945

    em torno do Partido Social Democrtico (PSD), liderado por Serafim Bertaso, filho do

    Coronel Ernesto Francisco Bertaso. Estes, como j vimos, estavam frente do grupo

    que dominava a poltica municipal desde 1944. Eles venceram as eleies

    municipais de 1947, elegendo o prefeito, o advogado e o diretor do jornal A Voz de

    Chapec, Vicente Cunha.

    A ruptura do domnio dos colonizadores e dos madeireiros ocorre na dcada

    de 1950, quando o Partido Social Democrtico (PSD) derrotado nas eleies

    municipais pela coligao opositora, formada pelo Partido Trabalhista Brasileiro

    (PTB), pela Unio Democrtica Nacional (UDN) e pelo Partido Social Democrtico

    (PSD), agremiaes lideradas por polticos vinculados a atividades urbanas, de

    cunho industrial, comercial e de profisses liberais. Na vitria da oposio esteve

    expressa a resistncia em torno dos que se consideravam donos do poder. Era em

    meio a esse cenrio que ocorriam tambm intervenes no espao urbano,

    sobretudo sobre as famlias, como veremos a seguir.

    55 IBGE. Censo Demogrfico Estado de Santa Catarina 1940-1950. Disponvel em: . Acesso: 13 de maro de 2009. 56 HASS, Mnica,1997, p. 250.

  • 34

    1.1 A ocupao e o desejo de integrar o Oeste ao Estado catarinense

    Desde a dcada de 1920 a literatura disponvel sobre Santa Catarina mostra

    o desejo e a necessidade de integrar a regio Oeste ao Estado, pois:

    at 1916 podia-se dizer que realmente catarinense eram somente as terras do litoral e o planalto, at o rio do Peixe, no Meio-Oeste. Parte disto e todo o extremo-Oeste, at a fronteira com a Argentina, era territrio sobre o qual se discutia a posse, apesar de j existir um incio de colonizao em toda a regio, aumentada a partir dessa data, realizada por vrias empresas particulares, principalmente gachas.57

    Vale lembrar que a delimitao territorial de Santa Catarina foi marcada por

    diferentes contestaes e conflitos com a Argentina e o Estado do Paran. Os

    embates com o vizinho Paran juntaram-se aos demais problemas sociais da regio

    e contriburam para a configurao de conflitos armados entre caboclos e

    representantes dos poderes locais e estaduais que ficaram conhecidos como a

    Guerra do Contestado, que durou de 1912 a 1916.

    Para o historiador Carlos Humberto Correa o Oeste catarinense foi criado,

    desenvolveu-se e organizou-se com a mnima interferncia das demais regies do

    Estado, criando um verdadeiro hiato entre os territrios separados pelo rio do

    Peixe.58 Esse hiato certamente constitua-se como uma importante preocupao

    para o poder estadual que via necessidade de integrar a regio ao Estado.

    Representativos desse desejo so os registros de viagem do governador Adolfo

    Konder, primeiro governador a visitar oficialmente o Oeste catarinense, em 1929. Os

    escritos do ento governador evidenciam o investimento tanto na construo da

    brasilidade quanto na prpria divulgao identitria relacionada representao do

    catarinense. Mas quem seria esse catarinense? A heterogeneidade histrica e

    cultural de Santa Catarina, marcada por diferentes ascendncias como a

    portuguesa, mais predominantemente no litoral; a germnica no Vale do Itaja e

    Nordeste do Estado; a italiana no Sul; e assim por diante, revela tanto a

    singularidade da ocupao do territrio catarinense como a variedade cultural da

    57 CORREA, Carlos Humberto P., 1997, p.181. 58 Idem, p. 181-182.

  • 35

    advinda. A regio Oeste escancarava ainda mais as fissuras e fraturas do processo

    que visava amalgamar a regio como catarinense e brasileira.

    Para garantir a posse e integrao definitiva, o governo do Estado de Santa

    Catarina implantaria uma poltica de povoamento que se arrastava desde os fins do

    sculo XIX, com imigrantes de origem italiana e alem, procedendo do Rio Grande

    do Sul. Afinal, a populao de ndios, africanos e portugueses vivia do extrativismo e

    da agricultura de subsistncia, o que contrastava com um ideal do Brasil de vocao

    agrcola. Preencher esse vazio demogrfico significava preencher os espaos com

    o progresso pautado numa cultura que fizesse frente cultura dos antigos

    habitantes da regio. Sobre as razes oficiais da viagem do governador Adolfo

    Konder, afirmava-se que o objetivo era inteirar-se das necessidades da regio, para

    integr-la definitivamente comunidade catarinense, demonstrando aos vizinhos do

    Rio Grande do Sul, do Paran e da Argentina a inteno do Estado de Santa

    Catarina de exercer soberania sobre a terra do Oeste.

    Figura 3 Visita de Adolfo Konder, 1929. 59

    Os historiadores Maria Bernardete Ramos Flores e lio Cantalicio Serpa60

    pontuam trs razes que justificam a viagem do governador Adolfo Konder ao Oeste

    59 Autoridades reunidas em Passo dos ndios em 1929, na ocasio da passagem da comitiva de Adolfo Konder (Bandeira Konder), local em que hoje se encontra a Avenida Getlio Vargas, em Chapec. Acervo Fotogrfico do Centro de Memria do Oeste de Santa Catarina CEOM/UNOCHAPEC. Chapec.

  • 36

    de Santa Catarina e se constituem eixos da discusso deste texto: a questo da

    fronteira nacional com a Argentina e a consequente construo da brasilidade; a

    permanncia da ocupao do Oeste Catarinense como expanso de um processo

    civilizador para o interior do interior no s do Estado, como tambm do pas; o

    empenho em debelar as acusaes da Guerra do Contestado, vencendo poderes

    locais, em torno dos quais gravitavam grupos conflitantes. Ao elencar os pontos, os

    autores ressaltam que todos so apenas facetas de uma nica questo: a

    interiorizao do pas, projeto que pretendia eliminar os considerados vazios

    demogrficos e fazer com que as fronteiras econmicas, geogrficas e culturais

    coincidissem com as fronteiras polticas.

    No incio do processo de colonizao do Oeste Catarinense, a terra servia de

    uso aos grupos que historicamente a habitavam, constitua-se num privilgio aos

    latifundirios, que de diferentes maneiras se apropriaram de grandes extenses, e

    transformou-se em mercadoria nas mos das empresas colonizadoras. Numa

    perspectiva diferente daquela, tambm se tornou de uso aos migrantes. Como se

    procurou mostrar, no incio do sculo XX o ponto de vista dos governantes era de

    difundir a imagem da regio como uma grande rea abandonada, com escassa

    populao e que, por isso, necessitaria de efetiva colonizao para garantir a sua

    posse. Sobre essa necessidade, a historiadora Eunice Nodari61 afirma que se

    desencadeou um processo de colonizao e povoamento a partir da juno de

    interesses e que isso competia a dois grupos de interesses distintos, mas que se

    aliavam para atingir seus fins e incrementar o aumento populacional. De um lado

    temos o Estado de Santa Catarina, que necessitava povoar urgentemente a regio

    para garantir a sua posse, e, de outro, as companhias colonizadoras, com seus

    proprietrios e agentes de vendas que, em troca do assentamento dos colonos na

    regio e da construo de estradas, recebiam do governo as chamadas terras

    devolutas, que eram por eles demarcadas e vendidas aos imigrantes.

    A estratgia de ocupao e delimitao do Oeste Catarinense envolveu um

    casamento entre o governo estadual e as empresas colonizadoras, que incentivaram

    a vinda de imigrantes, dando incio ao processo de ocupao capitalista na regio.

    A soluo viria com a colonizao, cujo modelo dar-se-ia pelo assentamento de

    60 FLORES, Maria Bernadete Ramos; SERPA, lio Cantalcio, 1999, p. 12. 61 NODARI, Eunice; NODARI, Renato, 1999, p.30-31

  • 37

    descendentes europeus, portadores do progresso e da civilidade 62. Os relatos da

    viagem do governador evidenciam fortemente o desejo da transformao de um

    vazio, o deserto num den, numa nova canaan 63, objetivo que seria alcanado com

    a participao da inteligncia e do brao do homem disposto a trabalhar,

    representado pelos imigrantes. Os obreiros da civilizao so os colonos nascidos

    no Rio Grande do Sul, descendentes de alemes e italianos, toda uma gente forte e

    decidida, disposta ao trabalho, levando aqueles rinces, at h pouco incultos por

    abandonados a prosperidade e riquezas. 64

    Em relao existncia de vazios demogrficos, o historiador Jos Carlos

    Radin65 nos mostra que o serto trazia consigo a ideia de ausncia de civilidade, e

    se entendia que sua conquista efetiva faria parte de um projeto patritico, de esprito

    bandeirante. Assim, nesse perodo, nas representaes construdas no Oeste de

    Santa Catarina, implcita ou explicitamente, convocavam-se os mais corajosos para

    a tarefa de efetivar tal projeto. Os colonizadores brancos, descendentes de italianos,

    alemes e poloneses, na maioria das vezes apareciam com uma espcie de misso

    atribuda de levar a civilizao aos espaos no civilizados.

    Por isso, colocava-se a necessidade de superar esse modo de ser e de

    trabalhar, pois no interessava aos governantes, nem s elites, por no se inserir na

    perspectiva do progresso e da civilizao almejados. Mas era nesse sentido que,

    oficialmente, colocava-se a ocupao efetiva do territrio e a conquista do serto

    como forma de tornar plena a construo do Brasil, pois, alm de dar unidade

    territorial, tal conquista era considerada imprescindvel na construo da prpria

    nao.

    Em se tratando da idia de construo de regio, dentro dessa idia de

    territorialidade, convm no esquecer que os aspectos relacionados as divises

    naturais acabam sendo os que menos importam. Para os historiadores Bernardete

    Ramos Flores e lio Cantalcio Serpa,

    Na delimitao de fronteiras, a lngua, o habitat, a realidade social, tanto quanto as classificaes mais naturais, apiam-se em traos que no tem nada de natural, sendo em ampla medida, o produto de uma imposio arbitrria, quer dizer, de um estado anterior de relao de foras no campo de lutas pela delimitao legtima.(...) O discurso regionalista , portanto, um discurso performtico, que visa

    62 RENK, Arlene, 2006, p. 32. 63 BOITEUX, Jos Arthur, 1931, p. 7-8. 64 Idem, p.10. 65 RADIN, Jos Carlos, 2006.

  • 38

    impor como legtima uma nova definio de fronteiras, e fazer conhecer e reconhecer a regio assim delimitada.66

    A preocupao com a sade pblica e com a educao que agrega-se mais

    tarde a Legio Brasileira de Assistncia, como a instituio que contribuiu na

    legitimao desse progresso - voltado para o interior do Brasil - passou a ser o mote

    mobilizador das chamadas prticas higienistas e civilizadoras. Convm notar, porm,

    que essas prticas levadas a cabo pela Legio Brasileira de Assistncia no interior,

    j circulavam como necessidades prementes a partir de diferentes lugares. O interior

    era atrasado, revelava a face de uma nao que se queria deixar pra trs, precisava,

    portanto, de interveno urgente. O intelectual Monteiro Lobato, com a sua

    coletnea de ensaios intitulada Urups, j destacava essa questo por meio do

    personagem Jeca Tatu. Intelectuais ligados Semana de Arte Moderna de 1922,

    como Plnio Salgado, Graa Aranha e Cassiano Ricardo, lanaram o manifesto

    Nhengau Verde e amarelo, de cunho integralista; o segundo manifesto

    Antropofgico, em defesa do nacional e o terceiro a Marcha para o Oeste,

    argumento para que a bandeira penetrasse o interior.67

    Para que o Brasil alcanasse a modernidade, segundo Jos Carlos Radin68,

    necessitava tambm ocupar e civilizar o serto, o interior do Brasil. Mesmo em

    interpretaes nas quais o sertanejo era visto como legtimo brasileiro, nem sempre

    era apresentado como o elemento ideal para a chamada efetiva ocupao do

    territrio ou para dar suporte propalada construo da nao. Isso no quer dizer

    que o sertanejo seja literalmente um Jeca Tatu. Porm, quem viaja e v pelo serto

    o fatalismo sertanejo, a limitao de sua agricultura, a instintiva desconfiana pela

    civilizao, a sua habitual indolncia [...] a sua palestra, a sua ignorncia poltica,

    enfim, os remdios populares, a ingnua crendice dos curandeiros e das meizinhas

    ver a imensa verdade das pginas vivas de Urup 69. Esses discursos voltados a

    brasilidades evidenciam o discurso de poder que traduzia a brasilidade a parmetros

    geogrficos e econmicos. Para Alcir Lenharo o povoamento ocupao e a

    integrao constituam os novos movimentos da Nao em busca de sua

    plenitude.70 Nos discursos dos intelectuais ligados ao Estado, a palavra-chave era a

    66 FLORES, Maria Bernadete Ramos; SERPA, lio Cantalcio, 1999, p 217. 67 RADIN, Jos Carlos, 2006. 68 Idem, p. 40. 69 CASCUDO, Cmara. Apud LUCA, Tnia Regina de, 1999, p. 203. 70 LENHARO, Alcir, 1986, p.57.

  • 39

    brasilidade, mobilizadora de homens e mulheres e crianas. Assim, o controle social

    teve um deslocamento significativo do espao privado para o pblico.

    Se a poltica do Estado Novo estava voltada constituio de uma nao

    forte e homognea, no Oeste Catarinense e mais especificamente em Chapec,

    percebemos que a construo desse estado promoveu o surgimento de polticas

    pblicas que colaborassem tambm para a consolidao desta nao brasileira.

    Questes que podem ser constatadas nos relatrios do interventor Nereu Ramos a

    partir de aes que deflagraram o processo inicial de integrao da regio ao

    territrio catarinense.

    Para a historiadora social da rea da famlia Silvia Maria de Fvero Arend,

    essas polticas pblicas de proteo maternidade e infncia implementadas no

    Estado Novo so visualizadas a partir das obras de caridades desenvolvidas por

    instituies ligadas Igreja Catlica Apostlica Romana em relao assistncia

    dos infantes pobres de Florianpolis nas primeiras dcadas de sculo XX. 71 Essas

    instituies ligadas Igreja so como marco na assistncia infncia desprovida

    pobre e inauguraram na cidade de Florianpolis as polticas sociais de

    abrigamento.72 Outras aes foram realizadas pela famlia Ramos, que foram os

    provedores das aes assistenciais em Florianpolis, as quais elenco:

    J. Otaviano Ramos era provedor da Irmandade do Divino Esprito Santo, em 1941. Alcimiro Silva Ramos presidente da Unio Recreativa Beneficente Recreativa Operaria, na gesto 1940-1941. Ambos os irmos do Interventor Federal Nereu Ramos. Os presidentes de honra da sociedade de Assistncia aos Lzaros e o Combate a Lepra, responsvel pela construo no municpio de So Jos do Asilo denominados preventrio onde seria alojados os filhos dos portadores de mal de Hansen, era Nereu Ramos e sua esposa Beatriz Pederneiras Ramos, o arcebispo D. Domingues de Oliveira e o prefeito Mauro Ramos e sua esposa Dulce Ramos. A primeira-dama do Estado Beatriz Pederneiras Ramos, da mesma forma que Darcy Vargas, a esposa do presidente da Repblica, anualmente patrocinava festas para angariar fundos para crianas carentes. As barraquinhas da festa Pessegueiro em Flor em prol dos infantes do Preventrio instalada na praa Getlio Vargas no centro da cidade.73

    A autora lembra, ainda, que a partir de 1930, com a emergncia do cl dos

    Ramos ao poder poltico em Santa Catarina, as prticas desenvolvidas pela Elite na 71 AREND, Silvia Maria Fvero, 2005, p.189. 72 Idem, 192 73 Idem, 199.

  • 40

    capital h aproximadamente 250 anos que objetivavam a preservao da vida dos

    infantes despossudos, mesmo sem mudana do status quo econmico e cultural

    dos mesmos passam a ser controlada pelo Estado. 74 E ressalta que tais aes

    foram denominadas pela historiografia e pelos pesquisadores das Cincias Sociais,

    do Servio Social e do Direito, de polticas sociais assistencialistas. Os pobres da

    cidade eram de fundamental importncia no projeto urbano-industrial do grupo que

    passou a administrar a federao no perodo de Getlio Vargas.

    Nas discusses da historiadora Cynthia Machado Campos pode-se observar

    as especificidades desse processo em Santa Catarina, centrado, em grande parte,

    no reordenamento do contexto escolar do Estado e na criao das instituies de

    recluso e de assistncia, especialmente em Florianpolis.

    O crescimento da interveno junto s escolas nas dcadas de 30/40 foi contemporneo ao processo que afastou do campo de viso das modernas elites catarinenses, a populao intolervel como pobres, loucos e prostitutas. H que se considerar que, alm da simples excluso, como foi o caso da fixao de alguns segmentos da populao nos morros e arredores das cidades de Santa Catarina, ou do confinamento em instituies de isolamento, o movimento parece ter-se orientado no sentido de garantir um certo retorno sociedade, atravs de educao eficiente para adaptar corpos e comportamentos s novas condies que configuraram