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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES CÊNICAS ELOÁ GOTTARDELLO GUIRELLI HISTÓRIAS DE DEPOIS DO FIM: Em busca de um teatro onde a criança possa ser São Paulo 2019

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES CÊNICAS

ELOÁ GOTTARDELLO GUIRELLI

HISTÓRIAS DE DEPOIS DO FIM:

Em busca de um teatro onde a criança possa ser

São Paulo

2019

ELOÁ GOTTARDELLO GUIRELLI

HISTÓRIAS DE DEPOIS DO FIM:

em busca de um teatro onde a criança possa ser

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado à Banca Examinadora do

Departamento de Artes Cênicas da

Escola de Comunicação e Artes (ECA) da

Universidade de São Paulo (USP), para

obtenção do título de Bacharel em Teoria

do Teatro, sob orientação do Prof. Dr.

Luiz Fernando Ramos.

São Paulo

2019

São Paulo, 27 de novembro de 2019.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Luiz Fernando Ramos

Orientador – Universidade de São Paulo

________________________________________ Profa. Dra. Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

Universidade de São Paulo

________________________________________ Profa. Adriana Silva de Oliveira

Escola de Aplicação Universidade de São Paulo

Para Téo, meu despertar.

AGRADECIMENTOS

Aos amigos que quiseram se aventurar comigo: Murilo Franco, Nina Ricci, Maria

Fernanda Machado, Thiago Cordero, Camilo Schaden, José Pedro, Érico

Casagrande, Éwerton Correa, Fly Hirano Martins, Lais D‟Addio - sem vocês, nada

disso seria possível.

Ao Luiz Fernando, que acreditou em minha pesquisa e me encorajou à prática.

À Maria Lúcia Pupo, pela atenção e por todas as referências.

Às crianças dos primeiros e quartos anos do ensino Fundamental I da Escola de

Aplicação da USP; às professoras Maria Cláudia Robazzi, Adriana Silva de Oliveira

e Kelly Cristine Sabino; e aos bolsistas da EA-FEUSP, pelo espaço e pela troca.

A todos que compartilharam conosco seus olhares e nos ajudaram a crescer.

Ao Tom Tramis, pelas fotos.

AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

Ao Murilo Franco, pela entrega e por ter sido verdadeiramente meu parceiro.

Ao Alejandro, pelo encontro e pelas provocações.

À existência, à maternidade e à arte.

Obrigada, filho, por me fazer morrer. E renascer.

“Adulto: pessoa que, em toda coisa que fala, fala primeiro de si”

Andrés Felipe Bedoya, 8 anos

“Criança: é brinquedo de homens”

Carolina Álvarez, 7 anos

RESUMO

Este trabalho de Conclusão de Curso em Teoria do Teatro dedica-se à análise do

espetáculo teatral Histórias de depois do fim, concebido como ação prática de uma

pesquisa acerca das possibilidades de relação entre teatro e infância. O espetáculo

foi encenado a partir de trocas e experimentações realizadas com as crianças dos 1°

e 4° anos da Escola de Aplicação da USP (EA-FEUSP) e se propõe a ser um

espaço de vivência para a criança e uma experiência mais distanciada, mas ainda

assim envolvente, para o adulto que a acompanha. Como fomento à análise da

encenação, esta reflexão passa por um breve histórico do surgimento do teatro

infantil no mundo e no Brasil, percorre noções sobre a criança desenvolvidas por

pensadores como Walter Benjamin, Merleau-Ponty, Manuel Sarmento, Marina M.

Machado e Bruno Bettelheim, além de dar a conhecer o teatro infantil do Grupo XIX

de teatro e o teatro Cia. Societas Raffaello Sanzio para a infância – sementes

inspiradoras dessa busca por outros modos de se fazer teatro para crianças.

Palavras-chave: teatro infantil, teatro interativo, criança-espectadora, experiência,

vivência.

ABSTRACT

This final dissertation on Drama Theory is dedicated to the analysis of the theatrical

performance Histórias de depois do Fim, conceived as a practical action after some

research on the possibilities of the relationship between the theater and childhood.

The performance was staged based on exchanges and experimentations with

children from the 1st and 4th years of the Escola de Aplicação da USP (EA-FEUSP)

and aims to be an experimentation space for the child and a more distanced

experience, but still engaging, for the accompanying adult. Along the way to the

analysis of the staging itself, this reflection goes past a brief history of the

appearance of the theater for children in the world as well as in Brazil. It also touches

on notions about the child which were developed by thinkers such as Walter

Benjamin, Merleau-Ponty, Manuel Sarmento, Marina M. Machado and Bruno

Bettelheim. The analysis also makes known the theater for children of the Grupo XIX

de Teatro and the Theater Co. Societas Raffaello Sanzio for the infants - which are

the inspirational seeds for the search for other ways of making theater for children.

Keywords: theater for children, interactive theater, child-spectator, experience.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - crianças do 1º ano a caminho da aventura na EA-FEUSP........................58

Figura 2 - Menina: eu acho que minha avó morreu, mas pra onde vai quem morre?!

Vocês podem me ajudar a descobrir?........................................................................59

Figura 3 - crianças do 1º ano ajudando a Menina a procurar a avó que morreu.......59

Figura 4 - Menina: quem é aquele ser? Será que devemos ir até lá?.......................59

Figura 5 - crianças do 1º ano encontram-se com o "ser amigável"...........................59

Figura 6 - crianças do 1° ano a caminho da caverna do "ser não tão amigável".......60

Figura 7 - crianças do 1° ano vendadas durante o percurso sensorial......................60

Figura 8 - crianças do 1° ano atravessando o túnel para chegar à caverna do "ser

não tão amigável".......................................................................................................61

Figura 9 - crianças do 1° ano desenhando o lugar para onde vai quem morre.........62

Figura 10 - mediação pós-oficina com 1° ano............................................................62

Figura 11 – Miguel: "as pessoas morrem e vão para uma casa de ouro no céu”......63

Figura 12 – Davi: “no céu tem casas que não caem porque estão em cima de pedras

amarradas com cordas de ferro”................................................................................63

Figura 13 - Isadora: “vou pôr essa cartinha no caixão dela, depois Deus abre e leva

pro céu”......................................................................................................................63

Figura 14 - Pedro: “o corpo dela está na quadra, mas o espírito no céu”..................64

Figura 15 - Gabriel: “a vovó fica enterrada, mas como que vai pro céu? Acho que

Deus faz um caminho”................................................................................................64

Figura 16 - Valentina: “ela mora no céu, mas ela não cai, porque na verdade as

estrelas, quando olha de perto, são casas”................................................................64

Figura 17 - Alice: “eu não sei se isso era de verdade ou de mentira. Então eu acho

que ela podia ir pra uma caverna”..............................................................................65

Figura 18 - Maria Alice: “fiz a vovó com elas, viva, na imaginação”...........................65

Figura 19 - Lucas: “ela está no campo de futebol da escola, não sei fazendo o quê.

Talvez deitada olhando pra cima. Ou dormindo. Dormindo pra sempre. Ou

morta”.........................................................................................................................66

Figura 20 - Sabrina: “ainda não descobrimos, vamos ter que ver mais uma

pista!”..........................................................................................................................66

Figura 21 - crianças do 4° ano desenhando a história no craft coletivo.....................72

Figura 22 - cemitério desenhado pelas crianças do 4° ano da EA-FEUSP...............72

Figura 23 – céu desenhado pelas crianças do 4° ano da EA-FEUSP.......................72

Figura 24 – inferno desenhado pelas crianças do 4° ano da EA-FEUSP..................73

Figura 25 – floresta desenhada pelas crianças do 4° ano da EA-FEUSP.................73

Figura 26 – floresta 2 desenhada pelas crianças do 4° ano da EA-FEUSP..............73

Figura 27 – floresta/mundo de doce desenhada pelas crianças do 4° ano da EA-

FEUSP........................................................................................................................74

Figura 28 – rio na garrafa desenhado pelas crianças do 4° ano da EA-FEUSP........74

Figura 29 – rio de açaí e lava desenhado pelas crianças do 4° ano da EA-

FEUSP........................................................................................................................74

Figura 30 – caverna da fênix desenhada pelas crianças do 4° ano da EA-

FEUSP........................................................................................................................75

Figura 31 – terra dos mortos e caverna desenhados pelas crianças do 4° ano da EA-

FEUSP........................................................................................................................75

Figura 32 – livrinho da história confeccionado por Matheus, aluno do 1° ano da EA-

FEUSP........................................................................................................................84

Figura 33 – livrinho da história confeccionado por Yasmin, aluna do 1° ano da EA-

FEUSP........................................................................................................................84

Figura 34 – livrinho da história confeccionado por Benjamin, aluno do 1° ano da EA-

FEUSP........................................................................................................................84

Figura 35 – crianças do 4° ano da EA-FEUSP respondendo às perguntas dos

cientistas Frâncio e Bário...........................................................................................85

Figura 36 – Tina lê o bilhete da avó para seus amigos na abertura com o 1° ano da

EA-FEUSP..................................................................................................................87

Figura 37 – Tina e seus amigos procurando o fio na apresentação aberta ao

público........................................................................................................................88

Figura 38 – entrada das crianças no velório na apresentação aberta ao

público........................................................................................................................89

Figura 39 – avô explicando o que pensa sobre a morte na apresentação aberta ao

público........................................................................................................................90

Figura 40 – avô lê o segundo bilhete na apresentação para o 4° ano da EA-

FEUSP.......................................................................................................................91

Figura 41 – desenhos do 4º ano da EA-FEUSP inseridos no stop-

motion.........................................................................................................................91

Figura 42 – saída do túnel nas apresentações finais.................................................92

Figura 43 – chegada ao local intermediário entre o céu e o inferno na abertura com o

1° ano da EA-FEUSP.................................................................................................92

Figura 44 – crianças do 4º ano da EA-FEUSP ajudando Tina a rezar.....................93

Figura 45 – crianças ajudando Tina a rezar na apresentação aberta ao

público........................................................................................................................93

Figura 46 – mapa do caminho de volta à Terra..........................................................94

Figura 47 – crianças fazendo chover na apresentação aberta ao público.................94

Figura 48 – projeção da cena da floresta para a plateia adulta na abertura com o 1°

ano da EA-FEUSP......................................................................................................95

Figura 49 – floresta na apresentação aberta ao público............................................96

Figura 50 – volta da área externa (floresta) ao teatro (rio) na abertura com o 1° ano

da EA-FEUSP.............................................................................................................97

Figura 51 – jogo da serpente/ volta ao teatro na apresentação aberta ao

público........................................................................................................................98

Figura 52 –volta da área externa ao teatro na apresentação para o 4º ano da EA-

FEUSP........................................................................................................................98

Figura 53 – Caronte e Tina navegam rumo ao Hades.............................................100

Figura 54 –Tina encontra a Fênix.............................................................................101

Figura 55 –Tina faz seu pedido................................................................................102

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...................................................................................................1

2. TEATRO PARA CRIANÇAS: UMA VELHA AMBIÇÃO DA HUMANIDADE......6

2.1. A invenção do teatro infantil....................................................................6

2.2. A invenção do teatro infantil brasileiro..................................................10

3. TEATRO INFANTIL, A QUE SERÁ QUE SE DESTINA?...............................17

3.1. Hoje o escuro vai atrasar para que possamos conversar: o teatro

infantil do Grupo XIX de teatro........................................................................19

3.2. A Societas Raffaello Sanzio e o teatro de Chiara Guidi para a

infância............................................................................................................21

4. A EXPERIÊNCIA EXISTENCIAL DE SER-NO-MUNDO: OLHARES PARA A

CRIANÇA MESMA..........................................................................................28

5. HISTÓRIAS DE DEPOIS DO FIM: TEATRO PARA ASSISTIR

BRINCANDO...................................................................................................39

5.1. Pequena digressão sobre a estética da recepção e sobre o

espectador............................................................................................40

5.2. Objetivos e Justificativas do projeto......................................................46

5.3. Participação das crianças da EA-FEUSP no processo de criação:

oficinas com o 1° ano............................................................................53

5.4. Participação das crianças da EA-FEUSP no processo de criação:

oficinas com o 4° ano............................................................................64

5.5. Abertura de processo: um presente......................................................77

5.6. A encenação.........................................................................................85

6. TEATRO PARA CRIANÇAS E ADULTOS....................................................105

7. REFERÊNCIAS.............................................................................................110

1

1. INTRODUÇÃO

A investigação acerca das relações entre teatro e infância que aqui se

vislumbra decorre do desejo de unir os processos de minha formação enquanto

artista das artes cênicas à experiência da maternidade: o disparador do contato

assíduo com a cena teatral dirigida às crianças na cidade de São Paulo nos últimos

anos1 e do interesse cada vez mais vivo pela criança-espectadora.

O nicho de produções teatrais pelo qual se interessa a presente reflexão é,

segundo a definição de Maria Lúcia Pupo (2013), aquele levado a efeito por atores

adultos e endereçado a um público particular: as jovens gerações.

Com mais freqüência adjetivado como teatro infantil, ele pode

eventualmente ter como alvo um segmento mais amplo do público,

passando nesse caso a ser nomeado teatro infanto-juvenil. Sob ambas as

denominações ele se distingue das modalidades teatrais produzidas por

crianças e jovens em contextos escolares ligados à ação cultural. Seu traço

distintivo se situa precisamente na diferença de idade entre quem o realiza

e o público ao qual ele se destina, independentemente do caráter

profissional ou amador do acontecimento teatral (ibidem, p.416).

O teatro infantil é uma modalidade artística recente, fruto de acontecimentos2

afins às práticas teatrais - tanto dos registrados na história quanto dos que a história

não conta - que, ainda hoje, enfrenta uma série de preconceitos, inclusive dos

próprios artistas. Muito porque, como nota Pupo, “na medida em que se

autoproclama especificamente infantil ou infanto-juvenil, esse teatro vem quase

sempre renunciando a cumprir um papel mais relevante, que possa distingui-lo do

âmbito do simples divertissement promovido pela televisão, por exemplo” (2000,

p.338).

De todo modo, o termo “teatro infantil” é freqüentemente empregado de forma

pejorativa, como que se referindo a uma arte “menor”, pouco mobilizadora do

engenho, do intelecto, da sensibilidade e da imaginação dos espectadores. Não

1 Aqui faço um recorte da minha experiência como espectadora de teatro para crianças - e como mãe

de uma criança-espectadora - entre os anos de 2016 e 2019 em São Paulo. 2 Como definido por Michael Foucault: “o que me interessa, no problema do discurso, é o fato de que

alguém disse alguma coisa em um dado momento. Não é sentido que eu busco evidenciar, mas a função que se pode atribuir uma vez que essa coisa foi dita naquele momento. Isto é o que eu chamo de acontecimento. Para mim trata-se de considerar o discurso como uma série de acontecimentos, de estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos – que podemos chamar de acontecimentos discursivos – mantêm com outros acontecimentos que pertencem ao sistema econômico, ou ao campo político, ou às instituições” (Foucault apud Gomes, 2018, p.17-18).

2

seria exagero dizer que o teatro para crianças é frequentemente tratado como um

subproduto do Teatro, quando não como uma espécie de caça-níqueis.

Nesse cenário, resta a alguém que, como a autora supracitada, acredita na

“vocação historicamente consagrada do teatro de suscitar interrogações sobre a

condição humana” (Pupo, 2000, p.338), vasculhar a história do que hoje

reconhecemos como teatro infantil, a fim de entender melhor as razões e

implicações dos deslocamentos operados ao longo de sua constituição - “a

passagem de um teatro didático-pedagógico para um teatro de arte e,

consequentemente o banimento da criança dos palcos e sua fixação no lugar de

espectadora” (Gomes, 2018, p.14).

A institucionalização do teatro infantil, como veremos adiante, está

intimamente relacionada às transformações da compreensão do adulto sobre a

criança e a infância ao longo da história. E, como sugere Marina Marcondes

Machado, “se a infância antes nomeada tradicional não dita mais o modo

contemporâneo de viver das crianças, a contribuição dos fazeres artísticos para

pensar o plural infâncias é premente” (2014, p.10). Para a pesquisadora,

[...] os avanços na pluralidade fundada pela noção das culturas da infância

não se mostrou facilmente para e nos adultos produtores de teatro, música,

dança, artes visuais etc., com foco no espectador criança. Talvez pelas

amarras do recorte politicamente correto, a inovação no mercado da

indústria cultural voltado para crianças e jovens apresente-se mais ou

menos aprisionada, ou ainda, suspensa em um tempo linear e antigo, modo

de produzir cultura que não condiz com a existência e cotidianeidade

infantis na contemporaneidade [...].

Muitos dos editais de leis de incentivo, que revelam as políticas

públicas de cidades, estados e federação, possuem um tipo de discurso de

aparência asséptica, nos quais a infância e a condição de ser criança são

previamente acordadas pelos participantes parceiros, em um pacto

usualmente fechado com o mundo da criança – como se o mundo

circundante, compartilhado, não fosse o mesmo, entre adultos e crianças

(ibidem, p.12).

Portanto, passearemos também por uma desconstrução da ideia de “mundo

da criança” e “mentalidade infantil” a partir das contribuições de Walter Benjamin,

Maurice Merleau-Ponty e Manuel Jacinto Sarmento sobre o assunto.

À luz dos achados nesta empreitada, será elaborada uma análise de Histórias

de depois do fim, espetáculo teatral concebido enquanto uma ação da presente

pesquisa. Ao esmiuçar o processo de criação desta obra – desde o projeto inicial até

3

as apresentações finais - pretendo aprofundar-me na reflexão sobre os efeitos da

destinação específica do teatro para a criança.

A despeito de qualquer classificação ou intenção dos adultos, é o próprio

público infantil quem determina que uma obra seja ou não infantil. Nosso público, as

crianças do século XXI, pelo menos as que ainda não foram engolidas pelas telas de

seus tablets, celulares, computadores e televisores, vivem num tempo em que se

passam muitas coisas, mas a experiência3 é cada vez mais rara: “tudo o que se

passa está organizado para que nada nos aconteça”, disse Jorge Larrosa Bondía

(2002, p.21). Isto por que

a experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque,

requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos

tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para

escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar;

parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender

a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o

automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os

ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos

outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo

e espaço (ibidem, p.24).

O fenômeno do declínio da experiência fora diagnosticado por Walter

Benjamin (1994) já em 1933, como resultado do processo de instauração da

Modernidade e como conseqüência da catástrofe da guerra mundial.

Para Benjamin, o empobrecimento da experiência em função da relação do

homem com a máquina, do aceleramento do ritmo cotidiano que não

permite ao indivíduo um tempo de assimilação, da perda do caráter

comunitário nas cidades, e a escassez da prática da narrativa oral e

tradicional, se reflete não só em seu cotidiano, mas também em seu modo

de expressão cultural e em sua percepção estética (Ferreira, 2016, p.152).

Agamben (2005) reconhece na contemporaneidade aquela pobreza de

experiência identificada por Benjamin na modernidade e lembra-nos de que já não é

preciso uma catástrofe para a destruição da experiência, “a pacífica existência

cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente” (ibidem,

p.21). Apesar disso, se nos atentássemos ao valor da experiência autônoma do

3 O termo está empregado neste trabalho como conceituado pelo filósofo Jorge Larrosa Bondía: “a

experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (2002, p.21).

4

sujeito com a arte – e, portanto, com o teatro - talvez pudéssemos encontrar nela, na

arte, o tempo e o lugar para fazer experiência.

Quando falamos em “fazer” uma experiência, isso não significa

precisamente que nós a façamos acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer,

padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida que

nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-

nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e

submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais

experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo (Heiddeger

apud Bondía, 2002 p. 25).

Mas, será que os adultos, quando levam as crianças ao teatro, estão em

busca de oportunidades de proporcionar a elas a sobredita experiência?! Ou

procuram entretenimento para os pequenos? Uma maneira mais lúdica de educá-

los? Erudição? Quereriam que lhes fosse transmitido valores morais?

Para avançarmos na reflexão, vamos supor que estivessem, de fato, ávidos

por experiências, dessas que provocam re-elaborações do mundo e de si; poderiam,

então, encontrá-las nas montagens para crianças? De um tempo pra cá, como

veremos no próximo capítulo, podemos até dizer que sim, mas não sem certa

dificuldade.

Como afirma Pupo,

o que se pode verificar é que a especificidade da dramaturgia e da

encenação infantis não vem lhe assegurando nível de qualidade enquanto

criação artística. Subjaz às representações mentais do adulto produtor do

discurso teatral a imagem de um jovem espectador marcado por uma

espécie de indigência de caráter intelectual. Uma encenação pobre, um

texto recheado de lugares-comuns ou uma interpretação incipiente são

veiculados sem maiores constrangimentos, na medida em que têm apenas

crianças como alvos (2000, p.338).

Minha experiência como freqüentadora de teatro para crianças leva-me a

perceber, também, que esse segmento artístico opera mais comumente na lógica da

informação e do consumo que na lógica da experiência; intriga-me a escassez de

propostas que explorem o teatro enquanto lugar potente para se vivenciar histórias,

ao invés de apenas assisti-las.

Uma ressalva sobre o emprego do termo vivência neste trabalho se faz

necessária. Adoto a definição de Mauro Martins Amatuzzi; segundo ele,

5

passar por uma vivência (Erlebnis) é sentir o impacto de um encontro;

é algo imediato e anterior às elaborações mentais que poderiam ser feitas

depois. Por isso o termo se tornou importante na fenomenologia. Ele

expressa o que nos é dado de forma imediata, o que experienciamos, antes

mesmo de termos refletido ou elaborado qualquer conceito mais preciso. [...]

É a vivência anterior às formulações elaboradas; é a experiência, sem

dúvida, mas agora num sentido mais profundo. Essa realidade psicológica

intencional mais profunda (anterior às formulações e elaborações

conceituais) pode ser chamada de experiência também. Mas para não

ficarmos no sentido genérico ou cognitivo de experiência, proponho que a

denominemos nesse caso de vivência. Ou então acrescentemos um

adjetivo à palavra experiência, e falemos de experiência imediata,

experiência vivida, experiência vivencial ou mesmo experiência

emocional (2007, p.10-14).

Ressalva posta, voltemos ao apercebimento de que os espetáculos

destinados ao público infantil são concebidos, em sua maioria, para a apreciação

distanciada, asséptica; ou seja: à criança espectadora é reservado o espaço de

assistir. Por um lado, é perfeitamente possível que a criança passe por experiências

enquanto espectadora de bons espetáculos de teatro4 - especialmente dos que se

reconhecem como um instrumento de libertação da mente5 - assim como ao assistir

a um filme ou ao contemplar uma pintura. Contudo, as experiências oriundas de

coisas que observamos são essencialmente diferentes6 das experiências advindas

de coisas que vivenciamos diretamente - e que ficam gravadas na nossa carne.

“Os modos adultos de trabalhar o teatro para crianças ganhariam muito

alimentando-se de uma noção de infância e uma noção de arte compatíveis com o

novo que é a criança mesma” (2014, p.9), dissera Marina Marcondes Machado. Por

isto concebemos o espetáculo Histórias de depois do fim: como uma tentativa de

encontrar outra possibilidade de teatro, uma que oferecesse a vivência para as

crianças e, ao mesmo tempo, a experiência para seus acompanhantes, os adultos.

4 Bom espetáculo, em concordância com Maria Lúcia Pupo (1999-2000), seria um espetáculo livre de

textos recheados de lugares-comuns e das tramas sem contradição; desprendido das interpretações incipientes de personagens construídas precariamente, sem contradições internas; que apresenta ação dramática ao invés de palavrório e que, principalmente, fomenta múltiplas leituras no espectador. 5Aqui cabe uma diferenciação entre o que se convencionou chamar de “Teatro Comercial” - herança

do “teatro legítimo norte-americano” que, criado para movimentar a economia, caracteriza-se por se voltar exclusivamente ao entretenimento, sem pretensões de provocar qualquer reflexão ou bem-estar social – e o que se entende como um encontro transformador, no caso do teatro defendido por artistas como Antonin Artaud e Jerzy Grotowski. 6 Diferenciar as experiências não significa organizá-las em níveis hierárquicos; não se trata de

classificá-las em melhores ou piores, mas, sim, olhar para suas especificidades enquanto possibilidades distintas de transformação do sujeito.

6

2. TEATRO PARA CRIANÇAS: UMA VELHA AMBIÇÃO DA HUMANIDADE

Neste capítulo, pretendo olhar brevemente para a história do Teatro, da Idade

Antiga à Contemporânea, no que concerne às manifestações cênicas relacionadas

de alguma maneira à infância, a fim de investigar as implicações da

institucionalização do Teatro Infantil tanto para a arte quanto para a criança.

Procuro, com tal investigação, ferramentas para uma reflexão mais profunda da

encenação de Histórias de depois do fim, objetivo principal deste trabalho.

Importante ressaltar que, nas palavras de Benjamin, “articular historicamente

o passado não significa conhecê-lo „como ele de fato foi.7‟ Significa apropriar-se de

uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (1994, p.224).

Afinal, o pretenso historiador neutro, que acede diretamente aos fatos “reais”, na

verdade apenas confirma a visão dos vencedores (reis, papas, imperadores) de

todas as épocas, e é no instante de perigo para as classes oprimidas (para o sujeito

histórico) que a confortável visão da história como “progresso” ininterrupto se

dissolve (Lowy, 2005).

2.1. A invenção do teatro infantil

“Fazer teatro para crianças é uma velha ambição da humanidade” (Signorelli

apud Benedetti, 1969, p.13); tão “velha” que provavelmente tenha raízes nas

civilizações antigas, como aponta Lúcia Benedetti:

se nos dirigirmos às antigas civilizações, guiando-nos por indícios à margem

do problema educativo, mais do que por documentos ou descobrimentos

arqueológicos, comprovaremos que um teatro para crianças ou cenas em

que crianças intervinham, existia já em épocas muito remotas. Nas criptas e

sepulturas de crianças egípcias, gregas e romanas foram encontrados

bonecos articulados muito semelhantes aos nossos atuais marionetes. Isto

nos faz pensar que assim como eram distrações para adultos, o teatrinho de

bonecos também o seria para as crianças (ibidem).

Segundo Fernando Lomardo (1994), os registros mais antigos de

apresentações de teatro para crianças datam do século III a.C. na China, onde

bonequeiros mambembes apresentavam espetáculos para mulheres e crianças da

7Entre aspas a célebre frase do historiador conservador Ranke, cuja concepção historicista/positivista

da História está sendo criticada por Benjamin nesta passagem.

7

classe mais abastada, em seus domicílios. Mais tarde, no século XV, surgiu na Itália

(e desenvolveu-se na França, sendo muito popular até o século XVIII) a Commédia

dell’arte; por apresentar seus canovaccios (roteiros a partir dos quais os atores

improvisavam) cômicos e acrobáticos em praças públicas ou em palcos móveis,

como as carroças, essa manifestação teatral popular acabava se aproximando

também das crianças. Todavia, tanto o teatro de bonecos chinês quanto a

Commédia dell’arte não fazem parte do dito Teatro Infantil, já que suas práticas não

eram concebidas especificamente para crianças e, sim, para pessoas de todas as

idades.

“Até então, as diferentes etapas pelas quais passa o desenvolvimento

humano não se constituíam objeto de preocupação particular por parte dos

emissores do espetáculo teatral” (Pupo, 2013, p.417). A destinação específica às

crianças está intimamente relacionada à legitimação social da infância ao longo da

História. “Sabe-se que nem sempre a infância foi vista da mesma forma que hoje, ou

seja, como uma fase da vida merecedora de cuidados e atenções distintos daqueles

dispensados à idade adulta” (idem, 2000, p.336).

Segundo o historiador Philippe Ariès (1981), o século XVII é o marco do

nascimento da infância enquanto categoria social e da criança como figura dessa

coletividade. De acordo com seus estudos, embasados na análise da iconografia

européia entre a Idade Média e a Moderna, o sentimento de infância, que inspirou

toda a educação até o século XX, teria se formado entre os moralistas e os

educadores do século XVII e estaria intimamente ligado às instituições vinculadas à

infância, como a família e a escola.

Como aponta Adriana de Souza Broering (2015), os limites metodológicos e a

visão histórica linear das pesquisas de Ariès são questionados por outros

pesquisadores, os quais localizam a infância e a preocupação com a criança em

períodos anteriores ao moderno, e criticam

[...] o fato de ele não ter dado a devida importância às crianças das classes

desfavorecidas, pois foca apenas o aparecimento da infância burguesa no

mundo ocidental. Com essa linha de raciocínio, deixou transparecer a ideia

de que a infância recém-descoberta era hegemônica. [...] Sua escolha, ou

seu recorte, acarreta várias lacunas na construção da história das crianças

e de suas infâncias. No ocidente, a infância começa a ser percebida a partir

da Virgem Maria e do menino Jesus. Como teria acontecido nas civilizações

regidas por outras lógicas ou outras crenças? Como a falta desse

conhecimento pode repercutir nos dias atuais? Acreditamos que a

8

concepção de que houve época e local determinado da “descoberta” possa

colaborar com a reafirmação, assim como acontece hoje, de que existiria

apenas uma infância, deixando de reconhecer sua pluralidade e suas

diferenças (Broering, 2015, p.282).

Interessa considerar, ainda, que “ao se caracterizar a falta de uma história da

infância, bem como seu registro historiográfico tardio, pode ficar evidenciada a

incapacidade, por parte do adulto, de ver a criança em sua perspectiva histórica.

(ibidem, p.279).

“Descoberta” a infância - ainda que não seja possível afirmar ao certo quando

- as crianças foram paulatinamente deixando de ser consideradas adultos em

miniatura. O reconhecimento da necessidade de cuidados específicos para com elas

fez com que surgissem práticas sociais que as preparassem para agir no mundo ao

qual estavam inseridas e, ao mesmo tempo, as mantivessem protegidas no seio da

família. O teatro destinado especificamente às crianças inclui-se dentre tais práticas.

Convém frisar que “mesmo depois do aparecimento do conceito de infância,

da ideia de responsabilidade dos pais e do Estado, as crianças, constituídas como

categoria social, prosseguem sendo um dos principais grupos oprimidos” (ibidem,

p.281).

O primeiro espetáculo formalmente dirigido às crianças e jovens data de

1781, com apresentação no Palais Royal em Versalhes, na França. Trata-se

do Spectacle des Enfants, um Teatro de Sombras de Dominique Séraphin,

sombrista que entusiasmou a corte e permaneceu em Versalhes até 1784,

partindo posteriormente para Paris. [...] Neste mesmo período histórico, em

que o teatro de sombras francês foi levado para a Inglaterra, deu-se o

“desaparecimento” da Commédia dell‟arte, sendo seus personagens e

enredos absorvidos pelo teatro de bonecos que começava a se proliferar na

Europa, com as apresentações realizadas nas feiras e ruas das cidades,

principalmente no verão (Pinto, 2014, p. 35).

A dispersão do teatro de bonecos se deu por intermédio dos mercadores e a

atividade se intensificou nos séculos XVIII e XIX. Por acontecer nas ruas e por se

aproximar do universo da brincadeira ao dispor de bonecos semelhantes aos

brinquedos, essa modalidade cênica passou a estar efetivamente associada ao

teatro infantil, embora a platéia de espetáculos de caráter popular, na rua e em

outros espaços, fosse composta por pessoas de todas as idades.

Para Mário Piragibe,

9

o primeiro movimento de separação entre teatro para adultos e teatro para

crianças se deu a partir da popularização das salas fechadas de espetáculo,

onde se assistem ainda hoje peças escritas por grandes autores, que

discutem questões intrincadas, e que aos poucos fizeram com que o jogo

físico fosse substituído pelo embate filosófico, cada vez mais imóvel e

quotidiano. A imagem não tem um pingo de suporte histórico mas é bonita

assim mesmo: os adultos endinheirados entram no edifício teatral para

assistir os dramas das classes menos favorecidas, deixando na praça um

grupo de indigentes e crianças, ainda hipnotizados, diante de uma pequena

empanada onde se vê um animado, violento e licencioso espetáculo com

bonecos de luva (Piragibe apud Pinto, 2014, p.36).

Façamos um adendo para mencionar que, segundo uma concepção dialética

da cultura, o teatro e os ambientes teatrais são expressões da sociedade - desigual -

em que existem. Disse Benjamin: “nunca houve um monumento de cultura que

também não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta

de barbárie, não é, tampouco, o processo de transmissão da cultura” (1994, p.225).

Nessa lógica, o teatro, ao deixar as ruas e adentrar os espaços fechados, passando

a ser identificado como bem cultural fora do alcance dos pobres, reforça a

desigualdade social e econômica entre classes.

Como escreve Pupo,

a exploração escandalosa das jovens gerações no mundo do trabalho dá

origem, na Europa do século XIX, à tomada de consciência coletiva sobre a

situação do jovem e da criança na sociedade; combates do proletariado

pela sua emancipação se traduzem por demandas de escolarização em

massa e pela modificação do estatuto da criança e do jovem na sociedade

(2013, p. 417).

Criaram-se, assim, condições favoráveis para o surgimento de uma literatura

voltada particularmente à infância, da qual se originaria o teatro infantil.

É no bojo dessas idéias que o diretor russo Constantin Stanislavski,

referência fundamental do trabalho do ator no teatro contemporâneo, emite,

em 1907, uma famosa afirmação, cujos desdobramentos provavelmente

surpreenderiam seu próprio autor. Quando declara que “o teatro para

crianças é como o teatro para adultos, só que melhor”, Stanislavski

estabelece, por assim dizer, o marco zero de uma modalidade cênica

particular, que, a partir daí, começa a se multiplicar no Ocidente. Ao longo

das décadas seguintes, a própria URSS, Inglaterra, França, Estados Unidos

e países do Europa do Leste, entre outros, assistem ao fenômeno da

institucionalização do teatro dirigido especialmente à infância, que passa a

atender cada vez mais às necessidades de um mercado de consumo em

contínua expansão (Pupo, 2000, p.336).

10

Reforcemos que o traço distintivo deste teatro infantil em expansão “se situa

precisamente na diferença de idade entre quem o realiza e o público ao qual ele se

destina” (Pupo, 2013, p.419). Interessa atentarmo-nos, então, ao fato de que nos

países ocidentais - onde o sistema econômico determina que o grau de atenção que

um indivíduo merece receber da sociedade advenha de seu envolvimento com a

produção de bens - tanto a criança como o idoso tendem a receber um tratamento

discriminatório destinado aos indivíduos não-produtivos. Como o adulto detém um

poder, assegurado por sua condição de idade, que a criança não detém, a relação

entre eles se dá entre desiguais. E esse desequilíbrio está no âmago do teatro

infantil (idem, 2000).

2.2. A invenção do teatro infantil brasileiro

No nosso país, as atividades teatrais têm início no Brasil colônia com os

padres jesuítas, em 1561, a propósito de promover a catequização dos povos

indígenas. Segundo Dudu Sandroni, as crianças - consideradas os únicos

integrantes da tribo ainda capazes de serem “salvos” dos costumes pagãos -

participavam do teatro jesuítico tanto como espectadoras quanto como intérpretes

dos Autos:

as crianças em geral vão aparecer na dramaturgia de Anchieta ou no início,

narrando os martírios dos heróis de que vão tratar os Autos, ou ao final,

simbolizando a catarse da luta entre o Bem e o Mal, isto é, os meninos

declamando seu amor ao Cristo, renegando sua própria cultura pagã

(Sandroni apud Pinto, 2014, p. 35).

Depois do teatro catequético, de caráter moralizador, há registros do teatro de

formas animadas nas ruas do século XVIII; das companhias do século XIX, nas

quais crianças atuavam nos espetáculos para adultos; do teatrinho de sombras e do

teatro de bonecos dos séculos XIX e XX, atrelados à ideia de instrução e educação.

Assim como na Europa, o teatro para crianças no Brasil permaneceu como

instrumento didático e moral até o século XX.

Abro parênteses para diferenciar os termos didático e pedagógico, a fim de

que se possa traçar correspondências entre as práticas teatrais de cada momento

histórico e suas intenções primordiais no decorrer desta reflexão. De acordo com a

pesquisadora Maria Helena Kuhner,

11

pedagógico todo teatro é, porque uma característica psicológica da criança

é que tudo que ela vê, vive e sente é por ela vivido como uma experiência e

é da soma dessas experiências que ela elabora seu desenvolvimento. Mas,

quando ele se torna didático, ainda mais aquele didático à moda tradicional,

da mensagem explícita, imposta, é apenas chato e ineficaz. Já se passou o

tempo em que os pais e os professores eram os mediadores entre a criança

e o mundo; hoje, o mundo entra pela cara da criança, na televisão, nos

meios de comunicação, na rua, no que ela própria está vendo e ouvindo o

tempo todo (Kuhner apud Gomes, 2018, p.36).

Para Sandroni, somente nos últimos anos do século XIX teria surgido no

Brasil uma produção teatral voltada unicamente para crianças, representada por elas

e para elas em datas comemorativas nas escolas ou nos lares, com caráter didático-

pedagógico (Pinto, 2014).

O Teatro Escolar, como foi denominado, pode ser dividido em três fases: a

fase das traduções de histórias e de dramaturgia produzidas principalmente na

França; a fase nacionalista - quando surge a literatura dramática infantil,

representada pelos textos de Coelho Netto, pela obra didática de Olavo Bilac e por

Carlos Góis, com sua crítica ao analfabetismo no Brasil; e a fase “teatral”, em que

são introduzidas noções de como se montar um espetáculo, como nos volumes de

Joracy Camargo.

“Até os anos de 1940 as manifestações do nascente teatro infantil brasileiro

são quase sempre marcadas por uma dramaturgia de cunho moralizante e a

semelhança com o teatro jesuíta é patente” (Pupo, 2013, p.418). A partir da década

de 1940, começam a aparecer espetáculos realizados por artistas adultos para

platéias de crianças.

Em 1944, o então embaixador brasileiro Paschoal Carlos Magno posicionou-

se publicamente sobre a necessidade de que fossem criados espetáculos que

contribuíssem para a educação moral e espiritual da criança - o adulto de amanhã -

despertando seu interesse pelos estudos, pela arte, pelos sentimentos patrióticos.

Com este incentivo, sedimentou-se, no Rio de Janeiro, o Teatro do Gibi – projeto de

teatro itinerante que pretendia levar às periferias diversas atividades, como circo,

cinema, orquestra etc, mas acabou circunscrito ao teatro de bonecos.

Entretanto, é a partir da encenação de O casaco encantado de Lúcia

Benedetti em 1948 no Rio de Janeiro que o teatro para crianças se expande e passa

a participar efetivamente das manifestações cênicas das principais cidades do país.

12

Antes da segunda metade da década de 1940, não existia uma

preocupação em desenvolver uma dramaturgia especialmente voltada para

as crianças. O casaco encantado, de Benedetti, fora escrito, dirigido e

representado por adultos, mas sua temática, estrutura dramática, linguagem

e certo estilo de representação foram pensados para o público infantil. Para

muitos, eis a grande inovação (Gomes, 2018, p. 79).

A peça de Benedetti

marca ao mesmo tempo a passagem do amadorismo para o

profissionalismo e o início do teatro em que adultos representavam para

crianças. Apesar de Valdemar de Oliveira e Paschoal Carlos Magno já

terem (em 1939 e 1944, respectivamente) lançado as bases de um teatro

nesses moldes, a ideia não tinha “pegado”, e só com o sucesso comercial

de O Casaco Encantado a produção de teatro para crianças ganhou status

profissional (Lomardo, 1994, p. 37).

Faz-se pertinente, neste momento, mencionar a pesquisa de Sidmar Gomes8,

na qual são apresentados dois acontecimentos importantes que se deram

simultaneamente à fundação do teatro infantil no Brasil, os quais, para o autor,

teriam promovido sua afiliação ao rol das práticas de governamento9 de tipo

artístico-pedagógico da infância.

O primeiro deles diz respeito à discursividade corrente no início do século

XX sobre a infância como problema, flagrada nos debates sobre a temática

do infanticídio, da degeneração e da delinquência infantis. O segundo

acontecimento refere-se à emergência do discurso escolanovista10

entre as

décadas de 1930 e 1950, afirmando o viés educativo como forma de

superação de uma infância tida como problemática, via o projeto de

ajustamento, de autonomia e de emancipação do alunado (Gomes, 2018,

resumo da tese).

8 Tese de doutoramento, cujas fontes empíricas são o jornal carioca Correio da Manhã (1901-1974) e

a Revista Brasileira de estudos pedagógicos (1944-2017). 9 Gomes opta por utilizar o termo governamento, pois na perspectiva foucaultiana a palavra governo

pode ser entendida tanto como instância governamental, administrativa, central, relacionada às ações do Estado, quanto a ação ou ao ato de governar; entretanto, em sua tese de doutoramento, o que está „grafado como práticas de governo não são ações tomadas por um staff que ocupa uma posição central no Estado, mas são ações distribuídas microscopicamente pelo tecido social, às quais cabe a denominação de práticas de governamento. 10

Escola Nova, "Escola Ativa" ou "Escola Progressiva" são denominações de um movimento de renovação do ensino especialmente forte na Europa, na América e no Brasil, na primeira metade do século XX. Os primeiros grandes inspiradores da Escola Nova foram o escritor Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e os pedagogos Heinrich Pestalozzi (1746-1827) e Freidrich Fröebel (1782-1852). O grande nome do movimento na América foi o filósofo e pedagogo John Dewey (1859-1952). O psicólogo Edouard Claparède (1873-1940) e o educador Adolphe Ferrière (1879-1960), entre muitos outros, foram os expoentes na Europa.

13

O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova foi lançado em 1932 por

educadores expoentes do período, como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira,

Lourenço Filho, Roquette Pinto, Mario Casassanta, Cecília Meirelles, entre outros, e

inaugurou o movimento escolanovista em meio ao processo de reordenação política

pós Revolução de 1930. Se o aceleramento da urbanização e a ampliação da

cultura cafeeira contribuíam, nesta época, para o progresso industrial e econômico,

agravavam, por outro lado, as graves desordens políticas e sociais.

Nesse contexto, o projeto de renovação educacional do país propunha que o

Estado organizasse um plano geral de educação e defendia a bandeira de uma

escola única, pública, laica, obrigatória e gratuita. A criança seria, então, “mirada por

uma nova perspectiva, doravante balizada por preceitos biológicos e psicológicos”

(Gomes, 2018, p. 70).

As bases do projeto da Escola Nova se assentavam sob o pleito da

liberdade, da autonomia, do senso crítico e estético, da cooperação, de uma

escola sob medida para a criança, do cultivo das individualidades e da

atenção aos aspectos psicológicos, ou seja, as mesmas premissas

propagandísticas prometidas pelo teatro, as quais poderiam resumir-se às

questões de um sujeito empreendedor de si, autogestionado. [...] Ainda que

no período a ênfase se desse sobre o teatro infantil feito por crianças para

crianças no meio escolar, notar-se-á desse ponto em diante que os

discursos do ideário escolanovista se espraiariam igualmente pelo teatro

infantil feito por adultos para crianças no circuito artístico (ibidem, p. 77).

Gomes identifica na relação entre arte e educação “um paulatino movimento

de mútuas e recíprocas apropriações. Se a Escola Nova se apropriaria das artes

como instrumento, ferramenta e meio para os seus fins, as artes se apropriariam do

discurso da Escola Nova como justificativa e necessidade para o seu fazer” (ibidem,

p. 72).

Durante a década de 1950, o modelo de teatro proposto por Benedetti teve

sua expansão assegurada por três grupos importantes: O Tablado, fundado por

Maria Clara Machado em 1951, o qual além de formar profissionais produzia uma

variedade dramatúrgica inovadora e desprovida de “ensinamentos”, ainda que

contivesse elementos maniqueístas; o Tesp, instituído em São Paulo por Julio

Gouveia e Tatiana Belinky, que promoveu a ampliação do acesso às práticas

teatrais ao criar o teatro infantil televisionado; e o Tipie, criado por Olga Reverbel em

Porto Alegre (Pupo, 2000).

14

O final dos anos 60, segundo Pupo,

assiste à eclosão de uma contestação a formas tradicionais de autoridade,

em países submetidos a diferentes regimes políticos. Abre-se assim espaço

para novas concepções acerca da posição das jovens gerações na

sociedade e, a partir delas, para a crença nas potencialidades

emancipadoras do teatro. Constata-se então um boom da representação

teatral infantil, verificado com clareza em nações tão diferenciadas quanto a

França e o Brasil, por exemplo (2000, p.337).

Como fora atribuída ao teatro infantil a função de formar público e cidadãos, a

oferta de espetáculos para crianças cresceu rapidamente em São Paulo e no Rio de

Janeiro em meados da década de 1970, período no qual foram conquistadas

premiações exclusivas para a modalidade, além de ter sido criada a Associação

Paulista de Teatro para a Infância e Juventude.

Embora a dramaturgia produzida para crianças nesse ínterim tenha alcançado

alguns avanços formais, a análise de Pupo (1991) revela que o teatro voltado às

jovens gerações vinha configurando, até então, uma produção cultural específica

carregada de efeitos nitidamente perversos, “tanto em termos das soluções cênicas

propostas, quanto das representações sociais veiculadas” (idem, 2000, p.337).

A autora observa que com freqüência era negada às crianças a possibilidade

de múltiplas leituras, uma das prerrogativas inerentes à obra artística; também eram

recorrentes a ausência de contradições na trama e nas personagens e as interações

que concedem aos pequenos a ilusão de um poder que nada tem de efetivo – e,

assim, camuflam o autoritarismo do adulto.

A partir da década 1970, o Brasil assistiu a um movimento de profunda

(tentativa de) transformação do teatro, encabeçado por grupos como o Ventoforte,

de Ilo Krugli, e o Pasárgada, de Vladimir Capella, os quais, estruturando seus

trabalhos a partir da ideia de criação compartilhada, caminhavam na contramão da

lógica do lucro - neste período, muitos artistas e produtores de teatro infantil

tomavam a atividade como uma razoável fonte de renda, multiplicando os recursos

mercadológicos para atrair a criança (oferecendo pipocas, doces, produtos etc) e

lucrar com isso (Lomardo, 1994).

Tal movimento teve início com a encenação de Histórias de Lenços e Ventos,

peça escrita e dirigida por Krugli em 1974, a qual revelava uma séria tentativa de

quebrar a relação autoritária entre palco/platéia em função da observação do jogo. A

15

partir daí, grupos que comungavam desse pensamento foram abandonando a

supervalorização do texto e da narrativa com “princípio, meio e fim” e dando espaço

à dramaturgia descontínua, construída por fragmentos; passou-se a adotar o folclore

brasileiro como fonte estética e temática ao invés dos contos de fada e a servir-se

de pouca cenografia, para privilegiar a ressignificação de objetos.

As novas encenações - de caráter lúdico e sem fronteiras etárias -

demandavam “grande exercício de imaginação e interação por parte de seus

participantes” (Gomes, 2018, p. 33). “Justificado pela premissa de devolver ao

espectador a sua capacidade de jogar e imaginar, esse teatro de barreiras etárias

suprimidas proporia novas formas de relação convival entre a criança e o adulto,

influenciando sobremaneira o teatro brasileiro contemporâneo” (ibidem, p. 16).

Entretanto, afora esses casos particulares, como nota Pupo,

o que se pode verificar é que a especificidade da dramaturgia e da

encenação infantis não vem lhe assegurando nível de qualidade enquanto

criação artística [...] A inexistência de um maior cuidado artístico no teatro

voltado aos jovens espectadores, em última análise, parece

simultaneamente encobrir e reafirmar a desigualdade de poder entre as

gerações. Dentre as múltiplas modalidades possíveis de relacionamento

entre o emissor adulto e o receptor infantil, os caminhos da pobreza artística

e do conformismo é que são trilhados com esmagadora freqüência (2000,

p.338).

Dib Carneiro Neto, um dos principais críticos de teatro infanto-juvenil do país,

acredita que o quadro do teatro infantil brasileiro teve uma melhora considerável nas

últimas décadas, exemplificada nas falas de profissionais consagrados neste ramo

da produção teatral em uma cerimônia de entrega do Prêmio FEMSA de Teatro

Infantil e Jovem:

“hoje em dia, tem muito mais teatro adulto ruim do que teatro infantil ruim”;

“é mais fácil levar 200 pessoas para encher uma platéia de teatro infantil do

que conseguir fazer o mesmo no teatro adulto”; “temos boas salas de teatro

acreditando mais nos infantis e temos mais empresas patrocinadoras

acordando para a qualidade consistente do teatro infantil”; “vou a muitos

festivais internacionais de teatro para a infância e juventude e posso dizer

que não devemos nada a lugar algum do mundo”; “teatro infantil é hoje o

grande veículo de sustentação financeira da classe artística de São Paulo”;

“há muita gente atuando no teatro infantil pelo simples motivo de que há um

público consumidor ávido”; [...] “teatro infantil é só no nome, mas já somos

grandes” (Carneiro Neto apud Gomes, 2018, p.12).

16

“O crítico atrela o panorama otimista do atual teatro infantil brasileiro ao fato

de que, entre outros motivos, hoje ele teria se desvencilhado de uma função

proeminentemente educativa, ressaltando seu aspecto de produção artística”

(Gomes, 2018, p. 12). Gomes defende exatamente o contrário: se atualmente as

platéias de espetáculos infantis são ocupadas com maior freqüência do que as

platéias dos espetáculos adultos, essa disparidade estaria assentada no apelo

educativo que, historicamente, ronda a ideia de teatro voltada ao público infantil.

Ao contrário do que cantam em verso e prosa os atuais defensores de mais

teatro infantil, tributários de uma história linear, evolucionista e voltada a um

futuro glorioso em oposição a um passado sombrio, o teatro feito para

crianças no Brasil encontra-se profundamente inflacionado por justificativas

educativas (ibidem, p.17).

Para concluir o assunto e finalizar este capítulo, recuperemos o

questionamento de Hans-Tie Lehmman:

enquanto, porém, o teatro contemporâneo se distancia cada vez mais da

linha dramática através de processos de fragmentação, desconstrução e

montagem, muito embora esteja em busca de novas formas de narração,

muitos seguem presos à ideia de que o enredo explicativo ou esclarecedor

seja necessário, onde quer que se trate ou pareça tratar-se de Pedagogia,

ou seja, justamente no teatro infantil. Por isso não deixa de ser interessante

perguntar pela conexão entre a superação do paradigma dramático e a

superação de uma concepção de teatro infantil como a apresentação

doutrinária e educativa de uma peça de teatro. Poderia ser o caso de que

ambos estivessem intimamente conectados? (2011, p.281).

Considerando o levantamento histórico tecido até aqui e as questões

suscitadas por ele – em especial: afinal, a que será que se destina o teatro infantil? -

daremos a conhecer, no próximo capítulo, as referências artísticas que fomentaram

a criação do espetáculo Histórias de depois do fim, entendendo que nelas já estão

revelados pontos de vista sobre a criança e sobre a que se destina isto que se

convencionou chamar de teatro infantil, com os quais coadunamos.

17

3. TEATRO INFANTIL, A QUE SERÁ QUE SE DESTINA?

Frequentar o teatro destinado especificamente às crianças nos últimos anos11

acompanhando uma criança-espectadora12 fez-me despertar para uma série de

questões, dentre as quais recolho as mais relevantes para o presente trabalho: por

que constantemente meu filho ou se envolve pouco ou não se envolve com os

espetáculos (e nem eu)? Por que os atores fazem perguntas às crianças se não

querem, de fato, saber as respostas? Por que tenho que “forçar” meu filho a ficar

sentadinho, quietinho e prestando atenção? Como as experiências teatrais na

infância poderiam ser mais significativas para a criança? Por que o teatro é tão

pouco explorado enquanto lugar potente para se vivenciar histórias?

Este trabalho não tem a pretensão de encontrar respostas para todas essas

perguntas, ou para as que aparecerão ao longo desta escrita, mas intenta olhar mais

de perto para algumas possibilidades de relação entre teatro e infância - que são

tantas quantas são as interpretações sobre a própria infância e a criança, ou sobre a

arte e sua função social.

Para tanto, consideramos, como Hans-Tie Lehmman, que

o interesse primordial deve recair sobre a representação teatral em si, em

suas qualidades formadoras e enriquecedoras, em seu valor como atividade

comunitária, como um espaço em que, de modo complexo, elementos

essenciais da experiência infantil do mundo e também da realidade dos

adultos encontrem sua expressão [...] Trata-se do deixar surgir das

fantasias e dos ideais, mesmo que eles sejam tão ilegítimos ou indesejáveis

do ponto de vista moral-pedagógico. O fascínio que o teatro exerce não é

apenas estético. Ele tem a ver com situação, acontecimento, revelação e,

se essa grandiosa palavra nos for permitida – com o humano” (2011, p.272).

Talvez seja possível falar de um teatro que tanto tem preocupações estéticas

como educativas, no sentido mais amplo do termo – entendendo que educar não é

“conduzir, domar ou domesticar, mas fornecer os instrumentos intelectuais, morais e

éticos necessários às crianças, visando à formação individual e à integração familiar

social consciente e responsável” (Gomes, 2018, p.35).

11

Aqui faço um recorte da minha experiência como espectadora de teatro para crianças - e como mãe

de uma criança-espectadora - entre os anos de 2016 e 2019 em São Paulo. 12

Essa pesquisa nasce a partir da experiência singular que tive observando e acompanhando meu próprio filho, entretanto a intenção é que a reflexão possa partir deste âmbito mais íntimo e expandir-se a outro mais universal, contribuindo com as discussões sobre a necessidade de olhar para a criança ela mesma, se quisermos de fato tentar compreendê-las.

18

Então, não se trata de pensar o teatro como “ferramenta para transmitir um

conteúdo disciplinar ou valores morais, mas de acreditar no valor da experiência

autônoma do sujeito com a arte. A arte seria, assim, o campo em que o sujeito teria

condições de fazer experiência, num mundo em que cada vez menos essa

experiência é possível” (Lima, 2011, p.57).

No entanto, quando eu e meu filho passamos a frequentar o teatro para

crianças, campo artístico onde eu esperava encontrar as condições para a

experiência, estas pareciam estar demasiadamente distantes (quiçá inalcançáveis).

Dentre muitas idas frustradas ao teatro, encontramos, sim, alguns espetáculos

interessantes13, mas uns poucos em meio a tantos outros que mais pareciam

subjugar a criança, desconsiderando sua capacidade de realizar leituras próprias e

limitando, assim, seu envolvimento com o acontecimento teatral.

Como observa Pupo,

subjaz às representações mentais do adulto produtor do discurso teatral a

imagem de um jovem espectador marcado por uma espécie de indigência

de caráter intelectual. Uma encenação pobre, um texto recheado de

lugares-comuns ou uma interpretação incipiente são veiculados sem

maiores constrangimentos, na medida em que têm apenas crianças como

alvos (2000, p.338).

Além dessa delicada conjuntura, é sabido que

no mundo, hoje, existem diversas formas de se vivenciar as infâncias. A

infância não é mais uma: aquela frágil, inocente, vazia, dependente dos

adultos, inventada pela modernidade. Temos crianças trabalhadoras,

crianças sabe-tudo, crianças informatizadas, exploradas, abandonadas,

crianças repletas de tarefas e obrigações. Enfim, são tantas as infâncias

quantas as possibilidades de se estar vivo no mundo contemporâneo. E isso

excede, e muito, a visão da infância enquanto um período mágico, lúdico,

apartado da realidade, um tempo de aprendizado e diversão (Ferreira, 2011,

p.47).

13

O termo faz referência a espetáculos que, a meu ver, pretendem cumprir um papel mais relevante –

há, com mais frequência, aqueles que preparam a criança para ser consumidora de um bom produto teatral; e, com um pouco mais de sorte, aqueles que suscitam interrogações sobre a condição humana, promovendo a libertação da mente. Exemplos mais recentes: “Gagá”, dirigida por Marcelo Romagnoli; “A cortina da babá” e “Meu jardim”, do grupo Sobrevento; “Bê a Bach”, da Cia Noz de Teatro, Dança e Animação e do grupo Furunfunfum; “Cocô de passarinho”, também da Cia Noz; “Zapato busca Sapato”, dos mineiros da Trupe de Truões; as montagens de Cia ViradaLata; “Rinocerantas”, da Cia Lona de Retalhos; “Juvenal, Pita e o velocípede”, dirigida por Cadu Cinelli do grupo Tapetes Contadores de Histórias, “O som das cores, do grupo Catibrum Teatro de Bonecos”.

19

Por isso, o Teatro poderia ser um lugar para se ver - e quem sabe vivenciar -

assuntos da vida, aspirações e contradições da nossa sociedade, questionamentos

das relações entre os homens. Afinal, a experiência com o espetáculo

implica primordialmente determinadas influências psicológicas de alcance

muito maior do que se pensa usualmente. E isso porque todos os

acontecimentos do palco passarão a fazer parte do subconsciente da

criança, constituindo “engramas” e contribuindo para a formação daquele

fabuloso depositário mais ou menos inconsciente de idéias e emoções, que

terá posteriormente uma tremenda participação na inteligência, na

sensibilidade e no comportamento da pessoa adulta (Gouveia apud Gomes,

2018, p.35-36).

Entre idas e vindas, chegamos ao espetáculo Hoje o escuro vai atrasar para

que possamos conversar14, do Grupo XIX de Teatro. E a este quisemos até voltar. A

seguir, explico os porquês.

3.1. Hoje o escuro vai atrasar para que possamos conversar: o teatro infantil

do Grupo XIX de Teatro

Para que possamos conversar... Com quem se conversa? Como essa

conversa acontece? Sobre o quê se conversa? Para mim, é com muita atenção a

tais questões que o Grupo XIX de Teatro, após 16 anos de caminhada e 8

espetáculos adultos, debruçou-se sobre o universo infantil pela primeira vez.

O espetáculo teve seu processo colaborativo de criação livremente inspirado

no romance De Repente, Nas Profundezas do Bosque, do escritor israelense Amós

Oz. A história se passa num vilarejo onde um acontecimento misterioso provocou a

extinção de todas as espécies animais. A existência dos bichos e o fato de terem

sido supostamente raptados pelo “Espírito do não-sei-o-quê do bosque” são

assuntos muitíssimo evitados pelos adultos do povoado, sendo a professora Rafaela

a única a falar sobre os animais durante suas aulas. É num recreio da escola que

Luna conta para Santi e Clara que acredita ter visto um pássaro, ao que os colegas

respondem com muita chacota e apelidando a menina de Luna Lunática. Depois

14

Criação: Grupo XIX de Teatro; Dramaturgia: Ronaldo Serruya; Direção: Luiz Fernando Marques (Lubi) e Rodolfo Amorim; Direção Musical: Tarita de Souza; Atores-criadores: Janaina Leite, Juliana Sanches, Ronaldo Serruya, Rodolfo Amorim, Tarita de Souza.

20

disso, Luna desaparece e seus amigos partem numa expedição pelo bosque à

procura dela e dos animais desaparecidos.

Com quem se conversa?

As crianças são o termômetro mais sincero da recepção teatral, afinal, podem

chorar e gritar e correr fugidas de seus assentos ao menor sinal de desagrado, seja

ele atraso, susto, medo, ou mesmo fome e sono. O público infantil é, sim, exigente,

mas basta um olhar atento aos pequenos para que se conquiste sua atenção.

Nas vezes em que assistimos ao espetáculo - e ressalto aqui que fomos três

vezes, a primeira por escolha minha e as demais a pedido de meu filho (com três

anos na época), que ficava dias repetindo falas da peça –, pude notar, ao invés do

famigerado “chororô” e do esforço constrangido dos pais para manterem seus filhos

sentados e quietos, olhinhos atentos, curiosos, desejosos de participação.

Como essa conversa acontece?

Essa pergunta relaciona-se com as escolhas da encenação. Tanto a pesquisa

sobre a relação direta com o público quanto a exploração de espaços não

convencionais são elementos constitutivos da trajetória do Grupo XIX de Teatro. A

encenação de Hoje o escuro vai atrasar para que possamos conversar, proporciona

às crianças diversos modos de participar do espetáculo: num primeiro momento,

sentados na platéia do teatro como espectadores mais distanciados, mas que são

convidados a interagir com as personagens e a cantar a canção-tema da peça.

Quando Luna desaparece e Santi e Clara resolvem sair à sua procura, o

público (adultos e crianças) é convidado a participar da expedição; então, são

formados dois grupos de exploradores, todos ganham lanterninhas de cabeça e

partem para um tour pelas escadarias e corredores do Centro Cultural Banco do

Brasil (espaço no centro da cidade de São Paulo para o qual e com o qual a

encenação foi originalmente concebida), como se estivessem partindo para o

bosque.

Depois de encontrar Luna, a expedição retorna ao teatro, mas por dentro do

palco – que já não é a aldeia do início da peça, mas o bosque - nesse momento, as

crianças se fantasiam e passam a ser os animais desaparecidos da história.

A conversa com os espectadores se dá, portanto, de maneira interativa,

através do diálogo direto com as crianças - com possibilidades de participação não-

ilusórias - e itinerante, aspectos muito trabalhados pelo grupo nos espetáculos

adultos.

21

E sobre o quê se conversa?

A obra aproxima pais e filhos de temas caros aos nossos tempos: bullying,

intolerância, preconceito, discriminação. A peça ainda esbarra na importância do

professor, mas essa esfera não chega a ser desenvolvida. Por não subestimar a

capacidade poética e imaginativa da criança e entendendo, inclusive, que ela está

sujeita a sentimentos desesperados de solidão e isolamento e experimenta com

freqüência uma angústia mortal, os atores, que estavam crianças, souberam brincar

com os pequenos espectadores e fazer do espetáculo um espaço para a experiência

e para a reflexão.

É possível que se identifique certa “lição de moral” no discurso final do

espetáculo, proferido pela personagem Niño - um homem que vive com os animais

no bosque desde que era menino e decidira fugir da aldeia por sofrer com

discriminações. Entretanto, pelo modo com que trata a violência gerada pela

normalização do bullying nos espaços de socialização infantil como a escola -

incluindo a criança-espectadora na perspectiva de quem pratica o bullying e também

de quem o sofre - o espetáculo tem, a meu ver, potência para fomentar o diálogo

entre as diferentes gerações que assistem juntas à mesma obra.

Das experiências com Hoje o escuro vai atrasar para que possamos

conversar advém meu interesse pelas modalidades de relação direta do espectador

com a obra: o teatro interativo e itinerante. Daí ter sido esta referência a primeira

semente de Histórias de depois do fim, espetáculo desenvolvido como uma ação da

presente pesquisa, sobre o qual nos debruçaremos mais à frente.

Um pouco depois de encontrar-me com o trabalho acima citado, fui

apresentada ao livro Isto Não È um Ator: o Teatro da Socìetas Raffaello Sanzio,

através do qual a autora Melissa Ferreira (2016) nos dá a conhecer esta tão radical

e influente companhia italiana de teatro. A Raffaello Sanzio, mais precisamente o

teatro de Chiara Guidi para a infância, passou a ser nossa grande inspiração, por

trabalhar com a interação e com a presença da criança de uma maneira mais

profunda, como veremos a seguir.

3.2. A Societas Raffaello Sanzio e o teatro de Chiara Guidi para a infância

Fundada em 1981, na Itália, pelas duplas de irmãos Romeo e Claudia

Castellucci e Chiara e Paolo Guidi, a história da Societas Raffaello Sanzio é

22

marcada por relações de parentesco. Chiara Guidi e Romeo Castellucci casaram-se

e tiveram seis filhos, os quais participaram de diversos espetáculos, tanto nos

destinados a adultos quanto nos infantis, fato que torna o pensamento da companhia

sobre a relação entre teatro e infância ainda mais envolvente.

Chiara Guidi, Romeo Castellucci e Claudia Castellucci trabalham em

colaboração e mantém um núcleo de pesquisas filosóficas e artísticas em comum.

Entretanto, cada artista do grupo desenvolve sua pesquisa própria: Claudia

Castellucci trabalha com movimento rítmico em experiências artístico-pedagógicas

com jovens; Romeo Castellucci produz obras artísticas (instalações, óperas,

performances, espetáculos teatrais etc) que oferecem resistência à representação e

extrapolam o âmbito da ficção, gerando impacto sensorial no espectador pelos

efeitos da presença de animais, máquinas e pessoas com corpos singulares (como

anoréxicos, obesos, doentes terminais, idosos e crianças, entre outros) em cena; já

Chiara Guidi desenvolve suas pesquisas em torno da voz e da infância.

Interessa à Raffaello Sanzio, sobretudo, olhar para as origens do teatro como

um teatro pré-trágico, anterior à palavra, o qual, justamente por não estar dominado

por ela enquanto fala ou discurso, age em todos os sentidos da percepção. Por isso,

suas produções revolucionam a relação entre espetáculo e espectador,

reivindicando a força simbólica do teatro. “Suas experiências revelam uma atitude

crítica em relação à representação e às suas implicações políticas e estéticas na

sociedade atual” (Ferreira, 2016, p.2).

As práticas da Cia direcionadas à infância são um desdobramento de sua

pesquisa filosófica a respeito da origem da arte, e estão centradas em oferecer à

criança uma genuína experiência do teatro. Assim, as diversas manifestações

artísticas do grupo não pressupõem uma mensagem a ser lida ou descoberta pelo

espectador, mas um caminho pessoal a ser percorrido, que não se dá

exclusivamente por vias racionais e lógicas. A relação com a obra, portanto, não se

pauta somente na busca de códigos conhecidos, mas considera a construção de um

caminho próprio de elaboração de sentidos de acordo com a experiência individual

de cada um.

Adotamos os trabalhos da Societas Raffaello Sanzio, principalmente os

processos, procedimentos e criações artísticas de Chiara Guidi, como inspiração

para a concepção do espetáculo Histórias de depois do fim, tanto por estimularem o

23

espectador a uma recepção criativa, quanto pela importância conferida à criança e à

infância na trajetória do grupo.

A criança ocupa um lugar central nas práticas e no discurso sobre a prática

da Raffaello Sanzio, pois é vista não apenas como aprendiz, mas como guia

para o ator. Os procedimentos criativos desenvolvidos nos percursos

formativos e nos espetáculos infantis fazem com que a criança (atuante,

espectadora ou aprendiz) esteja sempre no campo da experimentação,

diluindo, assim, as fronteiras entre a formação, o fazer artístico e a

recepção. Essas experiências põem em jogo não somente a arte que é feita

para crianças ou o ensino de arte para crianças, mas a própria noção de

infância (Ferreira, 2016, p. 11).

Ainda que nos percursos da Cia italiana não haja preocupação com os

aspectos educativos formais ligados ao ensino do teatro e à transmissão de técnicas

e conhecimentos, Ferreira percebe neles uma noção de pedagogia que se dá na

experiência, a qual se aproxima do pensamento do filósofo John Dewey.

A arte tem um papel fundamental na educação, não como ferramenta a

serviço do conteúdo de outras disciplinas, como foi interpretado de forma

reducionista por alguns representantes do Movimento da Escola Nova, nos

anos de 1920, no Brasil, mas como um instrumental fundamentado no

estético. Conforme Dewey, as artes têm um papel específico na educação:

“existem para uso especializado, sendo este uso um treino de diferentes

modos de percepção”. Dewey reconhece o caráter intrinsecamente

educacional da arte por ser produtora de experiência. A experiência

estética, para Dewey, é uma experiência intensificada que provoca uma

ruptura e ressignifica o cotidiano. Dewey atribui um papel ativo ao

espectador na constituição da obra. O espectador, ou fruidor de arte, para o

autor, tem uma função criativa na experiência em geral e, particularmente,

na experiência da arte, já que a recepção estética seria uma ação de

recriação do processo de produção da obra (Ferreira, 2016, p. 161).

“Cada espectador, cada sujeito que forma uma platéia, seja adulto, idoso,

criança ou bebê, carrega consigo um baú de experiências, experiências de vida e

vivências como espectador de diversos artefatos culturais” (Ferreira, 2011, p.43).

Quando o espectador, independente de sua idade, é provocado a estabelecer

vínculos entre os signos emitidos e sua bagagem de experiências, ele é incitado à

inventividade.

Nesse sentido, aproximar-se do universo infantil, na visão de Guidi, não

significa encontrar uma linguagem teatral específica para a criança. É uma

aproximação que quer investigar a capacidade dela de agir e pensar ao mesmo

24

tempo, sua forma particular e espontânea de interagir com o mundo, sua capacidade

de “ver” com todos os sentidos da percepção.

Nos anos 1990, os espetáculos infantis da Raffaello Sanzio eram criados

segundo reestruturações arquitetônicas do espaço do teatro, pois Guidi acreditava

que “a arquitetura, antes ainda da cenografia, é aquilo que imediatamente põe a

criança na fábula” (Guidi apud Ferreira, 2016, p.19). A intenção era imergir a criança

na fábula, criando espaços e elementos de cena que pudessem ser experimentados

diretamente e por todos os sentidos da percepção. Devido à complexidade das

alterações, os espetáculos deste período não eram transportáveis nem adaptáveis a

outros espaços.

Dos seis espetáculos concebidos neste período, identificamo-nos mais com

Hansel e Gretel (João e Maria), de 1993. Segundo a descrição de Ferreira (2016), o

cenário labiríntico em forma de estômago contava com uma casinha feita de doces

de verdade que podia ser literalmente comida pelas crianças a cada apresentação.

Por outro lado, os demais aspectos do espetáculo, como a atuação e a ambientação

sonora, tratavam de reforçar aspectos obscuros da fábula, que trata do abandono,

do medo e da morte.

As fábulas, para Guidi, são caminhos potentes para conduzir a criança a um

espaço de imaginação que permite a ela (re)ver e recriar a realidade. Os aspectos

sombrios, assustadores e velados das histórias são trabalhados sem amenizações

ou tratamentos estereotipados, mas através de sua materialização na atuação e na

estética dos espetáculos. Isto porque “nas obras de Guidi e da companhia, o caráter

didático e moralizante das fábulas e contos infantis dão lugar à experiência direta de

certos elementos simbólicos que remetem a criança à origem dos contos de fadas”

(Ferreira, 2016, p.98).

Nas palavras do crítico teatral Massimo Marino, em Buchettino, de 1995, por

exemplo,

criava-se um universo completamente diferente da realidade, não movido

por intenções pedagógicas ou por imediatos e fáceis apelos ao mundo

afetivo e psicológico da criança. Transportava-se a territórios violentos,

ameaçadores, arquetípicos, que colocavam à prova radicalmente as

faculdades de conhecimento e a superação do medo através da experiência

profunda da criança (Marino apud Ferreira, 2016, p.21).

25

Em A Psicanálise dos contos de fadas, Bruno Bettelheim afirma que os contos

de fadas populares dão grandes e positivas contribuições psicológicas para o

crescimento interior da criança, sobretudo por serem, antes de qualquer coisa, obras

de arte. Para o psicólogo infantil, mesmo que esses contos pouco ensinem “sobre as

condições específicas da vida na moderna sociedade de massa” (2007, p.12), eles

falam sobre os problemas íntimos dos seres humanos; falam sobre as graves

pressões interiores pelas quais passam as crianças de um modo que

inconscientemente elas compreendem, pois operam segundo seu modo de pensar e

experimentar o mundo sem menosprezar a seriedade de suas dificuldades. Elas

confiam no que o conto de fadas diz, pois a visão de mundo aí apresentada está de

acordo com a sua.

Ainda segundo o autor, as histórias modernas escritas para crianças

pequenas evitam tratar desses problemas existenciais. “As histórias „seguras‟ não

mencionam nem a morte, nem o envelhecimento – os limites à nossa existência-,

nem tampouco o desejo de vida eterna. O conto de fadas, em contraste, confronta a

criança honestamente com as dificuldades humanas básicas” (ibidem, p.15).

A crença prevalecente nos pais é de que a criança deve ser afastada

daquilo que mais a perturba: suas angústias amorfas e inomináveis, suas

fantasias caóticas, raivosas e mesmo violentas. Muitos pais acreditam que

só a realidade consciente ou imagens agradáveis e otimistas deveriam ser

apresentadas à criança – que ela só deveria se expor ao lado agradável das

coisas. Mas essa dieta unilateral nutre apenas unilateralmente o espírito, e

a vida real não é só sorrisos (ibidem, p.14).

Walter Benjamin já havia notado que por trás da pretensa adequação das

produções aos pequenos, há um preconceito inteiramente moderno,

segundo o qual as crianças são seres tão diferentes de nós, com uma

existência tão incomensurável à nossa, que precisamos ser particularmente

inventivos se quisermos distraí-las. No entanto, nada é mais ocioso que a

tentativa febril de produzir objetos – material ilustrativo, brinquedos ou livros

– supostamente apropriados às crianças (1994, p.237).

Benjamin continua este pensamento afirmando que a criança interessa-se

vivamente pelas coisas, mesmo pelas mais triviais em aparência. Detritos, por

exemplo, surgidos de onde quer que seja (jardinagem, carpintaria, construção de

casas, confecção de roupas), são atrativos irresistíveis para elas. Nesses detritos,

26

reconhecem “o rosto que o mundo das coisas assume para elas, e só para elas.

Com tais detritos, não imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos e

resíduos em uma relação nova e original. Assim, as próprias crianças constroem seu

mundo de coisas, um microcosmos no macrocosmos” (Benjamin, 1994, p. 238). Os

contos de fadas, as canções e as fábulas, também são criações compostas de

detritos - a criança lida com os elementos dos contos como lida com retalhos e tijolos

e, assim, constrói seu mundo com eles.

Dentre as variadas práticas e processos de Guidi, as que mais diretamente

influenciaram nosso processo de criação pertencem ao segundo ciclo de

espetáculos, inaugurado por La prova di um altro mondo, em 1998, como resultado

das experiências da artista com a Scuola Sperimentale di Teatro Infantile15. Na

escola, “as crianças eram inseridas no contexto teatral por meio da experiência e

vivência direta da cena. Sem a realização de exercícios preparatórios, jogos teatrais

ou improvisações, elas eram levadas a agir no espaço da ficção, da ritualização e do

jogo” (Ferreira, 2016, p. 13).

Neste novo ciclo, a participação ativa das crianças na encenação como

parceiras de jogo dos atores passava a ser a preocupação central dos espetáculos,

e não mais a reestruturação arquitetônica. Em decorrência disso, havia a

determinação de lugares específicos para os espectadores-crianças distintos dos

lugares dos espectadores-adultos. Em Bestione, dirigido por Guidi em 2010, as

crianças foram convidadas a participar como espectadoras e, ao mesmo tempo,

como personagens da história enfrentando desafios que envolviam medo e diversão.

A possibilidade de criar uma história para ser assistida e também vivenciada

pelos pequenos despertou nosso olhar para o que essa proposta parece ter de mais

potente: proporcionar à criança a chance de pertencer inteiramente ao

acontecimento teatral, expandindo, assim, o envolvimento (transformador) dela com

a arte.

“Na primeira década dos anos 2000, Guidi cria diversas atividades voltadas

para o pensamento sobre a infância e a arte feita para a infância, que envolvem

pais, professores e todos aqueles que buscam „um novo olhar para a criança‟”

15

“A Scuola Sperimentale di Teatro Infantile criada por Chiara Guidi, em 1995, foi a semente de todo o trabalho posterior da Socíetas Raffaello Sanzio dedicado à infância. A escola foi proposta em três módulos (Anno I, Anno II, e Anno 3), que aconteceram entre 1995 e 1997, sempre no Teatro Comandini, e foram oferecidos à comunidade de forma gratuita. Cada módulo teve um tempo diverso de duração e foi realizado com grupos diferentes de crianças com idades entre oito e dez anos” (Ferreira, 2016, p.11).

27

(Ferreira, 2016, p.22). Aproximar-se da criança - tanto nas atividades propostas em

festivais como o Puerilia e o Màntica, quanto na construção de espetáculos -

significa buscar aprender com ela maneiras diferentes de responder aos fenômenos

da realidade, e não impor a ela a maneira e a ordenação adultas de apreender o

mundo.

“Esse período é marcado também pela participação expressiva de crianças

nos espetáculos adultos da Socìetas Raffaello Sanzio” (ibidem). A inserção da

criança num contexto artístico desassociado daquele comumente considerado

infantil provoca grandes alterações de percepção nos espectadores-adultos. “Apesar

de as crianças estarem envolvidas em cenas que produzem imagens chocantes, o

choque ocorre no processo de recepção do espetáculo a partir da leitura do

espectador. [...] A criança traz o elemento do real para a cena por ser e estar no

palco com ela mesma, mas sua presença está sempre a serviço da ficção” (ibidem,

p. 33-34). É com sua presença-objetiva que a criança (assim como o animal, o

anoréxico, o laringotomizado etc), fundida aos demais elementos que compõem a

cena, altera a percepção do espectador.

O pensamento de Guidi acerca das crianças no teatro, bem como seus

procedimentos de criação e suas obras, influenciaram sobremaneira o

desenvolvimento da presente pesquisa e da encenação de Histórias de depois do

fim. Sobretudo por que

o profundo envolvimento da Socìetas Raffaello Sanzio com o mundo da

infância leva ao reconhecimento de alguns aspectos fundamentais em

relação à criança. O principal é a visão da criança não como um ser

inacabado (que está numa atitude sempre passiva e receptiva, de aprendiz,

papel que lhe é culturalmente imposto), mas como um ser já

perceptivamente desenvolvido, como um ser social ativo, protagonista de

seu próprio aprendizado, detentor de uma sabedoria própria e que, portanto,

pode também estar no lugar de guia, de mestre. Esse ponto de vista em

relação à criança resulta, tanto nas práticas pedagógicas quanto nos

processos criativos da companhia, no que Guidi e Romeo Castellucci

denominam de “pedagogia rovesciata”, ou pedagogia ao revés, na qual são

as crianças que ensinam aos adultos (ibidem, p. 182).

O reconhecimento da criança como ser social ativo, perceptivamente

desenvolvido e detentor de uma sabedoria própria, demanda um melhor

28

entendimento de como se dá sua apreensão do mundo e de si, o que nos conduz ao

próximo capítulo.

4. A EXPERIÊNCIA EXISTENCIAL DE SER-NO-MUNDO: OLHARES PARA A

CRIANÇA MESMA

“A verdade da infância não está no que dizemos dela, mas no que ela nos diz no próprio

acontecimento de sua aparição entre nós como algo novo. E isso tendo em conta ademais que,

embora a infância nos mostre uma face visível, conserva também um tesouro oculto de sentido que

faz com que jamais possamos esgotá-la.”

Jorge Larrosa Bondía

Imbuídos do desejo de ampliar a relação dos pequenos com o teatro, abrindo

caminhos para sua experiência autêntica com a arte, e conscientes de que aquela

intrínseca desigualdade de poder entre adultos e crianças acaba, muitas vezes, por

limitá-la, buscamos apoio em teorias e reflexões sobre a criança e a infância – mais

precisamente nas considerações de Walter Benjamin, Maurice Merleau-Ponty,

Marina Marcondes Machado, Manuel Jacinto Sarmento e de Bruno Bettelhiem, as

quais serão abordadas a partir daqui.

Como foi dito anteriormente, a infância pode ser situada, “pelo menos em

parte, como uma relação socialmente estabelecida” (Pupo, 2000, p.336). E apesar

dos “avanços” no tratamento de tal construto, “as crianças, constituídas como

categoria social, prosseguem sendo um dos principais grupos oprimidos” (Broering,

2015, p.281).

Benjamin afirma que “até o século XIX a criança como ser inteligente era

totalmente desconhecida” (1994, p.251) e o adulto era o ideal proposto a ela como

modelo. Assim, segundo o filósofo, na perspectiva do adulto, quanto mais jovem é o

sujeito, mais desmerecida é a qualidade de suas experiências (idem, 2002).

Por isto torna-se imprescindível traçar distinções entre os modos da criança e

os do adulto de ser e estar no mundo, bem como entre suas experiências: para que

se expanda a percepção da maneira singular com que a criança atribui sentido ao

mundo, mirando a alteridade da infância.

Para Benjamin, “as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada,

mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem” (2002, p.94). Ao

considerar as crianças como “sujeitos envolvidos pela complexidade da trama social,

29

portanto imersas na problemática histórica de seu tempo” (Santos, 2015, p.225), e

não como seres incompletos e inacabados, o autor admite a competência social

delas.

Benjamin diz que “o mundo perceptivo da criança está marcado pelos traços

da geração anterior e se confronta com eles” (1994, p.250). Mas, mesmo mantendo

relação direta com a cultura adulta, as crianças elaboram uma forma simbólica de

relação com o mundo delas próprias - elas encontram no mundo dos adultos

aspectos a serem reproduzidos e oferecem formas inovadoras de interpretar e

recriar as relações sociais e a cultura. Assim, as crianças “formam seu próprio

mundo de coisas, um pequeno16 mundo inserido no grande” (idem, 2002, p.58).

Enquanto o adulto é capaz de narrar a sua experiência e com isso aliviar seu

coração dos horrores, gozando novamente uma felicidade, a criança é capaz de

recriá-la incessantemente, voltando para si o fato vivido e começando mais uma vez

do início. A repetição e a continuidade têm lugar fundamental na experiência infantil.

Sabemos que para a criança ela [a repetição] é a alma do jogo; que nada a

torna mais feliz do que o “mais uma vez”. [...] E, de fato, toda e qualquer

experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as

coisas, repetição e retorno, restabelecimento da situação primordial da qual

ela tomou o impulso inicial. [...]

Tudo à perfeição talvez se aplainasse

Se uma segunda chance nos restasse

A criança age segundo esta pequena sentença de Goethe. Para ela, porém,

não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de

vezes (ibidem, p. 101).

Outra especificidade da criança, de acordo com Benjamin, é que ela apreende

o mundo através de experiências sensoriais que envolvem todo o corpo - lugar

sensível que as registra – e não prioritariamente através da racionalidade e da

técnica, como os adultos; por causa disso a experiência dos mais velhos estaria,

inclusive, em vias de extinção.

Para Amatuzzi (2007), não são as idéias abstratas que movem as pessoas,

mas a experiência vivenciada – aquela relacionada com o que se vê, com o que

16

“Há que ponderar que para Benjamin os conceitos de „pequeno‟ e „grande‟ são desenhados e significados a partir de relações éticas, estéticas e epistemológicas. Expressam não apenas relações formais de grandeza, mas, sobretudo, relações de valor e de poder. Assim, „pequenos‟ não são apenas os fragmentos e os detalhes supostamente banais do cotidiano; são também os sujeitos excluídos pelas políticas sociais ou pelos grandes sistemas explicativos. „Pequenos‟ [grifos no original] são também as crianças – seja em termos de estatura, seja em termos políticos – uma categoria social então com pouca visibilidade e autonomia” (Pereira apud Santos, 2015, p.233).

30

se toca ou sente, mais do que com o pensamento. O que se deduz a partir do que

se vê não é propriamente “experiencial”, mas pensado.

As idéias podem abrir caminhos, mas dar passos por esses caminhos é

uma questão de experiência. As idéias podem também instituir

descaminhos, sabemos disso. Há, sem dúvida, um trabalho grande e às

vezes árduo a se fazer no mundo das idéias. Mas ele não substitui a

experiência, a vivência direta; integra-se com ela, isso sim (Amatuzzi, 2007,

p.8).

Bondía entende que pensar “não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou

“argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar

sentido ao que somos e ao que nos acontece” (2002, p.21).

Do ponto de vista da psicanálise freudiana, como entendida por Bettelheim

(2007), a criança realiza seu conhecimento de mundo, ou dá sentido ao que

acontece com ela, com o exercício permanente da imaginação, da fantasia e da

sensibilidade - e a sensibilidade ocupa quase todo o seu ser - enquanto o adulto

estabelece uma relação com as coisas que pressupõe o controle e a reflexão.

Qualquer que seja a nossa idade, apenas uma história que esteja conforme

aos princípios subjacentes aos nossos processos de pensamento é capaz

de nos convencer. Se é assim com os adultos, que aprenderam a aceitar

que há mais de um sistema de coordenadas para compreender o mundo,

[...] isso é exclusivamente verdadeiro no caso da criança. Seu pensamento

é animista (ibidem, p.67).

Bettelheim, recuperando Piaget, aponta que o pensamento da criança

permanece animista até a puberdade. Para ela, não há nenhuma linha clara

separando os objetos das coisas vivas, por isso, é absolutamente crível que eles

possam falar ou movimentar-se. Parece razoável para o infante que tenta entender o

mundo esperar respostas de objetos que despertam sua curiosidade. E isso é

positivo - não no sentido vulgar, hierárquico, do termo, mas no sentido de aumentar

sua potência de escolher.

Uma criança está convencida de que um animal sente e entende como ela,

mesmo que não o demonstre abertamente. E já que tudo está habitado por um

espírito semelhante a todos os outros espíritos – o da criança que projetou seu

espírito em todas essas coisas – é natural que o homem possa se transformar em

animal e vice e versa.

31

O pensamento da criança pequena, além de ser animista, não procede de

modo ordenado, como o do adulto.

Quer antes, quer já bem adentrado o período edipiano (aproximadamente

dos três aos seis ou sete anos), a experiência que a criança tem do mundo

é caótica, mas apenas quando encarada de um ponto de vista adulto, uma

vez que o caos implica uma consciência desse estado de coisas. Se essa

maneira “caótica” de experimentar o mundo é tudo que uma pessoa

conhece, então ela é aceita como modo de ser no mundo (Bettelheim, 2007,

p.107).

A criança, segundo Bettelheim (2007), dá sentido ao mundo por meio da

elaboração fantasiosa da realidade, pois as fantasias são seus pensamentos. Privá-

la de sua imaginação oferecendo-lhe apenas explicações racionais, por exemplo, é

uma maneira perversa de subjugá-la; como quando queremos que uma criança

pequena entenda que sua mãe se ausentou apenas por meia hora, quando, para

ela, a verdade é que sua mãe esteve fora por uma eternidade. A conseqüência disso

é que as crianças passam a desconfiar de sua própria experiência e, por

conseguinte, de si próprias e do que suas mentes podem fazer por elas, ao invés de

perceberem que sua necessidade de se entregar a fantasias, ou sua incapacidade

para deixar de fazê-lo, não é uma deficiência.

É considerando essa diferença entre os modos de pensar do adulto e da

criança que o psicólogo tece sua crítica à boa parte da psicologia infantil (inclusive à

Piaget):

as descobertas psicológicas [da Psicologia clássica] ajudam o adulto a

compreendê-la [a criança] a partir de um sistema de coordenadas adulto.

Mas uma tal compreensão adulta das maquinações da mente infantil

frequentemente aumentam a distância entre o adulto e a criança; os dois

parecem observar o mesmo fenômeno de pontos de vista tão diferentes que

cada um vê algo completamente distinto (Bettelheim, 2007, p.171).

Por isso faz-se necessário voltar às coisas mesmas, como pretende a

Fenomenologia17. Olhar para a criança “tal como ela se mostra, de modo a

interpretar compreensivamente seus modos de ser e estar no mundo” (Machado,

2007, p.5), mas sem perder de vista que “o modo de ser da criança acontece,

17

“A Fenomenologia é um método filosófico (o que equivale a dizer, uma maneira de pensar) concebido pelo filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) e adotado por psicólogos e psiquiatras que iniciaram a chamada Psicologia Existencial (também sinônimo de Psicologia Compreensiva ou Psicologia Fenomenológica)” (Machado, 2007, p.5).

32

sempre, em intersecção com o modo adulto” (Machado, 2007, p.35), como nos

lembra a pesquisadora Marina M. Machado.

Afinal, “na experiência existencial de ser-no-mundo, não é possível conceber

qualquer pessoa ou coisa no mundo „por si só‟, isoladamente. Estamos mergulhados

em situações relacionais, em contextos vividos, de tal maneira que qualquer ato de

isolamento ou busca por „objetividade pura‟ torna-se impossível” (ibidem p.36).

Maurice Merleau-Ponty (1990a e 1990b) propõe em sua Fenomenologia da

Infância que “o mundo da criança” é uma invenção adulta e a “mentalidade infantil”

não existe. O que existe são apreensões diferentes do mesmo mundo no qual

convivem adultos e crianças, decorrentes de seus distintos modos de ser e de estar

nele.

Isso nos leva ao encontro de uma criança que se mostra plástica, maleável,

imaginativa; que convive conosco, mas transita por outra lógica, outros

modos de pensar, sentir e agir. É importante ressaltar que Merleau-Ponty

não pensa a partir de “faixas etárias” e sua discussão gira em torno da

criança de zero a seis anos, a quem ele nomeia, ao longo da obra, “a

criança pequena” (Machado, 2010a, p.119).

Numa via similar à do pensamento de Benjamin antes descrito, o filósofo

afirma, em seus Cursos na Sorbonne18, que a separação entre natureza e cultura é

artificial - não existe, portanto, uma “natureza infantil”.

Para ele,

é necessário reintegrar a criança ao conjunto do meio social e histórico no

qual ela vive e diante do qual ela reage. 1º. É preciso falar não de uma

natureza infantil mas de polimorfismo infantil: existe coexistência na criança

de possibilidades muito diversas que a tornam parecidas com certos

neuróticos, certos “primitivos”, certos adultos atuais. 2º. Esse polimorfismo é

acompanhado de prematuração: a criança leva, já de início, uma vida

cultural; ela entra muito cedo em relação com seus semelhantes. Ela

manifesta interesse pelos fenômenos mais complexos que a envolvem; por

exemplo, pelos rostos para os quais ela adquire uma verdadeira ciência da

decifração, numa época em que se poderia pensar que ela só tem uma vida

sensorial (Merleau-Ponty, 1990b, p.221).

18

“Aulas proferidas por Maurice MerleauPonty na cátedra de Psicologia e Pedagogia da criança, no final dos anos 1940, início dos anos 1950. Nos Cursos na Sorbonne (registrados por alunos e revisados pelo filósofo ainda vivo) [...] Merleau-Ponty conversa com os pressupostos da Psicologia e da Psicanálise tal como pensados até aquele momento, e esboça um possível futuro para a Psicologia infantil, de maior proximidade com os estudos culturalistas fortalecidos naquele momento histórico” (Machado, 2010a, p.119).

33

Nessa perspectiva, são destacados três principais modos de ser da criança

pequena: o polimorfismo, o onirismo e a não representacionalidade. O pensamento

polimorfo, ou pré-lógico19, implica numa apreensão do mundo segundo experiências

sensoriais que envolvem todo o corpo. “O corpo é o sujeito da percepção: e não um

intermediador! [...] O corpo é veículo do ser-no-mundo, é veículo de nossa

existência” (2007, p.52), conclui Machado a partir de seus estudos sobre a

Fenomenologia merleau-pontiana.

A autora elucida que “a noção fenomenológica de „corpo humano‟ difere do

corpo biológico bem como do corpo da física, corpo-massa ou corpo-coisa: daí a

definição do existencial corporalidade” (ibidem, p.50).

A corporalidade é uma noção fenomenológica que não separa “eu” do

“mundo” [...] um âmbito que une e embaralha aspectos biológicos, culturais

e inter-relacionais; somos nossa herança genética e nossa história factual,

e, nessa chave, nunca poderemos saber ao certo o que advém disso e o

que está culturalmente dado; crianças aprendem mergulhadas em uma

dada cultura e em modos “quase dramáticos” de imitação; há, de início, uma

maneira de ser polimorfa que inunda o corpo, o pensamento, a

expressividade, as relações com o mundo e com o outro: tudo acontecendo

de modo dinâmico, em situação (idem, 2010a, p.125).

De sua experiência como professora de teatro de crianças pequenas,

Machado compreende que são caminhos expressivos da criança tanto o aspecto

existencial da corporalidade quanto o ato de inventar espaços e re-inventar o tempo

- “a criança pequena prescinde de uma organização tempo-espacial „aristotélica‟,

que implica em uma estrutura de tipo começo-meio-e-fim, em sua maneira de ser e

estar” (2007, p.102).

Segundo Merleau-Ponty, “a desordem alternativa ou ordem racional é o sinal

de uma intrusão do pensamento adulto na vida da criança. Para compreender a

verdadeira percepção da criança, é necessário representar-se uma ordem que não é

uma ordem racional mas que também não é o caos” (1990b, p.229).

O modo onírico da criança revela sua capacidade de transitar entre realidade

e imaginação/fantasia na vida cotidiana (especialmente em desenhos, pensamentos

e sentimentos, e no brincar de faz de conta), tal como os adultos fazem quando

sonham. “O sonho é carregado de „restos diurnos‟, de desejos e fantasias, outros

19

O termo designa o pensamento anterior ao lógico, e não inferior ao lógico.

34

tempos e espaços. A criança pequena circula por esse âmbito acordada... sem

maiores problemas” (Machado, 2001, p. 100).

Em suas brincadeiras e desenhos, a criança pequena não representa o

mundo, “ela vive seu cotidiano intensamente e sem distanciamento de seu brincar e

desenhar, sua capacidade imaginativa, suas possibilidades expressivas e de lida

com o aqui-agora” (idem, 2013, p. 256). Diferentemente do adulto, ela não tem a

necessidade de representação nem do mundo nem de si. “Ela é a sua experiência –

não a representação dela” (idem, 2007, p.17).

Essa característica da criança de não representar, e sim presentificar -

encontrar-se mergulhada no aqui-agora, deixando-se envolver integral e

sensivelmente com o mundo – levou Machado a desenvolver, no âmbito de sua

pesquisa sobre a relação da criança com a cena contemporânea, a noção da criança

como performer20.

“A criança é performer de sua vida cotidiana, suas ações presentificam algo

de si, dos pais, da cultura ao redor, e também algo por vir – e, se olhada nesta

chave, poderá desenvolver-se rumo à assunção de sua responsabilidade e

independência, no decorrer dos primeiros anos de sua presença no mundo” (idem,

2010a, p.123).

Também a Socìetas Raffaello Sanzio, Cia de teatro da qual falávamos

anteriormente, entende que as crianças, por sua forma de ser e estar no mundo, por

seu engajamento corporal/mental nas situações, por transitar naturalmente em

diferentes seres ficcionais e por interagir com outros parceiros de jogo, alternando

entre a realidade e a ficção, agem elas mesmas no mundo como performers.

“A criança performer é um construto na direção da criança que é ouvida e

considerada pessoa – uma pessoa de pouca experiência, em termos temporais –

mas uma pessoa, com voz e desejo” (Machado, 2013, p. 3). Pensada em

interlocução com a Fenomenologia da Infância de Merleau-Ponty e com a Sociologia

20

Definição de performer segundo o Dicionário de Teatro, organizado por Patrice Pavis: “1) termo

inglês usado às vezes para marcar a diferença entre a palavra ator, considerada muito limitada ao intérprete do teatro falado. O performer, ao contrário, é também cantor, bailarino, mímico, em suma, tudo o que o artista, ocidental ou oriental, é capaz de realizar (to perform) num palco de espetáculo. O performer realiza sempre uma façanha (uma performance) vocal, gestual ou instrumental, por oposição à interpretação e à representação mimética do papel pelo ator; 2) num sentido mais específico, o performer é aquele que fala e age em seu próprio nome (como artista e pessoa) e como tal se dirige ao público, ao passo que o ator representa sua personagem e finge não saber que é apenas um ator de teatro. O performer realiza uma encenação de seu próprio eu, o ator faz papel de outro” (2001, p.284-285).

35

da Infância de Manuel Jacinto Sarmento e seus colaboradores, a noção da criança

como performer “procura contribuir para um pensamento da educação estética da

criança em consonância com a arte contemporânea” (Ferreira, 2016, p.182).

Manuel Sarmento faz parte do grupo de pesquisadores europeus do Instituto

de Estudos da Criança da Universidade do Minho que repensou a Sociologia da

Infância segundo a ideia de que

conhecer as “nossas” crianças (as crianças da 2º modernidade) é decisivo

para a revelação da sociedade, como um todo, nas suas contradições e

complexidade. Mas é também a condição necessária para a construção de

políticas integradas para a infância, capazes de reforçar e garantir os

direitos das crianças e a sua inserção plena na cidadania activa (Sarmento,

2004, p.7).

Machado considera que Sarmento “atualiza a noção de infância tal como

proposta por Merleau-Ponty nos Cursos na Sorbonne (no entanto, sem nunca

mencionar ser leitor dos textos do filósofo) ao positivar a experiência da criança tal

como ela se apresenta” (2010a, p.119).

A sociologia da infância propõe-se a constituir a infância como objecto

sociológico, resgatando-a das perspectivas biologistas, que a reduzem a um

estado intermédio de maturação e desenvolvimento humano, e

psicologizantes, que tendem a interpretar as crianças como indivíduos que

se desenvolvem independentemente da construção social das suas

condições de existência e das representações e imagens historicamente

construídas sobre e para eles (Sarmento, 2005, p.361).

Esse novo campo sociológico, ao olhar para a criança do ponto de vista dela

própria, a concebe e a aceita enquanto “ator social” e protagonista, percebendo sua

capacidade de interações que modificam seu contexto e reconhecendo-a na

construção social das instituições das quais ela participa – especialmente a família e

a escola (Machado, 2013).

Sem prejuízo da análise dos factores psicológicos e das dimensões

cognitivas e desenvolvimentistas que presidem à formação do pensamento

das crianças, as culturas da infância possuem, antes de mais, dimensões

relacionais, constituem-se nas interacções de pares e das crianças com os

adultos, estruturando-se nessas relações formas e conteúdos

representacionais distintos. As culturas da infância exprimem a cultura

societal em que se inserem, mas fazem-no de modo distinto das culturas

adultas, ao mesmo tempo que veiculam formas especificamente infantis de

36

inteligibilidade, representação e simbolização do mundo (Sarmento, 2004,

p.14).

Sarmento (2004) propõe quatro eixos estruturadores das culturas da infância:

a interatividade, a ludicidade, a fantasia do real e a reiteração. O eixo da

interatividade situa a aprendizagem da criança como eminentemente interativa; a

identidade pessoal e social da criança é formada pela apreensão de valores e

estratégias advindos de diferentes realidades, com os quais contribuem sua família,

suas relações escolares e comunitárias e as atividades sociais que desempenham.

Ou seja: a criança aprende nos espaços de partilha comum por meio da interação

com seus pares, as outras crianças, e com os adultos.

“Com efeito, a natureza interactiva do brincar das crianças constitui-se como

um dos primeiros elementos fundacionais das culturas da infância. O brincar é a

condição da aprendizagem e, desde logo, da aprendizagem da sociabilidade”

(Sarmento, 2004, p.16). E o brincar não é um traço exclusivo das crianças; é próprio

do homem. Mas para as crianças não há distinção entre brincar e fazer coisas

sérias, como há para o adulto. A ludicidade - o brincar, e também o brinquedo, - é

um fator “fundamental na recriação do mundo e na produção das fantasias infantis”

(ibidem).

Cabe ressaltar que, ao longo da história, devido ao crescimento do mercado

de produtos culturais para a infância e a decorrente produção em série de

brinquedos industriais, a característica central da brincadeira das crianças - o brincar

com os outros - acabou sendo alterada para o brincar com objetos.

As crianças têm seu modo específico de transpor o real imediato e reconstruí-

lo criativamente pelo imaginário, “seja importando situações e personagens

fantasistas para o seu quotidiano, seja interpretando de modo fantasista os eventos

e situações que ocorrem” (Sarmento, 2004, p.17). A este modo específico muitos

denominam “faz de conta”; segundo Sarmento, contudo, tal expressão é

inadequada, já que na criança ambos os universos de referência, tanto o real quanto

o imaginário, encontram-se efetivamente associados.

Por isso, o autor o renomeia para “fantasia do real” - eixo no qual é revelado

“o ritual quotidiano de todas as crianças na sua interpretação do mundo, transpondo-

o, contra todos os determinismos e contra todas as pretensões de subordinação a

37

um controle total, para uma ordem habitável. Ordem essa que também se exprime

no modo peculiar de organização do tempo” (Sarmento, 2004, p.17).

O tempo da criança é “um tempo sem medida, capaz de ser sempre reiniciado

e repetido” (ibidem, p.18). A não-linearidade temporal experienciada pela criança e

aquela já mencionada capacidade de recriar sua experiência incessantemente,

voltando para si o fato vivido e começando mais uma vez do início (Benjamin, 2002),

constituem, finalmente, o eixo da reiteração.

É relevante comentar que, na contemporaneidade, devido ao reconhecimento

da heterogeneização da infância enquanto categoria social geracional e da

pluralização dos modos de ser criança,

as instituições que ajudaram a construir a infância moderna [família e

escola] sofrem processos de mudança, que, por seu turno, promovem a

reinstitucionalização da infância. Ela própria, tal como as crianças que

reiteram criativamente os seus mundos de vida, é reinventada como se

começasse também tudo de novo. Porém, não são mais fáceis as suas

condições de existência, mas mais complexas, não é maior a autonomia

que lhes é atribuída, é maior o controlo que sobre elas é exercido, não é

mais reconhecido o estatuto de actores sociais atribuído às crianças, é mais

subtil a recusa às crianças do exercício da cidadania (Sarmento, 2004,

p.31).

Por tudo que foi dito até aqui, talvez encontremo-nos mais perto de

compreender que à maneira como nós, adultos, produzimos teatro para crianças

corresponde um modo de nos relacionamos com elas no mundo que

compartilhamos.

Assistimos por décadas à supremacia do modo adulto de pensar a infância

no recorte desenvolvimentista, influência das ciências da psicologia e da

pedagogia em sua vertente majoritária: algo que regeu, direta ou

indiretamente, formal ou informalmente, as normas para as produções

artísticas, a indústria de brinquedos, a literatura infanto-juvenil, a

indústria e artesanato de roupas e sapatos, utensílios domésticos de

uso infantil etc (Machado, 2014, p.4).

Refletir sobre essa relação entre teatro e infância nos levou a tomar a

seguinte passagem de Machado como uma profunda provocação:

faltaria à comunidade adulta produtora de cultura para a infância o

desapego da noção desenvolvimentista, compreendendo que a

temporalidade e a espacialidade reveladas pela criança em sua vida

38

cotidiana é que consistem na chave do enigma para o surgimento de novas

formas de fazer teatro – estariam ali as formas-conteúdo para a

concretização de outros modos de relações tempo-espaciais (Machado,

2014, p.9).

Encerro este capítulo afirmando que o ponto para o qual convergem todas as

considerações acima apresentadas, e inclusive a partir do qual elas se iniciam, – a

ideia de que a criança é – consiste na justificativa das principais escolhas que

engendraram a encenação do espetáculo Histórias de depois do fim, como veremos

no próximo capítulo.

A criança é um ser humano que experiencia o mundo e ela mesma segundo

seus próprios e singulares modos de existir. Não se trata, pois, de alguém inacabado

que precisa envelhecer para tornar-se inteiro. A concepção de que o adulto é um ser

humano acabado, completamente desenvolvido, é, por si só, problemática, afinal o

ser não é estático. Todos, adultos e crianças, somos devir - um vir a ser pleno de

possibilidades de realização.

A noção de devir enquanto um conceito filosófico implica no constante

processo de transformação que situa o Ser: tudo se move, tudo passa, tudo

merece passar. Este tema teve seu surgimento com a filosofia pré-socrática

de Heráclito. Na acepção de Heráclito, o devir denota a “perenidade” do ser,

ou seja, não se trata de um ser “estável”, mas antes um “vertiginoso” devir

que arrasta tanto as coisas como nós. Isso fica evidente no famoso exemplo

de Heráclito: “ninguém atravessa duas vezes o mesmo rio” ou “não

sentimos duas vezes o perfume da mesma rosa”. Na segunda vez já não se

trata do mesmo rio (ou perfume/rosa), muito menos do mesmo homem. Ora,

isso implica considerar o devir como um eterno “vir a ser”, enquanto

movimento (imperceptível) que atravessa os seres (Savazzoni, 2012, p.98).

Quiçá aí - na possibilidade de transformação - possamos, de fato, nos

encontrar.

39

5. HISTÓRIAS DE DEPOIS DO FIM: TEATRO PARA ASSISTIR BRINCANDO

DIREÇÃO: Eloá Guirelli

DRAMATURGIA: Murilo Franco

ELENCO: Camilo Schaden, Maria Fernanda Machado, José

Pedro, Nina Ricci, Thiago Cordero

FIGURINOS: Nina Ricci

CENOGRAFIA: Érico Casagrande e Ewerton Correia

SONOPLASTIA: José Pedro

ILUMINAÇÃO: Fly Hirano Martins e Lais D‟Aggio

“Antonieta, a avó de Tina, acaba de falecer. Este

acontecimento desperta muitas dúvidas na cabeça da

pequena Tina: o que tem depois do fim? Para onde vão os

mortos? O que vai acontecer com a vovó? Eu nunca mais

vou poder conversar com ela? Insatisfeita com as respostas

dos adultos para seus questionamentos e intrigada com a

descoberta de um bilhete escrito por sua avó, a menina

parte em uma aventura para desvendar o mistério da morte.

Ela vai acompanhada de seus amigos - as crianças da platéia - e no decorrer da aventura, vão

descobrindo Histórias de depois do fim: visões bem diversas acerca do pós-morte contadas por

diferentes personagens, num percurso itinerante e interativo repleto de fantasia e de surpresa.”

O espetáculo Histórias de depois do fim, cuja sinopse está descrita acima, foi

concebido colaborativamente pela Cia JogaJunto - coletivo formado por artistas

(adultos) interessados na potência do teatro de possibilitar experiências21 autênticas

do sujeito com a arte - com a colaboração das crianças dos 1º e 4º anos do Ensino

Fundamental I da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP (EA-

FEUSP).

Pretendemos, neste capítulo, esmiuçar o curto processo de concepção do

espetáculo, bem como aspectos de sua recepção, pensando em aprofundar aquela

reflexão sobre a relação entre teatro e infância e sobre as possibilidades

transformadoras do envolvimento da criança, e de qualquer pessoa, com o teatro.

Aventuramo-nos nesta criação justamente para experimentar na prática alguns

pontos que emergiam da pesquisa teórica.

Mas antes, façamos uma pequena digressão sobre a estética da recepção e

sobre as transformações na importância conferida ao espectador ao longo dos anos.

21

Retomo a definição de Bondía: “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça” (2002, p.21).

40

5.1. Pequena digressão sobre a estética da recepção e sobre o espectador

A teoria do teatro ocidental, na Europa e nos Estados Unidos, passou a

enfatizar os aspectos da recepção somente a partir do final do século XX, apesar

desse tema ter sido interesse de muitos artistas, encenadores e teóricos do teatro ao

longo da história. Ainda em 1798, Johann Wolfgang Goethe escreveu Sobre

Verdade e Verossimilhança da Obra de Arte: Uma Conversa, um diálogo entre um

advogado de arte e um espectador. Essa obra é considerada uma das precursoras

da “arte do espectador”.

A discussão sobre recepção e estética ocupou influentes pensadores da

história da arte, da literatura, da filosofia e da sociologia e da teoria da comunicação.

Entretanto, apenas algumas obras canônicas sobre o assunto foram traduzidas no

Brasil. A principal referência, segundo Edélcio Mostaço (2015), continua sendo A

Literatura e o Leitor: Textos de Estética da Recepção, coletânea organizada por Luiz

Costa Lima em 1979.

A corrente dos estudos da recepção, cujo cerne é a experiência estética -

defendida como procedimento capaz de inalienar e emancipar o leitor/espectador

por ser uma atividade construtiva e criadora –, surgiu na Alemanha na segunda

metade dos anos 60. Tem como principais nomes Hans Robert Jauss, Wolfgang

Iser, Karlheinz Stierle, Hans Ulrich Gumbrecht, entre outros.

Rainer Waring reuniu na obra Rezeptionsaathetik: Theorie und Praxis textos de

autores - como Roman Ingarden, Felix Vodicka, Hans-Georg Gadamer, Michel

Riffaterre, Stanley Fish, Iser e Jauss - que, para ele, foram os principais

responsáveis pelas transformações nas investigações acerca das ciências literárias

e pela valorização dos processos de recepção.

Warring assevera que foram os estruturalistas que colocaram em xeque as

premissas do conceito clássico de arte – atualizado e defendido por

Theodor W. Adorno – segundo o qual obra de arte e sociedade deveriam

convergir para um mesmo conteúdo, sem levar em conta as múltiplas

interpretações advindas de sua exteriorização (Cajaíba, 2013, p. 47).

Segundo Cajaíba (2013), a teoria de Adorno defende que para se decifrar

uma obra de arte é preciso olhar para a própria obra e para seus fins sociais,

valorizando o sentido proposto pelo autor em detrimento do concebido pelo receptor.

Pensadores como Walter Benjamin e Bertolt Brecht recusaram a posição de Adorno

41

por entenderem que ela desconsiderava o coletivismo na recepção artística e sua

inclusão na práxis política.

A estética da recepção parte do pressuposto de que a arte é um fazer, uma

construção, e “constitui-se em um turning point em relação aos estudos literários e,

por extensão, aos demais formatos artísticos e culturais que giram em torno da

mimeses, da narrativa e das imagens” (Mostaço, 2015, p.48).

Em 1967, Jauss abriu o ano acadêmico da Universidade de Constança com

uma conferência que passou a ser conhecida como “Provocação”, por iniciar-se com

a recusa dos métodos de ensino da história da literatura, presos a padrões herdados

do idealismo e do positivismo do século XIX. Ao propor uma inversão metodológica

na abordagem dos fatos artísticos, Jauss abriu espaço para que o pensamento

recaísse também sobre o leitor, ou espectador, e não ficasse restrito ao autor e à

produção.

Para Jauss, no ato de fruição de uma obra literária, cada leitor traz, entre

outros aspectos, sua história de vida pessoal, que diz respeito à sua

experiência social, suas tradições, convenções, seu conhecimento de

mundo, como também sua experiência anterior com leitura e seu pré-

conhecimento de gêneros literários (Cajaíba, 2013, p.54).

Ao referir-se a autores como Aristóteles, passando por Górgias, Agostinho,

Lutero, até chegar aos românticos como Kant, Jauss deixou claro que sua reflexão

conteria também contribuições para a discussão da experiência estética como um

todo e não apenas no âmbito da recepção literária.

A teoria de Iser localiza a realização de uma troca no processo de recepção: o

leitor real é estimulado a preencher os “espaços vazios” por meio de apelos

enviados a ele pelo leitor implícito, ou autor. Essa troca transforma o leitor em re-

criador da obra.

Giuliana Simões diria, inclusive, que “a obra artística necessita da atualização

do receptor, ela não existe por si só, ainda que ofereça aos leitores e espectadores

diferentes, em épocas diversas, uma mesma proposta estética. A recepção é o

momento constitutivo da obra, é a partir do encontro com o receptor que a obra de

arte se atualiza” (2010, p.29).

Para Simões, a interação entre produção e recepção, entre texto e leitor,

entre espetáculo e espectador, é líquida, mutável. Sofre influência temporal, social e

42

cultural. Nenhuma obra pode ser desvinculada de seu contexto histórico e toda

expressão estética surge rodeada de regras preexistentes. Por isso, o horizonte de

expectativa22 acompanha tanto a obra quanto os seus receptores, e as regras

previamente conhecidas auxiliam a compreensão e o posicionamento destes diante

daquela. A criação artística pode atender, superar ou até contrariar as expectativas

do público, modificando seu horizonte de expectativa e contribuindo para que surjam

novas visões de mundo.

No campo das artes cênicas, foram produzidas, na Alemanha, muitas obras

que abordam o teatro do ponto de vista da recepção. Entre elas, Cajaíba (2013)

aponta A Descoberta do Espectador23, de Érika Fischer-Lichte, na qual a autora

descreve historicamente como o espectador passou a ser parte das preocupações

dos encenadores e dos estudiosos de teatro.

Para Fischer-Lichte, Richard Wagner teria sido um dos primeiros encenadores

a combater a passividade do espectador. Também são destacados o trabalho de

Meyerhold, que lançou o espectador como quarto criador da obra, ao lado do autor,

do diretor e dos atores; e O Manifesto do Teatro Futurista, elaborado pelo italiano

Tommaso Marinetti, que refutava a banalidade e os espetáculos de fácil digestão de

sua época.

A relação entre espetáculo e espectador é pensada enquanto fenômeno de

comunicação e empresta ferramentas de outras áreas de estudo para sua

investigação, já que não possui uma metodologia própria para a análise das

encenações. Segundo Mostaço,

passado o abalo provocado pelas vanguardas nas três primeiras décadas

do século XX, [...] uma nova teatrologia se esboçou após 1950, a reivindicar

posicionamentos que pudessem, sem cair nas antigas armadilhas

conceituais, dar conta de seu tempo e de seu espaço. [...] Menos centrada,

menos totalizadora, mais inquieta e aberta aos reclamos do

interculturalismo, ela se consubstanciou como um corpo “shívico” dotado de

quatro braços investigativos: a semiótica, a história, a sociologia e a

antropologia. Ou seja, quatro vozes para uma escuta: a recepção (2015,

p.77).

22

“O horizonte de expectativa de uma obra é o conjunto de expectativas do seu público, dada sua situação concreta, o lugar da peça dentro da tradição literária, o gosto da época, a natureza das questões cuja resposta o texto constitui” (Pavis, 2001, p.152). 23

Die Entdeckung dês Zuschauers, 1997, Francke Verlag, Tubingen/Basel (Hg.)

43

No Brasil, o tema da recepção não tem tanto espaço nos estudos acadêmicos

das artes cênicas e são poucas as obras escritas ou traduzidas para o português.

Os três anais dos congressos realizados pela Associação Brasileira de Pesquisa e

Pós-Graduação em Artes Cênicas (Abrace) incluíram o assunto, mas de forma

tímida; mais tarde, a pedido de vários pesquisadores da Abrace, criou-se um grupo

específico para os estudos de recepção.

De qualquer modo, as teorias vinculadas à recepção se expandiram para

além da crítica e da documentação e, hoje, entendem o espectador como

indispensável ao acontecimento teatral.

Considerar o espectador parte intrínseca do fenômeno teatral é uma

tautologia, uma vez que parece inconcebível um ator desempenhar para o

nada ou para ninguém. O espectador é o outro da ocorrência teatral,

podendo mesmo assumir a condição de Outro. Em situação de escuta, ele

nunca é passivo, ainda que permaneça razoavelmente quieto e sentado no

escuro (Mostaço, 2015, p.69).

O corpo do espectador, de acordo com Mostaço (2015), é locus privilegiado em

sua estada no teatro. É nele, no corpo do espectador, que se encontra armazenada

sua “enciclopédia”, como entendida pela semiótica: banco de dados formado por

experiências cognitivas e sensoriais e pela memória do espectador.

Recuperemos o pensamento de Merleau-Ponty (1990a e 1990b), segundo o

qual os seres humanos - adultos ou crianças - são “seres-em-situação”; ou seja: a

essência de nossa existência é existir em situação. Isso quer dizer que os contextos

vividos são tão significativos na constituição dos seres quanto os aspectos

biológicos, da espécie e estruturais.

É a partir dos contextos vividos no contato com diferentes culturas e diversos

sujeitos que se aprende a ser espectador. É certo que “espectadores somos todos

nós, independente de freqüentarmos uma escola ou de termos contato com o ensino

formal das linguagens artísticas, espetaculares, literárias e audiovisuais” (Ferreira,

2011, p.47).

Entretanto, há quem diga que aprender a ler a representação teatral, ou

aprender a ser espectador de teatro, é um processo que pode potencializar a

relação dos sujeitos com as artes, afinal, à medida que se alcança o prazer da

descoberta da linguagem e de seus signos, novas possibilidades de leituras e de

construção de sentidos e significados são fomentadas no espectador.

44

Segundo Flávio Desgranges,

esta noção de formação de espectadores tem em Bertolt Brecht uma figura

chave. O encenador alemão compreendia esta apreensão do fazer teatral

pelos espectadores como democratização dos meios de produção,

possibilitando efetivar o ato do espectador como um ato artístico, autoral,

produtivo. Os procedimentos de apropriação da linguagem eram por Brecht

denominados como a pequena pedagogia do teatro (2008, p. 77).

Brecht defende que as crianças deveriam ter na arte a mesma iniciação que

têm no esporte. “A experimentação das regras do jogo, os entusiasmos refletidos na

paixão dos pais e dos amigos tornam, desde cedo, pequenos espectadores de

eventos esportivos em grandes críticos. Experimentar um jogo é, certamente,

apropriar-se de suas regras. E assim também pode ser na arte” (Merísio, 2011,

p.52).

Taís Ferreira observa que

as crianças hoje, ao relacionarem-se com o teatro, já possuem uma vasta

bagagem como espectadoras de muitas outras linguagens, o que as torna

espectadoras experientes, se não do teatro, de outros meios audiovisuais e

espetaculares. Mas a relação com o teatro, o conhecimento e a apreensão

dos muitos elementos componentes da linguagem e do acontecimento

teatral em si são adquiridos paulatinamente, em processos de construção

de conhecimentos específicos que poderiam envolver a prática teatral, a

contextualização histórico-cultural dos artefatos e a relação como

espectador de teatro. Aprende-se teatro fazendo, assistindo, refletindo e

debatendo sobre teatro também, além de todos outros lugares, artefatos e

espaços que nos ensinam a ser espectadores (2011, p.46).

De acordo com Eugênio Tadeu, a formação do público infantil parece

estruturar-se de duas maneiras: pela escola - é através de instituições de ensino que

a maior parte dos infantes tem seus primeiros ou únicos contatos com o fazer teatral

e com a apreciação de espetáculos; e pela família (adulto), cuja “função é de

apresentar um mundo de possibilidades estéticas, de invenções, de transgressões e

de maneiras diferentes de dar significados às coisas” (2011, p.21).

Para Sidmar Gomes,

os discursos éticos e estéticos inerentes ao teatro infantil, operando em

razão do adulto que acompanha a criança e que escolhe ao que ela irá

assistir, seriam pautados em um amplo espectro de conhecimentos, os

quais iriam da profundidade do que é ser criança ao que é ser adulto.

Soma-se a isso o emprego de recursos que despertariam os sentidos e a

45

reflexão do adulto, desencadeadores em rede da participação, reflexão e

consequente educação das crianças. Por fim, e não menos importante,

deveriam ser levados em consideração recursos de conveniência, tais como

estacionamento, proximidade territorial e alimentação. Teríamos então um

teatro infantil inclusivo no que tange à participação de um personagem

fundamental a esse tipo de produção: o adulto espectador (2018, p.33).

A criança que vai ao espetáculo acompanhada pela família ou pelos colegas

da escola, ainda que raras as vezes saiba ou possa escolher ao que assistirá,

precisa participar do pacto firmado entre artistas e espectadores para que o teatro

aconteça. Segundo Ferreira,

pacto este muitas vezes não verbal, não escrito, não emitido e que se

aprende no ato mesmo de ser espectador, de ir ao teatro, ao cinema, ao

circo, [...]. Mas como trabalhar este pacto com crianças que não costumam

freqüentar casas de espetáculos? Impondo regras e limites arbitrariamente?

Proibindo a criança de mover-se, falar ou expressar qualquer reação

durante o momento da assistência? Não me parece que esta seja uma

introdução produtiva às vivências com o teatro. Mas como abordar a

compreensão das regras, ou seja, dos pactos a serem estabelecidos no

acontecimento teatral e que potencializam a fruição desse pelos

espectadores mirins? Uma das formas mais produtivas de apreensão dos

códigos e dos procedimentos que estão envolvidos na linguagem teatral é

experimentá-los na prática (2011, p. 49).

As iniciativas que viabilizam o acesso, tanto físico quanto lingüístico, dos

espectadores ao teatro (no âmbito de projetos que visem à formação de público24) –

e parte desse acesso consiste na compreensão das regras do jogo – são definidas

por Desgranges (2008) como mediação teatral. Nas palavras do autor,

o acesso físico constitui-se na viabilização da ida do público ao teatro. Ou

vice-versa, da ida do teatro até o público, ou seja, na difusão de espetáculos

por regiões social e economicamente desfavorecidas. [...] O acesso

lingüístico, como o próprio termo sugere, opera nos terrenos da linguagem.

E trata não apenas da promoção, do estímulo, mas especialmente da

constituição do percurso relacional do espectador com a cena teatral, da

conquista de sua autonomia crítica e criativa. Autonomia não apenas na

concepção desta relação, na definição de um percurso próprio de

aproximação com os elementos artísticos colocados em jogo e com os

variados aspectos sensíveis e reflexivos suscitados pela cena, mas também

24

No texto citado, Desgranges tece um relato do Projeto Formação de Público, orientado por ele em 2004, último ano de sua existência: “o projeto era uma iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e fora criado em 2001, sendo extinto, como se tornou usual em nosso país, assim que a nova gestão assumiu a prefeitura, em 2005. Um novo governo, como bem sabemos, faz terra arrasada das conquistas engendradas na gestão anterior” (2008, p.75).

46

na constituição de critérios de interpretação. A organização deste potencial

de sentidos que surge na experiência artística, a elaboração de

significações que constituem o ato pessoal e intransferível do espectador,

como sabemos, não se limitam a um talento natural, mas precisam ser

antes de tudo compreendidos como conquistas culturais. Conquistas nem

um tanto imediatas ou evidentes, mas que, ao contrário, solicitam esforço

para se efetivar (Desgranges, 2008, p.76).

Tendo em vista que, devido aos limites pertinentes a este trabalho, não nos

aprofundaremos na discussão sobre formação de público, finalizo esta digressão

expondo, no parágrafo seguinte, algumas das indagações de Ferreira a respeito do

assunto, as quais conversam diretamente com as inquietações que serão

desenvolvidas nas próximas páginas durante a análise do espetáculo Histórias de

depois do fim.

É preciso ensinar as crianças a serem espectadoras das artes cênicas?

Volto a essa que é a pergunta sem resposta, já que cada artista, pai ou

professor, poderá encontrar a sua resposta ao relacionar-se com as

diversas infâncias. A mediação direta da escola e dos familiares é

necessária para a relação das crianças espectadoras com os espetáculos?

Ou elas já possuem bagagem suficiente para isso nos dias de hoje? Não

estaríamos limitando as leituras e usos das artes pelas crianças ao

direcionarmos seus olhares e sentires? Um mediador não é um fornecedor

de caminhos já trilhados? Por que não permitir a construção de novos

trajetos perceptivos? [...] Como podemos atuar como mediadores que

estimulem a proliferação de percepções e não que tolham as possibilidades

de ser espectador e de construir sensações e sentidos pelas crianças?

(2011, p.50).

5.2. Objetivos e justificativas do projeto

O espetáculo Histórias de depois do fim tem raízes em suas inspirações

primeiras: a proposta interativa e itinerante de Hoje o escuro vai atrasar para que

possamos conversar, do Grupo XIX de Teatro; o pensamento da Socìetas Raffaello

Sanzio sobre a infância e a criança; e as descrições de práticas, procedimentos e

espetáculos de Chiara Guidi para a infância (descritos no livro Isto Não é um Ator25).

A experiência com estas referências iluminou nosso encontro com alguns

olhares para a criança mesma e para a infância, registrados nas teorias e reflexões

de Benjamin, Merleau-Ponty, Marina M. Machado, Manuel Sarmento e Bruno

25

FERREIRA, Melissa. Isto não é um ator: o teatro da Societas Raffaello Sanzio. São Paulo: Perspectiva, 2016.

47

Bettelhiem. A partir do estudo desses materiais, formulamos a hipótese de que

permitindo às crianças-espectadoras outros níveis (mais diretos) de envolvimento

com a obra seria possível deslocar o teatro da lógica da informação para a lógica da

experiência.

Todo esse percurso deixou uma pulga atrás da nossa orelha: por que o teatro

é tão pouco explorado enquanto lugar potente para se vivenciar histórias? Esse

questionamento foi determinante para que abraçássemos a ideia de conceber um

espetáculo para crianças, em busca de oferecer a elas experiências significativas

com a arte através de novas possibilidades de relação com o teatro.

Propusemo-nos, então, a criar um espetáculo que pudesse operar como uma

vivência para a criança, um convite ao campo da experimentação; em outras

palavras, um espaço para ela brincar de faz-de-conta e agir diretamente na cena. E

como a presença da criança no palco provoca deslocamentos na percepção do

adulto que a acompanha, o espetáculo possibilitaria ao público adulto (sobretudo

familiares) uma experiência mais distanciada, mas ainda assim envolvente.

Interessava-nos investigar como o mesmo espetáculo teatral poderia

conversar com todos os grupos de espectadores sem desrespeitar seus modos

distintos de envolver-se com a obra. Afinal, se há diferenças entre os modos da

criança de ser e estar no mesmo mundo onde são e estão os adultos com os quais

ela convive, há também diferenças nos modos da criança-espectadora de ser e estar

no teatro, no mesmo espetáculo onde são e estão os adultos-espectadores, com os

quais ela divide a fruição teatral.

Os modos adultos de trabalhar o teatro para crianças ganhariam muito

alimentando-se de uma noção de infância e uma noção de arte compatíveis

com o novo que é a criança mesma. [...] ora, as formas múltiplas e híbridas,

a adoção da lógica do inconsciente e do nonsense, e o questionamento

acerca do teatro representacional não seriam fortes elementos também da

assim chamada cena contemporânea? (Machado, 2014, p.9).

O teatro, lugar da imaginação por excelência, parece conter o tempo e o

espaço ideais para que o modus operandi da criança – o modo como se dá sua

experiência existencial de ser no mundo - seja privilegiado ao invés de tolhido.

Talvez, assim, deixasse de ser mais um entre tantos produtos culturais26 meramente

26

Tal como é entendido pelo pensamento de filósofos como Habermas e Adorno: produto produzido em série, como um artigo industrializado qualquer, visando o maior número possível de consumidores

48

consumidos pelos pequenos, sem provocar a mínima transformação em suas

existências.

Retomemos, em suma, o que fora argumentado anteriormente à luz da ideia

de que o “mundo da criança” e a “mentalidade ou natureza infantis” inexistem

(Merleau-Ponty, 1990a e 1990b): a criança encontra-se mergulhada na experiência,

integrada ao mundo e à cultura (Benjamin, 1994; Merleau-Ponty, 1990a e 1990b;

Sarmento, 2004), e por isso transita por outra forma de pensar, sentir e agir. Esta

outra lógica, polimorfa, exclui a necessidade de representação do mundo ou de si

(Merleau-Ponty, 1990b) e opera através de experiências sensoriais que envolvem

todo o corpo e não somente a racionalidade (Benjamin, 1994; Machado, 2007). Age

criando permanentes transposições entre realidade e fantasia (Merleau-Ponty,

1990b; Sarmento, 2004; Bettelheim, 2007) e recriando as experiências através da

repetição e da continuidade (Benjamin, 1994; Sarmento, 2004), do brincar, e da

interação com outras pessoas e com objetos (Benjamin, 1994; Sarmento, 2004).

É possível pensar numa correspondência entre os traços acima mencionados

e especificidades percebidas por Mafra Gagliardi (2000) na análise de uma pesquisa

acerca da recepção infantil do espetáculo teatral. A importância da interação na

experiência da criança, da qual falavam Benjamin e Sarmento, relaciona-se com um

fato observado por Gagliardi – os pequenos vivem com particular intensidade a

partilha da fruição teatral e do contrato de denegação com um grupo da mesma

idade:

um bom número de desenhos revela a forte percepção que as crianças,

sobretudo das faixas etárias mais baixas, têm do público que as rodeia. Os

espectadores vêm representados junto com as personagens e os objetos de

cena, conjugados ao mesmo clímax. De qualquer forma, eles aparecem

alinhados frontalmente, em pé ou sentados, seguem a cena ou se olham (a

testemunhar uma relação presente na sala, na qual o espectador olha e é

olhado pelos companheiros). Outras vezes, são representados com seus

nomes, como numa história em quadrinhos, ou retratados em duplas ou em

grupos, enquanto gritam "bravo" aos atores (Gagliardi, 2000, p.77).

Corresponde àquele modo da criança de envolver todo o seu ser, e não

somente o raciocínio, na experienciação do mundo e de si a seguinte observação da

professora italiana: “o espectador infantil goza a história representada e a

modalidade de representação, não se limitando a atribuir um sentido àquilo que está

e possuindo, por sua própria constituição básica, toda uma carga de conteúdos sociais e ideológicos que, em geral, não são percebidos por aqueles que deles se utilizam de imediato.

49

oculto na cena – como faz o espectador adulto – mas está atento àquilo que se faz

na cena, isto é, ao aqui e agora da representação, que é o real artístico” (Gagliardi,

2000, p.74-75).

Além disso,

a atenção aos aspectos materiais e expressivos do espetáculo - nos quais

reside sua especificidade semiótica - é muito mais viva no espectador

criança do que no adulto. É muito ampla sua capacidade de extrair imagens

e ritmos da linguagem teatral: cenas inteiras de um espetáculo foram

reconstruídas de memória com uma exatidão de detalhes muitas vezes

surpreendente. Muito frequentemente a alternância escuro/luz, a

intensidade das cores e a sugestão da música vêm citados como fontes de

intensa emoção (ibidem).

Nas crianças menores “o medo parece ser provocado, mais que pela

situação, por estímulos à percepção, particularmente determinadas cores, como o

vermelho e o negro, e por sons imprevistos e muito fortes” (ibidem, p.76). Gagliardi

conclui que “da totalidade das respostas das crianças fica confirmado que o

espetáculo teatral opera sobre elas um forte envolvimento emocional conjunto”

(ibidem), ativando mecanismos complexos de identificação e de projeção, como o

despertar do desejo de ser certa personagem ou de viver com ela determinada

situação.

No decorrer das trocas que estabelecemos com as crianças da Escola de

Aplicação da USP (EA-FEUSP) durante o processo de criação de Histórias de

depois do fim, foi possível reconhecer os pareceres de Gagliardi sobre a qualidade

da atenção das crianças à materialidade da cena, sobre os mecanismos de

identificação e projeção ativados nelas pelo espetáculo, e sobre a potencialidade

dos estímulos sensoriais em despertar emoções.

Procuramos a EA-FEUSP convencidos de que os estudos deveriam ser com

e não sobre as crianças, como defendido por Merleau-Ponty (1990a e 1990b) e por

Manuel Sarmento (2004). Para que nós, adultos, pudéssemos fazer teatro para

crianças – e isso incluía desde a criação da dramaturgia até a concepção da

encenação -, precisávamos escutar a voz das crianças; assim, chegamos aos

alunos da Escola de Aplicação.

Antes de começarmos a descrever essas trocas, é preciso esclarecer que

algumas decisões haviam sido tomadas pelo grupo anteriormente ao primeiro

50

contato com as crianças. Acredito que para os fins do trabalho que aqui se

desenvolve não seja necessário tratar com muitos detalhes de como chegamos a

tais acordos ou mencionar todos os procedimentos envolvidos neste processo de

escolha.

Basta dizer, por hora, que havíamos decidido explorar a temática da morte

através de uma dramaturgia própria que incorporaria elementos essenciais do conto

maravilhoso27 - a saber: presença de eventos maravilhosos (magia, encantamento)

que se dão de maneira inteiramente natural; presença de um herói ou heroína e

obstáculos ou provas que precisam ser vencidos; ter como ponto de partida um

problema vinculado à realidade, mas buscar soluções para ele no plano da fantasia.

A escolha de manter esses princípios na estrutura dramatúrgica se deu tanto

por nos inspirarmos nas práticas e procedimentos de Chiara Guidi, artista que

trabalha justamente com os elementos da fábula e do encantamento para acessar a

imaginação como chave para (re)ver a realidade (Ferreira, 2016), quanto por

fundamentarmos nossa prática nas teorias sobre os modos de ser e estar da criança

- nesse sentido, as narrativas maravilhosas procedem do mesmo modo que a mente

infantil, pela fantasia (Bettelheim, 2007).

Estava certo, desde o primeiro encontro de grupo da Cia JogaJunto, que

nossa peça seria protagonizada por uma criança. Iniciamos o processo trabalhando

com “histórias da memória”: cada integrante do coletivo trouxe para o ensaio um

exercício cênico de contação de uma história (fábula, conto etc) que marcara sua

vida, ou seja, uma história com a qual a pessoa guardava uma relação de afeto; na

maioria das histórias apresentadas neste primeiro encontro a protagonista era uma

criança.

Também contribuiu com essa escolha a constatação de Maria Lúcia Pupo em

sua análise da dramaturgia destinada à infância na cidade de São Paulo na década

de 1970: “por incrível que possa parecer, a presença do adulto é mais marcante do

que a da própria criança, pois em termos quantitativos, a discrepância é gritante:

13% de personagens infantis para 33,5% de personagens adultas” (1991, p. 112).

Na mesma análise, a autora reconhece que “o modelo feminino aparece como

marcante muito mais frequentemente associado à vida doméstica, âmbito que lhe é

27

Como escreve Marcus Mazzari na apresentação do livro Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos (Grimm, 2012), Conto Maravilhoso é a tradução mais apropriada do substantivo alemão Marchen, o qual designa um gênero de histórias reunidas na coletânea dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm.

51

habitualmente reservado pela sociedade, do que relacionado aos vôos mais

ousados representados pela aventura ou pela viagem” (Pupo, 1991, p. 58). Para ir à

contramão da estereotipia dos modelos sexuais identificada por Pupo na

dramaturgia de décadas atrás (e que parece permanecer ainda hoje), criaríamos

uma protagonista menina para nossa história maravilhosa28.

A heroína da nossa peça seria, então, uma criança interpretada por uma atriz

adulta. Nessa altura, tentávamos nos enquadrar naquele tipo de teatro feito por

adultos para crianças, mesmo sabendo que

quando adultos fazem papel de crianças, especialmente no teatro infantil ou

infanto-juvenil, suas noções de infância encontram-se fortemente

evidenciadas, encarnadas em seus corpos e nos figurinos, adereços, vozes,

cabelo e maquiagem: tudo revela o que o adulto vê, pensa, sente e

pressente na criança “em geral”. A cultura da infância mostrada

cenicamente pelo adulto, assim, pode ser algo muito próximo das

experiências infantis bem como pode revelar o que o adulto acredita que

“deveria ser” a vida infantil… De todo modo, adultos não são crianças e

jamais saberemos novamente o que é ser criança exatamente tal qual no

momento de nossas infâncias (Machado, 2011, p. 33-34).

Do cruzamento do estudo das “histórias da memória” com “acontecimentos da

atualidade” – eventos sociais e políticos afins aos temas identificados nas histórias

trazidas pelos integrantes do grupo no primeiro encontro – emergiu nosso assunto

principal: a morte. São “acontecimentos da atualidade” que relacionamos ao tema

escolhido: onda de violência e assassinatos no período pré-eleições presidenciais de

2018, assassinato de Marielle Franco em março do mesmo ano, desastres naturais

como Brumadinho e a morte dos rios, incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro

e a morte de um legado histórico-cultural, entre outros. Vale dizer também que

enquanto escrevo este texto, a Amazônia morre.

A temática da morte nos motivava por ser um assunto tabu sobre o qual os

adultos, em geral, costumam se esquivar de maiores aprofundamentos no diálogo

com as crianças, até porque falar com a criança sobre morte implica, para o adulto,

em deparar-se com sua própria finitude.

Embora, nos últimos cinqüenta anos, progressos tenham sido feitos na

remoção de muitas defesas que haviam transformado o sexo em tabu o

28

O termo faz referência à estrutura dramatúrgica que incorpora elementos essenciais dos contos

maravilhosos.

52

mesmo não ocorreu em relação ao tema da morte. A rigor, no século XX, a

morte substituiu o sexo como principal tabu, ocorrendo uma verdadeira

inversão, ou seja: quanto mais a sociedade foi relaxando seus

cerceamentos vitorianos ao sexo, mais foi rejeitando a morte. Assim, houve

uma época em que se dizia às crianças que elas haviam nascido de um

repolho, mas estas assistiam às cenas de despedida de um moribundo.

Hoje, as crianças são desde cedo iniciadas na fisiologia do nascimento, mas

quando se surpreendem com o desaparecimento de um ente querido,

alguém lhes diz que este descansa em um jardim (Torres, 1978, p.1).

Wilma Torres recupera a análise histórica de Philippe Ariès das atitudes do

homem frente à morte para afirmar que o interdito da morte, conservado desde o

século XX até os dias de hoje, “parece ocorrer repentinamente após um longo

período no qual o que se constata é um sentimento duradouro e intenso de

familiaridade com a morte – a morte domada” (ibidem, p.2).

A atitude antiga em que a morte é ao mesmo tempo próxima, familiar e

diminuída, insensibilizada, opõe-se demasiado à nossa onde faz tanto medo

que já não ousamos pronunciar o seu nome. É por isso que, quando

chamamos a esta morte familiar a morte domada, não entendemos por isso

que antigamente era selvagem e que foi em seguida domesticada.

Queremos dizer, pelo contrário, que hoje se tornou selvagem quando

outrora o não era. A morte mais antiga era domada (Ariès apud Santos,

2009, p.17).

Diversos estudos na área da psicologia afirmam que a criança precisa se

aproximar deste tema para que seja capaz de elaborar os lutos e perdas que

vivenciará ao longo de sua vida (Salvagni, 2013). E, como dissera Benjamin, “a

criança aceita perfeitamente coisas sérias, mesmo as mais abstratas e pesadas,

desde que sejam honestas e espontâneas. Ela exige dos adultos explicações claras

e inteligíveis, mas não explicações infantis, e muito menos as que os adultos

concebem como tais” (1994, p.237).

O historiador David Stannard nos ensina que em sociedades nas quais o

indivíduo é único, importante e irreplicável, a morte não é ignorada, mas é

marcada por uma espécie de luto coletivo pela perda social de um de seus

membros. Ao contrário, nas sociedades onde as pessoas sentem que pouco

dano é causado no tecido social pela perda de um indivíduo, perda essa

ocorrida fora do seu círculo imediato, a morte recebe pouca ou nenhuma

atenção. O primeiro passo para obter atenção sobre a morte é reconhecer

que evitando-a ou negando-a estamos caminhando para a negação de um

aspecto integral da vida humana. O estudo da morte, pois, diz respeito a

questões que estão enraizadas no centro da vida humana (Santos, 2009,

p.13).

53

Escolhido o tema, passamos a estudá-lo sob diversas perspectivas - histórica,

sócio-cultural, filosófica, religiosa; nesse ínterim, efetivamos nosso projeto de troca

com as crianças da EA-FEUSP.

5.3. Participação das crianças da EA-FEUSP no processo de criação:

oficinas com o 1° ano

De início, quando pouco sabíamos sobre o espetáculo que acabaríamos

realizando, nossa ideia era estabelecer trocas diretas com grupos de crianças

durante todo o processo de criação a fim de observá-las, atentos a seus modos de

ser e estar, e perceber como reagiriam às nossas propostas e como agiriam em seu

ímpeto de participação.

Elaboramos a oficina que aconteceria no nosso primeiro encontro com as

crianças do 1º ano do Ensino Fundamental I (entre 6 e 7 anos) a partir do estudo e

da adaptação de experiências realizadas por Chiara Guidi na Scuola Sperimentale di

Teatro Infantile29 e de elementos propostos por Peter Slade (1978) em seu método

de ensino de teatro para crianças, o Jogo Dramático Infantil - referência trazida pelos

colegas do grupo licenciados em artes cênicas30.

Segundo Slade,

o Jogo Dramático Infantil é uma forma de arte por direito próprio; não é uma

atividade inventada por alguém, mas sim o comportamento real dos seres

humanos [...] O jogo dramático é uma parte vital da vida jovem. Não é uma

atividade de ócio, mas antes a maneira da criança pensar, comprovar,

relaxar, trabalhar, lembrar, ousar, experimentar, criar e absorver. O jogo é

na verdade a vida (1978, p.17-18).

Façamos uma ressalva recuperando o entendimento de Johan Huizinga sobre

jogo como um fator distinto e fundamental presente em tudo o que acontece no

mundo e não apenas na atividade humana: 29 Descritos em: FERREIRA, Melissa. Isto não é um ator: o teatro da Societas Raffaello Sanzio. São

Paulo: Perspectiva, 2016. 30

Sobre esse ponto, gostaria de mencionar que a maioria dos integrantes da Cia JogaJunto estava trabalhando com teatro para crianças pela primeira vez com a montagem de Histórias de depois do fim, inclusive eu mesma. Tal fato parecia interessante, pois estávamos pensando na mesma via de Chiara Guidi: “é importante destacar que muitos dos artistas envolvidos no festival [e na criação de espetáculos infantis] não trabalham habitualmente com crianças. Esta escolha resulta em experiências de arte contemporânea não marcadas pelos estereótipos da arte feita para crianças” (Ferreira, 2016, p. 57). Entretanto, o fato de metade do grupo ter formação em licenciatura foi fundamental para o desenvolvimento do projeto.

54

o jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas

definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas,

os animais não esperaram que os homens os iniciassem na atividade

lúdica. É-nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não

acrescentou característica essencial alguma à idéia geral de jogo. Os

animais brincam tal como os homens [...] Como a realidade do jogo

ultrapassa a esfera da vida humana, é impossível que tenha seu

fundamento em qualquer elemento racional, pois nesse caso, limitar-se-ia à

humanidade. A existência do jogo não está ligada a qualquer grau

determinado de civilização, ou a qualquer concepção do universo. Todo ser

pensante é capaz de entender à primeira vista que o jogo possui uma

realidade autônoma, mesmo que sua língua não possua um termo geral

capaz de defini-lo (Huizinga, 1990, p.5-7).

Ressalva posta, voltemos ao Jogo Dramático. Slade propõe esta terminologia

para referir-se à brincadeira teatral infantil, pois

ao pensar em crianças, especialmente nas menores, uma distinção muito

cuidadosa deve ser feita entre drama no sentido amplo e teatro como é

entendido pelos adultos. Teatro significa uma ocasião de entretenimento

ordenada e uma experiência emocional compartilhada; há atores e públicos,

diferenciados. Mas a criança, enquanto ainda ilibada, não sente tal

diferenciação, particularmente nos primeiros anos - cada pessoa é tanto

ator como auditório. Esta é a importância da palavra drama no seu sentido

original, da palavra grega drao - "eu faço, eu luto”. No drama, i.e., no fazer e

lutar, a criança descobre a vida e a si mesma através de tentativas

emocionais e físicas e depois através da prática repetitiva, que é o jogo

dramático. As experiências são emocionantes e pessoais e podem se

desenvolver em direção a experiências de grupo. Mas nem na experiência

pessoal nem na experiência de grupo existe qualquer consideração de

teatro no sentido adulto, a não ser que nós a imponhamos (1978, p.18).

O ensino de teatro, e também a educação, nos moldes propostos por Slade

com o Jogo Dramático Infantil tem como base a improvisação. Para ele, uma boa

aula seria aquela em que o professor dá sugestões sobre o quê fazer, mas não

sobre como fazê-lo, assim, ele “não ensinaria, mas guiaria e „nutriria‟ [...] Junto com

a criança, constrói-se uma sabedoria e vivencia-se uma partilha emocional. E disso

cresce o indefinível conhecimento da vida que constitui para a criança uma

educação no mais completo sentido da palavra” (ibidem, p.95).

Emprestamos dos exercícios realizados com crianças pequenas durante as

aulas de teatro ministradas por Slade a ideia de sugerir aos alunos alguns

disparadores, como um som ou uma frase, e, a partir da participação deles e de

suas sugestões, criar uma narrativa. Segue abaixo um exemplo que elucida o

55

método, incluído pelo autor no capítulo III – o que fazer com crianças nos primeiros

anos de vida – do livro O jogo Dramático Infantil.

Exemplo 2 – Dos Cinco aos Seis Anos

A professora está batendo tambor e as crianças entram correndo. Ela leva o

som a um clímax quando as crianças estão todas felizes correndo em roda

num círculo cheio. Uma última batida e todas páram.

Professora: "Sentem-se quietinhas. Agora escutem."

Ela percute com um prego um pedacinho de metal pendurado num

barbante. É um ruído muito baixo e as crianças têm que ficar quietas para

ouvi-lo.

Professora: "O que isto lembra a vocês? Escutem de novo - agora!"

Criança : "Ratinho."

Outra: "Homenzinho."

Há uma caixa de ruídos num canto.

Professora: "Vá e tire um instrumento de que você goste, Jane. Peter, você

vai pegar um também” [...]

Jane agora tem um tamborim, Peter uma espécie de raspador metálico.

Professora: "Ótimo. Agora ouçam: - um homenzinho de pés muito grandes

vivia num castelo e ele tinha um ratinho amestrado de quem gostava

muito...”

(Ambas as idéias da primeira resposta foram usadas, embora difíceis de

combinar)

... "mas havia um grande canguru malvado que vivia do lado de fora”.

Mostre-nos o barulho que o canguru faz, Jane (Jane bate o seu tamborím).

Você, Peter, mostre-nos o barulho que o ratinho faz (peter faz ruídos

rascantes). Bem. Agora, todo mundo fica de pé e participa da história se

quiser. O homenzinho dos pés grandes está andando pelo seu castelo...."

([...] Todas as crianças são o homenzinho.)

"...e o seu ratinho arranha querendo entrar (Peter faz os ruídos rascantes

enquanto todas as outras crianças são um ratinho.) O homenzinho o pega

pela mão e eles saem para um passeio (ping, ping, ping, faz a professora).

De repente, chega o grande canguru pulando pelo jardim (Jane faz ruídos

de pulos, enquanto todos os outros são cangurus.) Mas o homenzinho e o

ratinho fogem a tempo (professora leva o som do tambor ao clímax - todas

as crianças correm em volta do recinto, fugindo de um canguru imaginário).

Ele fecha a porta com uma batida. Vocês fazem a batida. (Algumas crianças

gritam "bang", outras batem os pés.) Não esqueçam de limpar os pés no

capacho. Depois sentem-se quietinhos diante do fogo da lareira. Bem

quietinhos. Assim. Vamos ficar sentados um pouco bem quietos, olhando as

chamas" (1978, p.38-39)

Agora, vamos à Scuola Sperimentale. A descrição das vivências do teatro

nessa escola foram de extrema relevância para nossa encenação e, ainda que não

tenhamos conseguido nem de perto fazer algo parecido com o que pensava Chiara

Guidi, pela precariedade de nossos recursos, especialmente financeiros, tomamos

suas experimentações como um norte para a empreitada.

56

A Scuola, de acordo com Melissa Ferreira, era um espaço voltado

exclusivamente para as crianças: “Guidi afirma que nunca explicou aos adultos

sobre o conteúdo do que era realizado nos encontros da escola, nem lhes foi

permitido observar o que as crianças faziam quando entravam no teatro. Ela

manteve uma relação direta com os pequenos, e as informações que chegavam aos

pais eram sempre aquelas do ponto de vista infantil (2016, p.12).

Nos encontros, “as crianças eram recebidas pelos atores, já devidamente

caracterizados conforme suas personagens, e inseridas imediatamente no contexto

da ficção, sem explicações ou apresentações” (ibidem). E nesse espaço da ficção,

do jogo, elas eram levadas a agir, vivenciando a cena direta e sensorialmente.

O espaço da escola se dividia em três zonas: a primeira era o lugar onde as

crianças conheciam o tema do encontro e vestiam seus figurinos; a segunda era a

zona da segurança, uma área aconchegante para a qual as crianças podiam trazer

objetos de suas casas e onde eram aprendidos e experimentados “as palavras, os

cantos, os gestos e ações que seriam úteis para enfrentar o desafio que as esperava

na terceira zona” (Ferreira, 2016, p.13); “a terceira zona era a da luta e da conquista”

(ibidem, p.12), na qual não se permitia observação, apenas ação.

O Anno I da escola desenvolveu o tema do corpo humano, explorando cada

uma de suas partes num encontro diferente. Para explicitar o funcionamento das

zonas, segue a descrição de Ferreira sobre o quarto encontro, que tratou do tórax:

ao entrar na primeira zona do encontro “Il torace”, as crianças se deparam

com um cubo de madeira que lhes desperta curiosidade. Em seguida,

colocam seus figurinos e, em uma faixa branca de tecido amarrada ao redor

do abdômen, escrevem com tinta preta, uma com a ajuda das outras, o

nome de um sentimento (ódio, raiva, amor, medo, terror etc.). De repente, o

cubo emite uma luz de seu interior por pequenas frestas. De dentro do cubo

se podem escutar algumas palavras que aos poucos se tornam inteligíveis:

miocárdio, ventrículo, palavras ligadas ao coração. Trata-se, pois, de uma

caixa torácica. As crianças exploram a caixa espiando pelas frestas e

fazendo sons com as mãos em sua superfície. Dentro do cubo há uma

figura vestida de preto, com uma meia calça de nylon que lhe cobre o rosto,

que recita um texto médico sobre o coração. Ao seu lado, há uma cabra

morta e esfolada pendurada pelo pescoço.

A segunda zona está ambientada no interior de um coração batendo. O

lugar é fechado como uma caverna, todo vermelho, repleto de fios e tubos

que lembram veias e artérias. Em meio aos fios, há quinze espadas com as

quais cada criança transforma-se em um cavaleiro medieval. Aos cavaleiros

é explicada sua missão: enfrentar um dragão. O dragão é muito poderoso,

mas tem o coração fora do corpo. A única maneira de enfrentá-lo é atacar

seu coração com as palavras “deves morrer!”. Todos empunham as

57

espadas com convicção e gritam “deves morrer!”. Prontos para o desafio, os

cavaleiros entram na terceira zona.

Na terceira zona, no canto da sala escura as crianças encontram o dragão

que emite sons assustadores. O dragão é um ator que veste apenas uma

calça e uma máscara negra ao redor dos olhos. Ele maneja um lança-

chamas que solta imensas labaredas que iluminam a sala. Pendurado no

centro da sala há um grande coração incandescente de ferro que está

ligado ao dragão por um longo tubo de borracha. O coração de fogo solta

um cheiro forte de fumaça e querosene na sala. As crianças, montadas em

seus cavalos imaginários, avançam com suas espadas sobre o coração do

dragão, gritando todas juntas: “deves morrer”. A cada grito das crianças, o

dragão reage se contorcendo e soltando sons de dor angústia. As chamas

diminuem. As crianças continuam a gritar e finalmente dragão cai no chão,

vencido. O corpo caído no chão emana um cheiro forte de suor e graxa.

Uma espuma branca sai de sua boca.

As crianças retornam à segunda zona e são recebidas por uma figura

vestida de negro que as conduz a um ritual. No centro da sala, um ator toca

um instrumento de percussão construído com latões e outros objetos

metálicos. A figura vestida de negro conduz o ritmo da caminhada das

crianças, relacionando o som da percussão às emoções que as crianças

levam escritas no abdômen. Depois de uma viagem por todas as emoções,

as crianças são levadas novamente para a terceira zona onde se

desenvolve um combate de espadas entre os cavaleiros (Ferreira, 2016,

p.14-15).

A partir de elementos das referências apresentadas nas linhas acima e de

materiais produzidos em nossos ensaios anteriores aos encontros com os alunos da

EA-FEUSP, chegamos à estrutura da oficina: proporíamos às crianças uma vivência

direta e sensorial através de um percurso itinerante - à la Grupo XIX de Teatro

(como descrito no início do trabalho). Ao final, trabalharíamos a mediação da

experiência e a investigação acerca das idéias das crianças pequenas sobre o pós-

morte tentando agir como aquele professor do qual falava Slade, o que guia e nutre.

Vale ressaltar que não fomos à Escola de Aplicação com o intuito de ensinar

ou apresentar teatro para os alunos. Nosso encontro com os pequenos significava

uma oportunidade de jogar e partilhar com eles uma vivência teatral, na qual eram

convidados a embarcar com nossa heroína numa aventura em busca de sua recém-

falecida avó. Durante o percurso, imaginamos que as crianças expressariam suas

idéias sobre o que havia no caminho, quem eram aqueles seres, para onde vão os

mortos depois que morrem. Para estimular e nutrir a participação delas, os atores

lançariam mão das indicações do Jogo Dramático Infantil.

Elaboramos o seguinte esquema: iniciado o percurso, a menina e seus

amigos (as crianças da Escola de Aplicação) encontrariam com um “ser amigável”

58

que lhes daria uma ferramenta, no caso se tratava de um ritmo, para combater outro

“ser não tão amigável” que guardava uma pista sobre o paradeiro da avó, e para

chegar até ele precisariam andar com os olhos vendados e atravessar um túnel.

Nesta primeira oficina, duas atrizes faziam o papel da menina que buscava

sua avó. Não tínhamos clareza se elas representavam a mesma pessoa ou se

seriam irmãs; a presença das duas se fazia necessária mais por uma questão de

segurança, para facilitar a condução de um grupo de crianças que não conhecíamos

pelo percurso itinerante nos espaços da escola. Entretanto, reparamos pelas

observações das crianças que este era um dado relevante para elas.

Repetimos a mesma oficina três vezes, com três turmas diferentes. Para a

primeira turma propusemos uma divisão das crianças em dois grupos de 10, que

foram conduzidos separadamente, cada um por uma atriz; já nas duas outras turmas

a proposta se realizou com as 20 crianças e as duas atrizes de uma só vez, visto

que ao longo da primeira vez fomos ganhando segurança para tal.

As crianças eram recebidas pelas personagens e inseridas diretamente no

contexto ficcional, sem mais explicações (isso da nossa parte, mas não sabemos até

que ponto elas haviam sido esclarecidas pela professora ou pelos bolsistas

responsáveis antes da nossa chegada). Ao saírem de suas salas de aula, elas

encontravam com o “músico”, uma espécie de bardo que as acompanhava durante

todo o percurso interagindo com elas apenas através da música.

Figura 1 - crianças do 1º ano a caminho da aventura na EA-FEUSP

59

Uma vez que as “meninas” apresentavam-se às crianças e pediam a ajuda

delas para procurar a avó, todos ganhavam roupas de viagem (capas de chuva) e

“sementes da coragem” (semente de girassol), como um convite para adentrar o

mundo da fantasia. Com poucos e até precários elementos tivemos a oportunidade

de ver a mesma escola de todo dia daquelas crianças se transformando em um

ambiente novo e desconhecido e voltando a ser a escola, repetidas vezes.

Figura 2 - Menina: eu acho que minha avó

morreu, mas pra onde vai quem morre?! Vocês

podem me ajudar a descobrir?

Figura 3 - crianças do 1° ano ajudando a Menina a

procurar a avó que morreu

Figura 4 - Menina: quem é aquele ser? Será que

devemos ir até lá?

Figura 5 – crianças do 1º ano encontram-se com o

“ser amigável”

60

O “ser amigável”, que acabou identificado pelas crianças como um mago,

distribuía melancia, a fruta preferida da avó, aos aventureiros. A maioria deles

aceitava sem pensar duas vezes, mas outros ficavam desconfiados: “e se tiver

envenenada?”, “não pode comer coisa de estranhos”. Esse “ser amigável” contava

às crianças que o “ser não tão amigável” guardava em sua caverna uma pista sobre

o paradeiro da avó, mas que para conseguirem pegá-la, precisavam aprender um

ritmo capaz de fazê-lo dançar sem parar até sair de seu lugar, onde estaria a pista.

Depois de experimentarem o ritmo, os pequenos eram vendados e

conduzidos por um breve percurso em que recebiam estímulos sensoriais, como

leve borrifadas de água e toque de pena, e principalmente sonoros. Nesse

momento, aquelas transições entre realidade e fantasia de que falava Merleau-Ponty

(1990b) faziam-se muito evidentes. Apesar da precariedade de nossas condições

materiais, as crianças, quando vendadas, ficavam muito imersas na imaginação e

suscetíveis às emoções; o medo, por exemplo, tornava-se bastante evidente. Por

outro lado, bastava uma espiadinha por debaixo da venda para voltar à realidade, e

um rufar de tambor para promover uma nova emoção logo em seguida.

Figura 6 - crianças do 1° ano a caminho da caverna

do "ser não tão amigável"

Figura 7 - crianças do 1º ano vendadas

durante o percurso sensorial

61

O percurso com as vendas terminava num túnel pelo qual as crianças

deveriam passar para chegar à caverna onde estava a pista sobre a avó. “É um

portal!”, diziam; e, mais uma vez, era notável a entrega das crianças ao jogo: “será

que eu vou voltar de lá?”, perguntou-me uma delas antes de decidir entrar no túnel.

Na caverna escura, depois de interagirem um pouco com o “ser não tão

amigável”, as crianças reproduziam o ritmo aprendido, vezes por iniciativa delas

próprias, outras pela condução das personagens; então, esse ser, identificado por

elas como fênix, dançava até sair de seu “ninho”, onde se encontrava uma mala.

Dentro dela, algumas recordações da aventura – como “sementes da coragem” e

vários papéis e envelopes em branco, além de uma carta da avó para a neta,

dizendo, entre outras coisas, que agora a avó morava na imaginação da menina e

estaria onde ela acreditasse.

É curioso como o que nós, adultos, preparamos e julgamos ser mais

adequado às crianças parece mesmo ser o que menos desperta o interesse delas

(Benjamin, 1994). A carta, por exemplo, precisou ser encurtada a cada vez que a

oficina era repetida. Adaptações realizadas, a mala, os vários papéis em branco e

Figura 8 - crianças do 1° ano atravessando o

túnel para chegar à caverna do "ser não tão

amigável"

62

envelopes encerravam a vivência. Depois disso, as crianças eram conduzidas a uma

sala de aula e convidadas a desenharem o lugar para onde elas pensavam que teria

ido a avó da menina depois de sua morte, cada uma em seu papel.

Nesta fase, concluíamos o outro objetivo da oficina: desvendar o que há no

imaginário das crianças pequenas (mais especificamente das turmas do 1° ano do

Ensino Fundamental I da Escola de Aplicação da USP) sobre o pós-morte – e esse

imaginário compreende tanto a imaginação ela mesma quanto os aprendizados e

referências sociais e culturais a respeito do assunto. Mais tarde, tomaríamos o

entendimento e as relações das crianças com o tema como guias para a criação da

dramaturgia de Histórias de depois do fim.

Enquanto as crianças desenhavam, perguntávamos a elas: “para onde você

acha que a avó dela foi?”; nas respostas, e/ou nos desenhos, quase sempre

aparecia o céu:

Figura 9 - crianças do 1° ano

desenhando o lugar para onde vai

quem morre

Figura 10 - mediação pós-oficina com 1°

ano

63

Figura 11 – Miguel: "as pessoas morrem e vão para uma casa

de ouro no céu"

Figura 12 – Davi: “no céu tem casas que não

caem porque estão em cima de pedras

amarradas com cordas de ferro”

Figura 13 - Isadora: “vou pôr essa cartinha no

caixão dela, depois Deus abre e leva pro céu”

64

Figura 14 - Pedro: “o corpo dela está na quadra, mas o espírito no

céu”

Figura 15 - Gabriel: “a vovó fica enterrada, mas

como que vai pro céu? Acho que Deus faz um

caminho”

Figura 16 - Valentina: “ela mora no céu, mas ela não cai,

porque na verdade as estrelas, quando olha de perto, são

casas”

f

65

Outras respostas: “a avó tá no céu, em cima da nuvem, e por isso o avião não

pega ela”; “só Deus sabe dessas coisas, eu não”; “os mortos são invisíveis, mas

continuam sendo nossos avós”; “dá pra reviver quem morre, mas demora muito,

minha tia até hoje não voltou”; “não sei onde está meu avô que já morreu, acho que

ele está num caixão que tem na casa da minha avó e ela não me deixa abrir”;

“quando a gente morre, a gente volta. Minha avó morreu e voltou. Ela mora num

lugar bem longe de mim”;

Figura 17 - Alice: “eu não sei se isso era de verdade ou de mentira. Então

eu acho que ela podia ir pra uma caverna”

Figura 18 - Maria Alice: “fiz a vovó com elas, viva, na imaginação”

66

As oficinas com os 1° anos nos deram muito a pensar, tanto sobre as

questões formais da encenação, principalmente no que concerne aos limites dos

jogos que proporíamos para possibilitar essa experiência interativa e itinerante para

as crianças e também para os atores, quanto sobre como abordaríamos o tema e a

partir de quais perspectivas.

Figura 19 - Lucas: “ela está no campo de futebol da escola, não sei fazendo

o quê. Talvez deitada olhando pra cima. Ou dormindo. Dormindo pra

sempre. Ou morta”

Figura 20 - Sabrina: “ainda não descobrimos, vamos ter que ver mais uma

pista!”

67

As crianças apresentaram uma visão majoritariamente cristã do pós-morte, o

céu dominava a maioria das falas e dos desenhos. Por isso, e por entendermos que

a infância não pode ser vista apenas como um período mágico e lúdico, apartado da

realidade, e, ainda, que Teatro pode ser um lugar para se ver - e vivenciar -

assuntos da vida, desse primeiro contato com os alunos da EA-FEUSP nasceu o

desejo de, através da brincadeira de investigar a morte, transitar por outras visões

sobre o tema, em prol da diversidade de pensamento - algo muito ameaçado nos

últimos tempos.

5.4. Participação das crianças da EA-FEUSP no processo de criação:

oficinas com o 4° ano

Depois de nos aprofundarmos no tema e passarmos por alguns experimentos

cênicos, os quais não convêm aos limites deste trabalho pormenorizar, tínhamos

uma história mais ou menos estruturada, mas com algumas lacunas. E era chegada

a hora do nosso encontro com as crianças do 4° ano (entre 8 e 9 anos) do Ensino

Fundamental I da Escola de Aplicação.

Sabíamos que nossa história incluiria diferentes visões do pós-morte – e aqui

é preciso frisar que não nos interessava defender qualquer perspectiva ou

hierarquizá-las, nem mesmo esgotar o assunto abarcando todas elas, mas, pelo

contrário, trabalhar na chave da defesa da diversidade, tendo essas

doutrinas/crenças como uma referência não necessariamente explícita.

Para tanto, dividimos essas perspectivas em dois grupos: o grupo dos que

acreditam que a morte é o fim completo e não existe nada depois dela, no qual se

incluem os materialistas, fisicalistas, positivistas, ateus, agnósticos, céticos, e

filósofos como Epicuro e Nietzsche; e o grupo dos que acreditam que a morte não é

o fim, existindo uma essência/alma que permanece, como pensam Sócrates,

Platão31, Schopenhauer, os que crêem no céu e na ressurreição - como católicos,

islâmicos, judeus e protestantes -, e os que confiam na reencarnação - como as

tradições panteísta, animista, hinduísta, budista32, e as religiões espírita, candomblé,

31

Ver: Diálogos: Fédon. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Versão para eBook. Fonte Digital disponível em <https://portalconservador.com/livros/Platao-Fedon.pdf> Acesso em 22/09/2019. 32

Ver: Livro Tibetano dos Mortos ou Bardo Thodol. Versão para eBook. Fonte Digital disponível em <https://mundocogumelo.blog.br/download/o-livro-tibetano-dos-mortos-download/> Acesso em 22/09/2019.

68

umbanda etc. Também tínhamos vontade de incluir as mitologias grega e egípcia33 e

suas descrições do reino dos mortos e do julgamento final.

Pensando nisso, estruturamos nossa pesquisa sobre o tema numa narrativa

básica que seria contada às crianças do 4° ano da EA-FEUSP, retomando a esfera

do Jogo das Ideias, como proposto por Peter Slade no Jogo Dramático Infantil

(1978). Aos pequenos caberia completar as lacunas, considerando que “por estarem

sugerindo as idéias que levam à história, as crianças já estão participando de uma

parte da criação” (ibidem, p.41).

Segue abaixo um exemplo de Slade:

Exemplo 4

Eu: (esfregando suavemente dois pedaços de papel-lixa): "O que é que este

som lembra a vocês?"

Criança: "Gato arranhando."

Eu: (tocando tambor com um bastão): "E este?"

Criança: "Homem correndo."

Eu: (batendo os pés sobre um "praticável"): "E isto?"

Nenhuma resposta.

Eu: "Bem, isso me lembra de ... vamos ver ... uma porta batendo?"

Criança: "Sim."

Outra: "Ou um pneu estourando."

Eu: (encantado): "Sim! Agora vamos fazer uma história com essas idéias."

"Um homem estava caminhando por um corredor numa casa muito grande,

quando de repente ele ouviu um barulho estranho. Ele pensou que podiam

ser ladrões e começou a correr. Mas quando chegou ao fim do corredor, ele

descobriu que era só o seu gato arranhando a porta de um quarto, porque

tinha ficado trancado do lado de fora. Então, o homem abriu a porta, o gato

passou correndo, pulou na janela e saltou para fora. O homem correu atrás

do gato para ver o que tinha acontecido, mas justo naquela hora ouviu-se

um grande barulho, bang! A porta do quarto tinha se fechado de novo, com

o vento. Mas uma outra coisa aconteceu também: o gato tinha pulado bem

em cima do teto de um carro estacionado ao lado da casa, e sabem, as

unhas do gato estavam tão assanhadas e prontas para pegar alguma coisa,

que elas atravessaram o pneu de reserva que estava sobre o teto do carro

quando ele caiu em cima dele, e o pneu ficou mais chato do que um peixe."

A história ia então ser representada. "Nós gostaríamos de ser . . ." etc. Eu

acompanhava a representação com sons, por exemplo, o tambor para o

homem correndo . O carro era feito por várias pessoas e sem dúvida

afundaria se o gato saltasse de uma cadeira para cair em cima dele.

Algumas crianças eram o vento, outras eram móveis no corredor, duas ou

33

Ver: O livro egípcio do morto. Tradução de E.A. Wallis Budge. Versão para eBook. Disponível em <http://www.historia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/fontes%20historicas/livro_egipcio_dos_mortos.pdf> Acesso em 22/09/2019.

69

três eram a porta. Podia haver muitos carros, muitos homens, mas pouco a

pouco essas tentativas iam ficando cada vez mais parecidas com uma peça

de papéis distribuídos, à medida em que as crianças se aproximavam dos

seis e sete anos.

Nota. - "Bem, vamos fazer uma história..." Estamos fazendo isso todos

juntos. Não sou apenas eu contando uma história. Mais tarde, elas poderão

participar da criação mais completamente ainda. Por exemplo, uma das

idéias pode ficar de fora, ou você pode parar de repente e dizer algo como:

"E o que vocês acham que aconteceu então?" ou "Quem é que vocês

pensam que eles viram andando pela rua?" Tais oportunidades para entrar

e participar são prontamente aceitas pelas crianças após apenas um pouco

de experiência nesse trabalho (1978, p.42)

Elaboramos um exercício semelhante ao exemplificado acima, mas um pouco

mais fechado à criação das crianças, pois já tínhamos uma estrutura básica

programada, e porque optamos pela não obrigatoriedade de dramatizar a história –

deixamos esse ponto em aberto para desenvolvermos caso acontecesse de

naturalmente as crianças se envolverem com a história desta maneira.

Realizamos a oficina com as duas turmas do 4° ano da EA-FEUSP. Cada

turma, de 30 alunos, foi dividida em dois grupos e a história foi recriada com os

grupos simultaneamente, mas em salas separadas. Curioso é que em dois grupos

essa etapa de representar a história não aconteceu e nos outros dois ela se deu ao

final do exercício, como uma ferramenta para atrair de volta a atenção das crianças

à proposta.

Depois de concluída a narrativa, elas foram convidadas a desenhar os

espaços e personagens que surgiram num craft coletivo, dividido por

áreas/ambientes. O objetivo desta oficina era entender – através das falas e dos

desenhos - como as crianças imaginavam os lugares e as personagens que

havíamos escolhido inserir na história. Nossa intenção era conceber a encenação de

modo que as propostas das crianças fossem materializadas nos elementos da cena,

como cenário, figurino, iluminação etc.

A primeira versão da história, que serviria de estrutura para a oficina, incluía

experimentações e estudos que tínhamos realizado até o momento, muitos dos

quais abandonamos ou modificamos durante o processo. A saber:

era uma vez uma menina cuja avó morreu. Ela estava triste e insatisfeita com as explicações que os

adultos lhe davam sobre o acontecido, até que encontrou um fio ao lado da poltrona de sua avó e

saiu seguindo-o. Chegou ao cemitério. Lá tinha “alguém” que carregava um violão e um chapéu de

70

moedas. Eles conversaram e ele disse à menina que depois da morte não havia nada. Ela encontrou

no túmulo da avó um raminho dourado e uma placa onde estava escrito “o céu é o limite pra quem

acredita e nunca desiste”. Os dois viajaram até o céu; lá encontraram com um “ser” que lhes explicou

que quando as pessoas morrem suas almas ficam aguardando o dia do Juízo Final e só depois desse

dia é que vão para o céu (ainda não tínhamos certeza se mencionaríamos o inferno, deixamos para

decidir de acordo com o andamento de cada grupo). O “ser” levou a menina e a pessoa de volta para

a Terra e quando lá chegaram viram um caminho iluminado que dava numa floresta. Nessa floresta

havia um “ser” que lhes contou sobre os espíritos e como eles passam a viver como natureza ou

como animais ou como outras pessoas depois que morrem. Falou também da existência do mundo

dos mortos do outro lado do rio. O “ser” da floresta ensinou para a menina e a pessoa do cemitério

um ritmo mágico que poderia ajudá-los em caso de perigo durante a travessia e os levou até o rio. No

rio havia um barqueiro assustador que só atravessava quem tivesse uma moeda de ouro, mas se o

interessado em atravessar estivesse vivo, deveria ter um ramo dourado de acácia. O chapéu de

moedas e o ramo que a menina havia encontrado no túmulo da avó serviram perfeitamente e eles

embarcaram. Um pouco depois, o barco atolou na lama e a menina foi levada para dentro de uma

caverna onde morava um pássaro amedrontador. O pássaro arrancou uma de suas penas, colocou

num prato de uma balança e disse que pesaria o coração da menina no outro prato; se ele fosse mais

leve que a pena, ela poderia ir, do contrário, ficaria aprisionada. A menina tentou ganhar tempo

enganando o pássaro até que escutou seus companheiros reproduzindo aquele ritmo que tinham

aprendido. Ela começou a acompanhá-los e o pássaro dormiu. A menina pegou a pena que estava na

balança e correu pra fora da caverna. A pena era mágica e realizava qualquer desejo; a menina,

então, desejou que todos voltassem para casa em segurança. Quando abriu os olhos, ela já estava

em sua casa e ao seu lado havia uma mala. Dentro da mala havia novelo de lã, sementes da

coragem e outras coisas mais, além de um bilhete de sua avó dizendo para a neta nunca deixar de ir

atrás do que ela acredita.

Apesar de não ter sido um exercício completamente aberto, a ideia de que as

crianças contribuiriam para a criação de uma história que seria transformada num

espetáculo ao qual elas assistiriam as deixou muitíssimo entusiasmadas.

Os alunos tiveram um espaço maior para contribuir com a definição e

caracterização de algumas das personagens, aquelas nomeadas apenas de “seres”

ou “alguém”; com a descrição dos lugares; com idéias sobre o que acontecia entre

um e outro ambientes; e com a criação de eventos mágicos em determinados

momentos da narrativa. Nos 4 grupos em que apresentamos o jogo, vimos surgir

propostas das mais criativas, algumas delas descritas logo abaixo, reunidas na

ordem em que a história foi apresentada.

Segundo as crianças, o cemitério era cheio de túmulos, fantasmas, caixões

com vários formatos e tamanhos, sangue, zumbis; era escuro, tinha flores de

mentira, caveira, casa de túmulos para o velório, fumaça, múmia, cheiro de morto,

de podre, de cinzas, de coisa passada da validade; tinha neblina e vapores; velas

pretas, almas penadas voando, árvores secas com rostos.

O “alguém” do cemitério usava terno, bengala, colar de ouro e bigode; usava

bota de ouro, e tinha o corpo transparente; a pessoa do cemitério era o avô, ou a

71

Morte que só leva a pessoa e não mata, ou uma alma penada ou o homem de uma

banda só.

Vão ao céu de avião, depois sobem mais um pouco de foguete e depois

pegam um elevador gigante; vaga-lumes os levam ao céu; a menina voa com a

Morte que sabia voar; vão num avião e chegando lá quebram suas janelas e ele

forma um chão para pisarem; ou caem num buraco que ao invés de ir para o centro

da terra vai para o céu. Vão para o céu porque morrem suicidando-se ou com tiros.

O céu era azul amarelo e branco com vários anjos e uma porta onde estava

escrito “aqui mora Deus”; no céu tem pessoas falecidas, invisíveis, pessoas com

roupas de grego, pessoas quase virando pó; tem tigres com asas, Power Rangers,

Jesus e anjos; lá estava Deus, Adão e Eva, Buda, Gabriel, 666 agentes secretos do

céu, Deus e o Capeta tomando um chá. No céu tem ruas de ouro, um lago lindo,

uma porta aberta que desce pro inferno, ou uma nuvem com duas portas - uma pro

céu e outra pro inferno – e unicórnios. O “ser do céu” usava uma capa de chuva

verde com bolinhas rosa, e atrás dele havia 2 seguranças-anjos que usavam ternos.

Para ir embora do céu, pularam num lago guiados por anjos e voltaram pra

Terra; caíram num rio de açaí com paçoca que levava pra uma casa de batata frita.

O caminho pra floresta é feito de glitter e cogumelos luminosos; a floresta é feita de

doces, com marshmellows e árvores com maçãs de ouro; na floresta há seres

mágicos, um grifo de 4 cabeças, Cérbero, Dumbo, dinossauros e o “ser da floresta”

é a mistura de todos esses seres. O “ser da floresta” tem 8 braços e força para jogar

alguém pra fora do planeta; é meio animal, algo como um unicórnio misturado com

gato – um “unigato”; o ser da floresta é um moço-pato. Todos os seres da floresta e

do rio eram feitos de doces.

O rio é de groselha e o barqueiro era um pirata feito de doces; era um rio

encapetado, de lava; rio invertido dentro de uma garrafa, com peixes amarelo 50% e

tubarão de esqueleto de sangue, nas margens há rochas com esqueletos e um

corredor de ossos. O barqueiro podia ser uma bruxa com barba. O barco era um

Titanic com vários quartos.

O pássaro é uma fênix com asas de cores quentes e bico de sorvete; fênix de

lava de vulcão. Na mala tinha cinzas da avó, pelos de “unigato”, chifre de “unigato”,

pó do chifre do unicórnio, pó da ferrugem da balança, pena de anjo; lenço dourado,

anel e a avó dela.

72

Figura 21 - crianças do 4° ano desenhando a história no craft coletivo

Figura 22 - cemitério desenhado pelas crianças do

4° ano da EA-FEUSP

Figura 23 – céu desenhado pelas crianças do 4° ano da EA-

FEUSP

73

Figura 24 – inferno desenhado pelas crianças do 4° ano da

EA-FEUSP

Figura 25 – floresta desenhada pelas crianças do 4° ano da EA-FEUSP

Figura 26 – floresta 2 desenhada pelas crianças do 4° ano

da EA-FEUSP

74

Figura 27 – floresta/mundo de doce desenhada pelas crianças do 4°

ano da EA-FEUSP

Figura 28 – rio na garrafa desenhado pelas crianças do 4° ano da EA-FEUSP

Figura 29 – rio de açaí e lava desenhado pelas crianças do 4° ano da EA-FEUSP

75

Figura 30 – caverna da fênix desenhada pelas crianças do 4°

ano da EA-FEUSP

Figura 31 – terra dos mortos e caverna desenhados pelas crianças do 4° ano da EA-FEUSP

76

Como foi dito, o propósito dessa oficina era coletar as idéias das crianças e

concretizá-las materialmente na encenação. Porém, esse objetivo não se completou,

o que parece ter relação tanto com a falta de recursos financeiros (adoraríamos ter

feito um rio de açaí invertido dento de uma garrafa, por exemplo, ou uma floresta de

doce que pudesse ser comida a cada apresentação – como fez Chiara Guidi em

Hansel e Gretel), quanto com determinadas alterações que fizemos na história ao

longo do processo.

Isso gerou certa frustração nas crianças e em nós; nelas porque não

conseguiram reconhecer suas contribuições quando foram assistir ao espetáculo e

em nós porque vimos reveladas, com esta situação, várias limitações – as de ordem

material, que restringiram nosso trabalho com estímulos sensoriais (como neblina e

cheiro de enxofre no cemitério ou cenário comestível); e as relativas à participação

efetiva das crianças no processo: elas davam as ideias, mas, no fim, quem fazia as

escolhas éramos nós, adultos, o que pareceu no mínimo contraditório.

Do que foi trazido pelas crianças nesta oficina com o 4° ano, mantivemos

mais diretamente no espetáculo: a substituição do músico (inicialmente concebido

como um bardo) que estava no cemitério pelo avô da protagonista, a ideia de um

“ser da floresta” meio animalizado, e a presença de um anjo-demônio e um céu-

inferno – nosso preconceito adulto, talvez resultante da crença na “mentalidade

infantil” (arraigada no nosso inconsciente), fez com que ficássemos em dúvida sobre

mencionar ou não o inferno; preconceito este inteiramente revelado pelas crianças

que, por si mesmas, mencionavam o inferno e o capeta tanto quanto Deus e o céu.

Aproveitamos os desenhos dos alunos para produzir um vídeo animado em

stop-motion com o trajeto do cemitério para o céu, o qual é exibido durante o

espetáculo para a platéia adulta; e o mapa com o caminho do céu até a floresta,

percorrido pelos pequenos numa cena da peça.

A estrutura da encenação e a escolha de como conduzir a temática são frutos

das oficinas com o 1° ano, nas quais pudemos experimentar a ideia, mantida até a

finalização do espetáculo, do percurso itinerante e interativo a ser percorrido pela

protagonista em conjunto com as crianças da platéia, que embarcam numa aventura

atrás de pistas para descobrir para onde foi a avó depois de falecida.

Unindo tudo o que conseguimos trabalhar nesta fase de oficinas, definimos

quais seriam as personagens da história e quais perspectivas sobre o pós-morte

elas representariam, bem como por quais ambientes transitariam e como

77

gostaríamos que eles fossem materializados no cenário, nos figurinos e na

iluminação.

Tina, a menina, começaria a história na poltrona de sua avó; seu avô, no

cemitério, representando a crença na morte como o fim da existência; o ser

iluminado - espécie de guardião das almas com duas faces, duas personagens

interpretadas pelo mesmo ator - ficaria num espaço intermediário entre céu e inferno

cantando para as almas descansarem em sono profundo até o dia do Juízo Final,

quando são julgadas e direcionadas aos locais de merecimento; Vivaz, o ser da

floresta - um pouco planta, um pouco bicho, um pouco folclórico, como as dríades e

o curupira - ficaria numa área externa do teatro, um espaço com árvores e grama; e,

por fim, Caronte de Aqueronte, o barqueiro do Hades, responsável por atravessar as

almas até o Mundo dos Mortos com sua barca. A fênix, cuja pena mágica é capaz de

realizar qualquer desejo, seria um boneco numa cena com sombras.

5.5. Abertura de processo: um presente

Terminada essa etapa dos encontros realizados na Escola de Aplicação,

começaríamos a lapidar a dramaturgia e a conceber a encenação para, dentro de

algumas semanas, receber as crianças no Departamento de Artes Cênicas da

ECA/USP – o 1° ano viria até nós para participar de aberturas de processo: nossas

primeiras experimentações do espetáculo em construção com público (sem recursos

de iluminação, com figurinos e cenário improvisados).

As aberturas seriam duas, uma seguida da outra, com 30 crianças em cada

uma delas. Na semana seguinte, acompanharíamos a atividade de mediação pós-

espetáculo a ser realizada pela professora de música Maria Cláudia Robazzi e pelos

bolsistas da EA-FEUSP com as crianças que participaram da abertura.

Depois disso, apresentaríamos o espetáculo finalizado em duas sessões

exclusivas para as crianças do 4° ano da EA-FEUSP, nesse mesmo esquema de

grupos de 30, e, por último, abriríamos as apresentações ao público geral.

Vale explicitar, já aqui, a maior dificuldade deste processo: conceber um

espetáculo que depende completamente da participação das crianças sem tê-las por

perto durante o desenvolvimento do trabalho. Descobrimos, com as aberturas, que

ensaiar as cenas como se as crianças estivessem presentes ou com adultos agindo

78

como se fossem as crianças - e trazendo toda sorte de estereótipos e preconceitos

sobre o comportamento delas - era mesmo infrutífero, para não dizer ilusório.

Curioso notar que numa das experimentações em que adultos fizeram as

vezes das crianças, houve a impressão de que a proposta estava muito sombria,

densa, pesada (termos empregados por eles) por trazer elementos materiais como o

caixão, por exemplo. Acredito que isso tenha relação direta com o predomínio da

racionalidade na experiência do adulto – a razão movimenta sua bagagem de

vivências (provavelmente sofridas) com a morte e imprime o tom sombrio em sua

percepção da proposta. Afinal, a cena do velório era a que menos parecia envolver

emocionalmente as crianças, que, inclusive, ficavam muito mais curiosas do que

sensibilizadas com a presença do caixão.

No início do processo, devido às referências estéticas e teóricas que

fundamentavam nossa pesquisa – a relembrar: o teatro infantil do Grupo XIX, o

teatro da Societas Raffaello Sanzio para a infância e as considerações de Benjamin,

Merleau-Ponty, Manuel Sarmento, Marina M. Machado e Bruno Bettelheim sobre a

criança - havíamos decidido que encenaríamos uma “história maravilhosa”

(dramaturgia com características do conto maravilhoso) e que reservaríamos lugares

distintos para cada grupo de espectadores, as crianças e os adultos.

Às crianças seria oferecida a vivência direta da cena, através de um percurso

interativo e itinerante pelo palco e também por espaços alternativos (como a área

externa que compunha a floresta) – o que significa dizer que elas seriam convidadas

a participar do espetáculo enquanto “personagens”, ou parceiras de jogo dos atores:

os amigos da menina que a ajudam a desvendar o mistério da morte e descobrir

para onde foi sua avó.

A vivência do espetáculo nos parecia plena de potencialidades para

possibilitar experiências por ser uma forma de manter as crianças sempre no campo

da experimentação, instaurando jogos e desafios a serem cumpridos em conjunto

por elas e priorizando a construção de um caminho próprio e pessoal de elaboração

de sentidos de acordo com a percepção de cada um, que não se dá exclusivamente

por vias racionais e lógicas.

Aos adultos estaria reservado o espaço de espectador distanciado, que

assiste ao espetáculo de longe, sentado em sua poltrona, e, por vezes, com a

mediação de recursos tecnológicos – as cenas externas, como a da floresta, foram

gravadas ao vivo e transmitidas num telão.

79

Nossa intenção era trabalhar com tecidos que delimitariam os ambientes

formando corredores paralelos um ao outro, e, de acordo com a iluminação,

revelariam ou esconderiam os lugares, fazendo com que as crianças não

enxergassem os adultos sentados na platéia do outro lado do palco e mostrando a

eles um ambiente por vez. Entretanto, devido à impossibilidade de se fazer testes -

pois este trabalho estava sendo desenvolvido no teatro da Universidade, durante a

graduação, sob as regras do Departamento de Artes Cênicas, com as limitações

financeiras de um grupo iniciante formado por estudantes - não foi possível

concretizar esse plano.

O dia das aberturas foi a única oportunidade que tivemos de testar um tecido,

mas como a iluminação era muito precária, não foi uma tentativa bem sucedida. Por

isso, optamos por usar nas apresentações finais divisórias de tule preto, que não

ficavam visíveis à platéia adulta, e, ao mesmo tempo, limitavam os espaços de cada

cena, para que as crianças não os ultrapassassem. Com os recursos disponíveis, o

máximo que conseguimos foi que os ambientes não ficassem completamente à

mostra, nem completamente escondidos.

Era muito interessante quando algumas crianças descobriam a possibilidade

de levantar o tecido e espiar por debaixo dele – essa espontaneidade, esse escapar

da ficção, ressaltava a preciosidade da presença da criança na cena.

Entre as apresentações exclusivas para a Escola de Aplicação – tanto as

aberturas como as apresentações finais – e as apresentações abertas ao público,

houve diferenças consideráveis. Isto porque com a EA-FEUSP lidávamos com 30

crianças da mesma idade de uma só vez (entre 6 e 7 anos na abertura, e entre 8 e 9

anos nas apresentações finais), que tinham intimidade umas com as outras e que

estavam acompanhadas dos professores; nas apresentações abertas ao público, o

número máximo de crianças chegou a 15, com idades bem diferentes, que, em

geral, não se conheciam e estavam acompanhadas dos pais ou responsáveis.

Outro ponto relevante a ser mencionado é: as crianças do 1º ano da escola

fizeram o percurso pelo palco acompanhadas de bolsistas ou professores, além dos

staff da nossa equipe (que cuidavam das questões de segurança e acolhiam quem

porventura quisesse sair do palco), enquanto as crianças do público aberto foram

somente com nossa equipe.

Como ainda estávamos amadurecendo a ideia do espetáculo, sugerimos que

os menores fossem acompanhados; entretanto, isso gerava para a platéia que

80

assistia uma evidenciação do exercício de poder que o adulto exerce sobre a

criança, pelas indicações de silêncio, “psius”, orientações sobre onde sentar e o que

fazer - justamente o que queríamos extirpar da experiência. A presença das crianças

nos revelou como é delicado fazer teatro para elas assistirem brincando a seu modo,

mas ser o adulto que, em última instância, “precisa” controlá-las, ainda que seja para

não deixá-las tocar em algo perigoso, por exemplo.

Nossa intenção era abrir um espaço de jogo para que a criança pudesse

exercer livremente seus modos de ser e estar e atentar-se ao que melhor lhe

aprouvesse, já que sua capacidade plástica “lhe possibilita concentrar-se e

encontrar-se simultaneamente em diferentes ações, algo que o adulto muitas vezes

lê noutra chave, como desatenção e imaturidade” (Machado, 2011a).

De fato, muitos adultos que assistiram às aberturas e às apresentações

exclusivas para o 4º ano da EA-FEUSP, nas quais contávamos com a presença de

várias crianças ao mesmo tempo, comentaram que sentiam necessidade de mais

ordenação delas dentro das cenas, pois, segundo eles, quando estavam mais livres,

ficavam mais dispersas - e essa dispersão era incômoda. Parece mesmo que o

adulto necessita de certa ordenação (ou de sentir-se no controle) para atentar-se

mais à riqueza da presença da criança na cena que à dispersão dela - se é que se

trata de fato de dispersão, como problematiza Machado.

Somente com as aberturas é que passamos a ter mais noção das dificuldades

às quais estávamos nos submetendo: manter o jogo com os pequenos em cena e,

ainda, considerar a presença dos adultos na platéia - os quais muitas vezes

pareciam apenas estar assistindo às crianças brincarem. Percebemos também que

seria necessário eliminar do texto as piscadelas para o adulto (piadas explicitamente

direcionadas a ele), que acabavam por reforçar a desigualdade de poder entre as

gerações, e rever o final abrupto e incerto do espetáculo.

Abro parênteses aqui para mencionar que, depois da abertura, o grupo,

especialmente os atores - que eram poucos, tendo em vista o grande número de

crianças: apenas 5 (e que não ficavam em cena o tempo todo) para jogar com 30

crianças de uma vez - ficou, de certo modo, desanimado com as dificuldades em

encontrar os espaços para dar voz a elas e não ignorá-las, mas também seguir com

a história incluindo suas contribuições na narrativa sem ficar reféns dessa interação.

Essa sensação de descontrole levou-me, do meu lugar de encenadora –

alguém que olha de fora, portanto - à seguinte reflexão:

81

De como foi abrir nosso processo

Bem no início do processo, quando mesmo pouco nos conhecendo ainda tivemos a

disposição de nos juntar para realizar nossas Histórias de depois do fim, falávamos sobre a delicada

relação adulto-criança. Discutíamos sobre como é desigual essa relação e sobre como nós,

emissores adultos, poderíamos nos aproximar das crianças para produzir uma obra que conversasse

com todos os seus sentidos, que tocasse a inteireza de seu ser para dar-lhe a possibilidade de outra

experiência com o Teatro, uma vivência mais direta, que dissolvesse as paredes palco-plateia e a

diferenciação teatro adulto - teatro infantil. Nos demos, então, muitas tarefas.

Queremos um espetáculo que proporcione à criança uma vivência, mas que, ao mesmo

tempo, tenha camadas envolventes para o público adulto. Mais provável que seja itinerante,

interativo, relacional. Seria bom que a criança pudesse agir na cena, que ela fosse essencial para o

desenrolar da história e não estivesse somente assistindo de um lugar diferenciado. Vamos falar de

morte, de suas perspectivas religiosas, filosóficas e culturais. Estamos em defesa da diversidade.

Pensamos em respeitar o tempo da criança e sua forma peculiar de interagir com o espetáculo, mas

tudo isso tem que caber em 60 minutos, mil reais de rifa, 3 meses de processo. Ufa!

Será que fomos ingênuos? Talvez tenhamos sido corajosos. Escolhemos usar nosso tempo e

nossa energia para conceber, coletivamente, um bom espetáculo porque é isso que gostamos de

fazer da vida, não é? Com isso, pergunto: naquele dia de abertura, quando depois de todo nosso

rápido e intenso percurso criativo enfim recebemos os protagonistas desse espetáculo - as crianças -

conseguimos encontrar sentido no que estávamos realizando? Experimentamos, naquele dia, prazer

suficiente para continuarmos engajados neste projeto? Estamos mais perto do nosso objetivo ou

acabamos nos perdendo dele?

Assistir ao que concebemos juntos e ver todas aquelas crianças sendo tão elas - curiosas,

afobadas, espertalhonas, participativas, mandonas, atrevidas, correndo pra lá, gritando pra cá, com

medo, com carinho, sem paciência e sem silêncio, mas jogando junto e vivendo a história, foi uma

experiência muito gratificante. Penso que conseguimos deixar algumas marcas no dia daquelas

crianças. Será que permitimos que a presença delas também nos afetasse?

Quanto ao nosso trabalho futuro, ainda que tenhamos questões complexas a repensar –

como deixar tudo mais interessante para o público adulto? Como colocar limites à participação das

crianças? Como reduzir o tempo sem perder o conteúdo? Como trabalhar a presença dos atores?

Como elaborar um final mais significativo? - ainda que tenhamos tudo isso para resolver, juntos nós

conseguimos em pouco tempo chegar até aqui. E isso já é bastante. Resta entender se, para o grupo,

ainda parece possível fazer do nosso ofício uma oportunidade de gerar experiências... (maio, 2019)

Parênteses fechado, é preciso agora relatar que na semana seguinte às

aberturas, um pouco depois desse momento desesperador, fomos assistir às

mediações pós-espetáculo na EA-FEUSP. A atividade proposta às crianças consistia

na confecção de um livrinho da história do espetáculo (em processo), do qual elas

tinham participado. Para isso, foram distribuídas tirinhas de papel dobradas em 6

partes, nas quais elas deveriam desenhar as etapas da história, que relembravam

com a ajuda umas das outras e por meio de poucas perguntas feitas pelos

mediadores.

Esse exercício de mediação foi muito surpreendente e teve uma importância

significativa nas reformulações da encenação. Ainda que a recepção seja um

fenômeno bastante variável, pois algumas crianças recordam-se de mínimos

82

detalhes e outras de muito pouco, os acontecimentos fundamentais e as principais

imagens da história, aos poucos, iam sendo recuperados. Coletivamente o grupo

reconstituiu toda a vivência, mesmo passados alguns dias desde que estiveram no

espetáculo.

No começo da história, disse uma criança, “a prô estava sentada na poltrona

e a menina ficou brava porque era da vó dela que morreu”. “A menina tava meio

ahhh porque não sabia se a vó morreu mesmo”. Todos se lembravam de ter comido

sementes da coragem e seguido um fio por causa de uma mensagem que a avó

deixou dizendo “siga a corda”. Uns disseram que “os adultos estavam no funeral da

avó, onde não podia ir criança”.

Se elas ficaram em dúvida sobre o outro lugar – era um cemitério ou a casa

do avô? – e sobre o que o avô disse - talvez tenha dito que “a avó estava dentro da

cabeça da menina” -, tiveram certeza de que cantaram uma música do sabiá e da

caixa de presente e de comer algodão doce e de passar pelo túnel que dava num

lugar onde tinha almofadas e estrelas.

Esse lugar “devia de ser o céu, porque lá tinha almas dormindo muito dentro

das almofadas” ou “uma almofada com cada pessoa”. Nesse lugar havia um cara,

uns disseram Deus, padre ou “um anjo que tirava a máscara e virava um monstro”, o

Cabra-cabrês, “um demônio muito assustador quando tirava o capuz”; “alguém que

era bom e mau, e quando virava mau dava uma risada” ou “quando estava em pé

parecia bonzinho e quando estava agachado ficava mau”.

Lembravam que ele disse “alguma coisa que a avó ia para o céu ou para o

inferno” e que perguntou se sabiam alguma canção de ninar. Cantaram duas. Ele

tinha um mapa que mostrava que “pra cair do céu tinha que fazer chuva” e tornado.

E sabiam como fazia a chuva, até mostraram.

Na floresta ou na mata tinha grama, árvore e flores; “lá morava uma pessoa

que chamava Viva”, ou um bicho, ou mulher-planta, ou uma árvore-falante.

Recordaram-se de que arrancaram os girassóis da floresta e ela ficou triste. Depois

voltaram pro palco onde tinha um rio e um cara que as assustava. Ele não deixou

que todos entrassem no barco porque pra todos entrarem “precisava de 22 plantas

douradas, mas só tinha uma”.

Depois, tinha a caverna da fênix e a menina pegava a pena mágica... “Ela

nunca acha a avó, e não acha até o fim porque ela morreu”. No fim, ela “pediu que

todo mundo teve coragem pra essa aventura”, “desejou encontrar a vó dela”, “pediu

83

coragem pra a vó dela aparecer”, “pediu que sempre ela conseguisse falar com a vó

dela”, “desejou que a avó estivesse sempre com ela”.

“Estamos com saudades da Tina, manda um beijo pra ela.”

Participar dessa rememoração das crianças foi um presente: a confirmação

de que a potência do nosso trabalho era mesmo a interatividade. O que marcava

aquelas crianças pequenas, de 6 ou 7 anos, e era consideravelmente mais

mencionado, estava dentro do que foi nomeado no início deste trabalho como

vivência - comer as sementes da coragem, seguir o fio, dividir um algodão doce,

atravessar um túnel, cantar uma canção de ninar, fazer chover, caminhar pela

floresta, sentir medo, assustar-se, enfim, tudo aquilo que elas experimentavam com

o corpo todo.

Volto a pensar como era imprescindível para que a ideia deste espetáculo se

completasse termos conseguido desenvolver o trabalho com estímulos sensoriais,

como com cheiros, por exemplo, e explorar mais a esfera do obscuro/assustador

associada a eventos mágicos (o encantamento acabou quase que reduzido às

personagens extra-cotidianas/fantásticas e à pena mágica).

Se a temática da morte é mencionada mais porque a avó morre e não volta e

muito menos pelo quê disse cada personagem e em quê consistem as diferentes

concepções do pós-morte, isso pouco importa, afinal, estamos conversando, neste

momento, com crianças de 6 e 7 anos. O objetivo não era, portanto, provocar uma

reflexão sobre a diversidade de olhares para o tema – como pretensamente

esperaríamos do público adulto - mas promover uma experiência vivencial

significativa.

Nosso presente foi ver que algumas das crianças ou já se desenhavam na

história juntamente com as personagens ou perguntavam se podiam fazê-lo, afinal,

também eram parte da história: “a menina precisava de nós, nós que ajudamos ela a

achar a vó dela”. Despertar esse sentimento de pertencer ao acontecimento teatral –

que presenciei meu filho pequeno experimentar pela primeira vez quando caminhava

pelo bosque imaginário de Hoje o Escuro vai atrasar para que possamos conversar,

do Grupo XIX de Teatro -, mesmo com toda a precariedade de uma abertura de

processo, era o que mais desejávamos com o trabalho.

Estávamos no caminho certo, portanto. Graças a este exercício de mediação,

retomamos o fôlego e identificamos caminhos a seguir: valorizar ações, gestos e

imagens em detrimento do texto e caprichar na concretude das proposições,

84

investindo em elementos de cena (cenografia, figurino, iluminação) que não fossem

“dados”, mas, sim, fomentassem a imaginação dos pequenos-espectadores.

Figura 33 – livrinho da história confeccionado por Yasmin, aluna do 1° ano da EA-FEUSP

Figura 32 – livrinho da história confeccionado por Matheus, aluno do 1° ano da EA-FEUSP

Figura 34 – livrinho da história confeccionado por Benjamin, aluno do 1° ano da EA-FEUSP

\

85

5.6. A encenação

Daqui em diante, seguiremos com a análise da encenação34 de Histórias de

depois do fim, que sucederá numa comparação constante entre abertura de

processo, apresentação exclusiva para as crianças da EA-FEUSP e apresentações

abertas ao público. Manteremos o foco nas relações de troca que realizamos com as

crianças, já que nos interessa discorrer sobre a relevância da presença delas, desde

as oficinas até as apresentações finais, para a concepção do espetáculo. Para

elucidar as observações, serão inseridos fotografias e fragmentos da última versão

do texto dramatúrgico, o qual passou por diversas adaptações em função das

descobertas proporcionadas pelo jogo com as crianças.

Emprestamos de Chiara Guidi o procedimento de realizar um prólogo no início

dos espetáculos infantis (e também dos espetáculos que não são especificamente

destinados às crianças, mas serão assistidos por elas). O prólogo é uma espécie de

preparação “para a fruição tátil, sensível e perceptiva da obra” (Ferreira, 2016,

p.118); um rompimento que a criança precisa fazer com o mundo cotidiano para,

então, adentrar um novo mundo: o do espetáculo.

Nosso prólogo foi criado depois das aberturas, portanto, não tivemos chance

de experimentá-lo antes das apresentações finais. Nele, Frâncio (Nina Ricci) e Bário

(Thiago Cordero), dois cientistas um tanto atrapalhados, estão em busca de algumas

respostas que os ajudem a investigar um curioso tema: o fim.

BÁRIO: Para começar: quem poderia dar um

exemplo de algo que acaba?

[Respostas das crianças. Interações e anotações]

FRÂNCIO: E existe algo que nunca acaba?

[Respostas das crianças. Interações e anotações]

BÁRIO: Quem poderia me dizer o que vem depois

do fim?

[Respostas das crianças. Interações e anotações]

(Histórias de depois do fim, dramaturgia de

Murilo Franco)

34

“A. VEINSTEIN propõe duas definições de encenação, segundo o ponto de vista do grande público e aquele dos especialistas: „numa ampla acepção, o termo encenação designa o conjunto dos meios de interpretação cênica: cenário, iluminação, música e atuação [...]. Numa acepção estreita, o termo encenação designa a atividade que consiste no arranjo, num certo tempo e num certo espaço de atuação dos diferentes elementos de interpretação cênica de uma obra dramática‟”(Pavis, 2001 p.122).

Figura 35 – crianças do 4° ano da EA-FEUSP respondendo às perguntas dos cientistas Frâncio e Bário

86

Depois das respostas das crianças, era chegado o momento de realizar um

experimento científico: todos recebiam copinhos com flámen (água quente) e pins

(balinhas coloridas) - na fase 1 do experimento, a balinha posta na água a deixava

colorida; na fase 2, as crianças eram incentivadas a misturarem os conteúdos uns

com os outros, formando novas cores, fenômeno ao qual os cientistas reagiam

dizendo “será o fim do verde?”, “onde foi parar o azul que estava aqui?”, “pobre

vermelho, morreu, “veja, nasceu o azul!”

Com este prólogo, pretendíamos tanto promover aquele desligamento da

realidade quanto expandir nosso assunto, mas sobre esse segundo ponto ainda não

sabemos ao certo se fizemos escolhas efetivas. No final do prólogo, os cientistas

conduziam a platéia a outro local, ainda do lado de fora do teatro, onde começava a

narrativa propriamente dita.

A separação dos públicos adulto e infantil, que norteou os caminhos do

desenvolvimento da encenação, acontece logo no início da peça, durante uma cena

a que todos assistem juntos e na qual Tina (Maria Fernanda Machado) expõe sua

questão: “eu acho que minha avó morreu. Mas pra onde vai quem morre?!”.

Para a abertura de processo, tínhamos gravado áudios com frases que,

segundo nossas pesquisas, os adultos costumam dizer às crianças sobre o assunto.

Nossa intenção era reproduzir esse áudio antes da separação do público, para que a

menina Tina interagisse com ele. Essa interação se daria da seguinte maneira:

TINA: na verdade, o que eu acho que tá acontecendo é que minha Vó... ai,

péra, é que tem um monte de voz de adulto na minha cabeça. Por que

adulto mente?

Vozes de adultos diversas (a Tia, o Primo, o Vizinho, o Professor), de

diferentes idades, com diferentes abordagens para com a Menina.

VOZ DE ADULTO 1 : Ela dormiu para sempre.

VOZ DE ADULTO 2 : Ela acordou para a vida eterna.

TINA: a Vovó morreu?

VOZ DE ADULTO 3: Ela está fazendo uma longa viagem.

VOZ DE ADULTO 4: Ela descansou.

TINA: a Vovó morreu?

VOZ DE ADULTO 5: A Vovó foi para junto de Deus.

VOZ DE ADULTO 6: Só Deus sabe para onde a Vovó foi.

TINA: a Vovó morreu?!

VOZ DE ADULTO 7: Não pensa nisso.

VOZ DE ADULTO 8: pensa que ela virou uma estrela.

TINA: a vovó morreu.

VOZES DE ADULTOS: Não fica triste, não! Não chora!

(Histórias de depois do fim, dramaturgia de Murilo Franco)

87

Entretanto, o que de fato aconteceu nas aberturas foi que as crianças

sentiram-se convidadas a responder as perguntas que Tina fazia às vozes de

adultos e a consolar a menina, o que causava um alvoroço de interações com as

quais a atriz não conseguia estabelecer qualquer tipo de jogo. Isso configurava uma

interação ilusória: as crianças sentiam-se convidadas a responder, mas suas

respostas não eram acolhidas.

Considerando que as vozes dos adultos ou não eram ouvidas, ou não faziam

sentido, e ainda promoviam uma relação problemática para a atriz e um convite

ilusório à criança, transferimos os áudios para outro momento do espetáculo. Nas

apresentações finais, eles seriam reproduzidos somente para os adultos, dentro do

teatro.

É com um bilhete da avó que o jogo começa - e a ideia de as crianças serem

como detetives encontrando pistas advém das experiências na Escola de Aplicação.

Diz o bilhete:

Siga os fios

Desfaça os nós

Teça uma trama

Cultive os laços

(Histórias de depois do fim,

dramaturgia de Murilo Franco)

Nesse momento da cena, um parente enlutado (Camilo Schaden) vem avisar

aos adultos que é chegada a hora do enterro e os convida a entrar no teatro. Às

crianças é dito que fiquem onde estão, porque enterro não é lugar para elas. Sem

adultos por perto, os pequenos deixam de somente assistir e passam a participar da

aventura: comem “sementes da coragem”, (também presentes desde as primeiras

oficinas na EA-FEUSP), e são convidados a procurar o fio mencionado pela avó no

bilhete e segui-lo por um corredor que dá a volta no teatro.

Figura 36 – Tina lê o bilhete da avó para seus

amigos na abertura com o 1° ano da EA-FEUSP

88

O fio termina na porta dos fundos do palco, por onde as crianças entram e

chegam ao cemitério. É aí que o adulto, espectador-distanciado, deixa de estar tão

distante: ao perceber que são as crianças, com toda sua espontaneidade e suas

constantes transições entre fantasia e realidade, as principais performers do

espetáculo. A presença da criança, como nota Castellucci, “assume um papel

fundamental no que diz respeito ao questionamento de valores tácitos ligados ao

papel e ao lugar da criança na sociedade” (Ferreira, 2016, p.15).

Na abertura, o percurso dos pequenos seguindo o fio foi gravado e projetado

num telão para a plateia adulta, que já se encontrava dentro do teatro. Nas

apresentações finais, excluímos essa exibição, já que ela tinha o intuito apenas de

“tranqüilizar” os pais/responsáveis sobre o que faziam seus filhos do lado de fora do

teatro, e isso acabou se revelando como uma tentativa de governamento

(recuperando o termo de Foucault) sobre a criança, que de maneira alguma

gostaríamos de reforçar.

O fato de excluirmos esse momento parece também ter acrescido à cena o

fator surpresa gerado no adulto quando as crianças adentram o palco, e ampliado a

cumplicidade entre elas e a história – afinal, os adultos ficam sem saber dos

combinados que aconteceram na ausência deles ou de como as crianças chegaram

até ali.

Inicialmente pensávamos em cemitério e enterro. Tínhamos o desejo de

trabalhar com estímulos sensoriais, como com a manipulação da terra, por exemplo;

pois o tato, como observa Machado, é um sentido que configura extrema

importância na “maneira própria [da criança pequena] de ser e de conhecer a si

Figura 37 – Tina e seus amigos procurando o fio na apresentação

aberta ao público

89

mesmo, ao outro e ao mundo” (2007, p.55). “É certo que as crianças pequenas

olham com as mãos, pensam com seu corpo. Antes da constituição do pensamento

e da linguagem, lá está o corpo vivido” (Machado, 2007, p.56).

Entretanto, não conseguimos trazer o elemento terra para a cena, porque isso

configuraria mais dificuldades para pouco tempo e poucas oportunidades de

experimentação com crianças antes da finalização da peça. Por isso, abolimos a

ideia do enterro e investimos num velório ambientado cenograficamente de maneira

mais realista, por conter uma visão mais concreta sobre a morte, mas com a

sugestão de elementos fantásticos, como velas flutuantes.

Mudar o ambiente de enterro para velório também era uma tentativa de criar

outras camadas de participação para a platéia adulta, que não mais assistiria às

crianças seguindo o fio pelo vídeo. Na nova configuração, os adultos entram no

teatro, onde encontram servidos café e bolachas, e, no palco, uma pessoa ao lado

de um caixão; durante a entrada, recebem os agradecimentos do Enlutado pela

presença num momento tão delicado e, assim, passam a compor os convidados do

velório.

Instantes antes de as crianças surgirem no palco é reproduzido o áudio com

as explicações adultas dadas à Tina, aquele que removemos da primeira cena. A

intenção era dar aos adultos uma noção das motivações da personagem naquele

momento e, talvez, da importância de se conversar francamente com os pequenos

sobre a morte.

AVÔ: [indo até as crianças; espantado] Tina?

Quantos amigos! Ai que bom, o vovô ta

precisando tanto de um abraço de urso!

Venham cá! [depois do abraço, para as

crianças] como vocês chegaram até aqui?

[respostas das crianças] TINA: E o senhor, vovô? Tá fazendo o quê

aqui?

AVÔ: Tô me despedindo da vovó

TINA: [indo pra perto do caixão] Ela tá aqui?

(Histórias de depois do fim, dramaturgia de

Murilo Franco)

Figura 38 – entrada das crianças no velório na apresentação

aberta ao público

90

A trilha sonora do espetáculo é tocada ao vivo pelo sonoplasta, que também

atua interpretando o avô (José Pedro). Antes da abertura, a proposta era que

terminada a cena do velório, o ator não mais faria o papel do avô e, sim, o

acompanhamento musical das demais cenas. Entretanto, antes das aberturas não

tínhamos nos atentado ao fato de que seria imprescindível separar essas duas

figuras, descaracterizando o avô e colocando o sonoplasta em seu lugar de músico,

fora do palco. Essa falta de cuidado com as convenções fez com que as crianças

ficassem confusas e continuassem tratando o músico como avô, além de ter

empobrecido, em partes, a experiência da platéia adulta.

Nesta cena apresentamos a canção preferida da vovó, a “música do Sabiá”35

(composta pelo grupo), e todos - avô, Tina e até as crianças - cantam juntos; curioso

notar que várias pessoas nos perguntavam, depois do espetáculo, que música era

aquela que as crianças já sabiam cantar, entretanto, elas estavam acompanhando e

aprendendo no calor da hora, graças à sua capacidade de se entregar ao jogo.

Os eventos mágicos começam a acontecer depois que o avô dá a conhecer

seu entendimento sobre a morte:

AVÔ: A morte faz parte da beleza da vida, Tina. O nosso

corpo morre o tempo todo. [para as crianças] O cabelo

fica branco e cai, não é? A pele fica enrugada. Então,

ninguém é eterno, e por isso a vida, a cada momento, é

valiosa.

TINA: Ai, vô, mas será que a alma da vovó vai ficar nessa

caixa aí pra sempre? Ou será que ela foi morar numa

estrela? Ou no céu? Eu queria tanto subir lá no céu pra

ver se a alma da vovó ta lá...

AVÔ: Não existe alma, Tina. A vovó não está em nenhum

outro lugar, só nas suas recordações.

(Histórias de depois do fim, dramaturgia de Murilo Franco)

O avô entrega à Tina uma caixinha de presente deixada pela avó. Dentro

mais um bilhete: “aqueles que passam por nós não vão sós, deixam um pouco de si,

levam um pouco de nós.”

35

“Sabiá do campo Mas o seu canto Onde está, sabiá? Oiê

Voando ligeiro Ecoando certeiro Onde está, sabiá? Pra lá do tempo Pra dentro do peito Que aqui não te vejo Ele foi pousar Ele veio morar Mas te posso escutar”

Figura 39 – avô explicando o que pensa sobre

a morte na apresentação aberta ao público

91

Junto ao bilhete, há um ramo de acácia dourada e um algodão doce.

TINA: algodão doce?! [Se animando] escrito “Cuidado! Uma mordida te leva

às alturas”. [para crianças] – Alturas? Será que leva pro céu? Vamos

comer? Então eu vou dar um pedaço pra cada e quando eu disser já a

gente come junto, tá? [distribui algodão] Prontos? 1, 2 e já! [comem]

(Histórias de depois do fim, dramaturgia de Murilo Franco)

À medida que as crianças comem o algodão doce, um túnel (elemento

mantido desde a primeira oficina na EA-FEUSP) se ilumina; enquanto elas o

atravessam, os adultos assistem a um vídeo dos desenhos criados pelo 4º ano na

oficina animados em stop-motion. Trata-se do caminho até o céu, como sugerido

pelas crianças naquele exercício de completar as lacunas da história: a menina sobe

numa montanha, pula no abismo, pega carona num pássaro, voa com um foguete e

chega até o céu. Lá ela encontra Deus tomando um chá com o Capeta.

Figura 40 – avô lê o segundo bilhete na apresentação para o 4° ano da EA-FEUSP

Figura 41 – desenhos do 4º ano da

EA-FEUSP inseridos no stop-motion.

92

A passagem pelo túnel foi sendo reelaborada a cada apresentação, num

esquema de tentativa e erro – no início demorava muito até que todas as crianças

passassem, então aumentamos o tamanho do vídeo; depois, diminuímos o tamanho

do túnel. Pensando nas experiências sensoriais com o tato, acrescentamos depois

da abertura um chão de pelúcia, que lembrava o algodão doce que elas comiam ou

até uma nuvem, embaixo do túnel e em toda a extensão do local intermediário entre

o céu e o inferno; desse modo, as crianças engatinhavam por sobre a pelúcia e

experimentavam uma sensação diferente, “vendo com as mãos”.

Saindo do túnel, as crianças chegavam ao lugar intermediário, onde as almas

dormiam um sono profundo até o dia do Juízo final e conheciam o “ser iluminado”

(Camilo Schaden) - um meio anjo, meio diabo, que com sua voz potente canta para

as almas descansarem. Nesta cena, elas ficavam bastante envolvidas

emocionalmente, demonstrando medo, por exemplo, quando o ator agia como o

diabo – note que anjo e diabo são denominações que assumimos aqui para facilitar

a comunicação, mas que não eram mencionadas às crianças. No exercício de

mediação pós-espetáculo com o 1º ano, relatado anteriormente, essa personagem

chegou a ser definida pelos alunos de diversas maneiras: alguém que era bom e

mau, um anjo que tirava a máscara e virava um monstro, Deus, padre, um demônio

muito assustador quando tirava o capuz.

Figura 43 – chegada ao local

intermediário entre o céu e o

inferno na abertura com o 1°

ano da EA-FEUSP.

Figura 42 – saída do túnel nas apresentações finais

93

Como mostram o fragmento e as imagens logo abaixo, esta cena tanto

solicitava a participação dos pequenos quanto abria espaço para a interação

espontânea deles. No momento em que Tina e seus amigos davam-se as mãos para

orar, por exemplo, algumas crianças sentiam-se convidadas a repetir as palavras da

menina ou a acrescentar sugestões de como se reza ou a mandar beijos para a avó,

e essas não eram indicações explícitas ou programadas.

TINA: Mas e a alma da vovó Antonieta... Será que ta por aqui? [procurando

nos travesseiros]

ANJO: Deixe-me consultar nos autos. [Lê em um pergaminho] Ana...

Antônio… Aparecida, Antonieta; [desconsolado] infelizmente, de alma fresca

ainda nada consta. Às vezes a viagem é demorada.

TINA: Então eu não posso encontrar minha vó agora?

ANJO: Não. Mas você pode orar pela alma dela sempre que quiser.

TINA: [para as crianças] Orar? Vocês me ajudam? [TINA e criança dão as

mãos] vó, eu tô cheia de coisa pra te contar. acho que agora não vai dar pra

falar tudo, mas hoje mesmo caiu meu último dente de leite. se um dia a

gente se ver, eu te dou um abraço de urso.. vou te mandar esse beijo,

porque vai que o beijo viaja no tempo [Manda um beijo pro alto] tchau, vó,

eu te amo do tamanho do mundo.

(Histórias de depois do fim, dramaturgia de Murilo Franco)

Figura 44 – crianças do 4º ano da EA-FEUSP ajudando Tina a rezar

Figura 45 – crianças ajudando Tina a rezar na apresentação aberta

ao público

94

Tina também pedia que os amigos ajudassem-na a convencer o Ser

iluminado a ensinar-lhes o caminho de volta à Terra; depois de terem-no

convencido, deveriam sugerir e cantar juntos uma canção de ninar, que seria

gravada numa concha e reproduzida para as almas descansarem durante a

ausência do Ser iluminado.

O caminho de volta era dado por um mapa (produzido com desenhos feitos

pelas crianças do 4° ano da EA-FEUSP nas oficinas) que continha indicações a

serem transformadas em ações: fazer chover, andar como ventania. A ideia do

mapa com indicação de jogos ficou mais clara depois das aberturas, nas quais

pudemos perceber o quão necessário era propor mais ações em lugar do palavrório.

Figura 46 – mapa do caminho de volta à Terra

Figura 47 – crianças fazendo chover na apresentação aberta

ao público

95

O jogo do mapa levava os aventureiros à área externa, onde acontecia a cena

da floresta. Essa cena era gravada e transmitida ao vivo, mas por falta de recursos

não conseguimos microfones, então muito do que era dito lá fora não chegava aos

adultos que estavam dentro do teatro e partes significativas da história se perdiam.

VIVAZ: Hummm. Sabe, Menina, o que há depois do

fim?

TINA: essa é a charada mais difícil. meu avô me

falou…

VIVAZ:...que não há nada...

TINA:… já eles…

ANJO: … cuidamos das almas que estão dormindo

até o dia do juízo, já que fomos citados.

VIVAZ: Mas não é só...

TINA: É o que mais?

VIVAZ: Há a possibilidade de se viver muitas vidas!

Tudo passa de uma coisa a outra, se transforma.

Noutra vida eu serei pedra ou uma palmeira real.

Se eu já fui tatu, quem sabe vire um baobá.

Tucano, rio, anta, terra, cobra, jequitibá.

Nada acaba; o fim é um recomeço!

(Histórias de depois do fim,

dramaturgia de Murilo Franco)

A presença das crianças alterou significativamente tanto os jogos propostos

nesta cena quanto sua ambientação. Para a abertura, criamos uma cama de gato

com barbantes, pela qual as crianças precisavam embrenhar-se para chegar à

floresta. Mas, quando estavam em cena, percebemos que esse jogo complicava a

percepção dos acontecimentos e não contribuía com a dramaturgia; era, portanto,

um jogo acessório.

Descartamos a cama de gato porque considerávamos que as propostas

interativas deveriam ser, sobretudo, relevantes para o desenrolar da peça; ou seja,

não poderiam ser “acessórias” (desnecessárias) ou “ilusórias” (quando a

participação da criança não é de fato levada em conta). Posteriormente, adotamos o

uso de placas plásticas coloridas e suspensas, que giram em torno de si e, ao se

cruzarem, fundem suas cores e se transformam, traduzindo a atmosfera de encanto

e a filosofia de transmutação presentes na cena.

Figura 48 – projeção da cena da floresta para a plateia

adulta na abertura com o 1° ano da EA-FEUSP

96

Os jogos da cena da floresta foram os mais difíceis de elaborar. Entretanto, o

encontro com as crianças na primeira abertura foi fundamental para evidenciar os

pontos-chave da cena, nos quais investimos: o fato de a personagem Vivaz (Nina

Ricci) falar através de charadas e o jogo dos animais, que traduzia o pensamento da

cena - as crianças sugeriam alguns animais e Vivaz se metamorfoseava neles, como

que produzindo uma explicação mais lúdica do entendimento cíclico e

reencarnacionista da morte.

Pergunto-me se essa ou as demais “explicações” presentes na peça, ou

mesmo a bandeira final em defesa da diversidade de pensamento, configuram

caráter pedagógico ao espetáculo. Será que adotamos atitudes pedagógicas quando

não nos propúnhamos a isso? Será que elas diminuem o valor artístico da proposta?

Antes das aberturas, estávamos inseguros quanto aos limites que

precisaríamos colocar – e se possível não impor - à participação das crianças. Essa

insegurança ficou mesmo legitimada no momento da volta da área externa ao palco

do teatro, pois, como não tínhamos limites estabelecidos nem fisicamente (cenário

precário) nem pelo próprio jogo, as crianças continuavam ocupando o espaço da

cena num momento em que essa já não seria mais a proposta.

Alterar a lógica do funcionamento do espetáculo foi um ponto delicado do

processo: do início do espetáculo até a ida à área externa as crianças podiam

movimentar-se mais livremente em cada ambiente; a partir do retorno da floresta ao

teatro, elas seriam direcionadas a lugares pré-determinados e, por último, às

poltronas da platéia (lugar de onde tradicionalmente se vê teatro).

A dificuldade da volta se agravava, ainda, porque faltava encontrarmos

ferramentas ou dispositivos para recuperar a atenção das crianças e dar segmento à

Figura 49 – a floresta na apresentação aberta ao público

97

peça, além de desenvolver melhor a presença dos atores em cena e as relações das

personagens entre si e, especialmente, com as crianças. A convivência entre adultos

e crianças no aqui e agora da cena teatral evidencia como são distintos seus modos

de ser e estar.

Essas diferenças acabam produzindo conflitos que revelam a desigualdade

de poder entre as gerações – a opressão no trato com a criança, ainda que

reproduzida inconscientemente, muitas vezes invade o lugar do jogo quando algo

escapa do previsto (ou do controle). Revelam, ainda, que à maneira do adulto

produzir teatro para a criança corresponde “um modo relacional, no mundo

compartilhado, entre adultos e crianças” (Machado, 2014, p.4).

Ora, se comprovamos a necessidade de “ordenar” o retorno das crianças ao

teatro, ainda que isso, em última instância, seja um modo de controlar ou limitar a

participação e interação delas, pareceu-nos necessário incluir um propósito para

essa ordenação: um jogo. Assim, adotamos o jogo da serpente - as crianças

formavam uma fila, como se constituíssem o rabo da serpente, para levarem a

oferenda ao rio juntas.

TINA: Essa ideia de virar bicho é legal, mas eu ainda to muito triste porque

nunca mais vou conversar com a vovó, só me lembrar dela ou orar.

VIVAZ: Será? Faça uma oferenda para ela com um recado seu; deixe na

natureza e com certeza ela receberá!

TINA: Oferenda?

VIVAZ: Oferenda! Pense nela como se fosse um presente.

Qual era sua flor preferida? girassol ou margarida? [Vivaz pega a oferenda]

VIVAZ : Que lugar é esse para onde vou levá-los?

Não tem pé e corre,

Tem leito, mas não dorme,

Quando pára, morre.

[...]

É o rio.

Quem pode me ajudar a levar a oferenda até lá?

(Histórias de depois do fim, dramaturgia de Murilo Franco)

Figura 50 – volta da área externa (floresta)

ao teatro (rio) na abertura com o 1° ano

da EA-FEUSP

98

Por estarmos ainda engatinhando no entendimento da relação com as

crianças, nas aberturas elas acabaram ficando mais que à vontade para mexer no

cenário quando não era “permitido” (novamente incorremos nessa delicada limitação

da interação). Sabíamos, por outro lado, que trabalhávamos naquele momento com

estruturas precárias – não havia iluminação (apenas dois refletores no chão), os

elementos do cemitério eram completamente improvisados, o barco não estava

finalizado e sequer havia um rio bem materializado, por exemplo – e que a

concretude delas, quando finalizadas, auxiliaria a conduzir as crianças pelo percurso

sem termos de interferir demais na experiência delas.

De qualquer maneira, as dificuldades escancaradas com a presença das

crianças nas aberturas tornaram-se também a chance de encontrarmos soluções

que engrandeceriam o espetáculo. Sem essa experiência com elas, jamais teríamos

conseguido tirar o projeto do papel. Entendemos, com isso, que precisávamos

transformar nosso modo de olhar para o trabalho: a dramaturgia do espetáculo

deveria constituir-se não apenas pelo texto ou pelo jogo. Não um ou outro, mas um e

outro - uma dramaturgia de palavras, imagens, elementos concretos, ações,

interações e improvisação.

Para jogar com a presença e interações das crianças, os atores precisariam,

impreterivelmente, improvisar. A improvisação é

[...] um método amplamente desestruturado, irredutível a um algoritmo ou a

uma técnica descritível ou apreensível [...] devido à sua complexidade e

riqueza de possíveis modelos de referência, não é passível de recondução

a „um‟ método, mas nem por isso é casual ou privada de sua própria lógica.

A improvisação, ao contrário, é uma prática que se aprende fazendo

Figura 51 – jogo da serpente na apresentação

aberta ao público

Figura 52 – volta da área externa ao teatro na

apresentação para o 4º ano da EA-FEUSP

99

referência ao vasto patrimônio tradicional que, no entanto, não vem

simplesmente conservado, cultivado ou aplicado, mas readaptado às

situações particulares nas quais encontramos ao agir, provocando deste

modo sua perpetuação, mas também sua renovação (Neri Pollastri apud

Machado, 2014, p.8-9).

A cena de Caronte de Aqueronte (Thiago Cordero), o barqueiro do Hades, era

a última em que as crianças-espectadoras ficariam mais próximas do palco,

apartadas dos adultos-espectadores.

CARONTE DE AQUERONTE: [Apontando para as crianças] E vocês? Vivos

também?! Ufa! quando vi essa molecada, logo pensei em tragédia. Receber

criança dói mais! Mas o que fazem aqui?

VIVAZ: Viemos no prumo do cheiro da água para trazer essa oferenda, mas

nunca vi esse rio tão estranho...

CARONTE DE AQUERONTE: É obra do humano! Lá se foram umas

barragens e o rio se encheu de lama. Peixe só se vê por aqui morto; e a

água está contaminada. A travessia hoje está quase impossível!

TINA: Ô, Seu Caronte, para onde vai a barca?

CARONTE DE AQUERONTE: Vai para onde mais dia menos dia todos irão:

para o Reino dos Mortos! Bem-vindo ao Hades. para as boas almas, os

Campos Elíseos, com seu vale de leite, um verdadeiro paraíso. As almas

irrelevantes, que não fedem e não cheiram, vão para o Limbo. Mas torçam

para não serem direcionados ao Tártaro, com suas grutas terríveis e rios de

lava! Vão deixar vocês apavorados!

TINA: a Vovó Antonieta, seu Barqueiro; será que ela conseguiu fazer a

travessia? ela deve estar nos Campos Elísios, porque ela gostava de leite.

CARONTE DE AQUERONTE: o preço da viagem é uma moeda de ouro,

uma pechincha! Sua avó foi enterrada com uma moeda?

TINA: Sei lá... mas e se ela não tiver a moeda?

CARONTE: Não embarca. os desvalidos ficam vagando pelas margens do

rio por cem anos. E, infelizmente vivo aqui não entra nem morto! A não ser

que você tenha um ramo de acácia dourado, coisa muito rara hoje em dia.

TINA, então, pega correndo o ramo de acácia dourado de sua caixinha.

Caronte fica enfeitiçado, tenta pegá-lo, desce do barco para pegar o ramo.

Pega o ramo, cheira, lambe e guarda.

[voltando para o barco] Vamos entrando! Um só ramo, um só vivo.

TINA: E os meus amigos?

(Histórias de depois do fim, dramaturgia de Murilo Franco)

A partir desse ponto da cena, quando Caronte não permitia que as crianças

entrassem no barco – e aqui a maioria delas já estava em pé, pronta para embarcar

–, os pequenos eram encaminhados a lugares reservados nas primeiras filas e o

espetáculo continuava da maneira mais convencional: atores no palco e público nas

cadeiras.

100

Tina e Caronte navegam, então, pelo rio, que vai ficando cada vez mais

enlameado. A questão da morte da natureza, que nos motivava no início do

processo, aparecia nesta cena tanto na dramaturgia (como no início do fragmento

acima) quanto na cenografia, materializada num rio de saco plástico poluído por

garrafas plásticas (as quais as crianças quase sempre tinham vontade de recolher),

que mudava de cor “sujando-se” mais com auxílio da iluminação. Assim, fazíamos

uma referência (implícita) a desastres como o de Brumadinho.

Inicia-se o canto da Fênix.

O Barqueiro faz muito esforço para remar em meio à lama.

TINA: [Falando baixo, para si, mas como se soubesse que seus amigos

iriam escutar] Aqueles que passam por nós, não vão sós. Levam

um pouco de si, deixam um pouco de nós.[Para Caronte] Que

canto triste!

CARONTE DE AQUERONTE: É da Fênix, um pássaro gigante;

dourado, vermelho e roxo, com penas brilhantes! Ele pega fogo,

queima, vira cinza, e da cinza nasce de novo. Dizem que se

alguém pega uma de suas penas brilhantes, essa pessoa tem

direito a fazer um pedido… qualquer!

TINA: [para Caronte] Então eu poderia pedir pra finalmente

descobrir pra onde foi minha avó! [para plateia] se ela morreu e

não existe nada mais, se ela tá dormindo e depois vai pro céu

ou para o inferno, ou se ela já virou outra pessoa ou um bicho,

ou se de repente foi parar nos Campos Elíseos!

CARONTE DE AQUERONTE: menina, a Fênix é bicho muito

perigoso … você tem certeza? Pense bem. Mesmo que você

descubra onde sua avó está, nunca vai conseguir trazê-la de

volta...

Caronte tenta remar com muita dificuldade.

[para plateia] Essa viagem virou um fardo insuportável. As

nossas forças não serão suficientes. [Olham para a devastação]

Se eu tivesse a pena da Fênix pediria o meu rio de volta. Eu não

tenho escolha, Menina. Vou ter que andar até o Hades e lá o Rei dos

Mortos me dará as ordens para resolver esse suplício. Você vem comigo?

TINA: seu Caronte de Aqueronte, muito obrigada, mas eu vou atrás da

Fênix… eu acho. parece que ela tá me chamando com esse canto. é minha

chance de descobrir a verdade sobre a morte.

CARONTE DE AQUERONTE: Verdade? A verdade é só uma [para a

plateia] obviamente a minha.

TINA: A Vivaz e o ser Iluminado diriam a mesma coisa.

(Histórias de depois do fim, dramaturgia de Murilo Franco)

Imaginávamos, antes da primeira abertura de processo, que dificilmente

conseguiríamos conquistar lá das cadeiras o estado de atenção que as crianças

desprendiam quando no palco. Sabíamos que, como pensa Machado, “uma

atmosfera relacional brincante leva a criança a um estado, uma qualidade, uma

Figura 53 – Caronte e Tina navegam rumo ao

Hades

101

presença que muitas vezes a situação palco-plateia não dá conta: usualmente sua

corporalidade deve permanecer na contenção da poltrona; no prédio do teatro,

quando muito, são os atores que presentificam aquela qualidade” (2014, p.8).

Entretanto, fomos surpreendidos. Acreditamos que a qualidade da ligação

das crianças com a história, mesmo assistindo das cadeiras, tenha sido conquistada

justamente porque a sensação de que também pertenciam àquele acontecimento já

havia sido despertada; ou seja, o envolvimento das crianças com o espetáculo era

outro, bem menos distanciado. Além disso, para a cena final escolhemos linguagens

distintas das outras cenas – sombras e bonecos – o que configurava uma novidade

atrativa.

A parte final da dramaturgia – cena da Caverna da Fênix e desejo de Tina -

passou por muitas alterações ao longo do processo, sendo as decisões sobre os

rumos do desfecho nossa maior dificuldade. A ideia inicial, que vinha lá das oficinas,

era a de que a menina pegaria a pena mágica da Fênix com a ajuda dos amigos e

desejaria que todos voltassem pra casa em segurança, como faz Dorothy em O

Mágico de Oz, de L. Frank Baum.

Na medida em que o processo se desenrolava, passamos a pretender que o

desejo de Tina fosse, depois de ter conhecido tantas “verdades” sobre a morte, o de

poder escolher no que quer acreditar. Esse novo final já havia sido adotado desde

as aberturas, contudo, até as apresentações exclusivas para o 4° ano da EA-FEUSP

a construção deste pensamento ao longo da cena de Tina com Caronte ainda estava

Figura 54 –Tina encontra a Fênix

102

frágil, visto que a reação das crianças durante a elaboração do desejo era de

bastante impaciência.

Por isso, daí até as apresentações abertas ao público ainda houve alterações

no texto e nas movimentações. Mantivemos a canção do sabiá (resquício da ideia da

reprodução de um ritmo trabalhada nas oficinas com o 1° ano na EA-FEUSP) como

o artifício que ajudava Tina a “encantar” a Fênix (uns liam como se ela fizesse o

pássaro dormir, outros como se ela o tivesse matado) - a música era como a

recuperação de uma memória da avó, que encorajava a menina a enfrentar o

desafio de pegar a pena mágica.

Depois de reelaborarmos o conteúdo do desejo de Tina para que funcionasse

como uma retomada dos principais pontos de toda a trajetória da peça e ficasse

mais divertido e menos previsível, foi decidido que a menina faria seu pedido final

mais perto da platéia, numa reaproximação entre a personagem e crianças.

TINA: eu não sei ainda no que eu acredito, mas eu sei que

tem muito jeito diferente de pensar. [para as crianças]

Obrigada, meus amigos, por descobrirem tantas coisas

comigo. [TINA imita as personagens que vai citando] Que

bom que o vovô me explicou no que ele acredita: que

depois da morte não tem nada e a vovó sempre vai existir

em minha memória. Com o Ser Iluminado, eu vi que é

possível acreditar em almas que estão esperando o Juízo

Final, e que vão morar no Céu ou no Inferno. Já o Caronte,

me contou que existem outros lugares onde vivem os

mortos, como o Tártaro e os Campos Elísios. E com a

Vivaz eu entendi que depois da morte a gente pode

também nascer em outro corpo, de humano ou de bicho.

Então, este é o meu pedido: EU QUERO SEMPRE

PODER ESCOLHER NO QUE EU QUERO ACREDITAR!

(Histórias de depois do fim, dramaturgia de Murilo Franco)

A descrição das alterações pelas quais passou a encenação desde a abertura

de processo até as apresentações exclusivas para crianças da EA-FEUSP e,

finalmente, as apresentações abertas ao público, deixa claro que a presença das

crianças neste tipo de proposta interativa e itinerante faz completa diferença – as

alterações foram feitas em função da presença delas e o espetáculo só cresceu

também a partir da presença delas.

Depois de todas essas experiências, podemos afirmar que parece haver

significativa diferença entre ir ao teatro com os colegas da escola no tempo de uma

aula e ir com a família no final de semana. O fato de as crianças se conhecerem,

Figura 55 –Tina faz o pedido

103

como nos casos das aberturas com o 1° ano e das apresentações com o 4° ano da

EA-FEUSP, dava a elas mais ousadia e cumplicidade para realizar certas vontades,

como arrancar pedaços do cenário (chão do céu) e formar pequenos grupos

(“panelinhas”) dentro do grupo grande. Já nas apresentações abertas ao público,

nas quais as crianças não se conheciam e tinham idades bem diferentes, o grupo

parecia ficar mais integrado - os maiores acabavam até responsabilizando-se pelos

menores e cuidando deles.

Podemos afirmar também que idealmente esse espetáculo comporta poucas

crianças – com os grupos menores conseguimos criar uma relação de cumplicidade

mais sólida e dar mais espaço de participação às crianças que quisessem se

expressar. E isso configura uma espécie de contradição: buscamos oferecer uma

experiência diferenciada com o teatro, que possa ampliar as relações da criança

com a arte, mas acabamos criando algo que, no fundo, mantém o teatro

“excludente”, para poucos.

Depois de todo este caminho de concepção, acreditamos que somente

quando os adultos assistem à aventura que está sendo vivenciada pelas crianças é

que a ideia da encenação se realiza por completo. Entretanto, tal relação se altera

quando os adultos têm alguma proximidade com as crianças e quando não têm. No

último caso, observado nas aberturas em que tínhamos as crianças da EA-FEUSP

no palco e na platéia seus professores e outros convidados aleatórios, muitos destes

últimos sentiam como se estivessem apenas assistindo às crianças brincarem, e por

vezes incomodavam-se com a “dispersão” e a “bagunça” delas.

Por outro lado, nas apresentações abertas ao público, em que os

pais/familiares acompanhavam suas crianças, era possível perceber, pelas reações

da plateia, que o espetáculo ganhava outras camadas interpretativas, relacionadas

às ligações afetivas entre os fruidores da peça e aos contextos de vida de cada

família.

As crianças - ora atentas à presença de seus pais, ora abstraindo-a

completamente – participam do espetáculo como personagens, mas atuam como

elas mesmas. Inseridas num contexto temático tão instigante e ao mesmo tempo

velado como o da morte, provocam um deslocamento do espectador adulto

habitualmente distanciado para um espectador mais ativo e, com isso, realizam um

tipo de comunicação que só é possível no teatro. A lida com temas que poderíamos

104

tranquilamente classificar como trágicos suscita a discussão, a oposição, o

engajamento do espectador (Lehmman, 2011).

Comentários realizados pelos pequenos - “agora eu entendi tudo! A gente é a

peça”; “a gente tá procurando a vó dela”; “a menina precisava de nós”; “nós

ajudamos ela a achar a avó”; “eu adorei porque assisti, brinquei e ajudei a achar a

vó” - levam-nos a crer que há, sim, maneiras de ampliar o envolvimento da criança

com o espetáculo. É possível que o acontecimento teatral pertença também a ela e

não apenas passe por ela.

Como pensa Chiara Guidi,

o teatro é o lugar, onde, se a ficção é conscientemente jogada, pode-se

experimentar um outro mundo. O teatro dá as provas daquilo que se conta,

porque se experimenta efetivamente. O jogo dá às crianças a possibilidade

de transformar em ação a imaginação: somente quem entra no jogo pode

“ver” (GUIDI apud FERREIRA, 2016, p.12).

Entretanto, chegamos ao final deste trajeto impossibilitados, ainda, de

comprovar a hipótese que formulamos no início dele – a de que propondo níveis

mais diretos de envolvimento da criança com o espetáculo pode-se deslocar o teatro

da lógica da informação para a lógica da experiência. Não temos instrumentos para

saber, de fato, como a obra foi percebida pelos espectadores, se meramente um

consumo da cultura ou uma experiência autêntica com ela.

Mesmo o teatro que não transcende o consumo possibilita alguma

experiência; a questão é o quanto nós, produtores de arte, podemos ampliar essa

experiência para além do consumo. Por isso, essa hipótese, agora, dá lugar a outra

questão: até que ponto conhecer as especificidades dos modos de ser e estar da

criança (e do adulto) e considerá-las para o processo de concepção do espetáculo, e

dentro dele, contribui com a criação de possibilidades de experiências

(envolvimentos transformadores) dos sujeitos com o teatro?

105

6. TEATRO PARA CRIANÇAS E ADULTOS

Apesar de termos iniciado o projeto que deu origem ao espetáculo Histórias

de depois do fim enquadrando nosso fazer na categoria teatro infantil – aquele

concebido por adultos para crianças – chegamos ao final da experiência, e desta

reflexão, entendendo que estávamos em busca de fazer teatro para crianças e

adultos, o que talvez não seja igual a teatro para todos, como veremos a seguir.

Reconhecemos, entretanto, que a necessidade de enquadrar o espetáculo em

alguma categoria revela que, de certo modo, ainda não derrubamos o muro do qual

falava Marina M. Machado:

haveria, em nossa cultura, um muro entre a criança e o adulto, bem como

entre o teatro infantil e o teatro para adultos. Esse muro, como tantos

outros, é histórico, e diz respeito ao surgimento da noção de infância. Hoje a

“infância” está fortemente arraigada em nós; em muitos adultos existe a

crença em um “Mundo da criança”, bem como em uma “mentalidade

infantil”. Essas noções arraigadas nos levam a outras, e a mais outras

ainda, e, numa rede de nexos e interconexões, constroem concepções de

teatro, de criação e de produção cultural (2011, p.31).

Dentre essas noções arraigadas histórica e socialmente em nós, e que se

expressam nas produções culturais para a infância, encontra-se também a crença

de que a criança “vive um estado intermédio de maturação e desenvolvimento

humano” (Sarmento, 2005, p.363).

Partindo da criança como ser em formação, e por isso sujeito da

necessidade de cuidados, as escolhas temáticas e estéticas feitas pelo

artista adulto a partir de seu projeto de infância [...] indicam um tipo de

teatro que, por suas características peculiares e índole especial, poderia ser

chamado de teatro infantil. Esse teatro seria lembrado como obra de arte,

pois utilizaria, sem excesso e por meio da perspectiva da criança, recursos

lúdicos, músicas, cores e festividade, sempre empregados em razão de

sugestões imaginativas e estéticas instigantes, jamais como cópias do

teatro adulto. Esse teatro seria representado e criado por adultos educados

para esse gênero. Entretanto, os temas de trabalho e as dramaturgias

deveriam ser pensados por meio da perspectiva da criança. Dramaturgias

assim pensadas objetivariam recusar intenções didáticas e moralizantes,

em razão da sugestão, do enredamento e da possibilidade de múltiplas

leituras, ressaltando a honestidade criativa e a ajuda para que a criança

compreendesse o mundo, a vida e os valores mais prezados – pelo prisma

dos adultos, claro (Gomes, 2018, p.32).

106

Os caminhos reflexivo e prático percorridos durante o processo de Histórias

de depois do fim aproximaram-nos daqueles que defendem um teatro sem fronteiras

etárias, um teatro para todos, como Pupo:

mais que nunca, refletir sobre as funções do teatro, hoje, implica pensá-las

enquanto polo distinto da padronização cultural que nos domina, e fazê-lo

independentemente da faixa etária do público. Uma vez que todo esse

quadro nos leva a constatar os efeitos perversos da destinação exclusiva de

espetáculos teatrais para a infância, propomos a defesa da superação da

especificidade do teatro infantil. Para tanto, seria necessária uma mudança

no eixo de abordagem dos responsáveis pelo evento teatral. Ao invés de

canalizar as preocupações em torno de uma formulação adequada a uma

determinada idade, caberia, antes de mais nada, refletir sobre as

peculiaridades do caráter propriamente artístico do teatro que se pretende

fazer (2000, p. 338).

À medida que crescia nossa identificação com esse movimento de superação

da especificidade do teatro infantil, crescia também o questionamento: o que tem

sido apresentado nesse “teatro para todos”? Teoricamente os espetáculos que se

destinam a pessoas de toda e qualquer idade abririam “múltiplas possibilidades para

um diálogo de caráter sensível entre as gerações, tendo a fruição comum de uma

obra artística como ponto de partida” (ibidem, p.340).

Mas, será possível que os acontecimentos teatrais destinem-se à fruição

comum sem privilegiar os modos do adulto de ser e estar em detrimento dos da

criança? Mesmo neste dito teatro para todos, os modos de liberdade expressiva dos

pequenos não parecem bem vindos, já que, muitas vezes, a presença da criança

(ela mesma) é incômoda e até “atrapalha” a fruição que o adulto comumente adota

como ideal - a começar porque esta pressupõe permanecer em silêncio e sentado,

na contenção da poltrona.

Assim, a identificação com essa perspectiva fortaleceu a necessidade de

investigar como o mesmo espetáculo teatral poderia contemplar, de fato, a todos -

afinal, se há diferenças entre os modos da criança de ser e estar no mesmo mundo

onde são e estão os adultos com os quais ela convive, há também diferenças nos

modos da criança-espectadora de ser e estar no teatro, no mesmo espetáculo onde

são e estão os adultos-espectadores, com os quais ela divide a fruição teatral.

Ora, se a criança apresenta um modo de ser pré-reflexivo – se ela apreende o

mundo através de experiências sensoriais que envolvem todo o corpo - não é de se

espantar, então, que não se satisfaça completamente quando é exigido dela que

107

fique sentadinha, paradinha e quietinha para assistir, de longe, a um espetáculo,

como fazem (ou fingem que fazem) os adultos e como esperam eles que façam as

crianças.

Para Machado,

está para nascer um campo político de conversa e dialogia com a criança tal

qual ela se apresenta: adultos menos centrados em sua arte e seu processo

criativo, e mais interessados em conhecer e partilhar como a criança vive,

como pensa, como sente, imersa em seu cotidiano hoje – proporcionando

atitude de um adulto não mais dado às explicações intelectualizadas pela

teoria e pelo formato faixa etária, mas sim, aberto à novidade, trazida pelo

novo que é a própria infância. Para tal, a contribuição da leitura

fenomenológica é riquíssima, na lida, como acolhimento dos modos de

liberdade expressiva da criança, pela criança, e em relação consigo, com o

outro, no mundo – que é o mesmo: lugar de co-pertença entre adultos e

crianças, povoado por relações mútuas (2014, p.12-13).

Por um lado, penso que crianças e adultos têm que ser tratados em pé de

igualdade porque se igualam tanto na inteireza com que são - ambos são seres

perceptivamente desenvolvidos -, quanto na condição de liberdade de escolha em

que existem - em situação e em relação, todos traçamos caminhos próprios na

construção de nosso ser, que é um vir a ser infindável, em busca de autonomia. Por

outro, acredito que crianças e adultos são diferentes já que experienciam a si

mesmos e ao mundo de maneiras singulares.

Imagino que teatro para adultos e crianças seja diferente de teatro para

todos porque aquele teria preocupações mais direcionadas às singularidades dos

espectadores e às possibilidades de acolher seus diferentes modos de expressão

durante o acontecimento teatral e na apreensão do mesmo. Foi em busca de um

teatro onde a criança pudesse ser que abrimos o palco à participação dos pequenos.

Para Lehmann, as crianças no palco - agindo como elas mesmas, performers

que são -

[...] cujos interlocutores somos apenas nós, na assistência, falam de nós e

para nós sobre uma realidade cotidiana que, de repente, torna-se

impossível, e verdadeiramente insustentável. Reconhecemos chocados,

tristes, cheios de compaixão, que potencialidades existem nessa

comunicação entre adultos e crianças, e quão pouco ela é realizada, apesar

e talvez mesmo por causa da boa vontade (2011, p. 282).

108

Entretanto, a hipótese que levantamos mo início desta trajetória – a de que

oferecendo à criança níveis mais diretos de envolvimento com o espetáculo poder-

se-ia deslocar o teatro da lógica da informação para a lógica da experiência -, soa-

nos, agora, descabida. Não parece possível afirmar que a possibilidade de

vivenciar a cena é o suficiente para que uma experiência transformadora aconteça;

assim como é inegável que o espectador possa ter experiências profundas com o

espetáculo mesmo ocupando aquele lugar mais tradicional, na platéia.

Por isso, acabamos por abandonar essa hipótese que, além de instaurar uma

oposição entre distintos modos de se fazer teatro, como se houvesse uma maneira

de fazer mais justa que outra, acabou constituindo uma parede e não uma porta. Ao

final do caminho descrito neste texto, não temos respostas, e, sim, outras questões,

mais profundas.

Ademais, se não é possível afirmar que o ato de vivenciar uma história produz

para a criança mais experiências que o ato de observá-la, é certo, ao menos, que a

vivência mobiliza seus corpos e corporalidades, configurando uma maneira diferente

da criança espectadora estar no teatro: em conexão com seu corpo (e suas

sensações) – cuja relevância tem sido desprezada pelos modos de vida e pelos

valores ocidentais -, e não só com seu intelecto.

Fez-se claro, ainda, que investigar possibilidades de relação entre teatro e

infância obriga-nos a olhar para as relações entre o emissor-adulto e o receptor-

criança, e, mais a fundo, entre adultos e crianças. Machado faz um convite à

comunidade que pensa, faz, exerce e influencia as relações entre teatro e infância:

que procure incessantemente e com coragem e paciência, ampliar seu

leque de possibilidades, desde o modo de produzir cultura para a criança

até as propostas educativas junto a ela. Neste caldo de modos de ser e

estar bem poderá surgir um campo artístico ampliado (além e aquém do

teatro estrito senso, no entanto sem nunca jogar fora, obviamente, a

tradição neste campo). Gosto muito da perspectiva de Bourriaud (2009) em

seu livro Estética Relacional: a arte contemporânea encontra-se entre

pessoas, e não na materialidade da obra do artista, fixa ou estática. Como

seria pensar a encenação para crianças na chave relacional? Como exercer

pesquisa em artes cênicas e contemporaneidade incluindo as crianças

como público pensante, como espectadores emancipados (RANCIÈRE,

2012)? Como pesquisar, instigar, exercer as antiestruturas para propiciar o

surgimento de um teatro novo, sem ferir os princípios da infância e

juventude hoje? (2014, p.11)

109

Não saberia dizer se Histórias de depois do fim inclui-se nisso que se chama

teatro relacional, nem se, de fato, possibilitou aos seus espectadores experiências

profundas com o espetáculo. Mas gostaria que essa tentativa de conceber um teatro

interativo e itinerante para as crianças assistirem brincando - vivenciando a história -

configurasse uma atitude fenomenológica frente a elas, um “agachamento”, como

definido pela autora: “agachar-se é ir ao chão, onde a criança está” (ibidem, p.6).

Essa experiência, por fim, foi nossa primeira tentativa de “agachar-nos” ao

encontro das crianças, tanto para encontrar uma possibilidade de teatro em que ela

pudesse ser verdadeiramente como ela é, quanto para descobrir que pode haver

entre nós e elas uma comunicação muito mais honesta e rica, desde que deixemos

elas se expressarem.

110

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