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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS PPGEL FERNANDA DA SILVA MACHADO RUI BARBOSA E OS “ABOLICIONISTAS” DE 1884: ARGUMENTAÇÕES NO PARECER AO PROJETO DANTAS Salvador 2014

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS –

PPGEL

FERNANDA DA SILVA MACHADO

RUI BARBOSA E OS “ABOLICIONISTAS” DE 1884:

ARGUMENTAÇÕES NO PARECER AO PROJETO DANTAS

Salvador

2014

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1

FERNANDA DA SILVA MACHADO

RUI BARBOSA E OS “ABOLICIONISTAS” DE 1884:

ARGUMENTAÇÕES NO PARECER AO PROJETO DANTAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da

Bahia – PPGEL/Uneb como requisito final para obtenção

de grau de mestrado.

Orientador: Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto.

Salvador

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592

Machado, Fernanda da Silva

Rui Barbosa e os “abolicionistas” de 1884: argumentações no Parecer ao Projeto Dantas/

Fernanda da Silva Machado. - Salvador, 2013.

135f.

Orientador: João Antonio de Santana Neto.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências

Humanas. Pós-Graduação em Estudos de Linguagens. Campus I. 2013.

Contêm referências, apêndice e anexos.

1. Barbosa, Rui, 1849-1923. 2. Retórica. 3. Linguística. 4. Escravos - Emancipação - Brasil.

5. Discursos parlamentares - Brasil. I. Santana Neto, João Antonio de. II. Universidade do

Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.

CDD: 808.3

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FERNANDA DA SILVA MACHADO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do

Estado da Bahia – PPGEL/Uneb como requisito final para obtenção de grau de mestrado.

Aprovada, ________ de ___________________________ de 2014

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Prof. Orientador: Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto (PPGEL/UNEB)

___________________________________________________

Profa. Dra. Wlamyra Ribeiro de Albuquerque (PPGH/UFBA)

___________________________________________________

Profa. Dra. Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira (PPGEL/UNEB)

Salvador

Mar/2014

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4

Dedico este trabalho a meu pai, José (in

memoriam) e a Luzia-mãe, por entender que

eles representam o alicerce de minha

identidade, de minha vida.

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AGRADECIMENTOS

A Jeová Deus, agradeço por permitir o cumprimento de mais um objetivo, mais uma

superação.

A minha mãe, Luzia, pelo apoio incondicional e por ser a fonte de força para que eu

prosseguisse. Pela preocupação altruísta e eterna com meu bem-estar, por ser, enfim,

literalmente a luz da minha vida.

A minha família lato sensu, tias, primos, irmãos, mães e pais, amigos para toda a hora,

auxílios fortificantes.

A meus amigos de curso, inclusive os que o são desde a graduação, pela resistência à

desagregação, pelos risos, pelo aprendizado derivado do convívio.

A meu amigo Cláudio Ribeiro, especialmente pela revisão do Abstract.

Às instituições Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – Fapesb e ao Programa

de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – PPGEL, por acreditarem em minha proposta

investindo nela.

Aos funcionários do PPGEL, Camila, Geysa e Danilo, pelo apoio permanente, pelos

momentos de descontração e pelo profissionalismo.

Aos funcionários da Biblioteca do Instituto de Economia do Centro de Documentação, Lucas

Gamboa – UNICAMP, Mirian Clavico Alves, Diretora de Serviços e Francisco Orlandini,

bem como a Sabrina Pinheiro da Revista Estudos Econômicos – USP, pela seriedade e

solicitude.

Ao corpo docente do PPGEL pelas discussões travadas e por não dissociar valores humanos e

construção de conhecimento.

Aos professores Wlamyra Albuquerque, e à professora Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira e

Gilberto Sobral pelas considerações atentas na fase do Exame de Qualificação e/ou Defesa.

Sou-lhes grata pelo interesse real e sugestões esclarecedoras.

Ao Prof. Dr. João Antônio de Santanna Neto, pela contínua confiança em meu trabalho,

acompanhando-me generosamente desde a fase em que se apresentava como um projeto até

sua concretização em dissertação, generosidade e ponderação essas responsáveis por meu

amadurecimento acadêmico.

Por cada participação discreta que em conjunto (porque toda conquista é conjunta) foram

decisivas para o impulso que é este trabalho.

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RESUMO

Com a dissertação intitulada “Rui Barbosa e os “abolicionistas” de 1884: argumentações no

Parecer ao Projeto Dantas”, intenta-se uma análise que enfoque o caráter argumentativo do

referido Parecer de Rui Barbosa – pelo viés da Retórica e da Semântica Argumentativa,

tomando como principais trabalhos, respectivamente, os elaborados por Chaïm Perelman e

Lucie Olbrechts-Tyteca ([1958]2005) (que fizeram um exaustivo levantamento de estratégias

argumentativas) e os de Oswald Ducrot ([1969] 1987, [1977]1989, 2003) (Semântica

Argumentativa/ Teoria da Argumentação na Língua) – tomando como amostra o Parecer ao

Projeto Dantas redigido por Rui Barbosa enquanto deputado no ano de 1884. Esse texto de

200 páginas, favorável ao projeto homônimo, também elaborado por ele, previa, em suma, a

libertação de escravos sexagenários sem a indenização dos seus então proprietários. Embora

os principais pontos do Projeto Dantas (1884) tenham sido reformulados na Lei dos

Sexagenários (1885), examina-se o esforço argumentativo no Parecer que enfeixa os pontos

de vista frontalmente colidentes, paradoxais ou gradualmente diferenciados. Trabalham-se

noções como os topoi retóricos e tipos argumentativos perelmianos. Sob o prisma linguístico,

analisa-se o texto ruiano com base naquilo que se considera permanente na ANL, como a

polifonia discursiva com as figuras de locutor e enunciadores presentes nos blocos semânticos

mais representativos do Parecer.

Palavras-chave: Argumentação. Nova Retórica. Semântica Argumentativa. Parecer ao

Projeto Dantas. Rui Barbosa.

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ABSTRACT

With a dissertation entitled Antislavery’s Rui Barbosa in the Opinion to Project Dantas:

arguments intends an analysis that focuses on the argumentative character of that Opinion of

Rui Barbosa – by the Rethoric and the Semantic Argumentative, taking as main works ,

respectively, the prepared by Chaim Perelman and Lucie Olbrechts - Tyteca [1958] 2005

(which made an exhaustive survey of argumentative strategies) and Oswald Ducrot ([1969]

1987, [1977] 1989, 2003) (Semantic argumentative/Argumentation Theory in Language) –

taking as sample the Opinion to Project Dantas written by Rui Barbosa as a Member in 1884 .

This 200-page text, in favor of the eponymous project, also written by him, provided, in short,

the liberation of sexagenarian slaves without compensation its then owners. Although the

main points of the Project Dantas (1884) have been reformulated in the Sixties Law (1885),

examines the arguments in Opinion wich gathers the views frontally conflicting, paradoxical

or gradually differentiated. Work up notions as rhetorical topoi and argumentative types

perelmianos. Under the linguistic perspective, we analyze the ruiano text based on what is

considered permanent in ANL as the discursive polyphony with the figures of the speaker and

enunciators in semantic blocks more representative of Opinion.

Keywords: Argumentation. New Rhetoric. Argumentative Semantics. Opinion to Dantas

Project. Rui Barbosa.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES (ESQUEMA E QUADROS)

Quadro 01 – Analogias no Parecer ao Projeto Dantas ..................................................................... 56

Quadro 02 – Argumentações normativa e transgressiva ................................................................. 87

Quadro 03 – Encadeamentos do bloco semântico propriedade-indenização ................................. 91

Quadro 04 – Descrição do evento enunciativo 1 ............................................................................... 93

Quadro 05 – Descrição do evento enunciativo 2 ............................................................................... 94

Quadro 06 – Descrição do evento enunciativo 3 ............................................................................... 95

Quadro 07 – Descrição do evento enunciativo 4 ............................................................................... 96

Quadro 08 – Esquema de AI de “escravidão” ................................................................................ 100

Quadro 09 – Esquema de AI de “abolição” .................................................................................... 101

Quadro 10 – Argumentações externas do bloco semântico abolição-humanitarismo................. 103

Quadro 11 – Argumentações externas do bloco semântico escravidão-humanitarismo. ............ 103

Quadro 12 – Argumentações externas recíprocas .......................................................................... 103

Quadro 13 – Argumentos externos “abolição” ............................................................................... 104

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 11

2 PRESSUPOSTOS RETÓRICOSEM RUI BARBOSA – ANTIESCRAVISMO NO

PARECER AO PROJETO DANTAS .............................................................................................. 20

2.1 RUI BARBOSA – HISTÓRICO ANTIESCRAVISTA .............................................................. 24

2.1.1 Radicalismo e Liberalismo ................................................................................................ 25

2.1.2 Projeto Dantas ..................................................................................................................... 30

2.2 O PARECER EM FOCO ............................................................................................................ 32

2.2.1 Cronologia legislativa emancipatória – contra-argumentos escravocratas .................. 35

3 ARGUMENTAÇÃO NO PARECER AO PROJETO DANTAS – TOPOI RETÓRICOS E

TIPOS ASSOCIADOS ..................................................................................................................... 43

3.1 DIREITO DE PROPRIEDADE EM QUESTÃO ....................................................................... 45

3.2 TOPOI RETÓRICOS NO PARECER AO PROJETO DANTAS ................................................. 47

3.3 VALORES E HIERARQUIASNOPARECER AO PROJETO DANTAS .................................... 48

3.4.1 Socialismo, comunismo e retorsão .................................................................................... 60

3.4.2 Sobre a liberdade restrita .................................................................................................. 62

3.5 OPOSIÇÃO OSCILANTE: O CASO MURITIBA E OUTROS EXEMPLOS .......................... 66

3.5.1 O passado em outras nações/colônias ............................................................................... 67

3.6 A AÇÃO DO ORADOR RUI BARBOSA ................................................................................. 71

4 PARECER AO PROJETO DANTAS: ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA .................................. 73

4.1 ARGUMENTAÇÃOSEGUNDO DUCROT: IDEIAS DE BASE .............................................. 74

4.1.1 “Enunciado” e “frase” ....................................................................................................... 75

4.1.2 “Locutor” e “enunciador” ................................................................................................. 76

4.1.3 “Pressuposto” e “subentendido” ....................................................................................... 78

4.2ARGUMENTAÇÃO “TRADICIONAL” E ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA ....................... 79

4. 3 O ATO ARGUMENTATIVO DA LINGUAGEM .................................................................... 81

4.4 DOS PRINCÍPIOS ORIENTADORES AOS BLOCOS SEMÂNTICOS .................................. 85

5. O PARECER AO PROJETO DANTAS: BLOCOS SEMÂNTICOS E A NEGAÇÃO DA

ESCRAVIDÃO ................................................................................................................................. 90

5.1 O PARECER E A TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS..................................................... 90

5.1.1 Encadeamento propriedade-indenização: norma e transgressão .................................. 91

5.1.2 Modificadores realizantes e desrealizantes ...................................................................... 97

5. 1.3 Argumentos internos, externos e suas relações ............................................................... 99

6. CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 107

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REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 110

APÊNDICE – LINHA DO TEMPO (MEDIDAS LEGAIS) .......................................................... 115

ANEXO A – “PROJETO DANTAS/RUI BARBOSA” ..................................................................... 116

ANEXO B – O PROJETO ORIGINAL .............................................................................................. 117

ANEXO C – O PROJETO ORIGINAL .............................................................................................. 118

ANEXO D – LEI DOS SEXAGENÁRIOS ........................................................................................ 124

ANEXO E – LEI DO VENTRE LIVRE ............................................................................................. 130

ANEXO F – PROIBIÇÃO DE LEILÕES DE ESCRAVOS............................................................... 134

ANEXO G – PROIBIÇÃO DE PENAS DE AÇOITES AOS RÉUS ESCRAVOS ........................... 135

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1 INTRODUÇÃO

“Será lícito extrapolar do discurso científico uma imagem de mundo que

corresponda aos meus desejos?” (CALVINO, 1990, p.20)

Pouco contemplado pelos linguistas é o exercício de pensar seu campo de atuação para além

de sua prática acadêmica – quer como um fazer científico em constante processo de

rearrumação teórica, ou seja, como algo que extrapola o cômodo conhecimento antes

adquirido, não cerceado por referências somente eleitas e mantidas por gosto pessoal ou por

uma tradição espistemológica hegemônica; quer por refletir sobre os processos de construção

de saber em sua área, ou ainda por cogitar um diálogo entre teorias já sedimentadas na

universidade e senso comum, entre a cátedra e a sociedade. Isso ocorre porque a prática

acadêmica, de modo reiterado, tem imposto um modelo de trabalho limitado ao uso

instrumental, isto é, não reflexivo, das teorias correntes, em voga por serem prestigiadas num

determinado período (BACHELARD, 1996; RAJAGOPALAN, 2004).

Devido a essa exígua autocrítica, incorre-se num risco de realizar um trabalho hermético, em

que o objeto de análise resulte impregnado por uma visão estritamente pessoal/institucional, o

qual muito facilmente pode se colocar numa escala que vai da inutilidade da pesquisa ao

equívoco ou ostracismo científico (RAJAGOPALAN, 2004; SOUSA SANTOS, 2004). Como

uma tentativa de evitar isso, cabe o uso desta como questão-guia: “Será lícito extrapolar do

discurso científico uma imagem de mundo que corresponda aos meus desejos?” (CALVINO,

1990, p.20), desejos antes acolhidos pelos pesquisadores individualmente ou em grupo,

incluindo-se aí a ciência já naturalizada em senso comum (RAJAGOPALAN, 2004).

Ao trabalhar com as noções interdependentes de ato e pessoa, Chaïm Perelman e Lucie

Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005, p.337) esclarecem que “quanto mais recuada uma

personagem está na história, mais rígida se torna a imagem que dela formamos”. Mas isso não

quer dizer que a imagem da pessoa se torne imutável, fixa, e sim “rígida”, estável. Há uma

imagem de Rui Barbosa estabelecida para determinado grupo de estudiosos em muito baseada

no mal-afamado episódio da queima de arquivos1 sobre a escravidão, os quais assegurariam

aos afrodescendentes, por exemplo, a elaboração de árvores genealógicas. Ter conhecimento

de sua ascendência, de sua base étnica e cultural, seria algo espoliado de toda a geração de

negros subsequente à incineração desse acervo documental, intencionalmente efetuada. Essa

1 Decisão S/N de 14 de dezembro de 1890: “Manda queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos

relativos à escravidão, existentes nas repartições do Ministério Público”.

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imagem se liga à suposição de que foi pelo cálculo de uma pessoa mal-intencionada, disposta

a efetuar esse suposto apagamento histórico que a destruição se deu. Todavia, essa imagem é

de uma rigidez maleável, pois é relativa, mutável, já que “não só novos documentos podem

determinar uma revisão, mas afora todo fato novo, uma evolução da opinião pública ou outra

concepção da história podem modificar a concepção da personagem”. (PERELMAN;

OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 338).

Nesse estudo, trabalha-se com a hipótese de ato motivado pelo desejo de salvaguarda dos

direitos da geração recém-liberta, hipótese essa que pode se alicerçar no seguinte fato:

quando Rui Barbosa atuava como Ministro da Fazenda do governo republicano e os ex-

proprietários de escravos enviaram-lhe um requerimento (no qual estava expresso o desejo de

formular a possível criação de um banco cujos fundos seriam utilizados como indenização

para si e seus descendentes pelas perdas advindas da Abolição da Escravatura de 13 de maio

de 1888), o então ministro respondeu: “Mais justo seria e melhor se consultaria o sentimento

nacional, se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos não onerando o tesouro.

Indeferido, 11 de novembro de 1890.”(Diário Oficial, 12 de novembro de 1890, p.5.216). É,

somente após esse episódio, que se dá a referida queima de uma seleção de arquivos2.

Fato pouco desprezado, em contrapartida, é o descaso com que os acervos históricos são

tratados nacionalmente, há relatos bem conhecidos de perda de significativa parte do que seria

legado histórico pela inadequação em se armazenar, ou pelo manuseio impróprio, pelas

condições insalubres do espaço físico ou ainda pela demora na contratação do trabalho de

restauradores. Portanto, muito possivelmente, se não pela queima intencional, o referido

arquivo poderia ter tido o alegado fim pela ação do tempo aliada à inatividade dos poderes

responsáveis pela sua conservação.

No entanto, um argumento definitivo vem de um fato já estudado pela academia há algumas

décadas3: esses registros de compra e posse de escravos solicitados para queima no Diário

Oficial de 14 de dezembro de 1890 possuíam duas vias e graças a atenção aos trâmites

2 Para mais detalhes, conferir O Abolicionista Rui Barbosa, uma coletânea de escritos feita em comemoração ao

centenário da abolição, a cronologia das ações abolicionistas ruianas exposta em seus capítulos, com destaque

para as páginas 37 e 38, integrante do capítulo 2, de Homero Pires, intitulado Rui Barbosa e a Abolição dos

Escravos que traz a citação do referido trecho do Diário Oficial. 3 Conferir artigos de Robert W. Slenes, Escravos, cartórios e desburocratização: o que Rui Barbosa não

queimou será destruído agora? Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, no. 10, pp.166-196, março/agosto

1985 e O que Rui Barbosa não queimou. Novas fontes para o estudo da escravidão no século XIX. Revista

Estudos Econômicos, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 117-149, 1983.

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burocráticos, as cópias são recuperáveis por terem sido anexadas “a processos de herança e

inventário post-mortem”.4

Sendo assim, não se escolheu nesse estudo a imagem do Rui Barbosa5 pseudoabolicionista, ou

abolicionista de ocasião, mas a imagem do Rui Barbosa antiescravista, alicerçada pela pessoa

e seus atos (incluindo-se neste segundo elemento os juízos constantes em seus escritos). É na

rigidez imagética permitida por essa bifurcação, sobretudo em seus textos, que o abolicionista

Rui Barbosa é estudado. Não se deseja fazer, com isso, uma apologia às intenções

verdadeiras, uma defesa autenticatória ou um exercício laudatório. Busca-se o que é patente

na linguagem, aquilo que se pode depreender pelo estudo da argumentação, vista como

estratégias textuais em conjunto pelo aporte teórico apropriado – principalmente os estudos de

Chaïm Perelmane Lucie Olbrechts-Tyteca ([1958] 2005); por um lado, ocupando-se de

alicerçar os estudos argumentativos da Nova Retórica, por outro, com os de Ducrot ([1969]

1987; [1977]1989) esclarecendo os dispositivos da Argumentação na Língua, porém não

deixando de se recorrer ao trabalho biográfico de historiadores para se acessar a imagem

ruiana em análise.

Um estudo que aborde o histórico dos feitos de Rui Barbosa como antiescravista já seria algo

que fugiria ao que é comumente praticado, já que há uma corrente questionadora das reais

intenções desse parlamentar, jornalista e político. Percebe-se que pode ter sido deixada uma

lacuna histórica quando não se fez um exame mais extenso da vertente parlamentar do Rui

Barbosa como relator do Parecer ao Projeto Dantas (1884)6 em nome das comissões de

orçamento (da qual fazia parte) e da justiça civil.

4 Informação obtida na matéria O dia em que Rui Barbosa virou Nero, de Nívia Pombo, publicada na Revista de

História da Biblioteca Nacional. Ano 3, nº29, fev. 2008, p.21. 5Preferiu-se adotar neste trabalho a grafia predominante nas fontes de pesquisa, a saber, a com “i” (não a sua

variante com “y”, “Ruy Barbosa”) e recomendada pela própria FCRB conforme Instruções para a Organização

do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (12 de agosto de 1943) e Lei número 5.765, de 18/12/1971,

que aprova alterações na ortografia da língua portuguesa. Além disso, procurou-se conservar a grafia dos

excertos apresentados em conformidade com o encontrado nas Obras Completas de Rui Barbosa (OCRB), que

não é a originalmente seguida por Rui Barbosa, mas a adotada então, quando se convencionou retirar os ditongos

em “oi” e substituí-los em ditongos em “ou”, mais correntemente usados em 1944 (Cf. nota sobre isso em FCRB,

[1884] 1945, v.11, t.1, p.42, prefácio). 6 Recuperou-se esse documento pela consulta ao fac-símile das Obras Completas de Rui Barbosa (OCRB),

Volume 11 (1884), Tomo 1, 409 páginas, intitulado Discursos parlamentares: emancipação dos escravos, na

edição produzida pelo Ministério da educação e saúde, Rio de Janeiro, 1945 (data de publicação sob o regime de

Getúlio Vargas e do ministro Gustavo Capanema). O prefácio e a revisão ficaram sob a responsabilidade de

Astrojildo Pereira. De um modo geral, esse volume é assim estruturado: 1) abre-se com uma caricatura de Rui

Barbosa feita por Belmiro de Almeida para O Binóculo de 06 de maio de 1882, Ano II, nº I, “’S. Ex. o Sr. Rui

Barbosa’ (Sua Excelência, o Sr. Rui Barbosa). Talvez o maior cabeça do parlamento atual” – legenda que faz uso

do atualmente já desgastado trocadilho entre as proporções de sua cabeça e sua posição de chefia; 2) prefácio de

Astrojildo Pereira que lista historicamente parlamentares e sua posição diante do escravagismo, destacando Rui

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14

Enfatiza-se, nesse trabalho, os mesmos conceitos de escravidão e abolicionismo do

movimento emancipatório da década de 1880. Nas palavras de Joaquim Nabuco7 [1883] 2011,

em sua obra O Abolicionismo8:

Esta [a palavra escravidão] não significa sómente a relação do escravo para

com o senhor; significa muito mais: a somma do poderio, influencia, capital,

a clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a

dependencia em que o commercio, a religião, a pobreza, a industria, o

Parlamento, a Corôa, o Estado enfim, se acham perante o poder agregado da

minoria aristocrática em cujas senzalas centenas de milhar de entes humanos

vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regimen a que

estão sujeitos; e por ultimo, o espirito, o principio vital que anima a

instituição toda, sobretudo no momento em que ella entra a recear pela posse

imemorial em que se acha investida, espirito que há sido, em toda a historia

dos paizes de escravos a causa do seu atraso e da sua ruina. (NABUCO,

[1883] 2011, p.71).

Então a escravidão é tratada nesse estudo como uma instituição que alimentava os diversos

setores da sociedade, contudo fadada à falência, por ser um modo de produção incapaz de

sustentação econômica perene9: uma instituição de poder dos senhores, como um conjunto, ou

um modo de produção. Era uma instituição cujo desmantelamento ainda se pensava, nos anos

1880, de modo gradual, por alforrias esparsas, motivadas pela iniciativa dos senhores ou pelo

pleito dos escravos (MENDONÇA, 2008). Se havia o escravagismo caído em outros países

(França, Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo) haveria de ser derrubado no Brasil.

A abolição, por outro lado, demandava libertação, principalmente via iniciativa jurídica, e

adaptação, mediante educação do negro para a sua adequação ao máximo de setores da vida

de liberto. Quando da época do Parecer ao Projeto Dantas, os argumentos dos parlamentares

apontavam para uma tendência abolicionista geral; sendo abolicionismo visto como um

continuum, em que se alocavam as posturas mais ou menos liberais. Alguns dos que aceitaram

Barbosa, caracteriza o Parecer ao Projeto Dantas e levanta os motivos para a queda do escravagismo; 3)

colocação de 03 primeiros discursos, menos polêmicos; 4) compilação dos “Anais dos Srs. Deputados do

Império do Brasil”, ano de 1884 e texto do Parecer, o mesmo desses anais; 5) apêndice composto pelo texto

original do Projeto Dantas com alterações manuscritas por Rui Barbosa, o histórico desde a apresentação do

projeto em 15 de julho até a dissolução da câmara em 30 de julho, a exposição sobre a dissolução também

redigida por Rui Barbosa, e, por fim, a circular de Rui Barbosa candidatando-se às eleições como deputado geral

de 1º de dezembro de 1884. 7Contemporâneo de Rui Barbosa.

8Essa obra foi inicialmente pensada como componente de um programa sobre reformas políticas e teria como

volumes complementares textos de Rui Barbosa, Rodolfo Dantas e Sancho Pimentel membros do Partido

Liberal. (MARSON e TASINAFO, 2011) A transcrição conservou a grafia original. 9Interpretação baseada no conceito de Nabuco, mas cada estudioso elege um aspecto saliente para formular suas

definições de escravagismo/abolição.

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15

a anterior Lei de 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre10

, por exemplo,

identificavam-se como abolicionistas, mas recusavam as propostas do Projeto Dantas. O

abolicionismo era um conceito suprapartidário, pois havia tanto abolicionistas liberais, quanto

conservadores; monarquistas e republicanos.

Contudo, utilizando-se desse histórico das ações antiescravistas ruianas, apontando para sua

existência, mas não se restringindo a ele, o que se pretende é apresentar um estudo da figura do

orador/locutor abolicionista Rui Barbosa, um acúmulo de temas não explorados11

que encobre a

Linguística, a Nova Retórica e a Argumentação na Língua. O movimento de prestígio-

desprestígio-represtígio da dialética de Aristóteles é exemplar das mudanças de paradigma

científico, entendidas como necessárias para seu avanço. Equiparada ao raciocínio analítico, a

dialética aristotélica era entendida como um modo de pensar que se fundava em argumentos

prováveis condutores de conclusões não verdadeiras, mas verossímeis, razoáveis. Por trabalhar

com a noção de verossimilhança – e não com as noções dos filósofos clássicos, como a noção

de “verdade” – não fora objeto de apreço pelo senso comum. Os sofistas eram encarados como

formuladores de raciocínios falsos com fins desonestos. Baseados nas declamações literárias de

alguns retóricos da antiguidade, filósofos atribuíam à Retórica o mero papel de enfeite da

linguagem. Sua interpretação pelos posteriores cristianismo e racionalismo também não lhe era

favorável: entendiam-na como forma de raciocínio amoral ou antiético, que conduziam a

conclusões falsas. Essa filosofia posterior estabeleceu um confronto entre ela e o raciocínio

analítico, esse sim valorizado. Ainda no fim do século XIX, a academia também rejeitava essa

área, vista como não científica, contemplando somente sua história.

Todavia, em meados do século XX, surge a Nova Retórica, encabeçada por Chaïm Perelman,

que, relendo a Retórica e a Dialética de Aristóteles, ao mesmo tempo, restringe seu interesse –

focaliza o trabalho com a argumentação de provas, não científica; bem como amplia sua

extensão – o auditório aristotélico, visto como algo “heterogêneo”, um grupo indistinto

reunido em público, e de “baixo nível”, sem instrução perita, não habilitado então a seguir

raciocínios mais complexos é revisto por Perelmane Olbrechts-Tyteca ([1958], 2005) como o

alvo da argumentação.

10

A remissão a essa lei é recorrente para a montagem da estratégia argumentativa por Rui Barbosa em defesa do

Projeto Dantas. 11

Não se localizou, com as pesquisas prévias, nenhum estudo que traga o recorte analítico do trabalho Rui

Barbosa e os “abolicionistas” de 1884: argumentações no Parecer ao Projeto Dantas.

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16

Marco do reavivamento do pensamento dialético de Aristóteles, em 1958, a publicação do

Tratado de Argumentação de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca resgatou a dialética

aristotélica em três movimentos: retomada, abrangência e ressignificação, tudo isso num

momento em que a razão era vista como algo nem estritamente lógico nem estritamente

metafísico. O nome Nova Dialética, contudo, foi preterido devido à cristalização semântica

que o termo “dialética” carregava pós-estudos de Marx e Hegel; por isso “Nova Retórica”

com um termo menos impregnado ideologicamente (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA

[1958] 2005; PERELMAN, [1977]1999; PLANTIN, 2008; MACHADO, 2011).

Já a Argumentação na Língua (ANL), teoria elaborada por Oswald Ducrot e Jean Claude

Anscombre ([1969] 1987; [1977]1989),entende que a ação sobre o outro está inscrita no

sentido do enunciado. Ducrot e Anscombre precisam seu campo de ação como a Pragmática

Semântica (ou Linguística), área em que o analista investiga a ação pela língua, não a ação

quando se fala, mas o que a própria língua (vista pelos seus enunciados argumentativamente

estruturados) pode fazer.

Inicialmente, Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre12

, em sua Teoria da Argumentação na

Língua, partiram para a reformulação do conceito tradicional de argumentação: as conclusões

de uma frase, segundo a argumentação tradicional, seriam extraídas de situações discursivas e

obtidas por leis psicológicas, lógicas, retóricas e sociológicas. Então a argumentação era

somente vista como dependente do contexto extralinguístico. Eles, em vez disso,

redirecionaram a argumentação para o âmbito intralinguístico, para a formação dum conjunto

de conclusões prováveis para uma mesma frase – teoria essa que passou por reformulações

passando pelos topoi, até o estado atual de “blocos semânticos”, ótica de análise desse

estudo(DUCROT [1969] 1987; [1977]1989; 2003).

Escapa-se à dimensão puramente subjetiva de Rui Barbosa quando seu discurso é analisado à

luz da Semântica Argumentativa: passa a ser compreendido não só como repositório de uma

corrente de ideias de uma época, mas também como repositório de um arranjo argumentativo

delas, ou como afirmou ele próprio: “[...] eu não era o indivíduo, eu era a expressão dum

conjunto de ideias” (BARBOSA, 1914. v. 41, t.2, p. 289-290). Em contrapartida, os contra-

argumentos mencionados no Parecer ao Projeto Dantas também são entendidos como uma

12

Nominalmente, como autor dos trabalhos, aparece a figura de Ducrot, embora ele mesmo compartilhe o mérito

dos primeiros passos da Argumentação na Língua (ANL) com Jean Claude Anscombre. A Teoria dos Blocos

Semânticos, por sua vez, teve a colaboração de Marion Carel esposa de Ducrot.

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17

voz dilatada não pertencente a indivíduos particulares, mas constituintes de e ligados por uma

corrente histórica, como discursos “repetidos e renovados”. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11,

t.1, p.14).

A ANL é exemplar das transformações que acontecem em ciência, conceitos ou noções em

algum momento tidas como díspares, passam a atuar de modo complementar – a ANL pode

ser entendida como a interface do Pragmatismo com o Estruturalismo, correntes essas, a

princípio, de aplicação e tempo distanciados e de desenvolvimentos teóricos particulares: é o

extralinguístico pelo intralinguístico, o ato argumentativo pela linguagem na linguagem. Uma

quebra de paradigma.

Uma outra quebra de paradigma, o afã da desnaturalização do escravagismo, do direito de

propriedade do homem sobre outro homem,, foi a escolha de engajamento pelo Rui Barbosa

atuante em diversas frentes, sendo contemplada neste trabalho Antiescravismo Ruiano no

Parecer ao Projeto Dantas: tipos e topoi argumentativos sua atuação parlamentar.

O Projeto Dantas (1884), do qual Rui era segundo signatário, autor e relator, intentando uma

empreitada pioneira, era composto por dois artigos nos quais se recomendavam algumas

obrigações para os senhores de escravos, ao mesmo tempo em que admitia mais direitos aos

alforriados. Porém, essa proposta foi fortemente rechaçada, o que resultou na dissolução do

Gabinete Dantas e na petição de um parecer que assinalasse a sua procedência.

Ressalte-se que o antiescravismo ruiano é percebido dentro dos limites admitidos pelo corpus,

enquanto aquilo que pode ser constatado pela recorrência ao aporte teórico, seja pelas

informações de cunho extratextual que podem ser depreendidas, quanto pelo uso

argumentativo de elementos linguísticos.

Do gradual arrefecimento e resultante derrocada da convenção que sustentava o sistema

escravocrata, o Parecer ao Projeto Dantas é uma amostra significativa, com argumentos que

recobrem o mais amplamente possível a ilegitimidade da escravidão, fazendo o cruzamento de

aspectos éticos, econômicos, demográficos e históricos.

A organização desse trabalho é pensada da seguinte forma:

Na seção 02, intitulada Pressupostos Retóricos em Rui Barbosa – antiescravismo no Parecer

ao Projeto Dantas, são trazidas as condições históricas em um breve percurso ideológico que

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colocaram Rui Barbosa enquanto orador fidedigno, correlacionando dados históricos e aquilo

que Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958], 2005) chamaram de os Âmbitos da Argumentação.

Em tal percurso, volta-se a dois momentos, ao das ideias do Rui Barbosa mais jovem, aos 19

anos de idade e do seu amadurecimento etário, ideológico e político, aos 35 anos, quando da

elaboração do Parecer ao Projeto Dantas. É feito também um cotejamento dos

posicionamentos dos parlamentares e de Rui Barbosa em relação às principais leis de intenção

ou repercussão antiescravista promulgadas. Além disso, o corpus desse trabalho é

contextualizado e sumamente apresentado como um todo, apontando-se a estrutura e

propósitos.

Como um desdobramento da seção 02, na seção 03, intitulada Argumentação no Parecer ao

Projeto Dantas – topoi retóricos e tipos associados, os lugares-comuns retóricos e a tipologia

argumentativa abrangem os aspectos éticos, econômicos, demográficos e históricos, muitas

vezes interfaceados, trazidos no Parecer ao Projeto Dantas. Esses aspectos são privilegiados

por uma questão metodológica: por permitirem a viabilidade do trabalho no tempo disponível

com a densidade desejada. Desses pontos, enfatiza-se a relação propriedade-indenização,

legitimadora da escravidão, que se confronta com o binômio liberdade-não indenização. São

apontados os expedientes argumentativos que funcionam pelo sistema da língua vistos sob a

ótica da retórica perelmiana. Uma trilha argumentativa ruiana é então apresentada.

Já na seção 04, Parecer ao Projeto Dantas: Argumentação na Língua, percebe-se que em se

tratando de argumentação, pode-se pensar não somente na Nova Retórica, mas também na

Argumentação na Língua. O texto ruiano passa a ser visto como passível de estudo então

enquanto portador de uma argumentatividade, ao mesmo tempo, dependente de fatores

extrínsecos com os tipos e topoi retóricos e autossuficiente com a abordagem dos

pressupostos ducrotianos. Oswald Ducrot, precursor da Semântica Argumentativa13

, precisa

seu campo de ação como a Pragmática Semântica (ou Linguística), área em que o analista

investiga a ação pela língua, não a ação quando se fala, mas o que a própria língua (vista pelos

seus diversos elementos, seja enunciados, na primeira fase de desenvolvimento da teoria, ou o

léxico, no estado atual da ANL, compreendidos como eminentemente argumentativos) pode

fazer. Os estudos da ANL são historicizados, definem-se as noções pertinentes a cada fase da

teoria, seja a fase Padrão, ou Standard; a fase da Teoria dos Topoi ou na mais atual, a fase da

Teoria dos Blocos Semânticos.

13

Também denominada de Semântica da Enunciação, ou ainda a designação adotada neste estudo, a

Argumentação na Língua – ANL.

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À luz da Teoria dos Blocos Semânticos, é examinado o Parecer ao Projeto Dantas na seção

05, O Parecer ao Projeto Dantas: blocos semânticos e a negação da escravidão. São

exploradas noções como blocos semânticos, argumentação normativa e transgressiva,

argumentação externa e interna, elementos modalizadores, aspectos converso, transposto,

recíproco, bem como a noção a inter-relação de tais noções.

As seções 03 e 05 debruçam-se mais no objeto executando uma análise qualitativa. O texto

ruiano é interpretado enquanto amostra argumentativa da nova retórica ou da ANL. Já as

seções 02 e 04 dão conta de traçar noções básicas até o ponto de acesso às teorias.

Inicialmente há um entrelace entre os desenvolvimentos teóricos da Nova Retórica e histórico,

que contribuiu para a formatação da imagem do Rui Barbosa enquanto abolicionista e

legislativo, que desembocou no Projeto Dantas. Na seção 04, em contrapartida, dados os

percursos históricos e legislativos, é feita uma incursão nos modos ducrotianos de encarar a

relação argumentação e língua e no como se assenta nesse âmbito o Parecer ao Projeto

Dantas.

Conclui-se o trabalho, trilhando a argumentação no Parecer ao Projeto Dantas: como uma

amostra de que as teorias da argumentação, ou seja, Argumentação Retórica e Argumentação

na Língua, embora pertencentes a campos distintos – Retórica e Semântica Argumentativa –

são complementares por permitirem uma visão menos parcial do fenômeno argumentativo.

Quando postas em conjunto, permitem a constatação de uma argumentação que se baseia em

aspectos mais ou menos lógicos, nas sucessivas relações de predominância de valores

convencionalmente formados, de um Parecer como meio e como fim argumentativo – na

língua instrumento, na língua discursiva, polifônica, por exemplo.

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20

2 PRESSUPOSTOS RETÓRICOS EM RUI BARBOSA –

ANTIESCRAVISMO NO PARECER AO PROJETO DANTAS

“concedendo certo valor a um juízo, formula-se,

por isso mesmo, uma apreciação sobre seu autor” (PERELMAN;

OLBRECHTS-TYTECA, [1958]2005, p. 338)

Estudar a Argumentação Retórica é centrar-se na linguagem. E esse é um fechamento imposto

pelo próprio aporte teórico que, paradoxalmente, mune o analista de recursos para um estudo

rico dos possíveis juízos circulantes em certa época, aceitos, refutados e manejados por um

grupo social específico. Pelo intratextual, obtêm-se informações sobre determinados espaço,

tempo e sociedade. No caso do presente estudo, busca-se a imagem do abolicionista Rui

Barbosa, pelos seus juízos expressos em seus textos. Sendo assim, o recorte analítico

contempla essa estabilidade na imagem de Rui Barbosa – embora se perceba que tal

estabilidade é somente condicionada e presumida, neste caso, pelo desejo de se fazer um

estudo, pois “a ideia” de “pessoa” introduz um elemento de estabilidade. “Todo argumento

sobre a pessoa explicita essa estabilidade: presumimo-la ao interpretar o ato em função da

pessoa”. A própria qualificação de “abolicionista” para Rui Barbosa, ou seja, “a designação

da pessoa por certos traços” confere essa “impressão de permanência” (PERELMAN;

OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.334, 335). Caso seja modificado o olhar sobre o

objeto de análise, por exemplo, há a possibilidade de alteração dessa imagem em graus

diversos, chegando-se até a uma inversão. Por isso essa estabilidade não é uma característica

inerente.

Consultam-se primordialmente os estudos da argumentação, mas não se desprezam, porém,

como complemento, dados históricos que concorram para a elaboração desse quadro, já que

eles também podem se configurar em instrumentos argumentativos, pois o fato de a Nova

Retórica se centrar nos “recursos discursivos para se obter a adesão dos espíritos” não diminui

a influência exercida pela “experiência externa” que, apoiada ou interpretada pelo uso da

linguagem, também visa obter a adesão (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958]

2005, p.8).

A adesão, ou a participação mental consentida do interlocutor, é o que propõe o orador,

aquele de quem parte a iniciativa da argumentação. Interagindo com ele, há um auditório,

entendido não como ouvintes ou pessoas posicionadas perante o orador, mas o seu alvo, o

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destino da sua argumentação. Esses dois elementos, que se definem um pelo outro, formam a

base do sistema argumentativo: o objetivo do orador é o de convencer e /ou persuadir seu

auditório, configurado, por sua vez, com base em sua própria experiência (pois o orador tende

a supor a sua formatação – suas características, daquilo que ele ansiaria, de seu

enquadramento social, de seus hábitos culturais, e, neste caso, de suas expectativas políticas):

A argumentação efetiva tem de conceber o auditório presumido tão

próximo quanto o possível da realidade. Uma imagem inadequada do

auditório pode ter as mais desagradáveis consequências. Uma

argumentação considerada persuasiva pode vir a ter um efeito

revulsivo sobre um auditório para o qual as razões pró são, de fato,

razões contra [...] O conhecimento daqueles que se pretende

conquistar é, pois, uma condição prévia de qualquer argumentação

(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 22,23).

Tal inferência sobre a formatação “do conjunto daqueles que o orador quer influenciar com

sua argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p. 22) é útil na

medida em que modaliza o uso de certos expedientes argumentativos, precavendo um

discurso inadequado e contraproducente. No entanto, com isso, o orador não se esquece de

que esse “auditório presumido” pode ser composto de pessoas que carreguem individualmente

diferenças entre si, afinal, “uma só pessoa constitui-se em um complexo de contradições, de

diferenças de posições a depender, por exemplo, da época de sua vida em que se é

apresentada a tese” (MACHADO, 2011, p.19). “É a arte de levar em conta, na argumentação,

esse auditório heterogêneo que caracteriza o grande orador” (PERELMAN; OLBRECHTS-

TYTECA, [1958] 2005, p. 24).

O orador Rui Barbosa tinha então de perceber as diferentes nuances em seu auditório. Durante

a sua militância político-ideológica, tinha de filtrar essas diferenças até mesmo pela

abrangência do grupo que deveria ser tocado por sua argumentação: deveria diferenciar

membros/subgrupos da população como um todo, ou do meio político geral, ou de um partido

político específico. No período da defesa do Projeto Dantas por meio de seu Parecer, o

auditório eram os parlamentares, liberais ou conservadores pretensamente influenciáveis pelos

argumentos levantados.

Ainda que a fim de facilitar sua atuação argumentativa, o orador vise a exploração dos

aspectos comuns do auditório, não significa, reitera-se, que as palavras devam ser

direcionadas a um público visto como homogêneo e/ou moldado unicamente segundo as suas

expectativas, idealizado. “É bom que se perceba que do auditório emanam anseios múltiplos e

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muito diversos entre si e que solicitações diversas exigem argumentos igualmente

múltiplos”(MACHADO, 2011, p.19). O orador tem de ter em mente que o auditório

heterogêneo reúne “pessoas diferenciadas pelo caráter, vínculos ou funções” (PERELMAN;

OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.24).

O trunfo do bom orador então é trabalhar com a unidade que permite a visão de um

agrupamento, mas não desprezar as singularidades constitutivas desse mesmo grupo. Uma

classe, qualquer classe, demanda a reunião de elementos por características comuns. Na

década de 1880, as pessoas, como é aprofundado mais adiante neste trabalho, não se

percebiam como escravistas. Em geral viam-se abolicionistas. Então, ao formular sua fala, o

orador Rui Barbosa deveria, como o fez, dirigir-se ao grupo designando-o como abolicionista.

No entanto, dentro dessa classe, sabia-se das posições individuais ou de subgrupos e ainda das

mudanças de posicionamento de um mesmo elemento, formando subauditórios, e isso, aliado

à noção do abolicionismo admitido como comum a todos construiria seus argumentos.

Tal procedimento é necessário já que o intento do orador é adensar gradativamente a adesão

que deve ir de um mero interesse prévio em se participar de um diálogo para a incorporação

das ideias apresentadas – tanto mentalmente, o que configuraria o convencimento, quanto na

conduta do outro, obtendo-se assim a persuasão –, portanto vale empenhar todo o esforço

permitido14

. Afinal, o processo comunicativo demanda tal aceitação, por isso ela é vista pelo

orador como preciosa. (ABREU, 2007; PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA; [1958]

2005; PERELMAN, [1977]1999).

Não haveria, segundo alguns estudiosos15

, a necessária relação de anterioridade, hierarquia ou

interdependência entre persuadir e convencer, considerados, apenas como dois resultados

diversos. Haquira Osakabe (1979, p.161) diz que a persuasão e o convencimento (chamado de

“convicção”) são dois tipos de adesões distintas diretamente relacionadas com o auditório

presumido pelo orador. A intenção do orador muda a depender do tipo de auditório que ele

entende que está em questão. Além do mais, alguém pode ser convencido, porém não ser

persuadido e vice-versa. Intentando obter essa adesão, o orador não se limita a apresentar os

14

Etimologicamente, convencer vem de “cum + vincere”, i. e., vencer o outro mediante sua colaboração e

persuadir vem de “per + suadere”, significando a partícula “per”, “de modo completo” e “suadere”,

“aconselhar”14

(TRINGALI, 1988, p.20). 15

Dante Tringali (1988, p.21) preocupa-se, por exemplo, em trazer a persuasão segundo a tria officia de Cícero,

a saber, composta por três dimensões a lógica (convencimento), a que age sobre os afetos (comoção) e a estética

(agrado), trazendo o convencimento apenas como um componente da persuasão. Nessa seção, consideram-se

esses necessariamente como componentes da retórica, obtendo-se a comoção e o agrado pelo logos, sendo

persuasão e convencimento efeitos diferentes da argumentação.

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fatos, achando que eles, por si só, suscitariam o interesse do interlocutor em participar da

interação. Em adição, numa atitude modesta, deve admitir a natureza limitada de sua

proposição, não se considera o portador de verdades inquestionáveis nem universais:

Com efeito, para argumentar, é preciso ter apreço pela adesão do

interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental [...] querer

convencer alguém implica sempre certa modéstia da parte de quem

argumenta, o que ele diz não constitui uma “palavra do Evangelho”, ele não

dispõe dessa autoridade que faz com que o que diz seja indiscutível e obtém

imediatamente a convicção. Ele admite que deve persuadir, pensar nos

argumentos que podem influenciar seu interlocutor, preocupar-se com ele,

interessar-se por seu estado de espírito (PERELMAN; OLBRECHTS-

TYTECA, [1958]2005, p. 18).

O orador então precipita as respostas do outro, considera-as previamente, a fim de formular

em sua tese as adaptações requeridas pelo auditório. Sendo assim, naquele que se propõe a

argumentar, deve haver as seguintes predisposições: modéstia, para reconhecer a

incompletude de sua tese, as falhas a serem ajustadas pelas reações do auditório e interesse

pelo auditório que no momento da ação do orador reage reformulando o seu discurso.

A esses procedimentos de base para sedimentar a argumentação, que Perelman e Olbrechts-

Tyteca ([1958], 2005) expõem na primeira parte de seu Tratado intitulada Os âmbitos da

argumentação, podem ser agregados outros. Na introdução ao Tratado de Argumentação, por

exemplo, há a referência ao uso da “experiência externa” como recurso auxiliar, vinculada aos

“discursivos” para se obter a adesão. Dá-se então credibilidade ao orador não só pelo uso de

expedientes linguísticos, mas também pelo exame de sua conduta que, aliada ao discurso, é

vista como expediente argumentativo (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,

p.8). A própria figura de Rui Barbosa servia para validar seu local de fala abolicionista –

informações biográficas16

esclarecem que ele apresentava um histórico de ações tanto na

imprensa, quanto na política, e ainda no meio maçom que reforçava sua imagem de

abolicionista anteriormente, quando mais novo, em grupos mais restritos e, em tempos

16

Dados biográficos de base (breves): nascido em 5 de novembro de 1849, na rua que hoje leva seu nome, em

Salvador/BA, Rui Barbosa de Oliveira, filho de João Barbosa de Oliveira, médico, educador e político e Maria

Adélia Barbosa de Oliveira, faleceu em Petrópolis, RJ, em 10 de março de 1923. Foi, dentre outras atribuições,

membro fundador da Academia Brasileira de Letras, jurisconsulto, orador e parlamentar. Para mais informações,

consultar: BIBLIOTECA NACIONAL DO BRASIL. Rui Barbosa- Biografia. Disponível em: <

http://bndigital.bn.br/redememoria/bio-ruibarbosa.html >. Acesso em: 18 de julho de 2013; RUI BARBOSA –

BIOGRAFIA (Fundador, Fundador da cadeira 10). Disponível em:<

http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=193&sid=146>. Acesso em: 15 de janeiro de

2013; RUI BARBOSA. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/template_

01/default.asp?VID_Secao=2>. Acesso em: 28 de set. de 2010.

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posteriores, de modo mais abrangente. Quando da elaboração do Parecer ao Projeto Dantas,

então, Rui Barbosa era um abolicionista declarado e reconhecido, falando da inestimável

relevância da abolição a um grupo de abolicionistas declarados, e nem sempre reconhecidos17

.

Sendo assim, são vistos, nessa seção, tanto seu histórico de engajamento ao moto

antiescravagista, o que permitiu que o grupo em seu entorno o visse e o validasse enquanto

abolicionista, bem como o histórico da cadeia argumentativa escravocrata que se opunha a

cada iniciativa jurídica emancipatória. Enquanto que o delineamento de sua conduta, feito

mediante consulta à sua biografia e de parte de sua extensa obra18

alicerça sua posição como

orador, conferindo-lhe fidedignidade, o detalhamento de contra-argumentos na cronologia

legislativa abolicionista19

, anterior ao Projeto Dantas, apresenta-os como preparatórios e

antecedentes dos demais argumentos “repetidos e renovados” (BARBOSA, [1884] 1945,

v.11, t.1, p.14) evocados quando desse Projeto e motivadores da escrita do seu Parecer.

2.1 RUI BARBOSA – HISTÓRICO ANTIESCRAVISTA

De argumentos movidos pelo pensamento de vanguarda de sua geração20

– é esse o Rui

Barbosa patente em suas obras. Nelas, tem-se acesso ao homem que defendeu a causa

antiescravagista em um período amplo, que correspondeu a praticamente toda a sua vida. Para

um breve panorama, são enfocados dois momentos: a sua exposição de motivos antisservis

quando dos seus 19 anos de idade, como uma amostra de seu interesse em causas

abolicionistas e quando adulto, já aos 35 anos, durante sua polêmica participação no Gabinete

Dantas, por ele entendido como momento político crucial para a posterior abolição de 13 de

maio de 1888.

17

Por exemplo, para se consultar esse escorço biográfico abolicionista de Rui Barbosa, cf. Emília Viotti da Costa,

A Abolição (São Paulo: UNESP, 2008. 8ª ed. rev. e ampl.); a coletânea publicada pela Fundação Casa de Rui

Barbosa (FCRB), O abolicionista Rui Barbosa (Ed. comemorativa do Centenário da Abolição. Rio de Janeiro,

1988); bem como a introdução de Izabel A. Marson e Célio R. Tasinafo, na obra de Joaquim Nabuco

([1883]2011), O abolicionismo (Brasília: Editora da Universidade de Brasília. 1ª reimpressão). 18

A base de dados Obras Completas de Rui Barbosa (OCRB) coleciona textos em fac-simile, não

necessariamente reunidos cronologicamente, mas pela relevância temática e pelo acesso às fontes. São 50

volumes (que podem ser divididos em mais de um tomo) distribuídos da seguinte forma: volume 1: trabalhos

feitos até o ano de 1871; volume 2: trabalhos relativos ao período de 1872-1874; volume 3: de 1875-1876;

demais volumes cada um correspondendo a um dos anos posteriores, de 1877 (volume 4), até 1923 (volume 50),

perfazendo 137 tomos. Essa organização foi prevista pelo Decreto-Lei nº 3.668, em 30 de setembro de 1941

assinado pelo presidente Getúlio Vargas. 19

Assim denominadas nesta dissertação as leis que tiveram repercussão abolicionista ou que interferiram no

processo escravagista. 20

Um pensamento vanguardista na medida em que militava contra um modo de produção e uma relação social

incrustrada pela tradição que era o escravagismo.

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25

2.1.1 Radicalismo e Liberalismo

Rui Barbosa se apresentava como um jovem que surgia assumindo uma defesa

antiescravocrata veemente, ao mesmo tempo comumente praticada pelo grupo abolicionista

radical e rebatida pelo grupo mais moderado porque era percebida por esse último como

excessiva frente às supostas necessidades daquele período. Ingressou em uma associação

maçônica – conseguindo ocupar, em pouco tempo, o ponto mais alto da hierarquia mediante a

autorização de seu grupo – onde fez propostas até então inovadoras concernentes à

escravidão. Além disso, nessa mesma época, em 1869, fez um discurso considerado

impactante, a conferência “O Elemento Servil”, que mesmo não sendo preservado na íntegra,

ainda é recordado como uma atitude marcante pela postura audaz do orador (CARVALHO,

1949, vol. 1., t. 1; FCRB, 1988).

Logo aos 19 anos de idade, ele, juntamente com alguns jovens, todos a favor dos ideais

liberais, fundou, em São Paulo, o jornal do Clube Radical, o Radical Paulistano, que se servia

de uma produção semanal de artigos e de ideias que, embora não fossem individuais,

propagavam em uníssono o pensamento do Clube. Os redatores desse jornal (a “comissão de

redação”) eram, além do destacado Luís Gama e o próprio Rui Barbosa; Américo de Campos;

Bernardino Pamplona, o presidente do clube, e Freitas Coutinho. As principais ideias

propostas eram:

a descentralização, o ensino livre, a abolição da Guarda Nacional, senado

temporário e eletivo, a extinção do poder moderador, separação da judicatura

da polícia, substituição do trabalho servil pelo trabalho livre, eleição dos

presidentes de província, suspensão e responsabilidade dos magistrados

pelos tribunais superiores e poder legislativo, magistratura independente, e a

escolha de seus membros fora da ação do governo, proibição dos

representantes da nação de aceitarem a nomeação para empregos públicos e

igualmente títulos e condecorações; os funcionários públicos, uma vez

eleitos, deverão optar pelo emprego ou cargo de representação nacional

(CARVALHO, 1949, vol. 1., t. 1, prefácio, grifo nosso).

Agindo coerentemente com essa postura abolicionista do Clube, mantida no Jornal Radical

Paulistano, em 1869 21

, o jovem Rui Barbosa propôs ao público por meio da conferência O

21

O volume 1, tomo 1, ao trazer o resumo desse discurso, incorre num equívoco de datar a Conferência em 12 de

setembro de 1669, algo logo resolvido pela leitura inicial do trecho que explana : “Domingo, 12 do corrente, teve

lugar a 5ª Conferência do Clube Radical Paulistano, orando o Sr. Rui Barbosa sobre a tese – o elemento servil”

(OCRB, v. 1, t.1 , p. 171). O próprio contexto histórico de Rui Barbosa já esclarece isso.

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26

Elemento Servil22

, um olhar diferenciado para a realidade dos escravos. Seu discurso

repercutiu na imprensa local, ganhando espaço a forma laudatória com a qual os jornalistas

tratavam sua argumentação. O Correio Paulistano dizia que a exposição de Rui Barbosa

contara com “uma ilustração não vulgar” enquanto que o Ipiranga, de modo menos conciso,

assim relata o evento: “o distinto e ilustrado Sr. Rui Barbosa, ocupando anteontem a tribuna

das conferências populares para tratar do elemento servil, se houve por tal forma na discussão

de sua tese que mais uma vez confirmou os foros de que merecidamente goza de talento

superior”. O resumo publicado no Jornal Radical Paulistano fornece uma ideia, ainda que

provavelmente menos entusiástica do que a própria conferência de Rui Barbosa, acerca do

que foi dito (CARVALHO, 1949, v. 1, t. 1, prefácio).

O texto orientava seus argumentos de modo que eles recobrissem o mais amplamente possível

a ilegitimidade da escravidão, fazendo o cruzamento de aspectos éticos, econômicos,

demográficos e históricos. O início dessa conferência de Rui Barbosa (1869, v. 1, t.1 p.171-

172), de acordo com tal resumo, enfocou a vertente amoral em que se fundamentava a

escravidão, que seria “uma abominação moral, um núcleo de corrupção na vida pública e

doméstica”, passando a explorar aspectos econômicos, segundo os quais e seguindo o

exemplo estadunidense, se “estabelece a infinita superioridade do trabalho livre sobre o

trabalho servil”, apontando ainda “o escasseamento da população livre nos estados

escravistas” norte-americanos. Rui Barbosa recorre à argumentação de base demográfico-

histórica para comprovar sua tese. Seguindo em sua incursão histórica, o orador esclarece que

na França e nos Estados Unidos, no ano de 1874, a abolição trouxe, em vez da turbulência

civil, o aquietamento dos ânimos, bem como o progresso em vários setores econômicos. Rui

Barbosa conduz então o abolicionismo ao contexto local quando diz que a emancipação dos

escravos:

é muito mais fácil em nosso país que em todos aqueles onde se tem efetuado

até hoje: – 1º, porque uma porção imensa da propriedade servil existente

entre nós (mais de um terço), além de ilegítima, como toda a escravidão, é

também ilegal, em virtude da Lei de 07 de novembro de 1831, e do

regulamento respectivo que declaram expressamente “que são livres todos os

africanos importados daquela data em diante”, donde se conclui que o

governo tem obrigação de verificar escrupulosamente os títulos dos senhores

e proceder na forma de decretos sobre a escravatura introduzida pelo

contrabando; – 2º, porque a população escrava no Brasil acha-se, para com a

22

A acepção do termo “servil” e derivados, com o sentido de “escravo”, foi preservado na citação das fontes, não

obstante a abertura do termo.

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27

população livre em uma proporção incomparavelmente inferior àquela em

que se achava nas colônias francesas e inglesas, nem entre nós se dá a

circunstância de grande luta civil no meio da qual foi proclamada a

emancipação nos Estados Unidos (BARBOSA, 1869, v. 1, t.1, p.171,172).

Neste ponto do excerto, Rui Barbosa procede a uma comparação entre as realidades pré-

abolicionistas das colônias francesas e inglesas e no Brasil. Demonstra que a densidade

populacional livre, quando cotejada com a escrava no Brasil, mostrava-se elevada. Além

disso, não haveria de ocorrer uma generalizada guerra civil no Brasil para que todos os

cativos recebessem manumissões. Distanciada no tempo, a historiadora Emília Viotti da

Costa confirma as previsões de Rui Barbosa:

Por mais longos e difíceis que tivessem sido os caminhos da abolição,

chegava-se ao fim, sem que fosse preciso lançar o país em uma guerra civil,

como sucedera nos Estados Unidos. Lá os escravos só conquistaram sua

liberdade depois de longa e cruenta guerra, na qual os proprietários de

escravos e seus aliados defenderam, de armas na mão, sua propriedade

ameaçada pelo governo da União. E, a despeito dos receios que alguns

proprietários de escravos sentiram por ocasião da abolição, o país não se viu

às voltas com uma guerra entre as raças [...] As catástrofes anunciadas por

aqueles que esperavam ver a economia do país destruída também não

ocorreram. Depois de breve período de desorganização, a vida se

normalizou. Nas cidades e nas fazendas, a produção reassumiu o ritmo

anterior (COSTA, 2008, p.10,11).

Contudo, o que desperta maior interesse é que Barbosa lança mão de uma lei antes somente

pro forma, a lei de 07 de novembro de 1831, a Lei Feijó – elaborada com a finalidade de

atender às novas exigências internacionais, feitas pela Inglaterra, concernentes ao tráfico

negreiro (o Parlamento inglês abolira o tráfico negreiro em suas colônias em 1807) –

decorrente do fato de que, após a independência, em 07 de setembro de 1822, o Brasil passou

a depender economicamente da nação inglesa ainda mais, tanto que, ela assim pôde legislar

sobre a abolição do tráfico negreiro: declarava livres todos os escravos introduzidos no

território brasileiro vindos de país estrangeiro. Como um modo de burlar a Lei Feijó,

intensifica-se o contrabando de cativos que passam a entrar no Brasil, trazidos por navios com

bandeiras falsas, como forma de escapar da proscrição das patrulhas inglesas.

Em 1826, a Inglaterra impôs ao Brasil o compromisso de eliminar o tráfico num prazo de três

anos após essa renovação do acordo. A Lei de 1831 foi o cumprimento oficial do Brasil a esse

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contrato, mas ela foi praticamente ignorada, algo reiterado pelas estatísticas crescentes de

escravos em terras nacionais. Porém, anos depois, Rui Barbosa não só trouxe à lembrança

essa lei, como também Osório Duque Estrada (1870 apud LACOMBE, 1988), segundo o

qual, Rui Barbosa teria sido:

O primeiro abolicionista que, baseado na lei de 07 de novembro de 1831,

proclamou, desde 1869, a ilegalidade da escravidão no Brasil, fornecendo o

principal argumento de que serviriam mais tarde os propagandistas radicais

de 188023

, no início da fase revolucionária que terminou com a conquista de

13 de maio de 1888 (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1988, p.72).

Quase meio século após a sanção dessa lei que extinguiria o tráfico negreiro para sedimentar a

pugna antiescravagista, alguém a cita: Rui Barbosa fora o pioneiro24

em aludir a essa lei que

ratificava o convênio anglo-brasileiro de 1826, quando o acordo comercial, iniciado desde

1808, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, possível pelo auxílio inglês, foi ratificado

(FCRB, 1988). Outra ação inseriu Rui Barbosa em um mote pioneiro, um ano antes. Ele,

quando sócio da Loja América, uma associação maçônica de São Paulo, a qual era integrada

por parte do alunado e do corpo docente da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,

sugeriu aos seus companheiros a libertação do ventre de suas escravas, algo que causou certa

indisposição no Venerável da Loja, o Professor Antônio Carlos, que sai então daquele grupo.

Com essa proposta, Rui Barbosa antecipa uma prática que só seria formalizada em lei em 28

de setembro de 1871 pela Lei do Ventre Livre25

(FCRB, 1988).

23

O Abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco, formou com O Parecer ao Projeto Dantas (1884), duas obras de

fundamental importância para a propaganda abolicionista. 24

Isso não é ponto pacífico, é embasado nas informações contidas em FCRB, 1988. 25

A Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871 (redação definitiva em sessão do senado de 27 de setembro

do mesmo ano), Carta de Lei nº 2.040 do Terceiro Período Imperial, declarava liberdade condicionada aos filhos

das escravas. A partir de então, esses nascituros libertos ficariam sob a tutela dos senhores até seus 08 anos de

idade. Após esse período os senhores poderiam escolher entre indenização pecuniária ou por prestação de

serviços até os 21 anos de idade. O texto reza, no Art.1, três primeiros parágrafos, o seguinte:

A Princeza Imperial Regente, em nome de Sua Magestade o Imperador e Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os

subditos do Imperio que a Assembléa Geral Decretou e ella Sanccionou a Lei seguinte:

Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão considerados de

condição livre.

§ 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão

obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o

senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do

menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em

conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro

annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita

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29

Esses dois pontos destacados no histórico de Rui são dignos de atenção, pois

medidas como a extinção do tráfico e a libertação do ventre imprimiram à

escravidão uma finitude. Representando o “estancamento das fontes”, tais

medidas, por elas próprias, determinaram um tempo no qual a escravidão

inevitavelmente chegaria a seu termo. (MENDONÇA, 2008, p.308)

Esses dois momentos legislativos são evocados como “o estancamento das fontes”; com o

tráfico extinto e com a interdição da escravização de nascituros, não haveria renovação da

mão-de-obra escrava, o que representaria o fim da escravidão, mas por diferentes óticas: para

alguns, os que confessavam acreditar na infalível aplicação dessas leis e na igual resposta

punitiva em caso de infração, elas por si só seriam suficientes para a abolição geral

admitindo-se que com o tempo o plantel de escravos se extinguiria pela restrita expectativa de

vida; para outros, essas leis formavam um precedente impulsionador de futuras leis que

permitissem, com o tempo, novas formas de libertação.

Rui Barbosa encontrava-se nesse segundo grupo. Desde aquela conferência, ele tentava

desencadear, por meio de seus argumentos, uma quebra de valores estagnados pelo aspecto

menos questionável e ainda não explorado – a lei. Da instância jurídica, que pode ser encarada

como um objeto refletor das disposições acomodadas num determinado espaço-tempo,

anteriormente e até então amplamente acobertando a realidade escravocrata, legitimando

assim a postura escravagista, é percebida uma lei cujo alcance ainda era tímido, mas que se

configurava em exceção, que, mesmo sob a forma de uma brecha, já acolhia as disposições

abolicionistas.

A partir de então, tendo sua ação abolicionista coberta pelo aparato legal existente, Rui

Barbosa prossegue, agora empreendendo uma tentativa ainda mais ousada: a continuação da

dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará

entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.

§ 2º Qualquer desses menores poderá remir-se do onus de servir, mediante prévia indemnização pecuniaria,

que por si ou por outrem offereça ao senhor de sua mãi, procedendo-se á avaliação dos serviços pelo tempo que

lhe restar a preencher, se não houver accôrdo sobre o quantum da mesma indemnização.

§ 3º Cabe tambem aos senhores criar e tratar os filhos que as filhas de suas escravas possam ter quando

aquellas estiverem prestando serviços. Tal obrigação, porém, cessará logo que findar a prestação dos serviços

das mãis. Se estas fallecerem dentro daquelle prazo, seus filhos poderão ser postos à disposição do Governo.[...]

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30

reestruturação interna da legislação nacional para que ela continuasse a acomodar a causa

antiescravagista.

2.1.2 Projeto Dantas

No ano de 1884, em torno de seus 35 anos de idade, demonstrando uma maturidade etária que

redundou em uma maturidade político-ideológica, Rui Barbosa é convocado para redigir um

projeto de lei para o Gabinete de Manuel Pinto de Sousa Dantas26

. Ao Ministério Dantas de 6

de junho de 1884, precederam : 1) o Ministério Saraiva, que não cogitava a inclusão da

questão abolicionista na sua pauta de trabalho, 2) o Ministério Martinho Campos, totalmente

contrário às disposições antiescravistas, a ponto de declarar, segundo Brício Filho: “sou

escravocrata da gema” , 3) o Paranaguá e 4) o instável Lafayette, que, quando perguntado

sobre a existência de plano de ação referente ao escravagismo, respondeu “pode ser que sim,

pode ser que não” (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1988, p.43).

No entanto, de forma incisiva, após a leitura do projeto em 15 de julho de 1884, a proposta

fora refutada tanto por conservadores quanto, surpreendentemente, por liberais. Rui Barbosa

foi chamado de comunista e teve de enfrentar até mesmo a oposição da Igreja. Devido a tudo

isso, cai o Gabinete Dantas, que só durou onze meses e ascende ao poder o Gabinete Saraiva.

Sobre isso, Rui Barbosa comentou mais tarde: “Ontem um gabinete liberal não podia achar

apoio mesmo em uma câmara liberal para uma transação abolicionista” (BARBOSA, 1888,

v.15, t.1 p.146). E ainda:

O que imprimia caráter radical ao projeto Dantas, entre todos os outros

tentamens de transação, estar em ser ele o único onde, proscrevendo-se a

indenização, se firmava na maior transparência, com o princípio da liberdade

gratuita, a negação da propriedade servil. A escravidão compreendeu-o; viu

nesse ensaio libertador a célula da abolição incondicional; e, percebendo que

jogava a sua sorte, envidou assomos inauditos, no delírio de um desespero

descomunal, para subverter a audácia dessa iniciativa numa catástrofe

exemplar (BARBOSA, 1888, v.15, t.1, p.153).

Mas, Rui Barbosa, diante da onda reacionária a esse projeto e do crescente apoio ao

abolicionismo, declarou que a tensão emancipatória logo chegaria ao seu clímax. Devido aos

26

Então Primeiro Ministro do Império. Rui Barbosa era um líder do governo da Câmara.

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fatos, disse em um livreto intitulado O Ano Político de 1887: “está, pois, consumada a grande

revolução. Para um, para dois anos? Eis a questão apenas” (BARBOSA, 1888, v.15, t.1). O

Projeto Dantas, antes considerado odioso por sugerir ações muito “avançadas”,

repentinamente assumiu uma aparência tímida diante das mudanças ocorridas. Até mesmo

alguns ministros que eram contrários à abolição mudam rapidamente de posição. Um caso

exemplar é o do então ministro da agricultura e conselheiro Rodrigo Augusto da Silva, antes

escravista integrante do Gabinete Cotegipe e, em 10 de março de1888, integrante libertador de

João Alfredo: em cerca de dois meses depois, isto é, em 8 de maio, ele apresentou e sozinho

subscreveu o projeto do Executivo que extinguia a escravidão no Brasil, proposta essa

encaminhada a noventa e dois deputados, dos quais apenas nove votaram contra e, por fim,

aos senadores, que a aprovou em tempo recorde: 13 de maio (COSTA, 2008; FCRB, 1988).

Porém, ressalte-se mais uma vez que encarar o evento de 13 de maio de 1888 somente como

resultado da atuação de um segmento populacional engajado politicamente e/ou da vontade

parlamentar, não é dar conta, nem aproximar-se, da complexidade das variáveis envolvidas em

todo o processo da abolição. Além do mais, a liberdade daqueles indivíduos ainda não era

plena:

Para a maioria dos parlamentares, que se tinham empenhado pela abolição, a

questão estava encerrada. Os ex-escravos foram abandonados a sua própria

sorte. Caberia a eles, daí por diante, converter sua emancipação em

realidade. Se a lei lhes garantia o status jurídico de homens livres, ela não

lhes fornecia os meios para tornar sua liberdade efetiva. A igualdade jurídica

não era suficiente para eliminar as enormes distâncias sociais e os

preconceitos que mais de trezentos anos de cativeiro haviam criado. A Lei

Áurea abolia a escravidão, mas não o seu legado (COSTA, 2008, p.12).

Sim, antes, enquanto escravos, esses indivíduos foram se apropriando dos avanços legais

disponíveis, poucos, mas gradualmente ampliados até o status de libertos. Não de “homens

livres”, mas quase isso, de libertos. Nesse tocante, o quadro é menos animador do que apontam

essas palavras da historiadora Emília Viotti da Costa já que os prejuízos sociais pós libertação

da Lei Áurea seriam agravados pelo descompasso jurídico, não havendo sequer a apontada

“igualdade jurídica”. Os libertos sofreriam, pois, duplamente: nos âmbitos jurídico e social. 27

27

Tal crítica a Emília Viotti só foi possível após recordar a observação atenta da Profa. Dra. Wlamyra

Albuquerque sobre a diferença terminológica entre “homens livres” e “libertos”. Segundo ela, os escravos

receberiam pós lei o status de libertos, jamais de homens livres, assim nascidos e com ampla cidadania, como o

direito a voto.

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Feita essa breve consulta aos estudos históricos, pelos quais foram levantados dados

biográficos que servem como amostrada atuação antiescravista de Rui Barbosa e/ou da

validação dessa sua imagem nos meios social e jornalístico e que permitem a visão de suas

disposições argumentativas preliminares, passa-se à apresentação do Parecer ao Projeto

Dantas: de seu entorno legislativo, seu contexto social, seu auditório e sua constituição

argumentativa, os argumentos principais elaborados por Rui Barbosa como refutação aos

contra-argumentos mais comuns à época.

2.2 O PARECER EM FOCO

O Parecer foi escrito por um abolicionista e para “abolicionistas”. Pode-se afirmar que ele

fora escrito por um abolicionista, tanto pelo supracitado exame das ações e escritos de Rui

Barbosa ao longo do tempo, quanto pelo exame do Parecer ao Projeto Dantas. Em relação à

sua tese geral, o Parecer reforça o intento a uma empreitada de abolição de mais um

segmento da sociedade apresentada no Projeto Dantas, do qual Rui Barbosa era segundo

signatário e autor.

Segundo a historiadora Rejane Magalhães, nesse texto composto por dois artigos,

recomendavam-se algumas obrigações para os senhores de escravos, ao mesmo tempo em que

admitia mais direitos aos alforriados:

tratava das hipóteses da emancipação e englobava os seguintes parágrafos:

dos encargos do ex-senhor; da matrícula; do fundo de emancipação; da

localização do escravo; do direito de testar a liberdade; do penhor; da

nulidade da venda a retro; da alforria concedida pelo fundo de emancipação.

O artigo segundo tratava do trabalho, e com seus respectivos parágrafos: do

domicílio; da profissão ou emprego do liberto; da locação de serviços; da

rescisão de contrato; do salário; da duração de contratos; das questões entre

locador e locatário; da penalidade para o liberto; dos delitos e infrações; da

proibição do funcionamento de casas de compra e venda de escravos; das

colônias agrícolas para os libertos; das regras para conversão do foreiro do

Estado em proprietário dos lotes de terra (FUNDAÇÃO CASA DE RUI

BARBOSA, 1988, p.95).

Por exemplo, visando assegurar o sustento ao escravo recém-libertado que não obtivesse

ocupação nas propriedades de então, esse Projeto previa sua alocação em colônias agrícolas.

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A ideia era limitar o tempo de exploração da força servil em sessenta anos e garantir ao

consequente ex-escravo uma velhice menos indigna porque seria provida de alguns direitos:

Dos sexagenários

§ 1º. – O escravo de 60 anos, cumpridos antes ou depois desta lei, adquire

ipso facto a liberdade.

I – Se os libertados em virtude desta condição preferirem permanecer em

casa dos seus antigos senhores, será facultativo estes retribuir-lhes, ou não,

os serviços.

II – Nos casos de enfermidade, ou invalidez, dos libertos, por fôrça dêste

parágrafo, incumbe aos ex-senhores ministrar-lhes alimento, roupa e

socorros na doença; com obrigação para os libertos de se sujeitarem às

ocupações compatíveis com as suas forças.

Cessa para o senhor, porém, esse encargo. Se voluntariamente o liberto o

deixar, ou tiver deixado sua casa e companhia.

III – O ex-senhor que furtar-se ao encargo estabelecido em o número

antecedente, desamparando, na moléstia, ou na invalidez, o liberto

sexagenário, incorre na multa de 100$000, duplicada nas reincidências, e

imposta pelo juiz de órfãos, precedendo audiência por escrito do acusado.

IV – Caso o infrator não anua em readmitir à sua companhia o liberto,

compete ao juiz de órfãos prover à sustentação e tratamento do enfermo, ou

inválido, em casa, ou estabelecimento público, ou particular; correndo as

despesas por conta do ex-senhor, de quem se cobrarão executivamente.

V- Quando o estado de pobreza do ex-senhor lhe não permita satisfazer os

encargos dêste parágrafo, nº II28

.

Contudo, factual é que o Projeto Dantas (ou “Projeto Rui Barbosa” 29

) fora suplantado pela

Lei dos Sexagenários, promulgada pelo imediatamente posterior Gabinete Saraiva em 1885

(FCRB, 1988). O auditório de Rui Barbosa foi então parcialmente convencido e persuadido:

essa lei infiltrou emendas no projeto original, o que permitiu a inclusão de condições

completamente indesejáveis no Projeto Dantas. Essas diferenças são vistas, por exemplo,

quando trata da “Fixação do Valor do Escravo”, o Projeto Saraiva rezava em seus parágrafos:

§ 2º. – Os escravos de sessenta anos serão obrigados, a título de indenização

pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores por espaço de três

anos.

§ 3º. – Os escravos que, ao promulgar-se esta lei, forem maiores de sessenta

e menores de sessenta e cinco anos, logo que completarem esta idade não

serão mais sujeitos aos aludidos serviços, qualquer que seja o tempo em que

os tenham prestado, com relação ao prazo acima declarado.

§ 4º. – É permitida a remissão dos mesmos serviços mediante o valor

arbitrado para os escravos da classe de cincoenta a sessenta anos.

28

Redação do Projeto Dantas, “O Projeto Original”, constante no Apêndice do volume 11, tomo 1, FCRB. Cf.

Anexo C. 29

Cf. Anexo A, Projeto Dantas/ Rui Barbosa, manuscrito de Rui.

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§ 5 – Todos os libertos maiores de sessenta anos continuarão em companhia

de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimenta-los, vesti-los e trata-los

em suas moléstias, usufruindo os serviços compatíveis com as forças deles

salvo se os Juízes de Órfãos os julgarem capazes de subsistir, sem

necessidade de proteção de seus ex-senhores30

.

Confrontando esses excertos do Projeto Dantas (1884) e do Projeto Saraiva (1885), confirma-

se uma alteração significativa: permanecia a alforria do escravo sexagenário, no entanto, ele

ainda teria de trabalhar por mais três anos para seus antigos senhores. Tal trabalho compulsório

serviria para manter os antigos senhores indenes, servindo de compensação pela sua alforria.

Continuando o exame das diferenças entre os projetos Dantas e Saraiva, a historiadora Rejane

Magalhães aponta que havia as determinações de uma nova matrícula de escravos – o que

invalidava a lei de 7 de novembro de 1831 – e de uma taxa para o valor do escravo na razão

inversa de sua idade ( que cessava nos escravos quinquagenários no Projeto Dantas, valorada

em 400§, mas alcançava os sexagenários no Projeto Saraiva, estipulada em 200§), garantindo a

manutenção da ideia de propriedade sobre o homem (FCRB, 1988, p.33, 34).

E assim já modificado em Lei Saraiva-Cotegipe, o Projeto Dantas se enquadra na linha do

tempo31

, conforme ordenado por Lysie dos Reis Oliveira (2012, p.56):

Destacam-se as seguintes medidas legais: proibição do tráfico transatlântico

(1831), que, apesar da repressão de navios britânicos, não acabou por

tolerância das autoridades brasileiras; Lei Eusébio de Queiroz (1850) –

abolição definitiva do tráfico; lei que proibia a venda separada de escravos

casados (1869)32

; Lei do Ventre Livre (1871); Lei Saraiva-Cotegipe (1885),

conhecida como Lei dos Sexagenários; lei que extingue a pena de morte

(1886); extinção da escravidão nos Estados do Ceará33

e Amazonas (1884);

Lei Áurea (1888)34

.

O Parecer ao Projeto Dantas foi então redigido para “abolicionistas”. Rui Barbosa aludiu a

isso quando afirmou que “o escravismo revestiu, entre nós exterioridades insidiosas, que o

tornam mais perigoso que a franca apologia do cativeiro: declarou-se emancipador”

30

Cf. http://www2.camara.leg.br. 31

Cf. Apêndice, Linha do Tempo : medidas legais. 32

Decreto Nacional n.1.695, de 15 de setembro de 1869. 33

25 de março de 1884 é a data dessa alegada libertação geral,no entanto, quatro anos depois, havia registros no

Relatório do Ministério da Agricultura, de 14 de maio de 1888, de que haviam 108 escravos no Ceará

(MARSON e TASINAFO, 2011). 34

Pode-se incluir nessa cronologia a primeira iniciativa de abolição geral, na cidade de Mossoró, Rio Grande do

Norte, em 30 de setembro de 1883, após propaganda abolicionista do comerciante Joaquim Mendes. Fonte:

http://www2.camara.leg.br/a-camara/conheca/historia/imperio2.html.

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35

(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.75). Todos eram abolicionistas em certa medida, pois

quem estivesse a favor das manumissões era partícipe de uma suposta mentalidade

vanguardista e urbana.

No entanto, dentro dessa revestida imagem do abolicionismo sob o signo da juventude, da

vanguarda, do espírito cristão e do progresso, cabia uma gradação de adesão, num continuum

cujas extremidades referendavam posturas mais para moderadas, à esquerda e mais para

radicais, à direita.

O Parecer incide sobre a ideia que se propagava: não haveria um antiabolicionismo, mas sim

uma contrariedade instaurada pela atuação da instância legislativa para as manumissões

generalizadas. A razão para isso é que a associação do abolicionismo com ideias não tão

positivas, como anarquia, comunismo e regresso, deslocaria o indivíduo para o extremo

abolicionista mais conservador. Essa repercussão negativa das leis abolicionistas era,

sobretudo, projetada para as futuras relações interindividuais senhor-liberto. Conforme análise

de Mendonça (2008), haveria uma classe de “bons libertos” constituídos por aqueles cuja

manumissão era providenciada pela iniciativa dos próprios senhores. Essa era a libertação

ideal para a classe dos senhores, pois permitiria tanto a gratidão do manumitido, como a

disciplina dos que podem ser chamados de “manumitentes” ou de “promitentes

manumitidos”, aqueles que teriam um aquietamento pela expectativa de serem os próximos

contemplados (MENDONÇA, 2008, p. 252-256).

Oposto a esses “bons libertos” seriam os escravos libertos pelo Estado já que esses encarariam

senhores como inimigos que lhe negavam até então um direito que teve de ser resgatado pela

iniciativa externa, da lei. Sobre a oposição a esse segundo grupo, era marcada

cronologicamente, como é visto no próximo subtópico.

2.2.1 Cronologia legislativa emancipatória – contra-argumentos escravocratas

A interferência jurídica35

era vista como inoportuna e desnecessária, já que, em um prazo

próximo, segundo a concepção do grupo escravagista, haveria uma abolição em larga escala,

35

Não se faz uma referência ao Judiciário como um poder específico, já que então as decisões de cunho legal

eram tomadas pelo Estado Imperial, mas a uma lei específica ou a um conjunto delas.

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36

seja pela morte de toda aquela geração cativa, seja pela soma crescente das iniciativas

individuais em se alforriar. Rui Barbosa, assim ironiza:

Ninguém, neste país, divinizou jamais a escravidão. Ninguém abertamente a

defendeu, qual nos Estados separatistas da União Americana, como pedra

angular do edifício social. Ninguém, como ali, anatematizou, na

emancipação um atentado perturbador dos desígnios providenciais. Todos

são, e têm sido emancipadores, ainda os que embaraçavam a repressão do

tráfico, e divisavam nele uma conveniência econômica, ou um mal mais

tolerável do que a extinção do comércio negreiro (BARBOSA, [1884] 1945,

v.11, t.1, p.62, grifo do autor36

).

Da mesma forma que não mais se distinguiam abolicionistas e escravocratas, a dicotomia

escravidão X liberdade também era tênue. A questão era que mesmo não se desejando a

alcunha de escravagista, alguns parlamentares desejavam manter as relações de dependência

dos libertos em relação aos senhores, mimetizando a estrutura social escravocrata na dinâmica

pós-libertação. A reestruturação legislativa só seria bem aceita se manipulada a favor da

manutenção do enrijecimento social:

Quando discutiam a melhor forma de encaminhar a emancipação dos

escravos [esses parlamentares] pretendiam uma liberdade que não rompesse

de forma completa com as relações de escravidão; pretendiam uma liberdade

que preservasse muitos dos laços que a escravidão estabelecera entre

senhores e escravos. [...] Assim, ao discutirem o processo de abolição pelas

medidas encaminhadas ao poder público, aqueles parlamentares não

dissociavam, ou muito menos, não opunham escravidão e liberdade. Fosse

pela tentativa de fazer prevalecer na situação de liberdade aqueles laços que

a escravidão estabelecera entre senhores e escravos, fosse pela tentativa de

preservar as relações de escravidão para que a liberdade se introduzisse a

passos lentos na sociedade ambos os termos caminhavam comumente de

mãos dadas em suas falas e em seus projetos de emancipação

(MENDONÇA, 2008, p. 251,252).

A emancipação era vista como uma forma de revestir a escravidão de uma nova roupagem

que permitisse a demarcação de posições hierárquicas. Neste momento, o texto do Parecer

alude às disposições contrárias às leis de 1831 e 1850. Sobre isso, tem-se, em seguida,

reportada, por Rui Barbosa, a fala do deputado Cunha Matos investindo contra a Lei de 1831.

Para tal parlamentar, esse acordo era, entre outras definições, “prematuro, extemporâneo,

36

Estão sendo considerados grifos do autor aqueles constantes na edição trabalhada.

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37

enormemente daninho ao comércio nacional” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.62). Mas

ele, mesmo assim, não se considerava escravista, de modo algum:

“Por modo nenhum”, dizia êle, “me proponho defender a justiça e a eterna

conveniência do comércio de escravos para o Império do Brasil: eu não

cairia no indesculpável absurdo de sustentar, no dia de hoje e no meio dos

sábios de primeira ordem da nação brasileira, uma doutrina que repugna às

luzes do século, e que se acha em contradição com os princípios de

filantropia geralmente abraçados: o que me proponho é mostrar que ainda

não chegou o momento de abandonarmos a importação dos escravos; pois

que não obstante ser um mal, é um mal menor do que não os recebermos”

(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.62-3).

Mas não somente essa lei levantou opiniões contrárias. O Parecer também discorre sobre as

posições acerca de outras dessas medidas legais, trazendo os argumentos contrários à sua

promulgação em cada época. Sobre a Lei Rio Branco, que previa a libertação dos nascituros,

controversa desde a sua proposta tal qual o Projeto Dantas, dizia-se que preconizava a ruína

do país, que insuflaria uma divisão da mesma classe escrava, além de estarem, a partir de

então, desfeitos os vínculos hierárquicos. Adicionalmente, essa lei resultaria em desordem

social já que incitaria a desobediência dessa classe então dividida (BARBOSA, [1884] 1945,

v.11, t.1, p.66).Temendo os hipotéticos desdobramentos dessa proposta, posicionou-se o Sr.

Perdigão Malheiro:

Receio que as conseqüências desta proposta sejam piores do que os fatos que

determinaram a promulgação da lei de 10 junho de 1835; sinceramente faço

os votos mais fervorosos a Deus, para que esteja em êrro; mas esta proposta,

se fôr lei, prevejo que há de dar em resultado a insurreição dos escravos, a

princípio local ou parcial, para dentro em pouco, tornar-se geral, lastrando

como incêndio em campo sêco, como rastilho de pólvora lançando ao pé da

mina, que, apenas ateado, fará explosão! (BARBOSA, [1884] 1945, v.11,

t.1, p. 66, grifos do autor)

Mais uma vez o argumento recai para o aspecto não pontual da lei, mas da sua possível

repercussão em tempo previsto como breve: da abolição parcial para a abolição geral.

Insurgência, desordem social e ruína são elementos mais uma vez evocados. Mas além da

repetição desses mesmos argumentos, ainda contra a Lei Rio Branco, o mesmo Sr. Perdigão

Malheiro, citado por Rui Barbosa, adverte:

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38

A solução da proposta do govêrno, com êsse complexo de medidas

absolutas, tende infalivelmente a desorganizar tudo, a precipitar com os mais

graves e perigosos inconvenientes a solução, anarquizar o país, e levá-lo ao

abismo, a pretexto de emancipação dos escravos, em gravissimo dano dos

próprios escravos atuais, e da infeliz geração futura, que será, de fato,

escrava! (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 69, grifo nosso)

O jurisconsulto Sr. Malheiro (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 69) passa então a prever

danos à classe que se pretende salvaguardar pela lei. Há a soma então dos argumentos contra a

intervenção legislativa nessa fala: a lei seria então contraproducente tanto no que diz respeito

à população geral, que estaria a mercê de insurgências, revoltas, caindo num “abismo”

socioeconômico que atrairia a si também a população escrava, a qual sofreria “gravíssimo

dano” naquele momento e a longo prazo se constituiria numa “infeliz geração”.

Sobre esse “abismo” a ser escavado pela Lei Rio Branco, José de Alencar37

, fornece, entre

outros, o seguinte parecer:

Quando chegar o dia da execução desta lei, quando surgirem as graves

dificuldades, quando começarem as perturbações, que há de produzir esta

reforma, quando se desvendar o abismo, que uma ilusão fatal hoje incobre ao

gabinete; nessa ocasião S. Ex. há de ouvir, não o eco de além-mar, porém

sim a vos severa de seu partido, o grito angustiado de sua pátria, clamando,

como a voz do Senhor: “Remember what I want hee” Lembra-te do que te

advirto (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 69, grifos do autor).

É uma previsão das consequências daquela lei que é retratada como de repercussões nefastas

inevitáveis e que de tão óbvias, depois de promulgada, evocariam, com certeza, a voz dos que

advertiram contra ela. Ele, seguindo a fórmula que se pregava à época, alude ainda à

desordem, à revolução iminente a ser causada pela Lei Rio Branco, “mais uma prova de que

se pretende provocar a desordem [...] por uma ato de ditadura” – entendida como agitadora,

conspiratória, ditatorial e arruinadora do direito de propriedade (BARBOSA, [1884] 1945,

v.11, t.1, p. 70). Alencar via nessa “liberdade compulsória” uma espoliação dos direitos dos

cidadãos, uma perturbação social, um “pretexto” falido de salvação (BARBOSA, [1884]

1945, v.11, t.1, p. 70).

37

O fato de ele já ser falecido quando desse resgate de sua fala pode dar margem à suspeição de tal procedimento

por Rui Barbosa. No entanto, esse trabalho compreende que a voz de Alencar fora reportada (inclusive com o

registro entre parêntesis da manifestação de apoio dos partidários da oposição e em meio à convocação de outras

falas de outras figuras políticas, intelectuais, etc.) como forte representação de uma classe escravocrata

“moderada”.

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39

Alencar que, aliás, indispôs-se à causa escravista concernente a outras iniciativas jurídicas,

fez, segundo Rui Barbosa, outra menção contrária à lei, digna de nota. Em suas próprias

palavras:

Quando a lei do meu país houver falado essa linguagem ímpia (a da

emancipação pelo ventre), o filho será para o pai a imagem de uma

iniquidade; o pai será para o filho o ferrete da ignomínia; transformarei a

família em um antro de discórdia; criareis um aleijão moral, extirpando do

coração da escrava esta fibra, que palpita até no coração do bruto, o amor

materno! (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 70)

Dando continuidade a estas palavras, há uma extensa citação, em que José de Alencar – que

se declarou empenhado em defender não “ùnicamente os interêsses das classes proprietárias”,

mas “sobretudo essa raça infeliz [os escravos]” – ao falar da “sinistra” “ideia do ventre livre ,

até então ainda não formalizada em lei, alude ao que opinaria um “profundo jurisconsulto”, o

duque de Broglie, sobre a libertação colônias francesas. Alencar julga que a lei seria de uma

imoralidade que afetaria desde o âmbito familiar (pois iniciaria uma espécie de orfandade,

deixaria “filhos sem pais”, além de “pais sem filhos”) até a instância econômica (com

prejuízo para os proprietários que teriam somente os trabalhadores “relaxados, os péssimos

trabalhadores”, já que os melhores, mais jovens seriam libertos):

Esta idéia do ventre livre é sinistra, senhores: e admira-me que a ilustre

comissão, tendo-a estudado tão profundamente, não se lembrasse das

palavras do Duque de Broglie, escritas no memorável relatório, tantas vezes

citado que ele apresentou como presidente da comissão nomeada em 1840

para tratar da emancipação dos escravos nas colônias francesas.

Para o ilustre publicista e profundo jurisconsulto, a emancipação do ventre

equivale a criar famílias híbridas, pais sem filhos, filhos sem pais: rouba toda

a esperança aos adultos, condenando-os ao cativeiro perpétuo: desmoraliza o

trabalho livre, misturando nas habitações, livres com escravos e garante ao

proprietário unicamente os relaxados, os péssimos trabalhadores. [...]

Por mim, com a mão na consciência, lhes digo que essa instituição,

condenada e repelida, durante três séculos, que te, de existência em nosso

país, nunca, nos seus dias mais lúgubres, teve o cortejo de crimes, horrores e

cenas escandalosas, que há de produzir esta idéia da libertação do ventre

(Apoiados da oposição)

Senhores, não defendo aqui unicamente os interesses das classes

proprietárias: defendo sobretudo essa raça infeliz que se quer

sacrificar.(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 70)

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Sob a declarada prioridade de defesa dos interesses da classe escravizada, mas não abdicando

do resguardo dos direitos dos senhores, Alencar continua sua fala. Os supostos desconforto

social e degradação mútua gerados pela convivência de livres e escravos também são

mencionados, os escravos seriam prejudicados pelo desestímulo em conviver com a realidade

liberta tão próxima, mas paradoxalmente tão distante de si ao mesmo tempo que os livres, “ao

contacto dos vícios que ela [a escravidão] gera”, formariam uma nova geração contaminada.

O apelo moral é o que ele evoca: o ventre livre, seria uma ideia, incivil tanto no sentido de

bárbara, desumana, por ser obra de “paixões rancorosas” que agiriam “degradando a espécie

humana ao nivel bruto”, quanto na acepção de ilegal, segundo esse entendimento, a lei seria

utilizada para ou resultaria em fins que se desviavam das regras, ilegais, como agitação

pública, violação de direitos constitucionais, como o direito à propriedade.(BARBOSA,

[1884] 1945, v.11, t.1, p. 71,72.).

Houve, recorrendo-se a esse mesmo apelo, uma inversão – ou nas palavras do Sr. Nébias,

trazidas por Rui Barbosa, essa lei seria utilizada para propósitos injustos já que “os senhores

das escravas, por melhores provas que tenham dado da bondade do seu coração, ficam fora da

lei, não merecem proteção alguma” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 70).

Essas deduções estereotipadas, acrescidas de outras, esses “sofismas do escravismo”,

discursos “repetidos e renovados, durante mais de meio século, pelas vozes interessadas na

manutenção do trabalho servil” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.14) também foram

expressos mais tarde, em 1884, quando do Projeto Dantas, que como a Lei do Ventre Livre,

estabelece um critério etário para a abolição: desta vez não só aos nascituros deveria ser

aplicada a alforria em larga escala, mas também aos sexagenários. Para desbancar esses

sofismas, Rui Barbosa redigiu em 19 dias o parecer sobre esse projeto (do qual ele mesmo

fora autor), em 04 de agosto de 1884. As imagens de abolicionismo evocadas fornecem um

quadro da mentalidade dos que se opunham ao texto do projeto. Para além da questão moral

constantemente mencionada, com base no breve apanhado dos argumentos levantados contra

as leis abolicionistas anteriores ao Projeto Dantas, a fim de preservar essas verdades, o grupo

escravocrata lançava mão de raciocínios que especulavam, principalmente, sobre:

a. Inevitáveis prejuízos econômicos. Caso se implantasse no Brasil a mudança do modo de

produção, abandonando a tradição escravocrata, a economia do Brasil não se sustentaria,

mesmo que isso se configurasse em uma alteração pontual, como a libertação do segmento no

início (nascituros) ou no fim (sexagenários) de sua vida;

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b. Desordem pública. Revoltas, divisões internas nas camadas sociais entre trabalhadores

livres e escravos, divisões familiares, estado de insegurança generalizado, formavam as

previsões funestas;

c. A pretensa superioridade da qualidade de vida dos escravos quando comparada a dos

proletários europeus contemporâneos. Alertavam para uma piora significativa na qualidade

de vida dos escravos caso sua condição mudasse para o proletariado, trazendo a ideia forçada

da superioridade da vida de um cativo sobre a vida de um proletário europeu;

d. A ideia de que se deveria proceder a infindáveis pesquisa de opinião e estudos. Diziam

que somente depois dessa coleta seria feita a melhor opção pelo pleito popular e/ou por

análises socioeconômicas profundas; e, por fim,

e. A crença de que a substituição do trabalho escravo pelo dos colonos europeus seria

espontânea e gradativa/ ou ainda que o fim do trabalho escravo se daria via alforrias

individuais ou mortandade. Sendo assim, não se deveria fazer nada para interferir

precocemente no curso das mudanças sócio-histórico-econômicas que por si já conduziriam

para a libertação dos cativos.

Nesse sentido, a um antiabolicionista da época, por exemplo, era admitido o esquema de

pensamento materializado num excerto como este da petição feita à Câmara em 14 de junho

de 1884 pelo Imperial Instituto Bahiano de Agricultura que reunia comerciantes e lavradores:

Mais que um bem patrimonial, mais que um elemento da fortuna privada, o

escravo é uma instituição social, é um elemento de trabalho, é uma força de

produção e da riqueza nacional em fim.

A lavoura e o comércio desta província não são escravagistas, como

ninguém o é no século em que vivemos. Mas a escravidão tendo entrado

em nossos costumes, em nossos hábitos, em toda a nossa vida social e

política, acha-se por tal forma a ela vinculada que extingui-la de momento

será comprometer a vida nacional, perturbar sua economia interna, lançar

esta na indigência, na tenda do crime e no precipício de uma ruína

incontrolável (COSTA, 2008, p.82, grifo nosso).

Rui Barbosa então teria de dirigir a sua argumentação a um auditório que se autodefinia

abolicionista, mas que, diante das medidas legais já promulgadas (as quais garantiam

isoladamente modalidades diferentes de alforrias parciais), declaravam entender o Projeto

Dantas como desnecessário e abusivo – segundo eles, as medidas anteriores por si só, em um

período curto, levariam à abolição total, além de que ao ser observado o excerto acima, a

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preocupação não era com a manutenção de algo somente compreendido como propriedade

privada, mas com a manutenção de um modo de trabalho exitoso, instituído pela tradição e

crucial para a estabilidade econômica do Brasil.

No entanto, para Rui Barbosa, havia a necessidade de algo mais abrangente, da extensão das

alforrias a um outro grupo social, desta vez, aos sexagenários – por meio do Projeto Dantas.

Os contra-argumentos de Rui Barbosa no Parecer ao Projeto Dantas abrangem aspectos

éticos, econômicos, demográficos e históricos, muitas vezes interfaceados e incidem

principalmente na ideia prevista em sua supramencionada conferência, a que afirma que a

escravidão brasileira “além de ilegítima, como toda a escravidão, é também ilegal, em virtude

da Lei de 07 de novembro de 1831”. Com isso o orador evoca uma ruptura dupla, de

implicação mútua: tanto da legitimidade quanto da legalidade do sistema escravocrata.

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3 ARGUMENTAÇÃO NO PARECER AO PROJETO DANTAS – TOPOI

RETÓRICOS E TIPOS ASSOCIADOS

“A liberdade é uma restituição, e a indenização

perde rapidamente o caráter de um direito”

(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 105)

Assim como seria simplista entender a Abolição da Escravatura como um ato definitivo,

suficiente, para a posterior equiparação socioeconômica de afrodescendentes seria equivocado

perceber a iniciativa oficial de se abolir a escravatura de modo pontual, ou isolado. Conforme

já explicitado na seção anterior, a emancipação generalizada do elemento cativo, admitida em

lei, é parte de uma cadeia de projetos abolicionistas, frustrados ou legalizados. Quaisquer que

tenham sido os motivos específicos que desembocaram nesse evento de 1888, admite-se que

ele não parte de uma ideia individual/principal, seja de uma pessoa ou de um grupo

específico, como um grupo de parlamentares; parte de um descontentamento alastrado, seja

pelo descompasso entre o modo de produção e a expectativa de lucro, seja pela elevação

(mesmo que tardia) de condição humana para aquela classe escravizada, seja por percebê-la

como um subterfúgio para a derrocada do sistema político monárquico para o republicano, ou

ainda pela luta (mais ou menos organizada, mais ou menos cruenta, mais ou menos exitosa,

mas factual), protagonizada pelos próprios negros.

Equívoco seria também não entender a importância dessas leis. Mesmo de projetos que não

foram legalizados ipsis litteris, como o Projeto Dantas de 1884. Evidente que a extensão de

sua aplicação tem se colocado aquém da expectativa de alguns críticos de então ou de

determinados estudiosos de agora, ainda mais quando examinados números que relatam a sua

aplicação pro forma, mas não se pode desprezar sua importância quer para minar a

legitimidade do domínio dos senhores, quer para empoderar os escravos que poderiam

recorrer a leis que defendessem seus anseios (MENDONÇA, 2008).

Poder-se-ia examinar o texto que elenca os motivos para que o Projeto Dantas se sustentasse

de muitas outras formas, tanto pela sua extensão, quanto pelos aspectos por ele tocados. O

recorte dessa seção, no entanto, incidirá sobre a dicotomia propriedade X liberdade

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desenvolvida nos tipos e lugares argumentativos retóricos acessados por Rui Barbosa em

diálogo com seus contemporâneos parlamentares/proprietários. Faz-se uma condução dos

expedientes argumentativos ruianos mais condicionado pela organicidade do Tratado de

Argumentação: a nova retórica de Chaïm Perelman & Lucie Olbrechts-Tyteca do que pela

ordem de apresentação do Parecer ao Projeto Dantas. Enquanto que a seção anterior se

ocupa em introduzir a argumentação de Rui Barbosa com pontos da primeira parte do

Tratado, Os âmbitos da argumentação, este texto se vale, principalmente, de aspectos da

segunda e terceira partes do Tratado:

a. com a segunda parte do Tratado de argumentação: a nova retórica, intitulada O ponto

de partida da argumentação, será feita uma articulação entre os topoi (os lugares

argumentativos) anti e pró Projeto Dantas, uma exposição sobre como o texto do

Parecer elenca esses arranjos de certos valores e sua desconstrução/ rearranjo por Rui

Barbosa;

b. da terceira parte, As técnicas argumentativas, são destacados tipos de argumentos em

funcionamento e a ênfase é dada aos

i. Argumentos quase-lógicos, que podem se utilizar de “estruturas lógicas –

contradição, identidade total ou parcial, transitividade” ou ainda de “relações

matemáticas – relação da parte com o todo, do menor com o maior, relação de

frequência”(PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.220),

por exemplo. Como são menos formais, as relações de preponderância não são

fixas. Desses tipos de argumentos, o destaque é dado aos topoi e aos

procedimentos de autofagia. Além desses, utilizam-se os

ii. Argumentos baseados na estrutura do real que se oporiam a esses que se

relacionam com a lógica e a matemática para se utilizar de estruturas que

articulam “juízos possíveis e outros que se procura promover” (PERELMAN E

OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.298), sendo menos racionais, mais

objetivos que aqueles; mais especificamente, das ligações de coexistência, que

“relaciona uma essência com suas manifestações” (PERELMAN E

OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.333), manobrando a essência do

prestígio, como o argumento de autoridade;

iii. As ligações que fundamentam a estrutura do real (como o uso de analogias e

as argumentações pelo exemplo, pelo modelo e pelo antimodelo) que se

ancoram em fatos de conhecimento amplo para instaurar uma regra mais geral.

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A analogia tem a função de apresentar uma realidade conhecida de modo

estruturado, sendo um recurso de presença, na medida em que vivifica na

mente do auditor a tese apresentada; e

iv. A dissociação das noções que se opõe à solidariedade de técnicas

argumentativas, com a abordagem do par aparência-realidade.

Esse é um recurso analítico necessário, que consiste em “separar articulações que são, na

verdade, parte integrante de um mesmo discurso e constituem uma única argumentação de

conjunto”. (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.211). Não é de se

estranhar, portanto, que os assuntos do Tratado se tangenciem vez por outra, ou que possam ser

percebidos como um continuum não como uma oposição – vide a autofagia e o argumento de

autoridade que podem ser reunidos pelo uso do traço de prestígio, seja do raciocínio lógico ou

de um elemento social – já que a preferência em seguir a macro-ordem dessa obra não implica

necessariamente uma análise engessada pelos limites didáticos de cada parte desse texto.

3.1 DIREITO DE PROPRIEDADE EM QUESTÃO

A fim de sedimentar o ponto do não pecúlio aos então proprietários de escravos, Rui Barbosa

recorre ao desmantelamento dos pressupostos argumentativos que sustentavam, anos antes, a

Lei do Ventre Livre, denominada pelo próprio parlamentar, devido à polêmica gerada, como

precursora do Projeto Dantas38

: “Bem vê, pois, a Câmara que do escândalo imputado ao

projeto Dantas alei de 28 de setembro poderiam bem disputar as honras de mãe [...]”. No

parágrafo seguinte, o próprio Rui Barbosa explica qual seria a matriz presente nas discussões

sobre essa lei que poderiam ser estendidas ao Projeto Dantas: “A negação do direito de

propriedade ao senhor em relação aos escravos transluz diàfanamente por entre o texto da lei

de 28 de setembro” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.96). O ponto nevrálgico é a

assunção ou não da ideia de propriedade sobre a escrava e também sobre o fruto de seu

ventre, direito de propriedade esse posto em questão em momentos posteriores.

38

Mesmo que haja constante recorrência aos argumentos e contra-argumentos mobilizados quando da Lei do Ventre

Livre e repetidos na época da defesa do Projeto Dantas, isso não significa que ela seja considerada como uma lei

completa, sem falhas. Os seus artigos ainda resguardavam o direito de propriedade por se preocupar com

indenização pecuniária, mais rara, ou por serviços prestados – o que daria a efetiva liberdade ao cativo a partir de

sua segunda década de vida (21 anos), algo mais fequente. Por isso, na década de 1880, dizia-se que essa lei

“respeitou o principio da inviolabilidade do dominio do senhor sobre o escravo” (NABUCO, [1883], 2011, p.68).

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46

Tanto para o Projeto Dantas quanto para seu respectivo Parecer, o prisma da contestação do

direito de propriedade se justifica da seguinte forma: o caminho escolhido seguirá um fato,

uma opinião sedimentada pela tradição, pelos hábitos do povo e jurídicos, ou seja, pelo que é

comumente aceito nessas instâncias – recorrendo ao texto da Constituição Imperial (ao direito

português e ao brasileiro)39

assim como ao da sua antecessora, a Constituição Romana, e à

opinião circulante, esclarecendo questões como a natureza dessa propriedade escrava e da

indenização por valores parciais decrescentes. Busca-se por uma veracidade e uma via de

assentimento construída pelo tempo, por ele solidificada e por isso amplamente acessada, por

ser uma verdade submetida “aos interesses criados ao abrigo das instituições ou dos costumes

do povo” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.121):

A questão que se contende entre a indenização e a gratuidade, não é uma

questão de direito, mas uma apreciação do interesse público que aconselha

se repeite, até onde a ordem geral e a fortuna nacional o exigirem, a boa fé

de interesses criados ao abrigo das instituições ou dos costumes do povo.

É sob este aspecto que encararemos a libertação dos escravos de sessenta

anos.” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.121)

O orador Rui Barbosa parte então do ponto de assentimento compreendido como comum, de

aceitação ampla pelo seu auditório imediato, composto por aquela sessão plenária numérica e

politicamente representativa da sociedade de então, “o conjunto daqueles que o orador quer

influenciar com a sua argumentação” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958]2005,

p.22). Ele percebe seus auditores não só como capazes de compreender essa verdade

instituída, mas como partícipes, cada membro em diferentes graus, na sua manutenção, já que

essa verdade, por ser a opinião da maioria – e possivelmente, de certo modo, a opinião geral,

de todos, universal – deve tocá-los. Sobre os fatos e as verdades e sua relação com o

auditório, Perelman e Olbrechts-Tyteca, assim expressam-se:

39

Após a Constituição Luso-Brasileira de 1822, válida para o então Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves,

o Brasil, ao todo, conta com 07 Constituições: a primeira promulgada em 1824, pós-independência de 1822, por

D. Pedro I instituiu quatro poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador, predominante) e o voto

indireto, não secreto e censitário (por renda); a segunda de 1891 (da qual Rui Barbosa foi revisor, pós-

proclamação da República, em 1889), trouxe como modificações a queda de instituições da Monarquia, como o

Poder Moderador, o Senado Vitalício e o Conselho do estado, estatuindo o Presidente como chefe do Poder

Executivo, o voto por idade (homens a partir dos 21 anos), e o limite de um quadriênio para o mandato do

Presidente; a terceira e 1934, pós- revolução de 30 e pós- República Velha, contemporânea da ascensão de

Getúlio Vargas, regulamentou, dentre outros, os aspectos trabalhistas e incidiu sobre reformas socioeconômicas;

a quarta, de 1937, veio em decorrência da implantação do Estado Novo, com um golpe de Estado, era

centralizadora, autoritarista; a quinta, de 1946, veio com o fim desse regime; a sexta, de 1967, cuidava

principalmente e questões de segurança nacional do regime ditatorial; e a atual, de 1988, pós- Diretas Já! de

1980, com algumas cláusulas irrevogáveis, como as eleições diretas e o voto universal, redemocratizando o

Estado. Cf. http://www.brasil.gov.br/sobre/o-brasil/constituicao/constituicoes-anteriores.

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47

Entre os objetos de acordo pertencentes ao real distinguiremos, de um lado,

os fatos e as verdades, de outro, as presunções. Não seria possível, nem

conforme ao nosso propósito dar ao fato uma definição que permita, em

todos os tempos e em todos os lugares, classificar este ou aquele dado

concreto como sendo um fato. Cumpre-nos, ao contrário, insistir que, na

argumentação, a noção de “fato”é caracterizada unicamente pela idéia que se

tem de certos gêneros de acordos a respeito de certos dados: os que se

referem a uma realidade objetiva e designariam [...] “o que é comum a vários

entes pensantes e poderia ser comum a todos”. (PERELMAN e

OLBRECHTS-TYTECA, [1958]2005, p.75).

Tal verdade não pode ser, portanto, um fato atemporal e onipresente já que diz respeito ao

momento histórico e local imediatos de determinado auditório. Não pode ser ainda uma

verdade categórica, única e igualmente assumida para cada membro do auditório, é uma

verdade que mesmo e porque assumida com variações de aderência apresenta baixo risco de

perca de status de fidedignidade. Por esse caráter quase incontroverso, não se busca adesão ao

fato porque ele já é concebido como tal, porque “A adesão ao fato não será, para o indivíduo,

senão uma reação subjetiva a algo que se impõe a todos” (PERELMAN e OLBRECHTS-

TYTECA, [1958] 2005, p.75). E, o empenho em se utilizar do fato como recurso

argumentativo imponente, a princípio indiscutível porque é a base do acordo universal, é para

que o Projeto Dantas seja adotado – ainda que essa decisão de adesão escape ao orador,

cabendo a cada parlamentar ser movido pessoalmente pelo convencimento consentido.

3.2TOPOI RETÓRICOS NO PARECER AO PROJETO DANTAS

Perelman e Olbrechts-Tyteca compreendem os lugares-comuns, ou os topoi, como princípios

argumentativos, como “ponto de partida das argumentações” (PERELMAN e OLBRECHTS-

TYTECA, [1958] 2005, p. 105, grifo dos autores) “primeiros acordos no campo do preferível,

dos quais todos os outros poderiam ser deduzidos e que eles permitiriam, portanto, justificar”.

Sendo assim, o acordo seria efetivado com preferências pessoais, por sua vez alicerçadas por

preferências sociais: “Quando um acordo é constatado, podemos presumir que é fundado

sobre os lugares mais gerais aceitos pelos interlocutores” (PERELMAN e OLBRECHTS-

TYTECA, [1958] 2005, p. 95,96). Esses lugares, que podem ser entendidos como indicações

classificatórias de argumentos, “são premissas de ordem geral utilizadas para reforçar a

adesão a certos valores” e hierarquias (ABREU, 1999, p. 85). Quanto à sua classificação,

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puramente didática e não exaustiva, os lugares-comuns podem ser agrupados como sendo

lugares de quantidade e lugares de qualidade. Motivos quantitativos são o principal argumento

da primeira classe de lugares, segundo a qual “uma coisa é melhor do que a outra por razões

quantitativas” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.97); opondo-se a ela

e valorizando o único, o raro, o original, o que não pode se repetir, os lugares de qualidade

“contestam a virtude do número” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.97). Há

ainda exemplos de subclassificações que são alocadas nesses dois tipos, os lugares de ordem,

de essência, de pessoa e do existente. Em linhas breves:

a) os lugares-comuns de ordem são os que afirmam que uma coisa é melhor do que a outra

pela precedência ou pela casualidade;

b) os de essência são os que lidam com valores éticos e/ou estéticos, os que materializam

melhor um padrão, uma essência, sendo, por essa materialização, portadores de um valor

intrínseco;

c) já os lugares de pessoa, que se originam dos valores da pessoa, recorrem à argumentação

que prima pelas pessoas, pelo humanitarismo, pelo empenho, pelo mérito, pela dignidade e

pela autonomia, por exemplo; e

d) os do existente, por fim, primam pelo que existe, o real, o concreto, não pelo que não

existe, o possível, o utópico.

Tais categorias de ideias são mobilizadas em diferentes arranjos de ideias, isto é, em diversas

combinações de lugares, por todos os auditores, e não seria diferente com aqueles para os

quais Rui Barbosa dirigia a sua argumentação, mesmo sendo alguns deles “abolicionistas”

adversários. Caberia a ele lançar mão dos lugares preferidos de seu auditório e é esse o

exercício que pode ser observado a seguir.

3.3VALORES E HIERARQUIAS NO PARECER AO PROJETO DANTAS

A questão da natureza da propriedade do ventre da escrava serviu de mote para que Rui

Barbosa direcionasse a questão da propriedade ao sentido amplo. O raciocínio partia da ideia

de que se a propriedade do nascituro poderia ser questionada, sendo esse questionamento um

caso particular convertido em realidade jurídica e, com certo alcance, em realidade social,

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49

então a propriedade em geral também poderia sofrer a mesma abordagem e obter os mesmos

desdobramentos – ou, ao menos, poderia ser encontrado um precedente que validasse o

questionamento da natureza da propriedade de um outro caso particular, o dos sexagenários.

Para tanto, buscou-se a refutação dos argumentos sustentados pelos não partidários da Lei de

1871 na época de sua proposta (ou por aqueles que só aderiram à lei de modo pro forma). Eles

diziam que “o fruto da escrava” equivaleria, em termos de posse, ao fruto de quaisquer fontes

econômicas, como gado ou lavoura:

Os adversários da lei de 1871 sustentavam então:

1º. Que o fruto da escrava pertence ao senhor pelo mesmo título que os da

sua lavoira, ou os do seu gado.

2º. Que a mera possibilidade do nascimento, constitue, para o proprietário da

escrava, uma propriedade perfeita.

3º. Que a pretensa indenização da lei de 28 de setembro não indenizou os

senhores expropriados (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 90).

O nascimento em potencial, em si, já se configuraria como propriedade, supostamente

prejudicada pela troca por uma indenização não compensatória prevista em lei (títulos de

renda temporária em 600$000 ou trabalho compulsório do ingênuo até os 21 anos). Por esse

motivo, era evocado o partus sequitur ventrem como princípio mantenedor da legitimidade

dos direitos sobre os nascidos pós-lei emancipatória – e, portanto, asseverativo – que não

poderia ser desconsiderado por “razões de transcendência política, ou meramente

humanitárias, como o disse o parlamentar Paulino de Sousa:

Considerada juridicamente, a injustiça da disposição é atentatória do direito

de propriedade [...] A questão não é de direito natural, mas de direito

positivo, e à luz dos princípios dêste é que se deve discutir. O que cumpre,

pois, averiguar antes de tudo, é se, com relação ao direito de propriedade, a

legislação sujeitou esse ser humano, sôbre que ela recaiu, aos mesmos

princípios e sistema que em geral se estabelece.

O direito de propriedade abrange tudo quanto se contém naquilo que é dele

objeto: quer seja o próprio objeto, quer o que dele resulte, e decorra, ainda

mesmo como uma possibilidade, ou eventualidade [...]

As escravas são propriedade, e propriedade são os filhos que tiverem, como

são os que têm tido até hoje, sujeita aos mesmos princípios [...] sejam quais

forem as razões de transcendência política, ou meramente humanitárias, que

nos levem a extinguir a escravidão, não o podemos, contudo, fazer, sem

indenizar os senhores dos valores dos respectivos escravos: como

deixaremos de aplicar o mesmo princípio no tocante aos filhos, que

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nascerem das escravas na constância do cativeiro? Não tem, porventura, o

nosso direito reconhecido sempre, como inconclusa, a aplicação às escravas

do axioma do direito partus sequitur ventrem? (BARBOSA, [1884] 1945,

v.11, t.1, p.91-93).

O partus sequitur ventrem, termo latino que vertido em português seria “o parto segue o

ventre” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.132), foi um princípio jurídico utilizado tanto

por Paulino de Sousa nesse excerto quanto aos demais opositores à Lei do Ventre Livre para

legitimar a extensão do domínio do senhor aos descendentes de suas cativas, numa relação

análoga à posse das crias de seu gado, ou aos frutos de sua lavoura. Portanto seria um

princípio impeditivo da alteração legal proposta em 1871. Não poderia haver “dois pesos e

duas medidas”, o direito de propriedade teria igual funcionamento à tudo aquilo que se

entendesse como posse, quer pessoas, quer coisas. Outro parlamentar reportado por Rui

Barbosa, Pereira da Silva40

, assim ironiza:

[...] O nobre ministro da Agricultura levantou uma teoria nova, desconhecida

na nossa legislação civil, no nosso direito público, e é que a escrava é uma

propriedade sui generis, não igual a qualquer outra propriedade, e que,

portanto, não se lhe estende o direito ao futuro fruto, não existente e não

criado, e se pode aplicar o princípio de se conceder a liberdade a esse ente

não conhecido, sem ofender as regras e doutrinas da propriedade. Onde

distinguiriam a Constituição e as leis vigentes essa espécie de propriedade

nova? Onde a encontra o nobre ministro, para achar-lhe diferença da mais

propriedade? O direito romano, que é o exemplar de tôdas as legislações,

suma sabedoria escrita, continha o incontestável preceito do partus ventrem

sequitur. Não é propriedade o fruto da árvore, o fruto da terra, a colheita da

sementeira?[...] A Constituição só permite a desapropriação mediante a

indenização. Vossa proposta nenhuma oferece; porque a soma de 36$0 por

ano, e só durante 30 anos, é a paga da criação e da educação do menor até a

idade de 8 anos, e tanto que só paga os que chegarem vivos a essa idade.

(Apoiados) (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.91-95).

Insta, esse parlamentar, para que se aponte a procedência da diferenciação entre a propriedade

escrava e a propriedade de qualquer outro tipo para que o direito à indenização escape ao

senhorio. A escrava não seria uma propriedade “sui generis”, mas igual a qualquer outra. Não

haveria precedência legislativa e por isso mesmo nem lugar apropriado para se tratar desse

novo “ente”. Mas não era somente o partus sequitur ventrem o preceito trazido à lembrança.

Nos tempos do Projeto Dantas, outro disposto evocado como crítica foi o statuliberi, os

cativos jovens, em sua totalidade, com o sancionamento da lei proposta, mudariam seu status

de escravos para homens libertos em potencial, já que estariam aguardando a condição de

40

Joaquim Manuel Pereira da Silva.

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completarem 60 anos para obterem a liberdade, assim como o eram os alvos da Lei do Ventre

Livre. Os opositores entendiam o statuliberi assim como o parlamentar Afonso Celso41

cuja

transcrição da fala no Parecer assim o define:

Decretado que entrarão no pleno gôzo da liberdade todos os escravos, que

completarem uma certa idade, qual é a situação dos mais moços, segundo o

direito? Já não são escravos, passam a statuliberi, isto é, a homens que

adquiriram a liberdade, que já possuem esse direito inauferível, cuja

efetividade, entretanto, fica dependendo de uma condição de tempo.

(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.130).

Seriam esses homens, então, a rigor, pela interpretação dos discordantes do Projeto, homens

com direito à liberdade na condição escrava, passíveis de determinados direitos antes

usufruídos somente pelos cidadãos, escapando ao tratamento dados aos escravos, como as

punições com açoites42

, a venda e o aluguel. Haveria com isso a violação do direito à

propriedade não somente dos escravos que completassem 60 anos, mas de todos os outros,

que já não poderiam mais ser encarados como submetidos. Tudo isso ameaçado e fruto de um

projeto calcado em transformações que punham em contradição preceitos legais e de

motivações humanitárias.

Há, com a recorrência tanto ao statuliberi, quanto ao partus sequitur ventrem, uma

hierarquização entre valores jurídicos e filantrópicos: a tradição em jurisprudência deveria ser

mantida em detrimento de motivações humanitárias ou extraconstitucionais. O auditório, o

plenário, então elege, não somente valores independentes – não é a força da Carta Magna

escolhida como posição argumentativa isoladamente –, mas sua configuração relacional com o

valor amor à humanidade, este ordenado em grau inferior àquele por representar fraca adesão:

As hierarquias de valores são, decerto, mais importantes do ponto de vista da

estrutura de uma argumentação do que os próprios valores. Com efeito, a

maior parte destes são comuns a um grande número de auditórios. O que

caracteriza cada auditório é menos os valores que admite que o modo como

os hierarquiza (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.92).

41

Afonso Celso de Assis Figueiredo, visconde de Ouro Preto (1836/1912), chegou à Câmara aos 28 anos de

idade, em 1864e participou do Partido Liberal. De vida política intensa, chegou ao cargo de Conselheiro de

Estado. Cf. ATAS DO CONSELHO DE ESTADO PLENO – TERCEIRO CONSELHO DE ESTADO, 1880-

1884. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/pdf/ACE/ATAS11Terceiro_

Conselho_de_Estado_1880-1884.pdf> . Acesso em: 10 de janeiro de 2014.

42

Os açoites só cessaram como punição aos escravos com a Lei 3.310 de 15 de outubro de 1886, que revogou o

artigo nº 60 do Código Criminal de 1830 e a Lei nº 4 de 10 de Junho de 1835 e determinou que “Ao réo escravo

serão impostas as mesmas penas decretadas pelo Codigo Criminal e mais legislação em vigor para outros

quaesquer delinquentes”.

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Essa organização hierarquizante não é necessariamente fixa, visto que lida com valores

individuais, de independência relativa no que concerne à sua adesão, e define a argumentação

mais eficaz para determinado auditório. Os valores, mesmo que amplamente admitidos,

sofrem uma adesão de intensidades diferentes numa escala de predominância.

O poder legítimo, endossado pela lei suprema nacional, que, por sua vez, constitui-se em um

elo de uma cadeia de longa tradição jurídica, é acessado por ser de ampla aceitação, a

princípio, em detrimento de manifestações de filantropia. Desse modo, para esse auditório

visado pelos parlamentares oponentes, os lugares-comuns de essência e de ordem sobrepõem-

se e sobrepujam o de pessoa: a precedência dos elementos do partus sequitur ventrem e do

statuliberi que atravessaram séculos e se mantiveram como componentes/princípios

constitucionais no Brasil do séc. XIX (Constituição essa que por si mesma já evoca

autenticidade), seriam superiores a qualquer disposição humanitarista condescendente,

anulando-a. Os traços de tempo e duração evocam o lugar de quantidade, enquanto que os

lugares de estabilidade e segurança indicam qualidade. Esses últimos poderiam ainda ser

qualitativamente reunidos como lugar do único:

O único é, nesse caso, o que pode servir de norma: esta adquire um valor

qualitativo em relação à multiplicidade quantitativa do diverso. Opor-se-à a

unicidade da verdade à diversidade das opiniões [...] Esse mesmo lugar serve

a Pascal para justificar o valor do costume: “Por que se seguem as antigas

leis e as antigas opiniões? Será que são as mais sadias? Não, mas são únicas,

e nos estirpam a raiz da diversidade (PERELMAN e OLBRECHTS-

TYTECA, 2005, p.104-105).

O único, então, opõe-se e é posto em grau superior ao diverso. Uma opinião de larga

aceitação, com estatuto de verdade tem muito mais força argumentativa do que opiniões

particulares diversas. O valor imperativo do único, nesse caso, mescla-se com o valor

irrefutável de fato, de verdade, já que o único é a norma, o partur sequitur ventrem/ o

statuliberi, como metonímia da lei. E o único, nesse caso, também é a essência, que melhor

materializa a norma, a legislação. O lugar-comum qualitativo de essência também pode ser

evocado como via analítica, já que se superpõe.

Pode-se perceber o quantitativo como valoração por elementos de natureza contrária ao

qualitativo, mas ao mesmo tempo complementar. Só se pode entender o qualitativo “único”

como “norma”, como tradição, pelo seu uso quantitativo, frequente, costumeiro, “normal”:

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O que se apresenta mais amiúde, o habitual, o normal, é objeto de um dos

lugares mais utilizados com mais frequência, a tal ponto que a passagem do

que se faz ao que é preciso fazer, do normal à norma, parece, para muitos,

ser natural. Apenas o lugar da quantidade autoriza essa assimilação, essa

passagem do normal, que expressa uma frequência, um aspecto quantitativo

das coisas, à norma que afirma que tal frequência é favorável e que cumpre

conformar-se a ela [...] a apresentação do normal como norma exige,

ademais, o uso do lugar da quantidade (PERELMAN e OLBRECHTS-

TYTECA, 2005, p.99).

Percebendo que recorrer somente ao caráter humano dos escravos sexagenários não seria o

suficiente para rebater os argumentos dos opositores ao Projeto, Rui Barbosa, no Parecer, faz

uso dos mesmos lugares-comuns. Ele reconhece, inicialmente, a incompatibilidade dos

valores em jogo e que a escolha de um como subordinante resulta na exclusão do outro, o

subordinado (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.94). Contudo, ele

admite isso apontando falhas de compreensão do texto legal e estabelecendo comparações

com outros dispositivos jurídicos de sociedades também respeitadas. Primeiro, Rui Barbosa

parte para a refutação dos motivos de protesto dos senhores: direito de propriedade e valor da

indenização.

3.4 VALORES, HIERARQUIAS E TIPOS ARGUMENTATIVOS: QUESTIONAMENTO

DO DIREITO DE PROPRIEDADE

Diferente do que se afirmava, segundo o próprio Rui Barbosa, a Lei de 28 de setembro de

1871 negava o direito de propriedade, já por não denominar assim, como “propriedade”, a

posse do senhor43

. Sendo assim, os proprietários já iniciavam seu pleito por algo

supostamente legal, mas que sequer havia sido textualmente mencionado na lei dentro da

concepção alegada, dado que o parecer sobre a proposta de 12 de maio de 1871, apresentado

no dia 12 de junho do mesmo ano à Câmara dos Deputados, já definia que propriedade não

era uma noção aplicada a pessoas:

Varrendo, pois, da mente, essas associações de ideias ad terrorem, já

desacreditadas aos olhos do senso comum, investiguemos com a

jurisprudência e a história parlamentar, os caracteres que definem, entre nós,

a concepção do direito do senhor sôbre o escravo.

43

Isso também não é ponto pacífico. Porém é uma afirmação extraída da fonte.

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É uma verdadeira propriedade? de que natureza? em que limites?

A legislação civil que herdamos da metrópole nunca legitimou a escravidão.

Contra o disposto no direito romano ( L. 5, §2, L.24 D de statuhomin e L. 9D

de Decur), a Ord. 1, I. IV, t. 82 pr. e o Alv. de 30 de julho de 1608

condenaram o cativeiro, afirmando que o legislador sempre o considerara

contrário à natureza. [...]

Quanto à Constituição do Império, esta não contém no seu texto uma palavra

que pressuponha o cativeiro. Logo, se mais uma vez alude a libertos, parece

claro que, longe de estender-se ao futuro, não se referiria senão aos pre-

existentes. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.98-99, grifos do autor).

Admitindo-se que a lei fizesse referência à propriedade, essa não seria à propriedade escrava,

já que ela sequer qualificava assim, segundo Barbosa, aquele seguimento social. E mais, foi

ressaltado que todo o histórico legislativo negava esse status de propriedade ao elemento

escravizado. Havia referência nominal a libertos o que demanda um deslocamento de visão

para os então vistos como posse. Já acerca da indenização, Barbosa afastava a de natureza

pecuniária e ressaltava que a lei só fazia menção à prestação de serviços por sete anos.

Revisitando a legislação civil derivada da metrópole, que, por sua vez, provinha do direito

romano (ou seja, fazendo o mesmo trajeto argumentativo que os seus opositores), ele não

encontra amparo legal para a escravidão, considerando o cativeiro “contrário à natureza”

(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, pp.98-99). Nas palavras de Barbosa:

Sob o direito romano mesmo não foi senão por uma analogia imperfeita que

se estendeu a autoridade do senhor sôbre o escravo, a designação de

propriedade, dominium. Nunca a legislação da antiga Roma desconheceu no

escravo o homem: a assimilação entre escravo e a coisa circunscrevia-se à

subordinação análoga de ambos ao arbítrio do senhor. Havia, porém,

relações de família que se respeitavam no cativo; a injúria infligida ao

escravo tinha uma repressão penal (L.1§3 de injur.) no actio injuriarum. A

possibilidade de emancipação e o direito a uma espécie de patrimônio

pessoal no pecúlio distanciavam infinitamente o domínio sôbre as coisas do

que se exercia sôbre os homens privados da liberdade (BARBOSA, [1884]

1945, v.11, t.1, p. 102, grifos do autor).

Esse disposto, anos antes, havia permitido a emancipação dos indígenas, primeiro

pontualmente, no Pará e no Maranhão em 6 de junho de 1755, depois, em geral, em 8 de

março de 1758. Assim sendo, os aspectos pleiteados supostamente amparados legalmente, o

direito de propriedade e a indenização pecuniária, segundo Rui Barbosa, não encontravam

respaldo jurídico tanto que havia o precedente da alforria indígena.

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55

Aos que contestavam o caráter constitucional da alforria não indenizada financeiramente foi

contestado o caráter constitucional da escravidão. Rui Barbosa recorreu à retorsão, segundo a

qual “é preciso uma interpretação do ato pelo qual o adversário se opõe a uma regra”

(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.232). A retorsão é uma modalidade da

autofagia que “opõe [...] uma regra a consequências resultantes do próprio fato de ter sido ela

afirmada”(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.231).

Mas o procedimento argumentativo não se limitou a tal uso de autofagia em que se provoca a

debilidade argumentativa “ao mostrar as incompatibilidades reveladas por uma reflexão sobre

condições ou consequências de sua afirmação” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA,

2005, p.233). Esse é apenas um dos modos de se refutar um argumento quase-lógico: isso

poderia ser feito também de outros modos como indicação de contradição ou de fuga “do

raciocínio rigoroso” (raciocínio lógico) por se recorrer a aspectos não lógicos,

desprestigiados, como os passionais (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.220).

Ainda refletindo sobre a Constituição Romana, habitualmente posta como base para a

legitimidade do sistema escravocrata de então, Rui Barbosa entende que tal constituição vê o

elemento escravo como reificado somente quando se trata de relações hierárquicas, de haver

subordinação do escravo para com o senhor. No entanto, o aspecto humano do escravo era

preservado, por exemplo, quando se asseguravam, legalmente, suas relações familiares. De

acordo com o que sinaliza Antônio Suárez Abreu (2007, p.28), “quando queremos argumentar

pela analogia, utilizamos como tese de adesão inicial um fato que tenha uma relação analógica

com a tese principal”. O étimo do termo analogia traria seu sentido de proporção, de

igualdade de relações, todavia, em vez dessa ideia matemática evocada, o uso da analogia é

embasado na relação de semelhança, de identidade entre os elementos de dois pares ou mais.

Desse modo, aqueles opositores quando revisitavam o Direito Romano para validar o estatuto

social do cativo, viam as seguintes analogias:

I. A propriedade do homem sobre o outro homem está para a Constituição brasileira

assim como o dominium estava para o Direito Romano.

II. A propriedade estava para as pessoas no Direito Romano assim como a

propriedade estava para as coisas no Direito Romano.

A analogia seria constituída pela correlação de elementos (mais tipicamente quatro) em que

dois constituiriam o tema e os dois outros, o foro. O tema e o foro teriam de necessariamente

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se configurar em relações paralelas, “A está para B assim como C está para D”, sendo o foro o

elemento mais conhecido, servindo para esclarecer o tema ou “estribar o raciocínio”

(PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p.424). O conjunto A e B, que formaria o

tema, seria a propriedade e a Constituição brasileiras ou propriedade sobre pessoas; o

conjunto C e D, para dar suporte ao raciocínio, o foro, seria o dominium e o Direito Romano

ou propriedade e coisas, assim:

Quadro 01 – Analogias no Parecer ao Projeto Dantas

ANALOGIAS TEMA A TEMA B FORO C FORO D

I. propriedade

Constituição

Brasileira

dominium Constituição

Romana

II. propriedade sobre

pessoas

Constituição

Romana

propriedade sobre

coisas

Constituição

Romana

A imperfeição na analogia se dava porque, segundo Barbosa, não eram, mais uma vez,

resguardadas as diferenças de submissão ao senhor. O alcance da subordinação era mais

restrito quando aplicado a pessoas que, diferente de coisas, tinham “a possibilidade de

emancipação e o direito a uma espécie de patrimônio pessoal no pecúlio” (BARBOSA, [1884]

1945, v.11, t.1, p. 102). Então já havia diferenciação e não analogia entre a propriedade de

pessoas e coisas desde Direito Romano. A formulação da analogia pelos opositores ignorava

aspectos que retiravam sua validade.

Nesse momento, Barbosa adensa sua argumentação, por não colocar os lugares de ordem e de

essência de um lado, o mais forte, e o lugar de pessoa do outro lado, no ponto mais

vulnerável. Ele não só não inclui o caráter humanitário como uma prerrogativa da lei, mas

expõe que o lugar de pessoa é mais que reforçado pela constituição, original e essencialmente

fidedigna: o aspecto humano deveria preceder a qualquer outro. Então o humano,

originalmente portador da livre existência, essencialmente senhor da propriedade de si, estava

sendo espoliado quando submetido. “Pode-se dizer que uma só, dentre todas as propriedades

existentes, ou possíveis, é anterior e superior à lei, independente dela e inacessível à sua

soberania: é a propriedade do homem sôbre si mesmo” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.

103). Sendo assim, por um lado, a liberdade seria restituição de direito intrínseco, propriedade

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essa tida como acima de qualquer deliberação jurídica; por outro lado, a indenização aos

senhores deveria ser repensada já que a propriedade sobre outrem é considerada violação

grave da propriedade anterior e superior, a autopropriedade.

Quanto ao statuliber, que seria o novo status do anteriormente escravo se enquadrado no texto

do Projeto Dantas, condição nova essa que, especulava-se, comprometeria o direito de

propriedade de sujeitos que não mais seriam escravos, Rui Barbosa também aponta um

equívoco de interpretação. O statuliber era um significante de significados mutáveis conforme

a época. Na própria constituição romana, origem de aplicação do termo, o statuliber é

qualificado como “o servo, que se acha destinado a ser livre a certo tempo, ou cumprida certa

condição (L. 1º. Pr. D. de statulib.)” a ser definida segundo acordo particular entre senhor e

servo “não de uma providência geral, instituída em lei” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1,

p. 130, grifo do autor). A constituição romana não modificava o estatuto de escravo:

“Statuliberi a coeteris servis nostris nihilo pene differunt. A tal ponto se estendia essa

equiparação, que os filhos da statuliber caíam em cativeiro. Statuliber quidquid peperit, hoc

servum heredis est”(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 132, grifo do autor). A percepção

do código da Luisiânia, posterior ao romano, sobre o statuliber, determinava que o escravo

seria libertado somente após os 30 anos de idade, e o via como um indivíduo, que após

liberto, e se incapaz de prover sua própria subsistência, a ser (obrigatoriamente) amparado

pelo seu ex-senhor.

No Brasil, a legislação, desde 1871, previa a alforria num prazo bem inferior a Luisiânia, e

não percebia o fruto do ventre na mesma condição servil de sua progenitora, mas nem por isso

era um disposto legal de menor importância, como não o seriam quaisquer outros em

comparação com as constituições de/para outros locais e/ou de/para outras épocas44

, sendo

assim:

Por que regra superior de jurisprudência o Digesto [lei romana], a lei da Boa

Razão e o código da Luisiânia hão de inibir a autoridade legislativa de criar

uma condição nova, em que o escravo, não obstante a promessa legal da

liberdade futura, não seja nem o statuliber das instituições romanas, nem o

da entidade figurada pelo Sr. Perdigão Malheiro [o homem livre em

condição provisória escrava, com direitos de homem livre, em prejuízo da

propriedade dos senhores]? Se uma lei hoje lhe afiança essa expectativa de

liberdade eventual ou condicional, que constituía o statuliber, mas, ao

mesmo tempo, o declarava escravo, não é evidente que sua capacidade

44

Posteriormente, na 2ª. Conferência da Paz em Haia, convocada pelo Czar da Rússia, Rui Barbosa, como

representante brasileiro, insistiu nesse princípio de equidade jurídica das nações soberanas, contrário à

equivocada percepção de superioridade das grandes potências. Como é sabido, atuação diplomática nessa

convenção rendeu-lhe o famoso título “Águia de Haia”.

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jurídica há de reger-se por essa lei, não pelas antigas que ela implìcitamente

alterou?(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 131, grifo do autor).

Então não era o caso de a legislação que assegurava os interesses dos senhores ter de ser

ignorada, e nem seria o caso de se recorrer a uma compensação que poria em risco, inclusive,

o erário público, mas era necessária acurácia nas soluções de polêmicas dessa natureza. O que

era convencionado na época, a “tendência emancipatória”, norteia a argumentação juntamente

com o texto da lei, tão legítima quanto outros sistemas legais e portadoras de especificidades

que atendiam aos reclames locais. Legislação essa que já questionava o direito de propriedade

escrava desde quando previa que o valor do escravo poderia ser reduzido à metade, o que

abria o precedente para outros fracionamentos, que poderiam ser gradualmente decrescentes

até a gratuidade, nesse último caso, afastando totalmente o direito de propriedade (BARBOSA,

[1884] 1945, v.11, t.1, p.101); legislação essa ainda que, como visto, assim como a da Roma

Antiga, e divergindo da analogia que aproximava a propriedade escrava da propriedade das

lavouras e do gado, distinguia o escravo (humano) e coisa.

Mas até o caráter “humano”45

era um valor alvo de controvérsia, mais especificamente, era

posto dentro do binômio vulnerabilidade X gratidão. Para José de Alencar, citado por

Barbosa, por exemplo, “humanos” eram aqueles que resistiam à liberdade aos sexagenários:

nesta luta que infelizmente se travou no país, a civilização, o cristianismo, o

culto da liberdade, a verdadeira filantropia estão do nosso lado. [...]

Entendeis que libertar é ùnicamente subtrair ao cativeiro, e não vos lembrais

de que a liberdade concedida a essas massas brutas é um dom funesto [...]

Entre estas duas causas não há quem hesite: a nossa é benéfica, a vossa é

fatal; a nossa é santa e cristã, a vossa é cruel e iníqua (BARBOSA, [1884]

1945, v.11, t.1, p.127, grifo do autor).

O mesmo Alencar, quando da Lei do Ventre Livre, lançou similar prognóstico: “Eu, por mim,

confesso que estremeço; e, pensando quanto as paixões transformam os homens, prevejo uma

hecatombe de inocentes” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.127, grifo do autor).

Contrapondo o que qualifica de decaimento moral resultante de um afã emancipatório

desenfreado, que buscava alforrias a esmo e inconsequentes, com a sua posição que pode ser

vista como de alforria cautelosa, Alencar atrai a si e a seus correligionários os valores de

filantropia e cristianismo.

45

O valor humanitarismo não é interpretado como o mote único, mas um valor suplementar de análise. É trazido

aqui como um valor trabalhado na fonte e no aporte teórico por isso passível de análise.

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Não se mostrava então, essa voz representante da oposição (com muitos “apoiados” em sua

fala, inclusive), como contrário à liberdade, mas favorável desde que feita em seus supostos

melhores interesses dos libertos, fossem eles os nascituros, antes, ou os sexagenários, em

questão. Acreditava-se, nas épocas correspondentes de cada proposta legislativa, que a

alforria desses segmentos sociais resultaria num despejo incalculado, consequentemente o

despreparo os levaria a um estado de miséria e muito possivelmente à morte. Alguns

qualificavam a Lei do Ventre Livre, por exemplo, como “lei de Herodes”, fazendo referência

ao rei infanticida, que, sentindo-se ameaçado, e caçando Jesus Cristo, mandou assassinar as

crianças de dois anos para baixo em Belém segundo o relato bíblico46

. Quanto aos escravos,

se libertos a partir de 60 anos, poderiam significar um prejuízo aos cofres públicos por já não

serem úteis como força de trabalho (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.128). Seria,

resumidamente, a iniciativa de alforria legal aos sexagenários, uma atitude desumana.

Entretanto, se no caso dos filhos de escravas, a tal “hecatombe” não ocorreu, tampouco os

presságios análogos aos sexagenários teriam efeito.

Rui Barbosa, por sua vez, via prejuízo “senão aos proprietários cuja dureza de alma não

compreenda a necessidade de estabelecer entre o cativo e o senhor liame algum de simpatia

humana”. Para ele, o ato de alforriar um cativo que dedicou a vida aos trabalhos cujos frutos

foram destinados ao seu senhor era um ato de gratidão. Sobre seu corpo, sobre sua mente, seu

ânimo em geral só sobraria somente debilidade após 60 anos, o que inevitavelmente

repercutiria em menor produtividade e reclamaria descanso da rotina exploratória. O que se

previa não era um desamparo, mas àqueles que pregavam valores cristãos e filantropia em

prol desses escravos (aceitando-se a procedência da preocupação real dos senhores para com

seus escravos, já que, segundo se dizia, todos eram a favor da abolição), não custaria mantê-

los em sua propriedade, dando-lhes asilo em troca de tanto tempo de prestação compulsória de

serviços, ou ainda no caso daqueles menos generosos, em troca dos serviços possíveis pelo

vigor remanescente. Como revela a ponderação de Barbosa:

A providência que libertar os sexagenários não lesa interesses consideráveis

da propriedade agrícola. O escravo de sessenta anos entrou numa idade

inacessível ao espírito de aventuras, numa fase da vida em que os hábitos

dominam quase absolutamente a nossa natureza, e a tranquilidade, sem

aspirações mais que a estabilidade dela, fixa o indivíduo até o meio onde até

ali lhe correrm os dias. O velho cativo, pela debilidade do corpo enfermo,

pela tendência irresistível de costumes inveterados, por laços de família,

pelas infinitas relações impalpáveis que afeiçoam a velhice à terra, às coisas,

aos homens, em cujo seio os homens lhe declinaram para a prostração que

46

Mateus: 2: 7-10.

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procede o fim, está prêso à fazenda onde encaneceu. A relativa exiguidade

do trabalho que a tibiezada saúde e das forças lhe permite, afasta dele

aliciações cobiçosas, que o chamem a condições mais vantajosas de

subsistência em casa de patrões mais liberais ou empreendedores.

(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.125,126).

O valor “filantropia”, como subordinante do, mas aliado ao “jurídico”, era o arranjo de ideias

da opinião em geral; o modelo de escravagismo, como lucro decorrente de trabalho forçado

alheio, já estava se desnaturalizando. Para reforçar isso, paradoxalmente, Rui Barbosa

recorreu a Aristóteles para o qual o escravo, não era um estado, uma condição, mas era parte

integrante de sua sociedade, mas que, apesar disso, concebia o cativo digno de liberdade pelo

trabalho, principal prescrição do Projeto Dantas: “esse direito à emancipação pelo trabalho,

esse preço da liberdade satisfeito com perversa usura em sessenta anos de cativeiro, é o que se

reconhece no art. 1º do projeto” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.109).

3.4.1 Socialismo, comunismo e retorsão

Havia os que tachavam, pelo caráter emancipatório, o Projeto Dantas de ato de “socialismo”

ou de “proselitismo comunista” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.110, grifo do autor), e

a definição de socialismo assumida então, é a trazida pelo Dizionario dell’Economia de

Boccardo:

o complexo das utopias e sistemas, que, recusando proceder, nos estudos

sociais, pelo método experimental, e sob a lenta, mas segura, guia da

observação, forjam um regime econômico e civil da associação humana, em

que tudo se renova de cima a baixo, religião, ciência, relações entre homem

e homem, direitos e deveres; sistemas e utopias esses, que, supondo não

haver leis naturais e imprescritíveis na evolução da humana sociedade,

acusam todas as instituições atuais de serem apenas o fruto do arbítrio, da

usurpação, do monopólio, e tendem a substituí-las por uma ordem de coisas

inteiramente elaborada na mente de seus inventores (BARBOSA, [1884]

1945, v.11, t.1, p.111).

O referido socialismo é concebido então como tentativa de câmbio de sistemas, de

questionamento e derrubada de convenções por outras estruturas igualmente arbitrárias

porque também convencionadas, mas adicionalmente impróprias, subjetivas e impensadas. O

lugar do existente é acionado como preferível: é melhor confiar em instituições, estáveis, do

que em ações pessoais isoladas, incipientes, sem base e por isso instáveis. O traço semântico

de subjugação do bem/interesse individual ao social que caracterizaria um socialismo “bom”,

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“positivo”, é suplantado pelo de ascensão de ideias subversivas de uma minoria descontente e

despreparada – que de modo leviano intentaria a derrocada de instituições basilares com

projetos utópicos, distantes da realidade e de impossível execução. Era uma percepção de

socialismo negativado, da qual Rui Barbosa queria afastar a imagem do Projeto Dantas.

Nesse esforço de ressignificar o socialismo, rebatendo-o, Barbosa lembra que já havia casos

registrados de mudanças legislativas que favorecessem um grupo com a propriedade de algo

pelo trabalho que poderiam ser consultados para a realização de um paralelo. Um caso

evocado foi o da Inglaterra com o Land Act de 1870 que garantiu o tenant right, ou seja, essa

lei garantiu ao camponês da Irlanda que ele tivesse, por uma espécie de usucapião, maiores

direitos sobre a terra do que o senhor (tempo de serviços prestados tais que não permitissem

uma expropriação sem indenização ao trabalhador rural), o que foi formalizado em

copropriedade de um terreno pelo tempo de trabalho nele pelo Land Act de 1881, de

Galdstone (BARBOSA, [1884] 1945).

Lançando mão, novamente, do argumento por retorsão, Barbosa transfere o traço de “utopia”

para o grupo que se empenhava em manter o já questionado sistema escravocrata, afirmando

que “utopia é a dos que se empenham em prolongar artificialmente a existência dessa

aberração, incomportável em nossos tempos” complementando que “socialistas serão os que,

desconhecendo no escravo a individualidade e a liberdade, não vêm, senão a propriedade do

senhor” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.112, grifo do autor).

Rui Barbosa realiza assim uma inversão no argumento de comunismo/socialismo negativo:

seriam então os contrários ao Projeto Dantas esses socialistas, por desprezarem o tradicional

e universal direito de liberdade individual pelo de particular propriedade escrava. Rui

Barbosa, mais uma vez, mantém o lugar acionado pelos opositores, contudo, fazendo uma

análise que resulta em que seus argumentos recaiam contra si mesmos.

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3.4.2 Sobre a liberdade restrita

Sob o título, “Do trabalho”, assim prescreve o Projeto Dantas47

:

Art. 2º. – O domicílio dos libertos pelo fundo de emancipação considera-se

fixado por cinco anos, a contar da data da alforria, no município onde

residirem a tempo dela.

§ 1º. – Excetuam-se:

I – Os a quem (por lhes faltar emprego no municipio) se designar ocupação

em colônias, ou estabelecimentos públicos ou particulares, noutro municicio

[sic], ou província.

II – Os que, tendo família noutro lugar, obtiverem desta autoridade a mesma

autorização.

§ 2º. –O liberto que transgredir o seu domicilio legal será policialmente

compelido a voltar a êle, e incorrerá nas penas de dois a trinta dias de prisão,

com serviço nas obras e estabelecimentos públicos, onde os houver.

I – Da primeira transgressão, conhecerá a autoridade policial; cabendo-lhe

impor as penas de dois a cinco dias de prisão.

II – Nas reincidências julgará o juiz substituto, ou o municipal; sendo a pena

de dez a trinta dias, com recurso voluntário para o juiz de direito

O regulamento estabelecerá para estes casos um processo sumaríssimo, em

que será preparadora a autoridade policial [...]

Esse artigo segundo do Projeto Dantas é controverso. Apontava contra ele o fato de se

instituir a obrigatoriedade de o sexagenário trabalhar, em domicílio restrito ao de sua alforria,

por um quinquênio com salário mínimo estabelecido pelo governo. Excetuando-se situações

excepcionais, como ausência de demanda de trabalho no município ou transferência

condicionada à autorização judicial para o município de residência da família do liberto,

haveria o limite de circulação municipal por 05 anos. Esse disposto era tão coercitivo que

previa a pena em cárcere, inicialmente de 02 a 05 dias, a depender do arbitramento da

autoridade policial e aumentando-se esse prazo, chegando a 30 dias, nos caso de reincidência.

No entanto, pode-se perceber problema, pelo menos, em duas frentes: primeiro, porque o

escravo estaria assim, do mesmo modo “à mercê dos grandes proprietários rurais”

(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.198), restrito em sua liberdade de ir e vir, e, segundo,

47

Excertos do Projeto Dantas na versão original e de conteúdo mantido nas posteriores. Versão trazida como

apêndice do Vol 11, tomo 1, FCRB.

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porque era algo inconstitucional que o estado se intrometesse em um acordo de natureza

particular como deveria ser o preço do salário do servo a ser pago pelo senhor.

Na defesa desses limites de circulação territorial, Rui Barbosa afirma que seriam “um meio de

educar nela [na liberdade], por ela e para ela, uma classe de indivíduos absolutamente

despreparada para sua fruição racional e profícua”, já que “Em presença da liberdade, [...] o

liberto [...] carece de mão amparadora, que o guie e precate contra as atrações do

desconhecido, o gôsto da indolência e o instinto inconsciente de aventuras” (BARBOSA,

[1884] 1945, v.11, t.1, p.196).Conclui, Rui Barbosa, diante das intenções declaradamente

protetivas ao escravo, e pela comparação com medidas abolicionistas que propunham que o

liberto ficasse restrito à propriedade em que sempre trabalhara do Centro Abolicionista da

Escola Politécnica, referido por ele como referência no movimento abolicionista:

Ora, é conhecido o espírito extremamente abolicionista daquela associação,

uma das que têm sobressaido à frente do movimento libertador. Entretanto, a

medida que ali se reclama é incomparàvelmente mais restritiva, mais severa

do que a admitida no projeto.

Em verdade, ampliado ao município, o perímetro de locomoção que se deixa

ao liberto na fase inicial da liberdade, não se pode tachar de acanhado. Versa

toda a questão em saber se essa restrição prática não importa um elemento de

contradição na essência da liberdade, reconhecida aos emancipados.

Acreditamos que não. [...]

É, portanto, frívola, fútil, grosseira a censura, já enunciada, não sabemos se

na imprensa, se em debates parlamentares, de que o projeto condena o

liberto a uma espécie de servidão quinquenal. Para lhe descobrir essa

mácula, é mister não no ter lido. Tôdas as suas disposições são protetoras da

liberdade, ainda quando aparentemente a modificam (BARBOSA, [1884]

1945, v.11, t.1, p.195,203).

O limite de salário mínimo, por sua vez, seria um controle preventivo de abusos por parte dos

senhores em relação ao neomanumitido pouco (quase nada) ciente de suas garantias legais,

cujos salários poderiam ser estimados em valores que prejudicariam os servos:

o projeto nega ao liberto, durante os seus cinco anos de tirocínio na

liberdade, o direito de trabalhar gratuitamente, ou por um salário ilusório, em

proveito de patrões que lhe explorem a inexperiência, a credulidade ou a

fraqueza (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.203).

Haveria inclusive, uma instituição legal, “uma entidade administrativa e tutelar, incumbida

especialmente de fixar ao salário um limite mínimo, coercitivo para os locatários de serviços,

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em benefício dos libertos, quando estes, trabalhando por conta própria, ou de outrem, não

encontrarem melhores vantagens” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.196), providência

legal já tomada pela França em seu processo de abolição, desde 1840, contra prejuízos mútuos

entre senhores e libertos, e, principalmente, já prevista na Lei Agrária , no Land Act, de 1881,

segundo a qual os rendeiros ou o senhor da terra, poderiam recorrer à comissão agrária contra

abusos no valor do aluguel da terra.

Esses dois pontos do artigo segundo do Projeto, o da restrição inicial, por cinco anos, de

locomoção do liberto e o da previsão de salário são então defendidos por Rui Barbosa como

modos de proteção que habilitaria o liberto em “tirocínio”, isto é, em aprendizado inicial, a se

acostumar com a vida em liberdade e o protegeria, “da vagabundagem” (BARBOSA, [1884]

1945, v.11, t.1, p. 203,194).

Com efeito, Rui Barbosa põe esses aspectos do Projeto Dantas em um paralelo com uma

situação similar:

a condição do liberto, pois, no plano da nossa reforma, será simplesmente, e

isso pelo curto período de cinco anos, um símile da que o grande ato de

Gladstone instituiu, sem limitação de tempo, como benefício liberalíssimo,

como imensa conquista em favor do irlandês livre, na livre Inglaterra.

Consiste a diferença apenas em que, num caso, é da locação do trabalho que

se cogita; no outro, da locação da terra (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1,

p. 202).

Confirma-se que a escolha desses exemplos e analogias, por Rui Barbosa, para abordar a

anulação da propriedade/transferência de propriedade pelo tempo de serviços prestados, bem

como fixação de preço de salário não foi fortuita, foi estratégica. Por exemplo, “A Inglaterra

não é nenhuma nação de visionários; nem as utopias hostis à propriedade e ao individualismo

encontram ali meio propício na índole do povo, ou na influência das tradições” (BARBOSA,

[1884] 1945, v.11, t.1, p.116).

Em meio aos demais recursos empregados na defesa de sua tese, como contra-argumentos às

posturas dos “abolicionistas” adversários, Rui Barbosa retoma o uso do argumento de

autoridade, “ o qual utiliza os atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como

meio de prova a favor de uma tese” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,

p.348) não só nesse caso – quando não só se apoia em um aparato legal, equivalente em

credibilidade aos demais mencionados, não só por ser um ato jurídico, mas por ser um

precedente constitucional de uma nação de seriedade reconhecida – como também o fez por

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recorrer à sabedoria aristotélica, representante da erudição clássica, e à própria cadeia

constitucional desde Roma, passando por Portugal e vigente no Brasil, cadeia esta vista agora

sob a ótica da retorsão. O uso dessas duas técnicas conjuntas é recomendável já que “o mais

das vezes, o argumento de autoridade, em vez de constituir a única prova, vem completar uma

rica argumentação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.350).

Contudo, mesmo com a declarada prerrogativa de salvaguarda dos novos libertos, o Projeto

Dantas talvez tenha sido simplista em sua ideia de proteção pelo preço do salário pelo

trabalho. E no que diz respeito às condições desse trabalho autônomo ou para outros? E a

duração, a carga horária, o que prevenia que ela não fosse abusiva? São questões permitidas,

claro, pelo conhecimento de reformas de leis trabalhistas posteriores, mas que podem apontar

uma fraqueza no disposto no Projeto. O mesmo se dá quanto à restrição do deslocamento do

ex-escravo. É de se admitir que se essa não fosse uma disposição que agradasse os mais

conservadores, tal limite de circulação não seria mantido do posterior Projeto Saraiva (1885),

reconhecido, até mesmo pelo próprio Rui Barbosa, como uma lei que defendia, antes de tudo

o interesse senhorial, algo patente na instituição da alforria do sexagenário condicionada à

indenização por prestação de serviços.

O liberto, com essa limitação, estava dentro de uma ótica paternalista. A ideia era de um

abolicionismo gradual que permitisse a relação de “clientelismo”, “paternalismo” e “liberdade

atrelada”. A abolição era garantida, somente quando houvesse um liame de gratidão entre ex-

escravo e ex-senhor, baseado na crença da incapacidade de adequação social desse escravo à

vida de liberto e na consequente e necessário resguardo. Por outro lado, o liberto deveria ser

grato pela oportunidade que se apresentava como uma concessão benemérita (ainda que

tardia) o que, de certa forma, em ambas as crenças, não desfazia os laços hierárquicos,

somente reorganizando-os sob a roupagem de proteção (MENDONÇA, 2008).

Além do mais, e se não fosse de seu interesse, desejo, necessidade de permanecer no mesmo

município onde esteve durante longo tempo de trabalho compulsório, ele seria obrigado a

ficar ali? Não se pode esquece que era um indivíduo submetido a condições desumanas, a elas

sobrevivente no auge de seus 60 anos, portanto, dificilmente lhe restaria um tempo muito

superior de vida livre, após seus 65 anos (se é que chegariam aos 65 anos).

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66

3.5 OPOSIÇÃO OSCILANTE: O CASO MURITIBA E OUTROS EXEMPLOS

Passando para o exame de focos isolados, Rui Barbosa analisa historicamente a ação do

visconde/barão de Muritiba. O então conselheiro do Estado, então contrário veementemente à

abolição geral, havia sido, em 1867, portador de uma proposta de lei que tratava da

manumissão – não indenizatória – de cativos aos 55 anos de idade. O não cumprimento seria

reparado por uma rigorosa multa que incidiria sobre as diárias a retro. Propôs ele como uma

questão de “grande interesse”, não como medidas acessórias, “menos prudentes”:

Art. 4º. Depois de publicada esta lei, os proprietários de escravos maiores de

55 anos e dos que forem sucessivamente completando esta idade, serão

obrigados a libertá-los até seis meses depois, sob pena de proceder-se

judicialmente à alforria, e de pagarem os dias de serviço, desde aquêle em

que não derem cumprimento à obrigação, e mais uma multa de 20% dos

ditos jornais (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.12248

).

Sendo assim, seria contraditório se no momento em que se tratasse de uma proposta de

liberdade aos sexagenários esse mesmo parlamentar levantasse objeções. Isso revelaria uma

brusca mudança de pensamento e inexplicável atitude. Mas foi justamente essa ausência de

critério do conselheiro Muritiba, “ilustre senador”, que Rui Barbosa pôs em relevo passados

dezoito anos da disposição emancipatória inicial. “Assim o que o ilustre senador, àquele

tempo, reputava justo prudente e constitucional, é hoje inconstitucional, absurdo e perigoso”.

BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.123)

“A argumentação pelo exemplo implica – uma vez que a ela se recorre – certo desacordo

acerca da regra particular que o exemplo é chamado a fundamentar, mas essa argumentação

supõe um acordo prévio sobre a própria possibilidade de uma generalização a partir de casos

particulares [...]” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.399) Muritiba

seria, ao mesmo tempo, uma excessão à regra da emancipação não pecuniária e um reforço à

regra da falta de critérios fixos da oposição. Sendo assim, Rui Barbosa o elegeu, um membro

significativo do grupo dos opositores, como exemplo do habitual câmbio injustificado de

posições políticas e da geral imaturidade dos contraditores do Projeto Dantas. Alguns desses

mesmos objetores, sobre a Lei de 1871, ponderavam na Câmara dos deputados naquele ano:

A religião condena toda a injustiça, assim como a humanidade a condena

também; e ninguém deixa de ver uma grande injustiça nesta medida.

48

Trabalhos sôbre a extinção da escravatura no Brasil. Rio de janeiro: Tip. Nac. 1868.

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67

(Apoiados). Como se condena a perpétuo cativeiro, a geração que já

trabalhou, que já sofreu (apoiados), que já concorreu com seus esforços

para aumento da nossa fortuna [...] e vamos libertar uma geração que ainda

não veio, que ainda não trabalhou, que ainda não sofreu, que ainda nada fez?

O que seria preferível, já que quereis cometer um atentado contra o direito

de propriedade, garantido em toda plenitude pela Constituição: decretar a

ingenuidade dos nascituros, ou libertar, ainda mesmo sem indenização, os

velhos escravos, maiores de 65 anos, que tendo já experimentado os

horrores do cativeiro, teriam mais direito à vossa benevolência, para, no

último quartel da vida, gozarem ao menos do descanso e da paz? Entre os

dois alvitres, a escolha não pode razoavelmente ser duvidosa. (Apoiados da

minoria) (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.135, grifos do autor).

Era uma oposição que apresentava critérios oscilantes conforme à época, o que mina, quando se

procede à investigação de seu histórico, sua fidedignidade. Esse grupo era, por isso, entendido

por Barbosa como um “antimodelo” , um modo de conduta cuja imitação é desaconselhada: se a

referência a um modelo possibilita promover certas condutas, a referência a um contraste, a um

antimodelo permite afastar-se delas” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,

p.417, grifo do autor). Esse tipo de disposição pessimista não estava circunscrito aos limites

geográficos do Brasil. Não era novidade opositores verem com suspeita a iniciativa legal de

alforria. Em alguns casos, o desejo de frustrar o sucesso de uma lei emancipatória, quando em

vigor, concretizava-se em um ímpeto cruento.

3.5.1 O passado49

em outras nações/colônias

Os negros, nos Estados Unidos, resistiram a todo tipo de adversidade, à descrença, à

perseguição. Desde a época da proposta da emancipação, passaram, como os negros no Brasil,

por previsões de fracasso, como o temor de um ócio generalizado, já que não mais seriam

incentivados (forçados) ao trabalho; isso, por sua vez, seria uma das manifestações da

decadência moral, por não estarem sob a supervisão e influência supostamente benéficas de

49

Há o reconhecimento de que os processos abolicionistas em cada nação comportam diferenças entre si. A

historiadora Professora Dra. Célia Marinho de Azevedo (2003) trata disso em sua tese de doutoramento editada

em livro. Fazendo uma comparação entre Brasil e Estados Unidos, por exemplo, ela toca nas diferenças

socioculturais, no imaginário sobre o senhor, o escravo e os ex-escravos em cada nação, confrontando o caráter

belicoso da emancipação norte-americana e a brasileira, pacífica. Além disso, ressalta a nossa abolição como

sendo de natureza hierarquizante e guiada por relações de apadrinhamento. No entanto, este estudo se ocupa das

similaridades entre os eventos abolicionistas das nações apontadas pelo Parecer.

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seus senhores; e, o pior, mortandade em massa, já que eles, não estariam habituados a e nem

desejosos de buscar o sustento por si.

Nos EUA, a fim de tornar reais esses maus presságios, após promulgada à revelia de seus ex-

senhores sua emancipação, houve represálias. Como retaliação, houve desde o ataque de seus

meios de subsistência (mantimentos sofriam diferenciação de preço), passando pelo êxodo

forçado por tal situação aos estados do Norte em 1879, até seu extermínio por chacinas. “Nos

armazéns do Plantation Credit System pelas mais baratas qualidades de açúcar mascavo, que

os trabalhadores agrícolas, no Norte, pagavam a 8 centésimos, o negro, operário rural do Sul,

gravado à razão de 11 e 13 centésimos a libra” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.188).

Quanto às mortes, Rui Barbosa relata que de 1866 a 1874, o ódio racista resultou numa soma

próxima de 1000 em diversos terrritórios norte-americanos50

.

Porém, mesmo desabrigados, com custo de vida mais alto e vítimas de assassínio, os libertos

cresceram. Demograficamente. Economicamente. Academicamente. Dados os homicídios e

agravantes ao sustento e à saúde dos negros, a taxa de mortalidade em 1870 entre brancos e

negros não era tão discrepante: 14,74 x 100 habitantes entre brancos e 17,28 x 100 entre

negros; e o aumento demográfico da população negra, em uma década (de 1870-1880) foi de

34, 67% contra 29, 20% da população branca. Diversificaram a lavoura a ponto de ela suprir

sua própria necessidade de consumo e não mais servir exclusivamente à exportação como à

época do cativeiro, obtendo, por exemplo, na lavoura de algodão no Sul, de 3.656,606 fardos

no ano de 1861, a um aumento de quase 100% em 1883 com a produção de 6. 959,00

fardos51

. Investiram grandes somas financeiras em bancos, chegando, por exemplo, a 53

milhões de dólares depositados nos anos de 1866 a 1873 somente nos Freedmen’s Banks

(Bancos de Libertos). Lotaram as escolas dirigidas aos libertos, as Freedmen’s Bureau, com

247.333 alunos, de 1865 a 1870; e com 839. 938 alunos em 1881 distribuídos em diversos

níveis acadêmicos52

. Poucos recorriam às associações beneficentes, por exemplo, “dentre uma

população de 350.000 libertos, na Carolina do Norte, apenas 5.000, em 1865, solicitavam a

caridade oficial” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.186). Soergueram-se rapidamente e

adequaram-se ao sistema livre, superando as más e até mesmo as boas expectativas.

50

Rui Barbosa valeu-se de dados constantes nas obras de George Willians, History of the negro race in America

from 1619 to 1880 (New York, 1883); e deP. Leroy Beaulieu, De la colonisation chez le peuples modernes (2 ª

ed. Paris, 1882). Pág. 198-200. 51

Dados extraídos por Barbosa pela Correspondência de New York, no 1º de junho de 1884 ao Jornal do

Comércio. 52

Dados levantados por Barbosa a partir do Report of the commissioner of Education for the Year 1881

(Washington, 1883), pág. LXXXVI.

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69

Casos de sucesso também já haviam sido registrados nas colônias inglesas contra semelhantes

temores então disseminados. Havia a insegurança quanto ao plantio e o futuro da economia

agrícola e, por outro lado, a certeza da barbárie generalizada por parte dos povos africanos

alforriados nas colônias inglesas antilhanas, por exemplo. No entanto, longe de se efetuar

pelas emancipações, a grave decadência econômica já era uma realidade: de 1780 a 1787,

estima-se que 15.000 negros morreram de fome causada pela queda da produção de alimentos

que forçava a sua importação do Canadá. O mesmo se diz da barbárie, a predileção pelo

exíguo plantio de açúcar em detrimento de outros produtos de subsistência levou os

produtores à bancarrota, os escravos a sucessivas revoltas, ao abandono de propriedades em

ruínas na Jamaica e em São Domingos (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.171-2.). As

alforrias, ao contrário do que se dizia, foram as responsáveis por reverter esse quadro.

Antígua, Barbada, Jamaica e Santa Luzia apresentaram desenvolvimento econômico-social.

Relata-se que “não só medrou grandemente a prosperidade material de cada uma dessas ilhas,

senão também, o que ainda mais é, houve progresso nos hábitos industriosos,

aperfeiçoamento no sistema religioso e social”. De 2.114 proprietários negros na Jamaica de

1838, passou-se a 7.340, apenas dois anos depois, em 1840. Nesse mesmo ano, a Guiana

contava com 15.906 proprietários negros. Isso resultou num redirecionamento da ênfase

produtiva: em vez da centralização no cultivo de açúcar, cultivavam-se outros víveres,

equilibrando a relação importação-exportação e a economia.

Excetua-se nesse quadro, em anos subsequentes, a Jamaica: a má administração, com a

terceirização da gestão das propriedades, o ranço da escravidão no regime pós-emancipação,

em que se obstruía, a todo custo, o desenvolvimento do liberto, são algumas razões apontadas

por Barbosa para esse fracasso pontual jamaicano, contrastante com os casos da Antígua,

Maurícia, Barbada, Santa Luzia, Dominica e Trindade (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1,

p.174-179).

Ao recorrer a esse histórico dos efeitos da abolição em diversos locais pelo mundo, Barbosa

argumenta de modos mutuamente implicados: os dados numéricos relativos ao crescimento

socioeconômico dos negros norte-americanos mesmo frente à perseguição e descrédito pós-

emancipação e os outros dados com a mesma repercussão nas colônias inglesas são a recorrência

à maior aceitação dos valores quantitativos, o lugar de quantidade é então utilizado:

O mais das vezes, o lugar da quantidade constitui uma premissa maior

subentendida, mas sem a qual a conclusão não ficaria fundamentada [...] um

maior número de bens é preferível a um menor número, o bem que serve ao

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maior número de fins é preferível ao que só é útil ao mesmo grau, o que é

mais duradouro e mais estável é preferível ao que o é menos (PERELMAN e

OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.97).

Seguindo o mesmo raciocínio, um maior número de dados sobre certos aspectos da vida dos

ex-cativos é preferível a um menor número de ocorrências de confirmação de expectativas

negativas, de casos excepcionais. Em contrapartida, tais números revelam que um menor

número de expectativas funestas não tem tanto peso quanto um maior número de dados da

realidade, podendo-se constatar que: “Quando os lugares da ordem são correlacionados com

os da quantidade, o anterior é considerado mais duradouro, mais estável, mais geral”

(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.110). Então, vê-se o uso do lugar

de ordem em que fatos sistemáticos anteriores admitem fatos similares posteriores.

Sendo assim, se não podem ser contestados que os números denotam uma bem-sucedida

vivência pós-emancipação fora e antes do Brasil, com uma realidade até mais veemente,

porque a experiência emancipatória seria frustrada aqui? Contra as expectativas temerosas

haviam os já existentes exemplos de outros locais. Melhor, havia a ideia, por parte de

Barbosa, de uma ampla aceitação de uma “concepção do existente”, pois “os lugares do

existente podem ser relacionados com os lugares da quantidade, vinculados ao duradouro, ao

estável, ao habitual, ao normal” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,

p.106, 110). Em resposta ao possível, havia o real presumido como aceito, visto que “a

utilização dos lugares do existente pressupõe um acordo sobre a forma do real ao qual são

aplicados” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.106).

As melhorias constatadas se dão de modo gradativo na linha do tempo. A datação e

quantificação aproximadas pela pesquisa de Rui Barbosa de dados numéricos anteriores e

posteriores dão prevalência aos últimos:

Dentre as sequências, a do tempo que transcorre desempenha um papel

muito importante. Os fenômenos aos quais essa sequência serve de guia

assumem um aspecto contínuo, homogêneo e, amiúde, também

quantificável: duração, crescimento, envelhecimento, esquecimento,

aperfeiçoamento podem ser quantificados em função do tempo transcorrido

(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.396).

Como conjunto, essa remissão à história como modelo também é uma técnica argumentativa.

“Um homem, um meio, uma época, serão caracterizados pelos modelos que se propõem e pela

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maneira pela qual os concebem” (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005,

p.414). A história naqueles locais serve como modelo de credibilidade às manumissões,

como conduta a ser imitada em vista dos excelentes resultados práticos comprovados. O

“crescimento” e o “aperfeiçoamento” da população ex-escrava ao longo do tempo na

realidade estadunidense e nas colônias inglesas foram sustentados por elementos numéricos

contrapondo-se aos maus presságios de seu tempo. Era um fato, uma realidade admitida e

tinha muito mais peso do que qualquer especulação não embasada. Em outras palavras:

diremos que no par “aparência-realidade”, “aparência constitui o termo I e

“realidade” o termo II. [...] O termo II, na medida em que se distingue dele

[do termo I] é o resultado de uma dissociação, operada no seio do termo I;

não é simplesmente um dado, mas uma construção que determina, quando da

dissociação do termo I, uma regra que possibilita hierarquizar-lhe os

múltiplos aspectos, qualificando de ilusórios, de errôneos, de aparentes, no

sentido desqualificador do termo, aqueles que não são conformes a essa

regra fornecida pelo real. (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, [1958]

2005, p.473, grifos dos autores.)

Em vista do exposto, o real, o fato construído pelo orador Rui Barbosa pelo levantamento de

datas e de dados em números do passado em relação ao seu presente, seria um modelo calcado

na distinção da antimodelar aparência das especulações de seu tempo, essas hierarquicamente

inferiores por serem ilusórias, aparentes, portanto errôneas.

3.6 A AÇÃO DO ORADOR RUI BARBOSA

A fim de alcançar de modo completo a ação argumentativa, para a Retórica, faz-se necessária

a mobilização da tríade argumentativa: logos-pathos-ethos. Rui Barbosa então não só

apresentou as razões, com o recurso à jurisprudência, examinando diacronicamente a cadeia

legislativa em torno do mesmo eixo “abolição”, utilizando, como justificativa o valor de

verdade, de fato, que uma lei carrega, mas aliado a isso recorreu ao pathos, com o valor

“humanitarismo” e valeu-se de seu ethos para aquele círculo de auditores, de sua imagem de

abolicionista sedimentada pelo seu discurso.

De um modo geral, Rui Barbosa recorreu a comparações em “uma forma típica [...] aquela

que menciona a perda não sofrida para apreciar as vantagens de uma solução adotada”

(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, [1958] 2005, p.278) As soluções adotadas, os casos

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de êxito legislativo davam conta de perdas não sofridas, o que reforçava a hipótese de

resultado similar no Brasil se também se sancionasse o Projeto Dantas, com os seus

principais termos, em lei.

O orador Rui Barbosa lança mão, concomitantemente, de alguns tipos argumentativos como

os de retorsão, autoridade, pelo exemplo, pelo modelo, pelo antimodelo e por analogia e dos

topoi do existente/ordem, já que exemplos concretos – nacionais ou não, contemporâneos ou

não – de sucesso de aplicação legislativa abolicionista mais valiam do que fracassos

cogitados, por serem entendidos como princípios, bases anteriores de fidedignidade, o real

prevalece sobre o aparente; os lugares de pessoa e essência também foram acessados quando

Barbosa alerta que o então escravo deveria ser valorado como essencialmente humano,

portanto essencialmente livre. A noção de propriedade se perde até mesmo pela não

indenização.

O locutor Rui Barbosa, um outro prisma de análise de sua figura abolicionista, é observado na

próxima seção segunda a visão da Argumentação na Língua (ANL).

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4 PARECER AO PROJETO DANTAS: ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA

“Toda fala, tenha ela ou não objetivos persuasivos,

faz necessariamente alusão a argumentações” (DUCROT, 2003)

A Semântica Estrutural é vista, nesta seção, como o desdobramento dos estudos que se

iniciaram com a Teoria Polifônica da Enunciação, ou seja, a problematização da pressuposta

“unicidade do sujeito falante” em que para cada enunciado haveria um único autor, derivada

dos estudos literários de Mikhail Bakhtin. Para esse teórico russo, certos textos comportam

várias vozes, as quais se expressam de modo simultâneo e sem uma relação de hierarquia

entre si. Essas vozes seriam, em linhas breves, as diversas máscaras apropriadas pelo autor.

Essa teoria, elaborada por Oswald Ducrot, em aliança com Jean Claude Anscombre, integra

uma outra visão de argumentação, podendo ser denominada de Semântica Argumentativa,

Semântica da Enunciação ou ainda a designação adotada nesse trabalho, a Argumentação na

Língua – ANL. O campo de identificação com a ANL é a Pragmática Semântica (ou

Pragmática Linguística), área em que o analista investiga a ação pela língua, não a ação

quando se fala, mas o que a própria língua (inicialmente vista pela dinâmica de seus

enunciados) pode fazer.

Ducrot insere-se assim numa lacuna que, segundo sua ótica, foi deixada por Bakhtin, o qual

não teria estendido a polifonia a enunciados individuais, mas só a textos (DUCROT,

[1969]1987, p.161):

Mas esta teoria de Bakhtine, segundo meu conhecimento, sempre foi

aplicada a textos, ou seja, a seqüências de enunciados, jamais a enunciados

de que estes textos são constituídos. De modo que ela não chegou a colocar

em dúvida o postulado segundo o qual o enunciado isolado faz ouvir uma

única voz.

É justamente a este postulado que eu gostaria de me dedicar [...]

Oswald Ducrot mantém ainda traços de afinidade com o precursor da linguística moderna,

Ferdinand de Saussure – a sua delimitação do objeto intralinguístico e sistêmico é o mais

patente. Além disso, o transporte e a restrição do entendimento de situação para o contexto

enunciativo, ou seja, a atenção somente para aquilo que a língua registra como situação o coloca

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na esteira de Émile Benveniste de quem conservou (mesmo só o admitindo como aporte

enquanto legado para os filósofos ingleses53), certos caminhos teóricos para a enunciação.

Ducrot faz assim uma descrição semântica de base estruturalista (CARNEIRO, 2008).

A partir de tal percepção, Ducrot e Jean Claude Anscombre inauguram um prisma de análise

dentro dos estudos da Argumentação que progride em três fases, a Forma Standard (com a

publicação de L´argumentation dans la langue (1983)), a da Teoria dos Topoi

Argumentativos (incluídas inicialmente numa reedição de L´argumentation dans la langue

(1984) e revisitadas em trabalhos posteriores) e o atual estado, contando com as contribuições

de sua colaboradora Marion Carel, a Teoria dos Blocos Semânticos54

(DUCROT,2003;

SENA, G. C. A; FIGUEIREDO, M. F., 2013).

O exame da organização argumentativa do discurso abolicionista de Rui Barbosa é submetido,

nesta análise, ao arcabouço teórico da ANL, por aquilo que é trazido pela língua, por meio dos

blocos semânticos. Previamente, porém, faz-se necessário visitar as suas ideias de base, como

“locutor”, “enunciador”, “posto” e “pressuposto”, “frase e enunciado”. Isso porque, em se

tratando de teorias da argumentação, pode-se pensar, entre outros caminhos, não somente na

Nova Retórica, mas também na Argumentação na Língua. A língua é estudada então enquanto

portadora de uma argumentatividade, ao mesmo tempo, dependente de fatores extrínsecos

com os tipos e topoi retóricos (conforme abordado na seção anterior) e autossuficiente, com a

abordagem da ANL, em especial com os blocos semânticos.

4.1 ARGUMENTAÇÃOSEGUNDO DUCROT: IDEIAS DE BASE

A princípio, Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombre, em sua Teoria da Argumentação na

Língua, partiram para a reformulação do que eles denominam de conceito tradicional de

argumentação: as conclusões de uma frase, segundo a argumentação tradicional seriam extraídas

de situações discursivas e obtidas por leis psicológicas, lógicas, retóricas e sociológicas. Então a

53

Cf. XAVIER, Antônio Carlos. Trajetória e legado de um filósofo da linguagem: Oswald Ducrot. Revista

Investigações - Vol. 25, nº 2, Julho/2012. 54

Ainda quanto à nomenclatura, há um câmbio de uso que permite, por um lado, a definição de ANL para as duas

primeiras etapas da teoria e de Teoria dos Blocos Semânticos para a corrente; por outro lado, é considerada nesse

trabalho a admissão dos próprios estudiosos de que as fases se constituem não só de abandonos, mas também de

permanências/alterações teóricas e a ideia de argumentação na língua é uma delas. Por isso a ANL será a

designação geral, das três etapas da teoria.

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argumentação era, até esse momento, vista como dependente do contexto extralinguístico. Eles,

em vez disso, redirecionaram a argumentação para o âmbito intralinguístico, para a formação de

um conjunto de conclusões prováveis para uma mesma frase.

Essa noção de argumentação posteriormente sofreu nova alteração, só compreendida como a

consequência da escolha dos topoi argumentativos que podem ser entendidos como uma

verdade cristalizada, um lugar comum, um sistema discursivo que caracterizaria determinado

tipo de argumento. Logo depois, a argumentação passou a ser vista como integrante de termos

da língua, não só enunciados, mas também do léxico, já que a atenção se volta para os

enunciadores, para o discurso doador de sentido (DUCROT, 2002).

Na voz do próprio Ducrot: “Enquanto lingüista semanticista, devo atribuir a cada frase

constitutiva duma língua uma significação suscetível de explicar os sentidos de seus

enunciados no discurso” (DUCROT, [1977] 1989, p.18). Sendo assim, um enunciado – ou um

conjunto de enunciados – permitiria que se chegasse a outros enunciados, a conclusões em

série. Antes, porém, de detalhar o pensamento teórico ducrotiano, faz-se necessário reportar

certas noções basilares.

4.1.1 “Enunciado” e “frase”

O enunciado é entendido como um fragmento do discurso, a frase no contexto de uso. Seria o

efeito causado pelo processo de enunciação, isto é, sua ação hic et nunc. É um conceito que se

difere do de frase quando se pensa que a produção desta se dá para fins teóricos, a frase seria

uma construção gramatical numa determinada língua, gramatical no sentido de inteligível, que

portaria uma estrutura com um sintagma nominal e/ou um sintagma verbal.

Uma frase, por sua natureza gramatical, possui as pistas linguísticas, isto é, instruções,

direções, para a interpretação de seus enunciados, entendidos como fragmentos de discurso.

Segundo esse entendimento, a frase seria o suporte linguístico portador de significação que dá

sentido ao enunciado – sendo que a distinção entre sentido e significação não é gradativa, não

seria a significação parte integrante do sentido mais completo, mas sim uma distinção da

natureza da significação, norteadora, da natureza do sentido, passível de decodificação pela

significação.

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As frases “indicam ao intérprete do enunciado que ele deve constituir, e atribuir ao locutor

(fundamentando-se no que ele conhece da situação de discurso), uma estratégia argumentativa

determinada” (DUCROT, [1977] 1989, p.14).

A frase, a depender de seu contexto de uso, de sua enunciação, pode resultar em diferentes

enunciados. O contexto de uso é um contexto de limites linguísticos. Submete-se àquele

momento da enunciação, numa operação que inverte a preocupação funcionalista em se

submeter a análise de expressões linguísticas às regras do sistema de interação verbal, os

padrões pragmáticos: é o estudo da dinâmica enunciativa patente na língua para a ANL.

Estruturalmente falando, enquanto o enunciado seria o correspondente da parole saussuriana,

a frase seria análoga à langue.

4.1.2 “Locutor” e “enunciador”

A distinção das figuras ducrotianas do locutor e do enunciador também se relaciona com os

níveis de significação frase e enunciado. O próprio enunciado pode indicar, em seu próprio

sentido, o autor da enunciação.

O primeiro, o locutor, é concebido como aquele ao qual se pode atribuir responsabilidade pela

enunciação (produção momentânea de um enunciado por um sujeito falante), e é designado

pelo pronome de primeira pessoa (P1) do singular “eu” e pelas demais marcas de P1.

Ressalte-se que locutor e autor não são conceitos cambiáveis, já que há a possibilidade de eles

se referirem a papéis distintos:

Denomino “locutor de um enunciado” ao autor que ele atribui a sua

enunciação. No momento em que se admite que o enunciado mostra (diz2)

em que consiste sua enunciação, ele pode fazê-lo, entre outras coisas,

apresentando-a como obra de alguém que se considera ter pronunciado as

palavras de que ele se compõe. Este autor pretendido da enunciação é o ser a

quem fazem referência o eu e as marcas de primeira pessoa (salvo no

discurso relatado em discurso direto). Muitas vezes (sobretudo na

conversação oral), mas nem sempre, ele pode ser identificado pelo falante,

isto é, com a pessoa que, “efetivamente”, produz o enunciado (DUCROT,

[1969]1987, p.142, grifos do autor).

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Ducrot exemplifica isso com uma hipotética circular escolar em que haveria a seguinte

fórmula: “Eu, abaixo-assinado, ... autorizo meu filho a [...] Assinado...” em que o “eu” não se

refere ao autor empírico do texto, dificilmente identificável neste caso, já que poderia ser “o

diretor da escola, sua secretária, ou a secretaria da educação” (DUCROT, [1969]1987, p.182).

No Parecer ao Projeto Dantas, portanto, a figura que corresponde ao locutor ducrotiano é Rui

Barbosa.

O segundo, o enunciador, por sua vez, é sujeito da enunciação sem que a ele sejam atribuídas

as palavras exatas. Aparece no enunciado mediante seu ponto de vista que pode se contrapor

com a aparição de outro/ outros, ou apresentar afinidade entre si ou em relação às ideias do

próprio locutor; a polifonia se dá, justamente, por essa multiplicidade de vozes no enunciado

(DUCROT, [1969]1987, [1977]1989). Com isso, Ducrot atenta contra a unicidade do sujeito:

Do locutor eu quero distinguir os enunciadores. Acabo de dizer que a

enunciação – tal como a apresenta o enunciado – aparece como a realização

de diversos atos, por exemplo, atos ilocutórios (asseverar, prometer, etc.).

Chamo “enunciadores” às personagens que são apresentadas pelo enunciado

como autores desses atos. [...] Todo o paradoxo – que denomino conforme a

expressão de Bakhtin “polifonia” – prende-se ao fato de que os enunciadores

não se confundem automaticamente com o locutor. Se um enunciado é

assimilado ao locutor isto se dá em virtude de uma identificação particular, e

a identificação pode do mesmo modo assimilar tal ou qual enunciador com

outras personagens que não o locutor, por exemplo, com o alocutário

(DUCROT, [1969]1987, p.142, grifos do autor).

O sujeito percebido por Ducrot é, no entanto, tripartite. Um terceiro elemento, secundário por

não ser inserido nas análises ducrotianas, mas cujo conceito pode ajudar na melhor

identificação desses dois primeiros, é o sujeito empírico. Locutor e enunciador passam a ser a

mesma entidade em determinado aspecto, quando se extrapola a organização do enunciado (o

“eu” enunciativo) e se passa a considerar a ótica, o ponto de vista.

Mesmo resguardadas as diferenças conceituais, outro momento de toque entre esses dois

elementos é que tanto locutor quanto enunciador estão atrelados ao enunciado. Com o sujeito

empírico é diferente. Ele diz respeito ao extralinguístico, ao sujeito no mundo real, numa

materialidade distinta da linguística. O sujeito ducrotiano, ao invés disso, é linguístico.

Para a construção de sentido em qualquer texto, portanto também no Parecer, esses dois

papéis relevados são importantes já que o sentido do enunciado é descrito, conforme a

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perspectiva da ANL pela análise do embate dos pontos de vista dos enunciadores postos em

cena pela organização linguística do locutor e pela constatação do prisma assumido por tal,

seja ele de confronto ou assentimento mais explícito ou implícito.

4.1.3 “Pressuposto” e “subentendido”

A distinção entre frase e enunciado, depreende, em adição, outra, a existente entre pressuposto

e subentendido (DUCROT, [1969]1987). Ducrot ocupa-se da análise dos “efeitos de sentido”,

possivelmente derivados de dados que o linguista dispõe – as múltiplas ocorrências do

enunciado. Não se concentra no componente retórico e intenta sistematizar o componente

linguístico, a fim de fazer uma descrição semântica.

Deriva, com isso, dois tipos de “efeito de sentido”, o pressuposto e o subentendido,

diferenciados dentro do campo dos implícitos: o pressuposto seria um fato inscrito na língua,

que resistiria às transformações linguísticas, não seria afetado pela transformação de uma

frase declarativa em pergunta ou subordinação.

Ducrot ([1969]1987, p.33) esclarece ainda que “o pressuposto pertence antes de tudo à frase:

ele é transmitido da frase ao enunciado na medida em que esse deixa entender que estão

satisfeitas as condições de emprego da frase do qual ele é a realização”.

O subentendido, por sua vez, já traria o componente retórico, não permaneceria quando da

transformação linguística e seria ausente do enunciado, pertencendo ao contexto

extralinguístico. O raciocínio do ouvinte que subentende faz, segundo Ducrot ([1969]1987,

p.22), esta formulação: “Se alguém julga que é adequado dizer-me isto, é, sem dúvida, porque

pensa aquilo”, haveria algo a mais a ser colocado em seu enunciado “[O ouvinte] supõe, de

alguma forma, que o locutor observa, na escolha de seu enunciado, uma lei da economia”. Ou

seja “para que um enunciado E subentenda X, X deve aparecer como uma explicação de sua

enunciação. Se, no meu exemplo de referência, Pedro parou de fumar subentende É possível

parar é porque admite que uma das razões para produzir o enunciado era comunicar isso ao

destinatário”.

Sendo assim, o subentendido só pode aparecer no momento da enunciação (já que é a resposta

sobre as perguntas das condições de possibilidade da enunciação: “Por que o locutor disse o

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que disse?” “O que tornou possível sua fala?”) e depende do próprio enunciado: pertence ao

sentido [enunciado] sem estar prefigurado ou antecipado na significação [frase]’. É um evento

interpretativo não marcado na frase. A diferenciação entre pressuposto e subentendido então

está diretamente e respectivamente relacionada a seu nível de significação: frase e enunciado

(DUCROT, [1969]1987, p.32).

4.2 ARGUMENTAÇÃO “TRADICIONAL” E ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA

A ANL é desenvolvida por Ducrot da seguinte forma, primeiro, contrapõe-se a argumentação

tradicional à argumentação linguística; entendida essa distinção, passa-se à exploração não de

enunciados, mas de elementos mais específicos, os operadores argumentativos (O. A.);

seguindo-se a isso, há uma problematização que conduz à noção de topoi argumentativos e a

sua elaboração nas chamadas formas tópicas, e, por fim, a negação dos topoi e a manutenção

da teoria polifônica da enunciação pela teoria dos blocos semânticos.

Para Ducrot, as argumentações retórica e linguística são abordagens distintas. A

argumentação retórica é concisamente definida por ele como “a atividade verbal que objetiva

fazer com que alguém acredite em alguma coisa”.

A crítica a essa teoria assenta-se em duas supostas lacunas em sua elaboração: primeiro,

haveria situações não de convencimento ou persuasão consensuais (tidos na leitura ducrotiana

da argumentação retórica como fruto da aceitação mental do interlocutor), ou seja, situações

de coação/coerção/manipulação; segundo, o fato de ela se limitar à ação da palavra, sendo que

há outras formas, simbólicas ou não, de se convencer/persuadir55

(DUCROT, 2003).

55

São, de fato, abordagens diferentes (embora sob o mesmo rótulo de “Argumentação”) se forem percebidos os

objetos e os desdobramentos, a cadeia teórica particular de cada teoria. No entanto, ressalve-se que a análise dos

estudos retóricos perelmianos permite que se fale em distinção entre persuasão (aceitação pelas ações) e

convencimento (aceitação mental), como processos autônomos e, portanto, podendo ocorrer de modo

independente: persuasão sem convencimento e convencimento sem persuasão. Além disso, foram recortes

teóricos as escolhas em se centrar no convencimento/persuasão consentidos, não em situações de manipulação,

por exemplo, bem como na abrangência ao texto verbal, o que não impediu que estudos posteriores pudessem

trabalhar essas mesmas noções, aliadas a outras teorias, em elementos pictóricos ou imagéticos. O próprio

Ducrot fez a escolha de relevar aspectos linguísticos em detrimento dos extralinguísticos em sua teoria. Com

isso, o que se busca expressar com este estudo não é a hierarquização das teorias argumentativas, mas uma

mostra de seu funcionamento complementar e por vezes com pontos de tangência, já que ambas falam de

discurso com conteúdo argumentativo, de modo que o fenômeno “Argumentação” seja visto de maneira menos

parcial (nas acepções de menos completo e com menos favorecimento de uma ou outra teoria).

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Conforme Ducrot, a argumentação tradicional é concebida como a produção, por um orador

(“sujeito falante”), de um enunciado A como justificativa de um enunciado C, diferente, numa

trajetória bifurcada em 1) enunciado-argumento A indica fato F (que pode, independente da

intenção de se concluir C, ser verdadeiro ou falso, comprovado ou refutado) e 2) admissão,

por parte do orador, do valor de verdade da conclusão C implicada pelo fato F, assim:

Esquema 01 – Reprodução do esquema de argumentação tradicional

Ducrot [1977] 1989, p.17

São os conectivos que indicam a conclusão: ““A logo C” ou do tipo “C já que A” (o

argumento A designa o fato). A argumentação não é protagonizada pela língua também no

segundo movimento, do fato à conclusão, para o qual são mobilizados “a situação de discurso

e princípios lógicos, psicológicos, retóricos e sociológicos...” (DUCROT [1977] 1989, p.17).

Em outras palavras, para a argumentação retórica, concorreriam argumento e conclusão no

texto, sendo que o argumento indicaria o fato e a conclusão seria obtida a partir do fato, do

extralinguístico.

No entanto, Ducrot aponta para situações em que uma mesma frase ou frases idênticas que

designam o mesmo fato caracterizam argumentos distintos ou até mesmo opostos. Pela

sistematicidade desses casos, é que ele chega à conclusão geral56

de que a argumentatividade

é dada pela significação da frase, pela língua. A frase indicaria os modos de argumentação,

56

Ele diz que determinadas frases têm essa direção argumentativa, mas disse ““certas” por prudência: na verdade

queria dizer “todas”” (DUCROT, [1977] 1989, p.18), mas o alcance de seus estudos até então não o permitiam.

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permitindo certos sentidos57

nos enunciados. Portanto, Ducrot elege não a argumentação

obtida indiretamente pelo “esforço verbal”, mas a ANL, a argumentação “pelo seu meio

direto” (DUCROT, 2003).

A língua passa a ser vista como autossuficiente em termos argumentativos segundo essa nova

abordagem ducrotiana. A argumentação estaria na frase e não nos fatos (ou nas situações e

princípios deles decorrentes e de igual caráter extralinguístico) por ela veiculados, no mundo

externo do qual a língua seria só uma referência. Nesse sentido, a argumentação seria

uma atividade estruturante do discurso, pois é ela que marca as

possibilidades de sua construção e lhe assegura a continuidade. É ela a

responsável pelos encadeamentos discursivos, articulando entre si

enunciados ou parágrafos, de modo a transformá-los em texto: a progressão

do discurso se faz, exatamente, através das articulações da argumentação

(KOCH, 2002, p. 159).

De um elemento constituinte da língua, segundo a ótica retórica, a argumentação passa a

estruturante, constituinte basal, pilar da língua: tanto no que concerne ao sistema quanto à sua

progressão discursiva, com dispositivos próprios que garantem a sua continuidade em

parágrafos, em sua manifestação gráfica ou em turnos enunciativos, conversacionais, para a

formação de texto oral. Elementos esses então de caráter linguístico-argumentativo.

4. 3 O ATO ARGUMENTATIVO DA LINGUAGEM

Quanto ao ato da argumentação, este pode ser estudado mediante os estudos ducrotianos dos

atos da linguagem, mais especificamente do ato ilocucional, realizando-se no e por um

enunciado, mais especificamente naqueles enunciados construídos por um argumento A e

uma conclusão C relacionados por proposições sequenciadas, como na relação entre

parágrafos (A então C/ A portanto C), fugindo da comum interpretação de A como validação

ou justificativa de C.

Os atos da linguagem de Austin58

formariam, didaticamente, uma tríade composta do ato

locucional (o ato de produzir um enunciado gramatical, com sentido e referência, o ato de

57

Pelo exposto, o sentido é a ótica do enunciador no enunciado com determinado valor argumentativo.

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dizer algo), o ilocucional (língua utilizada com finalidades determinadas, é o ato que faz algo,

produz a força da enunciação) e o perlocucional (o efeito do enunciado no interlocutor)

(CABRAL, 2010). Sendo assim, o ato de argumentar estaria ligado à Pragmática59

vista sob dois aspectos distintos [...] o primeiro deles, refere-se ao caráter

eminentemente atuacional de cada um deles, já que evidenciam o sentido

ativo de cada locutor em relação ao ouvinte; o segundo aspecto refere-se a

sua complementaridade necessária, à medida que cada um deles se revela

(pensada sua natureza pragmática) como incompleto para a obtenção de um

efeito de sentido no ouvinte (OSAKABE, 1979, p.97).

Todo enunciado seria “objeto de um ato de argumentar” que seria inscrito em seu sentido, ato

esse que traria a hierarquização do locutor em relação à qualidade de determinado elemento.

Essa qualidade, colocada numa escala, determinaria as conclusões que do enunciado podem

ser derivadas. Por exemplo, a qualidade Q atribuída a alguém, de ser quase vencedor produz

conclusões como não venceu, nunca se esforça para vencer, conclusões de natureza

linguística ou discursiva (CABRAL, 2010). A qualidade não é confundida com as conclusões

que dela podem ser depreendidas, e é com base nessa qualidade que se pode falar das noções

de superioridade e oposição argumentativa:

A noção de superioridade argumentativa estabelece que uma frase f2 é

argumentativamente superior a outra f1 se, em qualquer situação em que o locutor

considera um enunciado E1 de f1 como sendo um argumento utilizável para uma

determinada conclusão, ele também considera o enunciado E2 de f2 como sendo

um argumento utilizável para a mesma conclusão, mas não o inverso (CABRAL,

2010, p.46, grifos da autora).

Então, para exemplificar, Cabral (2010) diz que na hipótese de serem atribuídas as qualidades

“tanque cheio” e “tanque quase cheio” a um carro, sabe-se que se a argumentação se volta

para a distância a ser percorrida. Da qualidade Q = “nível de plenitude do tanque”, tem-se em

58

Teoria apresentada inicialmente em sua obra: AUSTIN J. L. (1962). How to do things with words. Oxford.

Tradução: Quando dizer é fazer. Palavras e ação. Porto Alegre: ARTMED, 1990. 59

Não obstante Oswald Ducrot, em entrevista recente a Antônio Carlos Xavier tenha alegado a tentativa de

combinar Saussure e Austin, ele diz o seguinte sobre a influência da Pragmática em seus trabalhos: Parece-me

que há uma Semântica que pode ser desenvolvida no interior da própria língua sem implicar considerações

relativas à necessidade de ações dos homens, isto se entendermos por Pragmática o estudo das ações humanas

com todos os seus componentes psicológicos e sociais. Mas defendo que há uma Semântica independente da

Pragmática. Minha mulher (Marion Carel), diz que minha Semântica é um pouco do tipo Pragmática, porque eu

utilizo noções de atos, de discurso que são noções do tipo pragmático. Porém, se tomarmos por Pragmática o

estudo geral das ações humanas, eu sei que me situo fora (da Pragmática).” (XAVIER, 2012)

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“tanque cheio” um argumento superior ao segundo. A oposição argumentativa pode ser assim

esquematizada:

A noção de oposição argumentativa ligada ao conceito de ato de argumentar

estabelece que duas frases f1 e f2 são argumentativamente opostas se, em nenhuma

situação, as ocorrências dos enunciados E1 e E2 de f1 e f2 podem servir para

conduzir à mesma qualidade R do ato de argumentar, não podendo atribuir em

nenhum grau a mesma qualidade ao mesmo objeto (CABRAL, 2010, pp.46, 47,

grifos da autora).

Ainda sobre essa oposição/superioridade dos argumentos, Cabral (2010, pp.46, 47) retoma os

seguintes exemplos de Anscombre e Ducrot: “o jantar está pronto” e “o jantar está quase

pronto”. Tais enunciados argumentam para sentidos opostos, no caso do primeiro, tem-se a

qualidade Q de iminência do jantar, no segundo caso, a de não iminência.

Percebe-se, pelos exemplos, que o operador argumentativo quase exerce uma função

argumentativa de grande importância. Por “operador argumentativo”, entende-se um

determinado elemento linguístico que funciona como norteador de sentidos do enunciado, ele

“indica (mostra) a força argumentativa dos enunciados, a direção (sentido) para o qual

apontam” (KOCH, 2002, p. 30), seus modos de argumentação. Mais especificamente, haveria

o funcionamento de elementos linguísticos pontuais cujas condições de funcionamento são

três: tendo uma frase P, pode-se construir P’ com a inserção, com as necessárias adaptações

ou não de um morfema x; P e P’ devem ter enunciados de valores argumentativos distintos; P

e P’ devem veicular a mesma informação, o mesmo fato.

Exemplificando, Ducrot diz que da frase P “Pedro trabalhou um pouco” pode-se derivar a

frase P’ “Pedro trabalhou pouco”, frases essas que evocam argumentações atualizadas em

diferentes momentos de enunciação e indicam o mesmo fato. Essas argumentações podem

ser diferentes na acepção de serem opostas, mas não necessariamente (DUCROT [1977]

1989, p.18-22). Deste modo:

A força argumentativa de um enunciado A deve ser definida como um

conjunto de enunciados C1, C2... etc. que podem aparecer como conclusões

de A. Assim a força argumentativa de um enunciado “Pedro trabalhou um

pouco” consistiria no conjunto de enunciados que podem eventualmente lhe

ser encadeados em um discurso por um portanto ou um conectivo desse tipo

explícito ou implícito. Neste conjunto, encontrar-se-iam, por exemplo, os

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enunciados “Ele está cansado”, “Ele tem o direito de descansar”, “Ele talvez

tenha terminado o artigo” (DUCROT, [1977]1989, p.20).

Conforme já dito, para Ducrot, o ato de argumentar seria um ato de linguagem ilocutório e

teria um caráter “jurídico”, pois traria um efeito proveniente de um poder inerente e imediato

como sua enunciação:

Partia de uma definição de ilocutório – que não tenho nenhuma intenção de

abandonar – de acordo com a qual realizar um ato ilocutório é apresentar

suas próprias palavras como induzindo, imediatamente, a uma transformação

jurídica da situação: apresentá-las, por exemplo, como criadoras de

obrigação para o destinatário (no caso da ordem ou da interrogação), ou para

o locutor, (no caso da promessa) [...] Se realizo um ato perlocutório, como o

de consolar, o efeito que espero neste caso para a minha fala pode ser um

efeito muito indireto, ligado a um encadeamento causal muito complexo [...]

o efeito perlocutório não é, pois, imediato (DUCROT, [1969]1987, p.34, 35,

grifos do autor).

No entanto aqueles enunciados-conclusões (C1, C2...) que conferem força argumentativa a um

enunciado A: como os supramencionados “Ele está cansado”, “Ele tem o direito de

descansar” e “Ele talvez tenha terminado o artigo” que são conclusões derivadas do enunciado

“Pedro trabalhou um pouco”, com a pista do operador argumentativo “um pouco”

possibilitaram, no desenvolvimento da ANL, o acréscimo do entendimento da participação de

vozes diversas em embate, aliando à Teoria dos Atos de Linguagem a Teoria Polifônica da

Enunciação, algo explanado por Ducrot ([1969]1987) em seu prefácio em O Dizer e o Dito:

No que concerne à teoria dos atos de linguagem, ela funda o sentido de um

enunciado nas relações em que este estabelece entre sua enunciação e um

certo número de desdobramentos “jurídicos” que esta enunciação, segundo

ele, deve ter. No que concerne à teoria da polifonia, ela acrescenta a esta

alteridade, por assim dizer “externa”, uma alteridade “interna” – colocando

que o sentido de um enunciado descreve a enunciação como uma espécie de

diálogo cristalizado, em que várias vozes se entrechocam (DUCROT,

[1969]1987, p.9 (prefácio)).

Portanto, esse conjunto de conclusões, ou vozes dialógicas que internalizam no enunciado

uma alteridade, utilizando-se quer “pouco”, quer “um pouco” pendem para a ideia do binômio

trabalho-fracasso, no primeiro exemplo, ou trabalho-sucesso nos outros dois exemplos, mas

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sempre atualizando um discurso de cada vez. Não há exclusão de discurso, já que se podem

admitir ambos os binômios, mas somente um deles é evocado no momento da enunciação.

Porém, cogitaram-se ainda outras possibilidades que demandaram atualizações na teoria. Pode

ser que o mesmo operador argumentativo resulte em conclusões diferentes, ou que as

conclusões resultantes desses enunciados-argumento (A), que dão conta do mesmo conteúdo

factual, sejam idênticas, retirando dos enunciados-argumento ou dos enunciados-conclusão

(C) o poder argumentativo.

Além disso, os próprios operadores argumentativos não estariam descritos a contento, para

Ducrot. Nesses pontos percebeu-se a necessidade de reformulação da teoria como uma

tentativa de sanar as dificuldades.

4.4 DOS PRINCÍPIOS ORIENTADORES AOS BLOCOS SEMÂNTICOS

As lacunas percebidas, por conseguinte, demandaram uma revisão da Teoria da

Argumentação na Língua; o que não significou o abandono total de seus pressupostos,

somente uma reatualização. O poder argumentativo, o caráter “jurídico” não seria mais

resultante das conclusões decorrentes do enunciado, mas intrínseco a ele. Tal valor

argumentativo seria mais regido por princípios que os relacionam, por pontos de vista de

enunciadores, os topoi – algo até então despercebido pela ANL.

Chegou-se, assim, ao formato da ANL que tratava a argumentação não mais definida como o

conjunto de conclusões possíveis de um enunciado, transferindo as conclusões dele

depreendidas a um princípio evocado pela frase, o topos. Em outras palavras, a orientação

argumentativa de A para C perpassaria um topos; o topos permitiria a passagem do argumento

à conclusão. Com isso, a teoria dos topoi argumentativos desloca a atenção do enunciado aos

enunciadores cujos pontos de vista são descritos, resgatando os pressupostos da Teoria

Polifônica da Enunciação (DUCROT, 2003; SENA, G. C. A; FIGUEIREDO, M. F., 2013).

Sendo assim:

Duas condições são apresentadas para que o ponto de vista de um

enunciador possa ser considerado argumentativo. A primeira é que ele sirva

para justificar uma determinada conclusão, que pode estar explícita ou

implícita no enunciado e pode ser assumida ou não pelo locutor. A segunda

condição postula a noção de topos, fundamental nessa fase da teoria. O valor

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argumentativo passa a ser entendido como parte constitutiva do enunciado: o

princípio argumentativo, designado de topos, é o responsável pela orientação

do enunciado em direção à conclusão; é o intermediário entre o argumento e

a conclusão (CAMPOS, 2007).

O ponto de vista do enunciador que coincidiria ou não com a ótica do locutor, intermediaria

argumento e conclusão e isso é o que explicaria que operadores argumentativos diferentes

chegassem a conclusões idênticas ou vice-versa. Reitere-se que a atenção do analista

permanecia ao que era intrínseco à língua, já que esse topos seria interno ao enunciado. É esse

topos, nesse ponto da teoria, que deveria ser descrito na análise argumentativa.

O topos, esse lugar argumentativo, é portador de três propriedades: a universalidade, a

generalidade e a gradualidade. O topos é universal no sentido de que se postula que ele é

comum, ao menos, à fonte e ao alvo da argumentação (enunciador e destinatário), é um

compartilhamento de ponto de vista suposto; é geral pela possibilidade de extensão

sistemática a contextos similares, sendo a situação a qual ele se aplica uma amostragem; e é

gradativo porque se movimenta em duas escalas.

Essa gradação dos topoi, nesse momento, é a base da ANL juntamente com a noção de formas

tópicas. Os topoi lidam com a hierarquização de valores pelos quais se apresentam as

condições a contento dos enunciadores.

Com tais princípios argumentativos, os topoi, argumento e conclusão começaram a ser

relacionados, mas ainda eram vistos como interdependentes. A Teoria dos Blocos Semânticos,

no entanto, uniu-os. Conforme Ducrot (2003), esses encadeamentos formatam um contexto

específico do qual somente uma das conclusões pode ser retirada. O conteúdo do argumento

A só pode ser compreendido na medida em que se compreende a consequência apontada na

conclusão C por um portanto nem sempre explícito. A e C são, por isso, radicalmente

interdependentes.

Ressalte-se, no entanto, que o encadeamento argumentativo não é a justificação de uma

afirmação por outra, mas para qualificar algo, para descrever algo de valor argumentativo. O

portanto então não antecede uma justificação, mas uma descrição. O portanto C já integra o

sentido de A. Sobre a importância de um logos como prova argumentativa, Ducrot salienta que

além do movimento A portanto C, a língua, por meio de elementos como “pouco”, “um pouco”,

“quase” ou ainda por meio de adjetivos como “longe” pode resultar em A contudo não C (como

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em “Pedro estudou pouco, contudo será aprovado no exame”), sendo que a escolha de C ou não

C é aleatória e não categórica, não definitiva, por isso o logos, a significação de A, não teria

valor jurídico, autoridade o suficiente para que o resultado seja a escolha de C ou de não C,

impondo somente o conectivo mediante a significação dada pelo elemento linguístico operante.

Não haveria então o logos como prova discursiva (DUCROT, 2003).

Com a inserção das contribuições de Marion Carel na ANL, argumentar não seria justificar,

por isso, essa estudiosa acresce aos anteriormente trabalhados encadeamentos A portanto C

(A DONC C/ A DC C) os do tipo A no entanto C (A POURTANT C/ A PT C). Esses

elementos linguísticos seriam prototípicos de outros de funcionamento sistêmico similar, para

o DONC, por exemplo, “pois”, “então”, “sendo assim”, “por isso” e etc.; para o POURTANT,

“entretanto”, “mesmo que”, “mas”, “porém”, “embora”, “não obstante” e etc..

O enunciado-argumento A e o enunciado-conclusão C manteriam então uma interdependência

que condicionaria o sentido: o conjunto, o todo formado por A e C – o bloco semântico –é

que portaria o sentido. Não haveria, com isso, uma afirmação que levaria a uma conclusão

como afirma as fases anteriores da ANL. O locutor organiza um enunciado “que contém o

bloco semântico”. Dos conectivos que interligam os segmentos, Carel subdivide a

argumentação em normativa e transgressiva (CABRAL, 2010, p.129; CARNEIRO, 2008):

Quadro 02 – Argumentações normativa e transgressiva

ARGUMENTAÇÕES – TIPOS

NORMATIVA TRANSGRESSIVA

A logo C A no entanto C

A pois C A entretanto C

A então C Embora A, C

A sendo assim, C

[...]

Mesmo que A, C

[...]

A teoria dos blocos semânticos veio para dar conta de uma deficiência dos topoi para os quais

a significação de uma palavra estava assente nos lugares-comuns a serem acessados por

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enunciadores, passando a compreender a argumentação como a composição de segmentos de

discursos encadeados por um conector do tipo normativo ou do tipo transgressivo, os blocos

semânticos.

Contudo, é importante salientar que seja na fase standard, na dos topoi ou na atual, mais

lexical, Ducrot atém-se ao sentido que é permitido pelo discurso, o qual, por sua vez, é

derivado do embate entre vozes anteriores ao dito e nele concretizadas:

Se o sentido de uma palavra está nas suas direções argumentativas e se só o

discurso é doador de sentido, então podemos entender que as direções

argumentativas são dadas pelo discurso, mas estão inscritas nas palavras.

Assim, a palavra evoca o discurso. E se o discurso pode ser entendido, na

perspectiva de Ducrot, como o conjunto de falas anteriores, podemos

entender que a noção de polifonia permanece nessa versão da teoria e que o

conceito de sujeito tripartido também se mantém. Dessa forma, podemos

considerar que o dizer para Ducrot, é maior que o dito; é contraditório, uma

vez que evoca muitas falas anteriores, que podem estar de acordo ou não

com esse dizer do presente; é argumentativo, portanto, diretivo; mas é um

dizer que é captável pela língua e captado por ela, por isso é possível chegar

ao dizer a partir do dito. (DIAS e SANT’ANA, s/d, p. 11)

Sendo assim, é pertinente que a análise nesse trabalho se centre naquilo que é permanente na

teoria, reportando-se a essa polifonia construtora dos discursos e a cada um aspecto desse

sujeito tripartite ducrotiano, independente da fase de elaboração de cada aspecto teórico.

Desse movimento de constante reatualização da teoria, pode-se depreender que “toda fala,

tenha ela ou não objetivos persuasivos, faz necessariamente alusão a argumentações seja em

contudo (não C), seja em portanto (C)”. Essa afirmação de Ducrot (2003) permite que as

argumentações retórica e linguística tenham um momento de reconciliação, já que se pode

recorrer à figura do locutor que organiza logicamente seus argumentos (lembrando que o

locutor é definido como o responsável pela enunciação).

À concessão, à capacidade de antecipação de um argumento B que poderia conduzir a “não

C” em seu discurso, o locutor poderia fazer com que se seguisse um “mas”. Pode-se perceber

isso implicitamente, quando Rui Barbosa afirmou que “o escravismo revestiu, entre nós

exterioridades insidiosas, que o tornam mais perigoso que a franca apologia do cativeiro:

declarou-se emancipador” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.75). Ele trouxe o que

poderia ser um contra-argumento para seu discurso. Explicitamente, então, em vez de se ter

algo como “é necessário que existam mais abolicionistas”, facilmente refutável por um “mas

todos são abolicionistas”, há, no Parecer ao Projeto Dantas algo como “todos são

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abolicionistas, mas é necessário que o grau de adesão à causa seja mais forte” ou “todos são

abolicionistas, mas é necessário que sejamos mais liberais” apontando para a necessidade de

implementação de medidas jurídicas complementares às já existentes e que corroboram para

uma abolição geral. Essa antecipação colabora com o ethos do locutor como alguém

fidedigno, preparado para o que sustenta, já que percebe de antemão as possíveis objeções,

além de ser aberto a pontos de vistas divergentes, pois mesmo que sejam refutados, foram

antes lembrados (DUCROT, 2003).

Esse sentido pretendido pelo locutor já se inscreve na frase quando se fala de uma

emancipação eminentemente escravagista, de modo negativo ressalta a abolição tolhida por

interesses escravocratas. Ou de uma “quase” abolição, ou de parlamentares “um pouco”

abolicionistas. Há, então, um encadeamento argumentativo cristalizado no próprio léxico,

juízos exteriores incorporados na própria língua, naturalizados por estereotipia, que podem ser

manobrados para fins de convencimento/persuasão. Tornam-se também eficazes quando se

faz o uso evidente do portanto: ao se dizer, por exemplo, que “todos são abolicionistas,

portanto todos devem ser a favor da abolição geral”, o termo “abolicionista” explícito,

demonstra qual encadeamento evocado, já que o próprio termo no vocabulário da Língua

Portuguesa permite associar abolição e liberdade (DUCROT, 2003).

Como Ducrot disse em entrevista: “A significação das palavras se constitui pelas

argumentações”60

. Essa assertiva dá conta do estado atual da teoria da ANL e seu

desenvolvimento por Marion Carel e Oswald Ducrot. Quaisquer elementos, sejam eles

gramaticais ou lexicais portariam argumentatividade. Isso mantém então o estatuto dos

operadores argumentativos, como elementos que carregam consigo conteúdos pressupostos os

quais são de responsabilidade do locutor e do interlocutor, ou ainda partilhado por terceiros,

ou por toda uma comunidade – sendo assim, esses operadores trazem outras vozes para o

enunciado. Cabe ao analista depreender das frases da língua uma significação norteadora do

sentido de seus enunciados, e esse é o exercício a ser feito no Parecer ao Projeto Dantas.

60

DUCROT apud XAVIER, 2012.

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5. O PARECER AO PROJETO DANTAS: BLOCOS SEMÂNTICOS E A

NEGAÇÃO DA ESCRAVIDÃO

“A escravidão [...] E’ a posse, o dominio, o sequestro de um homem – corpo,

intelligencia, forças, movimentos, activividade – e só acaba com a morte”.

(NABUCO, [1883] 2011, p.161).

Saindo da ideia de que a passagem de um argumento a uma conclusão perpassaria os topoi–

discursos partilhados por uma comunidade, integrantes de um enunciado pela cristalização de

sentidos – e transferindo a noção de argumentação para o funcionamento conjunto do

enunciado-argumento e enunciado-conclusão, que formariam um todo semântico, analisar-se-

ão alguns enunciados produzidos sobre a relação propriedade-indenização, legitimadora da

escravidão, do direito escravocrata que se confronta com o binômio liberdade-não

indenização mola-mestra do direito abolicionista. A argumentação deixa de ser justificação

para ser um elemento construtor da própria língua e, por analogia, do texto do Parecer ao

Projeto Dantas.

5.1 O PARECER E A TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS

A significação do léxico é o principal alvo de estudos da Teoria dos Blocos Semânticos.

Conceitos como argumentação normativa e transgressiva, argumento externo e interno, bem

como o de argumentação estrutural e contextual abarcam o significado de uma palavra.

Portanto, não é feita uma análise exaustiva do funcionamento de cada bloco semântico

presente na definição de cada vocábulo do Parecer ao Projeto Dantas, e sim de alguns

encadeamentos, escolhidos porque entende-se que comportam as ideias mais recorrentes no

texto. Por essa razão, procede-se ao exame daqueles âmbitos de significação mais

representativos por meio da análise do significado de determinadas palavras-chave que

permitem o entendimento de certos enunciados.

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5.1.1 Encadeamento propriedade-indenização: norma e transgressão

Assumindo-se o prisma de que a argumentação seria decorrente do encadeamento de blocos

discursivos por conectivos dos tipos normativos ou transgressivos, o binômio propriedade-

indenização assume a roupagem de bloco semântico já que dá conta de um único conteúdo

semântico. Seus encadeamentos possíveis seriam:

Quadro 03 – Encadeamentos do bloco semântico propriedade-indenização

I. Propriedade portanto indenização

A portanto C

II. Propriedade no entanto indenização

A no entanto C

III. Não propriedade portanto não indenização

Não A portanto não C

IV. Não propriedade no entanto não indenização

Não A no entanto não C

Norma e transgressão são argumentações resultantes da inter-relação de termos de um

enunciado: “[o articulador] liga sempre duas argumentações respectivamente da forma A

conector B e não-A conector não-B: elas são ou ambas normativas (“conector” é, nos dois

encadeamentos do tipo de donc), ou é transgressiva (“conector” é, nos dois encadeamentos do

tipo de pourtant)” (CAREL, 2002, p. 34, grifos da autora).

Conforme os encadeamentos do Quadro 3, a atitude do locutor mediante os enunciadores

pode ser de concordância, confirmando seu ponto de vista ou de discordância, refutando-o.

Cada um desses posicionamentos corresponde a uma regra: por um lado, I. confirma o bloco

semântico, constituindo a regra 1; e, por outro lado, III. refuta-o, regra 02.

Cada regra comportaria aqueles dois aspectos, o normativo, quando os seguimentos são

unidos por portanto e o transgressivo, quando os encadeamentos são ligados por no entanto:

a regra 01 teria como aspecto normativo I e transgressivo II; a regra 02, por sua vez, tem

como norma III e transgressão, IV.

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Privilegiando um ponto aspectual e sua regra correspondente, o locutor Rui Barbosa assim se

pronunciou em um evento enunciativo sobre o Projeto Dantas:

O que imprimia caráter radical ao projeto Dantas, entre todos os outros

tentamens de transação, estar em ser ele o único onde, proscrevendo-se a

indenização, se firmava na maior transparência, com o princípio da

liberdade gratuita, a negação da propriedade servil. A escravidão

compreendeu-o; viu nesse ensaio libertador a célula da abolição

incondicional e, percebendo que jogava a sua sorte, envidou assomos

inauditos, no delírio de um desespero descomunal, para subverter a audácia

dessa iniciativa numa catástrofe exemplar (BARBOSA, 1888, v.15, t.1, p.

153, grifo nosso).

Por meio desse discurso laudatório, Rui Barbosa, em retrospecto, sintetiza o que seria a ideia

principal do Projeto Dantas. Mesmo que tal projeto tenha sido refutado em suas bases – em

consequência de um momento histórico em que o âmbito jurídico havia sido transformado em

instrumento legitimador dos interesses senhoriais revestidos de proteção à liberdade

(MENDONÇA, 2008) –, ele havia sido compreendido como momentoso já que apresentara,

principalmente, a ideia decisiva para o abolicionismo geral gratuita.

Não há a apreciação do elemento propriedade do encadeamento isoladamente, nem de

indenização também isoladamente. Percebe-se o encadeamento como interdependente,

propriedade portanto indenização, como um todo significativo, um bloco semântico.

O conjunto deve ser considerado pelo fato de que, ainda que o portanto ou o no entanto apontem

para a norma ou transgressão do encadeamento precedente, a implicação, no caso da norma, ou a

distorção/ “ambiguidade” argumentativas, no caso da transgressão, só são plenamente constatadas

levando-se em conta também o seguimento subsequente (CAREL, 2002).

Contudo, o locutor não assume as duas posições ao mesmo tempo: não admitiria a

simultaneidade em existir um sistema de propriedade do homem sobre o homem

indenizatória, A PT C, coexistente com a sua inversão, uma não propriedade do homem sobre

o homem gratuita, não A PT não C. O emprego desses blocos conduz a uma restrição de

sentido pelo locutor.

Portanto, pode-se dizer que há, pelo locutor Rui Barbosa, a assunção de que o Projeto Dantas

assume a posturado aspecto normativo da regra 02: não propriedade portanto não

indenização. Portanto, a ideia de posse, de propriedade, imperativa em reivindicar uma

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compensação financeira ou por prestação de serviços não é a defendida pelo locutor. É esse o

sentido que será dado ao Projeto:

Quadro 04 – Descrição do evento enunciativo 1

EVENTO ENUNCIATIVO1

Bloco Semântico propriedade-indenização

Regra 02 Não propriedade PT não indenização

Aspecto Normativo A portanto C

Enunciador 1 (E1) O Projeto Dantas é radical, pois visa a abolição

incondicional transgredindo o direito à

indenização

Enunciador 2 (E2) O Projeto Dantas é legítimo, pois visa a

abolição incondicional sem indenização

O Projeto Dantas é visto então, com base no enunciado supracitado, pelo menos, sob dois

prismas: E1 seria um dos pontos de vista, escravagista, o qual se opõe ao locutor combatendo-

o, pela percepção de seu radicalismo por fugir à defesa dos direitos senhoriais; e E2 o outro,

emancipatório, que negaria a existência de um direito à indenização, afirmando,

complementarmente a liberdade interpretada pelo locutor como a genuína, a que prescinde de

compensação.

Por meio de asserção, locutor Rui Barbosa assume o posicionamento de E2 orientando, pelo

reforço a esse ponto de vista, o sentido de que não deveria haver indenização em decorrência

do fato de a escravidão ser ilegítima devendo ser substituída pela abolição geral e

incondicional. No mesmo sentido, aponta o seguinte excerto:

Os fatos, as reformas libertadoras desde o começo dêste século mostram no

título de propriedade, atribuído ao senhorio do homem sôbre o homem, um

eufemismo sem realidade no espírito humano e cada vez menos realizado

nas instituições que protegem essa dependência odiosa. A liberdade é uma

restituição, e a indenização perde rapidamente o caráter de um direito. O que

ela é, o que pode ser, o que tem sido, por tôda a parte, é uma conveniência,

conveniência mais ou menos respeitável, não tanto em homenagem aos

interesses dos senhores, como em satisfação ás necessidades econômicas do

Estado (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p. 105, grifo do autor).

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Quadro 05 – Descrição do evento enunciativo 2

EVENTO ENUNCIATIVO 2

Bloco Semântico propriedade-indenização

Regra 02 Não propriedade PT não indenização

Aspecto Normativo A portanto C

Enunciador 1 (E1) A liberdade é uma restituição do direito humano,

universal de não ser submetido

Enunciador 2 (E2) A indenização é uma restituição do direito de

propriedade dos senhores

A assunção do ponto de vista de E1 pelo locutor mantém, nesse excerto do texto do Parecer

ao Projeto Dantas, a negação do bloco semântico propriedade-indenização pelo aspecto

normativo da regra 02: liberdade é restituição de direito humano, neutralizando assim as

causas para indenização. O locutor recorre ao que é amplamente aceito pela via tradição,

oriunda de um modus operandi, opinião popular geral, o que é ratificado quando se diz que:

A questão que se contende entre a indenização e a gratuidade, não é uma

questão de direito, mas uma apreciação do interesse público que aconselha

se repeite, até onde a ordem geral e a fortuna nacional o exigirem, a boa fé

de interesses criados ao abrigo das instituições ou dos costumes do povo.

É sob este aspecto que encararemos a libertação dos escravos de sessenta

anos. ” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.121)

Reitera-se, com isso, que mesmo que o encadeamento admita arranjos argumentativos

normativos ou transgressivos, o emprego de um bloco semântico por um locutor que assimila

um enunciador incorre em exclusão da argumentação pela norma ou pela transgressão.

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Quadro 06 – Descrição do evento enunciativo 3

EVENTO ENUNCIATIVO3

Bloco Semântico propriedade-indenização

Regra 02 Não propriedade PT não indenização

Aspecto Normativo A portanto C

Enunciador 1 (E1) A contenda entre indenização e gratuidade é uma questão de

interesse público que abriga verdades instituídas

Enunciador 2 (E2) O Projeto Dantas se submete a uma questão de interesse

público, obedecendo a verdades instituídas

Sendo assim, o Projeto Dantas, ao defender a liberdade irrestrita dos sexagenários, sem

indenização, obedeceria aos costumes tradicionais, um clamor popular, supraindividual,

formatador da lei. No Parecer, essa afirmação trazida pelo trecho está em meio a uma análise

da jurisprudência histórica, tanto romana, quanto lusitana e depois brasileira, todas apontando,

segundo a análise ruiana, para a liberdade como um pressuposto moral, convencionalmente

conformado e conformador das leis.

Mas nem sempre a indenização era vista como algo que corroborava o direito à propriedade

escrava. Como um exemplo, recuando no tempo e recorrendo à análise da Lei do Ventre

Livre, de 1871 – tida como precursora do Projeto Dantas já que ambas tratariam da abolição

de segmentos sociais visando o movimento da abolição gradual à abolição geral – Rui

Barbosa traz a voz do parlamentar Paulino de Sousa, para o qual a indenização auferida pela

libertação dos nascituros representava a expoliação ao direito de propriedade:

O nosso direito pátrio, tanto o português como o brasileiro, sempre

consagrou e reconheceu o princípio do partus sequitur ventrem, e sempre

respeitou a jurisprudência constante e uniforme dos nossos tribunais. Logo, o

fruto do ventre escravo pertence ao senhor dêste tão legalmente como a cria

de qualquer animal de seu domínio. Por mais que esta conclusão ofenda os

nossos sentimentos humanitários, é ela incontestavelmente lógica e

conforme a lei.

A proposta do governo, porém, ataca e desrespeita esse direito, decretando a

liberdade dos filhos das escravas, que nascerem depois da lei, e

conseguintemente desapropriando o cidadão daquilo que é legalmente do seu

domínio, sem indenizá-lo previamente, na forma da Constituição.

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Realmente senhores, a proposta fala em indenização: mas, quer se trate de

indenização pecuniária, quer de indenização pelos serviços dos libertos, eu

as reputo ilusórias e de nenhum modo suficientes. (BARBOSA, [1884] 1945,

v.11, t.1, p.93, grifos do autor).

Quadro 07 – Descrição do evento enunciativo 4

EVENTO ENUNCIATIVO 4

Bloco Semântico propriedade-indenização

Regra 02 Não há propriedade DC não há indenização

Aspecto Transgressivo A no entanto C/ Não propriedade NE indenização

Enunciador 1 (E1) O ventre das escravas era uma propriedade, resguardada

historicamente por direito e por isso requeria indenização

Enunciador 2 (E2) A indenização estipulada pela Lei do Ventre Livre, por ser

insuficiente, feria o direito à propriedade

Nesse caso, a argumentação transgressiva propriedade no entanto indenização é o viés

escolhido pelo parlamentar Paulino de Sousa. Em outras palavras, ele disse que embora

houvesse a admissão legal de uma indenização, a prevista na Lei do Ventre Livre, ela não se

prestava ao esperado pelos senhores, a uma reparação de direitos perdidos após manumissões

dos nascituros, mas seria um engodo, um auxílio para custear a educação do menor.

Porém, quanto a isso, é importante que se façam algumas observações. Falando em sentido, é

cauteloso explicar que, segundo Lysie dos Reis Oliveira (2012), educação e criação podem ser

vistos como termos que se diferenciam nesta época:

Apesar de não discordarem de que a paz social dependia de educação, não

havia um consenso sobre as estratégias. Houve negociação. Prevaleceu o

interesse dos senhores. Aí, sim, uma sutil diferença entre criar e educar se

fez presente. Educação, palavra que enfim aparece no texto da lei, só

receberiam aqueles que os senhores entregassem ao governo, em troca da

indenização de 600$000 (seiscentos mil-réis), ou os que lhes fossem

retirados, em caso de comprovação de maus-tratos. Não só associações e

estabelecimentos criados para tal fim estavam autorizados a recebê-los, mas

também Casas de Expostos, bem como pessoas que os juízes de órfãos

determinassem. [...] No texto da lei, as que ficassem na posse dos senhores,

nas fazendas, seriam criadas, não educadas. Em suma: quanto à educação,

sua responsabilidade estava anulada. A indenização ou a exploração de sua

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mão de obra eram recompensas que os impediriam de vê-las como um ônus.

Se assim não fosse, possivelmente muitos não teriam interesse em que

escravas dessem à luz, podendo inclusive atentar contra isto.(OLIVEIRA,

2012, p.118)

Educação incluiria instrumentalizar o indivíduo para a vida em sociedade, tanto no tocante à

aquisição de regras morais por vias religiosas, quanto à aprendizagem de um ofício, envolvendo

o letramento dos menores também. Essa autora recorda também que naquele momento histórico

a educação não era obrigatória e que havia um temor generalizado de que a instrução insuflasse

os negros às revoltas. Segundo essa interpretação da história, se havia motivo para que o

parlamentar supracitado sentisse que os direitos dos senhores estavam sendo usurpados, seria

pela obrigatoriedade de criação dos escravos menores sob a Lei de 28 de setembro de 1871, não

pela obrigatoriedade de educação; seria pelo fornecimento de meios de subsistência aos

menores para garantir condições da exploração de sua mão-de-obra enquanto não chegassem à

idade de sua alforria efetiva aos 21 anos. (OLIVEIRA, 2012, p.118).

Não obstante a diferenciação entre criar e educar que pode ser depreendida, e a não inclusão

da obrigatoriedade de se educar os negros e sim de “criá-los e tratá-los”61

havia uma

insatisfação pela quebra de expectativa do recebimento de um valor pelo senhores e a

prescrição de outro valor, pela lei. Ainda sobre isso versa o próximo subtópico.

5.1.2 Modificadores realizantes e desrealizantes

Retornando ainda à história como meio de validar o discurso escravocrata, evocando inclusive

o princípio do partus sequitur ventrem, o locutor Paulino de Sousa lamenta que, mesmo que

se tratasse de uma abolição prevendo indenização, a Lei do Ventre Livre não resguardaria os

interesses senhoriais (o que contraria análises posteriores62

), já que a indenização seria

correspondente ao valor necessário para garantir a educação do menor libertando.

Concordando com isso, Rui Barbosa assim expressa:

Tinha razão [...] a intitulada indenização, oferecida ao senhor no artigo 1º.,

§1, da lei de 28 de setembro, como compensação da propriedade dos frutos

do ventre, é perfeitamente imaginária [...] essa compensação se destina a

61

Cf. Anexo E – Lei do Ventre Livre. 62

Cf. AZEVEDO (2003), MENDONÇA, 2008 E NABUCO, [1883], 2011, p.68.

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ressarcir aos senhores as despesas com a criação e o tratamento do ingênuo

durante os outros primeiros anos da vida. (BARBOSA, [1884] 1945, v.11,

t.1, p.95).

O adjetivo “imaginária” posposto ao substantivo “indenização” também atua na força

argumentativa, agindo como um modificador. Quanto a essa modificação, pode-se dizer que

se dá desde a atenuar a força de um enunciado até invertê-la. Acontece também de o

modificador reforçar seu valor argumentativo. Nas três ações, o modificador é um termo que

altera o topos de um predicado do enunciado (CABRAL, 2010).

Tal modificador, “imaginária”, vai de encontro à palavra “indenização”, atenuando seu

sentido, configurando-se então como um modificador desrealizante atenuador, já que se

trataria de uma indenização existente, concreta, mas tão sem efeito quanto algo imaginário ou

tão sem ação prática como uma “intitulada indenização”, um significante sem objeto. Do

mesmo modo, atua o modificador “ilusórias”, nos termos supramencionados por Paulino de

Sousa ao se referir tanto à indenização pecuniária quanto àquela por prestação de serviços.

Também na direção argumentativa oposta à “indenização” está o vocábulo “sem” de Paulino

de Sousa: “desapropriando o cidadão daquilo que é legalmente do seu domínio, sem indenizá-

lo previamente, na forma da Constituição” (chefe Paulino de Sousa, apud BARBOSA, [1884]

1945, v.11, t.1, p.93, grifos do autor); agora como um modificador desrealizante inversor, já

que pressupõe que não haveria indenização, invertendo a orientação argumentativa,

equivalendo a uma negação.

Esse modificador desrealizante inversor se coadunaria aos internalizadores do tipo

transgressivo, enquanto que a argumentação normativa teria correspondência com os

modificadores realizantes, ficando o modificador desrealizante num entre lugar por não haver

um meio termo entre norma e transgressão. Como conclui Ducrot (2002, p.23): [...] os

internalizadores normativos parecem aproximar-se dos modificadores “realizantes” e os

transgressivos dos “desrealizantes”.

Então, a indenização segundo as palavras de Rui Barbosa logo acima, seria “perfeitamente

imaginária”; nesse caso, “perfeitamente” um adjetivo modificador que atua na mesma direção

que “imaginária”, aumentando-lhe a força argumentativa, sendo um modificador realizante

que facilita a aplicação do topos. Sobre esses modificadores, pode-se depreender que:

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Desse modo, determinada palavra pode ser considerada um modificador

desrealizante em relação a outra palavra se o sintagma em que se encontram

as duas palavras juntas tem uma orientação inversa ou uma força

argumentativa inferior à da segunda palavra.

Diremos, ao contrário, que uma palavra é um modificador realizante quando a

combinação das duas palavras tem a mesma orientação argumentativa da

segunda e uma força argumentativa superior a ela (CABRAL, 2010, p. 97, 98).

Com isso, o locutor Paulino de Sousa só é trazido para o enunciado ruiano para reforçar que a

indenização não era suficiente. No entanto, para Paulino de Sousa, isso era motivo de

protesto, já que a indenização estaria aquém do esperado, sendo equivocadamente estimada, já

que feriria algo constitucionalmente assegurado; para Rui Barbosa, ao contrário, a

indenização seria propositalmente insuficiente, já que essa seria a única configuração moral e

legalmente possível: a existência em lei de uma indenização só poderia ser aceita enquanto

“indenização imaginária” ou pseudoindenização, somente como e quando reversível para os

cuidados do próprio elemento escravizado.

O sentido é constituído, pois, pelo confronto da voz do locutor Rui Barbosa com a voz dos

enunciadores do discurso de Paulino Sousa, locutor esse que se representa como uma amostra,

materializando toda uma vocalização escravocrata.

5. 1.3 Argumentos internos, externos e suas relações

O todo significativo propriedade-indenização pode ainda ser visto como bloco de argumentos

internos da palavra “escravidão”, como que carregando parte constituinte de seu significado

interno, de tal forma que não só é patente nos enunciados de uma língua, como na sua forma

dicionarizada, que congela a dinâmica e preserva-os ao longo do tempo. Tanto que dicionários

atuais assim definem a escravidão:

a. O Novo Dicionário Aurélio (2004), versão eletrônica traz:

escravidão

[De escravo + -idão.]

Substantivo feminino.

1.Estado ou condição de escravo; escravatura, escravaria, cativeiro, servidão.

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2.Falta de liberdade; sujeição, dependência, submissão, servidão,

escravatura:

Os empregados daquela usina queixavam-se de viver na escravidão.

3.Regime social de sujeição do homem e utilização de sua força, explorada

para fins econômicos, como propriedade privada; escravatura.

b. O mesmo termo é assim definido pelo Dicionário Unesp do Português

Contemporâneo (2004):

ESCRAVIDÃO es-cra-vi-dão Sf 1 redução à condição de escravo;

escravização [...] 2 regime de sujeição do homem e sua exploração como

propriedade privada; escravatura 3 condição de escravo, servidão 4

aprisionamento; dependência[...] 5 sujeição; submissão [...] O Ant. de 2 a 4 é

liberdade.

As acepções 1 a 3 do Aurélio (2004) e do dicionário Unesp (2004) são mais restritas ao

contexto situacional da escravatura no Brasil, resguardando os aspectos relacionados a um

sistema social de trabalho compulsório, no qual um homem é sujeito a outro homem como sua

propriedade, somente podendo eximir-se dessa sujeição mediante ressarcimento estipulado

pelo senhor, que possui poder legitimado pelo regime escravocrata.

A argumentação interna (AI) de “escravidão” não realiza essa palavra no encadeamento

aspectual, seja no interior de seu antecedente, antes do PT ou do NE, ou no interior de seu

consequente, depois do PT ou do NE. Sendo assim, o exame da definição interna de

escravidão circulante na década de 1880 configurar-se-ia:

Quadro 08 – Esquema de AI de “escravidão”

AI (escravidão): propriedade PT indenização

Lê-se: A argumentação interna de escravidão corresponde a propriedade portanto indenização.

Baseado em CABRAL (2010).

A argumentação interna de uma expressão, adicionalmente, passa por uma mudança aspectual

quando inserida a negação. Assim, o esquema propriedade PT indenização, AI de

“escravidão”, passa a propriedade NE NEG indenização, AI de “não escravidão” ou

“abolição”:

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Quadro 09 – Esquema de AI de “abolição”

AI (abolição): propriedade NE NEG indenização

Lê-se: A argumentação interna de abolição corresponde a propriedade no entanto não

indenização.

Baseado em CABRAL (2010).

Ou seja, quando se parte da análise da AI de uma expressão (E), utiliza-se, para sua

conversão um outro conector (CON) mais uma negação. De A CON C (E= escravidão), há o

converso, A CON’ NEG C (E= abolição). Então não há uma gradação de sentido, mas uma

mudança decorrente da negação de seus aspectos argumentativos internos e uma noção de

processo feito com uma contrariedade a determinada norma. Por isso, ao enunciar que

“proscrevendo-se a indenização, se firmava na maior transparência, com o princípio da

liberdade gratuita, a negação da propriedade servil” (BARBOSA, 1888, v.15, t.1, p.153),

pode-se analisar essa conversão interna à palavra funcionando também em um enunciado. Isso

porque, conforme Carel:

a definição da conversão pode ser ainda estendida de modo que ela possa

comparar não somente argumentações e enunciados, mas também simples

palavras. Assim, a palavra prudente evoca, pela sua própria significação:

é perigoso, donc ele toma precauções

Esse encadeamento é totalmente interior a prudente. Ele lhe é interno. Por

generalização da noção de argumentações conversas, dir-se-à então que é

conversa a prudente uma palavra cuja significação condensa o encadeamento

converso:

é perigoso, pourtant ele não toma precauções

Notar-se-á que se trata da palavra imprudente. A relação de conversão que

opunha os dois enunciados ligados pelo mas de

A faculdade é loteria: Pedro foi aprovado, mas João foi reprovado

e opunha ainda os dois seguimentos da máxima:

Em abril, não deixes de usar roupas quente, em maio faz o que te agrada

opõe também as palavras antitéticas como prudente e imprudente. Fatos

desse gênero levam a dar à relação de conversão um status fundamental nas

descrições lingüísticas [...] (CAREL, 2002, p.42, 43, grifos da autora).

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A conversão então por ser um modo de descrição linguística sistemático, dando-se desde a

processos internos de uma palavra até á relação entre enunciados de um “mas” marcado ou

implícito pela relação de oposição, ou de contrate de ideias; conversão essa imediatamente

consequente das relações de norma e transgressão.

É nesse sentido que Ducrot (2002, p.7) afirma que o trabalho da Teoria dos Blocos

Semânticos opera, ao mesmo tempo, numa micro e macrossemântica, ocupando-se das

relações desses elementos que permitem uma descrição semântica interna às palavras e numa

descrição semântica de enunciados constitutivos de uma língua respectivamente: seja pela

convocação de discursos, seja pela modificação desses discursos.

Retornando ao encadeamento IV, aspecto transgressivo da regra 02 do Quadro 02,

propriedade no entanto não indenização percebe-se que ele se expressa pelo seguinte

esquema: propriedade NE NEG indenização, sendo argumento interno converso de escravidão

(propriedade PT indenização), passando a argumento interno de abolição pela introdução da

NEG indenização. A negação do aspecto de uma regra de um vocábulo resulta na sua

transposição semântica, em seu vocábulo converso. Com base nisso, se há uma forma A CON

C, sua forma conversa será A CON’ NEG C.

Uma outra mudança de sentido pode se dar também pela transposição de aspectos entre

expressões também por meio da negação, só que elementos transpostos serão os que passam

de uma forma A CON C para NEG A CON’ C, como em: propriedade PT indenização,

argumento do âmbito de “escravidão” transposto em não propriedade NE indenização,

argumento interno de “abolição”.

Os dicionários supracitados dão conta dessa passagem de aspectos ou dessa mudança

aspectual da transposição e da conversão. Para “abolição”, no Aurélio (2004) há duas

acepções complementares: uma mais ampla, “ação ou efeito de abolir, extinção” e outra mais

restrita “abolição da escravatura”; no Unesp (2004), as definições: “anulação ou extinção de

qualquer instituição, lei, prática ou costume”, “libertação (dos escravos no Brasil), extinção,

supressão. Mais especificamente quando tocam nas nuances relativas ao fim da escravidão ou

não escravidão pela liberdade dos escravos, é que se percebe a negação de “escravidão” .

Quanto ao funcionamento da argumentação externa, pouco explorado por Marion Carel,

sendo paulatinamente objeto de estudos posteriores, o termo “abolição” ocorre no

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encadeamento, seja normativo ou transgressivo. Como exemplos de argumentos externos de

abolição, poderiam figurar, abolição PT humanitarismo ou abolição NE humanitarismo:

Quadro 10 – Argumentações externas do bloco semântico abolição-humanitarismo.

I. Abolição portanto humanitarismo A portanto C

II. Abolição no entanto humanitarismo A no entanto C

Relacionando esses encadeamentos linguísticos externos à palavra “abolição”, pode-se

perceber que a introdução da negação produz reciprocidade entre: Há abolição PT há

humanitarismo (AE = E) e Não há abolição PT não há humanitarismo (AE = não E); ou ainda

entre Há abolição NE há humanitarismo (AE= E) e em Não há abolição NE há humanitarismo

(AE= não E):

Quadro 11 – Argumentações externas do bloco semântico escravidão-humanitarismo.

I. Escravidão portanto não humanitarismo A portanto não C

II. Escravidão no entanto não humanitarismo A no entanto não C

Isso quer dizer que as argumentações externas de E e de não E, de abolição e de escravidão

são recíprocas:

Quadro 12 – Argumentações externas recíprocas

Se A CON C AE de E então seu recíproco NEG A CON NEG C AE de não E.

Lê-se: Se o encadeamento argumento-conector-conclusão pertence à argumentação externa de

uma expressão então seu recíproco negação do argumento-conector-negação da conclusão

pertence ao argumento externo do aspecto converso dessa expressão.

Baseado em CABRAL (2010).

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Alguns aspectos desses encadeamentos são trazidos pelo seguinte enunciado:

Pode-se dizer que uma só, dentre tôdas as propriedades existentes, ou

possíveis, é anterior e superior à lei, independente dela e inacessível à sua

soberania: é a propriedade do homem sôbre si mesmo, a propriedade por

excelência [...] onde quer que uma intervenção [...] procura destruir essa

propriedade suprema, a natureza íntima da humanidade reage, e, por uma

série de transações crescentes com o espírito de liberdade, obriga a lei [...] a

contradições [...] Mais tarde intervem o Estado como grande libertador,

impondo limites de preço, ou condições de alforria gratuita. E assim se vai

gradualmente desmembrando, entre reclamações cada vez mais violentas do

expropriado, o direito abominável, que, sem outro título mais que a sua

excepcionalidade atroz, pretende absorver,e conculcar nas vítimas do seu

egoísmo todas as qualidades humanas.(BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1,

p.103, 104)

Barbosa se refere a um humanitarismo aviltado, menosprezado, conculcado pelo direito

bárbaro, desumano, cruel, da propriedade do homem sobre o homem que infringe o direito

hierarquicamente superior, acima inclusive de deliberação jurídica porque intrinsecamente

humano, da “propriedade do homem sôbre si mesmo”. Existe, pois, uma relação aspectual

entre as expressões humanitarismo, direito e liberdade que a depender de sua arrumação em

blocos semânticos tendem mais para o significado de abolição ou de escravidão.

Já no que diz respeito à argumentação externa, a conversão tem um funcionamento diverso do

da interna. Tanto o A CON C, quanto o seu converso o A CON’ NEG C fazem parte da

argumentação externa de uma expressão. Assim tanto: abolição PT humanitarismo, quanto

abolição NE não humanitarismo fazem parte da AE de “abolição”, perfazendo o seguinte

quadro de argumentos externos em que I e IV e II e III são os conversos:

Quadro 13 – Argumentos externos “abolição”

I. Abolição portanto humanitarismo A portanto C

II. Abolição no entanto humanitarismo A no entanto C

III. Abolição portanto não humanitarismo A portanto não C

IV. Abolição no entanto não humanitarismo A no entanto não C

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Os encadeamentos II e III, A CON’ C e ACON NEG C são paradoxais, assim como seria o

encadeamento externo NEG A CON C: Não há abolicionismo, portanto há humanitarismo.

Esse viés paradoxal é trazido na fala de José de Alencar, quando afirma que a libertação de

nascituros seria uma modalidade de abolição desumana, porque impediria o convívio familiar,

além de provocar a incivilidade pela desigualdade do trato aos cativos, já que alguns teriam a

liberdade mais palpável do que outros:

Eu acrescento que essa idéia da libertação do ventre desorganiza o trabalho

livre, dando-lhe por exemplo e mestre o trabalho escravo: ao mesmo tempo

aniquila o trabalho escravo, pondo-lhe em face, a todo instante, a imagem da

liberdade. Finalmente contamina a nova geração, criando-a no seio da

escravidão, ao contacto dos vícios que ela gera (Muitos apoiados da

oposição)

Não é de certo, por êsses meios, subvertendo os dogmas sociais, aniquilando

a família, degradando a espécie humana ao nível do bruto, destruindo os

mais nobres estímulos do coração, e substituindo-os por paixões rancorosas:

não é dêste modo que os pretensos apóstolos da liberdade e da civilização

hão de consumar sua obra. [...] (José de Alencar apud BARBOSA, [1884]

1945, v.11, t.1, p. 72, grifos do autor)

Então Alencar e outros opositores à Lei do Ventre Livre eram um grupo que embora

abolicionista que não era a favor da libertação do ventre livre. Rui Barbosa o traz como

representante das objeções sempre presentes em cada avanço legislativo concernente às

manumissões graduais. O que se discute é que o que eles pretendiam, na verdade, era a

instauração de leis que mesmo que resultassem em abolição, resguardasse os interesses dos

senhores (MENDONÇA, 2008). Esses parlamentares, como um todo, formavam então um

grupo de abolicionistas, no entanto, não eram a favor da libertação por iniciativa jurídica. A

palavra abolição então, para designá-los ganha traços paradoxais, quando se pensa em libertar

PT não libertar ou libertar NE libertar sem a lei, por exemplo.

Baseando-se no exposto, pode-se dizer que sobre o funcionamento de regra e aspecto, a regra

diz respeito a um modo de ver as coisas, seja em portanto, seja em no entanto e que ela se

bifurca em aspectos, um que a confirma – normativo, obediente à regra, e que pode

disponibilizar de modificadores realizantes – e outro que a refuta – o transgressivo, que

contaria com modificadores desrealizantes inversores, obstáculo a ela. Essa análise pode se

referir ao significado interno de uma palavra, seus argumentos internos ou aos significados

dela depreendidos, os argumentos externos; pode se aplicar ao significado de uma palavra ou

de um enunciado. O encadeamento como um outro conector, como partindo do normativo

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para o do tipo transgressivo no entanto/ NE juntamente com uma partícula de negação

transforma os aspectos internos em seus conversos, a significação de um vocábulo passa por

uma conversão de significado, formando antônimos pelo enfeixe de ideias antitéticas.

Pode-se afirmar pelo exposto, que a argumentação não se dá pela ligação de um termo

argumento A e de um termo conclusão C, mas é evocada pela própria predicação interna de

um termo que convoca a norma ou denuncia a transgressão, assim, os próprios argumentos

internos de propriedade evocam a necessidade de indenização, e comporta como distorção

transgressiva a não indenização, gratuidade essa admitida normativamente como argumento

interno de abolição.

Essa significação, esse modo diferente de ver as coisas, é resultante do posicionamento dos

enunciadores e do seu embate com a posição eleita pelo locutor que organiza o sentido dos

enunciados. É então polifônica. É discursiva. A língua então não é entendida como

nomenclatura do mundo, conforme viés interpretativo referencialista. Retomando Saussure, o

precursor da ciência linguística, não haveria então uma relação entre palavras e coisas, mas

entre significante (imagem acústica) e significado (conceito). Reelaborando Saussure, Ducrot

e colaboradores dizem que o significado está incrustrado no significante. A língua, pelo seu

léxico, representa o mundo via discurso polifônico doador de sentidos.

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6. CONCLUSÃO

O todo semântico propriedade portanto indenização, carrega uma relação normativa dos

aspectos internos da expressão linguística “escravidão”, que pode ser modalizada para o

realce ou o rechaço, que pode ser alterada a depender da posição dos enunciadores e da

condução do locutor. O locutor, assimilado por Rui Barbosa, diante da asserção “Se há

propriedade, há indenização” encontra o ponto de partida para o trabalho efetuado tanto no

Projeto Dantas, quanto no respectivo Parecer: a recíproca não propriedade portanto não

indenização é o arranjo argumentativo do locutor, caminhando para o incentivo à gratuidade

como um impulso à abolição, naquele momento ainda gradual, mas depois, previa-se,

generalizada.

No Projeto Dantas, a negação veio pela ausência de uma cláusula que indicasse o

ressarcimento, a compensação ao ex-senhorio. No Parecer, veio com as justificativas de base

moral, legal, humanitária. Em ambos, a negação foi trazida com o auxílio da língua.

Os argumentos neorretóricos do Parecer ao Projeto Dantas, ao advogar que a abolição dos

sexagenários teria de ser não indenizatória e ao acrescentar que essa gratuidade responderia a

um anseio coletivo, mobilizou a análise da história legislativa do Brasil, de Portugal e da

Roma Antiga, entendendo tanto a gratuidade para a liberdade quanto a liberdade em si como

um princípio moral, base da civilização, coletivamente constituído e constituinte das leis.

Falando no que é coletivo e validando-o, os topoi retóricos, lugares-comuns, sejam de ordem,

de lugar, de pessoa ou do existente são instrumentos úteis evocados na argumentação ruiana.

A adesão do auditório, buscada pelo orador, é uma forma individual de reação a uma verdade

coletiva, esta, por sua vez também relativa porque assumida subjetivamente (ou por grupos

menores) com graus variados de aderência. Os lugares-comuns retóricos, as indicações

hierarquizantes de certos valores, auxiliam na adesão à verdade social que tende a ser mais

acessada.

Pela análise do texto ruiano, ainda via estudos de Perelman e Olbrechts-Tyteca([1958] 2005),

pode-se perceber que o orador Rui Barbosa buscou refutar o que chamou de sofismas da

escravidão, raciocínios especulativos e reincidentes, que se processavam em cada iniciativa

manumitente legal mais expressiva. Esses sofismas giravam sempre em torno dos supostos

danos na economia, dos transtornos sociais, da acomodação à ideia de abolição geral

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expontânea... E esses topoi retóricos, esses arranjos de valores contrários ao Projeto Dantas,

são expostos para serem reconstruídos ou desconstruídos por outros topoi conclamados por

Rui, ou pelos mesmos submetidos a sua ótica. Assim é com o partus sequitur ventrem a

princípio apoiado pelo statuliberi, axioma esse depois remanejado para a re-hierarquização

dos lugares de ordem, de essência e de pessoa. Deste modo também se aborda a

complementaridade argumentativa entre os lugares quantitativos e qualitativos.

Mas recorde-se que, sobretudo, na década de 1880, as ideias dos parlamentares, por mais

paradoxais que fossem, eram declaradas pró-abolição. Esses abolicionistas eram contrários a

uma forma de abolição os quais acusavam de triplamente criminosa: “lesa-razão, lesa pátria e

lesa-humanidade” (BARBOSA, [1884] 1945, v.11, t.1, p.89).

Sim, todos eram abolicionistas. Eram abolicionistas de uma abolição com aspectos

semânticos internos e externos paradoxais, porque relativa, contínua e não absoluta, mais ou

menos radical, mais ou menos moderada. Era uma abolição que admitia a não abolição: se ela

defendesse os direitos dos escravos e ofendesse os direitos igualmente válidos do senhorio; se

ela pela gratuidade negasse a indenização que era o selo da escravidão, já que só se

indenizava a quem fosse expropriado, a quem anteriormente mantinha a propriedade do

homem sobre o homem.

Contudo, não se indeniza quem não possuiu, por isso nega-se a propriedade por consequência

e, na mesma linha, nega-se a escravidão. A abolição gratuita nega a escravidão. O Parecer era

então a fuga desse paradoxo.

O paradoxo é uma noção alocada num ponto mais atual da ANL. Ducrot e Anscombre,

inicialmente; e Ducrot e Carel, no desdobramento mais recente, trabalharam no campo da

Semântica Argumentativa: a. durante a forma padrão ou standard da teoria deslocaram a

argumentação extralíngua para a argumentação pela língua obtida mediante sentido,

mediante orientação argumentativa em determinados elementos linguísticos, os operadores

argumentativos; b. na fase da teoria dos topoi argumentativos, a argumentação passou a ser da

língua, do discurso, lugar dos topoi, do movimento de acesso a esses princípios

argumentativos na passagem do enunciado-argumento para o enunciado-conclusão; c.

finalmente, com a Teoria dos Blocos Semânticos, a argumentação passou a ser na língua,

parte integrante do bloco argumentativo que comporta argumentos conclusivos.

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Nessa fase se manteve o status dos operadores argumentativos, mas se reconheceu que todo

elemento lexical também porta argumentação, porque essa seria inscrita no sentido, parte

integrante do discurso, voltando-se a atenção à argumentação estrututal (desprezando-se a

contextual) e galgando-se a adequação ao nome da teoria, argumentação na língua (FIORIN,

2003; DUCROT [1969] 1987; [1977]1989; 2003; XAVIER, 2012). Os estudos de Ducrot

denotam, portanto uma intervenção cada vez menos decisiva de propriedades extrínsecas à

língua, até anulá-las e converter a argumentação em algo estritamente linguístico.

Tal língua-argumentação é de sentido obtido por vias discursivas, o discurso, por sua vez,

constituído pelo embate entre vozes enunciativas. Essa língua-argumentação é de uma

impregnação polifônica constitutiva de todas as suas expressões linguísticas.

O estudo do Parecer ao Projeto Dantas é visto, por conseguinte, como uma amostra de que as

teorias da argumentação, ou seja, Argumentação Retórica e Argumentação na Língua, embora

pertencentes a campos distintos – Retórica e Semântica Argumentativa – são complementares.

Constata-se que quando postas em conjunto, privilegiando-se um cotejamento de

determinadas noções a elas pertencentes, tais teorias, em vez de serem excludentes, permitem

uma visão mais holística dos fenômenos argumentativos. Sendo assim é trilhada a ação tanto

do orador Rui Barbosa, enquanto sujeito empírico que maneja estratégias retóricas para a

persuasão e/ou convencimento de seu auditório, quanto o locutor Rui Barbosa, que organiza o

discurso pela sua postura diante do embate de vozes dos enunciadores.

O Parecer ao Projeto Dantas então é um objeto que quando assim analisado mimetiza a

relação que se tem com a análise nos campos da Linguística ou da Argumentação; constitui-se

um ponto de contemplação. Não o único olhar possível, nem o absoluto; sequer o verdadeiro.

É um modo de análise permitido pelas e submetido às teorias escolhidas.

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NABUCO, Joaquim ([1883]2011). O abolicionismo. Introdução de Izabel A. Marson e Célio

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Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0 2004. Escravidão. CD-ROM. Produzido por

Positivo Informática Ltda.

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PERELMAN, Chaïm. O império retórico: retórica e argumentação. Tradução de Fernando

Trindade e Rui Alexandre Grácio. Lisboa, Porto: ASA Editores,[1977]1999.

PLATIN, Christian. A Argumentação: histórias, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola

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POMBO, Nívia. O dia em que Rui Barbosa virou Nero. Revista de História da Biblioteca

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RUI BARBOSA – BIOGRAFIA (Fundador, Fundador da cadeira 10). Disponível em:<

http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=193&sid=146>. Acesso

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RUI BARBOSA. Disponível em:

<http://www.casaruibarbosa.gov.br/template_01/default.asp?VID_Secao=2>. Acesso em: 28

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emergências. In: SANTOS, Boaventura Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma

vida decente. São Paulo: Cortez, 2004.

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<http://www.senado.gov.br/noticias/tv/programaListaPadrao.asp?ind_click=8&txt_titulo_men

u=&IND_ACESSO=S&IND_PROGRAMA=N&COD_PROGRAMA=3&COD_VIDEO=170

006&ORDEM=0&QUERY=&pagina=3>. Acesso em: 19 de agosto de 2013.

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114

SENA, G. C. A; FIGUEIREDO, M. F. Um estudo da Teoria da Argumentação da Retórica

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SLENES, Robert Wayne Andrew. Escravos, cartórios e desburocratização: o que Rui Barbosa

não queimou será destruído agora? Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, no. 10,

pp.166-196, março/agosto 1985.

______.O que Rui Barbosa não queimou. Novas fontes para o estudo da escravidão no século

XIX. Revista Estudos Econômicos, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 117-149, 1983.

TEMPO E HISTÓRIA – RUI BARBOSA. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=rhY_39OOixc&list=WLgBFZKo0PoUlKgFCQ_7cgwG

8Zxmnbsnvw>. Acesso em: 20 de março de 2013.

TRADUÇÃO DO NOVO MUNDO DAS ESCRITURAS SAGRADAS. Editora: Watchtower

Bible and Tract Society of New York, INC. Edição brasileira. [1967] 1986.

TRINGALI, Dante. Introdução à retórica: a retórica como crítica literária. São Paulo: Duas

Cidades, 1988. XAVIER, Antônio Carlos. Trajetória e legado de um filósofo da

linguagem: Oswald Ducrot. Revista Investigações - Vol. 25, nº 2, Julho/2012.

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115

APÊNDICE – LINHA DO TEMPO (MEDIDAS LEGAIS)

MEDIDAS LEGAIS1

1 Cronologia legislativa relacionada ao elemento negro no Brasil. As medidas de cunho/repercussão abolicionistas se iniciam em 1871.

1831 1850 1869 1871 1883 1884 1885 1888

Abolição nos

Estados do

Ceará e

Amazonas

Lei do

Ventre Livre

Lei Eusébio

de Queiroz

Lei que proibia a

venda separada

de escravos

casados

Lei

Saraiva-

Cotegipe

Abolição

geral, na

cidade de

Mossoró, RN

Lei Áurea

Proibição do

tráfico

transatlântico

PROJETO

DANTAS

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ANEXO A – “PROJETO DANTAS/RUI BARBOSA”

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ANEXO B – O PROJETO ORIGINAL

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ANEXO C – O PROJETO ORIGINAL

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ANEXO D – LEI DOS SEXAGENÁRIOS

Lei nº 3.270, de 28 de Setembro de 1885

Regula a extincção gradual do elemento servil.

D. Pedro II, por Graça de Deus e Unânime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e

Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os Nossos subditos que a Assembléa Geral

Decretou e Nós Queremos a Lei seguinte:

DA MATRICULA

Art. 1º Proceder-se-ha em todo o Imperrio a nova matricula dos escravos, com declaração do nome,

nacionalidade, sexo, filiação, si fôr conhecida, occupação ou serviço em que fôr empregado, idade e

valor, calculado conforme a tabella do § 3º.

§ 1º A inscripção para a nova matricula far-se-ha á vista das relações que serviram de base á

matricula especial ou averbação effectuada em virtude da Lei de 28 de Setembro de 1871, ou á vista

das certidões da mesma matricula, ou da averbação, ou á vista do titulo do dominio, quando nelle

estiver exarada a matricula do escravo.

§ 2º A' idade declarada na antiga matricula se addicionará o tempo decorrido até o dia em que fôr

apresentada na Repartição competente a relação para a matricula ordenada por esta Lei.

A matricula que fôr effectuada em contravenção ás disposições dos §§ 1º e 2º será nulla, e o

Collector ou Agente fiscal que a effectuar incorrerá em uma multa de cem mil réis a tresentos mil réis,

sem prejuizo de outras penas em que possa incorrer.

§ 3º O valor a que se refere o art. 1º será declarado pelo senhor do escravo, não excedendo o

Maximo regulado pela idade do matriculando, conforme a seguinte tabella:

Escravos menores de 30 annos............................................................................................ 900$000

» de 30 a 40 » ............................................................................................. 800$000

» » 40 a 50 » ............................................................................................. 600$000

» » 50 a 55 » ............................................................................................. 400$000

» » 55 a 60 » ............................................................................................. 200$000

§ 4º O valor dos individuos do sexo feminino se regulará do mesmo modo, fazendo-se, porém, o

abatimento de 25% sobre os preços acima estabelecidos.

§ 5º Não serão dados á matricula os escravos de 60 annos de idade em diante; serão, porém,

inscriptos em arrolamento especial para os fins dos §§ 10 a 12 do art. 3º.

§ 6º Será de um anno o prazo concedido para a matricula, devendo ser este annunciado por editaes

affixados nos logares mais publicos com antecedencia de 90 dias, e publicos pela imprensa, onde a

houver.

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§ 7º Serão considerados libertos os escravos que no prazo marcado não tiverem sido dados á

matricula, e esta clausula será expressa e integralmente declarada nos editaes e nos annuncios pela

imprensa.

Serão isentos de prestação de serviços os escravos de 60 a 65 annos que não tiverem sido arrolados.

§ 8º As pessoas a quem incumbe a obrigação de dar á matricula escravos alheios, na fórma do art. 3º

do Decreto n. 4835 de 1 de Dezembro de 1871, indemnizarão aos respectivos senhores o valor do

escravo que, por não ter sido matriculado no devido prazo, ficar livre.

Ao credor hypothecario ou pignoraticio cabe igualmente dar á matricula os escravos constituidos

em garantia.

Os Collectores e mais Agentes fiscaes serão obrigados a dar recibo dos documentos que lhes forem

entregues para a inscripção da nova matricula, e os que deixarem de effectual-a no prazo legal

incorrerão nas penas do art. 154 do Codigo Criminal, ficando salvo aos senhores o direito de requerer

de novo a matricula, a qual, para os effeitos legaes, vigorará como si tivesse sido effectuada no tempo

designado.

§ 9º Pela inscripção ou arrolamento de cada escravo pagar-se-ha 1$ de emolumentos, cuja

importancia será destinada ao fundo de emancipação, depois de satisfeitas as despezas da matricula.

§ 10. Logo que fôr annunciado o prazo para a matricula, ficarão relevadas as multas incorridas por

inobservancia das disposições da Lei de 28 de Setembro de 1871, relativas á matricula e declarações

prescriptas por ella e pelos respectivos regulamentos.

A quem libertar ou tiver libertado, a titulo gratuito, algum escravo, fica remittida qualquer divida á

Fazenda Publica por impostos referentes ao mesmo escravo.

O Governo no Regulamento que expedir para execução desta Lei, marcará um só e o mesmo prazo

para a apuração da matricula em todo o Imperio.

Art. 2º O fundo de emancipação será formado:

I. Das taxas e rendas para elle destinadas na legislação vigente.

II. Da taxa de 5% addicionaes a todos os impostos geraes, excepto os de exportação.

Esta taxa será cobrada desde já livre de despezas de arrecadação, e annualmente inscripta no

orçamento da receita apresentado á Assembléa Geral Legislativa pelo Ministro e Secretario de Estado

dos Negocios da Fazenda.

III. De titulos da divida publica emittidos a 5%, com amortização annual de 1/2 %, sendo os juros e

amortização pagos pela referida taxa de 5%.

§ 1º A taxa addicional será arrecadada ainda depois da libertação de todos os escravos e até se

extinguir a divida proveniente da emissão dos titulos autorizados por esta Lei.

§ 2º O fundo de emancipação, de que trata o n. I deste artigo, continuará a ser applicado de

conformidade ao disposto no art. 27 do Regulamento approvado pelo Decreto n. 5135 de 13 de

Novembro de 1872.

§ 3º O producto da taxa addicional será dividido em tres partes iguaes:

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A 1ª parte será applicada á emancipação dos escravos de maior idade, conforme o que fôr

estabelecido em regulamento do Governo.

A 2ª parte será applicada á libertação por metade ou menos de metade de seu valor, dos escravos de

lavoura e mineração cujos senhores quizerem converter em livres os estabelecimentos mantidos por

escravos.

A 3ª parte será destinada a subvencionar a colonização por meio do pagamento de transporte de

colonos que forem effectivamente collocados em estabelecimentos agricolas de qualquer natureza.

§ 4º Para desenvolver os recursos empregados na transformação dos estabelecimentos agricolas

servidos por escravos em estabelecimentos livres e para auxiliar o desenvolvimento da colonização

agricola, poderá o Governo emittir os titulos de que trata o n. 3 deste artigo.

Os juros e amortização desses titulos não poderão absorver mais dos dous terços do producto da

taxa addicional consignada no n. 2 do mesmo artigo.

DAS ALFORRIAS E DOS LIBERTOS

Art. 3º Os escravos inscriptos na matricula serão libertados mediante indemnização de seu valor

pelo fundo de emancipação ou por qualquer outra fórma legal.

§ 1º Do valor primitivo com que fôr matriculado o escravo se deduzirão:

No primeiro anno.................................................................................. ........................... 2%

No segundo................................................................................................................... .. 3%

No terceiro........................................................................................................................ 4%

No quarto.................................................................................................................... ...... 5%

No quinto.................................................................................................................... ....... 6%

No sexto............................................................................................................................. 7%

No setimo.......................................................................................................................... 8%

No oitavo.................................................................................................................... ....... 9%

No nono...................................................................................................................... ...... 10%

No decimo...................................................................................................... ................... 10%

No undecimo.................................................................................................................. ... 12%

No decimo segundo................................................................................ .......................... 12%

No decimo terceiro.......................................................................................................... 12%

Contar-se-ha para esta deducção annual qualquer prazo decorrido, seja feita a libertação pelo fundo

de emancipação ou por qualquer outra fórma legal.

§ 2º Não será libertado pelo fundo de emancipação o escravo invalido, considerado incapaz de

qualquer serviço pela Junta classificadora, com recurso voluntario para o Juiz de Direito.

O escravo assim considerado permanecerá na companhia de seu senhor.

§ 3º Os escravos empregados nos estabelecimentos agricolas serão libertados pelo fundo de

emancipação indicado no art. 2º, § 4º, segunda parte, si seus senhores se propuzerem a substituir nos

mesmos estabelecimentos o trabalho escravo pelo trabalho livre, observadas as seguintes disposições:

a) Libertação de todos os escravos existentes nos mesmos estabelecimentos e obrigação de não

admittir outros, sob pena de serem estes declarados libertos;

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b) Indemnização pelo Estado de metade do valor dos escravos assim libertados, em titulos de 5%,

preferidos os senhores que reduzirem mais a indemnização;

c) Usufruição dos serviços dos libertos por tempo de cinco annos.

§ 4º Os libertos obrigados a serviço nos termos do paragrapho anterior, serão alimentados, vestidos

e tratados pelos seus ex-senhores, e gozarão de uma gratificação pecuniaria por dia de serviço, que

será arbitrada pelo ex-senhor com approvação do Juiz de Orphãos.

§ 5º Esta gratificação, que constituirá peculio do liberto, será dividida em duas partes, sendo uma

disponivel desde logo, e outra recolhida a uma Caixa Economia ou Collectoria, para lhe ser entregue,

terminado o prazo da prestação dos serviços a que se refere o § 3º, ultima parte.

§ 6º As libertações pelo peculio serão concedidas em vista das certidões do valor do escravo,

apurado na fórma do art. 3º, § 1º, e da certidão do deposito desse valor nas estações fiscaes designadas

pelo Governo.

Essas certidões serão passadas gratuitamente.

§ 7º Emquanto se não encerrar a nova matricula, continuará em vigor o processo actual de avaliação

dos escravos, para os diversos meios de libertação, com o limite fixado no art. 1º, § 3º.

§ 8º São válidas as alforrias concedidas, ainda que o seu valor exceda ao da terça do outorgante e

sejam ou não necessarios os herdeiros que porventura tiver.

§ 9º E' permittida a liberalidade directa de terceiro para a alforria do escravo, uma vez que se exhiba

preço deste.

§ 10. São libertos os escravos de 60 annos de idade, completos antes e depois da data em que entrar

em execução esta Lei; ficando, porém, obrigados, a titulo de indemnização pela sua alforria, a prestar

serviços a seus ex-senhores pelo espaço de tres annos.

§ 11. Os que forem maiores de 60 e menores de 65 annos, logo que completarem esta idade, não

serão sujeitos aos alludidos serviços, qualquer que seja o tempo que os tenham prestado com relação

ao prazo acima declarado.

§ 12. E' permittida a remissão dos mesmos serviços, mediante o valor não excedente á metade do

valor arbitrado para os escravos da classe de 55 a 60 annos de idade.

§ 13. Todos os libertos maiores de 60 annos, preenchido o tempo de serviço de que trata o § 10,

continuarão em companhia de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimental-os, vestil-os, e tratal-

os em suas molestias, usufruindo os serviços compativeis com as forças delles, salvo si preferirem

obter em outra parte os meios de subsistencia, e os Juizes de Orphãos os julgarem capazes de o fazer.

§ 14. E' domicilio obrigado por tempo de cinco annos, contados da data da libertação do liberto pelo

fundo de emancipação, o municipio onde tiver sido alforriado, excepto o das capitaes.

§ 15. O que se ausentar de seu domicilio será considerado vagabundo e apprehendido pela Policia

para ser empregado em trabalhos publicos ou colonias agricolas.

§ 16. O Juiz de Orphãos poderá permittir a mudança do liberto no caso de molestia ou por outro

motivo attendivel, si o mesmo liberto tiver bom procedimento e declarar o logar para onde pretende

transferir seu domicilio.

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§ 17. Qualquer liberto encontrado sem occupação será obrigado a empregar-se ou a contratar seus

serviços no prazo que lhe fôr marcado pela Policia.

§ 18. Terminado o prazo, sem que o liberto mostre ter cumprido a determinação da Policia, será por

esta enviado ao Juiz de Orphãos, que o constrangerá a celebrar contrato de locação de serviços, sob

pena de 15 dias de prisão com trabalho e de ser enviado para alguma colonia agricola no caso de

reincidencia.

§ 19. O domicilio do escravo é intransferivel para Provincia diversa da em que estiver matriculado

ao tempo de promulgação desta Lei.

A mudança importará acquisição da liberdade, excepto nos seguintes casos:

1º Transferencia do escravo de um para outro estabelecimento do mesmo senhor.

2º Si o escravo tiver sido obtido por herança ou por adjudicação forçada em outra Provincia.

3º Mudança de domicilio do senhor.

4º Evasão do escravo.

§ 20. O escravo evadido da casa do senhor ou d'onde estiver empregado não poderá, emquanto

estiver ausente, ser alforriado pelo fundo de emancipação.

§ 21. A obrigação de prestação de serviços de escravos, de que trata o § 3º deste artigo, ou como

condição de liberdade, não vigorará por tempo maior do que aquelle em que a escravidão fôr

considerada extincta.

DISPOSIÇÕES GERAES

Art. 4º Nos regulamentos que expedir para execução desta Lei o Governo determinará:

1º Os direitos e obrigações dos libertos a que se refere o § 3º do art. 3º para com os seus ex-senhores

e vice-versa.

2º Os direitos e obrigações dos demais libertos sujeitos á prestação de serviços e daquelles a quem

esses serviços devam ser prestados.

3º A intervenção dos Curados geraes por parte do escravo, quando este fôr obrigado á prestação de

serviços, e as attribuições dos Juizes de Direito, Juizes Municipaes e de Orphãos e Juizes de Paz nos

casos de que trata a presente Lei.

§ 1º A infracção das obrigações a que se referem os ns. 1 e 2 deste artigo será punida conforme a

sua gravidade, com multa de 200$ ou prisão com trabalho até 30 dias.

§ 2º São competentes para a imposição dessas penas os Juizes de Paz dos respectivos districtos,

sendo o processo o do Decreto n. 4824 de 29 de Novembro de 1871, art. 45 e seus paragraphos.

§ 3º O acoutamento de escravos será capitulado no art. 260 do Codigo Criminal.

§ 4º O direito dos senhores de escravos á prestação de serviços dos ingenuos ou á indemnização em

titulos de renda, na fórma do art. 1º, § 1º, da lei de 28 de Setembro de 1871, cessará com a extincção

da escravidão.

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§ 5º O Governo estabelecerá em diversos pontos do Imperio ou nas Provincias fronteiras colonias

agricolas, regidas com disciplina militar, para as quaes serão enviados os libertos sem occupação.

§ 6º A occupação effectiva nos trabalhos da lavoura constituirá legitima isenção do serviço militar.

§ 7º Nenhuma Provincia, nem mesmo as que gozarem de tarifa especial, ficará isenta do pagamento

do imposto addicional de que trata o art. 2º.

§ 8º Os regulamentos que forem expedidos pelo Governo serão logo postos em execução e sujeitos

á approvação do Poder Legislativo, consolidadas todas as disposições relativas ao elemento servil

constantes da Lei de 28 de Setembro de 1871 e respectivos Regulamentos que não forem revogados.

Art. 5º Ficam revogadas as disposições em contrario.

Mandamos, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei

pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente, como nella se contém. O

Secretario de Estado dos Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas a faça imprimir,

publicar e correr.

Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 28 de Setembro de 1885, 64º da Independencia e do Imperio.

Imperador com rubrica e guarda.

Antonio a Silva Prado.

Carta de lei, pela qual Vossa Magestade Imperial Manda executar o Decreto da Assembléa Geral, que

Houve por bem Sanccionar, regulando a extincção gradual do elemento servil, como nelle se

declara. Para Vossa Magestade Imperial Ver.João Capistrano do Amaral a fez. Chancellaria-mór do

Imperio. - Joaquim Delfino Ribeiro da Luz.

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ANEXO E– LEI DO VENTRE LIVRE

Lei nº 2.040, de 28 de Setembro de 1871

Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os

escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e

sobre a libertação annual de escravos.

A Princeza Imperial Regente, em nome de Sua Magestade o Imperador e Senhor D. Pedro II, faz saber

a todos os subditos do Imperio que a Assembléa Geral Decretou e ella Sanccionou a Lei seguinte:

Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão

considerados de condição livre.

§ 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os

quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos.

Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a

indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos.

No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente

lei.

A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro annual de 6%, os

quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos.

A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar

á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos

serviços do mesmo menor.

§ 2º Qualquer desses menores poderá remir-se do onus de servir, mediante prévia indemnização

pecuniaria, que por si ou por outrem offereça ao senhor de sua mãi, procedendo-se á avaliação dos

serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não houver accôrdo sobre o quantum da mesma

indemnização.

§ 3º Cabe tambem aos senhores criar e tratar os filhos que as filhas de suas escravas possam ter

quando aquellas estiverem prestando serviços.

Tal obrigação, porém, cessará logo que findar a prestação dos serviços das mãis. Se estas

fallecerem dentro daquelle prazo, seus filhos poderão ser postos à disposição do Governo.

§ 4º Se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores de oito annos, que estejam em poder

do senhor della por virtude do § 1º, lhe serão entregues, excepto se preferir deixal-os, e o senhor

annuir a ficar com elles.

§ 5º No caso de alienação da mulher escrava, seus filhos livres, menores de 12 annos, a

acompanharão, ficando o novo senhor da mesma escrava subrogado nos direitos e obrigações do

antecessor.

§ 6º Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no § 1°, se, por

sentença do juizo criminal, reconhecer-se que os senhores das mãis os maltratam, infligindo-lhes

castigos excessivos.

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§ 7º O direito conferido aos senhores no § 1º transfere-se nos casos de successão necessaria,

devendo o filho da escrava prestar serviços á pessoa a quem nas partilhas pertencer a mesma escrava.

Art. 2º O Governo poderá entregar a associações por elle autorizadas, os filhos das escravas,

nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores dellas, ou tirados do

poder destes em virtude do art. 1º § 6º.

§ 1º As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 annos

completos, e poderão alugar esses serviços, mas serão obrigadas:

1º A criar e tratar os mesmos menores;

2º A constituir para cada um delles um peculio, consistente na quota que para este fim fôr reservada

nos respectivos estatutos;

3º A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada collocação.

§ 2º As associações de que trata o paragrapho antecedente serão sujeitas á inspecção dos Juizes de

Orphãos, quanto aos menores.

§ 3º A disposição deste artigo é applicavel ás casas de expostos, e ás pessoas a quem os Juizes de

Orphãos encarregarem da educação dos ditos menores, na falta de associações ou estabelecimentos

creados para tal fim.

§ 4º Fica salvo ao Governo o direito de mandar recolher os referidos menores aos estabelecimentos

publicos, transferindo-se neste caso para o Estado as obrigações que o § 1º impõe ás associações

autorizadas.

Art. 3º Serão annualmente libertados em cada Provincia do Imperio tantos escravos quantos

corresponderem á quota annualmente disponivel do fundo destinado para a emancipação.

§ 1º O fundo de emancipação compõe-se:

1º Da taxa de escravos.

2º Dos impostos geraes sobre transmissão de propriedade dos escravos.

3º Do producto de seis loterias annuaes, isentas de impostos, e da decima parte das que forem

concedidas d'ora em diante para correrem na capital do Imperio.

4º Das multas impostas em virtude desta lei.

5º Das quotas que sejam marcadas no Orçamento geral e nos provinciaes e municipaes.

6º De subscripções, doações e legados com esse destino.

§ 2º As quotas marcadas nos Orçamentos provinciaes e municipaes, assim como as subscripções,

doações e legados com destino local, serão applicadas á emancipação nas Provincias, Comarcas,

Municipios e Freguezias designadas.

Art. 4º É permittido ao escravo a formação de um peculio com o que lhe provier de doações,

legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O

Governo providenciará nos regulamentos sobre a collocação e segurança do mesmo peculio.

§ 1º Por morte do escravo, a metade do seu peculio pertencerá ao conjuge sobrevivente, se o

houver, e a outra metade se transmittirá aos seus herdeiros, na fórma da lei civil.

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Na falta de herdeiros, o peculio será adjudicado ao fundo de emancipação, de que trata o art. 3º.

§ 2º O escravo que, por meio de seu peculio, obtiver meios para indemnização de seu valor, tem

direito a alforria. Se a indemnização não fôr fixada por accôrdo, o será por arbitramento. Nas vendas

judiciaes ou nos inventarios o preço da alforria será o da avaliação.

§ 3º É, outrossim, permittido ao escravo, em favor da sua liberdade, contractar com terceiro a

prestação de futuros serviços por tempo que não exceda de sete annos, mediante o consentimento do

senhor e approvação do Juiz de Orphãos.

§ 4º O escravo que pertencer a condominos, e fôr libertado por um destes, terá direito á sua alforria,

indemnizando os outros senhores da quota do valor que lhes pertencer. Esta indemnização poderá ser

paga com serviços prestados por prazo não maior de sete annos, em conformidade do paragrapho

antecedente.

§ 5º A alforria com a clausula de serviços durante certo tempo não ficará annullada pela falta de

implemento da mesma clausula, mas o liberto será compellido a cumpril-a por meio de trabalho nos

estabelecimentos publicos ou por contractos de serviços a particulares.

§ 6º As alforrias, quér gratuitas, quér a titulo oneroso, serão isentas de quaesquer direitos,

emolumentos ou despezas.

§ 7º Em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos, é prohibido, sob pena de nullidade,

separar os conjuges, e os filhos menores de 12 annos, do pai ou da mãi.

§ 8º Se a divisão de bens entre herdeiros ou sócios não comportar a reunião de uma familia, e

nenhum delles preferir conserval-a sob o seu dominio, mediante reposição da quota parte dos outros

interessados, será a mesma famlia vendida e o seu producto rateado.

§ 9º Fica derogada a Ord. liv. 4º, titl 63, na parte que revoga as alforrias por ingratidão.

Art. 5º Serão sujeitas á inspecção dos Juizes de Orphãos as sociedades de emancipação já

organizadas e que de futuro se organizarem.

Paragrapho unico. As ditas sociedades terão privilegio sobre os serviços dos escravos que

libertarem, para indemnização do preço da compra.

Art. 6º Serão declarados libertos:

§ 1º Os escravos pertencentes á nação, dando-lhes o Governo a occupação que julgar conveniente.

§ 2º Os escravos dados em usufructo à Corôa.

§ 3º Os escravos das heranças vagas.

§ 4º Os escravos abandonados por seus senhores.

Se estes os abandonarem por invalidos, serão obrigados a alimental-os, salvo o caso de penuria,

sendo os alimentos taxados pelo Juiz de Orphãos.

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§ 5º Em geral, os escravos libertados em virtude desta Lei ficam durante cinco annos sob a

inspecção do Governo. Elles são obrigados a contractar seus serviços sob pena de serem

constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar nos estabelecimentos publicos.

Cessará, porém, o constrangimento do trabalho, sempre que o liberto exhibir contracto de serviço.

Art. 7º Nas causas em favor da liberdade:

§ 1º O processo será summario.

§ 2º Haverá appellações ex-officio quando as decisões forem contrarias á liberdade.

Art. 8º O Governo mandará proceder á matricula especial de todos os escravos existentes do

Imperio, com declaração do nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se fôr

conhecida.

§ 1º O prazo em que deve começar e encerrar-se a matricula será annunciado com a maior

antecedencia possivel por meio de editaes repetidos, nos quaes será inserta a disposição do paragrapho

seguinte.

§ 2º Os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados, não forem dados á matricula, até um

anno depois do encerramento desta, serão por este facto considerados libertos.

§ 3º Pela matricula de cada escravo pagará o senhor por uma vez sómente o emolumento de 500

réis, se o fizer dentro do prazo marcado, e de 1$000 se exceder o dito prazo. O producto deste

emolumento será destinado ás despezas da matricula e o excedente ao fundo de emancipação.

§ 4º Serão tambem matriculados em livro distincto os filhos da mulher escrava, que por esta lei

ficam livres.

Incorrerão os senhores omissos, por negligencia, na multa de 100$ a 200$, repetida tantas vezes

quantos forem os individuos omittidos, e, por fraude nas penas do art. 179 do codigo criminal.

§ 5º Os parochos serão obrigados a ter livros especiaes para o registro dos nascimentos e obitos dos

filhos de escravas, nascidos desde a data desta lei. Cada omissão sujeitará os parochos á multa de

100$000.

Art. 9º O Governo em seus regulamentos poderá impôr multas até 100$ e penas de prisão simples

até um mez.

Art. 10. Ficam revogadas as disposições em contrário.

Manda, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida lei

pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém. O

Secretario de Estado de Negocios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas a faça imprimir,

publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro, aos vinte e oito de Setembro de mil oitocentos

setenta e um, quinquagesimo da Independencia e o Imperio.

PRINCEZA IMPERIAL REGENTE

Theodoro Machado Freire Pereira da Silva.

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ANEXO F – PROIBIÇÃO DE LEILÕES DE ESCRAVOS

Decreto nº 1.695, de 15 de Setembro de 1869

Prohibe as vendas de escravos debaixo de pregão e em exposição publica.

Hei por bem Sanccionar e Mandar que se execute a Resolução seguinte da Assembléa Geral:

Art. 1º Todas as vendas de escravos debaixo de pregão e em exposição publica, ficão prohibidas. Os

leilões commerciaes de escravos ficão prohibidos, sob pena de nullidade de taes vendas e de multa de

100$000 a 300$000, contra o leiloeiro, por cada um escravo que vender em leilão. As praças judiciaes

em virtude de execuções por divida, ou de partilha entre herdeiros, serão substituidas por propostas

escriptas, que os juizes receberáõ dos arrematantes por espaço de 30 dias, annunciando os juizes por

editaes, contendo os nomes, idades, profissões, avaliações e mais caracteristicos dos escravos que

tenhão de ser arrematados. Findo aquelle prazo de 30 dias do annuncio judicial, o juiz poderá renovar

o annuncio por novo prazo, publicando em audiencia as propostas se forem insignificantes os preços

offerecidos, ou se forem impugnados por herdeiros ou credores que requeirão adjudicação por preço

maior.

Art. 2º Em todas as vendas de escravos, ou sejão particulares ou judiciaes, é prohibido, sob pena de

nullidade, separar o marido da mulher, o filho do pai ou mãi, salvo sendo os filhos maiores de 15

annos.

Art. 3º Nos inventarios em que não forem interessados como herdeiros ascendentes ou

descendentes, e ficarem salvos por outros bens os direitos dos credores, poderá o juiz do inventario

conceder cartas de liberdade aos escravos inventariados que exhibirem á vista o preço de suas

avaliações judiciaes.

Art. 4º Ficão revogadas as disposições em contrario.

José Martiniano de Alencar, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da

Justiça, assim o tenha entendido e faça executar.

Palacio do Rio de Janeiro, em quinze de Setembro de mil oitocentos sessenta e nove, quadragesimo

oitavo da Independencia e do Imperio.

Com a rubrica de Sua Magestade o Imperador.

José Martiniano de Alencar.

Chancellaria-mór do Imperio. - José Martiniano de Alencar.

Transitou em 20 de Setembro de 1869. - José da Cunha Barbosa.

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ANEXO G – PROIBIÇÃO DE PENAS DE AÇOITES AOS RÉUS

ESCRAVOS

Presidência da República

Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 3.310 DE 15 DE OUTUBRO DE 1886.

Revoga o art. 60 do Codigo Criminal e a Lei n. 4 de

10 de Junho de 1835, na parte em que impoem a

pena de açoutes.

D. Pedro II, por Graça de Deus e Umanime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos que a Assembléa Geral Decretou e Nós Queremos a Lei seguinte:

Art. 1º São revogados o art. 60 do Codigo Criminal e a Lei n. 4 de 10 de Junho de 1835, na parte em que impoem a pena de açoutes.

Ao réo escravo serão impostas as mesmas penas decretadas pelo Codigo Criminal e mais legislação em vigor para outros quaesquer delinquentes, segundo a especie dos delictos commettidos, menos quando forem essas penas de degredo, de desterro ou de multa, as quaes serão substituidas pela de prisão; sendo nos casos das duas primeiras por prisão simples pelo mesmo tempo para ellas fixado, e no de multa, si não fôr ella satisfeita pelos respectivos senhores, por prisão simples ou com trabalho, conforme se acha estabelecido nos arts. 431, 432, 433 e 434 do Regulamento n. 120 de 31 de Janeiro de 1842.

Art. 2º Ficam revogadas as disposições em contrario.

Mandamos, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém. O Secretario de Estado dos Negocios da Justiça a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 15 de Outubro de 1886, 65º da Independencia e do Imperio.

IMPERADOR, com rubrica e guarda.

JOAQUIM DELFINO RIBEIRO DA LUZ.

Carta de lei pela qual Vossa Magestade Imperial Manda executar o Decreto da Assembléa Geral Legislativa, que Houve por bem Sanccionar, revogando o art. 60 do Codigo Criminal e a Lei n. 4 de 10 de Junho de 1835, na parte em que impoem a pena de açoutes.

Para Vossa Magestade Imperial Ver. Benedicto Antonio Bueno a fez.Chancellaria-mór do Imperio. - Joaquim Delfino Ribeiro da Luz. Transitou em 16 de Outubro de 1886. - José Julio da Albuquerque

Barros. - Registrada