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Museu Aeroespacial: um museu de heróis FABIANA COSTA DIAS Resumo Este artigo relata a criação e organização do Museu Aeroespacial (MUSAL) e analisa a constituição da exposição permanente A FAB na Guerra a partir de uma perspectiva multidisciplinar (historiográfica, arquivística e museológica). A escolha pela sala A FAB na Guerra, dentre as oito salas de exposição do museu, ocorreu porque através dela pretende-se compreender de que forma a participação do I Grupo de Aviação de Caça (I GAvCa) na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) teve relevância para a construção da história da Força Aérea Brasileira (FAB). Introdução O Museu Aeroespacial está localizado em um sítio histórico para a aviação brasileira. Os hangares que são ocupados por ele no Campo dos Afonsos, em Sulacap, representam o local onde os cadetes da antiga Escola de Aeronáutica (1941-1969) tinham as suas instruções de voo. Já o Campo dos Afonsos foi o local onde as primeiras escolas de aviação brasileiras se instalaram e posteriormente suas construções passaram a pertencer à Escola de Aviação Militar (1919-1941). Nesse sentido, não existiria lugar melhor para o MUSAL fixar suas instalações. O artigo tem o objetivo de estudar uma exposição em particular do Museu Aeroespacial, A FAB na Guerra. Ela foi inaugurada nos primeiros anos do museu e já está na sua segunda versão. A intenção do artigo é compreender de que forma a participação do I Grupo de Aviação de Caça na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) teve relevância para a construção da história da Força Aérea Brasileira. Para isso o texto foi dividido em quatro tópicos. O primeiro tópico será uma apresentação breve sobre as primeiras escolas de aviação que estiveram instaladas no Campo dos Afonsos até a constituição do Ministério da Aeronáutica e consequentemente a criação da Força Aérea Brasileira. O segundo tópico tratará sobre a organização e criação do Museu Aeroespacial, apresentará suas exposições e em especial a sala objeto desse artigo, A FAB na Guerra. O terceiro tópico identificará as Pós-graduada em Planejamento, Organização e Direção de Arquivos pela UFF/AN, Graduada em História pela UFRJ, graduanda em arquivologia pela UNIRIO e segundo tenente historiadora do Museu Aeroespacial Força Aérea Brasileira.

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Museu Aeroespacial: um museu de heróis

FABIANA COSTA DIAS

Resumo

Este artigo relata a criação e organização do Museu Aeroespacial (MUSAL) e analisa

a constituição da exposição permanente A FAB na Guerra a partir de uma perspectiva

multidisciplinar (historiográfica, arquivística e museológica). A escolha pela sala A FAB na

Guerra, dentre as oito salas de exposição do museu, ocorreu porque através dela pretende-se

compreender de que forma a participação do I Grupo de Aviação de Caça (I GAvCa) na

Segunda Guerra Mundial (1939-1945) teve relevância para a construção da história da Força

Aérea Brasileira (FAB).

Introdução

O Museu Aeroespacial está localizado em um sítio histórico para a aviação brasileira.

Os hangares que são ocupados por ele no Campo dos Afonsos, em Sulacap, representam o

local onde os cadetes da antiga Escola de Aeronáutica (1941-1969) tinham as suas instruções

de voo. Já o Campo dos Afonsos foi o local onde as primeiras escolas de aviação brasileiras

se instalaram e posteriormente suas construções passaram a pertencer à Escola de Aviação

Militar (1919-1941). Nesse sentido, não existiria lugar melhor para o MUSAL fixar suas

instalações.

O artigo tem o objetivo de estudar uma exposição em particular do Museu

Aeroespacial, A FAB na Guerra. Ela foi inaugurada nos primeiros anos do museu e já está na

sua segunda versão. A intenção do artigo é compreender de que forma a participação do I

Grupo de Aviação de Caça na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) teve relevância para a

construção da história da Força Aérea Brasileira. Para isso o texto foi dividido em quatro

tópicos. O primeiro tópico será uma apresentação breve sobre as primeiras escolas de aviação

que estiveram instaladas no Campo dos Afonsos até a constituição do Ministério da

Aeronáutica e consequentemente a criação da Força Aérea Brasileira. O segundo tópico

tratará sobre a organização e criação do Museu Aeroespacial, apresentará suas exposições e

em especial a sala objeto desse artigo, A FAB na Guerra. O terceiro tópico identificará as

Pós-graduada em Planejamento, Organização e Direção de Arquivos pela UFF/AN, Graduada em

História pela UFRJ, graduanda em arquivologia pela UNIRIO e segundo tenente historiadora do

Museu Aeroespacial – Força Aérea Brasileira.

2

duas versões da exposição A FAB na Guerra e apresentará como a segunda versão foi

estruturada. O quarto tópico, a exposição A FAB na Guerra será analisada a partir de

conceitos da história, arquivologia e museologia com o objetivo de entender o que determinou

a preferência pelo I GAvCa na sala.

Embora criado na década de 1970, o Museu Aeroespacial sofreu forte influência dos

primórdios da museologia brasileira (décadas de 1930-1940) e elaborou, consequentemente,

suas exposições com um olhar pautado em uma historiografia positivista. Além disso, o

Arquivo Histórico do MUSAL possui um conjunto de documentos textuais e fotográficos do I

GAvCa que não está organizado. Todas essas informações serão relevantes para a análise da

sala A FAB na Guerra e a partir delas entender a transformação dos aviadores do grupo de

caça como os heróis da FAB e como isso está representado na exposição.

1. A aviação no Brasil, breve histórico: das escolas de formação de pilotos ao Ministério

da Aeronáutica.

As histórias do Museu Aeroespacial e do Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, estão

diretamente relacionadas e se misturam ao longo dos anos. A aviação brasileira elegeu o

Campo dos Afonsos como base para instalação das primeiras escolas de aviação – Aero Clube

Brasileiro (AeCB), em 1911, e Escola Brasileira de Aviação (EBA), em 1914 – e, desde

então, faz-se presente nessa região.

O AeCB funcionou no Campo dos Afonsos até 1919, sendo posteriormente transferido

para Manguinhos, em uma região próxima à Fundação Oswaldo Cruz. Isso ocorreu porque em

suas instalações passou a funcionar a Escola de Aviação Militar (EAvM), organizada a partir

da vinda da Missão Militar Francesa (1919-1940), cujo objetivo era a modernização do

Exército Brasileiro. Já a EBA teve uma vida breve, tendo ficado aberta apenas alguns meses

no ano de 1916, momento no qual suas atividades ocorreram juntamente com o AeCB.

Em 1927, foi criada a quinta arma do Exército1, a da Aviação, e o Brasil caminhava

para que, em breve, fosse constituída sua Força Aérea Brasileira.

1 Em 13 de janeiro de 1927 foi criada a quinta arma do Exército, a da Aviação, através da Lei nº 5.168.

Isso colocou a aviação no mesmo nível das demais armas existentes: Infantaria, Cavalaria, Artilharia e

Engenharia.

3

Em relação às principais potências da época, a aviação brasileira estava ficando para

trás: França, Alemanha e Inglaterra tinham construído suas forças aéreas nos anos de 1909,

1910 e 1918 respectivamente. Além disso, o mundo já tinha passado pela Primeira Guerra

Mundial (1914-1918), com o emprego da aviação de maneira defensiva e de observação. Com

a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, o Brasil – que desde 1935 tinha iniciado uma

campanha para a criação do Ministério do Ar – viu seu espaço aéreo mais uma vez vulnerável

a ataques.

Finalmente, em 20 de janeiro de 1941, Getúlio Vargas, através do decreto-lei n. 2.961,

criou o Ministério da Aeronáutica e, consequentemente a Força Aérea Brasileira, unindo a

aviação naval, militar e civil. Um ano e meio depois, em agosto de 1942, o Brasil declarou

guerra ao Eixo (Itália, Alemanha e Japão) e se juntou aos Aliados (Estados Unidos, França,

Inglaterra e a antiga URSS). Para esse teatro de operações, no qual a aviação havia mudado a

sua estratégia (passando a ser ofensiva e de ataque), a FAB enviou o I Grupo de Aviação de

Caça e a I Esquadrilha de Ligação e de Observação (I ELO)2.

A partir da criação da FAB, a Escola de Aeronáutica começou a exercer suas

atividades nas instalações da antiga Escola de Aviação Militar e permaneceu no Campo dos

Afonsos até o ano de 1969, quando foi transferida para Pirassununga (São Paulo) tornando-se

Academia da Força Aérea (AFA). A transferência da Escola de Aeronáutica do Campo dos

Afonsos deixou quatro hangares vazios. Foi então que esses hangares foram indicados para

serem usados para organizar o Museu Aeroespacial.

Entretanto, a iniciativa de organizar um Museu Aeroespacial já havia partido do ex-

ministro da Aeronáutica, Joaquim Pedro Salgado Filho, em 1943. Como não existia um local

físico para a instalação do mesmo, o projeto foi adiado por anos. Somente com a saída da

Escola de Aeronáutica do Campo dos Afonsos, em 1969, que os trabalhos iniciaram. A partir

de então, foram criados, em 1972, a Comissão Organizadora do Museu e, no ano seguinte, o

Núcleo do Museu Aeroespacial, cuja data de organização (31/06/1973) tornou-se a data

oficial da criação do MUSAL. Contudo, a inauguração do mesmo apenas ocorreu em 18 de

outubro de 1976. Esse intervalo de tempo entre a criação e a inauguração foi necessário para

2 I Esquadrilha de Ligação e Observação (I ELO) foi criada em 20 de junho de 1944, tinha como

objetivo “apoiar a Artilharia Divisionária da Força Expedicionária do Exército [...] realizando

operações de observação, ligação, reconhecimento e regulagem de tiro”. Com o fim da Segunda

Guerra Mundial, ela foi extinta. Disponível em: < http://www.rudnei.cunha.nom.br/FAB/index.html>.

Acessado em 29.03.2015.

4

que se fossem realizadas as obras nos hangares, a organização do acervo e das primeiras

exposições, restauração das aeronaves, entre outras atividades.

2. O Museu Aeroespacial (MUSAL).

Ao longo dos seus quarenta e dois anos, o MUSAL passou por cinco direções, sendo

aprovados quatro regulamentos e dois regimentos. No início, seu acervo contava com

quarenta aeronaves expostas. Hoje, possui mais de cento e vinte. Além disso, o Museu se

destaca por ser importante para a história da aviação militar e civil. Sua missão é preservar a

memória da Força Aérea Brasileira por intermédio do seu conteúdo histórico.

O MUSAL está localizado no bairro de Sulacap, na zona oeste da cidade do Rio de

Janeiro e recebeu no último ano 46.371 visitantes. Anualmente o Museu realiza e participa de

alguns eventos como: a Semana de Museus (maio), a Primavera de Museus (setembro), o

Domingo Aéreo (outubro), exposições itinerantes sobre as comemorações alusivas à história

da FAB e solenidades para apresentação de novas aeronaves pertencentes ao acervo.

O acervo do MUSAL está distribuído por quatro hangares, além das oito salas de

exposição, sendo uma temporária. Em relação às salas de exposição, algumas existem desde a

inauguração, como a Sala das Armas, a Sala do Ministro Salgado Filho e a Sala do I Grupo de

Aviação de Caça, e hoje renomeada como A FAB na Guerra. Outras salas não existem mais –

como a Sala das Artes, a Sala dos Motores e a Sala dos Instrumentos e Hélices – enquanto

algumas novas foram inauguradas, como a do Bartolomeu de Gusmão, PARA-SAR, Santos

Dumont, EMBRAER e Força Mulher.

A Sala do I Grupo de Aviação de Caça, objeto de nossa análise, é um exemplo de

exposição que teve duas versões, uma da época da inauguração do MUSAL e outra mais

recente (2010). Apesar da diferença de mais de trinta anos entre as duas versões, as

exposições não tiveram grandes alterações. Ao contrário, o foco da sala permaneceu nos

aviadores pertencentes ao grupo de caça que embarcaram para a Itália para lutar na Segunda

Guerra Mundial. Entretanto, a participação da FAB na guerra foi muito maior que isso.

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Juntamente com os aviadores, foram para o teatro de operações, intendentes, praças (cabos e

soldados), sargentos, a I Esquadrilha de Ligação e Observação (I ELO), enfermeiros, médicos,

além da estrutura que foi organizada no Brasil para a defesa do litoral através da Aviação de

Patrulha3.

O nome dado à sala no primeiro momento, I Grupo de Aviação de Caça, se adequava

mais ao que está exposto do que o título dado à segunda versão, A FAB na Guerra, já que

nesse se imaginava uma apresentação mais ampla da participação da FAB no conflito

mundial, com todos os participantes. A segunda versão da sala permite compreender que o

papel da FAB na Segunda Guerra Mundial foi reduzido ao I GAvCa. A relevância dada aos

aviadores do grupo de caça pode ser compreendida por meio dos seguintes pontos: o primeiro

quadro a ser formado pela FAB foi dos aviadores; o símbolo do quadro dos aviadores é o

mesmo da Força Aérea Brasileira, o gládio alado; o objetivo da FAB é a defesa do espaço

aéreo, realizado pelos aviadores; e, por último, mais relacionado aos pilotos de caça, no dia 22

de abril é comemorado o dia da aviação de caça. Nesse sentido, existem vários itens que

remetem à aviação como meta a ser atingida e, para se conseguir isso, se faz necessário ter

pilotos formados. Portanto, nada mais natural que eleger os aviadores do I GAvCa como os

heróis da participação da FAB na Segunda Guerra Mundial.

Para compreender melhor como o MUSAL reconstruiu a participação da FAB na

Segunda Guerra Mundial, no próximo capítulo será identificado as duas versões da sala e

apresentado como a segunda versão foi estruturada.

3. O I Grupo de Aviação de Caça (I GAvCa) em exposição.

A primeira versão da Sala do I Grupo de Aviação de Caça (I GAvCa) está registrada

no catálogo Museu Aeroespacial Brasileiro, publicado durante a primeira direção do Museu

Aeroespacial (1976-1983), posição ocupada pelo major João Maria Monteiro.

Algumas páginas do catálogo são dedicadas à Sala do I Grupo de Aviação de Caça. O

texto trata especificamente da história desse grupo, relatando em linhas gerais a sua

organização, missão e objetivo. Cita também a antiga Esquadrilha de Ligação e Observação e

explica a data 22 de abril, quando se comemora o dia da Aviação de Caça. Além do texto,

3 Aviação de Patrulha tinha como objetivo defender o Nordeste brasileiro contra investidas de

submarinos alemães.

6

existem algumas fotos que auxiliam na identificação de objetos que permaneceram na

segunda versão da sala e enumera itens que estão expostos. Além disso, existe um trecho do

texto que chama a atenção devido à forma como a autoria transformou o I GAvCa em

personagem central da FAB: “Na sala I Grupo de Aviação de Caça, acha-se em exposição

toda a campanha aérea do grupo, com evocação a feitos gloriosos da Força Aérea Brasileira

nos campos de guerra da Europa” (s./d., p.73, grifos nossos).

Esse trecho pode estar relacionado com a definição da finalidade do museu

estabelecida no primeiro regulamento do Museu Aeroespacial, de 1977. Segundo aquele, a

finalidade do museu era “despertar na juventude o sentimento cívico patriótico, promovendo

os feitos gloriosos do passado que contribuíram para a consolidação da nação” (FORÇA

AÉREA BRASILEIRA, Decreto nº 79.920, Aprova o Regulamento do Museu Aeroespacial,

grifo nosso). O uso da expressão “feitos gloriosos” está presente em ambos os textos e

permite uma análise a partir de uma perspectiva histórica positivista própria do século XIX e

de uma museologia comprometida com a ideia de conformação de uma memória nacional. A

outra expressão grifada, campanha aérea, indica o que se pretendia ilustrar na exposição, a

importância da participação da aviação.

De 1977 para cá o MUSAL já aprovou quatro regulamentos, sendo o mais recente de

2005, cinco anos antes da reinauguração da sala A FAB na Guerra. A finalidade definida

nesse regulamento dizia o seguinte: “preservar a memória da Aeronáutica brasileira por

intermédio de seu acervo histórico”. Apesar da retirada da expressão “feitos gloriosos”, a

atividade do museólogo na atualidade do MUSAL ainda sofre muita influência da finalidade

do regulamento de 1977.

Para entender as modificações da sala do I Grupo de Aviação de Caça em A FAB na

Guerra foi realizada uma entrevista com Amanda Marques, atual museóloga do Museu

Aeroespacial e participante da elaboração da nova versão da sala. Segundo Marques (2015),

em relação à primeira versão

(...) a configuração era totalmente outra, (...), com as vitrines espalhadas sem o

menor critério. (...) Era um acúmulo de objetos. Era uma vitrine que tinha uma

arma, que tinha uma flâmula. (...) Não havia algo a se formar, algo que você olhe e

entenda a história. Tanto que nós reformamos e o diretor ficou surpreso ao ver

determinados acervos. Ele achava que nós havíamos levado para lá. Não, já existia

na sala e não estava organizado.

Ainda nessa mesma entrevista, foi perguntado como foi elaborada a segunda versão da

sala A FAB na Guerra e Marques (2015) respondeu:

7

(...) foi o processo que sempre fazemos, pesquisa histórica, verificar o acervo. Então

nós percebemos que o visitante era jogado para a Segunda Guerra Mundial sem

nenhuma base anterior. Nós procuramos dar esses antecedentes da Segunda Guerra

Mundial para que eles pudessem situar e entrar na Segunda Guerra e as

consequências para a FAB. Então surgiu a ideia de começarmos pela Segunda

Guerra, pela Esquadrilha de Ligação e Observação que também faz parte. [...]

Então primeiro foi a pesquisa histórica, na Segunda Guerra achamos melhor

separar por Eixo e Aliados para que as pessoas verificassem uma dualidade que

havia e influência do Grupo de Caça mesmo, a história. Fizemos uma visita ao

Grupo de Caça, em Santa Cruz, pegamos material. Fomos à casa do brigadeiro

Meira. Na casa dele tinha um quarto reservado para o Grupo de Caça. Nós

conseguimos um relato dele. Foi fantástico esse conhecimento que conseguimos

com ele. Essa pesquisa e muita coisa de fora, pegamos informação com a Base

Aérea de Natal.

Com essa declaração percebeu-se que houve uma tentativa por parte da equipe de

incluir um contexto histórico e até a I Esquadrilha de Ligação de Observação. Entretanto, ao

visitar a sala é notório a divulgação da participação do I GAvCa. A explicação para isso,

segundo Marques, seria que a segunda versão da sala não poderia se afastar muito da primeira

abordagem. Sendo assim, não restou espaço para os coadjuvantes (embora não menos

importantes), como as enfermeiras, os médicos, os intendentes, os sargentos, os cabos e os

soldados que participaram do grupo da FAB que embarcou para a Itália.

Apesar de toda uma expografia com objetos que tentam retratar o contexto da época,

no fundo da sala encontra-se uma representação em tamanho natural, com manequins, de uma

foto clássica. Nela estão identificados, em sua maioria, os aviadores que estiveram e

pertenceram ao I GAvCa. Ao total são 42 participantes da foto, sendo 30 aviadores para 12

que não são. Esse grupo de doze está representado por um cabo, três médicos (dois capitães e

um tenente), um tenente mecânico, um tenente especialista em armamento, dois intendentes

(um capitão e um tenente), um major americano e dois tenentes e um major sem identificação

de quadro ou especialidade. O que representa que além dos pilotos de caça, havia um grupo

de militares que apoiavam a missão.

Também existe um mapa que estava exposto na primeira versão da sala, com os nomes

dos aviadores, o trajeto de algumas de suas missões, onde desembarcaram ou morreram.

Outro ponto de destaque é um painel identificando em quais bases aéreas estão alocadas a

aviação de caça na atualidade, além de um manequim com o uniforme usado por um piloto de

caça. Nesse sentido, por mais que se tentasse pontuar a sala com textos sobre a I Esquadrilha

de Ligação e Observação e sobre a Aviação de Patrulha, o maior peso foi dado ao I GAvCa.

8

Outro detalhe importante que não pode deixar de ser mencionado: o Arquivo Histórico

do MUSAL possui um conjunto documental do I GAvCa constituído por 907 fotografias e 31

caixas de arquivo de documentos textuais produzidos durante os anos de 1944 a 1945. Assim

como o MUSAL, o Centro de Documentação e Histórico da Aeronáutica (CENDOC) também

possui documentos do I GAvCa formados por sessenta imagens. Nenhum desses dois

conjuntos documentais está organizado e, ainda por cima, sua guarda foi dividida entre essas

duas organizações militares da FAB. Ademais, o que se nota na segunda versão da exposição

é que apenas as fotografias do arquivo histórico foram aproveitadas para elaboração da

exposição. Apesar da museóloga Amanda Marques ter afirmado que uma pesquisa histórica

foi desenvolvida, o não uso dos documentos produzidos e acumulados pelo I GAvCa, e

guardados no arquivo histórico do MUSAL e no CENDOC, sinaliza os limites daquele

trabalho. O não uso dos documentos do I GAvCa acumulados tanto pelo arquivo histórico do

MUSAL quanto pelo CENDOC contradiz o que está definido na finalidade do regulamento

mais recente (2005) do Museu Aeroespacial, que seria “preservar a memória da Aeronáutica

brasileira por intermédio do seu acervo histórico”

No próximo capítulo, a exposição A FAB na Guerra será analisada a partir de

conceitos da história, arquivologia e museologia com o objetivo de entender o que determinou

a preferência pelo I GAvCa na sala.

4. O papel da História, da Arquivologia e da Museologia na organização da exposição

sobre o I GAvCa.

Entender como o tema sobre a participação da FAB na Segunda Guerra Mundial se

transformou em exposição será o objetivo dessa parte do trabalho. Para isso será válido

entender o papel da história, da arquivologia e da museologia na constituição das exposições.

O Museu Aeroespacial é um museu militar e por essa razão possui características

muito peculiares. Do ponto de vista museológico, percebe-se, ao visitar o MUSAL, que sua

constituição é muito parecida com os museus brasileiros do início do século XX, como o

Museu Histórico Nacional (MHN). Por essa razão, reconhece-se no MUSAL um forte desejo

em querer reconstruir a história da aeronáutica por meio dos grandes vultos. Assim, mais

9

parece com o que Bittencourt (2002, p.14) sugeriu ao analisar o olhar de Gustavo Barroso4

sobre o Museu Histórico Nacional: “Barroso se apegava a um ‘culto à tradição’ que procurava

em ver no passado e em seus fatos e personagens únicos um ideal para o presente”.

Ao lado disso, Santos (2002, p.106) identificou que os museus militares

[...] surgiram como museus comemorativos e expressando forte sentimento

nacionalista [...] que apareceram inicialmente na França e na Alemanha, no final

do século XIX e expandiram-se por todo o continente. Esses museus expressam o

caráter de cada nação através da exposição de objetos utilizados em sua expansão

territorial, como armas, medalhas e de objetos de artilharia e objetos de heróis

nacionais.

No mesmo texto, Santos (2002, p.112) citou uma passagem de Barroso, onde ele

afirmava que o Brasil necessitava de um museu onde “pudessem ser guardados objetos de

guerreiros e heróis”. Apesar da diferença de mais de meio século entre a criação do MHN

(1922), sob a direção de Gustavo Barroso, e a inauguração do Museu Aeroespacial, em 1976,

a impressão que se tem é que ainda é muito presente no MUSAL as características de um

museologia nacionalista, típica dos anos de 1920. Isso pode ser entendido a partir do que Vera

Tostes5 sugeriu:

O Museu Histórico Nacional, fundado em 1922 pelo Presidente Epitácio Pessoa,

representou a introdução no Brasil de um modelo de museu histórico que perdurou

por mais de 40 anos: um modelo essencialmente baseado nas grandes coleções, nos

personagens históricos e numa relação peculiar entre o diretor, os membros da

instituição e os grandes doadores (in ABREU, 1996, p. 10).

Julião (2006, p.20-21) partilhou da mesma opinião que Tostes e sugeriu que os museus

construídos nas décadas de 1930 e 1940 traziam:

[...] as marcas de uma museologia comprometida com a ideia de uma memória

nacional como fator de integração e coesão social, incompatível, portanto, com os

conflitos, as contradições e as diferenças. A coleta de acervo privilegiava os

segmentos da elite, e as exposições adotavam o tratamento factual da história, o

culto à personalidade, veiculando conteúdos dogmáticos, em detrimento de uma

reflexão crítica.

Assim, a diferença de cinquenta e quatro anos entre o MUSAL e o MHN tornou-se

irrelevante para as práticas museológicas e históricas impressas no Museu Aeroespacial.

Outro fator que influenciou a construção do MUSAL foi o momento político em que ele

estava inserido. Entre os anos de 1964 e 1985 o Brasil passou por um período de presidentes

4 Gustavo Barroso foi diretor do Museu Histórico Nacional entre os anos de 1922 e 1959. 5 Vera Lúcia Bottrel Tostes foi diretora do MHN entre os anos de 1994 e 2014.

10

militares e, segundo Soares (2011, p.190), “nas décadas de 1960 e 1970, novamente, um

governo autoritário fortaleceu a ideia de unidade nacional, sendo dessa vez fortemente

associada à questão da segurança nacional”.

Outro ponto que influenciou o desenvolvimento do perfil do MUSAL foram os

momentos em que se pensaram a sua constituição. O primeiro documento datado sobre a

organização do Museu Aeroespacial é de 1943, embora a sua criação seja de 1973 e a sua

inauguração de 1976, como anteriormente comentado. Ou seja, são três datas, 1943, 1973 e

1976, em que movimentos nacionalistas estavam em alta. Nesse sentido, os aspectos acima

mencionados determinaram que o MUSAL priorizasse a escolha por heróis da FAB para

escrever a sua história.

Outra ferramenta que auxilia na construção das exposições é a História. E para poder

compreender qual é o seu papel na elaboração das salas expositivas se fez necessário analisar

as finalidades do MUSAL nos seus regulamentos6. Apesar de terem sido aprovados quatro

regulamentos, a finalidade do MUSAL ainda é refém da definição expressa no ano de 1977.

Isso revela que o museu foi pensado a partir de um panorama histórico próprio do século XIX,

ou seja, uma história objetiva, empírica e racional. O discurso histórico nesse momento era

construído por “verdades históricas”. Essas verdades seriam determinadas a partir da leitura

pura e simples dos documentos históricos. Ou seja, as fontes históricas eram tidas como uma

representação realista do que aconteceu. Não existia espaço para uma análise ou para

múltiplas narrativas. O pesquisador ficava passivo diante dos documentos e desprezaria as

outras dimensões que envolvessem o evento histórico.

Os historiadores que foram partidários dessa linha de pensamento ficaram conhecidos

como positivistas e suas características principais eram:

[...] o apego ao documento, o esforço obsessivo em separar o falso do verdadeiro, o

medo de se enganar sobre as fontes, a dúvida metódica, que muitas vezes se torna

sistemática e impede a interpretação, o culto ao fato histórico, que é dado, ‘bruto’,

nos documentos (REIS, 2004, p.23).

Essas características estão bem evidentes na sala A FAB na Guerra. Como foi dito, o I

GAvCa é apresentado como o protagonista da Força Aérea Brasileira durante a Segunda

Guerra Mundial. É notória a exaltação a esse grupo, já que a sala denota apenas a sua

participação na Guerra. O título da sala também gera um mal entendido, já que não retrata a

6 Ao total foram publicados quatro regulamentos nos anos 1977, 1982, 1987 e 2005.

11

FAB na guerra e sim a participação do I GAvCa nesse episódio. A I Esquadrilha de Ligação e

Observação e a Aviação de Patrulha foram timidamente mencionadas, o espaço da exposição

é predominantemente ocupado pelos componentes do I GAvCa. Para estimular ainda mais

essa discussão, desde 1966 se comemora o dia da Aviação de Caça7 no dia 22 de abril, em

alusão ao dia em que se obteve o maior número de investidas brasileiras na Itália. Deste

modo, é explícita a tendência em relacionar a participação da FAB na Segunda Guerra

Mundial somente aos aviadores pertencentes ao grupo de caça. Além disso, como já foi

mencionado, existe um engrandecimento ainda maior em relação aos aviadores já que a

identificação do quadro de oficiais aviadores é o mesmo da Força Aérea Brasileira, o gládio

alado. Outro ponto a ser considerado é a maneira como os cadetes são selecionados para

serem os pilotos de caça. Durante a formação, somente os melhores alunos, os primeiros, são

os escolhidos para pertencerem à aviação de caça. Isso naturalmente desenvolve uma

hierarquia entre os próprios aviadores, principalmente se for considerado que outros aviadores

participaram da Segunda Guerra Mundial. Tanto a I ELO quanto a Aviação de Patrulha

tinham pilotos e assim como os do grupo de caça participaram da guerra.

Nota-se ainda nessa sala a analogia que Reis (2004, p.28-29) elaborou entre museus e

o positivismo:

O objetivo dos positivistas, parece-nos, pode ser comparado ao da organização de

um museu, embora o conceito de museu, talvez, seja mais complexo. No museu, os

objetos de valor histórico são resgatados, recuperados e expostos à visitação

pública, com uma ficha com seus dados ao lado, e o observador posta-se diante de

uma “coisa que fala por si”. O observador mantém uma relação direta com o

objeto-coisa, definitivamente re-constituído. Assim, também, procederia o

historiador metódico – através dos documentos, reconstituiria descritivamente, “tal

como se passou”, o fato do passado, que, uma vez reconstituído, se tornaria uma

“coisa-aí, que fala por si”. Ao historiador não competiria o trabalho da

problematização, da construção de hipóteses, da reabertura do passado e da

releitura de seus fatos. Ele reconstituiria o passado minuciosamente, por uma

descrição definitiva. Tratados dessa maneira, os fatos históricos se tornariam

verdadeiros seres, substancias, objetos que se pode admirar do exterior, copiar,

contemplar, imitar, mas jamais desmontar, remontar, alterar, reinterpretar, rever,

problematizar, reabrir. Uma vez “estabelecidos” os fatos passados, a não ser que

aparecessem novos documentos que alterassem sua descrição, tornando-as mais

“verdadeira”, eles seriam uma “coisa que fala por si”.

A sala A FAB na Guerra é exatamente isso que Reis sugeriu. Ela é uma tentativa de

reconstituição do que se quer acreditar e do que se acredita ser histórico, marginalizando

7 A partir do decreto 58.221 de 19 de abril de 1966, o dia 22 de abril tornou-se a data oficial em que se

comemora o dia da Aviação de Caça.

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tantos outros agentes e momentos. Tem-se como resultado, sua transformação em um evento

isolado (procedimento tão característico do positivismo, que constituiu a história a partir de

uma sucessão de eventos separados).

Essa historiografia colaborou, portanto, para a conformação de uma museologia

igualmente positivista a elaborar salas temáticas que cultuam personagens históricos. Por mais

que essa fosse uma forte tendência entre os anos de 1920 e 1940, o MUSAL, que teve sua

organização somente na década de 1970, contou (e ainda conta) com sua presença na forma

como organizou suas exposições permanentes.

Nesse sentido, apesar da exposição A FAB na Guerra ter passado por uma reforma,

muito pouco foi alterado, já que a proposta não era fugir do que já se tinha anteriormente.

Com essa explicação, com a percepção que o MUSAL ainda bebe em práticas históricas e

museológicas positivistas comprometidas com os grandes feitos de uma memória nacional,

deduz-se que a exposição priorizou a versão dos aviadores heróis e formadores da história

oficial da FAB.

Vale lembrar ainda que, logo a seguir à criação do MUSAL, na década de 1980, foi

lançado o Movimento Internacional da Nova Museologia – MINOM, com o objetivo de

abandonar alguns procedimentos que faziam parte da tradição dos museus. A partir do

MINOM, por exemplo, foi ampliada a noção de patrimônio e as representações da sociedade

se multiplicaram, impactando na valorização das diversas memórias que passaram a ser

reconhecidas. Além disso, os cidadãos passaram a participar mais ativamente dos museus que

os cercavam, começando a se enxergar inseridos na história do seu bairro, cidade e etc. Por

mais que essas mudanças tivessem chegado ao Brasil no transcorrer daquela década, no

Museu Aeroespacial ainda predomina um perfil de museu fortemente refratário ao proposto

por aquele Movimento.

A arquivologia, assim como a história, é outra ferramenta do “backstage” da

museologia. Através delas, pesquisam-se os documentos e são construídas narrativas sobre os

fatos históricos. Os possíveis documentos do I GAvCa, que poderiam ter sido usados para a

pesquisa da exposição, encontram-se, como já mencionado anteriormente, no arquivo

histórico do MUSAL e no Centro de Documentação e Histórico da Aeronáutica (CENDOC).

Esses conjuntos documentais não estão organizados e também não sofreram nenhum tipo de

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classificação, avaliação e seleção8. Também se sabe que foram poucos os documentos usados

para a elaboração da sala A FAB na Guerra, fato que aconteceu porque o MUSAL priorizou

não se afastar muito da abordagem da primeira versão da sala.

A escolha por não consultar os documentos arquivísticos oferece consequências que já

foram sinalizadas pela museologia e história. Ao mesmo tempo em que existem os

documentos que foram eleitos para participarem da sala A FAB na Guerra, existem os que

não foram, ou seja, aqueles pertencentes ao arquivo histórico. Por mais que esses documentos

pudessem contribuir com novas leituras e olhares sobre a participação da FAB na Segunda

Guerra Mundial, a pesquisa com o acervo arquivístico não foi realizado.

Da mesma forma que assumir que a exposição não é uma versão completa sobre a

participação da FAB na Segunda Guerra Mundial, também não se pode afirmar que os

documentos que estão guardados no arquivo histórico são a memória da aviação na guerra

mundial. Isso seria um equívoco, já que esses documentos não são fruto de classificação,

avaliação e seleção. Ou seja, esses documentos foram os que ‘restaram’, foram os que

sobreviveram ao passar dos anos e chegaram ao arquivo histórico e receberam o valor

permanente9. Tornaram-se “relíquias” da arquivologia e, por isso, são hoje considerados

“patrimônio nacional”. Sobre esse assunto, Jardim (1995, p.8) foi categórico ao afirmar que

Esta memória arqueologizável é frequentemente identificada sob a noção de

patrimônio documental arquivístico. Compostos por acervos mediante critérios

teóricos e políticos pouco explicitados, os arquivos públicos promovem a

monumentalização dos seus documentos privilegiando ações diversas. É o caso, por

exemplo, do favorecimento da recuperação e divulgação de determinadas

informações em detrimento de outras (1995, p. 8).

8 Tanto a classificação quanto a avaliação e a seleção são práticas arquivísticas. A classificação

segundo Paes é um “processo que, na organização de arquivos correntes, consiste em colocar ou

distribuir os documentos numa sequência alfabética, numérica ou alfanumérica, de acordo com o

método de arquivamento previamente adotado” (PAES, 2004, p. 25). A Avaliação segundo o

Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística significa “processo de análise de documentos de

arquivo, que estabelece os prazos de guarda e a destinação, de acordo com os valores que lhes são

atribuídos” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 41). A Seleção segundo o Dicionário Brasileiro de

Terminologia Arquivística significa a “separação dos documentos de valor permanente daqueles

passíveis de eliminação, mediante critérios e técnicas previamente estabelecidos em tabela de

temporalidade” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 152). 9 Documentos permanentes, formadores do arquivo permanente, de valor secundário, isto é, histórico,

e são definidos como um “conjunto de documentos preservados em caráter definitivo em função de

seu valor” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p.34).

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Ao transformarem os documentos em monumentos tanto dentro do espaço do arquivo

quanto do museu10, os arquivistas e museólogos estão concedendo um valor simbólico a esses

locais e as suas escolhas. Pierre Bourdieu criou conceitos como capital cultural, capital social

e capital simbólico que nos auxiliam a compreender a opção histórica adotada pela exposição

A FAB na Guerra e o que implicou o não uso do conjunto documental do I GAvCa nessa sala.

Segundo Loyola (2002, p. 66), capital cultural “designa uma relação privilegiada com a

cultura erudita e a cultura escolar”, o capital social é “a rede de relações sociais que constitui

umas das riquezas essenciais dos dominantes” e o capital simbólico é “formado pelo conjunto

de signos e símbolos que permitem situar os agentes no espaço social”. Mais à frente,

completa:

Não é somente o capital econômico, como na abordagem marxista tradicional, que

está no princípio das desigualdades sociais, mas também o capital cultural, o

acesso aos bens simbólicos não redutíveis aos valores mercantis. É pelo controle do

capital simbólico que os dominantes impõem aos dominados seu arbitrário

cultural, as hierarquias, as relações de dominação, fazendo-os percebê-las como

legítimas (noção emprestada de Weber), como allant soi. Essa capacidade de

imposição consentida de um arbitrário cultural aos dominados, Bourdieu denomina

de violência simbólica, outra noção importante de sua teoria (LOYOLA, 2002, p.

66, grifos nossos).

Isso fica mais evidente na sala A FAB na Guerra do que nos documentos do I GAvCa.

O poder simbólico da exposição está na vontade de imprimir uma verdade histórica sobre

determinado fato e o que isso contribuiu de forma positiva para a história da FAB. Afinal,

nada mais gratificante do que ser lembrado pelas vitórias. Por outro lado, os documentos do I

GAvCa permitem desenvolver um poder simbólico que está velado e que pode não ser

interessante uma vez que não foram investigados.

Dessa forma, o que parece é que a sala A FAB na Guerra é o que Soares (2011, p.54)

afirmou sobre o papel dos museus até o século XX, ou seja, que eles “foram construídos pelas

elites e serviam exclusivamente aos seus interesses nos contextos em que os valores

‘clássicos’ conseguiam alcançar para legitimar o poder e a autoridade das burguesias

ascendentes”. Portanto, o MUSAL, por meio da sua exposição A FAB na Guerra, comunica-

se e transmite a sua opção de narrativa aos seus pares, “cúmplices” nesse processo.

10 Existe uma diferença teórica e metodológica entre o fazer arquivístico e museológico no momento

da seleção dos documentos para pertencerem a um arquivo e uma exposição. Enquanto que para o

arquivista características como imparcialidade e autenticidade do documento são relevantes, para o

museólogo uma réplica ou cópia de um objeto a ser exposto não interferem na sua produção.

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Considerações Finais

O presente trabalho teve como objetivo apresentar o início da aviação no Brasil; os

antecedentes da criação da Força Aérea Brasileira; a inauguração e desenvolvimento do

Museu Aeroespacial; como foram organizadas as salas do I Grupo de Aviação de Caça

(primeira versão) e A FAB na Guerra (segunda versão); e o papel da história, da arquivologia

e da museologia na organização dessas salas. Nesse sentido foi possível compreender a

influência (e permanência no tempo) de uma museologia preocupada com a construção de

uma nacionalidade e de uma história positivista na elaboração das duas versões da exposição.

Além disso, a arquivologia, representada pelos documentos do I GAvCa, mostrou-se também

uma poderosa ferramenta para a opção (não aproveitada) de se reescrever uma narrativa

histórica para a participação da FAB na Segunda Guerra Mundial mais condizente com a

contemporaneidade.

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