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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE LETRAS CLÁSSICAS VIVIANI XANTHAKOS QUEM TEM BOCA VAI A ÍTACA: UM ESTUDO SOBRE A PERSUASÃO NO CANTO XIV DA ODISSEIA São Paulo 2011

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

PROGRAMA DE LETRAS CLSSICAS

VIVIANI XANTHAKOS

QUEM TEM BOCA VAI A TACA: UM ESTUDO SOBRE A PERSUASO NO

CANTO XIV DA ODISSEIA

So Paulo

2011

VIVIANI XANTHAKOS

Quem tem boca vai a taca: um estudo sobre a persuaso no canto XIV da

Odisseia

Dissertao apresentada ao

Departamento de Letras Clssicas e Vernculas.

Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas

da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Christian Werner

So Paulo

2011

Ao meu orientador,

Por todas as incontveis horas de dedicao,

que excederam em muito o que seria esperado.

AGRADECIMENTOS

Agradeo CAPES, pela concesso da bolsa de mestrado que permitiu que

esta pesquisa fosse realizada.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Christian Werner, pela infinita pacincia e

carinho com a qual conduz seu trabalho.

Aos Prof. Dr. Andr Malta Campos e Prof. Dr Adriane Duarte, pelas

orientaes e observaes importantes feitas em minha banca de qualificao.

Caroline Evangelista Lopes pelas longas horas de discusso, pelo

companheirismo e auxlio.

Erika Werner, pelos socorros de ltimo instante e solicitude em todos os

momentos.

Aos amigos muito requisitados e muito bem dispostos, Fernanda Rezende

Figueiredo, Roberta Claro, Tatiane Severino e Stefan Fornos Klein, pelas leituras

e correes. Vivian Drecco pelo auxlio em recursos digitais.

minha famlia e meu noivo, pela pacincia em aguardar meus poucos

momentos disponveis e incentivo incondicional.

RESUMO

Esta dissertao dedica-se ao estudo da persuaso nos discursos proferidos

por Odisseu no canto XIV da Odisseia, levando em considerao a interao de

trs elementos:o orador, o auditrio e a argumentao. seu objetivo refletir

sobre qual tese Odisseu busca compartilhar com seu pblico, Eumeu, e as

estratgias de que se vale para atingir esse fim.

Abstract

This dissertation is a study about the persuasion in Odysseus speeches in

Odyssey XIV, observing three elements: the orator, the audience and the

argumentation. My target is make a reflection about what idea Odysseus wants to

share with his audience, Eumaios, and the strategies to do it.

Lista de imagens

Sugesto de esquema representativo das narrativas do canto XIV, levando em

considerao pblico interno e externo............................................................... 40

Esquema representativo dos papeis argumentativos assumidos nas narrativas do

canto XIV ............................................................................................................ 41

Sugesto de esquema representativo do apostrofe ........................................... 64

SUMRIO

Introduo ............................................................ 2

Captulo 1 Poesia homrica e literatura oral..... 8

Captulo 2 O orador .......................................... 30

Captulo 3 O pblico ........................................ 48

Captulo 4 A argumentao ............................. 70

Consideraes finais........................................... 87

Bibliografia .......................................................... 91

Introduo

Os poemas homricos so objeto de anlise desde os tempos mais

antigos, despertando ao longo dos sculos o interesse de diversos estudiosos,

que procuraram entender a complexidade dessas narrativas. A Ilada e a

Odisseia foram e so um desafio para os que se propem a estud-las, pois

ainda que tantos anos tenham se passado desde sua composio, temos muito

mais incgnitas a seu respeito do que respostas. Como foram compostos?

Onde? Por quem? Para quem? So algumas das perguntas que diversos

trabalhos buscam responder.

O presente trabalho tem tambm como objeto a poesia homrica, mais

especificamente a Odisseia, visando analisar como os discursos de Odisseu

podem ser considerados persuasivos e, assim, o modo como o poder de

persuaso do protagonista influncia todo o enredo da narrativa.

O macro objetivo da pesquisa era trabalhar com a persuaso na

Odisseia. Meu primeiro recorte foi quanto ao personagem que proferia os

discursos, Odisseu. Sendo ele o protagonista da narrativa e possuindo como

um de seus mais destacveis traos a habilidade com as palavras, decidi

estudar a capacidade persuasiva de Odisseu e a maneira como essa

caracterstica determina o sucesso de seu nostos, desse modo afetando toda a

trama da Odisseia.

Isso decidido foi necessrio estabelecer os pressupostos tericos da

pesquisa. O primeiro, que originou o captulo I da dissertao, trata do modo de

abordagem que eu daria ao poema. Em especial porque, para analisar a

persuaso, me valeria de teorias elaboradas para o estudo de textos

modernos, e a pica grega, desde os estudos de Milman Parry, amplamente

aceita como uma poesia de origem oral, mas que posteriormente foi fixada e

3

passou a ser acessvel no mais atravs da performance tradicional, mas

atravs da escrita.

Uma vez que parto do pressuposto que a Odisseia foi um poema oral em

seu contexto original, no posso ignorar as caractersticas da oralidade em

minha anlise. Por isso a deciso de comear a dissertao com um captulo

que comenta a origem oral dos poemas, os argumentos e estudos que

principiaram a teoria da oralidade e as principais caractersticas de um poema

oral, que influenciariam a forma como seriam analisados os discursos de

Odisseu. O tema em si extenso e complexo e no tenho a pretenso de ter

feito um resumo completo sobre o tema; meu objetivo foi to somente

esclarecer as bases sobre as quais fundamento minha anlise e o modo como

as principais caractersticas orais do poema influenciariam a maneira de

enxergar a persuaso no poema.

Algumas das problemticas derivadas da oralidade e do processo de

transmisso no foram abarcadas neste trabalho, tais como os trechos

polmicos do poema, considerados por alguns estudiosos como interpolaes,

ou o fato de que, se os poemas eram reproduzidos em performance, natural

que houvessem mudanas significativas de uma apresentao a outra, o que

poderia complicar meu estudo sobre os argumentos de Odisseu. A busca por

interpolaes, passagens tardias e similares no poema mudaria a natureza de

meu trabalho, de modo que, para os fins aqui propostos, considero a Odisseia

tal como chegou at ns como meu objeto de anlise, representando uma das

muitas performances e verses possveis do poema.

Aps as consideraes sobre a origem oral dos poemas, meu foco se

tornou a reflexo sobre a importncia da persuaso na Odisseia. A persuaso,

palavra to usada nos tempos modernos em tratados de direito e publicidade,

conceito importante desde os tempos antigos. Ser capaz de falar bem, de

convencer as pessoas de sua inocncia, ou da culpa de outrem, convencer

seus ouvintes a ajud-lo, a gui-lo ou segui-lo, ou qualquer que seja seu

objetivo, uma qualidade valorizada no apenas em nossos dias, pois desde

que o homem capaz de usar a palavra para se comunicar, us-la para

convencer seus semelhantes uma das suas funes mais teis. Naas (1995,

4

p.3) diz, sobre a importncia da persuaso no universo da pica grega:

"Sem persuaso, parece que no haveria nenhuma regra confivel da Lei,

nenhuma comunidade estvel ou acordo duradouro" (traduo minha).

A poesia homrica, por muitos, datada por volta do sculo VIII a. C.,

portanto antes das primeiras tentativas de elaborao de uma arte retrica. A

despeito disso possvel perceber a importncia de ser um bom orador nos

poemas, muitos so os estudos e a discusso acerca de uma espcie de pr-

retrica em Homero1, pois falar bem teria um papel central na pica grega, e

retricos clssicos, tais como Aristteles e Quintiliano, muitas vezes usavam

Homero como referencial. Karp (1977, p.240) afirma que a poesia homrica

influenciou na concepo da retrica clssica:

Homero foi um precursor, se no uma influncia, das posteriores

formulaes filosficas explicitas de teorias da persuaso (em

especial as de Plato e Aristteles) (traduo minha).

Portanto, ainda que a eloquncia em Homero seja de uma fase anterior

arte retrica, falar bem em pblico retratado como algo importante para o

convvio social, sendo admirveis os personagens que possuem essa

caracterstica.

O heri homrico por excelncia tanto um bom combatente, corajoso e

forte nas batalhas, quanto um hbil orador, respeitado na gora e eloquente

com seus comandados. Um exemplo dessa formao do heri homrico o

preceptor de Aquiles, Fnix, que no canto IX da Ilada diz ter sido escolhido

para educar o heri por unir a capacidade de ao e a de falar bem:

,

Por isso me mandou, para que te fizesse

Na oratria eminente, eficiente nas obras.2

(vv. 442-443)

1 Cf. Karp (1977), Kirby (1990), Reyes (2002), Alles (1990), Kennedy (1957). 2 A traduo da Ilada citada nesta dissertao de Haroldo de Campos.

http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=tou%29%2Fneka%2F&la=greek&prior=tele/qousihttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=me&la=greek&prior=tou)/neka/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=proe%2Fhke&la=greek&prior=mehttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=didaske%2Fmenai&la=greek&prior=proe/hkehttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=ta%2Fde&la=greek&prior=didaske/menaihttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=pa%2Fnta&la=greek&prior=ta/dehttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=mu%2Fqwn&la=greek&prior=pa/ntahttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=te&la=greek&prior=mu/qwnhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=r%28hth%3Dr%27&la=greek&prior=tehttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=e%29%2Fmenai&la=greek&prior=r(hth=r'http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=prhkth%3Dra%2F&la=greek&prior=e)/menaihttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=te&la=greek&prior=prhkth=ra/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=e%29%2Frgwn&la=greek&prior=te

5

Em muitas situaes da vida do heri homrico podemos perceber a

importncia de falar bem, de saber como convencer seu interlocutor. isso

visvel na assembleia e at mesmo no contexto da hospitalidade. Todo

hspede precisa identificar-se ao seu hospedeiro, contar quem , de onde vem;

quanto mais competente sua atuao, maiores so suas chances de conseguir

ajuda para a continuao de sua viagem e de ganhar presentes, pois ser mais

capaz de cativar seu anfitrio.

Odisseu, que em seu nostos muitas vezes hspede, demonstra muita

habilidade para elaborar seus discursos, assim como conhecimento da tcnica

para faz-lo com maestria. Como resultado, sua audincia o admira, acredita

na imagem que ele constri com seu discurso e asseguram-lhe a continuidade

da sua viagem. 3

Como j dito, o primeiro recorte do corpus para este estudo foi

selecionar apenas discursos de Odisseu. Entretanto, ainda assim muitas

seriam as cenas nas quais Odisseu utiliza suas habilidades com as palavras

para obter o que deseja. Optei pelo canto XIV, no qual Odisseu chega

cabana do porqueiro Eumeu disfarado de mendigo por dois motivos principais:

primeiro porque o pblico de Odisseu nessa passagem, Eumeu, o nico a

quem o narrador principal se dirige atravs de apstrofe, e o segundo motivo,

pelo fato de Odisseu contar uma pequena histria reconhecida como um ainos.

Ainda que a natureza desse tipo de narrativa tradicional seja controversa, a

interpretao de que um ainos uma espcie de histria que visa conseguir

presentes corrobora para minha pesquisa sobre o tipo de persuaso da

Odisseia. Ainda que a tentativa de persuaso de Odisseu na cabana do

porqueiro no seja textualmente expressa, como talvez o fosse em uma

3 A habilidade de Odisseu com seus anfitries, entretanto, no o ajuda em todas as

circunstncias; no canto IX, no qual ele conta como foi recebido por Polifemo, seu discurso

ignorado pelo ciclope e alguns de seus companheiros mortos, somente com a unio da bia, da

fora bruta, que Odisseu consegue salvar-se e ao resto da sua tripulao. Parece razovel

dizer que Calope tambm no pode ser convencida por Odisseu a deix-lo partir, ainda que

isso no seja dito no poema, pois a deusa o manteve consigo contra a vontade, at receber

ordens de Zeus atravs de Hermes. Entretanto estas duas circunstncias sero discutidas mais

profundamente no captulo dedicado a audincia.

6

assembleia, creio que possua elementos suficientes para permitir a anlise da

persuaso implcita, ou seja, quando o orador no pede abertamente algo, mas

seu interlocutor consegue interpretar a mensagem e agir ou no como

esperado.

No canto XIV Odisseu est em taca, disfarado em mendigo por Atena,

a caminho da cabana de Eumeu por orientao da deusa, local onde deve

aguardar o retorno de seu filho Telmaco e receber informaes sobre o seu

lar. Andando como um maltrapilho Odisseu chega s suas terras e atacado

pelos ces do porqueiro. Eumeu o salva e o abriga, como um respeitador das

leis de Zeus, e lhe d os cuidados tpicos reservados a um hspede.

Aps comerem, o escravo indaga ao estrangeiro seu nome e sua

origem, e Odisseu responde com sua segunda mentira cretense (vv.192-359),

na qual diz ser de Creta, filho bastardo de um nobre e um antigo guerreiro de

valor. Conta ter sido um lder que lutou em Troia, juntamente com Idomeneu,

famoso guerreiro de Creta. Aps ter voltado de Troia, ele saiu novamente em

viagens, aportado no Egito, onde seus companheiros o desobedeceram e

comearam um saque sem autorizao. Aps o saque os egpcios pediram

ajuda e, no contra-ataque, os homens do cretense perdem a batalha. O

cretense implorou por sua vida ao rei do Egito, que, se apiedando, o teria

levado como hspede em seu palcio. Anos depois, marinheiros enganam o

cretense, o levam do Egito e o prendem, para vend-lo como escravo. No

entanto, o navio naufraga, partido ao meio por um raio atribudo pelo cretense a

Zeus, e ele se salva, se agarrando a um mastro, passando nove dias no mar,

at chegar terra dos tesprtios, onde recebido pelo filho do rei e l recebe

notcias de Odisseu, que tambm teria sido hspede ali e teria seguido para

Dodona em busca de um orculo. O cretense, aps saber essas coisas, foi

enviado at Dulquio, mas no caminho os marinheiros tentam vend-lo como

escravo. Novamente ele atribui sua salvao aos deuses, pois os laos das

cordas foram afrouxados e ele pde fugir a nado, chegando em taca.

A segunda histria que Odisseu narra (vv. 462-506), chamada de ainos

por Eumeu, se passa em Troia, em uma emboscada, na qual o cretense estaria

na companhia do prprio Odisseu. Tendo esquecido sua capa, o cretense

7

estaria perto de morrer de frio quando pediu ajuda a Odisseu, que vem em seu

auxlio, dizendo aos companheiros que teve um sonho premonitrio e que

algum precisaria voltar s naus para pedir reforos. Toas se oferece, deixa

sua capa e corre na direo dos barcos; o cretense usa a capa dele para se

aquecer e assim sobrevive.

Para analisar a persuaso presente nesses dois discursos levarei em

considerao a origem oral dos poemas, o que os torna distintos de uma

literatura puramente escrita e procurarei utilizar ferramentas de anlise

desenvolvidas pelos estudiosos da oralidade homrica, tais como frmulas e

cenas-tpicas. Sendo a cena desses discursos uma cena-tpica de

hospitalidade, as semelhanas e diferenas com outras cenas do gnero no

poema enriquecer a compreenso dos elementos persuasivos presentes no

discurso de Odisseu.

Para a anlise desses recursos persuasivos utilizei tericos modernos,

como Cham Perelman, Ruth Amossy e Philipe Breton. A organizao dos

captulos desta dissertao segue o esquema da argumentao na

comunicao, sugerido por Breton (2003), que distingue os trs elementos

fundamentais para a persuaso: o orador, o auditrio e o argumento. Cada um

desses elementos foi tratado em um captulo da dissertao. A respeito do

orador minha principal reflexo foi acerca da maneira como Odisseu constri o

ethos, o carter do cretense, da, que impresses sobre o personagem que ele

representa para Eumeu parecem importantes.

8

1. Poesia homrica e a teoria oral.

Dans le texte, le discours

homrique se trouve em

quelque sorte dnatur4

A distncia temporal e cultural e a carncia de informaes sobre a

forma de composio e de reproduo dos poemas homricos so obstculos

para os estudos da pica grega arcaica. Na tentativa de minimizar esses

obstculos foram desenvolvidas diversas teorias, as quais buscam reconstituir

(parte d)o contexto original desses poemas, de modo a possibilitar uma melhor

compreenso deles. Dentre as teorias que tentam explicar a forma de

composio dos poemas homricos est a teoria desenvolvida pelos

pesquisadores Milman Parry e Albert Lord, a qual defende que os poemas

homricos so frutos de uma longa e rica tradio oral.

A teoria de Parry e Lord considera que os poemas homricos so de

composio oral, datados provavelmente no sculo VIII a. C., antes do uso da

escrita estar consolidado na sociedade grega. Por isso, teriam sido compostos

e transmitidos oralmente, enquanto recebiam contribuies de vrios poetas

9

atravs dos tempos, o que acarretaria uma noo de autoria diversa da

concepo de sociedades detentoras de literatura escrita.

As publicaes de Parry e Lord tiveram grande repercusso, tanto entre

os classicistas, quanto entre estudiosos de tradies orais diversas a poesia

homrica passou a ser amplamente conhecida como representante de uma

tradio no escrita de literatura, criando a necessidade de reflexes sobre

como lidar com tal pressuposto para sua leitura. Afinal, mesmo concordando

com a teoria da oralidade da pica grega, os leitores modernos tm acesso a

um texto que em algum momento foi fixado e escrito e, diferentemente de

outros estudiosos de literaturas orais contemporneas, podem apenas fazer um

esforo na tentativa de reconstruir o contexto original dos poemas homricos.

O desafio do estudioso de Homero analisar um texto escrito, mas de origem

oral, sobre o qual existem diversas especulaes acerca do modo de

composio, performance e de transmisso, mas poucos dados nos quais se

basear.

1.1- Teoria Parry-Lord.

Milman Parry desenvolveu a teoria da oralidade de Homero ao se

dedicar ao estudo dos eptetos na Ilada e na Odisseia. Antes da publicao do

trabalho de Parry os estudos homricos estavam basicamente divididos em

duas vertentes: de um lado os analistas, sustentados por dcadas de filologia

4 SVENBRO, Jesper. La parole et le marbre: Aux origins de la potique grecque. Lund: Sutendlitteratur, 1976, p. 14.

10

germnica, que defendiam que os poemas que temos hoje seriam edies de

composies de muitos poetas, finalmente editados por um ltimo poeta ou

rapsodo. Esses crticos se debruavam sobre os poemas homricos na

tentativa de identificar os trechos de poetas de valor inferior para encontrar o

que seria obra do gnio Homero, usando como critrios as discrepncias de

roteiro, as referncias histricas e arqueolgicas, de linguagem e de estilo.

Nesse processo eles retiraram do texto homrico os ento considerados

erros, equvocos ou qualquer parte indigna de Homero, tais como repeties

ou inconsistncias de modo geral, na busca do texto primitivo.

De outro lado estavam os unitaristas, que na verdade eram muito mais

uma reao s teses da Anlise do que uma sugesto de abordagem terica.

Os unitaristas defendiam que a Ilada e a Odisseia so frutos do gnio de um

nico poeta5.

Milman Parry apresentou uma alternativa ao impasse unitaristas x

analistas, a possibilidade dos poemas homricos serem uma composio oral.

Em uma srie de artigos escritos entre 1928 e 1935, Milman Parry exps a

teoria de que a Ilada e a Odisseia de Homero eram poesia oral tradicional.

Parry no foi o primeiro a sugerir a possibilidade da composio oral dos

poemas homricos, no entanto o impacto de sua teoria foi sem precedentes na

pica grega.

Uma vez que a poesia homrica passa a ser considerada oral, a maneira

de pensar os poemas homricos necessariamente tem de ser modificada, pois

os poemas conteriam elementos tradicionais elaborados atravs do tempo por

5 Sobre as teses dos analistas e unitaristas Cf. a introduo de Adam Parry (1971)

11

diversos poetas, algo que coloca em cheque as noes modernas de autoria e

originalidade.

A teoria de Parry baseou-se em um estudo comparativo com bardos

contemporneos da (na poca) Iugoslvia meridional, que compunham e

transmitiam sua poesia de forma oral, sendo alguns desses poemas picos

similares poesia homrica, tanto pela extenso quanto pela estrutura. Parry e

seu discpulo, Albert Lord, fizeram um exaustivo trabalho de campo, estudando

como um poeta oral compunha enquanto cantava e, em particular, como usava

uma combinao tradicional de frmulas e temas estabelecidos para ajud-lo a

compor durante a apresentao.

O estudo de Parry e Lord demonstrou um sistema similar de frmulas

tradicionais referentes aos eptetos nos poemas homricos, sendo essa a base

da teoria da oralidade da Ilada e da Odisseia. Para a teoria de Parry de que os

poemas homricos so compostos por frmulas, possibilitando aos aedos

compor sem o auxlio da escrita, a comparao com a poesia iugoslava foi

determinante, pois se tratava tambm de uma pica formular, muitas vezes

com poemas extensos e comprovadamente composta e transmitida

inteiramente sem escrita.

A pesquisa com os poetas iugoslavos, os guslari, demonstrou que os

poetas orais podem tanto cantar poemas j conhecidos, de maneira

semelhante embora nunca idntica, como tambm podiam improvisar,

compondo atravs dos seus conhecimentos de frmulas e cenas-tpicas.

Entretanto, tanto quando compunham quanto quando cantavam canes j

conhecidas, os bardos no repetiam palavra por palavra nem mesmo os

12

cantos, no momento em que os cantavam, os recriavam. A prpria noo

desses poetas do que seria um mesmo canto diferente da nossa, membros

de uma sociedade baseada largamente na escrita, pois eles no consideravam

que cantar uma mesma cano fosse repeti-la palavra por palavra; cada vez

que eles se punham a recitar um poema j cantado antes se notava

significativas diferenas, que no passaram despercebidas a Parry e Lord.

Aparentemente boa parte dessas alteraes devia-se audincia imediata do

bardo, o qual adaptava seu canto conforme as reaes do seu pblico.

Lord defendeu que os aedos, assim como os bardos iugoslavos, no

memorizavam um poema, porque isso requereria um texto fixo a ser

memorizado, mas o que realmente existia para eles era um ncleo narrativo

mais ou menos fixo, que era adaptado de acordo com a circunstancia imediata

de reproduo. Assim tambm, os poetas teriam flexibilidade dentro de sua

tradio, tanto para adaptar ou modificar canes j conhecidas, como para

usar as unidades tradicionais para compor um novo poema, que estaria da

mesma forma dentro da tradio.

Os estudos de Parry concentraram-se na anlise dos eptetos

homricos, eptetos que muitas vezes sob um olhar moderno pareciam demais

repetitivos, mas na verdade fariam parte de um sistema extremamente

complexo de uso e distribuio, relacionado posio que ocupavam no verso.

Desse modo, se o mesmo personagem era mencionado em outra parte do

verso, ele receberia um epteto diferente, um que se adaptasse mtrica

naquele ponto. Assim, a escolha de um epteto estaria mais ligada s

necessidades mtricas do que ao contexto imediato da narrativa:

13

Peleio Aquiles (Il,I,1)

Divino Aquiles (Il,I,7)

Aquiles, ps velozes (Il,I,58)

A ideia essencial dos versos citados acima seria Aquiles, sendo que os

eptetos diferentes estariam diretamente associados posio ocupada no

verso, e no a uma necessidade imediata de dizer que Aquiles ps rpidos

ou divino.

Essa estratgia no se resumiria apenas aos eptetos, mas algumas

vezes a versos inteiros, o que foi chamado de frmula. Um grupo de palavras

que regularmente empregado nas mesmas condies mtricas para

expressar uma mesma ideia essencial (PARRY, 1971, p. 272, traduo minha)

Podemos considerar que um grupo de palavras regularmente empregado na

pica grega arcaica pelo nmero de vezes que encontrado nos poemas, e

essa recorrncia como uma medida da utilidade desses grupos de palavras

para a composio.

A afirmao de que a principal funo dos eptetos seria auxiliar na

composio do hexmetro despertou crticas, pois seu significado ficaria

relevado a um segundo plano. Lord rebateu essa critica afirmando que os

eptetos dos versos orais tradicionais no so apenas formas de completar o

verso, desprovidas completamente de sentido prprio. O exemplo usado por

Lord (1987, p. 57) Odisseu, que chamado de polymetis oitenta e uma vezes

na Odisseia, o que demonstraria sua utilidade mtrica. Odisseu no era

especialmente inteligente em cada circunstncia na qual foi utilizado o epteto,

http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=*phlhi%2Ba%2Fdew&la=greek&prior=qea/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=*%29axilh%3Dos&la=greek&prior=*phlhi+a/dewhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=di%3Dos&la=greek&prior=kai/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=*%29axilleu%2Fs&la=greek&prior=di=oshttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=po%2Fdas&la=greek&prior=mete/fhhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=w%29ku%5Cs&la=greek&prior=po/dashttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=*%29axilleu%2Fs&la=greek&prior=w)ku/s

14

mas de qualquer modo ele caracteristicamente astuto, ou seja, esse um

dos seus atributos permanentes. Lord afirma que as frmulas da poesia oral

no so desprovidas de significado e, tanto o poeta quanto os ouvintes,

reconhecem esse significado cada vez que elas so usadas.

O sistema formular proposto por Parry extremamente econmico, ou

seja, existiriam frmulas para cada seo do hexmetro, com pouca

duplicao. Essa economia do sistema, que era ao mesmo tempo de uma alta

complexidade, no poderia ser obra de um nico poeta, mas sim fruto de uma

longa tradio, na qual muitos aedos compuseram atravs dessas frmulas

tradicionais, as utilizando e elaborando ao mesmo tempo. Ao longo de um

extenso perodo, o sistema formular foi sendo aprimorado, at atingir o estgio

encontrado na Ilada e na Odisseia.

E no apenas os versos se repetiriam, mas tanto na Ilada quanto na

Odisseia existem aes recorrentes que so descritas com muitos detalhes e

palavras semelhantes. Desse modo, os aedos se utilizavam das frmulas para

auxiliar a composio dos versos e das estruturas de cenas para auxiliar na

construo da narrativa. O primeiro a estudar esse padro foi Walter Arend,

(1933, apud EDWARDS, 1992), que o chamou de cenas-tpicas. Arend fez

uma anlise dessas cenas nos poemas homricos, demonstrando suas

similaridades e sequncias repetitivas, e as nomeou de acordo com as aes

narradas em cada uma.

Parry, em resenha ao livro de Arend, em 1936, declarou que o trabalho

de Arend com cenas-tpicas importante na medida em que deixa clara a

diferena entre os poemas homricos e os modernos, mostrando como

15

Homero constri seu poema com esquemas tradicionais de composio.

Entretanto Parry diz que Arend falha em entender o real motivo da poesia

homrica usar cenas-tpicas, por no conhecer intimamente a forma como

trabalha a poesia oral.

Na opinio de Parry, Homero compunha dessa forma porque no tinha

alternativa, no aprendeu outra forma de compor; ao contrrio dos poetas de

uma literatura escrita, o aedo nunca estaria livre de sua tradio. Esses

padres repetitivos, portanto, seriam uma forma de composio tpica da

poesia oral e o talento de Homero seria visvel no por inovaes na sua

poesia, como diz Arend, mas sim por captar toda a riqueza de sua tradio ao

compor.

Embora o trabalho de Arend tenha sido independente das pesquisas

desenvolvidas por Parry acerca da oralidade em Homero, o conceito de cena-

tpica (ou tema, como foi tratado por Albert Lord) tambm est presente na

teoria Parry-Lord, como uma das caractersticas da composio oral. Ainda que

Parry tenha trabalhado mais o conceito de frmula, na resenha acima citada

ele admite que provavelmente a cena-tpica seja um teste melhor sobre a

origem oral de um texto do que as frmulas, ao menos na poesia arcaica

grega. Lord, no livro The Singer of Tales, diz que o tema funciona no nvel

narrativo assim como as frmulas no nvel do verso. No artigo Homer and

Huso II (1938, p. 440) ele define tema como: uma unidade de assunto, um

grupo de ideias regularmente empregados por um poeta, no apenas em um

dado poema, mas na poesia como um todo. J no livro Epic Singers and Oral

16

Tradition6, Lord diz que tema no simplesmente um assunto, como um

conselho ou uma festa, mas que o tema na literatura oral distintivo porque

seu contedo expresso em mais ou menos as mesmas palavras toda vez que

o cantor ou contador de histrias os usa.

E como j dito, esse tipo de composio tradicional est repleto de

repeties, herana de todas as performances anteriores, presentes nas

frmulas e cenas-tpicas. Ainda que tenha sido defendido que essas repeties

seriam uma forma do bardo relembrar sua audincia de eventos j narrados no

poema, um recurso mnemnico, uma vez que o pblico precisaria de sua

memria para acompanhar a longa narrativa, Lord defendeu que elas, na

verdade, seriam parte de uma espcie de ritual tpico da poesia oral, embora

relembrar a audincia tambm acabasse acontecendo naturalmente.

A presena dessas repeties nos poemas homricos colocou em

questo o papel da originalidade do poeta, uma vez que ele seguia uma

tradio, compondo com o auxlio de frmulas e temas moldados ao longo dos

tempos e das performances, a criatividade e talento do poeta individual so

contestados. Lord tratou dessa questo no captulo Homers originality7,

dizendo que um poeta no tem que deixar a tradio para compor um poema

do mais alto valor, pois as possibilidades dentro de uma tradio so enormes,

e explicou que cada poeta tem um conjunto de frmulas que faz parte do seu

estilo e tem liberdade para combinar, arranjar, alongar ou encurtar os temas,

havendo, desse modo, sim espao para a criatividade do aedo.

6 1991, p.15 et seq. 7Idem, p. 38-48.

17

A teoria de Parry e Lord tratou especificamente do modo de composio

da poesia homrica, por isso focaram os estudos nas frmulas e cenas-tpicas,

entretanto outros aspectos, tais como a performance e os modos de

transmisso da poesia homrica, foram pouco tratados na teoria Parry-Lord,

tendo sido mais desenvolvidos por seus seguidores.

A despeito de todas as perguntas que remanescem sem resposta, as

pesquisas de Parry e Lord deram inicio a toda uma nova perspectiva acerca de

Homero, no solucionaram a questo homrica, mas abriram novas vertentes

de dvidas sobre a oralidade total ou parcial dos poemas e suas implicaes

na concepo que fazemos da pica grega arcaica. Esta dissertao, que foca

na persuaso presente nos discursos de Odisseu no canto XIV da Odisseia,

tem como uma das bases a origem oral do poema e o modo como isso

diferencia a anlise da que seria feita em uma narrativa puramente escrita.

Para tal os conceitos de frmula e cena-tpica sero utilizados como recursos

para melhor compreenso da estrutura e recursos discursivos.

1.3. Cena-tpica, motivos e frmulas presentes nos discursos do canto XIV

da Odisseia.

Assim como a poesia homrica toda, os discursos de Odisseu a Eumeu

no canto XIV tambm esto repletos de unidades da poesia oral tradicional, tais

como cenas-tpicas e frmulas, e antes de comear a anlise da persuaso

18

nessas narrativas, farei o reconhecimento das principais unidades da oralidade

presentes nelas.

Levando em considerao as muitas definies que receberam as

unidades da poesia oral, faz-se necessrio optar por uma delas antes de iniciar

propriamente a anlise do corpus. Nesta dissertao as definies de frmula,

motivo, cena-tpica e histria-padro utilizadas sero as citadas no glossrio

publicado no livro Odyssey, a narratological commentary, de Irene de Jong:

motivo: uma recorrente unidade mnima narrativa.

Histria-padro: uma reccorrente sequncia de eventos ou cenas,

de forma menos fixa que a cena-tpica. (e.g., a histria-padro do

reconhecimento adiado)

Cena-tpica: um recorrente bloco narrativo com uma estrutura

identificvel e frequentemente uma linguagem idntica, descrevendo

aes cotidianas recorrentes (e.g. cena-tpica de sacrifcio). Cenas-

tpicas podem ser comprimidas ou expandidas, assim como outros

elementos podem ser mudados. Tais manipulaes tornam-se

instrumentos narrativos poderosos. (traduo minha)

possvel identificar a recepo de Odisseu por Eumeu como um

padro recorrente encontrado tambm em outras cenas na Odisseia, um

estrangeiro sendo recepcionado por um anfitrio, um evento do cotidiano

narrado com certa sequncia de eventos, uma cena-tpica. Reconhecer a

recepo de Eumeu como uma cena-tpica nos oferece a possibilidade de

compar-la com outras cenas de hospitalidade existentes na Odisseia e,

atravs desse contraste, enriquecer a anlise da passagem em questo.

19

Trabalhos importantes foram realizados estudando cenas-tpicas que

narram um mesmo fato cotidiano, como o trabalho de Bernard Fenik (1968)

acerca de cenas-tpicas de batalha na Ilada. Steve Reece, no livro The

Strangers Welcome (1993), estudou as cenas de hospitalidade em Homero,

identificando dezoito ocorrncias desse tipo de cena na pica homrica, entre

elas a recepo de Odisseu disfarado de mendigo pelo porqueiro Eumeu, no

canto XIV. O estudo de Reece sobre a hospitalidade especialmente

importante na Odisseia, uma vez que a histria do nostos de Odisseu o mostra

como hspede nos mais diversos lugares e interagindo com seus hospedeiros

em cada uma das terras visitadas.

Segundo Reece (p.6-7) existem vinte e cinco elementos que ocorrem

repetidamente nas cenas de hospitalidade homricas, ainda que nenhuma

delas possua todos eles. As convenes elencadas por Reece vo desde a

chegada na casa do hospedeiro, a descrio do ambiente, a refeio e o sono,

at a conduo que o anfitrio oferece ao hspede, rumo ao seu novo destino.

Dentre esses vinte e cinco elementos, apenas a sequncia do banho, oferecido

pelo anfitrio ao seu hspede, est ausente no canto XIV.

J Edwards (1992), que tambm trata das cenas de hospitalidade, as

dividiu no seguinte padro: chegada e recepo do hspede, banho, refeio,

reconhecimento e entretenimento, retirada para a noite, partida e presentes.

A parte da hospitalidade de Eumeu que ser o foco dessa dissertao

o que Edwards chama de reconhecimento e entretenimento e Reece de

Identificao, o momento no qual o hspede revela sua identidade (no caso

de Odisseu algumas vezes ela falsa) e entretm seu hospedeiro com uma

20

narrativa. Embora existam nos poemas homricos outras cenas nas quais os

personagens revelam uma identidade fora do contexto da hospitalidade8, todas

as cenas de hospitalidade contam com a identificao do hspede.

A hospitalidade homrica no apenas a recepo do estrangeiro, mas

tambm a recepo do discurso do hspede pelo anfitrio como parte

constituinte desse tipo de cena-tpica. Alm de receber o estrangeiro, oferecer

abrigo, lugar de honra na casa, alimento e ajuda para a continuao da sua

jornada, o hospedeiro tambm recepciona o discurso de seu hspede. Sendo a

hospitalidade uma obrigao na sociedade homrica, que gera laos de

amizade entre hspede e anfitrio, a narrativa parte do processo de

estabelecer camaradagem entre os dois homens, assim, da mesma forma

como eles trocam presentes, tambm trocam narrativas.

E a narrativa contada por Odisseu especialmente longa, com cento e

sessenta e oito versos, a maior narrativa contada por um hspede para seu

anfitrio, depois dos apologoi narrados aos fecios (IX-XII). Seguindo a

deduo de Edwards, possuir uma extenso maior do que a encontrada em

outras cenas-tpicas de hospitalidade demonstra que foi dedicada uma ateno

especial, representando uma maior importncia dentro da cena em questo.

O primeiro discurso de Odisseu a Eumeu, uma das mentiras cretenses,

na qual ele narra uma falsa biografia, possui a mesma histria-padro da

prpria Odisseia, o retorno do heri de Troia para sua terra natal. Odisseu

disfarado de mendigo utiliza o motivo do heri que retorna de Troia nos versos

242-244:

8Por exemplo, Odisseu e Atena no canto XIII. Para uma anlise das cenas de reconhecimento na

21

[...] viemos de volta. Um dos deuses o exrcito acaio dispersa.

Contra mim, pobre infeliz, Zeus prudente enviou outros males.

Um ms,somente, fiquei deleitando-me ao lado dos filhos9, [...]

, .

:

Tambm encontramos a mesma histria-padro no canto III, quando

Nestor conta a Telmaco o que houve depois da vitria sobre Troia (vv.130-

200), no canto IV Menelau tambm narra seu retorno (vv.351-586) e como,

atravs do velho do mar, Nereu, soube do destino de outros companheiros de

batalha. No canto XI, quando Odisseu tem sua nekyia, a sombra de

Agammnon conta seu retorno e como foi assassinado pela esposa e seu

amante (vv.405-454). No canto I, Fmio est cantando um poema que fala

sobre o retorno dos guerreiros, quando Penlope lhe pede que pare (vv.335-

337), Telmaco inclusive diz que Odisseu no foi o nico a perder o retorno,

quando repreende a me por pedir para o aedo parar de cantar (vv.354-355).

Na narrativa do canto XIV o mendigo diz ter retornado para Creta, ainda que

por pouco tempo.

Uma vez que as histrias sobre os retornos de Troia dentro do poema

demonstram o quo difcil foi para os gregos rumarem para casa, o fato do

cretense alegar a Eumeu que conseguiu rever sua terra natal aps a guerra de

Troia o caracteriza como um heri de certo valor, pois o retorno na Odisseia

Odisseia, ver Gainsford (2003).

9 A traduo da Odisseia utilizada neste trabalho de Carlos Alberto Nunes

22

depende tanto de qualidades pessoais quanto da proteo divina. Entretanto,

ainda que o mendigo diga que conseguiu retornar para casa, ele enfatiza que o

retorno foi muito breve, pois logo partiu novamente e desde ento vaga por

terras alheias, assim como Eumeu imagina que seu prprio senhor faz, se

ainda est vivo (vv. 42-44).

A desobedincia dos companheiros ao seu comandante tambm um

motivo que se repete na Odisseia, sempre seguido de resultados ruins: O

mendigo diz a Eumeu que, ao chegar ao Egito, deu ordens aos seus homens

para ficarem nas naus enquanto ele seguiria com batedores, mas ao voltar eles

haviam saqueado a cidade (vv.262-265). No dia seguinte, mais egpcios

surgiram para um contra-ataque, no qual o cretense e seus homens foram

subjugados (vv.266-272):

Os moradores os gritos ouviram, e em massa acorreram,

ao romper da alva, apinhando-se o vale de pees e cavalos

e do fulgor de aneas armas. Nos meus companheiros o Crnida

fulminador de desnimo inspira, ningum se atrevendo

a resistir, que por todos os lados a Morte ameaava.

Muitos dos nossos ali foram mortos por bronze afiado;

Outros, com vida apanhados, porque como escravos vivessem.

:

:

,

: .

23

,

, .

No canto X (vv.38-49), os companheiros de Odisseu abrem o saco no

qual olo tinha encerrado todos os ventos, exceto aquele que os levaria de

volta taca, fazendo com que os ventos libertos os empurrem de volta ilha

de olo. No canto XII, Odisseu deixa ordens para no mexerem nos bois de

Hlio, mas seus companheiros novamente o desobedecem, matando um dos

bois (vv.340-365), resultando no pedido de Hlio a Zeus por vingana. Tambm

com os ccones, Odisseu quer saquear e sair em seguida da ilha, mas seus

companheiros insistem em permanecer, perdendo a batalha no dia seguinte

quando os ccones chamam auxlio (IX, vv. 43-60). Em todas elas vemos a

prudncia de Odisseu contrastada com a imprudncia dos seus companheiros,

que ruinosa para eles. Assim, o mendigo se apresenta com esse motivo

como um lder astuto e previdente, o fato de ser desobedecido pelos

companheiros no prejudica sua imagem de comandante, nesse motivo a culpa

dos males est na imprudncia e desobedincia dos subordinados, no em

uma falta de habilidade do lder em se fazer obedecer.

Ao narrar como se salvou da batalha com os egpcios e seu tornou

hspede do rei, o cretense usa uma cena-tpica de splica, abraando os

joelhos do rei, suplicando pela vida (vv. 276-280):

No mesmo instante arranquei da cabea o elmo caro e bem-feito,

Bem como o escudo dos ombros, jogando das mos a hasta longa,

E aproximei-me do carro em que o rei se encontrava; abracei-o

Pelos joelhos, beijando-o; salvou-me ele, ento, protegendo-me

24

Fez-me subir para o carro e ao palcio, entre prantos, levou-me.

, :

: ,

.

A caracterizao do rei egpcio como algum piedoso ao atender o

suplicante, apoiado pela ideia de que os suplicantes so protegidos por Zeus

parece um pouco fora de contexto, uma vez que, no campo de batalha, parece

no haver lugar para as splicas, como demonstrado no canto XI da Ilada,

quando Agammnon mata um troiano durante uma batalha, a despeito de suas

splicas (vv.123-142).

No discurso de Odisseu a Eumeu, a splica do perdedor de uma

batalha ao vitorioso, no entanto o motivo da splica acontece em outros

contextos, como no canto VII, no qual temos a cena de splica de Odisseu a

Arete, que como suplicante abraa os joelhos da rainha para pedir ajuda em

seu retorno (vv.142).

Outro motivo utilizado no discurso de Odisseu a venda como escravo

aps ter sido enganado, motivo que se repete duas vezes (vv. 295-297 e 336-

338):

Em uma nau sulcadora me fez embarcar para a Lbia,

Sob o pretexto enganoso de a carga a levar ajud-lo;

Mas intentava vender-me por l, para obter muito lucro.

25

, ,

.

A esses tinha ele ordenado com muito carinho levarem-me

Ao rei Acasto; ocorreu-lhes, porm, uma ideia funesta

A meu respeito, porque na misria mais negra afundasse.

:

, .

O mesmo motivo est presente no discurso do prprio Eumeu, quando

ele conta sua histria, no canto XV (vv.465-483). A reiterao do motivo no

discurso de Odisseu parece pressupor a biografia de Eumeu.

Tambm recorrente na Odisseia o motivo da tempestade. atravs de

uma tempestade, enviada por Zeus, que o mendigo diz ter escapado da

primeira tentativa de rapto para venda como escravo (vv.303- 307):

Fez o de Crono nascido surgir uma nuvem sombria

Por sobre a cncava nave, que as ondas escuras deixava.

Zeus a um s tempo troveja e um relmpago expede ao navio;

Este girou sobre si, quando foi pelo raio atingido;

Cheiro de enxofre se espalha; no mar foram todos lanados.

26

, .

:

,

: .

Tempestades enviadas pelos deuses so um motivo presente no canto

V (v.290), depois de deixar a ilha de Calope, no canto I (v.286), a tempestade

enviou um dos navios da frota de Odisseu para Creta (a mesma ilha da qual

Odisseu diz proceder no canto XIV), depois do saque aos ccones Odisseu e

seus companheiros tambm so surpreendidos por uma tempestade (IX, v.67),

assim como logo aps escapar de Cila (XII, v.403).

Aps escapar do naufrgio com ajuda divina, o mendigo diz ter chegado

terra dos tesprtios, onde foi recepcionado e vestido pelo filho do rei (vv.316-

320):

[...] cujo monarca, Fido valoroso, me acolhe benigno,

Sem pagamento, que pela umidade e cansao vencido

Fui por seu filho encontrado, que ao rgio palcio me leva

No prprio brao amparado, at os paos do pai alcanarmos,

Onde tnica e um manto me deu porque o corpo eu cobrisse.

:

,

, :

.

27

O mesmo motivo encontrado em sua chegada na Fecia, no canto VI,

vv. 118- 320, no qual Odisseu escapa do naufrgio aps ter deixado a ilha de

Calipso e levado pelas ondas at a Fecia, onde encontra com Nauscaa, a

filha do rei, e tambm recebe roupas dela.

Na terra dos tesprtios tambm o cretense teria recebido notcias de

Odisseu. Ele conta ao porqueiro que o rei de taca tambm tinha sido

hospedado pelo rei Feidon e que havia ido consultar o orculo em Dodona

sobre a melhor forma de retornar para casa, se abertamente ou em sigilo. Irene

de Jong afirma que essa passagem um duplo da consulta que Odisseu faz a

Tirsias, no canto XI, assim como a descrio das riquezas que Odisseu teria

guardadas nas terras dos tesprtios seria um duplo das riquezas reais que o rei

mantinha em segredo na gruta.

Tambm a segunda narrativa de Odisseu composta por elementos

tradicionais, tais como frmulas e cenas-tpicas, e reconhecida por Eumeu

como um ainos, um tipo de discurso tradicional. O fato do discurso ser

chamado de ainos pela sua audincia traa um paralelo com duas cenas da

Ilada, ambas no canto XXIII, a primeira quando Aquiles entrega um prmio a

Nestor, mesmo ele no tendo competido nos jogos, [...] Falou, e Aquiles, tendo

ouvido o velho Nestor [...] , . (v.652), e

a segunda logo em seguida, quando Antloco perde a corrida e justifica dizendo

que mais jovem e os deuses honram os mais velhos, Aquiles tambm

reconhece o discurso como um ainos: Antloco, este encmio no caiu no

vazio, , (v.795).

28

O mendigo lamenta diante de Eumeu e seus companheiros no ser mais

jovem, pois, se ainda o fosse, em sinal de respeito um deles lhe cederia o

manto. O mesmo lamento pela juventude passada est no ainos de Nestor (Il.

XXIII vv.626-643). Jong afirma que esse tipo de lamento nostlgico se repete

vrias vezes na Odisseia, no apenas com relao a juventude perdida, mas

por um passado melhor, como por exemplo, no canto I, no qual Atena interpela

Telmaco disfarada e pergunta sobre os festejos dos pretendentes e ele

lamenta o pai no estar presente para manter a ordem (vv.253-269).

Aps o lamento da juventude perdida o cretense comea a contar uma

tocaia feita em Troia, na qual ele esteve presente juntamente com Odisseu e

Menelau, sendo ele o terceiro em comando. Era muita noite muito fria e o

cretense estava sem seu manto. Prestes a morrer de frio ele pede socorro a

Odisseu, que atravs de uma de suas artimanhas lhe consegue um agasalho.

Com o auxlio de uma frmula, reconhecemos o que deve ser o vestgio

de uma cena-tpica de sonho falso. Ao narrar como Odisseu chama a ateno

dos companheiros que esto na tocaia, o discurso comea com a frmula:

Ora, ouvi,camaradas, que um sonho divino me veio. , :

. (v.495)

No canto II da Ilada (v.56) essa frmula usada por Agammnon

quando, depois de sonhar que vencer os troianos, ele rene os gregos para

contar exatamente o contrrio, que recebera um sonho de Zeus dizendo que

eles perderiam a guerra. A frmula usada para anunciar o discurso do falso

sonho e, nos dois casos, o sonho falso anunciado num contexto de teste.

29

Essas passagens mostrariam os traos gerais de uma cena-tpica de teste de

um personagem atravs de um sonho. 10

Odisseu menciona nominalmente Agammnon em XIV, v. 497: [...]

interrogar ao Atrida Agammnone, rei poderoso ,

, e Newton (1998) defende que isso para reforar uma

referencia a Ilada e, ainda que seja difcil afirmar que, efetivamente, o uso do

nome Agammnon seja uma meno ao outro poema, de fato todo o ainos est

repleto de referencias guerra de Tria, e a presena de uma frmula presente

tambm na Ilada, j mencionada no pargrafo anterior, refora o eco ilidico

da passagem.

Todas as unidades tradicionais presentes nos discursos de Odisseu no

canto XIV, que foram rapidamente expostos aqui, sero retomados no captulo

trs, quando tratarei da argumentao usada por Odisseu para convencer

Eumeu. As possveis expanses ou adaptaes de cenas-tpicas, o uso de

frmulas que remetem a outras cenas similares, entre outros pontos, ser

analisado como um dos elementos para a construo do carter persuasivo

das narrativas de Odisseu.

10

Em Od. XIX. 535-581 Penlope relata um sonho a Odisseu disfarado de mendigo, mas no a

indicao de se tratar ou no de um sonho falso.

30

2. O Orador

Uma vez que me proponho a analisar um discurso preciso levar em

considerao que todo discurso proferido (ou escrito) por algum. Todo ato

comunicativo necessita de um emissor11, e no caso de um discurso que visa a

persuaso o emissor chamado de orador, na definio de Phillipe Breton (2003)

O orador aquele que, dispondo de uma opinio, se coloca na postura de

transport-la at um auditrio e submet-la a este auditrio para que ele partilhe

dela (p. 29). Para ser um orador, portanto, o principal requisito querer partilhar

uma opinio com quem escuta (ou l) suas palavras.

Na poesia homrica encontramos oradores, sobretudo na gora, local no

qual um heri grego deve saber portar-se, uma vez que as importantes tomadas

de deciso tm lugar nas assembleias. Um bom exemplo disso est no discurso

de Telmaco no canto II, quando ele tenta convencer o povo de taca a ajud-lo

em seus infortnios com os pretendentes. Embora fracasse nisso, Telmaco

consegue ao menos convencer seus concidados a ceder-lhe um navio para

procurar notcias de seu pai. Toda a Telemaquia, portanto, s possvel porque o

filho de Odisseu, com auxlio de Atena, pode persuadir seus ouvintes a permitir-

lhe a viagem.

Nos poemas homricos tambm os aedos dependem de suas habilidades

com as palavras;, ainda que no enfrentem a assembleia, esto nos banquetes,

procurando agradar os convivas com seus cantos, dependendo disso tambm

para receber seus presentes. Ainda que, no caso dos aedos, no seja feita

11 Breton, 2003, p.28.

31

referncia persuaso do pblico, mas sim deleita-los,12 se lembrarmos que no

existe discurso neutro13, mesmo quando os poetas contavam histrias, estavam

tentando transmitir certas ideias: sou melhor poeta que os outros bardos; minha

verso da histria mais interessante do que outras que vocs ouviram; quem

fala pela minha boca so as musas.

Se no tangente necessidade de partilhar uma opinio com seu pblico o

aedo no est to distante do orador, no canto XIV, quando Odisseu assume o

papel de narrador, est muito prximo dos dois. Uma vez que sua recepo por

Eumeu se configura como uma cena-tpica, e que, como vimos no captulo

anterior, o hspede narrar histrias uma constante nessas cenas, o cretense

apenas segue uma tradio ao contar sua origem. No entanto, quanto maior a

habilidade que ele demonstrar, melhor ser visto por seu anfitrio e tambm pelo

pblico externo do poema, pois ser um bom contador de histrias o torna um heri

diferente dos outros, sendo esta uma das formas de se caracterizar como um

grande heri, superior aos mortais comuns e assim digno de ter sua histria

narrada.

Eumeu, tal como Alcnoo havia feito na Fecia, elogia a percia de Odisseu

como contador de histrias (vv. 507-510). Zerba (2009, p.316) afirma que esses

momentos nos quais Odisseu caracterizado como um exmio orador so uma

forma de salientar suas qualidades, de modo semelhante ao que feito na Ilada

com alguns personagens que so destacados durante as batalhas com narrativas

12 Em algumas passagens da Odisseia, fala-se do efeito de uma narrativa de Odisseu diante dos facios (no intermezzo do canto 11 e no incio do canto 13 a mesma frmula usada); na caracterizao do cretense feita por Odisseu diante de Penlope no canto 17 como um encanto, um feitio mgico, que seria, por assim dizer, uma persuaso no seu grau mximo. 13 Para Bakhtin (2004), no existe discurso neutro e nem fala individual: ela sempre composta de discursos j-ditos e dirigida a algum.

32

de seu desempenho individual, de sua desenvoltura como guerreiros acima da

mdia, tal como Diomedes no canto V. Para Zerba, as cenas nas quais Odisseu

demonstra sua habilidade com as palavras so equivalentes no campo da fala ao

que a aristeia no campo da ao. Assim sendo, tais passagens nas quais

Odisseu assume o papel de narrador possuem um efeito individualizante, so

uma exaltao de uma das qualidades que tornam Odisseu um heri acima da

mdia, sua habilidade oratria.

Alm da individualizao concedida a Odisseu quando ele assume o papel

de narrador, Zerba14 tambm defende que os atos em Homero apenas esto

completos quando so tornados pblicos e memorizados em palavras,

inicialmente pelos agentes das aes eles mesmos, depois pelas comunidades e

algumas vezes pelos bardos. Desse modo, quando Odisseu pede a Demdoco

para cantar sua contenda com Aquiles, est presenciando seu prprio kleos se

consolidando na tradio atravs das canes do aedo. No canto XIV ele

mesmo o narrador, anunciando com suas histrias seu prprio retorno, ao mesmo

tempo em que, com narrativas verdadeiras ou no, louva a si mesmo

intradiegeticamente ao colocar-se como o salvador do cretense em Troia, que o

salvou da morte pelo frio com uma ideia rpida, e extradiegeticamente, com sua

sagacidade em inventar uma mentira bem articulada e convincente.

A despeito de aparentemente Odisseu estar apenas contando histrias ao

seu hospedeiro, suas narrativas visam partilhar com Eumeu uma srie de

impresses acerca do personagem que ele est representando: no sou um

mendigo comum, confie em mim, ajude-me. Ao mesmo tempo, tambm o pblico

externo recebe as mensagens sobre as caractersticas do prprio Odisseu: sou

33

hbil para inventar histrias, sou o heri da mtis, minhas aventuras so dignas

de serem narradas e de serem ouvidas.

Observamos na cabana de Eumeu um Odisseu que constri um

personagem para o porqueiro, assim como o narrador constri o prprio Odisseu

diante do pblico externo. As aes e a aparncia fsica fazem parte da

construo desse personagem, mas a maneira pela qual ambos os pblicos,

interno e externo, consideraro Odisseu/cretense depende em grande parte de

suas narrativas.

2.1. A construo da aparncia fsica de Odisseu

Uma aparncia fsica condizente com seu pblico parece ser relevante na

Odisseia, pois notamos a interveno de Atena no aspecto fsico de seus

protegidos antes de eles terem um encontro importante, no qual precisam passar

uma boa impresso. Isso ocorre a Telmaco antes de falar com a assembleia no

canto II (v. 12-13): Palas Atena lhe infunde nos ombros a graa divina, de modo

tal que os do povo o admiravam sua passagem

.

.

Outro momento a transformao de Odisseu aps sobreviver a um

naufrgio antes de pedir ajuda a Nausicaa, no canto VI, vv. 227-235:

Quando acabou de banhar-se e esfregar todo o corpo com leo

14 2009, p.318 et seq.

http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=qespesi%2Fhn&la=greek&prior=e(/pontohttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=d%27&la=greek&prior=qespesi/hnhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=a%29%2Fra&la=greek&prior=d'http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=tw%3D%7C&la=greek&prior=a)/rahttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=ge&la=greek&prior=tw=|http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=xa%2Frin&la=greek&prior=gehttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kate%2Fxeuen&la=greek&prior=xa/rinhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=*%29aqh%2Fnh&la=greek&prior=kate/xeuenhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=to%5Cn&la=greek&prior=*)aqh/nhhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=d%27&la=greek&prior=to/nhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=a%29%2Fra&la=greek&prior=d'http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=pa%2Fntes&la=greek&prior=a)/rahttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=laoi%5C&la=greek&prior=pa/nteshttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=e%29perxo%2Fmenon&la=greek&prior=laoi/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=e%29perxo%2Fmenon&la=greek&prior=laoi/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=qheu%3Dnto&la=greek&prior=e)perxo/menon

34

Na roupa envolve-se que lhe a donzela pudica cedera.

F-lo ficar a nascida de Zeus, de olhos glaucos, Atena

Muito mais digno de ver e mais forte, caindo-lhe os cachos

Em caracis, da cabea, tal como os da flor do jacinto.

Do mesmo modo que artista perito derrama na prata

Lminas de ouro, discpulo que fora de Hefesto e de Palas

Em variados misteres, e faz admirveis trabalhos:

Palas, assim, na cabea e nos ombros infunde-lhe graa.

,

,

,

, .

,

, ,

.

Quando Odisseu est disfarado de mendigo conversando com Telmaco,

no canto XVI, Atena restabelece sua aparncia para a de um heri no auge do

vigor, o que faz primeiro Telmaco pensar que est diante de um deus (vv.181-

185), para s depois acreditar que realmente seu pai que retorna aps vinte

anos:

Bem diferente, estrangeiro, do que eras me surges agora;

Outros vestidos envergas; o aspecto do corpo diverso.

s, certamente, algum deus e demoras no Olimpo vastssimo.

S-nos propcio,porque sacrifcios condignos recebas

E ureos presentes de fino lavor. De ns todos te apieda.

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35

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Ao contrrio das outras cenas nas quais Atena faz Odisseu parecer mais

jovem e belo e assim impressionar sua audincia, antes de se apresentar diante

de Eumeu Odisseu tem seu porte e vigor escondidos pela deusa, que o

transforma em um mendigo curvado e envelhecido. A deusa diz que assim

ningum o reconhecer e ele ser repugnante aos pretendentes e tambm a sua

esposa e filho (XIII, vv. 396-403):

Ora tenciono deixar-te dos homens irreconhecvel,

Com te enrugar a epiderme macia nos membros flexveis

E da cabea fazer que se extingam os louros cabelos.

Roupa andrajosa dar-te-ei, que te faa hediondo aos olhares,

E alterarei de tal forma, turvando-os, teus olhos to belos,

Que aos pretendentes reunidos pareas de aspecto mesquinho,

Bem como ao filho e mulher, que, ao partires, em casa deixaste.

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36

A deusa escolhe rejuvenescer ou envelhecer, tornar belo ou repulsivo,

portanto, de acordo com a necessidade em cada passagem. Assim sendo, para a

continuidade de sua jornada atravs da estadia na cabana do porqueiro, Odisseu

deve parecer um mendigo.

Elizabeth Block (1985) afirma que, uma vez que Odisseu no est ainda

restabelecido em seu lar e em sua posio social, as roupas de mendigo refletem

a verdade; vestido como mendigo, Odisseu realmente um mendigo (p. 2). A

autora relembra a importncia do ato de vestir-se para a Odisseia, atestada pelo

destaque recebido pelas cenas de vestimenta, o fato das roupas estabelecerem

parte do status de um homem como um ser humano (assim, sendo, quando

Odisseu chega Fecia como um nufrago, nu, est tambm destitudo de seu

status de humano). No por acaso que os presentes tradicionais de um

hospedeiro a seu convidado so roupas tambm. Se sua permanncia na cabana

de Eumeu o princpio da retomada de seu lar, Odisseu a inicia como um

vagamundo, inclusive em suas vestes, para aos poucos recuperar seu status de

marido, pai e rei.

No comeo do canto XIV, Odisseu apresenta-se diante de Eumeu como um

mendigo, em situao de necessidade, debilitado e precisando de ajuda. Antes do

encontro com o porqueiro, Atena havia mudado sua aparncia para que ele

aparecesse ser mais velho, curvado e indefeso (XIII, vv. 429-438). Do ponto de

vista da narrativa, aparentar ser algum necessitado importante para a

composio da imagem do cretense, pois essa aparncia que o ajudaria a

conseguir abrigo na cabana de Eumeu e a permanecer incgnito.

37

A transformao da aparncia de Odisseu assegura que ele no ser

reconhecido, podendo assim reencontrar os seus amigos e familiares, constatar a

situao de sua casa e arquitetar sua vingana contra os pretendentes, assim

como tambm permite que ele seja hospedado por Eumeu, pois sendo um

mendigo, no de se estranhar que seja abrigado por um porqueiro.

Eumeu no se surpreende com a chegada de um mendigo a sua cabana,

ao contrrio, diz que o receberia, ainda que estivesse em uma situao pior, pois

os mendigos so protegidos por Zeus (vv. 56-58). Contrastando com os outros

hospedeiros de Odisseu e Telmaco, Eumeu o nico a no pertencer

nobreza. Atena, portanto, adqua a aparncia de seus protegidos de acordo com

a situao, pois se apresentando como um maltrapilho Odisseu no levanta

suspeitas de sua verdadeira identidade e pode esperar por seu filho na cabana do

porqueiro sem que isso parea inadequado.

Desse modo, a atual aparncia de Odisseu lhe confere a possibilidade de

se hospedar na cabana do porqueiro, e atravs de suas palavras que ele

demonstrar a Eumeu ser mais que um simples pedinte. A despeito de parecer

um velho mendigo, seu discurso o de um homem nobre, um guerreiro que

comandou homens em Troia. Com sua atual aparncia, a imagem de um antigo

guerreiro s pode ser demonstrada atravs do discurso e Odisseu tem apenas

suas palavras para construir um personagem que um mendigo, mas que j foi

um heri. Em suas narrativas, ele salienta seus momentos de glria passada, sua

origem nobre e a antiga vida abastada, de modo que demonstra que nem sempre

foi um andarilho sem nada.

38

2.2. O carter construdo pelo discurso: o ethos.

Essa imagem de um andarilho nobre, que lutou ao lado dos grandes heris

construda pelo cretense apenas com suas palavras, uma vez que sua

aparncia fsica em nada lembra um passado assim glorioso. A construo de

imagens de si atravs de estratgias lingusticas, tal como Odisseu no canto XIV,

chamada de ethos. Frobish (2003) diz que ethos, claro, geralmente se

relaciona com a percepo do carter de um falante por seu pblico (p. 18,

traduo minha).

Uma vez que o ethos deve ser resultado do discurso, ele no est

separado do logos, mas sim construdo atravs dele, sendo determinado pelas

escolhas do orador, pelas opes que ele faz dentre as vrias possibilidades

lingusticas e estilsticas. E essas opes no precisam ser algo consciente,

como diz Ruth Amossy (2005, p. 9):

Todo ato de tomar a palavra implica a construo de uma imagem de si.

Para tanto, no necessrio que o locutor faa seu autorretrato, detalhe

suas qualidades nem mesmo que fale expressamente de si. Seu estilo,

suas competncias lingusticas e enciclopdicas, suas crenas implcitas

so suficientes para construir uma representao de si

Sendo assim, mesmo que a poesia homrica seja anterior s teorias

retricas e Kennedy (1963, p.91) afirme sobre o ethos que ns no podemos

traar o desenvolvimento do ethos artstico na retrica antiga (traduo minha),

podemos, a exemplo de outros trabalhos j feitos15, estudar o ethos de um

15 Cf. Frobish (2003), Gill (1984), Karp (1977).

39

personagem da poesia homrica, uma vez que a construo do ethos inerente

ao ato de falar e que no necessria nenhuma reflexo terica para faz-lo

enquanto discursamos.

O conceito de ethos foi tratado por Aristteles em sua Retrica, ao

desenvolver os tipos de provas fornecidas pelo discurso:

Obtm-se a persuaso por efeito do carter moral, quando o discurso

procede de maneira que deixa a impresso de o orador ser digno de

confiana. As pessoas de bem inspiram confiana mais eficazmente e

mais rapidamente em todos os assuntos, de um modo geral; mas nas

questes em que no h possibilidade de obter certeza e que se prestam

a dvida, essa confiana reveste particular importncia. preciso

tambm que este resultado seja obtido pelo discurso sem que intervenha

qualquer preconceito favorvel ao carter do orador. Muito errnea a

afirmao de certos autores de artes oratrias, segundo a qual a

probidade do orador em nada contribuiria para a persuaso pelo

discurso. Muito pelo contrrio, o carter moral deste constitui, por assim

dizer, a prova determinante por excelncia.16

Assim sendo, segundo a retrica aristotlica, a audincia persuadida por

seu interlocutor principalmente pela imagem que consegue criar de si mesmo, ou

seja, se considerado pelo pblico algum digno de confiana e conhecedor do

assunto sobre o qual est discorrendo.

Entretanto, no caso do cretense, ainda que o ethos devesse ser construdo

apenas pelo logos, percebemos a influncia de um elemento extradiscursivo no

julgamento que Eumeu faz de seu hspede, qual seja, mendigos mentem para

obter presentes (vv. 125-126). Amossy (2005) tambm trabalha com o ethos na

40

narrativa, levando em considerao no somente a imagem que personagens e

narradores constroem de si para seu pblico interno, mas tambm a construda

para o pblico externo.

Levando em conta os dois planos dos destinatrios de Odisseu,

intradiegeticamente Eumeu, o porqueiro, e extradiegeticamente, o ouvinte da

Odisseia, ou, no nosso caso, os leitores do poema, possvel dizer que existe um

ethos de Odisseu perante Eumeu, a imagem de um homem nobre, um guerreiro

valoroso, que sabe contar boas histrias, e tambm existe o ethos de Odisseu

perante o pblico externo do poema, que admira a forma como Odisseu constri o

discurso, a habilidade com a qual ele adapta a sua narrativa de acordo com quem

a est ouvindo.

Tratarei dos pblicos da Odisseia no captulo III;, entretanto, para que

visualmente seja melhor exposto como ambos os pblicos afetam o poema, e

portanto o ethos de Odisseu e do cretense, sugiro o esquema abaixo, no qual a

narrativa interna que acontece no canto XIV reflete a narrativa do poema como

um todo:

16 Trad. Antnio Pinto de Carvalho, p. 33.

41

Os papis discursivos, emissor e receptor, so representados internamente

narrativa principal. Entretanto, atravs de sua narrativa para seu pblico interno,

o emissor interno tambm afeta o pblico externo. Ou seja, ao mesmo tempo que

Odisseu est construindo uma narrativa e uma imagem de si para Eumeu,

tambm o est fazendo para o pblico da Odisseia:

Desse modo, Odisseu constri uma imagem de si atravs do seu discurso:

aparentando ser velho e maltrapilho, ele convence como andarilho; e atravs de

seu discurso ele atribui ao cretense duas qualidades importantes na sociedade

grega arcaica: ser um heri de ao, um comandante de homens que um bom

combatente, ao mesmo tempo que capaz de falar bem.

O heri homrico ideal rene duas caractersticas, a capacidade oratria e

a presteza em batalha, atributos esses presentes em Odisseu que, por sua vez,

os transmite para o cretense ao procurar mostrar ao seu hospedeiro, com suas

narrativas no canto XIV, um homem que sabe manejar as palavras e contar uma

boa histria, assim como um guerreiro valoroso, caracterstica enfatizada diversas

vezes durante a narrativa de suas aventuras. Ao mesmo tempo a audincia

42

externa tem a possibilidade de observar a percia de Odisseu ao inventar as

histrias para atingir seus objetivos.

Kennedy (1963, p. 39) comenta a presena dessas duas caractersticas

nos heris homricos:

Existem duas maneiras de alcanar o ideal heroico; ser um realizador de

aes ou um orador. Apenas os grandes heris como Aquiles e Odisseu

podem fazer ambos, a maioria distingue-se em um ou outro. Em ambos

os casos o objetivo angariar honra, que uma forma de imortalidade,

assegurada pelo discurso em si, ou seja, pela atividade do bardo.

(traduo minha)

A prpria deusa Atena, no canto II, aps o discurso de Telmaco na

assembleia, salienta a capacidade de Odisseu em ser bom nas duas coisas (vv.

270-273):

Para o futuro nem fraco, nem ftil sers, Telmaco,

Se de teu pai, em verdade, possures o ardor invencvel.

Homem como ele bem raro; no s nos discursos, nas obras!

, ,

,

Odisseu, que possui essas duas caractersticas tradicionalmente, as atribui

ao cretense atravs de seus discursos. Foi um guerreiro nobre e um homem

que sabe narrar uma histria seguindo os moldes tradicionais, portanto, algum

digno de considerao e da ajuda do porqueiro.

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