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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA UnB FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CURSO DE DOUTORADO RAMAÍS DE CASTRO SILVEIRA DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS? Análise da interpretação da Constituição, na dinâmica Congresso- STF, à luz de um pressuposto deliberativo BRASÍLIA 2016

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  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA UnB

    FACULDADE DE DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    CURSO DE DOUTORADO

    RAMAS DE CASTRO SILVEIRA

    DILOGOS CONSTITUCIONAIS?

    Anlise da interpretao da Constituio, na dinmica Congresso-

    STF, luz de um pressuposto deliberativo

    BRASLIA

    2016

  • 2

    RAMAS DE CASTRO SILVEIRA

    Dilogos constitucionais? Anlise da interpretao da Constituio,

    na dinmica Congresso-STF, luz de um pressuposto deliberativo

    Tese apresentada ao Programa

    de Ps-Graduao em Direito da

    Faculdade de Direito da

    Universidade de Braslia como

    requisito parcial obteno do

    ttulo de Doutor em Direito.

    Orientador: Prof. Dr. Cludio Ladeira de Oliveira

    BRASLIA

    2016

  • 3

    RAMAS DE CASTRO SILVEIRA

    Dilogos constitucionais? Anlise da interpretao da Constituio,

    na dinmica Congresso-STF, luz de um pressuposto deliberativo

    Tese apresentada ao Programa

    de Ps-Graduao em Direito da

    Faculdade de Direito da

    Universidade de Braslia como

    requisito parcial obteno do

    ttulo de Doutor em Direito.

    Aprovada em: 29/03/ 2016

    Banca Examinadora:

    Prof. Dr. Cludio Ladeira de Oliveira (orientador)

    Faculdade de Direito da UFSC/PPGD UnB

    Prof. Dr. Luis Fernando Barzotto (membro)

    Faculdade de Direito da UFRGS

    Prof. Dr. Luiz Henrique Urquhart Cademartori (membro)

    Faculdade de Direito da UFSC

    Prof. Dr. Valcir Gassen (membro)

    Faculdade de Direito da UnB

    Prof. Dr. Alexandre Kehrig Veronese Aguiar (membro)

    Faculdade de Direito da UnB

    Prof. Dr. Juliano Zaiden Benvindo (suplente)

    Faculdade de Direito da UnB

  • 4

    Dedicatria

    Dedico este trabalho a todos aqueles e todas aquelas que acreditam e

    lutam pela democracia, sobretudo aos que continuam tentando defini-la. A

    senda de uma riqueza e urgncia inestimveis.

  • 5

    Agradecimentos

    Quem decidiu que trabalhos acadmicos teriam agradecimentos agiu

    em franco douramento de plula. de pedido de desculpas que aqui se trata.

    Desculpas Cler e ao Gabriel, que sentiram menos minha falta do que

    eu a deles difcil comparao.

    Desculpas Roberta, minha amada companheira de jornada, por todos

    os filmes que perdemos, pelas madrugadas em que a acordei ao ir deitar (e

    pelas manhs em que eu no consegui acordar) e por ter sabido aproveitar to

    pouco das sugestes cruciais que me deu para que essa tese entrasse no

    prumo.

    Desculpas a minha me Marila, por t-la feito sair de casa s segundas

    e teras de noite (mesmo em dias frios), por ter ido pouco Serra e por ter

    pedido a reviso do rsum to em cima da hora.

    Desculpas aos meus amigos e amigas, sobretudo Srgio Abbi e Kemir,

    com quem no pude conviver.

    Desculpas ao meu pai, por no t-lo ajudado com a casa de So Chico.

    Desculpas ao meu orientador, Prof. Cludio Ladeira, por ser mais

    cabea dura do que o razovel.

    Desculpas aos gentis membros da banca, por ter nascido sem o dom da

    conciso.

    Agradeo a todos e todas por aceitarem minhas desculpas; aos amigos

    e colegas Flvia Carlet, Marcelo Torelly, Vernica Gonalves e Marcelo

    Cafrune pelas inmeras vezes em que me acolheram em Braslia; ao Prof.

    Juliano Benvindo, ao Valgmar e CAPES por viabilizarem materialmente o

    trabalho; e a todas as funcionrias do PPGD/UnB, na pessoa da Euzilene, pela

    dedicao e inestimveis auxlios.

  • 6

    RESUMO

    A ascenso do poder judicirio como um importante player da poltica foi

    captada pela academia jurdica brasileira sob o signo do ativismo judicial e da

    judicializao da poltica. A preocupao que esta nova postura, notadamente

    do STF, causa dirige-se, principalmente, ao grau de legitimidade democrtica

    que decises do tribunal possam ter, sobretudo quando atua, em controle de

    constitucionalidade, invalidando leis aprovadas pelo parlamento eleito. Um

    conjunto de doutrinas reivindica a ideia do dilogo constitucional com vistas a

    lidar com esta preocupao. So, contudo, diversos os pressupostos tericos e

    mesmo os parmetros de anlise empregados, exigindo que se defina e

    explicite o porqu de se adotar um determinado enfoque dialgico para analisar

    a qualidade da adjudicao constitucional. Com base no conceito de dilogos

    constitucionais que os entende como troca efetiva de argumentos entre os

    poderes, procedeu-se verificao emprica do sistema brasileiro de controle

    de constitucionalidade, concluindo que ele no dialgico no que diz respeito

    postura do Supremo Tribunal Federal em relao aos argumentos do

    Congresso Nacional; havendo dilogo, por outro lado, quando a atitude do

    legislativo que se est a considerar.

    Palavras-chave: Controle de constitucionalidade; dilogos constitucionais;

    democracia deliberativa.

  • 7

    ABSTRACT

    The rise of the judiciary as an important political player was captured by

    Brazilian legal academia under the laber of judicial activism and the

    judicialization of politics. The concern that this new posture brings, notably the

    action of Supremo Tribunal Federal, above all, is the degree of democratic

    legitimacy that court decisions can have, especially when it acts in judicial

    review, invalidating Laws passed by the elected parliament. A set of doctrines

    claims the idea of constitutional dialogue to address this concern. There are,

    however, several theoretical assumptions and even employees analysis

    parameters named constitutional dialogue, demanding to define and explain

    the reason for adopting a particular dialogical approach to analyze the quality of

    constitutional adjudication. Based on the concept of constitutional dialogue that

    understands it with how effective are the exchange of arguments between the

    powers, we proceeded to the empirical verification of the Brazilian system of

    judicial review, concluding that it is not dialogical with regard to the attitude of

    the Supreme Court in to the arguments of the National Congress; there is

    dialogue, on the other hand, when it is the attitude of the legislature that if you

    are considering.

    Keywords: constitutional review; constitutional dialogues; deliberative

    democracy.

  • 8

    RSUM

    Lascension du pouvoir judiciaire au rle dacteur politique important a t

    interprete par la communaut juridique universitaire brsilienne sous le signe

    de l'activisme judiciaire et de la judiciarisation de la politique. La proccupation

    que cette nouvelle posture, notamment du STF, produit, sadresse

    principalement au degr de lgitimit dmocratique que les dcisions de cette

    cour puissent avoir, surtout quand elle agit pour controler la constitutionnalit,

    invalidant des lois votes par le parlement lu. Un ensemble de doctrines

    revendique l'ide du dialogue constitutionnel pour rpondre cette

    proccupation. Il y a, cependant, plusieurs hypothses thoriques et mme des

    paramtres d'analyse employs, exigeant de dfinir et d'expliquer la raison de

    l'adoption d'une approche dialogique particulire pour analyser la qualit des

    dcisions constitutionnelles. Bas sur le concept de dialogues constitutionnels,

    qui les conoit comme l'change effectif d'arguments entre les pouvoirs, on a

    procd la vrification empirique du systme brsilien de contrle de la

    constitutionnalit, et on a arriv la conclusion quil nest pas dialogique en ce

    qui concerne l'attitude du STF propos des arguments du Congrs National;

    il ya un dialogue, par contre, quand il sagit de considrer l'attitude du pouvoir

    legislatif.

    Mots-cls: contrle constitutionnel; dialogues constitutionnels; dmocratie

    dlibrative.

  • 9

    No Brasil, constitucional no o que est

    escrito na Constituio, mas o que o STF

    diz que est. s vezes, as interpretaes

    coincidem com o texto da Carta Magna.

    Outras, no. O que conta o

    entendimento desses homens acima do

    bem e do mal. (Juremir Machado da

    Silva, disponvel em

    http://www.correiodopovo.com.br/blogs/jur

    emirmachado/, postado e acessado em

    23/09/2015)

    http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/

  • 10

    Sumrio Introduo ................................................................................................................. 12

    Captulo 1 As preocupaes com a soberania do judicirio .............................. 29

    1.1 Acordo semntico alguns conceitos relevantes e suas conotaes ........... 32

    1.1.1 Palavra final e supremacia ..................................................................... 32

    1.1.2 Judicializao da poltica e ativismo judicial ................................................ 33

    1.1.3 Democracia e democratizao .................................................................... 33

    1.2 Algumas disputas de poder entre legislativo e judicirio no Brasil atual ............ 39

    1.2.1 Autoridade responsvel por declarar a cassao de mandatos

    parlamentares ...................................................................................................... 41

    1.2.2 Novos partidos: restries a direito de antena (tempo de tv e rdio) e acesso

    ao fundo partidrio ............................................................................................... 51

    1.2.3 Financiamento das campanhas eleitorais ................................................... 60

    1.2.4 Rito do processo de impeachment .............................................................. 71

    1.3 Reaes fortes do Congresso supremacia do STF ........................................ 80

    1.3.1 PEC 03/2011 sustao de atos normativos do judicirio .......................... 80

    1.3.2 PEC 33/2011 compartilhamento da adjudicao constitucional ............... 86

    1.3.3 Projeto de resoluo da Cmara (PRC) n 21/2011 criao da Comisso

    de Controle Legislativo dos atos normativos dos Poderes Executivo e Judicirio 92

    1.3.4 Outros exemplos de reaes fortes do Congresso ...................................... 93

    1.4 Palavra final com o Legislativo .......................................................................... 95

    1.5 Porque secundarizar a angstia pela ltima palavra ....................................... 131

    2. Deciso compartilhada? As teorias do dilogo constitucional como resposta

    preocupao com a ltima palavra ....................................................................... 134

    2.1 A tipologia das teorias dialgicas de Bateup ................................................... 135

    2.1.1 Teorias do Mtodo Judicial (Theories of Judicial Method) ............................ 142

    2.1.1.1 Aconselhamento judicial (Judicial Advice-Giving) ................................... 142

    2.1.1.2 Decises centradas no procedimento (Process-Centered Rules) .......... 144

    2.1.1.3 Minimalismo judicial (Judicial Minimalism) ............................................. 145

    2.1.2 Teorias Estruturais do Dilogo (Structural Theories of Dialogue).................. 148

    2.1.2.1 Teorias da Construo Coordenada (Coordinate Construction Theories)

    .......................................................................................................................... 148

    2.1.2.2 Teorias do Princpio Jurdico (Theories of Judicial Principle) .................. 151

    2.1.2.3 Teorias do Equilbrio (Equilibrium Theories) ........................................... 156

    2.1.2.4 Teorias da Parceria (Partnership Theories) ............................................ 160

    2.1.3 Uma Promissora Teoria Dialgica ................................................................ 163

  • 11

    2.2 A superioridade epistmica do dilogo: o valor da deliberao para interpretao

    constitucional ........................................................................................................ 167

    2.3 Conceito de dilogos constitucionais que utilizaremos .................................... 193

    2.3.1 Implicaes do conceito adotado .............................................................. 203

    2.3.2 Os casos em que o ministro Barroso considera haver dilogos podemos

    concordar? ......................................................................................................... 208

    2.3.3 Dilogos constitucionais para o ministro Luiz Fux ..................................... 214

    2.4 A obrigao jurdica de considerao dos argumentos constitucionais do

    legislativo pelo judicirio ........................................................................................ 219

    3. Metodologia da pesquisa emprica .................................................................... 225

    3.1 Focos de pesquisa que no sero explorados ................................................ 244

    4. Sistema Brasileiro de Controle Concentrado de Constitucionalidade:

    dialgico? ................................................................................................................ 266

    4.1 Argumentos do legislativo so considerados? ................................................. 266

    4.2 Argumentos do judicirio so considerados? .................................................. 333

    4.3 Emendas de override e leis in your face mais uma chance para relevar as

    razes do outro ..................................................................................................... 379

    4.4 Balano da deliberao interinstitucional no Brasil .......................................... 403

    5. Consideraes finais .......................................................................................... 415

    Bibliografia .............................................................................................................. 424

    LIVROS ................................................................................................................. 424

    ARTIGOS .............................................................................................................. 431

    TESES E DISSERTAES .................................................................................. 447

    Anexo 1 - Listagem das ADIns que tiveram os acrdos analisados quanto

    considerao dos argumentos do Congresso Nacional ...................................... 449

    Anexo 2 - Listagem das ADIns que foram excludas da anlise e razes para tal

    ................................................................................................................................. 455

    Anexo 3 - Listagem dos ofcios de comunicao de declarao de

    inconstitucionalidade, enviados pelo STF, que foram analisados quanto

    considerao dos argumentos de seus respectivos acrdos ........................... 464

    Anexo 4 - Listagem dos ofcios de comunicao de declarao de

    inconstitucionalidade, enviados pelo STF, que foram excludos da anlise e

    razes para tal ......................................................................................................... 473

    Anexo 5 - Listagem das ADIns sobre Emendas Constitucionais de override e leis

    in your face que tiveram os acrdos analisados quanto considerao dos

    argumentos do Congresso Nacional ..................................................................... 486

  • 12

    Introduo

    O senso comum terico dos juristas1, no Brasil, de que quem decide

    sobre o significado da Constituio o Supremo Tribunal Federal (STF).2 Mais:

    uma vez decidido, este mesmo senso comum considera que no h como

    rever esta deciso, a menos que o prprio tribunal decida faz-lo. assim que

    o assunto abordado nas faculdades de direito,3 tambm como a imprensa o

    veicula e, mais que tudo, como pensa institucionalmente o STF.4

    1 WARAT (1982). Agradeo aos professores Luiz Henrique Cademartori e Valcir Gassen pela

    referncia ao conceito. 2 Veja-se Campos (2014), Carvalho Filho (2014), Dimoulis; Lunardi (2011), Clve (2015), Valle

    (2009) e Vieira (2009). Souza Neto e Sarmento (2013:135) dizem o mesmo em outras palavras: A viso convencional sobre interpretao constitucional no sentido de que cabe ao Supremo Tribunal Federal dar a ltima palavra sobre o que significa a Constituio. [...]. Clve (2015:8) lana que [p]erante o conjunto de reformas promovidas no Judicirio nacional nas duas dcadas passadas, possvel afirmar que a jurisdio constitucional brasileira ganhou feio concentradora e vinculante, caractersticas que foram somadas ao advento da smula vinculante e necessidade da demonstrao da repercusso geral para a admisso do recurso extraordinrio. E Barroso (2014:271) afere que [n]o caso brasileiro, esse movimento de ampliao do Poder Judicirio, particularmente do Supremo Tribunal Federal, tem sido contemporneo da retrao do Legislativo, que passa por uma crise de funcionalidade e de representatividade. Nesse vcuo de poder, fruto da dificuldade de o Congresso Nacional formar maiorias consistentes e legislar, a corte suprema tem produzido decises que podem ser reputadas ativistas [...]. Vieira (2009:487-488) chama o fenmeno de supremocracia, comparando o caso brasileiro apenas ao indiano, em que a corte tambm invalida emendas constitucionais: [...] dada a ambio constitucional e a larga esfera do Tribunal, o Supremo passa a ser responsvel por emitir a ltima palavra sobre inmeras questes de natureza substantiva, ora validando e legitimando uma deciso dos rgos representativos outras vezes substituindo as escolhas majoritrias. Se esta uma atribuio comum a outros tribunais constitucionais ao redor do mundo, a distino do Supremo de escala e de natureza. Escala pela quantidade de temas que no Brasil tm natureza constitucional e so reconhecidos pela doutrina como passveis de judicializao; de natureza pelo fato de no haver qualquer obstculo para que o Supremo aprecie atos do poder constituinte reformador. Neste sentido a Suprema Corte indiana talvez seja que partilhe o status supremocrtico do Tribunal brasileiro, muito embora tenha deixado para traz uma posio mais ativista. Em verdade, o senso mesmo de que o judicirio tudo pode. O Tribunal Superior Eleitoral teria legitimidade para cassar o mandato de uma presidente eleita. O Tribunal de Contas da Unio (s porque se chama tribunal) teria poder para declarar a ocorrncia de crime de responsabilidade dessa mesma presidente (que a poderia levar ao impedimento, s porque se chama crime). *O TCU no faz parte do judicirio; crime de responsabilidade no infrao penal. 3

    O deputado Nazareno Fonteles, em discurso de grande expediente da Cmara dos Deputados de 02 de maio de 2012, teceu as seguintes afirmaes, tratando do tema do controle de constitucionalidade e da pretensa usurpao de poder por parte do judicirio: Eu li teses e mais teses de doutorado e continuo estudando. E percebi que, no nosso Pas, as escolas de Direito no o ensinam de maneira democrtica. Do somente a viso que interessa ao Judicirio como corporao e no a viso republicana, de interesse do povo e da democracia verdadeira. preciso que venamos isso. Eu tenho uma filha formada em Direito. Quando cuidei dessas questes, ela me disse: Nunca ouvi falar sobre isso, papai. Nunca. Nem para citar, para lermos sobre o assunto. 4 Ver, por exemplo, trecho da ementa da ao direta de inconstitucionalidade (ADIn) 3345, de

    lavra do ministro Celso de Mello: [...] o modelo poltico-jurdico vigente em nosso Pas confere,

  • 13

    comum ver a grande maioria da academia jurdica brasileira dedicar

    compndios e mais compndios a teorias da interpretao, que buscam

    identificar formas prescritivas pelas quais os juzes e sobretudo os

    constitucionais devem exercer este poder verdadeiramente soberano de

    decidir por ltimo, seja com maior ou menor ativismo. 5 A descoberta da

    normatividade da Constituio em democracias recentes como o Brasil deu azo

    grande empreitada dos neoconstitucionalistas, permitindo que o judicirio

    passasse a julgar com base em princpios de tessitura semntica aberta6-7 (que

    Suprema Corte, a singular prerrogativa de dispor do monoplio da ltima palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental. Diz o ministro Fux: [...] o nosso desenho institucional [...] outorga ao Supremo Tribunal Federal a tarefa de definir a ltima palavra acerca do contedo da Carta Poltica. Deveras, enquanto guardio da Constituio (CRFB/88, art. 102, caput), Suprema Corte confiada a faculdade de invalidar, invocando o texto constitucional, qualquer lei ou ato normativo emanado das instncias polticas majoritrias. Noutros termos, o Supremo detm a ltima palavra no mbito do Estado Democrtico de Direito, mxime porque seus pronunciamentos no se sujeitam repiso, por um vis formal a qualquer controle democrtico. [...] (ministro Luiz Fux, do STF, em seu voto na ADIn 5105 grifo do original). 5 O Conselho Federal da Ordem dos Advogados (OAB) do Brasil criou uma comisso para a

    elaborao de um anteprojeto de Cdigo Brasileiro de Processo Constitucional, a ser proposto ao Congresso. O texto final proposto por essa comisso (disponvel em http://www.oab.org.br/arquivos/anteprojeto-codigo-de-processo-constitucional-1336318980.pdf, acesso em 30/09/2015), presidida pelo eminente neoconstitucionalista Paulo Bonavides, foi entregue ao pleno da OAB em 21/09/2015. Alguns excertos lanados no documento so bom termmetro do pensamento mdio do meio jurdico nacional sobre a hermenutica constitucional: [...] De tal maneira que, em matria de direito positivo, o passado, que dantes pertencia ao legislador ordinrio e ao codificador, doravante na atualidade pertence ao constituinte e aos tribunais e magistrados da jurisdio constitucional. Tambm do anteprojeto se l um Art. 3 que diz O Processo Constitucional tem por fim a garantia do Texto da Constituio e a concretizao dos direitos constitucionais, como direitos fundamentais que, somado ao Art. 5 (So competentes para exercitar o processo constitucional os rgos do Poder Judicirio, nos termos dispostos pela Constituio Federal.), faz concluir que a garantia do texto da Constituio e a concretizao dos direitos constitucionais seriam competncias dos rgos do poder judicirio, e de ningum mais. Isso torna mais impactante perceber que esta mesma OAB tenha tecido as veementes crticas que teceu atitude do ministro Gilmar Mendes, que deixou o plenrio do STF ao ser contrariado quando do julgamento da ADIn sobre o financiamento empresarial de campanhas (Gilmar Mendes havia criticado a OAB por intentar a ao com supostos fins partidrios). Disse a OAB em nota: "O ato de abandono do plenrio, por grotesco e deselegante, esse se revelou mais um espasmo autoritrio de juzes que simbolizam um Poder Judicirio desconectado da democracia, perfil que nossa populao, definitivamente, no tolera mais"; diz outro trecho da nota: "No mais tolervel o tempo do poder absoluto dos juzes. No mais aceitvel a postura intolerante, smbolo de um Judicirio arcaico, que os ventos da democracia varreram. Os tempos so outros e a voz altiva da advocacia brasileira, que nunca se calou, no ser sequer tisnada pela ao de um magistrado que no se fez digno de seu ofcio." [Grifo nosso]. (Disponvel em http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/09/1682925-gilmar-mendes-abandonar-o-plenario-foi-grotesco-e-autoritario-afirma-oab.shtml, acesso em 17/09/2015). De um lado, a crtica ao poder absoluto, de outro (no caso do anteprojeto), o reforo desse poder. 6 Examples spring quickly to mind: abortion is one; also affirmative action; the legitimacy of

    government redistribution or interference in the marketplace; the rights of criminal suspects; the precise meaning of religious toleration; minority cultural rights; the regulation of speech and

    http://www.oab.org.br/arquivos/anteprojeto-codigo-de-processo-constitucional-1336318980.pdfhttp://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/09/1682925-gilmar-mendes-abandonar-o-plenario-foi-grotesco-e-autoritario-afirma-oab.shtmlhttp://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/09/1682925-gilmar-mendes-abandonar-o-plenario-foi-grotesco-e-autoritario-afirma-oab.shtml

  • 14

    permitem a ocorrncia de desacordos morais razoveis 8 , sobre o sentido

    correto da Constituio, entre cidados honestos e preocupados com o futuro

    da comunidade) e justificasse a atitude na necessidade de garantir direitos

    fundamentais. O constitucionalismo confundido e assim imensamente

    reduzido atuao do tribunal constitucional, enquanto o conceito de

    democracia que se adota uma varivel dependente da justificativa do controle

    judicial de constitucionalidade (assume-se que este necessariamente

    compatvel com aquela, ento a ideia de democracia que deve se ajustar

    ZURN, 2007:8). Vivemos a era da judicializao da poltica somada ao ativismo

    judicial (BARROSO, 2014)9. Afinal, todos queremos efetivar direitos; os nicos

    percalos: decidir exatamente o que so e como fazer para implement-los.

    spending in electoral campaigns; and so on. In each of these cases, the core meaning of some widely accepted right or rights is open to dispute, and the dispute is well understood among philosophers, politicians, and social commentators as representing a major unresolved issue of principle unresolved, that is, so far as any provisions likely to appear in the text of a Bill of Rights are concerned. As I mentioned [...], it is not that the terms of the Bill of Rights represent one side or the other in these watershed debates, though that sometimes happens. It is rather the case that the terms of the Bill of Rights point up these watershed issues but do not resolve them. (WALDRON, 2004:13). [Grifo nosso]. 7 Cruz (2009:17-18), criticando a possibilidade de os juzes utilizam-se de tcnicas de deciso

    para pr um fim disputa de sentido dos princpios abertos, defende como alternativa o procedimentalismo, que [...] procura destacar no o erro no emprego das tcnicas ligadas s teorias da argumentao, mas essencialmente a equivocidade em si das mesmas, tanto do ponto de vista poltico-sociolgico ao colocar em risco a prpria democracia, eis que o juiz passa a se arrogar condio de legislador, como do ponto de vista cientfico, eis que lastreado em um mtodo a lei da coliso vista por muitos como verdadeiro postulado normativo ou marca do paradigma contemporneo a proporcionalidade. 8 Rawls (1996:36).

    9 Parece que toda e qualquer questo pode ser equacionada pelo judicirio, seja porque ele se

    aparenta mesmo capaz de resolver, seja porque ele pode contestar qualque deciso dos demais. Exemplos: Contrrio ao plano aprovado para recuperar o Cais Mau, em Porto Alegre, o grupo Cais Mau de Todos pretende tomar medidas legais para tentar barrar o andamento do projeto atual. [...] Os integrantes do movimento estudam como encaminhar um mandado de segurana ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a imediata suspenso do processo. Para isso, a advogada e membro do grupo Jacqueline Custdio entende que a medida dever incluir o poder pblico como uma das partes e envolver uma questo constitucional no especificada durante a entrevista coletiva o enquadramento exato dever ser discutido nos prximos dias. (Artigo Grupo estuda recorrer ao STF contra projeto do Cais Mau em Porto Alegre, do jornal Zero Hora, disponvel em http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/09/grupo-estuda-recorrer-ao-stf-contra-projeto-do-cais-maua-em-porto-alegre-4850052.html, acesso em 17/09/2015, grifo nosso). Tambm: STF decidir se transexual pode usar banheiro feminino (reportagem sobre o julgamento do RE 845779, disponvel em http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/11/stf-decidira-se-transexual-pode-usar-banheiro-feminino-4907709.html, acesso em 18/11/2015). Perceba-se o tipo de controvrsia que pode parar diretamente no STF, sem qualquer intermediao e, mais ainda, sem qualquer clareza sobre que norma constitucional estaria sendo infringida. O que importa recorrer ao Supremo. Mas a atitude no tpica de militantes de movimentos sociais urbanos: parlamentares e o prprio governo federal tm cada vez mais recorrido ao Tribunal quando so derrotados nas esferas da poltica. Usam o tribunal quase como uma terceira casa

    http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/09/grupo-estuda-recorrer-ao-stf-contra-projeto-do-cais-maua-em-porto-alegre-4850052.htmlhttp://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/09/grupo-estuda-recorrer-ao-stf-contra-projeto-do-cais-maua-em-porto-alegre-4850052.htmlhttp://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/11/stf-decidira-se-transexual-pode-usar-banheiro-feminino-4907709.htmlhttp://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/11/stf-decidira-se-transexual-pode-usar-banheiro-feminino-4907709.html

  • 15

    Mas nunca, em nenhuma era, o assenhoreamento do cetro foi gesto

    inconstestado. Houve muitas disputas nos ltimos anos entre o STF e o

    Congresso Nacional acerca da palavra final sobre o sentido da Constituio.

    Contudo, mesmo nestes casos, os parlamentares procuraram afirmar que a

    Carta Poltica trazia significado diverso daquele empregado pelos ministros do

    tribunal, dificilmente, porm, disseram que o STF careceria da legitimidade

    para decidir.

    Nesse contexto, parece haver um ponto de convergncia de

    possibilidades em constituies analticas como a brasileira e sintticas como a

    norte-americana: desde que sujeitas a sistemas de controle de

    constitucionalidade judicial forte (onde dado poder corte constitucional para

    invalidar leis que considere afrontarem a Constituio), ambas as cartas

    podero ter seu sentido amplamente criado por meio da atuao judicial. A

    constituio analtica, porque contm princpios polissmicos e at

    contraditrios10; a sinttica, em razo de conter (quase) apenas princpios. O

    determinante , portanto, o nvel de poder que detm a corte no desenho

    institucional (e na cultura jus-poltica do pas), alm, claro da aceitao da

    supremacia da Constituio (ideal do constitucionalismo).

    No deve surpreender, assim, que tenhamos importado uma

    preocupao j antiga nos Estados Unidos11: a de como considerar legtima

    legislativa (ver artigo de Andr Ramos Tavares Partido-politizao da Justia Constitucional, disponvel em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0402200609.htm, acesso em 08/10/2015). Tambm, no mesmo sentido, Vieira (2009:490). Recentemente (em 08/10/2015), o STF concedeu cautelar (PET 5828) liberando o uso de droga contra o cncer no aprovada pela Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=301441&caixaBusca=N, acesso em 16/10/2015). And so on... 10

    Veja-se a tima sntese do ministro Carlos Ayres Britto em seu voto proferido nos autos da ao direta de inconstitucionalidade 1351: [...] Como a nossa Constituio consagra muitos valores, alguns deles se antagonizam, na prtica, levando-nos a um tipo difcil de opo - j tenho falado sobre isso -: se optamos de um jeito, prestigiamos a Constituio; se optamos de outro, prestigiamos igualmente a Constituio. E fica uma estranha opo interpretativa entre o certo e o certo, j que todas as opes tm lastro constitucional. aquele tipo de questo que lembra Scrates, em um dilema famoso, quando perguntado por um discpulo: Mestre, o homem deve casar ou permanecer solteiro? E Scrates respondeu: Seja qual for a deciso, vir o arrependimento. Mas a nos socorre, graas a Deus, o chamado principio da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja: entre o certo e o certo, qual a opo que menos ofende os outros valores da Constituio? Dizendo de modo reverso: qual a opo mais afirmativa dos demais valores da Constituio? [Grifo nosso]. 11

    relevante o alerta que faz Manuel Atienza: Muitas vezes no nos damos conta, mas o que estamos importando das universidades do mundo anglo-saxo so problemas, mtodos de anlise e objetivos que podem no ser exatamente os que seriam de maior interesse para ns.

    http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0402200609.htmhttp://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=301441&caixaBusca=N

  • 16

    na democracia - uma deciso final sobre o sentido da lei maior do Estado

    tomada por uma instituio que no controlada diretamente pelo povo e que

    no deve explicaes a ningum. 12 Nos EUA o debate sobre o assunto

    remonta a 1960, com The Least Dangerous Branch, de Alexander Bickel13

    (FRIEDMAN, 1993:578). No Brasil, a dcada de 1990 foi de consolidao do

    STF, com seus novos poderes oriundos de 1988, e os anos 2000 viram florecer

    uma jurisprudncia ativista e autoconfiante. No, contudo, sem que as mesmas

    inquietudes dos norte-americanos vicejassem ao p dessa frondosa rvore da

    supremacia judicial.

    As crticas ao poder do tribunal constitucional dizer a ltima palavra

    questionam inmeras justificativas para querer-se um tal desenho institucional,

    salientando a zona de atrito e mesmo de eventual incompatibilidade entre

    democracia e constitucionalismo. Atacam desde a ideia de que cortes

    deliberem moralmente melhor sobre direitos at a prpria suposio de que

    consegussemos determinar o que a deciso correta. Tambm importamos

    em, Terrae Brasilis,14 estas crticas. Veremos uma sntese delas, com alguns

    autores-chave, no Captulo 1, para perceber a aplicabilidade ao contexto

    nacional. Este tpico auxilia a defender nossa posio normativamente

    favorvel a que a ltima deciso sobre o significado da Constituio reste nas

    mos dos representantes do povo.

    Creio que se logrssemos articular uma comunidade jusfilosfica no conjunto de pases do mundo latino (aproveitando a proximidade existente desde o ponto de vista cultural, lingustico etc.), poderamos contribuir tambm para uma filosofia do Direito mais equilibrada no plano global. (trecho de entrevista publicada em 05 de setembro de 2015, disponvel em http://www.conjur.com.br/2015-set-05/entrevista-manuel-atienza-professor-universidade-alicante, acesso em 1/12/2015). Ainda assim, poucas preocupaes anglo-saxs como esta da supremacia judicial se-nos-parecem hoje to brasileiras; aqui creio que no pertine a ponderao do catedrtico da Universidad de Alicante. 12

    [...] The democratic legitimacy of judicial review is an enduring issue in liberal-democratic polities where the judiciary has been given the responsibility to review constitutional principles and the power to set aside the legislative decisions of those who are democratically elected. [...] (HIEBERT, 2002:21). 13

    tambm clssica, por exemplo, a ideia da corte como protetora, apenas, das pr-condies da democracia, no sentido de Ely (1980:103), para quem o controle de constitucionalidade vlido quando os que esto no poder no deixam (ilegitimamente) os que no esto entrar. Souza Neto e Sarmento (2013:151-152) arrolam as condies de funcionamento da democracia como temas em que, mesmo num sistema de deferncia judicial s posies dos poderes polticos, requerem postura ativista por parte do judicirio. 14

    Para referir Lnio Streck em tantas de suas obras.

    http://www.conjur.com.br/2015-set-05/entrevista-manuel-atienza-professor-universidade-alicantehttp://www.conjur.com.br/2015-set-05/entrevista-manuel-atienza-professor-universidade-alicante

  • 17

    Entendo que h diversos motivos para desejar que assim fosse. H um

    enorme potencial educativo em ter de resolver os prprios problemas sem

    dispor de um superego (lembrando Ingeborg Maus, 2000) exterior para faz-lo.

    A deciso parlamentar, ademais, em geral possui considervel valor

    epistmico, como assim considera a teoria da democracia deliberativa que

    abraamos neste trabalho15. No bastasse, est escrito no pargrafo nico do

    Art. 1 da CF/88 que [t]odo o poder emana do povo, que o exerce por meio de

    representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituio16, ou

    seja, numa leitura nada absurda, h mais poder nos ramos sufragados do

    Estado do que no judicirio. O Art. 2 da Constituio fala em independncia e

    harmonia entre os trs poderes, mas no fala em horizontalidade.

    Essa proposta de palavra final com o Congresso, contudo, no Brasil,

    esbarra na realidade de um parlamento pouco representativo e sem a

    confiana da populao (o que no peculiaridade nacional). Alm disso, e

    muito mais importante (porque composies parlamentares so alterveis), a

    Constituio Federal de 1988 previu expressamente o STF como guardio e o

    controle judicial de constitucionalidade como forma de exercer este papel.

    Difcil distorcer o poder que isso d ao STF: ele, como instituio, que ter

    falado por ltimo quando, por exemplo, a deciso de uma determinada ao

    direta de inconstitucionalidade (ADIn) transitar em jugado e for executada.

    certo que os ministros do tribunal podem adotar diversas posturas, desde as

    mais auto-contidas, at as mais ativistas e que o nosso sistema constitucional

    permite qualquer delas. Mas inegvel que so os membros do STF e

    somente eles que decidiro ter ou no deferncia pela posio dos

    parlamentares. por este motivo que qualquer demanda que vise a orientar a

    forma de julgar dos ministros do Supremo, por mais razovel e bem

    fundamentada que seja, no passa de uma prescrio que poder ser ou no

    seguida, pelos magistrados, ao seu prprio alvedrio.

    Se fosse em geral auto-contida e deferente s posies do Congresso

    Nacional, seria mais difcil enxergar a atuao do Supremo Tribunal Federal

    15

    Com foco nas verses de Carlos Santiago Nino (1997) e David Estlund (2011). 16

    de Barroso (2014:252) a passagem: [...] Nunca demais lembrar que o poder emana do povo, no dos juzes.

  • 18

    como um problema democrtico. Porm, como os tempos hodiernos tm

    mostrado, o tribunal crescentemente aproveitou oportunidades para fazer valer

    suas posies jus-polticas em detrimento daquelas aprovadas pelos

    representantes eleitos, o que favorece a que se levante questionamentos sobre

    a legitimidade democrtica de seus julgados.

    Ancorada nessas premissas, a busca por melhorar este sistema, com

    foco da democratizao da jurisdio constitucional, tem sido a tarefa de um

    considervel espectro de estudiosos do pas, que adotam diversos vieses:

    desde a caracterizao de uma democracia substantiva (com direitos

    fundamentais e seus ncleos intangveis a serem defendidos pelo judicirio e

    somente assim, pensam, teramos uma verdadeira democracia), passando por

    aqueles que dizem ser democrtica a postura do STF porque est prevista na

    CF/8817, at a afirmao da necessidade de modificar a Constituio, retirando

    do STF e conferindo ao Congresso Nacional o poder de dizer por ltimo o

    sentido da Constituio.18 Estas posies baseiam-se em ideais diversos de

    democracia e em pouco ou nada inovam aquelas j clssicas na literatura

    internacional, notadamente nos estudos da common law.

    Uma parcela nada desprezvel das tentativas de encontrar a legitimidade

    democrtica no controle judicial de constitucionalidade apontou num sentido

    diferente, advogando a existncia de dilogos constitucionais 19 no Brasil e

    dizendo mais ou menos o seguinte: por existir uma dinmica de interao entre

    17

    Aceitar a autoridade democrtica das decises do STF exige mais do que a previso constitucional. Mas h tericos como Freeman (1991:1) que consideram ser democrtico e legtimo o controle judicial de constitucionalidade pelo s fato de ter sido aprovado pela assembleia constituinte: It has long been argued that the institution of judicial review is incompatible with democratic institutions. This criticism usually relies on a procedural conception of democracy, according to which democracy is essentially a form of government defined by equal political rights and majority rule. I argue that if we see democracy not just as a form of government, but more basically as a form of sovereignty, then there is a way to conceive of judicial review as a legitimate democratic institution. The conception of democracy that stems from the social contract tradition of Locke, Rousseau, Kant and Rawls, is based in na ideal of the equality, independence, and original political jurisdiction of all citizens. Certain equal basic rights, in addition to equal political rights, are a part of democratic sovereignty. In exercising their constituent power at the level of constitutional choice, free and equal persons could choose judicial review as one of the constitutional mechanisms for protecting their equal basic rights. As such, judicial review can be seen as a kind of shared precommitment by sovereign citizens to maintaining their equal status in the exercise of their political rights in ordinary legislative procedures. Para excelente crtica de Freeman, ver Zurn (2007:131 e ss). 18

    Algumas tentativas de reduzir poder do STF so escrutinadas na Seo 1.2 do Captulo 1. 19

    Alguns chamaram-nos de dilogos institucionais (e.g. SILVA, 2010; CLVE; LORENZETTO, 2015).

  • 19

    o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, as decises do tribunal

    acabam sempre dialogando com as posies do parlamento e, nessa fluncia

    de trocas (seja de argumentos, seja de embates), a importncia da palavra final

    seria bastante reduzida ou at mesmo deixaria de se poder falar em ltima

    palavra. Haveria, portanto, alguma dignidade na interpretao da Constituio

    fora da corte. Proclamam expressamente a existncia de dilogos

    constitucionais no Brasil, pelo menos, Silva et al. (2010:132)20; Oliveira Mendes

    (2014:101)21, Batista (2015)22, Brando (2012:260 e 310)23, Introcaso (2014)24,

    Victor (2013:181-186)25, Ramos e Pinheiro (2015)26, Dias Junior (2012:102)27,

    Silva e Ferreira (2012:27)28, alm dos ministros Barroso29 e Fux30.

    20

    [...] essa estratgia de atuao [dialgica] no estranha nossa prtica institucional [...] a incorporao do ferramental das teorias dialgicas permite compreender com maior clareza as estratgias de interlocuo manuseadas pela Corte [...] 21

    Est, pois, comprovada a possibilidade de que o modelo poltico brasileiro fornea os instrumentos de design (sic) institucional necessrios aplicao das credenciais normativas do dilogo constitucional o Parlamento falando por meio das emendas constitucionais e a Suprema Corte conversando pela via do controle de constitucionalidade. A soluo fomentada pela interao apresentou, sem dvidas, resultados que realizaram de forma mais completa as potencialidades constitucionais. 22

    Entende-se que o Brasil possui um sistema legal que permite o efetivo dilogo institucional e que nossa sociedade, com cada dia maior envolvimento da populao no debate pblico e poltico, pavimenta terreno no qual permite-se falar em dilogo institucional dos poderes quanto ltima palavra sobre controle de constitucionalidade das leis. A prevalncia da ltima palavra cabe, no Brasil, ao Supremo Tribunal Federal, mas fazendo parte de um processo dialgico entre os demais poderes e sociedade. (do Resumo) 23

    [...] apesar das condies amplamente favorveis judicializao da poltica e expanso do poder poltico do Judicirio, ainda no h supremacia judicial no Brasil [...]. Portanto, a recorrente aprovao de emendas constitucionais aps outubro de 1988, e a cautela do STF no controle da sua compatibilidade com os limites ao poder de reforma constitucional, parecem comprovar que tal competncia especial do STF no tem lhe conferido, de fato, a ltima palavra sobre o sentido da Constituio. 24

    [...] seremos capazes de observar um intenso fluxo de aes e reaes entre esses dois poderes da Repblica [Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional] na tarefa de interpretao do texto constitucional, podendo assim concluir pela existncia de um verdadeiro cenrio de dilogos institucionais no Brasil. (do Resumo) 25

    [...] A idia que, conforme foi exposto, o dilogo existe e acontece no mundo dos fatos. [...] O trabalho permite que se tire algumas concluses esperanosas: o dilogo j fato [...]. 26

    No que se refere interao entre STF e o Parlamento, se observada a cultura decisria do STF, o padro de interao resultante ser primordialmente adversarial. Entretanto, no se pode deixar de vislumbrar o fenmeno de intercmbio de razes. Nos ltimos anos, houve episdios de interao entre legislador e STF. Tais episdios evidenciam que o legislador, tanto o ordinrio, quanto o constituinte, reage ao STF com frequncia e busca, de uma forma ou de outra, argumentar. (pg. 17, grifos nossos). Essa passagem parece um pouco contraditria com o que dizem os autores em seguida do texto: No que tange ao Brasil, observa-se ainda que o pas no possui um modelo comunicacional. Apesar da inexistncia de procedimento que propicie os dilogos institucionais, possvel inferir do texto constitucional brasileiro de 1988 algumas hipteses de cooperativismo entre o Judicirio e o Legislativo. (pg. 18)

  • 20

    Se estiverem corretos, se realmente ocorrerem dilogos na interao

    entre Congresso Nacional e STF, isso satisfaria a nsia por legitimidade ao

    controle judicial de constitucionalidade? No precisamos ir longe para perceber

    que essa resposta depende, integralmente, do conceito de dilogos

    constitucionais que for adotado (e so vrios os possveis31). Eis a razo pela

    qual dedicamos o Captulo 2 a compreender o que vem sendo considerado

    pelos estudiosos mundo afora, e tambm aqui, como prticas dialgicas.

    Tentamos absorver e mesmo reenquadrar incurses frutferas de explicar e

    classificar as diversas teorias do dilogo. Assim, pareceu plausvel afirmar

    quais vertentes so mais propensas a reivindicar, no seio da democracia, a

    dinmica dialgica entre os poderes legislativo e judicirio como legitimadora

    das decises. A justificao para isso, cremos, reside na produo de

    resultados epistemicamente mais defensveis, o que aproximou a mtrica

    daquelas teorias com maior potencial deliberativo. Visto tudo, enunciamos o

    conceito de dilogos que ser utilizado tanto como critrio de verificao

    descritiva, quanto como standard de postulao normativa. Sobretudo, nos

    parece que a ideia de dilogo realmente tem chances de impregnar a

    interpretao constitucional com o germe democrtico. Por qu?

    Acredito que no seja possvel determinar filosoficamente, de maneira

    prvia e inequvoca, qual seria a deciso correta sobre direitos a partir de um

    determinado problema e de uma determinada Constituio (nego, portanto, o

    27

    [...] saliente-se ser equivocado afirmar que inexiste qualquer experincia de dilogos institucionais entre o Supremo Tribunal e o Poder Legislativo brasileiro. Pelo contrrio, essa forma de atuao no estranha prtica constitucional ptria, de modo que o grupo de pesquisa Novas Perspectivas da Jurisdio Constitucional aponta um no muito extenso, porm relevante acervo de estratgias de construes decisrias dialgicas entre tais poderes. 28

    Mais especificamente no caso brasileiro, percebe-se que a teoria dos dilogos institucionais est assentada na inconstitucionalidade por omisso. Com isso, verifica-se que foi adotada de maneira inversa em comparao aos pases em que foi originariamente desenvolvida. [...] 29

    Posio apontada na Resenha sobre o ano de 2014 do STF, disponvel em http://www.conjur.com.br/2014-dez-31/roberto-barroso-ano-sinaliza-mudancas-supremo-tribunal-federal, acesso em 25/09/2015. As afirmaes de Barroso sobre o tema so objeto de debate em tpico prprio (item 2.3.2 da Seo 2.3 do Captulo 2). 30

    Ele defendeu a teoria dos dilogos constitucionais explicitamente em seu voto, como relator, na ADIn 5105. Esta manifestao tambm merecer considerao em parte a ela dedicada (item 2.3.3 da Seo 2.3 do Captulo 2). 31

    O espectro vai desde os dialogistas que defendem e acreditam na superioridade epistmica das decises da corte, at aqueles que chamam de dialgicos sistemas em que a palavra final institucionalmente conferida ao parlamento (casos de controle judicial fraco de constitucionalidade).

    http://www.conjur.com.br/2014-dez-31/roberto-barroso-ano-sinaliza-mudancas-supremo-tribunal-federalhttp://www.conjur.com.br/2014-dez-31/roberto-barroso-ano-sinaliza-mudancas-supremo-tribunal-federal

  • 21

    vis substancialista da democracia). A forma de garantir igual dignidade a

    todas as posies dar a cada indivduo o mesmo peso na deciso final, o que

    conduziria, prima facie, ao procedimentalismo majoritrio. A questo : esse

    procedimentalismo seria compatvel (no s, mas tambm) com decises

    tomadas pelo voto de uma maioria que, questionada sobre determinado

    assunto, manifeste sua posio. Nada exige, ainda que atendido o critrio da

    igual dignidade, que haja deliberao e tentativa de convencimento

    previamente ao momento da deciso. Ento, por que gastamos tanto tempo e

    energia em campanhas eleitorais e em debates parlamentares (para no falar

    em sesses dos tribunais)? No bastaria que enuncissemos a divergncia e

    votssemos?

    Parece que no, que necessrio somar algo ao procedimentalismo

    majoritrio. 32 Sempre h, ou poder haver, desacordos insanveis entre

    pessoas razoveis, mesmo aps longa e criteriosa deliberao pblica e, neste

    momento, ser pelo voto da maioria que decidiremos a questo (mesmo os

    tribunais decidem por maioria). Ocorre que ns no abrimos mo de discutir e

    expor argumentos, pelas mais diversas razes, seja para deixar claro o que

    pensamos (temos essa vontade inata de que os outros saibam o que

    queremos), seja para tentar convencer os demais.

    Entendo que a deliberao, quando h ateno mtua entre os

    interlocutores (pessoas naturais ou mesmo instituies) acerca dos motivos e

    argumentos uns dos outros, tem um considervel potencial epistmico, no

    sentido de que garante decises mais prximas daquilo que ser melhor para

    todos, pois, ao argumentar o meu interesse com outrem, eu no posso sob

    pena de eliminar minhas chances de ser convincente sustentar que os seus

    interesses so ilegtimos ou irrelevantes. Isso favorece o uso, em debates

    quetais, da razo pblica. Mesmo Jeremy Waldron, notrio defensor da

    democracia procedimental, no considera esta incompatvel com um vis

    32

    [...] si uno parte de una concepcin deliberativa de la democracia, luego, no puede considerar que el mero hecho de que muchas manos se levantem al unsono sea sinnimo de decisin democrtica. Tal requisito no basta para darle legitimidad constitucional a una leye: em democracia es necesario conocer las razones que justifican las decisiones que se quieren tomar. [...] (GARGARELLA, 2010:172). [Grifo nosso]. E tambm no basta a mera votao majoritria, devemos acrescentar, para dar legitimidade a uma deciso judicial.

  • 22

    deliberativo, apenas compreende que a ideia de deliberao no pode

    pressupor, necessariamente, que se chegar a um consenso apenas em

    funo da razoabilidade dos argumentos33, no que est absolutamente correto.

    Tambm podemos lembrar Adrian Vermeule, custico detrator da supremacia

    judicial e explcito advogado do potencial epistmico da deliberao.34 Veja-se,

    ainda, Mark Tushnet, reconhecido terico da supremacia parlamentar, que, em

    Weak Courts, Strong Rights, dedica um Captulo inteiro tarefa de estipular

    critrios para a avaliao da performance constitucional interpretativa de

    legisladores e juzes, o que pressupe, como intuitivo, que possam existir

    formas de saber se uma determinada deciso melhor ou no segundo a

    Constituio.35 Ou seja, se tem ou no potencial epistmico.36

    33

    [...] Una buena teora puede partir de presupuestos idealistas sobre las motivaciones de la gente, pero si lo hace debe ser consciente de que en el mundo real, incluso despus de la deliberacin, la gente seguir discrepando de buena fe sobre el bien comn y sobre cuestiones de polticas concretas, de principios, de justicia y correccin, cuestiones sobre las que esperamos que un Parlamento delibere. Las mejores teorias de la democracia deliberativa se caracterizan por su voluntad de aceptar este punto e incorporalo en su concepcin de la deliberacin. Y, ciertamente, creo que la filosofia del derecho debe situar esta perspectiva del desacuerdo en el centro de su teora de la legislacin y no en su periferia. Ignorarlo o querer mantenerlo lejos es como desear que la escasez se mantenga bien lejos de los fundamentos de una teora de la justicia. (WALDRON, 2005:113). A teoria da democracia deliberativa que sustenta a viso adotada neste trabalho sobre os dilogos constitucionais desejveis coaduna-se com esta preocupao de Waldron, sendo, portanto, coerente e compatvel com a crtica procedimentalista supremacia do judicirio. 34

    Ver, por exemplo, a nota de rodap n 158. 35

    The more general point is that many constitutional questions admit of reasonable disagreement and that all sides in a dispute can take different positions while all remain faithful to the constitution. Take the problem in a different setting. The U.S. Supreme Court issues a constitutional decision. I may think that the Constitution pretty clearly means something else, and indeed three Supreme Court justices agree with me. I doubt that anyone could fairly charge me with being faithless to the Constitution were I to persist in holding the view I held before the Court acted. Now, take the problem in the setting with which this chapter is concerned: A legislature acts in a way inconsistent with some stipulated standard, whether it be the critics or the courts. The mere fact that the legislature disagrees with the courts or with the critic does not establish that the legislature behaved in a manner demonstrating its inability to arrive at reasonable conclusions about the constitution. Thus, a legislature may be wrong, from my point of view or from that of the courts. Its errors do not, however, show that the legislature is performing badly as a constitutional decision maker. At most, these errors show that the legislature disagrees with me, or the courts, about what the constitution means. Evaluations of legislative constitutional performance must therefore take account of the fact of reasonable disagreement over the constitutions meaning. The criterion an evaluator must apply is this: Did the legislature do something that is not at all oriented to the nations constitutional traditions? Obviously this criterion tilts the field of evaluation in the legislatures favor setting a baseline that is truly a line rather than a point because of the fairly wide range of reasonable positions available on nearly every constitutional question. But, to me, it is the only criterion that makes sense. (TUSHNET, 2008:103-104). Aqui, Tushnet busca avaliar a qualidade, balizada por sua aderncia a uma interpretao razovel da Constituio, das decises parlamentares frente s judiciais. No exatamente o que a teoria dialgica deliberativa defendida neste trabalho faz, porquanto ela busca o potencial epistmico da troca de argumentos entre os poderes, no a

  • 23

    A forma, portanto, pela qual o dilogo constitucional na vertente

    deliberativa e material que aqui adotada capaz de democratizar as

    decises do Supremo Tribunal Federal a exigncia de que os magistrados

    considerem e discutam a interpretao que os parlamentares fazem da

    Constituio e, na via inversa, que os deputados e senadores faam o mesmo

    com as decises do STF ao exercerem o seu mnus. E frise-se: no basta que

    os juzes e os legisladores dem razes (quaisquer, por melhores que

    paream) para decidir, eles precisam levar em conta explicitamente as

    motivaes uns dos outros. Essa a nica maneira de garantir que os

    argumentos formulados pelos representantes do povo necessariamente faam

    parte e impregnem a deciso final que ser tomada. Isso democratiza o

    produto decisrio porque a vontade dos legisladores pode ser corrigida, no

    mrito, pelo povo que vota, j a dos juzes, no. Ento, ainda que se trate de

    uma tnue influncia (como, alis, todas so as influncias do indivduo numa

    sociedade de massas), parece ser a nica37 que um cidado pode almejar no

    verificao das capacidades decisrias institucionais isoladas. Ainda assim, o que importa neste ponto apenas perceber que, para Tushnet, ainda que existam desacordos razoveis sobre o sentido de uma norma constitucional, ainda assim possvel achar critrios para saber se uma determinada deciso mais ou menos aderente Constituio, melhor ou pior, portanto. E este tambm o pressuposto para aceitar a possibilidade de um potencial epistmico na deliberao democrtica. 36

    Em verdade, a posio de Waldron no deveria ser lida como plenamente avessa a qualquer avaliao epistmica da democracia. Segundo Estlund (2000), o procedimentalismo epistmico compatvel com diversas das premissas de Waldron, sobretudo com a ideia de desacordos permanentes sobre a verdade moral: I applaud the motives that appear to be behind Waldrons resistance to any epistemic dimension of democratic authority. It is a traditional concern about epistemic political arguments: as in Plato, they tend to lead to implausible arguments for what I call epistocracy rule by a wise elite. Waldrons application of this point against the modern comfort with judicial review of legislation is welcome, whether or not we should ultimately reject that institution. But the injection of an epistemic dimension need not support epistocracy, since there may well be reasonable disagreement about the moral expertise of any proposed elite, a disagreement that does not apply to the moral expertise of certain fair, deliberative, diverse, numerous majoritarian procedures of the kind whose deliberative capacities Waldron repeatedly urges us to regard with faith and respect. But whether or not the epistemic account can succeed, Waldrons non-epistemic account of democratic legitimacy in terms of fairness alone is vulnerable to his own very plausible dissatisfaction with political choice by coin-flip. (ESTLUND, 2000:123). 37

    Algum poderia, aqui, objetar que h possibilidade de influncia nas decises do STF por meio de audincias pblicas e amici curiae. Evitando, neste passo, a polmica sobre tais institutos ( qual voltaremos no Captulo 3, Seo 3.1), responderia que o s fato de no haver garantia de escuta universal em tais formas de acesso jurisdio constitucional (so os ministros do STF que definem, discricionariamente, quem ser ouvido) suficiente para no comput-las entre as formas pelas quais o indivduo tem a pretenso inequvoca de influenciar as decises sobre o sentido da Constituio em sua comunidade poltica.

  • 24

    seio de uma democracia que d a palavra final sobre a Constituio a um

    tribunal38.

    A diferena desta para as demais teorias meramente normativas da

    adjudicao constitucional (perfeccionismo de Dworkin ou minimalismo de

    Sunstein, por exemplo) que, no nosso entender, o tribunal tem obrigao

    legal, no Brasil, de considerar os argumentos dos legisladores ainda que esta

    ideia no seja pacfica (h tpico especfico sobre este debate adiante, na

    Seo 2.4 do Captulo 2). A Constituio no prescreve qual deve ser a postura

    dos juzes constitucionais (se ativista ou de self restraint), mas ela exige a

    fundamentao das decises judiciais. Logo, no se trata aqui de mero wishful

    thinking, mas de demanda de conduta extravel de nosso sistema jurdico tal

    como vigente.

    Um modelo dialgico ideal, de acordo com nosso instrumental terico,

    ocorre nos sistemas de controle fraco de constitucionalidade (weak judicial

    control) nos quais exista a frutfera troca de razes entre o parlamento e a corte

    constitucional, mas cuja deciso que prevalece sobre o sentido da Constituio

    seja dos legisladores eleitos. Segundo entendo, mesmo nestes sistemas, a

    opinio exegtica do judicirio sobre a Carta Poltica imprescindvel ao

    processo de consolidao de uma deciso, pois ela permite ao legislativo a

    chance de enxergar aspectos que talvez tenha olvidado quando da aprovao

    de determinada lei. A grande diferena deste para sistemas de controle forte

    (como o nosso) que, no primeiro, o parlamento ter a palavra final. Stephen

    Gardbaum (2013) descreve exatamente estas caractersticas como as

    presentes no que postula ser o novo modelo de constitucionalismo da

    Commonwealth. 39 Podemos afirmar que, conforme a teoria democrtica

    38

    Como disse Lnio Streck (2015), [...] sendo o processo uma questo de democracia, eu devo com ele poder participar da construo das decises que me atingiro diretamente. Ora, em se tratando do processo objetivo de controle de constitucionalidade junto ao STF, a forma que esse eu cidado tenho de participar do processo tendo as razes apresentadas pelos meus representantes deputados e senadores consideradas pelo Tribunal, sob pena de ser atingido sem a chance de contraditar. 39

    Segundo Gardbaum (2013), os novos arranjos institucionais adotados no Canad, Reino Unido, Nova Zelndia e Austrlia nas dcadas recentes, com bills of rights inseridas numa tradio de supremacia parlamentar, fez nascer o que ele chamou de new Commonwealth model of constitutionalism. Este modelo seria um intermedirio entre a supremacia parlamentar e a supremacia judicial. As trs principais caractersticas do novo modelo seriam a existncia de uma carta de direitos; a previso do controle de constitucionalidade por um tribunal especializado para escrutinar, inclusive, leis; e um poder legislativo que mantm a

  • 25

    adotada, mais relevante saber se houve efetivamente deliberao no

    processo decisrio do que apontar quem decidiu por ltimo, o que no impede

    uma clara inclinao pela alocao da palavra final no legislativo.

    Numa sntese desses argumentos, podemos dizer o seguinte: o dilogo

    constitucional (no sentido que aqui adotado, reitere-se ad nauseam) uma

    prtica assumida, no processo de adjudicao constitucional entre o poder

    legislativo e o poder judicirio, que exige a considerao mtua de argumentos

    para a tomada de decises. Havendo essa troca argumentativa, haver

    potencial epistmico nas decises tomadas (o que no quer dizer que se

    estar, ipso facto, tomando a deciso correta ou moralmente irretocvel, mas

    apenas que ser mais provvel que a deciso seja mais adequada

    comunidade). Assumindo a validade terica da democracia deliberativa, um

    sistema jurdico em que ocorram tais dilogos ser mais democrtico se a

    rodada procedimental se encerrar no parlamento; contudo, ainda que por

    razes institucionais ou culturais o judicirio tenha o poder de decidir por

    ltimo o sentido da Constituio, a deciso ser epistemicamente melhor, e

    democraticamente mais defensvel, se houver verdadeira deliberao entre os

    poderes, pois as razes do ramo eleito tero sido consideradas, mesmo que

    para neg-las. Ou seja, mais democrtica a alocao da palavra final no

    legislativo do que no judicirio. Ainda assim, em casos em que h (como temos

    no Brasil), mecanismos jurdicos e uma afirmao reiterada do prprio tribunal

    sobre seu monoplio de dizer a Constituio, ser mais democrtico o sistema

    (e produziremos melhores decises) se, ao menos, houver respeito pelos

    argumentos mtuos na relao Congresso-STF. E, mais do que mero anseio

    normativo, essa dinmica deliberativa juridicamente exigvel no contexto

    brasileiro.

    Devidamente esclarecido o conceito de dilogos constitucionais adotado

    e suas implicaes, a seguir, esquadrinhamos a pesquisa emprica no Captulo

    3. No um tipo de coisa que se costume fazer em teses de Direito. Mas a

    sensibilidade oriunda da leitura de centenas de trabalhos nacionais e

    estrangeiros fomentou a convico de que explicar o caminho de anlise ,

    palavra final por meio da prerrogativa de editar normas de override, ou seja, de superao dos entendimentos do judicirio que entender incorretos.

  • 26

    tambm no ramo jurdico, uma prova de sinceridade cientfica (ainda que o

    Direito no seja uma cincia40). H um cacoete entre juristas de enviesar os

    casos a partir de suas almejadas concluses. No sei se consegui, mas tentei

    fazer diferente. Essa tentativa tambm de mbito: no busquei amostragens,

    mas a totalidade dos casos-tipo que pareceram elucidativos, pelos critrios

    explicitados, desde a promulgao da Constituio de 1988 at o presente. A

    metodologia desenhada quis saber de descobrir se o tipo de dilogos

    constitucionais que exsurgiu do Captulo 2 acontece no Brasil das ltimas

    40

    Tal como tambm parece pensar Lus Alberto Warat (1982:51-53): A anlise das funes polticas, dos discursos das cincias jurdicas e dos valores epistemolgicos, que a sustentam, exige a rejeio da problemtica da cientificidade da cincia. Ao levantar esta problemtica, os epistemlogos tentaram respond-la instaurando critrios rigorosos de demarcao entre o que deve ser considerado ou no como cincia. Assim, procuraram opor o conhecimento cientfico s representaes ideolgicas e as representaes metafsicas, distinguindo a verdade do erro, distanciando o sentido referencial de suas evocaes conotativas, como tambm, diferenciando as opinies comuns (a doxa) do conhecimento cientfico (a episteme). Esta ltima distino abrange todas as anteriores, j que a doxa estaria constituda por um conglomerado de argumentos verossmeis, formados a partir das representaes ideolgicas, das configuraes metafsicas e das evocaes conotativas. O conhecimento cientfico seria o saldo, logicamente purificado, de todos esses fatores. Ora, quando observamos a forma em que esta concepo de racionalidade cientfica apropriada na prxis do direito, verificamos como nenhum dos fatores, aparentemente rejeitados, deixa de manifestar-se. E o conhecimento cientfico do direito termina sendo um acmulo de opinies valorativas e tericas, que se manifestam de modo latente no discurso, aparentemente controlado pela episteme. Estamos diante do senso comum terico dos juristas, que um conhecimento constitudo, tambm, por todas as regies do saber, embora aparentemente, suprimidas pelo processo epistmico. O senso comum terico no deixa de ser uma significao extraconceitual no interior de um sistema de conceitos, uma ideologia no interior da cincia, uma doxa no interior da episteme. Trata-se de uma episteme convertida em doxa, pelo programa poltico das verdades, executado atravs da praxis jurdica. Nesta ordem de idias, o saber crtico pode ser definido como uma doxologia, que procuraria o valor poltico do conhecimento cientfico do direito, tornando, este, opinio de ofcio pela prxis jurdica. No momento em que o discurso epistemolgico, em nome do mtodo, pretende buscar a soluo dos conflitos do conhecimento, de modo imanente ao mesmo conhecimento, transforma-se em um discurso fcil de ser estereotipado, que serve para reivindicar, miticamente, um lugar neutralizdo para a prpria atividade profissional. A epistemologia tradicional procura resolver, idealmente, as relaes conflitantes entre a teoria e a prxis jurdica, ignorando, fundamentalmente, o valor poltico do conhecimento na prxis. Prope um saber que seja puro como teoria e, com isso, facilita que a dita proposta seja ideologicamente recuperada, servindo agora para que os juristas contamimem a prxis de pureza, criando a iluso de uma atividade profissional pura. Assim, os critrios de purificao metodolgica ganham um novo sentido: de uma crena vinculada a uma atividade profissional. Os juristas de ofcio, apoiados na idia de um conhecimento apolitizado, acreditam que o advogado um manipulador das leis, descompromissados politicamente, um tcnico neutro das normas. As observaes que terminamos de efetuar sobre a prtica jurdica, apresentada como um lugar fora do poder, serve para fazer uma observao crtica sobre os postulados metdicos da teoria Kelseniana, j que seus efeitos ideolgicos e polticos no provm, isoladamente, dos valores que Kelsen prope para a construo de uma cincia do direito em sentido estrito, seno pelos efeitos de seu discurso como guia e representao da prxis jurdica. o discurso kelseniano, tornado senso comum, que influi para que o jurista de ofcio no seja visto como um operador das relaes sociais; mas sim, como um operador tcnico dos textos legais. [...]

  • 27

    dcadas esse o nosso problema.41 H um considervel balizamento de

    parmetros para que a resposta a esta simples pergunta seja aceitvel. No

    foi possvel localizar algum trabalho sobre o caso brasileiro que adote este

    conceito de dilogos, nem muito menos que busque verificar, empiricamente,

    sua ocorrncia. Ainda no Captulo 3, foi elaborado um sub-item com algumas

    externalidades da reviso bibliogrfica, com apontamentos de problemas

    conexos visando a pesquisas futuras.

    O Captulo 4 apropria o mapa metodolgico rascunhado e caminha por

    dezenas de casos do STF envolvendo Emendas Constitucionais e leis do

    Congresso; tambm perscruta decises do Senado em exerccio da sua

    prerrogativa de suspender a execuo de normas julgadas, em controle

    concreto, inconstitucionais. Analisa, sobretudo, argumentos afinal, a potncia

    que consideramos a deliberao. Ser que o STF leva em considerao as

    razes pelas quais os parlamentares julgaram determinada lei como sendo

    constitucional?42 Ser que o Congresso toma em conta a argumentao do

    STF ao decidir suspender a execuo de normas julgadas inconstitucionais?

    Empreendida a anlise do material bruto, ainda no Captulo 4 trata-se de

    sistematizar os achados e responder, vista deles, se h ou no dilogos

    constitucionais no Brasil, tanto na via Congresso Nacional Supremo Tribunal

    Federal (quando julgadas as aes diretas de inconstitucionalidade), quanto no

    41

    So the real question is this: in light of that fact about the allocation of constitutional authority, how naive do we have to be to imagine that there is any prospect of dialogue in the literal sense of the term genuine conversation and two-way learning between legislators and judges in a constitutional system? [...] I suspect that strong judicial review will in most cases inhibit genuine dialogue, for judges have no incentive to defer to anything that the legislators say; I believe it will encourage the sort of one-sided exchange that I mentioned in my opening comments.

    (WALDRON, 2004:8-9). Queremos, portanto, testar se Waldron estaria correto, j que, indubitavelmente, o Brasil estampa um sistema de strong judicial review. 42

    Ou ser que Linares tem razo quando diz que: La va interpretativa es deficitaria como canal de dilogo por cuanto los jueces suelen acudir a sta de manera subrepticia; es decir, rara vez los jueces abordan pblicamente las razones de las leyes con las que estn en desacuerdo, rara vez indagan en los debates legislativos y las exposiciones de motivos para dar una respuesta al Congreso. Sucede ms bien lo contrario: cuando los jueces discrepan con una disposicin legal, o con la manera en que sta viene siendo aplicada, entonces asignan uma nueva interpretacin al texto legal, simulando o asumiendo que se es el significado pretendido por el legislador. El resultado es que los jueces no confrontan las razones ofrecidas por los legisladores, y entonces no es posible hablar de un dilogo interorgnico. Si cabe la expresin, ms que dilogo interorgnico lo que existe es un intercambio de acciones oportunistas. (LINARES, 2008b:515)

  • 28

    sentido judicirio legislativo, em que decidida a suspenso de execuo das

    leis julgadas inconstitucionais pelo STF.43

    Creio que so aportadas pelo menos duas contribuies com esta tese

    (que figuram, pois, como aportes da pesquisa): a primeira, o balizamento, no

    Brasil, de um conceito democraticamente defensvel dessa aparente panacia

    de parcela da academia jurdica nacional e internacional intitulada dilogo

    constitucional. A segunda, com a anlise emprica da atuao do Congresso

    Nacional e do Supremo Tribunal Federal quando esto a interpretar a

    Constituio, olhando para essa dinmica sob o prisma dialgico e sustentando

    que a considerao de razes uma obrigao legal dos poderes, podemos

    avaliar com considervel convico o grau e o tipo de legitimidade democrtica

    (e potencial epistmico) que tm as decises brasileiras sobre o sentido de

    nossa Carta Fundamental.

    43

    Novamente Waldron (2004:21): [...] we should consider what such dialogue is supposed to consist in; whether it is likely; and whether, if it takes place, it may reasonably be expected to make things better and lead, for example, to less dissensus or at least to better informed dissensus on the watershed issues that I have been referring to.

  • 29

    Captulo 1 As preocupaes com a soberania do judicirio

    Qualquer deciso passa por um caminho antes de ser tomada. Esta

    senda pode ser a mera sinapse cerebral, quando se trata de definio acerca

    de aspectos da vida ntima do indivduo que a toma; por outro lado, quando o

    que estiver em jogo for a resoluo de uma questo que envolva mais pessoas,

    notadamente quando a disputa for de interpretao sobre a aplicao efetiva

    de uma lei, esse caminho ser um pouco mais complexo e plural, envolvendo

    regras preestabelecidas de fluxo e competncia.44 Nada mais trivial no mundo

    do direito. O que interessa perceber que h um pressuposto implcito neste

    trajeto que estipulamos para a soluo da contenda, ao qual damos o nome de

    processo decisrio: supomos que o produto disso tudo, a deciso, resolve

    nosso problema.45 No nos concentraremos aqui na efetividade das decises,

    seara de grande interesse para a sociologia jurdica, mas que refoge ao nosso

    propsito. Quando assinalamos essa premissa obnubilada, o que queremos

    mostrar que a todos parece inerente e provavelmente mesmo o seja a

    necessidade de o processo decisrio chegar ao fim.

    Nas lides forenses mundo afora, e no Brasil isto no diferente, bvio

    que os advogados e advogadas precisam saber informar aos seus clientes

    como e quando o processo judicial (provavelmente!) comear e terminar.

    natural que se tenha previsto em nosso sistema jurdico a competncia e a

    hierarquia interna para que o poder judicirio tenha um fluxo organizado de

    tramitao das demandas, a permitir que as partes consigam, afinal, o

    provimento almejado. O que no inerente e nem inexorvel, contudo, ,

    44

    Waldron (2006:1370) menciona argutamente que h inmeros temas em sociedade sobre os quais no necessitamos de um acordo, dos quais poderamos sugerir o gosto por futebol, o lugar preferido para passar as frias e mesmo o tipo de alimentao a ser seguida (vegetariana ou no). Como patente, no h chances reais de convencer muitas pessoas a mudar de posio sobre tais assuntos, a menos que deixem de ser considerados meras questes de gosto. Em temas que envolvem direitos e interpretao de leis, igualmente no h grandes chances de convencimento, sobretudo quando se trata de desacordos morais (a dieta poderia, talvez, ser aqui alocada); contudo, aqui somos em inmeros casos obrigados a tomar decises e produzir acordos, ainda que no difcil ambiente de nossas divergncias. 45

    H literatura que no assume a existncia de uma verdadeira palavra final decisria, enxergando uma dinmica permanente de solues apenas aparentemente definitivas, mas que sempre estaro abertas superao por decorrncia do debate e questionamento social: ver Bickel (1975; 1986), Fisher (1988) e Friedman (1993).

  • 30

    quando se tratar da interpretao da Carta Poltica, supor que ela recaia em

    monoplio finalstico dos juzes46. Por que seria assim?47

    O processo judicial, sabemos, resolve verdades (jurdicas) sobre fatos e

    estipula sentidos para textos, em duas engrenagens que so estanques, mas

    deveriam funcionar harmonicamente. As leis servem para regular condutas

    sociais, todas as pessoas deveriam ser capazes, portanto, de compreend-las.

    A diferena mais importante, neste caso, entre as leis e a Constituio em

    sentido formal que esta ltima a responsvel por estipular os limites do

    poder, as regras de competncia, os direitos fundamentais intangveis. no

    conjunto destas normas constitucionais que encontraremos as margens para

    as mais relevantes ocorrncias de desacordos morais razoveis,48 e, por sua

    hierarquia (hoje incontestvel no mundo ocidental) frente s demais leis, a

    Constituio torna-se um excelente, seno o melhor, instrumento de poder

    institucional numa sociedade como a nossa. Quem a interpreta com fora

    vinculante faz sua vontade imperar por sobre os demais.49

    Essa potncia poltica tem gerado desgastes na interao entre os

    poderes legislativo e judicirio no Brasil atual, como j mencionado. ,

    sobretudo, em razo desses embates, que surge cena pblica nacional a

    premncia do debate sobre quem tem a palavra final sobre o significado da

    Constituio.

    Torna-se fundamental aqui diferenciar controle de constitucionalidade

    daquela tarefa especfica que pode caber ao judicirio dentro deste, ainda que

    46

    verdade que at mesmo ministros do STF, s vezes, consideram relevante a interpretao da Constituio no alm tribunal, como se v em: [...] cedio, na doutrina do Direito Constitucional, tal como foi feito aqui pela Lei n 9.709, que o Judicirio deve respeitar a legtima interpretao que o Poder Legislativo confere aos dispositivos da Carta Magna, porquanto aquele primeiro Poder, o Poder Judicirio, no o nico que realiza a exegese constitucional. (Trecho do voto do ministro Luiz Fux, na ADIn 2650). 47

    Nino (1997:261 e ss), por exemplo, desconstri o suposto imperativo lgico que haveria no controle judicial de constitucionalidade. 48

    Waldron (2004:11). 49

    O ministro Dias Toffoli, do STF, acha que a Constituio Federal d ao Tribunal Superior Eleitoral a competncia para cassar o mandato da presidente da Repblica eleita com mais de 50 milhes de votos (ver Toffoli refuta tese de jurista e diz que TSE pode cassar Dilma, disponvel em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,toffoli-refuta-tese-de-jurista-e-diz-que-tse-pode-casar-dilma,1777259, acesso em 10/10/2015). No h instituio, alm daquela da qual ele faz parte (STF), que possa negar essa interpretao em nosso sistema constitucional. Eu no concordo, mas no tenho qualquer canal (institucional), hoje, que possa fazer minha opinio ser considerada neste caso. Isso fere a democracia, segundo o que diria Dahl (1989:65).

    http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,toffoli-refuta-tese-de-jurista-e-diz-que-tse-pode-casar-dilma,1777259http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,toffoli-refuta-tese-de-jurista-e-diz-que-tse-pode-casar-dilma,1777259

  • 31

    saibamos que, atualmente, muito comum confundir controle de

    constitucionalidade com controle judicial de constitucionalidade. tambm

    como Zurn (2007:29) constri seu conceito de constitucionalismo democrtico-

    deliberativo, o qual albergamos:

    [...] we ought to understand and justify the function of constitutional review before we can adequately answer the design question of whether that function should be realized through the institutions of judicial review. [...] constitutional review is an essential function of legitimate government according to the ideals of deliberative democratic constitutionalism. But this does not immediately entail that that function should be carried out by courts, much less that it should be fulfilled in a judicial system in the exact same way that it is in the United States.

    Particularmente, cremos que, em grande medida, a sustentao do

    judicial review entre ns fruto de um dficit de humildade epistmica dos

    juristas em geral por estarem absolutamente convencidos de que seus pontos

    de vista morais travestidos de discursos jurdicos so melhores e, alm

    disso, de que muito mais provvel que juzes concordem com eles do que

    parlamentares, presidentes ou mesmo a plebe ignara. incomensuravelmente

    mais fcil redigir uma petio ao STF do que se engajar numa longa luta social

    por uma posio poltica, alm do que, apenas uma das opes comporta ar

    refrigerado. Carlos Nino (1997:260) chama isso, elegantemente, de elitismo

    epistemolgico e sumariza:

    [...] Es entendible que aquellos juristas que celebran las bondades del control judicial de constitucionalidad se sientan ellos mismos ms identificados com los jueces que con los polticos y, de este modo, se inclinen a pensar, como sostiene Michael Walzer, que aquello que ellos consideran ser las decisiones correctas sus propias decisiones correctas seran ms factiblemente descubiertas por los jueces que por los polticos.

    Os desgastes verificados nas relaes judicirio-legislativo que tm

    como pano de fundo a interpretao constitucional so comuns, crescentes e

    cada vez mais agudos no Brasil. Em diversos casos, chegou-se muito prximo

    anomia e inconcilivel contradio de posies entre eles. Isto, em nosso

    entender, torna o debate sobre os dilogos constitucionais ainda mais relevante

  • 32

    na atual quadra histrica, uma vez que a dinmica entre sua defesa normativa

    e sua compreenso descritiva pode afigurar-se como um prisma desejvel,

    seno mesmo necessrio, de interpretao do funcionamento da adjudicao

    constitucional, em nosso pas, que possa ser defensvel luz do desenho

    republicano da Constituio Federal de 1988.

    1.1 Acordo semntico alguns conceitos relevantes e suas conotaes

    A sequncia do trabalho ser facilitada se alguns conceitos, que

    comportam certo grau de indeterminao vista das variadas acepes em

    que encontrados na literatura especializada, tiverem o sentido em que

    concebidos aqui especificado, o que se far a seguir, em breves linhas.

    1.1.1 Palavra final e supremacia

    Quando tratamos de palavra final neste trabalho, se est falar de uma

    feceta do desenho institucional de um determinado sistema jurdico quanto a

    qual poder tem a prerrogativa de decidir sobre um determinado aspecto da

    interpretao constitucional em um dado momento.

    De outro lado, supremacia diz muito mais com a efetiva postura que

    ser ou no adotada pelo poder a quem for dada a palavra final. Ou seja,

    supondo o caso brasileiro, inelutvel que o Supremo Tribunal Federal tem a

    palavra final em cada rodada procedimental (ver melhor este conceito na

    Seo 1.5, abaixo), mas nada pressupe que ele sempre ter a supremacia,

    posto que pode e, muitos diro, deve abster-se de agir com supremacia em

    muitas das questes que lhe so submetidas, deixando espaos nos quais

    prevalecer a posio do poder legislativo.

    Note-se que esta diferenciao entre palavra final e supremacia no

    pacfica, pois h quem as utilize como sinnimos, o que pode gerar

    considerveis e desnecessrios dissensos tericos: [...] supremacia judicial,

    como tal entendida a primazia de um tribunal constitucional ou suprema corte

  • 33

    na interpretao final e vinculante das normas constitucionais. (BARROSO,

    2014:240). Esta descrio, aqui, seria da palavra final, e no da supremacia.

    1.1.2 Judicializao da poltica e ativismo judicial

    , de certa feita, semelhante a diferena que h entre judicializao da

    poltica e ativismo judicial com aquela vista no item supra entre palavra final e

    supremacia. Isto porque a judicializao da poltica, agora concordando com a

    conotao de Barroso, decorre [...] [d]o modelo de constitucionalizao

    abrangente e analtica adotado e [d]o sistema de controle de

    constitucionalidade vigente entre ns [...] (2014:244), sendo, portanto, uma

    caracterstica nsita ao nosso sistema constitucional.

    J o ativismo uma atitude, uma forma de agir dos juzes. Ainda

    segundo Barroso (2014:245-246), [...] a ideia de ativismo judicial est

    associada a uma participao mais ampla e intensa do Judicirio na

    concretizao dos valores e fins constitucionais, com maior interferncia no

    espao de atuao dos outros dois Poderes. [...]

    Basta, ao nosso propsito, deixar marcada a utilizao diferenciada dos

    termos.

    1.1.3 Democracia e democratizao

    Nem se aventa promover aqui debates aprofundados sobre o instigante

    e controverso conceito de democracia. A eventual tentativa [...] poderia nos

    levar abordagem tediosa de um atoleiro semntico, parafraseando Robert

    Dahl (2005:25). Bastar precisar em que termos so utilizadas as palavras

    democracia e, consequentemente, democratizao.

    Democracia um sistema poltico rigorosamente responsivo

    preferncia manifestada dos seus cidados. um modelo ideal, talvez sequer

    vivel faticamente, mas serve como padro analtico de regimes especficos.

    H fatores cruciais para que um governo permanea responsivo no longo prazo

    s preferncias dos seus cidados, basicamente trs (necessrios, mas talvez

  • 34

    no suficientes): (a) que todos possam formular suas preferncias; (b) que

    todos possam expressar tais preferncias a quem e como melhor lhes

    aprouver; e (c) que todos possam ter suas preferncias igualmente

    consideradas na ao do governo, sem qualquer discriminao (DAHL,

    2005:26). Aqui nos interessa, sobretudo, esta terceira condio.

    Dahl concebe o termo poliarquia, em seu clssico homnimo, como

    uma forma de tratar de regimes democrticos prescindindo de diversas

    dimenses que se poderia reivindicar neles, focando principalmente no nvel de

    contestao pblica que aceita pelo governo e