universidade de sÃo paulo faculdade de direito … · de seus dispositivos legais, por vezes...
TRANSCRIPT
-
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE DIREITO
MESTRADO EM DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E MEDICINA FORENSE
NICOLE TRAUCZYNSKI
GESTO FRAUDULENTA E CONCURSO DE NORMAS NA LEI DOS CRIMES
CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL
SO PAULO
18 de janeiro de 2014
-
NICOLE TRAUCZYNSKI
GESTO FRAUDULENTA E CONCURSO DE NORMAS NA LEI DOS CRIMES
CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL
Dissertao apresentada no curso de ps-graduao da
Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, como
exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em
Direito, na rea de concentrao de Direito Penal,
Criminologia e Medicina Forense, sob orientao da Prof.a
Dr.a Helena Regina Lobo da Costa.
SO PAULO
18 de janeiro de 2014
-
2
RESUMO
O presente trabalho visa analisar as implicaes e desafios impostos ao direito penal na tutela
da criminalidade econmica atual, especialmente no que tange ao delito de gesto fraudulenta
de instituio financeira, previsto no caput do artigo 4 da Lei 7.492/86, delito mais
severamente apenado na Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Em razo de
sua descrio absolutamente genrica e da gravidade da sano cominada buscar-se-
interpretar suas elementares tpicas de forma conectada aos motivos que ensejaram a sua
edio, bem como relacionada ao bem jurdico tutelado pela norma, aplicando-se redutores
teleolgicos no desiderato de conferir ao tipo uma identidade prpria, agregando coerncia
interna na prpria lei e minimizando os recorrentes problemas quanto ao mbito de incidncia
de seus dispositivos legais, por vezes dispostos em situao de conflito aparente de normas.
Nesses termos, o crime de gesto fraudulenta de instituio financeira ser decomposto em
todos os seus elementos tpicos, objetivos e subjetivos, observando-se sua objetividade
jurdica, objeto material, sujeitos ativos, passivos, concurso de pessoas, consumao e
tentativa. Posteriormente, ser adentrado problemtica do concurso aparente de normas
entre o crime estudado gesto fraudulenta de instituio financeira e os demais tipos
penais previstos na Lei 7.492/86, especialmente em relao aos tipos penais previstos nos
artigos 5, 6, 9, 10, 11, 16, 17, 21 e 22. A anlise ser feita com base nas relaes lgico-
conceituais entre os preceitos normativos, seguida de uma interpretao teleolgica e
valorativa, com base nos critrios de resoluo de conflito aparente de normas propostos pela
doutrina especialidade, subsidiariedade, consuno e alternatividade. Ao final, as
concluses encontradas sero confrontadas com o recorte jurisprudencial dos julgados
atinentes matria, proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 3 Regio nos ltimos 10
anos (01/01/2003 a 31/12/2013).
Palavras-chave: Criminalidade econmica. Gesto fraudulenta de instituio financeira.
Conflito aparente de normas na Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional.
-
3
ABSTRACT
This work intends to analyze the implications and challenges imposed on criminal law for the
defense of current economic crimes, especially in regards to the crime of mismanagement of
financial institutions provided for in the main provision of Article 4 of Law No. 7492/86, a
crime punished by maximum sentence in the Law of Crimes against the National Financial
System. As a result of its completely general description and the severity of the sanction
imposed, the interpretation of its typical elements shall be made in connection with the
motives which originated the enactment thereof, as well as relating to the legal interest
protected by the rule, while applying teleological reducers for the purpose of conferring a
proper identity to the definition of the crime, adding internal consistency to the law itself and
minimizing recurring problems regarding the scope of incidence of the legal provisions
thereof, at times applied in situations of apparent conflict of rules. This way, the crime of
mismanagement of financial institutions will be decomposed into all its typical objective and
subjective elements, addressing legal objectivity, material object, perpetrators, victims, co-
perpetration, consummation and attempt. Next, it will address the issue of the apparent joinder
of rules between the crime examined - mismanagement of financial institution - and other
criminal offenses established by Law 7492/86, especially in relation to criminal offenses
provided for in Articles 5, 6, 9, 10, 11, 16, 17, 21 and 22. The analysis will be based on
logical-conceptual relations between the normative precepts, followed by a teleological and
judgmental interpretation, based on the solution criteria of apparent conflict of rules proposed
by the jurists - specialty, subsidiarity, merger and alternativity. Finally, the conclusions
reached will be confronted with case law clippings of decisions regarding the matter granted
by the Federal Regional Court of the third Region in the past 10 years (01/01/2003 to
12/31/2013).
Keywords: Economic Crime. Mismanagement of financial institution. Apparent conflict of
rules in the Law of Crimes against National Financial System.
-
4
SUMRIO
INTRODUO .......................................................................................................................... 6
1. EVOLUO DO ESTADO E BEM JURDICO PENAL ............................................. 10
1.2 TUTELA DA ORDEM ECONMICA E SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL .......... 15
1.3.1 Escopo da Lei 7.492/86 ................................................................................................... 23
2. O CRIME DE GESTO FRAUDULENTA DE INSTITUIO FINANCEIRA ....... 31
2.1 CONSIDERAES PRELIMINARES ............................................................................. 31
2.1 BEM JURDICO ................................................................................................................ 33
2.2 SUJEITOS ATIVO, PASSIVO E CONCURSO DE PESSOAS ....................................... 35
2.3 TIPO OBJETIVO: ADEQUAO TPICA ...................................................................... 39
2.5. TIPO SUBJETIVO: ADEQUAO TPICA ................................................................... 50
2.6 CONSUMAO E TENTATIVA ..................................................................................... 52
3. CONFLITO APARENTE DE NORMAS PENAIS ......................................................... 55
3.1 CONSIDERAES PRELIMINARES ............................................................................. 55
3.2 Das relaes lgico-conceituais entre preceitos ................................................................. 62
3.3 Dos Princpios auxiliadores para soluo do conflito aparente de normas ........................ 66
4. DA ANLISE DOS POSSVEIS CONCURSOS APARENTES DE NORMAS ENTRE
O DELITO DE GESTO FRAUDULENTA E OS DEMAIS TIPOS PENAIS DA LEI
7.492/86 LUZ DA DOUTRINA ESTUDADA .................................................................. 75
-
5
4.1. CONSIDERAES PRELIMINARES ............................................................................ 75
4.2 CONFLITO ENTRE O ART. 4 E 5 ................................................................................. 77
4.3 CONFLITO ENTRE O ARTIGO 4, 6, 9, 10 e 11 DA LEI 7.492/86 ............................. 88
4.4 DA INCOMPATIBILIDADE ENTRE OS ARTIGOS 4 E 16 DA LEI 7.492/86 ............ 93
4.5 CONFLITO ENTRE O ART. 4 E 17 ................................................................................ 95
4.6 CONFLITO ENTRE O ARTIGO 4, 21 e 22 .................................................................... 98
5. DA ANLISE JURISPRUDENCIAL LUZ DA DOUTRINA ESTUDADA ........... 105
5.1 RESULTADOS QUANTITATIVOS ............................................................................... 105
5.2 RESULTADOS QUALITATIVOS .................................................................................. 113
6. CONCLUSO ................................................................................................................... 134
7. APENSO FORMAO DO BANCO DE DADOS .................................................... 139
7.1 SELEO DAS DECISES ........................................................................................... 139
7.2 CODIFICAO DAS DECISES .................................................................................. 143
8. REFERNCIAS................................................................................................................146
-
6
INTRODUO
Com a maximizao da economia, tanto financeiramente quanto tecnologicamente, e a
sua elevao a propores globais com a interpenetrao dos mercados, as condutas delituosas
perpetradas no mbito econmico financeiro ganharam contornos de gravidade singular. Isso
porque podem atingir a sociedade como um todo, repercutindo sobre uma pluralidade de
vtimas e implicar danos, muitas vezes, irreparveis.
Sobremodo, num contexto de crises econmicas que afligiram a economia global nos
ltimos anos, tem-se observado que uma economia slida no apenas aferida pela sua
capacidade de gerar riqueza, seno tambm pela transparncia e controlabilidade de seus
fluxos econmicos, do que decorre a legitimidade do estado de atuar nessa esfera de direitos.
No entanto, h que se ter em vista o papel e o conceito de bem jurdico penal, que se
qualifica com relao mera ideia de bem jurdico tutelvel, quando se analisa a ordem
econmica.
Com efeito, muito embora o legislador constituinte haja outorgado ao legislador
ordinrio a tarefa de realizar a incriminao de condutas, no deixaram de existir restries
e/ou imposies ao poder de legislar, notadamente quanto aos tipos penais voltados
regulamentao e interveno do domnio econmico.
A interveno penal por ser a forma mais gravosa de interferncia, tanto no que diz
respeito ao infrator quanto sociedade deve estar alerta para se ater a fatos que atinjam,
efetivamente, de forma ofensiva os bens constitucionalmente assegurados. E mais, que
possuam a necessria carncia e dignidade de tutela penal1, sem olvidar de critrios como
adequao do meio, ultima ratio, fragmentariedade, subsidiariedade, proporcionalidade,
eficincia, dentre outros.
A complexidade na descrio e comprovao dos crimes econmicos, muitas vezes,
pela prpria complexidade a eles inerente, no pode servir como justificativa a violar
garantias fundamentais do cidado.
1 Pressupostos mencionados por Manuel da Costa Andrade na anlise da legitimidade da incidncia penal.
ANDRADE, Manuel da Costa. A Dignidade Penal e a Carncia de Tutela Penal como referncias de uma
doutrina teleolgico-racional do crime. Revista Portuguesa de Cincia Criminal, ano 2. Fasc. 2. abr./jun. 1992.
-
7
O que se verifica na prtica, porm, um perodo de profuso de leis elaboradas e
aprovadas, muitas vezes, ao sabor poltico da situao. A interveno criminal na sociedade
tem acontecido de forma desorganizada, por intermdio de tipos genricos, ou abertos demais,
ou ainda, de forma fracionada, tipificando a mesma conduta em vrias etapas, em manifesta
ofensa ao princpio do non bis in idem, bem como segurana jurdica que deve nortear o
jurisdicionado. O Poder Legislativo Nacional tem seguido em sentido oposto ao indicado
pela melhor doutrina e so vrios os tipos que alargam a incidncia do sistema penal a um
inseguro mbito pr-lesivo.
A falta de critrio na tcnica legislativa de criao de tipos penais acaba por gerar
espao para arbtrio do rgo acusatrio e do julgador, prejuzo defesa e complexas
discusses quanto aplicao e interpretao dos tipos penais. Nesse particular, inafastvel a
ponderao de KARL LARENZ sobre essa caracterstica contempornea:
Se hoje o pndulo se inclina muito claramente para o lado da justia do caso, isto
tambm tem relao com a perda da autoridade do legislador actual, que s raras
vezes se ocupa o tempo necessrio e faz o esforo de tornar a examinar
cuidadosamente as suas formulaes, e no raro omite em absoluto uma regulao,
quando esta pode e deve esperar-se dele. Ambos os fenmenos so graves em larga
medida. O Estado de Direito no pode renunciar, sobretudo nas complexas relaes
de nosso tempo, nem s leis bem pensadas, nem a uma magistratura que tome a srio
a sua vinculao lei e ao Direito2.
Por essa razo, no so poucos os desafios encontrados para conferir uma adequada
produo de sentido Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional e, mais
especificamente, ao delito de gesto fraudulenta, cujos limites objetivos e subjetivos, passados
vinte e oito anos da edio da lei, ainda so imprecisos.
De fato, o tipo conciso, de apenas quatro palavras gerir fraudulentamente instituio
financeira , instiga o tratamento dogmtico com complexos problemas. A comear por sua
objetividade jurdica, que, por sua generalidade, pode levar a um abstrato centro de riscos
financeiros, passando por sua indefinio quanto aos sujeitos ativos e at mesmo quanto aos
2 LARENZ, Karl. Metodologia da cincia do direito. 5. ed. Trad. J. Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983,
p. 421.
-
8
critrios pelos quais se pode identificar uma instituio financeira propriamente dita. Alm
disso, passa por questes quanto pluriofensividade e natureza da lesividade, alcanando, por
fim, questes quanto proporcionalidade da resposta penal conduta eventualmente
perpetrada no caso concreto.
Observa-se uma situao de casusmo que beira a arbitrariedade e a ausncia de
critrios punitivos seguros e racionais despreza as mais bsicas conquistas do Estado
Moderno.
Alm disso, o artigo 4 da Lei 7.492/86, em virtude de sua generalidade, acaba por ser
aparentemente aplicvel de maneira concomitante a outros delitos, tais como os artigos 5, 6,
7, 9, 10, 11, 16, 17, 21 e 22 sem prejuzo de outros tipos penais , tendo em vista que estes
tambm se executam mediante atos fraudulentos, induzindo o intrprete a imaginar a
possibilidade de um concurso formal ou material entre tais normas.
Contudo, tal soluo no seria a mais adequada, pois a concorrncia para os mesmos
fatos de tipos penais distintos representaria uma inequvoca duplicidade punitiva, imputando-
se ao aplicador do direito a difcil tarefa de enfrentar esses conflitos na anlise dos casos
concretos.
O presente trabalho pretende densificar o estudo nesse sentido, visando contribuir com
a interpretao e aplicao da lei, com vistas justa soluo de casos concretos.
A metodologia utilizada no trabalho, inicialmente, ser a mais tradicional em termos
de abordagem de tipos penais, bem como nos textos que analisam crimes em espcie.
A fim de seguir linha de raciocnio lgico, o objeto de pesquisa ser situado dentro de
sua temporalidade. Ser apresentando um breve relato histrico a evoluo do Estado e a
legitimidade da tutela penal do sistema financeiro, o contexto da criao da Lei 7.492/86 e a
sua importncia na sociedade atual, bem como a prxis relativa definio pela doutrina dos
bens jurdicos por ela tutelados.
Em virtude da complexidade e importncia do tema, buscar-se- uma abordagem na
anlise da tipicidade do crime de gesto fraudulenta, a conferir-lhe a necessria densidade
normativa e segurana ao jurisdicionado, de modo que se concretize com fundamento em
postulados dogmticos mais slidos, compatveis com a operacionalizao de um direito
penal vinculado aos ditames do Estado Democrtico de Direito.
-
9
Sero aplicados redutores teleolgicos visando conferir ao tipo uma identidade
prpria, com vistas a agregar coerncia interna na prpria lei e solucionar os recorrentes
problemas quanto ao mbito de incidncia de seus dispositivos legais dispostos, por vezes, em
situao de conflito aparente de normas.
Uma vez estabelecido o contexto no qual se insere o tema, bem como as premissas
envolvendo a compreenso normativa sobre o delito estudado, sero analisados os conceitos
dogmticos a respeito de resoluo de concursos aparente de normas sobre os quais se
fundamentaro as discusses envolvendo o delito previsto no artigo 4 da Lei 7.492/86 e os
demais tipos penais do mesmo diploma legal.
Pautando-se por guias doutrinrios, a abordagem partir da observncia da relao
lgico-conceituais entre os preceitos3 e de sua relao com os critrios da especialidade,
consuno, subsidiariedade e alternatividade.
Posteriormente, tendo em vista a natureza sui generis do delito em estudo, ser
dedicado um especial cuidado na anlise do concurso aparente de normas entre ele e os
demais tipos da Lei n 7.492/86, especialmente em relao aos artigos 5, 6, 9, 10, 11, 16,
17, 21 e 22.
Por fim, a partir do mtodo de anlise de contedo de decises judiciais4, buscar-se-
verificar como o Tribunal Regional Federal da 3 Regio rgo do Poder Judicirio com
jurisdio sobre o principal centro financeiro do pas , tem abordado a matria nos ltimos
10 (dez) anos, no perodo de 01/01/2003 a 31/12/2013, a fim de verificar os critrios
utilizados e eventual soluo encontrada quando da imputao do delito de gesto fraudulenta
em conjunto com demais tipos penais da Lei 7.492/86, confrontando-os com as premissas
adotadas no presente estudo e os critrios anteriormente abordados.
Finalmente, sero apresentadas as concluses do presente trabalho.
3 Conforme sistematizao proposta por Ulrich Klug, na qual a anlise do concurso de normas parte da
observao das relaes entre os conceitos sob quatro critrios: heterogeinadade, identidade, subordinao e
interferncia. In KLUG. Ulrich. Sobre el Concepto de Concurso de leys. Problemas de la filosofia y la Pragmtica del Derecho. Cidade do Mxico: Distribuiciones Fontamara, 2002. p. 62. 4 O detalhamento do processo de seleo de acrdos para formao do banco de dados e mtodos de anlise
consta no apenso do presente trabalho.
-
10
1. EVOLUO DO ESTADO E BEM JURDICO PENAL
Em uma pesquisa acerca da criminalidade econmica e dos vetores interpretativos que
devem norte-la, indispensvel que nos situemos a respeito da evoluo histrica e das
rupturas paradigmticas que contextualizam o fenmeno estudado, especialmente sobre os
reflexos do direito constitucional penal moderno na eleio e conformao dos bens jurdicos
a serem objeto de tutela penal.
A evoluo do direito durante o sculo XX trouxe sensveis transformaes. O Estado
Liberal assumiu a feio de Estado Social e passou a se desincumbir de atividades
qualificadas por uma funo assistencial sociedade. Houve o abandono de um modelo
abstencionista, dando origem a um modelo marcado por prestaes positivas derivadas de
exigncias impostas por novos marcos constitucionais5. Embora a gnese do Estado Social
esteja situada na passagem do sculo XIX ao XX, imprescindvel referir o incremento
qualitativo ocorrido a partir das Cartas Constitucionais do segundo ps-guerra, com o qual se
ampliou significativamente a articulao com o princpio democrtico6.
LUIZ LUISI menciona que as constituies modernas, ao incorporarem e conciliarem os
princpios do Estado Liberal e do Estado Social, renovaram, de um lado, as garantias
individuais, e de outro inseriram normas a tornarem concretas a liberdade e a igualdade dos
cidados, tutelando valores de interesse geral como os pertinentes ao trabalho, sade,
assistncia social, atividade econmica, ao meio ambiente, educao, cultura, dentre
outros7.
O constitucionalismo8 baseado em valores de democracia e direitos fundamentais
assumiu, dessa forma, o novo aspecto de norma direta fundamental, que dirige os poderes
5 As constituies do Mxico, de 1917, e da Alemanha, de 1919, denominada Constituio de Weimar,
constituem os primeiros marcos desse modelo de Estado. 6 STRECK, Maria Luiza. Direito Penal e Constituio: a face oculta da proteo dos direitos fundamentais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 20. 7 LUISI, Luiz. Os Princpios Constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. p. 12.
8 Nesse sentido adota-se a concepo de constitucionalismo de Joaquim Gomes Canotilho, qual seja: a teoria
(ou ideologia) que ergue o princpio do governo limitado indispensvel garantia dos direitos em dimenso
estruturante da organizao poltico-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno
representar uma tcnica especfica de limitao do poder com fins garantsticos. In CANOTILHO, Jos
Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 7. ed. Almedina, 2003, p. 51.
-
11
pblicos e condiciona os particulares de forma a assegurar a realizao de valores
constitucionais.
Rompeu-se, pois, com a concepo tradicional do perfil normativo negativo das
funes do Estado, ou seja, dos direitos fundamentais encartados na constituio apenas como
garantia dos cidados contra as arbitrariedades do Estado, para um perfil tambm normativo
positivo, ou seja, a Lei fundamental como programa normativo do Estado e da sociedade.
Nesses moldes, o Estado ganhou ares de efetivador e garantidor desses direitos9.
Em outros termos, no desenvolvimento histrico dos direitos fundamentais,
abandonou-se o prisma eminentemente liberal e individualista, restrito proteo do
indivduo em face do Estado, para uma concepo mais ampla, na qual tambm se incluram,
minimamente, questes de ordem social, econmica e cultural.
Nesse contexto, a Constituio Brasileira de 1988, ao proclamar a Repblica
Federativa do Brasil como Estado Democrtico de Direito, fundando seus pilares sob a
soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, a livre
iniciativa e o pluralismo poltico, bem como sob os poderes do povo, a ser exercido
diretamente ou por meio de representantes eleitos, elegeu esse pilares de acordo com a lio
de JOS AFONSO DA SILVA, como princpios constitucionais fundamentais do ordenamento
jurdico brasileiro10
.
Decorre imediatamente desse carter estruturante que todas as demais normas
constitucionais e infraconstitucionais devem ser interpretadas de acordo com esses princpios,
de modo a buscar-se a harmonia do ordenamento jurdico brasileiro, atribuindo-lhes a
necessria densidade normativa.
O direito penal no fica imune a esses novos parmetros constitucionais. A
interpretao do contedo e o alcance dos direitos e garantias fundamentais previstos na
Constituio de 1988 passam a servir de viga mestre de sustentao dos necessrios avanos
no regime de proteo do ser humano, necessariamente fundado na prevalncia incondicional
da dignidade da pessoa humana.
9 CANOTILHO, Joaquim Gomes. Constituio dirigente e vinculao do legislador. Coimbra: Coimbra, 1994,
p. 166-168. 10
AFONSO DA SILVA, Jos. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. So Paulo: Malheiros, 2005. p.
93.
-
12
As transformaes histricas e axiolgicas que culminaram na adoo do
constitucionalismo dirigente acabaram por refletir na dogmtica penal, impondo-se um
redesenhamento dos bens jurdicos sob guarida da tutela penal, a fim de adequ-los
necessria dependncia material constitucional.
Imps-se, tambm na esfera penal, a superao da concepo de bem jurdico
tradicionalmente de cariz liberal-individualista para uma acepo mais ampla, a fim de
abranger, tambm, bens jurdicos de carter supraindividual (ou coletivos).
Essa acepo de suma relevncia para o direito penal econmico, eis que os
interesses protegidos nesse mbito, ainda que interfiram em direitos individuais, em grande
parte, apresentam-se em uma dimenso supraindividual.
Ressalta-se, desde logo, que o desenvolvimento histrico do bem jurdico, bem como
o panorama doutrinrio contemporneo da discusso sobre o tema no ser objeto de anlise,
tendo em vista extrapolarem os limites objetivos do presente trabalho, bem como j terem
sido amplamente abordados em estudos especficos11
.
Por outro lado, em que pese no se alcance um conceito fechado para tal instituto na
dogmtica penal, parte-se do pressuposto, na linha do que sustenta HELENA REGINA LOBO DA
COSTA, de que o instituto do bem jurdico no pode ser abandonado, seja como critrio de
limitao material das incriminaes, seja como norte teleolgico na interpretao dos tipos
penais12
Assim, parte-se da aceitao da Constituio como critrio material negativo eleio
do bem jurdico-penal e da observao de que a tutela de tais bens no pode vir dissociada dos
demais pressupostos penais, devendo apenas ser considerada legtima se efetivamente for
socialmente necessria13
.
11
HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teora del bien jurdico: fundamento de legitimacin del derecho penal o
juego de abalorios dogmtico? Madrid: Marcial Pons, 2007; PRADO, Luiz Regis. Bem Jurdico-Penal e
Constituio. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011; BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Da teoria
do bem jurdico como critrio de legitimidade do direito penal. 2010. Tese (Livre-Docncia). Faculdade de
Direito, USP, So Paulo. 12
COSTA, Helena Regina Lobo. Direito penal econmico e direito administrativo sancionador: ne bis in idem
como medida de poltica sancionadora integrada. 2013. Tese (Livre-Docncia). Faculdade de Direito, USP, So
Paulo. p. 87. 13
PRADO, Luiz Regis. Bem Jurdico-Penal e Constituio. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 72.
-
13
Ou seja: quando imprescindvel para assegurar as condies de vida, o
desenvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado maior da liberdade verdadeira
presuno de liberdade e da dignidade da pessoa humana14
.
Corroborando tal entendimento, ARNALDO MALHEIROS FILHO, com apoio no esclio
de BRICOLA, sustenta que o ilcito penal somente pode se concretizar diante de uma
ofesividade significativa de um bem constitucionalmente relevante, in verbis:
A sano penal somente pode ser adotada diante da violao de um bem, o qual,
caso no seja do mesmo grau em comparao ao valor (liberdade pessoal)
sacrificado, deve ao menos ser dotado de relevncia constitucional (...). Relevncia
constitucional de um bem no significa simplesmente ausncia de carter antitico
do mesmo ante a constituio, mas a assuno do mesmo pelos valores explicita ou
implicitamente garantidos pela Carta Constitucional15
.
A interveno penal por se constituir na forma mais gravosa de interferncia, tanto
no que diz respeito ao infrator, como sociedade deve ater-se aos fatos que atinjam
efetivamente de forma ofensiva os bens constitucionalmente assegurados, ou seja, deve ser
aquela necessria e imprescindvel para a afirmao do bem tutelado, a fim de garantir a paz e
a justia social, preservando-se direitos e garantias fundamentais.
Em outros termos, a determinao de bens jurdico-penais e sua eleio como dignos
interveno penal devem ter por base critrios como os da adequao do meio,
fragmentariedade, ultima ratio, subsidiariedade, proporcionalidade16
desdobramentos do
princpio constitucional da interveno mnima e corolrios do prprio Estado Democrtico
de Direito.
Desse modo, a constituio deve servir como limite material negativo e no como
norma propulsora da interveno penal, sob a forma de determinao: Nem todo bem,
interesse ou valor estabelecido na constituio pode ser considerado um bem jurdico com
dignidade penal. De outro lado, nem todo bem jurdico necessita de tutela penal, bastando
14
PRADO, Luiz Regis. Bem Jurdico-Penal e Constituio. 5. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.
72. 15
MALHEIROS, Arnaldo Filho. Direito Penal Econmico e Crimes de Mero Capricho. In Direito penal
Econmico: Anlise Contempornea. So Paulo: Saraiva, 2009. 16
COSTA, Helena Regina Lobo. Proteo Penal Ambiental: viabilidade efetividade tutela por outros ramos
do direito. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 17.
-
14
muitas vezes a proteo por outros ramos do direito 17
. ANA ELISA BECHARA bem sintetiza
tal contexto:
Nessa perspectiva, o direito penal legitima-se democraticamente quando voltado
proteo da sociedade e, em ltima anlise, dos interesses dos indivduos que a
compe. Justifica-se, ento, a interveno penal apenas na medida da necessidade
para o fim de evitar delitos, conforme o princpio da interveno mnima
(desdobrado nas vertentes subsidiria e fragmentria), como decorrncia da
dignidade humana e do direito liberdade, expressos constitucionalmente. Do
mesmo modo, apenas se verifica a necessidade da interveno jurdico-penal num
contexto democrtico quando esta seja realmente til para cumprir seu objetivo
protetor, e no um efeito meramente simblico18
.
Para que se possa exercer a funo crtica do instituto do bem jurdico, essencial que
seja usado como limite incriminao e no como sua legitimao19. Significa dizer, como
pondera HELENA REGINA LOBO DA COSTA, que todo o tipo penal deve ter como substrato a
leso ou ameaa a um bem jurdico (alm do atendimento aos demais princpios), mas nem
todo bem jurdico deve ser tutelado pela via penal. Somente como critrio negativo pode o
bem jurdico prestar alguma contribuio crtica ao direito penal20
.
Decorre de tal constatao, que o simples fato do bem jurdico conceber ao tipo penal
certo contedo material no significa que ele diferencie, ontologicamente, o ilcito penal de
outros tipos de ilcitos21
. Bens jurdicos dignos de tutela jurdica podem ser tutelados por
vias no penais. A interveno jurdico-penal deve ser desenvolver de forma fragmentria, a
17
BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-
financeiro: uma lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva
Franco; Rafael Lira. So Paulo: RT, 2011. p. 66. 18
BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-
financeiro: uma lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva
Franco; Rafael Lira. So Paulo: RT, 2011. p. 44-45. 19
COSTA, Helena Regina Lobo. Proteo Penal Ambiental: viabilidade efetividade tutela por outros ramos
do direito. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 16. 20
Nesse sentido leciona Helena Regina Lobo da Costa, vide: COSTA, Helena Regina Lobo. Proteo Penal
Ambiental: viabilidade efetividade tutela por outros ramos do direito. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 16. 21
COSTA, Helena Regina Lobo. Proteo Penal Ambiental: viabilidade efetividade tutela por outros ramos
do direito. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 16.
-
15
partir de critrios como adequao do meio, ultima ratio, subsidiariedade, proporcionalidade,
eficincia, dentre outros22
.
A grande questo que se coloca o que deve ser entendido como bem jurdico
econmico e quais deles devem ser declarados dignos e carentes da tutela penal23
, buscando-
se harmonizar os princpios constitucionais penais, limitadores do jus puniendi estatal, com as
exigncias de proteo dos valores transindividuais.
Partindo das premissas acima expostas, vejamos seus reflexos sobre a tutela da esfera
econmico-financeira.
1.2 TUTELA DA ORDEM ECONMICA E SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL
O discurso da represso criminal acompanhou o movimento constitucional e as
transformaes decorrentes do modelo de Estado adotado, contexto no qual o bem jurdico
penal ampliou seu perfil tradicional de proteo de bens de carter individual, para abarcar,
tambm, bens de carter transindividual (ou coletivos).
Essa forma de desenvolvimento social, na qual se inserem as condutas socialmente
danosas na esfera econmico-financeira, passou ser tutelada e controlada pelo direito penal,
buscando-se meios de tambm proteger bens jurdicos universais aqueles que apresentam
um potencial risco a uma pluralidade de vtimas.
A criminalidade econmica no um fenmeno recente, tendo em vista estar atrelada
prpria evoluo da economia24
. Contudo, como a esfera econmico-financeira maximizou-
se, adquirindo propores globais com a interpenetrao dos mercados, a globalizao e as
quedas de barreiras, as aes delituosas nesse mbito ganharam contornos de gravidade
22
COSTA, Helena Regina Lobo. Proteo Penal Ambiental: viabilidade efetividade tutela por outros ramos
do direito. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 16. 23
Pressupostos mencionados por Manuel da Costa Andrade na anlise da legitimidade da incidncia penal.
ANDRADE, Manuel da Costa. A Dignidade Penal e a Carncia de Tutela Penal como referncias de uma
doutrina teleolgico-racional do crime. Revista Portuguesa de Cincia Criminal, ano 2. Fasc. 2. abr./jun. 1992. 24
RIOS, Rodrigo Sanches. Reflexes sobre o Delito Econmico e sua delimitao. Revista dos Tribunais, maio
de 2000. vol. 775, p. 432.
-
16
singular, j que com a velocidade das operaes e as repercusses internacionais as leses ao
bem jurdico poderiam se mostrar irreparveis25
.
Segundo MANUEL DA COSTA ANDRADE e FIGUEIREDO DIAS:
A criminalidade econmica, nas suas formas clssicas ou modernas, um tema de
marcada atualidade. Pela dimenso dos danos materiais e morais que provoca, pela
sua capacidade de adaptao e sobrevivncia s mutaes sociais e polticas, pela
sua aptido para criar defesas frustrando as formas de luta que lhe so dirigidas, a
criminalidade econmica uma ameaa sria a minar os alicerces de qualquer
sociedade organizada. Da a inveno de formas eficazes de luta seja hoje
preocupao das instncias governativas, judiciais, policiais, etc. de todos os
pases26
.
No obstante, a referncia constitucional incriminao de condutas censurveis nessa
esfera de direitos j encontrava respaldo no ordenamento brasileiro desde a Constituio de
1934, mas ganhou especial relevncia na atual ordem constitucional, justamente por seu
carter dirigente27
.
o que se infere da redao do artigo 170 da Constituio de 1988, no qual se
estabelecem os fundamentos da ordem econmica brasileira, pautada na valorizao do
trabalho humano e na livre iniciativa, buscando assegurar a todos uma existncia digna,
conforme os ditames da justia social, observados diversos princpios, dentre os quais o da
livre concorrncia e o tratamento diferenciado para empresas de pequeno porte; bem como do
quanto disposto no pargrafo quarto do artigo 173, no qual se estabelece que a lei reprimir o
abuso do poder econmico que vise dominao dos mercados, eliminao da concorrncia
e ao aumento arbitrrio dos lucros; e ainda, previso do artigo 192, na qual se determina que
25
Salienta Juliano Breda: Nas ltimas dcadas, inegavelmente, o poderio econmico aumentou sensivelmente,
tornando o Estado dependente de grandes grupos financeiros. Ao lado deste fenmeno, novas condutas danosas
foram surgindo, colocando em risco todo o sistema econmico. A atuao do direito penal passou ento a
regulamentar esse subsistema BREDA, JULIANO. Gesto Fraudulenta de Instituio Financeira e Dispositivos
Processuais da Lei 7.492/86. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 01. 26
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de; ANDRADE, Manoel Da Costa. Problemtica Geral das Infraces contra a
Economia Nacional. In Temas de Direito Penal Econmico. So Paulo: RT, 2000. p. 64-65. 27
BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-
financeiro: uma lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva
Franco; Rafael Lira. So Paulo: RT, 2011. p. 50.
-
17
o Sistema Financeiro Nacional ser estruturado de forma a promover o desenvolvimento
equilibrado do pas e a servir aos interesses da coletividade.
Em decorrncia das necessidades vislumbradas, notadamente nos perodos ps-guerras
e nas crises que lhe seguiram28
, bem como pela globalizao, esmaecimento de fronteiras e
gravidade das repercusses de eventuais prticas delitivas no mbito econmico-financeiro, o
direito penal econmico passou a tutelar valores essenciais preservao da ordem
econmica e garantia de sua efetivao, buscando-se uma situao de equilbrio, liberdade
de iniciativa e competio.
Essa nova perspectiva de direito, para alguns, deu ensejo ampliao do direito penal,
por vezes chamada de expanso29
, modernizao30
ou administrativizao31
da tutela penal,
pretensamente ancorados na busca de maior eficcia diante da demanda social e valendo-se da
constituio no s como limite, mas tambm como norma propulsora do direito penal32
.
Contudo, como j antecipado, o reconhecimento de valores e interesses expressos na
constituio no implica na obrigao da tutela penal, sendo o bem jurdico e o princpio da
ofensividade os critrios mnimos de legitimidade dessa interveno. Tal constatao no
escapa definio do mbito de interveno penal na esfera econmico-financeira.
ANA ELISA BECHARA pondera que a necessria ofensividade a um bem jurdico
condiciona, conforme j verificado, toda a justificao utilitria do direito penal como
instrumento de tutela, constituindo seu principal limite externo 33
. Alm disso, aduz que a
partir do reconhecimento de que determinado interesse constitui um bem jurdico, de se
28
Sobre o legado do desenvolvimento histrico da legislao para a percepo atual pelo direito penal
econmico, vide: COSTA, Helena Regina Lobo. Direito penal econmico e direito administrativo sancionador:
ne bis in idem como medida de poltica sancionadora integrada. 2013. Tese (Livre-Docncia). Faculdade de
Direito, USP, So Paulo. p. 21 e ss. 29
Expresso de Jess Maria Sanches. In La expansion Del derecho penal. Aspectos de la poltica criminal em ls
sociedades ponstindustrialis. Madrid: Civitas, 1999. p. 21. 30
Sobre o tema conf. Eduardo Correia. Notas Criticas Penalizao de Actividades Econmicas. In Direito
Penal Econmico. Coimbra: CEJ, 1985, p. 11 e ss. 31
Expresso encontrada na obra de Miguel Reale Junior. In Instituies de Direito Penal. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. v. 1, p. 21. 32
Adotando a concepo da constituio como fundamento normativo do direito penal (zonas de obrigatria
interveno do legislador penal) a doutrina de Antonio Carlos da Ponte. In DA PONTE, Antonio Carlos.
Crimes Eleitorais. So Paulo: Saraiva, 2008. p. 147-151; e Luciano Feldens In FELDENS, Luciano. A
Constituio Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005. p. 39. 33
BECHARA, Ana Elisa. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-financeiro:
uma lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva Franco; Rafael
Lira. So Paulo: RT, 2011. p. 57.
-
18
proceder, ainda, a um juzo valorativo sobre a justificao de sua tutela por meio do
instrumento mais extremo, que a pena34
.
Ou seja, no se trata de tutelar penalmente toda e qualquer conduta ligada ao direito
econmico, mas aquelas que realmente sejam ofensivas ao bem jurdico tutelado, isto , que
sejam dotadas da necessria dignidade penal e carncia da tutela penal35
, sem olvidar dos
cnones do direito penal clssico, como os critrios da subsidiariedade, fragmentariedade,
ultima ratio, dentre outros.
A legitimidade da interveno penal nessa esfera, assim como no mbito do direito
penal clssico, demanda no s a demonstrao do bem jurdico tutelado pela norma e seu
respectivo referencial constitucional, mas tambm a verificao da necessidade da tutela penal
desse interesse social de natureza econmica para sua efetiva proteo36
.
No por outro motivo, NILO BATISTA salienta que especial cuidado deve ter o
legislador da interveno econmica do Estado, evitando-se a tentao de socorre-se
permanentemente do direito penal; essa tendncia penalstica inflacionria, como determinou
BRICOLA, pode questionar o princpio da interveno mnima37
.
Sobremodo em um contexto de esmaecimento das fronteiras nacionais, ressurgimento
dos controles estatais (crise nos EUA) e indevidas apostas do poder punitivo para satisfazer as
pretenses de investidores e populao de se recordar que a tutela da seara econmico-
financeira no pode descurar dos demais postulados do direito penal.
JULIANO BREDA alerta que relegar a funo do direito penal a um mero auxiliar ou um
agente de reforo disciplina de subsistemas jurdicos significa incompatibiliz-lo com a sua
moderna concepo de protetor subsidirio de bens jurdicos fundamentais ao
desenvolvimento da coletividade38
.
34
BECHARA, Ana Elisa. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-financeiro:
uma lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva Franco; Rafael
Lira. So Paulo: RT, 2011. p. 57. 35
Pressupostos mencionados por Manuel da Costa Andrade na anlise da legitimidade da incidncia penal.
ANDRADE, Manuel da Costa. A Dignidade Penal e a Carncia de Tutela Penal como referncias de uma
doutrina teleolgico-racional do crime. Revista Portuguesa de Cincia Criminal, ano 2. Fasc. 2. abr./jun. 1992. 36
BECHARA, Ana Elisa. Critrios poltico criminais da interveno penal no mbito econmico-financeiro: uma
lgica equivocada. In Direito Penal Econmico: questes atuais/Coordenao Alberto Silva Franco; Rafael Lira.
So Paulo: RT, 2011. p. 57. 37
BATISTA, Nilo. Introduo Crtica ao Direito Penal Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 89-90. 38
BREDA, JULIANO. Gesto Fraudulenta de Instituio Financeira e Dispositivos Processuais da Lei 7.492/86.
Rio de janeiro: Renovar, 2002. p. 51.
-
19
Sobre a caracterizao dos bens jurdicos econmicos, MANUAL DA COSTA ANDRADE
pondera que para alm de sua ndole supraindividual aspecto formal, comum a outros
grupos de bens jurdicos como os relativos sade pblica, ao ambiente, etc. os bens jurdicos
tutelados pelo direito penal econmico caracterizam-se materialmente pela sua relevncia
direta para o sistema econmico cuja sobrevivncia, funcionamento ou implementao se
pretende assegurar39
.
Segundo aludido autor, essa qualificao indispensvel, pois possibilita a
diferenciao entre duas ordens de valores ou interesses, a saber: de um lado as que relevam a
vida comunitria como sistema econmico com seus conflitos reais; e de outro as que se
exaurem no interior da prpria administrao, como interesse cognitivo especfico, voltado a
garantir certa transparncia da vida econmica por intermdio dos deveres de comunicao,
informao e registro, impostos aos operadores econmicos40
.
Aludida distino, ainda que metodolgica, serve para delimitar a tutela penal apenas
quando da violao das primeiras, enquanto na outra, observa-se somente uma transgresso
ou contraordenao41
.
No h dvidas de que o mercado financeiro e a economia podem e, por vezes devem,
ser objetos de disciplina jurdica, porm a regulamentao deve se voltar tutela de valores
fundamentais de cada um dos subsistemas que compe a poltica econmica de governo
adotada42
, o que no implica, necessariamente, a interveno jurdico-penal.
ANDREI ZENKNER SCHMIDT destaca que h que se ter em mente a clara distino entre
a ordem econmica enquanto bem jurdico tutelvel e a mesma ordem econmica como bem
jurdico penalmente tutelvel43
.
39
ANDRADE, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia (dec.-lei n. 28/84, de 20 de janeiro)
luz do conceito de Bem jurdico. In DIREITO penal econmico e europeu: textos doutrinrios: volume I -
problemas gerais. Coimbra: Coimbra, 1998. v. 1. p. 402. 40
ANDRADE, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia (dec.-lei n. 28/84, de 20 de janeiro)
luz do conceito de Bem jurdico. In DIREITO penal econmico e europeu: textos doutrinrios: volume I -
problemas gerais. Coimbra: Coimbra, 1998. v. 1. p. 402. 41
Idem. 42
BREDA, Juliano. Gesto Fraudulenta de Instituio Financeira e Dispositivos Processuais da Lei 7.492/86.
Rio de janeiro: Renovar, 2002. p. 51. 43
SCHMIDT, Andrei Zenkner. A Delimitao do Direito Penal Econmico a Partir do Objeto do Ilcito. In
VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores) Direito
Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 49.
-
20
Desse modo, a criminalizao de condutas que afetem o regular funcionamento da
ordem econmica deve ser submetida a uma dupla relao de fragmentariedade, tendo em
vista que a regra entre Estado e economia no a interveno, mas sim o oposto. Decorre de
tal constatao que nem toda relao econmica (desviada ou no) passvel de tutela
jurdica; nem todo o desvio econmico passvel de tutela jurdica comporta, s por essa razo,
tutela penal44
.
Em outros termos, se o Estado pode se municiar de instrumentos adequados para
proteger a correta execuo da poltica econmica adotada, tendo em vista que os princpios
reitores de um estado economicamente vivel, alm de abrangerem a gerao de renda e a
promoo da igualdade social, tambm esto direcionados transparncia dos seus fluxos
econmicos45
, isso no significa dizer que a legitimidade dessa tutela, per si, resulte na
legitimidade da interveno jurdico-penal.
Tais pressupostos mostram-se indispensveis principalmente na esfera da represso
criminal, tendo em vista que ao incidir sobre a liberdade e a dignidade das pessoas, a
atividade estatal s pode ser exercida com obedincia aos parmetros estabelecidos pelas
garantias fundamentais do cidado, corolrias do prprio Estado de Direito.
As dificuldades na descrio e comprovao dos crimes econmicos, muitas vezes
pela prpria complexidade a eles inerente, no pode servir como justificativa a violar tais
garantias. A atuao do direito penal somente estar justificada e legitimada, seja no mbito
econmico ou em qualquer outra esfera de direitos, quando a proteo ordenada pela
constituio no puder ser alcanada de outra forma: a tipificao penal, para ser vlida,
precisa, necessariamente, atender aos princpios da legalidade, fragmentariedade,
subsidiariedade, imprescindibilidade, racionalidade e proporcionalidade.
Cumpre mencionar que aludidos princpios, bem como as garantias deles decorrentes,
no se limitam ao processo de elaborao das leis, mas tambm sua interpretao. Com
efeito, entre diversas interpretaes possveis, o exegeta deve optar por excluir do mbito de
incidncia da norma penal aquelas condutas que no apresentem real ofensividade sobre o
44
SCHMIDT, Andrei Zenkner. A Delimitao do Direito Penal Econmico a Partir do Objeto do Ilcito. In
VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores) Direito
Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 49. 45
SCHMIDT, Andrei Zenkner. A Delimitao do Direito Penal Econmico a Partir do Objeto do Ilcito. In
VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores) Direito
Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 48.
-
21
bem jurdico tutelado pelo preceito incriminador46
.
Nessa senda, observa-se que o bem jurdico penal desempenha dupla funo:
condiciona tanto a validade da norma penal quanto sua aplicao casustica, sendo que esta
ltima ainda pressupe a demonstrao emprica de que o bem jurdico tutelado foi lesionado
ou potencialmente colocado em perigo. Deslegitima-se, assim, a incriminao de atos de mera
desobedincia a funes, polticas de gesto, controle ou regulao do Estado sobre a ordem
econmica, posto que destitudas de qualquer substancialidade47
.
No obstante, tal perspectiva do bem jurdico penal deve estar atrelada ainda a
referenciais individuais, luz das especificidades do mbito de atuao do direito penal
econmico48
. dizer, o bem jurdico de cariz supraindividual no possui legitimidade
prpria e autnoma, mas sim em funo de interesses individuais relevantes neles
diretamente representados, como por exemplo, o patrimnio49
.
So essas as premissas fundamentais interpretao do tipo penal de gesto
fraudulenta, objeto do presente trabalho, inserido na subpoltica monetria voltada regulao
da oferta de moeda e, consequentemente, de crdito, no mbito do sistema financeiro
nacional, especialmente afetado no caso de abusos e fraudes nas instituies financeiras que o
constituem50
.
Sem descurar das inmeras crticas no sentido de que mencionado tipo penal aberto
demais, o que poderia ser entendido como violao garantia da taxatividade51
46
MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.
Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp.37-58, 2012. p. 45. 47
MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.
Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp.37-58, 2012. p. 45. 48
COSTA, Helena Regina Lobo. Direito penal econmico e direito administrativo sancionador: ne bis in idem
como medida de poltica sancionadora integrada. 2013. Tese (Livre-Docncia). Faculdade de Direito, USP, So
Paulo. p. 87. 49
Nesse sentido alerta Diogo Malan pautado na teoria personalista. MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela
Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia. Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp.37-58, 2012.
p. 44. 50
Sobre a caracterizao de aludida subpoltica econmica, vide: SCHMIDT, Andrei Zenkner. A Delimitao do
Direito Penal Econmico a Partir do Objeto do Ilcito. In VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal
Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores) Direito Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos.
So Paulo: Saraiva, 2011. p. 55. 51
Princpio da taxatividade ou da determinao (nullum crimen sine lege scripta): diz respeito tcnica de
elaborao de lei penal, que deve ser suficientemente clara e precisa na formulao do contedo do tipo legal e
no estabelecimento da sano para que exista real segurana jurdica. Tal assertiva constitui postulado
indeclinvel no Estado de Direito material democrtico e social (Cf. arts. 1 a 6, CF). Procura-se o arbitrium
judicis atravs da certeza da lei com a proibio da utilizao excessiva e incorreta de elementos normativos, de
casusmos, clusulas gerais e de conceitos indeterminados ou vagos. (....) Como bem se esclarece, a exigncia de
-
22
desdobramento do princpio da legalidade e da interveno mnima algo que a doutrina, em
grande medida, j pontuou, parte-se dessa constatao como elemento motivador busca da
recuperao do tipo penal em estudo, reinserindo-o no contexto que determinou a edio da
Lei 7.492/86 e interpretando-o de acordo com os limites impostos pelo bem jurdico penal a
cuja proteo fora criado.
Tal abordagem parece oportuna na medida em que, como visto, o bem jurdico penal
cumpre dupla funo, tanto de legitimao da norma, como limite teleolgico interpretativo
do preceito incriminador. Junte-se a isso a constatao de que a Lei 7.492/86, em cujo
diploma o tipo penal est encartado, anterior Constituio Federal ora em vigor, o que
tambm impe sua reinterpretao luz das garantias fundamentais do cidado, corolrias do
prprio Estado de Democrtico de Direito. E finalmente porque, a partir da teoria econmica
e do conceito de instituio financeira adotado por mencionada lei, possvel vislumbrar que
o sistema financeiro nacional no um fim em si mesmo, mas um meio para realizao de
interesses individuais52
.
Tambm no se ignoram os inmeros projetos de lei relacionados ao tema53
. Contudo,
como tambm partem de redaes deficitrias que no auxiliam uma melhor compreenso do
determinao se refere no s a descrio de condutas delitivas, mas tambm a fixao dos marcos ou margens
penais, que quando excessivamente amplos colidem com o princpio da legalidade. PRADO, Luiz Regis. Curso
de direito penal brasileiro, volume I: parte geral. 3. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 114. 52
Nesse sentido so as ponderaes de Diogo Malan ao abordar o bem jurdico tutelado pela lei dos crimes
contra o sistema financeiro nacional. MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO
Thiago. Direito penal e economia. Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp.37-58, 2012. p. 38. 53
Existem diversos projetos de lei no Congresso Nacional que versam sobre o delito de gesto fraudulenta, cuja
anlise detida dependeria de pesquisa especfica que ultrapassa os limites desde estudo. Todavia pode se
mencionar os seguintes projetos atualmente em andamento na Cmara dos Deputados: Projeto de Lei 5139/13,
do Deputado Camilo Cola (PMDB-ES), que ainda aguarda parecer da Comisso de Constituio e Justia e de
Cidadania (CCJC), define os crimes de gesto fraudulenta e gesto temerria de instituio financeira. Incorreria
no primeiro delito quem utiliza-se de ardil para dissimular a natureza de um negcio ou operao financeira ou
a situao contbil da instituio, com o fim de ludibriar autoridade monetria, autoridade fiscal, correntista,
poupador ou investidor. J como temerria seria classificada a gesto caracterizada pelo risco extremamente
elevado e injustificado dos negcios e das operaes financeiras; Projeto de Lei 6984/06, do Deputado
Demstenes Torres, pronto para pauta, mas cujo parecer da Comisso de Constituio e Justia e de Cidadania
(CCJC) foi pela inconstitucionalidade e injuridicidade, altera a Lei n 7.492, de 16 de junho de 1986, para
agravar penas, proibir a fiana e o recurso em liberdade, exigir o cumprimento mnimo de metade da pena para
obteno de benefcios penais, alm de especificar o tipo penal de gesto fraudulenta de instituies financeiras
nos seguintes termos: Art. 4 Gerir fraudulentamente instituio financeira, dando causa decretao da
interveno, liquidao extrajudicial ou da falncia: Pena recluso de 6 (seis) a 15 (quinze) anos, e multa.
Disponvel em:
http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_lista.asp?formulario=formPesquisaPorAssunto&Ass1=gest%C3%
A3o+fraudulenta&co1=+AND+&Ass2=&co2=+AND+&Ass3=&Submit2=Pesquisar&sigla=&Nmero=&Ano=
&Autor=&Relator=&dtInicio=&dtFim=&Comissao=&Situacao=&pesqAssunto=1&OrgaoOrigem=todos.
Acesso em 16-01-2014. No Senado Federal, o nico projeto de Lei atinente matria (SF PL 170/2004),
encontra-se na secretaria de arquivo. Disponvel em:
http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_lista.asp?formulario=formPesquisaPorAssunto&Ass1=gest%C3%A3o+fraudulenta&co1=+AND+&Ass2=&co2=+AND+&Ass3=&Submit2=Pesquisar&sigla=&Nmero=&Ano=&Autor=&Relator=&dtInicio=&dtFim=&Comissao=&Situacao=&pesqAssunto=1&OrgaoOrigem=todoshttp://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_lista.asp?formulario=formPesquisaPorAssunto&Ass1=gest%C3%A3o+fraudulenta&co1=+AND+&Ass2=&co2=+AND+&Ass3=&Submit2=Pesquisar&sigla=&Nmero=&Ano=&Autor=&Relator=&dtInicio=&dtFim=&Comissao=&Situacao=&pesqAssunto=1&OrgaoOrigem=todoshttp://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_lista.asp?formulario=formPesquisaPorAssunto&Ass1=gest%C3%A3o+fraudulenta&co1=+AND+&Ass2=&co2=+AND+&Ass3=&Submit2=Pesquisar&sigla=&Nmero=&Ano=&Autor=&Relator=&dtInicio=&dtFim=&Comissao=&Situacao=&pesqAssunto=1&OrgaoOrigem=todos
-
23
tema, bem como diante de sua inaplicabilidade atual, opta-se por buscar uma abordagem do
tipo penal densa o bastante para lhe conferir identidade prpria, agregar coerncia interna na
prpria lei e minimizar os recorrentes problemas quanto ao mbito de incidncia
concomitante com os demais tipos penais previstos no mesmo diploma legal, dispostos, por
vezes, em situao de conflito aparente de normas54
.
1.3.1 Escopo da Lei 7.492/86
A Lei 7.492/86 Lei dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional foi editada
num contexto de crise e aps um processo conturbado de elaborao legislativa. O clamor
pblico existente poca, diante dos sucessivos escndalos financeiros e agudas crises
econmicas e inflacionrias, fez com que o Estado adotasse medidas a assegurar a
normalidade dos mercados e os interesses de investidores e depositantes, injetando volumosos
recursos oriundos da arrecadao fiscal. Tal poltica deu ensejo regulamentao prevista
pelo Decreto Lei 1.342/74, alterando-se a Lei 5.143/66, cujo teor do artigo 12 passou a ter a
seguinte redao:
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TO
DAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_
tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=
&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulent
a&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate
=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_ate=.Acesso em 16-01-2014.
Vale mencionar, por fim, o Projeto de Novo Cdigo Penal, cujo relatrio do Senador Pedro Taques, foi
aprovado no ltimo dia 17 de dezembro de 2013 na Comisso Especial do Senado e agora segue para o plenrio
do Senado e da Cmara. Disponvel em: http://www.pedrotaquesmt.com.br/uploads/downloads/Relatorio-Novo-
Codigo-Penal-10-12-13.pdf. Nesse projeto, o crime de gesto fraudulenta passaria a ter a seguinte redao:
Fraude na gesto - Art. 354. Praticar ato fraudulento na gesto de instituio financeira. Pena - priso, de um a
quatro anos. Gesto fraudulenta 1 Se a conduta for habitual: Pena - priso, de um a cinco anos. 2 Se da
conduta decorrer prejuzos para terceiros. Pena - priso, de dois a seis anos. 3 Se da conduta decorrer
interveno, liquidao extrajudicial ou falncia da instituio financeira. Pena - priso, de trs a sete anos. 4
Se a fraude, ainda que reiterada, exaurir-se na gesto, sem outra potencialidade lesiva, fica por esta absorvida.
Nesse particular, valem as crticas de Miguel Reale Junior em reportagem ao Jornal Gazeta do Povo: a gesto
fraudulenta est mal definida na Lei dos Crimes Financeiros, mas est pior definida no projeto [do novo Cdigo
Penal]. Diz que gesto fraudulenta praticar ato fraudulento na gesto de instituio financeira. Ato fraudulento
qualquer ato, por exemplo, um diretor que d fraudulentamente a presena para a secretria que est ausente.
Ele frauda sem que com isso tenha atingido o sistema financeiro. O tipo penal tem de estar voltado para
proteo do bem jurdico que a instituio financeira.
Disponvelem:http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justicadireito/entrevistas/conteudo.phtml?id=12966
-54. Acesso em 16-01-2014. 54
No mesmo sentido, busca a proposta apresentada por Luciano Feldens em: FELDENS, Luciano. Gesto
fraudulenta e temerria de instituio financeira: contornos identificadores do tipo. In VILARDI, Celso Sanchez;
PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores) Direito Penal Econmico: crimes
financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 82.
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.senado.gov.br/atividade/materia/consulta.asp?Tipo_Cons=8&orderby=6&hid_comissao=TOD++TODAS&hid_status=TOD++TODAS&str_tipo=&selAtivo=&selInativo=&radAtivo=S&txt_num=&txt_ano=&sel_tipo_norma=&txt_num_norma=&txt_ano_norma=&sel_assunto=&sel_natureza=&sel_tipo_autor=&txt_autor=&sel_partido=&sel_uf=&txt_relator=&ind_relator_atual=S&sel_comissao=&txt_assunto=gest%E3o+fraudulenta&tip_palavra_chave=T&rad_trmt=T&sel_situacao=&ind_status_atual=A&dat_situacao_de=&dat_situacao_ate=&txt_tramitacao=&dat_apresentacao_de=&dat_apresentacao_atehttp://www.pedrotaquesmt.com.br/uploads/downloads/Relatorio-Novo-Codigo-Penal-10-12-13.pdfhttp://www.pedrotaquesmt.com.br/uploads/downloads/Relatorio-Novo-Codigo-Penal-10-12-13.pdfhttp://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justicadireito/entrevistas/conteudo.phtml?id=12966-54http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justicadireito/entrevistas/conteudo.phtml?id=12966-54
-
24
Art. 12. A receita lquida do imposto se destinar formao de reservas monetrias,
as quais sero aplicadas pelo Banco Central do Brasil na interveno nos mercados
de cmbio e de ttulos, na assistncia a instituies financeiras, particularmente ao
Banco Nacional do Desenvolvimento Econmico, e em outros fins, conforme
estabelecer o Conselho Monetrio Nacional.
1 Em casos excepcionais, visando a assegurar a normalidade dos mercados
financeiro e de capitais ou a resguardar os legtimos interesses de depositantes,
investidores e demais credores acionistas e scios minoritrios, poder o Conselho
Monetrio Nacional autorizar o Banco Central do Brasil a aplicar recursos das
reservas monetrias.
a) na recomposio do patrimnio de instituies financeiras e de sociedades
integrantes do sistema de distribuio no mercado de capitais, referidas nos incisos I,
III e IV do artigo 5 da Lei n 4.728, de 14 de julho de 1965, com o saneamento de
seus ativos e passivos;
b) no pagamento total ou parcial do passivo de qualquer das instituies ou
sociedades referidas na alnea precedente, mediante as competentes cesses e
transferncias dos correspondentes crditos, direitos e aes, a serem efetivadas
pelos respectivos titulares ao Banco Central do Brasil, caso decretada a interveno
na instituio ou sociedade ou a sua liquidao extrajudicial, nos termos da
legislao vigente
2 Na hiptese da alnea a do pargrafo anterior, poder o Banco Central do Brasil
deixar de decretar a interveno na instituio ou sociedade, ou a sua liquidao
extrajudicial, se entender que as providncias a serem adotadas possam conduzir
completa normalizao da situao da empresa55
.
No obstante essa interveno setorizada, a sentida ineficincia das medidas
administrativas da Lei 6.024/1974 e a incapacidade de subsuno das condutas daqueles
gestores de instituies financeiras da poca que malversavam o patrimnio investido de
terceiros s normas previstas pela Lei 1.521/51, tendo em vista o surgimento das novas
espcies de instituies, que no se encontravam no rol taxativo previsto por referida norma,
incitaram a aprovao do PL 273/1982 que culminou na redao prevista na Lei dos Crimes
Contra o Sistema Financeiro Nacional56
.
55
Disponvel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5143.htm. Acesso em 12-01-2014. 56
FELDENS, Luciano. A estrutura material dos delitos de gesto fraudulenta e temerria de instituio
financeira. Revista Brasileira de Cincias Criminais, So Paulo, v. 18, n. 86, p. 170-200, set./out. 2010. p. 176.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4728.htm#art5ihttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4728.htm#art5iiihttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4728.htm#art5ivhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5143.htm
-
25
Segundo constata ELA WIECKO DE CASTILHO, havia um sentimento generalizado de
impunidade, tendo em vista que os administradores no eram sancionados penalmente
porque suas condutas no se enquadravam na definio de crimes ou a responsabilidade
pessoal era de difcil comprovao, dissimulada em deliberaes coletivas da empresa57
. Tal
sensao acaba expressamente consignada na exposio de motivos de mencionado PL
273/1982:
O presente projeto representa a velha aspirao das autoridades e do povo no sentido
de reprimir com energia as constantes fraudes observadas nos sistema financeiro
nacional, especialmente no mercado de ttulos e valores mobilirios.
Os cofres pblicos, em funo da preocupao governamental de preservar a
confiana no sistema, vm sendo largamente onerados com verdadeiros escndalos
financeiros sem que os respectivos culpados recebam a punio adequada, se que
chegam a receb-la.
A grande dificuldade do enquadramento desses elementos inescrupulosos, que lidam
fraudulentamente ou temerariamente, com valores do pblico, reside na inexistncia
de legislao especfica para as irregularidades que surgiram com o advento de
novas e mltiplas atividades no sistema financeiro nacional, especialmente aps
196458
.
O projeto foi aprovado ignorando anteprojetos anteriores elaborados por comisses
tcnicas, o que acabou por prejudicar sobremaneira a qualidade de seus dispositivos. A pressa
com que a lei foi aprovada visava o seu alto carter simblico na punio dos ricos e
poderosos e a necessidade de se romper com as ms relaes entre o regime militar e os
grupos financeiros nesse perodo de redemocratizao59
.
De todo modo, a Lei foi proposta e aprovada no intuito de reforar a tutela tendente a
assegurar a normalidade do sistema financeiro nacional, resguardando os interesses da
57
CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle Penal nos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.
Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 126. 58
FELDENS, Luciano. Gesto fraudulenta e temerria de instituio financeira: contornos identificadores do
tipo. In VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores)
Direito Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 84. 59
CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle Penal nos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.
Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 133.
-
26
coletividade (depositantes e demais usurios)60
, tendo em vista a marcada ineficincia
regulatria em mbito administrativo, que no obteve xito em estancar os abusos e fraudes
gerenciais, implicando a aplicao de vultuosos recursos na conteno dos efeitos negativos
de aludidas manobras lanavam ao restante do sistema61
.
A precria tcnica legislativa, contudo, levou estruturao de seus dispositivos
pautados no desvalor do agente e no no desvalor da ao, criando-se a presuno de perigo
ao sistema financeiro nacional, como se este ltimo fosse o bem jurdico protegido62
.
No por outra razo, grande parte da doutrina comumente assinala que os bens
jurdicos tutelados pela Lei 7.492/86 seriam a boa execuo da poltica de governo63
; a
credibilidade do Sistema Financeiro Nacional e de suas instituies64
, dentre outras
expresses afins.
Assinalava JOO MARCELO DE ARAJO, referindo-se ao diploma em geral: a despeito
da leso ao patrimnio individual que possam causar, a tnica da reprovao social est
centrada na ameaa do dano que representam para o sistema financeiro, que se caracteriza
como um interesse jurdico supraindividual65
.
JOS CARLOS TRTIMA, ao abordar o artigo 4 de mencionado diploma legal, principal
delito e mais severamente apenado, destaca que o objeto de tutela , em primeiro plano, a
estabilidade e a higidez do Sistema Financeiro Nacional, indispensveis boa execuo da
poltica econmica de governo, concretamente avaliados. E, secundariamente, a proteo dos
investidores e o prprio mercado financeiro, tanto do risco moral quanto sistmico,
decorrentes de gestes passveis de ofender a confiabilidade e a higidez do Sistema Financeiro
como um todo66
.
60
FELDENS, Luciano. A estrutura material dos delitos de gesto fraudulenta e temerria de instituio
financeira. Revista Brasileira de Cincias Criminais, So Paulo, v. 18, n. 86, p. 170-200, set./out. 2010. p. 177. 61
FELDENS, Luciano. Gesto fraudulenta e temerria de instituio financeira: contornos identificadores do
tipo. In VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flavia Rahal Bresser; DIAS NETO, Theodomiro (coordenadores)
Direito Penal Econmico: crimes financeiros e correlatos. So Paulo: Saraiva, 2011. p. 84. 62
MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.
Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 52. 63
PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional: Comentrios Lei 7.492/86, de
16.6.86. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 34, 44, 50. 64
MAIA, Rodolfo Tigre. Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. So Paulo: Malheiros, 1996. p. 48. 65
ARAJO JUNIOR, Joo Marcello. Dos Crimes contra a ordem econmica. So Paulo: Revista dos Tribunais,
1995. p. 145-146. 66
TRTIMA, Jos Carlos. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2000. p.
51.
-
27
CEZAR BITENCOURT, por seu turno, aduz que as instituies financeiras enquanto
entidades individualmente relevantes no sistema financeiro, tambm so objeto de tutela
penal, inclusive aquelas pertencentes iniciativa privada. Nesse sentido, sustenta que a lei
visa proteger a lisura, a correo e a honestidade das operaes atribudas e efetivadas pelas
instituies financeiras e assemelhadas, posto que o bom funcionamento do sistema financeiro
como um todo repousa na confiana que a coletividade lhes deposita. Assim sendo, concluem
que a credibilidade um atributo que assegura o regular e exitoso funcionamento do sistema
financeiro como um todo67
.
DIOGO MALAN, com preciso dogmtica, alerta para o fato de que todos esses
conceitos partilham de duas caractersticas essenciais: impreciso terico conceitual e tutela
de polticas estatais ou funes da administrao pblica. A consequncia direta de tal
constatao o esvaziamento do contedo material do conceito de bem jurdico penal e o
subsequente recrudescimento do poder punitivo estatal68
.
Com efeito, possibilita-se um juzo de subsuno puramente formal s normas, pela
simples soma de suas elementares tpicas, descontextualizado dos pressupostos que
justificaram a interveno penal no mbito econmico financeiro e da verificao da real
potencialidade lesiva sobre o bem jurdico tutelado por esse diploma legal.
Aludidas concepes descaracterizam completamente o instituto do bem jurdico-
penal, lhe suprimindo toda carga de concretude e utilidade prtica na legitimao e
interpretao de preceitos incriminadores69
.
No h dvidas que os interesses da coletividade (depositantes e demais usurios do
sistema financeiro nacional), sua destinatria por disposio constitucional, conforme artigo
192 desse diploma legal70
, como j antes mencionado, podem ser bens jurdicos, mas a sua
eleio categoria de bens jurdico-penais exige uma carga maior de preciso e contedo
valorativo, a possibilitar o exerccio das funes de aludido instituto.
67
BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional & contra o
Mercado de Capitais. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2010. p. 80. 68
MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.
Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 38.. 69
MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.
Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 51. 70
Art. 192 "Art. 192 - O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento
equilibrado do Pas e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compe, abrangendo as
cooperativas de crdito, ser regulado por leis complementares que disporo, inclusive, sobre a participao do
capital estrangeiro nas instituies que o integram".
-
28
De fato, sustentar a tipificao de condutas no mbito do sistema financeiro nacional
visando promover o desenvolvimento equilibrado do pas e a servir aos interesses da
coletividade, contribui apenas para que toda e qualquer criminalizao tenha aparente
compatibilidade vertical com a Lei Maior71
, exigindo-se um maior aprofundamento dos
valores a serem protegidos, sob pena de violao, como dito, das funes de garantia a serem
desempenhadas pelo bem jurdico.
Nesse contexto, h que se diferenciar a ratio legis da tutela pretendida, do bem
jurdico-penal pretensamente tutelado. Nesses termos, a boa execuo da poltica de
governo72
; a credibilidade do Sistema Financeiro Nacional e de suas instituies73
, a
estabilidade e a higidez do Sistema Financeiro Nacional74
, so a razo da tutela legal, mas
no, necessariamente, o bem jurdico-penal por ela tutelado75
O mercado financeiro e a economia podem ser objetos de disciplina jurdica, porm a
regulamentao deve se voltar tutela de valores fundamentais do subsistema que compe
essa subpoltica econmica sem olvidar de seu referencial individual quando da interveno
jurdico-penal.
Nessa senda, partindo do mbito de incidncia tutelado pela Lei 7.492/86
instituies financeiras importa verificar seu contedo conceitual e valorativo, bem como
seus eventuais reflexos no bem jurdico a ser eleito digno de tutela penal.
Nesses termos, partindo da acepo terico-conceitual disposta no artigo 1 de
mencionada lei, verifica-se que instituio financeira, para fins jurdico-penais, toda a
pessoa jurdica de direito pblico ou privado que tenha como atividade principal ou acessria,
cumulativamente ou no, a captao, intermediao ou aplicao de recursos financeiros de
terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custdia, emisso, distribuio, negociao,
intermediao ou administrao de valores mobilirios.
71
BREDA, Juliano. Gesto Fraudulenta de Instituio Financeira e Dispositivos Processuais da Lei 7.492/86.
Rio de janeiro: Renovar, 2002. p. 50. 72
PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional: Comentrios Lei 7.492/86, de
16.6.86. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 34, 44, 50. 73
MAIA, Rodolfo Tigre. Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. So Paulo: Malheiros, 1996. p. 48. 74
TRTIMA, Jos Carlos. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2000. p.
51. 75
MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.
Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 52.
-
29
Tambm so a instituies financeiras equiparadas a pessoa jurdica que capte ou
administre seguros, cmbio, consrcio, capitalizao ou qualquer tipo de poupana, ou
recursos de terceiros; II - a pessoa natural que exera quaisquer das atividades referidas neste
artigo, ainda que de forma eventual.
Decorre de tal constatao que o mbito de incidncia da norma est atrelado s
atividades das instituies financeiras voltadas gesto profissional, mediante oferta pblica,
de ativos financeiros de terceiros (propriedade alheia), do que possvel concluir que esses
ativos consistam, efetivamente, no bem jurdico tutelado pela norma, como bem apontado por
DIOGO MALAN76
.
Se se busca a tutela da seara econmico-financeira e dos riscos sistmicos a ela
inerentes, considerando que seu principal mbito de atuao a gesto de ativos de
propriedade alheia, no h dvidas que o referencial individual de tal tutela, no outro seno
o patrimnio pblico e privado investidos nessas instituies77
.
Como antes mencionado, o sistema financeiro nacional no um fim em si mesmo,
mas um meio para concretizao de um fim individual relevante, ainda que em sua acepo
coletiva (ou supraindividual).
A interpretao segundo o contexto de edio da Lei 7.492/86 tambm corrobora tal
assertiva, eis que a preocupao estava voltada aos prejuzos decorrentes das fraudes
perpetradas no mbito econmico-financeiro, fazendo meno expressa a episdio
especfico78
, cujos danos patrimoniais foram considerveis a diversos investidores. De tal
constatao, possvel supor que a proteo desse patrimnio foi o intuito precpuo do
legislador.
Alm disso, reinterpretando a lei conforme os postulados constitucionais de 1988 se
verifica que tal acepo de bem jurdico encontra respaldo tanto no mandamento
constitucional para que sejam responsabilizados individualmente os dirigentes da pessoa
76
MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.
Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 40. 77
MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In BOTTINO Thiago. Direito penal e economia.
Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 52. 78
Segundo menciona Diogo Malan, trata-se do caso Tieppo: fraude financeira de grandes propores
envolvendo operaes no mercado paralelo de cmbio e com obrigaes reajustveis do tesouro nacional
(ORTNs). Tal fraude supostamente causou prejuzo total de Cr$ 1.5000.000,00 (um milho e meio de cruzeiros)
a cerca de 1.000 (mil) investidores quela poca. MALAN, Diogo. Bem jurdico tutelado pela Lei 7.492/1986. In
BOTTINO Thiago. Direito penal e economia. Rio de Janeiro: Elsevier/GV, pp. 37-58, 2012. p. 54.
-
30
jurdica pelos atos praticados contra a ordem econmico e financeira, consoante disposio
contida no artigo 173, 3, da Constituio de 1988. Como tambm, na proteo conferida
propriedade privada, princpio reitor da ordem econmica jurdico constitucional, consoante
artigo 170, II, do mesmo diploma legal.
Em sntese, parte-se do pressuposto que a Lei 7.492/86, na linha do entendimento
expressado por DIOGO MALAN, visa, em ltima anlise, tutelar o patrimnio pblico e privado
investido nas instituies financeiras inseridas no mbito econmico-financeiro.
Tal constatao tem singular importncia na anlise do delito de gesto fraudulenta,
principal tipo penal e delito mais severamente apenado por mencionado diploma legal. Com
efeito, tal reflexo hermenutica delimita o legtimo exerccio punitivo estatal quelas
condutas que realmente sejam ofensivas ao bem jurdico tutelado pela norma, fixando-o como
norte interpretativo do dispositivo legal a seguir abordado.
-
31
2. O CRIME DE GESTO FRAUDULENTA DE INSTITUIO FINANCEIRA
Gerir fraudulentamente instituio financeira:
Pena Recluso, de 3 (trs) a 12 (doze) anos, e multa
2.1 CONSIDERAES PRELIMINARES
A conduta delituosa prevista no artigo 4 da Lei 7.492/86 j estava contemplada na
ainda vigente Lei de Economia Popular (Lei 1.521/51), sendo esta a antecedente mais genuna
do crime em questo.
O inciso IX do artigo 3 de aludida Lei dispe que:
Gerir fraudulentamente ou temerariamente bancos ou estabelecimentos bancrios, ou
de capitalizao, sociedades de seguros, peclios ou penses vitalcias; sociedades
para emprstimos ou financiamento de construes e vendas de imveis a
prestaes, com ou sem sorteio ou preferncia por meio de pontos ou quotas; caixas
econmicas; caixas Raiffeisen; caixas mtuas, de beneficncia, socorros ou
emprstimos, caixas de peclios, penso e aposentadoria; caixas construtoras,
cooperativas; sociedades de economia coletiva, levando-as falncia ou
insolvncia, ou no cumprindo qualquer das clusulas contratuais com prejuzo dos
interessados.
Referida norma, ainda que muito anterior edio da Lei 7.492/86, apresenta duas
grandes vantagens em sua estrutura tpica, caracterizadas pela exigncia de satisfao de duas
elementares tpicas, que funcionam como verdadeiras condicionantes, quais sejam: levando-
as falncia ou insolvncia, ou no cumprindo qualquer das clusulas contratuais com
prejuzo dos interessados.
Ocorre que, como h muito asseverou MANOEL PEDRO PIMENTEL, o novo texto legal
que culminou na redao prevista na Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional
ignorou o anteprojeto da Comisso de Reforma da Parte Especial, e respectivas emendas,
-
32
preferindo uma redao concisa e sem elementares79
. Nesse passo, o tipo do art. 4 da Lei
7.492/86, justamente em face de sua abertura conceitual, passou a ser alvo de severas crticas,
ainda mais porque, alm de genrico, o tipo legal que prev a maior sano dentre aquelas
abstratamente cominadas na Lei 7.492/86.
Ao retirar tais elementos, o legislador criou um tipo genrico, exigindo-se unicamente
o emprego de fraudes na administrao da instituio, desconectadas de qualquer resultado,
mas mantendo a grave sano de 03 a 12 anos de recluso.
Ne