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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS UEMG
FACULDADE DE EDUCAO - FaE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO - PPGE
Frederico Luiz Moreira
FESTA, PATRIMNIO E EDUCAO:
Uma etnografia dos tapeceiros do Corpus Christi
Belo Horizonte
2017
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Frederico Luiz Moreira
FESTA, PATRIMNIO E EDUCAO:
Uma etnografia dos tapeceiros do Corpus Christi
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de
Ps-Graduao em Educao da Universidade do Estado de
Minas Gerais, na linha de pesquisa I Culturas, Memrias e
Linguagens em Processos Educativos.
Orientadora: Prof. Dra. Lana Mara de Castro Siman
Co-orientadora: Prof. Dra. Rachel de Sousa Vianna
Belo Horizonte
2017
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Dissertao defendida e aprovada em 18 de maio de 2017, pela banca examinadora
constituda pelos (as) professores (as):
Prof. Dra. Lana Mara de Castro Siman Orientadora
Universidade do Estado de Minas Gerais - Faculdade de Educao
Prof. Dra. Rachel de Sousa Vianna Co-orientadora
Universidade do Estado de Minas Gerais Escola Guignard
Prof. Dr. Fabrcio Andrade Pereira
Universidade do Estado de Minas Gerais - Faculdade de Educao
Prof. Dr. Joo Valdir Alves de Souza
Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Educao
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Para meu filho, Luiz, que me fez buscar um novo sentido para a vida.
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AGRADECIMENTOS
Certa vez, Fernando Pessoa disse que o valor das coisas no est no tempo em que
elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos
inesquecveis, coisas inexplicveis e pessoas incomparveis!. por meio de suas palavras
que julgo este um momento incomparvel! No pela ocasio em si, mas, devido s coisas
inexplicveis que certas pessoas fizeram por mim:
A minha me, Shirley, que, nos momentos mais difceis, amparou-me e me ergueu
com suas doces e realistas palavras, para que eu pudesse fitar um norte. Me, voc no sabe o
quanto sua presena e conversas me fortaleceram, naquelas caminhadas noturnas pelo campo.
A meu pai e irm, Moreira e Carol, que, mesmo distantes desse processo, acolheram-
me com seus gestos sempre solcitos.
A minha esposa e amiga, Wanessa, pelos cuidados e carinho que me ajudaram a
vencer o que poderia impedir-me de seguir e concretizar este caminho.
Aos sujeitos dessa pesquisa, Magda Rossi, Mnica Irrthum, Pe. Rogrio M. dos
Santos, s pequenas tapeceiras e a Eduardo Ribeiro. Obrigado pelo que me ensinaram, pela
pacincia e confiana em responder tantas perguntas sobre coisas, s vezes, pessoais. Vocs
so a prpria tradio, viva e contnua.
A Ana Flvia Fonseca, Lvia Trres Cabral, Kelly Amaral de Freitas, Jnia Cardoso e
Atin Pinter, que, no incio deste caminho ainda em projeto, auxiliaram-me com suas
correes, ideias e esclarecimentos.
A Isabella Menezes de Carvalho que me acompanhou em cada passo e a cada
pargrafo, por incontveis correes e discusses matutinas, vespertinas e noturnas. Bella,
muito do que eu conquisto hoje foi graas sua paciente ajuda. Voc uma pessoa admirvel!
A Nayra Borges, por sua bela amizade e pelas longas horas de auxlio com as minhas
transcries.
A Nadja Mouro com a qual aprendi a perseverana em buscar, com alegria, meus
sonhos.
Aos meus colegas Matheus Augusto, Karla Fonseca, M Ceclia Villaa, Adlcio
Arajo, Alisson Esteves e Emile Elias, pelo auxlio em perceber sadas para o meu texto e
pesquisa.
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A minha famlia da qual, em certas ocasies, estive distante para dar conta desta
pesquisa. Obrigado pela pacincia e confiana.
A banca de qualificao cujas contribuies para minha pesquisa foram sensatas e de
grande ajudava.
A carssima Rachel Vianna, minha co-orientadora, que me descortinou as
possibilidades de ver a realidade em meio iluso.
E, finalmente, minha orientadora, Lana Siman, por sua estimulante presena e
carinho. Suas orientaes e a convivncia com uma mulher to nica como voc,
modificaram-me no sentido de ver a educao e a relao com as pessoas na e com a cidade.
Hoje eu sei flanar!
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Sobre a relao misteriosa de dois objetos to
diferentes entre si como o tapete e a cidade, foi
interrogado um orculo. Um dos objetos foi a resposta
tem a forma que os deuses deram ao cu estrelado e s
rbitas nas quais os mundos giram; o outro reflexo
aproximativo do primeiro, como todas as obras
humanas.
talo Calvino
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RESUMO
A dissertao teve como objeto de pesquisa a anlise de processos educativos imersos nos
saberes e fazeres da feitura dos tapetes de serragens que ornamentam a via da procisso da
festa de Corpus Christi. Um trecho da Rua Dom Pedro II, em dilogo com um segmento
comercial, ao final da Rua Comendador Viana, em Sabar/MG, foram os locais privilegiados
para a realizao da pesquisa, onde possibilidades educativas fizeram-se presentes nas
relaes intergeracionais, nos gestos e em diferentes composies e desenhos que delineiam,
com cores, a perpetuao - sempre renovada - dessa prtica cultural e religiosa. A
investigao partiu da hiptese de que as relaes de sociabilidade estabelecidas entre os
moradores da rua e demais fiis, durante feitura dos tapetes, instauram situaes transmisso
de saberes e fazeres, reforam valores identitrios e laos de pertencimento, fazendo dos
tapetes um patrimnio cultural imaterial da cidade. Para a apreenso da dimenso educativa
presente nos momentos de feitura dos tapetes em festa de Corpus Christi, vali-me de
referenciais socioantropolgicos e da sociologia da educao, em dilogo com os dados
apreendidos numa perspectiva etnogrfica. Para a captura dos dados realizei horas de
observao participante, entrevistas semiestruturadas, registros fotogrficos e notas em dirios
de campo. A anlise realizada permitiu-me elaborar reflexes sobre o processo de transmisso
de saberes e fazeres por meio da confeco dos tapetes da festa de Corpus Christi; apreender
dinamismos presentes na referida tradio e, por fim, tornar visvel a maneira como os
sujeitos que participam deste momento da festividade se apropriam da rua e dos espaos
urbanos, compondo formas outras de educao.
PALAVRAS-CHAVE: festa e patrimnio cultural; festa e educao intergeracional;
educao das sensibilidades.
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ABSTRACT
This research had as objective identify and understand the educational processes involved in
the knowledge and making of sawdust carpets that ornate the path of corpus Christi
procession party. It is listed in the assumption that the educational processes are present in the
cross-generations sociability situations, that occur during and at the period of that precedes
the event. For the purpose of this research were chosen, as occurrence observation places of
such educational possibilities, the interval of Rua Dom Pedro II connected with a commercial
segment, to the end of Rua Comendador Viana in Sabar, Minas Gerais. Trough gestures, of
different compositions and drawings that limit, with colors, the always renewed perpetuation
of this religious and cultural practice. For the consummation of this research were made
participants observations along with photographic record and field diary notes, in an
ethnographic perspective. Besides these procedures, interviews were made with residents
responsible for perpetuating this tradition, with the Priest of Nossa Senhora do Rosrio parish
and with the young people participating in the manufactory of the carpets. The data analysis
collected in the years of 2014, 2015 and 2016, dialoguing with the knowledge derived from
socio-anthropological approach, historic, patrimonial and educational aspects of the
celebration, made possible to show that in the sociability relationship established between the
residents and other participants, during the celebration and the manufacturing of the carpets
on the city streets, established educational situations in which there were knowledge
transmission, doings values and sensibilities about the manufacturing of the carpets,
bestowing local immaterial cultural patrimony to them, strengthening identity values and
belonging connections.
KEYWORDS: celebration and cultural patrimony; celebration and cross-generational
education; sensibility education.
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NDICE DAS ILUSTRAES
LISTA DE FIGURAS
Figura 01 - ............................................................................................................................ 33
LISTA DE FOTOGRAFIAS
Fotografia 01 ...................................................................................................................... 15
Fotografia 02 ...................................................................................................................... 22
Fotografia 03 ...................................................................................................................... 27
Fotografia 04 ...................................................................................................................... 32
Fotografia 05 ...................................................................................................................... 37
Fotografia 06 ...................................................................................................................... 40
Fotografia 07 ...................................................................................................................... 42
Fotografia 08 ...................................................................................................................... 44
Fotografia 09 ...................................................................................................................... 46
Fotografia 10 ...................................................................................................................... 47
Fotografia 11 ...................................................................................................................... 50
Fotografia 12 ...................................................................................................................... 51
Fotografia 13 ...................................................................................................................... 53
Fotografia 14 ...................................................................................................................... 54
Fotografia 15 ...................................................................................................................... 62
Fotografia 16 ...................................................................................................................... 66
Fotografia 17 ...................................................................................................................... 67
Fotografia 18 ...................................................................................................................... 70
Fotografia 19 ...................................................................................................................... 72
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Fotografia 20 ...................................................................................................................... 79
Fotografia 21 ...................................................................................................................... 83
Fotografia 22 ...................................................................................................................... 85
Fotografia 23 ...................................................................................................................... 90
Fotografia 24 ...................................................................................................................... 91
Fotografia 25 ...................................................................................................................... 97
Fotografia 26 ...................................................................................................................... 99
Fotografia 27 ...................................................................................................................... 104
Fotografia 28 ...................................................................................................................... 105
Fotografia 29 ...................................................................................................................... 106
Fotografia 30 ...................................................................................................................... 109
Fotografia 31 ...................................................................................................................... 112
Fotografia 32 ...................................................................................................................... 116
LISTA DE MAPAS
Mapa 01 - .............................................................................................................................. 26
LISTA DE TABELAS
Tabela 01 - ............................................................................................................................ 25
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SUMRIO
INTRODUO .................................................................................................................. 14
1 SABAR: CIDADE EM FESTA E EM PERSPECTIVA RELIGIOSA .................... 23
1.1 A religiosidade e seu desenho na cidade ....................................................................... 25
1.2 A Rua Dom Pedro II ...................................................................................................... 28
1.3 Sobre flores .................................................................................................................... 29
1.4 A celebrao do Corpus Christi .................................................................................... 34
1.5 Sobre serragens, a cor e os leigos .................................................................................. 35
2 DOM PEDRO II, UMA RUA EM FESTA ..................................................................... 43
2.1 Irms em cores, irms em f .......................................................................................... 47
2.2 Festa e tradio .............................................................................................................. 54
2.2.1 Festa como Patrimnio ............................................................................................... 58
2.2.2 No tapete, a festa ........................................................................................................ 60
2.2.3 A Festa e o Sacrifcio.................................................................................................. 63
2.3 Viandantes ..................................................................................................................... 65
3 CULTURA, PATRIMNIO E EDUCAO ................................................................ 73
3.1 Prticas culturais e patrimnio ...................................................................................... 73
3.2 Por meio da socializao, a transmisso e a herana da tradio .................................. 84
4 SENSIBILIDADES NO TEMPO: REPRESENTAES, LEITURAS E
NARRATIVAS VISUAIS ................................................................................................... 92
4.1 Notas sobre experincias sensveis na rua .................................................................... 95
4.2 Sobre as imagens e a educao religiosa ...................................................................... 100
4.3 Dinamismos nas narrativas visuais e materiais dos tapetes .......................................... 103
4.4 Imagens Visuais como representatividade geracional .................................................. 110
CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................. 120
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REFERNCIAS ................................................................................................................. 125
ANEXOS .............................................................................................................................. 132
A Ofcio de Magda Maria Rossi, para a Prefeitura de Sabar ............................................ 132
B Decreto Municipal: 410-2002 ......................................................................................... 133
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INTRODUO
Na presente pesquisa, pretendo, por meio de registros fotogrficos, escritos e orais, dar a
compreender algumas experincias na ornamentao para uma festa. Para capturar essas
experincias, valho-me da etnografia que se funda nas perspectivas da alteridade, conceito que
Nicola Abbagnano (1998, p.34-35) define como Ser outro, colocar-se ou constituir-se como
outro, enfatizando tambm, a equivalncia de reconhec-lo. Criado em Sabar, vesti-me de
um forasteiro para entender as dimenses educativas presentes na ornamentao da festa de
Corpus Christi. De maneira mais pontual, pergunto como, e, por que pessoas e grupos de
geraes diferentes fazem, com a expresso de suas mos e de seus gestos religiosos ou leigos,
um tapete colorido para Deus passar. E, ainda, como saberes e fazeres contidos na feitura dos
tapetes se transmitem de uma gerao a outra. Assim se coloca meu objeto de investigao.
Sobre a sua origem e processo de formulao, narrarei mais adiante, pois antes importante
dizer que percebi a festa de Corpus Christi como um ciclo em aberto, ritmado pelas
experincias [e obrigaes] sociais, pelas passagens do tempo e das geraes, pela
dinamicidade mesma da tradio. Dessa forma, a festa se repete e se recria, por novos olhares,
atravs de novos intrpretes, constituindo-se em momentos de educao e aprendizagens.
Retorno agora ao incio de minhas inquietaes para apresentar os encontros que me
trouxeram para este estudo, levando-me formulao de hipteses e gerao da pergunta de
pesquisa, s escolhas tericas conceitos e aos procedimentos da pesquisa.
A construo do percurso investigativo desta dissertao parte de uma pesquisa
anterior de abordagem antropolgica, iniciada na Semana Santa de 2011, em Ouro
Branco/MG, enquanto fazia, para obteno de novo ttulo, minha segunda graduao na
Universidade do Estado de Minas Gerais - Escola Guignard, cursando Licenciatura em
Educao Artstica. Nesse momento, tive a oportunidade, ao estudar a disciplina Folclore, sob
a regncia da docente Juliana Aparecida Garcia Correa1, de produzir um pequeno trabalho que
se tornou um pr-projeto em antropologia da arte. Tapetes Sagrados: Perecveis serragens
em cor foi seu ttulo. Naquele trabalho procurei perceber e investigar os tapetes de serragens
compostos na Semana Santa ourobranquense, identificando sua dinmica de formao e
elaborao e os valores sociais que o cercavam. Busquei compreender como a construo
1 Doutoranda e Mestra em Antropologia Social pela UFMG - bailarina - antroploga e arte-educadora,
desenvolve pesquisas junto aos grupos de Congado, em Minas Gerais.
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esttica e leiga dos tapetes de serragens explicaria elementos identitrios da comunidade
criadora desse objeto. Para essa pesquisa, vali-me, principalmente, dos aportes de Marcel
Mauss (1974, 2003) sobre o Fato Social Total, sendo o tapete percebido como mediador entre
a festa e o rito de seu uso, identificados no encontro do material e do imaterial, como
participantes da construo cultural e identitria de moradores de Ouro Branco.
Nesse estudo de natureza antropolgica, fiz uso, tambm, das contribuies tericas de
Vincent Crapanzano (2005), Clifford Geertz (1997), Marcel Mauss (1974, 1981, 2003, 2005),
Arjun Appadurai (2008) e La Prez (2002, 2011, 2012), dentre outros. Do ponto de vista
emprico, foram coletados dados em pesquisa de campo sobre essa manifestao popular-
religiosa, centrando meu foco na observao da construo do tapete da festividade local.
Essas informaes, alcanadas por meio da observao participante, foram relacionadas aos
relatos obtidos em entrevistas com moradores locais. O objetivo central dessa minha pesquisa
foi o de interpretar a constituio da cultura popular-religiosa do povo ourobranquense,
compreendida entre a f da liturgia ritual e a expresso artstica do que apelidei de Tapete
Figura 01 Semana Santa em Ouro Branco. Fonte:
autoral 2011. Preparativos para procisso de
Domingo de Ramos.
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Sagrado. Pude, nessa pesquisa, perceber a fragilidade do tapete, que destrudo no caminhar
da procisso, problematizando tambm a temtica do sacrifcio e daquilo que perecvel na
arte.
Aps a apresentao de um trabalho relativo a essa pesquisa em um seminrio da
disciplina Folclore, na Escola Guignard (UEMG), participei do III Colquio sobre Festas e
Socialidades, no simpsio temtico A festa, pensamento de Jean Duvignaud (1983) e outros
estudiosos relacionados ao problema estudado realizado na FAFICH - UFMG em setembro
de 2011, onde privilegiei a temtica da festa para a leitura dos tapetes de serragens na Semana
Santa de Ouro Branco. Durante e aps a apresentao do meu trabalho tive oportunidade de
debater e conversar com diversos docentes da mesma instituio que me estimularam a
prosseguir meus estudos no mbito de um mestrado.
No Programa de Ps-Graduao - Mestrado em Educao, FaE/UEMG, na linha de
pesquisa I Culturas, Memrias e Linguagens em Processos Educativos, retomei os tapetes
como objeto de estudo, mas em outro contexto e com novo foco: a festa catlica do Corpus
Christi, na cidade de Sabar/MG.
Vinculei-me presente instituio em 2014, como pesquisador voluntrio do grupo
Polis & Mnemosine: Educao, Memria e Culturas - (FAE/UEMG), atuando nas
Pesquisas: Educar pela cidade: Patrimnio Cultural e Ambiental e Memria e Histria
Local: A potncia educativa dos inventrios de referncias culturais, vinculao qual
continuo em curso como estudante. Nesse engajamento e com novas leituras do campo
educacional, sobretudo da relao cultura e patrimnio, cidade e educao das sensibilidades,
passei a me interessar pelos processos educativos presentes na confeco dos tapetes da festa
de Corpus Christi, formulando a hiptese de que esses processos estariam presentes na
transmisso intergeracional.
Concomitantemente aos meus estudos no mestrado, continuei, desde meu ingresso no
programa de ps-graduao, a fazer registros exploratrios dessa festa, dando sequncia ao
que j vinha fazendo por interesse prprio e que culminou no meu projeto e pesquisa de
mestrado acadmico.
No cenrio da referida festa, tenho observado por trs anos que a dimenso material e
simblica nessa prtica religiosa e cultural reconstri-se, anualmente, apresentando diferentes
expresses de pertencimento e novos alcances estticos. O tapete ganha materiais diversos e
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sua feitura dinamizada pelas novas geraes, que participam juntamente com os antigos
tapeceiros.
A abordagem terica e conceitual desta pesquisa e a relao entre ela e os dados
coletados conduziu-me, num movimento de vai e volta, fazendo com que a reviso
bibliogrfica tambm se realizasse no decorrer da pesquisa. Nessas revises investi na busca
de apoio terico-conceitual para proposta da transmisso e apropriao cultural, sob uma
perspectiva educacional, sendo que poucos estudos foram encontrados. Dentre esses
destacam-se contribuies da leitura do texto de Kimi Tomizaki (2010), que apresenta e
discute o conceito de gerao e a importncia das relaes intergeracionais na constituio
desse mesmo conceito, apoiando-se, sobretudo, no trabalho de Karl Mannheim.
Foi tambm necessria uma reviso bibliogrfica a respeito das festas; dos tapetes na
festa de Corpus Christi, da relao entre festa na rua, educao das sensibilidades e o aspecto
intergeracional, para dar conta de analisar as descobertas relativas minha questo de
pesquisa. O conceito de festa que tomei como base o de Rita Amaral (1998, 2012) que
detm um olhar singular para a festa brasileira, em que explora o conceito e diferenciao
entre: festa - festejo - festivais e festividades, somada s referncias de La Prez (2002, 2011,
2012), Jean Duvignaud (1977,1983), Vnia Noronha Alves (2009) e Jadir Pessoa (2008). Essa
ampliao foi necessria para empreender anlises e diferenciaes do material recolhido por
meio de diferentes fontes.
Nessa reviso, atentei-me igualmente para a importncia do entendimento da festa
enquanto experincia educativa. Jadir Pessoa (2008), a esse respeito, chama a ateno para as
condies de aprendizagem que se promovem fora do mbito escolar, possibilitando um modo
diferenciado de se promover a continuidade de grupos, tradies e crenas que estabelecem e
fortalecem a importncia de ler as festas, para se (re) aprender nelas e com elas.
Dessa maneira, a presente pesquisa foi tomando contornos mais claros, recebendo
contribuies muito importantes na qualificao, que me levaram a aprofundar determinados
aspectos, sobretudo contextuais, que ofereceram maior clareza no estabelecimento dos
objetivos da pesquisa, assim formulados:
-Observar os processos educativos imersos nos saberes e fazeres presentes na tradio.
- Interpretar a dinmica de transmisso da tradio da feitura dos tapetes de serragens
que ornamentam a via da procisso.
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- Capturar as possibilidades educativas presentes nas relaes intergeracionais.
A Rua Dom Pedro II, no centro histrico de Sabar, dentre as demais, foi escolhida
como local/recorte da pesquisa por ser a nica rua tombada por seu conjunto arquitetnico,
sendo tambm, possivelmente, a mais tradicional e mais completa em sua ornamentao; por
fim, a que conserva pouca alterao de materiais na decorao dos seus tapetes. Atravs deste
recorte, busco expor os detalhes partilhados pelas memrias dos sujeitos envolvidos na
produo deles, influenciados pelo lugar e pelas relaes e experincias que acontecem neste
tempo festivo.
Mesmo que o objeto central de minha investigao se referisse ao processo de
confeco do tapete por pessoas ou grupos intergeracionais, meu olhar no se deteve apenas
ao momento de sua elaborao sobre a Rua D. Pedro II. Por meio da observao participante2,
busquei, tambm, descrever as atuaes dos sujeitos antes da feitura dos tapetes. Portanto,
maior centralidade foi dada, na presente pesquisa, no processo de feitura do tapete, no no
produto final. Mesmo tendo feito algumas anlises sobre a esttica final da produo, as
prticas realizadas, num dia, a cada ano, em ruas da cidade, foram o foco dessa procura. Em
observaes realizadas atravs de caminhadas, fui ao encontro da cidade, para compreender
seus textos por meio dos trajetos desenhados pelos tapetes, com o intuito de apreender as
sensibilidades expressas pelos sujeitos em seu cotidiano, prximo ao perodo da festa e no
momento da feitura das ornamentaes.
A observao participante foi escolhida por interligar no apenas minha necessidade
de entendimento diante das circunstncias, mas, igualmente por propiciar a experincia direta,
que
[...] o melhor teste de verificao da ocorrncia de um determinado assunto. O
observador pode recorrer aos conhecimentos e experincias pessoais como
complemento no processo de compreenso e interpretao do fenmeno estudado. A
observao permite tambm que o observador chegue mais perto da perspectiva dos
sujeitos e se revela de extrema utilidade na descoberta de aspectos novos de um
problema. Por ltimo, a observao permite a coleta de dados em situaes em que
impossvel estabelecer outras formas de levantamento ou outras formas de
comunicao. (LUDKE, ANDR,1986, p.45)
2 Conforme Carlos N. Fino (2003), essa prtica se estabelece atravs da descrio de uma cultura especfica, na
sua prtica e lugar de atuao, buscando-se a interpretao do cotidiano dos sujeitos pesquisados por um dado
perodo de tempo. Portanto, a presente pesquisa de abordagem qualitativa em cincias sociais empregou a
observao participante de cunho etnogrfico, assumindo assim uma perspectiva socioantropolgica no intuito
de apresentar algumas contribuies pertinentes ao educar pelas ruas da cidade.
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Para tal, foi necessrio o uso de mtodos que conseguissem dialogar e ilustrar, com
detalhes, o que pde ser contemplado, ou seja, o campo sensvel e subjetivo em que os sujeitos
elaboradores desse ornamento se apropriam e transmitem sua tradio: seus conhecimentos e
tcnicas por meio de suas narrativas orais, gestuais e visuais.
Para registros das observaes foram utilizados dirios de campo, j que a pesquisa
etnogrfica em cincias sociais utiliza a captao de dados derivados de observaes como
registros para anlise. O dirio de campo, como um dos procedimentos metodolgicos
adotados na pesquisa, suscitou o recolhimento de informaes originadas de experincias
vividas, de olhares, materiais, tcnicas e processos gestuais. Pois a evidncia
[...] de um dirio de campo, que seja erigido em dogma ou transformado em rotina,
recobre, na realidade, um conjunto complexo de prticas de escrita, cujas funes
e status so mltiplos, podendo as folhas de escrita que se sobrepem ter destinos diversos. (WEBER, 2009, p.1)
Florence Weber (2009) relata os dirios de campo no apenas como blocos de
anotaes sobre observaes do acaso, mas como mtodo disciplinante em que o pesquisador
etngrafo precisa apreender no desenrolar cronolgico dos fatos. Assim, foi necessria, ao
final da coleta e escrita, uma edio capaz de traduzir o necessrio ao recorte da pesquisa.
Nesse mbito, minha pretenso com os dados colhidos foi o de articular por meio das
investigaes e anotaes - o ntimo - o sensvel e o censurvel (WEBER, 2009, p.4).
Por intermdio de fotografias3 realizei registros da produo dos desenhos e dos
materiais utilizados na ornamentao e pude perceber, dentre outros aspectos, as diferenas
das sensibilidades presentes entre as geraes.
A primeira e constante funo da fotografia o registro. Por meio da fotografia pode-
se documentar, informar, narrar o ocorrido, evidenciando o que esteve e o que no esteve
presente num dado momento e local. Para a antropologia, o advento da fotografia inaugurou
um instrumento valioso de registro visual das linguagens simblicas presentes nos costumes,
modos de vida cotidiano, nas prticas culturais, dentre outros objetos. O testemunho visual
irrompe com menor sombra as dvidas geradas na captura de dados e ilustra a escrita para
3 Com cerca de trs anos de capturas fotogrficas e anotaes em dirios de campo, estabeleci observaes e
registros da referida celebrao, durante as respectivas datas: 19/06/2014 - 04/06/2015 - 26/05/2016. Vale
salientar que as fotografias foram utilizadas como fontes de dados, sendo apresentadas no corpo do texto, como
complemento e parte deste. E que a apresentao metodolgica do uso das fotos se situa ao captulo 3, tanto
quanto a prpria anlise de desenhos e narrativas visuais presentes nos tapetes registrados.
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com ela reunir narrativa daquilo que foi notado. De acordo com o pesquisador Boris Kossoy
(1989), em sua obra Fotografia e Histria, vale lembrar que a fotografia no reacende
/reconstitui o passado, mas apenas lhe confere meios de se informar sobre ele.
Apoiando-me em referenciais socioantropolgicos, coletei dados tambm por meio de
entrevistas semiestruturadas (com gravao direta). Foram entrevistados cinco sujeitos. Dessa
maneira, fui ao encontro de pessoas que, generosamente, acolheram-me em suas casas e
ofcio, duas moradoras dessa rua, totalmente envolvidas na feitura dos tapetes e mestras dessa
tradio, Magda Maria Rossi e Mnica Dolabela Irrthum4. Da mesma forma, escutei duas
jovens tapeceiras que acompanham, anualmente, o momento da construo do tapete, como
tambm escutei o carismtico e solcito Padre Rogrio Messias dos Santos, que presidiu a
celebrao durante os trs anos de registros, para estabelecer com eles a dimenso de uma
cultura viva. Posteriormente, entrevistei Eduardo Ribeiro, para compreender as diferenciaes
na esttica final do tapete, que se apresentava inovadora em suas imagens visuais.
Minha atuao inicial se pautou na apresentao da proposta de pesquisa aos sujeitos
participantes, para efetuar entendimentos acerca das intenes da pesquisa e do que seria
necessrio para sua efetivao. Num roteiro previamente elaborado, a entrevista
semiestruturada foi aplicada aos sujeitos escolhidos, evitando questes avaliativas,
hipotticas, de consequncia ou mesmo categricas. Comecei
[...] partindo do pressuposto de que uma boa entrevista comea com a formulao de
perguntas bsicas, que devero atingir o objetivo de pesquisa, possvel fazer uma
anlise do roteiro para identificar a sua adequao em termos de linguagem,
estrutura e sequncia das perguntas no roteiro. (MANZINI, 2015, p.3).
Esclareo a seguir alguns dos questionamentos utilizados no roteiro da entrevista. No
entanto, nos captulos seguintes, apresent-las-ei com mais detalhes (em conformidade s
exigncias de pesquisa), no sentido de apreender dos sujeitos suas vivncias e
posicionamentos. Por meio dessa apreenso, alguns dados foram cruzados para possveis
apreciaes e reflexes sobre questes intergeracionais. As perguntas foram direcionadas e
sequenciadas por tpicos na perspectiva de indagar, inicialmente, assuntos e posies
pessoais, internos aos sujeitos, continuando com o parecer pessoal do sujeito entrevistado
sobre a dita prtica cultural-religiosa, em seus processos, formas de transmisso, apropriao
4 Cartas-convite foram enviadas aos sujeitos escolhidos, devido a sua longa participao na produo dos tapetes
do Corpus Christi, para que fossem entrevistados e reportassem suas experincias sensveis da tradio e suas
memrias das celebraes.
-
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e adaptao. Enfim, as perguntas remeteram os sujeitos aos seus posicionamentos sobre
valores e referncias diante da tradio e suas mudanas. Narrativas que representam a
memria em seus percalos, para erigir um tempo j passado, em que a
[...] felicidade de que me recordo vem mesclada a outra, que a de possui-la na
lembrana. J no me possvel separar as duas. como se fosse um presente do
instante, o fato de que tal ddiva no apenas me concedida, seno que, alm disso,
sei que nunca mais a perderei, mesmo que seja de dcadas o tempo entre um e outro
momento de evocao. (BENJAMIN apud VAZ; MOMM, 2012, p.151)
Esta dissertao est estruturada em quatro captulos. O captulo 1 Sabar: cidade em
festa e em perspectiva religiosa apresenta os delineamentos histricos da cidade de Sabar,
tanto quanto da festa do Corpus Christi, esclarecendo a respeito da religiosidade, da data do
evento na qual o contexto do Corpus Christi se estabelece, e os elementos que compem o
tapete que ornamenta essa celebrao. No captulo 2 Dom Pedro II, uma rua em festa
descrevo a cidade em sua potica, na possibilidade de apreend-la (e apresent-la) como uma
cidade em devir. Pela pesquisa participante apresento, atravs de notas etnogrficas, as
mudanas ocorridas na/e pela festa e a feitura mesma do tapete. Analiso as atuaes dos
sujeitos, antes e durante a feitura dos tapetes, tendo por foco as relaes intergeracionais e as
aes educativas. Em Cultura, patrimnio e educao, captulo 3, exponho, atravs de
reflexes e anlises sobre o processo de transmisso e apropriao dos saberes presentes na
confeco dos tapetes de serragens, as possibilidades de observ-lo como um patrimnio
cultural imaterial. E, no mbito de processos educativos, exploro suas possveis relaes de
reminiscncia e ressonncia. No Captulo 4, Sensibilidades no tempo: representaes,
leituras e narrativas visuais, estabeleo dilogos entre as sensibilidades, a histria e a
memria, esclareo sobre algumas modificaes e leituras simblicas dos desenhos utilizados
no meu percurso etnogrfico.
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22
Fotografia 02 - Por ladeiras e montanhas, Sabar. Fonte: autoral 2015. Vista da sacada de
uma das casas de estilo colonial, da Rua do Carmo.
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23
1 SABAR: CIDADE EM FESTA E EM PERSPECTIVA RELIGIOSA
Sabar
A dois passos da cidade importante
a cidadezinha est calada, entrevada.
(Atrs daquele morro, com vergonha do trem.)
S as igrejas
s as torres pontudas das igrejas
no brincam de esconder.
O Rio das Velhas lambe as casas velhas,
casas encardidas onde h velhas nas janelas.
- Carlos Drummond de Andrade -
Nos arredores da metrpole mineira, esconde-se uma cidade barroca: Sabar. Ladeada
por trs rios pertencentes bacia do So Francisco: Rio Sabar, Rio das Velhas e o Ribeiro
Arrudas, que conecta as duas cidades. A cidade cujo nome uma abreviao da palavra tupi
tesberabusu que significa5 grandes olhos brilhantes foi, h pouco mais de trezentos anos,
um arraial de bandeirantes. No sculo XVIII, mais precisamente em 1711, Antnio de
Albuquerque chegava Vila Real de Nossa Senhora da Conceio do Sabar, dois anos aps
o fim da Guerra dos Emboabas (1707-1709)6.
Com o passar dos anos, a Vila Real de N.S. da Conceio do Sabar se ampliou,
principalmente devido minerao aurfera, que proporcionou um expressivo crescimento
econmico, urbano e cultural, tornando-se, assim, uma importante cidade do perodo colonial.
Nesse processo, igrejas foram erguidas e as irmandades religiosas se implantaram. Com o
esgotamento do ouro, as minas mantiveram-se em operaes subterrneas, dando lugar
extrao de ferro com as mineradoras multinacionais. Em 12 de dezembro de 1897, a ento
capital de Minas Gerais - Belo Horizonte, fundada mediante os levantamentos e plantas do
5 O nome Sabar tem vrias interpretaes, algumas delas so corruptelas do tupi-guarani saba que significam:
enseada; meandros; ou curva de rio, e, de Itaberabuu, que significa montanha brilhante, em aluso as suas
Serras. 6
A Guerra dos Emboabas foi um conflito armado entre portugueses, imigrantes de algumas regies brasileiras e
paulistas (os bandeirantes), por conta da explorao das minas de ouro em Minas Gerais. De um lado, estava
Borga Gato no comando dos bandeirantes paulistas, que queriam o controle das minas, na alegao de t-las
encontrado. Do outro, na liderana dos emboabas, estava Manuel Nunes Viana que derrotou os paulistas e a
mando da coroa portuguesa criou a Capitania de So Paulo. Com a expulso dos bandeirantes, a Coroa deteve o
controle da explorao de ouro na regio e os bandeirantes, por sua vez, buscaram na atual regio do centro-
oeste (Gois e Mato Grosso) novas minas para extrao. O apelido emboabas dado aos forasteiros pelos paulistas
vem do Tupi pssaro de ps emplumados, uma analogia ao uso de botas pelos portugueses.
-
24
engenheiro e urbanista Aaro Reis. Entretanto, trs anos antes de sua elevao categoria de
municpio e capital, ela foi desmembrada do municpio de Sabar.
Grande parte da memria de Sabar foi sendo conservada em sua paisagem cultural e
edificada, como tambm apresentada nas prticas religiosas e de sociabilidade tradicionais,
atravs de seus patrimnios materiais7e imateriais
8. A partir de 1938, diversos bens
patrimoniais em seu centro histrico (e em demais localidades), foram tombados pelo IPHAN
- Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional.
Cristina Reis Figueira e Llian Lisboa Miranda (2012) explicam que ambos os bens
tm seus valores culturais declarados oficialmente pelo IPHAN, por meio do Livro do
Tombo e do Livro de Registro de Bens Imateriais. Os bens materiais so separados em quatro
formas de bens, de natureza cultural, que so: Livro de Tombo Histrico; Arqueolgico,
Etnogrfico e Paisagstico; das Belas Artes; e das Artes Aplicadas. Os bens tidos como
intangveis so divididos em quatro livros distintos: Livro de Registro dos Saberes; Livro de
Registro das Formas de Expresso; Livro de Registro de Lugares; Livro de Registro das
Celebraes (FIGUEIRA; MIRANDA, 2012, p. 38-39).
importante ressaltar que a partir do decreto municipal n 410/2002, que instituiu
formas de registro de bens culturais de natureza imaterial, ou intangvel, vrios registros
patrimoniais foram efetuados em Sabar, sendo esses: Formas de Expresso do Congado em
Sabar (13/05/2015); Celebrao da Festa de Nossa Senhora do Rosrio de
Sabar (13/05/2015); Celebrao da Semana Santa em Sabar, sua sede e
regionais (13/05/2015); Modos de fazer dos derivados de Bananeira em
Ravena (08/04/2015). Entretanto, dentre as manifestaes religiosas - sobretudo catlicas -
o Corpus Christi e seus tapetes no detm registro patrimonial, mesmo tendo relevncia
histrica e identitria para a cidade de Sabar9.
Para apreender memrias, interaes sociais e sensibilidades que se entretecem na
celebrao do Corpus Christi, investiguei a respeito da histria da cidade10
e essa festa
7 Imveis e mveis.
8 Costumes, festas, festejos, crendices, fazeres, saberes, danas, cantorias, ideias, tradies orais, etc.
9 Os registros esto dispostos, no site da Prefeitura de Sabar (vide: "documentaes da secretaria de cultura").
Disponvel em: . Acesso em: 04 de set. de 2016. 10
Muitos autores estudaram e escreveram sobre as antigas cidades coloniais, entretanto Sabar teve sua histria
apenas citada ou brevemente comentada em diversas obras. Essas produes revelam, em sua maior parte:
historiografias da procura por ouro na regio (Waldemar de Almeida Barbosa, 1995); a religiosidade e influncia
catlica (Caio Csar Boschi, 1986) o bandeirantismo; a sociedade colonial escravista (Kathleen Joan Higgins,
1987; Stuart B. Schwartz, 1988; Eduardo Frana Paiva, 1995); o estilo barroco (Affonso vila, 1976; Adalgisa
http://www.sabara.mg.gov.br/portal/index.php/2015-08-17-18-16-29/documentacoes-da-secretaria-de-culturahttp://www.sabara.mg.gov.br/portal/index.php/2015-08-17-18-16-29/documentacoes-da-secretaria-de-cultura
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25
religiosa ao longo do tempo e em diferentes sociedades. Compreendi, logo de incio, que
caminhar em Sabar desvendar a cidade entre seus muros e ruas, chafarizes e praas,
casares e janeles. Nos seus quintais h jabuticabais. No alto, acima dos telhados, veem-se
outros telhados - sempre acima - numa subida em que os olhos caminham at encontrar sinos,
cruzes, montanhas e o cu azul. De tal modo, busquei sensibilizar meu olhar, como um leitor
ao ler pequenas letras, para observar Sabar como um texto. Pois o olhar percorre as ruas
como se fossem pginas escritas: a cidade diz tudo o que voc deve pensar, faz voc repetir o
discurso e enquanto voc acredita estar visitando [...], no faz nada alm de registrar os nomes
com os quais ela define a si prpria e todas as suas partes (CALVINO, 1979, p.9).
1.1 A religiosidade e seu desenho na cidade
No que tange religiosidade, estima-se que 70.156 (censo 2010), dos 135.196
habitantes seguem a religio catlica apostlica romana.11
Este quadro ilustra a reminiscncia
de prticas e o domnio religioso do perodo colonial e serve como base para analises na
prtica cultural investigada.
Tabela 01 - Sabar - 2016. Fonte: IBGE.
Arantes Campos, 1998); narrativas e crnicas de viajantes (Auguste de Saint-Hilaire, 1974; Hermann Burmeiter,
1980), e as memrias de seus moradores (Maria de Lourdes Guerra Machado, 1999; Zoroastro Viana Passos,
1940), dentre outros. Dentre os autores citados, creio que somente Zoroastro Viana Passos tenha feito um esforo
de sistematizar a histria dessa cidade. 11
IBGE Dados de Sabar/MG disponveis em: <
http://ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?lang=_EN&codmun=315670&search=minas-
gerais|sabara|inphographics:-general-data-about-the-municipality>. Acesso em: 11 de out. de 2016.
SABAR/MG IBGE (2016)
POPULAO (2010) 129.269
POPULAO ESTIMADA (2016) 135.196
REA (2015) 302,419 Km
http://ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?lang=_EN&codmun=315670&search=minas-gerais|sabara|inphographics:-general-data-about-the-municipalityhttp://ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?lang=_EN&codmun=315670&search=minas-gerais|sabara|inphographics:-general-data-about-the-municipality
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Mapa 01 O trajeto da procisso. Fonte: autoral 2017. Esboo para anlise da extenso do tapete/procisso.
SABAR/MG IBGE (2013)
POPULAO (2010) 129.269
POPULAO ESTIMADA (2016) 135.196
REA (2015) 302,419 Km
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27
O trajeto do tapete o da procisso, ou poderia dizer que o percurso da procisso o
trajeto do tapete. Enfim, ambos se inscrevem no mesmo lugar e delimitam uma extenso do
poder catlico. Sua composio se inicia na Praa Melo Viana, localizada no centro da cidade,
onde encontramos inacabada a Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos, local sede do
incio da celebrao e procisso. Desse local, os tapetes coloridos enfeitam as ruas num trajeto
bem delimitado: a procisso desce a Rua Dom Pedro II, vira esquerda na Rua Comendador
Viana (antiga Rua do Fogo), depois direita na Rua do Carmo, segue pela Rua Marqus de
Sapuca e nessa direo at a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceio (Praa Getlio
Vargas). Ao todo so dois quilmetros12
de percurso parcialmente ornamentados com os
tapetes.
12
Referenciais de distncia analisados no site de busca por satlite, Google Maps. Disponvel em:
https://www.google.com.br/maps/@-19.8895994,-43.8072336,16z. Acesso em: 07 de nov. 2015.
Fotografia 03 Abaixo da Rua Direita. Fonte: autoral 2014. Foto dos
tapetes prximos esquina da Rua Comendador Viana. V-se a hstia, o
clice e as uvas no tapete que sobe rua acima.
https://www.google.com.br/maps/@-19.8895994,-43.8072336,16z
-
28
1.2 A Rua Dom Pedro II
Como mencionado na introduo, para fins desta pesquisa, houve um recorte na
extenso do tapete. Selecionado o trecho compreendido pela Rua Dom Pedro II13
, tombada
pelo IPHAN, em janeiro de 1965 (processo, n 485).
O restante das ruas foi utilizado apenas para comparao entre seus tapetes,
principalmente em trechos no tradicionais em que se utilizam, atualmente, referncias no
religiosas com uso de materiais diversos, e/ou, por no manter uma continuidade na
ornamentao de suas vias, devido presena de estabelecimentos comerciais e instalaes
afins.
A Rua Dom Pedro II se inicia na final da Praa Melo Viana e termina quase s
margens do Rio Sabar. Entre seus solares e casarios encontramos o Teatro Municipal (Casa
de pera 1819); a Casa Azul (ao n 215); o Solar do Padre Corra (o Pao Municipal); o
Solar de Dona Sofia (ao n 72) e diversas casas coloniais. No trecho inicial da rua, [...] at as
esquinas da Rua Comendador Viana e da Repblica, verifica-se conjunto de casas, em
alvenaria de adobe com beiradas em cimalha de madeira, vos emoldurados com vergas
alteadas e sobrevergas trabalhadas com janelas tipo guilhotina14
.
Ao caminhar pelas ruas de Sabar, com os sentidos em alerta, possvel perceber as
marcas de um passado, as cidades invisveis (CALVINO, 1979), que, no dia da festa do
Corpus Christi, parecem sair de sua invisibilidade, ao serem recriados ritos, cultos, cortejos.
Essa apreenso foi sendo lentamente construda ao observar, na noite que antecedia a
celebrao, aquele mesmo lugar - a Rua Dom Pedro II - na efervescncia crescente do
processo de composio dessa festa, o que remete ao que diz Lana Mara de Castro Siman
(2013) a respeito da leitura das cidades na perspectiva da histria cultural e das sensibilidades:
[...] ler a cidade no presente, na sua relao com o passado e o futuro, requer o
desenvolvimento das sensibilidades auditivas, visuais, tteis (e por que no
olfativas?); requer a observao das mincias, [...] pelas camadas do tempo que se
declaram e se indiciam na sua materialidade e simbologia (SIMAN, 2013, p.47).
13
Rua Dom Pedro II: conjunto arquitetnico e urbanstico (Sabar, MG). Disponvel em:
http://portal.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Linha=tc_hist.gif&Cod=1427. Acesso em: 05 de nov. 2015. 14
Idem. Acesso em: 29 de jul. 2016.
http://portal.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Linha=tc_hist.gif&Cod=1427
-
29
Dessa forma em um andar vagaroso e uma leitura com os culos de ver de longe, de
perto e meia distncia, pode-se perceber como memrias foram materializadas construindo
palcos para apresentar aos espectadores e aos atores do presente, em suas diversas formas,
seus registros e escolhas diante do passado e da memria.
Le Goff (1990), dentre outras ideias sobre a memria, chama a ateno para o fato de
que em um mesmo tempo cronolgico coabitam diversas memrias, o que faz com que elas se
ressignifiquem. Le Goff esclarece que as expresses artsticas, celebraes, ritos e lugares,
enfatizam os limites da memria, de sua permanncia e esquecimento. Desse modo, a
memria pode ser utilizada como meio simblico para promover reflexes, e, por exemplo,
transformar espaos em pontos de controle, no domnio do recordar-esquecer dum certo
lugar, ou evento. Dessa maneira, ela capaz de provocar questionamentos, como as
significaes dos patrimnios, ou, mesmo, nos interrogar sobre os sentidos educativos de
determinadas datas, bem como seu desaparecimento numa narrativa histrica. Assim:
Pesquisa, salvamento, exaltao da memria coletiva no mais nos acontecimentos,
mas ao longo do tempo, busca dessa memria menos nos textos do que nas palavras,
nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; uma converso do olhar histrico.
Converso partilhada pelo grande pblico, obcecado pelo medo de uma memria, de
uma amnsia coletiva, que se exprime desajeitadamente na moda retr, explorada,
sem vergonha, pelos mercadores de memria, desde que a memria se tornou um
dos objetos da sociedade de consumo que se vendem bem (LE GOFF, 1990, p. 472).
1.3 Sobre flores
Bem antigamente usvamos flores [...].
- Magda Rossi -
A prtica de enfeitar as ruas e acessos virios para receber o sagrado manifesto
remonta ao uso de oferendas ao divino e na representao do drama social. Os antigos tapetes
eram ornamentaes de cunho popular, realizadas como meio expressivo de crenas religiosas
-
30
na Europa. Em perodos medievais tal prtica contextualizava relaes diretas entre a ddiva15
(MAUSS, 2003) e a retribuio, estabelecendo influncias no uso de calendrios agrcolas
para a manuteno e prtica dessas tradies.
Nesse contexto, a dimenso religiosa tambm estava intrinsecamente relacionada com
a vida agrria. Unido manuteno dos alimentos e da vida social (cultura de subsistncia), os
mitos estabeleciam-se no seio do paganismo europeu. Celebraes nas formas de festivais,
festejos, festas e ritos cclicos, homenageavam a abundncia da vida e o respeito pela morte.
Na obra o Ramo de Ouro16
, James Frazer (1982, p. 337) analisa prticas semelhantes,
descritas no captulo 5 Os Espritos dos gros. Nesse captulo, ele afirma que a presena
das prticas pags nos festivais da colheita, dos gros e primaveris era ligada fertilidade e
morte.
Estudos sobre os processos histricos e culturais de antigas prticas, ritos, e de
procisses pags, anteriores chegada do cristianismo em terras nrdicas, apontam que
tapetes de flores e gros eram produzidos como parte de seus cultos, da mesma forma que
algumas honrarias eram efetuadas para as divindades germnicas17
. Atravs dessas anlises
compreende-se que uma representao simblica era estabelecida nas relaes de devoo e
retribuio. Nelas, agrados, presentes e doaes constituam ligaes com o divino e
asseguravam a fertilidade e a segurana (entre outras), mediante as trocas, ddivas e oferendas
para o sagrado. O mesmo procedimento que pode ser observado nas religies afro-brasileiras
com a oferta de alimento, ou comida ritual, como: o Abar e o Eb18
(por exemplo). Tanto
quanto as cantigas, rezas, danas e outros costumes realizados como oferta aos seus deuses, os
Orixs.
Numa entrevista realizada com o Proco Rogrio Messias dos Santos, fica evidente a
presena desse contrato religioso que, como os conceitos da retribuio, [...] da redeno,
do castigo, da ddiva, da abnegao, das ideias relativas alma e imortalidade [...] so ainda
a base da moral comum (HUBERT; MAUSS, 1981, 307).
15
Prestar servios, num contexto antigo e primitivo, faz direta aluso ao conceito da ddiva - presentear
ofertar, oferendar. A ddiva estabelece trs obrigaes correlatas: dar, receber, retribuir (Mauss, 2003, p. 187,
199, 200 e 243). 16
Este um novo resumo da edio em treze volumes de The Golden Bough, que foi feito com a gentil
permisso de The Council - Trinity College - Cambridge (descrio retirada da prpria obra). 17
Odin; Freyr; Balder; Loki, dentre outras divindades do panteo nrdico. 18
Abar, tal como o acaraj, uma comida ritual tpica do candombl. Uma espcie de bolinho cozido (o que o
diferencia do acaraj, que frito), feito de feijo fradinho recheado com camaro e envolvido em folha de
bananeira. O Eb, palavra oriunda da lngua iorub, consiste num alimento religioso e votivo a certos orixs. Ele
composto de milho branco cozido sem tempero, ou sal.
-
31
Padre Ele nos deu tudo. A gente no tem nada para oferecer ao Senhor.
igualzinho a um filho que compra um presente para o dia dos pais, mas d a conta
para o pai pagar. Ento mais ou menos isso que a gente faz.
O tapete uma forma de oferecer a Deus o meu trabalho [...]. O meu sacrifcio
[...]. E dizer pra ele: a gente est oferecendo ao Senhor, tudo aquilo que o Senhor
nos deu.
Mauss (1974), na obra Ensaio sobre a ddiva, forma e razo da troca nas sociedades
arcaicas j evidenciava as formas de trocas estabelecidas como vnculos sociais, como
reciprocidades. Ao analisar um poema escandinavo, o autor situa que: Na civilizao
escandinava e em muitas outras, as trocas e os contratos se fazem sobre a forma de presentes,
em teoria, voluntrios, na verdade, obrigatoriamente dados e retribudos (MAUSS, 2003,
p.187). Na mesma obra, o autor analisa e compara o mesmo fato em outras sociedades como a
polinsia, a melansia e a americana.
As referidas prticas cumpriam o papel de um culto por se relacionarem com a
fertilidade, pelo enfoque mimtico da natureza. Ou seja, a natureza e suas fases eram
observadas como manifestaes de suas divindades e apresentadas em cultos agrcolas, na
prpria colheita, como gros. A religiosidade ressaltava tanto a vida quanto a morte como
expresses de fora e poder presentes em seus deuses. O promissor renascimento no gro
era tido como um dos principais pontos em que os mitos e os ritos, narrados pelos ciclos
solares, descreviam suas liturgias. Possveis analogias desses cultos podem estar presentes
hoje em dia, na liturgia catlica do Sacramento (FRAZER, 1982).
possvel que os primeiros tapetes nas procisses crists tenham se iniciado na
Europa, no perodo medieval, sendo compostos por diversos tipos de folhagens e flores
coloridas. Em Sabar, os tapetes tambm eram compostos, inicialmente, por folhagens e
flores, para delimitar o espao de trnsito e enfeitar a procisso religiosa. Alm de embelezar
o caminho, esse costume demonstra que muitas mudanas sociais ocorridas ao longo do
tempo podem ser percebidas por meio da modificao desses materiais. Como o Pe. Rogrio
esclareceu:
No incio o povo colocava flores. As flores da poca: bico-de-papagaio, por
exemplo [...] ficava tudo florido, tudo bonito [...] Ele era grande, enchia [a rua]. E
quem no tinha nada para colocar, colocava folhas de abacate. Iam ao abacateiro
[risos] apanhavam as folhas do abacate e punham em frente casa, para a
procisso passar. Era uma homenagem ao Senhor, mas, com coisas bem simples, de
corao.
-
32
Antes o povo punha flor do campo, porque eles no tinham dinheiro. O povo usa o
que havia no local. Por exemplo, aqui, em Sabar, ns quase no vemos o uso do p
de caf mais. Quase no se v cobrir mais as tampinhas. O pessoal usa serragem
para substituir tudo [...] colorem com as serragens. E o entorno que seria de
tampinhas, fica uma parte de uma cor [de serragem], e a outra parte de outra cor.
Por qu? Porque a cidade tem madeireiras e algumas delas j vo reservando, j
vo guardando as serragens. Ento a prefeitura tem apenas o trabalho de busc-
las, na madeireira.
O uso das flores alusivo aos festejos do ciclo das flores, ou dos festivais da
primavera, ainda presentes em Portugal, Blgica e Itlia (por exemplo). Numa entrevista com
Magda Maria Rossi, uma das duas principais tapeceiras da Rua Dom Pedro II, o significado
do uso das flores nos tapetes de Corpus Christi aparece na seguinte descrio:
Magda: Bem antigamente usvamos flores [...] a gente jogava ptalas de rosas.
Comeou assim, [...] No tinha esse lado formado no, era pra enfeitar mesmo - por
exemplo - mangueira, sabe?! Desfolhvamos aquelas folhas, e jogvamos na rua.
[...] Jogvamos, pra enfeitar a rua.
Fotografia 04 - Sobre serragens, flores. Fonte: autoral 2015. Na frente da floricultura, flores naturais so
colocadas sobre as serragens para decorao do tapete.
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33
Interessante notar que, embora a maior parte dos povos pagos do continente europeu
tenha sido submetida ao cristianismo, muitas de suas tradies foram incorporados nos rituais
cristos. A Semana Santa, por exemplo, tem incio no hemisfrio norte junto primavera, e o
Corpus Christi em seu fechamento, prximo ao vero. No hemisfrio sul, por sua vez, essa
celebrao se localiza no chamado Tempo Comum (ordinrio), que se encontra entre os ciclos
Pascal e Natalino. A figura abaixo sintetiza esses ciclos19
:
A regenerao natural da vegetao que se estabelece entre o final do inverno e a
primavera, em especfico no hemisfrio norte, local do nascimento dessa prtica, se assemelha
ao renascimento simblico de Cristo. Giulio Andreotti (2003) aponta o uso das flores na festa
do Corpus Christi em Genzano, Itlia, como procedente festa chamada de Infiorata.
[...] A Infiorata, que h dois sculos realiza-se na cidadezinha de Genzano, no dia
de Corpus Christi, originando uma magnfica manifestao de arte popular, com a
realizao de tapetes floreais de dois mil metros ao longo de toda a rua que leva
igreja, de onde parte o Sacramento em honra do qual se faz este singular enfeite
sobre as ruas. Com legtimo orgulho os cidados explicam como so realizados estes
quadros; com a seleo dos esboos cujo esquema ser desenhado sobre o
calamento e confiado aos infioratori que trabalham com as flores. H a paciente
coleta de 350 mil flores (alm das essncias vegetais) que so conservadas nas
grutas da pequena cidade com um minucioso trabalho de separao de ptalas das
corolas. Mas tambm devem ser ouvidas com interesse algumas crnicas de edies
passadas dessa singular manifestao que chamou a ateno e escreveram sobre
19
Disponvel em: http://universovozes.com.br/editoravozes/web/view/BlogDaCatequese/index.php/calendrio-
litrgico-o-tempo-comum/. Acesso em: 21 de ago. de 2016.
Figura 01- Os ciclos catlicos. Fonte:
universovozes.com.br. 2016.
http://universovozes.com.br/editoravozes/web/view/BlogDaCatequese/index.php/calendrio-litrgico-o-tempo-comum/http://universovozes.com.br/editoravozes/web/view/BlogDaCatequese/index.php/calendrio-litrgico-o-tempo-comum/
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34
isso de literatos como Gogol e Andersen, mas tambm de personagens como
Massimo DAzeglio e Garibaldi que, convidado pelas autoridades de Genzano para
passar sobre o grande tapete de flores, absteve-se dizendo: Certas coisas divinas
no se pisam [...] (ANDREOTTI, 2003).
1.4 A celebrao do Corpus Christi
O catolicismo narra o nascimento da festa20
de Corpus Christi como procedente de
Lige (Blgica), no sculo XIII. Nesse local, Juliana de Cornion, em epifania, assegurou ter
visto Cristo dando-lhe evidncias de que seu desejo era que a Eucaristia21
, o sacramento,
fosse confirmada em destaque nas celebraes (SANTOS, 2005).
Beatriz Cato Cruz Santos (2005, p.24-26) descreve que, por meio da bula
Transiturus, o Papa Urbano IV instituiu a extenso da festa para toda cristandade. So Toms
de Aquino, por sua vez, preparou, a pedido de Urbano IV, todas as liturgias que at hoje so
utilizadas na celebrao do Corpus Christi. Beatriz Santos (2005, p.29) reproduziu, pela
traduo de Incio Barbosa Machado, parte da Bula papal, que dizia [...] na solenidade da
missa frequentamos este venervel sacramento, contudo, nos pareceu conveniente e acertado,
que, ao menos uma vez a cada ano, faa-se deste sagrado Mistrio particular memria22 [...].
Dessa forma, a tradio percorreu os sculos chegando mais tarde a Portugal e em demais
terras lusitanas como em Algarve e nos Aores, tendo desaguado, futuramente, no Brasil.
Como explana La de Freitas Prez (2011, p.103), a tradio da festa de Corpus
Christi, teve incio em Ouro Preto como a primeira festa com registro documental em Minas
Gerais. Anunciada como exposio artstica popular, em Vila Rica, a festa foi localizada no
chamado Triunfo Eucarstico (1733). Marco da trasladao do Santssimo Sacramento da
Igreja do Rosrio conduzido at a Igreja do Pilar. A festa teve a ateno da guarda do
Santssimo pelos negros do Rosrio at culminar na construo da Matriz do Pilar. Por meio
20
Nesta dissertao o Corpus Christi foi considerado e compreendido, como uma festa sagrada (AMARAL,
2012, p.76), que ser explorada no captulo 2. 21
Corpus Christi uma festa devotada ao Corpo de Deus, ou Corpo de Cristo. uma data adotada pela Igreja
Catlica, para comemorar a presena real de Deus no sacramento da Eucaristia. Corpus Christi, no Brasil,
considerado um feriado nacional. A alterao, ou variao de sua data em cada ano calculada como sendo a
primeira quinta-feira aps a Festa da Santssima Trindade, ou mesmo sessenta dias depois do domingo de
pscoa. Sua comemorao acontece numa quinta-feira, em referncia Quinta-Feira Santa, que nas narrativas
bblicas, faz referncia ltima ceia dos seguidores de Cristo, os apstolos, com Jesus, conhecida como
Eucaristia. Na ceia, Cristo d simbolicamente sua vida aos seus seguidores e assinala para que comam o po e
bebam o vinho que seriam seu corpo e sangue transformado em alimento e f. 22
Grifos da autora.
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disso, Prez descreve que: A festa foi cuidadosamente preparada durante vrios dias.
Luminrias enfeitaram a cidade, colchas de seda e damasco ornavam as janelas. Arcos foram
dispostos ao longo das ruas (PREZ, 2011, p.103).
Padre Rogrio, em meio s perguntas e explicaes to caras para esta pesquisa,
esclareceu sobre o significado do Corpus Christi23
da seguinte maneira:
Na verdade, a festa de Corpus Christi uma extenso da Semana Santa [...]. Ns,
na quinta-feira santa, celebramos a entrega de Cristo por ns, quando Ele na ceia,
se entrega como corpo e sangue - para ns - no po e no vinho [...]. Assim a Igreja
celebra a festa de Corpus Christi, depois que passam cinquenta dias da celebrao
da Pscoa, que a festa de Pentecostes. No domingo seguinte, temos a Festa da
Santssima Trindade, e na prxima quinta-feira, aps essa festa, temos o Corpus
Christi. Para os judeus a celebrao das cinco vitrias de guerras santas vividas
por eles [...] j para os cristos, a descida do Esprito Santo narrada em atos dos
apstolos [...] tudo isso se resume na Festa.
Em 1961, o Brasil integrou a festa no seu calendrio e manteve a continuidade da
tradio como pertencente cultura popular brasileira.
1.5 Sobre serragens, a cor e os leigos
Cada homem deve inventar o seu caminho.
- Jean-Paul Sartre -
No sculo XVIII, a utilizao da serragem como material opcional e inovador ao uso
das flores denotava envolvimentos diretos com a ocupao e a formao sociocultural em
Minas Gerais. Aps a Reforma Pombalina (1759), com a expulso dos Jesutas do Brasil e de
Portugal, as ordens terceiras e corporaes junto s irmandades religiosas organizaram-se
como um mecenato leigo e deram o arcabouo necessrio proliferao/disseminao
religiosa da vigente esttica do estilo barroco. Estabeleciam-se, assim, nas ricas cidades
mineradoras dessa Capitania como Ouro Preto, Sabar, Mariana e So Joo Del Rey, uma arte
que oferecia suporte espiritual e imprimia na
http://pensador.uol.com.br/autor/jean_paul_sartre/
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[...] vida da sociedade mineradora os seus padres tico-religiosos [...] impondo s
manifestaes criativas os seus valores e gostos estticos. Sem essa unidade de
conformao filosfica jamais seria possvel a sedimentao de uma cultura to
autntica em sua individualidade, fenmeno no de uma contingncia histrico-
regional, mas de uma polarizao de virtualidades tnicas da gente colonizadora que
aqui encontrariam condies excepcionais de expanso e afirmao (VILA, 1980,
p. 231-232).
Fritz Teixeira de Salles (2007), atravs de estudos sobre as associaes religiosas no
ciclo do ouro, aponta que as ordens terceiras, em especial (para essa pesquisa), a Irmandade
do Santssimo Sacramento se estabeleceu em Sabar, no ano de 1710 - sediada na Matriz - por
meio dos homens brancos. Salles relata que a irmandade teve origem a partir da ideia de se
organizar ampla divulgao em torno do mistrio do sacramento da eucaristia. Trata-se da
transformao do po e do vinho na prpria carne e no sangue de Deus (SALLES, 2007,
p.61). Conforme o autor, no sculo XIII, mais precisamente em 1264, o Papa Urbano IV deu
incio festa do Santssimo Sacramento, originando a Irmandade, promovendo sua
continuidade e a celebrao do dito sacramento, numa quinta-feira.
Aps mais de trezentos anos, em 1582, o papa Gregrio XIII concedeu:
[...] a esta ordem o privilgio de realizar anualmente a procisso do Santssimo,
assim como de expor a Eucaristia no dia de Corpus Christi. No sculo XV j estava
em Lisboa, devidamente instalada, a Ordem do Santssimo Sacramento. Toda corte
lisboeta comparecia procisso por ela realizada com o corpo de Deus
sacramentado. Nessa ocasio, realizava-se, em Lisboa, a exposio do Santssimo,
to usual em Minas e em todo o Brasil colonial. (SALLES, 2007, p.61).
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Numa interpretao histrica, a movimentao social das irmandades leigas e ordens
terceiras estabeleceu o controle de festas, procisses, construes de templos; assim como,
tambm, o controle da realizao de atividades judiciais, econmicas, polticas, e, claro,
religiosas, diante da cena cultural mineira do perodo colonial24
. As irmandades,
24
J em meados do sculo XX, a Igreja catlica reuniu por meio da bula papal Humanae salutis instituda pelo
ento pontfice Joo XXIII, o Conclio Vaticano II. Essa convocao teve como pauta discutir e regulamentar
temas plurais da Igreja, na pretenso de atualizar questes internas para salvaguardar, por meio da tolerncia e da
liberdade religiosa, a prpria instituio catlica. Dentre as diversas decises tomadas acerca de como enfrentar
os problemas contemporneos da Igreja Catlica, alguns pontos foram salientados no que diz respeito liberdade
dos leigos em compor e de certa forma dirigir questes relativas liturgia catlica. Com a renovao das prticas
da pastoral da Igreja, foram estabelecidas adaptaes na participao dos leigos de forma mais efetiva na Igreja,
assim, tambm, foi reconhecida a sua responsabilidade pela expanso e manuteno das prticas religiosas no
ocidente. A participao efetiva dos leigos na misso da Igreja veio atravs do decreto Apostolicam actuositatem,
aprovado em 18 de novembro de 1965, reconhecendo o papel dos leigos e seu apostolado24
, na sua autonomia e
funo de manter, propagar e defender o catolicismo.
Fotografia 05 A Irmandade do Santssimo. Fonte: autoral
2015. Na procisso segue a irmandade do santssimo. Trajando
as Opas vermelhas, como caracterizao de sua guarda ao
sagrado, a irmandade leva alguns instrumentos rituais, como
velas e cruzes.
https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Apostolicam_actuositatem&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/wiki/18_de_novembrohttps://pt.wikipedia.org/wiki/1965
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[...] ordens terceiras e confrarias religiosas foram instituies fundamentalmente
marcadas pela participao ativa dos leigos na organizao da vida religiosa. Desta
forma, grande parcela da sociedade, que inclua homens e mulheres tanto das
camadas mais pobres quanto das mais abastadas, agremiava-se nelas com o intuito
de cultuar seus santos, buscar a proteo diante das contingncias da vida e da
morte, encontrar pessoas, estabelecer relaes e praticar a caridade (GOMES, 2009,
p.01).
Salles (2007, p.71), em breve relato, apoiado em informaes de Zoroastro Passos,
enfatiza a numrica predominncia das irmandades de cor, pardas e negras, sobre as brancas.
Com esse dado, pode-se presumir que as relaes estticas e simblicas estabeleciam-se
atravs da arte barroca, para o engrandecimento e exposio da Igreja e dos cdigos
catlicos, sobre as demais formas de culto afrodescendente presumivelmente atravs das
festas.
As festas e suas ornamentaes descreviam a riqueza e o poder das vilas e cidades,
como nos conta La Prez (2011, p. 104 apud Souza, 2001, p.186), elucidando que: Tudo
reluzia em ouro e prata, tudo faiscava em pedras preciosas, traduzindo a euforia da sociedade
mineradora, opulenta, desigual e arrivista. A esse respeito, o Padre Rogrio M. Santos
esclarece
P Quem organiza essa festa? Existem donativos, para que esses tapetes possam
ser feitos? A prefeitura auxilia de alguma forma?
Padre Olha... A festa sempre organizada pela irmandade do Santssimo
Sacramento. Ento, ns temos essa irmandade, tanto na Igreja do Rosrio, quanto
na Igreja Nossa Senhora da Conceio. No so eles que confeccionam os tapetes,
os tapetes so confeccionados pelos jovens, pelos moradores das ruas tradicionais.
E, quem colabora sempre a Prefeitura Municipal. A Prefeitura Municipal j traz a
serragem, oferece a cal - oferece o xadrez - que vai ser usado para pintar.
Geralmente a prefeitura que oferece isso, a gente entrega na Secretaria de
Cultura a lista do material de que precisa, e a eles providenciam com
antecedncia..
A populao, sem recursos, fez uso das serragens como adequao ao uso das flores e
outros materiais onerosos, como o pano. Por meio do uso das serragens, a tradio lusitana se
dinamizou, criando, num contexto setecentista mineiro, uma prtica cultural leiga.
Segundo Roque Laraia (2001), a dinamizao da cultura uma resposta capacidade
que o homem tem de questionar seus prprios hbitos e modific-los. Cada cultura possui o
seu prprio ritmo e tempo, sofrendo alteraes ao longo deste. Dentre essas modificaes, o
autor cita as relaes com os mtodos tradicionais como nas sociedades indgenas, ele
descreve que:
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[...] muito antes de conhecer o machado de ao, os nossos indgenas tinham a
conscincia da ineficcia do machado de pedra, por isso, o nosso machado
representou um grande item na atrao dos ndios [...]. Sociedades indgenas
isoladas tm um ritmo de mudana menos acelerado do que o de uma sociedade
complexa, atingida por sucessivas inovaes tecnolgicas (LARAIA, 2001, p. 95).
Sob essa perspectiva, mudanas tambm podem surgir do contato dessa sociedade
esttica com uma nova sociedade, atravs do uso de um novo instrumento, ou mesmo por
meio da vinda de uma nova gerao. De toda forma, qualquer sistema cultural est num
contnuo processo de modificao e as mudanas atribudas pelo contato com outras culturas
no representam um salto de um estado esttico para um dinmico, mas antes a passagem de
uma espcie de mudana para outra. O contato externo muitas vezes estimula uma mudana
mais brusca, geral e mais rpida do que as foras internas.
A histria do uso das serragens como material para a produo dos tapetes tem incio
com as irmandades religiosas, como material dinamizador de uma tradio. O uso desse
material constitui dois tipos de mudanas: uma que interna (como apontado anteriormente),
resultante da dinmica do prprio sistema cultural e geracional25
e outra que o resultado do
contato de um sistema cultural com outro. O entendimento dessa dinmica se torna importante
para atenuar o choque presente entre as geraes.
Diante das classes e estamentos da sociedade colonial, as demarcaes de hierarquia e
status constituam competitividades a fim de provocar disputas pelo controle das ordens no
sentido poltico e econmico, dentre outros, nesse contexto, as posies sociais entre as
irmandades religiosas e a sociedade colonial mineira, como um todo, eram recorrentes e
observadas pelas alegorias enunciadas nessas dataes, sobretudo, na festa do Corpus Christi.
25
A abordagem geracional ser discutida no captulo 3.
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O luxuoso tapete das irmandades ricas aponta para o uso de materiais e recursos
sofisticados, na pretenso de expressar seu poder cena societal. Irmandades como a N. S. do
Carmo no detinham apenas os templos mais pomposos, elas mantinham as decoraes de
seus ritos e festas em uma mesma escala. Para tal, as ornamentaes dos tapetes de Corpus
Christi no fugiam regra. Diversos padres estticos, como o uso de flores e adornos mais
caros, eram adotados pelas irmandades ricas num intento de copiar a abastada sociedade
lisboeta, suscitando demarcaes de poder na disputa por proeminncia social.
[...] Com o apogeu da minerao, as festas adquirem uma feio ainda mais
exibicionista e pomposa. Sabe-se, por exemplo, das ferrenhas disputas entre
irmandades religiosas pela realizao da mais rica e mais exuberante festa de santo
padroeiro. a festa barroca que irrompe na cena societal brasileira. (PREZ, 2002,
p.3).
As flores e tecidos, sendo caros, suscitaram, com o tempo, a presena de materiais que
se adequassem ao contexto sociocultural local, para uma festividade popular. Por sua vez, a
Fotografia 06 Sacos de serragens e flor de lis
estilizada. Fonte: autoral 2015.
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serragem surgiu como um material alternativo, inovador, ofertando aos artfices e ao
povoado uma esttica leiga, contudo, inovadora. Esse material se adequou ao contexto
socioeconmico da maior parte da populao e ao estabelecimento da coletividade na
participao ativa da festa e, por sua vez, do rito. O material possibilitou uma promoo e
trnsito entre as diferentes nivelaes hierrquicas, aproximando, tal como a festa, camadas
distintas num s cenrio, [...] festa por contemplao, porque procurava envolver seus
participantes atravs dos sentidos. Como uma produo da cultura barroca, concedia ao
sentido da viso um lugar prioritrio. [...] (SANTOS, 2005).
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42
Fotografia 07 - Festa e cor em louvor. Fonte: autoral 2015. Na procisso, membros da Irmandade do Santssimo caminham levando lanternas, de forma a iluminar o caminho do Corpo
de Deus. Provvel reminiscncia de procisses noturnas.
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43
2 DOM PEDRO II, UMA RUA EM FESTA
H muito tempo os profetas tinham certeza de que o
harmnico desenho do tapete era feitura divina;
interpretou-se o orculo nesse sentido, sem dar espao pra
controvrsias. Mas da mesma maneira pode-se chegar
concluso oposta: que o verdadeiro mapa do universo seja
a cidade [...] uma mancha que se estende sem forma, com
ruas em ziguezague [...].
- talo Calvino -
Neste captulo, atravs da perambulao e observao sensvel do centro histrico da
cidade, registram-se, em notas descritivas, olhares e poticas, como uma possibilidade de
enxergar uma rua dessa cidade sob o desgnio de uma cena festiva. Nessa inteno, o objetivo
primeiro transportar o leitor para aquilo que os sentidos apreenderam, e, neste mesmo
movimento contextualiz-lo por intermdio de relatos etnogrficos, o que se v e o que foi
transformado por meio da festa. No decorrer dessa caminhada, estabeleceram-se correlaes
entre a festa e a cidade como um possvel panorama para recordaes e para instaurao de
uma memria coletiva em sua relao com o presente. Durante esse percurso, ajustam-se o
foco das lentes para capturar algumas dimenses educativas presentes numa cidade em festa.
A viso potica da cidade, descrita em Calvino, acompanha-nos enquanto andamos
pelo centro de Sabar fitando suas modificaes diante do tempo e das memrias. Possveis
imaginrios que instituem as vrias Sabars como uma cidade em um devir: [...] que
considerado necessrio, mas, ainda no ; [...] o que se imagina possvel e um minuto mais
tarde deixa de s-lo (CALVINO, 1979, p.16). Cidade(s) preenchida(s) por particularidades.
Em Sabar comum chegar e visitar sua delicada Igreja do , assim como o incomum
cemitrio de gavetas frente da Igreja de Nossa Senhora do Carmo. provvel que tambm
se oua algumas narrativas de perodos escravistas; por que no as histrias de um chafariz
que faz voltar cidade aquele que beber de suas guas?! Seja como for, assim convenciona
talo Calvino (1979), a cidade composta por diferenas, por desejos e olhares mpares: tal
como seus habitantes.
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Na possibilidade de notar as diferenas de um percurso possvel perceber, com o
andamento da pesquisa, no uma, mas vrias cidades. Uma delas foi observada e conferida
sobre seu cotidiano, no ritmo acelerado dos afazeres corriqueiros: da venda que abre as portas
pela manh, senhora que varre o cho pela tarde, quando o sol se pe. Entretanto, as outras
cidades tambm foram notadas: a cidade-festa; a cidade-palco; a cidade-cenrio, em
espetacularizao diante do desfecho religioso, que foram novamente reencontradas. De tal
modo que outra cidade desvela-se no extraordinrio do cotidiano (SIMAN, 2013, p. 42).
Fotografia 08 Cidade-cenrio. Fonte: autoral 2015. Smbolos
como a flor-de-lis, o peixe e arabescos esto presentes nas composies
em serragens, na Rua D. Pedro II.
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Nessa outra cidade - na cidade-festa - a plasticidade dos ornamentos compe um novo
exterior. Novo, porm paradoxalmente antigo, j que evoca os mesmos feitos de uma tradio
centenria. Para perceber essas nuances no tempo e da histria mesma desse local - antiga
Rua Direita - foram (como j citado) observadas modificaes nesse processo. Para que essas
modificaes e as sensibilidades de dois tempos fossem percebidas, e, possivelmente,
diferenciadas, tive que afinar meu olhar para entend-las mediante aos materiais utilizados
pelos tapeceiros e pela forma em que eram tratados enquanto tcnica, assim como sua
iconografia. De tal forma, foi observada a possibilidade de um educar pelas ruas da cidade,
em uma cidade possvel que,
[...] fruto do pensamento, como uma cidade sensvel e uma cidade pensada, urbes
que so capazes de se apresentarem mais reais percepo de seus habitantes e
passantes do que o tal referente urbano na sua materialidade e em seu tecido social
concreto (PESAVENTO, 2007, p.14).
Possvel tambm foi perceber a cidade enquanto espao simblico transformado
cotidianamente por seus habitantes, passantes e viajantes, as suas sensibilidades. Todavia, a
cidade-sensvel de Pesavento (2007), entrecruza-se s cidades invisveis de Calvino,
quando este admite que:
A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordaes e se
dilata. [...]. Mas a cidade no conta o seu passado, ela o contm como as linhas da
mo, escrito nos ngulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimes das escadas,
nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento por arranhes,
serradelas, entalhes esfoladuras. (CALVINO, 1979, p.7)
Passantes, viajantes, caminhantes, habitantes, conceitos que se expressam na
performance de um trajeto, na procisso, ao encontro do sagrado, em busca da epifania.
Quando a travessia foi realizada nas ruas dessa cidade em devir festivo - ao final -
no momento pice da festa (a procisso), fica claro que o trabalho com as serragens havia
materializado uma tradio, periodicamente renovada. Ficou claro, tambm, que a criao da
festa, pelas possibilidades e vontades dos sujeitos envolvidos consolidou um desejo - em
confluncia s distintas teias de significados (GEERTZ, 1989). Na procisso, os atores se
uniam para cena de um espetculo, para usufruir de sua prpria tradio, agora em
celebrao.
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A apreenso dessa outra realidade, desse novo texto, ou deste, quem sabe,
palimpsesto26
, reverberou como entendimento daquilo que, h muito, desde a infncia, nesses
tempos de procisso junto famlia, tm nos instigado, mas que pouco compreendemos.
Aprende-se que:
[...] H uma superposio de camadas de experincia de vida que incitam ao
trabalho de um desfolhamento, de uma espcie de arqueologia do olhar, para a
obteno daquilo que se encontra oculto, mas que deixou pegadas, talvez
imperceptveis, que preciso descobrir (PESAVENTO, 2005, p.26).
Por intermdio das descries dos dados colhidos em entrevistas, foi possvel acessar
tambm as compreenses sensveis da cidade e do tempo, tanto quanto da percepo das
sensibilidades de outro no tempo (PESAVENTO, 2007). O que equivale dizer, o sujeito no
prprio presente.
26
Papiro ou pergaminho em que o texto inicial foi retirado, para dar lugar a outro.
Fotografia 09 A procisso em frente prefeitura. Fonte: autoral 2015. Ao descer a rua D. Pedro II, em
frente ao antigo Solar do Padre Corra, Pe. Rogrio Messias dos Santos abenoa os poderes terrenos.
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2.1 Irms em cores, irms em f
Irms, no. Mas sinceramente, a primeira impresso que se tem quando encontramos
com elas: Magda e Mnica. Quando as conheci apelidei-as de irms em f, em anotaes dos
dirios de campo, de forma carinhosa, no apenas pelas iniciais dos nomes, mas por terem em
comum o gosto e o prazer pelas tradies religiosas mineiras, especialmente, por suas festas
populares.
Encontrei Mnica em 2010, trabalhando como recepcionista em um curso de ingls,
na Rua Dom Pedro II, recorte desta pesquisa, em frente ao Solar que sedia a Prefeitura de
Sabar. Magra, alta, de cabelo castanho claro e curto, com um sorriso refinado e um cigarro
entre os dedos, de incio, pareceu-me, devido aos movimentos e a fala equilibrada que seria a
diretora, do curso. Com o tempo, uma pequena amizade - entre breves boa noite e eu j
paguei?! - marcaram em minha memria sua face e personalidade.
Fotografia 10 - Mnica tapeceira de cores. Fonte:
autoral 2015. Sentada na rua, Mnica preenche o
arabesco no molde de papel craft, com serragens azuis.
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Chegado o dia do festival de Corpus Christi, em 2014, enquanto fotografava as
ornamentaes das ruas (em pleno vapor), encontrei-me com Mnica, sentada no cho da rua
D. Pedro II, preenchendo com serragens um longo desenho feito sobre um molde de papel
craft. Ela, ao me ver fotografando, mais que depressa, deu-me um breve puxo de orelhas,
dizendo: Fred... Vai ficar a, s fotografando?! Pode pegar um saco ali, ! E vir ajudar, t!?
[...] T aposentando! Por que no traz seus alunos, pra ajudar a gente a enfeitar a rua?!.
Um tanto sem jeito, disse-lhe que teria que fotografar todo o percurso da procisso, mas que,
no futuro, iria entrevist-la e ajud-la na confeco dos tapetes.
O mesmo se repetiu em 2015. Mas, em 2016, efetivei minhas promessas, encontrando-
me com ela (Mnica) e com sua irm em f, Magda Rossi. Tal como Mnica