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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO CLÁUSULA DE FORÇA MAIOR NOS CONTRATOS INTERNACIONAIS DE COMPRA E VENDA Margaryta Rudnieva Dissertação orientada pela Professora Doutora Elsa Dias Oliveira Mestrado Profissionalizante Ciências Jurídico-Empresariais 2018

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Page 1: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO · poder distinguir, na prática, do instituto de Força Maior. Palavras-chaves: não cumprimento, força maior, impedimento, exoneração,

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE DIREITO

CLÁUSULA DE FORÇA MAIOR NOS CONTRATOS

INTERNACIONAIS DE COMPRA E VENDA

Margaryta Rudnieva

Dissertação orientada pela Professora Doutora Elsa Dias Oliveira

Mestrado Profissionalizante Ciências Jurídico-Empresariais

2018

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“A arte de viver é mais parecida com a luta

do que com a dança, na medida em que está

pronta para enfrentar tanto o inesperado

como o imprevisto e não está preparada

para cair.”

Marco Aurélio

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RESUMO

Na presente dissertação examinar-se-ão as relações jurídicas no âmbito dos

contratos internacionais de compra e venda quando uma das partes fica

impossibilitada de cumprir a sua obrigação, em virtude da ocorrência de um

evento que constitui a Força Maior, assim como os seus efeitos jurídicos.

Em primeiro lugar, propõe-se fazer uma breve análise comparada do regime

jurídico da impossibilidade de cumprimento nos sistemas jurídicos de Direito

Civil e de Common Law. A seguir, analisaremos o regime jurídico de exoneração

na Convenção da ONU sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de

Mercadorias; a “força maior” nos Princípios do UNIDROIT dos Contratos

Comerciais Internacionais; e o regime jurídico de impossibilidade de

cumprimento nos Princípios de Direito Europeu dos Contratos e no “Projeto de

Quadro Comum de Referência”.

Também se pretende fazer um estudo do conteúdo da cláusula de Força

Maior e analisar o modelo de cláusula de Força Maior 2003 da Câmara do

Comércio Internacional, o qual contém uma fórmula geral deste conceito e uma

lista com os eventos que podem ser considerados como força maior. Este estudo

pretende indagar acerca da relevância da cláusula de Força Maior e a importância

da sua inserção num contrato.

Como os institutos jurídicos de Força Maior e de Hardship apresentam

algumas semelhanças e por não ser fácil, por vezes, determinar as fronteiras entre

ambos, pretende-se, no final do trabalho, analisar o instituto de Hardship para o

poder distinguir, na prática, do instituto de Força Maior.

Palavras-chaves: não cumprimento, força maior, impedimento, exoneração,

conteúdo e efeitos jurídicos de cláusula de força maior; cláusula de hardship.

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SUMMARY

The current dissertation will examine the legal relations in the context of

international trade contracts, when one of the parties is unable to perform its

obligation due to the occurrence of an event that constitutes the Force Majeure,

as well as its legal effects.

First of all, it is proposed to make a brief comparative analysis of the legal

regime of the impossibility of performance in the legal systems of Civil Law and

Common Law. Next, we will analyze the legal regime of exemption in the United

Nation Convention on Contracts for the International Sale of Goods; the "force

majeure" in the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts;

and the legal regime of impossibility of performance in the Principles on

European Contract Law and in the "Draft Common Frame of Reference".

It is also intended to study the content of the Force Majeure clause and

analyze the model of the Force Majeure Clause 2003 from the International

Chamber of Commerce, which contains a general formula of this concept and a

list of the events that can be considered as Force Majeure. This study intends to

investigate the relevance of the Force Majeure clause and the importance of its

insertion in a contract.

As the legal institutes of Force Majeure and Hardship present some

similarities, and for not being easy, in some cases, to determine the boundaries

between them, it´s intended by the end of the essay to analyze the legal institute

of Hardship, in order to distinguish it, in the practice, from the institute of Force

Majeure.

Keywords: non-performance, force majeure, impediment, exemption,

content and legal effects of the force majeure clause; hardship clause.

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Índice

Abreviaturas.......................................................................................................7

Introdução...........................................................................................................8

1. Origem da “força maior” e do “caso fortuito”................................11

1.1 Distinção entre “força maior” e “caso fortuito”. Teoria subjetiva e

objetiva...................................................................................................15

2. Impossibilidade de cumprimento da obrigação nos sistemas

jurídicos nacionais...............................................................................20

2.1 Sistemas jurídicos romano-germânicos.............................................21

2.1.1 Direito alemão...........................................................................21

2.1.2 Direito francês...........................................................................26

2.1.3 Direito português.....................................................................30

2.1.4 Direito italiano..........................................................................35

2.2 Sistemas jurídicos de Common Law....................................................38

2.2.1 Direito inglês.............................................................................38

2.2.2 Direito norte-americano...........................................................43

2.3 Síntese comparativa..............................................................................44

3. Força Maior nas Fontes Internacionais............................................50

3.1 Regime de Exoneração na Convenção da ONU sobre os Contratos

de Compra e Venda Internacional de Mercadorias.........................50

3.1.1 Impossibilidade de execução e os seus pressupostos..........52

3.1.2 Não cumprimento de terceiro.................................................56

3.1.3 Impedimento temporário ou parcial......................................57

3.1.4 Dever de comunicação.............................................................58

3.1.5 Outros diretos dos contraentes...............................................59

3.1.6 Facto imputável ao credor.......................................................60

3.2 Force Majeure nos Princípios do UNIDROIT dos Contratos

Comerciais Internacionais...................................................................62

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3.3 Impossibilidade de cumprimento nos Princípios de Direito

Europeu dos Contratos......................................................................66

3.4 Impossibilidade de cumprimento no Draft Common Frame of

Reference................................................................................................70

4. Relevância de cláusula de Força Maior.........................................74

4.1 Modelo de cláusula de Força Maior da Câmara do Comércio

Internacional........................................................................................74

4.2 Conteúdo de cláusula de Força Maior.............................................81

4.3 Efeitos jurídicos...................................................................................89

4.4 Importância de inserção de cláusula de Força Maior

no contrato...........................................................................................90

5. Distinção entre a cláusula de Força Maior e a cláusula de

Hardship...............................................................................................94

5.1 Características de cláusula de Hardship............................................94

5.2 Cláusula de Força Maior vs Cláusula de Hardship........................101

Conclusão........................................................................................................107

Bibliografia.....................................................................................................111

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Abreviaturas

Art./Arts. – Artigo/Artigos

BGB - Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil alemão)

C - Codex de Justiniano

CC – Código Civil

CCI - Câmara de Comércio Internacional

Cfr. – Conforme

CISG – Convenção da ONU sobre os Contratos de Compra e Venda

Internacional de Mercadorias

CNUDCI - Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio

Internacional

D - Digesta de Justiniano

DCFR – Draft Common Frame of Reference

Ed. – edição

Etc. – e outras coisas

I - Institutiones Iustiniani

n.º/n.ºs – Número/Números

ONU – Organização das Nações Unidas

op. cit. – Obra citada

pág./págs. – Página/Páginas

PCCI – Princípios dos Contratos Comerciais Internacionais

PDEC – Princípios do Direito Europeu dos Contratos

UCC – Uniform Commercial Code

UNIDROIT – Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado

V. g. – Verbi gratia

Vide – Veja-se

Vol. – Volume

VS – Versus

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Introdução

Um dos mais importantes e fundamentais princípios jurídicos do Direito

Civil é, sem dúvida, o princípio “pacta sunt servanda”, segundo o qual os contratos

celebrados dentro dos limites de lei devem ser pontualmente cumpridos. Este

principio é baseado na boa-fé e é reconhecido pela maioria das ordens jurídicas

nacionais (inclusive pelo sistema jurídico português)1.

Considerando que a atividade económica é inviável sem garantias jurídicas,

a importância da observação do princípio “pacta sunt servanda” nas relações

jurídicas contratuais é imprescindível. Entretanto, a prática demonstrou que nem

sempre será possível cumprir este princípio, uma vez que a sua aplicação, por

vezes, poderá levar a um resultado negativo, contrário à boa fé, ao sentido de

bom senso e ao próprio sistema de Direito. Tratar-se-ão de situações excecionais,

quando as partes celebram um determinado contrato e posteriormente ocorre um

impedimento imprevisível, irresistível e fora do seu controlo, que tornará a

prestação absolutamente impossível de se realizar. São chamados casos de força

maior ou casos fortuitos, os quais são capazes de perturbar substancialmente o

cumprimento da obrigação contratual de uma das partes. Evidentemente, se as

partes pudessem prever esses impedimentos, nunca iriam celebrar o contrato

nessas condições ou tê-lo-iam celebrado com um conteúdo diferente.

Provavelmente, a ocorrência de um caso de força maior (ou de um caso

fortuito) não é muito relevante nas relações jurídicas de curto prazo e em

contratos de conteúdo simples, cujas cláusulas penais contratuais incorporadas

não são de valor muito elevado; contudo, no âmbito do comércio internacional,

onde na maioria dos casos as relações jurídicas são duradoras e os contratos são

1 “O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei” – n.º1 do artigo 406º (Eficácia dos contratos) CC português.

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complexos e detalhados2, o referido conceito terá grande importância para os

contraentes.

Entende-se por um contrato internacional um acordo bilateral ou

multilateral que constitui, regula e extingue uma relação jurídica patrimonial

entre as partes que estão ligadas a diferentes ordenamentos jurídicos. Pelas

palavras do SANTOS JÚNIOR: “os contratos internacionais realizam-se entre

operadores económicos – comerciais ou industriais, entre empresas,

normalmente enquadradas por sociedades comerciais”3. Destaca o mesmo autor

que “os contratos internacionais são o veículo jurídico fundamental do comércio

internacional e polo de atração do Direito do Comercio Internacional”4,5. O

contrato internacional é um instrumento jurídico das transações internacionais

que potencia a prosperidade económica do país, o desenvolvimento de

tecnologias e até a própria paz social. Sublinha ainda SANTOS JÚNIOR, que “na

verdade, se, como já alguém disse, o contrato constitui uma descoberta tão

admirável quanto a da roda, pode acrescentar-se que o seu uso é tão universal

quanto o uso desta”6.

Assim, os contratos internacionais são celebrados entre entes empresariais,

com sedes profissionais em países diferentes e são sensíveis a perturbações que

podem ocorrer fora do controlo das partes, durante o cumprimento das suas

2 V. g. o contrato de realização de unidade industrial (“chave na mão”, “produto na mão”); o contrato de transferência de tecnologia (contrato de “know-how”); o contrato de distribuição (contrato de “franchising”); o contrato de compra e venda internacional; o contrato de empreendimento comum (“joint venture”); contrato de empreitada e subempreitada, etc. 3 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Especialização e Mobilidade Temática do Direito Comercial Internacional como Disciplina de Mestrado. Uma aplicação: Os Contratos Internacionais de Engenharia Global, Almedina, 2009, pág. 38. 4 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Sobre o conceito de Contrato Internacional, separata: Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, vol. I – 2005, Almedina, pág. 162. 5 Contrato internacional é “o instrumento necessário e fundamental de formalização de operações económicas internacionais, com o reconhecimento amplo da autonomia dos contraentes na auto-regulamentação dos seus interesses, que neste âmbito, se estende quer à faculdade de escolha da lei aplicável quer à faculdade de submissão dos litígios decorrentes do contrato internacional a arbitragem comercial internacional”. Cfr. SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, ibidem, pág. 166. 6 Ibidem, pág. 176.

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obrigações contratuais. Quaisquer relações jurídicas comerciais internacionais

não são seguras e implicam um elevado grau de incerteza, por estarem

dependentes de situações politicas e/ou económicas dos Estados aos quais os

contraentes estão ligados. Conforme STRENGER: “a distância que separa os

contraentes, a diversidade de sistemas jurídicos, as incertezas jurídicas são fontes

de desconfiança tradicionais em matéria internacional”7. De acordo com BRUNO

OPPETIT: “os contratos internacionais envolvem-se em uma atmosfera política e

económica, de maneira extremamente sensível às constantes mutações geradoras

de conflitos e incertezas”8. Portanto, no âmbito do comércio internacional, tal

como nos negócios jurídicos internos, ocorrem frequentemente casos em que a

prestação contratual se torna mais difícil, ou até impossível para uma das partes,

devido a fatores objetivos que estão fora do seu controlo.

É importante tomar em consideração que os contratos comerciais

internacionais pressupõem a possibilidade de serem regulados por diferentes

sistemas jurídicos nacionais, os quais, por vezes, apresentam soluções distintas

para os mesmos casos jurídicos, o que certamente não será favorável para uma

das partes. Por exemplo, dois ordenamentos jurídicos distintos podem

apresentar soluções completamente opostas num mesmo caso de

impossibilidade de cumprimento da obrigação contratual. Portanto, uma vez que

nos Direitos nacionais não existe uma regulação clara dos casos de

impossibilidade de cumprimento da obrigação contratual, em virtude da

ocorrência de eventos imprevisíveis, irresistíveis e exteriores à vontade das

partes, na maioria dos casos, os contraentes consideram necessário inserir no seu

contrato uma cláusula de Força Maior, que os poderá exonerar de

responsabilidade contratual (perante tais situações) e garantir, posteriormente,

uma segurança e certeza jurídica.

7 STRENGER, IRINEU, Direito Internacional Privado (Direito Comercial Internacional), 4ª ed., aumentada e atualizada, São Paulo: LTr, 2000, pág. 789. 8 OPPETIT, BRUNO, apud ibidem, pág. 828.

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1. Origem da “força maior” e do “caso fortuito”

A noção da “força maior” (vis maior) e do “caso fortuito” (casus fortuitus)

foram conhecidos pelo Direito Romano Privado do período clássico. Naquela

altura estava em vigor a máxima romana impossibilium nulla obligatio est9 (D. 50,

17, 185). Pelas palavras de VERA-CRUZ PINTO: “quando a realização da

prestação se torna impossível por um evento que não pode ser imputável, a

nenhum titulo, ao devedor: caso dos factos naturais – como inundações, sismos,

derrocadas; factos jurídicos que subtraem a coisa do comércio; atos humanos

realizados por terceiros com força e de forma irresistível – o devedor fica livre de

toda a responsabilidade ou vinculo”10,11. SANTOS JUSTO afirma que “o

incumprimento duma obligatio pode dever-se à impossibilidade material de

execução do seu objeto, determinada por acontecimentos direta ou indiretamente

alheios à vontade humana”12. Sublinha ainda o referido autor que “é necessário

verificar se o incumprimento de obrigação é ou não imputável ao devedor, o que

implica determinar a natureza do facto determinante do incumprimento;

verificar se é anterior ou posterior à formação do vínculo obrigacional; e, se for

superveniente, indagar se torna impossível a prestação a qualquer pessoa que se

encontre na situação do devedor (impossibilidade objetiva) ou apenas a um

determinado devedor (impossibilidade subjetiva)”13.

9 A obrigação impossível é nula. 10 PINTO, EDUARDO VERA-CRUZ, O Direito das Obrigações em Roma, I vol., Lisboa: AAFDL, 1997, pág. 120. 11 “El deudor se libera de toda responsabilidad cuando la prestación se hace imposible por um evento que no le es imputable. Hechos naturales – inundación, terremoto, ruina, naufrágio, etc.-, hechos jurídicos que sustraen la cosa al comercio de los hombres y actos humanos realizados por terceros com empelo de fuerza irresistible, libran al deudor de todo vínculo. Com relación a tales acontecimientos se habla de casus o de casus fortuitus. El caso fortuito absoluto es la vis maior o evento que ninguna medida de previsión normal hubiera podido evitar.” Vide in IGLESISAS, JUAN, Derecho Romano: Historia e instituciones, 11ª edición, Ariel Derecho, Barcelona, 1993, pág. 438. 12 JUSTO, ANTÓNIO DOS SANTOS, Direito Privado Romano – II (Direito das Obrigações), 4ª ed., Coimbra Editora, 2011, pág. 203. 13 Idem.

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Destaca VERA-CRUZ PINTO que nas fontes jurídicas do Direito Romano

Privado, no período clássico, não se encontra um conceito geral de casus

fortuitus14, mas que existe “uma terminologia muito variada para designar os

factos que se podem enquadrar na noção de casus fortuitus – vis ou vis maior, cui

resisti non potest15 (D. 13, 6, 18), cui ignosci debet16, cui humana infirmitas resisti non

poteste17 (D. 44, 7, 1, 4), vis divina, fatale damnum, fortuita calamitas – indicando

causas imprevisíveis (fortuiti casus adversus quos caveri non potuit18 – C. 5, 38, 4) e

fatais, já que qualquer comportamento do devedor no sentido de evitar o facto

ou as suas consequências seria vão, porque dele não resultaria quaisquer efeitos.

O facto verifica-se, naturalmente, com independência da vontade do devedor”19.

Afirma o mesmo autor que “apesar do casuísmo das fontes, podemos dizer

que se verifica uma situação de casus fortuitus, em geral, quando ocorre uma

causa, não primitiva ou inicial, de incumprimento da prestação, não imputável

ao devedor. O evento verifica-se sem culpa ou dolo do obrigado20 (I. 3, 23, 3; D.

3,5, 31; 9, 2, 30, 3; 9, 2, 52, 4; 13, 7, 13, 1)”21.

Conforme SANTOS JUSTO22 e MAX KASER23, as fontes romanas recorrem

com frequência ao critério de custodia na valoração da imputabilidade do

incumprimento. Não obstante o referido conceito não ser unívoco, o mesmo era

14 Cfr. o JUAN IGLESIAS: “Caso fortuito es cualquier evento no imputable al deudor.” Op. cit., pág. 435. 15 A que se não pode resistir. 16 Que deveria ser perdoado. 17 Aquela a que a fraqueza humana não pode resistir. 18 Caso fortuito que não pode ser evitado. 19 PINTO, EDUARDO VERA-CRUZ, op.cit., pág. 121. 20 Cfr. o EDUARDO VERA-CRUZ PINTO: “O casus é um conceito antitético da culpa.” Op. cit., pág. 120. 21 Ibidem, pág. 121. 22 JUSTO, ANTÓNIO DOS SANTOS, op.cit., pág. 205. 23 “Em certos casos em que o devedor tem em seu poder e para o seu proveito coisas do património do credor, que mais tarde tem de lhe restituir, o devedor responde por custodia. Isto significa que tem de as guardar, e responde pela sua perda e por outros danos que resultem tipicamente da sua insuficiente vigilância. Só se liberta por certas causas de exoneração típicas que, na época clássica tardia, se resumiram no conceito de força maior (vis maior); cfr. G. 3, 205-207; Ulp. D. 13, 6, 5, 5. Vide in KASER, MAX, Direito Privado Romano, 2ª ed., Lisboa: Serviço de Educação - Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, pág. 215.”

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aplicado pelos juristas medievais no âmbito da responsabilidade civil. Na

custodia o devedor obrigava-se de guardar a res que lhe foi confiada, com

diligência e cuidado, preservando-a da perda e deterioração. Portanto, se a coisa

tivesse sido danificada, roubada ou extraviada, o depositário era responsável por

esse facto, independentemente de culpa, exceto se a perda, dano ou subtração

tivessem sido causados por factos imprevisíveis e insuscetíveis de serem evitados

por uma pessoa diligente e cautelosa. Trata-se de uma responsabilidade objetiva,

excluída por vis maior ou casus fortutis. Assim sendo, o devedor sempre

responderia por custodia, exceto nos casos de típica ausência de culpa,

nomeadamente: incêndio, naufrágio, inundação, ruína de um edifício, terramoto,

tumulto, pilhagem por inimigos e bandos de ladrões e morte natural de um

escravo ou animal (Gai. D. 44, 7, 1, 4; 13, 6, 18)24,25.

Em regra geral, a impossibilidade da prestação que provém do casus fortutis

ou do vis maior liberta o devedor de qualquer responsabilidade, excetuando os

casos em que partes tenham acordado algo em contrário, de forma específica. Isto

significa que as normas jurídicas relativas à responsabilidade têm carater

dispositivo e as próprias partes podem decidir sobre o grau da responsabilidade

dos contraentes26,27.

24 Ibidem, pág. 216. 25 “O âmbito das relações em que se responde por custodia, abrange certamente o comodatário, empresários como o lavadeiro (fullo) e o remendão (sacrinator), que recebem coisas para arranjar, o barqueiro, o estalajadeiro, o dono de estábulos, o locador de armazém (Lab.-Iav. D. 19, 2, 60, 9), o inspector, que (por interesse próprio) aceite coisa para examinar (Ulp. D. 13, 6, 10, 1), presumivelmente (segundo alguns juristas) o vendedor antes de entregar a coisa e (no período clássico tardio) o credor possuidor pignoratício, o arrendatário de uma coisa e, finalmente, o socio que deve trabalhar coisas de outros sócios. Incluída na responsabilidade por custodia estava a responsabilidade por danos causados em animais e pela fuga de escravos sujeitos a vigilância (Ulp. D. 13, 6, 5, 6). A equiparação da responsabilidade por danos na coisa, causados por terceiros, foi discutida entre os clássicos (cfr. Ulp. D. 19, 2, 41 com Iul. D. 13, 6, 19). Se o devedor, nos termos do contrato, tem de pôr uma coisa em risco (p. ex., transporte marítimo, cfr. também Gai. D. 19, 2, 25, 7) fica excluída a responsabilidade por custodia.” Idem. 26 PINTO, EDUARDO VERA-CRUZ, op.cit., pág. 121. 27 Vide IGLESIAS, JUAN, op. cit., pág. 438. “Las normas que atañen a la responsabilidad son de carácter dispositivo y, consiguintemente, cabe agravarla o aminorarla por convenio de las partes.”

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SANTOS JUSTO observa que “as decisões da jurisprudentia clássica

mostram-nos algumas valorações de acontecimentos que determinavam a

impossibilidade de uma obligatio ser cumprida e que os juristas medievais e

modernos utilizaram na elaboração de figuras abstratas, como a força maior (vis

maior) e o caso fortuito (casus fortuitus). E mostram-nos também que o

comportamento do devedor era valorado com base no dolus e na culpa

extracontratual ou contratual”28,29. No período clássico do Direito Romano, o vis

maior era considerado pelos juristas um acontecimento natural ou devido a um

facto humano não imputável ao devedor, ao qual não seria possível se opor: “cui

resisti non potest”, v.g., uma inundação, um raio, um terramoto, um naufrágio, etc.

O conceito do casus fortuitus pressupunha apenas um acontecimento natural,

independentemente da vontade do devedor, cuja principal característica era a

imprevisibilidade30.

Assim, nessa altura, os conceitos de “força maior” e de “caso fortuito” já

eram amplamente discutidos pela doutrina. A principal distinção que poderia

existir no Direito Romano entre as referidas expressões era a imprevisibilidade

do caso fortuito e a irresistibilidade da força maior. Ainda hoje, “a doutrina

discute se o termo de casus fortuitus foi utilizado pelos jurisconsultos romanos

com o mesmo significado de vis maior e damnum fatale.”31,32. Não obstante a

discussão doutrinal, tanto casus fortutis como vis maior tinham como função a

liberação do devedor da responsabilidade de indemnizar o credor pelos danos,

28 JUSTO, ANTÓNIO DOS SANTOS, op.cit., pág. 204. 29 “A culpa é vista como um desvio de um modelo ideal de conduta representado ora pela bona fides ora pela diligentia dum paterfamilias cuidadoso (diligens paterfamilias).” Idem, vide nota de roda pé 8. 30 Idem, vide notas de roda pé 6 e 7. 31 PINTO, EDUARDO VERA-CRUZ, op.cit., pág. 122. 32 “Muitos juristas negam a existência de qualquer distinção entre vis maior e casus no direito romano, o que parece correto em face dos textos da compilação justinianeia. Aí na se encontra qualquer definição concreta de uma ou de outro. Os referidos textos apenas apresentam os exemplos hipotéticos.” Vide in FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, 3ª ed., Revista Forense, 1958, pág. 30.

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no caso de não realização da prestação em virtude de um acontecimento

imprevisível, inevitável e que não lhe fosse imputável.

É importante acrescentar que a doutrina atual também não é pacífica

relativamente aos conceitos em causa. Apesar da antiguidade dos conceitos de

“força maior” e de “caso fortuito”, ainda existe, atualmente, controvérsia acerca

da sua natureza jurídica.

1.1 Distinção entre “força maior” e “caso fortuito”.

Teoria subjetiva e objetiva

Estabelece MEDEIROS DA FONSECA que existe um debate secular em

torno da noção de “caso fortuito” ou de “força maior”. “Desde os mais remotos

tempos, dois critérios opostos defrontam-se para fixação do conceito do caso

fortuito ou de força maior: um objetivo, procurando caracterizá-lo com elementos

decorrentes dos próprios acontecimentos, com abstração das condições pessoais

e da diligência do obrigado; outro subjetivo, conduzindo à perfeita identificação

daquela noção com a ausência de culpa”33. A divergência entre os dois critérios

supracitados foi também estudada pelo jurista russo PIRVITS34. O referido autor

designa que existem duas teorias para determinar o conceito de “força maior”: a

objetiva e a subjetiva. Para a teoria subjetiva é importante analisar a questão da

culpa da parte faltosa, aplicando-se o princípio do “bom pai de família”. Para a

teoria objetiva, a impossibilidade da execução deve ser apreciada

independentemente da personalidade do devedor. Interessa a natureza do

33 FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., pág. 27. 34 PIRVITS E. E., The value of guilt, misadventure and the case of force majeure in civil law, in Legal Jornal "CIVIL LAW REVIEW". 2010. No 6. págs. 186 – 193. Disponível em http://www.mvgp.ru/articles/3/198/

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próprio impedimento e não a culpa do agente. Considera PIRVITS35 que a força

maior é um acontecimento imprevisível e irresistível ao qual a parte faltosa nunca

poderia se opor, mesmo se tivesse agido com todo o cuidado e diligência. Para o

referido autor, a questão da culpa deverá ser sempre analisada – e não omitida.

Portanto, a situação psicológica do agente é relevante para os defensores da

conceção subjetiva. Na conceção objetiva, a questão de culpa não é analisada.

Como afirma MEDEIROS DA FONSECA36 os juristas subdividiram-se,

distinguindo o “caso fortuito” do de “força maior”, atribuindo apenas ao último

um caráter objetivo, por ser um evento ao qual não se poderia resistir, mesmo na

eventualidade de previsão. Portanto, a principal característica da “força maior”

era a sua natureza invencível.

Contudo, interessa-nos saber se existe uma verdadeira distinção entre vis

maior e casus fortutis. Para encontrar uma resposta, iremos recorrer a uma breve

análise histórica de algumas conceções antigas nos sistemas jurídicos

estrangeiros.

No antigo Direito francês não se verificava nenhuma diferença entre o “caso

fortuito” e a “força maior”. As características principais de ambos os conceitos

eram a imprevisibilidade e a irresistibilidade. Os exemplos comuns de tais

eventos eram naufrágios, incêndios, inundações, guerras, entre outros.

No Código de Napoleão não se encontrava nenhuma definição a respeito do

conceito de “força maior” ou de “caso fortuito”. Unicamente, o artigo 1147º

estabelecia que o devedor era responsável pelo incumprimento da obrigação, ou

pela mora, excetuando os casos em que se provasse que a falta do cumprimento

derivou “d´une cause étrangère qui ne peut lui être imputée, encore qu´il n´y ait aucune

mauvaise foi de sa part”; logo, no artigo seguinte, acrescentava-se que não haveria

lugar a perdas e danos quando “par suite d´une force majeure ou d´un cas fortuit”, o

35 Idem. 36 FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., pág. 27.

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devedor tivesse deixado de executar a obrigação assumida37. Portanto, chega-se

à conclusão lógica que existia uma certa sinonímia entre os dois conceitos em

causa38. Contudo, a doutrina e a jurisprudência francesa continuavam a discutir

acerca da distinção dessas expressões. No entanto, a maioria da doutrina estava

de acordo que os elementos essenciais do “caso fortuito” e de “força maior” eram

a ausência de culpa - o incumprimento provém de causa não imputável à parte

faltosa - e a impossibilidade absoluta39,40 de cumprir a obrigação. Podemos

afirmar que o primeiro elemento compreende uma não-intervenção do devedor,

quando o segundo pressupõe a irresistibilidade à verificação do facto de outros

devedores, quando colocados numa situação idêntica.

Porém, o conceito de “força maior” usava-se sempre à priori quando se

tratavam de causas naturais, tais como inundações, terramotos, relâmpagos, etc.

Assim, estão em causa fatos objetivos que colocavam o homem numa situação de

impossibilidade de oposição. Todavia, segundo MEDEIROS DA FONSECA: “a

força maior não é uma qualidade jurídica indissoluvelmente ligada de direito a

nenhum acontecimento, devendo-se, assim, em cada espécie, proceder ao exame

dos factos, encarados objetivamente, em toda sua generalidade, com abstração

das condições pessoais do devedor e dos seus meios de ação particulares”41.

37 FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., pág. 37. 38 SOLIMAN MORCOS concluiu no seu estudo “em favor da unidade de noção do caso fortuito ou de força maior e de sua apreciação in abstrato, isto é, prescindindo de qualquer investigação subjetiva concernente à pessoa do devedor em causa, mas levando em conta as circunstâncias externas nas quais se encontre.” MORCOS, SOLIMAN, Causes légales d´exonération de la responsabilité civile, 1936, pág. 217, apud, FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., pág.45. 39 Ocorre independentemente da personalidade do devedor. Ou seja, a obrigação não pode ser cumprida nem por uma outra pessoa, substituindo o obrigado. 40 “Reconhece-se de uma maneira geral, na doutrina francesa, que a impossibilidade de execução, para liberar o obrigado, deve ser absoluta ou objetiva. A dificuldade ou onerosidade maior, mesmo excessiva e imprevista, não bastam.” “A jurisprudência e a doutrina francesas têm pacificamente consagrado essa exigência da impossibilidade absoluta, objetiva, de execução da obrigação, para que se verifique a força maior. Desde que a execução seja possível, embora à custa de sacrifícios excecionais, o devedor não se libera.” FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., págs. 45, 46. 41 Ibidem, pág.37.

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Na Alemanha do século XIX, a conceção objetiva de “força maior” também

foi aceite pela doutrina dominante, mas, posteriormente, muitos começaram a

seguir a corrente subjetiva na aplicação do referido conceito, avaliando o critério

da culpa do devedor. Como existiam muitas divergências acerca da interpretação

da expressão de “força maior”, o 22º Congresso de jurisconsultos alemães emitiu

o voto favorável ao abandono dessa expressão do projeto do Código Civil

germânico. O Código Civil alemão entrou em vigor em 1 de janeiro de 1900 e

relativamente à liberação do dever de responsabilidade civil, estabelecia no seu

texto (§275 e §279) que no caso de verificação da impossibilidade superveniente

de cumprir, o devedor não responderia, caso o acontecimento não lhe fosse

imputável42. A doutrina e jurisprudência alemã não identificaram a “força maior”

com o “caso fortuito”, estabelecendo a primeira como causa liberatória

admissível nas situações de responsabilidade ampla, estabelecida em

determinadas relações jurídicas, independentemente da existência de culpa;

quanto ao segundo, este entendia-se como acontecimento não culposo do

devedor.

Em Itália, igualmente aos sistemas jurídicos supracitados, a doutrina

dominante seguiu, inicialmente, a conceção objetiva de noção de “força maior” e

de “caso fortuito”, identificando-a com as características de imprevisibilidade e

de inevitabilidade. Exigiam-se como elementos principais para a verificação da

causa excludente de responsabilidade um acontecimento não imputável ao

devedor, que fosse imprevisível e inevitável, e que esse acontecimento levasse à

impossibilidade do cumprimento da obrigação. O artigo 1225º do antigo Código

Civil italiano de 1865 previa que o devedor só não respondia pelos danos

decorrentes do incumprimento ou da mora se esses fossem derivados “da una

causa estranea a lui non imputabile, ancorche non sia per sua parte intervenuta mala

42 FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., pág. 55.

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fide”43. Para o afastamento de responsabilidade civil, era necessário que o devedor

não tivesse contribuído para o acontecimento que impossibilitou a execução de

obrigação44.

Como afirma MEDEIROS DA FONSECA45, depois do estudo precedido da

doutrina italiana, não se exigia a impossibilidade absoluta ou objetiva do

incumprimento da obrigação para exoneração da responsabilidade civil. A

impossibilidade subjetiva46 era suficiente, desde que se tratasse da prestação de

uma coisa infungível e que não fosse confundida com uma simples dificuldade

ou onerosidade.

No que se refere à noção de “caso fortuito” e de “força maior”, as

divergências doutrinárias perduraram naquela altura e continuaram a existir

mesmo depois da entrada em vigor do atual Código Civil italiano, em 1942, o

qual começou a seguir a corrente subjetiva na aplicação da força maior, avaliando

a questão da culpa do devedor. Sobre o regime da liberação na falta do

cumprimento no atual Código Civil, falaremos infra.

Depois de recorrer a uma breve análise histórica de algumas conceções

antigas, chegamos à conclusão de que os legisladores do séc. XIX optaram pela

eliminação das expressões de “caso fortuito” e de “força maior”, a fim de afastar

as divergências conceituais em torno dos referidos conceitos. Como as expressões

em causa produzem os mesmos efeitos liberatórios, no âmbito de

responsabilidade civil, não haverá necessidade de tentar procurar diferenças

entre elas.

43 Como o texto citado não alude ao conceito de “força maior” nem ao de “caso fortuito”, admite-se que entre eles não existia qualquer distinção. 44 FONSECA, ARNOLDO MEDEIROS DA, op. cit., pág. 57. 45 Ibidem, págs. 58 e 60. 46 Impossibilidade apenas do devedor.

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2. Impossibilidade de cumprimento da obrigação nos

sistemas jurídicos nacionais

Os ordenamentos jurídicos internos, analisados em seguida, admitem que se

verificam certas circunstâncias quando uma das partes do contrato deixa de ser

obrigada de cumprir a prestação à qual está adstrita. Está em causa a situação de

impossibilidade de cumprimento da obrigação em virtude da ocorrência de um

impedimento imprevisível, irresistível e exterior à vontade dos contraentes, que

torna absolutamente impossível executar a prestação.

No Direito Civil existem os seguintes tipos de impossibilidade:

impossibilidade objetiva (ninguém pode cumprir) e impossibilidade subjetiva

(apenas o devedor não pode cumprir); impossibilidade originária (aquela que já

existia no momento da celebração do contrato) e impossibilidade superveniente

(aquela que se verifica após a data da celebração do contrato); impossibilidade

parcial (apenas uma parte da prestação é que se torna impossível) e

impossibilidade total (a prestação torna-se impossível na totalidade);

impossibilidade definitiva (a prestação jamais poderá ser realizada) e

impossibilidade temporária (caso o impedimento seja transitório);

impossibilidade física (a coisa devida desaparece ou é destruída) e

impossibilidade jurídica (a prestação é impossível de se realizar por motivos

legais).

Nas relações jurídicas, o termo mais utilizado para as referidas

circunstâncias é a “força maior”. Como no âmbito do comércio internacional este

termo é muito relevante, interessa-nos saber de que forma os diferentes sistemas

jurídicos nacionais divergem acerca da aplicação do referido instituto jurídico.

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2.1 Sistemas jurídicos romano-germânicos

2.1.1 Direito alemão

A reforma de 2001/2002 do CC alemão47 (BGB) alterou o regime da

“perturbação de prestações”48, adotando uma conceção mais ampla do regime de

impossibilidade de cumprimento que analisaremos infra.

O § 275º (Exclusão do devedor de prestar) do novo BGB dispõe o seguinte:

“1). A pretensão à prestação é excluída sempre que esta seja impossível para o devedor ou para todos.

2). O devedor pode recusar a prestação sempre que esta requeira um esforço que esteja em grave

desproporção perante o interesse do credor na prestação, sob a consideração do conteúdo da relação

obrigacional e da regra de boa fé. Na determinação dos esforços imputáveis ao devedor é também de ter em

conta se o impedimento da prestação deve ser imputado a este ultimo.

3). O devedor pode ainda recusar a prestação quando deva realizar pessoalmente a prestação e esta,

ponderados os impedimentos do devedor perante o interesse do credor na prestação não possa ser exigível.”

O § 280º (Indemnização por violação de um dever) do novo BGB prevê:

“1). Quando o devedor viole um dever resultante de uma relação obrigacional, pode o credor exigir a

indemnização do dano daí resultante. Tal não opera quando a violação do dever não seja imputável ao

devedor”49.

47 A reforma consta da denominada Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts, que foi aprovada no Parlamento Federal em 11 de outubro de 2001, publicada no jornal oficial (Bundesgesetzblatt) em 29 de novembro de 2001 (BGB1, I, Nr., 61, 2002, 3138) e entrou em vigor em 1 de janeiro de 2002; vide in, SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Da impossibilidade pessoal de cumprir: breve confronto do novo direito alemão com o direito português, in Centenário do nacimento do Professor Paulo Cunha, Lisboa, 2012, págs.: 313-326. 48 “Em geral, as perturbações das prestações são todas as circunstancias que não permitem a execução ou a execução correta da prestação. Enquadram-se aí, em termos mais restritos, o incumprimento, a impossibilidade de cumprir e a violação positiva do contrato. Mais amplamente, (...), inserem-se também nas perturbações das prestações, a culpa in contrahendo, a base do negocio e o contrato com eficácia de proteção a terceiros.” Ibidem, pág. 313, vide nota de roda pé 3. 49 CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, Da Modernização do Direito Civil, I vol., Almedina, 2004, págs 107, 108 e 109.

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Contudo, “o novo § 31150 prevê que “a eficácia de um contrato não é

prejudicada pela circunstância de o devedor não ter de realizar a prestação nos

termos do § 275 (1) a (3) e de o impedimento à prestação já existir ao tempo da

conclusão do contrato”. Neste caso, “o credor pode optar por reclamar uma

indemnização em lugar da prestação, ou a compensação das suas despesas na

medida prevista no § 284”51. Esta regra não é aplicável no caso de “o devedor não

conhecer o impedimento à realização da prestação aquando da conclusão do

contrato e não responder pelo seu desconhecimento””52. Observa MOURA

VICENTE que em vez de “exonerar automaticamente o devedor nos casos de

impossibilidade originária da prestação, o Código germânico manda agora

atender à repartição do risco operada pelas partes no que toca a essa

impossibilidade. Sem deixar de consagrar nesta matéria o princípio da culpa, o

legislador alemão reconheceu que, (...) o devedor pode ter assumido esse risco,

garantindo a prestação”53. Assim, conforme a lei alemã, para se liberar da

responsabilidade o devedor é obrigado a provar que o impedimento que

impossibilitou a prestação ocorreu sem culpa sua e que ele desconhecia essa

impossibilidade no momento da celebração do contrato (cfr. o § 311/2 in fine).

Segundo BRUNNER54, o n.º 1 do § 275 é aplicável a todos os tipos de

impossibilidade, ou seja, impossibilidade objetiva, impossibilidade subjetiva;

impossibilidade originária, impossibilidade superveniente; impossibilidade

50 “§ 311º (Impedimento da prestação aquando da conclusão do contrato): (1) Não impede a eficácia de um contrato o facto de o devedor não ter de prestar por força do § 275/1 a 3 e de o impedimento da prestação já existir aquando da conclusão do contrato. (2) O credor pode exigir, segundo escolha sua, indemnização em vez de prestação ou a indemnização dos seus dispêndios, no âmbito prescrito no § 284. Tal não se aplica quando o devedor não conhecesse o impedimento da prestação aquando da conclusão”. Ibidem, pág. 108. 51 “O § 284 permite a indemnização por dispêndios vãos”. Idem. 52 VICENTE, DÁRIO MOURA, Direito Comparado: (Obrigações), vol. II, Almedina, 2017, pág. 308. 53 Ibidem, pág. 309. 54 BRUNNER, CHRISTOPH, Force Majeure and Hardship under General Contract Principles. Exemption for Non-Performance in International Arbitration, International Arbitration Law Library, vol. 18, Kluwer Law International, 2008, pág. 82.

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parcial e impossibilidade total. O que importa é que a impossibilidade não seja

imputável ao devedor.

De acordo com LIMA PINHEIRO, no sistema alemão “domina o “princípio

da culpa”: uma parte contratual pode evitar a responsabilidade por inexecução

do contrato se demonstrar que empregou a diligência que é de esperar de uma

pessoa razoável na mesma posição55. Perante o Direito alemão, o devedor

exonera-se não só em caso de impossibilidade física ou legal, mas também no de

excessiva desproporção entre o custo da prestação e o interesse do credor”56. Está

em causa a chamada “impossibilidade prática” (“praktische Unmöglichkeit”) que é

diferente de “impossibilidade económica”57 (§ 275º/2 BGB). Na impossibilidade

prática a prestação ainda é possível, no entanto, nenhum credor razoável irá

exigir o seu cumprimento. Ou seja, o devedor pode deixar de cumprir a obrigação

caso essa exija um esforço injustificado que esteja em grande desproporção com

o interesse do credor. Não se deve esquecer que neste caso será necessário aplicar

o princípio ético-jurídico da boa fé, ponderando o conteúdo de relação

obrigacional. O exemplo clássico58 será o caso do anel que o devedor está

obrigado de entregar e que, entretanto, acaba por o deixar cair num lago

profundo. Em princípio, seria possível drenar o lago e procurar o bem perdido

na areia, mas o próprio trabalho em causa, sem dúvida, iria sair mais caro para o

devedor o que, por sua vez, criara um grave desequilíbrio perante o interesse do

credor. Conforme GABRIELA SOUSA: “importa sublinhar que a aplicação do

referido dispositivo deve ser interpretada de forma restritiva, pois a norma deve

ser aplicada apenas aos casos extremos onde haja um nítido desequilíbrio entre

55 Vigora o princípio de bom pai de família no sistema jurídico alemão. 56 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, Direito Comercial Internacional: Contratos Comerciais Internacionais: Convenção de Viena sobre a venda internacional de mercadorias: Arbitragem Transnacional, Lisboa: Almedina, 2005, pág. 231. 57 Impossibilidade económica onera o devedor, mas não o exonera da responsabilidade civil. 58 Vide in HECK, PHILIPP, Grundiss des Schuldrechts, Tubingen, 1929, §28.8, 69, apud CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES op. cit., pág. 110.

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os esforços exigidos do devedor e os interesses do credor na prestação, onde

nenhum credor razoável poderia esperar que fosse cumprida”59.

O n.º 3 da mesma norma jurídica alemã prevê as situações de inexigibilidade

de obrigações pessoais. Trata-se de uma “impossibilidade pessoal” nas

prestações laborais ou nas prestações de serviços. Conforme MOURA

VINCENTE, trata-se “de situações em que a prestação devida, v. g. ao abrigo de

um contrato de trabalho ou de prestação de serviços, tem de ser realizada pelo

próprio devedor e este se defronta com um impedimento pessoal (doença de um

familiar próximo, necessidade de cumprir um dever militar, etc.) que torne

inexigível, à luz de uma ponderação dos interesses em jogo, essa prestação. Neste

caso, o devedor pode, licitamente, recusar o seu cumprimento”60. O exemplo

clássico61 é o caso da cantora que se desloca ao hospital para apoiar o seu filho

(que tem uma doença grave), recusando participar num espetáculo que estava

agendado à mesma hora. Segundo SANTOS JÚNIOR: “(...) outros exemplos

poderiam ser considerados, como o do médico que, em razão das suas convicções

éticas ou religiosas, se recusa a proceder no Hospital a uma interrupção

voluntaria da gravidez, ou o da trabalhadora de uma tipografia que se recusa a

colaborar na produção de obras pornográficas, degradantes da condição das

mulheres. Tem-se em vista casos em que ocorre uma “impossibilidade moral” ou

de consciência”62.

Levanta-se uma questão: caso o devedor seja o causador do impedimento,

podemos aplicar a respetiva norma jurídica? Como o n.º 3 do § 275 não prevê no

seu texto legal essa condição, a resposta é afirmativa. De acordo com SANTOS

59 SOUSA, GABRIELA MESQUITA, Impossibilidade de cumprimento da obrigação: as alterações do regime alemão e as normas do Código Civil Português, in Estudos sobre incumprimento do contrato. Coordenadora: Maria Olinda Garcia, Coimbra Editora (grupo Wolters Kluwer), 2011, pág. 112. 60 VICENTE, DÁRIO MOURA, op. cit., pág. 311. 61 Vide in HECK, PHILIPP, op. cit., 1929, §28.8, 89, apud SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, op. cit., pág. 315. 62 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, op. cit., pág. 316.

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JÚNIOR :“(...) a cantora continuaria a ter o direito de recusar a prestação, mesmo

que tivesse sido ela que negligentemente houvesse causado a doença do filho”63.

Pelas palavras da GABRIELA SOUSA: “as consequências que recaem sobre

o devedor diante da legítima recusa do cumprimento da prestação sob o abrigo

das hipóteses previstas no § 275º (1) a (3) são a perda do direito à contraprestação

e a possibilidade de ter o contrato revogado pelo credor (§ 326 (1) a (5))64. A lei

nova resguarda ao devedor o direito de receber a contraprestação nos casos em

que seja o credor a causar a impossibilidade da prestação”65.

Assim, a nova lei alemã, no seu texto legal, alargou o conceito de

impossibilidade, incluindo a impossibilidade prática e a impossibilidade moral.

Concedeu ainda a este conceito um caráter unitário. Entendem SANTOS

JÚNIOR66 e MENEZES CORDEIRO67 que o § 275/1 do BGB atual inclui uma

impossibilidade inicial ou superveniente, objetiva ou subjetiva, física ou do

Direito. Como foi eliminada a nulidade do negócio jurídico antigamente imposta

aos casos de impossibilidade inicial, deixou de existir a distinção entre a

impossibilidade inicial e superveniente68,69. A lei alemã, na sua previsão legal,

63 Ibidem, pág. 317. 64 “§ 326/5: o credor pode rescindir o contrato: é uma hipótese sua”. Vide in CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, op. cit., pág. 109. 65 SOUSA, GABRIELA MESQUITA, op. cit., pág. 114. 66 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, op. cit., pág. 314. 67 CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, op. cit., pág. 107. 68 “Com a nova previsão legal, a impossibilidade inicial apenas impedirá a prestação atingida, restando válido o contrato em seus demais aspetos, atendendo ao interesse das partes em ver cumpridas as prestações ainda possíveis.” SOUSA, GABRIELA MESQUITA, op. cit., pág. 110. Vide também CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, op. cit., pág. 106. 69 Neste assunto a lei alemã encontra-se em plena harmonia com o Direito Europeu. O art. 3.1.3 (Initial Impossibility) dos Princípios do UNIDROIT estabelece o seguinte: “The mere fact that at the time of the conclusion of the contract the performance of the obligation assumed was impossible does not affect the validity of the contract.” Vide in http://www.unidroit.org/english/principles/contracts/principles2010/integralversionprinciples2010-e.pdf O ponto II. – 7:102 (Inicial impossibility or lack of right or authority to dispose) do Draft Common Frame of Reference dispõe: “A contract is not invalid, in whole or in part, merely because at the time it is concluded performance of any obligation assumed is impossible, or because a party has no right or authority to dispose of any assets to which the contract relates.” Disponível em: http://ec.europa.eu/justice/policies/civil/docs/dcfr_outline_edition_en.pdf

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simplesmente estabelece que “a pretensão é excluída sempre que esta seja

impossível...”, mencionando claramente “... que esta seja impossível para o devedor ou

para todos” – impossibilidade objetiva e subjetiva. Pelas palavras do SANTOS

JÚNIOR: “entende-se por impossibilidade física a situação em que a prestação

não pode produzir-se segundo as leis da natureza; a impossibilidade jurídica

ocorre quando a execução da prestação está diretamente proibida ou se dá a

frustração da prestação por outros impedimentos jurídicos”70.

Por conseguinte, caso o devedor prove que a prestação, sem culpa sua,

deixou de ser exigida em virtude da ocorrência de um facto (ou factos) que

impossibilitou absolutamente o cumprimento do contrato, este fica exonerado da

responsabilidade contratual perante o credor. É importante destacar que nesta

situação, tratando-se de contratos bilaterais, o devedor deixa de ter direito à

contraprestação e o credor terá direito a pôr fim ao contrato (§ 326/1, 5).

2.1.2 Direito francês

Conforme o artigo 1103º71 do Código Civil francês, os contratos legalmente

celebrados são considerados “lei” para os contraentes. Nos termos do artigo

1193o do mesmo diploma jurídico, os contratos apenas podem ser revogados em

caso de mútuo consentimento entre as partes, ou se a própria lei o autorizar.

Assim, o órgão judicial apenas pode rever ou alterar o contrato nos casos

expressamente prescritos na lei.

70 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, op. cit., pág. 314, vide nota de roda pé 7. 71 Art. 1103º (antigo artigo 1134º) dispõe: “Les contrats légalement formés tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faits”. O Código Civil francês atual encontra-se disponível em https://www.legifrance.gouv.fr

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Portanto, no ordenamento jurídico francês vigora o princípio da força

obrigatória dos contratos e apenas a impossibilidade de realização da obrigação

poderá extinguir o contrato, sem aplicação do instituto da responsabilidade civil.

No Direito francês, à semelhança do Direito alemão, também vigora o

“principe de la culpabilité”. Pelas palavras do MOURA VINCENTE: “o novo art.

1231º-172 do Código francês estabelece que “(o) devedor é condenado, se a tal

houver lugar, ao pagamento de uma indemnização quer em razão da inexecução

da obrigação, quer em razão do atraso na execução, se não demonstrar que e

execução foi impedida por força maior””73.

Após a reforma de 201674, o artigo 1351º da secção 5 “L'impossibilité

d'exécuter” do Código Civil francês estabelece o seguinte:

“Article 1351

L'impossibilité d'exécuter la prestation libère le débiteur à due concurrence lorsqu'elle procède d'un

cas de force majeure et qu'elle est définitive, à moins qu'il n'ait convenu de s'en charger ou qu'il ait été

préalablement mis en demeure”.

72 “Article 1231-1: Le débiteur est condamné, s'il y a lieu, au paiement de dommages et intérêts soit à raison de l'inexécution de l'obligation, soit à raison du retard dans l'exécution, s'il ne justifie pas que l'exécution a été empêchée par la force majeure”. 73 VICENTE, DÁRIO MOURA, op. cit., pág. 283. 74 Pelas palavras de MENEZES CORDEIRO: “No dia 11 de fevereiro de 2016, foi pulicada, no Journal Officiel, a Ordonance n.º 2016/131, du 10 février 2016 portant reforme di droit des contrats, du regime général et de la prevue des obligations. O âmbito da reforma é impressionante: são alterados ou introduzidos, no que se poderá chamar a parte geral das obrigações, os artigos 1100º a 1386º-1, do Código Civil francês de 1804.” No referido diploma jurídico francês “modernizou-se a linguagem, atualizou-se a sistemática e completaram-se rubricas antes apenas bosquejadas. Lacunas significativas foram colmatadas. A jurisprudência foi acolhida, em termos de lei.” Afirma o mesmo autor que “o sentido geral da reforma foi, no essencial, o de acertar o passo da lei pelo da Ciência viva: teórica e pratica, tendo em particular atenção o Direito alemão.” Observa o ilustre jurista que “o sistema francês de Direito Civil deixa o núcleo duro da tradicional família napoleónica, que lhe deve o nome, aproximando-se do romano-germânico.” (...) “Estamos, seguramente, perante a maior mexida no Direito privado francês, desde o Código Napoleão, de 1804.” Vide in CORDEIRO, ANTONIO MENEZES, A reforma francesa do Direito das obrigações (2016), RDC, 2017, págs. 9 e ss.

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Assim sendo, conforme o preceito citado, o devedor fica exonerado da

responsabilidade caso a impossibilidade de executar a prestação tenha sido

causada por um evento que constitui a força maior. De acordo com o parágrafo

1 do art. 1218º75, no âmbito da matéria contratual entende-se pela força maior o

evento que impossibilita a execução da prestação, que está fora do controlo do

devedor, que não podia ser previsto no momento da celebração do contrato e

cujos efeitos não podiam ser evitados mediante a adoção de medidas adequadas.

Nos termos do artigo 1351º-1, quando a impossibilidade de execução

provém de perda da coisa devida, o devedor fica exonerado caso consiga provar

que a perda desta coisa ocorreria mesmo no caso do cumprimento da obrigação.

Conforme o 2º parágrafo do referido artigo, o devedor é obrigado a ceder ao

credor todos os direitos e ações que estão ligados à coisa em causa.

É indispensável que a impossibilidade seja definitiva e não temporária. Se o

impedimento for temporário, o cumprimento da obrigação será suspenso, a

menos que mora justifique a resolução do contrato, v. g. o credor deixou de ter

interesse na prestação. Se a impossibilidade for definitiva, o contrato será

automaticamente resolvido e as partes serão libertadas das suas obrigações nos

termos dos arts. 1351º e 1351º-1 (art. 1218º).

Assim, “a ocorrência de force majeure suspende as obrigações da parte

afetada, o que, por sua vez, suspende as obrigações da outra parte. Se o facto que

75 “Article 1218: Il y a force majeure en matière contractuelle lorsqu'un événement échappant au contrôle du débiteur, qui ne pouvait être raisonnablement prévu lors de la conclusion du contrat et dont les effets ne peuvent être évités par des mesures appropriées, empêche l'exécution de son obligation par le débiteur.

Si l'empêchement est temporaire, l'exécution de l'obligation est suspendue à moins que le retard qui en résulterait ne justifie la résolution du contrat. Si l'empêchement est définitif, le contrat est résolu de plein droit et les parties sont libérées de leurs obligations dans les conditions prévues aux articles 1351 et 1351-1”.

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dá causa à force majeure não for apenas temporário, resultará a extinção do

contrato sem compensação para a parte afetada”76.

Afirma MOURA VINCENTE: “o Código francês manda igualmente atender,

nesta matéria, à repartição dos riscos estipulada pelas partes, dispondo o art.

1351º que a impossibilidade da prestação decorrente de força maior, quando

definitiva, libera o devedor, salvo este houver assumido o risco daquela”77.

Para o Direito francês, a force majeure sempre foi um acontecimento

imprevisível, irresistível e exterior à vontade das partes que torna o cumprimento

de obrigação impossível. Observa ALEXANDRA CAIADO que: “Force majeure, a

não ser que o contrato preveja uma noção mais especifica, é o facto exterior às

partes (incluindo os seus empregados e agentes) e que é imprevisível, irresistível

e insuperável. Deve impedir completamente o cumprimento pela parte das suas

obrigações, em oposição a torná-las apenas mais onerosas ou difíceis”78.

Assim, no sistema jurídico francês, para que o devedor fique exonerado da

responsabilidade contratual exige-se a verificação simultânea dos seguintes

pressupostos:

a) o impedimento deve ter um caráter externo. Ou seja, o impedimento deve

ocorrer fora do controlo da parte que pretende ser desculpada e não pode

ser-lhe imputável;

b) o impedimento deve ser imprevisível. A parte faltosa deve provar que

não podia ter previsto a ocorrência de tal impedimento no momento da

celebração do contrato;

c) o impedimento deve ser irresistível. Logo, a parte que não cumpriu a

obrigação deve demonstrar que o impedimento e os seus efeitos não

podiam ser evitados adotando medidas adequadas;

76 CAIADO, ALEXANDRA, Hardship nos Princípios dos Contratos Comerciais Internacionais (UNIDROIT) e nos Princípios do Direito Europeu dos Contratos, Relatório de Mestrado do Seminário de Direito Comercial Internacional, setembro, 1996, pág. 9. 77 VICENTE, DÁRIO MOURA, op. cit., pág. 309. 78 CAIADO, ALEXANDRA, op.cit., pág. 9.

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d) a impossibilidade deve ser absoluta. Assim, o instituto de “alteração das

circunstâncias” – está excluído desse preceito. Caso o cumprimento se

torne mais difícil ou oneroso, mas não impossível, o devedor terá que

pagar uma indemnização em caso de não cumprimento. Está em causa

uma impossibilidade absoluta e não relativa;

e) a impossibilidade deve ser definitiva. Apenas no caso de impossibilidade

definitiva o cotrato será automaticamente resolvido e as partes serão

liberadas das suas obrigações;

f) o devedor não tivesse garantido o cumprimento da sua prestação mesmo

no caso de ocorrência de um impedimento que constitui a força maior.

Em regra geral, o Direito francês não aceita facilmente a situação de force

majeure (em sentido lato), mas apenas mediante a sua verificação será possível

proceder à suspensão do contrato ou levar à sua resolução, sem obrigação de

pagar a indemnização.

2.1.3 Direito português

Perante o Direito português, nos termos do n.º 1 do art. 406º do CC: “o

contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-

se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei”. No

sistema jurídico português existem duas modalidades de não cumprimento das

obrigações: o incumprimento imputável ao devedor (arts. 798º e ss. e 801º e ss.) e

a impossibilidade do cumprimento não imputável ao devedor (arts. 790º e ss.). O

CC português atual no seu artigo 790º estabelece o seguinte:

“1. A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao

devedor.

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2. Quando o negocio do qual a obrigação procede houver sido feito sob condição ou a termo, e a

prestação for possível na data da conclusão do negocio, mas se tornar impossível antes da verificação da

condição ou do vencimento do termo, é a impossibilidade considerada superveniente e não afeta a validade

do negocio.”

Conforme ANTUNES VARELA79 e ALMEIDA COSTA80 a impossibilidade

pode ser imputada ao facto do credor, à força maior ou caso fortuito81, ao facto

do terceiro82 e à própria lei. Portanto, para que a obrigação do devedor se torne

extinta é imprescindível, segundo a letra e o espirito de lei, que a prestação fique

impossibilitada por lei, por força da natureza (caso fortuito ou força maior) ou

por ação humana.

79 VARELA, JOÃO DE MATOS ANTUNES, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7ª ed., revista e atualizada, Almedina. Coimbra, 1999, págs. 67, 68. 80 COSTA, MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA, Direito das Obrigações, 12ª ed., revista e atualizada, Almedina, 2009, pág. 1034. 81 Cfr. ALMEIDA COSTA: “Em matéria de não cumprimento das obrigações, o caso fortuito e o caso de força maior produzem as mesmas consequências exoneratórias do devedor. Parece admissível pensar-se em expressões sinonimas ou complementares. Até, algumas vezes, a lei e os autores aludem apenas o caso fortuito, que abrange nesse sentido lato ambas as figuras. (...) Aquele princípio só será afastado quando excecionalmente haja preceito da lei ou convenção das partes em contrário. Existem vários critérios para a mencionada distinção. (...) Segundo alguns autores, o caso fortuito patenteia o desenvolvimento de forças naturais a que se mantém estranha a ação do homem (inundações, incêndios, tsunamis, a morte, etc.). Ao lado dele, o caso de força maior consiste num facto de terceiro, pelo qual o devedor não é responsável (a guerra, a prisão, o roubo, uma ordem de autoridade, etc.). De harmonia com a orientação talvez preponderante, o conceito de caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o acontecimento natural ou ação humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências. Ao passo que o conceito de caso fortuito assenta na ideia da imprevisibilidade: o facto não se pode prever, mas seria evitável se tivesse sido previsto.” Ibidem, pág. 1074. “Se distingue – o no – en ocasiones entre diferentes supuestos exoneradores, como, ad ex., el caso fortuito y la fuerza mayor que, unas veces, se interpretan como expresiones equivalentes y otras, em cambio, se diferencian”. Vide in CALVO CARAVACA, AFONSO-LUIS, LUIS FERNÁNDEZ DA LA GÁNDARA,“Contratos Internacionales”, Editorial Tecnis, S. A., 1997, Madrid, Espanha, pág. 327. 82 Exceto o facto for praticado pelo sujeito que se encontra numa relação de dependência perante o obrigado (v. g. comissário, auxiliar, filho menor, pupilo, etc.). Cfr. ANTUNES VARELA, op. cit., 81.

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De acordo com MENEZES LEITÃO83 para a ocorrência da extinção da

obrigação a impossibilidade tem que ser superveniente, objetiva84, absoluta e

definitiva.

De facto, o vínculo obrigacional só se extingue caso a impossibilidade for

superveniente, isto é, caso esta se verifique após a data da celebração do contrato.

Caso a impossibilidade seja inicial, o vínculo obrigacional nem se chega a

constituir e a consequência jurídica, neste caso, será a nulidade do negócio por

impossibilidade do objeto, conforme previsto nos arts. 401º/1 e 280º/1 do CC.

A impossibilidade só irá exonerar o devedor da prestação caso seja objetiva.

Neste caso, a obrigação deverá torna-se impossível não apenas para o devedor,

como também para o terceiro85. A título de exemplo, consideremos um devedor

cuja coisa que tem a vender é destruída, sem a sua culpa. Se a impossibilidade

for subjetiva, a obrigação só se extingue caso o devedor não possa fazer-se

substituir por um terceiro (art. 791º), ou porque a prestação é infungível86, ou

porque o facto que impossibilitou a realização de prestação também impediu

providenciar a sua substituição (v. g. uma grave doença com perda de

consciência).

É importante que a impossibilidade seja absoluta, ou seja, inexecutável. A

impossibilidade relativa não é suficiente para levar a liberação da parte faltosa.

Pelas palavras de MENEZES LEITÃO: “a impossibilidade relativa ou difficultas

praestandi não importa a extinção da obrigação, embora possa desencadear a

aplicação do instituto da alteração das circunstâncias, verificados os respetivos

pressupostos”87,88. Conforme MENEZES CORDEIRO: “quando por caso fortuito,

83 LEITÃO, LUÍS DE MENEZES, Direito das Obrigações, “Transmissão e extinção das obrigações. Não cumprimento e Garantias do Credito”, vol. II, 10ª ed., Almedina, 2016, pág. 111 e segs. 84 Exceto nos contratos com prestações não fungíveis. 85 Impossibilidade subjetiva diz respeito ao devedor. A prestação pode ser realizada por outrem. 86 Na prestação infungível a impossibilidade subjetiva é suficiente para a extinção da obrigação. 87 LEITÃO, LUÍS DE MENEZES, op. cit., pág. 113. 88 O mesmo considera GALVÃO TELLES. Pelas palavras do referido autor: “da impossibilidade propriamente dita deve distinguir-se a dificuldade da prestação. A primeira supõe que a prestação é irrealizável, física ou legalmente; a segunda, que a prestação é realizável, mas só com

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força maior ou qualquer outra eventualidade – isto é, quando haja alteração de

circunstâncias – a prestação se torne inesperadamente mais onerosa, deve

aplicar-se o regime do artigo 473º do CC que prevê, em primeira linha, a

modificação da prestação e, como última solução, a própria resolução do contrato

com a subsequente extinção da obrigação”89.

Por último, para determinar a extinção da obrigação, a impossibilidade tem

que ser definitiva. Segundo GALVÃO TELLES: “ocorrendo a impossibilidade

sem culpa do devedor, este não se constitui em responsabilidade pelo não

cumprimento definitivo ou pelo atraso no cumprimento: nenhuma

indemnização lhe é exigível. Se a prestação se impossibilita para sempre, a

obrigação extingue-se (art. 790º, n.º 1). Se a prestação se impossibilita

transitoriamente90, a obrigação fica paralisada ou suspensa enquanto o

impedimento subsistir: o credor não pode pretender o seu cumprimento até o

obstáculo cessar e tão-pouco pode reclamar o ressarcimento dos danos que o

atraso lhe tenha causado (art. 792º n.º 1)”91. Conforme o último preceito jurídico

mencionado, no caso de impossibilidade temporária, “o devedor não responde

pela mora no cumprimento” e continua a estar obrigado a realizar a prestação

devida. O devedor apenas se libera da obrigação no caso do credor perder o

interesse na sua realização (art. 792º n.º 2).

Portanto, no caso de verificação dos pressupostos supracitados, o devedor

poderá ser exonerado da obrigação a que está adstrito, não incorrendo em

responsabilidade perante a outra parte. Em consequência, o credor perderá o

sacrifícios ou esforços excecionais.” Vide in TELLES, INOCÊNCIO GALVÃO, Direito das Obrigações, 7ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 1997, pág. 365. 89 CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, Direito das Obrigações, vol. II, reimpressão da 1ª ed. 1980, Lisboa: AAFDL, 1994, pág. 175. 90 V. g.: “o impedimento do único porto por onde podem sair as mercadorias cessará dentro de semanas; a greve, que impediu a entrega da mercadoria na data estipulada, findou ao cabo de poucos dias; a ordem de transferência do dinheiro de um país para outro, necessária ao cumprimento da dívida, sabe-se que vai demorar ainda meses, mas que virá”. Vide in VARELA, JOÃO DE MATOS ANTUNES, op. cit., pág. 79. 91 TELLES, INOCÊNCIO GALVÃO, op. cit., pág. 361.

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direto de exigir a realização da prestação, como também o direito à indemnização

dos danos provenientes pelo não cumprimento92,93,94.

Destaca MENEZES LEITÃO: “nos contratos sinalagmáticos a

impossibilidade de uma das prestações não é apenas causa de extinção do direito

do credor, mas antes causa de extinção de todo o contrato, acarretando a

caducidade deste, sendo distribuído o risco por ambas as partes através da

extinção reciproca das suas obrigações”95. Assim sendo, conforme o n. º1 do art.

795º, se a outra parte tivesse, entretanto, realizado a sua prestação, poderia pedir

a sua restituição invocando o instituto de enriquecimento sem causa, conforme

previsto no art. 473º do CC. Porém, nos termos do n.º 2 do art. 795º, se a

impossibilidade de prestação for imputável ao credor, este não fica desobrigado

da contraprestação96.

Em relação à questão da culpa do devedor, no Direito português existem

divergências doutrinárias. Segundo ANTUNES VARELA: “o caso fortuito

consiste no facto natural (tempestade, inundação, desabamento de terras,

descarrilamento de comboios, doença do devedor, etc.), cujas consequências o

devedor não possa evitar e em cuja verificação não tenha culpa. Se, usando da

diligência normalmente exigível, o devedor não tinha possibilidade de prevenir

92 O problema pode levantar-se quando estão em causa as obrigações genéricas. Conforme MENEZES CORDEIRO “a obrigação diz-se genérica quando postule uma prestação determinada apenas pelo género e por uma determinada medida; por exemplo, dez litros de determinado vinho. (...) “Perante uma obrigação genérica se, antes da concentração, operasse o desaparecimento das coisas com as quais o devedor se propunha cumprir, a obrigação manter-se-ia: caberia, ao devedor, entregar outras e equivalentes coisas, do mesmo género. Este princípio mantém-se no artigo 540º, que importa ter bem presente.” CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, Tratado de Direito Civil IX, Direito das Obrigações, Cumprimento e Não-cumprimento, Transmissão, Modificação e Extinção; 2ª ed., totalmente revista, Almedina, 2016, pág. 329. 93 No caso das obrigações divisíveis, quando a impossibilidade afeta apenas uma parte da obrigação, o credor poderá exigir a realização da parte disponível com a respetiva redução da contraprestação. Contudo, caso o credor não tenha, justificadamente, interesse na prestação parcial, poderá, legitimamente, proceder à resolução do contrato. (cfr. ao art. 793º). 94Sem prejuízo do direito “commodum” de representação previsto no art. 794º.95 LEITÃO, LUÍS DE MENEZES, op. cit., pág. 116. 96 “(...), se o devedor tiver algum beneficio com a exoneração, será o valor do beneficio descontado na contraprestação”. Cfr. art. 795º, n.º 2 in fine.

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a verificação do evento, nem o reflexo que ele teve sobre a prestação debitória,

nenhuma responsabilidade lhe poderá ser assacada”97. O ónus da prova, no caso

de não cumprimento, é do devedor. Ou seja, o devedor deverá provar que a

impossibilidade da prestação não procede da sua culpa. Defende o mesmo

GALVÃO TELLES, pressupondo que “a presunção de culpa estabelecida no art.

799º, n.º 1, do atual Código deve considerar-se aplicável também à culpa na

impossibilidade de cumprimento. (...) a culpa na impossibilidade de

cumprimento está sujeita ao mesmo regime da culpa no não cumprimento de

uma prestação possível”98. LIMA PINHEIRO também entende que o princípio de

culpa, previsto no n.º 2 do art. 487º, é aplicável à responsabilidade contratual por

força do n.º 2 do art. 799º99,100.

2.1.4 Direito italiano

O 1º parágrafo do art. 1372º101 do atual Código Civil italiano, à semelhança

do Code civil do Direito francês, dispõe que o contrato tem força da lei entre as

partes e que este apenas pode ser resolvido por mútuo consentimento ou nos

casos admitidos na lei. Contudo, o referido diploma jurídico também consagra

no seu texto legal a matéria que trata da exoneração da responsabilidade na falta

de cumprimento da obrigação contratual. Os artigos 1218º e 1256º do referido

diploma jurídico estabelecem o seguinte:

97 VARELA, JOÃO DE MATOS ANTUNES, op., cit., pág. 81. 98 TELLES, INOCÊNCIO GALVÃO, op. cit., pág. 363. 99 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, op. cit., pág. 233. 100 O contrário é defendido por LUÍS MENEZES LEITÃO E ALMEIDA COSTA. Vide in, LEITÃO, LUÍS DE MENEZES, op. cit., pág. 235 e segs.; COSTA, MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA, op. cit., pág. 1037. 101 Consultar o Código Civil italiano em http://www.ipsoa.it/codici/cc

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“Art. 1218 Responsabilità del debitore

Il debitore che non esegue esattamente la prestazione dovuta è tenuto al risarcimento del danno, se

non prova che l'inadempimento o il ritardo è stato determinato da impossibilità della prestazione derivante

da causa a lui non imputabile .

Art. 1256 Impossibilità definitiva e impossibilità temporânea

L'obbligazione si estingue quando, per una causa non imputabile al debitore, la prestazione diventa

impossibile.

Se l'impossibilità è solo temporanea, il debitore, finché essa perdura, non è responsabile del ritardo

nell'adempimento. Tuttavia l'obbligazione si estingue se l'impossibilità perdura fino a quando, in relazione

al titolo dell'obbligazione o alla natura dell'oggetto, il debitore non può più essere ritenuto obbligato a

eseguire la prestazione ovvero il creditore non ha più interesse a conseguirla”.

À semelhança do art. 1231º-1 do Código civil francês já citado, no Direito

italiano o devedor também é responsável pela falta de cumprimento do contrato

e pela mora, excetuando os casos em que ele prove que a impossibilidade da

realização da sua prestação ocorreu devido a uma causa não lhe imputável.

Assim, a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por uma

causa não imputável ao devedor. A impossibilidade pode ser imputada ao caso

fortuito ou à força maior, à lei, ao facto de terceiro e ao próprio credor.

No Direito italiano, assim como nos direitos nacionais supra analisados,

vigora o “principio della colpa”. Conforme TRABUCCHI102, para se liberar da

responsabilidade o devedor tem que afastar a “presunção de culpa”,

demonstrando que o facto que impossibilitou a prestação não provém da sua

culpa e que ele se esforçou para satisfazer o interesse do credor, empregando “la

diligenza del buon padre di famiglia”.

102 TRABUCCHI, ALBERTO, Commentario breve al Codice Civile, 5ª ed., CEDAM, 1997, pág. 1105.

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Destaca TRABUCCHI103 que a impossibilidade que extingue a obrigação

deve ser sopravvenuta, oggettiva, assoluta e definitiva. Nos termos do parágrafo 2

do art. 1256º citado, se a impossibilidade for apenas temporária, o devedor não é

responsável pela mora no cumprimento. Todavia, a obrigação extingue-se caso o

credor perca o interesse na sua realização.

Conforme o artigo 1257º104, a prestação que tem por objeto a entrega de uma

determinada coisa torna-se impossível no caso da sua perda, mesmo se não se

consiga provar o seu perecimento. Este preceito não se aplica caso o facto de

perecimento da coisa seja imputável ao devedor105.

Caso a prestação se torne impossível parcialmente, o devedor apenas se

exonera da prestação mediante a realização da parte que se manteve possível. O

mesmo se aplica no caso de deterioração ou perecimento parcial da coisa (art.

1258º)106. Nos termos do art. 1464º107, no caso de impossibilidade parcial, a outra

parte tem direto à redução do preço correspondente ou pode resolver o contrato,

caso não tenha interesse na prestação parcial.

De acordo com o art. 1463º108, nos contratos sinalagmáticos, a parte que ficou

exonerada da prestação devido a impossibilidade superveniente não tem direito

103 Ibidem, pág. 1149. 104 “Art. 1257 - Smarrimento di cosa determinata. La prestazione che ha per oggetto una cosa determinata si considera divenuta impossibile anche quando la cosa è smarrita senza che possa esserne provato il perimento. In caso di successivo ritrovamento della cosa, si applicano le disposizioni del secondo comma dell'articolo precedente". 105 Cfr. TRABUCCHI, op. cit., pág. 1150. 106 “Art. 1258 - Impossibilità parziale. Se la prestazione è divenuta impossibile solo in parte, il debitore si libera dall'obbligazione eseguendo la prestazione per la parte che è rimasta possibile. La stessa disposizione si applica quando, essendo dovuta una cosa determinata, questa ha subìto un deterioramento, o quando residua alcunché dal perimento totale della cosa”. 107 “Art. 1464 - Impossibilità parziale. Quando la prestazione di una parte è divenuta solo parzialmente impossibile, l'altra parte ha diritto a una corrispondente riduzione della prestazione da essa dovuta, e può anche recedere dal contratto qualora non abbia un interesse apprezzabile all'adempimento parziale”. 108 “Art. 1463 - Impossibilità totale. Nei contratti con prestazioni corrispettive, la parte liberata per la sopravvenuta impossibilità della prestazione dovuta non può chiedere la controprestazione, e deve restituire quella che abbia già ricevuta, secondo le norme relative alla ripetizione dell'indebito”.

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à contraprestação. Se a outra parte chegou a realizar a sua prestação, o devedor

fica obrigado de restituir tudo o que recebeu.

Portanto, no ordenamento jurídico italiano, o contrato extingue-se

automaticamente no caso da ocorrência de um impedimento imprevisível,

irresistível e alheio à vontade das partes que impossibilitou definitivamente o

posterior cumprimento do contrato. Cabe ao devedor provar que esse

impedimento não lhe é imputável.

2.2 Sistemas jurídicos de Common Law

2.2.1 Direito inglês

Os sistemas de Common Law são muito mais restritivos quanto à exoneração

do devedor no caso de impossibilidade de cumprimento da obrigação. A família

jurídica de Common Law trata a matéria da força maior de uma maneira

completamente diferente da família jurídica romano-germânica. Primeiro, como

a jurisprudência ocupa principal lugar no Direito inglês, não existe nenhum

preceito legal acerca da força maior ou da impossibilidade superveniente.

Segundo, é importante referir que o Common Law define todos os contratos como

“guarantees”. De acordo com LIMA PINHEIRO: “(...) parte-se do princípio de que

o devedor garante o resultado prometido no contrato, colocando o problema em

termos de saber se, de acordo com uma correta interpretação do contrato, o

impedimento é abrangido pela garantia”109,110. Observa MOURA VINCENTE que

109 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, op. cit., pág. 232. 110 Sobre esta matéria ver também SCHMITTHOFF, CLIVE M., The Export Trade: The Law and Practice of International Trade, 10ª ed., Sweet and Maxwell, London, 2000, págs. 108 e ss.

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no sistema de Common Law vigora “a regra do “cumprimento estrito” (“strict

performance”) do contrato: salvo estipulação em contrário, o devedor garante

(“warrants”) a prestação prometida. O incumprimento responsabiliza-o,

portanto, independentemente de culpa sua ou dos seus auxiliares”111. Segundo o

mesmo autor, os ordenamentos jurídicos de Common Law seguem o princípio da

“sanctity of contract”, conforme o qual apenas em casos excecionais o devedor

poderá exonerar-se da sua prestação contratual112. Assim, perante o Direito

inglês, cada contraente é obrigado a indemnizar pelos danos causados,

independentemente da sua culpa ou da culpa dos seus empregados. Caso o

devedor não tenha garantido a execução de prestação, apenas se exonera nos

casos excecionais que veremos em seguida.

Destaca FARNSWORTH113 que o “direito comum” foi muito lento em

reconhecer o princípio da impossibilium nulla obligatio est. Os tribunais ingleses

sempre aceitaram com pouca vontade as queixas baseadas na ocorrência de

eventos que impossibilitaram o cumprimento da obrigação contratual depois da

celebração do contrato, seguindo o rigoroso princípio da “impossibility is no

excuse”. Conforme essa regra, as partes tinham sempre que assumir a

responsabilidade mesmo na ocorrência de factos imprevisíveis e irresistíveis que

estão fora do seu controlo, uma vez que garantiram o cumprimento do contrato

no momento da celebração. No entanto, por exemplo, no caso de morte ou de

incapacidade de uma das partes nos contratos pessoais, no caso de deterioração

de coisa ou no caso de ilegalidade superveniente, tornava-se irracional aplicar o

princípio da “impossibility is no excuse”. Portanto, havia necessidade da

111 VICENTE, DÁRIO MOURA, op. cit., pág. 311. 112 “Neste sentido, afirmou o Court of King´s Bench, numa decisão célebre proferida no século XVII: “quando uma parte através de um contrato por si celebrado assume um dever ou um ónus, está vinculada a observá-lo, se puder fazê-lo, não obstante qualquer acidente inevitável, pois podia ter-se prevenido contra ele pelo seu contrato”” (Cfr. Paradine v. Jane, (1647) 4 K. B.), Ibidem, pág. 245. 113 FARNSWORTH, E. ALLAN, Farnsworth ou Contracts, II vol., 2ª ed., Aspen Law&Business, Aspen Publishers, Inc.; USA, New York, 1998, pág. 595.

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elaboração de certos instrumentos jurídicos que fossem aptos para resolver os

casos de impossibilidade de cumprimento. Assim, o sistema de Common Law

começou a desenvolver a doutrina da Frustration, a qual exonera o devedor de

responsabilidade nos casos de impossibilidade de cumprimento surgidos após a

data de celebração do contrato. Pelas palavras de Lord RADCLIFFE, (Davis

Contractors, Ltd. v. Fareham U.C.C., (1956)): “a frustration ocorre sempre que a

ordem jurídica reconhece que, sem que haja incumprimento de qualquer das

partes, uma obrigação contratual se tornou insuscetível de ser executada, porque

as circunstâncias em que a sua execução teria lugar a transformariam em algo

radicalmente diferente daquilo que foi convencionado no contrato. Non haec in

foedera veni. Não foi isto o que prometi fazer”114. Conforme MOURA VINCENTE:

“a frustration tem lugar quando um evento superveniente e imprevisto

compromete o propósito fundamental de uma das partes ao celebrar o contrato,

desde que ambas as partes o conhecessem ao tempo da celebração”115. Acresce

ainda o mesmo autor que: “a frustration cobre fundamentalmente as situações

que nos sistemas romanísticos integram o conceito de impossibilidade

superveniente da prestação. (...) o efeito precípuo da ocorrência de um frustrating

event consiste na exoneração (“discharge”) do devedor em virtude da sua

resolução (“termination”). Pode ainda haver lugar à restituição de quantias

recebidas e à compensação de despesas realizadas”116.

De acordo com FARNSWORTH117, o Court of King´s Bench no sec. XVII já

tinha admitido três exceções da regra dogmática “impossibility is no excuse” que

não perderam a sua validade até à data: a ilegalidade superveniente; a morte ou

incapacidade superveniente; a destruição superveniente. A teoria de Frustration

é aplicável nestas situações.

114 Texto citado em português conforme VICENTE, DÁRIO MOURA, op. cit., pág. 247. 115 Ibidem, pág. 246. 116 Ibidem, pág. 248. 117 FARNSWORTH, E. ALLAN, op.cit..,págs. 596 e segs.

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Na ilegalidade superveniente, o devedor fica exonerado caso um ato

governamental proíba a realização da prestação, tornando-a impossível de

cumprir. O ato governamental não deverá ser necessariamente um ato estatal;

poderá ser um ato administrativo ou judicial. No comércio internacional, os casos

mais comuns são proibições de importação e de exportação. Por exemplo, esta

situação verifica-se quando o vendedor assume a obrigação de entregar um certo

bem, num determinado dia, no país X; entretanto, antes de terminar o prazo da

prestação, o bem é declarado proibido por lei118. Portanto, caso a prestação de um

dos contraentes seja impedida por um ato governamental superveniente – após

a data de celebração do contrato – o devedor ficará exonerado da obrigação a que

está adstrito.

A impossibilidade de cumprir o contrato em virtude de morte ou

incapacidade superveniente aplica-se aos contratos pessoais, nos quais a

presença de um sujeito particular é indispensável para a sua execução. Nestes

casos, a obrigação extingue-se no caso de morte ou incapacidade119 superveniente

da parte faltosa, caso tal se verifique antes de terminar o prazo do contrato.

Todavia, há casos em que parte faltosa não deixa de ser obrigada a cumprir a

prestação. Por exemplo, a obrigação de um artista em pintar uma obra de arte

extingue-se em virtude da sua morte ou incapacidade física; no entanto, a morte

ou estado de saúde da contraparte que tenha pretendido adquirir a respetiva

obra, não o libera da sua prestação120. O serviço de artista de pintar um quadro é

evidentemente um negócio pessoal porque necessita de existência de um

118 V. g. caso Johnson Matthey Bankers Ltd v. State Tranding Corporation of India Ltd (1984): o vendedor (Indian State trading company) foi impedido de entregar lingotes de prata pelo motivo de proibição pelo governo indiano da exportação do referido bem. Vide in SCHMITTHOFF, CLIVE M., op. cit., pág. 122, nota de rodapé 98. 119 V. g. caso Wasserman Theatrical Enter v. Harris (1950): o ator Walter Huston deixou de ser obrigado a atuar no espetáculo por motivos de saúde; caso Oneal v. Colton Consol. School Dist. (1976): o professor escolar ficou exonerado de prestações laborais por razão de deterioração da sua visão, causada por diabetes. Vide in FARNSWORTH, E. ALLAN, op.cit..,pág. 597, nota de rodapé 8. 120 A morte de contraente não irá necessariamente por termo ao contrato, exceto se verifique que estão em causa as obrigações pessoais por natureza. Vide in ibidem, pág. 598, nota de rodapé 9.

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determinado sujeito jurídico para a sua execução. Já o serviço de pintar um

prédio normalmente é uma prestação fungível, portanto, o devedor não poderá

invocar a incapacidade ou estado de saúde para ser exonerado de prestação.

A terceira exceção tem a ver com a destruição ou deterioração da coisa que

sendo objeto de contrato, é necessária para a execução de prestação. Caso a coisa

deixe de existir em virtude de um de um facto imprevisível - sem culpa do

devedor - extingue-se a obrigação. Essa regra foi elaborada e desenvolvida

através do conhecido caso Taylor&Caldwell (1863)121 que, por sua vez, deu origem

à doutrina da Frustration.

Os “crop-failure cases” são os casos típicos de deterioração ou perda de coisa

relacionados com o comércio internacional. O contrato fica resolvido caso uma

parte se obrigue a entregar, por exemplo, uma quantidade de trigo (da própria

colheita) e ocorra a destruição de toda a produção, por motivo de inundação ou

seca, impossibilitando o cumprimento de prestação. Neste caso, o devedor fica

exonerado da realização da obrigação através de aplicação do princípio de Taylor

v. Caldwell.

Para além das três exceções mencionadas, TREITEL122 propõe uma outra

exceção chamada indisponibilidade do objeto (Unavailability), ainda que

temporária. Trata-se dos casos em que a coisa - objeto de um contrato de compra

e venda - foi detida pelas autoridades públicas, ou, por exemplo, no caso em que

um campo petrolífero, de um contrato de sociedade, seja expropriado.

121 Taylor&Lewis pretendia alugar a Caldwell&Bishop um salão de espetáculos para a realização de concertos durante quatro dias, pelo valor de 100 libras por cada dia de atuação. Uma semana antes da primeira atuação, o referido salão foi destruído pelo fogo. Taylor&Lewis interpõe uma ação contra Caldwell&Bishop, acusando o último de incumprimento do contrato e exigindo uma indemnização pelos danos causados (despesas relacionadas com a preparação para atuação). O Court of King´s Bench pornunciou-se a favor de Caldwell&Bishop, invocando o seguinte: looking at the whole contract, we find that the parties contracted on the basis of the continued existence of the Music Hall at the time when the concerts were to be given; that being essential to their performance.” Vide in FARNSWORTH, E. ALLAN, op.cit..,pág. 599. Blackburn J. justificou a decisão no facto que “a condition is implied that the impossability of performance arising from the perishing of the person or thing shall excuse the performance.” Cfr. SCHMITTHOFF, CLIVE M.,op. cit., pág. 185. 122 TREITEL, G. H. “The Law of Cractont”, 9ª ed., Sweet&Maxwell, London, 1995, pág, 784 e ss.

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Relativamente aos efeitos jurídicos de frustration, o referido instituto jurídico

conduz automaticamente à exoneração da prestação de ambos os contraentes

desde o momento de verificação de impedimento, resolvendo, assim, o contrato.

2.2.2 Direito norte-americano

O sistema jurídico dos EUA também exonera o devedor da obrigação a que

ele está adstrito no caso de impossibilidade de cumprimento, mas com algumas

distinções. No Direito norte-americano, para além da doutrina de Frustration123,

vigora a doutrina da Impracticability, consagrada atualmente no § 261124 do

segundo Restatement of Contracts (1981) e no § 2-615 do UCC. Segundo

ALEXANDRA CAIADO: “a frustration vê o seu campo de aplicação restringindo

às situações em que por força de acontecimentos imprevisíveis a prestação

prometida perdeu grande parte do seu valor ou perdeu mesmo completamente

o seu sentido”125.

O § 2-615 do UCC estabelece o seguinte: “Except so far as a seller may have assumed a

greater obligation … delay in delivery or non-delivery in whole or in part … is not a breach of his duty

under a contract for sale if performance as agreed has been made impracticable by the occurrence of a

contingency the non-occurrence of which was a basic assumption on which the contract was made…”126.

123 Restatement Second of Contracts, §265. Discharge by Supervening Frustration: “Where, after a contract is made, a party´s principal purpose is substantially frustrated without his fault by the occurence of an event the non-occurance of which was a basic assumption on which the contract was made, his remaining duties to render performance are discharged, unless the language or the circumstances indicate the contrary”. Disponível em https://www.nylitigationfirm.com/files/restat.pdf 124 §261. Discharge by Supervening Impracticability: “Where, after a contract is made, a party´s performance is made impracticable without his fault by the occurence of an event the non-occurance of which was a basic assumption on which the contract was made, his duty to render that performance is discharged, unless the language or the circumstances indicate the contrary”. 125 CAIADO ALEXANDRA, op.cit., pág. 19. 126 Vide in: https://www.law.cornell.edu/ucc/2/2-615

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Conforme o texto legal citado, a doutrina da Impracticability pode ser

aplicada caso se verifiquem os seguintes pressupostos127: primeiro, o evento deve

tornar a obrigação “impracticable”; segundo, a não ocorrência do evento deve

constituir uma assunção básica em que foi celebrado o contrato; terceiro, a

impracticability não deve resultar da culpa da parte que recorre à exoneração128;

quarto, esta parte não tenha assumido uma obrigação maior do que o Direito

impõe. Considera LIMA PINHEIRO que “o pressuposto de que a não ocorrência

do evento constitua uma assunção básica remete o intérprete para a

determinação da parte que assumiu o risco da ocorrência do evento e, a este

respeito, a ideia orientadora parece ser a mesma que inspira o Direito

inglês”129,130.

Os casos típicos em que o devedor é tradicionalmente exonerado da

realização da obrigação impraticável são os mesmos que o Direito inglês prevê:

a ilegalidade superveniente, a morte ou incapacidade superveniente e a

destruição superveniente. É claramente aceitável que as partes, no momento de

celebração do contrato, assumam logicamente que o governo não irá intervir ou

inibir a prestação de uma das partes. Também, é óbvio que nenhuma das partes

terá que assumir a possível morte ou incapacidade da outra, até ao cumprimento

definitivo do contrato. Por último, é uma assunção normal que a coisa – objeto

do contrato – se mantenha e que irá ser entregue no dia e no lugar estabelecidos

no contrato.

Portanto, perante o Direito norte-americano o devedor apenas poderá

exonerar-se da prestação no caso de ocorrência de frustration ou impracticability.

Ambos os institutos jurídicos conduzem à resolução do contrato.

127 FARNSWORTH, E. ALLAN, op.cit..,págs. 605 e segs.. 128 Não sendo estipulado expressamente, este pressuposto presume-se conforme o UCC § 2-613 que libera o devedor da obrigação de entregar os bens caso “ the contract requires for its performance goods identified when the contract is made, and the goods suffer casualty without fault of either party before the risk of loss passes to the buyer.” 129 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, op. cit., pág. 232. 130 Ver também FARNSWORTH, E. ALLAN, op.cit..,págs. 611 e segs.

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2.3 Síntese comparativa

Não obstante as divergências existentes, é certo que todos os sistemas

jurídicos supra analisados admitem que a parte que não cumpriu a sua obrigação,

em virtude de ocorrência de um impedimento alheio à sua vontade que

impossibilitou absolutamente a execução de prestação, fica exonerada da

responsabilidade contratual. Segundo LIMA PINHEIRO: “os sistemas nacionais

já divergem marcadamente quanto à delimitação dos casos em que a parte

devedora fica exonerada, embora estas divergências nem sempre se projetem no

plano dos resultados práticos”131. Contudo, tanto na teoria como na pártica os

direitos nacionais apresentam imensas dúvidas e incertezas acerca da aplicação

do instituto de exoneração da responsabilidade contratual.

Nos sistemas jurídicos francês, português e italiano vigora o princípio da

força obrigatória dos contratos, o qual se encontra expressamente previsto no

texto legal. Entende PUELINCKX que é certo que o Direito alemão não segue de

forma rigorosa a regra pacta sunt servanda. Explica o mesmo autor que este

fenómeno não é surpreendente “no país onde, após a Primeira Guerra Mundial,

o valor da ementa num restaurante poderia, por vezes, ser alterado durante o

tempo decorrido entre o serviço da refeição e a entrega da conta”132.

Na Alemanha, o regime de impossibilidade de cumprimento (“perturbação

das prestações”) tem caráter unitário e é mais amplo do que nos outros sistemas

de Civil Law. O devedor fica exonerado no caso de impossibilidade superveniente

e/ou originária, independentemente de esta ser objetiva ou subjetiva. Para além

dos casos de impossibilidade física ou legal, o devedor também não é responsável

131 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, op. cit., pág. 231. 132 PUELINCKX, ALFONS H., Frustration, Hardship, Force Majeure, Imprévision, Wegfall der Gescha-ftsgrundlage, Unmoglichkeit, Changed Circumstances: A Comparative study in English, French, German and Japanese Law, in Journal of International Arbitration, Kluwer Law International 1986, vol. III, issue 2, pág. 60.

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pelo não cumprimento no caso da chamada “impossibilidade prática” e no caso

da “impossibilidade pessoal ou moral”.

Nos ordenamentos jurídicos francês, português e italiano distinguem-se a

impossibilidade originária da superveniente, e a impossibilidade objetiva da

subjetiva. Não existe um preceito legal expresso da “impossibilidade moral ou

pessoal” ou da “impossibilidade prática”; todavia, essa matéria poderia ser

tratada pelas regras do abuso do direito, desculpabilidade, colisão de direitos e

pelo princípio de boa fé.

Nos sistemas de Common Law vigora o princípio de “strict performance” do

contrato, conforme o qual o devedor garante o cumprimento da obrigação a que

está adstrito. Apenas nos casos excecionais e de forma muito restrita os sistemas

anglo-saxónicos exoneram a parte que não executou a prestação prometida,

aplicando a doutrina da Frustration. Esses casos são: a ilegalidade superveniente;

a morte ou incapacidade superveniente; e a destruição superveniente. Como

sabemos, a referida doutrina abrange os casos que nos sistemas de Civil Law

integram o conceito de “impossibilidade superveniente da prestação”. Todavia,

a maioria dos juristas continentais consideram que o instituto jurídico da

frustration é mais amplo que o instituto de “força maior” ou de impossibilidade

de cumprimento, uma vez que este se aplica também aos casos de alteração das

circunstâncias133,134. No entanto, é importante sublinhar que “a mera alteração

superveniente do equilíbrio financeiro de uma transação, que torne mais oneroso

o cumprimento das obrigações a cargo de uma das partes (“hardship”), não

constitui, assim, causa de frustration”135. Como já foi mencionado, a doutrina da

133 Ibidem, pág. 49. 134 Um caso célebre de alteração das circunstâncias onde a doutrina de Frustration foi aplicada é o Coronation case ( Krell v. Henry (1903) 2 K. B), conforme o qual um realista inglês arrendou um apartamento por um dia, para ter uma vista privilegiada do desfile de coroação do Eduardo VII. No momento da celebração do contrato, ambas as partes entenderam (não expressamente) que assistir ao referido evento era o principal propósito do contrato. Entretanto, no dia da coroação o rei adoeceu e o desfile foi cancelado. O tribunal inglês considerou o contrato frustrated. Vide in idem. 135 VICENTE, DÁRIO MOURA, op. cit., pág. 248.

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Frustration apenas se aplica quando “uma obrigação contratual se tornou

insuscetível de ser executada, porque as circunstâncias em que a sua execução

teria lugar a transformariam em algo radicalmente diferente daquilo que foi

convencionado no contrato”136. Os efeitos jurídicos da frustration são a resolução

do contrato. Como os sistemas de Common Law rejeitam rever ou modificar o

contrato, em caso de alteração das circunstâncias este sempre ficará resolvido137.

Pelas palavras do MOURA VINCENTE: “o regime da frustration difere,

contudo, do da impossibilidade de cumprimento num aspeto capital: é que ao

passo que esta se refere à obrigação individualmente considerada, aquela

reporta-se ao contrato como um todo; razão pela qual enquanto que nos sistemas

romanistas este subsiste sempre que a impossibilidade for meramente parcial ou

temporária, nos de Common Law a consequência da frustrarion é necessariamente

a resolução (“termination”) do contrato”138,139.

Conforme o nosso estudo, nos sistemas romano-germânicos vigora o

princípio da culpa, o que significa que a culpa do devedor é presumida. Portanto,

cabe ao devedor provar que o evento que impossibilitou a sua prestação não lhe

é imputável, uma vez que provém de uma causa de força maior. A propósito da

“presunção de culpa”, assinala MOURA VINCENTE que “a esses sistemas,

também ditos “subjetivos” ou “culpabilísticos”, contrapõem-se os “objetivos”,

136 Supra, pág. 35. 137 Pelas palavras do ALFONS H PUELINCKX: “When a contract is frustrated, a judge cannot amend or adjust it to the new situation. Frustration simply discharges the contract and the defendant will be excused from paying”. Op. cit., pág. 50. 138 VICENTE, DÁRIO MOURA, op. cit., pág. 312. 139 A diferença essencial entre a doutrina da frustration e da doutrina da “force majeure” pode ser demonstrada nas seguintes definições. Conforme Lord RADCLIFFE (já citado): “Frustration occurs when the law recognizes that without default of either party a contractual obligation has become incapable of being performed because the circumstances in which the performance is called for would render it a thing radically diferente from that which was undertaken by the contract. Non haec in foedera veni. It was not this that I promised to do”. De acordo com a doutrina francesa da “force majeure”: “Force majeure” occurs when the law recognizes that without default of either party a contractual obligation has become incapable of being performed because the circumstances in which the performance is called for would render it impossible. I promised to do this but I cannot due to some irresistible unforseeable and uncontrollable event. Vide in PUELINCKX, ALFONS H., op. cit., pág. 49.

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como o inglês e norte-americano, em que o devedor incorre em responsabilidade

pelo mero facto do incumprimento, a não ser que ocorra alguma causa de

justificação; em matéria contratual a culpa não desempenha neles, por

conseguinte, qualquer papel”140.

O importante para os sistemas anglo-saxónicos é que o próprio contrato seja

cumprido apesar de tudo, independentemente da conduta do devedor. Destaca

ainda MOURA VINCENTE que se nota “a diferente estrutura da obrigação

contratual nos sistemas de Civil e de Common Law, que MAX RHEINSTEIN

colocou em evidência: ao passo que nos primeiros a obrigação contratual é, como

vimos, um vínculo jurídico pelo qual uma pessoa fica adstrita para com outra a

realizar certa prestação, nos segundos ela constitui antes uma garantia de

determinado resultado a ser alcançado pela realização da prestação”141. Assim

sendo, é evidente que o regime de Common Law é mais favorável ao credor.

Uma interessante comparação das distinções entre os sistemas jurídicos

analisados acerca do instituto da frustration e da impossibilidade de

cumprimento foi apresentado pelo PUELINCKX no caso Jackson v. Union Marine

Insurance Co, Ltd142. Um barco foi fretado para uma viagem urgente de Liverpool

para Nova Iorque. Entretanto, em virtude de uma danificação imprevista e

prolongada, o barco teve que ficar parado no porto durante algumas semanas. O

o juiz inglês irá considerar o contrato resolvido, aplicando a doutrina da

Frustration. O juiz francês, italiano e português, provavelmente, irão suspender o

contrato até o impedimento ficar removido; posteriomente, caso o credor tenha

ainda interesse na prestação, o contrato irá ser cumprido. O juiz alemão, neste

caso em concreto, eventualmente irá tentar adaptar o contrato às novas

condições, recorrendo ao institituto de alteração das circunstâncias. Isto poderá

acontecer porque a lei alemã não prevê expressamente no seu texto legal a

140 VICENTE, DÁRIO MOURA, op. cit., pág. 294. 141 Ibidem, pág. 312. 142Jackson v. Union Marine Insurance Co, Ltd (1874) L .R. 10 C. P. 125, PUELINCKX, ALFONS H., op. cit., pág. 49.

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condição da impossibilidade temporária. Contudo, caso a outra parte não ficar

prejudicada, existe a possibilidade de executar a prestação após a remoção do

impedimento, conforme os termos iniciais do contrato. Aliás, se nos sistemas

jurídicos francês, português e italiano existe uma certa delimitação entre o

instituto de impossibilidade de cumprimento e o instituto de alteração das

circunstâncias, no caso do Direito alemão a fronteira entre os referidos institutos,

por vezes, não é clara.

Importa ainda salientar que nos sistemas romano-germânicos as normas

jurídicas que consagram a matéria de impossibilidade de cumprimento são

supletivas e as partes podem, de acordo com o princípio da autonomia de

vontade, definir o conceito de force majeure e o tribunal terá que respeitar e tomar

em consideração a respetiva definição. No que respeita ao sistema de Common

Law, conforme PUELINCKX :“os termos de Frustrated Contracts Act143 sem dúvida

são imperativos, o que significa que a regulação da “frustration” e a escolha das

cláusulas contratuais é essencial no momento da celebração dos contratos

internacionais (…)”144. Portanto, na prática, para evitar possíveis

desentendimentos acerca do instituto de impossibilidade de cumprimento,

muitos contratos internacionais incluem a cláusula de Força Maior, sendo esta

explicada detalhadamente pelas próprias partes.

143 Law Reform (Frustrated Contracts) Act, 1943, 627 Sev. 6, c. 40. Vide in ibidem, pág. 51. 144 Idem.

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3. A Força Maior nas Fontes internacionais

3.1 Regime de Exoneração145 na Convenção da ONU

sobre os Contratos de Compra e Venda

Internacional de Mercadorias146

Conforme já foi mencionado, o contrato internacional é um veículo jurídico

do comércio internacional que constitui, regula e extingue as relações jurídicas

patrimoniais entre os sujeitos que estão ligados aos sistemas jurídicos diferentes.

145 O termo “Exoneração”, não aparecendo em nenhum sistema jurídico nacional, foi escolhido para atrair um maior número de aderentes e também para demonstrar a neutralidade da Convenção no palco internacional. Os termos como force majeure, frustration ou impractibility foram evitados de propósito para constituir um compromisso entre os diferentes sistemas nacionais, principalmente entre o sistema da Civil law e o sistema da Common law. Cfr. ALEXANDRA CAIADO, op. cit., pág. 62. 146 CISG foi aprovada em 1980, em Viena, pela CNUDCI, após a revisão do Direito uniforme sobre a compra e venda internacional. A CISG entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 1988 e está atualmente ratificada por 88 Estados-Membros. A lista dos Estados-Membros está disponível em http://www.uncitral.org/uncitral/en/uncitral_texts/sale_goods/1980CISG_status.html O preâmbulo da Convenção estabelece: “Considering that the development of international trade on the basis of equality and mutual benefit is an important element in promoting friendly relations among States; e “Being of the opinion that the adoption of uniform rules which govern contracts for the international sale of goods and take into account the different social, economic and legal systems would contribute to the removal of legal barriers in international trade and promote the development of international trade.” O texto completo encontra-se disponível em https://www.uncitral.org/pdf/english/texts/sales/cisg/V1056997-CISG-e-book.pdf Cfr. VICENTE MOURA, o objetivo que a Convenção prossegue mediante a unificação do Direito da compra e venda internacional é o de “redução da incerteza que afeta o comercio nacional em virtude de sujeição dos contratos internacionais às leis nacionais.” Vide in VICENTE, DÁRIO MOURA, “A Convenção de Viena sobre a compra e venda internacional de mercadorias: características gerais e âmbito de aplicação”; Separata da obra “Estudos de Direito Comercial Internacional – volume I”, Almedina – Coimbra, 2004, pág. 287.

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Por sua vez, o contrato de compra e venda internacional147,148 é um contrato

oneroso e sinalagmático em que, de um lado, o vendedor obriga-se a entregar os

bens e tem direto de receber o respetivo pagamento, e por outro, o comprador

tem obrigação de pagar o valor acordado e o direito de receber os bens (arts. 30º

e 53º da CISG)149,150. É notório que todos os contratos são celebrados para serem

cumpridos. Todavia, em certas circunstâncias, a realização da obrigação devida

poderá tornar-se impossível em virtude de ocorrência de um ou mais eventos

imprevisíveis e irresistíveis que estão fora do nosso controlo.

Em regra geral, no caso de não cumprimento da obrigação o devedor fica

responsável pelas perdas e danos causados à outra parte (art. 74º da CISG). No

entanto, o mesmo diploma jurídico, no seu texto legal, prevê as seguintes

exceções da regra geral: impossibilidade de execução (art. 79º da CISG) e facto

imputável ao credor (art. 80º da CISG).

147 Cfr. SANTOS JÚNIOR: “será internacional o contrato que movimente ou atinja ou veicule interesses do comércio internacional. Para alguns, afetação ou envolvimento de interesses do comércio internacional ocorreria quando a operação económica em causa implicasse uma “circulação de bens, serviços ou capitais através das fronteiras””. Vide in SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Sobre o conceito..., pág. 187. 148 Geralmente, aos contratos de compra e venda internacional estão ligados outros contratos tais como: contrato de transporte, contrato de seguro, contrato de financiamento. Não obstante da conexão ao contrato de compra e venda, esses contratos têm caráter autónomo. 149 Cfr. o art. 2º a Convenção não se aplica à venda de mercadorias compradas para uso pessoal, familiar ou doméstico; à venda de mercadorias em leilão e em processo executivo; à venda de valores mobiliários, títulos de credito e moeda; à venda de navios, barcos, hovercraft e aeronaves e, finalmente, à venda de eletricidade. 150 Nos termos do art. 6º as normas da Convenção têm natureza dispositiva. Assim sendo, os contraentes, no momento da celebração do contrato, podem excluir a aplicação da Convenção totalmente, sem prejuízo do disposto no art. 12º, ou revogar qualquer das suas disposições bem como modificar os seus efeitos.

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3.1.1 Impossibilidade de execução e os seus pressupostos

A causa de exoneração de responsabilidade contratual encontra-se

consagrada no art. 79º da CISG:

1. “Uma parte não é responsável pela inexecução de qualquer das suas obrigações se provar que tal

inexecução se ficou a dever a um impedimento alheio à sua vontade e que não era razoável esperar

que ela o tomasse em consideração no momento da conclusão do contrato, o prevenisse ou o

ultrapassasse, ou que prevenisse ou ultrapassasse as suas consequências.

2. Se o não cumprimento de uma parte se ficou a dever ao não cumprimento do terceiro que ela

encarregou de executar o contrato total ou parcialmente, aquela parte só fica exonerada da sua

responsabilidade:

a). se tiver exonerada em virtude do disposto no parágrafo anterior; e

b). se o terceiro estivesse também ele exonerado, caso as disposições daquele parágrafo lhe fossem

aplicadas.

3. A exoneração prevista pelo presente artigo produz efeitos enquanto durar o impedimento.

4. A parte que não executar as suas obrigações deve comunicar à outra parte o impedimento e os efeitos

deste sobre a sua capacidade de cumprir o contrato. Se a outra parte não receber a comunicação num

prazo razoável contado a partir do momento em que a parte faltosa conheceu ou deveria ter conhecido

o impedimento, esta fica responsável pelas perdas e danos decorrentes da falta de receção da

comunicação.

5. As disposições do presente artigo não impedem as partes de exercer qualquer dos seus direitos, salvo

o de obter indemnização por perdas e danos, nos termos da presente Convenção.”

Conforme CALVO CARAVACA, o n.º 1 do artigo supracitado demonstra “el

efecto liberatório del hecho no imputable al deudor, ajeno a su voluntad y fuera de su

esfera de influencia, imprevesible o previsible pero inevitable que impede el cumprimento

total o exacto de la obligación”151.

151 CALVO CARAVACA, AFONSO-LUIS, LUIS FERNÁNDEZ DA LA GÁNDARA, op. cit., pág. 328.

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A norma abrange todos os casos tradicionais de exoneração da

responsabilidade pelo não cumprimento: caso fortuito, caso de força maior, facto

de terceiro e facto da lei152. A exoneração apenas se aplica aos impedimentos que

inibem a realização da obrigação.

Para que o devedor possa recorrer à aplicação do preceito legal em causa

deverá provar a verificação dos seguintes pressupostos153:

a) que o impedimento seja totalmente alheio à vontade do devedor e que se

encontre fora do seu controlo, de tal modo que seria impossível de lhe ser

imputada a culpa. Conforme a doutrina e a jurisprudência, estão em causa

os factos como guerra, desordens públicas, catástrofes naturais, epidemias

graves, proibições de exportação e importação, embargo, controlo de

câmbios, incêndios, terramotos, etc.154 É importante realçar que na maioria

dos sistemas nacionais os factos citados também se apresentam como as

causas de exoneração da responsabilidade;

b) que o impedimento seja imprevisível e, caso previsível, terá que ser

inevitável. Ou seja, no momento da celebração do contrato, não é razoável

esperar da parte faltosa que esta venha a tomar em consideração o

impedimento, que o prevenisse ou o ultrapassasse, ou que prevenisse ou

ultrapassasse as suas consequências. De acordo com CALVO

CARAVACA, a possibilidade de previsão deve ser apreciada segundo o

princípio geral do “bom pai de família “. Segundo este, para aferir a

152 Cfr. o comentário às soluções propostas no Projeto de Convenção sobre a matéria da exoneração em BARRY NICHOLAS, “Force Majeure and Frustration”, A.J.C.L., vol. 27, 1979, págs. 231 e ss. – apud SOARES, MARIA ÂNGELA BENTO E RAMOS, RUI MANUEL MOURA, “Contratos Internacionais (Compra e Venda. Cláusulas Penais. Arbitragem)”, Livraria Almedina. Coimbra, 1986, pág. 214. 153 Seguimos de perto CALVO CARAVACA, AFONSO-LUIS, LUIS FERNÁNDEZ DA LA GÁNDARA, op. cit., págs. 329, 330. 154 O impedimento pessoal, como doença do devedor, não é considerado causa de exoneração da responsabilidade contratual, uma vez que cai dentro da esfera de influência do devedor. Cfr. G. REINHART, UN-Kaufrech. Kommentar zum Übereinkommen der Vereinten Nationen vom 11. April 1980 über Verträge über den internacionalen Warenkauf, Heidelberg, 1991, pág. 182, apud ibidem, pág. 329.

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diligência exigível na conduta do devedor, uma pessoa razoável e

cuidadosa deverá ser colocada em condições e circunstâncias idênticas

àquelas em que esse se encontrava (art. 8º n.º 2 e 3 da CISG). É importante

que o impedimento seja inevitável. A inevitabilidade é apreciada

conforme o caso concreto, tendo em consideração os meios que o devedor

dispõe de momento. V. g. o devedor não pode simplesmente alegar falta

ou insuficiência de meios de transporte para não entregar as mercadorias.

Neste caso, ele terá sempre que procurar outras alternativas para cumprir

a prestação devida, de forma a entregar os bens na data e na hora

acordadas;

c) que o impedimento impossibilita o devedor da realização da sua

prestação. A mera dificuldade, ou onerosidade, não são suficientes para a

aplicação do artigo supracitado. A impossibilidade deve ser absoluta e

objetiva. Conforme o mesmo autor, o instituto da exoneração da

responsabilidade é uma exceção do princípio pacta sunt servanda, portanto,

este apenas deverá ser aplicado restritivamente e apenas nos

acontecimentos graves;

d) que entre o impedimento e a impossibilidade de cumprimento exista o

nexo de causalidade.

De acordo com HONNOLD155, o n.º 1 do citado artigo expressamente prevê

três elementos que a parte faltosa deverá provar, sob pena de aplicação de

responsabilidade contratual. Esses são: a) que a “inexecução ficou a dever a um

impedimento alheio à sua vontade”; b) que no momento da celebração do contrato

“não era razoável esperar que ela o (impedimento) tomasse em consideração”; e c)

consequentemente, não era razoável esperar que a parte “o (impedimento)

prevenisse ou ultrapassasse, ou que prevenisse ou ultrapassasse as suas consequências.”

Portanto, podemos concluir que para aplicação do instituto de exoneração o

155 HONNOLD O. JOHN, “Uniform Law for International Sales under the 1980 United Nations Convention”, 3ª ed., Kluwer Law International, 1999, pág. 474.

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impedimento que impossibilita a execução da obrigação deverá ocorrer

independentemente da vontade do devedor e deverá ser imprevisível156 e

irresistível157. Incumbe ao devedor o ônus da prova dos referidos elementos, caso

ele pretenda se exonerar da responsabilidade contratual pelo não cumprimento

do contrato.

Contudo, observa MOURA VICENTE, que “o seu significado prático (da

Convenção) é porém restrito, sendo raros os casos em que os tribunais exoneram

o devedor ao abrigo dela. Para tanto concorre a circunstancia de serem muito

apertados os pressupostos de que depende essa exoneração”158.

Conforme CALVO CARAVACA159, independentemente da ocorrência do

impedimento que impossibilitou a realização de prestação, o devedor continuará

a ser responsável pelo cumprimento da obrigação em três situações excecionais:

quando as próprias partes afastaram a aplicação das disposições da CISG (art. 6º)

e caso o direito nacional aplicável também o permita; no caso de impossibilidade

temporária, cessando o impedimento, o devedor automaticamente torna-se

obrigado a cumprir a obrigação a que está adstrito (v.g. revogação das normas

que proíbem a exportação ou importação dos certos bens); quando a

impossibilidade é definitiva, mas o credor está interessado no cumprimento

parcial, com a respetiva redução do preço (art. 50ºda CISG).

156 V. g. “Decision ARB. ICC (Paris), 7197/1992 (1992). S (Austria) and B (Bulgaria) agreed that B´s payment, for goods to be provided by S, would be based on a documentary credit to be opened by B before a specified date. B failed to open the credit within the specified period or an additional period granted by S. S sued for performance and damages. B claimed exemption (art. 79º) on the ground that the Bulgarian government had ordered suspension of foreign debts. The tribunal rejected B´s claim for exemption; the suspension of credits had occurred before the making of the contract. Moreover, B could have foreseen the difficulties resulting from the government´s action. UNILEX D. 1992-2.” Ibidem, pág. 485. 157 V. g. “RUSS. FED., ARB: Int. Com., Ch. Of Comm. 12JI 1992, 17-10-1995. S (German) and B (Russian) contracted S to deliver equipment to B. S delivered the equipment but B did not pay, claiming exemption based on the failure of B´s bank to give instructions for payment. Held: B was not exempt since B had failed to take necessary measures to assure payment. CLOUT 142, UNILEX D. 1995-28.1.” Ibidem, pág. 486. 158 VICENTE, DÁRIO MOURA, Direito Comparado.., pág. 662. 159 CALVO CARAVACA, AFONSO-LUIS, LUIS FERNÁNDEZ DA LA GÁNDARA, op. cit., pág. 331.

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3.1.2 Não cumprimento de terceiro

O n.º 2 do mesmo artigo contempla uma regra especial para a exoneração da

responsabilidade da parte faltosa. Está em causa a situação em que uma parte

encarregou o cumprimento do contrato a um terceiro, no todo ou em parte, e este

não o cumpriu em virtude de impossibilidade de execução. A exoneração de

responsabilidade só produz os seus efeitos caso os pressupostos do n.º 1 se

preencham em relação ao terceiro e à parte que o encarregou160,161. Neste caso,

para a aplicação do instituto da exoneração é necessário que se verifiquem em

simultâneo as condições prescritas nas alíneas a) e b).

Um exemplo que explica bem o n.º 2 foi apresentado por HONNOLD162: O

vendedor (V) comprometeu-se a vender ao comprador (C) uma máquina

específica que ainda não foi construída no momento de celebração do contrato.

V contrata o Electron (E) para produzir a referida máquina. Apesar de E ser uma

empresa eficiente e responsável, com notoriedade no mercado, falhou a entrega

da máquina devido a uma má gestão no processo de produção da mesma. V, não

conseguindo obter a máquina de outra empresa, não cumpriu a prestação devida.

Olhando para a situação podemos afirmar que V poderia invocar o disposto no

n.º 1, uma vez que o incumprimento de E estava fora do seu controlo. Assim, V

ficaria exonerado da prestação perante o C. Todavia, o E não será exonerado da

prestação pelo n.º 1, o que significa que os pressupostos do n.º 2 não foram

160 “Não estão aqui incluídas, pois, as pessoas que se encontram, em relação às partes, na situação de fornecedores.” Vide in SOARES, MARIA ÂNGELA BENTO E RAMOS, RUI MANUEL MOURA, op.cit., pág. 216, nota de rodapé 403. 161 “RUSS. FED.: ARB., Int. Comm. Arb., Ch. Of Comm., 155/1994, 16-03-1995. S (Russian) contracted to supply B (German) with chemical products within a specified period. S failed to deliver, B purchased the material at a higher price and sued S for damages. S claimed exemption under art. 79º/2: The plant manufacturing the material for S had an emergency production stoppage. S´s defense was rejected: S should have been able to take “the impediment into account” or to have overcome its consequences.” Vide in HONNOLD O. JOHN, op. cit., pág. 489. 162 Ibidem, op. cit., pág. 486.

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totalmente verificados. Portanto, V não seria exonerado da prestação perante o C

e deveria pagar a indemnização pelos danos ocorridos em virtude do seu não

cumprimento, tendo direito a ser reembolsado, posteriormente, por E. Agora,

imaginemos que V contrata E para produzir a mesma máquina, desta vez numa

fábrica específica deste último. Sucede que um dia antes da entrega da máquina,

a fabrica é destruída por um terramoto. Neste caso, os pressupostos do n.º 2 são

preenchidos, e tanto E como V irão ser exonerados das suas prestações.

3.1.3 Impedimento temporário ou parcial

Conforme o n.º 3, o devedor não é responsável pelo não cumprimento da

prestação enquanto durar o impedimento. Por exemplo, o vendedor (V) está

obrigado a entregar os bens ao comprador (C) no dia 1 de dezembro. Antes da

data de entrega de bens, um embargo inibiu o cumprimento do contrato por

parte do V. Entretanto, no dia 1 de janeiro, o embargo foi levantado, tornando

assim possível o cumprimento da prestação do V.

Na impossibilidade temporária, o devedor não responde pela inexecução da

prestação nem pela mora. Contudo, após a remoção do impedimento, o devedor

torna-se automaticamente obrigado a cumprir a obrigação. Assim, podemos

afirmar que a exoneração também é temporária. O objetivo deste preceito legal é

a preservação dos negócios jurídicos celebrados. É preferível apresentar a

possibilidade de suspender o contrato temporariamente, do que o extinguir

definitivamente.

Uma questão interessante foi levantada por HONNOLD163: será que o

comprador está obrigado a aceitar os bens depois da remoção do impedimento?

Para responder a essa questão deveremos recorrer ao n.º 5 (o qual analisaremos

163 HONNOLD O. JOHN, op. cit., pág. 490.

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posteriormente): “As disposições do presente artigo não impedem as partes de exercer

qualquer dos seus direitos, salvo o de obter indemnização por perdas e danos, nos termos

da presente Convenção.” Assim, caso o atraso na prestação constitua uma violação

fundamental do contrato, o comprador teria direito de resolver o contrato nos

termos dos arts. 25º e 49º da Convenção. Depois de notificar o vendedor que ele

pretende resolver o contrato, este deixa de ser obrigado de aceitar os bens.

Relativamente à impossibilidade parcial, caso o credor (na maioria dos casos

seria o comprador) tiver interesse em receber aquilo que permaneceu após a

verificação do obstáculo, o devedor continua a ser obrigado a cumprir a

obrigação. Neste caso, o credor terá o direito à redução do preço

(proporcionalmente). A exoneração apenas se aplica à parte da prestação que

ficou absolutamente impossível de realizar. O texto da CISG não prevê

expressamente a exoneração no caso de impossibilidade parcial, no entanto,

através da sua leitura, chega-se à conclusão lógica que também não a proíbe.

Aliás, prevendo a impossibilidade total, é natural que o texto legal aceite a

impossibilidade parcial.

3.1.4 Dever de comunicação

De acordo com o n.º 4 da norma jurídica analisada, o devedor que está

impossibilitado de realizar a sua prestação é obrigado a comunicar ao credor

tanto sobre o impedimento ocorrido, como dos seus efeitos e da sua capacidade

de cumprir o contrato. A respetiva comunicação deverá ocorrer dentro dum

prazo razoável, a partir do momento em que o devedor toma, ou deveria ter

tomado, conhecimento do impedimento. O dever de comunicação está

intrinsecamente ligado ao princípio da boa fé. É importante destacar que no caso

de falta de comunicação, o credor terá direito a exigir apenas a indemnização

pelos danos ocorridos por este motivo e não pelos danos decorrentes do não

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cumprimento da prestação devida, por parte do devedor. A comunicação deve

reunir toda a informação que poderá ser relevante para o credor, como por

exemplo, o tipo de impedimento em causa, o momento da sua ocorrência e se a

impossibilidade é temporária ou definitiva.

3.1.5 Outros direitos dos contraentes

Como foi referido anteriormente, o n.º 5 do art. 79º estabelece a regra que a

exoneração de indemnizar por danos e prejuízos não afeta os outros direitos dos

contraentes. De acordo com este preceito legal, para além do direito ao

pagamento da indemnização, as partes podem exercer outros diretos que têm.

Primeiro, tratando-se da impossibilidade parcial, o credor tem direito de exigir a

correspetiva redução do preço da prestação. Segundo, não podendo o credor

exigir o pagamento da indemnização pelos danos ocorridos por falta do

cumprimento da outra parte, este terá o direto potestativo de proceder à

resolução do contrato. A importância desta norma jurídica foi demonstrada no

caso da impossibilidade temporária. Sublinham BENTO SOARES e MOURA

RAMOS que: “a razoabilidade de tal solução parece inquestionável, quer quanto

aos poderes que confere à outra parte – pois de outra maneira seria postergado o

equilíbrio contratual – quer tanto à exclusão do direito à indemnização –

necessariamente consequente à exoneração da responsabilidade”164.

Uma vez recorrida a resolução do contrato, a parte que cumpriu a obrigação

tem direto à restituição dos bens que entregou ou ao reembolso do valor que

pagou, conforme previsto no n.º 2 do art. 81º: “A parte que executou total ou

parcialmente o contrato pode reclamar da outra parte a restituição de tudo aquilo que

164 SOARES, MARIA ÂNGELA BENTO E RAMOS, RUI MANUEL MOURA, op.cit., pág. 221.

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forneceu ou pagou a titulo de cumprimento daquele. Se ambas as partes estiverem

obrigadas a proceder a restituições, devem efetuá-las simultaneamente.”

3.1.6 Facto imputável ao credor

De acordo com o disposto no art. 80º da CISG “uma parte não pode prevalecer-

se do não cumprimento da outra na medida em que esse não cumprimento se ficar a dever

a um ato ou omissão seus.” Consideram BENTO SOARES e MOURA RAMOS: “(…)

não faria sentido e constituiria uma grave ofensa à ideia de justiça que uma

qualquer das partes pudesse pretender retirar dividendos da falta de

cumprimento das obrigações da sua contraparte, quando ele tem afinal como

causa um facto (ato ou omissão) seus”165.

O mesmo defende CALVO CARAVACA: “permitir lo contrario sería atentar

contra la buena fe que debe presidir las relaciones comerciales internacionales”166.

Além do princípio da boa-fé, no preceito legal analisado, também se

encontram apresentados os princípios de venire contra factum próprio e non auditur

propriam allegans turpitudinem. Conforme MENEZES CORDEIRO167: “a locução

venire contra factum próprio traduz o exercício de uma posição jurídica em

contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente.” O

segundo princípio significa que ninguém deverá alegar a própria torpeza em seu

proveito168.

O artigo citado tutela a confiança do devedor. Desrespeitá-lo, significaria

deixar uma parte que prejudicou o cumprimento do contrato tirar proveito ao

165 Ibidem, pág. 222. 166 CALVO CARAVACA, AFONSO-LUIS, LUIS FERNÁNDEZ DA LA GÁNDARA, op. cit., pág. 333. 167 CORDEIRO, ANTÓNIO MENEZES, “Da Boa-Fé no Direito Civil”, vol. II, Coimbra: Almedina, 1984, pág. 742. 168 Vide in https://www.centraljuridica.com/dicionario/g/2/l/n/dicionario_de_latim_forense/dicionario_de_latim_forense.html

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invocar a falta do cumprimento de outra parte. Tal situação constitui uma ofensa

grave ao princípio da boa fé e à própria ideia da Justiça.

Segundo CALVO CARAVACA169 para a aplicação do art. 80º é necessário o

preenchimento dos dois seguintes pressupostos:

a) que se verifique um obstáculo que impossibilita a execução da

prestação a uma das partes do contrato. Não importa se este é causado

por ação ou omissão, direta ou indiretamente;

b) que o impedimento tinha sido provocado pela outra parte,

independentemente da sua culpa. O exemplo mais comum é quando

uma das partes, após a celebração do contrato, recusa colaborar com a

outra, violando o seu dever de cooperação. Neste caso, para que o

devedor se possa liberar da responsabilidade contratual, terá que

provar que o impedimento foi causado pelo credor.

Por conseguinte, o outro contraente não pode alegar o não

cumprimento do contrato, se o impedimento for provocado por uma ação

ou omissão da sua parte. Significa isto que ele não pode recorrer à

indemnização por perdas e danos provenientes da não realização da

prestação.

169 CALVO CARAVACA, AFONSO-LUIS, LUIS FERNÁNDEZ DA LA GÁNDARA, op. cit., pág. 333.

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3.2 Force Majeure nos Princípios do UNIDROIT170,171

dos Contratos Comerciais Internacionais

Nos termos do artigo 1.3 dos Princípios do UNIDROIT dos Contratos

Comerciais Internacionais que expressamente consagra o princípio pacta sunt

servanda, “um contrato validamente celebrado vincula as partes contratantes. Só

pode ser modificado ou resolvido nos termos do disposto nas respetivas

cláusulas, por comum acordo entre as partes ou ainda pelas causas enunciadas

nestes Princípios”172. Contudo, no caso de ocorrência de um evento que constitui

a força maior, o devedor fica exonerado da sua prestação.

170 O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado é uma organização internacional independente, sedeada em Roma, tendo sido fundada em 1926 como um órgão auxiliar da Sociedade das Nações. Em 1940, esta foi restabelecida por meio de um tratado multilateral: UNIDROIT Statute. Atualmente, aderiram a esta organização 63 Estados membros de cinco continentes que representam diversos sistemas jurídicos, econômicos e políticos, de diferentes culturas. O principal objetivo desta organização é promover a unificação e a harmonização do direto privado. O UNIDROIT publicou os PCCI em outubro de 1994. O preâmbulo dos PCCI contém as seguintes regras: “These Principles set forth general rules for international commercial contracts. They shall be applied when the parties have agreed that their contract be governed by them. They may be applied when the parties have agreed that their contract be governed by general principles of law, the lex mercatoria or the like. They may be applied when the parties have not chosen any law to govern their contract. They may be used to interpret or supplement international uniform law instruments. They may be used to interpret or supplement domestic law. They may serve as a model for national and international legislators.” A versão atual dos Princípios do UNIDROIT dos Contratos Comerciais Internacionais encontra-se disponível em https://www.unidroit.org/instruments/commercial-contracts/unidroit-principles-2016171 Conforme ALEXANDRA CAIADO, o objetivo dos Princípios UNIDROIT não era a formação de uma lei imperativa dos Estados membros, “mas inspirar os legisladores nacionais, servir de guia aos tribunais aquando da interpretação do direito uniforme existente e aos árbitros quando tenham que decidir conflitos sobre contratos comerciais internacionais.”Op. cit., pág. 4.172 Texto em português cfr. VICENTE, DÁRIO MOURA, Direito Comparado.., pág. 643. “Article 1.3: (Binding character of contract) A contract validly entered into binding upon the parties. It can only be modified or terminated in accordance with its terms or by agreement or as otherwise provided in these Principles.”

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O artigo 7.1.7 (Force Majeure) do instrumento jurídico em análise estabelece

o seguinte:

(1) Non-performance173 by a party is excused if that party proves that the non-performance was due

to an impediment beyond its control and that it could not reasonably be expected to have taken the

impediment into account at the time of the conclusion of the contract or to have avoided or overcome

it or its consequences.

(2) When the impediment is only temporary, the excuse shall have effect for such period as is

reasonable having regard to the effect of the impediment on the performance of the contract.

(3) The party who fails to perform must give notice to the other party of the impediment and its effect

on its ability to perform. If the notice is not received by the other party within a reasonable time after

the party who fails to perform knew or ought to have known of the impediment, it is liable for damages

resulting from such non-receipt.

(4) Nothing in this article prevents a party from exercising a right to terminate the contract or to

withhold performance or request interest on money due.

De acordo com os comentários174 do atrigo citado, este abrange a mesma

matéria que regula a doutrina da Frustration, a impossibilidade de cumprimento

não imputável ao devedor, a doutrina da Force majeure e a Unmöglichkeit -

conforme ao sistema jurídico nacional aplicável no caso em concreto. No entanto,

não é idêntico a nenhuma das referidas doutrinas.

173 “Article 7.1.1: (Non-performance defined) Non-performance is failure by a party to perform any of its obligations under the contract, including defective performance or late performance.” Cfr. MOURA VICENTE, a CISG “não é tão explícita, mas o conceito de “violação do contrato (“breach of contract”) acolhido nela compreende igualmente a inexecução, tanto pelo vendedor como pelo comprador, de qualquer das obrigações que para estes resultem do contrato ou da Convenção (arts. 45 e 61).” Direito Comparado.., pág. 645.174 Disponíveis em https://www.unidroit.org/english/principles/contracts/principles2016/principles2016-e.pdf

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O termo "força maior" foi escolhido porque é bastante conhecido na prática

comercial internacional e por serem, geralmente, incluídas em muitos contratos

internacionais as chamadas cláusulas típicas de "força maior".

Para a aplicação do preceito jurídico em causa, é necessário que o devedor

prove “que a falta de cumprimento é devida a um “impedimento fora do seu

controlo” e que “não lhe podia ser razoavelmente exigido que o tivesse tomado

em consideração no momento da conclusão do contrato, que o tivesse evitado ou

superado ou que tivesse evitado ou superado as suas consequências””175.

Portanto, o devedor é obrigado sempre a provar que o não cumprimento do

contrato se verificou em virtude da ocorrência de um acontecimento

imprevisível, irresistível e alheio à sua vontade.

A parte não faltosa tem o direito potestativo de resolver o contrato caso o

não cumprimento for fundamental para a relação contratual.

Para que o devedor possa recorrer à exoneração da responsabilidade de

indemnizar pelos danos decorrentes de não cumprimento da prestação, a

impossibilidade deve ser definitiva. No caso de impossibilidade temporária, o

devedor não é responsável pela mora. O contrato fica simplesmente suspenso até

à remoção do impedimento176. Por exemplo, no caso A GmbH v. B SA177, a B SA,

empresa inglesa, comprou à A GmbH, empresa alemã, 25.000 toneladas de blocos

de aço, as quais deveriam ser entregues ao comprador entre março e julho de

2008. No dia 15 de abril de 2008 ocorreu uma explosão na fábrica do vendedor, o

que foi considerado como um caso de força maior. O A GmbH não foi responsável

175 MOURA VICENTE, Direito Comparado.., pág. 662. 176 V. g.: A contracts to lay a natural gas pipeline across country X. Climatic conditions are such that it is normally impossible to work between 1 November and 31 March. The contract is timed to finish on 31 October but the start of work is delayed for a month by a civil war in a neighboring country which makes impossible to bring in all the piping on time. If the consequence is reasonably to prevent the completion of the work until its resumption in the following spring, A may be entitled to an extension of five months even though the delay was itself of one month only. Vide in comentários do art. 7.1.7 dos Princípios do UNIDROIT. 177 Georg von Segesser and Andrea Meier, A GmbH v. B AS, Swiss Federal Supreme Court, 4A_550/2009, 29 January 2010; A contribution by the ITA Board of Reporters; Kluwer Law International.

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pelo atraso na entrega até o dia 29 de junho de 2008, data em que a fábrica voltou

ao seu funcionamento normal.

A duração da suspensão do contrato pode ser maior ou menor, dependendo

de cada contrato em particular. Certamente, haverão casos em que a interrupção

do contrato não afetará significativamente o interesse contratual, mas haverão

outros em que o mínimo atraso na realização da prestação poderá levar às

consequências negativas ou à perda do interesse do outro contraente.

Podemos destacar que o art. 79º da CISG estabelece um regime de

exoneração mais restrito do que a norma jurídica em análise. Como já é do nosso

conhecimento, o n.º 3 do art. 79º da CISG prevê que a exoneração apenas produz

os seus efeitos enquanto durar o impedimento. Do art. 7.1.7(2) do PCCI resulta

que “o impedimento temporário significa não apenas as circunstancias que

causam o obstáculo, mas também as consequências que lhe seguem. Estas podem

durar mais tempo que as próprias circunstancias, sendo que a exoneração

abrange todo o período de tempo durante o qual o obrigado não pode

cumprir”178. A outra distinção que existe entre o art. 79º do CISG e o artigo

analisado é que o último não contem uma regra especifica sobre a

responsabilidade do terceiro. Todavia, sobre essa matéria, de forma sucinta,

referem os comentários dos PDEC e do DCFR, infra analisados.

Nos termos do n.º 3 do preceito citado o devedor é obrigado a notificar a

outra parte da ocorrência do impedimento que impossibilitou a realização da

prestação e de que forma tal afeta a sua capacidade de cumprir o contrato, sob

pena de responder pelos danos decorrentes da falta de receção da comunicação.

A norma jurídica em apreço, no seu texto, concede à parte não faltosa o

direito de resolver o contrato, o direito de suspender a contraprestação e o direito

de solicitar juros sobre dividas existentes (art. 7.1.1(4)). Contudo, o “rátio legis”

do art. 7.1.7 dos Princípios UNIDROIT é a exoneração do devedor da

178 CAIADO, ALEXANDRA, op. cit., pág. 67.

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responsabilidade de indemnizar pelos danos provenientes da não execução da

sua prestação. Sem dúvida, o acontecimento que impossibilita o cumprimento da

obrigação do devedor não lhe poderá ser imputável.

Não obstante as distinções mencionadas, o artigo 7.1.7 dos Princípios do

UNIDROIT dos Contratos Comerciais Internacionais é muito semelhante ao

artigo 79º da CISG supra analisado179.

3.3 Impossibilidade de cumprimento nos Princípios

do Direito Europeu dos Contratos180

Article 8:108: Excuse Due to an Impediment181

179 Cfr. BRUNNER: “As acknowledged by the Chairman of the Working Group of the 1994 UNIDROIT Principles, the wording of Article 7.1.7 UPICC (Force Majeure) is a slightly amended version of Article 79 CISG. Article 7.1.7 UPICC thus extends the requirements and effects of the excuse already recognized for the international sale of goods to all international comercial contracts.” Op. cit., pág. 106. 180 “Os Princípios do Direito Europeu dos Contratos (“PDEC”) são um projeto de caráter académico e não-governamental cujo objetivo é o de fornecer aos operadores do comércio um conjunto de regras que são comuns aos vários Estados-Membros. Assim, ao abrigo da sua autonomia privada, as partes num determinado contrato (seja entre nacionais de Estados diferentes ou do mesmo Estado) podem designar como aplicáveis estes Princípios”. “Os trabalhos que levaram à produção dos PDEC foram coordenados pelo Professor Ole Lando e contaram com a participação de vários académicos dos Estados-Membros que estavam presentes como representantes científicos do seu Estado, de forma a que as semelhanças e diferenças entre as legislações estaduais fossem apuradas. A elaboração destes Princípios deve ser entendida num movimento com dimensão europeia e do qual os PDEC são um exemplo, cujo principal objetivo era o de promover uma maior uniformização e, assim, facilitando as trocas transfronteiriças no mercado interno da União”. Cfr. GUILHERME OLIVEIRA E COSTA, Uma Análise dos Princípios do Direito Europeu dos Contratos, CEDIS Working Papers (Dimensão Económica e Social do Direito Privado), ISSN 2184-1276, Nº1, FDUL, outubro, 2017, págs. 1 e 2. Disponível em http://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2017/10/CEDIS-working-paper_DESDiP_Uma-análise-dos-Princ%C3%ADpios-do-Direito-Europeu-dos-Contratos.pdf A primeira parte do PDEC foi publicada em 1995; a segunda parte ficou disponível em 1999; a terceira parte foi concluída em 2002. 181 Disponível em http://www.transnational.deusto.es/emttl/documentos/Principles%20of%20European%20Contract%20Law.pdf

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(1) A party's non-performance is excused if it proves that it is due to an impediment beyond its control and

that it could not reasonably have been expected to take the impediment into account at the time of the

conclusion of the contract, or to have avoided or overcome the impediment or its consequences.

(2) Where the impediment is only temporary the excuse provided by this article has effect for the period

during which the impediment exists. However, if the delay amounts to a fundamental non-performance,

the obligee may treat it as such.

(3) The non-performing party must ensure that notice of the impediment and of its effect on its ability to

perform is received by the other party within a reasonable time after the non-performing party knew or

ought to have known of these circumstances. The other party is entitled to damages for any loss resulting

from the non-receipt of such notice.

O preceito legal citado deve ser aplicado nos casos em que um impedimento

impossibilita o cumprimento da obrigação de uma das partes. O termo

“impedimento” abrange qualquer tipo de evento: força maior ou caso fortuito,

facto de terceiro e facto da lei182. Contudo, a regra jurídica em análise não é

imperativa e, conforme o princípio de autonomia de vontade, o seu conteúdo

pode ser alterado pelas próprias partes. Por exemplo, os contraentes podem

estabelecer que o referido artigo não se aplica a um (ou vários) impedimento(s)

em particular.

De acordo com OLE LANDO183 o artigo 8:108 dos Princípios Europeus

aplica-se à impossibilidade superveniente, ao que à impossibilidade originária é

aplicado o artigo 4:103 (Mistake as to Facts or Law) do mesmo diploma jurídico. A

norma jurídica em análise não se aplica caso o devedor se encontre em mora no

momento da ocorrência do impedimento.

Assim, para que a parte faltosa fique exonerada da prestação é necessário

que esta demonstre que o não cumprimento “se deveu a um “impedimento fora

182 LANDO, OLE e BEALE, HUCH Principles of European Contract Law: parts I and II combined and revised; The Hague: Kluwer Law International, 2000, pág. 379. 183Idem.

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do seu controlo184” e que não seria razoável esperar que tivesse tomado em

consideração esse impediemnto ao tempo da conclusão do contrato185, ou que

tivesse evitado ou superado o impedimento ou as suas consequências186 (n.º1)”187.

Caso o devedor tivesse encarregado um terceiro de cumprir a sua obrigação,

total ou parcialmente, a exoneração da responsabilidade apenas produzirá os

seus efeitos caso os pressupostos do n.º 1 se preencham em relação ao terceiro e

à parte que o encarregou.

Portanto, verificando-se os pressupostos do n.º 1, o devedor ficará exonerado

da prestação e o credor terá direito de resolver o contrato, se o não cumprimento

for fundamental para a relação contratual. Porém, tratando-se de

impossibilidade parcial, o credor pode pôr fim ao contrato ou aceitar a parte da

prestação que se manteve possível, caso tenha interesse nela. Nesta situação, a

prestação do credor deverá ser proporcionalmente diminuída conforme o art.

9:401 (Reduction of Price) dos PDEC.

Nos termos do n.º 2 do artigo citado, no caso de impossibilidade temporária,

a exoneração apenas produz os seus efeitos durante o período da duração do

impedimento. O contrato fica, assim, suspenso até à remoção do impedimento.

Todavia, se o atraso em realizar a prestação for fundamental, o credor poderá

resolver o contrato188.

184 V. g.: “In consequence of an unexpected strike in the nationalized company which distributes natural gas, a chinaware manufacturer which heats its furnaces only with gas is obliged to interrupt its production. The manufacturer is not liable toward its own clients, if the other conditions of excuse are fulfilled. The cause of non-performance is external”. (Illustration 1); LANDO, OLE, Principles of European Contract Law: parts I and II combined and revised; The Hague: Kluwer Law International, 2000, pág. 380. 185 Cfr. OLE LANDO: “Equally it is stated that the test is “reasonable” foreseeability: that is to say, whether a normal person, placed in the same situation, could have foreseen it without either undue optimism or undue pessimism. Thus in a particular area cyclone may be foreseeable at certain times of year, but not a cyclone at a time of year when they do not normally occur – that would not be reasonably foreseeable by the parties”. Op. cit., pág. 381. 186 “Whether an event could have been avoided or its consequences overcome depends on the facts. In an earthquake zone the effects of earthquakes can be overcome by special construction techniques, though it would be different in the case of a quake of much greater force than usual”. Idem. 187 VICENTE, DÁRIO MOURA, Direito Comparado.., pág. 663. 188 V. g.: “An impresario in Hamburg has engaged a famous English tenor to sing at the Hamburg Opera from 1 to 31 October. The singer catches asian flu and has to retire to bed (this would constitute an

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O n.º 2 do artigo 8:108 dos Princípios Europeus, à semelhança do n.º 2 do

artigo 7.1.1 dos Princípios do UNIDROIT, pressupõe que o impedimento

temporário se refere não apenas às circunstâncias que causam o obstáculo, mas

também às consequências que lhe seguem. Estas podem durar mais tempo do

que as circunstâncias que causaram o obstáculo. A exoneração abrange todo o

período de tempo durante o qual o devedor é impossibilitado de cumprir a

obrigação189,190.

De acordo com o n.º 3 dos PDEC “a parte inadimplente deve assegurar que

a notificação do impedimento e dos seus efeitos sobre a sua aptidão para cumprir

seja recebida pela outra parte dentro de um prazo razoável após a parte

inadimplente ter tomado conhecimento ou dever ter tomado conhecimento

destas circunstâncias; a outra parte tem direito a ser indemnizada por qualquer

dano decorrente da falta de receção dessa notificação”191,192. O objetivo da

notificação consiste em fornecer atempadamente ao credor a informação

necessária para que este possa tomar as medidas adequadas, de forma a evitar as

consequências do não cumprimento da obrigação pelo devedor. Está em causa o

princípio da boa fé , o qual rege os Princípios Europeus e ao qual as partes são

obrigadas a seguir durante toda a vigência do contrato.

impediment within paragraph (1)); he tells impresario that he will be unable to come to Hamburg before 10 October. Assuming that the tenor´s presence for the whole month is an essential part of the contract, the impresario may terminate. If he chooses not to do so, the contract remains in force for the remaining period but the tenor´s fees will be reduced proportionately”. (Illustration 6); cfr. OLE LANDO, op. cit., pág. 382. 189 Idem. 190 V. g.: “The warehouse containing a pharmaceutical manufacturer raw materials is unforeseeably flooded and the raw materials are rendered unusable. The delays in delivering to clients which will be excused include not only the period of the flood itself but also the time necessary for the manufacturer to obtain new supplies”. (Illustration 5); idem. 191 VICENTE, DÁRIO MOURA, Direito Comparado.., pág. 663. 192 V. g.: In the exemple given in Illustration 6, if the tenor does not warn the impresario immediately of his unavailability, the latter may recover compensation for being deprived of the chance to obtain a replacement, so reducing his loss”. (Illusstration 10); BAR, CHRISTIAN VON, ERIC CLIVE, HANS SCHULTE-No LKE, op. cit., pág. 813.

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3.4 Impossibilidade de cumprimento no Draft

Common Frame of Reference193

III. – 3:104: Excuse due to an impediment194

(1) A debtor’s non-performance of an obligation is excused if it is due to an impediment beyond the debtor’s

control and if the debtor could not reasonably be expected to have avoided or overcome the impediment or

its consequences.

(2) Where the obligation arose out of a contract or other juridical act, non- performance is not excused if

the debtor could reasonably be expected to have taken the impediment into account at the time when the ob-

ligation was incurred.

(3) Where the excusing impediment is only temporary the excuse has effect for the period during which the

impediment exists. However, if the delay amounts to a fundamental non-performance, the creditor may

treat it as such.

(4) Where the excusing impediment is permanent the obligation is extinguished. Any reciprocal obligation

is also extinguished. In the case of contractual obligations any restitutionary effects of extinction are regu-

lated by the rules in Chapter 3, Section 5, Sub-section 4 (Restitution) with appropriate adaptations.

(5) The debtor has a duty to ensure that notice of the impediment and of its effect on the ability to perform

reaches the creditor within a reasonable time after the debtor knew or could reasonably be expected to have

193 O “Projeto do Quadro Comum de Referência” (Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law “Draft Common Frame of Reference”) foi publicado em 2009. Segundo a declaração do Conselho Europeu de 2008, “o DCFR visaria constituir um instrumento para a melhoria de feitura de leis (“better lawmaking”) dirigido aos legisladores comunitários. Conter-se-ia nele um “conjunto de definições, princípios gerais e regras-modelo” respeitantes aos contratos e extraídos de diversas fontes. Compreender-se-ia no seu âmbito o Direito dos Contratos em geral, incluindo os contratos de consumo. Pelo que respeita à sua eficácia jurídica, tratar-se-ia tão-só de um conjunto de “linhas de orientação não vinculativas” (“non-binding guidelines”), destinadas a serem utilizadas pelos legisladores comunitários como fonte comum de inspiração”. VICENTE, DÁRIO MOURA, Direito Comparado.., págs. 598-599. O DCFR é baseado, em parte, nos PDEC. O texto do Draft Common Frame of Reference contém muitas normas jurídicas derivadas dos Princípios Europeus. 194 BAR, CHRISTIAN VON, ERIC CLIVE, HANS SCHULTE-No LKE, Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law. Draft Common Frame of Reference (DCFR). Full Edition, vol. I, Monique, 2009. Disponível em http://ec.europa.eu/justice/contract/files/european-private-law_en.pdf

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known of these circumstances. The creditor is entitled to damages for any loss resulting from the non-

receipt of such notice.

Da leitura dos comentários195 chega-se à conclusão de que a norma jurídica

em apreço deve ser aplicada apenas nos casos de ocorrência de um evento

superveniente que absolutamente impossibilitou o cumprimento de obrigação de

uma das partes. O termo “impedimento” abrange os acontecimentos naturais, a

impossibilidade legal e os factos de terceiros. O art. III.-3:104 do DCFR também

não é imperativo, o que permite às partes alterar o seu conteúdo de acordo com

o princípio da autonomia de vontade.

O n.º 1 do art. III.-3:104 do DCFR, à semelhança dos mecanismos jurídicos

supra analisados, dispõe que o devedor é exonerado da obrigação caso prove que

não conseguiu cumprir o contrato em virtude da verificação de um impedimento

alheio à sua vontade, e que não se podia razoavelmente esperar que este o tivesse

evitado ou superado, bem como as suas consequências196. “Não assim, porém, se

o devesse razoavelmente ter tido em consideração ao tempo em que assumiu a

obrigação (n.º 2)”197.

Portanto, para se exonerar da obrigação, o devedor terá que provar a

verificação dos três pressupostos fundamentais do instituto jurídico da Força

Maior, nomeadamente: a imprevisibilidade, a inevitabilidade e a exterioridade à

sua vontade.

Caso o devedor tivesse encarregado um terceiro para cumprir a sua

obrigação, total ou parcialmente, a exoneração da responsabilidade apenas

produzirá os seus efeitos se os pressupostos do n.º 1 se verificarem em relação a

ambos: ao terceiro e ao devedor.

195 Idem. 196 A norma jurídica em análise não se aplica caso o devedor esteja em mora no momento da ocorrência de impedimento. 197 VICENTE, DÁRIO MOURA, Direito Comparado.., pág. 663.

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Conforme o n.º 2 do artigo citado, no caso de impossibilidade temporária o

devedor fica exonerado apenas durante o período da duração do impedimento.

Assim, o contrato fica suspenso até que o impedimento seja removido. Contudo,

caso o atraso em realizar a prestação seja fundamental, o credor poderá pôr fim

ao contrato. Este poderá também fixar um prazo adicional para o cumprimento

da obrigação de parte do devedor, reservando-se o direito de resolver o contrato

caso o impedimento persista, passado o novo prazo.

O n.º 3 do III.-3:104 do DCFR igualmente pressupõe que o impedimento

temporário se refere não apenas às circunstâncias que causam o obstáculo, mas

também às consequências que lhe seguem e que podem durar mais tempo do que

as circunstâncias que causaram o obstáculo. A exoneração abrange todo o

período de tempo durante o qual o devedor é impossibilitado de cumprir a

obrigação198.

Quando a impossibilidade é definitiva a obrigação extingue-se

automaticamente, assim como qualquer obrigação recíproca (n.º 4). No entanto,

no caso de impossibilidade parcial, o credor pode pôr fim ao contrato ou aceitar

a prestação parcial, caso tenha interesse nela. Neste caso, a prestação do credor

deverá ser proporcionalmente diminuída conforme o art. III. – 3:601 (Right to

reduce price) do DCFR199.

Nos termos do n.º 5 da norma jurídica em causa, o devedor é obrigado a

notificar o credor do impedimento dentro de um prazo razoável, sob pena de

responder pelos danos causados por falta de comunicação ao credor. Como já foi

198 BAR, CHRISTIAN VON, ERIC CLIVE, HANS SCHULTE-No LKE, Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law. Draft Common Frame of Reference (DCFR). Full Edition, vol. I, Monique, 2009, pág. 811. 199 V. g.: “A company is under an obligation to a landowner to plant trees on three islands. One of the islands disappears under the sea as a result of a geological event. The landowner had a reciprocal obligation to pay for the work. If the obligation was to pay a separate sum for the planting on each island then the obligation to pay for the planting on the sunken island is extinguished entirely. If the obligation was to pay a lump sum for the whole work but the landowner is willing to accept performance in relation to the two surviving islands then the landowner can reduce the price”. (Illustration 8); ibidem, pág. 812.

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mencionado antes, o objetivo da notificação consiste em que o credor possa

adotar as medidas necessárias de forma a evitar as consequências do não

cumprimento da obrigação pelo devedor. Está em causa o princípio da boa fé,

conforme ao qual as partes devem agir no âmbito de relações contratuais.

Por último, conforme MOURA VICENTE “manda-se assim atender nestes

instrumentos, como critério fundamental da imputação do dano resultante da

impossibilidade de cumprimento, à repartição do risco expressa ou tacitamente

operada pelas partes. Os resultados da aplicação dos referidos preceitos não são,

como é bom de ver, fundamentalmente diversos dos da doutrina da frustration

consagrada no Direito inglês, exigindo-se a total impossibilidade da prestação a

fim de que o devedor possa ser exonerado”. Assim sendo, as disposições legais

analisadas não são aplicáveis aos casos de alteração das circunstâncias.

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4. Relevância da cláusula de Força Maior

4.1 Modelo de cláusula de Força Maior da Câmara do

Comércio Internacional

Para facilitar o processo de elaboração dos contratos entre empresas

internacionais a CCI200 lançou um modelo detalhado da cláusula de Força Maior,

oferecendo uma fórmula geral deste conceito juntamente com uma lista que

contém os eventos que podem ser considerados como força maior.

Esta cláusula-modelo aplica-se a qualquer tipo de contrato desde que as

partes a incorporem de forma expressa ou por referência. Salvo acordo das partes

em contrário, qualquer tipo de referência num contrato à ICC FORCE MAJEURE

CLAUSE 2003 será considerada como motivo para invocação desta cláusula. É

importante referir que esta deve ser aplicada de forma igual a todas as partes no

contrato. Para que a parte faltosa se possa liberar da prestação que se tornou

impossibilitada, para além de invocar a respetiva cláusula, deverá provar que

não poderia, de forma razoável, prever ou ultrapassar o impedimento, bem como

as suas consequências, no momento da celebração do contrato.

200 A Câmara do Comércio Internacional (inglês: International Chamber of Commerce) é uma organização internacional independente sem fins lucrativos, com sede principal em Paris. Foi criada após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, para promover o comércio internacional e o investimento, resolver os litígios comerciais e regular finanças e relações comerciais internacionais. O CCI ajuda empresas de todas as dimensões, sediadas em qualquer país, e que opere de forma internacional e responsável. O CCI no site official expõe o seguinte: “We work to promote international trade, responsible business conduct and a global approach to regulation by combining our global influence with our unique expertise in advocacy, standard setting activities and global services.” Vide in https://iccwbo.org/about-us/who-we-are/our-mission/

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O n.º 1 da ICC FORCE MAJEURE CLAUSE 2003201 dispõe o seguinte:

1. Unless otherwise agreed in the contract between the parties expressly or impliedly, where a party

to a contract fails to perform one or more of its contractual duties, the consequences set out in paragraphs

4 to 9 of this Clause will follow if and to the extent that the party proves:

a) That its failure to perform was caused by an impediment beyond its reasonable control;

b) That it could not reasonably have been expected to have taken the occurrence into account at the

time of the conclusion of the contract; and

c) That it could not reasonably have avoided or overcome the effects of the impediment.

Como o modelo da cláusula de Força Maior foi inspirado no art. 79º da CISG,

no art. 7.1.7. PCCI e no art. 8.108 PDEC, os pressupostos que o n.º 1 do referido

texto apresenta - e cuja verificação a parte faltosa deve provar - são quase os

mesmos. A alínea a) prevê que inexecução deve ficar a dever a um impedimento

fora do controlo razoável e a alínea c) estabelece que não era razoável prevenir

ou ultrapassar as consequências do impedimento. Assim sendo, salientam as

anotações202 da ICC FORCE MAJEURE CLAUSE 2003 e afirma LIMA

PINHEIRO203 que para a aplicação da cláusula-modelo “não se exige uma

impossibilidade absoluta.” É suficiente que o impedimento esteja “fora do

controlo razoável” da parte faltosa e que as consequências não possam ser

“razoavelmente prevenidas ou ultrapassadas.”

Destaca LIMA PINHEIRO204 que não fica bem definido o que exatamente é

entendido pelo conceito de “impedimento” na cláusula-modelo. A dúvida é se a

maior onerosidade ou a mera inconveniência poderão ser abrangidas pela

cláusula-modelo em apreço. Como a própria cláusula-modelo não refere no seu

texto expressamente esta condição e sendo o instituto de exoneração da

responsabilidade de aplicação restritiva e como existe um modelo próprio da ICC

201 O texto da cláusula-modelo de Força Maior 2003 está disponível no https://cdn.iccwbo.org/content/uploads/sites/3/2017/02/ICC-Force-Majeure-Hardship-Clause.pdf 202 Idem. 203 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, op. cit., pág. 235. 204 Idem.

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HARDSHIP CLAUSE 2003, conclui-se que a onerosidade e a mera inconveniência

não são abrangidas pela ICC FORCE MAJEURE CLAUSE 2003.

Conforme a mesma anotação, a cláusula-modelo pode ser igualmente

invocada caso o impedimento exista no momento da celebração do contrato.

Neste caso, importa destacar que o impedimento que exista no momento da

celebração do contrato deve ser desconhecido pelos contraentes. Caso as partes

pretendam que a cláusula-modelo apenas se aplique a impedimentos

supervenientes, deverão indicar essa condição de forma expressa no contrato.

2. Where a contracting party fails to perform one or more of its contractual duties because of a default

by a third party whom it was engaged to perform the whole or part of the contract, the consequences set out

in paragraphs 4 to 9 of this Clause will only apply to the contracting party:

a) If and to the extent that the contracting party establishes the requirements set out in paragraph 1

of this Clause; and

b) If and to the extent that the contracting party proves that the same requirements apply to the third

party.

Este parágrafo foi inspirado no art. 79º/2 da CISG e, por sua vez, contém a

mesma regra. Perante a falta de cumprimento de parte de um terceiro, contratado

por uma das partes para executar a prestação no contrato (total ou parcial), a

parte faltosa apenas se exonera da responsabilidade caso os pressupostos

enunciados no n.º 1 sejam preenchidos em relação a ambos: ao contraente

principal e ao terceiro, por ele contratado. A anotação da cláusula-modelo

assinala que pela mesma razão, a inexecução da prestação por um terceiro não

está incluída nas alíneas do seguinte parágrafo:

3. In the absence of proof to the contrary and unless otherwise agreed in the contract between the

parties expressly or impliedly, a party invoking this Clause shall be presumed to have established the

conditions described in paragraph 1 (a) and (b) of this Clause in case of the occurrence of one or more of the

following impediments:

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a) War (whether declared or not), armed conflict or the serious threat of same (including but not

limited to hostile attack, blockade, military embargo), hostilities, invasion, act of a foreign enemy, extensive

military mobilization;

b) Civil war, riot rebellion, military or usurped power, insurrection, civil commotion or disorder,

mob violence, act of civil disobedience;

c) Act of terrorism, sabotage or piracy;

d) Act of authority whether lawful or unlawful, compliance with any law or governmental order,

rule, regulation or direction, curfew restriction, expropriation, compulsory acquisition, seizure of works,

requisition, nationalization;

e) Act of God, plague, epidemic, natural disaster such as but not limited to violent storm, cyclone,

typhoon, hurricane, tornado, blizzard, earthquake, volcanic activity, landslide, tidal wave, tsunami, flood,

damage or destruction by lightning, drought;

f) Explosion, fire, destruction of machines, equipment, factories and of any kind of installation,

prolonged break-down of transport, telecommunication or electric current;

g) General labour disturbance such as but not limited to boycott, strike and lock-out, go-slow,

occupation of factories and premises.

O n.º 3 apresenta a lista dos eventos que constituem a força maior. A parte

que ficou impossibilitada de cumprir a sua obrigação poderá invocar a ocorrência

de um ou mais dos eventos enunciados. É extremamente importante mencionar

que a ocorrência de um ou mais desses eventos ainda não exonera a parte faltosa.

Em primeiro lugar, devem verificar-se os pressupostos do n.º 1. Por exemplo, a

parte que não cumpriu o contrato em virtude de guerra civil deverá provar que

o referido impedimento 1) ocorreu fora do seu controlo razoável; 2) provar que

não poderia, de forma razoável, prever ou ultrapassar o acontecimento em causa;

3) nem prever as suas consequências, de forma razoável, no momento da

celebração do contrato. É necessário perceber que a mera ocorrência de um ou

mais eventos enumerados não exclui automaticamente a responsabilidade

contratual da parte que invoca a cláusula de Força Maior.

A anotação da CCI sublinha que a parte lesada pode sempre tentar provar

que o evento invocado estava dentro do controlo da parte faltosa, ou que esta o

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poderia ter previsto ou ultrapassado no momento da celebração do contrato.

Neste caso, se a parte lesada conseguisse obter a prova necessária e sendo esta

confirmada pelo Tribunal como válida, a parte faltosa teria que indemnizar pelos

danos e perdas provenientes da não execução da sua prestação.

Segundo a anotação da CCI, as partes podem alterar a lista com os eventos

enumerados, procedendo à respetiva adição ou exclusão, caso seja do seu desejo.

A cláusula-modelo não proíbe esta possibilidade.

Conforme a mesma anotação, as partes gozam de plena liberdade no

processo de incorporação da cláusula de Força Maior no seu contrato. Por

exemplo, os contraentes podem expressamente estabelecer no contrato os casos

em que o fornecedor, tendo como obrigação a obtenção de uma licença de

exportação, não pode invocar a alínea d) do n.º 3, caso não consiga executar a

obrigação. Contudo, ele (fornecedor) continuará a ter o direto de invocar outro

ou outros eventos da lista enunciada no mesmo número da cláusula-modelo.

Também é importante referir, que se a parte faltosa invocar um evento que

não se encontra na lista enunciada, esta ficará exonerada da responsabilidade

caso os três pressupostos do n.º 1 se verifiquem.

4. A party successfully invoking this Clause is, subject to paragraph 6 bellow, relieved from its duty

to perform its obligations under the contract from the time at which the impediment causes the failure to

perform if notice therefore is given without delay or, if notice therefore is not given without delay, from the

time at which notice therefore reaches the other party.

5. A party successfully invoking this Clause is, subject to paragraph 6 bellow, relieved from any

liability in damages or any other contractual remedy for breach of contract from the time indicated in

paragraph 4.

A parte que invoca a cláusula de Força Maior fica exonerada da sua

prestação desde o momento da ocorrência do impedimento. A parte faltosa deve

notificar a outra parte sobre a impossibilidade do cumprimento, bem como da

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ocorrência de tal impedimento num prazo razoável. Caso a notificação tenha sido

entregue ou enviada tardiamente, a parte faltosa apenas se liberta da

responsabilidade a partir da data do recebimento da notificação pela outra parte.

Esta condição deverá incentivar a parte que pretenda invocar a cláusula de Força

Maior a notificar a outra parte sem demora.

Os n.ºs 4 e 5 apresentam duas consequências jurídicas que provêm da

invocação da cláusula de Força Maior com sucesso: a suspensão do dever do

cumprimento da obrigação e a exoneração de indemnizar pelos danos

provenientes do não cumprimento.

6. Where the effect of the impediment or event invoked is temporary, the consequences set out under

paragraphs 4 and 5 above shall apply only insofar, to the extent that and as long as the impediment or the

listed event invoked impedes performance by the party invoking this Clause of its contractual duties. Where

this paragraph applies, the party invoking this Clause is under an obligation to notify the other party as

soon as the impediment or listed event ceases to impede performance of its contractual duties.

Caso o evento invocado seja temporário, a suspensão da obrigação de

cumprir e a exoneração da responsabilidade também se tornam temporários. A

parte que invocou a cláusula de Força Maior deverá notificar, sem demora, a

outra parte acerca da remoção do impedimento.

7. A party invoking this Clause is under an obligation to take all reasonable means to limit the effect

of the impediment or event invoked upon performance of its contractual duties.

A parte faltosa é obrigada a tomar todas as medidas necessárias e possíveis

para diminuir as consequências indesejadas dos danos provenientes pela falta do

cumprimento da sua obrigação.

8. Where the duration of the impediment invoked under paragraph 1 of this Clause or of the listed

event invoked under paragraph 3 of this Clause has the effect of substantially depriving either or both of

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the contracting parties of what they were reasonably entitled to expect under the contract, either party has

the right to terminate the contract by notification within a reasonable period to the other party.

9. Where paragraph 8 above applies and where either contracting party has, by reason of anything

done by another contracting party in the performance of the contract, derived a benefit before the

termination of the contract, the party deriving such a benefit shall be under a duty to pay to the other party

a sum of money equivalent to the value of such benefit.

Caso a duração do impedimento comece a afetar substancialmente os

interesses dos contraentes, cada parte tem o direito de terminar o contrato através

de uma notificação, dada à outra parte, num prazo razoável. Conforme a

anotação, entendeu-se que seria difícil determinar um período exato para a

rescisão do contrato, adequado a todos os sectores económicos e circunstâncias.

A própria anotação remete para a fórmula adotada pelo art. 25º da CISC, art.

7.3.1. dos Princípios UNIDROIT e art. 8:103 dos PDEC205.

A CISG não concede o direto de terminar o contrato à parte que não cumpriu

a obrigação. Conforme o disposto na Convenção de Viena, é a parte lesada quem

unicamente tem direito a escolher entre duas opções: pôr fim ao contrato ou

esperar até o impedimento cessar. Pelo contrário, a ICC FORCE MAJEURE

CLAUSE 2003 confere a faculdade de pôr fim ao contrato a ambos os contraentes.

De acordo com LIMA PINHEIRO, no caso de cessação do contrato, o n.º 9 da

cláusula-modelo da CCI “consagra uma solução próxima do direito português

(art. 795º/1 CC): cada parte tem o direito a conservar o que tiver recebido, mas

205 Cfr. art. 7.3.1 dos Princípios UNIDROIT, (Right to terminate the contract): “(1) A party may terminate the contract where the failure of the other party to perform an obligation under the contract amounts to a fundamental non-performance. (2) In determining whether a failure to perform an obligation amounts to a fundamental non-performance regard shall be had, in particular, to whether the non-performance substantially deprives the aggrieved party of what it was entitled to expect under the contract (…)”; “A non-performance of an obligation is fundamental to the contract if (…) the non-performance substantially deprives the aggrieved party of what it was entitled to expect under the contract (…)”.

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responde perante a outra nos termos do enriquecimento sem causa”206. O que é

completamente diferente do art. 81º/2 da CISG citado supra.

4.2 Conteúdo da cláusula de Força Maior

Conforme KONDRATYEVA207, na elaboração dos contratos internacionais

de compra e venda, as partes podem utilizar um dos três modelos possíveis da

cláusula de Força Maior: o modelo geral, o modelo aberto e o modelo fechado.

I. Modelo geral – as partes estabelecem uma definição geral de “força

maior”, utilizando a regra do art. 79º da CISC ou outra regra semelhante, sem

enumeração dos eventos considerados como força maior. Como não existe um

conceito universal da “força maior”, as partes podem escolher aquele que seja

mais adequado à natureza do negócio jurídico deles. Seguem os exemplos das

noções da “força maior” utilizados nos contratos internacionais:

“Force Majeure are contingencies caused by neither of the parties and which are

unforeseeable at the time of the concluding the Contract, uncontrollable and which render

the further performance obligations impossible…”

“On entend par force majeure tous les événéments independentes de la volonté des

parties, imprévisibles et inévitables, intervenes après l`entrée en vigueur du contrat et

qui empêchent l`exécution intégrale ou partielle des obligations dérivant de ce contrat.”

206 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, op. cit., pág. 238. 207 KONDRATYEVA E. M., op. cit., pág. 242.

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“Para efeitos do presente contrato, consideram-se de força maior todos os

acontecimentos alheios à vontade das partes, imprevisíveis, e que impeçam total

ou parcialmente a execução do instrumento…”208.

Assim, na definição de “força maior” sempre devem estar presentes os seus

pressupostos clássicos: imprevisibilidade, irresistibilidade e exterioridade à

vontade das partes. Portanto, no caso da ocorrência de um certo evento que

impossibilita a execução do contrato, a parte faltosa ficará exonerada da

responsabilidade apenas se provar que o impedimento que tornou a execução da

prestação impossível era imprevisível, irresistível, fora do seu controlo e que no

momento de celebração do contrato não poderia, razoavelmente, tomar em

consideração o impedimento, prevê-lo e evitá-lo, ou prever e evitar as suas

consequências. Por exemplo, no âmbito de um processo209 judicial onde se

discutia um litígio sobre a falta de cumprimento da obrigação do vendedor, não

foram reunidos todos os pressupostos do instituto jurídico de Força Maior. No

dia 30 de março de 2010, uma empresa francesa vendeu a uma empresa alemã

uma certa quantidade de sementes de colza (couve-nabiça). Constava no texto do

contrato que o vendedor era obrigado a fornecer um certificado específico que

comprovaria a sustentabilidade das referidas sementes para a produção de

biocombustível e bio líquidos. O certificado em causa era fundamental para o

comprador uma vez que lei alemã, transposta pela Diretiva europeia ENR210,

tinha exigido essa condição. Acontece que o vendedor não conseguiu

providenciar o referido documento, invocando a existência de um evento de

força maior e alegando que no momento do cumprimento da obrigação a Diretiva

ENR ainda não tinha sido transposta para o direito nacional francês. Afirmou

ainda que na altura de execução da prestação não havia nenhuma instituição

208 GRANZIERA, MARIA LUIZA MACHADO, op. cit., pág. 74. 209 Buyer (Germany) v. Seller (France), Award, CAP Case N.º 3150, 2011. Vide in Yearbook Commercial Arbitration 2014 – vol. 39; Kluwer Law International, págs. 65-76. 210 “Directive on the use of energy from renewable sources, 2009”.

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pública autorizada a passar o certificado de sustentabilidade aos bens em causa.

O Tribunal arbitral não encontrou a causa de força maior pelo motivo que

naquela mesma altura, duas outras empresas francesas conseguiram obter o

respetivo certificado através de uma entidade pública alemã. Como o obstáculo

não era irresistível, o vendedor ficou obrigado a indemnizar a outra parte pelos

danos ocorridos, por não cumprir a obrigação acessória da relação contratual.

Todavia, como o comprador não conseguiu demonstrar que tinha sofrido algum

prejuízo, o vendedor não foi responsabilizado.

Outro caso em que o Tribunal considerou que o instituto de força maior não

era aplicável por falta do pressuposto de irresistibilidade foi o caso de André&Cie.

S.A. v. Molino e Pastificio di Ponte San Giovanni S.p.A (Moliponte)211. No dia 9 de

dezembro de 1975 foi celebrado um contrato de compra e venda pelo qual o

André vendeu ao Moliponte 15.000 toneladas de milho. Conforme estipulado no

contrato, o pagamento tinha que ser realizado na moeda dólar americano. O

comprador alegou que não cumpriu a sua obrigação em virtude de lhe ter sido

impossível obter a moeda estrangeira, invocando assim a causa de força maior.

O tribunal decidiu que o pagamento era viável e que o comprador apenas tinha

que demonstrar à instituição financeira que estava a realizar uma compra

internacional, sendo que todos os bens comprados no estrangeiro seriam pagos

em moeda dólar americano. Portanto, neste caso em concreto, não se trata de

impossibilidade. A parte faltosa simplesmente não se esforçou em realizar a

prestação a que estava adstrita.

II. Modelo aberto – as partes incluem no contrato uma lista com os eventos

que constituem a força maior, deixando à parte faltosa a faculdade de invocar

211 Italy N.º 69, André&Cie. S.A. v. Molino e Pastificio di Ponte San Giovanni S.p.A (Moliponte), Court of Appeal of Perugia, 17 November, 1981. Vide in Yearbook Commercial Arbitration 1985 – vol. 10; Kluwer Law International, págs. 458-460.

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outros eventos, caso esta prove que esse evento apresenta todas as características

de força maior.

Exemplos da cláusula de Força Maior com a lista de eventos aberta:

1). “Strikes, lockouts, labour disturbances, anomalous working conditions,

accidents to machinery, delays en route, policies or restrictions of governments, including

restrictions on export or import or other licences, war (whether declared ou not), riot,

civil disturbances, fire, act of god, or any other contingency whatsoever beyond the

control of either party, to be sufficient excuse for any delay ou non-performance traceable

to any of these causes.”212

2). “10. RELIEFS

10.1 The following shall be considered as cases of relief if they intervene after the

formation of the Contract and impede its performance: industrial disputes and any other

circumstances (e. g., fire mobilization, requisition, embargo, currency restrictions,

insurrection, shortage of transport, general shortage of materials and restrictions in the

use of power) when such other circumstances are beyond the control of the parties.

10.2 The party wishing to claim relief by reason of any of the said circumstances

shall notify the other party in writing without delay on the intervention and on the

cessation thereof.

10.3 The effects of the said circumstances, so far as they affected the timely

performance of their obligations by the parties, are defined in Clauses 7 and 8. Save as

provided in paragraphs 7.5., 7.7., and 8.7., if, by reason of any of the said circumstances,

the performance of the Contract within a reasonable time becomes impossible, either party

212 Esta cláusula consta no processo de Baltimex Ltd v. Metallo Chemical Refining Ltd (1955) 2 Lloyd´s Rep. 438 at 446, e Sonat Offshore SA v. Amerada Hess Development Ltd and Texaco (Britain) Ltd (1988) 1 Lloyd´s Rep. 145 at 148; vide in SCHMITTHOFF, CLIVE M, op. cit., pág. 121.

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shall be entitled to terminate the Contract by notice in writing to the other party without

requiring the consent of any Court…”213

Frequentemente no texto da cláusula os contraentes dão maior importância a

alguns eventos considerados como força maior. Por regra, isto depende da sua

atividade e da natureza do próprio negócio jurídico. Por exemplo, os “litígios

industriais” na segunda cláusula citada supra.

III. Modelo fechado – as partes estipulam uma lista composta por certos

eventos que exoneram da responsabilidade contratual, no caso de

impossibilidade do cumprimento da obrigação. Neste caso, a parte faltosa apenas

pode invocar os eventos que se encontram expressamente indicados na cláusula

de Força Maior, mesmo na eventualidade da ocorrência de um outro evento que

preencha todos os pressupostos da força maior.

Os eventos de “força maior” frequentemente invocados na prática podem

ser reunidos em grupos, conforme apresentados na tabela infra:

Grupo Tipos dos eventos

Fenómenos

naturais

“Act of God”

Terremoto, tufão, tornado, tempestade, inundações, seca,

geada, desabamento, incêndio, descarga elétrica,

epidemias, etc.

Conflitos

armados

Atos militares, guerra (oficialmente declarada ou não),

atos de terrorismo, embargo, revoluções, rebeliões,

comoção civil, bloqueio, tomada de poder, mobilização

213 General Conditions For the Supply of (ECE) Plant and Machinery No. 188 (1953), vide in HONNOLD O. JOHN, op. cit., pág. 482.

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Conflitos laborais

Greve, lockout, boicote dos trabalhadores, etc.

Quebra de

máquinas e

acidentes

análogos

Avaria ou destruição das máquinas, equipamentos,

instalações; explosão, incêndio

Dificuldades com

transporte

Impossibilidade de usar caminho-de-ferro, porto,

aeroporto, transporte fluvial, autoestrada; encerramento

de canais marítimos; crise no abastecimento de matérias-

primas necessárias para produção; falta de combustível

ou energia elétrica

Atos políticos

“Act of principe”

Proibição de importação ou exportação; impossibilidade

de obter a licença; proibição de transferências bancárias;

nacionalização; restrições ao uso de energia; ações

legislativas, governamentais e judiciais

Os casos de impossibilidade legal (“Act of principe”) são muito frequentes na

vida real. Vejamos, por exemplo, o caso de Noble Resources v. Zhonghai

Cereals&Oils214. No dia 8 de abril de 2004, a Noble Resources Pte Ltd (empresa

cingapuriana) e Zhoushan Zhonghai Cereals&Oils Industry Co. Ltd (empresa

chinesa) celebraram um contrato de compra e venda de soja do Brasil. Conforme

o acordado, a Noble Resources tinha que entregar 35.000 toneladas de soja à

Zhoushan Zhonghai Cereals&Oils entre dia 7 e 24 de abril de 2004, na China.

Entretanto, durante a execução da prestação, o vendedor deparou com um

obstáculo. Ao inspecionar um dos carregamentos, a Administração Geral de

Supervisão e Inspeção de Qualidade e Quarentena da China encontrou soja

214 Noble Resources v. Zhonghai Cereals&Oils, SPC, 18 March 2009. Chinese Court Decision Summaries on Arbitration; Kluwer Law International.

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venenosa, o que resultou na emissão de um aviso urgente sobre a proibição

temporária de importação de soja do Brasil. Em junho, a proibição da importação

foi levantada. Como se constituiu o caso de força maior, a obrigação da parte

faltosa foi suspensa até a remoção do impedimento.

Outro caso é o da YPFB Andina S/A v. UNIVEN Petroquímica Ltda215. No dia

26 de julho de 2003, a Andina (empresa boliviana) e a UNIVEN (empresa

brasileira) celebraram um contrato de compra e venda, conforme o qual a Andina

era obrigada a fornecer à UNIVEN gás natural condensado durante um período

de três anos. Acontece, que no final de 2004 a Andina suspendeu o cumprimento

do contrato, invocando a cláusula de força maior. O Governo da Bolívia, para

assegurar a distribuição de gás natural dentro do próprio país, proibiu a sua

exportação. Em agosto de 2005, foi instaurado um processo no Tribunal Arbitral

do Uruguai. No âmbito do processo, árbitros declararam que a cláusula de força

maior foi validamente invocada, que ocorreu a impossibilidade superveniente e

que o vendedor era exonerado da sua prestação contratual. O Tribunal Superior

de Justiça, posteriormente, confirmou a decisão arbitral.

De acordo com SCHMITTHOFF216 existe outro modelo da cláusula de Força

Maior que é utilizado frequentemente. É o modelo da “two-stage force majeure

clause”, o qual prevê duas fases, respeitando os efeitos da força maior. Na

primeira fase ocorre a prorrogação do prazo por um determinado período do

tempo, por exemplo, por 30 dias. Passados os 30 dias, caso o impedimento que

impossibilitou o cumprimento da obrigação não tenha cessado, cada parte terá

direito a pôr fim ao contrato, sendo esta a segunda fase da “two-stage force majeure

clause”.

Existem contratos de compra e venda internacionais que incorporam

simultaneamente duas cláusulas de Força Maior no mesmo contrato. Por

exemplo, o contrato217 entre J. H. Vantol Ltd. v. Fairclough Dodd & Jones Ltd. (1957),

215 Brazil N.º 30, YPFB Andina S/A v. UNIVEN Petroquímica Ltda, Superior Court of Justice of Brazil, SEC N.º 4.837-EX (2010/0089053), 15 August 2012, in Albert Jan van den Berg (ed), Yearbook Commercial Arbitration 2013 – vol. 38; Kluwer Law International, págs. 341-343. 216 SCHMITTHOFF, CLIVE M, op. cit., pág. 122. 217 Idem.

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modelo 5a do London Oil e Tallow Trades Association, previa a entrega de óleo de

sementes de algodão do Egipto desde Alexandria a Rotterdam, durante os meses

de dezembro e janeiro. O referido contrato continha duas cláusulas de Força

Maior. A primeira cláusula estipulava que em caso de guerra ou de outro evento

semelhante que impossibilitasse a execução da prestação, o contrato deveria ser

terminado. A segunda, determinava que no caso de ocorrência de um outro

evento qualquer, o prazo para a suspensão do contrato estender-se-ia para um

período de dois meses. Acontece que o governo do Egipto veio a proibir a

exportação de bens desde 12 de dezembro a 3 de janeiro. Em virtude dessa

proibição, o vendedor não cumpriu a obrigação e o comprador recorreu ao

pagamento de indemnização. A parte faltosa invocou a segunda cláusula da força

maior no contrato, que estipulava a extensão do prazo para um período de dois

meses. The House of Lords deu razão ao vendedor, considerando que a respetiva

cláusula foi corretamente e devidamente aplicada.

Por último, é muito importante que as partes fixem as regras do

procedimento após a invocação, bem-sucedida, da cláusula de Força Maior.

Geralmente, a parte que se tornou impossibilitada de executar a prestação

deverá, sem demora, notificar a outra parte da ocorrência da causa de força

maior. No contrato, as partes poderão fixar um prazo para este efeito e também

os modos como a referida notificação deverá ser dada ao outro contraente.

Atualmente, os modos de notificação mais utilizados são: via internet, telefone,

fax, ou por escrito. Para além da notificação, alguns contratos podem obrigar a

parte faltosa a provar a veracidade da ocorrência do evento que constitui a força

maior. Para tal, esta terá que prestar prova do evento, o que poderá ser, a título

de exemplo, um ato normativo, uma declaração de um órgão competente ou uma

notícia de jornal.

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4.3 Efeitos jurídicos

O objetivo da cláusula de Força Maior é a exoneração da parte faltosa da

responsabilidade contratual no caso de impossibilidade de cumprimento, em

virtude da ocorrência de um evento imprevisível, irresistível e fora do seu

controlo. Caso o devedor seja liberado do cumprimento da obrigação devido a

uma causa de força maior, o credor não tem direito de exigir a realização da

prestação bem como o pagamento da indemnização pelos danos sofridos. Como

afirma STRENGER: “Força maior e responsabilidade são termos antônimos e

inconciliáveis”218. Uma vez ocorrido um evento que impossibilitou

definitivamente e totalmente a execução da obrigação, o contrato é

automaticamente resolvido no momento da verificação do impedimento.

Tratando-se de um contrato bilateral, a outra parte deixa de ser obrigada a

realizar a prestação a que está adstrita; se, no entretanto, a prestação tivesse sido

realizada, então terá direito à sua restituição. Porém, no caso de impossibilidade

parcial, o devedor apenas fica exonerado relativamente à parte da prestação que

se tornou impossível. O credor ainda pode ter interesse em aceitar a parte de

prestação que se manteve executável. Neste caso, o devedor fica obrigado de

cumprir o contrato parcialmente e a prestação do credor deverá ser

proporcionalmente diminuída.

Em regra geral, as partes costumam estipular um prazo para a duração da

causa que impossibilitou o cumprimento do contrato. Assim, o contrato fica

suspenso durante esse período. Cessando o obstáculo dentro do prazo

estipulado, a parte ficará novamente obrigada a executar a sua prestação. Porém,

se no prazo fixado o impedimento continuar a impossibilitar o cumprimento do

contrato, as partes podem prorrogar o prazo de duração para a força maior, caso

218 STRENGER, IRINEU, Responsabilidade Civil no direito interno e internacional, 2ª ed., revista, atualizada e ampliada do livro Reparação do dano em Direito Internacional Privado, São Paulo: LTr, 2000, pág. 91.

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a situação o permita, ou pôr fim ao contrato. GRANZIERA, neste âmbito, dá o

seguinte exemplo: “Verificada a ocorrência de casos de força maior…que

impeçam a execução deste contrato pelo prazo máximo de 60 dias, qualquer das

partes poderá solicitar seu cancelamento”219. Contudo, no caso de

impossibilidade temporária, o credor sempre tem direito de pôr fim ao contrato

caso o atraso no cumprimento seja fundamental para ele.

Afirma SANTOS JÚNIOR: “que todas as ordens jurídicas reconhecem que a

impossibilidade de cumprir, por eventos fora do controlo da parte

impossibilitada, gera a extinção do contrato, sem lhe acarretar qualquer

responsabilidade”220. Esta regra é idêntica para todos os direitos nacionais supra

examinados. No entanto, é importante repetir que o instituto da exoneração da

responsabilidade contratual deve ser aplicado de forma restrita e excecional.

4.4 Importância de inserção da Cláusula de Força

Maior no contrato

As cláusulas de Força Maior são usadas frequentemente no âmbito do

comércio internacional. Todavia, existem casos quando a referida cláusula não

está presente no contrato ou está indevidamente regulada, criando condições

desfavoráveis à parte que não cumpriu a obrigação na ocorrência de um

impedimento imprevisível, irresistível e fora do seu controlo. Conforme

SANTOS JÚNIOR: “a não inserção da cláusula no contrato de que se trate não

impedirá, pois, a possível relevância da impossibilidade de contratar, quando a

lei aplicável ao contrato seja uma lei estatal. Tal não retira, bem entendido, que

219 GRANZIERA, MARIA LUIZA MACHADO, op. cit., pág. 77. 220 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Especialização e Mobilidade Temática do Direito Comercial Internacional como Disciplina de Mestrado. Uma aplicação: Os Contratos Internacionais de Engenharia Global, Almedina, 2009, pág. 157.

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existam, nas diferentes ordens jurídicas, algumas diferenças de regime: seja ao

nível da delimitação do conceito de impossibilidade, seja ao nível das suas

consequências. A inserção no contrato de uma cláusula de force majeure,

expressando o sentido e o alcance do acordo das partes sobre a questão, parece

ser, pois, vantajosa”221. Defende o mesmo LIMA PINHEIRO: “naturalmente que

a inserção de uma cláusula de força maior poderá ser particularmente

recomendável quando o contrato for regido por um sistema nacional que assume

uma atitude restritiva nesta matéria”222. É verdade que a impossibilidade de

cumprimento não imputável ao devedor, a Force majeure, Frustration e a

Unmöglichkeit têm certas semelhanças e são da mesma família. NICHOLAS

pronunciou-se acerca desta semelhança da seguinte maneira: “superficial harmony

which merely mutes a deeper discord”223. Os sistemas nacionais que tratam a matéria

da impossibilidade do cumprimento, apenas à primeira vista aparentam ser

semelhantes. GRANZIERA considera que “além das divergências existentes

entre os vários sistemas jurídicos, a eventual insuficiência dos mesmos para

resolver os problemas referentes aos contratos internacionais de longa duração,

instituto relativamente recente nos moldes atuais, posterior à caracterização da

Força Maior nos direitos internos”224. Logo, o direito interno nem sempre é

suficiente para resolver a questão de força maior de acordo com o negócio

jurídico em causa. Por vezes, as regras legais gerais ou o direito internacional

privado também não podem dar respostas satisfatórias e claras quando se

levantam problemas relacionados com a impossibilidade de cumprimento.

Assim sendo, a inserção da cláusula típica de força maior é útil, vantajosa e

necessária. Tal deverá ser realizado no momento de formação do contrato, de

221 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Especialização e Mobilidade.., pág. 157. 222 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, op. cit., pág. 234. 223 NICHOLAS, BARRY, Force Majeure and Frustration, (AJCL UNCITRAL Symposium), vol. 27, 1979, págs. 231 e ss.; apud John O. Honnold, op. cit., pág. 476. 224 GRANZIERA, MARIA LUIZA MACHADO, Contratos Internacionais: Negociação e Renegociação, São Paulo: Ícone Editora, 1993, pág. 71.

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forma a estabelecer os direitos e deveres dos contraentes caso se venha a verificar

um evento imprevisível, irresistível e fora do controlo de ambas as partes.

No âmbito do comércio internacional, existem modelos de cláusulas de

Força Maior que resultam da prática negocial, da atividade de associações

empresariais e profissionais ou da atividade de instituições internacionais. No

caso de não utilização da ICC FORCE MAJEURE CLAUSE 2003 ou de qualquer

outro modelo existente, podem as próprias partes determinar, conforme o

princípio da autonomia da vontade, o conteúdo da cláusula que pretendem

inserir no seu contrato. É necessário tomar em consideração que a noção de “força

maior” não foi adotada de forma idêntica por todos os sistemas jurídicos

nacionais, portanto, para evitar problemas de interpretação no futuro, convém

definir, de forma exata, o conceito de “força maior” no texto do contrato225.

As partes devem evitar usar as cláusulas de Força Maior com conteúdo vago

e incerto. A Lei não obriga a que se invoque um modelo concreto da cláusula de

Força Maior, mas, sem dúvida, é necessário que as próprias partes tomem em

consideração no processo de elaboração do contrato que a referida cláusula seja

detalhada, compreensível e de fácil aplicação. A cláusula de Força Maior deve

apresentar três características importantes. Primeiro, deve especificar a definição

de “força maior” juntamente com a lista aberta de eventos que constituem a força

maior. De acordo com SANTOS JÚNIOR: “quando se adote um tal enunciado,

parece de toda a conveniência inserir uma menção de que o mesmo não é

exaustivo ou de que é meramente enunciativo e não limitativo”226. Segundo, no

seu texto deve incluir a condição expressa de que no caso de impossibilidade de

225 Pelas palavras do CHRISTOPH BRUNNER: “if a force majeure clause does not contain a definition (or no clear definition) of force majeure, in the absence of other indications, it will be reasonable to interpret it in the light of general standards. If a force majeure clause includes a list of force majeure events, such a list is usually meant to be non-exhaustive and aimed at illustration the general definition of the clause. If a particular event is covered by the list, it may alleviate the obligor´s burden of proof. The words of a catch-all provision that follows the enumeration of a list of specific events (e.g., “or any other causes beyond a Party´s control”) are, as a general rule, to be construed as having their natural and larger meaning, and are not limited to events ejusdem generis with those previously enumerated in the list”. Op. cit., pág. 387. 226 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Especialização e Mobilidade.., págs. 155-156.

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cumprimento da obrigação, não havendo culpa do devedor, este fica exonerado

da responsabilidade de pagar uma indemnização pelos danos provenientes do

seu não cumprimento. Terceiro, a cláusula deve estabelecer os efeitos jurídicos a

seguir, caso seja invocada com sucesso. As partes também podem mencionar no

texto da cláusula as regras do procedimento que se seguem após a sua invocação.

As disposições das cláusulas incorporadas no contrato apenas vinculam as

partes, caso estas concordem expressamente com o seu conteúdo. Conforme

STRENGER: “as regras relativas à força maior não são de ordem pública, as

partes podem limitar, ou até mesmo excluir o efeito exoneratório”227.

No processo de elaboração do contrato é muito importante a colaboração

entre ambas as partes. Trabalhar em conjunto ajuda a prevenir possíveis

problemas de interpretação e de aplicação desta cláusula, caso esta venha a ser

invocada. As partes devem agir de boa fé e conforme à Lei.

227 STRENGER, IRINEU, Responsabilidade Civil no direito interno e internacional, 2ª ed., revista, atualizada e ampliada do livro Reparação do dano em Direito Internacional Privado, São Paulo: LTr, 2000, pág. 91.

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5. Distinção entre a cláusula de Força maior e a cláusula de Hardship

5.1 Características de cláusula de Hardship

O mundo não é estável. As situações politicas, económicas e sociais estão em

permanente mutação. Portanto, as alterações das circunstâncias228

extraordinárias e imprevisíveis podem influenciar negativamente os contratos

internacionais de execução duradoura, tornando a prestação de uma das partes

substancialmente onerosa em relação ao previsto no momento da celebração do

contrato. No âmbito do Direito Internacional Privado, para regular esta situação,

as partes poderão recorrer à aplicação da chamada cláusula de hardship, criada

pela prática contratual internacional. O referido instrumento jurídico, também

como a cláusula de Força Maior, utiliza-se com frequência nos contratos de longa

duração.

De acordo com LIMA PINHEIRO: “a cláusula de hardship refere-se ao caso

em que uma alteração de circunstâncias modifica sensivelmente o equilíbrio

económico do contrato, tornando a execução particularmente onerosa para uma

das partes, e estabelece, para este caso, uma adaptação do contrato”229. Segundo

SANTOS JÚNIOR: “com tal cláusula visa-se regular é o de uma alteração das

circunstâncias ou o desconhecimento de circunstâncias, que conduzem a uma

subversão económica do contrato, afetando gravemente o equilíbrio das

prestações, seja pelo facto de o custo de execução do contrato ter aumentado, seja

pelo facto de o valor da contraprestação ter diminuído. Não está, pois em causa,

228 O instituto de alteração das circunstâncias ganhou relevância jurídica no séc. XII através de Bártolo com a cláusula rebus sic standibus, conforme à qual os contratos apenas se executavam caso as condições iniciais (acordadas pelas partes) se mantivessem até à conclusão do contrato. Ao longo dos tempos, nos sistemas jurídicos nacionais, esta doutrina era apoiada e abandonada, o que provocou a distinção entre os direitos nacionais, o que persiste até hoje. 229 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, op. cit., pág. 238.

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um qualquer acontecimento que provoque um desequilíbrio contratual,

relativamente ao inicialmente estabelecido (ou dado por assente) no momento da

celebração do contrato: há-de tratar-se de um acontecimento tal que provoque

uma verdadeira subversão económica do contrato, que afete gravemente aquele

equilíbrio. Pense-se, p. ex., numa forte e inesperada desvalorização da moeda, no

súbito e desmesurado acréscimo do preço do petróleo ou de matérias-primas, em

fenómenos inusitados de nacionalização de empresas…”230. Conforme ZENEDIN

GLITZ: “o termo hardship significa na prática contratual internacional a alteração

de fatores políticos, económicos, financeiros, legais ou tecnológicos que causam

algum tipo de dano económico aos contraentes. Tais eventos têm, em comum, a

possibilidade de poder alterar fundamentalmente as condições económicas em

que se desenvolvem os contratos”231.

Em regra, a ausência da cláusula de hardship no contrato remete o caso ao

direito aplicável ao contrato. Tendo em consideração que nem todos os sistemas

nacionais232 preveem a possibilidade de adaptação do contrato, em virtude da

alteração das circunstâncias, a estipulação deste instituto jurídico é recomendável

e vantajosa. A maioria dos ordenamentos jurídicos internos admite que conforme

o princípio da autonomia da vontade, as partes, através das cláusulas contratuais,

podem determinar os seus efeitos jurídicos no âmbito dos contratos

obrigacionais. Destaca LIMA PINHEIRO: “deve, pois, atender-se em primeira

linha ao disposto nas cláusulas do contrato e só subsidiariamente recorrer ao

regime legal”233. Portanto, para evitar consequências indesejáveis é importante

que no momento da celebração do negócio as partem insiram a cláusula de

hardship no seu contrato. Aconselha SANTOS JÚNIOR: “indicar no contrato, de

230 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Especialização e Mobilidade.., pág. 151. 231 GLITZ, ZEVEDIN FREDERICO EDUARDO, Contrato e sua conservação: lesão e cláusula de hardship. Curitiba: Juruá Editora, 2008, pág. 175. 232 Por exemplo, os sistemas jurídicos romano-germânicos admitem que contrato poderá ser adaptado em caso de uma alteração anormal das circunstâncias. Já o Direito inglês pode levantar problemas, caso este se aplique à resolução do litígio. 233 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, op. cit., pág. 241.

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modo o mais completo possível, as condições que desencadeiam a aplicação

desta cláusula, bem como o modo como decorrerá o processo negocial tendente

à adaptação do contrato”234.

O objetivo da cláusula de hardship é a renegociação do contrato com a

finalidade de equilibrar as prestações das partes. A modificação ou adaptação do

contrato pressupõe repor, de acordo com critério de razoabilidade, o equilíbrio

económico contratual que foi quebrado pela alteração substancial das

circunstâncias. É importante referir que pelo princípio do favor negotii, a

modificação do contrato é sempre preferível pelo Direito do que a sua resolução.

Esta última apenas deve ocorrer em caso de falta de acordo entre as partes, depois

de serem analisadas todas as possibilidades de adaptar o contrato às novas

condições. Por isso, a cláusula de hardship235 deve ser aplicada e interpretada

234 SANTOS JÚNIOR, EDUARDO DOS, Especialização e Mobilidade.., pág. 151. 235 I - O exemplo da cláusula de hardship que foi extraído de um contrato de fornecimento de gás natural: “ Contract de Vente de Gaz du Gisement EKOFISK, conclu en 1973. Section 13 – 9- HARDSHIP When entering into this agreement the parties contemplate that the effects and/or consequences of this Agreement will not result in economic conditions which are substantial hardship to any of them, provided that they will act in accordance with sound marketing and efficient operating practices. They therefore agree on the following: Substantial hardship shall mean if at any time or from time to time during the term of this Agreement without default of the party concerned there is the occurrence of an intervening event or change of circumstances beyond the said party´s control when acting as a reasonable and prudent operator such that the consequences and effects of which are fundamentally different from what was contemplated by the parties at the time of entering into this Agreement (such as without limitation the economic consequences and effects of a novel economically available source of energy), which consequences and effects place said party in the situation that then and for the foreseeable future all annual cost (including, without limitation, depreciation and interest) associated with or related to the processed gas which is the subject of this Agreement exceed the annual proceeds derived from sale of sais gas. Notwithstanding the effect of other relieving or adjusting provisions of this Agreement the party claiming that it is placed in such position as afore-said may by notice request the other for a meeting to determine if said occurrence has happened and if so to agree upon what, if any, adjustment in the price then in force under this Agreement and/or other terms and conditions hereof is justified in the circumstances in fairness to the parties to alleviate said consequences and effects of said occurrence. Price control by the Government of the state of the relevant Buyer(s) affecting the price of natural gas in the market shall not be considered to constitute substantial hardship”. Esta cláusula, depois de efetuadas adaptações necessárias, poderá ser utilizada em outros tipos de contratos. PUELINCKX, ALFONS H., op. cit., págs. 53-54. II - O exemplo seguinte é de um contrato de execução duradoura de venda de minério e contém regras que permitem a revisão de preços, no caso de alterações das circunstâncias económicas na economia mundial e/ou no país vendedor:

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restritivamente apenas aos casos de excessiva onerosidade. Assim, deverão ser

excluídas quaisquer outras alterações das circunstâncias do contrato que poderão

conduzir à sua modificação ou resolução.

A CCI propõe um modelo geral de cláusula de hardship (ICC HARDSHIP

CLAUSE 2003)236 que pode ser adaptada a qualquer contrato. Conforme às

anotações237, a referida cláusula aplica-se aos contratos nos quais esta se encontra

expressamente incorporada ou referenciada. Salvo acordo das partes em

contrário, qualquer tipo de referência num contrato à ICC HARDSHIP CLAUSE

2003, será considerada como motivo para invocação desta cláusula.

O texto da ICC HARDSHIP CLAUSE 2003238 prevê o seguinte:

“The Effective Price as defined in Clause is intended to represent the far value of the (ore) and shall be opened for review by the parties, if requested by either party, as at (date) and thereafter every (number) years. If prior to any such review either party considers that there have arisen changes in (seller country) or foreign economic or monetary conditions which are not compensated for in the Effective Price and/or changes in other similar long-term (ore) contracts which render the Effective Price no longer realistic, such party may propose in writing to the other party the re-determination of the pertinent factor or factors making up the Effective Price as described under clause and the parties shall the proceed to discussions within 30 days for the purpose of determining a mutually satisfactory modification of such actor or factors”. CASQUINHA, PEDRO MIGUEL VIEIRA, Cláusulas de Hardship; Relatório de mestrado para a cadeira de Direito Comercial V apresentado na FDUL, Lisboa, 2003, pág. 38. 236 Disponível em https://cdn.iccwbo.org/content/uploads/sites/3/2017/02/ICC-Force-Majeure-Hardship-Clause.pdf 237 Idem. 238 A cláusula-modelo é inspirada nos arts. 6.2.1 e 6.2.2 dos Princípios do UNIDROIT: Art. 6.2.1 (CONTRACT TO BE OBSERVED): Where the performance of a contract becomes more onerous for one of the parties, that party is nevertheless bound to perform its obligations subject to the following provisions on hardship. Art. 6.2.2 (DEFINITION OF HARDSHIP): There is hardship where the occurrence of events fundamentally alters the equilibrium of the contract either because the cost of a party's performance has increased or because the value of the performance a party receives has diminished, and (a) the events occur or become known to the disadvantaged party after the conclusion of the contract; (b) the events could not reasonably have been taken into account by the disadvantaged party at the time of the conclusion of the contract; (c) the events are beyond the control of the disadvantaged party; and (d) the risk of the events was not assumed by the disadvantaged party.

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1). A party to a contract is bound to perform its contractual duties even if events have rendered

performance more onerous than could reasonably have been anticipated at the time of the conclusion of the

contract.

2). Notwithstanding paragraph 1 of this Clause, where a party to a contract proves that:

a) the continued performance of its contractual duties has become excessively onerous due to an

event beyond its reasonable control which it could not reasonably have been expected to have taken into

account at the time of the conclusion of the contract; and that

b) it could not reasonably have avoided or overcome the event or its consequences,

the parties are bound, within a reasonable time of the invocation of this Clause, to negotiate alternative

contractual terms which reasonably allow for the consequences of the event.

3). Where paragraph 2 of this Clause applies, but where alternative contractual terms which

reasonably allow for the consequences of the event are not agreed by the other party to the contract as

provided in that paragraph, the party invoking this Clause is entitled to termination of the contract.

É certo que os contratos legalmente celebrados devem ser cumpridos,

mesmo nos casos em que a prestação de uma das partes se torne mais onerosa

após a celebração do contrato. Está em causa o princípio fundamental do Direito

Civil pacta sunt servanda, o qual já foi mencionado supra. Como a aplicação deste

princípio oferece aos contraentes uma certa segurança jurídica e estabilidade nos

seus negócios, bem como a confiança no Direito, este não deve ser violado239.

Contudo, nos casos de impossibilidade de cumprimento e de excessiva

onerosidade, o respetivo princípio, poderá, excecionalmente, ser omitido. Assim,

a parte afetada deverá provar que a prestação a que está adstrita se tornou

excessivamente onerosa, devido a um evento que ocorreu fora do seu controlo

razoável; e que não era razoável esperar que esta o tomasse em consideração no

239 Cfr. SANTOS JÚNIOR: “Não poderia ser de outro modo ou o contrato mesmo deixaria de ser o instrumento fundamental da dinâmica da vida jurídica, sendo bem certo que não se vê que outro se lhe pudesse substituir.” Vide in Santos Júnior, Eduardo dos, Especialização e Mobilidade.., pág. 151.

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momento da celebração do contrato; e que não era razoável que esta pudesse

prever ou ultrapassar o evento, ou as suas consequências.

O evento que causa a excessiva onerosidade pode ocorrer antes da data da

celebração do contrato. Neste caso, a parte que invoca a cláusula de hardship deve

desconhecer absolutamente a ocorrência desse evento, ou não o deveria conhecer

no momento da conclusão do contrato.

Conforme a cláusula-modelo, as partes devem renegociar os termos do

contrato para reequilibrar as prestações, num prazo razoável após a invocação

dessa cláusula. Não existe nenhuma referência expressa no texto citado a que o

processo de renegociação tenha que ser submetido ao tribunal como, por

exemplo, na alínea 3 do art. 6.2.3 dos Princípios UNIDROIT, conforme à qual no

caso de falta de acordo entre as partes, no prazo razoável, qualquer um dos

contraentes pode recorrer ao tribunal240. De acordo com as anotações, a ICC

HARDSHIP CLAUSE 2003 deve encorajar as partes a renegociar o contrato,

encontrando uma solução justa e conveniente, sem a mediação de terceiro. Sem

dúvida, durante o processo de modificação das condições do contrato, as partes

são obrigadas a proceder segundo o princípio da boa fé e conforme à Lei.

De acordo com o n.º 3 da citada cláusula-modelo, caso a outra parte não

concordar com os novos termos de contrato oferecidos no processo de

renegociação, a parte cuja prestação se tornou excessivamente onerosa poderá

terminar o contrato sem recorrer à via judicial. Todavia, na falta de proposta de

renegociação ou no caso de recusa de negociar, a questão em causa poderá ser

submetida ao tribunal arbitral. Na falta de convenção arbitral, o litígio terá que

240 Art. 6.2.3 (EFFECTS OF HARDSHIP): (1) In case of hardship the disadvantaged party is entitled to request renegotiations. The request shall be made without undue delay and shall indicate the grounds on which it is based. (2) The request for renegotiation does not in itself entitle the disadvantaged party to withhold performance. (3) Upon failure to reach agreement within a reasonable time either party may resort to the court. (4) If the court finds hardship it may, if reasonable, (a) terminate the contract at a date and on terms to be fixed; or (b) adapt the contract with a view to restoring its equilibrium.

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ser resolvido pelo tribunal estatal. Pelas palavras de LIMA PINHEIRO: “na

verdade, porém, em muitos contratos, designadamente contratos de longa

duração, será conveniente estipular que a adaptação do contrato seja feita por

árbitros na falta de acordo das partes e uma cláusula de arbitragem que não

contenha esta previsão específica pode não ser suficiente para o efeito”241.

Entretanto, isto apenas será possível caso o Direito nacional aplicável permita

que os tribunais arbitrais possam proceder à adaptação do contrato. A validade

e eficácia jurídica da cláusula de hardship inserida num contrato internacional

depende, de modo geral, do Direito aplicável ao contrato242.

Por conseguinte, a cláusula de hardship é um instrumento de conservação da

relação contratual por meio da sua adaptação, cuja finalidade consiste em obrigar

as partes a renegociar os termos de contrato apos à ocorrência de um evento

imprevisível e exterior à vontade dos contraentes, o qual tornou uma das

prestações excessivamente onerosa, provocando assim um desequilíbrio

substancial no contrato.

A ICC HARDSHIP CLAUSE 2003 confere à parte afetada o direito de

resolução do contrato caso as partes não consigam chegar a um acordo a respeito

das novas condições no contrato. Entretanto, na prática, a maioria dos contratos

internacionais de execução duradoura contêm uma cláusula de arbitragem,

conforme à qual, na falta de acordo entre as partes, a adaptação e/ou a resolução

do contrato deverá ser realizada pelo tribunal arbitral.

241 PINHEIRO, LUÍS DE LIMA, op. cit., pág. 244. 242 REITHMANN e MARTINY, Internacionales Vertragsrecht – Das internationale Privatrecht der Schuldvertrage, 6ª ed., Colónia, 2004 apud LIMA PINHEIRO, op. cit., pág. 245.

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5.2 Cláusula de Força Maior vs Cláusula de Hardship

Como a cláusula de Força Maior e a cláusula de Hardship apresentam

algumas semelhanças, o que na prática poderá suscitar problemas no caso da sua

aplicação, é imprescindível fazer a distinção entre estes dois instrumentos

jurídicos.

No que toca às semelhanças entre estas cláusulas: ambas são exceções do

princípio pacta sunt servanda; ambas são aplicadas no caso da ocorrência de um

evento imprevisível, irresistível e exterior à vontade das partes; ambas provocam

divergências no âmbito dos sistemas nacionais, sendo necessariamente

recomendáveis para a regulação no contrato; e a aplicação de ambas decorre de

uma manifestação da vontade das partes. Desta forma, acabam as semelhanças e

começam as distinções.

A principal distinção entre os dois instrumentos jurídicos em análise é que

no caso de Força Maior a execução da prestação de uma das partes torna-se

absolutamente impossível de realizar, quando no caso de Hardship a execução se

torna excessivamente onerosa. Logo, a prestação no caso de Hardship continua a

ser possível, mas passa a ser mais difícil e desfavorável para uma das partes, uma

vez que o equilíbrio do contrato foi perturbado em virtude de uma alteração

económica extraordinária. Pelas palavras do ZENEDIN GILTZ: “a distinção entre

as duas situações seria o facto de que o contraente, na hipótese de hardship, não

estaria impedido de cumprir a obrigação, mas, se o fizesse, estaria assumindo

prejuízo exacerbado”243.

O fim que cada uma das respetivas cláusulas visa também é distinto. A

cláusula de Força Maior prevê a exoneração da obrigação contratual da parte

faltosa em virtude de ocorrência de um impedimento imprevisível, irresistível e

243 GLITZ, ZEVEDIN FREDERICO EDUARDO, op. cit., pág. 160.

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fora do seu controlo, que venha impossibilitar absolutamente o cumprimento da

obrigação.

O objetivo da cláusula de Hardship é obrigar os contraentes a renegociar os

termos contratuais que tinham sido fundamentalmente alterados devido a um

evento imprevisível e inevitável que ocorreu durante a execução do contrato.

Durante o período de renegociação, a parte afetada é obrigada de continuar a

executar o contrato até que este seja adaptado ou resolvido. De acordo com

ZENEDIN GLITZ: “a negociação não seria, portanto, automática nem conduzira

necessariamente à adaptação ou extinção do contrato. Deve-se salientar ainda,

que a invocação da hardship não daria direito à suspensão automática da execução

do contrato”244. Todavia, conforme ALEXANDRA CAIADO: “Em função do

princípio da boa fé que deve pautar a atuação das partes no comercio

internacional (art. 1.7.1 dos Princípios UNIDROIT), terá de ser admitir a

suspensão da execução do contrato e a correspondente paralisação dos

mecanismos do incumprimento, desde que sem essa suspensão a parte afetada

não visse qualquer interesse no recurso ao mecanismo do hardship, aumentasse

ainda mais aquele desequilíbrio contratual ou se tal continuação do

cumprimento lhe acarretasse efetivamente danos, tornando-se aqui então

verdadeiramente parte lesada”245.

Quanto aos efeitos jurídicos da cláusula de Força Maior, em regra, o contrato

fica automaticamente suspenso por um determinado período de tempo,

estipulado no texto do contrato pelas próprias partes. Se durante o prazo de

suspensão o impedimento for removido, retoma-se a execução do contrato. Caso

contrário, rescinde-se o contrato.

Os efeitos jurídicos da cláusula de Hardship são mais complexos. Conforme

o art. 6.2.3 dos Princípios de UNIDROIT, na falta de acordo entre as partes a

244 GLITZ, ZEVEDIN FREDERICO EDUARDO, op. cit., pág. 168. Ver também art. 6.2.3(2) dos Princípios de UNIDROIT. 245 ALEXANDRA CAIADO, Op. cit., pág. 36.

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respeito das novas condições no contrato, a questão deverá ser submetida ao

tribunal competente. Uma vez constatada a onerosidade excessiva, o órgão

jurisdicional pode resolver o contrato ou adaptá-lo às novas circunstâncias.

Entretanto, no caso de aplicação da cláusula-modelo da CCI, caso os contraentes

não alcancem um acordo, a parte afetada poderá resolver o contrato sem a

intervenção de um terceiro.

A própria estrutura das respetivas cláusulas também é diferente. A cláusula

de Força Maior caracteriza-se pela enumeração de determinados eventos

caracterizadores de força maior. Normalmente, o elenco de eventos causadores

da força maior é aberto, o que faculta à parte faltosa a possibilidade de invocar

outros acontecimentos, desde que estes preencham os requisitos necessários.

Segundo ZENEDIN GLITZ246, a cláusula de hardship é, em regra geral,

constituída por dois elementos distintos: “a definição do que constitui um evento

de hardship e o método por meio do qual será realizada a adaptação do contrato”.

A doutrina adverte que no contrato será possível a exemplificação de eventos que

possam ser entendidos como hardship. Conforme OLAVO BAPTISTA, ao

contrário da força maior, os eventos de hardship “não são devidos a causas

naturais ou a factos de terceiros, mas a movimentos amplos no ambiente do

contrato, especialmente os da economia”247. ZENEDIN GLITZ observa que: “a

cláusula de hardship permitiria que os contraentes estabelecem quais seriam os

eventos que caracterizariam sua incidência, podendo, inclusive, excluir

expressamente alguns. Permitiria, ainda, estabelecer-se detalhadamente a

constatação do evento e os procedimentos para a revisão”248. No entanto, no

entender de VIEIRA CASQUINHA: “a cláusula de Hardship na sua forma de

previsão caracteriza-se por deter uma formula extremamente ampla, ou seja, não

existe a necessidade duma enumeração exaustiva das circunstancias causadoras

246 GLITZ, ZEVEDIN FREDERICO EDUARDO, op. cit., pág. 161. 247 BAPTISTA, LUIZ OLAVO, Dos Contratos Internacionais: uma visão teórica e prática, São Paulo: Saraiva, 1994, pág. 146. 248 GLITZ, ZEVEDIN FREDERICO EDUARDO, op. cit., pág. 167.

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de hardship, visa portanto, apenas uma alteração da situação geral, tendo como

fim último a manutenção do equilíbrio global entre prestações”249. Acrescenta o

mesmo autor: “ao contrário das cláusulas de Força Maior, os fenómenos

enunciados das cláusulas de Hardship têm essencialmente como origem eventos

de origem económica, que por sua vez não podem ser, como as cláusulas de Força

Maior, alvo de minuciosas previsões por serem na maior parte das vezes

totalmente imprevisíveis”250.

Assim, chega-se à conclusão que a existência de um elenco de determinados

acontecimentos causadores de hardship não é necessário. Apenas é necessário que

as alterações das circunstâncias que provocam o desequilíbrio substancial nas

prestações contratuais sejam de natureza económica.

É curioso que na prática existem casos em que a parte que não cumpriu a

obrigação, em virtude de esta tornar-se apenas mais difícil ou onerosa, pode

tentar recorrer à aplicação de cláusula de Força Maior e pedir a exoneração. Por

isso, é muito importante saber distinguir o instituto de Força Maior do instituto

de Hardship. Por exemplo, no caso Manufacturer v Buyer251 aconteceu uma situação

semelhante. A empresa holandesa comprometeu-se a vender à empresa turca

uma fábrica para produção de certos bens para o mercado turco. No contrato

ficou expressamente estipulado que no caso de falta de pagamento o vendedor

teria direito de resolver o contrato, podendo pedir uma indemnização pelos

danos causados pelo não cumprimento de outro contraente. O referido contrato

continha a cláusula de Força Maior com o seguinte conteúdo:

“ Grounds for Relief:

The following circumstances are ground for relief if they intervene after the conclusion of

the contract and hinder its performance: labour disputes and all circumstances

249 CASQUINHA, PEDRO MIGUEL VIEIRA, op. cit., pág. 6. 250 Ibidem, pág. 9. 251 Manufacturer v Buyer, Final Award, ICC Case N.º 8486, 1996, in Albert Jan van den Berg (ed), Yearbook Commercial Arbitration 1999 – vol. 24; Kluwer Law International, págs. 162-173.

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independent of the will of the parties, such as fire, mobilization, expropriation, embargo,

prohibition to transfer currency, riots, lack of means of transportation, generalized lack

of supplies, restrictions on energy.”

As partes também concordaram que qualquer litígio proveniente da relação

contratual seria resolvido pelo Tribunal Arbitral na Holanda e que se aplicaria a

lei do referido país em caso de litígio.

O comprador era obrigado a pagar 5% do preço acordado como

adiantamento e abrir um crédito documentário irrevogável dois meses antes da

entrega do bem. Por motivos de dificuldades financeiras, a empresa turca pagou

apenas 3% do adiantamento e não abriu o crédito documentário no prazo

estipulado. Por essa razão, a empresa holandesa ofereceu-se a entregar apenas

metade das instalações por metade do preço acordado. O comprador fez a

proposta de reduzir o preço até 60%, o que foi recusado pelo vendedor. Depois

da tentativa de renegociar os termos do contrato (ajustar o preço do contrato em

virtude de alteração das circunstâncias) ter sido frustrada, a empresa holandesa

começou o processo arbitral. O vendedor reclamou o pagamento do preço pela

parte da fábrica que não podia ser vendida a outro comprador, uma vez que foi

planeada e construída especificamente para o mercado turco, bem como uma

indemnização pelos danos sofridos pelo não cumprimento da obrigação. O

comprador contestou, alegando que se encontrava exonerado da sua obrigação

em virtude da verificação de queda drástica do preço do bem (objeto do contrato)

no mercado turco, o que constituía uma causa de hardship. O réu reclamou ainda

o reembolso do adiantamento que pagou. O tribunal arbitral considerou que os

pressupostos para a exoneração do comprador da prestação, devido à ocorrência

de um impedimento imprevisível, irresistível e alheio à sua vontade, não foram

verificados e que as circunstâncias no mercado turco, alegadas pelo réu, não o

exoneravam do cumprimento da obrigação. Essas alterações das circunstâncias

estavam dentro de esfera do risco do comprador e não justificaram a resolução

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do contrato. O tribunal arbitral decidiu que conforme a lei holandesa (art. 6:258

do CC holandês) e os Princípios do UNIDROIT, os pressupostos de hardship,

neste caso, também não se preencheram. Portanto, o tribunal arbitral decidiu a

favor de empresa holandesa, satisfazendo a pretensão do autor. O tribunal

declarou ainda que perante o incumprimento do comprador, o vendedor teria

pleno direito de pôr fim ao contrato em causa.

Portanto, o instituto de Força Maior e o instituto de Hardship apresentam

algumas semelhanças e, por vezes, não é fácil determinar as fronteiras entre os

casos de Força Maior e de Hardship. No entanto, o objetivo, o âmbito de aplicação

e os efeitos jurídicos dos referidos instrumentos jurídicos são completamente

distintos, de forma que estes nunca se devem ser confundidos.

Porém, sendo a cláusula de Força Maior e a cláusula de Hardship mecanismos

jurídicos aplicáveis a situações completamente distintas, ambas as cláusulas

podem ser incorporadas no mesmo contrato, caso as partes assim pretendam. As

referidas cláusulas aparecem, principalmente, nos contratos internacionais de

execução duradora.

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Conclusão

O contrato internacional é um veículo jurídico do comércio internacional que

constitui, regula e extingue as relações jurídicas patrimoniais entre os sujeitos que

estão ligados aos sistemas jurídicos diferentes. Em regra, independentemente dos

fatores exteriores, todos os contratos celebrados dentro dos limites de lei devem

ser pontualmente cumpridos, sob pena de responsabilidade civil. No entanto, os

sistemas jurídicos nacionais supra analisados admitem, com as respetivas

distinções, que há casos excecionais quando a parte faltosa fica exonerada da

responsabilidade de indemnizar o credor, em virtude da ocorrência de um

evento que torna a obrigação impossível de ser realizada. Estes são chamados

casos de força maior, devendo sempre apresentar, cumulativamente, as três

características seguintes: a imprevisibilidade, a irresistibilidade e a exterioridade

da vontade dos contraentes. Portanto, o devedor é obrigado a provar que o não

cumprimento do contrato se verificou em virtude da ocorrência de um

acontecimento imprevisível, irresistível e alheio à sua vontade. Estão em causa

os eventos tais como: guerra, atos de terrorismo, revoluções, mobilização,

embargo, proibições de exportação e importação, nacionalização, explosão,

incêndio, greves, catástrofes naturais, epidemias graves, etc.

O artigo 79º da Convenção da ONU sobre os Contratos de Compra e Venda

Internacional de Mercadorias, o artigo 7.1.7 dos Princípios do UNIDROIT dos

Contratos Comerciais Internacionais, o artigo 8:108 dos Princípios de Direito

Europeu dos Contratos e o ponto III. – 3:104 do “Projeto de Quadro Comum de

Referência” também preveem expressamente a possibilidade de exoneração da

obrigação do devedor nos casos de impossibilidade de cumprimento, caso sejam

preenchidos todos os requisitos necessários. No entanto, conforme a doutrina e

a jurisprudência, o instituto da exoneração da responsabilidade é uma exceção

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do princípio pacta sunt servanda, portanto, este apenas deverá ser aplicado

restritivamente e nos casos excecionais.

Uma vez que o direito nacional nem sempre é suficiente para resolver a

questão de força maior e como nos ordenamentos jurídicos internos não existe

uma regulação universal para os casos de impossibilidade de cumprimento da

obrigação contratual, em virtude da ocorrência de eventos imprevisíveis,

irresistíveis e que estão fora do controlo das partes, os contraentes consideram

necessário incluir no texto do seu contrato uma cláusula de Força maior que os

poderá, posteriormente, exonerar de responsabilidade contratual e garantir uma

segurança e certeza jurídica. Assim sendo, a inserção da cláusula de Força Maior

é útil, vantajosa e necessária.

No âmbito do comércio internacional existem modelos de cláusulas de Força

Maior que resultam da prática negocial, da atividade de associações empresariais

e profissionais ou da atividade de instituições internacionais. No caso de não

utilização da ICC FORCE MAJEURE CLAUSE 2003 ou de qualquer outro modelo

existente, podem as próprias partes determinar, conforme o princípio da

autonomia da vontade, o conteúdo da cláusula que pretendem inserir no seu

contrato. No entanto, as partes devem evitar usar as cláusulas de Força Maior

com conteúdo vago e incerto. No processo de formação do contrato é necessário

que ambas as partes tomem em consideração que a referida cláusula deve ser

detalhada, compreensível e de fácil aplicação na prática. A cláusula de Força

Maior deve apresentar três características importantes: primeiro, deve especificar

a definição de “força maior” juntamente com a lista aberta de eventos que

constituem a força maior; segundo, no seu texto deve incluir a condição expressa

de que no caso de impossibilidade de cumprimento da obrigação, não havendo

culpa do devedor, este fica exonerado da responsabilidade de indemnizar o

credor pelos danos provenientes da não realização da prestação; terceiro, a

referida cláusula deve estabelecer os efeitos jurídicos caso seja invocada com

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sucesso. As partes também podem mencionar no texto da cláusula as regras do

procedimento que se seguem após a sua invocação.

É importante referir que no processo de elaboração do contrato a

colaboração entre os contraentes é muito importante. Trabalhar em conjunto, agir

de boa fé e conforme à Lei ajuda a prevenir possíveis problemas de interpretação

e aplicação da cláusula de Força Maior no futuro.

O objetivo da cláusula de Força Maior é a exoneração da parte faltosa da

responsabilidade contratual no caso de verificação de um impedimento que

constitui a força maior. A referida cláusula é considerada como um mecanismo

jurídico de defesa contra o credor. Após a ocorrência do evento de força maior o

credor deixa de ter direito a exigir a realização da prestação, bem como o

pagamento da indemnização por perdas e danos provenientes do não

cumprimento por parte de devedor. Uma vez ocorrido um evento que

impossibilitou definitivamente e totalmente a execução da obrigação, o contrato

é considerado automaticamente resolvido desde do momento da verificação do

impedimento. Nos contratos bilaterais, a outra parte deixa de ser obrigada a

realizar a sua prestação. No entanto, caso a prestação tenha sido realizada, o

credor terá direito à sua restituição.

No caso de impossibilidade parcial, o devedor apenas fica exonerado

relativamente à parte da prestação que se tornou impossível. Contudo, o credor

ainda pode ter interesse em aceitar a parte da prestação que se manteve

executável. Nesse caso, o devedor fica obrigado a cumprir o contrato

parcialmente e a prestação do credor deverá ser proporcionalmente diminuída.

Por último, como o instrumento jurídico de Força Maior e o instrumento

jurídico de Hardship apresentam algumas semelhanças e porque na prática, em

alguns casos, é difícil estabelecer uma fronteira precisa entre os referidos

institutos, torna-se imprescindível saber distingui-los. A principal distinção entre

os referidos mecanismos jurídicos é que no caso de Força Maior a realização da

prestação de uma das partes torna-se absolutamente impossível; já no caso de

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Hardship, a execução continua a ser possível, tornando-se excessivamente

onerosa em virtude de uma alteração extraordinária das circunstâncias. Como foi

mencionado, o objetivo da cláusula de Força Maior é a exoneração do devedor

da obrigação contratual no caso de impossibilidade do cumprimento. Através da

aplicação da cláusula de Hardship pretende-se obrigar os contraentes a renegociar

as condições do contrato que tinham sido substancialmente alteradas devido a

um evento imprevisível e inevitável, ocorrido durante a execução do contrato.

Quanto aos efeitos jurídicos da cláusula de Hardship, conforme o art. 6.2.3 dos

Princípios de UNIDROIT, na falta de acordo entre as partes a respeito dos novos

termos contratuais, a questão deverá ser submetida ao tribunal competente. Uma

vez constatada a onerosidade excessiva, o órgão jurisdicional pode resolver o

contrato ou adaptá-lo às novas circunstâncias. Por conseguinte, como o objetivo,

o âmbito de aplicação e os efeitos jurídicos dos institutos em causa são

completamente distintos, estes nunca devem ser confundidos.

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