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TARRAFARevista Científica

Universidade do Estado da Bahia

TARRAFARevista do NUPE (Núcleo de Pesquisa e Extensão)

do DEDC I / UNEB

Salvador2017

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TARRAFA TARRAFARevista Científica Revista Científica

EXPEDIENTE

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEBReitor: José Bites de Carvalho

Vice-Reitora: Carla Liane Nascimento dos Santos

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS IDiretor: Valdelio Silva

NUCLEO DE PESQUISA E EXTENSÃO DO DEDC I - NUPECoordenadora: Ana Cláudia Lemos Pacheco

COMISSÃO DE EDITORAÇÃOEditor Geral: Luciano Sérgio Ventin Bomfim

Vice-editora Geral: Cecília Conceição Moreira Soares

Editor Executivo: Marcos Aurélio dos Santos Souza

REVISÃO: Marcos Aurélio dos Santos Souza

CONSELHO EDITORIAL

Prof. Dr. Antonio Amorim - UNEB/Brasil

Prof. Dr. Alex Sandro Leite – UNEB/Brasil

Prof. Dr. Braulino Pereira de Santana - UESB/Brasil

Profa. Dra. Carla Liane Nascimento dos Santos - UNEB/Brasil

Profa. Dra.Cecília Conceição Moreira Soares - UNEB/Brasil

Prof. Dr. Gaudencio Frigotto – UERJ/Brasil

Prof. Dr. José Galisi Filho – Universidade de Hannover/Alemanha - Universidade de Viena/Aústria Prof. Dr. José

Henrique Freitas Júnior - UFBA/Brasil

Prof. Dr. Luciano Sérgio Ventin Bomfim - UNEB/Brasil

Prof. Dr. Marcos Aurélio dos Santos Souza - UNEB/Brasil

Profa. Dra. Valquíria Borba - UNEB/Brasil

Prof. Dr. Vilson Caetano de Sousa Júnior – UFBA/Brasil

Prof. Dr. Wolfdietrich Schmied-Kowarzik – Universidade de Viena/Aústria

EDITORAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO: Adriano Reis

CAPA: Adriano Reis

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA:

Revista financiada com recursos da UNEB

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TARRAFARevista Científica

Editorial

As identidades estão na berlinda. Um dos temas que mais mobiliza discussões, entre as

diversas disciplinas no campo das ciencias sociais e humanas, é o das identidades. Identidades e

não identidade, porque o termo no plural já se constitui uma problematização do mesmo. Se antes

e durante o século XIX, era possível construir um pensamento que estabelecia sentidos únicos

para identidades de genero, racial, sexual, nacional, de classe e poder (e, então, era possível,

falar de mulher/homem, branco/negro, heterossexual/homossexual, nacional/estrangeiro, como

unidades dicotomicas essenciais da natureza humana e social) nos séculos XX e, sobretudo, no XXI,

problematizar a identidade é pluralizá-la e descentrá-la, mostrando que sua construção unificadora

de outrora era uma fantasia.

Talvez uma das leituras mais emblemáticas acerca das identidades contemporâneas seja a

realizada por Stuart Hall em toda a sua obra. Essa perspectiva plural e descentrada, em relação às

identidades, marca para Hall, em seu livro Identidade cultural na pós-modernidade1, a produção de

um sujeito pós-moderno, conceituado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.

O sujeito pós-moderno se contraporia ao sujeito do Iluminismo, centrado, unificado, consciente e

usualmente descrito como masculino. Contrapor-se-ia também ao sujeito sociológico, predizível ou

determinado pelo mundo em sociedade e pelos valores culturais.

Movido por identidades contraditórias, que o empurra em direções diversas, o sujeito

pós-moderno se constitui por identificações continuamente deslocadas. A identidade no singular,

para Hall, é uma comoda história sobre nós mesmos, uma confortadora “narrativa do eu”. Na

contemporaneidade, por outro lado, somos confrontados por uma pluralidade desconcertante de

identidades, com as quais podemos nos identificar temporariamente, o que o intelectual jamaicano

chamou de jogo de identidades.

Hall exemplifica sua teoria, narrando o famoso caso do juiz negro Clarence Thomas de

visões políticas conservadoras, acusado de assédio sexual por uma mulher negra, Anita Hill, uma ex-

colega de Thomas. O caso provocou um dos maiores escândalos na justiça dos Estados Unidos por

polarizar toda sociedade americana, mostrando um complicadíssimo jogo de identidades, que não

repousa apenas nos artifícios e improcedencias da questão da cor ou da raça. As mulheres negras

1 HALL, Stuar t. A identidade cultural na pós-modernidade. 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

Revista Tarrafa – Revista do NUPE (Núcleo de Pesquisa e Extensão) do DEDC I/UNEB

Revista do NUPE (Núcleo de Pesquisa e Extensão) do Departamento de Educação – Campus I

Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos da área das ciencias sociais e humanas

Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.

ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO: A correspondencia relativa a informações, pedidos de permuta,

assinaturas, etc. deve ser dirigida à:

Revista Tarrafa

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIADepartamento de Educação I - NUPE

Estrada das Barreiras, s/n, Narandiba

41150.350 - SALVADOR – BA

Tel. (071)3117-2338

Instruções para os colaboradores: vide última página.

E-mail da Revista Tarrafa: [email protected]

E-mail para o envio dos artigos: [email protected]

Homepage da Revista da FAEEBA: http://www.uneb.br/tarrafa

Index: ISSN 2317-4226

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ficaram dividas, dependendo de sua identificação como negra ou como mulher. Os homens negros e

brancos estavam divididos também, dependendo de sua postura política ou como se posicionavam

em relação ao racismo, ao sexismo e ao liberalismo. As mulheres brancas apoiavam Thomas, por

causa de sua postura antifeminista. E as feministas se opunha ao juiz, tendo como base a questão

sexual.

Esse jogo de identidades, mostra que não podemos pensar identidades como negro/negra,

branco/branca, mulher/homem, como entidades fixas, e que a realidade contemporânea coloca em

cheque posturas que tentam essencializar grupos étnicos e de genero, como se fossem forças

permanentes e inexoráveis de coesão social. Essas identidades se constituem como forças solidárias

em momentos de resistencia política ou de produção de poder, mas isso não significa que são

centradas e permanentes.

Canclini, intelectual argentino, estudando em Culturas Híbridas (estratégias para entrar e sair

da modernidade)2, os choques temporais e as divisões de poder, chama a situação de deslocamentos

culturais, produtora de clivagens identitárias, de hibridação. O autor argentino discute teoricamente

as diferentes manifestações culturais e artísticas, muitas delas anonimas (passeatas reivindicatórias,

pintura, arquitetura, música, grafite e histórias em quadrinhos até a simbologia dos monumentos)

para refletir sobre o que chama migrações multidirecionais, relativizadoras do paradigma binário

subalterno/hegemonico, tradicional/moderno, que tanto balizou a concepção de cultura, poder e

identidade na modernidade.

Enfatiza o papel das tecnologias na construção de mundos flexíveis e de manejo mais livre

e fragmentário do saber. Tal processo tecnológico, chamado desterritorialização, constitui-se como

o mais radical significado de entrada e saída da modernidade, na qual emergiria o sujeito pós-

moderno, a partir de perdas de identificações, de poder e pertencimento. Este processo confunde as

fronteiras entre colonizador e colonizado, regionalista, nacionalista e cosmopolita.

As migrações multidirecionais e a desterritorialização se tornaram cada vez mais presente

nas realidades diaspóricas dos dias de hoje. Realidade muito bem ilustrada por Canclini, através

de seu estudo sobre os conflitos interculturais em Tijuana, fronteira entre o México e os Estados

Unidos, cidade considerada por ele como um dos maiores laboratórios da pós-modernidade. O

caráter multicultural desse local não se expressa apenas no uso do espanhol e do ingles, ou seja, na

2 CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa P. Cintrão e Ana Regina Lessa. 2.ed. São Paulo: Edusp, 1998. 392p

multiplicidade das línguas nacionais, mas nas relações divergentes e convergentes que se dão entre

a cultura americana e mexicana. Ao mesmo tempo em que há uma tentativa de retorno ao tradicional,

ou pelo menos, uma tentativa de reinventá-lo. Em Tijuana, a busca pelo autentico atende também

aos interesses do mercado turístico e lógica do capitalismo americano, desconstruindo os limites

entre a tradição e bens de consumo contemporâneos. Visitantes tiram fotos em cima de burros

pintados que imitam zebra, ao fundo imagens de várias regiões do México: vulcões, figuras astecas,

cactos etc.

Canclini se detém ainda no papel da arte no entendimento da hibridação na América Latina.

Cita o manifesto antropófago no Brasil e o grupo Martín Fierro na Argentina, como interpretações das

identidades conflitantes na América Latina, realizadas, muitas vezes, a partir de elementos estéticos

e sociais de lugares distantes - Oswald Andrade, famoso escritor brasileiro, ve o Brasil no alto do

atelier da Place Clichy, em Paris.

Sobre o cosmopolitismo e localismo desses artistas, Canclini afirma que o lugar em que

vários artistas latino-americanos produzem sua arte não é mais a cidade da infância, nem tampouco

é essa na qual vivem há alguns anos, mas um lugar híbrido, no qual se cruzam os lugares realmente

vividos.

Termos como jogo de identidades nas obras de Stuart Hall, desterritorialização na de Canclini,

assim como entre-lugar do intelectual indo-britânico Homi Bhabha e performatividade da americana

Judith Butler, intelectuais competentes que se debruçaram sobre o tema das identidades, tentam

dar conta de um mundo em que não é possível pensar singularidade de fronteiras e pertencimentos

raciais ou de genero, sem se abrir a uma pluralidade cada vez mais presente, que seduz e instiga.

Revista Tarrafa

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Apresentação

Esta é a segunda edição da revista Tarrafa. A revista pertencente ao NUPE, Núcleo de Pesquisa

e Extensão do DEDCI, Departamento de Educação do Campus I da UNEB, Universidade do Estado

da Bahia, foi criada há 3 anos, inicialmente, com o objetivo, dentre outros, de estimular a autoria e a

autonomia intelectual dos discentes, encarando-os como verdadeiros produtores de conhecimento,

incentivando, assim, o uso dessas produções no processo de formação permanente de profissionais

da educação, nas redes pública, comunitária e particular de ensino. Hoje, a revista também atende

a um público de intelectuais, professores e funcionários, que também queiram compartilhar suas

produções academicas.

Resultado do empenho e compromisso profissional de vários educadores do Departamento

de Educação do Campus I da UNEB (DEDC-I), a intenção da Revista Tarrafa é priorizar temáticas das

áreas das ciencias humanas e ciencias sociais, cuja abordagem exige uma perspectiva interdisciplinar.

Haja vista que o Departamento de Educação, campus I da UNEB, tem ampliado nos últimos anos sua

abrangencia disciplinar, com a criação dos cursos de Psicologia, Ciencias Sociais e Filosofia.

Esta edição cujo tema é Identidades está composta por oito artigos e um ensaio. Todos eles

discutem construção de identidades, seja no campo da Educação, da Psicologia, ou da Antropologia,

com enfase na discussão das Relações Étnico-Raciais.

O primeiro artigo intitulado “Aluno(a), mostra a sua cara! o jogo teatral para a valorização

da identidade”, de Larissa Reis, reflete sobre a utilização do jogo teatral na sala de aula, como

ferramenta propagadora da valorização da identidade dos sujeitos. A expressão corporal, a partir dos

jogos teatrais permite o desenvolvimento de questões relacionadas ao aprendizado e possibilita o

exercício de se colocar no lugar do outro, o que é fundamental para o desenvolvimento de propostas

educadoras que envolvem a temática das identidades.

Com o título “Genero, raça e etnografia nas comunidades tradicionais religiosas”, o segundo

artigo de nossa revista investiga o papel das mulheres nas irmandades negras e mistas da Bahia,

observando as funções femininas nos espaços religiosos e o enfrentamento da invisibilidade social

e racista por essas mesmas mulheres. Para isso, a autora Joanice Conceição aborda a história da

Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira/Ba, que há séculos, através dos seus preceitos e dos seus

momentos festivos, agrega mulheres negras, ressignificando o catolicismo em sua fusão com as

religiões de matrizes africanas.

No terceiro artigo, Cecília Soares relaciona memória e identidade, ao tematizar a importância

da memória afro-baiana no contexto das comunidades religiosas afro e a formação de memoriais

em seus espaços como estratégia para educação étnico-racial. Seu principal alvo de pesquisa foi o

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Terreiro Ile Axé Maroketu, no qual observa a maneira grave e irreverente com que as pessoas lidam

com as coisas sagradas, mostrando como a memória representa para as comunidades terreiros o

principal elemento de religação com o tempo passado e com as pessoas desse passado. Coloca a

oralidade como processo que propõe direções para os memoriais afro, reforçando ideias projetadas

materialmente e indicando como a memória deve ser apropriada.

No artigo “Adolescentes homossexuais e os conflitos em assumir publicamente a orientação

sexual: uma análise de discurso”, seus autores Joanna Mendonça Carvalho, Anísia Gonçalves Dias

Neta, Jeyslane Magalhães da Silva e Leonardo Santos de Oliveira analisam questões de identificação

de genero, no âmbito dos conflitos e dificuldades apresentadas por adolescentes com orientações

sexuais não heteronormativas. Percebem que a não assunção dos jovens de suas identidades sexuais

aos seus familiares confirma a forte presença ainda da imposição de uma educação heteronormativa

em diversas instâncias sociais. A pesquisa foi realizada em Catu, cidade do reconcavo baiano, por

meio de dez entrevistas semiabertas com adolescentes/jovens de 15 a 18 anos, todos estudantes

de Ensino Médio.

O quinto artigo, de Marcos Aurélio dos Santos Souza, aborda a relação entre a obra literária

de Jorge Amado, Jubiabá, escrita na década de 30 do século XX, e as narrativas de grupos do

rap brasileiro, Racionais MC’s e Facção Central, produzidas no final desse mesmo século. Mostra

como a construção de personagens jovens e negros, que tentam construir atitudes afirmativas

nas narrativas literárias e musicais, diante do racismo presente nos diversos espaços urbanos,

constitui uma importante representação do negro, diante de sua inferiorização histórica, legada pelo

colonialismo e pela escravidão.

O artigo “Raízes persistentes da homofobia no Brasil”, de Luiz Mott, resgata a etno história

do preconceito e discriminação anti-homossexual no Brasil e desenvolve os dez axiomas por que

os homossexuais (LGBT), dentre todas as minorias sociais, são as principais vítimas da intolerância

em nossa sociedade contemporânea. Historiciza os crimes homofóbicos no Brasil de 1980 a 2003,

enfatizando o importante trabalho do Grupo Gay da Bahia na coleta e denúncia desses crimes.

O sétimo e último artigo de Ana Rita Santiago, “Vozes Literárias de Escritoras Negras

Baianas: Identidades, Escrita, Cuidado e Memórias de Si em Cena”, trata de identidades, autoria,

memórias, escrita e cuidado de si/nós na literatura afrofeminina da Bahia. Empenha-se em entender

essa literatura como diferenciadora, emancipada e transgressora, através da qual as mulheres se

assenhoram da escrita para forjar uma estética textual, em que se (re) inventem a si e a outros/

as. Suscita ainda questionamentos acerca de novos agenciamentos literários, compreendendo o

prazer estético literário em seus múltiplos movimentos pulsantes e (des) contínuos de rupturas e

ressignificações da arte da palavra.

O primeiro ensaio dessa revista, “Introduzindo o intelectual gay”, de Braulino Pereira de

Santana”, discute a produção dos intelectuais gays, refletindo sobre o que eles fazem e quem

são eles. Tenta ainda acompanhar como conseguem instituir concepções, práticas, significados e

identidades do intelectual gay no universo do debate intelectual público brasileiro. O artigo divide o

trabalho intelectual gay no Brasil em duas fases: a primeira fase se inicia com o surgimento, na cena

intelectual brasileira, do escritor carioca João do Rio, no começo do século XX, e a segunda fase

iniciada em 1959 com o trabalho de José Fábio Babosa da Silva, que publica um artigo intitulado

“Aspectos sociológicos do homossexualismo em São Paulo”. Esses e outros trabalhos rompem,

segundo o autor, com a apropriação das identidades homossexuais pelos discursos heterocentricos

da psicologia, da medicina, da moral e da justiça no meio academico

O último ensaio, intitulado “Da obrigatoriedade da prova de habilidade específica em processos

seletivos para cursos de design: elementos para a reflexão da crise de identidade do design”, Serafim

da Silva Nossa Junior aborda o estatuto do design e a natureza do seu objeto. O texto ressalta a

falta de precisão ou confusão acerca do que seja enfim o design, discorrendo teoricamente sobre

a crise de identidade desse campo e a pertinencia da prova de habilidade específica em processos

seletivos.

Esperamos boas leituras desses artigos e ensaios que compõem a segunda edição

da Revista Tarrafa e contribuem, de forma singular, para o debate acerca das identidades no mundo

contemporâneo.

Marcos Aurélio Souza

Editor Executivo da Revista Tarrafa

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SUMÁRIO

ARTI

GOS

1. Aluno(a), mostra a sua cara! o jogo teatral para a valorização da identidade - Larissa Reis. PÁG. 232. Genero, raça e etnografia nas comunidades tradicionais religiosas - Joanice Conceição PÁG. 633. Os espaços da memória na perspectiva das discussões sobre identidade em comunidade afro - Cecília Soares PÁG. 974. Adolescentes homossexuais e os conflitos em assumir publicamente a orientação sexual: uma análise de discurso - Joanna Mendonça Carvalho, Anísia Gonçalves Dias Neta et al.

PÁG. 158

5. O jovem negro na literatura e no rap: violencia e protagonismo - Marcos Aurélio dos Santos Souza.

6. Raízes persistentes da homofobia no Brasil - Luiz Mott

7. Vozes Literárias de Escritoras Negras Baianas - Ana Rita Santiago

ENSA

IOS 1. Introduzindo o intelectual gay - Braulino Pereira de Santana PÁG. 23

2. Da obrigatoriedade da prova de habilidade específica em processos seletivos para cursos de design: elementos para a reflexão da crise de identidade do design - Serafim da Silva Nossa Junior

PÁG. 63

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ALUNO(A), MOSTRA A SUA CARA! O JOGO TEATRAL PARA A VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE

(STUDENT, SHOW YOUR FACE! THE THEATRICAL GAME FOR THE INCREASE IN VALUE BY

IDENTITY)

Larissa Reis1*

RESUMO

O presente artigo expõe os resultados da pesquisa monográfica “Jogos Teatrais de Improviso

na Educação”, realizada no ano de 2012, em uma escola municipal de Salvador. A pesquisa, de

cunho qualitativo, identificou de que maneira os jogos teatrais de improviso podem contribuir para

o processo educativo dos aprendizes. Desse modo, observou-se as atuações dos alunos para

detectar aspectos de seus cotidianos e a maneira com que as expressões culturais dos mesmos

influenciaram em seus processos de aprendizagem. Os instrumentos de coleta de dados utilizados

foram: a observação não participante, o diário de bordo, a observação participante, o protocolo de

atividades, as conversas informais e a entrevista semiestruturada. As intervenções pedagógicas

desenvolvidas partiram dos procedimentos teatrais de Spolin (2003), Koudela (1990), Boal (2011),

Japiassu (2001) e Novelly (1994). Os resultados da pesquisa destacaram que o processo educativo

dos alunos traz uma referencia essencial ao educador: os conhecimentos apreendidos durante a

vida, seja na escola, seja no cotidiano das ruas. Assim, esse texto apresenta a análise das práticas

teatrais realizadas pelos sujeitos, a fim de tecer ponderações acerca da importância da valorização

da identidade dos/pelos educandos.

Palavras-chave: Jogo Teatral. Improviso. Identidade

ABSTRACT

The present article exposes the monographic research results “Theatrical Games of

Improvisation in Education”, achieved in the year 2012, in a county school of Salvador. This research

is qualitative and identified how the theatrical games of improvisation can contribute to educational

process of apprentices. Thereby, the performance of the students has been watched for: detect

everyday aspects of the students and how their cultural expressions influenced into the learning

1 Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Tel: (71) 9922-6061/(71) 8747-2959. E-mail: [email protected]

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process. The instruments of data collection used were: the non-participant observation, the logbook,

the participant observation, the protocol activities, the informal conversation and the semi structured

interview. The pedagogical interventions developed based on theater procedures of Spolin (2003),

Koudela (1990), Boal (2011), Japiassu (2001) e Novelly (1994). The research results highlighted

that the educational process of students brings an essential reference to the educator: the knowledge

acquired during life, whether at school, whether in everyday streets. Thereby, this text presents the

analysis of theatrical practices performed by the subject in order to weave considerations about the

importance of appreciation of the identity of/by the learners.

Keywords: Theatrical Game.Improvisation.Identity

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo traz reflexões em torno dos resultados da pesquisa monográfica “Jogos

Teatrais de Improviso na Educação”, realizada no ano de 2012, em uma escola municipal de

Salvador, com alunos do 4° ano do ensino fundamental. O objetivo da investigação foi identificar

de que maneira os jogos teatrais de improviso puderam contribuir para o processo educativo dos

sujeitos envolvidos. Para isso, priorizou-se os assuntos relacionados aos cotidianos dos educandos

e a maneira com que os mesmos revelaram suas expressões culturais durante as experimentações

teatrais.

O processo de análise dos resultados da pesquisa teve como base: o diário de bordo,

instrumento de registro contínuo do pesquisador; as cenas observadas na turma; a elaboração do

protocolo de atividades2 pelos alunos: orientou-se que os aprendizes registrassem – por meio de

desenhos e/ou frases – aspectos importantes sobre as aulas anteriores; as conversas informais

com a regente da turma e com a gestão da escola; a entrevista semiestruturada com a educadora da

turma e a reflexão em torno das questões lançadas pelos autores pesquisados.

As observações das microcenas realizadas na turma apontou a relevância da sala de aula

como espaço enriquecedor da coleta de dados pelo pesquisador. Para Dayrell (1996, p. 149) essa

sala é: “[...] um espaço de encontro, mas com características próprias. É a convivencia rotineira de

pessoas com trajetórias, culturas, interesses diferentes, que passam a dividir um mesmo território”.

O planejamento das aulas foi elaborado processualmente: a coleta das lacunas apresentadas

nas primeiras intervenções serviu como referencia para as aulas seguintes. As intervenções

2 Japiassu(2001, 60) sugere esse instrumento para coletar a opinião dos jogadores a respeito das atuações teatrais, de modo que a leitura desse é realizada coletivamente, no início das aulas.

pedagógicas envolveram 12 atividades: 6 jogos e 6 exercícios teatrais. Os temas transversais

selecionados abordaram questões a respeito do conhecimento de mundo e a da observação do

meio cotidiano pelos alunos.

A proposta desse artigo é ponderar sobre a utilização do jogo teatral como ferramenta

propagadora da valorização da identidade dos sujeitos, haja vista que os resultados da investigação

indicaram como as expressões culturais dos educandos influenciaram em seus processos educativos.

Esse texto apresenta quatro divisões: inicialmente, apresenta-se os conceitos e as propostas do

jogo teatral. Em seguida, indica-se os sujeitos da pesquisa. A terceira parte, por sua vez, aponta

o desvelamento do jogo teatral de improviso, a fim de se lançar um olhar para a construção da

identidade dos educandos durante as práticas realizadas. Por fim, conclui-se a respeito das propostas

apresentadas ao longo do texto e da pesquisa realizada.

2. O JOGO TEATRAL: ENTRELAÇANDO CONCEITOS E PROPOSTAS

Koudela e Santana (2006) apontam que o jogo teatral foi o termo criado pela norte-americana

Viola Spolin (1906-1994), a fim de elaborar o método teatral conhecido como Spolin Games. Esse

método envolve experimentações teatrais voltadas para atividades em solo ou em grupo, de modo

que o educador lança uma situação-problema para ser desenvolvida pelos jogadores. Dessa forma, o

jogo indicado possui influencia do jogo de regras: o trabalho em grupo e a cooperatividade resultante

deste promove a discussão coletiva acerca da resolução dos problemas lançados no jogo.

A improvisação é o aspecto determinante dos jogos teatrais. Por meio dela, os jogadores

praticam o teatro com improviso, de maneira criativa, autentica e espontânea, desenvolvendo com

isso a ação-reflexão-ação: os jogadores desenvolvem a atividade e no final das cenas realizam a

avaliação coletiva acerca do jogo. O aspecto da autoria também é destacado nesse jogo, haja vista

que a ação improvisacional requer a construção da expressividade, gestualidade e desenvolvimento

das cenas pelo próprio ator. Nessa perspectiva, esses jogos são considerados como:

[...] atividades pedagógicas para aquisição, leitura, domínio e fluencia da comunicação por meio do teatro, de uma perspectiva improvisacional (sem roteiros nem combinações apriorísticas de como será a atuação na área de jogo e sem textos de sustentação à representação teatral previamente elaborados) (JAPIASSU, 2001, p. 66).

Nesse sentido, pondera-se que o jogo em questão é pedagógico, por possibilitar o

desenvolvimento de atividades que visem o favorecimento da aprendizagem dos sujeitos. A

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característica improvisacional dessa metodologia teatral permite ao aprendiz a contextualização e

a reconstrução das questões aprendidas, haja vista que valoriza os conhecimentos de mundo dos

jogadores por meio da expressão corporal. A proposta do jogo teatral é improvisar as cenas, sem que

o jogador possa explicar como o processo será realizado. Isso porque a gestualidade é desenvolvida

na ação teatral, de modo que:

[...] durante o jogo o jogador é livre para alcançar seu objetivo da maneira que escolher. Desde que obedeça as regras do jogo ele pode balançar, ficar de ponta-cabeça, ou até voar. De fato, toda maneira nova ou extraordinária de jogar é aceita e aplaudida por seus companheiros de jogo (SPOLIN, 2003, p. 5).

A esse respeito, Boal (2011, p. 89) aponta a importância da gestualidade no processo do jogo

teatral: o corpo se apresenta como elemento essencial na atuação, haja vista que “[...] na batalha

contra o mundo, os sentidos sofrem, e começamos a sentir muito pouco daquilo que tocamos, a

escutar muito pouco daquilo que ouvimos, a ver muito pouco daquilo que olhamos”. Com esse

intuito, Boal (2011, p. 87) propõe a prática dos joguexercícios no teatro, intitulando os jogos como

“diálogos corporais” e os exercícios como “monólogos corporais”. Dessa forma, estimulou-se a

expressão corporal dos alunos durante a experimentação da linguagem teatral, considerando que

a corporeidade faz parte da comunicação dos jogadores no processo de atuação improvisacional.

Desse modo, lança-se a questão: jogos teatrais, para que? A pertinencia desses jogos ao

aluno se reflete na possibilidade de o educador observar o que o educando compreende acerca de

determinado assunto, sem precisar decorar dos livros didáticos e/ou de outras referencias. A prática

do questionamento é aprimorada na atuação teatral, haja vista que o aprendiz interage com os pares

de forma reflexiva e improvisacional, o que acarreta em um movimento de contramão: o processo

de aprendizagem parte da improvisação e contrasta com a prática tradicional que requer ensaios e

memorizações preestabelecidas.

Japiassu (2001) retrata que o jogo teatral envolve o revezamento entre os sujeitos participantes,

haja vista que o jogo se processa a partir da troca de papéis entre os observadores – a plateia – e

os observados (os atores). Reflete-se que a alternância de posições entre os jogadores possibilita

a ação de se colocar no lugar do outro, o que contribui ao processo avaliativo das atividades e

propõe experimentações das diferentes ocupações realizadas pelos sujeitos, seja no teatro, seja

no cotidiano das ruas. Nesse viés, pondera-se que os aspectos da identidade e da diferença são

lançados: ora o sujeito atua, ora ele observa o outro.

3. COM VOCÊS, OS SUJEITOS EM QUESTÃO!

A pesquisa envolveu alunos do 4° ano do ensino fundamental, com idades entre 9 a 14 anos,

moradores do bairro de Tancredo Neves e redondezas. A turma pesquisada apresentou sujeitos

com interesses, afinidades, necessidades e sonhos diferenciados. A proposta das intervenções

pedagógicas por meio dos jogos teatrais priorizou o posicionamento dos educandos em questão.

Nessa perspectiva, deu-se voz aos aprendizes: quem eram eles? O que eles estavam buscando

naquele espaço de aprendizagem? Como eles se viam no futuro? Como eles se diferenciavam dos

outros colegas? Calvino (1994) aponta que o conhecimento sobre o outro é essencial para o sujeito,

uma vez que possibilita ao mesmo o conhecimento sobre si mesmo. Os questionamentos lançados

aos alunos foram relevantes porque as respostas dos mesmos trouxeram um leque de possibilidades

para o planejamento das intervenções pedagógicas. O quadro 1 apresenta a diversidade de interesses

expressados pelos sujeitos durante a primeira aula:

Quadro 1: Interesses dos alunos da turma pesquisada

N.° DEALUNOS INTERESSES

01 Desenhar

01 Cozinhar

02 Jogar futebol

01 Arrumar a casa em silencio

01 Praticar teatro e capoeira

01 Brincar com animais e ser Veterinária quando crescer

02 Cantar

01 Comer, estudar e cuidar da família

01 Ser atriz quando crescer

01 Ser uma médica legista

01 Ser uma cabeleleira

01 Estudar

02 Desenhar e cantar Fonte: Elaborado pela autora da pesquisa apresentada

A coleta dos interesses dos alunos indicou as bases para a elaboração da segunda aula.

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Ilustra-se no quadro acima que os interesses dos sujeitos da pesquisa envolveram desde ações

“habituais”, como estudar, arrumar a casa e cozinhar, até questões voltadas para planos do futuro:

a possível escolha por uma profissão. Além disso, destaca-se a afinidade por atividades artísticas,

como desenhar, cantar e praticar teatro e capoeira.

Dayrell (1996, p. 153) expõe que “na construção do papel de aluno, entra em jogo a

identidade que cada um veio construindo, até aquele momento, em diálogo com a tradição familiar”.

Considera-se que o universo do cotidiano escolar é constituído por uma diversidade sociocultural

de sujeitos que se deparam com regras preestabelecidas. Nesse processo, a escola enxerga os

aprendizes de uma mesma forma: todos são alunos. No entanto, existe um fator determinante: cada

aprendiz possui uma identidade própria. Como valorizar a identidade de cada um deles? Durante a

pesquisa realizada, convidou-se os alunos a mostrarem-se para os colegas, para a escola e para

a sociedade, valorizando-os: permitindo que eles refletissem e questionassem sobre a sociedade a

qual eles faziam parte e provocando-os à atuação social por meio da prática dos jogos teatrais.

4. DESVELANDO O JOGO IMPROVISACIONAL À CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

Defende-se a pertinencia dos jogos teatrais de improviso na educação, considerando a

valorização de aspectos do cotidiano e das expressões culturais dos sujeitos, além do estímulo a:

espontaneidade, criatividade, autenticidade e autoria. A prática teatral envolve relações humanas e

nesse processo o aluno pode ser impulsionado ao encontro com a sua identidade. Sawaia (2002,

p. 119) pondera sobre a importância da busca da identidade na contemporaneidade, devido a: “[...]

representação e construção do eu como sujeito único e igual a si mesmo e o uso desta como

referencia de liberdade, felicidade e cidadania, tanto nas relações interpessoais como intergrupais e

internacionais”.

As atuações dos alunos durante os jogos e exercícios teatrais revelaram a importância da

subjetividade e da expressividade humana na educação. No entanto, as práticas artísticas apontaram

influencias de mazelas sociais, o que direcionou o planejamento das intervenções. Dessa forma,

tornou-se necessário um direcionamento para a:

elaboração de estratégias individuais que se desenvolvem em resposta a determinados desafios. Esse enfoque permite que se explique a aparente volatilidade das identidades, sua pluralidade, sua sensibilidade aos acontecimentos e, sobretudo, os inúmeros modos de manipulação e articulação que podem manifestar-se (TEDESCO, 2001, 72).

Com esse intuito, as experimentações teatrais foram analisadas sob a ótica processual:

a partir da interação entre os pares pode-se observar as necessidades, afinidades e desejos dos

educandos, reforçando-se o dilema: o que a escola quer ensinar ao aluno x o que o aluno quer aprender

na escola. Além disso, quem é o sujeito aluno? Qual a sua identidade? Qual(is) representação(ões)

identitária(s) a escola tem dele? De que maneira ele quer ser visto no espaço escolar e na sociedade

em geral? Esses e outros questionamentos puderam ser explorados durante as práticas teatrais,

não como ponto de partida, mas como resposta dos educando às problematizações lançadas nas

atividades. Com esse viés, construiu-se o espaço para o aluno se expressar e ser ouvido, o que

estimulou a prática da identificação, devido ao fato de que:

ela está sujeita ao “jogo” da différance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de “efeitos de fronteiras”. Para consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora – o exterior que a constitui (HALL, 2012, p. 106).

Dessa maneira, notou-se no jogo “O oposto de mim mesmo”3 a opinião dos aprendizes a

respeito de suas identidades culturais. Os resultados apontaram questões variadas: o interesse por

uma profissão, o desejo pela melhoria socioeconomica, o sonho de reverter fatores da personalidade

que os incomodava e questões relacionadas aos modelos propagados pela mídia, conforme o quadro

2 apresenta:

Quadro 2 – Respostas dos participantes do jogo “O oposto de mim mesmo”

N.° DE ALUNOS

Sexo O que o aluno gostaria de ser/ter?

1 Masculino Gostaria de ter cabelos grandes2 Feminino Gostaria de ser médica para cuidar das pessoas3 Feminino Gostaria de ter cabelos grandes4 Feminino Gostaria de ter cabelos grandes5 Feminino Gostaria de ser rica, ter o cabelo mais liso do mundo e ter um filhote

de tigre6 Feminino Gostaria de ser médica, ter um papagaio e ser mais paciente7 Feminino Gostaria de ter cabelos lisos e longos8 Masculino Gostaria de ter um computador9 Feminino Gostaria de falar mais. Não fala muito porque sua voz é muito alta.

3 Como regra do jogo, o aluno registra em um papel o oposto de si mesmo e o que ele realmente é. Em seguida, convida-se o educando para a representação teatral dos aspectos escolhidos.

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10 Feminino Gostaria de ter um computador, de ter cabelos lisos e de ser profes-sora

11 Feminino Gostaria de ter um computador, de ser linda e ter cabelos lisos12 Masculino Gostaria de ser jogador de futebol13 Feminino Gostaria de ser linda e famosa14 Feminino Gostaria de ter cabelos longos, iguais aos da colega de sala15 Feminino Gostaria de ser extrovertida porque é tímida e calma16 Masculino Gostaria de ser um desenhista17 Não se

identificouGostaria de ter um notebook

18 Feminino Gostaria de ser professora19 Masculino O aluno escreveu apenas seu nome20 Feminino Gostaria de ser desenhista21 Feminino Gostaria de ser linda, rica e famosa

Fonte: elaborado pela autora da pesquisa apresentada

Constata-se no quadro apresentado a predominância de respostas relacionadas à estética

feminina. Presenciou-se alunas argumentarem que não se consideravam belas. Perguntou-se a

essas educandas o(s) motivo(s) que as levaram a acreditar nisso: para elas, ser bonita era ter

cabelos lisos e longos. De onde vem essa exigencia a respeito do padrão de beleza? Silva (2012,

p. 83) alerta que: “A força homogeneizadora da identidade normal é diretamente proporcional à

sua invisibilidade”. Dessa forma, pondera-se que como resultado dessa exclusão, o sujeito fere

a si mesmo, negando sua própria identidade. Diante dessa problemática, lança-se ao educador o

desafio de planejar intervenções de combate ao preconceito racial no ambiente escolar e ao mesmo

trabalhar com a não aceitação dos traços identitários do sujeito por ele mesmo. Até quando a escola

se submeterá aos comandos violentos da elite?

A esse respeito, Fischimann (2002, p. 95-96) lança uma reflexão: “[...] Haveria um

reconhecimento da identidade, ou simplesmente um tratamento estereotipado?”. Nesse sentido,

lança-se o dilema ao educador: ser passivo aos comandos de exclusão dos aspectos identitários

dos sujeitos ou combater a violencia sofrida cotidianamente nas novelas e propagandas? A lacuna

da escola quanto a essa questão é imensurável quando observa-se a corrosão da autoestima dos

educandos, ao se reconhecerem como feios porque não se identificam na televisão.

De acordo com Tedesco (2001, p. 72), “[...] o que há de peculiar no atual período histórico

é, precisamente, a importância que assume a atividade do sujeito na construção de sua identidade”.

Considera-se que o processo histórico da educação tem sofrido transformações quanto ao perfil

identitário do aluno: se antes o sujeito estudava sobre o processo civilizatório por meio das

constatações rasas dos livros didáticos – oriundas de uma elite segregadora e preconceituosa –,

hoje o sujeito transformador precisa questionar e combater as distorções lançadas no processo de

construção de uma identidade que é dele.

Sawaia (2002, p. 120-121) apresenta que: “[...] o enfraquecimento da tradição pode

favorecer a autonomia das escolhas, quando acompanhado de atitude reflexiva, mas, quando a

reflexão é impedida, pode gerar sofrimento de diversas ordens e mecanismos”. Desse modo,

acredita-se na pertinencia de a escola reconhecer os processos históricos e identitários dos sujeitos

do espaço escolar, a fim de que os mesmos possam alcançar a liberdade de serem atores de seus

espaços sociais e reconhecedores de suas origens. Nesse viés, defende-se que a liberdade de

escolha precisa ser concretizada com a autonomia do aluno, haja vista que as opções não podem

ser lançadas de maneira impositiva.

Fischimann (2002, p. 101) questiona: “Como trabalhar a questão dos limites entre o indivíduo

e o social dentro da escola, de maneira a respeitar individualidades em sua singularidade, sem

resvalar para o individualismo?”. Torna-se relevante o conhecimento da identidade cultural do aluno

por ele mesmo, a fim de se alcançar o entendimento acerca de suas histórias de vida e dos saberes

apreendidos em seus contextos socioculturais, além da valorização da autoestima em relação aos seus traços estéticos. No entanto, reconhece-se que a busca pela identificação provoca a ação de olhar para os outros sujeitos – desconhecidos e diferentes – o que impulsiona a prática da diferenciação por parte dos atores da escola.

De acordo com Silva (2012, p. 82): “Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras,

significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada

a uma forte separação entre “nós” e “eles”. Com esse intuito, planejou-se os jogos teatrais sob a

ótica da territorialidade, haja vista que ao conhecer e respeitar o vizinho, o educando é impulsionado

à liberdade de ser: sujeito e autentico por escolha, porque construiu uma identidade que é dele, não

do outro.

Investiu-se nesse propósito na quarta intervenção realizada: convidou-se os educandos a

falarem sobre suas relações de vizinhança e os problemas enfrentados por eles nas ruas do bairro.

Para isso, apresentou-se o jogo “Sua Rua tem um Problema?” 4 e ouviu-se dos alunos alguns

aspectos da realidade cotidiana dos mesmos: a violencia e a fofoca entre os vizinhos. A esse respeito,

a construção da identidade implica a identificação de um “diferente”, de uma fronteira. A identificação de uma fronteira, em momentos em que a globalização de todos os âmbitos da vida social se generaliza, pode parecer um contra-senso ou uma aspiração regressiva, contrária ao ideal

4 Os par ticipantes se dividem em dois grupos: o primeiro grupo escolhe um problema de rua para o outro grupo solucionar e vice-versa.

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educacional de entendimento internacional e de tolerância. Entretanto, o ideal de tolerância e compreensão supõe não tanto o desaparecimento das fronteiras mas o desaparecimento da concepção do “diferente” como um inimigo (TEDESCO, 2001, p. 79-80).

Hall (2012, p. 110) afirma que as identidades apontam “[...] o reconhecimento radicalmente

perturbador de que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com

precisamente aquilo que falta [...]”. O exercício “Massagem nas Costas” 5 apontou microcenas de

exclusão quando alguns alunos se recusaram a participar da atividade com determinados colegas:

porque não queriam massagear outro menino/menina ou um aluno mais novo etc. Diante da questão,

precisou-se interromper a atividade para propor desconstruções acerca da diferença: cada qual

apresentou uma identidade que precisava ser respeitada.

A esse respeito, Santos (2008, p. 135) reforça que é “[...] crucial conhecer quem pergunta

pela identidade, em que condições, contra quem, com que propósitos e com que resultados”. Reconhece-se a presença de situações preconceituosas no cotidiano escolar, em relação aos

aspectos sociais, culturais, raciais e de genero. Os educadores, nesse sentido, precisam promover

ações de combate a essas mazelas sociais, de maneira a realizar projetos que teçam propostas de

diálogos e questionamentos acerca dessas questões.

Identificou-se a diversidade cultural dos alunos no exercício “Improvisação” 6: para realizar a

atividade, a turma escolheu uma reportagem acerca de um jovem estudante que foi baleado quando

voltava da igreja e se aproximava de casa. No meio do caminho, policiais o abordaram e, sem direito

de resposta, a vítima foi baleada e sofreu violencia verbal pelos agentes.

O clamor pela identidade, quer para negá-la, reforçá-la ou construí-la, é parte do confronto de poder na dialética da inclusão/exclusão e sua construção ocorre pela negação dos direitos e pela afirmação de privilégios. Ela exclui e inclui parcelas da população dos direitos de cidadania, sem prejuízo à ordem e harmonia social (SAWAIA, 2002, p. 124).

Retomando-se ao exercício “Improvisação”, notou-se as maneiras com que os alunos

escolheram os personagens, as roupas, as expressividades e os lugares das cenas: a vítima

escolhida pela turma era uma menina; na igreja, um padre e um pastor mediaram a missa, onde

os fiéis revezaram as orações com músicas evangélicas e católicas, momento em que ouviu-se

frases comumente pronunciadas nesses ambientes de oração. Além disso, após o acidente, os

5 Os jogadores formam duplas para que, de costas, massageiem o colega.

6 Apresenta-se repor tagens de jornal para que os alunos escolham uma temática, a fim de improvisá-la utilizando o mesmo problema, em busca da resolução do mesmo.

fiéis ajudaram a vítima: ligaram para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgencia (SAMU) e ao

perceberem que os médicos não conseguiam salvar a vítima, eles fizeram uma corrente de oração e

estimularam uma possível sobrevivencia. O espetáculo criado pelos jogadores da turma pesquisada

emocionou a todos: os atores, os observadores, a pesquisadora e a regente da turma, a qual assistia

sem interferencias.

Na experimentação do jogo “Se-fosse-do-meu-jeito”7, os alunos utilizaram temáticas

observadas na contemporaneidade: relações familiares, a adolescencia, a pobreza e a profissão de

doméstica. Para a realização da atividade, a turma se dividiu em grupos para improvisar cenas no

espaço indicado – a casa –, com os personagens da família nuclear. Na cena inicial, o primeiro grupo

representou uma família carente, sustentada por uma matriarca que apesar de não possuir boas

condições economicas, valorizava os estudos das filhas, mas acreditava que os homens deveriam

pagar a conta das mulheres; em seguida, o mesmo grupo protagonizou uma família formada por

mulheres que trabalhavam – uma delas encenou uma manicure, representada por uma aluna que

expressou nas primeiras aulas o interesse por essa profissão – , estudavam, tinham empregada e,

no entanto, a profissional era maltratada: não deixavam que a mesma fosse visitar a família, além

de proibirem que comesse da mesma comida da casa. O segundo grupo abordou o universo dos

adolescentes em relação às regras impostas pelos pais, de modo que na primeira cena havia um

patriarca rigoroso com suas filhas, enquanto na segunda atuação as jovens se mostraram mais

espontâneas e questionadoras em relação às imposições dos pais. Os grupos 3 e 4 se uniram por

conta do tempo e apresentaram uma família em que o patriarca – representado por um aluno que

nas primeiras aulas expressou que gostava mais de comer, estudar e cuidar da família – era aberto

ao diálogo, auxiliava a mulher nas atribuições do lar e tinha filhos mais disciplinados com as regras

impostas pela família. Na segunda cena, esse grupo representou uma família formada por pai e

filhas, mais questionadoras do que as da família anterior. Desse modo, a construção da identidade

envolve fatores relacionados com:

a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Tem a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios” (HALL, 2012, p. 109).

Analisa-se que as experimentações teatrais trouxeram reflexões acerca das possibilidades

de (re) construção das identidades que tem sido afetadas pelas práticas de exclusão social. As

atuações dos alunos direcionaram o que os mesmos desejavam aprender no espaço escolar: mais

7 Em grupo, os jogadores encenam uma situação cotidiana para que, em seguida, improvisem outra cena com a mesma temática, porém, da forma que eles gostariam que acontecesse na vida real.

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questões sobre o que eles queriam ser e menos imposições acerca ao que eles “deveriam ser”.

Nessa perspectiva, Silva (2012, 76) argumenta que a relação entre identidade e diferença envolvem

aspectos relevantes, considerando que: “Somos nós que as fabricamos, no contexto de relações

culturais e sociais”.

5. NOTAS CONCLUSIVAS E SUAS PROVOCAÇÕES

Nota-se que os jogos desenvolvidos comprovaram a diversidade sociocultural dos aprendizes

da pesquisa e destacaram a relevância da linguagem teatral para a valorização do processo educativo

dos jogadores. Reflete-se que as práticas improvisacionais dos sujeitos apresentaram como suas

expressões culturais carregavam identidades próprias, haja vista que os mesmos apresentaram

questões voltadas para seus interesses, planos, sonhos, inquietações e relatos de situações

observadas e/ou vivenciadas.

Pode-se constatar a pertinencia de o educador estimular a discussão acerca de temáticas

sociais que envolvem o cotidiano dos sujeitos envolvidos, provocando com isso a necessidade

de os mesmos revisarem seus conhecimentos prévios e questionarem sobre as microcenas que

eles observaram e/ou vivenciaram no meio social. Dessa forma, torna-se relevante que o educador

construa pontes para que o aluno possa dialogar com os fatores que interferem na construção de

sua identidade.

Acredita-se que o impacto causado pelas microcenas de discriminação – ocorridas durante

as intervenções pedagógicas – provocou questionamentos acerca das possibilidades de o educador

desenvolver uma pesquisa-ação, disposta a combater as práticas de exclusão presenciadas no

espaço escolar. Dessa maneira, questiona-se: de que maneira esse jogo teatral – que contribuiu

ao processo de aprendizagem dos alunos – pode combater as mazelas sociais detectadas em

microcenas processadas no espaço escolar?

Pondera-se que as práticas de discriminação presenciadas apontaram aspectos voltados

tanto para a identidade – por exemplo, a negação dos traços estéticos do aluno por ele mesmo –

como para a diferença: o tratamento de discriminação em relação ao colega de sala. Dessa forma,

questiona-se: de que maneira pode-se estimular o reconhecimento da identidade pelo sujeito, uma

vez que o mesmo não vem sendo respeitado pelo sistema segregador que é a sociedade? Torna-

se essencial que os educadores invistam em pesquisas voltadas à (re) construção identitária do

aluno, como forma de combate ao tratamento discriminatório que muitas vezes é silenciado nas

microcenas sociais.

A importância do presente artigo reafirma a urgencia de se resgatar o aluno do norteamento

segregador que permeia a contemporaneidade. Isso porque, libertar o sujeito para a busca da sua

identidade é permitir ao mesmo o encontro com suas origens e o questionamento acerca do sistema

pelo qual ele faz parte. Dessa maneira, o dever do professor é contribuir para a evolução do aluno

no combate às práticas de discriminação. Contudo, isso precisa contemplar as ações do educador

em sala de aula, no sentido de orientar o aprendiz a não aceitar as formas de modelação do sistema

midiático. Nessa perspectiva, não basta que o aluno identifique as práticas de exclusão: é preciso

encorajá-lo a se mostrar para a sociedade, reafirmando e preservando sua verdadeira identidade.

Assim, os jogos teatrais de improviso apresentados serviram como uma possibilidade para se

mediar a prática de reconhecimento dos aspectos identitários dos sujeitos: por eles mesmos, pela

escola e pela sociedade em geral.

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TEDESCO, Juan Carlos. O Novo Pacto Educativo: educação, competitividade e cidadania na

sociedade moderna. São Paulo: Editora Ática, 2001.

GÊNERO, RAÇA E ETNOGRAFIA NAS COMUNIDADES TRADICIONAIS RELIGIOSAS8 (GENDER , RACE AND ETHNOGRAPHY IN TRADITIONAL RELIGIOUS COMMUNITIES)

Joanice Conceição*

RESUMO

Em meio a tantas irmandades negras e mistas existente nas terras baianas foi em meados do século XVIII, em Salvador que se dera fundação da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Desde lá a instituição vem reafirmando os compromissos firmados pelas primeiras fundadoras e, principalmente suas integrantes legam a sociedade brasileira valores africanos, ainda que relaborados e reinterpretados. Para além da singularidade feminina, da pertença ao catolicismo e candomblé a Boa Morte pode ser entendida como um lócus de resistencia contra o sexismo e o racismo que perpassaram e perpassam todos os setores sociais. Neste sentido, o texto que ora apresento busca refletir sobre o papel das mulheres nas irmandades negras e mistas da Bahia, a partir do enfrentamento da invisibilidade dada às funções femininas no seio dos espaços religiosos; situações muitas vezes veladas. Para concretização de tal emprendimento tomarei como base a Irmandades da Boa Morte e a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos da Porta do Carmo, ao tempo em que procuro dialogar com autoras Bel Hook, Leila Gonzales e autores como G. Balandier, E. Goffman, dentre outros.

Palavras-chave: Genero. Masculinidade. Subalternidade. Raça. Etnografia.

ABSTRACT

Amid so many black and mixed brotherhoods existing in Bahia land, it was founded in the mid-eighteenth century in Salvador the Brotherhood of Our Lady of the Good Death. Since then, the institution has reaffirmed the commitments made by the first founders. Its members bequeath Brazilian society African values, although reinvented and reinterpreted. Besides, the female uniqueness of belonging to Catholicism and Candomblé the Good Death can be understood as a resistance locus against sexism and racism that permeate and cut across all social sectors. In this sense, the text we present seeks to reflect on the role of women in black and mixed brotherhoods of Bahia, in face

8 Este texto é par te integrante da palestra por mim proferida na mesa-redonda intitulada Gênero, Raça∕Etnia e Etnografia em Comunidades Tradicionais e Religiosas, no I Ciclo de debates sobre Genero, Raça e Questões Contemporâneas, no período de 26 a 28 de março de 2014, na UNEB, Salvador Bahia. *Pós-Doutrora pelo Programa Nacional de Pó-Doutorado da CAPES, junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPB; Doutora e Mestre em Antropologia pela PUCSP; Membro do Grupo de Pesquisa Ritual, Festa e Performance.

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of invisibility given to women’s roles within the religious spaces; situations often veiled. To achieve this goal, I will discuss about the Brotherhood of the Good Death and the Brotherhood of the Rosary of Black Men of Carmo door. For this, I try to talk to Bel Hook, Leila Gonzales and authors as G. Balandier, E. Goffman, among others intellectuals.

Keyword: Genre. Masculinity. Subalternity. Race. Ethnography

INTRODUÇÃO

Gostaria de dedicar esta comunicação a duas mulheres da Irmandade da Boa Morte. A

primeira delas, no aiye –espaço semelhante a terra, Dagmar dos Santos Barbosa, conhecida como

Daddy, que na sua trajetória de vida luta para engendrar nas pessoas, em especial, nas crianças

e adolescentes os princípios africanos, os modos de vida e os ensinamentos retidos na memória

que lhe foram transmitidos por Iyá Teófila, sua mãe, seu irmão carnal Sergio Barbosa e parentes

africanos, com os quais conviveu.

A segunda mulher é a Iya Narcisa Cândida da Conceição, conhecida e chamada

carinhosamente por Dona Filhinha, que nos deixou no último dia 18 de janeiro de 2014, rumo ao orun,

com aproximadamente 110 anos. Essa última experimentou de perto as amarras da discriminação

do regime escravista, mas nem por isso tornou-se indiferente, ao contrário, sua presença e altivez

nos dão a certeza da sua contribuição para libertar a sociedade do sexismo e do racismo. Ambas

são símbolo de resistencia em defesa da cultura de matriz africana, sobretudo, lutam para colocar

a mulher num lugar de relevância social. Por tudo que elas fizeram e faz acho oportuno fazer essa

singela homenagem.

Tradicionalmente, a grande maioria dos estudos vem ocultando histórico e antropologicamente

a participação efetiva das mulheres nos diversos segmentos sociais, sobretudo, nos processos

religiosos. Contudo, a constatação de tal fato motivou a minha inserção nesta área de estudo –

religião e genero. Segundo Geertz, (1989, p. 104) a “religião é um sistema de símbolos que atua

para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens”,

conferindo-lhes sentido à vida. Entretanto, as investigações e publicações sobre as religiões de matriz

africana, nomeadamente as realizadas por mulheres, não apenas preocupam-se em tornar visível a

presença da mulher nesses espaços, como buscam evidenciar sua participação em ambientes ditos

masculinos.

A comunicação objetiva refletir sobre as discriminações que mulheres e homens negros

sofriam nas irmandades negras. Para tal empreendimento tomarei como base a Irmandade da Boa

Morte, por entender que nesses espaços onde se teciam solidariedade muitas vezes serviam para

segregar, porém as integrantes da Boa Morte utilizaram e utilizam o espaço por ela criado para

ressignificar papéis antes considerados masculinos, de modo a reverter a ordem hegemonica dos

papéis de genero. Além disso, estabelecem relações com as novas gerações para a manutenção de

valores africanos em contexto diaspórico. Convém apresentar brevemente este grupo de mulheres.

1. SOBRE A IRMANDADE DA BOA MORTE

Fundada supostamente no início do século XVIII, em Salvador, a Irmandade de Nossa Senhora

da Boa Morte9, ou simplesmente Boa Morte, é uma organização formada por mulheres negras,

cujos princípios religiosos orientadores são o catolicismo e o candomblé. Em situação oportuna

retornarei a esse ponto.

Suas integrantes rendem homenagens mortuárias às antigas irmãs falecidas. Tais rituais

públicos são, em sua maioria, católico, não fossem suas integrantes pertencentes às casas

tradicionais de candomblé de Cachoeira e arredores, portanto os rituais católicos misturam-se aos

rituais africanos, definindo a singularidade da irmandade. Embora publicamente a simbologia católica

seja mais perceptível, a saber: procissões, missas, vigília e cânticos, o estilo que verdadeiramente

orienta a vida das componentes é o africano, ainda que os rituais estejam reelaborados e

ressignificados, elas preservam marcas fulcrais trazidas pelas primeiras mulheres negras que aqui

chegaram forçadamente. Tem-se, assim, a união de duas diferentes formas de conceber a morte e

a vida – a ocidental e a africana –, o que aqui denomino como dupla pertença10.

A Boa Morte possui uma estrutura formada pela Juíza Perpétua e duas irmãs auxiliares;

juntas, formam um conselho responsável pelas decisões tomadas pela Irmandade. Estes cargos são

vitalícios, ocupados respectivamente pela pessoa com mais tempo de organização e a mulher com

maior idade cronológica. As demais compõem o corpo da institucional. Anualmente, cerca de cinco

integrantes formam a comissão da festa; isso ocorre após a eleição entre elas, embora atualmente

este e outros fatos tenham sofrido significativas modificações, devido à influencia de pessoas que

9 Para uma análise mais aprofundada sobre vários aspectos da Irmandade da Boa Morte, ver, dentre outros, CONCEIÇÃO, Joanice S. Mulheres do par tido alto: elegância, fé e poder –um estudo de caso sobre a Irmandade da Boa Morte, 2004, p. 78. 10 Este tema foi amplamente discutido por CONSORTE, Josideth (2000) em um texto intitulado Sincretismo e africanidade em terreiros jeje nagô de Salvador. Aqui não me deterei no tema, pois a reflexão maior são os elementos concernentes ao sexismo e o racismo sofridos pelas integrantes da Boa Morte e Babá.

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não fazem parte do corpo institucional, pessoas que se aproveitam da influencia que goza junto

aos meios governamentais e midiáticos acabam por determinar e transformar processos rituais

seculares.

Quanto à entrada na irmandade, esta se dá por meio de um convite feito por uma das irmãs

e julgado pelo conselho. Quando aprovado, a pretendente passa a ser denominada irmã de bolsa.

Como no candomblé, dentre outras coisas, a irmã de bolsa passa por rituais de iniciação, os quais

não nos foram revelados. Como as Iyawos, ela usa roupas brancas e não participa de algumas

reuniões reservadas às irmãs mais antigas. Nas procissões coloca-se sempre nos últimos lugares,

não usa roupa de gala, o que facilita identificá-la, uma vez que, no ápice da festa, a noviça conserva

as roupas brancas e joias de menor expressão. Nota-se, por meio de entrevistas realizadas junto aos

membros da irmandade, que a entrada de novas integrantes requer uma preparação que nem sempre

é revelada a quem se deseja convidar; elas são observadas na sua vida cotidiana e depois lhe é

dirigido o convite. Para não cair no suicídio cultural, após um longo período sem admissão de novas

integrantes nos últimos anos observa-se a presença de novas irmãs de bolsa. Tal atitude indica que

o tradicional está sendo tocado pela modernidade, o suposto segredo é passado moderadamente,

por fim, a dinâmica cultural garante a continuidade do grupo.

A tradição mantém e transmite procedimentos técnicos e seus instrumentos; vai além ao associá-los a sistemas simbólicos, mitos, mistérios e ritualizações pelas quais os artesãos compõem uma determinada sociedade no interior da grande sociedade. Esta tradição restrita a um corpo apresenta, contudo, características consideradas próprias à tradição comum da qual participam os membros de uma coletividade: requer mestres que a conheçam, que a mantenham viva e a comuniquem aos que nela se iniciam; recebe sua autoridade e sua eficácia por sua antiguidade, pelas ideias, pelos valores e modelos dos quais é herdeira, pelo segredo que a diferencia dos saberes comuns. É por esses últimos aspectos que a tradição encerra um elemento de caráter sobre-humano, que remete aos deuses, aos heróis e aos fundadores, e que se torna o depósito sagrado daqueles que se apresentam como seus vicários ou seus mandatários no presente.11 (BALANDIER, 1997, p 95)

Como bem ilustra o excerto acima atesta que a cultura e∕ou os conhecimentos de um

determinando povo ou grupo social devem ser transmitidos aos mais jovens para a própria

sobrevivencia.

11 Ibidem, p. 95.

2. ETNOGRAFAR A BOA MORTE

A Boa Morte esteve ligada ao candomblé da Barroquinha e fazia parte de seus objetivos o

resgate de africanas que tivessem exercido função sacerdotal importante em África, isto é, mulheres

conhecedoras da religião africana, que pudessem contribuir para o fortalecimento desta na Bahia.

A Barroquinha, no início do século XVIII, não era apenas um bairro comercial como acontece hoje

(Silveira, 2006, p. 403); havia uma parte residencial que concentrava grande número de negras e

negros originários de várias etnias, moradores que comercializavam suas mercadorias, praticavam

suas danças e também se reuniam para discutir assuntos religiosos; portanto, aos olhos das

autoridades, o local era considerado marginal.

Como referido em outros textos, no início, a Irmandade esteve atrelada a um grupo masculino

denominado Irmandade de Bom Jesus dos Martírios, porém essa união não durou muito, devido a

pouca visibilidade dada às tarefas desempenhadas pelas mulheres, assim como a pouca ou quase

nenhuma valorização da mulher enquanto membro ativo. Essas atitudes praticadas pelos homens

impunham à ala feminina um descontentamento o que provocou uma divisão do grupo, resultando

na criação de um outro, formado apenas por mulheres negras, que se autodenominavam como irmãs

e tinham como protetora Nossa Senhora da Boa Morte e Obaluaiye como patrono. retornaremos a

este assunto em momento oportuno. A imagem de Nossa Senhora ocupava o altar lateral na Igreja

de Bom Jesus dos Martírios. Após a divisão a referida imagem passou a ocupar lugar central na

então Igreja da Barroquinha que se tornara sua sede até aproximadamente 1820, quando o grupo, já

consolidado transferiu-se para as ruas coloniais da cidade de Cachoeira, no Reconcavo Baiano12.

A Boa Morte como assim é conhecida o grupo de mulheres que ainda no período escravista

criaram um espaço a revelia de uma sociedade machista e sexista. Pois bem, os africanos que

chegaram à Bahia no final do século XVIII e final do século XIX, sobretudo, no último contigente,

possivelmente, eram iorubanos advindos da Costa Mina e Golfo do Benim. Há ainda um forte indício

que entre os africanos destes países tenham chegado as primeiras mulheres que dariam um tom

todo especial ao “Bairro da Lama”, conhecido hoje como Barroquinha. Mais tarde grande parte

daquelas mulheres se juntaria para formar a referida irmandade.

Na Irmandade da Boa Morte as mulheres contestam a participação dos homens na estrutura

da organização, mas percebemos que estas buscam combater a discriminação sofrida ao longo dos

anos nas irmandades negras em todo Brasil, por isso a Irmandade da Boa Morte desponta como

um espaço em que a feminilidade é exercida na sua plenitude, mas nem por isso os homens estão

12 Especula-se que a mudança da Irmandade para a cidade de Cachoeira se deu graças ao crescimento imobiliário que jogara os negros paras regiões periféricas da cidade ou para as cidades próximas a capital baiana.

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ausentes dos rituais realizados por elas. Deste modo, as integrantes da Irmandade engendram nas

crianças e adolescentes suas ideologias a respeito da divisão sexual das tarefas, legam, portanto,

valores de uma sociedade masculinizada.

3. SOBRE A FESTA13

Falar da festa da Irmandade da Boa Morte nos obrigar a pensá-la de forma ampliada,

como Mauss (2003), na medida em que as celebrações da Boa Morte envolvem dois universos

religiosos com tantas especificidades: candomblé e catolicismo. As festividades nos remetem a

tempos de sacralidade, mas também há tempos profanos, portanto, a festa é o lugar simbólico

onde cerimonialmente “separa-se o que deve ser esquecido e, por isso mesmo, em silencio não-

festejado” e aquilo que “deve ser resgatado de tempos em tempos”... (BRANDÃO,1989:8). Assim

as festas públicas tem, dentre outras funções, explicitar o resgate de uma história, da memória, do

passado para melhor compreender o presente.

Oficialmente a festividade da Boa Morte transcorre entre os dias 13 e 15 de agosto. O

primeiro dia começa com a procissão de anunciação da morte de Nossa Senhora, logo após há

uma missa dedicada á memória das integrantes falecidas; em seguida é servida a “ceia branca”,

composta basicamente, de peixe, vinho, arroz branco, já que é interditado o uso de azeite.

O segundo dia, por volta das 19 horas ocorre a missa e em segunda há mais uma procissão

denominada, “Procissão de enterro”. Logo após a procissão, todas as integrantes, com exceção

das irmãs de bolsa, ficam em vigília, com as portas fechadas; tal fato suscita várias especulações,

o que legou à irmandade o título Irmandade do Segredo, mas nada pude saber a esse respeito, já

que as integrantes quando entrevistadas não revelam o que elas fazem às portas fechadas, limitam

a dizer que ficam tão somente rezando e vigiando o sono de Nossa Senhora.

4. PROCISSÃO DO ENTERRO

O terceiro e oficialmente, o último dia da festa, começa com uma alvorada de fogos de

artifícios, missa festiva pela Assunção de Nossa Senhora, em seguida, procissão de Nossa Senhora

da Glória, ou Boa Morte. A referida procissão é muito pomposa, faz-se acompanhar por centenas

de pessoas, povo de santo de várias localidades baianas, inclusive da capital, turistas nacionais e

internacionais e pelas filarmonicas da cidade, percorrendo as principais ruas da pequena Cachoeira.

Na referida procissão as roupas brancas usadas pelas irmãs dão lugar ao seu traje mais famoso: a

13 As informações e fotos contidas na etnografia deste texto referem-se à festa do ano de 2011.

roupa de gala é composta de saia preta plissada, camizú branco ricamente bordado, pano da costa

nas cores preta e vermelha, sendo que neste dia elas deixam à mostra o vermelho, representando a

alegria pela glorificação de Maria; os famosos correntões e fios de contas e muito cordões dourado,

compõem as joias e substituem o ouro exibidos pelas antigas irmãs. A cabeça é coberta por um

lenço bordado ao modo richelieu, tal qual o lenço que adorna a cintura; nas mãos levam flores de

cores variadas que causam um lindo efeito plástico.

Ao retornar, no salão de festa, as integrantes dançam a valsa e pontos de candomblé.

Encerra-se a festa com um samba de roda, presidido pelas integrantes. Entretanto, ressalva-se

que a festa prolonga-se por mais alguns dias quando são oferecidos, mugunzá, cozido e o caruru.

Infelizmente, por uma questão de limitação do tema, não há uma descrição aprofundada sobre os

alimentos servidos ao longo do período festivo. Ressalva-se que a culminância das festas de agosto

é antecedida e precedida por várias etapas festivas que ficam fora da grande mídia, a saber: o

traslado de Nossa Senhora, que geralmente ocorre em maio, a esmola geral, o cozido, o mugunzá,

o caruru, sem contar toda preparação que se transforma em momentos de confraternização para as

irmãs.

5. Gênero, raça∕etnia e classe na reliGião na Boa Morte

Não poderia deixar de abordar as experiencias etnográficas vivenciadas na Irmandade da Boa

Morte sem toca no ponto das discriminações vividas no interior das irmandades negras, pois foi a partir

da invisibilidade das mulheres que o grupo se formou. Os estudos sobre a sacralização das territorialidades

negras pouco apontam para a discriminação vivida no interior das irmandades. Assim reconhecemos que as

irmandades eram espaços onde negros e negras podiam trocar experiencias, sociabilidades e solidariedade.

Contudo, nem por isso eram espaços que estavam brindados contra o racismo, classismo e o sexismo.

Esses indícios foram encontrados nos próprios Estatutos e Compromissos de diversas Irmandades e Ordem

terceira de todo Brasil. Portanto, as categorias supracitadas perpassam toda estrutura social, em especial nas

irmandades, como nos informa Reis:

As irmandades negras via de regra tinham uma mesa composta de mulheres e outra de homens. O compromisso de 1820 do Rosário das Portas do Carmo rezava: “se elegerão as Juízas que forem suficientes de uma e outra nação” quer dizer angolas e crioulas. Mas esta e outras irmandades de pretos e de brancos discriminavam politicamente a ala feminina. A regra dos irmãos do Rosário que proibia a escravos de serem juízes, procuradores e mordomos, fazia exceção às mulheres escravas, porque “pela qualidade do sexo não exercitam ato de mesa”. (REIS, 1991, p.58).

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De igual modo o Compromisso de 1788 da Irmandade dos Homens Pretos do Rosário de Camamu,

que designava às mulheres trabalhos de acordo com seu sexo: “lavar as roupas brancas, coser, refazendo-as

e consertando-as para o uso das missas”. Além disso, dividiriam com os homens o trabalho de coletar ou dar

do próprio bolso esmolas para o “aumento da irmandade”.

O exposto deixa entrever que os homens entendiam que havia certa incapacidade nas mulheres

para o exercício de qualquer atividade que não estivesse de acordo com a visão hegemonica do ser mulher.

Note que as atividades relegadas às mulheres dizem respeito às tarefas desenvolvidas no âmbito doméstico.

Portanto, as categorias raça, genero, classe e religião, de modo geral, modelavam a imagem do que é ser

mulher nos espaços religiosos, particularmente entre as mulheres e os homens negros nas irmandades

mistas e negras da Bahia.

Os estatutos das irmandades, de certo modo, naturalizam o sexismo nas regras impostas às mulheres.

Embora no candomblé as grandes figuras fossem femininas, esse fato não era tido como algo relevante, já

que tudo que dizia respeito à população negra era e é, em certa medida, desprezado. Vale ressaltar que as

religiões de matriz africana sequer eram reconhecidas como tal até bem pouco tempo. No final do século

XVIII, enquanto as intelectuais feministas brigavam pelo reconhecimento social, as mulheres negras galgavam

sua participação na vida das irmandades e enfrentavam, por outro lado, a segregação espacial, não do ponto

vista geográfico, mas da forma desigual da divisão sexual das tarefas.

A dominação masculina perpetrada contra as mulheres, de modo especial, contra as negras, fazia

parte de um conjunto de atitudes vivenciadas na época. Embora fosse e ainda o é uma pratica corrente em

todo mundo nem por isso as negras aceitavam passivamente tais imposições. A esse respeito, L. Gonzales

salienta:

Fato da maior importância (comumente “esquecido” pelo próprio Movimento Negro), era justamente o da atuação das mulheres negras que, ao que parece, antes mesmo da existencia de organizações do Movimento de Mulheres, reuniam-se para discutir o seu cotidiano marcado, por um lado, pela discriminação racial e, por outro, pelo machismo não só dos homens brancos, mas dos próprios negros. [...] Nesse sentido, o feminismo negro possui sua diferença específica em face do ocidental: a da solidariedade, fundada numa experiencia histórica comum. (GONZALES, 1984, Apud GARCIA, 2012, p. 36).

Não obstante o contexto moderno apresente um quadro no qual a mulher apareça como chefe de

família, mais escolarizada, em postos de relevância social, mesmo com o salário inferior ao do homem no

mesmo cargo e com igual escolaridade, nos faz ainda hoje perguntar: por que após anos de luta as mulheres

ainda são vitimas do sexismo tal qual experimentaram as negras desde que aqui aportaram? A indagação

só pode ser respondida se levarmos em conta alguns fatores: a sociedade mentalmente ainda opera com

arranjos da égide da dominação-exploração14, isto é, arranjos masculinizados. Na religião, tais arranjos

ganham novos contornos já que os símbolos reforçam a ideia de uma sociedade falocentrica, ocultando

político e sistematicamente a participação feminina na história das associações mundiais, em especial, no

Brasil. Essas constatações coadunam com a naturalização das desigualdades entre homens e mulheres, ou

seja, a maneira como essas mulheres representam seus papéis no cotidiano da cidade ecoa a noção de ator

sincero, elaborado por Goffman (1985, p.25).

Em uma sociedade multirracial como o Brasil é possível encontrar o par da diferença como assimétrica

e desigual. Dito de outro modo, na sociedade brasileira, a masculinidade não possui o mesmo peso para

todos os homens. Ao fazer tal afirmação estou a dizer que o homem negro possui um valor menor no

mercado racializado; esse fato está presente desde os tempos que remontam à invasão das terras brasileiras,

focalizando o homem no período colonial, no advento das irmandades negras, brancas e mistas. Com o

nascimento de tais organizações, poderiam até pensar não haver tratamentos diferenciados, já que, perante

os dogmas religiosos cristãos, todo ser humano é filho de Deus. Mas não é bem assim: a realidade que se

deslindou vem recheada de conflitos raciais, conflitos que ora se apresenta implícitos, outras vezes revelados.

Entretanto a base desses conflitos está fundamentada no racismo religioso, no sexismo e no classismo que

sempre contou com uma forte aliada –a Igreja.

O homem negro também sofreu o seu revés. Dentro da visão hegemonica, o homem negro sempre

foi considerado o viril, o bem dotado e outras adjetivações que negam o negro como um sujeito, no sentido

mais amplo do termo. No entanto, quando colocamos este mesmo homem dentro da política de genero, em

particular no processo escravista, percebemos que sua atuação foi negada, por não fazer parte do modelo

normativo, isto é, o modelo branco, heterossexual e rico (HOOKS, 1995). A constatação da negação da

masculinidade ou da masculinidade subalterna do homem negro e as constantes interiorizações negativas

sofridas ao longo da história criaram uma imagem negativa do homem negro frente a outros homens, ainda

que os aspectos inferiorizantes não fossem levados em conta no momento da avaliação do seu progresso material. “Numa sociedade como a brasileira, com clivagens de gênero, de distintas raças∕etniaseminteração e de classe sociais, o pensamento, reflete as subestruturas antagonicas”. Observada a maneira

desigual dentro das territorialidades religiosas, existia, por um lado, a ideia de homogeneização das pessoas,

mas, paradoxalmente, havia indivíduos tratados de forma diferenciada, por conseguinte o poder era exercido

de maneira velada, porém eficiente, quando era permitida a entrada de negros e negras nas organizações, não

obstante a atuação destes não tinham a mesma extensão dos demais membros. Deste modo, poder-se-ia

dizer que o homem negro, quando observado de uma estrutura mais ampla, era empoderado, entretanto, visto

das relações internas, era destituído de poder.

No caso das irmandades negras, a mulher era levada para um lugar socialmente sem prestígio;

tudo aparentava uma falsa harmonia à medida que eram aceitas sem restrições, entretanto, havia um longo

caminho para que elas pudessem ocupar um lugar de relevância social. Para Saffioti (2004), os avanços feitos

14 A expressão dominação-exploração é emprestada de Saffiotti, na obra Gênero e Patriarcado, 2001.

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nos estudos sobre a questão da mulher, principalmente nos anos 60 e 70, não condizem com a frequente

inferioridade atribuída a ela como marca natural. Para Scott (1990) é preciso identificar as estruturas basilares

da discriminação, a fim de combate-las, ainda que se saiba que tais estruturas estejam fortemente ancoradas

na produção, reprodução, socialização e sexualidade. Saffioti acrescenta-lhe ainda o androcentrismo ou

falogocentrismo, posto que permite compreender a genese do exercício da dominação sobre as mulheres, em

que, segundo o modelo vigente, coloca o homem na esfera do poder, da força e a mulher, na secundariedade,

isto é, do lado da submissão e da fragilidade.

Assim, a dissensão da Boa Morte mostra ruptura da clássica masculinidade hegemonica uma vez

que todas as decisões eram tomadas por elas, ainda que os irmãos dos Martírios as representassem junto às

autoridades eclesiásticas e governamentais.

Quando consideramos o ser humano como múltiplo, colocamos desde logo a contraditoriedade

potencializada em todo humano e, como consequencia disso, aparecem as divisões e atribuições

assimétricas entre os sexos, seja na família, no espaço religioso, no ambiente de trabalho. Podemos

dizer que as discriminações de raça\etnia, classe e genero constatados na Irmandade da Boa Morte

refletem a extensão daquilo que ocorre na esfera do poder de toda a sociedade.

Devemos atentar para os trabalhos etnográficos que realizamos, muitas vezes encontramos

nas entrelinhas os conflitos, as amarras e algo para além das aparencias. No campo influenciamos

e somos influenciados. É preciso estar atentos às histórias bem arrumadas, bem justificadas, pois

muitas vezes nas entrelinhas elas podem revelar para além do visível.

Assim como fizeram as integrantes da Boa Morte, é preciso ter em mente que transpor a

barreira da indiferença é acima de tudo se colocar à disposição de uma causa, onde o desejo de

vencer deve falar mais alto que a dor das dificuldades a serem enfrentadas (CONCEIÇÃO, 2004).

REFERENCIAS

BALANDIER, G. A desordem: elogio ao movimento. Tradução Suzana Martins. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1997.

BRANDÃO, Carlos R. A cultura na rua. Campinas: Papirus, 1989.

CONCEIÇÃO, Joanice Santos. Mulheres do partido alto, elegância, fé e poder: um estudo de caso sobre a Irmandade da Boa Morte. 2004. Departamento de Ciencias Sociais/Antropologia. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004.

CONSORTE, Josildethe G. Sincretismo ou Africanização? Os Sentidos da Dupla Pertença. Travessia Revista do Migrante, São Paulo, v. 36, p. 11-14, 2000.

GARCIA, dos Santos. Contradições na cidade negra: Relações de genero, raça, classe, desigualdades e territorialidade. Saberes em perspectiva: Revista interdisciplinar em ciencias humanas, Jequié, v.2, n.2,p,33-51,jan∕abr.2012.Disponívelem:<http://www.saberesemperspectiva.com.br>. acesso em: 5 out. 2012.

GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.

GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. 14. ed. Tradução Maria Célia Santos Raposo. Petropolis: Vozes, 1985.

HOOKS, Bell. Intelectuais negras. Estudos feministas. RiodeJaneiro,v.3,n.2,p.464-478,jul∕dez.1995.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

SILVEIRA, Renato da. O candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de Keto. Salvador: Maianga, 2006.

SCOTT, Joan. Genero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 2, n. 16, p. 5-22, 1990.

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APENDICEFotos da festa da Boa Morte feita pela autora.

Figura 1: Irmã Daddy

Figura 5: A ceia branca

Figura 6: Procissão do enterro

Figura 7: Irmã Dalva do sambaFigura 3: Fachada da sede da Irmandade da Boa Morte

Figura 2: Irmã Filhinha

Figura 4: Anunciação da Nossa Senhora da Boa Morte

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Figura 8: Irmãs da Boa Morte em seus trajes de gala

Figura 9: Procissão da Nossa Senhora da Boa Morte

Figura 10: Valsa da Boa Morte

Figura 11: Irmãs sambam no encerramento da festa

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OS ESPAÇOS DA MEMÓRIA NA PERSPECTIVA DAS DISCUSSÕES SOBRE IDENTIDADE EM COMUNIDADE AFRO (MEMORY SPACE, IN PERSEPCTIVE OF DISCUSSION ABOUT AFRO

COMUNITY IDENTITY)

Cecilia C. Moreira Soares15*

RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar alguns conceitos sobre memória, identidade e

territorialidade afro-baiana, para que possamos refletir sobre a importância da memória afro-

baiana no contexto das comunidades religiosas afro, a formação de memoriais em seus espaços

como estratégia para educação étnico-racial, preservação e dinamismo da memória referendada.

Utilizaremos, também, as informações colhidas na comunidade lócus da pesquisa Terreiro Ile Axé

Maroketu, em Salvador-Bahia.

Palavras-chave: Memória. Identidade. Territorialidade afro-baiana.

ABSTRACT

The goal of this work is to present some concepts about memory, identity and afro-baiana

territoriality. We want to think about afro-baiana memory in the context of afro religious comunities,

formation of memories in its spaces, like strategy tp etno-racial education, memory preservation and

memory dynamism. We use research informations of Terreiro Ilé Axé Maroketu, in Salvador/Bahia/

Brazil.

Key words: Memory. Identity. Afro-baiana territoriality.

A escolha de um grupo social para análise e de forma paradigmática demonstrar as ações

da memória individual e coletiva, a interpretação de identidade e a importância do espaço formal

para reviver a memória, sugere um desafio para romper com a memória social, com pretensão

de hegemonia. Ao lembrar do jargão que tomou a cidade de Salvador nos dias carnavalescos em

fevereiro de 2015: “É tudo nosso, nada deles”, corrijo dizendo que embora as memórias sejam

15 *

nossas, são “eles” que a utilizam dentro de um esquema hierárquico, classificatório e de invisibilidade

das nuances da cultura negra, materializado por negros e negras no cotidiano da cidade. Condenam

os espaços da memória à imutabilidade e ao aprisionamento histórico. Com base nessas premissas

tentarei ao recortar este grande tema, provocar reflexões.

Neste artigo algumas palavras - chave permearão toda a discussão e análises das informações

que são os conceitos de memória e oralidade, identidade e territorialidade. Utilizaremos, também, as

informações colhidas na comunidade lócus da pesquisa, o Terreiro Maroketu, em Salvador-Bahia.

IMPORTâNCIA DA MEMÓRIA NO CANDOMBLé

Por reiteradas vezes observei o esforço da lembrança nos rituais e diálogos entre os adeptos

da religião afro-brasileira na Bahia. E no Terreiro Ile Axé Maroketu, que selecionei como principal

alvo de minhas investigações que originaram este artigo, as lembranças representavam a maior

herança em relação a sua fundadora e todos aqueles que por ali passaram. Muitas vezes, no

desenrolar dos rituais, as trocas de olhares, riso sutil, gestos só decifrados por aqueles que circulam

nesse universo vinha à tona a lembrança de alguém cuja participação tinha sido importante. Essa

recordação coletiva estava associada à maneira irreverente ou grave com que as pessoas lidavam

com as coisas sagradas, entonações e declinações nos cânticos, esquecimentos e reelaborações

da práxis, trejeitos, sinuosidades que singularizavam suas presenças nos rituais. Isto não é particular

e exclusivo desse Terreiro, pois a memória representa para as comunidades - terreiros o principal

elemento de religação com o tempo passado e com as pessoas desse passado. Rememora-

se, através dos ritos e práticas no cotidiano desses espaços e com certa espontaneidade se ingressa

na privacidade dos acontecimentos corriqueiros, mas capazes, se pedagogicamente lembrados, de

elevar a autoestima do grupo, preservar costumes, ou mesmo, justificar mudanças.

Assim, a memória assume um lugar de extrema importância, ao ser responsável pela

continuidade e, de forma paradoxal, explicar descontinuidade na tradição. “No meu tempo era

assim... hoje, minha filha, tenho que fazer dessa forma... eles me entendem”, justifica uma de nossas

entrevistadas, quando interpelada sobre as alterações no ritual das Águas de Oxalá no Maroketu16.

A lembrança de uma memória pessoal é também a memória social do grupo, que se regozija

ao estabelecer uma ponte entre passado-presente, cujo fator tempo é uma demarcação tenue e até

imperceptível. Todas as vezes que, em circunstâncias bem determinadas, lembra-se de alguém ou

de suas ações, afloram outras lembranças de sua presença, refletida nas falas de todos aqueles

Professora Adjunta B da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.16

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que compartilharam com essa pessoa algum momento. Vem à tona a recordação das cantigas

que personalizadas pela pessoa ou mesmo eternizadas pela enfase e entonação dadas às palavras

sagradas, os gestos e a maneira de dançar, gosto e estilo no vestir-se e logo também alguém se

põe a teatralizar sua presença e, por inúmeras e incontáveis vezes, recorrerão aos gestos e palavras

que tornaram a presença-viva e constante daqueles que não compartilham mais do mesmo espaço

ou comunidade. São essas ações que garantem a passagem de informações importantes para a

manutenção da tradição.

A eloquencia dessas narrativas e o cabedal de informações rituais enobrecem o grupo,

estimula a memória ameaçada pelo esquecimento, forma a nova geração que se compraz no riso,

que também será sensibilizada pelas histórias que enaltecem a sabedoria ritualística e o segredo

religioso. Por outro lado, é comum o estabelecimento de uma espécie de jogo sobre a detenção

do conhecimento religioso ou mesmo da memória de alguém ilustre. Certa vez, ávida por uma

informação sobre a existencia de memorável membro do candomblé em Salvador, corre-se alguns

riscos, como o de deparar-me com um informante, como no caso vivenciado e aqui relatado. O

suposto informante que, por vezes insinuava para mim que possuía informações importantes e que

iria disponibilizá-las, também aguçava mais e mais a minha curiosidade, ao lançar-me perguntas

sobre a pessoa do meu interesse, invertendo a situação de depoente.

Durante uma cerimonia religiosa tive a oportunidade de entrevistá-lo; por diversas vezes

lembrou-me das informações que possuía, com frequencia punha-se do meu lado, gesticulava,

informava-me que determinado cântico lembrava a pessoa, isso e aquilo outro era do seu tempo e

do seu modo.

Esse comportamento, aparentemente impertinente, deve ser interpretado dentro da lógica

do jogo contínuo da memória religiosa, através da representação dos vivos e dos mortos que ainda

detinham assento na estrutura litúrgica dos rituais. São práticas que rememoravam a descontinuidade

do tempo e a vontade da tradição ser perenizada; diluía-se o impacto da dinâmica social celebrando

a imutabilidade dessas referencias.

Toda comunidade que se sustenta na tradição da presença contínua dos indivíduos, celebra

uma lembrança que é reativada pelos espaços na comunidade, seus objetos e práticas rituais.

Eternizam os cânticos, uma cadeira, um canto da casa, um objeto de decoração. Para o tema em

questão, o interesse recai sobre a importância da organização de memorias no espaço do terreiro

para lembrar e perpetuar a história e memória do grupo.

Entrevista concedida à Autora por Mãe Pastora, líder espiritual da comunidade, 2005. Águas de Oxalá, cerimonia ritualística em homenagem à divindade Oxalá.

MEMÓRIA, IDENTIDADE E TERRITORIALIDADE

Segundo Bérgson (1990), decorrido algum tempo presume-se que as lembranças consistem

em adquirir percepção dos fatos, permanencias e releituras simbólicas das representações. O

ambiente social e sua interação como aprendizado natural, absorção simples das interpretações das

experiencias africanas, pode exercer influencia nas lembranças que “impregna as representações.”

(Bossi, 1994). Nos depoimentos realizados em nossa pesquisa, são perceptíveis as acomodações

e reorganizações dos eventos passados para um presente, onde os símbolos e representações

respondem às convicções momentâneas, à autonomia da memória em evocar imagens e reconstruí-

las através da narrativa.

Bérgson (1990), a partir do método introspectivo, sugere que é o fato da conservação dos

estados psíquicos já vividos que nos permitem escolher entre as alternativas que um novo estímulo

pode oferecer. A memória teria como função prática, delimitar a indeterminação (do pensamento e

da ação) e de levar o sujeito a reproduzir formas de comportamentos que foram consolidados. À

compreensão do autor, se devem buscar também as motivações na realidade social experimentada

- novos contextos sugerem comportamentos que tendem a forçar as lembranças, alterá-las ou

mesmo suprimi-las, enquanto defesa e proteção de princípios tão caros ao grupo. O desafio para

nós está em agregar os dois estímulos que se distanciam e, ao mesmo tempo, se integram em

diferentes tempos. O que diferencia o alcance da memória na comunidade – terreiro é o fato de que

os conhecimentos que reconstituem a imagem do passado e evocam espontaneidade não ficam

restritos apenas às repetições, enquadramentos singulares.

A grande preocupação de Bérgson foi entender as relações entre conservação do passado

e sua articulação com o presente, a confluencia da memória e percepção. É esse aspecto que

interessa à pesquisa, ao analisar a importância e o significado da memória religiosa na comunidade

Candomblé, como um referencial social ou mesmo cultural, que estabelece fronteiras entre este e os

outros.

A memória-hábito, adquirida pelo esforço da repetição, segundo Bérgson (1990), se dá no

processo de sociabilização. Assim, devem se pensar os rituais iniciativos, ou a busca da história

mítica entrelaçada a uma realidade, com o objetivo de mudança nos comportamentos, que ocorre

na medida em que se ritualizam os mitos, servindo de referencia para o cotidiano no universo das

pessoas no Candomblé. Do outro lado, reside o que Bérgson (Ibidem) denominou de lembrança

pura, quando se atualiza na imagem-lembrança, em termos evocativos e oníricos, por exemplo. A

imagem-lembrança é individualizada. Refere-se a alguém em algum momento de sua vida.

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Halbwachs (1990) relativizou a teoria sobre a lembrança pura, ao relacioná-la com a história

e, dessa forma, transpos os limites das análises bergsonianas. O importante era trazer à tona o

sujeito que lembra e fazer uma conexão entre o que era lembrado e quem era o sujeito que projetava

essa lembrança.

Ao estudo de Halbwachs interessa os quadros sociais da memória e não exatamente a

memória, ou seja, suas representações, permanencias. A memória deve ser apreendida no seu

conjunto e inter-relação com as diferentes sociabilidades. Cabe à inferencia sobre em que momento

as pessoas são provocadas a lembrar, como organizam e narram essa lembrança, selecionam fatos,

alteram as imagens. A memória se processa o tempo todo, culminando com novos cenários e

redefinindo o papel dos sujeitos.

Quando se fala em identidade negra, procura-se definir a conjunção de ideologias e aspectos

visíveis daquilo que designamos genuinamente de origem africana. A leitura de identidade que

queremos relatar é aquela construída e em processos contínuos de acabamento, redefinições que

somente a recusa por processos culturais acabados, poderá compreender a singularidade de grupos

tão específicos quanto às comunidades culturais e religiosas afro-baiana. As antigas tradições que se

reprocessaram no contexto das comunidades estão atreladas aos movimentos sociais relacionados

com a negritude e a inserção social, movimentos públicos e demonstração da dinâmica cultural em

aceitarem e incorporarem novos conteúdos mágico-religiosos para compor a liturgia.

Os lapsos da memória foram preenchidos com elementos colhidos no território cultural e

sofreram a influencia dos grupos sociais que tinham experimentado ou experimentavam a política

asfixiante de um ocidente com pretensão de hegemonia.

Entende-se que os recortes estabelecidos pela memória seletiva cumprem a função ideológica

de diferenciação dos ritos que irão legitimar identidades, através da permanencia de valores afixados

como exclusivos, mas, passíveis das vulnerabilidades e aquisições que contribuíram com os sinais

diacronicos e sincronicos valorizados pelos grupos.

Sem dúvida, a africanidade dessas composições é multiétnica e referendada no território

cultural brasileiro. O pertencimento é reafirmado como resultante de um hibridismo cultural,

transposto para o campo das práticas ritualísticas e sentimentos de pertença, alicerçado numa

memória individual e coletiva das diversas matrizes que compuseram a tradição.

As histórias individuais são, assim, exemplos de “autoconstrução de identidade referendada na

África e imbricada num processo de resistencia cultural religiosa brasileira”. (PINHO, 2004.) Analisar

essas representações sobre o ser afro descendente, como a noção de identidade étnica - religiosa é

também compreender seus sentidos políticos e a necessidade de inclusão que evidenciavam dentro

das comunidades o fortalecimento com uma grafia diversificada, mas que só a partir dos anos 70,

ganhou dimensão nacional.

Segundo Jaques D’Adesky (2005, p. 118), o Território deve ser entendido enquanto espaço

que se constitui por meio da relação de grupos sociais que se encontram e se reconhecem, em

um local segundo uma forma de comunicação que gera relações permeadas por significados

hierarquizados, valorizados e polarizados. A leitura do autor corrobora perfeitamente com os

significados intrínsecos representados no Terreiro de Candomblé, este se sobrepõe à importância da

“materialização do território”.

O espaço do Terreiro representa as construções culturais que estão inscritas em cada corpo,

em cada elemento, em diferentes ambientes e na própria natureza. Configura uma rede “relacional de

representações coletivas” reconhecidas por todo grupo social. Dessa forma, o espaço se transforma

e é transformado em “loteamentos territoriais”, segundo os quais se dividem até mesmo as nações

de candomblés no mesmo terreiro.

O espaço do Terreiro deve ser interpretado também enquanto local de diferenças e conflitos

expressivos de uma identidade que está em constante processo de reconstrução: espaço que poderá

ser alterado, ressignificado, inclusão ou omissão de inscrições culturais, polarizações e rupturas,

em que pesem os interesses circunstanciais dos sujeitos envolvidos.

Se, de alguma forma, a visualização do espaço do Terreiro indicar uma “aparente desordem”

devemos pensar, exatamente o contrário, pois esses sinais de desordem: Traduzem projetos,

intenções que levam para além de sua dimensão espacial um significado temporal e simbólico que

influi na formação da identidade. (D’ Adesky, 2005, p. 122).

Appiah, ao pensar as identidades africanas (1997, p. 248) salienta tres grandes aspectos que

poderão ser estendidos às identidades religiosas afro-brasileiras. Primeiro, que “as identidades

são complexas e múltiplas, e brotam de uma história de respostas mutáveis às forças economicas,

políticas e culturais, quase sempre em oposição a outras identidades”. Segundo, que elas florescem

a despeito do que antes o autor chamou de “desconhecimento” de suas origens, ou seja, suas

bases estão assentadas em mitos e mentiras. E, por último, que não há muito espaço para razão na

construção das identidades, politicamente é interessante exaltar identidades que parecem oferecer

esperanças a objetivos futuros e silenciar o passado complexo. Para Ferreira (2000, p. 46), identidade é um constructo que reflete um processo em

constante transformação, cujas mudanças vem sempre associadas a mudanças referenciais e a

novas construções de realidade por parte dos indivíduos, determinadas por sua participação em

certos processos provocadores de impacto existencial.

E ainda (2000, p. 47):

Talvez fosse mais correto denominá-la dinâmica de identificação, sempre submetida à dinâmica do processo de viver. A identidade refere-se à representação

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que o indivíduo tem de si próprio que sofre mudanças ao longo do tempo e das relações de sociabilidade que dão sentido e particularizam a sua existencia.

Segundo Haesbaert (1999, p. 174-175), a identidade não deve ser encarada como algo

estático, mas, como em constante movimento. “Trata-se sempre de uma identidade em curso, e

por estar sempre em processo/relação ela nunca é uma, mas múltipla”. Ela se “define em relação a

outras identidades numa relação complexa de escalas territoriais e valorações negativas e positivas”.

Para as comunidades – terreiros, a identidade se concretiza a partir da inserção ritualística

no grupo, se for o caso, fundação de um novo núcleo onde a questão do espaço é condição sine

qua non de sua consolidação e reconhecimento (Haesbaert 1999:178):

Trata-se de uma identidade em que um dos aspectos fundamentais para a sua estruturação está na alusão por referencias a um território tanto no sentido simbólico quanto concreto.

Da mesma tese compartilha Stuart Hall (1997, p. 76):

Todas as identidades estão localizadas no tempo e no espaço simbólico. Elas tem aquilo que Edward Said chama de geografias imaginárias: suas paisagens, características, seu senso de lugar, de casa/lar, de heimat, bem como suas localizações no tempo.

O grupo religioso constitui espaço privilegiado para difusão da memória e cultura africanas.

Segundo a autora Salete Joaquim (2001), ao construir uma identidade afro-brasileira no Candomblé,

ela em determinados aspectos se diferencia de uma identidade negra, uma vez que esta possui uma

conotação mais militante política, segundo a ótica do Movimento Negro Unificado.

O Candomblé desenvolve atitudes e padrões de comportamentos independentes, que preservam

a identidade própria, contribuindo tanto para a identidade afro-brasileira, como para a identidade

negra, através da busca das tradições culturais e da criação de novos símbolos e valores da ação

social, na tentativa de contribuir com novas atitudes de grupos (Joaquim, 2001).

Partindo-se do pressuposto de que a identidade pode ser edificada a partir dos interesses

individuais e ou de um grupo, pode-se afirmar que isto se dá porque, segundo Baumam (2005,

p.19):

As identidades flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas. Há uma ampla probabilidade de desentendimento, e o resultado da negociação permanece eternamente pendente.

Assim, conclui esse autor que a “identidade”, só nos é revelada como algo a ser inventado, e não

descoberto; como alvo de um esforço que visa construí-la a partir do nada ou mesmo optar entre

várias alternativas. A identidade interpretada dessa forma aparece inconclusa e da sua condição de

precariedade busca ocultar-se (Baumam, 2005, p. 21-22).

A identidade deve ser compreendida enquanto processo contraditório e dinâmico, como nos

advertiu Stuart Hall (2006, p. 13): “Dentro de nós, há identidades contraditórias, empurrando em

diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”.

Para Bauman (2005, p. 19), estar deslocado é:

Estar total ou parcialmente “deslocado” em toda parte, não estar totalmente em lugar algum (ou seja, sem restrições e embargos, sem que alguns aspectos da pessoa “se sobressaiam” e sejam vistos por outras como estranhos), pode ser uma experiencia desconfortável, por vezes perturbadora. Sempre há alguma coisa a explicar, desculpar, esconder ou, pelo contrário, corajosamente ostentar, negociar, oferecer e barganhar.

O deslocamento ou processo de desterritorialização implica na proximidade e convivencia com

outras culturas e, por isso, inevitavelmente haverá apropriações ou mesmo redefinições de elementos

que poderão ser assimilados pelo grupo. Dessa forma, a construção de uma identidade deve ser

interpretada como reflexo de uma idealização social centralizada, portanto:

Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma comoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (Hall, 2006, p.13).

Ferreira, (2000, p. 46) também recomenda a compreensão da identidade refletindo um processo

em contínua transformação ao longo da vida, “cujas mudanças vem sempre associadas a mudanças

de referencias e a novas construções de realidade por parte dos indivíduos, determinadas por

sua participação em certos processos provocadores de impacto existencial”. Assim, há que se

concordar mais uma vez com Ferreira, ao conceituar identidade como “uma referencia em torno do

qual a pessoa se constitui” (Ferreira, 2000, p. 47).

Observando que a categoria identidade sugerida nesse trabalho é algo fluído, construído

e edificado com base nas experiencias individuais e grupais, caracteriza-se enquanto processos

múltiplos, mas, ao mesmo tempo, simultâneos e diferenciados.

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MEMORIAS EM COMUNIDADES AFRO

A memória representa para as comunidades - terreiros o principal elemento de religação

com o tempo passado e com as pessoas desse passado. Rememoram-se acontecimentos que, se

pedagogicamente lembrados, são capazes de elevar a autoestima do grupo, preservar costumes, ou

mesmo, justificar mudanças. Embora as comunidades-terreiros não sejam exclusivas para negros-

mestiços, estas pessoas nesses espaços culturais, a partir da memória referendada, reconstroem

sua identidade religiosa sociocultural, reforçando pertencimentos valorativos do ser negro em sua

totalidade.

Dessa forma, a memória assume um lugar de extrema importância, ao ser responsável

pela continuidade e, de forma paradoxal, desmistificar a negação da história de negros e negras na

formação da sociedade baiana.

A partir dessas reflexões teóricas, voltamos nosso olhar para as concepções aos memoriais

afro. Reiteramos a importância política desses espaços de cultura, mas criticamos o imobilismo da

coleção em museus tradicionais. Particularmente, os memoriais edificados dentro de comunidades-

terreiros, reeducam, ao transcender as limitações dos escritos academicos cuja visão epistemica,

permeada pelo racismo e preconceito obscurecem, confundem, simplificam sistematização das

complexas memórias em comunidades negras. Não se trata apenas de preservar o passado

reunindo peças, mobiliários, vestimentas, busca propor uma nova linguagem visual estabelecendo

a comunicação passado-presente, o sentido da existencia física e ideológica do grupo. A instalação

de memoriais em comunidades terreiros politicamente aproxima as pessoas desse passado em

um ambiente não opressivo, a memória centralizada evoca o passado onírico e de resistencia

aos padrões culturais, mas nem por isso desatrelado dos processos de reconstruções culturais,

inovações, apesar dos discursos da tradição com o forte desejo de ser imutável.

Contrariando o pensamento de Neurath, segundo MENDES (2013), de que “a padronização da

cultura poderia ajudar a trazer senso e racionalidade às massas ao mesmo tempo em que promoveria

o entendimento global”, o movimento de criação dos memoriais afro em comunidades reforça a tese

das identidades culturais que se movem na contramão dos sistemas sociais, cuja pretensão de

hegemonia depara-se com a apropriação do discurso multiculturalista e do reconhecimento das

“teias de culturas” que fortalece as culturas populares, e particularmente as aqui abordadas.

Ao pensar a história de homens e mulheres negros na sociedade, devemos pressupor que

de uma forma ou outra houveram movimentos de resistencia individual e coletiva. Embora alguns

livros didáticos já reflitam as novas tendencias da historiografia sobre o negro, a imposição das Leis

10639/03 e 11. 655/08, reforçaram a exigencia de um olhar específico para ao história de negros e

negras e as relações étnicos raciais. De fato, a partir de então alguns cuidados foram tomados pela

sociedade marcada pelos estereótipos e racismo, contudo, permanecem os negros em lugares de

invisibilidade social ou simplesmente atendem ao apelo daqueles que estando em Salvador idealizam

uma cidade adormecida no século XIX. Exemplifico esta situação, tomando como referencia no

campo da cultura os sujeitos que são aprisionados nas lentes dos fotógrafos e na mídia, as imagens

reproduzidas são do negro feliz, alheio aos problemas de classe, a política a economia.

Outros estão em estado de vulnerabilidade social, beirando a marginalidade, jinga e vocabulário

entremeado de expressões metafóricas, construções livres, cujo código de linguagem não é estranho

aos grupos que pertencem. Se apreendidos por essas câmeras no campo da religião, o registro

imagético reforça uma visão de práticas culturais presas a um passado longínquo, celebrando em

espaços e tempos bem definidos cuja visão excentrica só se confunde com a ingenuidade de pensar

que são todos despolitizados e com baixo grau de escolaridade.

Conforme nos advertiu PINHO (2004) a reinvenção da África atende particularmente a um

grupo, impossibilitado de enxergar os processos históricos constituídos, resultado dos hibridismos

culturais, das escolhas e do que acham conveniente ser negado ou exaltado. Estes sujeitos, quando

não insuflados pelas políticas para a cultura afro, procedem na prática a dinâmica das continuidades,

descontinuidades e reelaborações de traços culturais significativos ao grupo. Asfixiados, procuram

emergir, burlando os pactos culturais, apropriando-se e em constante movimento. Poderão ser

vítimas dos rearranjos, estratégias desesperadas para sobreviverem, ou poderão desaparecer de tão

fluidas que se tornaram.

Porém, subjaz a memória, só estimuladas pelas lembranças, que produzem ecos na memória

individual, reforçada pelo exercício de rememorarem coletivamente em ambiente demarcado pela

cronologia do tempo e do relógio. Esgueirando-se no enfrentamento com as novas ideologias, cuja

finalidade também é diluir por completo referencias culturais que reforçam o direito de ser múltiplo

e a escolha de pertencimentos culturais. As memórias afro, só pontualmente são interessantes

aos poderes públicos, ascendem ao lugar de importância político-cultural atrelada a concepção de

bens simbólicos onde podem ser meramente comercializados. Na contramão desses processos,

realinham-se politicamente nos próprios espaços religiosos, instrumentalizam-se juridicamente, mas

ainda assim continuam muitas vezes reféns dos agenciadores de cultura. Nem sempre a barganha é

bom negócio.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Análise inconclusa, fica posto o desafio da conclusão das histórias de homens e mulheres

negras que possam transcender a visão histórica tradicional, as narrativas excentricas ou

excessivamente romantizadas. Que seja evidenciado outros papéis, pertencimentos sociais que

inspirem poder e importância. Que a apreensão da memória revele superação, desconstrução

ideológica e prática militante, cuja trajetória vislumbre liberdade e a possibilidade da quebra dos

estigmas que aprisiona a memória negra no espaço da domesticidade e da subalternidade.

Exemplificando este processo, a comunidade do terreiro Ile Axé Maroketu em Cosme de

Farias, Salvador-Bahia, esforça-se em criar no espaço da domesticidade dentro do terreiro, a partir

da disposição de objetos, mobiliário, móveis, utensílios e quadros, as referencias étnico-religiosas

e territorial de sua fundação. A oralidade reforça as ideias projetadas materialmente, mas também

já indicam a memória e como ela deve ser apropriada. Preserva-se rememorando a mitologia e

liturgia que fundamentam a coesão do grupo, suas afinidades, escolhas míticas. Na contramão dos

essencialismos culturais, tomam como referencia a condução do discurso político e apaziguador

das contribuições inter- étnicas e das tradições religiosas, todas resultados dos processos religiosos

e influxos sofridos pela fundadora da comunidade. O conceito de velho e a prática de refutar qualquer

elemento que possa evidenciar a longevidade, as crises e superações que perpassam a existencia

da casa e das pessoas, é ciosamente preservado. Ainda, que todo trabalho de preservação e

recuperação física da memória esteja em processo, garimpar e fazer emergir do esquecimento e

do porão (depósito), espaços dos enjeitados e pré - destinados a serem transformados em pó, se

tornou uma atitude política sensata e de orgulho ao pertencimento religioso.

Ou como bem definiu uma senhora, figura ilustre na composição do grupo: “A casa toda é um

“tisouro” (tesouro)...por isso que guardo, mandam jogar fora e guardo, eu sei que vai servir, é tradição,

ne?!17”. Embora talvez esta senhora nunca tenha ouvido falar sistematicamente sobre patrimonio

cultural, já esboça o sentimento da preservação de itens que possam contribuir na descrição da

história do grupo, que lembre a passagem de alguém, acontecimentos no cotidiano, disputas... Para

reativar a memória do grupo, seu passado, e reforçar a ideia de permanencia e continuidade, qualquer

elemento, objeto, servirá para detonar a memória que individual ou coletivamente, reproduzirá o vivido

e apreendido, meticulosamente organizando as palavras, coordenando as omissões, esquecimentos.

E rapidamente poderá processar estruturas mentais para preenchimento dos lapsos, das perdas,

todas resultados de situações bem definidas, de ameaças dos de fora da casa e daqueles que

mesmo no interior de seus espaços não resistiram simplesmente as incursões das informações

trazidas pelos de fora. O dinamismo do grupo, pode refletir na memória que deseja preservar,

17

desenhar esta memória pela casa toda foi o caminho encontrado pelo Maroketu. Os memoriais afro

inscrevem a memória que se deseja ser preservada, seus interregnos, entrelaçamentos, exclusões

e apropriações. Se existe um risco para o imobilismo, a estrutura de funcionamento refém do tempo

e dos relógios se incubarão de propor as direções para uma nova memória, cabe a oralidade iniciar

primeiro o processo.

Entrevista realizada com D. Olga Marinalva, Equede (cargo honorífico na estrutura religiosa), em 2005.

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REFERÊNCIAS

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BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos 3ªed. São Paulo: Companhia das Letras,

1994.

D’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos no Brasil. Rio

de Janeiro: Pallas, 2005.

FERREIRA, Ricardo Franklin. Afrodescendente: identidade em construção. São Paulo: EDUC; Rio de

Janeiro: Pallas, 2000.

HAESBAERT, Rogério. “Identidades territoriais” In: ROSENDAHL, Zeny e CORRÊA, Roberto Lobato.

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HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira

Lopes Louro. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

___. “Identidade cultural e diáspora”. Revista do Patrimonio Histórico e Artístico Nacional. Brasília,

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HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro, 1550 - 1800: ensaio de interpretação a

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JOAQUIM, Maria Salete. O papel da liderança religiosa feminina na construção da identidade negra.

Rio de Janeiro: Pallas; São Paulo: EDUC, 2001.

MENDES, Luciana Corts. Transformações na percepção do museu no contexto do Movimento

Bibliográfico: as concepções de museu de Paul Otlet e Otto Neurath. In Revista Perspectivas em

Ciencia da Informação,v.18,n.4,p. 185-199, out./dez. 2013.

PINHO, Patrícia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume, 2004.

ADOLESCENTES HOMOSSEXUAIS E OS CONFLITOS EM ASSUMIR PUBLICAMENTE A ORIENTAÇÃO SEXUAL: UMA ANÁLISE DE DISCURSO (GAYS TEENAGES AND TROUBLE

ACCEPTING THEIR SEXUALITY: A SPEECH ANALYSIS)

Joanna Mendonça Carvalho18*

Anísia Gonçalves Dias Neta19**

Jeyslane Magalhães da Silva20***,

Leonardo Santos de Oliveira21****.

RESUMO

Este trabalho trata de questões de genero, no âmbito dos conflitos e dificuldades

apresentadas por adolescentes e jovens com orientações sexuais não heteronormativas. Para tal,

foram realizadas dez entrevistas semiabertas com adolescentes/jovens de 15 a 18 anos, todos

estudantes de Ensino Médio em escolas na cidade de Catu, tendo como participantes cinco

meninas e cinco meninos. Analisando os discursos presentes nas entrevistas e cruzando com os

estudos bibliográficos, percebemos que boa parte dos adolescentes entrevistados não “tiveram

coragem” de declarar a orientação sexual para suas famílias, não encontrando “espaço” para tal

ou apresentando medo das possíveis reações. Os poucos que assumiram a orientação sexual

revelam que, mesmo respeitando (mas “não aceitando”) a orientação sexual do/a filho/a, a questão

ainda gera “incomodo”, “constrangimento”, não tendo abertura para o convívio natural com seus

companheiros/companheiras. Aceitações parciais, não aceitações e “piadinhas” e/ou “apelidinhos”

sobre orientação sexual nos levam a concluir que, mesmo não havendo casos de violencia física

no universo pesquisado, a violencia simbólica, verbal, psicológica, moral e emocional se mostra

presente nas vidas desses adolescentes e jovens, o que afirma a forte presença ainda da imposição

de uma educação heteronormativa em diversas instâncias sociais.

Palavras-chave: Adolescentes. Orientação Sexual. Homofobia.

This work discusses gender issues in the context of conflicts and difficulties of young people

with sexual orientations not heteronormative. To this end, we make ten semi open interviews with

18 * Professora do IfBaiano Catu/BA. Orientadora do artigo19 * * Professora do IfBaiano Catu/BA. Orientadora do artigo20 * ** Aluna orientanda do Ifbaiano Catu/Ba21 * *** Aluno orientando do Ifbaiano Catu/Ba

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teens (15-18 years old of age). All students are from Secundary School, at city of Catu/Bahia/

Brasil. We interviewed five girls and five boys. Analyzing the discourse present in the interviews and

crossing with bibliographical studies, we realized that most of the teenagers did not “have courage”

to declare sexual orientation to their families. They did not find “space” for this or they are feeling fear

of possible bad reactions. Few teenages who took sexual orientation before the family reveal that,

even respecting (but “not accepting”) then sexual orientation, the issue still generates “nuisance”,

“embarrassment”. They don’t have no opening for socializing natural with your mates/companions.

Acceptances partial, acceptances and “jokes” about sexual orientation, alow us to conclude that,

even without physical violence in the group studied, the symbolic, verbal, psychological, moral and

emotional violence shown strong presence of a heteronormative education in various social levels.

Keywords: Teenage. Sexual Orientation. Homophobia

INTRODUÇÃO

A sexualidade é vista como um assunto privado, algo do qual não se pode falar publicamente,

que é íntimo e reservado, presente, no máximo, entre um grupo pequeno de amigos. Viver plenamente

a sexualidade no contexto sociocultural ocidental, sobretudo até meados do século passado com os

primórdios do movimento beatnik e movimento hippie, em princípio, era uma prerrogativa da vida

adulta, a ser partilhada apenas com o sexo oposto. Assim, a educação dos adolescentes é voltada

para uma preparação para viver a sexualidade futuramente.

Nos estudos de LOURO (2010) sobre sexualidade e comportamentos, aprendemos que essa

educação é exatamente um modelo heteronormativo, no qual educam as crianças e adolescentes

para uma vida dentro de padrões estabelecidos. Assim, assumir uma orientação sexual diferente

destes padrões torna-se uma tensão, uma questão a ser enfrentada, a ser vencida. Em se tratando

de adolescentes, a questão torna-se ainda mais emblemática, pois é uma fase de transição e

conflitos que contribuem para aumentar os obstáculos a serem enfrentados. Adolescentes que

resolvem assumir a sua orientação sexual, ou mesmo não assumindo, ainda vivem uma realidade de

preconceito existente na nossa sociedade.

Mesmo com leis que punem preconceitos e crimes contra a homofobia, eles ainda são

bastante frequentes em nossa sociedade brasileira, chegando a altíssimos índices. Dentre a divisão

destes índices por estado, a Bahia ficou em primeiro lugar, o que mostra como a homofobia faz

vítimas de diversos tipos, desde homossexuais que sofrem agressões e muitas vezes tão violentas

que levam à morte, até pais que agridem os filhos de forma verbal, psicológica ou física por serem

homossexuais. O preconceito homofóbico é tão violento que vitimiza até heterossexuais que externam

alguma afetividade com outra pessoa do mesmo sexo. Essa situação é ainda mais agravante quando

se trata de adolescentes, pois os pais e a sociedade costumam agir de forma a normatizá-los e

educa-los, conforme padrões que não acolhem suas orientações sexuais ou suas expressões da

sexualidade.

Diante desta triste realidade, torna-se fundamental analisar os processos e as dificuldades

pelos quais adolescentes homossexuais passam. É necessário que haja a quebra de paradigmas

postos pela sociedade para que homossexuais possam ter direitos igualitários, possam trabalhar e

caminhar normalmente sem sofrer preconceitos.

Para pensar essas questões, analisamos neste trabalho discursos de adolescentes/jovens

homossexuais de escolas do ensino médio do município baiano de Catu sobre as interações e

conflitos acerca de suas orientações sexuais perante a família e a sociedade, observando as questões

que estes encontram nesse processo de ir contra uma normatização da sexualidade que aprenderam

tanto na família, quanto na escola e na sociedade em geral.

Assim, nossa pesquisa tem como objetivo conhecer sobre a diversidade sexual, diálogo

e acolhimento familiar, bem como as discriminações e preconceitos referentes à aceitação

de adolescentes homossexuais e o aceitamento dos mesmos na família e sociedade em geral.

Levantando essa discussão estaremos promovendo também um combate aos preconceitos acerca

das orientações homoafetivas para que o adolescente se sinta protegido e possa se expressar com a

família, tendo o seu apoio para enfrentar os desafios aos quais estão expostos em nossa sociedade.

1. GÊNERO, ADOLESCENCIA E SEXUALIDADE

Os processos de construções de genero são tema de inúmeros estudos das mais diversas

áreas. Contudo, mesmo diante de sua complexidade e abrangencia, notamos em ciencias humanas

uma tendencia em abordá-los como processos socioculturais, não determinados pela genética e

pela biologia, portanto, não devendo ser naturalizados. Segundo FÁVERO (apud D’ABREU, 2012) o ponto central da construção da subjetividade e da identidade dos generos reside na emoção, na

maneira como essa é entendida e atribuída a significados ditos “femininos” ou “masculinos”, ou

seja, “o núcleo central da socialização do genero é a socialização das diferenças nas expressões

emocionais” (p. 127) (como apego, medo, raiva,culpa), que mantem a dicotomia dos papéis de

genero e das relações de poder.

Com os adolescentes não ocorre de forma diferente: mesmo com o modelo heteronormativo

e tradicionalista que prega a vida sexual plena apenas para o universo adulto e a ser partilhada

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somente com um parceiro do sexo oposto, os processos de construções de genero e sexualidade

são parte constituintes da vida das crianças e, sobretudo, dos adolescentes, o que mostra a

importância de seus estudos e interlocuções.

Para CLERGET (2004), a adolescencia é uma época difícil para a família, e pode ser ainda

mais difícil para os garotos e as garotas. Destinada a auxiliar as famílias em situação de conflitos

com adolescentes, em sua obra o autor busca separar o que faz parte da crise da adolescencia

comum e o que representa sofrimento, impasse na evolução ou risco vital. Por isso fala sobre a

dificuldade de impor limites nesse período, sentida por muitos pais de adolescentes, como uma fase

difícil da vida.

Ao analisar a trajetória e as condições de um adolescente homossexual que passa por crises

devido ao preconceito e à ausencia de suporte familiar, SILVA (2012, p.1) observa que “(...) a

passagem da vida adulta demarca inquietações, e o jovem com uma orientação sexual divergente

potencializa essa situação.” Para autor, “a adolescencia consiste num rito de passagem entre

o universo infantojuvenil e a vida adulta, de um ser que ainda não está pronto para assumir as

responsabilidades pelos seus atos.” (SILVA, 2012, p.2). Por isso mesmo é a idade dos conflitos

(enfaticamente internos), dos dilemas e contrastes, recheada de preocupações sobre o futuro, a

escolha profissional, a exposição a estímulos encontrados na sociedade, tais como as drogas, lícitas

e ilícitas-, construções identitárias e das sexualidades, enfim, um rol de pressões e incertezas em

plena festa hormonal.

Segundo Silva, tudo isso se acentua “(...) quando se trata da sexualidade dita desviante,

porque diverge da maioria, portanto, se torna bem mais inquietante ou angustiante adolescer com

esse tipo de orientação sexual. Quando o adolescente manifesta um comportamento sexual voltado

para a heterossexualidade, é mais um motivo facilitador para sua entrada no mundo adulto, os pais

ficam orgulhosos e isso parece atestar que, pelo menos no campo da sexualidade “acertaram na

educação”. (...) Mas no caso do adolescente que se descobre com tendencia homossexual ou gay,

ele se sente desamparado em decorrencia da intolerância social e falta de apoio familiar.” (SILVA,

2012, p.4).

Observamos assim que, levando em consideração as dificuldades da fase da adolescencia,-

quando as crianças vão se preparando para a fase adulta e apresentam conflitos próprios desta

fase, o que inclui descobertas afetivas, amorosas e sexuais, além de choques geracionais com

adultos- a situação se agrava ainda mais paras os pais e as famílias em geral quando a construção

da sexualidade foge do padrão heteronormativo.

Louro (2010) vai justamente tratar dos modelos impostos sobre os corpos ao estudar as

pedagogias da sexualidade. Ela alerta para uma educação heteronormativa em que existem “(...)

referencias e critérios para discernir e decidir o quanto cada menino e menina, cada adolescente

e jovem está se aproximando ou se afastando da ‘norma’ desejada.” (LOURO, 2010, p.18) Nesse

contexto, “(...) a sociedade busca, intencionalmente, através de múltiplas estratégias e táticas,

‘fixar’ uma identidade masculina ou feminina ‘normal’ e duradoura. Esse intento articula, então, as

identidades de genero ‘normais’ a um único modelo de identidade heterossexual.” (LOURO, 2010,

p.25/26) .

Ainda, segundo Louro:

Através de múltiplas estratégias de disciplinamento, aprendemos a vergonha e a culpa; experimentamos a censura e o controle. Acreditando que as questões da sexualidade são assuntos privados, deixamos de perceber sua dimensão social e política. As coisas se complicam ainda mais para aqueles e aquelas que se percebem com interesses ou desejos distintos da norma heterossexual. A esses restam poucas alternativas: o silencio, a dissimulação ou a segregação. A produção da heterossexualidade é acompanhada pela rejeição da homossexualidade. Um rejeição que se expressa, muitas vezes, por declarada homofobia. (LOURO, 2010, p.27)

Percebe-se, assim, que o processo impositivo da heteronormatividade tem consequencias

nefastas na sociedade, que confunde questões socioculturais e políticas- além de éticas e humanas-

com o âmbito do privado, gerando exclusões, violencia simbólica e física.

2. PERFIL DOS ENTREVISTADOS

Idades, histórias e sexualidades

Figura 01: Idade dos adolescentes/jovens entrevistados

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No universo pesquisado 50% são mulheres e 50% homens, com idades entre 15 e 18

anos, todos estudantes de Ensino Médio em escolas da cidade de Catu/BA, e naturais de cidades

de pequeno a médio porte. Dentre os dez entrevistados alguns revelaram ter começado a sentir

atrações por pessoas do mesmo sexo por volta dos 12 e 13 anos. Apenas uma delas demonstrou ter

parceiros fixos: um namorado há cinco anos e uma namorada há tres anos, sendo que o namorado

não sabe da existencia da namorada, mas a namorada sabe da relação com o namorado. Outra

entrevistada comentou sobre uma companheira, mas não mencionou temporalidade alguma. Os

demais não tocaram no assunto.

Identidades sexuais: “Homossexual” e “Bissexual”

Figura 02: Identidades sexuais dos adolescentes/jovens entrevistados

Entre os entrevistados, 50% se identificaram como homossexuais e 50% como bissexuais.

Coincidentemente, os que responderam ser “homossexual” são homens e as que se declararam

“bissexual” são mulheres. Algumas questões surgem desse resultado: Por que as meninas não

se julgam homossexuais, mas sim bissexuais? Por que os dados estão separados por sexo? As

mulheres “ousam experimentar” as possibilidades de sua sexualidade mais do que os homens?

Ou as mulheres tem mais experiencias “gays” devido a facilidade de estar com meninas justamente

porque são castradas e vigiadas em relação à sua sexualidade heterossexual?

E mais, uma delas chama a atenção para a identidade, para a questão de não se rotular, não

se definir. E aqui é importante lembrar que, segundo Butler (apud LOURO, 2010), as sexualidades,

assim como os generos, são construídas de maneira muito fluida e as identificações são mais

pedagógicas, tentando facilitar o entendimento das questões, do que rótulos e fixações. Entrevistada

C ao ser perguntada sobre sua orientação sexual: “(pausa longa) Eu sou bissexual. Considerada

bissexual. (...) Não tenho besteira comigo e não tenho rótulo, nem nada do tipo. Minha opção sexual

é o amor...”

3. ACEITAÇÃO FAMILIAR QUANTO À ORIENTAÇÃO SEXUAL

Tratando justamente da juventude e homossexualidade, e os conflitos familiares e outros advindos

desta orientação, BOZON (2004) observa que, em termos de práticas sexuais, a homossexualidade ainda

aparece relacionada à dificuldade da aceitação institucional e os conflitos internos / privados, como a família;

e os externos/públicos, como os amigos, escola e trabalho.

Não aceitação da família: não sabem, não aceitam ou “não aceitam, mas respeitam”

Figura 03: Aceitação familiar quanto à orientação sexual de seus/suas filhos/filhas

Pudemos observar em nossa pesquisa uma maciça falta de aceitação familiar (0% aceita),

pois, entre os entrevistados que disseram que a família não aceita, percebe-se na verdade uma

indiferença por parte da família para a questão, como se ao não comentar o assunto, o resultado

seria a sua inexistencia.

Dos entrevistados que ainda não contaram para a família, todos relatam que o motivo é o de

saberem que não serão aceitos. Comentam que não querem ter discussões ou problemas de rejeição

na família, já que tem certeza de que não serão acolhidos por seus familiares. Entrevistada A:

“Não, eu não tive coragem de contar para eles. (...) Eu sou assumida em público, só não tive

coragem de me assumir para minha família porque minha mãe é tipo super preconceituosa. (...) No

mínimo ela vai querer me botar pra fora de casa, vai querer me deserdar. (...) Ela não vai aceitar de

jeito nenhum. Ela já falou que prefere ter um filho ladrão bandido do que um filho homossexual”.

Entrevistado E: “Tenho medo que eles não me aceitem do jeito que eu na verdade sou, do jeito que

eu escolhi viver”. Mesmo dentre as poucas famílias para as quais os adolescentes se assumiram, notamos

uma rejeição e a permanencia do ideal heteronormativo nos relatos dos entrevistados.

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Entrevistado C: “Em relação a família, ééé, no começo minha mãe não aceitava, assim, não aceitava

muito minha opção sexual. Agora, quer dizer, não aceita ainda, mas releva mais um pouco, me

respeita e tudo, só não posso levar, assim, minha companheira pra casa.”

Outra entrevista aponta para uma possível criação de espaço de diálogo familiar,- o que

é bastante positivo e até foi fundamental para a sobrevivencia do Entrevistado I,- não afirmando,

contudo, uma aceitação completa a ponto de reconhecer o companheiro ou ver o filho em expressões

de afetividades com o mesmo: “Rapaz, desde os meus 14 anos sou assumido para minha família.

Eles não aceitam, mas respeitam. No começo foi muito difícil eu me assumir pra ela pois tinha

medo, só que teve um ponto que eu não aguentava mais, ficava doente com frequencia. Aí eu

cheguei e resolvi contar pra minha família toda. No começo ninguém aceitou, mas com o decorrer

dos dias começara, a ,e respeitar, entender meu lado e começara, a me dar mais espaço pra poder

conversar com eles sobre isso.”

Boa parte dos relatos confirmam a situação colocada por LOURO:

De acordo com a concepção liberal de que a sexualidade é uma questão absolutamente privada, alguns se permitem aceitar ‘outras’ identidades ou práticas sexuais desde que permaneçam no segredo e sejam vividas apenas na intimidade. O que efetivamente incomoda é a manifestação aberta e pública de sujeitos e práticas não heterossexuais.(LOURO, 2010, p.29)

Assim, mesmo com o discurso da aceitação as manifestações afetivas não-heteronormativas

ainda “constrangem” e “incomodam” socialmente, devendo permanecer no âmbito privado, enquanto

que as afetividades heteronormativas são aceitas e, por vezes, até estimuladas.

4. FAMÍLIAS E RELIGIÕES

Com base nos discursos analisados um dos principais motivos para a não aceitação familiar

quanto à orientação sexual dos entrevistados foi o fator religioso. Das dez entrevistas realizadas, seis

mencionaram o fator religião como um dos principais empecilhos ao combate ao preconceito sobre

a homossexualidade. Das religiões citadas encontram-se majoritariamente a católica e a evangélica,

passando pelo espiritismo e por entidades filosóficas como a maçonaria.

Entrevistada A: “Minha família é uma mistura de várias religiões. Minha mãe é católica, minha

vó espírita, etc. São várias religiões, e todas são contra o homossexualismo e o bissexualismo. (...)

Pregam que o homossexualismo é pecado, que o homem nasceu para a mulher e a mulher para o

homem, tal e tal, e que vai pro inferno [quem não for assim].”

Para o Entrevistado J, cuja família é toda evangélica, a possibilidade de se assumir perante

a mesma é bem remota: “Minha família é por inteira evangélica, não aceitam o homossexualismo.

Por esse motivos e outros não me assumo para eles e nem pretendo me assumir tão cedo.”

Ainda, segundo o relato do ENTREVISTADO H “Minha família uma parte é católica,outra

evangélica, outra espírita e outra maçom. Todas ela de certa maneira proíbem o ato de relacionamento

de pessoas do mesmo sexo.”

5. “é FASE, VAI PASSAR”

Como uma forma de lidar com o fato da possibilidade em ter um/a filho/a homossexual

algumas famílias, mesmo não sabendo da boca de seus filhos as suas orientações sexuais, ao

demonstrar desconfiança acerca do assunto parecem reforçar o discurso de que “é fase, e vai

passar”, atrelando a um futuro abandono da homossexualidade por parte de seus/suas filhos/filhas.

A entrevistada D revela que: “Quanto à família, a família desconfia, mas não sabe, então fica aquela

coisa meio ‘Eu sei que você apronta’, entendeu? (...) Já comentaram, já falaram que viram uma

coisa, sei lá, uma relação muito íntima minha com uma pessoa, aí disseram pra eu ‘olhar minha

vida’. Aí foi isso, que eu não devia ficar dando em cima das pessoas assim.”

Os pais da entrevistada D parecem não querer abordar o assunto com a filha apegando-se

ao discurso da “fase”. O mesmo é reproduzido em parte por ela quando afirma que “A pessoa tá

começando a sentir essas coisas [atração por indivíduos do mesmo sexo] e tudo, mas ela tem a

opção de entender, viver essa fase, passar,e, depois, sei lá, seguir a vida seguindo.” Ao mesmo

tempo afirma que “tem pessoas que vivem mesmo nesse mundo (...) pode ser uma fase ou pode

ser pra sempre”, o que nos leva a pensar também sobre a ideia de experimentação passageira da

sexualidade X estado de permanencia presentes no discurso da entrevistada.

6. ORIENTAÇÃO OU ESCOLHA/ OPÇÃO?

Com um pequeno direcionamento acerca dessa questão por parte dos entrevistadores,

cerca de 50% dos entrevistados responderam que a pessoa nasce com uma orientação sexual e que

não é uma opção. Outros opinaram que é uma escolha e outros ainda afirmaram que o assunto é

complexo, havendo pessoas que já nascem com um orientação sexual X e outras que se descobrem.

A Entrevistada F declara: “Na minha opinião, a pessoa nasce. Nasce porque eu acho que, tipo

assim, , um exemplo, o fato de eu andar com outras meninas não quer dizer que eu vou influenciar

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as outras a serem o que eu sou. Eu acho que a pessoa já nasce com aquilo.” O entrevistado J

afirma: “Eu acho que esse questionamento não é muito verdadeiro, pois eu nasci homossexual e

não é uma fase. Foi o que eu escolhi pra mim desde o início.”

7. SEGURANÇA E AFIRMAÇÃO X MEDO E CONFLITOS

Grande parte dos entrevistados demonstraram uma certa segurança sobre suas orientações

sexuais, sendo “bem resolvidos” e sem muito receio, por vezes com algumas pausas, risos e

timidez, mas em sua maioria e, sobretudo perante os amigos, mostraram ter confiança e se revelar.

Quando se trata da segurança e afirmação diante das famílias o quadro não se mostra o mesmo.

Analisando a idade dos adolescentes entrevistados com relação à revelação da orientação sexual

para as famílias observou-se que, de muitos dos que já assumiram publicamente sua orientação

sexual, a maior parte já possuía a sua maioridade. Desta maneira surge uma inquietação: mesmo

os mais decididos, já tendo completado os 18 anos, ainda assim tem medo e/ou receio de contar

para sua família.Uma segurança mais ampla, e, sobretudo para muitos jovens do sexo masculino,

parece recair assim sobre uma independencia financeira, o que explicaria porque alguns jovens com

18 anos ainda não assumiram sua orientação sexual perante a família.

A entrevistada D expõe: “Meu emocional é bem (pausa de 10 segundos). Meu emocional,

assim, eu acho que eu sou bem resolvida quanto a isso [sobre sua orientação sexual].” A entrevistada

A diz: “Sou assumida para alguns amigos e pra pessoas de extrema confiança, sabendo que essa

história nunca vai chegar ao ouvido de minha família.” A entrevistada C demonstra segurança em

si mesma ao falar da relação com os amigos: “É isso, eu me aceito, eu tenho garantia de mim e as

pessoas ao meu redor acabam se afetando por isso também, porque que não deixo que ninguém

se intrometa, entendeu?”

Já os entrevistados H e J dizem ter medo de se afirmarem homossexuais perante suas

famílias. Entrevistado H: “Minha família não sabe, tenho medo de contar e acabar sofrendo rejeição

por causa de motivos meio que homofóbicos que percebi quando estou perto deles. Minha família

é muito desestruturada, não consigo achar em nenhum lugar dela coragem pra me assumir pra

eles.” Entrevistado J: “Minha família é por inteira evangélica, (...), por esse motivos e outros

não me assumo para eles e nem pretendo assumir tão cedo, talvez quando eu conquistar minha

independência financeira.”

8. VIOLÊNCIA SIMBÓLICA: VERBAL, PSICOLÓGICA, EMOCIONAL E MORAL

Na obra de Bourdieu e Passeron (BOURDIEU e PASSERON, 1975) é desenvolvida a “teoria da

reprodução” baseada no conceito de violência simbólica. Para estes autores, toda ação pedagógica

é objetivamente uma violencia simbólica uma vez que é imposição de um poder arbitrário. Entende-

se por arbitrariedade a tomada por um determinado grupo de um valor como padrão a ser seguido

por todos, ou seja, constitui-se na apresentação da cultura dominante como cultura geral. Assim,

o “poder arbitrário” é baseado na divisão da sociedade em classes, que, por sua vez, afeta todas as

instâncias sociais, tais como os espaços educativos. Nesse contexto, a ação pedagógica tende à

reprodução cultural e social simultaneamente.

Para Bourdieu o processo educacional apresenta dois mecanismos destinados à consolidação

da sociedade capitalista: a reprodução da cultura e a reprodução da estruturas de classes. O primeiro

dos mecanismos se manifesta no mundo das “representações simbólicas ou ideologia”, e o outro

atua na própria realidade social.

Assim, a “violencia simbólica”, ou seja, o desprezo da cultura popular e a interiorização da

expressão cultural de um grupo mais poderoso economicamente ou politicamente por outro lado

dominado, faz com que esses percam sua identidade pessoal e suas referencias, tornando-se assim

fracos, inseguros e mais sujeitos à dominação que sofrem na própria sociedade.

Embora o sociólogo trate do caráter simbólico da violencia centrado nas características

fundamentais da estrutura de classes da sociedade capitalista, decorrente da divisão social do

trabalho, podemos pensar na heteronormatividade como mais um imposição da classe dominante

em sociedades capitalistas, o que se reflete na própria educação, incluindo a educação doméstica.

O caso dos adolescentes/jovens homossexuais e suas relações com as famílias revelam

justamente o caráter sorrateiro da violencia simbólica, que atua de forma sutil: a família “não aceita,

mas respeita”, mas extremamente segregadora e conflitante: mesmo, respeitando, as famílias não

aceitam os namorados e namoradas dos/as filhos/as. Todos relataram rejeição por parte da família,

quer seja depois de dizerem sua opção sexual, quer seja por ser exatamente esse o motivo de

não dizerem. Por mais que os adolescentes entrevistados não entendam ou não percebam, eles

sentem essa violencia, tanto que verbalizam em outros momentos, conforme já analisado. Portanto,

entende-se que 100% dos entrevistados sofrem violencia simbólica, compreendendo-a, conforme

Bourdieu, em todos os seu âmbitos que implicam o poder simbólico, aparecendo sutilmente como

violencia verbal, moral, psicológica e emocional.

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9. HOMOSSEXUALISMO E ACEITAÇÃO NA SOCIEDADEAceitação entre amigos íntimos

Todos os relatos apontam para uma aceitação dos círculos de amizades íntimas. Relatos

como “As pessoas que sabem da minha opção [orientação sexual] me tratam da melhor forma

possível”, ou “Sou assumida pra alguns amigos e pessoas de extrema confiança.”, ou ainda “Meus

amigos, eles não têm preconceito nenhum com a minha orientação sexual, eles aceitam, não tem

problema nenhum, eles são ‘mente aberta’, e é o que todo mundo deveria ser, na verdade.”, e “Meus

amigos e amigas me aceitaram da melhor forma possível, me deram força pra eu me assumir pra

minha família.” somado a “ Meus amigos me aceitam, me respeitam, me defendem e me ajudam

muito em varias situações.” e “ O apoio que eu não achei em casa achei com meus amigos.” nos

mostram que, nos discursos de muitos entrevistados os amigos íntimos são o grupo de maior

confiança, representando um grupo de apoio dos adolescentes/jovens para com suas famílias e o

público em geral.

Por um outro lado, uma entrevistada expressou um discurso contraditório de aceitação, mas

com limitações para evitar “constrangimentos”: “Meus amigos me aceitam normal, me respeitam e

eu também procuro ser o máximo discreta, assim, pra não deixarem eles também constrangidos.”

Outra entrevistada demonstrou precisar de “retaguarda” inclusive com amigos: “Amigos. Cara, é

isso, eu me aceito, eu tenho garantia de mim e as pessoas ao meu redor acabam se afetando por

isso também. Eu não deixo que ninguém se intrometa [em sua identidade sexual], entendeu?” Mas

em sua maioria os círculos de amizades parecem ser uma fonte de apoio dos adolescentes/jovens

entrevistados.

10. ACEITAÇÃO DO PÚBLICO EM GERAL: “APELIDINHOS”, “PIADINHAS” E COMENTÁRIOS, A PRESENTE VIOLÊNCIA SIMBÓLICA

Enquanto em sua maior parte os círculos de amizades se revelam como pontos de apoio

ao universo pesquisado, o mesmo não podemos dizer sobre a aceitação pública geral acerca das

orientações sexuais não heteronormativas apresentadas pelo adolescentes/jovens entrevistados.

Piadas, apelidos, segregação são, infelizmente comum nas ruas e corredores escolares, dentre

outros espaços sociais. LOURO aponta para o fato de que “Meninos e meninas aprendem, também

desde muito cedo, piadas e gozações, apelidos e gestos para dirigirem àqueles e àquelas que não

se ajustam aos padrões de genero e de sexualidade admitidos na cultura em que vivem.” (LOURO,

2010, p.28)

Sobre comentários infelizes acerca da orientação sexual, a entrevistada D relata que são

feitos por “Pessoas do dia-a-dia, colegas mesmo, que às vezes usam termos pejorativos, pra ficar

falando sobre a vida íntima”. Ao ser perguntado se já sofreu algum tipo de violencia o entrevistado

H afirma: “De certo modo não [deve estar se referindo à violência física], apenas aqueles apelidos

bobos que estressam, mas aí a calma é mantida e o foco continua.” e a entrevistada C revela: “(...)

a gente sempre ouve aquelas piadinhas, aqueles comentários preconceituoso que dá vontade de

você em cima, mas se controla.”

Em muitos casos esses adolescentes e jovens encontram em seus círculo de amizades

parceiros para combater o preconceito social que muito ainda ronda por aí: “meus amigos e amigas

(...) me dão força até hoje em momentos de fraqueza, em momentos de estresse, em casos de eu

estar passando e ouvir piadinhas soltadas pra mim, mas não demonstro medo e sim atitude pelo

fato de que, por certo lado, um homossexual acaba sendo mais homem do que um hetero, porque

tê que aturá preconceito, violência dessa sociedade preconceituosa, não é fácil.”

Entrevistado I.

E aqui cabe retomar o conceito de poder simbólico para Bourdieu.O poder simbólico consiste

em um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica, ou seja,

o sentido do mundo supõe um conformismo lógico, uma concepção homogenea que torna possível

a concordância entre as inteligencias. Destarte, os símbolos são instrumentos de integração social.

Enquanto instrumentos de conhecimento e comunicação eles tornam possível o consenso acerca

do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social.

O poder simbólico é assim exercido nas diversas relações, seja nas relações de trabalho, nas

relações afetivas, político-partidárias, religiosas, seja nas relações intelectuais, seja em ocasiões

formais e informais, grosseira e/ou suavemente postas, aí pode vir a ter uma manifestação de

hierarquização, dominação, acomodação e produção de consenso, na expressão do poder simbólico

em pauta. Bourdieu toma isso como sendo uma constante e sem exceção, nas relações, variando

apenas na qualidade e no tipo da manifestação.

Ele considera que as relações de comunicação são sempre relações de poder que dependem

do capital material ou simbólico acumulado pelos agentes. Os sistemas simbólicos, enquanto

instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e conhecimento, cumprem sua função

política de imposição e de legitimação da dominação de uma classe sobre a outra, agindo como

uma forma de violencia simbólica. Para Bourdieu, o poder simbólico é um poder quase mágico que

permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força física ou economica e só se exerce se

for reconhecido, o que significa que ele acaba sendo ignorado, passa despercebido. Assim, o poder

simbólico é uma forma irreconhecível e legitimada:

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(...) como o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou economica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos “sistemas simbólicos” em forma de uma “illocutionary force” mas que se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que e produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competencia

das palavras. (BOURDIEU, 1989, p. 14-15)

O perigo reside justamente na sutileza e no silenciamento do poder simbólico em sua atuação.

No universo pesquisado todos sofrem violencia simbólica, seja no interior das próprias famílias seja

na sociedade em geral. A violencia simbólica expressa pelo “poder das palavras” de que Bourdieu

fala é também violencia moral, inscrita inclusive na Lei Maria da Penha. Isso porque é uma conduta

que configura injúria, ou seja, ofensa à dignidade de alguém. Quando “apenas aqueles apelidos

bobos que estressam” não forem vistos de forma minimizada, natural, menor, estaremos iniciando

um combate de fato à violencia simbólica e preconceitos de diversas naturezas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O adolescente homossexual que quer se assumir para a família e sociedade enfrenta muitos

conflitos, conforme já imaginávamos no início do trabalho. Assim, com base nos dados analisados e

textos lidos como referencia, obtivemos resultados que nos indicam que a diversidade sexual se faz

presente no universo desse adolescente, mas que essa experiencia da sexualidade não é partilhada

com os pais, vindo à público, na maioria das vezes, depois da maioridade juntamente a uma

conquista e independencia financeira, ou seja, o sonho da independencia financeira carrega consigo

o sonho da independencia sexual, identitária e moral. A falta de apoio familiar foi um dos problemas

mais sofridos por esses adolescentes, eles se sentem rejeitados e oprimidos por não conseguirem

se assumir para a família, apesar de decididos em se assumirem publicamente. Um dos motivos

apresentados de forma declarada pelos entrevistados foi o fator religioso, além dos tradicionalismos

familiares (isso caberia um gráfico também, é possível?). Também foi verificado que a violencia está

sempre presente na vida desses adolescentes, especialmente a violencia simbólica desdobrada em

violencia verbal, moral, afetiva e psicológica. O trabalho não se encerra aqui.

A partir desses dados podemos questionar e levantar possibilidades de soluções para

aproximar esses adolescentes de suas famílias, bem como, de combater a violencia contra

homossexuais em nossa sociedade, a começar pelas nossas relações mais próximas.

REFERENCIAS

BOURDIEU, P; PASSERON, J. C. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino.

Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. RJ: Bertrand Brasil, 1989.

BOZON, Michel. Sociologia da Sexualidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

CLERGET, Stéphan. Adolescência: a crise necessária. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

D’ABREU, Lylla Cysne Frota. “A construção social do genero”. In: Revista Estudos Feministas,

Florianópolis, 20(2): 583-592, maio-agosto/2012.

LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade. 3ª. Edição. Belo

Horizonte: Autentica Editora, 2010.

SILVA, Valdeci Gonçalves da. “O adolescente gay e a capacidade de resiliencia da família (Estudo

de um texto biográfico)”. In: Psicologia. Pt, o portal dos psicólogos, João Pessoa, 24/06/2012.

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O JOVEM NEGRO NA LITERATURA E NO RAP: VIOLÊNCIA E PROTAGONISMO(THE YOUNG BLACK IN THE LITERATURE AND RAP: VIOLENCE AND PROTAGONISM)

RESUMO

Este artigo aborda a relação entre a obra literária de Jorge Amado Jubiabá, escrita na década de

30 do século XX, e as narrativas de grupos do rap brasileiro, Racionais MC’s e Facção Central,

produzidas no final desse mesmo século. O objetivo é mostrar a construção de personagens, jovens

e negros, que tentam construir atitudes afirmativas, diante do racismo presente nos diversos espaços

urbanos, traduzindo assim um “direito” de representação e significado, negado historicamente pelo

poder colonial e pela escravidão.

Palavras-chave: Protagonismo negro. Literatura brasileira. Rap brasileiro.

ABSTRACT

This work discusses the relationship between the Jorge Amado’s book, Jubiabá , written in the 30s

of the twentieth century, and the narratives of Brazilian rap groups, Racional MCs and Facção Central,

produced at the end of that century. The goal is to show the construction of characters, young and

black men, who try to build affirmative attitudes, before the present racism in many urban areas, thus

representing a right of representation and meaning, historically denied by colonial power and slavery.

Keywords: Black protagonism. Brazilian Literature. Brazilian Rap.

Marcos Aurélio dos Santos Souza22*

“Vim pra sabotar seu raciocínio

Racionais M’C. “Capítulo 4 versículo 3”.

“Se eu não fosse suicida, meio Talibã,

o Brasil tirava o direito de eu sonhar com o amanhã”

Facção Central. “Dias melhores não virão”.

“O endosso que me vem de indivíduos

e lugares marginalizados me fortalece e inspira.”

Bell Hooks, “Intelectuais Negras”.

22 Doutor em Literatura e Cultura pela UFBA e professor Adjunto do Depar tamento de Educação, UNEB, Campus I.

Jubiabá é um romance brasileiro, escrito no início do século XX, que narra a vida de um jovem

protagonista negro, vivendo numa realidade urbana e excludente. Essa temática que já possuía força

inicial na literatura de Lima Barreto nas Recordações do escrivão Isaías Caminha e Clara dos Anjos,

assume contornos pungentes na obra de Jorge Amado e na letras de grupos do rap brasileiro, como

Racionais MC (RMe Facção Central (FC, doravante), no final desse mesmo século e início do século

XXI.

A relação entre o romance de Jorge Amado e as narrativas contadas e cantadas pelos rappers

compõe um painel significativo para a compreensão de estratégias de produção do significado

do jovem negro no espaço citadino. A história de personagens que driblam o poder repressivo e

racista na grande cidade, movendo-se da periferia para o centro e dominando o labiríntico e minado

espaço urbano, traduz um “direito de significar”, adaptando aqui Homi Bhabha (1998), negado

historicamente pelo poder colonial e pela escravidão.

O que aproxima aqui uma produção narrativa da década de 30, o terceiro romance de Jorge

Amado (uma de suas publicações da juventude), a um estilo musical e performático do final do

século XX, é exatamente a exposição direta dos problemas enfrentados pela população negra num

espaço em que sua presença é tida como estranha, em que sua condição é de marginalidade ou sua

imagem sempre relacionada ao “lado fracassado” da chamada civilização moderna.

O que aproxima esses textos, ainda, é um enfrentamento direto desses problemas, por

indivíduos negros conscientes, que lançam mão de estratégias discursivas e comportamentais

consideradas subversivas para imporem uma força e uma potencia histórica, expondo e sabotando

o pensamento segregacionista.

Diferente do caminho trágico de personagens negros e mulatos dos romances de Lima

Barreto: um Isaías Caminha ou uma Clara dos Anjos, ou até de um Amaro do romance Bom Crioulo

do escritor cearense Adolfo Caminha, publicado no final do século XIX, Balduíno do romance Jubiabá

caminha na contramão do determinismo fatalista, inventa modelos, busca referencias históricas que

lhe inspiram altivez, num ambiente inóspito, de pobreza, tristeza e loucura.

Este tipo de atitude afirmativa e atualizadora da história, observada aqui na construção do

personagem de Jorge Amado, agencia saberes ligados ao conhecimento de “algumas das maneiras

pelas quais a proximidade dos terrores inefáveis da escravidão foi mantida viva – cuidadosamente

cultivada – em formas ritualizadas, sociais”(GILROY, 2001, p. 158).

Constitui, ainda, para adaptar novamente Homi Bhabha (1998, p. 239), uma perspectiva

pós-colonial, questionadora dos “discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma

‘normalidade’ hegemonica ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações,

raças, comunidades, povos”.

O que será aqui abordado em relação a essa perspectiva é também sua negação a uma

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estrutura constituída do status do saber e de formação do intelectual, ligada à acepção burguesa e

academica. Trata-se da articulação e consciencia subalterna de um conhecimento vivenciado por

parte de uma juventude periférica e pobre, destituída de educação formal, mas também ciente dos

caminhos perigosos do seu aburguesamento, pois isso significaria, não raramente, sua esperada

docilidade e submissão às instituições historicamente dominada por uma elite branca.

Segundo Cornel West (1991), o intelectual negro, inserido nessas instituições, vive um

sentimento constante de defensiva, como se necessitasse para o exercício de sua significação e

de seu direito de existir, demonstrar que merece e pode gozar das benesses do poder hegemonico.

Ou seja, como se urgisse “resgatar o pecado original do nascimento humilde, amaciar o suplício

premente, cruciante e omnímodo da cor” adaptando a lancinante declaração de Isaías Caminha

(BARRETO, 1956, p.53). West em um texto, intitulado “The dilema of the Black Intellectual” (1999,

307), esclarece as implicações dessa concessão para jovens estudantes negros no mundo

academico e intelectual:

The weight of this inescapable burden for black students in the white academy has often determined the content and character of black intellectual activity. In fact, black intellectual life remains largely preoccupied with such defensiveness, with “success” black intellectuals often proud of their white

approval and “unsuccessful” ones usually scornful of their white rejection23

Sem esquecer a situação especifica da realidade estadunidense, sua história política de uma

segregação mais declarada, à qual West se reporta, essa necessidade de aceitação, que coloca o

negro numa espécie de constante defensiva, caracteriza ainda a realidade daqueles que não se sentem

inseridos no “direito natural” de gozo dos bens advindos do conhecimento formal e academico

(aquele mesmo que assegura prisão especial, como recorda, sintomaticamente, Isaías Caminha).

Inclui-se aí também o direito aos bens simbólicos e de consumo, colados, ideologicamente, a essa

formação, os quais representam, consciente ou inconscientemente, não só sobrevivencia material

e digna, mas também formas de “amaciar” o “pecado original”, dirimir o preconceito, fruto dessa

carga negativa e degradante de “ser negro”.

Optando não por essa defensiva, com seu modo de operar o esquecimento das diferenças

raciais, mas pela ofensiva ao poder racista e hegemonico, historicamente estabelecido, Balduíno

23 “O peso de um inevitável fardo para estudantes negros na academia branca determina o conteúdo e o caráter de sua atividade intelectual. Na realidade, a vida intelectual do negro permanece, em grande par te, preocupada com essa defensiva, com o sucesso de intelectuais negros, sempre orgulhosos da sua aprovação entre os brancos, e alguns insucessos, normalmente desdenhosos, de uma rejeição entre os mesmos” (tradução minha).

escolhe a clandestinidade, fugindo das possibilidades de uma adaptação à vida burguesa, dependente

nessa história pela denegação racial. Após receber uma aula de história de Jubiabá, pai de santo

e também uma espécie de guru, sobre a vida de Zumbi dos Palmares, ele resolve fugir da casa

dos senhores brancos, onde passara a morar após o enlouquecimento da tia. Não queria viver

ali constantemente vigiado e sempre sob suspeita, mesmo tendo a garantia da educação formal

(repressora e racista) e um emprego garantido na casa comercial do senhor que lhe dava abrigo.

A rejeição de uma “inclusão vigiada”, optando por uma vida bandoleira, configura via

declarada do rap brasileiro, suas letras enfatizam a necessidade de expor um diferenciado caminho

de enfrentamento intelectual, mais próximo das reais condições da grande maioria dos homens e

das mulheres negras nos grandes centros urbanos brasileiros.

Essa ofensiva, presente também no rap, toma aqui caráter de inteligente subversão discursiva,

como na letra do grupo Facção Central (daqui por diante FC), “Sei que os porcos querem o meu

caixão” do álbum A marcha fúnebre prossegue de 2004, em que o narrador personagem, reconhece

seu “estereótipo de ladrão” e, rejeitando ser domesticado, como um bom selvagem, declara: “não

vendi minha ideologia, não trai a minha história, minha raiz no cortiço”. Na música “Capítulo 4

versículo 3”, em Sobrevivendo no Inferno (1998) dos Racionais (RM, daqui por diante), Mano Brown,

um “QI pós-graduado”, constituído nas ruas de São Paulo, como ele próprio se classifica, vocifera:

“seu comercial de tv não me engana/eu não preciso de status nem fama/ seu carro e sua grana já

não me seduz”.

Essa consciencia de não poder e não querer usufruir do status burgues do negro “adaptado”

e “bem educado”, que é também a negação do conhecimento diletante, e sua afirmação como

estratégia de sobrevivencia, tem como base uma consciencia histórica individual e coletiva, retirada

e retratada cruamente de situações factuais e/ou verossímeis. Balduíno cresce no Morro do Capa

Negro, sua infância é semelhante a de milhares de meninos pobres da periferia soteropolitana.

Sem mãe e sem pai, é criado pela tia negra que enlouquece de tanto trabalhar, para sustentá-lo

precariamente.

Sua escola era a rua, porque provinha dela a única linguagem que precisava conhecer para

permanecer vivo e vivo com alguma dignidade. Nas ruas, sob a constante vigilância e repressão da

polícia, precisava apenas se esquivar de uma surra e lutar bravamente. A luta e a força corporal não é

nenhuma demonstração atávica de uma selvageria negra, como algumas teses racistas apregoavam,

mas o resultado de uma necessidade histórica de sobrevivencia. Por isso, a sensação de inutilidade

do conhecimento formal e escolar:

- Voce precisa é de ir para a escola – diziam.Ele perguntava a si mesmo para que. Nunca ouvira dizer que jagunço soubesse ler. Sabiam ler os doutores e os doutores eram uns sujeitos

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moles. Ele conhecia o doutor Olympio, médico sem clientela que de vez em quando subia o morro à procura de clientes que não existiam, e o doutor Olympio era um sujeito fraco, magro, que não aguentava um tabefe bem

dado. (2006, p. 12)24.

As referencias de força física e astúcia saíam das histórias contadas no morro por Jubiabá,

sobre negros rebelados e jagunços, como a de Lucas da Feira e a de Antonio Silvino25. O pequeno

negro Baldo encontra nas histórias contadas pelo pai de santo, os elementos que comporão a sua

saga, fornecerão sobrevivencia:

Antonio Balduíno ouvia e aprendia. Aquela era a sua aula proveitosa. Única escola que ele e as outras crianças do morro possuíam. Assim se educavam e escolhiam carreiras. Carreiras estranhas aquelas dos filhos do morro. E carreiras que não exigiam muita lição: malandro, desordeiro, ladrão. Havia também outra carreira: a escravidão das fábricas, do campo, dos ofícios proletários. (p. 21)

Eduardo e Dum Dum, os dois rappers do polemico FC, estreante no cenário do hip hop

em 2000, com o clipe “Isso Aqui é Uma Guerra” (que chegou a ter sua exibição proibida na MTV,

sob a alegação de fazer apologia ao crime) narra em suas letras o caminho corriqueiro em que

uma criança pobre se torna um “fora da lei”. A subversão e a criminalidade para o rap é uma via

compreensível, mas não inevitável; os que conseguem escapar dela tem o compromisso de narrar

como escapou. “O rap é compromisso”, como cantava Sabotage. Considerando-se “Ph.Ds. em

vida”, os dois músicos do FC contam um pouco das suas infâncias, na introdução da primeira faixa

“Chico Xavier do Gueto”, do CD Direto do Campo de Extermínio (2006):

Aí tinha dois moleques no cortiço do centro, que ninguém dava uma

24 As citações do romance no corpo desse ar tigo terá como referencia, a par tir dessa citação, apenas o número de página25 Lucas da Feira, segundo a literatura popular com base em evidentes referencias históricas, foi um filho de escravos em Feira de Santana, que fugiu da situação de cativo aos 15 anos, formando um grupo de cangaceiros e espalhando terror entre os senhores de engenho no final do século XIX. Antonio Silvino, “pernambucano, nascido na localidade de Afogados da Ingazeira, entrou no bando do [cangaceiro] Silvino Aires [no final do século XIX] para vingar-se do assassino do seu pai, crime este cometido por inimigos políticos. O nome Silvino foi uma forma de homenagear o antigo chefe. Após a morte de Silvino Aires, assumiu a liderança do grupo. Tanto no ser tão como no agreste e até bem próximo do litoral, assaltava fazendas, roubava, assassinava adversários políticos, chantageava comerciantes ricos, poupava as mulheres de agressões físicas e sexuais, tinha fama de bom ladrão, tornando-se um mito” (Cardoso, Tânia Maria de Sousa. Origem e instituição do Cangaço. Disponível em: http://www.camarabrasileira.com/cordel43.htm. Acesso em: 30 de julho de 2006). Ambos foram presos e executados pela força militar da época.

moeda. E mesmo assim eles derrubaram as portas, sobreviveram ao teste, às coronhadas da polícia, a fome. E hoje, acredita se quiser, tão aqui tirando seu sono. Passaram de 5ª série de escolaridade a Ph.D. em vida. Eduardo e Dum Dum, doença que contagia as almas sem voz. Certificado de atitude, concedido pela favela [...] Se voce tem periferia no peito, voce é parte de nossa história.

Em “O menino do morro virou Deus” do mesmo álbum, o grupo apresenta um outro lado

da história, o de uma criança que encontrou o crime como saída fulgurante. Na letra, esta opção,

entretanto, longe de imputar-lhe exclusividade, é compartilhada com muitos outros “bandidos”: o

político e o pastor, por exemplo. O menino pardo, nascido na zona sul da cidade de São Paulo, filho

de mãe solteira, finaliza sua história, narrando sua condição gloriosa:

Sou traficante intocavel pro tribunal/ Que no foguete da Nasa faz safári sideral,/To na lista vip do cassino clandestino,/ Quer ser presidente? traz a campanha que eu financio,/ Sou poderoso chefão mais invisível como aço,/ Igual o pastor da universal atrás do altar,/ O apresentador que te dá casa com mobília,/O sertanejo de cd de platina,/Vai ve seu time tem meu “logo” na camiseta/Voce compra no meu shopping, voa pela minha empresa,/ Eu sou uma história de sucesso tipo Aristóteles Onassis/Só que subi uma escada de sangue pra primeira classe./ O menino do morro virou deus,/ o poderoso chefão, a majestade,/ o teste da guerra ele venceu/Subiu uma

escada de sangue pra primeira classe (FC, 2006).

As referencias a personagens heróicos por esses rappers possuem, não raramente, demandas

goradas, pois como afirma Mano Brown dos Racionais na música “Jesus chorou” (2002): “gente

que acredito,/ gosto e admiro,/brigava por justiça e paz, levou tiro:/ Malcom X, Ghandi, Lennon,

Marvin Gaye,/ Che Guevara, 2Pac, Bob Marley/ e o evangélico Martin Luther King”26. Nas letras dos

Racionais, essa “infância perdida” afeita a uma vida criminosa, é um tópico constante. Os heróis

da infância e da adolescencia: músicos, artistas em geral, ativistas, justiceiros da periferia, também

prezados por Balduíno, são os poucos exemplos de exito, gorado mas exemplar, duma vida fora do

crime.

Esta opção, apesar de ser uma possibilidade cruel e triste, configura-se no rap também

como resposta à opressão de um sistema economico selvagem e desigual, e, por isso mesmo,

26 Poderíamos acrescentar nessa lista a presença de Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage, ícone do rap brasileiro, morto com quatro tiros em São Paulo.

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como atitude altiva e heróica. O jovem da periferia de uma grande cidade, personagem principal

dessas histórias, mesmo não sendo um subversivo ou bandido, vivencia com freqüencias ações

violentas, seja como alvo contínuo de suspeição e abuso policial, seja como joguete das disputas

políticas entre traficantes de drogas, que ditam ordens aos moradores, inscritos nas suas áreas de

domínio, como também, paradoxalmente, o protege da polícia.

A thug life, lema tatuado no corpo do rapper 2Pac, não aparece apenas como uma

possibilidade de envolvimento, mas como cotidiano brutal, desde os primeiros anos de um jovem,

que se ve sempre diante de possibilidades exíguas de sucesso na vida. Como lembra Brown em

“Negro Drama”, uma das músicas mais conhecidas do grupo, do aclamado álbum Nada como um

dia após o outro dia (2002): “Crime, futebol, música, ‘caraio’,/eu também não consegui fugir disso

aí,/ Eu sou mais um./ Forrest Gump é ‘mato’,/ Eu prefiro contar uma história real,/ Vou contar a

minha....”.

A música assume contornos cinematográficos: “daria um filme,/uma negra,/e uma criança

nos braços,/ solitária na floresta,/ de concreto e aço [...]/ famíla brasileira,/dois contra o mundo,/

mãe solteira, de um promissor vagabundo,/ luz, câmera e ação,/ gravando a cena vai,/ um bastardo,/

mais um filho pardo,/sem pai”.

Essa cena corriqueira de desolamento infantil, marcada sempre pela presença forte de uma

mulher, uma “mãe solteira”, cuja representação literária mais conhecida provém da personagem

Clara dos Anjos de Lima Barreto, tem no rap sempre papel destacado, são as vítimas de uma

história reencenada de sedução ou de abuso sexual do “senhor do engenho”, um homem, não

necessariamente branco, que a abandona na “selva de concreto e aço”. Brown desabafa em relação

à mãe, “aí Dona Ana, sem palavras, a senhora é uma rainha” (2002), Dum Dum e Eduardo, criam um

personagem violento que, reconhecendo sua ingratidão com a mãe pede desculpa: “por te impedir

de sorrir/ por tantas noites em claro triste sem dormir/pra te pedir perdão infelizmente é tarde”; “a

heroína que pediu esmola no busão com a receita/deu comida na boca/, comprou todos remédios/

sonhou com emprego/ mas o diabo me quis descarregando ferro” (“Desculpa mãe”, 2004).

E o menino Balduíno reconhece a fibra de sua tia/mãe Luiza: “não sabia ler, e no entanto era

respeitadíssima no morro, ninguém tirava prosa (p. 12).” No romance de Jorge Amado, assim como

nas letras do FC e dos RM, a condição da mulher e especialmente a da mulher negra e pobre, é

exposta, objetiva e cruamente. Sua história sucumbe quase sempre à loucura e ao suicídio, seja no

desfile terrível das misérias do romance - a tia de Baldo que vai parar no hospício, a avó decrépita e

sofrida do Gordo, a mulher grávida, desiludida, viajando clandestinamente num insalubre vagão de

trem, ou a jovem negra, prostituta e suicida -, seja na mãe que espera seu filho na cadeia, na letra

do FC: “vinha de madrugada sacola pesada/ pra ser revistada pelos porcos na entrada,/ na rebelião

voce no portão,/ temendo minha morte/ sendo pisoteada pelos cavalos do choque” (idem).

Esta enfase na figura feminina e materna, suscita também um dos mais polemicos assuntos,

referentes àquilo que Gilroy chama tendencia masculinista do rap (idem, p. 176). Tal polemica mais

borbulhante nos Estados Unidos27, em discursos até sensatos de alguma crítica a determinadas

manifestações da cultura hip hop (incluíndo o rap, o grafite e break), não pode adquirir status

generalizador, nem também operar uma condenação simplista de toda uma cultura de inclusão e

denúncia dos problemas que inclusive acometem brutalmente, as mulheres negras.

É preciso entender um contexto de imposição de força construída pelo rap como poder

paralelo à força policial e repressiva, masculina e simbolicamente viril, onde a educação do

homem imprime sempre uma necessidade de reafirmação sexual. Contexto em que a mãe,

praticamente única referencia familiar de educação desse jovem negro, não raramente, repete

a idéia, ao filho em prantos, “não chore, seja homem!”. Por outro lado, adaptando Henry Louis

Gates Jr, um dos mais conhecidos academico e crítico americano da cultura negra, citado por

Gilroy (idem, p. 177), o rap opera também como código satírico específico, aprendido nas ruas,

onde a misoginia de um homem se torna paródia de outro homem. Essa idéia pode ser entendida

no emblemático e “contro-verso” palavreado de Mano Brown: “mas a dona Ana fez de mim um

homem, e não uma puta! (“Jesus chorou”, 2002). Uma educação, exclusivamente feminina, por

essas condições específicas, constitui valor na periferia de uma grande cidade, à medida que

se insere também na linguagem das ruas vigiadas, da opressão machista policial, dos termos

populares que insultam e rebaixam qualquer homem, à condição de sujeitos compráveis e traidores.

Como o rap não é um genero acabado, mas em constante construção, há nele um esforço

cada vez maior em se abarcar níveis mais amplos da exclusão social, haja vista uma crescente

participação de brancos pobres e mulheres em todo movimento hip hop, espaço, até pouco tempo atrás,

exclusivamente masculino e negro. Não acreditamos, entretanto, que esse movimento possa ou deva

adquirir aquela dimensão privada e caseira, que Bell Hooks (1996, p. 33) julgava necessária ao rap para

atender e entender o espaço doméstico feminino, primeiro porque temos cada vez menos, na mecânica

do trabalho moderno, uma realidade feminina doméstica, segundo porque o rap é um movimento de rua

e possui os códigos do espaço público vigiado. Inverter isso seria descaracteriza-lo completamente.

É nesse locus, entre os arranha-céus e o barro bruto da periferia, que a vida de Balduíno

se desenrola. A cidade de Salvador que se agiganta aos seus olhos, no alto do Morro Capa-Negro,

pode ser possuída a princípio em sua sede bandoleira, instigada pelas histórias do cangaço e dos

quilombos, aos poucos a metrópole lhe parece estranha, injusta, um campo minado, que deve ser,

27 Gilroy lembra do episódio envolvendo o 2 Live Crew, um grupo de rap sediado na Flórida, liderado por Luther Campbell, “um americano negro de origem jamaicana e mentalidade comercial. Este episódio não é notável, porque as formas de misoginia que chamaram a atenção da polícia e dos promotores distritais eram novas” (2001, p. 176) e, por tanto, não contou, nem poderia contar, com a defesa do movimento hip hop nos Estados Unidos.

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primeiramente, conhecido pra depois ser dominado. A subversão criminosa é uma forma de dominar

a “ferro”, a metrópole. A vida de Baldo, em sua vontade de ser livre, assume um impasse instigante:

sua história no morro do Capa-Negro poderia, a princípio, ser ampliada nas ruas do centro, nas

esquinas e becos da cidade, entretanto é também no momento de vivencia desses espaços, que

sua vontade vai lhe sendo cerceada e reduzidos os lugares, onde poderia andar tranquilamente. Ele

“vivia a grande aventura da liberdade. Sua casa era a cidade toda, seu emprego era corre-la. O filho

do morro pobre é hoje o dono da cidade [...] é o imperador da cidade negra da Bahia (p. 53/54)”,

entretanto:

De repente, no meio de toda aquela gente, Antonio Balduíno se sentiu só [...]. Um medo doido.

Focou tremendo, batendo os queixos. Se lembrou de todo mundo: sua tia Luiza que enlouquecera,

Leopoldo que fora assassinado, Rozendo doente gritando pela mãe, Felipe, o Belo, debaixo do

automóvel, o velho Salustiano se suicidando no cais, o corpo de Viriato, o Anão cheio de siris que

chocalhavam (p.88)

A Bahia já não era a Bahia e ele não era mais o negro Antonio Balduíno, Baldo, o boxeur, que

ia às macumbas de Jubiabá [...]. Que cidade seria aquela e ele quem seria? Para onde teria ido toda

gente conhecida? (p.119)

A cidade de São Paulo aparece em “Negro Drama” dos RM como monstruosa, onde o

pequeno Brown vivencia duramente as dores de ser “um filho pardo, sem pai”: “veja, olha outra

vez,/ o rosto na multidão,/ a multidão é um monstro,/sem rosto e coração, Hey, São Paulo,/ terra

de arranha-céu, a garoa rasga a carne, é a torre de babel”. Nas letras do FC, a única forma de se

controlar a cidade é através do poder paralelo e criminoso, que torna a cidade de São Paulo campos

delimitados, “alcatrazes de ouro”, demarcados pela paz das cercas elétricas: “não adianta chorar,

não adianta gritar; A cidade é nossa, ra-ta-ta-ta-tá” (“A cidade é nossa”, 2005) . As ruas de São

Paulo, essa metonímia de uma realidade bruta do próprio Brasil, passa se constituir, friamente, uma

urbe das cifras, seja as cifras da cidade capitalista: “Na selva onde a nota vale mais que o amor” (FC,

“Aqui ela não pode voar”, 2006), “Em São Paulo, Deus é uma nota de 100” (RM, “Vida loka”, 2002),

ou as cifras dos dados estatísticos: “25% é a chance de eu ser assassinado” (FC, “Dias melhores

não virão”, 2006) “pra cada jovem europeu morto/- puta que pariu!-/ morre duzentos de nós,/ sem

voz, no Brasil” (FC, “O homem estragou tudo”, 2006), “27 anos contrariando a estatística”(RM,

“Capítulo 4, versículo 3”, 1998).

O mudo do rap é também o mundo das chacinas e dos genocídios, que torna os episódios

de Vigário Geral, Candelária e Carandiru, absurdamente, corriqueiros e naturais. Conforme José

Manuel Arce em seu livro Vida de Barro Duro – cultura popular juvenil e grafite (1999: p. 66):

A intolerância social frente às crianças e aos mendigos que perambulam pela cidade também aumenta. A lógica crua da exclusão adquire maior

presença e converte-se em frases pré-construídas, mediante as quais o cidadão repete: ‘Quanto mais rápido eles forem mortos, menos deliqüentes adultos haverá’, ou na observação de um periódico brasileiro que afirmou que as crianças de rua eram como ratos. Por trás dessa concepção sobre as crianças e os adolescentes, encontra-se um mundo muito mais complexo que não remete unicamente aos problemas economicos, mas também alude a problemas fundamentais nas organizações familiares e na formação dos imaginários coletivos.

Essa exclusão que torna o Brasil o país que mais mata jovens do mundo, desconcerta

a famosa proposição foucaultiana que identifica no Estado moderno o papel precípuo do “deixar

morrer” (Foucault, 2002), aqui o biopoder do Estado, ainda medieval, nesse sentido, não só deixa

como “faz morrer”. A oposição de Foucault deixar/fazer, um tanto dispensável para a nossa realidade,

não deixa, entretanto, de ser conveniente em sua compreensão da modernidade e da globalização e

em sua afirmação sobre o racismo que “é indispensável como condição para poder tirar a vida de

alguém, para poder tirar a vida dos outros, a função assassina do Estado só pode ser assegurada

desde que o Estado funcione, no modo do biopoder, pelo racismo” (idem, p. 306). Esse tipo de

poder, norteado ainda pela idéia de eliminar a “raça ruim”, aparece nas estatísticas, retratadas na

voz do Primo Preto em “Capítulo 4, versículo 3”: “60% dos jovens de periferia sem antecedentes

criminais já sofreram violencia policial; a cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras; nas

universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros; a cada 4 horas um jovem negro morre

violentamente em São Paulo”.

O sistema prisional constitui, nesse sentido, espaço onde o Estado biopoderoso exerce a

sua precedencia assassina do deixar/fazer morrer. Atento, aos mecanismos repressores da macro e

da microfísica do poder, Jorge Amado em Jubiabá, não esquece esse cenário de uma nova senzala

macabra. Baldo e seus amigos, “capitães” da areia e do gueto, experimentam essa realidade, com

direito aos caprichos de um pelourinho moderno:

Eles ouviram a voz dos presos que cantavam. Vieram soldados e traziam chibatas de borracha. E

eles foram espancados sem saber porque, pois nada lhe disseram. Ganharam assim sua primeira

tatuagem. Felipe, o Belo, ficou marcado na cara. O mulato que os prendera ria, puxando fumaça de

um cigarro. Os presos cantavam lá embaixo, ou lá em cima, ninguém sabia onde. Diziam na sua

canção que lá fora havia liberdade e sol. E a borracha zunia nas costas dos moleques. O Sem Dentes

gritava e xingava todo mundo. Antonio Balduíno tentava dar pontapés e Viriato, o Anão, mordia os

lábios com raiva [...] Passaram oito dias na cadeia, foram fichados e enfim soltos numa manhã clara

de muito sol. Votaram para a vagabundagem da cidade (p.75).

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“Contagem regressiva/ pra bomba explodir/ tic-tac tic-tac um dia eu vou sair/ aqui é o

rotweiller que criaram dando soco/ um monstro pronto pra voar no seu pescoço”. Essa é a voz de

um presidiário, fornecida pelo FC, na música “Quando eu sair daqui” (2006). São os pontapés de

Balduíno, a mordida no pescoço de um rotweiller humano ou de um humano rotweiller, esperando

para atacar o pescoço de quem o prendeu, representações da força paralela que grassa hoje

nos recentes episódios de demonstração de fogo dos presídios brasileiros, principalmente nos

superlotados sistemas do Sudeste. Esta reversão constitui o nível de uma exclusão histórica, que no

Brasil tem raízes no processo violento da escravidão e do sistema colonial, por isso a ressignificação,

o símbolo do chicote de borracha em Jubiabá, ou da consciencia de um dilema: “Ou vou ser escravo

do patrão ou número no presídio” (FC, “Estrada da dor”, 2006).

A mais emblemática expressão do mundo prisional se encontra numa verdadeira poesia

da música popular brasileira (com a licença da rasura), “Diário de um detento” (2001). Nela Mano

Brown constitui o diário de um cativo que viveu e presenciou o genocídio (sem rasura) na cadeia

paulista do Carandiru, dia 2 de outubro de 1992, quando a invasão da Polícia Militar no pavilhão

9 resultou na morte de 111 detentos, formando um país obscuro das “calças beges”. A música,

que se transformou também num mini-documentário premiado pela MTV, foi inspirada no relato de

um preso conhecido apenas como Jocenir e nas cartas enviadas por outros detentos, entregues a

Brown durante um jogo de futebol nesse presídio. O relato foi transformando em livro, lançado em

2001, na Bienal do Rio de Janeiro, quando ficou conhecido o nome próprio Jocenir José Fernandes

Prado. A música tem momentos lancinantes, que valem apenas ser transcritos e lembrados:

O ser humano é descartável no Brasil,/ como modess usado ou bombril./ Cadeia? Claro que o

sistema não quis,/ esconde o que a novela não diz!/ Ratatatá, sangue jorra como água,/ do ouvido,

da boca e nariz./ O Senhor é meu pastor,/ perdoe o que seu filho fez./ Morreu de bruços no Salmo

23!/ Sem padre sem repórter/, sem arma, sem socorro/. Vai pegar HIV, na boca do cachorro!/

Cadáveres no poço,/ no pátio interno/. Adolf Hitler sorri no inferno!/ O Robocop do governo é frio,/

não sente pena, só ódio, e ri como a hiena/. Ratatatá, Fleury e sua gangue/ vão nadar numa piscina

de sangue!/ (Mas quem vai acreditar no meu depoimento?/ Dia 3 de outubro. Diário de um Detento.)

Ao contrário da ideologia comum e cruel do esquecimento e da deturpação, que produz atos

assépticos e estrambóticos, seja na ação política recente da destruição do Carandiru, palco desse

genocídio, ou seja na condenação de um texto literário, como Jubiabá, pela história da literatura de

Alfredo Bosi, que lhe impõe o caráter de uma obra cujo foco principal são “os amores marinheiros”28,

28 Conforme SOUZA (2006): “As tradicionais crítica e história da literatura brasileira costumam considerar os romances de Jorge Amado como integrantes exóticos e populistas de uma construção totemica: o cânone literário brasileiro”. O livro de Alfredo Bosi História Concisa da Literatura repete, há mais de 40 edições, noções preconceituosas sobre esse romancista. “escritor populista”, “romântico sensual”, “autor sem profundidade crítica”. A sua leitura de duas obras de caráter crítico social de Jorge Amado, como Capitães de Areia e Jubiabá, impondo-lhe uma tonica sensual, é grosseira e deturpada.

o estilo rap opera pela memória mais dura, sempre numa exposição da história recalcada, que grita

verbosamente em suas letras e atitudes. Esse grito presente também na obra de Jorge Amado,

expresso, inclusive, na obsessão de Balduíno em ter sua história contada em um ABC29, atualiza

na contemporaneidade, por exemplo, aquela situação de dispersão e fuga dos escravos, após a

abolição. A escravidão no Brasil, politicamente extinta há quase 120 anos, permanece gerando,

continuamente, para utilizar uma expressão, lembrada e abordada por Célia Maria de Azevedo (2004),

uma “onda negra” e um conseqüente “medo branco”. Essa onda amedrontadora transborda hoje

nos presídios brasileiros, onde, recordando a letra de Gil, são “quase todos pretos, de tão pobres”.

Entretanto ela já estava lá, muito antes e pouco depois do beneplácito da princesa Isabel, como

registra Azevedo, reportando-se a episódios paulistas (2004, p. 176/177):

Após a fuga das fazendas, os negros tentavam solucionar seu destino como homens livres

de formas variadas. Havia os que ficavam pelos matos reunidos em grupos e que para sobreviver

saqueavam as cidades e vilas [...] Outros insistiam em ficar nas próprias imediações das fazendas

de onde haviam se retirado, exigindo sua carta de liberdade e direito de trabalho com salário. E

enquanto não conseguiam seus intentos, rondavam-nas ameaçadoramente [...] Mas eram tantos

os pontos de revolta ou de ameaças de ataques que o chefe de polícia, ao chegar na noite de 11

de dezembro em um trem especial em Indaiatuba, teve de dividir tropas, deixando uma parte delas

naquele local a fim de aguardar a passagem dos escravos do Barão da Serra Negra.

Negros em fuga, negros dispersos, deslocados no grande cenário citadino, formando guetos,

favelando o mundo, ou tentando, desesperadamente, adaptar-se á um atavismo inventado fora da

cidade, no meio do mato, constituem a reedição de uma realidade de exclusão histórica que faz

Mano Brown lamentar: “às vezes eu acho que todo preto como eu/ só quer um terreno no mato só

seu/ sem luxo descalço nadar num riacho/ sem fome, pegando as fruta do cacho,/ ai truta é o que eu

acho e o que eu quero também/ mas em São Paulo Deus é uma nota de cem/ vida loca” (“Vida loka”,

2002). Balduíno, perseguido no mato, pensando em retornar a Salvador, revive o mesmo drama do

“negro fugido”:

Quando fugir para onde irá? Poderá entrar pelo sertão, se açoitar numa fazenda, tratar de

bois. Tem tanto assassino por aí... Se o perseguissem muito entraria num bando de cangaceiros e

iria viver aquela vida que ele sempre admirou. O pior é que agora está sentindo fome. Talvez encontre

alguma furta como encontrou água (176).

Esta busca, em Jubiabá, pelo western nordestino do cangaço, um recuo da cidade para

depois assalta-la, constitui juntamente com todo o glamour de uma bandidagem social, das letras

29 O ABC é um genero popular e biográfico com rimas e metro determinados que narram os feitos e as peripécias de personagens consagrados pela tradição oral e escrita.

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de rap, aquela faceta bandoleira dos excluídos, sobre a qual Hobsbawn discute em seu texto

“Rebeldes primitivos”. Conforme o autor da Breve história do século XX, o bandido social realiza

atos considerados delituosos pelo Estado e pela classe dominante, mas goza de respeito por alguns

setores populares. Ele manipula as mesmas armas com as quais é direta e violentamente atingido,

por isso sua situação limiar entre a defesa da violencia física e do discurso que desconcerta: “Uma

disposição pro mal e pro bem” (RM, “Capítulo 4, versículo 3”, 1998), “Um rap venenoso ou uma

rajada de PT” (idem), “Discurso ou Revólver, está na hora da revolução” (FC, “Discurso ou revólver”,

2004) “Acredito na palavra ou na metralhadora, Revolução verbal ou aterrorizadora” (idem). Balduíno,

mesmo depois de adquirir o status de aclamado orador sindicalista, não esquece ainda a necessidade

da força. Ele continuava a ser uma “estrela vermelha com uma navalha na mão”.

São esses bandidos sociais, estigmatizados pela cor e pela origem, que expõem em seu

discurso aquele racismo por denegação, tipicamente brasileiro, ao qual Lélia Gonzáles (1988),

atribui às ideologias do branqueamento e da democracia racial, responsabilidade principal por sua

construção. A denegação cria a imagem de que no Brasil a experiencia da miscigenação apagou

as diferenças raciais, criando uma convivencia pacífica entre negros, brancos e índios. A letra dos

Racionais é incisiva:

O sistema é racista cruel/ Levam cada vez mais/ Irmãos aos bancos dos réus/ Os sociólogos preferem ser imparciais/ E dizem ser financeiro o nosso dilema/ Mas se analizarmos bem mais voce descobre/ Que negro e branco pobre se parecem/ Mas não são iguais/ Crianças vão nascendo/ Em condições bem precárias/ Se desenvolvendo sem a paz necessária/ São filhos de pais sofridos/ E por esse mesmo motivo/ Nível de informação é um tanto reduzido. (“Racistas otários”, 2000)

Emerge daí uma necessidade de uma contínua revisitação do passado. Um trabalho

constante de reedição da história colonial, cujo momento histórico permanece vigoroso no atual

contexto do capitalismo tardio, o espaço novo, multinacional, da velha experiencia diaspórica. Nesse

ambiente surgem fantasmagoricamente figuras de um passado recente: “Hitler, FHC, capitão do

mato, bacharéis de carnificina, mestrado em holocausto” (FC, “Discurso ou revólver”, 2004); “Hei

Senhor do Engenho,/ sozinho voce não guenta,/ sozinho voce não guenta” (RM, “Negro drama”,

2002); “o mundo é o corpo e ele é tumor maligno, descende de quem,/ roubou a terra dos índios”

(“Alcatraz”, 2006). E a voz potente de Jubiabá, consciencia histórica, merecedora do título de uma

obra, vaticina: “no tempo do carro de boi tinha negro com fome. Hoje também tem. Pra negro é a

mesma coisa” (p. 237).

Essa consciencia, que não é ressentimento estéril, constitui vitalidade, poder de discernir

e capacidade de expressão. Aquilo que, segundo Fanon, caracteriza como ações de intelectuais

(1979, p. 175):

alimentadas ou pelo menos orientadas pela secreta esperança de descobrir além das misérias de hoje, do desprezo por nós mesmos, dessa demissão e dessa renúncia, alguma era extraordinariamente bela e resplandecente que nos reabilite ao mesmo tempo aos nossos próprios olhos e aos olhos dos outros... [Estes intelectuais] não podendo enamora-se da história atual de seu povo oprimido, não podendo admirar sua presente barbárie, deliberaram ir mais longe, mais fundo, e foi com alegria excepcional que descobriram que o passado não era de vergonha mas de dignidade, de glória e de solenidade.

O que encontramos, enfim, tanto na caracterização do protagonista Balduíno e no rap, são

histórias de negros e negras, vivendo dramas específicos em espaços delimitados e perigosos,

porque repressivos, entrincheirando-se nas mínimas possibilidades reativas, as quais adquirem

força, na medida em que são narradas. Essas narrativas, longe de apresentarem uma visão heróica,

definitiva e vencedora do negro, expõem o discurso de uma história falível, sujeita às revisões

constantes, devido às emergencias de forças desestabilizadoras e imprevisíveis.

São recortes trágicos da realidade, mais evidentes em centros metropolitanos, onde o poder

é assegurado através do terror violento, dos mecanismos opressivos do status quo. Envolvido no

jogo sujo de uma nova e terrível aristocracia urbana, o personagem/ser negro impõe sua significação

através de atitudes de força, que vão desde o discurso violento até a reflexão fina sobre a história da

colonização e da escravatura, ressignificada nos fatos e situações íntimas e explícitas do nosso mais

obscuro cotidiano.

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REFERÊNCIAS

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HOBSBAWM, Eric J. Rebeldes primitivos: estudo de formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

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FACÇÃO CENTRAL. A marcha fúnebre prossegue. São Paulo: Sky Blue Music, 2004, ASIN: 7897454752394.

FACÇÃO CENTRAL. Versos sangrentos. São Paulo: Sky Blue Music, 2005, ASIN: 7897454752639.

FACÇÃO CENTRAL. Direto do Campo de Extermínio. São Paulo: Unimar Music 2006, ASIN: 7898329810591 (CD duplo).

RACIONAIS MC’S. Holocausto urbano. São Paulo: Zâmbia, 2000, ASIN: 7898056350124.RACIONAIS MC’S. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Vibrato, 2002, ASIN: 7898056350124.

RACIONAIS MC’S. Racionais ao vivo. São Paulo: Zambia, 2001, ASIN: 7898073390370.

RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Zambia, 1998, ASIN: 7898073390011. (CD duplo)

1 “O peso de um inevitável fardo para estudantes negros na academia branca determina o

conteúdo e o caráter de sua atividade intelectual. Na realidade, a vida intelectual do negro

permanece, em grande parte, preocupada com essa defensiva, com o sucesso de intelectuais

negros, sempre orgulhosos da sua aprovação entre os brancos, e alguns insucessos, normalmente

desdenhosos, de uma rejeição entre os mesmos” (tradução minha).

3 Lucas da Feira, segundo a literatura popular com base em evidentes referencias históricas, foi

um filho de escravos em Feira de Santana, que fugiu da situação de cativo aos 15 anos, formando

um grupo de cangaceiros e espalhando terror entre os senhores de engenho no final do século XIX.

Antonio Silvino, “pernambucano, nascido na localidade de Afogados da Ingazeira, entrou no bando

do [cangaceiro] Silvino Aires [no final do século XIX] para vingar-se do assassino do seu pai, crime

este cometido por inimigos políticos. O nome Silvino foi uma forma de homenagear o antigo chefe.

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Após a morte de Silvino Aires, assumiu a liderança do grupo. Tanto no sertão como no agreste

e até bem próximo do litoral, assaltava fazendas, roubava, assassinava adversários políticos,

chantageava comerciantes ricos, poupava as mulheres de agressões físicas e sexuais, tinha fama

de bom ladrão, tornando-se um mito” (Cardoso, Tânia Maria de Sousa. Origem e instituição do

Cangaço. Disponível em: http://www.camarabrasileira.com/cordel43.htm. Acesso em: 30 de julho

de 2006). Ambos foram presos e executados pela força militar da época.

4 Poderíamos acrescentar nessa lista a presença de Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage, ícone

do rap brasileiro, morto com quatro tiros em São Paulo.

5 Gilroy lembra do episódio envolvendo o 2 Live Crew, um grupo de rap sediado na Flórida,

liderado por Luther Campbell, “um americano negro de origem jamaicana e mentalidade comercial.

Este episódio não é notável, porque as formas de misoginia que chamaram a atenção da polícia e

dos promotores distritais eram novas” (2001, p. 176) e, portanto, não contou, nem poderia contar,

com a defesa do movimento hip hop nos Estados Unidos.

6 Conforme SOUZA (2006): “As tradicionais crítica e história da literatura brasileira costumam

considerar os romances de Jorge Amado como integrantes exóticos e populistas de uma

construção totemica: o cânone literário brasileiro”. O livro de Alfredo Bosi História Concisa da

Literatura repete, há mais de 40 edições, noções preconceituosas sobre esse romancista. “escritor

populista”, “romântico sensual”, “autor sem profundidade crítica”. A sua leitura de duas obras de

caráter crítico social de Jorge Amado, como Capitães de Areia e Jubiabá, impondo-lhe uma tonica

sensual, é grosseira e deturpada.

7 O ABC é um genero popular e biográfico com rimas e metro determinados que narram os feitos e

as peripécias de personagens consagrados pela tradição oral e escrita.

RAÍZES PERSISTENTES DA HOMOFOBIA NO BRASIL

(PERSISTENT ROOTS OF HOMOPHOBIA IN BRAZIL)

Luiz Mott30*

RESUMO

Neste artigo, “Raízes persistentes da homofobia no Brasil” resgata-se a etno-história

do preconceito e discriminação anti-homossexual no Brasil, elencando as principais áreas de

manifestação da homofobia, com enfase nos homicídios, uma verdadeira epidemia social que faz de

nosso país o campeão mundial de crimes homofóbicos. Discutem-se a seguir dez axiomas porque

os homossexuais (LGBT), dentre todas as minorias sociais, são as principais vítimas da intolerância

em nossa sociedade contemporânea.

Palavras-chave: Homossexualidade. Homofobia. LGBT. Gay.

ABSTRACT

In this work, “Persistent Roots of homophobia in Brazil” rescues the ethno-history of anti-gay prejudice and

discrimination in Brazil, listing the main areas of manifestation of homophobia, with emphasis on homicide, a true

social epidemic, that makes our country world champion of homophobic crimes. We discuss ten axioms why

homosexuals (LGBT) among all social minorities, are the main victims of intolerance in our contemporary society.

Keywords: Homosexuality. Homophobia. LGBT. Gay.

30 * Professor Titular de Antropologia da UFBa e Decano do Movimento Homossexual Brasileiro

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1. HISTÓRIA DA HOMOFOBIA NO BRASIL

“A homossexualidade é tão antiga quanto a própria humanidade”, costumava dizer pensador

Goethe (+1832)1. Parafraseando o poeta, podemos dizer que “a homofobia é tão antiga quanto o

próprio Brasil”, pois desde os primórdios de nossa história, com a criação das Capitanias Hereditárias

(1534), outorgou-se aos Capitães Mores o poder extraordinário de condenar à morte os “sodomitas”

sem necessidade de consulta e confirmação real2. A partir da fundação do Tribunal do Santo Ofício da

Inquisição Portuguesa (1536), o amor entre pessoas do mesmo sexo tornou-se crime punível com a

morte na fogueira, passando a homossexualidade a ser equiparada aos crimes de lesa majestade e

traição nacional. Institucionalizava-se, assim, para todo o império portugues, a mesma abominação

do Levítico, velha de quatro mil anos: “o homem que dormir com outro homem como se fosse

mulher, deve ser apedrejado”3.

Tres tribunais puniam os homoeróticos: a Santa Inquisição, a Justiça Real e o Bispado. A

partir de 1591, com a 1ª Visitação do Santo Ofício à Bahia e Pernambuco, até 1769, quando da

última Visitação ao Grão-Pará, 283 colonos portugueses e brasileiros, brancos e mestiços em sua

maior parte, foram denunciados à Inquisição, inculpados no “mau pecado”. Legalizava-se, assim a

homofobia institucional também na América Portuguesa, punindo-se não apenas os praticantes do

abominável crime de sodomia, como seus parentes e demais pessoas que não os denunciassem

às autoridades constituídas4. Ter um filho ou parente homossexual constituía grave risco para toda a

família, daí a repressão homofóbica começar dentro do próprio lar.

Ao todo a Inquisição prendeu e processou 34 sodomitas do Brasil e malgrado nenhum

destes réus ter sido efetivamente queimado na fogueira, mas punidos com degredo, galés perpétuas,

seqüestro de bens e açoites, registraram-se aqui, quando menos, duas execuções de “sodomitas”

no período colonial: em 1613, em São Luís do Maranhão, os missionários capuchinhos condenaram

à morte um índio Tupinambá, publicamente infamado e reconhecido como tibira (sodomita paciente):

foi amarrado na boca de um canhão, sendo seu corpo estraçalhado com o estourar do morteiro,

“para purificar a terra de suas maldades”. Em 1678, um segundo mártir homossexual é executado,

agora na Capitania de Sergipe: um jovem escravo negro, “foi morto de açoites por seu senhor por

ter cometido o pecado de sodomia” 5. A Inquisição institui em nossa terra a pedagogia do medo,

demonizando os “fanchonos” e “somítigos”, fazendo de todo cristão um potencial colaborador deste

monstro sagrado, cujos descendentes dos famigerados “familiares do Santo Ofício” ainda hoje,

sobretudo no Nordeste e na Bahia em particular, ocupam destacado status em nossa sociedade

contemporânea.

Com certeza muitos outros assassinatos de homossexuais devem ter sido perpetrados

nos séculos passados no território brasileiro, mas infelizmente são raros os registros de tais sinistros.

Dispomos, sim, de evidencias históricas registradas no processos inquisitoriais de como os

colonizadores mais velhos ensinavam às novas gerações como apartar e maltratar os homossexuais.

Fazia parte da socialização dos jovens no Brasil Antigo, como no hodierno, aprender a temer e

afastar qualquer solicitação para atos sodomíticos, sobretudo as relações passivas. Nos meados

do século XVII, em Salvador, os mais velhos ensinaram a um jovem baiano de 16 anos “que não

aceitasse coisa alguma de um violeiro fachono Luiz Delgado, porque era sodomítico”, recebendo o

adolescente muitas pancadas por ter mantido conversação com o mesmo. Outro mancebo, 17 anos,

ao saber que o dito violeiro era homossexual, “não quis mais falar com ele, nem tirou-lhe o chapéu”.

Outro caso: um menino de 11 anos, sabedor da má fama do tal gay, após ter sido convidado pelo

mesmo para se encontrarem numa área despovoada, “seu pai lhe dera uma faca para trazer consigo,

dizendo-lhe que se acaso Luiz Delgado tornasse a falar em semelhantes cousas, lhe desse com a

faca”. E de fato, este homossexual, assim como outros registrados nos manuscritos inquisitoriais,

trazia em seu corpo várias cicatrizes desferidas como castigo à sua homossexualidade6. Digna de

nota foi a observação feita por um morador da Bahia, percebendo já no século XVII o que apenas

recentes pesquisas sociológicas ratificaram: que via de regra, a homofobia tende a ser mais intensa

em áreas rurais mais isoladas, do que nos centros urbanos mais heterogeneos 7. Disse tal informante

que ouviu murmúrios em Salvador de que o citado Luiz Delgado era fanchono “e muito mais pelo

sertão, donde então morava, que o dito violeiro era sodomítico, pois lá no sertão se fala muito mais

largamente nesta matéria que aqui na cidade, tanto em galhofas e zombaria de passatempo, como

fora dela”. O sertão, terra de cabra macho, reduto da homofobia mais violenta: em 1683, outro

sodomita notório, o escravo Jeronimo, já beirando os setenta anos, levou uma facada na testa,

ferindo-lhe um olho, e outros negros o tinham ferido e maltratado, dando-lhe uma bordoada com

um pau em sua cabeça, fazendo-lhe uma grande ferida”. Sua fama era tão espalhada – nos limites

da Bahia com Sergipe, que “os moradores costumavam desempulhar-se com falar no Jeronimo e

outros diziam: guarda-te do Jeronimo do Morato”8.

Malgrado a existencia de severa homofobia institucional no período colonial, sancionada

por leis civis e religiosas, revitalizada no dia a dia por onipresente homofobia cultural assentada no

machismo e no patriarcado, com a instalação do regime imperial, a homossexualidade é legalmente

descriminalizada, deixando de constar no Código Penal (1830), muito embora a homofobia cultural

persista sem solução de continuidade, consubstanciada agora nas opiniões e ações de delegados

de polícia, médicos, advogados, juízes e religiosos, que tratam os “pederastas” como doentes e

marginais.9 Nossa literatura da Belle Epoque, seja “científica”, seja ficcional, registra inúmeros casos

de violencia, suicídio e homocídios desta minoria sexual, destacando-se as obras o Bom Crioulo,

de Adolfo Caminha (1895), onde um marinheiro negro ciumento mata seu loiro grumete infiel, e A

libertinagem no Rio de Janeiro, do Dr. Pires de Almeida (1906). Prisões arbitrárias, espancamentos e

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agressões contra “invertidos” e “invertidas” são igualmente documentados nos periódicos desde os

meados do século XIX.: “Encontrado com vários ferimentos o incorrigível João Paulo, africano livre,

vestindo camisa de algodão e saia de mulher, nas matas próximas do Barbalho, Salvador (1870)”;

José Ferreira Pacheco, (1853), foi preso por estar “vestido de mulher”; no domingo, no Largo dos

Aflitos, (Salvador, 1870) “apareceu um homem vestido de mulher. Um gaiato, vendo aquela mulher

e supondo ser alguma menina feliz, foi baculeá-la [sic] e encontrou-se com o rigoroso insano.

Descobriu porem o engano em que estava e viu que a suposta mulher era um ex-voluntário do 54.

Reuniram-se diversos rapazes e puseram a roupa do efeminado em tiras, sendo a saia levada feito

bandeira por um dos sujeitos, que o esbordoaram. Eis por fim apresentou-se a polícia, e por sua vez

espancou também o povo. Que terra, meu Deus!” 10

Data de 1885 a referencia mais antiga, até agora encontrada, relativamente ao assassinato

de um homossexual em nosso país: “Cândido S., portugues, 26 anos, viúvo, comerciante, morador

no 1º andar da Rua da Candelária nº 38, no Rio de Janeiro, viviam com seu caixeiro Albérico, 22

anos, a quem sustentava e protegia. No dia 15 de abril de 1885, enquanto calçava sua botina,

Albérico desfechou diversas marteladas na cabeça do pederasta Cândido, acabando de matá-lo com

um braço de prensa de fumo. O assassino foi condenado a galés perpétuas e depois reduzida a pena

para 30 anos de prisão com trabalho”11. Um triste episódio de violencia doméstica homossexual

onde a vulnerabilidade social do “pederasta” certamente pesou na execução do homicídio.

Já nos inícios do século XX, dispomos de registros de internação compulsória de

homossexuais em manicomios de São Paulo12 e a prisão de 195 “frescos” pela Polícia Civil do Rio

de Janeiro (1932) para serem objeto de estudo do Dr. Leonídio Ribeiro, do Instituto de Identificação

da Capital Federal13.

Foi contudo somente em 1980, com o movimento homossexual brasileiro, especificamente

com a fundação do Grupo Gay da Bahia (GGB), que tem início no Brasil a coleta sistemática de

informações sobre a violencia letal e não-letal contra a comunidade homossexual, hoje referida

como LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Inexistindo no país estatísticas

oficiais sobre crimes de ódio, coube ao GGB, nestas tres últimas décadas, documentar e divulgar

anualmente o rol das principais violações dos direitos humanos do segmento LGBT, redundando, até

o presente na publicação de sete livros e diversos artigos sobre este tema 14.

Foi portanto com o intuito de dar um tratamento mais amplo e sofisticado cronológica e

teoricamente ao estudo das violações dos direitos humanos da comunidade lgbt no Brasil que uma

equipe de cientistas sociais da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual da Bahia

realizaram esta pesquisa, com apoio do Ministério da Saúde, tendo como título “Crimes homofóbicos

no Brasil: Panorama e erradicação de assassinatos e violencia contra LGBT, 2000-2007”.

2. CRIMES HOMOFOBICOS NO BRASIL: 1980-2013

O Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) tem início no Brasil em 1978, com a publicação

do jornal O Lampião da Esquina e no ano seguinte com a fundação da primeira associação, o

Somos: Grupo de Afirmação homossexual (São Paulo, 1979). Em 1980 o antropólogo Luiz Mott

funda o Grupo Gay da Bahia, que já no primeiro número do Boletim do GGB, em agosto de 1981,

inicia o levantamento sobre os crimes homofóbicos, em matéria intitulada Pesquisa: Homossexuais

assassinados no Brasil15. Assim é justificada tal iniciativa: “Não nos deixam em paz: fiu-fiu na rua,

bosta na Geni, discriminação em toda parte, violencia. Há milenios que nos matam: a pedrada na

Judéia, na fogueira na Europa medieval, nos campos de concentração na Alemanha nazista, no

paredón no Irã, em nossas casas aqui no Brasil. 16 homossexuais brasileiros foram barbaramente

assassinados só nos últimos dois anos (1979-1981). Fora os que não ficamos sabendo. A última

bicha assassinada foi em São Paulo: um baiano, Evaldo Reis Borges, não faz ainda um mes. O GGB

dá início a seu BOLETIM divulgando os nomes de nossos irmãos homossexuais assassinados nos

últimos anos. Nosso levantamento certamente deve estar incompleto: começamos no ano de 1969,

com as informações mais antigas retiradas do jornal O Lampião:

1. Padre Antonio Carneiro van der Linden (+21/9/1969, RJ) Causa mortis: crânio esmagado a

pauladas.

2. Fred Feldman (+9/11/1970, RJ) Causa mortis: pauladas

3. Juarez Viana Bezerra (+11/10/1971, RJ) Causa mortis: 22 facadas

4. Manon - travesti - (+?/4/1978, RJ) causa mortis: desconhecida

5. Décio Frota Escobar (+19/4/1979, RJ) Causa Mortis: estrangulado

6. Alfonsus Manuel de Barros (+?/5/1979, RJ) Causa mortis: degolado

7. Jorge Borges de Oliveira (+?/12/1979 - Uberlândia, MG) Causa Mortis: desconhecida

8. Cremilda - travesti - (+?/1/1980, Ituiutaba, MG) Causa Mortis: desconhecida

9. Toni Vieira (+/3/1980, Recife) Causa Mortis: duas balas no peito e na cabeça

10. Luiz Luzardo Correa, vulgo Luiza Felpuda (+30/4/1980, Porto Alegre) Causa mortis: golpes de

enxada e castrado

11. Luidoro Luzardo Correa (+30/4/1980, Porto Alegre, RGS) Causa Mortis: golpes de enxada

12. Evar Lemoine Silva, Bamba (+6/5/1980, Recife) Causa mortis: pancada na cabeça e cravado

de facas, garfos

13. Geni - travesti - (+?/4/1980, RJ) Causa mortis: raptado, seviciado e abandonado morto na praia

14. Marcos José Morra (+4/8/1980, Recife) Causa mortis: cacetadas no crânio

15. Roberto Rocha Leal (+29/9/1980, RJ) Causa mortis: injeções de tranqüilizante numa clínica

psiquiátrica

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16. Antonio Santos das Flores (?/?/1980, Salvador) Causa mortis: golpes de machado.

17. Paloma - travesti - (?/1/1981, Itabuna, Bahia) Causa mortis: facadas

18. Angelo Walter Bronze (+13/3/1981, RJ) Causa Mortis: facada no peito

19. Pedro dos Santos Pereira (+19/3/1981, Brasília) Causa mortis: tiro no peito

20. Evaldo Reis Borges (+16/7/1981, SP) Causa mortis: cabeça esmagada com botijão de gás

Quando nos deixarão em paz? Quando os marcos da história do MHB deixarão de ser as

ocasiões em que fomos desrespeitados, violentados, assassinados? Chega de mártires! Enquanto

este dia não chega, temos nós mesmos de revelar a verdade sobre o modo violento como nos

tratam. A verdade sobre os homossexuais quem sabe somos nós. Caso voce tenha conhecimento

de outras bichas e lésbicas que foram assassinadas ou sofreram qualquer outra forma de violencia,

mande-nos a informação completa. Não deixe de denunciar a violencia contra os oprimidos. Só

quando todos os oprimidos nos unirmos é que conseguiremos liberdade e igualdade de direitos.

Nenhum oprimido se liberta sozinho. Temos de seguir o exemplo das feministas quando do último

assassinato de uma mulher em São Paulo: sair pelas ruas com cartazes ensangüentados, com os

nomes e datas do assassínio de nossos mártires gays. Se a gente não se cuida, se distrai, aí então

o bicho pega. Vejam que mesmo nos States, com toda a mobilização do movimento gay americano,

recentemente ocorreu um massacre em “Ramrod”, saindo dois gays mortos e tres feridos (Gai

Pied, nº 28). Chega de violencia! Entre nesta luta. E não se esqueça o ditado popular: quem cala,

consente!” 16.

Assim começou esta sangrenta pesquisa sobre os assassinatos de LGBT no Brasil,

com a descrição sumária de 20 homicídios, sete dos quais anteriores à fundação do Grupo Gay

da Bahia. A partir de então, agosto de 1981 a finais de 2005, em todos os demais 44 números

do Boletim do GGB, continuamos a divulgação da violação dos direitos humanos e da lista dos

LGBT assassinados no Brasil, perfazendo até o presente ano, setembro de 201a, um total de 3510

“homocídios”, assim distribuídos:

ANO TOTAL 1963 – 1969 301970 – 1979 411980 -1989 5031990 – 1999 1.2562000-2009 12482010-2013 1177

Total 4255

Cumpre notar que nos primeiros anos do levantamento da criminalidade letal contra

homossexuais, as principais fontes de informação eram os jornais e revistas, e em todos os Boletins

do GGB solicitávamos aos leitores que nos enviassem recortes da imprensa com notícias sobre

homofobia. Época pioneira aquela, que dependia dos correios para a socialização de notícias, posto

que só nos últimos quinze anos que passamos a contar com as facilidades do xérox, fax, internet

e sobretudo dos sites de pesquisa e dos próprios jornais on line – hoje nossa principal fonte de

levantamento de dados sobre homofobia.

Convém insistir que já em setembro de 1982, no Boletim do GGB n.4, utilizamos pela

primeira vez em portugues o conceito “homofobia” – cunhado pelo psicólogo Dr. George Weimberg

em 197117 e até então praticamente desconhecido inclusive pela militância brasileira.

Assim sendo, nos últimos 35 anos, religiosamente, cotidianamente, praticadamente todos

os dias do ano, o fundador do GGB continua recebendo recortes de jornal e localizando na internet,

notícias de gays, travestis e lésbicas que foram violentamente assassinados de norte a sul do país.

Tres assassinatos por ano na década de sessenta, quatro na década de setenta, cinqüenta por ano

na década de oitenta, um a cada tres dias na década de 90, repetindo-se o mesmo índice nos dez

primeiros anos do terceiro milenio. Nos últimos cinco anos, registrou-se um aumento de 113% no

numero de “homocídios”, sendo que em 2012 atingimos cifra nunca antes atingida nessa macabra

estatística, 338 assassinatos, perfazendo uma média de um LGBT executado a cada 26 horas!

Nos primeiros tres meses de 2014, a situação se agravou ainda mais: um homocídio a cadaa 21

horas! Informações detalhadas sobre tais assassinatos podem ser consusltados no site “Quem a

homotransfobia matou hoje” http://homofobiamata.wordpress.com/

Nunca é demais lembrar que tais números não passam de débeis estimativas, e somos

quem primeiro reconhece a incompletude desses dados e a inerente limitação das fontes, já que

grande parte dos homicídios contra as minorias sexuais não teve testemunhas, acrescido do fato

que parentes e vizinhos tentam frequentemente esconder a orientação sexual da vítima, sem falar nos

jornalistas e policiais que revelam eles próprios opiniões machistas e homofóbicas, prejudicando a

reconstituição objetiva do crime.

Insistimos: mesmo crimes que aparentemente não revelam nítido componente de ódio

homofóbico, devem ser computados, seguindo assim a mesma sistemática operacional dos

estudos feministas ou sobre índios e negros, que incluem em suas estatísticas todas as vítimas

das respectivas categorias, sem especificar obrigatoriamente se o crime teve ou não conotação

machista ou racista. Acrescente-se que mesmo naqueles crimes em que o gay foi vítima de

latrocínio, ou a travesti de pista baleada por um cliente ou traficante de drogas, e mesmo quando a

lésbica esfaqueia sua companheira, por traz de todos estes crimes aparentemente “comuns”, está

onipresente a homofobia cultural, às vezes também a homofobia institucional, que fragiliza os gays

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face aos rapazes de programa; que estigmatiza as transexuais e travestis, obrigadas à prostituição

por falta de alternativas profissionais; que embebe de machismo e violencia doméstica as relações

lesbianas. Há anos o Grupo Gay da Bahia vem insistindo junto às autoridades policiais, de segurança

pública e direitos humanos, em nível estadual e federal, que instituam no país a pesquisa sistemática

e exaustiva sobre crimes de ódio – por raça, identidade de genero, orientação sexual, religião –

tarefa hercúlea por nós realizada há tres décadas, no mais das vezes sem qualquer financiamento

governamental. Enquanto tal urgencia não se concretiza, o GGB continua seu trabalho beneditino,

que malgrado todas as limitações e lacunas, constitui a principal fonte documental do mundo sobre

crimes letais contra homossexuais e cujos relatórios anuais são citados pelo próprio Secretário

Nacional de Direitos Humanos e anualmente divulgados pelo State Departmanent dos Estados

Unidos em seu Report on Human Rights 18.

Além do levantamento dos assassinatos de LGBT, o Grupo Gay da Bahia vem sistematicamente

coletando e divulgando informações sobre a violencia não-letal motivadas pela homofobia,

documentando um continuum de agressões que vão do insulto, difamação, discriminação e

ameaças, aos golpes, violencia física e tortura. Para este tipo de homofobia não letal, alem das fontes

jornalísticas e da internet, contamos com os “Registros de Queixa de Homofobia” disponibilizados

na sede do Grupo Gay da Bahia, onde a própria vítima descreve a violencia sofrida, seguindo o

mesmo procedimento dos “boletins de ocorrencia” das delegacias policiais.

3 PORQUE OS HOMOSSEXUAIS SÃO OS MAIS ODIADOS DE TODAS AS MINORIAS SOCIAIS

Quando se fala em discriminação, via de regra, cada minoria procura puxar o quanto pode a

brasa para mais perto de sua sardinha. Falar em brasa, porem, lembra fogueira e como por séculos

seguidos os homossexuais foram queimados nas fogueiras da Santa Inquisição, prefiro não brincar

com fogo e mostrarei, com dez argumentos, que de fato, mais do que as minorias raciais, étnicas

e de genero, são os gays, lésbicas, travestis e transexuais, as principais vítimas do preconceito e

discriminação dentro de nossa sociedade. Considero que exatamente por esta situação de maior

vulnerabilidade, carecem os homossexuais de maior e mais urgente atenção por parte do poder

público e da sociedade em geral, na implementação de medidas efetivas que garantam a salvaguarda

de seus direitos humanos e da plena cidadania.

I. CRIME HEDIONDO

Na nossa tradição ocidental, herdeira da moral judaico-cristã, o amor entre pessoas do mesmo

sexo foi considerado e tratado como crime dos mais graves, equiparado ao regicídio e à traição

nacional. O sexo entre dois homens era considerado tão horroroso, que os réus deste crime hediondo

deviam ser punidos com a pena de morte: a pedradas entre os antigos judeus e até hoje nos países

islâmicos fundamentalistas; decapitados, no tempo das primeiros imperadores cristãos; enforcados

ou afogados na Idade Média; queimados pela Santa Inquisição; condenados à prisão com trabalhos

forçados no tempo de Oscar Wilde e na Alemanha nazista 19.

Ser negro, índio ou mulher jamais foi crime. Mesmo ser judeu ou protestante, nos reinos

católicos, era tolerado dentro de certos limites e desde que não houvesse apostasia. Ser sodomita,

porém, sempre foi crime gravíssimo, tanto que tres alçadas, a justiça real, o tribunal do Santo Ofício

e a justiça episcopal se articulavam para descobrir, perseguir, prender, seqüestrar os bens, açoitar,

degredar e executar os réus deste crime abominável.

Só em 1821 é abolida a Inquisição Portuguesa e em 1823, por influencia modernizante

do Código de Napoleão, a sodomia deixou de ser crime também no Brasil. Apesar de terem sido

descriminalizados há quase dois séculos, gays, lésbicas e travestis continuam sendo tratados como

criminosos: nas delegacias, nas batidas policiais, os homossexuais são sempre visto e tratados

como delinqüentes. Mesmo quando vítimas, são tratados como réus.20

II. PECADO ABOMINÁVEL

“De todos os pecados, o mais sujo, torpe e desonesto é a sodomia. Por causa dele, Deus

envia à terra todas as calamidade: secas, inundações, terremotos. Só em ter seu nome pronunciado,

o ar já fica poluído”21.

Tal foi o ensinamento repetido por rabinos, felás, padres e pastores ao longo dos últimos

quatro mil anos. O amor entre dois homens foi considerado pecado tão abominável que não deve

sequer ser pronunciado: “nefando” ou “nefário” significa exatamente isso: impronunciável, o pecado

cujo nome não se pode dizer.

De acordo com a teologia moral cristã, um homem amar o outro, era pecado mais grave

do que matar a própria mãe, escravizar outro ser humano, a violencia sexual contra crianças. “Por

causa da sodomia, Deus arrasou com Sodoma e Gomorra e destruiu a Ordem dos Templários num

só dia!”22.

Negros e índios eram pagãos que deviam ser convertidos à “verdadeira” fé, mas não havia

pena de morte ipso facto contra os pagão, nem mesmo contra os judeus e protestantes nascidos

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nestas religiões. Contra os praticantes do abominável e nefando pecado de sodomia, a Igreja sempre

foi e continua sendo absolutamente intolerante: “a homossexualidade é intrinsecamente má” ratificou

o último catecismo de João Paulo II23.

Na tradição ocidental, cabe ao Judaísmo a culpa principal pela legitimação da intolerância

anti-homossexual, posto ter sido a Bíblia que forneceu as mesmas premissas homofóbicas para o

cristianismo e islamismo. Foi Javé quem primeiro mandou apedrejar “o homem que dormir com

outro homem como se fosse mulher”, cabendo ao apóstolo Paulo a argumentação teológica para

excluir os sodomitas do Reino dos Céus 24.

Ainda hoje vigora a pena de morte contra os amantes do mesmo sexo nos países

fundamentalistas islâmicos. Malgrado a homossexualidade ser chamada durante a Idade Média,

com justiça, de “vício dos clérigos”, e ainda hoje gays e lésbicas representarem significativo

papel quantitativo e qualitativo sobretudo dentro do catolicismo, o Papa polaco tem-se destacado

pela intolerância anti-homossexual, e segundo o atual Catecismo Romano o homossexualismo é

“intrinsecamente mau”25.

Enquanto a Igreja vem pedindo perdão a todos os grupos sociais por ela perseguidos

ou maltratados – judeus, negros, índios, protestantes, etc – a hierarquia católica e sobretudo as

novas seitas protestantes fundamentalistas radicalizaram seus discursos e ações contra os direitos

humanos e dignidade das minorias sexuais. Mesmo as religiões afro-brasileiras, cujo panteão é

povoado por diversas divindades transexuais e cujos pais, mães e filhos de santo sano, em número

significativo, são praticantes do homoerotismo, mesmo o candomblé e umbanda ainda não

articularam um discurso politicamente coerente em defesa da visibilidade e afirmação das minorias

sexuais.

Assim, enquanto as igrejas cada vez mais defendem e abrem espaço para negros,

índios, sem terra, oferecendo pastorais específicas até para mulheres prostituídas e portadores de

HIV/Aids, as portas da igrejas continuam fechadas aos homossexuais.

III. HOMOFOBIA INTERNALIZADA

Durante centenas de gerações, nossos antepassados ouviram nos púlpitos e

confessionários, que a homossexualidade era o pecado que mais provoca a ira divina. Ainda

recentemente o Cardeal do Rio de Janeiro e muitos pastores proclamam que a Aids, por eles

chamada de “peste gay”, é um castigo divino contra os homossexuais. 26 Durante séculos nossos

antepassados reprimiram seus filhos homossexuais, pois toda a família perdia os direitos civis por

tres gerações seguidas, caso um seu membro fosse condenado pelo crime de sodomia. No tempo

de nossos pais e avós os donos do saber médico proclamaram que os “pederastas” eram doentes,

desviados, neuróticos, anormais, etc. submetendo-os a tratamento cruéis e inócuos. 27

Desde Freud, contudo, comprovou-se que todos somos perversos polimorfos, com

forte presença da bissexualidade em nossa libido. Kinsey descobriu já em l948 que 37% dos homens

ocidentais tinham experimentado na idade adulta, ao menos dois orgasmos com o mesmo sexo.

Quer dizer: uma sociedade tão fortemente marcada pela homofobia - o ódio à homossexualidade

– onde ao mesmo tempo a quase totalidade das pessoas sentem desejos unissexuais e número

significativo de indivíduos já experimentou secretamente as delícias do homoerotismo28 – tal

contradição profunda provoca um ódio doentio contra o próprio desejo homoerótico, e sobretudo

contra aqueles que ousam transgredir a ditadura heterossexista.

A este ódio mórbido contra a homossexualidade a Psicologia chama de homofobia

internalizada, provocando nestes doentes, sintomas diversos, (além de mau humor, espinhas e prisão

de ventre), incluindo neurose de frustração sexual, suicídio e atos de violencia, como agressões e

assassinato sádico de homossexuais.

IV. OPRESSÃO FAMILIAR

Enquanto para os membros das demais minorias sociais, a família constitui a principal

grupo de apoio no enfrentamento da discriminação praticada pela sociedade global, no caso dos

homossexuais , é no próprio lar onde a opressão e a intolerância fazem-se sentir mais fortes 29.

A mãe negra, o pai judeu, a família indígena reforçam a auto-estima étnica ou racial de

seus filhos, estimulando a afirmação dos traços culturais diacríticos que auxiliarão vitalmente a

estas crianças e adolescentes a desenvolverem sua auto-estima, identidade, orgulho e afirmação

enquanto grupo étnico, racial ou religioso diferenciado.

Com os jovens gays, lésbicas e transgeneros a realidade é tragicamente oposta: pais e mães

repetem o refrão popular – “prefiro um filho morto do que viado!”, ou “antes uma filha puta do que

sapatão!”. Muitos são os registros de jovens homossexuais que sofreram graves constrangimentos

e violencia psíquica e física dentro do próprio lar quando foram descobertos: insultos, agressões,

tratamentos compulsórios destinados à “cura” da sua orientação sexual, expulsão de casa e até

casos extremos de execução. Recentemente, num bairro periférico de Salvador, um avo espancou

seu neto negro até à morte quando descobriu que era gay, e um pai baiano de classe média ao

ser informado que seu filho era homossexual, deu-lhe um revólver determinando: “Se mate! Pois na

nossa família nunca teve viado!” 30.

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V. CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO

Durante os últimos quatro mil anos, a homossexualidade foi chamada de “pecado nefando”,

o que não pode ser pronunciado. E de fato, as principais instituições donas do poder, da família às

igrejas, da escola à polícia, se uniram para impedir que os praticantes do amor proibido divulgassem

a verdade: que é bom ser gay, que é gostoso o erotismo entre pessoas do mesmo sexo, que duas

mulheres podem perfeitamente se amar de forma tão intensa e romântica como os casais do sexo

oposto, que a própria natureza humana pode ser alterada, e uma pessoa transexual tem o direito de

adaptar sua anatomia e genitália à sua identidade de genero 31.

Esta ardilosa conspiração do silencio incluiu também entre suas estratégias, não só a

destruição das fontes documentais comprobatórias da homossexualidade de personagens célebres,

como também a heterossexualização dos amores destas celebridades, numa tentativa maquiavélica

de cumprir o mandato inquisitorial: “que os sodomitas sejam queimados e reduzidos a pó, para que

deles não se tenha memória!” 32.

Contemporaneamente a mídia, a academia, os jornais diários, perpetuam este diabólico

complo do silencio, censurando artigos que abordam o amor homossexual de forma positiva,

sonegando informação sobre a orientação sexual de gays e lésbicas destacados, ou ridicularizando

e divulgando preconceitos contra as minorias sexuais.

VI. LUTA MENOR

Durante décadas seguidas, intelectuais e políticos de esquerda relegaram ao status de “luta

menor” os estudos e militância em favor dos direitos humanos das minorias sexuais. Sob o pretexto

de que primeiro se devia derrubar o capitalismo e garantir o pão e trabalho às classes subalternas,

transferia-se para um futuro remoto discutir e lutar pelos direitos sexuais e de genero. Gays e lésbicas

foram taxados de agentes da burguesia, e o homoerotismo como sintoma da decadencia capitalista 33.

Líderes negros e indígenas, dando as costas às evidencias etno-históricas que comprovam a

presença da homossexualidade na maior parte das sociedades tribais, acusaram o amor unissexual

de ser vício colonialista34. A duras penas os partidos de esquerda aceitaram conviver com militantes

homossexuais assumidos e incluir em seus estatutos e agenda política, a defesa da cidadania plena

dos gays, lésbicas e transgeneros, do mesmo modo com costumam defender os direitos humanos

dos negros, índios e demais minorias sociais. O recente infeliz comentário de Lula ridicularizando

Pelotas como “pólo exportador de viados” reflete a homofobia generalizada de nossos políticos,

inclusive os de esquerda.

Obviamente que a luta racial, pela igualdade de genero e de orientação sexual é tão

revolucionária e primordial quanto a luta do proletariado, posto que direitos humanos e cidadania

não podem ser limitados apenas a certos grupos e a seus projetos particulares, mas a todos os

segmentos que formam a sociedade, e que sofrem e são discriminados exatamente por ostentarem

tais peculiaridades raciais, étnicas, sexuais, etc. 35

VII. HOMOFOBIA ACADÊMICA

As Ciencias, particularmente as Humanidades, tem a missão crucial de realizar pesquisas

e divulgar conhecimentos sólidos visando destruir as prenoções, derrubar os preconceitos e impedir

as discriminações baseadas em tais equívocos. Lastimavelmente, no entanto, raríssimas são as

universidades brasileiras que dispõem de áreas de pesquisa e programas voltados aos estudos da

(homo)sexualidade em geral e da homossexualidade em particular36. O amor homoerótico continua

ainda tema nefando no meio academico: professores e pesquisadores gays e lésbicas se veem

forçados a permanecer na gaveta a fim de não sofrerem discriminações funcionais; muitos são os

docentes que ainda usam a cátedra para divulgar opiniões negativas em relação à homossexualidade;

alunos e alunas homossexuais são discriminados por seus professores, vendo-se impedidos de

assumir sua verdadeira identidade existencial; pesquisadores são desestimulados ou mesmo

barrados a investigar temas relativos à sexualidade humana. Muitos academicos continuam agindo

como “cães de guarda da moral hegemonica”37.

VIII. OMISSÃO GOVERNAMENTAL

Tradicionalmente, a máquina estatal foi sempre utilizada para reprimir os amantes do mesmo sexo.

Embora desde o fim da Inquisição a homossexualidade tenha deixado de ser crime, a Polícia e a

Justiça passaram a ocupar a função dos antigos inquisidores, perseguindo, punindo, torturando os

“pederastas”38.

A partir da revolução de Stonewall (Nova York, 1969), marco inicial do moderno movimento

de defesa dos direitos humanos dos homossexuais, os países mais civilizados do mundo passaram

a incluir os gays, lésbicas e transgeneros na agenda de grupos minoritários que deviam ser

beneficiados por políticas garantidoras de sua visibilidade social e igualdade de cidadania.

No Brasil, lastimavelmente, as ações governamentais em favor da defesa dos direitos

humanos dos homossexuais são ainda praticamente inexistentes: data de 1996 o primeiro

documento do governo federal a mencionar o termo “homossexual”, e mesmo aí, no Plano Nacional

de Direitos Humanos, enquanto são 22 as propostas de ações oficiais de superação do racismo,

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os homossexuais não mereceram sequer uma medida propositiva 39.

Chega a ser criminoso o descaso e a omissão do poder executivo, legislativo e judiciário

em reconhecer a urgencia de propor medidas afirmativas que reduzam a violencia homofóbica no

país, viabilizando uma inadiável revolução nas mentalidades dos formadores de opinião, a fim de

superar o preconceito e discriminação presentes em todas as esferas públicas de nossa sociedade.

Do mesmo modo como existe Funai, Fundação Palmares, Secretaria Nacional da Mulher, urge que

seja criada uma Secretaria da Cidadania Homossexual, com vistas a erradicar a homofobia em

nosso meio.

IX. HOMOFOBIA ENTRE OS DEFENSORES DO DIREITOS HUMANOS

Mais grave do que o preconceito encontrado entre os líderes religiosos e academicos, é

a homofobia observada entre as lideranças das instituições voltadas à defesa dos direitos humanos.

Hélio Bicudo, D. Aloísio Lorschaider, Rabino Henry Sobel, por exemplo, grandes defensores

dos direitos humanos, várias vezes divulgaram na mídia opiniões discriminatórias contra os

homossexuais, opondo-se radicalmente ao reconhecimento legal da união civil entre pessoas do

mesmo sexo 40.

O complo do silencio, evitação e apartheid social continuam presentes no discurso

e prática de grande parte das lideranças dos movimentos de direitos humanos. Não raramente,

chegam alguns a argumentar que não existe paralelo nem equiparação entre a discriminação por raça

ou genero, e a discriminação baseada na orientação sexual. Infelizmente, os argumentos utilizados

pelos que excluem os homossexuais da agenda dos direitos humanos inspiram-se em dogmas

religiosos, que insistem em demonizar o amor entre pessoas do mesmo sexo.

É fundamental que as entidades e lideranças engajadas na luta pela cidadania reconheçam

que direitos sexuais também são direitos humanos 41.

X. ALIENAÇÃO DOS HOMOSSEXUAIS

Os gays, lésbicas e transgeneros devem representar quando menos 10% da população

brasileira. 16 milhões de seres humanos presentes em todas as raças, grupos étnicos, classes

sociais, profissões, idades. Os homossexuais constituem a única minoria que se faz presente

em todas as demais minorias sociais. Não é por menos que um dos slogans mais queridos do

movimento homossexual internacional é : “somos milhões e estamos em toda parte!”

Não obstante tal onipresença, 99% dos homossexuais continuam presos dentro do armário,

vivendo clandestinamente o que para todo ser humano é motivo de grande satisfação, reconhecimento

público e orgulho: o amor. São tão fortes o preconceito, opressão e discriminação contra este

grupo, que a quase totalidade dos gays e lésbicas introjetaram a homofobia dominante em nossa

ideologia heterossexista, tornando-se homossexuais egodistonicos, não assumidos. Devido a esta

invisibilidade, deixam de fornecer modelos positivos para os jovens com orientação homófila. 42.

Alienação é o melhor conceito para definir essa multidão de enrustidos, esses praticantes do

homoerotismo que não chegam a desenvolver sua consciencia, identidade e afirmação homossexual.

Enquanto negros, índios, mulheres, judeus, protestantes, etc, cada vez mais afirmam

publicamente e com orgulho suas identidades diferenciadas, gays e lésbicas clandestinos

argumentam que sexualidade é coisa íntima, que não querem levantar bandeira, alguns militando

em outros grupos minoritários ou votando em candidatos que levantam outras bandeiras, sem se

identificar com aqueles que abertamente defendem a cidadania e visibilidade das minorias sexuais 43.

EPÍLOGO

Para que gays, lésbicas e transgeneros brasileiros deixem de ser sub-humanos e cidadãos de

vigésima quarta categoria, consideramosente a adoção das seguintes medidas emergenciais:

1. descriminalizar de vez a homossexualidade no mal trato que a polícia e a justiça dão às minorias

sexuais, aprovando-se leis que condenem a discriminação sexual com o mesmo rigor que o

crime de racismo e garantam aos LGBT igualdade absoluta nas garantias legais;

2. desconstruir e aniquilar os tabus religiosos que diabolizam o amor entre pessoas do mesmo

sexo, propondo às diferentes igrejas a promoção de pastorais específicas voltadas para as

minorias sexuais;

3. tratar a homofobia internalizada que impede à sociedade heterossexista reconhecer os direitos

humanos e a diversidade das minorias sexuais, criando sentimentos de tolerância dentro das

famílias para que respeitem a livre orientação de seus filhos e parentes homossexuais;

4. quebrar o complo do silencio e divulgar informações corretas e positivas a respeito do

“amor que não ousava dizer o nome”, desmascarando as falsas teorias que patologizam a

homossexualidade, ampliando na academia as pesquisas que resgatem a história e dignidade

das minorias sexuais;

5. substituir a homofobia reinante nos partidos e grupos políticos que tratam a cidadania homossexual

como luta menor, erradicando dos grupos que defendem os direitos humanos, qualquer tipo de

manifestação de preconceito que viole a dignidade e cidadania dos homossexuais;

6. estimular aos gays, lésbicas, travestis e transexuais a assumirem publicamente sua identidade

homossexual, lutando pela construção de uma sociedade onde todos tenhamos reconhecidos

nossos direitos humanos e cidadania plena.

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Wayne Dynes (ed.), Encyclo pedia of Homosexuality, New York, Garland, 1990. 2 Chorão, Maria Jose Teixeira. Doações e Forais das Capitanias do Brasil. 1534-1536. Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1999. 3 Levítico: 20, 134 Mott, Luiz. “Justitia et Misericordia: a Inquisição Portuguesa e a Repressão ao Nefando Pecado de Sodomia”, in Anita Novinsky et al. (eds.), Inquisição: Ensaios sobre Mentalidade, Heresias e Arte, São Paulo, Edusp/Expressão e Cultura, 1992, pp. 703-738; “Pagode Portugues: a Subcultura Gay em Portugal nos Tempos da Inquisição”, in Ciência e Cultura, vol. 40, fev./1980, pp. 120-39.5 Mott, Luiz. “Escravidão, Homossexualidade e Demonologia. S.Paulo, Eitora. Icone,1988, 151 p.6 Mott, Luiz. Homossexuais da Bahia: Dicionário Biográfico. Salvador, Editora Grupo Gay da Bahia, 19997 Whitam, Frederick L. Male Homosexuality in Four Societies: Brazil, Guatemala, the Philippines, and the United States. New York: Praeger, 1986.8 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo 12257; Caderno do Promotor, nº 29; Pedro Calmon/Jaboatão, p.219; Mott, A Inquisição em Sergipe, p.36 e ss.9 Trevisan, João Silvério. Devassos no Paraíso. Rio de Janeiro, Editora Record, 2000.10 Mott, 1999, op.cit. 11 Castro, Viveiros. Atentados ao pudor, Rio de Janeiro, 1894, 12 Green, James. Alem do Carnaval. A Homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo, Editora Unesp, 1999, p. 220 e ss.13 Ribeiro, Leonídio. Homossexualismo e Endocrinologia. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 193814 Mott, Luiz. Epidemic of hate: violation of human rights of Gay men, lesbians and transvestites In Brazil. S.Francisco, IGLRHC, 1996; Homofobia: A violação dos direitos humanos dos gays, lésbicas e travestis. S.Francisco, (Usa), International Gay & Lesbian Human Rights Comission, 1997; Violação dos Direitos Humanos e Assassinato de Homossexuais no Brasil – 1999. Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis. Editora Grupo Gay da Bahia, Salvador, Brasil, 2000; Assassinato de homossexuais: manual de coleta de informações, sistematização e mobilização política contra crimes homofóbicos. Salvador, Editora Grupo Gay da Bahia, 2001; Causa Mortis: Homofobia. Salvador, Editora Grupo Gay da Bahia, 2001; O crime anti-homossexual no Brasil. Salvador, Editora Grupo Gay da Bahia, 2002; Matei porque odeio gay. Salvador, Editora Grupo Gay da Bahia, 2003; “A Violação dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil”, Boletim da Associação Brasileira de Antropologia, Nº19, Novembro 1993; “Brasil: campeão mundial de assassinatos de homossexuais”, Página Central, S.Paulo, Março 1998.15 Mott, Luiz (editor). Boletim do Grupo Gay da Bahia. Salvador, Editora Grupo Gay da Bahia, Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos da Bahia, 2011. 16 Boletim do GGB, n. 1, outubro 1981, in Mott, Luiz (ed.) op.cit., 201117 Weinberg, George. Society and the healthy homosexual. Garden City, New York Anchor Press Doubleday & Co. 1972. 18 Human Rights Reports, http://www.state.gov/g/drl/rls/hrrpt/19 Dynes, Wayne. Homosexuality: A research guide. NY, Garland Publishing, l987; Lever, Maurice. Les Bûchers de Sodome. Paris, Fayard, 198520 Mott, Luiz. Homofobia: A Violação dos Direitos Humanos de Gays, Lésbicas e Travestis no Brasil. S.Francisco (USA), International Gay and Lesbian Human Rights

Comission, l99721 Vide, D.Sebastião. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, 1707. São Paulo, Tipografia 2 de fevereiro, l853.22 Mott, Luiz. “Justitia et Misericordia: A Inquisição Portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia”, in Inquisição: Ensaios sobre mentalidade, heresias e arte, Novinsky, A. & Carneiro, M.L.Tucci (Eds), São Paulo, Edusp, 1992:703-738.23 Mott, Luiz. “A Igreja e a questão homossexual no Brasil”, Mandragora, São Paulo, ano 5, n.5, 1999, p.37-4124 Boswell, J. Same Sex Union in Pre-Modern Europe. New York, Billard Books, l994. 25 Gramick, Jeannine & Furey, Pat. The Vatican and Homosexualiy. New York, Cross Road, 198826 Mott, Luiz. “Aids: Reflexões sobre a sodomia”, Comunicações do ISER, nº17, dez.198527 Green, James. Além do Carnaval. A homossexualidade masculina no Brasil no Século XX. São Paulo, Edusp, 2000.28 Kinsey, A. C. et alii. Sexual Behavior in Human Male. Philadelphia, Saunders, 1948.29 Griffin, Carol W. & Wirth, Marian J. Beyond Acceptance: Parents of Lesbians and Gays talk about Their Experiences. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1986. 30 Mott, Luiz. “Violencia sexual infanto-juvenil”, Jornal da Tarde, SP, 26-10-199531 Couto, Edivaldo. Transexualidade: O Corpo em Mutação. Salvador, Editora Grupo Gay da Bahia, 1999.32 “Ordenações Afonsinas”, Livro V, Título XVII, in Aguiar, Asdrúbal A. Evolução da pederastia e do lesbismo na Europa, Separata do Arquivo da Universidade de Lisboa, vol.XI, 1926; Boswell, J. Christianity, Social Tolerance and Homosexuality. Chicago, Chicago University Press, 1980.33 Gente, Hans-Peter (ed) Marxismus, Psychoanalises, Sex-Pol. Frankfurt, Fischer, 197634 Ford, C.S. & Beach, F.A. Patterns of sexual behavior. London, Eyre & Spottiswoode, 1952; McCubbin, Bob. The Gay Question: A Marxist Appraisal. New York, World View Publishers, 1979.35 Greenberg, David F. The Construction of Homosexuality. Chicago, The University of Chicago Press, 1988.36 Connel, R. & Dowsett, G. Rethinking Sex: Social Theory And Sexuality Research, Melbourne Univ.Press, 199237 Hooker Hooker, E. “The Homosexual Community”, in W.Sikmon (ed) Sexual Deviance. News York, Harper and Row, 1967; Mott, Luiz. Homossexualidade: Mitos e Verdades. Salvador, Editora GGB, 200338 Mott, Luiz. O Lesbianismo no Brasil. Porto Alegre, Editora Mercado Aberto, 198839 Programa Nacional de Direitos Humanos, Brasília, Ministério da Justiça, 199640 Mott, Luiz. Violação dos Direitos Humanos e Assassinato de Homossexuais no Brasil. Salvador, Editora Grupo Gay da Bahia, 200041 Mott, Luiz. Assassinato de Homossexuais. Manual de Coleta de Informação, Sistematização e Mobilização Política contra Crimes Homofóbicos. Salvador, Editora Grupo Gay da Bahia, 2000.42 Mott, Luiz. A Cena Gay em Salvador em tempo de Aids. Salvador, Editora Grupo Gay da Bahia, 2000

43 Mott, Luiz. “Os Políticos e os homossexuais” Jornal do Brasil, 28-6-1993

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UMA POLÍTICA-CULTURAL DE RESISTÊNCIA E (RE) INVENÇÕESNA LITERATURA AFROFEMININA (A CULTURAL POLITICS AND RESISTANCE (RE) INVENTION IN

AFRICAN-FEMININE LITERATURE)

RESUMO

Este texto advém da tese de doutoramento, Vozes Literárias de Escritoras Negras Baianas:

Identidades, Escrita, Cuidado e Memórias de Si em Cena, que trata de identidades, autoria,

memórias, escrita e cuidado de si/nós na literatura afrofeminina da Bahia. Resulta da constatação

de que torna imprescindível evidenciar alguns caminhos significativos que escritoras negras baianas

tem percorrido para banir práticas de apagamento de sua escritura e promover representações e

discursos literários antipatriarcais e antidiscriminatórios. Embora ausentes de circuitos editoriais

e literários instituídos, elas escrevem, publicam e tensionam interdições de suas vozes, abalando

traços depreciativos sobre si e suas africanidades. Além disso, sucede do empenho de entender a

literatura por elas produzida que se quer diferenciadora, emancipada e transgressora, que desfilam

longe de estigmas e de apagamentos e próximas de marcas de alteridades. Para isso, assenhoram-

se da escrita para forjar uma estética textual, em que se (re) inventem a si e a outros/as. Ademais as

provocações deste texto podem suscitar outros questionamentos acerca de novos agenciamentos

literários, visto que é preciso compreender o prazer estético literário, não tão somente pela sua

tradição, mas também pelos múltiplos movimentos pulsantes e (des) contínuos de rupturas e

ressignificações da arte da palavra.

PALAVRAS-CHAVE: Autoria. Literatura Afrofeminina. Resistencia.

ABSTRACT

This text comes from the doctoral thesis, Literary Voices of Black Writers Baianas: Identities, Writing

, and Memory Care of Himself on Stage, which deals with identity, authorship, memories, writing and

caring for yourself / us in african-feminine literature of Bahia. Stems from the fact that necessitates

show some significant ways that baianas black women writers have traveled to ban practices of

writing and erasure of its representations and promote anti-patriarchal, anti-discriminatory and

literary discourses. Although absent from established editorial and literary circuits, they write,

publish and tighten closures of their voices, shaking derogatory traits about themselves and their

Africanities. Moreover, the case of commitment to understand the literature they produce what you

want distinctive, emancipated and transgressive, parading away from stigmas and deletions and

upcoming brands of otherness. For this, assenhoram writing to forge a textual aesthetics, in which

(re) invent yourself and others. Furthermore the provocations of this text may raise other questions

about new literary assemblages, since it is necessary to understand the literary aesthetic pleasure,

so not only for its tradition, but also by multiple pulsating movements and (dis) continuous ruptures

and reinterpretation of art word.

KEY WORDS: Authorship. Literature African feminine. Resistance.

Ana Rita Santiago31*

Algumas Palavras Iniciais[...] Confesso meu pânico, a minha demencia cega.

Sou poeta! Eis minha pena, meu punhal, meu álibi.

Minha balança (SANTANA, 2006, p. 37

Falsamente, considerou-se que a ausencia de autoras negras na historiografia literária e em circuitos

literários e academicos deveu-se tão somente a sua inexistencia. “Naturalizou-se” a idéia de que elas

não existem apenas porque não escrevem. Essa formação discursiva foi suficiente para justificar o

silenciamento da escrita e nomes de inúmeras autoras negras. Desfilam, no entanto, à margem de

instâncias literárias, nomes32de escritoras negras que, entre os séculos XVII e XX, fizeram relevantes

rupturas no cenário da literatura, escrevendo e publicando, e ainda hoje suas obras provocam

estranhamentos.

Diante disso torna-se pertinente, como se propõe este texto, tecer algumas considerações sobre alguns

caminhos significativos que escritoras negras tem percorrido para banir práticas de apagamento de

sua escritura. Embora fora de cenários editoriais e culturais, pela palavra literária, elas tensionam

interdições de suas vozes,abalandodiscursos depreciativos sobre si e suas africanidades33. Com o

31 * Professora Adjunta e Pró-Reitora de Extensão da UFRB32 Há biografias e informações sobre algumas mulheres negras escritoras no Brasil em SCHUMAHER e BRAZIL (2000; 2006); LOBO (1993; 2006); BEZERRA (2007); SALGUEIRO (2005); CASHMORE (2000); SILVA (2007; 2012) etc.33 A expressão africanidades, segundo a estudiosa Petronilha B. da Silva (2003, p. 26), “[...] refere-se às raízes da cultura brasileira que tem origem africana. Dizendo de outra forma, queremos nos reportar ao modo de ser, de viver, de organizar suas lutas, próprio dos negros brasileiros e, de outro lado, às marcas da cultura africana que,

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ofício da escrita literária,reinventam-se, criando outras escritas de si/nós pautadas em sonhos de

emancipação, de liberdade e autonomia. Assim, pela e com a escrita, elas imprimem uma política

cultural e, mais especificamente, literária, de resistencia e exercício de alteridade.

1. Literatura Negra Feminina: Jogos de Escrita de Si/Nós e Resistência

A produção literária de mulheres negras no Brasil tem se constituído, qualitativamente, como uma

relevante dimensão cultural, de militância e até academico-científica em prol de políticas de equidade

e de escritas de si/nós. Ela é uma prática discursiva de reinvenções não apenas do outro, mas

também de auto-constituição. Essa auto-formação, entretanto, não se configura em fixar verdades

sobre si nem em buscar significações definitivas de si mesmas. Consiste, pois, em práticas que

mulheres negras se instituem autoras de uma escrita de si (FOUCAULT, 1997), pois, através de

poéticas e narrativas, cosem fiapos de memórias.

A escrita de si, como a arte de si mesmo, consiste em um exercício de instituição como autor/a

de uma escrita que se desdobra ao mesmo tempo em formação de si e em des-hierarquização

de saberes e já ditos de si. Além disso, significa construir processos de subjetivação, garantindo

soberania (FOUCAULT, 1997), para ter poder e saber como um ato político e para criar outros modos

de constituição. A escrita de si, portanto, não é apenas uma elaboração sobre si, mas é também

(des) ditos de saberes apreendidos, adquiridos, memorizados, externos e não originários como

insinua a voz poética de Ser poeta, de Jocélia Fonseca:

Ser poeta

É tomar um gole

De brasas acesas

E não beber água em seguida

Esse ventre há de parir

Tochas de palavras

E ações em chamas

Revertendo todo o processo

De um mundo caduco. (FONSECA, 2012, p. 57)

Escrever é, neste sentido, indubitavelmente, reescrever-se/nos e, a um só tempo, inscrever-se/

nos em novos lugares, discursos, imaginários, papeis sociais e vivencias que demarcam práticas

independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia [...]”.

discursivas inter-seccionadas por lirismos, afirmações, desconstruções e múltiplas formas de

empoderamentos. É, em verdade, um permanente reinventar-se/nós.

A autoria feminina negra (re) inventa, neste ínterim, vozes, memórias e prosas poéticas que

instigam políticas culturais que contemplem escritoras negras com suas historicidades, memórias,

auto-ficcionalização e, acima de tudo, com suas vicissitudes e tramas do hodierno, do vivido e

do por vir sem espetacularização e idealizações que distanciam o real do ficcional. A escrita de

mulheres negras, neste sentido, torna-se efetivos exercícios culturais de auto-representação, auto-

governabilidade, auto-formação e auto-interpretação, logo de jogos de resistencia e reversão, os

quais não se esbarram em meros discursos individualizados e, quiçá, intimistas, mas, ao contrário,

espalham-se e se estendem em e com outras tantas vozes (di) sonantes.

Por conta disso, a Literatura afrofeminina, como escrita de si/nós, é uma produção que se reveste

e traveste de múltiplas vozes, universos, imaginários e temas. Esses, por vezes, aparecem

acompanhados e comprometidos com estratégias políticas culturais emancipatórias e de alteridades.

Por ela, como demonstra o poema Oração, de Cléa Barbosa, circunscrevem-se narrações de

negritudes femininas/feministas por elementos e segmentos de memórias, de tradições e culturas

africano-brasileiras, do passado histórico e de experiencias vividas, positiva e negativamente, como

mulheres negras.

Se posso falar de Nossa senhora

O que impede-me de falar de Oiá?

Oiá Matamba dança canta no corpo meu

Minha força minha luta

História da minha raiz

Labuta do meu dia a dia

Avermelhado de vida

Sou filha sou mãe

Sou neta da lama sagrada

Do barro da terra que me benzeu

Oiá matamba Vanju

Bamburucema teu ilá

Ecoa a liberdade da minha alma femea

Guerreira

O brilho da tu a beleza conduz os meus

Passos

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Mãe sou tua filha concebida pelo amor

Que trago de tempos outros

Que nem mesmo atinjo em palavras

O estrelato do universo me confirma

A força de Olorum sobre toda a natureza

Axé!!! (BARBOSA, 2012, p. 21)

Por esse projeto literário, figuram-se discursos estéticos inovadores em que vozes literárias negras

e femininas, destituídas de submissão, forjam uma estética textual em que (re) elaboram a si e

aos outros e cantam repertórios e eventos histórico-culturais negros. Criam, então, uma literatura

em que a autora se inscreve e se impõe como sujeito-mulher-negra que se descreve, a partir de

subjetividades e vivencias peculiares às mulheres negras na sociedade brasileira. Nesta perspectiva,

o seu fazer literário, além de um sentido estético, atribui significados pessoais e coletivos de marcas

identitárias. Toma-se, em verdade, o lugar da escrita, como uma instância efetiva de (des) tecer

possibilidades de existencias e de se (re) pensar e (re) criar a vida e destinos pessoais e coletivos.

A literatura afrofeminina também faz críticas ao silenciamento, a que está submetida a escrita de

mulheres negras, além de questionar a cultura ocidental e tradicional, que se figura como um discurso

falocentrico afirmando-se como escritoras, uma vez que suas representações tornam-se múltiplos

modos de reconhecimento e redefinição de si mesmas. Ela destaca-se pelas enunciadoras, ou seja,

por quem escreve: são sujeitos que vivem em situações as mais adversas por serem mulheres

negras e vislumbram outros mundos, outras vidas e outros homens e mulheres através da estética

textual. Elas autorizam-se a escrever como sujeitos que enunciam dizeres e contradizeres de si/nós

como se figura no poema Ser Mulher, de Jocélia da Fonseca.

Ser inteiramente mulher

De flores

Espada na mão

E um espelho à frente.

Na consciencia a sabedoria das matriarcas

Negras

Na bagagem a herança da atitude

Bom mesmo é ser mulher

Na plenitude da femea forte e bela

Com um pisar firme mesmo que de salto

Pois no salto vai-se rompendo barreiras

E esse sangue quente nas veias

É o auto-amor

Anti-capitão da selva de pedras. (FONSECA, 2012, p. 59)

Assim, através de narrativas e poéticas, um eu ficcional, afirmado pelo eu autoral, torna-se possível

expressar dilemas constituídos entre a mulher negra literária e a mulher estereotipada pela cultura

androcentrica que lhe reduzira à serviçal e objeto desejos, já que a arte literária, em muitos momentos,

movida pela tradição patriarcal, incumbiu-se de reforçar uma suposta natureza feminina negra,

pautada em subserviencias, subjugações, virilidade exacerbada e pouca racionalidade. A escritura

feminina negra, por conta disso, se dimensiona pelas narrativas e textos poéticos com marcas

de jogos de resistencia, de suas experiencias, afetos e desafetos, sonhos, angústias e histórias.

Neste sentido, a literatura afrofeminina se justifica pelo rompimento com a hegemonia e supremacia

masculina branca, visto que, por meio dela, podem-se desenhar e reconhecer existencias e práticas

sociais diferenciadas, tal como se desenha nesse poema.

Nessa perspectiva, Conceição Evaristo, em A noite não adormece nos olhos das mulheres, desenha

um eu feminino negro, em permanente vigilância, lança-se ao enfrentamento das intempéries,

em busca de tessituras que fortaleçam a resistencia e as estratégias de superação de lágrimas e

sofrimentos:

A noite não adormece

nos olhos das mulheres

a lua femea, semelhante nossa,

em vigília atenta vigia

a nossa memória.

A noite não adormece

nos olhos das mulheres

há mais olhos que sono

onde lágrimas suspensas

virgulam o lapso

de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece

nos olhos das mulheres

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vaginas abertas

retem e expulsam a vida

donde Ainás, Nzingas, Ngambeles

e outras meninas luas

afastam delas e de nós

os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá

jamais nos olhos das femeas

pois do nosso sangue-mulher

do nosso líquido lembradiço

em cada gota que jorra

um fio invisível e tonico

pacientemente cose a rede

de nossa milenar resistencia. (EVARISTO, 1998, p. 42)

A estética afrofeminina, dessa maneira, põe-se em um lugar de criação de uma textualidade

em interação com histórias, desejos, resistencias e insurgencias, com memórias pessoais e

coletivas e identidades negras e de genero. Coloca-se ainda em um território discursivo e imaginário

desconstrutor de marcas identitárias amparadas em representações que inferiorizam universos

e repertórios culturais negros e de genero e construtor de tessituras que os valorizam e abalam

significantes que os estigmatizam, como se (auto) representa a voz desse poema.

Desse modo, autoras negras, ao criarem contradizeres que desestabilizam discursos que recalcam

sua escrita, as relações de poder nas tramas do racismo e do sexismo, por exemplo, imbricadas com

outras relações, universos e sujeitos, tornam-se protagonistas de outras narrativas da escrita literária.

Ademais, recriam remendos de recordações que elas querem lembradas e desfazem trapos de ditos

que desejam esquecidos, quanto aos fios de memórias, compreendendo-as como uma escrita de si/

nós que se estabelece como um entrecruzamento entre eu (s) referencial e ficcional, já que enquanto

escritoras, elas podem se travestir de vozes poéticas e narradoras a fim de inventar formações de

si/nós. Além disso, seguem provocando políticas culturais que possibilitem a visibilidade de suas

vozes, escrevendo, formando públicos leitores e divulgando sua produção criativamente e de modo

diverso.

2. Fios de Identidades Etnico-culturais na Literatura Afrofeminina

Autoras negras, além de constituírem a escrita literária como estratégias de autoconstituição,

em seus versos e prosas, tecem elementos identitários que colaborem com a elevação do nível de

auto-estima de si/nós e, sobretudo, com a construção afirmativa de suas identidades negras e de

genero, bem como de seus/as leitores/as. Assim fios poéticos e de prosas se entrelaçam para coser

uma escritura performática em que se desenham possibilidades de tornar-se e entrecruzem traços

identitários marcados por fixidez e sentidos pejorativos.

No poema Asé, de Lívia Natália, a Água é a voz poética, haja vista que, além de autodeclarar árvore

negra de raiz nodosa, seta, ferro das armas, sal das águas, é também água e tempestade.

Sou uma árvore de tronco grosso.

Minha raiz é forte, nodosa,

originária,

betumosa como a noite.

O sangue,

ejé que corre caudaloso,

lava o mundo e alimenta

o ventre poderoso de meus Orixás.

A cada um deles dou de comer,

um grânulo vivo do que sou

com uma fé escura,

(borrão na escrita do deus de olhos docemente azuis).

Minha fé é negra,

e minha alma enegrece a terra

no ilá

que de minha boca escapa.

Sou uma árvore negra de raiz nodosa.

Sou um rio de profundidade limosa e calma.

Sou a seta e seu alcance antes do grito.

E mais o fogo, o sal das águas, a tempestade

e o ferro das armas.

E ainda luto em horas de sol obtuso

nas encruzilhadas. (SOUZA, 2012, p. 33)

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Reconhecer-se Água é muito mais que um eu metafórico, inventado pela linguagem. Auto-afirmar

como um rio feito de limo e calmaria, em um ato performático, é mostrar-se forte, insolente, única e

perseguir o projeto de autoconstituição que se (des) faz em cada cena cotidiana e se renova com fios

e fiapos de lembranças e recordações que criam memórias. Neste sentido, o sujeito poético, como

projeto identitário, torna-se uma construção em que se narra como afirma Nestor Canclini (2006),

ao referir-se à identidade.

A autoapresentação da Água, que se descreve destemida, vigorosa, forte e guerreira, é perfilhada

como uma árvore cor da noite e do betume. Esse traço identitário marcante e quase visceral é o

principal nutriente que alimenta e sustenta a terra e o que lhe circunda. Mais ainda é pela e com

a própria negrura que cumpre a sua função social: enegrecer a terra. Uma voz de múltiplas faces

desfila nesses versos: além de rio e árvore, é também seta, fogo, sal, tempestade e ferro. De todas

essas identidades, emanam ações específicas e relevantes, as quais garantem e justificam o seu

existir que com elas se tece. Como um ser único, mostra-se diversa em seus vários papeis, os quais

remetem e lembram divindades do panteão africano- brasileiro.

A Água identifica-se com o egé de Água Negra: é vigorosa e forte. Surpreendente e solenemente

ocupa os espaços. Além de banhar o mundo, banindo as impurezas, é fonte de vida, nutre e promove

a vida em sua plenitude e unidade, sem apartes entre o divino e o humano. Contudo, elas também se

diferem: enquanto a primeira alimenta o ventre onde habita os orisàs, a segunda morde as estruturas

e devora tudo. Assim se constrói na e com as diferenças e diversidades.

Construir identidades, neste ínterim, com rastros de repertórios culturais negros sao marcas de

poéticas e narrativas afrofemininas. Longe de estereótipos, estigmas e papeis que subjugam

histórias, culturas e personalidades negras, elas desfilam como uma política cultural de resistencia

e de constituição de outros olhares e dizeres sobre esses. Assim se recontam histórias e mitos

africanos e afro-brasileiros, forjam-se versos em que se cantam e (re)apresentam fios identitários

que promovam o auto-reconhecimento, uma valoração positiva de corpos e patrimonios culturais

negros.

A escritora Fátima Trinchão, em Zumbi de Palmares, utiliza a linguagem literária para reverter um

passado histórico, marcado pela escravidão e subalternidade, e desenhar um presente com traços

de lutas, resistencias, autonomia, liberdade, emancipação e conquistas.

Está de pé, alerta,

posição de sentido, verdade!

Brandindo no espaço a espada,

Instrumento compasso, preciso, sagrado.

Mirando o alvo maior: liberdade.

Zumbi vive!

Zumbi vive em cada rosto de um povo livre,

Em cada riso, em cada parte.

Por vezes, muitas vezes, humanas

Insensatezes curvaram as palmeiras ao redor de Palmares,

Mas Palmares não se curvou

Tambores soaram chamando à luta.

Palmares vive! [...]

Palmares vive em cada doce arrebol;

Palmares vive em cada raio de sol;

Palmares vive em cada gota de orvalho;

Na noite, que a cada estrela dá briho,

Palmares vive no suor e no trabalho;

Palmares vive,

Em cada dor de saudade

Palmares vive,

Em cada sim e em cada não;

Palmares vive no passo rítmico-cadenciado do ile aiye;

Palmares vive no penteado arte-afro das mulheres daqui;

Palmares vive em nós:

Em voce e em mim

Palmares vive! [...] (TRINCHÃO, 2010, p. 27)

Neste poema, entoa-se um canto ao Quilombo de Palamares e ao seu ilustre líder quilombola

Zumbi. A voz poética enaltece os ideiais palmarinos, tornando-os contemporâneos. A palavra literária

apresenta-se à disposição de um discurso em que traços identitários, que indiquem passividade

e submissão, sejam constestados e negociados (BHABHA, 2003) e se possibilitem adesão e

pertencimento, permitindo construções afirmativas de identidades negras e apagamento de vozes,

imagens e discursividades em que predominem significados depreciativos de africanidades e

afrobrasilidades.

Identidades indivíduais e coletivas são tecidas e, se necessário, destecidas, para que se afirmem

narrativas propositivas e provocadoras de exercícios de alteridades. Em busca do direito à diferença

e à vida em diversidade, a literatura afrofeminina, como parte da literatura brasileira, apresenta-se

comprometida com o banimento de estigmas, servilismo e de práticas que ameacem a liberdade

e com discursividades que exaltem, construam e reconheçam, positivamente, identidades negras.

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Em Autoestima, de Jocélia Fonseca, também uma voz apresenta-se bela, firme em seus propósitos e

decidida em defender-se de práticas de racismo e sexismo. Ao auto (re) apresentar, afirma seu corpo

também feminino e negro. Sua voz só aparenta ser individual e íntima; no mais profundo, expressa-

se coletiva. É, a um só tempo, singular e plural e, assim, desnuda-se.

A beleza que nos conduz para a luta

É a mesma que nos mantém no dia a dia

Como feras de presas saudáveis

A agarrar o que nos é direito.

Tomemos o lugar que é nosso

Que nos tomaram sem licença.

Minha licença agora,

Será apenas por uma questão de educação ancestral.

Mas olharei na tua cara, através dos teus olhos e direi:

Não mais conduzirás meus anseios, meu

amor, minha sorte!

Sou dona dos meus belos cachos,

Da minha pele cor de noite

E do meu nariz.

Esse nariz.

Esse nariz que não passa nos moldes que

Inventaram padrão.

Vá se chatear voce!

Quando me vir passar com um belo sorriso

Largo

Nos meus lábios largos.

Senhores opressores e preconceituosos da minha vida

Vá voce se inferiorizar!

Vá voce se deprimir!

Porque eu vou passar as ruas como se

Fossem passarelas,

A receber esta rainha negra! (FONSECA, 2012, p. 71)

Ao se despir, traveste-se de ousadia e resistencia para demarcar seus repertórios culturais e traços

fenotípicos que denotam sua origem étnico-racial. Contudo, esses não são lidos tão somente

como marcos biológicos. Em verdade, por eles e com eles são realizadas leituras, produzidas

inferencias e juízo de valor que geram eventos discriminatórios. A voz poética, em contraposição a

tais interpretações e ações, desfila nos versos tecendo fios identitários sinalizados e permeados de

reações e práticas antirracistas e antisexistas, determinação, consciencia e pertencimento étnico-

racial.

Assim a produção literária de mulheres negras agencia uma estética em favor da mobilização de

identidades fixas (HALL, 2000; 2006), estereótipos e de rígidos papeis sociais, auferidos às figuras

femininas negras, bem como de processos de desvalorização de universos culturais africanos e afro-

brasileiros. Apresenta-se, ainda, como uma oportunidade relevante de e pela palavra, em um tom

poético, mas denunciativo, se se fizer necessário, inscrever rastros (DERRIDA, 2004) identitários

afirmativos e jogos de resistencia

AINDA ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A reflexão, aqui apresentada, possivelmente aponta alguns desafios que se desenham em percursos

de formação da identidade autoral de escritoras negras, posto que preconizar escrituras literárias

deslocadas de discursos, narratividades e representações fixos em relação às populações negras

diaspóricas, às civilizações africanas e às memórias e histórias africano-brasileiras é uma invenção

complexa e quase sempre tensionada. Construir uma autoria com esses traços também lhes exige

movimentar jogos de significações já impostos as suas obras, sem excluí-los ou colocá-los em

oposição, mas sob rasura, isto é, descentralizá-los com o reconhecimento de que um significado é

flutuante e, de modo imperceptível, pela linguagem, apóia-se e se transforma em outros.

Elas se instituem (e não nascem) escritoras por meio de um jogo de relações, que se concretiza

no devir, ora tenso, ora dialogado e negociado, distante de apelos e posições naturalizantes ou

vocacionais. Esse jogo, assim sendo, transita do ser para o se tornar e o devir, ou seja, compreende

a mobilização delas em migrar suas vozes silenciadas para escrituras autorizadas e instituídas,

provocando desestabilização de possíveis limites estabelecidos pelo cânone, bem como abalos em

seus critérios e prática de eleição, controle e valoração da palavra literária. Esse jogo, portanto,

consiste em promover movimentos de reversões de significações atribuídas as suas obras, na medida

em que a sua escritura, como encadeamento de rastros, é tecida em um jogo de referencialidades,

isto é, não se organiza a partir de uma suposta origem, de um significado transcendental, conforme

Derrida (2004), mas de múltiplas possibilidades de imputação de significados de seus mundos e

histórias, memórias e imaginação e de exercícios de suas tessituras.

Como vimos, a construção de identidades autoral, negra e de genero intersecionam-se na literatura

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afrofeminina. Nessa escritura, a um só tempo, rasuram-se e contestam sentidos que lhes são

atribuídos que pouco a reconhecem e promovem discursos que destinam uma valoração positiva de

marcas identitárias negras femininas.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Clea. Oração. In. BARBOSA, Cléa; OLIVEIRA, Lutigarde; FONSECA, Jocélia. Importuno poético. 2. Ed. Salvador: Ed. Mandinga, 2012.

BEZERRA, Kátia da Costa. Vozes em dissonância. Mulheres, memória e nação. Florianópolis: Ed.

Mulheres, 2007.

BHABHA, Homi. O local da cultura. 2. Impr. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. 4. Ed. 1. Reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de

São Paulo, 2006. (Ensaios Latino-americanos, 1).

CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Selo Negro edições, 2000.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2004.

EVARISTO, Conceição. A noite não adormece nos olhos das mulheres. In: Cadernos Negros - Os

melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1998.

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de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

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Importuno poético. 2. Ed. Salvador: Ed. Mandinga, 2012.

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org); HALL, Stuart;

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis:

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Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2006.

LOBO, Luiza. Crítica sem juízo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

____, Luiza. Guia de escritoras da literatura brasileira. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006.

SALGUEIRO, Mª Aparecida Andrade. Escritoras negras contemporâneas. Rio de Janeiro: Caetés,

2005.

SANTANA, Rita. Brejo. In: Tratado das Veias. Salvador: Secretaria da Cultura do esatdo da Bahia e

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SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital (org.). Dicionário Mulheres do Brasil. De 1500 até a

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JOACHIM, Sebastien (orgs.). Cidadania cultural. Diversidade cultural. Linguagens e identidades.

Recife: Elógica Livro Rápido, 2007.

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INTRODUZINDO O INTELECTUAL GAY (INTRODUCING THE GAY INTELLECTUAL)

Braulino Pereira de Santana34*

RESUMO

A proposta deste ensaio é discorrer sobre concepções, práticas, significados e identidades do

intelectual gay no universo do debate intelectual público brasileiro.

Palavras-chave: Intelectual. Intelectual Gay.

ABSTRACT

The purpose of this essay is to discuss concepts, practices, meanings and identities of gay intellectual

in universe of public intellectual debate in Brazil.

Keywords: Intellectual. Gay Intellectual.

Estamos novamente às voltas com os intelectuais, com o que eles fazem, quem são eles. É

como se estivéssemos sempre passeando por um campo minado, em dúvida constante a respeito

de como a atividade intelectual enfrenta a história, o que se configura como “atividade” de pessoas

ditas intelectuais, quais suas funções, e quais tipos de discurso se instituem como discursos

intelectuais, mas, sobretudo, sempre a desconfiar dos intelectuais. Dizemos assim, mas sabemos

o quanto já se pensou e se escreveu sobre isso: uma literatura vasta que apresenta classificações

estéticas, sociais, ideológicas e culturais sobre a figura do intelectual. Não vamos resenhar, nem

exaustivamente mapeá-las aqui, mas tres delas nos interessam mais de perto.

1) Intelectuais como uma profissão: “Especializado em reduzir idéias a frases curtas, o

intelectual se converteu em ‘mais um profissional’”. O modelo de intelectual aqui defendido talvez

seja um dos mais recentes. Esse fragmento foi recortado de um artigo de Luís Costa Lima, “Sob o

domínio da imagem”, publicado na Folha de São Paulo, em 2007. Costa Lima é nostálgico: “Quem

pesquisar as coleções dos jornais mais importantes do país verificará que os chamados suplementos

de cultura tem, cada vez mais, menos páginas e deixado de contar com muitos nomes que ainda há

pouco os freqüentavam”. A atividade intelectual parece ser exercida nos suplementos de cultura dos

34 Doutor em Linguistica pela UFBA

jornais, que, com “cada vez menos página”, teriam reduzido a participação dos intelectuais na mídia

escrita, e pelo que podemos deduzir, menos espaço, menos ideias a circular e mais frases curtas e

de efeito.

2) Há propostas, digamos, mais pragmáticas a respeito da atividade intelectual: observando

que “das funções principais dos intelectuais, senão a principal é a de escrever”, Bobbio (1997) não

acredita que culturas iletradas, ou outras formas de expressão do pensamento que não somente pela

língua escrita, não possam revelar atividade intelectual.

3) Num longo ensaio escrito no começo do anos 90, Said também se aventura no que ele

chamou de “Representações do intelectual”. Também elege “tipos de intelectuais relevantes”, que

são, “sobretudo dois: que denomino ideólogos e expertos”. Ele continua, dizendo que ideólogos

fornecem princípios-guia (valores, ideais, princípios) e os expertos, conhecimentos técnicos.

A proposta deste artigo parece um pouco mais “delicada”, sem duplo sentido, pois

pretendemos delinear algumas expressões dos que talvez venham a ser os últimos intelectuais

da história: os intelectuais gays, e tento acompanhar como essas expressões conseguem instituir

concepções, práticas, significados e identidades do intelectual gay no universo do debate intelectual

público brasileiro.

O intelectual gay necessita lidar com desejos secularmente estigmatizados como de segunda

classe, ao mesmo tempo em que necessita lidar com a coragem de vivenciá-los publicamente para

além de seu universo de vizinhos e amigos, e a expressão de sua vivencia pública como intelectual

gay nada mais é que a expressão pública de seus desejos e afetos, a sua própria vida se confunde

com a sua atividade intelectual.

Nesses termos, é uma voz que também “sai de um armário”, pois “assumir-se” intelectual

gay é uma espécie de outing. As funções dos intelectuais mais difundidas são, digamos, escrever,

escrever em suplementos de jornais, militância academica, ou fora da academia, atividade

“profissional”, participar de debates públicos, e vamos dizer que essas funções também compõem o

universo de atividades e filiações dos intelectuais gays. Mas há filiações mais “marginais”, no sentido

de estar à margem do modelo clássico à Said, Bobbio ou Costa Lima: a atividade intelectual não

é um registro exclusivo das sociedades letradas, com seus filtros vazados pela cultura escrita. Em

todas as sociedades na história, o trabalho que convém a quem escreve, assim como os objetivos-

alvo a ser alcançados pela escrita, também pode ser feito por quem não escreve, ou exercidos por

sociedades que nem escrita possuem. Se o trabalho de quem escreve é deslocar ideias de um

lugar para outro, levantar questões, enfrentar demandas sociais, postar-se como vanguarda, ou

usar a linguagem para determinados fins, como orientação, defesa de pontos de vista, formação e

manutenção de redes de relações sociais, quem não escreve também pode fazer a mesma coisa.

Se sociedades letradas industriais complexas criam personagens como psicanalistas e psicólogos,

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intelectuais, portanto, para investir em soluções para “problemas da alma”, sociedades ágrafas

não industriais, em contrapartida, também criam seus mecanismos intelectuais para investir em

soluções para problemas da alma: as mães de santo nos terreiros de candomblé, as rezadeiras

tradicionais, “curadores” e tantas outras personagens e atividades que são muito parecidas com

atividades e personagens tais como psicólogos e psicanalistas, para ficar num exemplo elementar.

A noção de intelectual aos moldes desses autores é oriunda de uma concepção beletrista

do fazer intelectual. Se pesquisadores das ciencias naturais, médicos e cientistas são autoridades

intelectuais diplomadas em instituições, as conhecedoras de ervas das zonas rurais são a

contrapartida popular para esse mesmo tipo de atividade, portanto intelectuais avant la lètre. E no

espaço onde circulam exercem um certo tipo de autoridade com seus rituais orais de conselhos e

de receitas.

Vamos admitir como atividade intelectual gay aqueles discursos de variados matizes,

tematizando identidades e práticas do universo homossexual, feita por homens e mulheres que,

ao mesmo tempo em que tematizam sobre isso, são identificados publicamente com a cultura

homossexual.

Vamos admitir, por duas razões, delineadas abaixo, que a atividade intelectual homossexual,

feita por homossexuais, no Brasil, pode ser dividida em duas fases: a primeira fase se inicia com o

surgimento, na cena intelectual brasileira, do escritor carioca João do Rio, no começo do século,

e a sua intervenção no debate público sobre o universo homossexual, assemelhando-se a uma

militância política; e vai até o final dos anos cinquenta, quando tem início a segunda fase, época

(1959) em que José Fábio Babosa da Silva publica, na revista Sociologia, da Fundação Escola de

Sociologia Política de São Paulo, um artigo intitulado “Aspectos sociológicos do homossexualismo

em São Paulo”. Com o trabalho academico desse sociólogo, rompe-se com a apropriação das

identidades homossexuais pelos discursos heterocentricos da psicologia, da medicina, da moral e

da justiça no meio academico. E os expoentes contemporâneos de maior destaque da cena atual são

o escritor João Silvério Trevisan, o escritor e professor universitário Denílson Lopes e o antropólogo

e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, Luís Mott.

A figura do escritor João do Rio é um marco e emblemática daquele que talvez tenha

“inaugurado” aos moldes clássicos algo que poderíamos chamar hoje em dia de intelectual gay

brasileiro.

João Paulo Coelho Barreto, carioca nascido em Agosto de 1881, conhecido como João

do Rio, começou a sua carreira como jornalista aos dezesseis anos, e aos dezoito já fazia parte

da equipe de cronistas do jornal de maior tiragem e de maior circulação do Brasil no período, o

jornal Cidade do Rio. Foi um pioneiro nas técnicas de trabalho jornalístico que fazem escola até

hoje: percorrendo a cidade em busca de material para as suas histórias, entrevistando pessoas e

flagrando costumes, demandas e carencias sociais. As margens entre os generos cronicas, contos

e reportagens ainda eram meio obscuras no período, e João do Rio produzia textos fronteiriços entre

esses generos.

Entre janeiro e março de 1904, foram publicados na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro

artigos de João do Rio intitulados As religiões no Rio. Numa série de longas reportagens, o autor

faz um mapeamento das manifestações religiosas mais populares no Rio de Janeiro, abordando,

dentre outras questões, o tema do homossexualismo em terreiros de candomblé. Numa dessas

reportagens, Missa negra, João do Rio narra as investidas sexuais do mestre de cerimonia, que

comandava as atividades da missa, revelando a forma como a homossexualidade é concebida nos

terreiros, contrastando com visões judaico-cristãs sobre essa forma de amar. Não seria temerário

afirmar que a figura do babalorixá seja uma espécie de primeiro intelectual gay de que se tem notícia.

João do Rio enfrentou resistencia de grande parte da intelectualidade letrada da época, que

se manifestava publicamente de forma moralista contra a maneira de ele lidar com essa temática.

Green (2003) demonstra que os insultos e a resistencia partiam de figuras do estabilishment letrado,

como Machado de Assis e Monteiro Lobato. Lima Barreto escreveu uma série de artigos debochando

dos jeitos “afeminados” e pouco “afeitos à decencia” de João do Rio.

Só a partir do final dos anos cinquenta, com José Fábio da Silva, os homossexuais vão

começar a enfrentar de maneira sistematizada e articulada uma rede de intrigas e malversações

pseudo-científicas a respeito de suas identidades e de sua forma de amar. O próprio João do Rio foi

alvo de um estudo desse tipo em 1926. Escrito pelo psiquiatra Inaldo de Lira Neves-Manta, o estudo

pretendia associar o talento da escrita de João do Rio a seu excesso de sensibilidade “artístico-

afeminada”.

João do Rio teve uma vida relativamente curta, morreu em 1921, aos quarenta anos, deixando

um legado literário e artístico somente valorizado e recebido de maneira destituída de preconceitos a

partir dos anos setenta, quando explode o que hoje é conhecido como estudos sobre genero. Entre

as obras que escreveu, estão As religiões no Rio e A alma encantadora das ruas.

João do Rio é um marco por reunir prestígio literário, fama e uma incipiente militância em

torno de temas como homossexualidade e religiões de preto. A sua escrita é vazada numa linguagem

conhecida como decadentista, e o seu estilo, tanto dentro como fora das letras, é impregnado

de uma inventividade, tanto na criação de neologismos como em uma maneira de se portar e de

se vestir em público. Nas palavras de João Silvério Trevisan, “(...) o real é por ele captado numa

linguagem sinuosa, distorcida, defasada; e vertido ficcionalmente de uma maneira labiríntica, o

resultado é uma literatura em dissonância, a caminho do desvio”.

Desvio. Talvez essa seja a palavra ideal para uma verdadeira mudança de paradigma em

relação aos intelectuais homossexuais sobre homossexualidade, com o trabalho pioneiro e inovador

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de José Fábio Barbosa da Silva no final dos anos 1950.

Trata-se de uma pesquisa que estudou a comunidade gay paulistana nos anos 1950,

apresentada como monografia de especialização no curso de pós-graduação em Sociologia da USP,

orientada por Florestan Fernandes, e defendida numa banca composta por Fernando Henrique Cardoso

e pelo sociólogo Octavio Ianni. Essa pesquisa é praticamente a entrada do tema homossexualidade

no debate academico da sociologia brasileira, feita por um intelectual homossexual. Abriu um campo

de estudos a partir de um viés sociológico e academico.

O objetivo principal da pesquisa, apontado logo no prefácio do trabalho, foi a “análise do

homossexualismo masculino”, reconhecendo que, na maioria das sociedades contemporâneas,

estudos sobre homossexualidades, “na maior parte dos casos”, estabelecem “uma problemática

parcial, que, a nosso ver, só diminui as possibilidades de entendimento do fenômeno”.

O texto é dividido em sete capítulos, e versa sobre, dentre outros pontos, o estabelecimento

de uma metodologia científica a respeito do tema, a socialização do homossexual, aspectos da vida

homossexual, relações amorosas e afetivas, e aspectos socioeconomicos e de personalidade do

grupo estudado.

O trabalho é pioneiro e inovador em vários aspectos, dentre os quais, podemos destacar:

Sugere um verdadeiro outing do tema, e de um homossexual lidando com o tema, no até

então fechado e homofóbico mundo academico brasileiro.

Inova, pois retira das “mãos” das correntes pseudo-científicas da área da psicologia e da

psiquiatria vigentes então a autoridade para lidar com o fenomeno da homossexualidade.

Usa métodos das pesquisas sociais para lidar com o tema, além do que trata os homossexuais

como um grupo concorrendo e vivendo com outros grupos sociais, e não mais agora como um

subgrupo marginal.

Abre fronteiras até então inexploradas para a realidade brasileira sobre homossexualidade,

que já começavam a se firmar nos EUA e na Europa do período.

Associa o comportamento e as atitudes gays a formas de resistencia e coesão de grupo.

Contribui para que o tema seja tratado de uma forma científica e isenta de preconceitos.

Faz um estudo comparativo do comportamento e das atitudes gays em relação ao Rio de

Janeiro e São Paulo, argumentando que no Rio a vida dos homossexuais do período era muito mais

aberta.

É um primeiro e incipiente levantamento a respeito da violencia que se abate sobre a

comunidade gay, que mais tarde daria uma contribuição importante na criação de grupos pela luta

dos direitos humanos homossexuais, como o grupo Somos, nos anos setenta, e o GGB nos anos

oitenta.

José Fábio da Silva mora atualmente nos EUA, para onde se mudou ainda nos anos 1960,

fugindo das perseguições da ditadura militar instaurada no Brasil a partir de 1964, é professor

emérito da Universidade de Notre Dame nos EUA.

Oriundo da militância em torno dos direitos dos homossexuais, com passagens por

movimentos homossexuais nos EUA do final dos anos sessenta até meados dos anos setenta, o

escritor João Silvério Trevisan talvez seja hoje o mais proeminente dos intelectuais brasileiros gays

contemporâneos. Publicou em meados dos anos 1980 um monumental estudo histórico, “Devassos

no paraíso, a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade”, revisto, revisado e atualizado

em 2002.

O livro, um marco no Brasil, traça a trajetória da temática homoafetiva desde o Brasil colonia

e se impõe como obra de referencia que ultrapassa os limites do tema da homossexualidade para

pensar o Brasil como uma sociedade colonizada paternalista, autoritária, afeita ao silenciamento das

minorias.

Escrito aos moldes de “Casa Grande e Senzala”, com a articulação de uma série de

documentos, histórias, interpretações apaixonadas e sistematizadas, o livro demarca uma outra

fronteira, ao consolidar de uma vez os homossexuais como intelectuais que pensam a sociedade

brasileira por um viés particular: como intelectuais gays, de fato.

O trabalho faz uma reconstituição dos modos de pensar e de conceber a homossexualidade

na história do Brasil, demarcando o papel da Igreja, do Estado, da Justiça e de como as ciencias

academicas sempre lidaram com o tema, ao associar a homossexualidade a um desvio aberrante de

comportamento. Reconstitui também os pioneiros movimentos de resistencia, que se desencadearam

a partir de São Paulo, com a criação do primeiro jornal gay brasileiro, o jornal Lampião da Esquina,

até as avassaladoras paradas gays a partir de meados dos anos 1990.

Trevisan é um tipo clássico de intelectual aos moldes propostos por Said: postura de

amador diante das questões relacionadas à comunidade gay. Tem uma produção de autor de ficção

respeitada, assim como escreve esporadicamente para periódicos voltados ao público gay.

Durante o período que data do surgimento na cena intelectual de João do Rio, passando por

José Fábio, desembocando na militância e na produção academica de Luís Mott, e nos trabalhos de

Denílson Lopes e João Silvério Trevisan, mudou-se a maneira como as relações homoeróticas eram

percebidas pelos seus sujeitos e pela sociedade.

Os intelectuais gays surgem no cenário do debate público como intelectuais realizando

um movimento que ultrapassa os limites de intelectuais gays pensando a homossexualidade para

intelectuais gays pensando o Brasil, a partir de suas experiencias homoeróticas, academicas e

militantes.

A qualidade da produção dos intelectuais gays brasileiros associa uma vivencia homossexual,

individual e íntima, a seu papel social como intelectuais na sociedade. O levantamento de dados

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de origens as mais diversas, de teses médicas a publicações humorísticas e pornográficas, não

deixando de fora letras de músicas de Carnaval ou palavras de ordem de manifestações de rua,

compõe um vasto painel das preocupações dos intelectuais gays brasileiros na contemporaneidade,

que hoje elastece a temática intelectual a partir de um termo herdado da comunidade gay americana:

a cultura queer. A cultura queer descreve gestos ou modelos analíticos que dramatizam as vivencias,

incoerencias e filiações dos gays na modernidade.

Como indivíduos relacionados a um modo particular de pensar a sociedade, os intelectuais

gays tem saído do seu armário cultural particular e ganhado visibilidade na sociedade brasileira.

Em jogo, o que temos é a formação da moderna identidade homossexual, resgatando a diversidade

das práticas homossexuais e das identidades sociais construídas. Os intelectuais gays brasileiros

modernos abrem um amplo espectro temático no debate público.

Tem havido a denúncia do golpe da virilidade e das formas de pensar a homossexualidade a

partir do olhar homocentrado sobre a homoafetividade, que começou a ser vista a partir de um olhar

gay sobre gays.

Diferentes espaços foram sendo invadidos e é como se a homossexualidade dos intelectuais

gays começasse a se apropriar das formas de inserção, reprodução e circulação do saber

homossexual sobre os vários campos de atuação e conhecimento da sociedade brasileira. Assim,

os homossexuais se aproveitam da ambiguidade proporcionada pela sua posição e pelo seu papel

na sociedade para desconstruir uma maneira de ser visto de forma secular. O que havia começado

como uma invasão homossexual de espaços decididamente heterossexuais, como os espaços

academicos, torna-se então um aspecto emblemático de uma maneira de pensar a sociedade

brasileira.

Em suas reflexões sobre a formação das várias identidades sociais construídas em torno

das vivencias homossexuais, a linguagem e as formas usadas em diferentes momentos e contextos

sociais para descrever as relações eróticas masculinas são alvo constante desses intelectuais, vide

o trabalho de Denílson Lopes.

Ao concluir, registramos a intenção de observar como identidades intelectuais gays

masculinas foram sendo erigidas na sociedade brasileira, tendo como ponto de partida a figura

emblemática de João do Rio e os atuais movimentos homossexuais de massa, construídos num

trabalho que alia militância política ao trabalho intelectual feito por e para homossexuais.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo, UNESP, 1997.

GREEN, James. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

COSTA LIMA , Luiz . Sob o domínio da imagem. Folha de São Paulo. São Paulo, 12 mai. 2007, p. 8.

LOPES, Denílson. O Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007

SAID, Edward W. Representações do intelectual - As Conferencias Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum. Editora Companhia das Letras, 2005

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TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2000.

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DA OBRIGATORIEDADE DA PROVA DE HABILIDADE ESPECÍFICA EM PROCESSOS SELETIVOS PARA CURSOS DE DESIGN: ELEMENTOS PARA A REFLEXÃO DA CRISE DE IDENTIDADE DO DESIGN (ON THE REQUIREMENT OF TEST OF SPECIFIC ABILITY IN SELECTION PROCESSES

FOR DESIGN COURSES: ELEMENTS FOR A REFLECTION OF THE CRISIS OF DESIGN IDENTITY)

Serafim da Silva Nossa Junior35*

RESUMO

Mediante a análise de alguns argumentos que buscam sustentar a necessidade de aplicação de

provas de habilidade específica em processos seletivos para cursos de design, levantamos, neste

nosso texto, algumas questões e argumentos que permitem pensar tal ideia de necessidade como

requisito artificial, senão ideológico. Ao cabo do texto, indicaremos que a existencia de provas de

habilidade constitui, em nossa opinião, um importante indício material de uma questão conceitual

maior: a crise de identidade do design.

Palavras-chave: Design. Arte. Crise de Identidade. Prova de habilidade específica.

ABSTRACT

Through the analysis of some arguments that seek to sustain the necessity of application of specific

ability tests for the selection process design courses, we raise, this our text, some questions and

arguments for considering this idea of necessity as requirement artificial and ideological. At the end

of the text, which will indicate the existence of evidence of skill is, in our opinion, an important clue

material from a larger conceptual issue: the crisis of design identity.

Keywords: Design. Art. Crise of Identity. Test of specific ability.

35 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA

O rabisco não é nada, o risco – o traço – é

tudo. O risco tem carga, é desenho com

determinada intenção – é o “design”. [...]

Trêmulo ou firme, esta carga é o que importa.

Lucio Costa

I

Para Lucio Costa (1940), o desenho deveria ser reconhecido enquanto disciplina fundamental

e propedeutica, na mesma medida em que seriam reconhecidas a matemática, os estudos da língua

portuguesa e os demais componentes que compõem o currículo mínimo do ensino, sobretudo da

educação básica. Para ele, ainda que seja evidente que alguns alunos manifestem maior habilidade

com o lápis em punho do que outros, e que alguns outros tantos tenham grande dificuldade em

representar bidimensionalmente, e à mão livre, objetos e idéias – mesmo as mais elementares –,

todos os alunos deveriam ser iniciados nos fundamentos e técnicas, ao menos as mais triviais, do

desenho geométrico e artístico. Sendo assim, o objetivo do ensino do desenho, em sua opinião,

consistiria em não só beneficiar, principalmente,

os mais dotados. [...] é, também permitir que, ao terminarem o curso [os

alunos], indistintamente, tenham, senão a perfeita consciencia, – o que só

a experiencia, depois, poderá trazer –, ao menos noção suficientemente

clara do que venha a ser uma obra de arte plástica, não como simples

cópia, mais ou menos imperfeita, da natureza, mas como criação à parte,

autonoma, que dispõe dos elementos naturais livremente e os recria a seu

modo e de acordo com suas próprias leis (COSTA, 1940, p. 02).

Nessa medida, seria possível para qualquer aluno, ainda que não manifeste a devida vocação,

dom ou habilidade para o desenho, ter plena noção de sua importância, enquanto ferramenta de

comunicação cotidiana (KOELLREUTTER, 1999, p.256); assim como poderia ele expressar-se,

razoavelmente, através dessa linguagem e, desse modo, em sentido estrito, se fazer desenhista ou

designer – aquele que risca ou traça. É neste exato ponto que logo podemos compreender a dimensão

propedeutica do desenho, realçada por Lucio Costa: os desenhos geométrico e artístico36 devem

36 Na verdade, Lucio Costa distingue as seguintes modalidades do desenho: técnico, de observação, de ilustração, de ornamentação e de criação.

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ser assimilados, ainda que em suas noções mais elementares, pois integram o rol de linguagens

corriqueiramente mobilizadas pelo aluno ante a necessidade de resposta frente a um problema da

vida ou do trabalho como, por exemplo, faz um simples cálculo matemático ou a redação de um

breve recado. Desenhar um mapa rudimentar, representar a disposição dos móveis arrumados em

um determinado ambiente, ou ainda desenhar as posições iniciais de veículos que se envolveram em

um acidente de trânsito, consistem ocasiões em que o desenho permite a representação de objetos

e a expressão de idéias, por vezes, de difícil verbalização.

Para além de visar desenvolver “o hábito da observação, o espírito da análise, o gosto

pela precisão”, o desenho forneceria, aos alunos em geral, meios para tradução de suas idéias,

predispondo-os “para tarefas da vida prática” e também “uma melhor compreensão do mundo das

formas que nos cerca, do que resultará necessariamente, uma identificação maior com ele” (1940,

p. 02). Desse modo, o aprendizado do desenho cumpriria a importante função de

reavivar por fim a imaginação, o dom de criar37, o lirismo próprios da

infância, qualidades, geralmente amortecidas quando se ingressa no

curso secundário, e isto, tanto devido à orientação defeituosa do ensino do

desenho no curso primário, como devido mesmo à crise da idade, porque,

então, esses novos adolescentes, atormentados pelas críticas inoportunas

e inábeis dos mais velhos, já perderam a confiança neles mesmos e naquele

seu mundo imaginário onde tudo era possível e tinha explicação: sentem-se

inseguros, acham os desenhos que fazem ridículos, tem medo de “errar”

(COSTA, p. 02).

II

Considerando que (I) a expressão artística é senão algo que todos nós podemos produzir

(OSTROWER, 1977), mesmo para aqueles que não manifestam o que, de circunstância, chamamos

de dom ou vocação artística; e (II) levando-se em conta que a expressão própria do desenho é

puro manifesto ou conseqüencia de uma intenção ou desígnio que todo indivíduo pode experenciar,

em que medida ou sob quais condições podemos afirmar que certo indivíduo pode não alcançar,

ainda que sob tutoria e devidamente instruído, patamares razoáveis de expressão nesta arte? Em

outras palavras, se um indivíduo compreende a natureza e a finalidade de uma determinada arte ou

37 Aqui, para nós, a idéia de dom é mobilizada, pelo autor, como imanencia, sendo por tanto um traço natural e comum a todo e qualquer indivíduo, não necessariamente presente entre aqueles que pareçam possuir uma habilidade extraordinária que, corriqueiramente, e sem muito rigor, chamamos dom ou vocação.

das artes em geral, domina satisfatoriamente seus signos e seu código, ao passo que também se

expressa por meio dele, não seria ele capaz, com independencia da qualidade do seu traço, produzir

algo genuinamente artístico? Se a arte – sua produção – senão define o próprio homem enquanto

ser criativo e o distingue dos outros animais (OSTROWER, idem), sob uso de quais argumentos

podemos, de alguma sorte, dizer que este ou aquele sujeito – de acordo com critérios de fundo

culturais e de valores, o que é importante salientar – não se expressa adequadamente através daquilo

que dá sentido à sua própria condição, portanto o define e o constitui?

É nesse sentido que este nosso ensaio busca então advogar em causa da seguinte tese:

ainda que sejamos nós distintos, seja por conformações diversas da carne ou distinções da alma;

ainda que portemos vocações, dons ou habilidades diversas, todo e qualquer indivíduo pode, a

seu modo, desenvolver sua vocação artística, sendo tal possibilidade suficiente para justificar seu

acesso e livre trânsito mesmo em cursos que requeiram o porte de habilidades refinadas e num certo

grau de desenvolvimento, senão sofisticados conhecimentos do desenho e das artes de modo geral.

Em outros termos, sendo o desenho a realização material de uma intenção – causa – e a expressão

artística algo que constitui nossa própria condição de sujeito da produção, da inventividade, e sendo

possível fomentar, no sujeito, tais propensões, como poderíamos privar um de nós da emancipação

de suas faculdades naturais, ao dispor do uso de testes que visam identificar a presença de

determinada habilidade; habilidade que, em verdade, todos nós naturalmente portamos?

Se é verdade que portamos tais habilidades em maior ou menor grau de desenvolvimento, não

seria razoável também afirmar que tal sofisticação pode ser fomentada pela cultura e por estímulos

de ordem social? Se a vida ou a sorte de bem nascer acompanha um determinado indivíduo,

permitindo que ele tenha acesso a uma educação qualificada e erudita, e assim suas habilidades

se emancipam mais que as de outros, não seria correto afirmar que aqueles menos agraciados ou

de menor poder de compra, partem em condição de desigualdade ao se submeterem a provas que

mensuram, invariavelmente, o desenvolvimento e a sofisticação de uma habilidade que, em muitos

casos, é determinada pelo ambiente sócio-economico em que vive o indivíduo?

III

Analisemos tais questões, agora, sob ângulo diverso. Parece desejável que os alunos,

que ingressam em cursos de design, sejam razoáveis conhecedores da representação fidedigna e

também dos meios que levam à representação – ou expressão – da extrapolação formal do objeto

que nos serve de modelo. Sendo assim, são comumente aplicadas provas que logo permitem aferir

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a habilidade de retratar fielmente as formas do objeto, a luz que incide sobre ele, as relações entre

o claro e o escuro em seu contexto, sua proporção com o espaço ocupado; por outro lado, é

medido também a capacidade que o indivíduo tem de extrapolar o que percebe, acrescentando,

à representação, elementos novos, reconfigurando o objeto, desvirtuando-o, recriando-o sob

motivação de um tema, música ou mesmo de um estímulo poético. Sendo tais as condições mais

gerais de aplicação e avaliação das provas de habilidade específica em vestibulares para cursos

de design, não seria adequado observar que os critérios mobilizados para avaliação, bem como

a escolha do objeto, a ser mote para a prova, poderiam, de algum modo, ser motivados por uma

compreensão particular da arte – juízos de valor – que consolidariam certa idéia do que seja a

técnica e a estética necessárias para a boa representação e expressão do artístico?

Acreditamos que esta nossa pergunta seja importante na medida em que, caso coloquemos

em revista a história da arte, notaremos que os critérios técnicos e estéticos que opõem o artístico

ao não-artístico mais estariam sujeitos há uma visão de mundo particular e histórica do que sejam

tais critérios modelados à luz de uma idéia universal do que seja a arte e dos caminhos que levam à

sua produção. Desse modo, o aluno que se submete à provas de habilidade específica, em verdade,

deve exibir uma técnica e expressar uma estética capaz de satisfazer as expectativas do corpo

julgador; expectativas que, no fundo, mais pendem para juízos de valor particulares do que para o

julgamento pautado na liberdade de expressão artística em suas mais diversas escolas e estéticas,

desde as mais elementares e pueris até as de técnica considerada mais elevada. Por “pueris” e

“elementares”, ora tem-se em mente os desenhos infantis de Miró, as realidades fragmentadas do

cubismo de Picasso, os vários abstracionismos pintados por Kandinsky, Mondrian, Pollock e muitos

outros.

Se o artista é aquele que não só ve o campo visual como também aquele que ve seu próprio

olho; se o artista é aquele que, de golpe, pode transcender a percepção ordinária e tomar consciencia

ou intuir a real essencia das coisas; e se pode também ele transgredir as formas aparentes das

coisas e representar suas essencias em suas reais cores e mazelas, não seria o resultado de sua

produção por vezes a antítese da realidade que o vulgo percebe? Tal capacidade, que comumente

se atribui ao artista, poderia ser medida nas provas em questão? Sua renúncia frente ao que vela o

real sentido da vida, expressa em uma arte negativa, rebelde, inexata, desproporcional e vertiginosa,

seria compreendida ou “decodificada”? Ou mais além: poderia ser ela aceita como resposta possível

e adequada às provas de habilidade específica?

Há quem diga que a prova de desenho de expressão, uma das etapas que usualmente

compõem o teste de habilidade específica, permitiria ao candidato transcender formalmente o

modelo em questão, representando-o de sorte outra ou reconfigurado. Em tais circunstâncias, o

aluno daria vazão à sua vontade de transgredir o real, manifestaria sua predileção pelas formas

soltas e desregradas e, assim, ao encontrar expediente favorável, expressaria livremente sua vocação

ou habilidade. Pelo menos em parte, não concordarmos com tal opinião. Mesmo o desenho de

expressão se mantém fixado e sujeito a certos limites do aceitável em termos de desconstrução

do objeto representado. Desse modo, uma arte que seja adepta a um desconstrucionismo formal

intenso e radical – que beirasse o sintetismo absoluto, por exemplo – passaria ao largo de tais limites

– ou, de novo, expectativas – do corpo julgador. No caso de uma sintetização radical, tanto da forma

como da semântica do objeto, reduzindo-o a duas ou tres retas – traços – em simples preto sobre o

branco, certamente ultrapassaria os limites do aceitável do que se entende por extrapolação formal

ou transcendencia do sentido.

Se a arte é uma atitude singular frente à vida e também uma atitude muito particular do

artista, o candidato que desenharia simples e “pueris” linhas e curvas, desconexas e primárias,

diante de vasos barrocos e garrafas transparentes, não seria ele também apto ao curso de design?

Esta atitude de contestação dos valores da sociedade e do próprio real, sendo fortemente desejável

e encorajada no artista, senão o traço de distinção e definição de seu estatuto e condição, poderia

ser aferida com a devida importância? Ou ainda, para ser mais preciso, sua atitude frente à vida seria

finamente entendida e valorizada? Tal indivíduo não seria, em sentido estrito, o mais puro artista, a

saber: o sujeito da revolução e do extraordinário?

IV

Gostaríamos de passar ao exame de outro argumento, bastante comum quando se defende

que o aluno de design deve portar certas habilidades específicas para bem atender às exigencias de

sua profissão. Aqui, tentaremos mostrar que tal argumento se ampara, em verdade, em uma visão

romântica da produção artística, segundo a qual o artista ou projetista deve ensaiar sua criação

em rascunhos ou ensaios de formas e cores, de preferencia, sobre um cavalete ou uma prancheta.

Segundo este argumento, ainda que estejamos em plena era dos processos informatizados, o artista

– e, em nosso caso específico, o aluno de design – deve poder prescindir do uso da máquina

computacional, quando talvez em sua falta, para bem representar seja uma idéia inicial ou ainda fazer

uso do desenho ou pintura como rendering, por exemplo. Tais conhecimentos técnicos – por exemplo,

o uso de compasso, curvas francesas, aquarelas, carvão, nanquim e outras tecnologias – são por

certo relevantes e legítimas, entretanto, a nosso ver, eles constituem apenas possibilidades dentre

as muitas formas de conceber e representar um produto ou obra – que incluem ainda computador

como recurso mais recente.

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Não obstante saibamos a importância do uso do papel, do lápis, das tintas e outros materiais

para diversas técnicas de criação e representação, a profissão do designer, atualmente, já comporta

atividades que sequer solicitam um simples traço ou esboço no papel para que sejam realizadas.

É o caso, por exemplo, da atuação do designer enquanto gestor da produção ou da inovação. No

primeiro caso, o designer lida com a infraestrutura para a produção em manufaturas ou produção

fabril, sendo necessário que este tenha ampla noção dos sistemas de fabrico, desde a entrada

dos insumos, passando pelos processos vários de fabricação, até mesmo o acondicionamento e a

distribuição da produção. O desenho parece não ser recurso ou habilidade específica para o bom

desempenho desta função, bastando, para exerce-la, habilidades de outra ordem como a clarividencia

em relação ao funcionamento de sistemas, que por sua vez são atravessados por outros sistemas de

natureza secundária, como é comum nas linhas de produção.

Além de atuar como gestor da produção, o designer pode, atualmente, ainda exercer a

função de consultor ou gestor da inovação. Tal atividade, muito valorizada hoje em dia, ampliou o

campo de atuação do designer e também mudou o modo como sua atividade, via de regra, era então

exercida. O designer que lida com inovação compreende o mercado, o funcionamento do setor fabril

e de serviços, tem uma visão empresarial dos muitos negócios e atividades da sociedade comercial

e industrial. Tal profissional tem à sua frente problemas de produção, sejam as próprias linhas de

produção, seja um problema ligado a um produto específico, e busca, para eles, soluções inovadoras

e, se possível, a criação de novas necessidades – não quero aqui discutir se tais necessidades são

postiças ou naturais – materializadas em novos produtos disponíveis para consumo. A gestão da

inovação como atividade do designer coincide, portanto, com aquela dimensão já conhecida do

desenho industrial muitas vezes reforçada pelos docentes: o design segue um importante diferencial

na produção de bens de consumo.

Nos dois casos, o designer pode atuar prescindindo da técnica, seja elementar ou apurada,

do desenho. Seus objetos de projetação são sistemas e idéias que tenham em si o componente da

inovação. Tal designer lida eminentemente com conceitos e relações, não com este ou aquele tipo

de lápis ou tinta, não com aquele ou este software de modelagem ou pintura específico. Tabelas e

softwares voltados para a gestão da produção são seus recursos, são suas ferramentas de trabalho.

Nesse sentido, pouco importa que este profissional seja aprovado em um exame de habilidade

específica voltado para as artes plásticas, mas é importante, senão muito grave, que este indivíduo

seja privado de cursar a graduação mais adequada à sua habilidade singular.

Atualmente, as provas de habilidade específica não aprovam tal candidato. Não aprovam,

pois não são pensadas à luz dos novos setores de atuação do designer; são pensadas de acordo

com certo romantismo ou passadismo que ainda prevalece, sobretudo entre aqueles docentes,

profissionais e formadores de opinião que ainda buscam, a todo custo, manter a atualidade e a

eficácia de seus conhecimentos. Tais conhecimentos, é claro, se fazem mais do que importantes,

entretanto uma visão nostálgica ou passadista do design não deve se interpor ante o reconhecimento

de novas áreas de atuação e o aproveitamento de novos talentos e habilidades. As regras ou réguas

atuais, se apostas sobre tal candidato, sequer conseguiriam diferenciá-lo ou, mais além, avaliar, com

critérios extra-usuais, seu brilhantismo e sua promessa.

V

Se tudo que levantamos aponta para uma ineficácia da prova de habilidade específica para a

seleção de indivíduos aptos para bem compreender os conteúdos dos componentes curriculares, dar

conta das atividades e avaliações do curso e, no futuro, poderem atender às demandas da profissão,

parece existir ainda um problema maior, a saber: uma inexatidão ou mesmo uma compreensão

parcial do que seja afinal o objeto – de estudo e pesquisa – do design; mais além, uma falta de

discernimento no tocante ao estatuto do design enquanto atividade: se científico ou se artístico.

Parece-nos que se o design é entendido mais como arte do que como uma ciencia, é natural

que as provas de habilidade específica exijam habilidades de fundo artístico ou uma espécie de

intuição particular, assim como nos parece claro que se o design for essencialmente uma atividade

de natureza científica, toda resposta estética será resultado de medidas e previsões através das quais

se busca obter um maior controle sobre o objeto projetado. Se por uma terceira via, definimos o

design como algo que se funda e se resolve no limite epistemológico entre as artes e as ciencias, os

conceitos de design carecem então de maiores reflexões, uma vez que situar-se tanto aqui como lá,

ficando pés ao mesmo tempo em campos que operam de modos diferentes, que tem preocupações

diametralmente opostas, soa, no mínimo, extravagante. Caso seja o design uma ciencia, embora se

ressalve que seja social e aplicada, sua matriz científica ainda opera como importante mecanismo

limitador de sua atividade – não que isso seja bom ou ruim, mas apenas circunscreve o design

em um âmbito particular – impedindo que, no design, por exemplo, a criação seja regida por

propostas estritamente pessoais, motivadas por questões de foro privado do artista ou designer,

sem necessariamente haver uma propensão clara de comunicação entre a significação da obra e

seus expectadores ou consumidores.

De modo diferente, se o design é arte, que sejam aceitas também as obras de artes plásticas

como espécimes de sua produção uma vez que, como nos alertara Koellreutter, a peça de arte

também visa comunicar-se com seu expectador, visa o cumprimento de funções pragmáticas na

sociedade. Nesses termos, a arte contribuiria decisivamente para “a tomada de consciencia do novo,

ou do desconhecido” (KOELLREUTTER, 1999, pp.251-260). Apesar do cumprimento de funções

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tanto pragmáticas quanto estéticas – lembremo-nos do exemplo da Capela Sistina, mencionado

por Dondis (1991, p. 10) – muitos se empenham em diferenciar radicalmente arte e design. A

linha divisória seria traçada mediante a idéia de que se a criação própria da atividade do design

é co-gestada por necessidades de mercado; a arte, dada sua imanente liberdade de código e de

mensagem, não poderia coincidir com um regime de criação limitado por exigencias mercantis.

Se, por outro lado, o design não é arte – pois, essencialmente, uma ciencia –, seus produtos

devem cega obediencia às exigencias da sociedade de consumo, sendo suas propostas de inovação

estritamente voltadas ao azeitamento da máquina do comércio, criando assim novas necessidades

e resolvendo problemas que atormentam o dia-dia da população. Nesse último sentido, o designer

não teria muito a contribuir para a tomada de consciencia do novo, negando-se à tarefa de crítica

da sociedade e do comportamento, qualidades distintivas – acredita-se – da produção própria das

belas-artes.

Por fim, eis que nos sobra duas questões de difícil solução: o estatuto do design e a natureza

do seu objeto. É claro que este ensaio não se prestará a alongar tal reflexão, entretanto, apenas

gostaríamos de ressaltar como a falta de precisão ou confusão acerca do que seja, enfim, o design

tem afetado seu ensino e, sendo o que nos interessa momentaneamente, tem ajudado a sustentar,

como efeito colateral, a necessidade de se impor provas de habilidade específica aos candidatos que

se inscrevem em processos de seleção para cursos de design. Ademais, pensamos que ainda outros

pontos poderiam ser levantados para a discussão da validade de exames dessa natureza, argumentos

que exigiriam um ensaio maior e a exploração de temas, sobretudo, ligados à antropologia. Talvez

a trilha aberta pelo exame da história do homem possa, afinal, nos ajudar na custosa definição da

natureza do objeto do design e também do estatuto ocupado por sua atividade.

REFERÊNCIAS

COSTA, Lucio. O ensino do desenho: Programa para a reformulação do ensino de desenho no curso

secundário, 1940. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ip000001.

pdf>. Acesso em 10 jun. 2013.

DONDIS, Donis A. A sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

KOELLREUTTER, Hans-Joachim. Sobre o valor e o desvalor da obra de arte. Estudos Avançados,

vol.13, n.37, 1999, pp.251-260.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro: Vozes, 1977.

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