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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA - PROLAM/USP ARACELI BARROS DA SILVA JELLMAYER BEDTCHE Antonio Bento e Romero Brest. O Movimento abstrato como fluxo universal São Paulo 2016

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA - PROLAM/USP

ARACELI BARROS DA SILVA JELLMAYER BEDTCHE

Antonio Bento e Romero Brest. O Movimento abstrato como fluxo universal

São Paulo 2016

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ARACELI BARROS DA SILVA JELLMAYER BEDTCHE

Antonio Bento e Romero Brest: O Movimento abstrato como fluxo universal

V. 1

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo - PROLAM/USP para obtenção do título de Doutora em Ciências. Área de concentração: Comunicação e Cultura. Orientadora: Profa. Dra. Lisbeth Ruth Rebollo Gonçalves.

São Paulo 2016

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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL E PARCIAL DESTE TRABALHO, POR

QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E

PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogação da Publicação

Biblioteca Lourival Gomes Machado

Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

Dedicatória

À Janilda, minha alma serena e incansável. Presença angelical que, em tempos de tormenta, me aquece, protege e consola.

À Oswaldo, cujo convívio deixou marcas indeléveis em minha alma e em meu coração. Meu eterno herói e professor, com quem aprendi a sonhar com reticências e a amar sem ponto final.

Bedtche, Araceli Barros da Silva Jellmayer.

Antonio Bento e Romero Brest: o movimento abstrato como fluxo universal/ Araceli

Barros da Silva Jellmayer Bedtche; orientadora Lisbeth Ruth Rebollo Gonçalves. -- São

Paulo, 2016.

191f. :il.

Tese (Doutorado–Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina) --

Universidade de São Paulo, 2016.

1. Crítica de Arte – Brasil – Século 20. 2. Crítica de Arte – Argentina – Século 20. 3.

Abstracionismo. 4. Diário Carioca. 5. Bento, Antonio, 1902-1988.6. Romero Brest, Jorge,

1905-1989. I. Gonçalves, Lisbeth Ruth Rebollo. II. Título.

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Nome: BEDTCHE, Araceli Barros da Silva Jellmayer Título: Antonio Bento e Romero Brest: o Movimento abstrato como fluxo universal

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo - PROLAM/USP para obtenção do título de Doutora em Ciências.

Aprovado em: ___/___/___

Banca Examinadora

Professora Dra. Lisbeth Rebollo Gonçalves Instituição: ____________________________ Julgamento: ___________________________ Assinatura: ___________________________

Professora Dra. ________________________ Instituição: ____________________________ Julgamento: ___________________________ Assinatura: ___________________________

Professora Dra. ________________________ Instituição: ___________________________ Julgamento: ___________________________ Assinatura: ___________________________

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Dedicatória

À Janilda, minha alma serena e incansável. Presença angelical que, em tempos de tormenta, me aquece, protege e consola.

À Oswaldo, meu eterno herói e professor, com quem aprendi a sonhar com reticências e a amar sem ponto final.

E à Rodrigo, amigo fiel e companheiro de longas e árduas jornadas.

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Agradecimentos

Os mais ternos e sinceros agradecimentos à minha orientadora Profa Dra Lisbeth Rebollo Gonçalves pelo apoio constante. Esta trajetória de estudos teve seu príncipio na Iniciação Científica. Tudo isto somente foi possível, pois me foi concedida a oportunidade de conhecer e apaixonar-me por esta temática. Mérito de minha estimada orientadora. Por sua infinita sabedoria, inquestionável elegância e célebre profissionalismo, sinto-me privilegiada em desfrutar de sua presença e ensinamentos. Meus leais agradecimentos aos amigos Maria Lúcia e Bruno de Araújo Lima França, sempre fiéis e infatigáveis colaboradores. Agradeço também à querida professora Daisy Peccinini e à sempre didática e gentil professora Cláudia Fazzolari, por ajudarem-me no roteiro de estudos. Por último, mas não menos importante, agradeço à CAPES pela Bolsa de Doutorado.

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Resumo BEDTCHE, A.B.S.J. Antonio Bento e Romero Brest: a arte abstrata como fluxo universal. 2016. 191f. Tese (Doutorado)- Programa de Pós-Graduação em Integração na América Latina da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Seguindo a proposta metodológica comparativa do PROLAM– Programa de Pós-Graduação em Integração na América Latina da Universidade de São Paulo – o presente estudo analisa a produção crítica de dois expoentes do cenário cultural latino-americano do século XX: Antonio Bento e Romero Brest. Esses autores são contemporâneos entre si e amealharam importantes contribuições para a crítica de arte de seus respectivos países, Brasil e Argentina, na consolidação do abstracionismo. Através de uma abordagem comparativa sobre ambos os críticos, destacaram-se as aproximações e diferenças nos seus discursos. Constituíram objetivos dessa pesquisa, promover um levantamento das principais questões artísticas debatidas em ambos os países, Brasil e Argentina, no arco temporal abordado (1947-61) e investigar a atuação da iniciativa privada e do Estado no contexto de construção de Projetos Culturais. Por fim, buscou-se evidenciar as contribuições de uma crítica de arte especializada na construção de uma arte abstrata como fluxo universal. Palavras-chave: Antonio Bento, Romero Brest, Abstracionismo, Figurativismo, revista Ver y Estimar, Diário Carioca, MAM-SP, MASP.

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Abstract

BEDTCHE, A.B.S.J. Antonio Bento and Romero Brest: the abstract movement as a universal flow. 2016. 191p. Doctoral dissertation. - PROLAM – Graduate Studies Program in Latin America Integration of the University of São Paulo 2016. In accordance with the proposal of comparative methodology established by PROLAM – Graduate Studies Program in Latin America Integration of the University of São Paulo – this study analyzes the critical production of two renowned names in Latin America’s 20th century scene: Antonio Bento and Romero Brest. These authors were contemporaneous and amassed important contributions to the art critique in their respective countries, Brazil and Argentina, in the consolidation of abstractionism. Through a comparative approach to both critics, we highlight the similarities and differences in their discourses. This research aims at surveying the main artistic issues debated in both countries, Brazil and Argentina, within the time frame approached (1947-1961), and investigating the performance of private and governmental initiatives in the context of building Cultural Projects. Ultimately, we sought to evince the contributions of an art critique specialized in building abstract art as a universal flow. Keywords: Antonio Bento, Romero Brest, Abstractionism, Figurativism, Ver y Estimar magazine, Diário Carioca, MAM-SP, MASP.

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Resumen BEDTCHE, A.B.S.J. Antonio Bento e Romero Brest: el arte abstracto como flujo universal. 2016. 191f. Tesis (Doctorado)- Programa de Postgrado para Integración en América Latina de la Universidad de São Paulo, São Paulo, 2016.

Acorde con la propuesta metodológica comparativa del PROLAM- Programa de Postgrado para Integración en América Latina de la Universidad de São Paulo - este estudio analiza la producción crítica de dos exponentes de la escena cultural de América Latina del siglo XX: Antonio Bento y Romero Brest. Estos autores son contemporáneos entre sí y han acumulado importantes contribuciones a la crítica de arte en sus respectivos países, Brasil y Argentina, en el ámbito de consolidación de la abstracción como forma de pensamiento. A través de un enfoque comparativo de los dos críticos, se destacaron las similitudes y diferencias en sus discursos. Son objetivos de esta investigación, la realización de un estudio de las principales cuestiones artísticas discutidas en los dos países, Brasil y Argentina, en el período de tiempo sugerido (1947-1961) y averiguar el papel desarrollado por los sectores privados y el Estado en la construcción de proyectos culturales. Finalmente, esta pesquisa buscó revelar las contribuciones de los críticos nombrados en la construcción de un arte abstracto como un flujo universal. Palabras clave: Antonio Bento , Romero Brest , Abstraccionismo, Arte figurativo, revista Ver y Estimar , Diario Carioca , MAM - SP , MASP .

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................... 11

Capítulo I: A CRÍTICA DE ARTE E A CENA CULTURAL NA DÉCADA DE 1950: ARGENTINA E BRASIL ............................................................................................................................................................... 20 1.1 Romero Brest, da Argentina ao Brasil .............................................................................................................. 26

Capítulo II: A RAZÃO CRÍTICA DE ANTONIO BENTO E A ATUAÇÃO EM O DIÁRIO CARIOCA ........ 33

2.1. A I Bienal de São Paulo nas páginas do Diário Carioca ................................................................................... 51

2.2. Antonio Bento e Romero Brest: O panorama artístico brasileiro e a importância das Bienais ............................ 62

2.3. A avançada abstrata ....................................................................................................................................... 68

2.4. Antonio Bento e o II Congresso de Críticos de Arte (1961).............................................................................. 80

Capítulo III: A CRÍTICA MILITANTE DE JORGE ROMERO BREST E A REVISTA VER Y ESTIMAR .. 88

3.1. Ver y Estimar: uma nova percepção estética .................................................................................................... 93

3.2. O grupo MADÍ e Gyula Kosice: o Concretismo na Argentina ....................................................................... 115

3.3. Instituto Torcuato Di Tella: Uma Usina Cultural de Vanguarda ....................................................................... 119

Capítulo IV: A ORIGEM DO PENSAMENTOABSTRATO ............................................................................. 122

4.1. Importantes considerações de Romero Brest e Antonio Bento .......................................................................... 123

Capítulo V: INTERSECÇÕES POLÍTICAS E ARTÍSTICAS ENTRE BRASIL E ARGENTINA:

A ARTE ABSTRATA COMO FLUXO UNIVERSAL ....................................................................................... 151

5.1 A era dos manifestos: o caso brasileiro ............................................................................................................. 153

5.2. Um encontro cultural: do regional ao universal ................................................................................................ 156

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................................. 167

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................................ 173

ANEXOS ............................................................................................................................................................. 188

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INTRODUÇÃO

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Seguindo as diretivas do PROLAM – Programa de Pós-Graduação em Integração na

América Latina da Universidade de São Paulo – o presente estudo se propõe a realização de

uma análise comparada. Mediante a construção do movimento abstrato como linguagem

universal, destacam-se dois importantes críticos de arte: Antonio Bento de Araújo Lima

(1902-1988) e Jorge Aníbal Coco Romero Brest (1905-1989). Contemporâneos entre si

pertenceram a realidades artísticas diferenciadas, recorrendo a soluções distintas para um

mesmo objetivo: a promoção e defesa do abstracionismo.

A trajetória intelectual, profissional e acadêmica, de ambos os críticos, promove pontos

de contato e de distanciamentos. Porém, o mais importante é que, iniciando suas vidas com

formações alheias à arte, mas com um interesse intrínseco pela mesma, ambos decidem

exercer a crítica de arte, por julgarem o cenário artístico de seus países displicentes com as

manifestações modernas. Para Antonio Bento, será a rejeição a obra do artista Ismael Nery

que conflagrará seu ímpeto crítico, através de uma crônica publicada no jornal A República,

de Natal, em 1930. Já para o crítico argentino, sua adesão à crítica foi induzida pela apatia

cultural vivenciada pelo panorama artístico argentino e a ineficácia dos órgãos oficiais na

promoção de uma linguagem artística atualizada. Em 1937, Brest publicou seu primeiro

ensaio crítico El problema del arte y el artista contemporáneos / Bases para su dilucidación.

Antonio Bento integrou a equipe do Diário Carioca1 por mais de 31 anos, dos quais 26

foram dedicados à divulgação e análise dos principais fatos culturais que marcaram a história

do desenvolvimento das artes no país. Ao longo de sua trajetória profissional, o crítico ocupou

diversos cargos públicos2, contudo sem abdicar da formulação de juízos e problemas estéticos.

1 O Diário Carioca (DC) foi fundado por José Eduardo de Macedo Soares, natural de São Gonçalo (RJ) em 1928, tendo circulado até 1965. O objetivo da criação desse veículo era fazer oposição ao governo Washington Luís e a seu candidato à sucessão presidencial. Daí a sua considerável influência na cena política brasileira. No começo da década de 1950 o DC tornou-se um jornal de circulação nacional. Inaugurou, nesta ocasião, na Avenida Presidente Vargas, seu novo prédio projetado pelo arquiteto Afonso Eduardo Reidy, e também a gráfica Érica que possuía um dos equipamentos mais modernos da época. O novo DC saiu no dia 28 de maio de 1950, um domingo, com 72 páginas e cinco cadernos, como o Carioquinha, a cores, e a Revista do DC, para o público feminino, além de páginas literárias com colaboradores de alto nível, como Antonio Cândido, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira e Sérgio Buarque de Holanda. Fizeram parte dessa reforma, que antecedeu em seis anos à do Jornal do Brasil, nomes que se consagraram na imprensa do país, como Pompeu de Souza, Luiz Paulistano e Prudente de Moraes, Neto. Antonio Bento passou a integrar a equipe do DC em 1934 na função de redator. A partir de 1939, passou a escrever periodicamente na seção ARTES até dezembro de 1965. 2 Antonio Bento atuou no Diário de São Paulo de 1926 a 1927; foi um dos fundadores do Diário de Notícias, em 1930. Em 1934, passou a fazer parte do Diário Carioca, mantendo uma coluna diária, de 1945 até 1965. Paralelamente, de setembro de 1941 a agosto de 1967 exerceu o cargo de Procurador Regional do Ministério do Trabalho. A partir de 1945, começou a alternar a crítica musical com a crítica de artes visuais, a convite de Carlos Lacerda, então diretor do Diário Carioca. Em janeiro de 1959, foi convidado pelo Ministério de Estado da Educação e Cultura a integrar o Conselho Técnico do Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. No jornal Última Hora, escreveu de 1966 até 1970. Foi Diretor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro (1960-62) e co-fundador do MAM-RJ, tendo participado de três Bienais de Paris, como comissário e delegado. Integrou os júris nacionais e internacionais das Bienais de São Paulo e de Veneza. Esteve presente em diversos júris do Salão

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Desse modo, Antonio Bento, com incomparável disposição, inseriu-se nas divergências entre

modernos e acadêmicos que, desde a década de 1920, movimentavam o país.

Na Argentina, em 1934, após realizar uma série de viagens por países europeus,

Romero Brest3 passou a desenvolver um interesse especial pela crítica de arte. Uma

importante contribuição para o cenário artístico argentino foi a criação da revista mensal Ver y

Estimar, que teve quarenta e quatro números publicados ao longo de sua existência (de 1948-

1953 e de 1954-1955). Fundador e diretor da Revista, Romero Brest concedeu-lhe um caráter

crítico e investigativo capaz de impulsionar o desenvolvimento da arte abstrata, que naquele

momento encontrava resistências e questionamentos dentro do sistema oficial de arte

argentino.

No Capítulo I: A crítica de arte e a cena cultural na década de 50: Argentina e Brasil,

observar-se-ão os objetivos e ações promovidas pelos dois críticos no processo de

modernização de seus respectivos países. A partir de suas trajetórias intelectuais será possível

entrever estilos diferenciados na construção do ensaio crítico. Antonio Bento, adepto de uma

abordagem mais sociológica, nutriu sempre grande interesse pelos fatores sociais e históricos

que circundam o artista. Desenvolveu grande interesse pela cultura popular nordestina e

também pela construção de uma arte capaz de revelar a identidade do povo brasileiro.

Nacional de Arte Moderna e foi integrante da Comissão Nacional de Artes Plásticas da FUNARTE - 1978 e 1980. Antonio Bento foi eleito duas vezes presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), seção brasileira da AICA, em 1961, com mandato até 1962, e novamente em 1969, permanecendo no cargo até 1974. Posteriormente, recebeu o título de presidente de honra da entidade. Além disso, participou do Congresso de Críticos de Arte, em 1949, encontro organizado pela UNESCO, que funcionou como laboratório para a criação da Associação Internacional de Críticos de Arte - AICA. Bento também publicou diversas obras no campo das artes como Abstração na arte dos índios brasileiros, Portinari, Manet no Brasil, Ismael Nery, Milton Dacosta, Expoentes da Pintura Brasileira, Panorama da Pintura Moderna Brasileira e outros. 3 Romero Brest foi Professor de Educação Física, advogado, mas abandonou essas funções para dedicar-se ao estudo das artes plásticas. A partir de 1934 iniciou sua Especialização, convertendo-se tempos depois em professor de História da Arte na Universidade Nacional de La Plata, cargo que exerceu até março de 1947. Em 1946 ministrou cursos particulares em Buenos Aires (Cursos de Estética e História da Arte de 1946 até 1955). Organizou a Cátedra de Investigação e Orientação Artística do Colégio Livre de Estudos Superiores, na qual lecionava desde 1939. Atuou como conferencista, ocupando desde 1939, as principais salas de quase todas as universidades de seu país e de várias instituições públicas e privadas. Em 1943 foi docente na Universidade do Chile e, em várias ocasiões, lecionou na Universidade de Montevidéu. Em 1950 era professor de História da Arte na Faculdade de Humanidades e Ciências da Universidade de Montevidéu. Dirigiu o Museu nacional de Belas Artes (1955-63) e esteve a frente do Centro de Artes Visuais do Instituto Torcuato Di Tella (1963-69) Seu primeiro ensaio crítico, El problema del arte y el artista contemporáneos / Bases para su dilucidación, foi publicado em 1937. (Edición del autor, Buenos Aires, 1937, 44 páginas). A crítica de arte, enquanto prática sistemática iniciou-se em 1939, quando passou a escrever no diário socialista La Vanguardia até 1940. Nos anos de 1940 a 1943 compôs a equipe de Argentina Libre. Em 1948, fundou a revista Ver y Estimar. Publicou as seguintes obras: El problema del arte y del artista contemporáneos (1937); Priliano Pueyrredón (1942); David (1943); Lorenzo Dominguez (1944); La pintura brasileña contemporánea (1945); Historia de las Artes Plásticas: Introducción, tomo I, y La Pintura, tomo II (1945), La arquitectura y La escultura, tomo III (1946), tomo IV Las artes derivadas (1950); Panorama del arte europeo en el siglo XX (1952), além de outras obras citadas no corpo teórico deste estudo.

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Detentor de um estilo bem humorado de escrita, mas contundente, Antonio Bento debateu as

principais questões artísticas de seu tempo. A mesma sensibilidade e interesse pelas artes em

geral (pintura, música, teatro, literatura) também foi compartilhada por Romero Brest. O

crítico argentino dedicou-se aos estudos dos principais filósofos do Ocidente, visando uma

postura eloqüente na escrita e na fala. Em sua experiência como docente, desenvolveu amplo

interesse por ministrar conferências e contribuir para a formação de jovens pesquisadores

interessados no estudo e no conhecimento das artes. Daí referir-se em seus textos, comumente,

à discípulos, estudantes que o acompanharam ao longo de cursos que ministrou e palestras que

proferiu. A própria origem da Revista Ver y Estimar está intrinsecamente ligada às aulas

ministradas na Librería Del Colegio libre de Estudios Superiores e na Academia Altamira de

Estética e Historia del Arte, desde 1948. A partir da interação e discussão com os alunos, o

título da Revista, assim como o seu conteúdo, passaram a ganhar forma. A Argentina de finais

da década de 1940 afigurava-se como um espaço ainda pouco voltado às vanguardas artísticas.

Foi a viagem realizada à Europa em 1934, que lhe despertou o interesse pela arte ocidental.

De volta à sua terra natal, dedicou-se aos estudos das artes plásticas e, posteriormente,

assumiu forte engajamento político, mormente contra o governo Perón. No Capítulo I,

apresentam-se, também, as percepções de Brest sobre a pintura brasileira, que se destacava,

aos olhos do crítico, por ser fruto de um denso processo de miscigenação e características

históricas específicas na América Latina.

No Capítulo II: A razão crítica de Antonio Bento e a atuação em o Diário Carioca,

documentou-se o desempenho do crítico brasileiro enquanto parte relevante do processo de

desenvolvimento e expansão do abstracionismo no país. O jornal converteu-se em fórum

privilegiado de divulgação dos principais fenômenos artísticos da época. O crítico brasileiro

dedicou-se a acompanhar o nascedouro das principais instituições oficiais de arte que

movimentariam a efervescência cultural do país. Assim, como o relevante papel de

atualização desempenhado pela I Bienal de São Paulo. Bento transcendeu limitações

geográficas, divulgando o ousado e pioneiro projeto paulista na construção de um dos maiores

e mais importantes acervos em arte moderna da América Latina, ou seja, o Museu de Arte

Moderna de São Paulo. Neste capítulo, também se evidencia o importante papel

desempenhado pela 25ª. Bienal de Veneza, o surgimento da revista Habitat e suas respectivas

repercussões no cenário artístico nacional. A participação dos artistas brasileiros, pela

primeira vez nessa mostra, deflagrará um acirrado debate entre Antonio Bento e Quirino

Campofiorito, transformando o DC em uma importante arena de discussões. No referido

jornal, também foram divulgados relevantes acontecimentos nacionais e internacionais como o

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II Congresso de Críticos de Arte, realizado pela Associação Brasileira de Críticos de Arte,

com patrocínio do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em dezembro de 1961.

Os esforços de instituições, artistas e críticos na tentativa de converter a Argentina em

um importante centro artístico é temática desenvolvida no Capítulo III: A crítica militante

de Jorge Romero Brest e a Revista Ver y Estimar. Comenta-se a grande necessidade de

atualização de uma arte eclipsada pelo governo Perón. O expressionismo abstrato surgia,

assim como alternativa viável, revelando a forte influencia estadunidense. Existia a certeza de

que para figurar no cenário internacional em posição de destaque era necessário promover a

supressão de um passado pré-hispânico deficitário. Ao contrário do Brasil, os esforços para a

modernização do país não foram apenas oriundos das elites econômicas e intelectuais, mas,

em grande parte, da ação de instituições estadunidenses, demarcando a influência dessa

grande potência econômica e tecnológica na America Latina. Um país que se expandia

economicamente de forma tão expressiva, como a Argentina, deveria apresentar um índice de

transformação e desenvolvimento também no campo cultural, exigindo esforços da burguesia

industrial e da elite intelectual do país. Neste contexto, Brest assumiu a posição de agente

cultural modernizador, que desde 1956 estava intrinsecamente inserido no cenário artístico,

como diretor do Museu Nacional de Belas Artes. Sempre atuante, após sua destituição do

cargo de professor da Universidad de La Plata em 1947, Brest desenvolveu práticas e

formações alternativas para movimentar os circuitos oficiais como a Revista Ver y Estimar

(1948-55) e os cursos de Estética e História da Arte. Esses cursos configuravam-se como elos

permanentes e produtivos com uma nova geração de alunos e jovens artistas interessados nos

rumos das artes no país. Discípulos, alguns dos quais, se converteram em importantes

pesquisadores e estudiosos, angariando informações, nos circuitos nacionais e internacionais

de arte, para que a revista Ver y Estimar cumprisse seu caráter formativo e informativo, em

um decidido processo de atualização. A mostra enviada pelo governo de Franco, Exposición

de arte español contemporáneo, exibida no Museu Nacional de Belas Artes argentino foi

reflexo do alinhamento político entre ambos os países, Espanha e Argentina, porém a escolha

das obras parecia subestimar os setores culturais do país. A exposição não trazia os nomes

mais representativos da modernidade espanhola, o que para Brest era inaceitável. O número

02 de Ver y Estimar, de maio de 1948 mais uma vez cumpriu sua função crítica e atualizada

ao aproveitar o ensejo para trazer um exemplar, ilustrado, exclusivamente dedicado ao mestre

espanhol. São reproduzidas aqui, algumas obras de Picasso com os comentários originais de

Romero Brest, presentes na seção Camino de la observación do exemplar de maio de 1948. A

estrutura organizacional da revista também é abordada. Toma-se por modelo o número 26 de

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Ver y Estimar. Em meio à análise da parte estrutural da Revista, também se acompanha o

desenvolvimento do pensamento crítico de Brest e o processo de universalização da

linguagem adotada pelos jovens artistas. As influências dos abstracionistas Vantongerloo,

Max Bill e Van Doesburg são perceptíveis nas obras de Claudio Girola (1923-1994) e Tomás

Maldonado. Portanto, partiu dos concretos um posicionamento mais definido mediante a crise

vivenciada pela Argentina. As contribuições desses artistas são mencionadas, brevemente,

exemplificando em que consistia o interesse de Brest pela vertente concreta. Cita-se, também,

de forma sucinta, a atuação de Brest à frente do Instituto Torcuato Di Tella em função de

alguns importantes fatores. Sob a direção de Brest o ITDT converteu-se em uma das mais

emblemáticas instituições artísticas dos anos 60. Formada a partir de capital nacional e norte-

americano - Fundações Ford e Rockefeller- converteu-se em espaço de grande experimentação

cultural. A criação do prêmio de escultura, em 1962, foi uma importante medida de

intercambio artístico, promovendo uma situação de efervescência cultural muito parecida com

a vivenciada pelo Brasil, porém dez anos antes. As ações de Brest junto ao ITDT atestam o

fim do obscurantismo cultural vivenciado pela Argentina.

No Capitulo IV: A origem do pensamento abstrato os escritos de ambos os críticos

são analisados com o intuito de desvelar os posicionamentos assumidos mediante as teorias da

abstração. Pretendeu-se estabelecer pontos de convergência e distanciamentos entre Antonio

Bento e Romero Brest. Tanto em relação aos aspectos teóricos, quanto aos de estilo. Brest

ressaltou a importância de criações artísticas que partem da espiritualidade do artista e não de

padrões externos de indução. A natureza apenas concede meios para que o artista concretize

sua subjetividade. Para Brest o conceito de invenção é muito importante, estando presente em

diversas de suas análises e, exatamente por isso, era de vital importância que o leitor comum,

estudante ou pesquisador, o compreendesse. Daí a validade de seu livro Qué es una obra de

arte (Emecé, 1992) texto publicado originalmente em 1945. Porém, tão importante quanto o

sentimento, que impulsiona o ato criativo, é a capacidade de expressá-lo corretamente. Para

Brest, todas as criações artísticas deveriam estar conectadas com o caráter dinâmico e mutável

da vida. Essas elucubrações foram desenvolvidas em seu livro Así se mira el arte moderno

(Beas Ediciones, 1993), importante fonte para compreender o pensamento do crítico.

Antonio Bento dedicou-se, igualmente, aos fundamentos da arte abstrata, porém, busca

resgatar as origens da abstração lírica de natureza antropológica e psicológica. O crítico

potiguar preocupou-se em ressaltar que a arte abstrata teve sua origem nos primórdios do

modernismo, sendo importantes os estudos promovidos por etnólogos e antropólogos,

valorizando e reconhecendo a herança das culturas primitivas.

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Por ser a base de várias conferências e palestras de Brest, inclusive as proferidas aqui no

Brasil, o Capítulo IV se apoiou mais profundamente nas análises publicadas em La Pintura

Europea Contemporánea. (Fondo de Cultura Económica. 1952). Neste capítulo, analisam-se

também as contribuições de Michel Seuphor sobre as duas principais tendências do

abstracionismo: o neoplasticismo e a lírica. Lembrando-se que na edição de outubro de 1949,

de Ver y Estimar, Blanca Stábile deixou sua contribuição sobre o recém publicado livro de

Michel Seuphor, Arte Abstrata, na seção Reseñas bibliográficas.

O Capítulo V: Intersecções políticas e artísticas entre Brasil e Argentina: a arte

abstrata como fluxo universal apresenta uma América Latina amplamente influenciada pelos

debates instaurados pelas vanguardas européias, compartilhando de seu desprezo pelo antigo e

de seu desejo de originar uma arte conectada com o seu próprio tempo. A década de 1950, no

Brasil, assumiu uma atitude universalizante no campo das artes, destacando-se uma linguagem

abstrata de base construtiva e raiz européia. Na tentativa de modernização cultural,

apresentam-se aproximações e distanciamentos quanto à iniciativa privada e estatal de ambos

os países no campo das artes. A presença de Romero Brest no país, mais uma vez é

mencionada. Entretanto, neste capítulo concede-se maior ênfase à situação política e

econômica de ambos os países, Brasil e Argentina, na década de 40.

Mediante a extensa contribuição intelectual de ambos os críticos, o arco temporal aqui

abordado abrange o período de emergência e afirmação do abstracionismo no Brasil e na

Argentina. Um evento de grande importância e que define o ano de início desta pesquisa é a

fundação do Museu de Arte de São Paulo, por Assis Chateaubriand, em 02 de outubro de

1947. Em 1950, O MASP consolidava um importante acervo, resultante do mecenato de

Chateaubriand e da política de aquisições do seu diretor, Pietro Maria Bardi. Nesse contexto

de modernização, insere-se a iniciativa do MASP em patrocinar as conferências ministradas

por Jorge Romero Brest, Como ve un sudamericano el movimiento artístico contemporáneo en

Europa, em dezembro de 1950. Tal fato possibilitou o contato com as vertentes

abstracionistas, antecipando-se a I Bienal de São Paulo. Brest também divulgou através das

páginas de Ver y Estimar a vontade dos brasileiros em consolidar um projeto de caráter

modernista, revelando um panorama cultural diferenciado do argentino. A intensa

correspondência4 entre Brest e Bardi, idealizador e diretor do MASP, de 1947 a 1996,

4Em carta enviada a Pietro Maria Bardi, comenta Romero Brest: Estimado amigo: Recibí ya hace algún tiempo su amable carta de fecha 8n de abril, que me produjo una gran alegría, pues tengo real interés por visitar San Pablo, ciudad en la que según noticias se está desarrollando un movimiento de importancia. Se comprende que acepto su ofrecimiento y que lo agradezco efusivamente. Centro de Documentação/Arquivo Histórico- MASP. Caixa 03. Pasta 12. S/d.

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desnudam o interesse do crítico argentino pelas soluções estéticas adotadas pelos artistas

brasileiros e as estratégias de modernização cultural executadas pelas instituições oficiais de

arte e o papel desempenhado pelas elites intelectuais e econômicas. O intercâmbio de

informações entre Bardi e Brest deu origem ao conjunto de conferências mencionadas, cujas

diretrizes iniciais foram gestadas em 1948, porém somente em 1950 se consolidaram. Outros

fatores relevantes para o período foram a criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo,

por Francisco Matarazzo Sobrinho, em 1948, e, nesse mesmo ano, a criação do Museu de Arte

Moderna do Rio de Janeiro. Todas essas instituições abriram espaço para a difusão contínua

da arte, atraindo a atenção do público nacional e internacional. Surgida em 1951, a I Bienal de

São Paulo representou o ápice da efervescência cultural vivenciada pela capital paulista. Tal

afirmação sustenta-se pelo caráter didático encarnado pela mostra internacional, contribuindo

para a formação de um público interessado na apreciação da arte moderna no Brasil. O Museu

de Arte Moderna de São Paulo foi o primeiro nessa categoria na América do Sul e foi o

segundo a organizar uma exposição nos moldes de uma Bienal, já que o modelo brasileiro

tinha sido inspirado na Bienal de Veneza. Esse evento internacional foi acompanhado e

debatido por Antonio Bento nas páginas do Diário Carioca. Como veremos ao longo deste

estudo, a I Bienal será ponderada e debatida pela crítica brasileira, aqui representada,

mormente por Antonio Bento, revelando-se como uma iniciativa ímpar na América Latina.

Exatamente por isso, a mostra internacional foi recebida com entusiasmo por Romero Brest,

que fez parte do júri de premiação. No primeiro número da revista Ver y Estimar, de

novembro de 1951, o crítico promoveu uma minuciosa análise do evento, ressaltando as

importantes contribuições de alguns países e outras presenças menos marcantes. Porém, fator

fundamental foi a facilitação, efetuada pela I Bienal, de uma visão de conjunto das mais

representativas tendências da arte moderna. As obras selecionadas pelo júri expressavam o

que naquele momento era considerada a poética e prática da arte moderna, ou seja, a arte da

atualidade, representada pelas categorias pintura, escultura e gravura.

Antonio Bento foi, no panorama de mudanças culturais descritas, um agente atuante e

apesar da sua extensa carreira no Diário Carioca (1945-65) serão consideradas apenas suas

críticas de 1950/51. Tal delimitação foi realizada em função do grande volume de ensaios

publicados no DC, (o crítico escrevia de quarta a domingo e, eventualmente também as

terças-feiras). A delimitação temporal e análise dos textos levaram em consideração: a

atuação de Antonio Bento no registro e valorização do processo de modernização, efetuado

pelos museus paulistas; a controvérsia entre figurativos e abstratos; a I Bienal de São Paulo e

seus desdobramentos. No caso do Brasil, O debate abstração versus figuração, foi também

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um importante marco na história da arte nacional. Um Simpósio foi organizado por Antonio

Bento e realizado por ocasião da 6ª Bienal tendo por tema geral A Problemática da Arte

Contemporânea, com Sessão Inaugural em 12 de dezembro de 1961, evento que encerra o

arco temporal desta pesquisa.

Assim, a produção crítica de Bento coincidiu com o momento em que Romero Brest

apresentava uma série de conferências e publicações sobre a Arte de Vanguarda na Argentina,

atuando na revista mensal Ver y Estimar (1948-53 e 1954-55) e participando das bienais do

Brasil (1951/1953/1961). Afigura-se como evento relevante, a nomeação de Brest,

primeiramente como Interventor (1955) e depois Diretor (1958) do Museu Nacional de Belas

Artes, função que exerceu até 1963, quando renunciou ao cargo. Neste estudo serão

abordados: o caráter geral da Revista Ver y Estimar sua estrutura formativa e análise de alguns

exemplares, assim como as críticas de Antonio Bento veiculadas no DC, conjuntamente com

livros e ensaios publicados por ambos os críticos. Inegavelmente Antonio Bento e Romero

Brest tiveram uma produção extensa e profícua, incapaz de ser abordada, em toda sua

complexidade e amplitude, apenas neste estudo.

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CAPÍTULO I: A CRÍTICA DE ARTE E A CENA CULTURAL NA DÉCADA DE 50:

ARGENTINA E BRASIL.

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Ao analisarmos a cena cultural de ambos os países, Argentina e Brasil, notamos

processos diferenciados de engajamento em torno do desenvolvimento e promoção da arte

abstrata. A partir das mudanças culturais que movimentaram a década de 1950, destacam-se

dois importantes críticos, Jorge Coco Romero Brest e Antonio Bento de Araújo Lima na

tentativa de construção e consolidação de um espaço de modernização cultural em ambos os

países.

Contemporâneos entre si, os críticos apresentam objetivos, motivações correlatas, porém

diferenças estilísticas e de escolha dos veículos para promoção de seus discursos críticos.

Antonio Bento circulava entre artistas, críticos, interessava-se profundamente por novos

talentos, dedicando-se à divulgação desses, aproximando-os das elites culturais da época,

como Oswald de Andrade e Mário de Andrade – grande amigo. Figurava entre os diferentes

núcleos artísticos, evitando rivalidades pessoais, pesquisando a arte popular do nordeste e

promovendo artistas de diferentes estilos e regiões do país; era, sobretudo, um diplomata.

Antonio Bento não se dedicou à filosofia pura ou à filosofia social. A abordagem impressa

pelo crítico em suas análises responde muitas vezes a um caráter predominantemente

sociológico, considerando sempre o Brasil, o ambiente que circunda a vida do artista, assim

como elementos de sua história particular que podem ou não ter influenciado o seu processo

criativo. O crítico recorre também algumas vezes a Antropologia na medida em que estas duas

ciências se entrelaçam no estudo de certas comunidades humanas.

Apesar de iniciar-se oficialmente na crítica de arte somente em 1930, desde os anos de

faculdade Antonio Bento já demonstrava afinidade e interesse pelas diversas manifestações

artísticas. Após viver sua infância e adolescência no Engenho Bom Jardim no município de

Goianinha, Rio Grande do Norte, emigrou em 1920 para iniciar um curso de Direito, no

Recife. A partir desse momento, travou amizade, em uma república de estudantes de Olinda,

com Raul Bopp e José Lins do Rêgo. Data de 1923 a sua transferência para a faculdade de

Direito do Catete, no Rio de Janeiro onde se graduou em 1925.

Em 1926, Antonio Bento ingressou na carreira jornalística, como crítico musical do

Diário da Noite de São Paulo, ocasião em que conheceu Mário de Andrade que também

realizava crítica musical para o mesmo jornal. Antonio Bento e Mário de Andrade

vivenciaram uma amizade que significou para ambos um marco para o desenvolvimento de

uma pesquisa. O objetivo era desnudar as diversas facetas de um país rico em belezas naturais

e contribuições artísticas. Dessa amizade emergiu uma aproximação do crítico com Oswald de

Andrade, uma vez que, os dois Andrades conheciam-se desde as épocas ginasiais.

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Apesar de sua formação em Direito, o crítico brasileiro desenvolveu sempre um grande

interesse pela música e, sobretudo pelas manifestações populares e folclóricas brasileiras,

notadamente as nordestinas. Bento inseriu-se no campo da literatura, com narrativas cômicas e

fantásticas como aquelas que integram a obra Contos Hiper-realistas publicada pela José

Olympio em 1987. Ao longo de sua extensa carreira como crítico, Antonio Bento presenciou

uma série de acontecimentos nos bastidores das exposições, tais fatos, por seus aspectos

curiosos ou engraçados, foram convertidos em contos bem-humorados que revelam a sua

perspicácia e aguçada observação. Tal característica, a inclinação por contar causos e

boutades, pode ser considerada herança de sua tia Cornélia, que enriqueceu a sua infância, no

Engenho Bom Jardim, com a tradição das narrativas populares. O viés cômico também

influenciou a feitura de seus textos críticos publicados no Diário Carioca. Antonio Bento,

ademais, realizou ao longo de sua carreira toda uma produção que visava abordar as

particularidades de uma arte fantástica no Brasil, através das quais se evidenciam as

singularidades regionais e sazonais do país. A região do nordeste é o principal enfoque do

crítico, pela sua mistura de brancos, índios e negros e a existência de uma literatura de cordel,

dentro de uma cultura popular à qual se juntam pintores e eruditos de grande mérito.

Em sua trajetória não se tem registro de um posicionamento de combate ou animosidade

com o sistema político vigente, ou forte engajamento político. Houve sempre uma

preocupação manifesta com a espiritualidade, com a humanidade do artista e mesmo um

envolvimento mais pessoal, a ponto de empreender dinheiro próprio para promover uma

exposição ou publicação sobre um artista, quando ninguém mais acreditava que ali residia um

grande talento artístico. Bento sempre afirmou a importância de ser um crítico de vanguarda,

mas não aquele que se deixa levar por modismos. Um crítico que baseado em aspectos

rigorosos de julgamento, mantém a mente e alma abertas às novas e relevantes produções

artísticas, indo ao desencontro de padrões estéticos pré-estabelecidos, se fosse o caso.

Tamanho ímpeto e desejo de elucidação estética também pode ser observado, na mesma

época, junto aos rio-platenses. Romero Brest, a exemplo de Bento, deparou-se com sua

verdadeira vocação às margens dos estudos oficiais. Embora houvesse um desejo intrínseco

por ser um intelectual ou artista, a sua primeira formação acadêmica foi em Educação Física e

depois em Direito.

O interesse pelas artes se deu aos quatorze anos, quando desenvolveu grande vocação

pela literatura, convertendo-se em infatigável leitor de tudo quanto lhe passasse pelas mãos,

sobretudo, José Ortega y Gasset e Hegel. Aos dezessete anos, já escrevia poemas, contos,

novelas e peças teatrais. Brest acreditou verdadeiramente que seria escritor, porém como

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estudava paralelamente piano, se viu acometido por uma imensa paixão pela música,

convertendo-se em musicólogo aos 20 anos. Seu objetivo não era ser propriamente músico,

mas maestro. Quando cursava o ensino regular, acompanhava peças teatrais, mormente no

período da tarde, ao invés de ir à Biblioteca, como havia prometido à sua mãe. Assim, o

teatro também passou a conquistá-lo, de modo que cogitou ser dramaturgo. Nesse período

dedicou-se aos estudos do francês e do italiano.

Entretanto, nunca houve por parte do crítico um anseio pela prática do desenho, da

pintura, gravura ou escultura. Para Brest, a desambição por essas modalidades artísticas era

resultado da ausência, ou baixa qualidade, das exposições vigentes em Buenos Aires.

O intenso contato com uma grande variedade de obras5, autores e análises permitiram a

Brest delinear e aprimorar a sua capacidade perceptiva sobre o ambiente artístico que o

circundava. E as idéias lhe afiguravam tão importantes quanto às obras de arte. A leitura de

grandes pensadores do Ocidente, mormente os filósofos, a participação, como ouvinte, de

conferências de ilustres estudiosos como Ortega y Gasset, suscitaram em Brest um desejo por

sabedoria, elegância e eloqüência na fala e na escrita. Em final dos anos de 1920, tinha

também acompanhado todos os cursos de Francisco Romero (na Facultad de Filosofía y

Letras, Buenos Aires, e na Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, La Plata).

Tal convivência seria responsável por um conhecimento mais profundo da filosofia e

5 Para ser más explícito acerca de mis lecturas, ellas empezaron a ser sistemáticas cuando tenía veinticinco años. Entonces pasé de Anatole France, Oscar Wilde y Gabriele D’Annunzio, de los grandes escritores rusos (Tolstoy, Dostoievsky, Gorki) y de muchísimos autores, no siempre de primera clase, a los franceses modernos. Aparte de que mi abuela materna era francesa y de que oía hablar francés en mi casa, aparte de que mi padre admiraba a Francia, me perfeccioné en dicho idioma y fue el momento de gustar hasta el delirio a Proust, Valéry y Gide, sin olvidar a los demás escritores en esa lengua. Más tarde comencé a leer algunos italianos, también en idioma original, Dante por supuesto pero en particular Pirandello. En cambio ignoré a los españoles, como no fueran los clásicos, especialmente a Cervantes. Y en cuanto a los ingleses, además de Shakespeare, cuyas obras he leído y releído a lo largo de mi vida, Wells, Chesterton y Bernard Shaw fueron los preferidos. Ya formado admiré a Joyce, como todos. ¿Lecturas filosóficas? Como era la época en que despertaba la Axiología devoré a Max Scheler y a todos los que se le parecían, partiendo de Brentano y Dilthey. Creía que la ciencia de los valores iba a ser la panacea filosófica y en consecuencia que la estética se revitalizaría con ella, pues a pesar de mi cariño por Croce, cuya influencia era manifiesta, ya advertía que su pensamiento era insuficiente. Se comprende que leía también a los filósofos del pasado, en particular a Platón, Aristóteles, Plotino, San Agustín, Kant, Schopenhahuer y Hegel. A Nietzche lo descubrí más tarde, así como a Bergson, de quienes sigo siendo devoto. Y al margen de la literatura y la filosofía no dejé de leer libros de Historia, los volúmenes de la colección francesa dirigida por Henri Beer, L’Evolution de la Humanité, así como los de la Histoire Générale que dirigía Gustave Glotz, y los de la Historia Universal dirigida por Walter Goetz. Esto por citar solamente las grandes colecciones. Entre los historiadores del arte Elie Faure fue un dios para mi durante mucho tiempo, André Michel, cuya colección de veinte volúmenes compré con gran esfuerzo, me sirvió de guía ortodoxa, así como los tomos de la Historia del Arte (Espasa-Calpe) me introdujeron en el área del pensamiento alemán. Casi inmediatamente entré en el área de Bernard Berenson, admirándolo por la plasticidad de su pensamiento. In: Jorge Romero Brest. “A Damián Carlos Bayón, discípulo y amigo”.Caja1, Sobre 6, Archivo Jorge Romero Brest, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires.

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aquisição de hábitos de seriedade intelectual. Neste contexto, crescia vertiginosamente o

interesse pelas artes plásticas e, automaticamente, uma necessidade de desenvolver um

pensamento sistemático, analítico, pois estava em gestação o crítico futuro.

Os primeiros contatos com a prática da escrita se deram ao final dos anos de 1920.

Interessado pelos esportes, tendo praticado algumas modalidades com empenho, escreveu para

a Revista de Educação Física (dirigida por seu pai), alguns ensaios sobre os aspectos estéticos

dos esportes. Com a publicação da revista Clave de Sol (1930-1931), que teve apenas dois

números, Brest trabalhou conjuntamente com Jose Luis Romero, Horacio I. Copolla e Isidro

Maiztegui. Dedicou-se aos ensaios biográficos de personalidades como Strawinsky, Barradas

e Bancroft, além de textos sobre cinema, até a fundação do Cine Club de Buenos Aires em

1929, com Coppola, Klimovsky, Piterbaj e Ibarra. Nesse momento, proferiu sua primeira

conferência sobre El Elemento ritmo en el cine y en el deporte e logo depois uma segunda

palestra intitulada Juana de Arco de Dreyer.

Em fins de 1933 Brest, ainda dedicando-se a aprimorar sua formação, deveras

trabalhosa, finalizou seu curso de Direito, casou-se e realizou sua primeira viagem à Europa.

Portanto, foi somente em 1934, quando tinha 29 anos, que lhe insurgiu uma paixão

arrebatadora pelos fundamentos e estudos da História da Arte, ao deparar-se com a grande arte

ocidental.

Ao retornar de sua viagem, Brest decidiu especializar-se em artes plásticas, embora em

Buenos Aires não houvesse bibliografia vasta sobre o assunto. O crítico não esmoreceu em

suas pesquisas, visitando diversos centros de estudos, momento em que travou amizade com

Leopoldo Lugones, diretor da Biblioteca Del Consejo Nacional de Educación. A arte

medieval despertou-lhe grande interesse, sendo seus primeiros estudos sobre a arte bizantina e

a arte dos cemitérios cristãos de Roma. Temática que esgotou em sua segunda viagem à

Europa em 1938. Nessa oportunidade, o crítico visitou a quase todos os cemitérios romanos e

teve a oportunidade de completar suas lacunas bibliográficas na Biblioteca Nacional de Paris.

Seus estudos resultaram em uma conferência na Sociedade de Artistas Plásticos, em 1938,cujo

tema era El artista plástico y las representaciones del dogma cristiano primitivo.

Paulatinamente, Brest publicou alguns trabalhos em periódicos como o de Orfila Reynal,

marcado por grande fervor político, e ministrou conferências, combinando sua atitude

pedagógica original com uma atitude política de certo modo marcada por um discurso

populista, embora ainda só lhe importassem, verdadeiramente, os estudos.

O seu primeiro ensaio crítico El problema del arte y el artista contemporáneos / Bases

para su dilucidación foi publicado em 1937. A partir daí, desenvolveu larga experiência em

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docência, tendo lecionado em diversos centros universitários ligados a arte na Argentina. A

prática crítica se fundamentou em 1939 quando Mario Bravo, novo Diretor do periódico La

Vanguardia, o convida para escrever crítica de arte, função que exerceu até 1940. Seu

desempenho nesse jornal, que agradava principalmente os artistas mais jovens, resultou em

um oferecimento para participar do semanário político-cultural, Argentina Libre, fundado em

1940. Brest converteu-se em um fiel colaborador do semanário até seu fechamento pelo

governo na Revolução de 1943.

Em seus tempos de Faculdade (1926-1933), Brest revelou-se bastante distante da

política. A formação em Direito não lhe aprazia e, talvez por isso, manteve-se apartado das

acirradas lutas estudantis. Segundo o próprio crítico, a sua postura era resultado de um

pensamento aristocrático e não desejava manchar a pureza de seus atos, motivo pelo qual

assumiu uma posição de neutralidade. 6

Com a Revolução de 1930, o crítico argentino adotou uma postura mais engajada

politicamente, estando associado a diversas polêmicas durante o governo Perón, por não

aceitar as medidas artísticas e culturais deficitárias impostas por esse governo. Na Argentina,

a rejeição a arte abstrata partia, sobretudo, de setores governamentais e parecia não despertar

grande interesse na crítica de arte. Nesse sentido, o empenho de Brest, foi de vital

importância, divulgando e fixando as bases da abstração no país.

Para além da polêmica em torno da viabilidade da arte abstrata como linguagem artística

adequada à realidade portenha, a exposição Arte Abstracto de Leon Degand introduziu um

novo debate entre críticos e os artistas abstratos. Fervorosas discussões em torno de

nomenclaturas e taxonomias: arte abstracto, arte no figurativo, arte no objetivo. Tal fato

revelava que, ao contrário do Brasil, a exposição de Léon Degand não se fixava em um

ambiente incipiente de manifestações abstracionistas. Os diversos grupos se enfrentavam e

assumiam claras e diferenciadas posições em relação à arte abstrata.

No Brasil, a arte abstrata gerava polêmicas entre a crítica especializada, sobre qual seria

a vertente mais expressiva e adequada para o cenário artístico brasileiro, em contraposição ao

figurativismo, tendo sido tema do debate promovido pela ABCA, do qual Antonio Bento

participou ativamente.

Quanto ao estilo, Antonio Bento detinha o hábito de inserir em suas análises pequenas

histórias que transmitem certa leveza aos seus escritos. Suas crônicas, algumas dotadas de

6 Tal fato é mencionado ao longo da carta direcionada à Damián Carlos Bayón. Jorge Romero Brest. “A Damián Carlos Bayón, discípulo y amigo”.Caja1, Sobre 6, Archivo Jorge Romero Brest, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires.

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humor, não abdicam da transmissão de conhecimentos a respeito da arte. Já Romero Brest traz

um estilo diferenciado. Dirige-se diretamente ao leitor, em alguns de seus escritos, emitindo

perguntas retóricas. O crítico argentino procura um interlocutor específico, ou seja, alguns

textos assumem a forma real ou simulada de uma carta a uma discípula ou discípulo. Tal

postura é fruto de sua contínua atividade docente. O público almejado por Brest engloba,

sobretudo, os estudantes e os interessados no estudo e pesquisa da arte. Leitores minimamente

engajados com o processo de elucidação artística e o desenvolvimento da arte moderna na

Argentina. Romero Brest promoveu um debate entre seus pares, usufruindo da colaboração de

críticos situados nos diversos países da América Latina, Europa ou Estados Unidos.

Correspondentes que contribuíam para o desenvolvimento e promoção da arte abstrata como

linguagem universal. O intuito, ao simular uma carta para um estudante, era enfatizar o caráter

informativo, didático de suas análises, ricamente ilustradas.

Antonio Bento, por sua vez, introduziu a reminiscência do contador de causos, a

tradição cotidiana e popular, aproveitando-se do seu caráter didático para a análise crítica,

promovendo um casamento perfeito entre o erudito e o popular. Nas páginas do Diário

Carioca, por diversos momentos, o crítico, após uma análise sobre a importância de

determinado artista ou exposição, apresentou uma historieta ou boutade para finalizar ou

exemplificar sua explanação. São exemplos desse recurso de escrita, as divergências travadas

entre Quirino Campofiorito e Antonio Bento, em torna das análises sobre a Bienal de Veneza

de 1950.

O estilo fluído permitiu ao crítico interagir com um público diferenciado, através de

bibliografia especializada e de um jornal de grande circulação. Suas palavras acessavam todos

os interessados em arte, leitores comuns, diversos artistas, periódicos, sendo sua opinião

referência em questões estéticas e artísticas. Assim, para Antonio Bento, o grande desafio era

criar uma nota informativa, fiel aos fatos e atualizada dentro uma limitação espacial imposta

pelos moldes jornalísticos: a falta de espaço (mais que uma limitação) torna-se às vezes uma

verdadeira norma disciplinar, a que o jornalista deve estrita obediência7.

1.1. Romero Brest, da Argentina ao Brasil.

7 BENTO, ANTONIO. No Atelier de Iberê Camargo. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 26 out. 1951. AS ARTES, p.06.

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De formas distintas, ambos os críticos, Antonio Bento e Romero Brest, foram

importantes para o cenário artístico e cultural de seus países, pois viam na abstração uma

forma de arte capaz de ganhar configurações inestimáveis na América Latina. Bento, por sua

visão mais local e banhada pelo popular regionalista, dedicou-se ao Brasil, porém sem negar a

importância da abstração. Brest transcendeu as fronteiras de seu país, tendo se interessado

muito pelo Brasil e seus expoentes artísticos.

Já em 1945, Brest afirma em La pintura brasileña contemporânea que:

Comprender el mensaje expresivo de los más escogidos artistas de un país e intuir a través de él la fina problemática nacional que le da sentido es tarea que exige amorosa y demorada frecuentación, así como conocimiento profundo. Pese a mis deseos, aún no he podido viajar al Brasil para proponérmela; ni siquiera la reciente muestra de pintura brasileña que ha presentado el escritor Marques Rebelo me permite intentar el juicio de rigor. ¿Podría hacerlo después de haber visto sólo unas pocas telas, dibujos y grabados de esos artistas eminentes que se llaman Cândido Portinari y Alberto da Veiga Guignard? ¿Podría hacerlo ante la ausencia de Lasar Segall, pintor de fama universal? Sin embargo, no he podido resistir a la tentación de hilvanar algunas reflexiones, sugestiones, proyectos de ideas, además de las meras informaciones que el lector no puede dejar de requerir, sobre todo ante la imperiosa necesidad de que este libro, al recoger dibujos, pinturas e grabados de artistas hermanos, se inicie con las palabras más cordiales y amigas, testimonio del cariño y del respeto que sentimos los argentinos por la cultura brasileña.8

Para Brest, ao analisar a contribuição artística brasileira, era fundamental levar em

consideração os elementos compositivos da criação artística. A significação, a essência e

estilo da obra contemplada, sobrepujando os problemas estéticos, uma vez que a realidade

compositiva brasileira diferia da rio-platense. A pintura nacional, pela primeira vez, era

conhecida dos argentinos por meio de uma mostra9, incompleta, mas cuja potencialidade

instigara Brest a escrever um ensaio sobre ela. Segundo o crítico argentino, apesar das nítidas

influências européias, as obras10 apresentavam personalidade estilística, pois resultavam de

uma complexa trama de elementos raciais e espirituais específicos. Tratava-se de uma

ressignificação ímpar do legado artístico europeu:

8 BREST, Jorge Romero. La pintura brasileña contemporánea. Buenos Aires: Editorial Poseidon, 1945. p. 07. 9 Por uma iniciativa do diretor do museu de Belas Artes de La Plata, o pintor argentino Emilio Pettoruti, realizou-se uma exposição com obras de 20 pintores brasileiros em La Plata (02 a 19 de agosto de 1945) e depois em Buenos Aires (25 de agosto a 07 de setembro). 10 Alguns artistas e obras que fizeram parte da mostra: Cândido Portinari (Mulher Chorando/ A barca), Alberto da Veiga Guignard (Uma família na praça/ Paquetá); Tomás Santa Rosa Júnior (Carnaval/ Ponta-seca/ Pescadores); Iberê Camargo (Negra sentada/ Mulher de branco), Alcides Rocha Miranda (Autorretrato), José Alves Pedrosa (Esboço); Carlos Leão (Mulheres); Clóvis Graciano (Desenho/ Cabeça); Roberto Burle Marx (Natureza Morta/ Mulheres); Quirino Campofiorito (Pescador); Milton Dacosta (Cena de taller); Percy Deane (Retrato de Elsa Proença); Aldari Henriques Toledo (O serviçal Joaquim); José Pancetti (Menina); Orlando Teruz (Morro).

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Es cierto que se reconocen influencias y que afloran a los labios los nombres de grandes pintores europeos del siglo, pero cuando se piensa con emoción- que es la máxima, a mi juicio, premonitoria- apenas se los musita, porque algo más grande que la técnica, algo más grande que la similitud de tema, algo más grande que la espiritualidad ajena que sólo se adivina, se presenta ante el espíritu: una expresión que comienza a ser auténtica.11

A pintura brasileira diferenciava-se por seus aspectos técnicos- uma vez que a técnica é

instrumento da alma- ao encarnar uma realidade unívoca em seus aspectos naturais, étnicos e

históricos. As formas de caráter romântico-naturalista não estavam presentes na referida

exposição. Fato que não causou nenhuma surpresa à Brest. Nem a influência italiana do

século XIX, que impactara a arte argentina, nem o naturalismo francês, que se fez presente na

segunda metade do referido século, dominaram as representações artísticas brasileiras. Essas

foram marcadas pelo academicismo francês, cujas influências, conforme ressaltou Brest,

poderiam ser notadas mesmo nas obras de Eliseu Visconti e Almeida Júnior. Entretanto,

surpreendia Brest, que um movimento pictórico tão francês quanto o romantismo, não tivesse

angariado seguidores no Brasil. A explicação mais plausível para o fato, segundo o crítico

argentino, era a de que o Romantismo teve o seu ápice em 1830, antes que a pintura

começasse a ser cultivada no Brasil. Em fins do século XIX, quando iniciativas artísticas mais

expressivas ocorriam no cenário brasileiro, o Romantismo já havia sido suplantado pelo

academicismo simbolista. Entretanto, para Brest, a ausência de uma pintura autenticamente

naturalista à maneira francesa de Courbet constituiu problemática relevante e curiosa, posto

que nenhum dos pintores mais estimados tecnicamente demonstrasse a menor inclinação ao

naturalismo. Nem a presença de uma natureza rica e pitoresca, luminosa e cromática que

circundava o artista, era capaz de convertê-lo a essa vertente:

No puede dejar de sorprender, entonces, el salto probablemente inesperado que dieron los pintores a comienzos de nuestro siglo, del academismo alegorista a las formas polémicas del vanguardismo, aunque es probable que se desconozcan todavía las obras de quienes pudieron haber llenado esa laguna. No menos escasa parece haber sido la repercusión del Impresionismo y de las direcciones postimpresionistas, triunfantes en Europa desde fines del siglo pasado, en la pintura brasileña. En momentos que Martín Malharro (1865-1911) introducía el Impresionismo francés en Argentina y Juan Francisco González (1854-1932) lo hacía en Chile, cuando Ramón Silva (1890-1919) entre nosotros cultivaba gallardamente el pujante colorismo de Van Gogh con algún acento “gaugueniano”, en Brasil sólo algunas telas de Visconti manifestaban algún acento débilmente modernista.12

11 BREST, Jorge Romero. La pintura brasileña contemporánea. Buenos Aires: Editorial Poseidon, 1945.p.08. 12 Ibídem. p.13.

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As primeiras décadas do século XX, no Brasil, foram marcadas por uma consciência

nacional, a valorização do autóctone, da paisagem, da miscigenação e da capacidade de digerir

e redefinir as influências artísticas européias. Para Brest, alguns eventos foram representativos

desta nova percepção artística: a primeira exposição do pintor russo Lasar Segall em 1913; a

mostra de Anita Malfatti em 1916, assumindo um viés modernista; a descoberta de Victor

Brecheret e os trabalhos de Tarsila do Amaral e Emiliano Di Cavalcanti. Todas essas

produções potencializavam uma ruptura com os padrões estéticos ditados pela academia, um

devir criativo, cuja expressão máxima incidia no espírito revolucionário que marcou a Semana

de Arte Moderna de 1922, permitindo uma autêntica expressão da pintura brasileira:

El hecho más curioso e importante en el proceso acelerado de la pintura brasileña parece haber sido esta fusión de la rebeldía estética con la social, que comenzó a dar sus primeros frutos maduros después de 1930, cuando aparecieron los espíritus mas constructores, entre ellos el gran Portinari. El hecho es en extremo curioso porque, lejos de arrastrar el entusiasmo por la Escuela de París hacia un arte internacional, permitió que los pintores volvieran sus ojos hacia la tierra y hacia el hombre brasileños, dispuesto a encontrar en ellos las fuentes más puras de su emoción. 13

A formação artística de Portinari iniciou-se em um período em que os modernistas

redescobriram uma terra cheia de benesses, procurando valorizar a particularidades de um país

em plena ascensão cultural e artística. Segundo o crítico de arte brasileiro Antonio Bento,

Portinari, ao retratar a sofrida realidade nacional, por intermédio de uma comunicação simples

e direta, levou a pintura moderna à compreensão do grande público, sendo o pioneiro nessa

iniciativa. Foi através da experimentação, da fraternidade humana como lema, da criação de

um imaginário nacional, que Portinari cunhou condições para a formulação de uma obra

transcendental.

Todas essas peculiaridades da arte brasileira interessavam demasiadamente a Romero

Brest, fomentando seu desejo de conhecer mais profundamente as manifestações artísticas

brasileiras. Ao mesmo tempo em que se dedicava aos acontecimentos artísticos do Brasil- a

fundação do Museu de Arte de São Paulo em 1947, as conferências no MASP em 1950, a

participação como membro do júri de premiação na I Bienal de Arte de São Paulo em 1951- o

crítico argentino também voltava o seu olhar para a produção artística de seu país.

13 BREST, Jorge Romero. La pintura brasileña contemporánea. Buenos Aires: Editorial Poseidon, 1945. p.16.

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Caso emblemático é a publicação de Pintores y Grabadores Rioplatenses pela Editorial

Argos em 1951. Diferentemente de Antonio Bento, cujos principais livros foram publicados

após seu desligando do Diário Carioca, Romero Brest manteve-se muito ativo na edição de

seus textos. Pintores y Grabadores Rioplatenses foi resultado de um amplo exercício crítico,

configurando-se como um profícuo panorama da arte rio-platense através de suas figuras mais

representativas. Por meio de ensaios compilados em um único volume, Brest apresentou

minuciosa análise sobre as obras de importantes pintores argentinos de vanguarda: Emilio

Pettoruti, Lino Spilimbergo, Ramón Gómez Cornet, Horácio I. Butler, Jorge Larco, Raúl Soldi

e Juan del Prete.

Em sua terceira viagem ao continente europeu (1948-1949) dedicou-se aos estudos e

fundamentos da arte abstrata, retornando ao país com uma postura mais nítida em defesa do

abstracionismo. Portanto, além de agregar notas informativas sobre o desenvolvimento das

artes na Argentina, Pintores y Grabadores Rioplatenses possuí um toque revisionista, uma vez

que o crítico reconsiderou afirmações publicadas no ensaio El arte argentino y el arte

universal escrito para o primeiro número da revista Ver y Estimar de abril de 1948.

No referido ensaio, Romero Brest afirmava que o artista argentino deveria concentrar a

sua atenção nos costumes de seu país, observando um modo único de ver e sentir. Tal

posicionamento era fundamental para neutralizar as influências européias que, em um

primeiro momento, tinham sido benéficas para o país, porém a forma como vinham sendo

assimiladas, criava uma atmosfera artística nefasta:

También en Argentina, y en todo el extremo sur del continente, señoreó el milagro durante la época colonial. Desde el púlpito y la cátedra se extendió sobre las atontadas almas nativas el fantasma de lo milagroso, por obra de los jesuitas. Pero aquí no fue expansión del alma transida por la fe, no fue transustanciación de lo humano en lo divino, no fue lirismo puro que se perfecciona en el no-ser; aquí fue corporizado en el animal y el hombre, fue transformado en signo ritual de ornamental sentido, fría imagen de terror, y en lugar de ampliar las visiones, pareció que cambiaba de signo, sumergido en la materia sensual de los fetiches, sin favorecer aquella identificación entre fantasía y realidad, que es el secreto del arte medieval. Todavía era lejana, pues, la posibilidad de que surgiera un artista argentino y ya en el primer contacto con las expresiones europeas se impuso la adhesión a formas cuyos contenidos no podían ser más que letra muerta. Ni se comprendieron entonces las formas barrocas en su vigorosa potenciación del sentimiento, ni las neoclásicas luego en su riguroso sentido de la síntesis constructiva: de unas y otras sólo se apreció el aspecto exterior, como si ellas no hubiesen invitado más que al goce sensorial de las cosas naturales que representaban. En algunas tallas jesuíticas, hay que confesarlo, se dio la versión americana, anárquica, ruda y simplista, de la actitud barroca, lo que hubiera sido tal vez un camino, pero hasta ese sentimiento conformado con

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autenticidad tenía que disolverse, como ocurrió, en una sociedad incapaz desde entonces de hallar la raíz de su destino.14

Para Brest, a realidade nacional não deveria ser buscada no campo, evitando-se

qualquer desvio de ordem popular ou nacionalista. Somente as cidades poderiam proporcionar

uma realidade pulsante. O crítico reforçou as características naturalistas e românticas do povo

argentino, sugerindo mesmo um retorno a essas bases, um neo-realismo, posto que se fizesse

necessário que as experiências românticas e naturalistas se realizassem convenientemente.

Mas, em 1951, Brest havia percebido que os retornos geralmente não são adequados e muito

menos fecundos. O fato é que a Argentina havia passado por um desenvolvimento material

que não correspondeu, necessariamente, a um progresso artístico. Muitas idéias que marcaram

as suas análises críticas nos anos de 1940 esmaeceram-se após o seu retorno da Europa, em

1949. Tendo se passado dois anos, seus questionamentos já eram de outra ordem:

Este pueblo que crece desmesuradamente y sin norte pero que asimila con pasmosa rapidez, estará en condiciones, acaso antes que la vieja Europa, de comprender el sentido de la expresión nueva. ¿Cuál es esa expresión nueva? (…) esa expresión nueva es la que viene surgiendo, probablemente más en Estados Unidos que en Europa, por la senda del llamado arte abstracto. No hago cuestión de nombres- llámeselo arte concreto o no objetivo o no figurativo. Lo importante es comprenderlo. Por eso me vengo esforzando, en mis cursos y conferencias, pronto en un librito que publicará Fondo de Cultura Económica de México, titulado Hacia el arte abstracto, para que mis discípulos y amigos entiendan correctamente los postulados en que se basa. No se trata de que nos embarquemos de nuevo y a ciegas en una dirección extraña, pues acaso sea más extraña en Europa que entre nosotros. Es un movimiento artístico que sin duda se adelanta en muchas decenas de años pero cuya vigencia no hará sino acrecentarse.15

Brest acreditava que a crise artística vivenciada pela Argentina abalava, sobretudo, os

jovens artistas. Essa categoria dividia-se entre os artistas mais impetuosos e afáveis às

experimentações e aqueles que, em uma postura mais intimista, vivenciam a angústia de

escolher uma forma de expressão artística. O autoconhecimento apresentava-se como o

caminho mais seguro em direção a novas conquistas artísticas. Mas, era preciso que esses

jovens entrassem em contato com as obras de artistas maduros e relevantes para o panorama

artístico argentino, não com o intuito de imitá-los, mas de estimá-los. Análises estéticas

14 Jorge Romero Brest, “El arte argentino y el arte universal”. VER y ESTIMAR. Número 01, abril de 1948. p. 03. 15 BREST, Jorge Romero. Pintores y Grabadores Rioplatenses. Buenos Aires: Argos, 1951. p. 09.

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fundamentadas e didáticas faziam-se necessárias. Nesse contexto, é inegável que Brest

revelou-se um espírito militante a serviço da elucidação estética.

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CAPÍTULO II

A RAZÃO CRÍTICA DE ANTONIO BENTO E A ATUAÇÃO EM O DIÁRIO CARIOCA.

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Ao tratarmos da trajetória crítica de Antonio Bento, é fundamental documentar a sua

passagem pelo jornal Diário Carioca, cujas páginas constituíram importante arena para os

principais debates artísticos que movimentaram o cenário nacional e internacional. Sua

atuação em um periódico de grande circulação foi fundamental para um processo de

interlocução com a crítica especializada, assim como a atualização de seus leitores.

Antonio Bento iniciou sua carreira jornalística como crítico musical do jornal Diário da

Noite, de São Paulo, em 1926, permanecendo neste veículo até 1927. Foi também um dos

fundadores do Diário de Notícias, em 1930. Mas, a sua estréia como crítico de arte deu-se,

oficialmente, com um artigo publicado no jornal A República, de Natal, sobre o artista Ismael

Nery, em 16 de julho de 1930. Em 15 de setembro de 1934, Antonio Bento passou a fazer

parte do Diário Carioca, na função de redator, dedicando-se ao tirocínio jornalístico, ou seja,

pequenas notas sobre as questões políticas e econômicas do país, além das relações

internacionais. Algumas matérias realizadas por Bento não foram sequer assinadas, sendo

identificadas pelo seu modo peculiar de conduzir a narrativa, além do vocabulário impecável e

pouco usual. Outras matérias traziam, ao final, as iniciais AB. Em 1939, o crítico,

modestamente, passou a escrever na seção AS ARTES do Diário Carioca, atualizando seus

leitores sobre os acontecimentos recentes no âmbito das artes plásticas, da música e do teatro.

A partir de 1945 começou a alternar a crítica musical com a crítica de artes visuais, cinco dias

da semana, a convite de Carlos Lacerda, então diretor do Diário Carioca. Antonio Bento

colaborou com esse jornal até 31 de dezembro de 1965, finalizando seu contrato na posição de

jornalista profissional. As quintas-feiras eram comumente dedicadas à crítica musical. Bento

desenvolveu sempre um grande interesse pela música e, sobretudo pelas manifestações

populares e folclóricas brasileiras, notadamente as nordestinas. Nos outros dias da semana

(quarta-feira, sexta-feira, sábado e domingo) imperavam temas relacionados às artes plásticas.

Eventualmente, às terças-feiras, Antonio Bento também trazia temas relacionados à arte,

todavia, o espaço era ocupado por outros pesquisadores e críticos que se alternavam na coluna

AS ARTES, como Raymond Cogniat e Leon Degand, por exemplo. Paralelamente, de

setembro de 1941 a agosto de 1967, Antonio Bento exerceu o cargo de Procurador Regional

do Ministério do Trabalho, experiência que teria influenciado a sua percepção sobre o

exercício da crítica:

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O crítico que toma partido só pode ser um bom crítico se for um gênio, se for um Baudelaire, por exemplo, aí sim, porque mesmo tomando partido, sendo apaixonado, ele é um criador. Mas o crítico atual tem que ser aberto, a fim de ver as coisas sem tomar partido. É esse o meu julgamento, mesmo porque decorre também da minha experiência de procurador de Justiça. Eu vi muitas vezes nos tribunais seis juízes julgando o mesmo caso e cada um via a coisa sob um aspecto diverso. Ver a mesma coisa sob todos os aspectos é que é difícil, aí é que se vê a grande capacidade de um crítico de arte.16

Através de uma postura eloqüente, o crítico comunicava o seu público sobre eventos

vindouros, projetos museais, concursos artísticos ou as principais mudanças ocorridas no

campo das artes, ao mesmo tempo em que compartilhava suas impressões estéticas e

dissabores com publicações e escritos sobre arte. Em sua coluna de 08 de fevereiro de 1950,

Antonio Bento, comentou com tenacidade a trama divulgada por Sérgio Milliet, a respeito de

um crítico paulista, cujo nome não foi divulgado, que planejava, conjuntamente com outros

representantes da profissão, investir contra a exposição de Lasar Segall. A referida mostra

não possuía uma data específica para sua abertura e nem se sabia, ainda, o que seria exposto,

porém, para Antonio Bento, revelava um sintoma preocupante, do clima tenso que envolveria

os debates em torno da arte abstrata: “Esse ataque a Segall prende-se à projetada revisão de

valores que deverá operar-se na pintura brasileira. Que revisão será essa? Ao que parece, são

feitas pelos novos ou brotinhos de S. Paulo, alguns dos quais são abstracionistas ortodoxos.”

Segundo Antonio Bento, Lasar Segall, que retornou ao Brasil em 1924, passando a residir aqui

definitivamente, foi responsável pela produção de uma obra de inspiração nacional de grande

qualidade artística. Esta produção interrompeu sua etapa expressionista de caráter social,

dando origem, por exemplo, à sua fase de Campos do Jordão, típica do período brasileiro de

sua pintura, aproximando-se dos modernistas do Rio de Janeiro e São Paulo. A produção

artística de Segall também chamou a atenção de Romero Brest17. Após uma análise do

panorama artístico brasileiro Antonio Bento dedicou-se ao estudo das obras de Segall e outros

16 COCCHIARALE, Fernando. GEIGER, Anna Bellla. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos 50. Rio de Janeiro: Funarte, Instituto Nacional de Artes Plásticas, 1987. Coleção Temas e Debates. p.113 17 Em carta direcionada a Piero Maria Bardi, de 18 de setembro de 1950, escreve Brest: Estimado amigo: Hace mucho que no tengo noticias suyas. Supongo que habrá recibido mi última carta, en la que le acusaba recibo de las magnificas publicaciones del Museo. En el número 19 de VER y ESTIMAR, que aparecerá dentro de dos semanas publicaré una corta nota haciendo el merecido elogio. Y espero que me llegue la publicación anunciada sobre Lazar Segall para hacer un análisis más exhaustivo. Centro de Documentação/Arquivo Histórico- MASP. Caixa 03. Pasta 12.

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artistas representativos do modernismo18 em Panorama da pintura moderna brasileira.

Editada em 1966, a obra é composta por 11 pranchas coloridas de 47x32, contendo no verso

uma análise sintética, mas densa de cada uma das obras apresentadas. Antonio Bento escolheu

a tela de Segall, Paisagem Brasileira de 1925, para a ilustração da capa de seu livro. Além de

bastante emblemática, a obra também

Dá-nos uma boa mostra da utilização de uma ótica da pintura moderna européia, para visão do tema brasileiro. A preocupação de um construtivismo geométrico, perfeitamente figurativo graças à presença do casario, é de caráter cubista, mas de um cubismo de quem se formou além-Reno, com toda a intensidade de palheta dos expressionistas. A realidade vista dessa maneira se conforma de acordo com o plano do artista, se submete de um modo evidentíssimo ao seu empenho de estruturar o quadro, que é armado com o mesmo rigor com o qual se arma uma natureza-morta, onde, não raro, a composição já é efetivada no próprio modelo. O resultado é uma qualidade cristalina, um equilíbrio que se situa em velha tradição ocidental, com princípio na organização admirável das cenas de Piero della Francesca ou de Paolo Uccello. 19

Alguns anos depois, Antonio Bento publicou

Expoentes da Pintura Brasileira editada pelo Clube de

Arte em 1973. A obra, segundo o crítico, foi gestada

muitos anos antes. De sua experiência como detentor de

uma coluna diária, Bento angariou informações, definiu

conceitos e elaborou um projeto que apenas tomou forma

no início dos anos de 1970. A grande totalidade dos livros

de Antonio Bento foi publicada a partir do momento em

que já não mais integrava a equipe do DC. Expoentes da

Pintura Brasileira, obra composta de 31 reproduções

coloridas, apresenta também textos concisos, porém

amplia o número de obras e artistas analisados em

Panorama. São 17 artistas que para Antonio Bento representam o modernismo brasileiro20,

entre os quais novamente figuram Lasar Segall, Di Cavalcanti e Portinari, tendo os dois

últimos oito obras analisadas no referido livro:

18Malfatti, Di Cavalcanti, Tarsila, Guignard, Ismael Nery, Gomide, Portinari, Cícero Dias, Volpi, Flávio de Carvalho e Bonadei. 19 BENTO, Antonio. Panorama da pintura moderna brasileira. (1913-1939) São Paulo: EdiArte, 1966. 20 Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Alfredo Volpi, Anita Malfatti, Guignard, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Ismael Nery, Orlando Teruz, Portinari, Pancetti, Cícero Dias, Iberê Camargo, Djanira, Milton Dacosta, Emeric Marcier e Raimundo de Oliveira.

SEGALL, Lasar. Paisagem brasileira.

Óleo sobre tela. 54x64 cm. 1925. Coleção Museu Lasar Segall.

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Por uma coincidência curiosa, sob o aspecto crítico, as obras escolhidas são em sua totalidade filiadas ao expressionismo. De outra parte, as trinta e uma telas reproduzidas são todas figurativas, embora vários entre os artistas selecionados tenham igualmente participado da abstração (que também teve em suas hostes pintores expressionistas), do cubismo, do surrealismo, do impressionismo e do próprio realismo ou do naturalismo no início de suas carreiras artísticas. Este é um acontecimento normal, na formação de todos os pintores como dos demais artistas. 21

Como mencionado anteriormente, Antonio Bento possuía grande circularidade entre

artistas, críticos e pesquisadores das tradições culturais nacionais. A sua produção escrita, a

sua percepção sobre as principais mudanças artísticas de seu tempo, poderia ser acompanhada

regularmente nas páginas do Diário Carioca. Era a oportunidade de o crítico compartilhar

com seus leitores assuntos relevantes que movimentavam a cena artística nacional e

internacional, como a 25ª Bienal de Veneza, tema de sua coluna de 10 de janeiro de 1950:

Deverá realizar-se este ano a 25ª Bienal de Veneza, que, continuando sua tradição, apresentará um verdadeiro panorama das artes plásticas contemporâneas. Isto significa que estarão representadas na grande exposição todas as tendências da pintura moderna, desde os abstratos até as correntes realistas e naturalistas. Aliás, essa diversidade constitui a própria característica da Bienal.

E complementou com entusiasmo:

A Bienal de Veneza (...) é uma exposição que sempre instrui o visitante e a deste ano, segundo as notícias que li, deve ser das melhores dos últimos anos.

Ao mesmo tempo em que acompanhava as principais questões artísticas nacionais,

Antonio Bento, registrava uma grande movimentação e esforço de modernização cultural

empreendida pelos museus, mormente, paulistas, ao afirmar que o movimento cultural em São

Paulo, no que se referia às exposições, continuava superior ao do Rio de Janeiro. Tanto o

Museu de Arte Moderna como o Museu de Arte de São Paulo recebiam numerosas visitas, ao

contrário das instituições cariocas. Antonio Bento sinalizava um grande inconformismo com a

21 BENTO, Antonio. Expoentes da Pintura Brasileira. Rio de Janeiro: Clube de Arte, 1973. Prancha não numerada.

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evolução da arte no Rio de Janeiro, enquanto São Paulo, desde 1947, passava por uma grande

densidade cultural.

Conforme assinala Duílio Batistoni Filho em seu livro22 nas primeiras décadas do século

XX, a grande expansão da indústria brasileira - principalmente a paulista, gerando um

nativismo que se desenvolveria com a Primeira Guerra Mundial e somada à inexistência de

escolas oficiais de arte - constituíram um ambiente propício para fazer da capital paulista um

centro de renovação cultural. O fato de São Paulo ser na época a grande capital financeira,

principalmente devido à circulação do dinheiro das indústrias e do café, determinou a

construção do MASP na capital paulista, convertendo São Paulo, segundo Bento, no eixo

cultural do país:

O movimento de artes plásticas no Rio está em pleno marasmo. As exposições são raras e de iniciativas de valor não se tem notícia. O Museu de Arte Moderna está inativo, o que não constitui positivamente um bom estímulo para a iniciativa privada. Enquanto isso, em São Paulo verifica-se o contrário. O Museu de Arte Moderna do qual já falei há dias, está organizando um amplo programa de trabalho, do mesmo modo que o Museu de S. Paulo, dirigido pelo prof. Bardi. Essa instituição, após dois anos de funcionamento (...) aumentou suas instalações, a fim de manter em constante exibição suas coleções permanentes e organizar um programa de exposições, conferências23, cursos e projeções cinematográficas em suas salas e auditórios.24

É importante relembrar que o Rio de Janeiro, por sua vez, submetia-se às influências do

Salão Oficial e da Academia Nacional de Belas-Artes, que procurava anacronicamente ser

herdeira cultural da Missão Artística Francesa do começo do século XIX. Além disso, havia

que se considerar a existência da própria Academia Brasileira de Letras, outro baluarte

conservador na capital do Brasil, só mais tarde aberta aos modernos.

São Paulo, consoante Antonio Bento, apresentava-se como uma cidade em que o peso

da tradição conservadora era menor, dando oportunidade ao desenvolvimento de um espírito

moderno definido a partir de um pequeno grupo de intelectuais paulistas, como Oswald de

Andrade e Mário de Andrade, expandindo-se pelo país. Em crítica publicada em 21 de março

22 BATTISTONI FILHO, Duílio. Pequena história das Artes no Brasil, São Paulo: Átomo, 2005. 23 Em março de 1950, Bardi escreve a Romero Brest: Não pense o amigo de que nos olvidamos do convite feito para aqui realizar algumas conferências; muito pelo contrário. Já que o amigo tem em projeto em fins do corrente ano uma viagem pela América, desde já peço-lhe reservar seu tempo para um curso de 3 a 5 conferências, no auditório do Museu, sobre assunto de sua livre escolha concernente à arte contemporânea. In: Centro de Documentação/Arquivo Histórico- MASP. Caixa 03. Pasta 12. 24 BENTO, ANTONIO. O museu de Arte Moderna de São Paulo. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 11 fev. 1950. AS ARTES. p. 06.

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de 1950, Antonio Bento já registrava um aumento sensível do interesse do público pelos

assuntos artísticos tanto na capital paulista, quanto carioca. Interesse esse que motivou a

criação de um curso de nível superior pelo Museu Histórico Nacional com formação final em

História da Arte ou História do Brasil, de acordo com a opção feita pelo estudante em seu 3º

ano de estudos.

Além da divulgação de eventos, Antonio Bento também se dedicava a promover um

diálogo com seus pares, debatendo afirmações que lhe causavam desconforto, seja pelo caráter

extremista ou excludente em relação à determinada obra ou artista. Mas, as suas considerações

ou ponderações às vezes geravam divergências com outros críticos, afirmações e réplicas que

se desmembravam em várias colunas. Esse foi o caso da crônica publicada em 29 de março de

1950: O Brasil na Bienal de Veneza. O país participaria pela primeira vez dessa Bienal.

Segundo Bento, a escolha das obras a serem enviadas não seria fácil, em função do grande

número de candidatos e da elevada qualidade de alguns artistas brasileiros. Simeão Leal,

comissário responsável por conduzir a representação brasileira até a Itália, havia solicitado o

auxílio de dois júris, um de São Paulo e outro do Rio de Janeiro, com a finalidade de obter

uma seleção de, no máximo, trinta quadros. A triagem, segundo o comissário, deveria ser

realizada de modo a não acirrar polêmicas e representar o país adequadamente. Após

contextualizar a participação do Brasil na Bienal e ver com otimismo a inserção do país no

circuito internacional, Antonio Bento aproveitou para ponderar as afirmações publicadas por

Quirino Campofiorito em sua coluna de O Jornal:

Tratando das dificuldades para a seleção dos trabalhos. Quirino Campofiorito fez ontem, em sua coluna d’”O Jornal”, entre outros reparos, os seguintes: “Assim é que nomes que não sofrem a menor dúvida sobre o alto valor artístico de sua obra podem tornar-se inconvenientes num conjunto brasileiro que vá à “Bienanale” dizer das artes em nosso país. Outras ocasiões lhe serão oportunas e nelas mesmo seu nome não deverá ser esquecido. Mas quando comparecemos pela primeira vez a esse importante certame internacional, e sofremos as mil dificuldades de indicar nomes para um grupo reduzidíssimo, não devemos negar oportunidade àqueles que demonstrarem uma formação artística no ambiente nacional e jamais tiveram a oportunidade de trazer dos centros europeus um nome já merecidamente aplaudido. Precisamos levar a Veneza artistas que apenas se fizeram conhecidos no estrangeiro após uma iniciação em nosso ambiente, e não o inverso, o que seria capaz de despertar na crítica européia uma opinião pouco favorável, que iria posteriormente dar razão a censuras oportunistas entre nós mesmos. Temos artistas de sobra para reunir um envio pequeno e excelente e concorrer à “Biennale” como devemos sem necessidade de recorrer a nomes que iriam destoar do bom critério a ser adotado, muito embora, repetimos, estes se façam artistas de alta valia. Mas não seria essa a oportunidade que lhes cabe de aparecer com os elementos indígenas.” Revela-se Campofiorito, nestas alegações, um nacionalista “enragé”, o que é um direito seu. Mas, acontece que a “Biennale di Venezia” não adota esse critério, nem interna, nem externamente. Tanto as representações da Itália como as dos países

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estrangeiros são feitas sem quaisquer restrições nacionais ou nacionalistas de acordo com as tendências da arte moderna. Cabe ainda acentuar que a Escola de Paris sempre foi universalista por excelência. Tanto assim que recebeu a contribuição de todos os artistas, como os italianos Modigliani e Giorgio de Chirico, o russo Chagall, o japonês Foujita ou o espanhol Picasso. Este é ainda hoje apontado pela crítica francesa como a figura mais representativa da própria Escola de Paris. Já se vê que, tratando-se de uma exposição de arte moderna-como é a Bienal, não se justifica de nenhum modo a restrição oposta por Quirino Campofiorito. Seria um golpe vibrado no modernismo ou, em outra hipótese, uma restrição oposta a determinado artista. Esse critério evidentemente não pode ser adotado pelos júris que deverão escolher os trabalhos, tendo em vista razões de ordem estética e artística e não de ordem política. O critério das conveniências “indígenas” pode mesmo ser considerado como a negação dos princípios do modernismo.

Embora longas, as citações transmitem a tenacidade de Antonio Bento e a preocupação

com o ato crítico, demarcando seu estilo pontual, eloqüente e muitas vezes indignado em

relação a posturas excludentes.

A reação de Quirino Campofiorito, às alegações de Bento, foi publicada na coluna de 02

de abril de 1950. Ainda que para o crítico potiguar25 o espaço não devesse ser dedicado a

polêmicas, Campofiorito tinha cometido dois erros imperdoáveis: o primeiro foi sugerir

critérios nacionalistas ou indigenistas na escolha dos trabalhos para uma exposição de

tendências modernistas e o segundo consistia na recomendação de que apenas artistas feitos

no Brasil representassem o país. As alegações desagradaram Antonio Bento, pois:

No primeiro caso, trata-se de uma restrição que não deveria ser feita por um adepto da arte moderna e Campofiorito tem-se nessa conta. (...) Finalmente, no segundo caso, Campofiorito teve apenas a intenção de excluir Segall da representação brasileira. Praticou assim pelos menos dois atos reprováveis: 1º) estabeleceu um critério pessoal (o que é sempre odioso) visando prejudicar determinado artista, e 2º) pretendeu privar a contribuição brasileira de um valor positivo, pois Segall é um artista capaz de competir com os grandes pintores europeus contemporâneos. Por que excluí-lo da representação nacional? Felizmente, a sugestão não será adotada por nenhum dos membros dos júris do Rio e de São Paulo. Pelo que ainda pude perceber da resposta de Campofiorito, ele julgou que eu tivesse feito restrições ao seu direito de apresentar sugestões. Engana-se o crítico d’”O Jornal”. Tive apenas a intenção de mostrar que aquelas duas sugestões eram inaceitáveis. Se Campofiorito tem por ventura bons conselhos a dar deve apresentá-los quanto antes, mesmo porque talvez assim apague a má impressão produzida pelas primeiras indicações que formulou. Resta agora retificar alguns reparos do crítico em torno de minha última nota sobre a “Biennale”. (...) Em vez de transcrever na íntegra os meus períodos, Campofiorito concluiu que havia uma contradição no que afirmei com o que mais uma vez errou. Observei que a

25 Antonio Bento nasceu, acidentalmente, em Araruna, na Paraíba. Sua mãe, grávida, viajou para assistir ao casamento do irmão. Em seus escritos, o crítico considera-se potiguar e revela profundo orgulho e afeição pelo Engenho Bom Jardim (RN). Exatamente por isso, aqui, considerar-se-á o crítico como potiguar, respeitando suas declarações.

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escolha não seria assim tão complicada, desde que fosse “fixado um critério geral”. Foi omitida essa parte essencial da frase para melhor demonstrar-se que havia uma contradição no que eu escrevera. Retifico desse modo a minha observação anterior a fim de provar que não errei; nem adotei tampouco a lógica dos existencialistas, como acreditou Campofiorito, que assim se referiu a nota aqui publicada: “Nada entendemos de existencialismo, mas não duvidamos que haja sido aprendida em Sartre lógica assim tão estranha”. Nesse ponto, estou de inteiro acordo com o meu amigo Campofiorito, mesmo porque o conhecimento, a interpretação ou a exegese da filosofia existencialista requer estudos especializados. É por isso que Campofiorito já classificou a pintura abstrata de existencialista, o que demonstra que têm de ambas as coisas noções inexatas ou falsas.

O crítico finalizou seus argumentos, utilizando-se de uma característica muito corrente

em seus escritos: narrativas curtas, cômicas ou, às vezes, irônicas com objetivo didático. Tal

recurso remete a sua tradição de ouvinte e admirador de narrativas populares empreendidas

por sua tia Cornélia e que, mais tarde, o influenciariam na paixão nutrida pela literatura: Equívoco semelhante ocorreu com um delegado de polícia de São Paulo. Tendo tomado conhecimento da reportagem d’”O Cruzeiro” sobre os existencialistas da capital de seu Estado, esse herói chamou com urgência o comissário de serviço. - Pronto seu delegado. - Você já viu essa pouca vergonha no meu distrito? - Não, nunca ouvi falar. -Pois faça uma diligência imediata e prenda todos esses debochados! - Quais são eles? - Esse tal de Sartre e todos os rapazes e moças que andam nus e descabelados no “Café de Flore” e no “Deux-Magols”

As citações, quase na íntegra, dos textos críticos de Antonio Bento deixam entrever um

estilo de escrita bastante peculiar, assim como uma necessidade de apurar os fatos e

demonstrar transparência ao debater um conceito, exigindo fidelidade quando suas afirmações

eram reproduzidas por outros críticos. Ao mesmo tempo, as divergências entre os dois

intelectuais revelavam a posição de defesa da abstração por parte de Antonio Bento e a

percepção negativa de grande parte da crítica sobre essa vertente, julgando-a incompreensível

e/ou incapaz de cumprir sua função social. Existiu sempre por parte crítico brasileiro um

desejo de imparcialidade na composição crítica, embora afirmasse que atingir a plenitude

desse conceito nada mais era que uma quimera. Entretanto, o crítico não deve abdicar de suas

responsabilidades analíticas. Bento diversas vezes afirmou que a crítica de arte perpassa pela

renúncia de posicionamentos e paixões pessoais para que o crítico cumpra a sua função, com

excelência, de levar a arte ao conhecimento do grande público.

Para que esse objetivo se concretize, um crítico deve conhecer diversas tendências,

estilos, composições artísticas, pintores e afins sem pré-conceitos para que os artistas não

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sejam incompreendidos. Para Antonio Bento, essa era uma profissão de fé, o dever do crítico

de informar e favorecer a livre circulação de idéias e da arte entre os principais intelectuais da

época, o artista e o público e, sobretudo, saber avaliar a pertinência e validade de avaliações

pautadas em critérios subjetivos:

Cabe apenas ponderar que a indignação do público, em questões de arte, é sempre lamentável, pois não se firma em juízos normativos ou em razões serenas e imparciais e sim em meros impulsos ou em sugestões apaixonadas e cegas. (...) Já devia ter passado a época da queima de livros e quadros em praça pública, dos assaltos contra estátuas indefesas em seus pedestais. Hitler chegou mesmo a reacender as fogueiras antigas, em seu ódio contra o que ele chamava a “arte degenerada”. Assim, o público que se mostra indignado contra estátuas e quadros deve refletir um momento sobre os erros, injustiças e atentados cometidos por outras gerações. Não mudam apenas, na sucessão das escolas e modas, as concepções artísticas: muda, sobretudo, o gosto do público, que hoje, por exemplo, é o primeiro a escarnecer dos exaltados e levianos que consideravam os pintores impressionistas uns meros fabricantes de monstruosidades e horrores. 26

Bento acreditava verdadeiramente na potencialidade das palavras, principalmente no

dever do crítico em realizar análises que contribuíssem para o processo de elucidação estética.

O conhecimento palpável sobre as correntes estéticas, as causas das mudanças artísticas em

seu país, aliado a um desejo de contribuir para a expansão e consolidação da arte moderna,

revelaram um homem persistente em suas convicções. Nem a amizade com os diversos

artistas e críticos, impedia-o de ser rígido criticamente, indicando a severidade de suas

análises e o compromisso com o seu ofício de crítico de arte, dotado de parâmetros apurados

de julgamento: Apesar da retificação que fiz, Campofiorito voltou a reproduzir o texto incompleto, no seu diálogo imaginário. Não é positivamente correto esse processo, uma vez que importa na deturpação de juízos e afirmativas do adversário. (...) Campofiorito usa métodos totalitários em suas críticas. Por isso, não toma sequer conhecimento das retificações feitas pelo adversário, as quais para ele não existem. Hitler mostrou, com sucesso, que uma mentira repetida muitas vezes termina sendo recebida como uma verdade. É essa uma regra de conduta moral seguida pelos totalitários de todos os matizes. Cabe-me apenas o direito de protestar contra a deturpação do texto, que fica alterado substancialmente, pedindo a Campofiorito que me retire de seu diálogo. Aliás, este é apenas um monólogo, pois o crítico de “O Jornal” procura sempre alterar o sentido de afirmativas feitas pelas pessoas com as quais conversa, ou finge que conversa, de modo a parecer ao leitor que está sempre com a razão. 27

26 BENTO, ANTONIO. A estátua do trabalhador. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 05 maio. 1950. AS ARTES, p.06. 27 BENTO, ANTONIO. Notas do dia. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 06 abr.1950. AS ARTES, p.06.

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Todavia, a acessibilidade, paciência e afabilidade sempre foram características

intrínsecas à personalidade de Antonio Bento. Tal fato lhe concede uma forma muito peculiar

de lidar com o exercício da crítica: desenvolver inegável interesse pelo que o artista detém de

mais intimista: sua espiritualidade. Como tivesse uma personalidade generosa travou longas e

coesas amizades com diversos artistas- Ismael Nery e Portinari, por exemplo. Mas era este o

objetivo final de sua trajetória crítica: a descoberta e mapeamento de uma arte

verdadeiramente nacional dotada de uma expressiva força estética e formal. Em sua coluna,

divulgou e comentou exposições de diversos artistas: a pintura sentimental de Maria Leontina,

as gravuras de linha expressionista de Marcelo Grassmann, as composições de Inimá de Paula,

artista que segundo o crítico era indiscutivelmente uma das figuras mais dotadas de talentos

entre seus colegas das novas gerações.28 Também viu com entusiasmo a exposição das

ilustrações realizadas por Carybé para a edição argentina de Macunaíma, assim como os

estudos de Clóvis Graciano para a primeira edição do Café, que se encontrava em preparo.29

Em 19 de abril de 1950, Bento divulgava o grupo de pintores escolhidos para a Bienal de

Veneza: Portinari, Di Cavalcanti, Pancetti, Volpi, Flávio de Carvalho e Burle Marx. Entre

pintura, gravura, desenho e escultura, 45 trabalhos seriam enviados, sendo as gravuras

pertencentes a Oswaldo Goeldi e Lívio Abramo. Cândido Portinari, participou com alguns

quadros de grandes dimensões, entre os quais Retirantes e Enterro na Rede, obras que

pertenciam ao acervo pessoal de Assis Chateaubriand e foram doadas para o Museu de Arte de

São Paulo, assim como a Série Bíblica30. Apesar do convite realizado por Simeão Leal, Lasar

Segall não enviou obras, alegando que deveria se concentrar em sua retrospectiva organizada

pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo31. A ausência do artista, assim como de Guignard-

que estava convalescente- foi classificada por Bento como lamentável, uma vez que privava o

país da divulgação de dois pintores representativos. Ao mesmo tempo, Bento analisava o

papel de destaque que o Museu de Arte de São Paulo assumia no cenário cultural paulista,

tanto por sua proposta atualizada de promoção da arte moderna quanto pela qualidade,

28 BENTO, ANTONIO. Inimá. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 09 abr.1950. AS ARTES, p.6. 29 BENTO, ANTONIO. Notícias diversas. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 12 abr.1950. AS ARTES, p.6. 30 Integram a Série Bíblica de Portinari, as seguintes obras: O Último Baluarte - A Ira das Mães (1942) / O Sacrifício de Abrahão (1943) / O Massacre dos Inocentes (1943) / As Trombetas de Jericó (1943) / A Justiça de Salomão (1943) / A Ressurreição de Lázaro (1944) /O Pranto de Jeremias (1944). 31 É importante recordar que também Brest acompanhava as iniciativas culturais do MASP com grande interesse e entusiasmo. Em carta de 18 de setembro de 1950 para Bardi, o crítico argentino solicitará o envio do catálogo da retrospectiva de Lasar Segall no referido museu. O fato de o artista ter abdicado de sua participação na Bienal de Veneza, alegando preparação para uma exposição retrospectiva no MASP, revela o grande prestígio dessa associação no cenário artístico paulista e certamente mundial.

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variedade e extensão de sua coleção que incluía, dentre os artistas brasileiros, as obras de

Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Lasar Segall, Vicente do Rego Monteiro, Flávio de

Carvalho e Anita Malfatti, por exemplo.

Através das páginas do Diário Carioca, o crítico ressaltava a importância do leitor saber

diferenciar as motivações dos periódicos especializados em arte, assim como os objetivos dos

julgamentos estéticos. Prevenia o leitor sobre a existência de uma crítica que não visava

apenas mostrar a importância artística de seu tempo, mas, sobretudo, revelar novos talentos,

inventar novas formas, a elaboração de novas teorias e a mudança do gosto. Tal

comportamento incide numa prática negativa da crítica, com o objetivo de influenciar a

mudança do gosto, determinando ou apontando as transformações artísticas vindouras:

Prefere mesmo ser um vidente, a ser um visual. É claro que o tom profético constitui uma das características desse gênero de crítica. O que explica a sua extraordinária boa vontade em exaltar, indiscriminadamente, tudo quanto apareça com o rótulo de revolucionário, em receber com simpatia todas as novidades boas ou más que surjam, revistam-se ou não de verdadeiro interesse artístico. Essa fácil disponibilidade resulta evidentemente do receio ou mesmo do pavor que muitos têm de incorrer em “erros” idênticos aos que foram praticados em relação ao julgamento dos impressionistas, de Manet até Cézanne e Van Gogh. (...). Tem assim a ilusória esperança de não ser chamada amanhã de cega ou reacionária, ao mesmo tempo em que vai fazendo, pelo processo simplista da exclusão de qualquer recusa, a descoberta dos possíveis gênios e revolucionários que forem surgindo. Toma uma atitude idêntica a do jogador maníaco que, no interesse de não perder, qualquer que seja o capricho da sorte, resolve apostar em todos os números da roleta. 32

Em um período de publicações e interesses pelo panorama artístico paulista, em outubro

de 1950, entrou em circulação a revista Habitat33 dirigida por Lina Bo e Pietro Maria Bardi. A

publicação trazia textos sobre teatro, música, cinema e ensaios sobre a história da arte

brasileira. Já em janeiro de 1951, Antonio Bento mencionava em sua coluna, a nota nada

amável e objetiva que o primeiro exemplar da revista Habitat publicara sobre a participação

dos artistas brasileiros, pela primeira vez, na Bienal de Veneza. Habitat possuía uma visão

bastante negativa da escolha das obras, lamentando a ausência de Lasar Segall, que seria uma 32 BENTO, Antonio. A crítica de vanguarda. Ensaio Crítico. p. 06. s/d. Material cedido pela família do crítico. 33 A periodicidade da revista foi bastante irregular e teve Lina Bo Bardi como diretora dos exemplares de nº 01 até 09. Em caráter experimental a revista seria publicada trimestralmente, entretanto, teve edições bimestrais e mensais. Flávio Motta dirigiu a publicação de nº 10 até 13. Os números 14 e 15 foram coordenados por Lina e Pietro Maria Bardi. A partir do número 16 até sua finalização com o exemplar 66, Geraldo N. Serra foi o diretor. Habitat dispôs de variados subtítulos de acordo com o direcionamento dado ao periódico: Revista das Artes, Revista Brasileira de Arquitetura, Artes Plásticas, Artesanato e Decoração Contemporâneas. Nas últimas edições, a revista contava com subtítulos que remetiam aos temas específicos que seriam abordados: Revista Brasileira de Arquitetura, Artes Plásticas, Decoração interna, paisagismo, ambiente, mosaico e desenho industrial.

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ótima referência da efervescência cultural vivenciada pelo país. Porém, como já foi aludido,

embora o comissário do Brasil, Simeão Leal, tenha se esforçado em agregar Segall à

representação brasileira, o artista foi contumaz em não aceitar o convite, alegando uma

retrospectiva ainda em 1950 no MASP. A nota fazia ainda menção ao fato de Simeão Leal ter

atuado como conciliador entre os representantes do júri do Rio de Janeiro e de São Paulo

afirmação que, juntamente com a árdua crítica aos participantes da Bienal de Veneza,

desagradou muito a Antonio Bento:

Participei dos trabalhos da comissão de escolha e desconheço, até este momento, qualquer luta por ventura travada entre cariocas e paulistas. Em que teria consistido essa divergência? Não sei também até onde foi a missão conciliatória do comissário do Brasil. É possível que a escolha dos trabalhos remetidos para a Itália não houvesse sido realmente boa; foi, no entanto, a melhor que poderia ter sido feita, diante da premência de tempo e da produção apresentada à comissão. Afirma a revista “Habitat” que a “a escolha vigiada desde o começo na peneira estavam respeitáveis pessoas de indubitável capacidade em outros campos que não os da arte, as quais queriam a todo custo passar sobre um arco de triunfo e passaram sob o imenso arco da incompetência”. Neste ponto, o redator de “Habitat” claudicou ou foi mal informado. Não houve absolutamente escolha “vigiada” ou “dirigida”. Reduziu-se apenas o número dos artistas, dada a limitação do espaço destinado aos brasileiros. Também não me parece justa a acusação de incompetência e de vaidade feita a todos os artistas brasileiros, entre os quais estavam Portinari, Bruno Giorgi, Di Cavalcanti, Milton Dacosta, Pancetti, Burle Max, Goeldi, Lívio Abramo e Volpi. A nota, para ser realmente objetiva, deveria apontar, entre os pintores, escultores e gravadores representados, quais os que não estavam em condições de figurar na Bienal. E deveria também demonstrar em que consistia o erro da Comissão e do comissário, o que não foi feito. Este reparo vai aqui, sem embargo da atuação que me mereceu os dirigentes da revista “Habitat”, dignos de admiração pelo trabalho que vêm desenvolvendo em favor das artes plásticas no Brasil. 34

Habitat, cujo objetivo era divulgar e atualizar os leitores sobre as classificações,

divisões e inovações em torno dos acadêmicos e modernos, tinha sua trajetória

intrinsecamente ligada ao Museu de Arte de São Paulo. Criado em 02 de outubro de 1947, o

MASP foi idealizado pelo empresário e jornalista Assis Chateaubriand e pelo jornalista e

crítico de arte italiano Pietro Maria Bardi. Este último foi responsável por selecionar

pessoalmente as primeiras obras que viriam integrar a coleção inicial do museu, em suas

viagens pelas principais cidades culturais européias, após a Segunda Guerra Mundial. Os anos

de 1940 e 1950 foram marcados pelos esforços do empresário norte-americano Nelson

34 BENTO, ANTONIO. Os Brasileiros no Bienal. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 17 jan. 1951. AS ARTES, p.06/07.

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Rockfeller e do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) pela promoção da arte

abstrata, buscando uma aproximação com o Brasil. Porém, o grande predomínio da arte

figurativa no acervo do MASP expressava a inclinação de Bardi, diretor do MASP desde sua

fundação até 1990, por essa vertente, revelando uma concepção formalista de que a arte

abstrata poderia resultar numa despolitização da arte.

A sede inicial do MASP35 englobava quatro andares do prédio dos Diários Associados,

pertencentes a Chateaubriand, protagonista atuante na captação de recursos, entre os grandes

empresários da época, para a aquisição de obras.

O extenso patrimônio do empresário reunia 34 jornais, 36 emissoras de rádio, 18

estações de televisão, editora e a Revista O Cruzeiro.

Havia por parte de Chateaubriand uma grande preocupação com a estrutura do edifício

que abrigava o MASP, neste momento situado à Rua 07 de abril, número 216, 2º. Andar. A

reforma realizada pretendia conceder à instituição uma organização funcional, ou seja, propor

uma consciência nítida da função social das artes. Em 16 de maio de 1950, Bento celebrava

com entusiasmo, em seu artigo Notas diversas, a iniciativa do MASP de consolidar um projeto

de democratização da arte. Tal objetivo seria alcançado através de mostras didáticas,

exposições subordinadas a temas que despertassem no visitante o desejo de uma leitura viva

da obra em exposição, palestras e edição de livros de arte. Inseriam-se, neste contexto, um

projeto de conferências criado em 1948, que contava com a participação do crítico de arte

argentino Jorge Romero Brest para sua execução naquele corrente ano36, a inauguração do

cinema do MASP com a presença do renomado cineasta francês Henri-Georges Clouzot e a

grande retrospectiva da obra completa de Le Corbusier. Todas estas iniciativas significavam

para Bento um grande avanço na conquista da modernidade, restando para o crítico apenas um

questionamento: Quando teremos no Rio um Museu com um programa de trabalho dessa

natureza?37

Em meio a propostas de democratização da arte, debates críticos e análises estéticas,

Antonio Bento apreciava e estimulava iniciativas em prol do abstracionismo, sobretudo o

informal. Acreditava Bento que a não adesão a essa corrente, por parte dos jovens ou

experientes artistas, partia da falta de percepção da potencialidade expressiva e densidade

simbólica da arte abstrata. Cabia a crítica respeitar e compreender a postura do artista e a 35 O edifício sede do museu situado na Avenida Paulista - com 11.000 metros quadrados divididos em cinco pavimentos e com vão livre de 74 metros - foi inaugurado em 1968. O projeto foi realizado por Lina Bo Bardi e levou 12 anos entre esquematização e execução. 36 Como veremos mais adiante, apesar do projeto de 1948, as palestras de Brest efetuaram-se apenas em dezembro de 1950. 37 BENTO, ANTONIO. Notas diversas. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 16 maio. 1950. AS ARTES, p.06.

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dificuldade de apreensão do grande público em assimilar e aderir a um meio diferenciado de

captação da forma, que abdicava da realidade como modelo fiel de representação.

Em 02 de julho de 1950, Antonio Bento divulgava a exposição de um jovem artista na

galeria Le Connoisseur na capital carioca. Ex- aluno de Guignard, Farnese de Andrade Neto,

havia se dedicado ao estudo rigoroso de paisagens e modelo vivo. Para Bento o jovem, de

tendência figurativa e adepto do desenho, não se mostrava ainda um artista no sentido amplo

do termo, mas apresentava progressos evidentes no domínio do desenho, com uma base sólida

e técnicas variadas, mas deixando transparecer em poucas composições a marca de seu

mestre: No conjunto dos desenhos, não demonstra, por sua vez, influências ostensivas dos pintores modernos, apesar do ecletismo que sua exposição patenteia. Não possui ainda Farnese um estilo definido, com é tão comum em sua idade. Contudo, vê-se logo que possui grande habilidade, não emendando nunca seus desenhos, feitos com lápis ou pincel. Farnese é figurativista, tendo inclusive predileção pelo retrato; não só por este como pela composição com figuras. Isso levou-nos a perguntar-lhe se não gostaria de tentar a arte abstrata, ao menos como exercício. - Não tenho propriamente predileção pelo estilo figurativo- respondeu Farnese. Creio apenas que não conseguiria, com a arte abstrata, o que poderei fazer com a figuração. - Por quê? - Simplesmente porque, para mim, a pintura não-objetiva dificilmente pode causar emoção a quem a contempla. E uma arte, sem essa possibilidade, não me parece completa. O expositor coloca-se desse modo entre os que não acreditam que a arte abstrata fale ao coração dos homens. (...) É curioso constatar que embora procure uma arte de emoção Farnese só recorra excepcionalmente à linha expressionista, que é a linguagem moderna adequada a uma comunicação mais viva com o público. 38

O crítico converteu as páginas do Diário Carioca em um importante fórum para os

debates que movimentavam a década de 1950. Em seu diálogo com os artistas, era de grande

relevância saber o que pensavam sobre o abstracionismo. Por ocasião do retorno de Antonio

Bandeira ao país, perguntou-lhe Bento sobre suas percepções e conclusões sobre o

abstracionismo, permitindo ao crítico sentir a receptividade, ou ausência dela, em relação a

arte não figurativa. Afirmou na ocasião Antonio Bandeira que:

38BENTO, ANTONIO. Desenhos de Farnese- aluno do curso de Guignard. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 02 jul. 1950. AS ARTES, p.06.

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O abstracionismo me aborrece. De cem pintores abstratos salva-se um. Os outros todos são falsos e caem na blague ou na mistificação. Kandinsky e Paul Klee, na fase final, não foram abstratos: chegaram a uma pureza indefinível. Admiro o abstracionismo de Picasso (que como pintor esta cada vez mais moço), mas os pintores que o seguiram não fizeram nada de sério.39

Ao acompanhar as contribuições artísticas individuais, Antonio Bento registrava as

diferentes estratégias adotadas pelos artistas, em meio à polêmica entre acadêmicos e

figurativos, para empreenderem uma produção conceitualmente expressiva e atualizada dentro

de um panorama artístico conturbado. Em 21 de janeiro de 1951, o crítico potiguar noticiava,

sem surpresa, a decisão de Iberê Camargo de dedicar-se aos estudos dos mestres antigos. Em

contato com o artista em 1948, por ocasião de uma viagem a Roma, o crítico acompanhara de

perto o interesse que o artista nutria pelos museus italianos e a intensidade de seu plano de

estudos. Após um ano em Roma, período no qual Iberê freqüentou o ateliê de Giorgio de

Chirico, o artista matriculou-se no movimentado curso que André Lhote mantinha em

Montparnasse. Em 1949, Antonio Bento também estava em Paris, tendo a oportunidade de

acompanhar o desenvolvimento do plano de estudos de Iberê, cujas escolhas agradavam muito

ao crítico. Para Bento, tanto De Chirico quanto Lhote eram figuras emblemáticas do

modernismo: Giorgio de Chirico é um dos maiores pintores modernos, não se desconhecendo a influência que exerce até sobre os surrealistas. (...) André Lhote embora fiel à estética modernista, também admitiu como necessária aos pintores de hoje, uma volta aos antigos, que conheciam perfeitamente seu oficio, o que não se obteve na época contemporânea. Tendo freqüentado esses dois cursos, Iberê Camargo não renegou os princípios da Escola de Paris. Mas, não deixou, por sua vez de refletir cuidadosamente sobre a decadência do “métier” do pintor de nossos dias, não somente entre os modernistas como entre os acadêmicos. Estes apenas procuram imitar os velhos mestres, sem se aprofundarem nos segredos de sua arte. Ora, o que há de válido e permanente na obra de um Ticiano ou de um Rubens é o conhecimento do ofício que um e outro possuíam. (...) Iberê Camargo pôs de lado as polêmicas do modernismo, a querela já fatigante de abstratos e figurativos, para aprender humildemente na Europa o seu “métier”.40

39 BENTO, ANTONIO. Antonio Bandeira de volta de Paris. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 21 jan. 1951. AS ARTES, p.06. 40 BENTO, ANTONIO. Iberê Camargo e a volta aos antigos. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 21 jan. 1951. AS ARTES, p.07.

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Nota-se, ao analisar o conjunto de escritos de Antonio Bento- livros, textos de catálogos

e análises bibliográficas- assim como os artigos publicados no Diário Carioca, que o intenso

conflito entre figurativos e abstratos para ele, não significava, todavia um lado da batalha a ser

escolhido. Para o crítico, as duas correntes eram responsáveis por contribuições indeléveis ao

mundo da arte. Nesse sentido, combatia com vigor a intensa resistência à arte abstrata,

tratando com cautela, posições absolutas quanto ao abstracionismo, ou qualquer outra corrente

artística. Uma análise objetiva da querela, marcando sua posição sobre o assunto, foi

publicada em sua coluna de 23 de janeiro de 1951. Seu texto respondia a uma solicitação da

Revista Branca41, que registrava depoimentos de alguns críticos a respeito de questões

relevantes das artes plásticas, tendo sido o debate entre abstratos e figurativos de vital

interesse para a compreensão do panorama artístico nacional. Ao ser indagado sobre quais

suas percepções sobre o assunto, escreveu Antonio Bento:

Falando estritamente como crítico de arte, minha posição é tanto quanto possível de imparcialidade. Figurativismo e abstracionismo são expressões talvez transitórias de valor apenas polêmico, em face do fenômeno menos contingente e mais geral da evolução das artes plásticas. A importância histórica da batalha é coisa ainda a ser discutida e avaliada devidamente. (...) De qualquer modo, o crítico não pode deixar de admitir que as duas correntes tiveram um papel a desempenhar, no drama apaixonante da arte contemporânea, que tão bem reflete as angústias e contradições do mundo atual. Sou, isso sim, contrário a qualquer posição ou movimento de hostilidade à arte abstrata, na qual tantos espíritos brilhantes vêem a tendência mais característica e representativa da arte de nosso tempo. Não se pode ainda saber, com segurança e objetividade, se no plano estético, o abstracionismo reuniu o que houve de mais vivo e original no domínio da criação artística moderna. De minha parte, tenho apenas a acentuar que me parecem “limitadas”, no momento, as possibilidades estéticas da arte abstrata. Mas, isso não impede que amanhã possa surgir, aos meus olhos, uma espécie de Giotto não-figurativo. Para muitos artistas e críticos esse gênio já existiu. Foi Kandinsky ou Mondrian – mito, crença ou julgamento que não aceito, embora admita, com já deixei acentuado, o possível aparecimento de um supremo criador da arte abstrata.42

41 A Revista Branca foi fundada, no Rio de Janeiro, em junho de 1948 por Saldanha Coelho, Bráulio do Nascimento, Haroldo Bruno, Rocha Filho, Augusto Franco e Nataniel Dantas. A publicação possuiu três fases em sua apresentação gráfica: bimestral, em formato de revista; mensal, em tamanho tablóide; e trimestral em formato de livro, em cinco línguas- português, inglês, Frances, espanhol e italiano. Segundo Ivo Barroso, a Revista Branca desempenhou um papel de alta relevância cultural em sua época, embora destinada a um pequeno grupo de leitores que tinham Marcel Proust como a expressão máxima da literatura universal. Consciente de sua restrita divulgação em território nacional, a revista se pretendia destinada a divulgar os escritores brasileiros no exterior. 42 BENTO, Antonio. Abstratos e Figurativos. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 23 jan.1951. As Artes, p.06.

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Apesar da intensa precaução e distanciamento, o crítico humildemente reconhecia a

possibilidade de ampliar e modificar seus conceitos sobre o abstracionismo. Essa posição

aparentemente contraditória, considerando-se que o crítico foi um dos grandes defensores da

vertente informal, tem uma explicação coerente. No momento em que a arte abstrata passou a

ser difundida no país houve um movimento hermético em torno da arte moderna. A arte de

vanguarda passou a ser considerada uma arte destinada à elite, pois caberia ao crítico traduzir

os diferentes signos da nova da linguagem artística para o grande público. Em um primeiro

momento, o crítico Antonio Bento procurou estabelecer uma análise, sem deixar influenciar-se

pela conjuntura crítica vigente:

Já se falou muito do hermetismo da arte moderna. Este tem sido até apontado como o maior defeito, uma espécie de calcanhar de Aquiles da pintura da Escola de Paris. O hermetismo, depois das pesquisas dos cubistas, tornou-se mesmo uma característica da pintura de vanguarda, arte destinada apenas à compreensão de uma elite. Gostar do que todos gostam é para a grande maioria dos “snobs” uma imperdoável prova de mau gosto. Por outro lado, os críticos de arte e os amadores esclarecidos não se cansam de mostrar que a maioria erra freqüentemente em seus julgamentos, consagrando o ruim e desprezando ou ignorando o bom. Daí o estado de espírito de numerosos críticos de arte contemporâneos, prontos a aceitar, de abraços abertos, todas as novidades. Mas a própria questão do hermetismo também constitui matéria controvertida. Não há arte hermética, sustentam alguns pintores e críticos ilustres: há apenas público ignorante ou incapaz de compreender a nova linguagem plástica. Um telegrama da France Presse, vindo de Paris, conta que, jantando há dias no restaurante “Rive Gauche”, com seu amigo Paul Eluard, Picasso fez desenhos em alguns guardanapos de papel. Um dos garçons aproximou-se da mesa onde jantavam o pintor e o poeta e pediu um dos desenhos para guardar como “souvenir”. Picasso então perguntou: -Você gosta das minhas pinturas? Embora se mostrando tímido o garçom respondeu: -Sim, apesar de às vezes não as entender... Diante da expressão de surpresa do pintor, Eluard indagou do garçom: -Você conhece o idioma chinês? -Não, nenhuma palavra. -Pois bem-explicou o poeta- existem mais de quatrocentos milhões de pessoas que o falam. E, voltando-se para o pintor, o poeta concluiu: - Como você vê, isso não prova nada. (....) O exemplo não prova nada, a meu ver. As linguagens cifradas e os códigos secretos também são aprendidos pelos especialistas. Contudo, jamais poderão ser entendidos pelo grande público, para o qual não foram feitos. Por outro lado, o exemplo do chinês é pouco convincente, pois mesmo os diplomatas que passam longos anos na China saem de lá falando mal e até mesmo ignorando o dificílimo idioma desse país.

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Apesar de decorridos mais de quarenta anos, o hermetismo (dos post-cubistas aos últimos abstratos) permanece a linguagem plástica de uma minoria, pois a maioria não só não a compreende como a hostiliza encarniçadamente, recusando-se mesmo a decifrar-lhe a mensagem secreta. 43

A rejeição a vertente abstrata estava veiculada a idéia de que a atividade artística

brasileira encontraria melhor forma de expressão através de uma arte de caráter nacional,

capaz de refletir e expressar o país em todas as suas potencialidades. Esse era o eixo do

projeto modernista. A visão que rejeitava o abstracionismo apontava para a idéia de uma arte

frágil e pouco útil à sociedade como instrumento de mudanças e de crítica social. As tensões

cresceram no final da década de 1950, quando o Brasil, sob a presidência de Kubistchek,

buscou um novo padrão de desenvolvimento e industrialização, consagrando a abstração.

Colaboraram para esse fenômeno as Bienais, como evento internacional de vanguarda e a

construção de Brasília.

2.1. A I Bienal de São Paulo nas páginas do Diário Carioca.

O sucesso indiscutível da Bienal de Veneza trouxe como conseqüência a voga do nome que foi adotado para exposições de outras cidades. A Bienal de S. Paulo, organizada pelo Museu de Arte Moderna dessa cidade, deverá ser inaugurada em outubro futuro com a participação de vários países. Segundo já foi anunciado, é certa a vinda de trabalhos de artistas da Escola de Paris, pois a França comparecerá em caráter oficial, do mesmo modo que o Chile. Estão, por sua vez, adiantados os entendimentos com os governos da Bélgica, Holanda, Inglaterra e México. Além de enviar quadros dos mestres modernistas (Braque, Picasso, Matisse, Renault e Léger) a França será representada pelos nomes de maior relevo de todas as tendências do modernismo. Contando com algumas telas de Van Gogh, espera-se que a representação holandesa desperte interesse, do mesmo modo que a dos Estados Unidos e da Itália. Está assim desde já assegurado o êxito da I Bienal de São Paulo. 44

43 BENTO, ANTONIO. O hermetismo da Arte Moderna. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 26 mar.1950. As Artes, p.06. 44 BENTO, ANTONIO. Floração de Bienais. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 12 jan. 1951. AS ARTES, p.06.

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Já em janeiro de 1951, Antonio Bento trazia novidades, em sua coluna no DC, a respeito

de uma mostra internacional, que consagraria definitivamente o papel de destaque

desempenhado por São Paulo no panorama artístico nacional.

Porém, o crítico avaliava com inquietude e decepção a situação inversa vivenciada pelo

circuito cultural carioca, assinalando uma crise artística mais intensa do que as anteriores,

responsável pela quase ausência de exposições no centro da cidade. Para alguns, como o

Jornal do Comércio, a crise era resultado de fatores pontuais, como a propaganda sistemática

de novas tendências de arte, o desvario das exposições e a ausência de aparelho crítico,

argumentos refutados por Bento:

A crítica sempre teve reduzidíssima influência sobre a produção artística. E nenhum crítico pode fazer- ou inventar um artista, como também não pode destruí-lo. A propaganda das novas tendências da arte, por sua vez, não pode concorrer para debilitar ou enfraquecer a qualidade da produção dos modernos, cabendo ainda ponderar que o mercado brasileiro não é desfavorável, em conjunto, aos pintores acadêmicos. Ao contrário, a história da pintura européia sempre mostrou que, nas condições mais adversas, surgiram e trabalharam seus grandes artistas, aqueles que deram mostras de verdadeiro gênio criador. Há, portanto, outros fatores influenciando na crise entre os quais não pode ser considerada a ausência de uma crítica favorável aos pintores da Divisão Geral- nem o desvario de exposições que, na verdade, estão se tornando cada vez mais raras no Rio. 45

O Salão Nacional de 1951, segundo Bento, refletia um cenário desfavorável a

visualidade das artes plásticas no Rio. A seção de pintura, tradicionalmente, apresentava os

trabalhos mais expressivos, mas na edição de 1951, a quantidade de telas apresentadas não

refletia proporcionalmente um índice de qualidade esperado pelo crítico. Vários artistas

tinham enviado quadros de qualidade inferior à média de sua produção já conhecida. Apenas

pintores como Henrique Cavalleiro, Edson Motta, Manuel Santiago e Haydéa Santiago, por

exemplo, selecionaram o melhor de sua produção. Os artistas consagrados, por questões

desconhecidas, também se negaram a participar do torneio anual. A organização das obras,

visando uma separação entre os trabalhos dos artistas pertencentes à Divisão Geral-

inaugurada anteriormente- e à Moderna, concretizava o desejo de ruptura fomentado pelos

artistas participantes de ambas as tendências. Entretanto, segundo Bento, tal disposição era

45 BENTO, ANTONIO. A Margem do Salão de 1951. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 09 set. 1951. AS ARTES, p.10.

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resultado de uma questão de caráter político que não traria benefícios a nenhuma das duas

correntes, principalmente para os antimodernos. O desinteresse dos visitantes e artistas pela

Divisão Geral crescia vertiginosamente, estendendo-se aos modernos. De acordo com Antonio

Bento, foi a adesão de Portinari ao Salão que concedeu consistência a mostra, por meio da

valorização da qualidade dos trabalhos expostos e da representação de todas as tendências da

corrente modernista. Embora Portinari tenha apresentado quadros antigos e já conhecidos da

crítica, a sua presença foi significativa dentro da Divisão Moderna, abalada pela ausência de

outros artistas representativos do modernismo, como Lasar Segall e Emiliano Di Cavalcanti:

Foram representadas na Divisão Moderna, todas as correntes das artes plásticas brasileiras, desde as figurativas e realistas até as de tendências abstratas; estes são ainda incipientes, com um ou outro quadro digno realmente de observação mais atenta. Falta aos jovens artistas brasileiros que se dedicam à pintura não-objetiva o conhecimento dos mestres europeus e norte-americanos e das experiências dos últimos anos, tão férteis em imprevistos e tão adeptas de altos e baixos nesse capítulo das artes plásticas modernas. De qualquer modo, já não há entre figurativos e abstratos o divórcio profundo, aqui existente até alguns anos atrás. A coexistência normal das várias tendências começou a verificar-se, sem qualquer choque, no Salão deste ano. É esta impressão mais viva que nos ficou da visita inicial aos trabalhos da Divisão Moderna em 1951. É claro que arte figurativa continua a apresentar maiores qualidades. Faltam aos abstratos a elaboração profunda e a sinceridade que convençam desde logo o observador da necessidade que este ou aquele artista tinha de expressar-se através da linguagem não objetiva. Sendo assim, nota-se maior autenticidade criadora nos figurativos que atingem por isso mesmo a um nível mais alto de criação.46

Inegavelmente, para Bento, era a movimentação em torno da I Bienal de São Paulo que

despertava o interesse dos diferentes segmentos intelectuais e artísticos, transformando a

capital paulista em um ponto de convergência.

São Paulo experienciava um movimento de atualização, de intercâmbio cultural que

constituiria oportunidade ímpar de expressão e visualidade para diferenciadas modalidades

artísticas. Além da I Bienal de São Paulo, estava prevista a inauguração, em 10 de novembro

de 1951, do I Salão Paulista de Arte Moderna. Tal evento propiciaria aos artistas a

oportunidade de participarem de um certame artístico oficial com envio de trabalhos de 01 a

30 de setembro de 1951.

46 BENTO, ANTONIO. Os Modernos no Salão de 1951. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 21 out. 1951. AS ARTES, p.06.

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Os artistas plásticos brasileiros recebiam com simpatia as novas iniciativas culturais

advindas da capital paulista. O evento organizado pelo Museu de Arte Moderna, a I Bienal de

São Paulo, proporcionava um grande diferencial, uma lista de prêmios considerada superior à

das grandes exposições européias. Além disso, na primeira edição da Bienal estava previsto

um prêmio dedicado à crítica de Arte, assim como a realização de um Congresso de Críticos

de Arte47, com a participação de brasileiros e um grupo reduzido de estrangeiros.

Em intenso diálogo com a Revista Branca, Antonio Bento, mais uma vez, foi convidado

a analisar as principais tendências artísticas vigentes no país às vésperas da I Bienal. O convite

se deu em função da interação do crítico com o ambiente artístico nacional, sua acessibilidade,

inserção na polêmica entre abstratos e figurativos e constituir referência teórica no estudo das

diferentes vertentes artísticas nacionais e internacionais:

Num balanço sumário das diversas tendências predominantes nos últimos anos, pode-se dizer que, em plano oposto aos abstratos, estão os realistas, que defendem a tese da arte interessada, de tendências claramente ideológicas ou políticas. Todavia, de outra parte, cabe acentuar que na própria Escola de Paris (a qual continua centralizando o movimento mais profundo de renovação das artes plásticas) coexistem todas as tendências, inclusive as mais díspares e antagônicas. A partir do fovismo e dos movimentos que se foram sucedendo – cubismo, futurismo, dadaísmo, orfismo, primitivismo, surrealismo, purismo, neoclassicismo, abstracionismo e neo-realismo- enfim qualquer desses “ismos”, um menos, outro mais, teve, como ainda tem, a sua atualidade e trouxe alguma contribuição à arte moderna. Deve-se, no entanto, reconhecer que atualmente a escolha parecia, à primeira vista, haver-se tornado mais simples, diante da batalha entre abstratos e figurativos. Mas a verdade é que entre os próprios figurativos existem tendências ou correntes diversas, marchando às vezes em sentidos opostos. Uns são adeptos da arte social, enquanto outros marcham em sentido da “pintura pura” ou da pintura-pintura, revivendo hoje a velha fórmula da arte pela arte, tão debatida no século passado.

47 Em ligação com a abertura da I Bienal de São Paulo, deverá realizar-se, em outubro próximo, na capital paulista, o I Congresso da Associação Brasileira de Críticos de Arte. Participarão dos trabalhos os críticos profissionais pertencentes à entidade e os estudiosos de artes plásticas, assim como, na qualidade de membros honorários, os críticos estrangeiros que vierem ao nosso país, para a inauguração da Internacional da Esplanada do Trianon. Foram escolhidos os seis temas abaixo, a respeito dos quais poderão ser enviadas teses pelas pessoas inscritas no Congresso: I. A situação das Artes plásticas no Brasil- Relator: Mário Barata. II. Função da Crítica de Arte - Relator: Quirino da Silva. – III. O impressionismo no Brasil- Relator: Geraldo Ferraz. – IV. A Semana de Arte Moderna de 1922 e sua influência- Relator: Sérgio Milliet. V. As origens da Arquitetura Moderna no Brasil- Relator: Mário Pedrosa. –VI- Influências da Arte Popular nas Artes Plásticas do Brasil- Relator: Michel Simon. A duração do Congresso será de quatro dias. A entrega de teses e inscrições deverá ser feita, inadiavelmente, até 15 de outubro próximo, no Rio, ao secretário da Associação, na Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, edifício do Ministério da Educação, 8º. Andar, sala 802, e em São Paulo, Comissão Organizadora da Bienal, à Rua 07 de abril, 230, Museu de Arte Moderna. In: BENTO, ANTONIO. Notas e Comentários. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 25 set. 1951. AS ARTES, p.06

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A escolha dependerá assim das “inclinações” do jovem artista, sendo certo, entretanto, que o modernismo defende não só direito de pesquisa e de renovação como o princípio da inteira liberdade de criação artística. Sem a preservação desse princípio, não há verdadeiramente arte moderna, a qual repele como conseqüência, qualquer solução de ordem totalitária, ditada pela censura ou pela coação política. (...) 48

Em meio às dúvidas sobre qual linguagem artística aderir e a validade e pertinência dos

juízos estéticos, os artistas eram convidados a participarem da I Bienal com o envio de obras a

serem apreciadas pelo Júri de Seleção. Os trabalhos do Júri iniciaram-se em meados de

setembro de 1951, prosseguindo até inícios de outubro, analisando cerca de 1.300 obras de

artistas nacionais e estrangeiros, residentes e não residentes no Brasil. Através de sufrágio

realizado pelos próprios artistas, foram selecionados os três nomes mais votados para a

composição do Júri: Tomaz Santa Rosa, Quirino Campofiorito e o pintor Clóvis Graciano.

Posteriormente, mais dois nomes foram agregados à lista. Indicado pela diretoria executiva do

Museu, Luiz Martins exprimiria a opinião dos intelectuais especializados em análises

estéticas. Já o diretor-presidente, Francisco Matarazzo Sobrinho, atuaria como fiel da balança,

intervindo apenas em momentos de impasse. O Júri de Premiação foi constituído, por sua vez,

pelos representantes dos principais países expositores: Jacques Lasaigne (França), Marco

Valsecchi (Itália), Eric Newton (Inglaterra), Emile Langui (Bélgica), Jan Van As (Holanda);

Wolfgang Pfeiffer (Alemanha), Rene D’Harnoncourt (Estados Unidos), o crítico de arte

Sérgio Milliet, um representante dos artistas expositores, Tomás Santa Rosa, o crítico

argentino Jorge Romero Brest e o diretor artístico do MAM, Lourival Gomes Machado.

De acordo com Antonio Bento, em setembro de 1951, a mostra internacional já contava

com adesão de diversos países, entre eles, o Haiti. Segundo Lourival Gomes Machado a

mostra cumpria dois objetivos fundamentais:

Colocar a arte moderna do Brasil, não em simples confronto, mas em vivo contato com a arte do resto do mundo, ao mesmo tempo em que para São Paulo se buscaria conquistar a posição de centro artístico mundial. Era inevitável a referência a Veneza; longe de fugir-se a ela, procurou-se tê-la como uma lição digna de estudo e, também, como um estímulo encorajador. Nesse momento impôs-se submeter o Museu de Arte Moderna a uma dura prova porquanto, se no estrangeiro não tivesse sua reputação firmada, melhor fora abandonar seu ousado projeto. A prova terá sido difícil, mas o resultado revelou-se positivo. 49

48 BENTO, ANTONIO. Os novos. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 28 jan. 1951. AS ARTES, p.06. 49 Catálogo da I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Outubro a dezembro de 1951. p.15.

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A inauguração da Bienal estava marcada para 20 de outubro de 1950. Portinari,

mediante sua incomparável contribuição para o cenário artístico nacional, participou da

mostra como convidado especial, tendo enviado várias telas. Dentre as obras selecionadas

pelo artista estavam os 14 quadros de Via Sacra, executadas para a Igreja da Pampulha, além

da Primeira Missa, realizada para decorar uma das salas do Banco Boa Vista. Outros artistas

brasileiros convidados foram os escultores Victor Brecheret, Maria Martins e Bruno Giorgi; os

pintores Lasar Segall, Di Cavalcanti e os gravadores Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi. Para

Bento, Bruno Giorgi constituía um dos valores positivos da arte brasileira moderna, estando

ao lado dos mais representativos dos escultores europeus de sua geração. O interesse e

preocupação com os problemas da plástica abstrata não fizeram o artista abolir por completo a

figuração. De acordo com Antonio Bento, a grande contribuição do artista estava atrelada ao

fato de que sendo o estilo realista ou não representativo, as criações de Bruno Giorgi

impõem-se antes de tudo, pelas suas qualidades plásticas e monumentais50, revelando o

segredo de seu êxito artístico. Embora constituíssem um grupo bastante representativo das

tendências nacionais, para Antonio Bento faltava uma artista que no início do modernismo

brasileiro desenvolvera uma forma peculiar de representar o Brasil em toda a sua

potencialidade: as paisagens caipiras e urbanas com influências cubistas, a arte antropofágica

e o aspecto social. Por este motivo,

Tarsila deveria figurar também como convidada na I Bienal de São Paulo. Sem os seus quadros o panorama do modernismo brasileiro fica sensivelmente desfalcado e incompleto. É certo que a pintora acaba de fazer uma exposição no Museu de Arte Moderna. Mas isso não impedia que figurasse também com vinte quadros na próxima Bienal. Ao contrário, sua mostra feita nos últimos meses permitiria uma seleção criteriosa dos trabalhos que seriam depois apresentados na I Bienal de São Paulo, juntamente com os de Di Cavalcanti, Portinari e Segall, que receberam convites especiais. Tivesse repetido a temática dos grandes artistas do modernismo a contribuição de Tarsila à pintura brasileira de vanguarda teria perdido em significação e importância. Exatamente porque não imitou os mestres europeus, seus quadros figuram hoje, juntamente com os de Di Cavalcanti, como as obras de arte mais representativas da pintura brasileira na fase inicial do nosso modernismo.51

50 Segundo Antonio Bento, o escultor não dispõe da liberdade e dos variadíssimos recursos de abstração facultados ao pintor, que através de ousadas combinações de cores foge do mundo da representação formal. Na escultura, a forma abstrata implica na solução de problemas mais difíceis do que os da pintura; nesta, a cor é por si mesma um elemento de fuga da realidade e da representação formal. Por isso mesmo, o colorido, na pintura não-objetiva, tem importância fundamental, sendo por assim dizer a sua própria razão de ser. In: BENTO, ANTONIO. Bruno Giorgi. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 23 set. 1951. AS ARTES, p.06. 51 BENTO, ANTONIO. Tarsila. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 16 set. 1951. AS ARTES, p.06.

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Antonio Bento acompanhava de perto os preparativos finais para a inauguração da I

Bienal. As informações divulgadas, meses antes, se mantiveram atualizadas, sem mudanças

formais e estruturais ou atraso na data de inauguração, 20 de outubro. A mostra se estenderia

até 23 de dezembro de 1951. Para o crítico, a excelência e pontualidade de execução

sinalizavam um evento de assegurado sucesso artístico. Com o retorno de Santa Rosa para a

capital carioca, após participar do júri brasileiro de seleção da Bienal, Antonio Bento

aproveitou a oportunidade para entrevistá-lo e obter informações sobre o espaço que a arte

abstrata ocuparia na mostra internacional:

- São numerosos os abstratos? - Não fiz um cálculo preciso, mas creio que as representações principais contam com numerosos artistas pertencentes à corrente não figurativa. Talvez atinja, grosso-modo, a proporção de 40% o que não deixa de ser uma porcentagem expressiva. Isso assegura à I Bienal uma característica realmente modernista.

*** Na qualidade de membro júri, Santa Rosa não quis falar sobre a representação brasileira. Limitou-se a observar: -Há alguns jovens que vão aparecer com relevo, apresentando qualidades positivas.52

Finalmente inaugurada a I Bienal, em 20 de outubro de 1951, Antonio Bento apenas

divulgou na íntegra o pronunciamento de abertura do evento, sem emitir nenhum juízo crítico

ou estético sobre o assunto, certamente em função da restrição espacial. No discurso, realizado

pelo Ministro Ernesto Simões Filho53, como representante do então Presidente da República

Getúlio Dorneles Vargas, ficou patente ser São Paulo palco ideal para o desenvolvimento de

um evento de tamanha proporção artística. O surto industrial fomentou ousadas contribuições

culturais, tendo a arte moderna se identificado com o ritmo acelerado de transformações que,

ao longo de trinta anos, modificaram a fisionomia do país. As transformações artísticas

acompanharam as conquistas no domínio da técnica, as alterações sociais e econômicas, as

reivindicações populares. O artista protagoniza e interage com as transformações históricas,

expressa as dúvidas e contradições de seu tempo por meio de linguagens artísticas que

exteriorizam seu espírito criativo:

52 BENTO, ANTONIO. Santa Rosa e as Bienais. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 04 out. 1951. AS ARTES, p.06. 53 Ministro de Estado para os Negócios da Educação e Saúde Pública.

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Essa revolução estética é por isso mesmo um campo, de conflitos, de choques, de tendências onde os artistas se vêem colocados em coordenadas opostas. Numerosas correntes os solicitam, sem faltar a que tenta retroceder as fontes do primitivismo para de lá extrair alguma coisa que restitua ao artista, nestes tempos avançados, a seiva do instinto criador. Outros, intelectualizados e ressequidos, procuram uma forma abstrata, cujos extremos suscitam temores de que acabe por um divórcio entre a Arte e a beleza.54

A Bienal apresentou em seu

desfecho, surpresas em relação ao

prêmio nacional de pintura, que

segundo Antonio Bento contrariou

até o palpite dos entendidos em arte.

Os artistas convidados, Portinari,

Segall e Di Cavalcanti, que

inspiravam certo favoritismo, foram

desclassificados.55Após intensas

análises, indecisões e um empate

entre Maria Leontina e Danilo Di

Prete, o voto de Sérgio Milliet foi

decisório para que o prêmio de pintura fosse concedido ao artista italiano, radicado no Brasil,

há cinco anos, pelo quadro Limões. A decisão causou grande polêmica em função de três

fatores: primeiro pela solução plástica adotada pelo artista, segundo pelo fato de Di Prete não

54 A Bienal de São Paulo. Discurso proferido pelo Ministro Simões Filho. In: BENTO, ANTONIO. Inaugurada a 1ª Bienal de Arte. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 20 out. 1951. AS ARTES, p.06. 55 Detalha Antonio Bento o assunto em coluna do dia 27 de outubro de 1951, Surpresas da Bienal de São Paulo: Mas não há dúvida que a maior de todas as surpresas resultou do desfecho das premiações referentes à seção de pintura brasileira. Esperava-se que triunfasse um dos três artistas convidados. E no dia da inauguração, correu mesmo, com insistência, o boato de que a Portinari havia sido dado o 1º prêmio. Mas, já no domingo seguinte, começaram a surgir rumores desencontrados, dizia-se que Portinari fora afastado e que a maioria do júri não gostara da “Primeira Missa”. Por motivo idêntico, Segall foi posto de lado. O tríptico dos “Condenados” desagradara a comissão julgadora, que logo resolveu desclassificar o artista. Di Cavalcanti foi a seguir eliminado por outros motivos, sendo também considerada fraca a sua tela de maiores dimensões. Não foram examinadas detidamente as qualidades dos outros quadros desses artistas. (...) Examinando o conjunto dos trabalhos expostos, os delegados estrangeiros consideraram igualmente baixo o nível da produção artística ali exposta, segundo a versão corrente confirmada pelas declarações feitas através da imprensa e pela votação final.

LEONTINA, Maria. Natureza-morta. 1951. Óleo sobre tela. 64,4x 91,6. Coleção MAC-USP

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ser brasileiro56 e, por último, um

artista desconhecido nos meios

artísticos ter sobrepujado nomes

consagrados. Porém, para Antonio

Bento, tais manifestações de

desagrado tinham suas origens na

eterna querela entre figurativos e

abstratos. O próprio crítico, em suas

declarações no DC, parecia não estar

de acordo com a escolha feita pelo

júri, cuja decisão provavelmente

tinha sido influenciada pelas lamentáveis falhas na organização das obras:

No caso da Bienal, os protestos, queixas e descontentamentos surgidos são de origens diversas, decorrendo de motivos artísticos ou políticos. No segundo caso, estão os que combatem os abstratos e o formalismo da Escola de Paris, em nome da arte interessada ou do realismo socialista. Além dos que se batem por princípios artísticos, há alguns elementos que defendem princípios nacionalistas. Pertencem a esse grupo os que se insurgiram contra o premio dado a Danilo Di Prete, por motivos ou sentimentos patrióticos. (...) Como Danilo Di Prete se encontrava em São Paulo desde 1946, preenchia as condições exigidas pelo regulamento da Bienal para expor entre os nossos artistas. Resta saber se o seu quadro era o melhor de toda a representação brasileira. É possível que a impressão desfavorável da maioria do júri em relação aos nossos artistas tenha decorrido não só do local como da arrumação das salas e “boxes” do primeiro pavimento. Diga-se de passagem, que a seleção de trabalhos também foi mal feita, misturando-se todas as tendências, num ecletismo estéril. E o bom não raro se prejudicava, pela vizinhança sempre predominante do mau. Por isso mesmo, o visitante, quando descia do pavimento superior para o inferior, tinha a sensação automática de que baixara o nível da arte brasileira. As condições técnicas do local é que eram sensivelmente inferiores às do pavimento principal. (...) O prêmio dado a Di Prete reflete, sem a menor dúvida, um sentimento instintivo de repulsa da maioria do júri pela arte brasileira. Esse sentimento foi avaliado de perto pelos nossos representantes no júri, os quais em nenhum momento (justiça lhes seja feita) pretenderam defender princípios nacionalistas.

56 Di Prete chegou ao Brasil em 1946. Fixou moradia na cidade de São Paulo, dedicando-se à propaganda como forma de subsistência, embora tenha participado de algumas mostras no Sindicato dos Artistas Plásticos. Vale lembrar que na seção Regulamentos, do Catálogo da Bienal, página 25, Normas Gerais, item 5, consta: Para efeitos de premiação, excluir-se-ão os artistas já falecidos. Considerar-se-ão em igualdade de condições com os nacionais os artistas estrangeiros residentes no país há mais de 2 anos.

DI PRETE, Danilo. Limões. 1951. Óleo sobre tela. 48.60x 64.00 cm. Coleção MAC-USP

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Estou certo de que, se o júri, examinando melhor a representação brasileira, tivesse refletido com calma, durante uma semana, chegaria a outro resultado, pois numerosos trabalhos dos nossos artistas eram nitidamente superiores ao quadro apenas agradável de Danilo Di Prete. Do ponto de vista moral, cumpre aos vencidos respeitarem o veredicto do júri, dando fim aos protestos e aos ranger de dentes. A verdade é que não houve intenções mesquinhas nas decisões do júri. E cabe também notar que os dirigentes da Bienal se conduziram no caso, com invariável isenção de ânimo e perfeito senso de responsabilidade. Jamais procuraram influir nos julgamentos que, embora susceptíveis de críticas, devem ser acatados pelos concorrentes e pelo público, no interesse da cultura brasileira e do prestígio da Bienal. 57

Entretanto, em sua crônica dia 28 de outubro, o crítico deixa transparecer o seu

descontentamento com os critérios de seleção do júri, mormente com o prêmio internacional

de pintura58. Havia uma nítida percepção de que as decisões tomadas objetivavam agradar as

novas correntes do modernismo. Desse modo, parecia haver um posicionamento de repúdio

aos grandes nomes:

Evidentemente, se bastassem apenas as boas intenções dos juízes, tudo terminaria bem, sendo premiados os bons (que, no caso, seriam os verdadeiros criadores) e desprezados ou relegados para um plano secundário os expositores que nada trouxessem de novo ou original para as artes plásticas da atualidade. Armados desses propósitos, decidiu o conselho de jurados da Bienal dar uma demonstração de apreço ao esforço dos novos, prestigiando de preferência tendências ultramodernas. E um critério extremista, cuja adoção não podia deixar de conduzir a erros e equívocos flagrantes. 59

Para o crítico, a postura mais adequada era a de equilíbrio, promovendo uma

distribuição de prêmios entre as novas e antigas tendências, cujas obras melhor as

representassem. Na perspectiva de Bento, os nomes mais indicados para receberem o primeiro

prêmio internacional eram os de Campigli ou Léger. O artista italiano reunia as composições

de melhor qualidade técnica, enquanto Léger havia apresentado um conjunto de cinco obras

57 Vide texto na íntegra em Anexos. BENTO, ANTONIO. Queixas contra as decisões da Bienal. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 27 out. 1951. AS ARTES, p.06. 58 Os prêmios internacionais da I Bienal de São Paulo foram concedidos ao francês Roger Chastel, com o óleo “Namorado no Café” (1950/51) e ao suíço Max Bill, com a escultura “Unidade Tripartida” (1948/49). No âmbito nacional, a primeira Bienal premiou o óleo "Limões", do ítalo-brasileiro Danilo Di Prete e a escultura "Luta de Índios Kalapalo" (1951), de Victor Brecheret. 59 BENTO, ANTONIO. Os prêmios da I Bienal Paulista. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 28 out. 1951. AS ARTES, p. 02; 06.

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Namorados no Café, 1950/51

Óleo s/ tela, 161,7 x 97,0 cm. Acervo MAC-USP.

menos representativas, mas para o crítico Composição sobre fundo cinza era simplesmente

excepcional, uma vez que

Resume tudo quanto existe de original no estilo claro, puro, simples, conciso desse mestre do modernismo. É, sobretudo, uma obra que sintetiza a evolução da pintura moderna, desde a fase cubista até as tendências abstracionistas da atualidade. 60

Consoante Bento, vários nomes foram cogitados como passíveis de premiação:

Feininger, Jean Bazaine- artistas cujos valores estabelecidos para as suas obras excediam a

cotação dos prêmios- Permeke e Chastel. Para o crítico,

dentre os nomes cotados a superioridade na unidade de

estilo pertencia a Bazaine. Todavia, o prêmio foi

concedido a Roger Chastel, pelo óleo Namorados no

Café, que segundo Bento:

Não é uma composição abstrata. Mas também não é a rigor figurativa. Trata-se de um abstrato-envergonhado, categoria a que pertencem os artistas que não tem a coragem de romper todas as amarras que o prendem à figuração. Mais do que pela composição, é pela cor e pela revalorização da luz que se faz notar a arte de Chastel. Em sua fase picassiana, predomina naturalmente o problema da deformação. No trabalho premiado Chastel modula com a cor e apresenta as qualidades do refinamento e bom gosto peculiares à pintura francesa. O 2º Premio coube a Magnelli e foi justo. Trata-se de um dos grandes nomes da pintura abstrata. De seus trabalhos, pelo menos dois ou três eram bons, representando o construtivismo não-figurativo, que é uma das tendências de maior consistência plástica da arte não representativa. 61

O crítico potiguar estava desapontado com o papel secundário desempenhado pelos

pintores realistas. Tanto o italiano Gotuso quanto Edouard Pignon, quarto prêmio de pintura

60 BENTO, ANTONIO. Os prêmios da I Bienal Paulista. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 28 out. 1951. AS ARTES, p. 02; 06. 61 Idem.

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da seção internacional, tiveram uma apresentação abaixo das expectativas, sendo suas telas

classificadas pelo crítico como medíocres. Pignon, embora talentoso, não era para Bento um

pintor de categoria elevada. De uma forma geral, as decisões do júri não agradaram ao crítico.

Em sua opinião o terceiro prêmio dado a Baumeister também não fora uma decisão acertada.

Bento se deteve na apreciação dos prêmios da seção internacional e nacional em quatro

crônicas diferentes. Para o crítico se fazia necessário esclarecer o que definia como flutuação

do trabalho do júri. Os nomes mais cotados, as obras mais representativas pareciam estar

predestinadas ao ostracismo. Tal posicionamento configurava-se atípico e curioso: o resultado

das votações às vezes terminava quase na surpresa de uma verdadeira loteria. O que permitia

a Bento questionar se a falha era do regulamento da Bienal, da composição heterogênea do

júri ou do critério de julgamento adotado. Em sua opinião, os dois últimos fatores tinham sido

decisivos para que a premiação da I Bienal tivesse um viés tão polêmico. Porém, apesar de

incongruências, insatisfações e queixas, a Bienal propiciou o contato com obras magníficas

como a tela abstrata Composição nº 27 de Fritz Winter, para Antonio Bento uma das mais

belas obras da Bienal, e Irradiações azuis de Theodor Werner, cujas cores iluminavam-se de

verdadeira força pictórica. Ambas as obras, segundo Bento, denotavam a posse de um estilo

próprio, sem qualquer influência ostensiva da Escola de Paris.

2.2. Antonio Bento e Romero Brest: o panorama artístico brasileiro e a importância das

Bienais.

Como mencionado anteriormente, a Bienal Internacional de Artes Plásticas de São

Paulo, ligada ao MAM-SP e realizada pela primeira vez em 1951, como gesto do industrial

Francisco Matarazzo Sobrinho foi considerada o evento ápice da fermentação cultural

vivenciada pela capital paulista. Lourival Gomes Machado, diretor artístico da 1ª mostra e

encarregado de organizar o texto do catálogo da primeira versão, afirmava que o propósito da

Bienal era colocar a arte moderna do Brasil em contato com o circuito mundial e, ao mesmo

tempo, situar São Paulo como centro artístico internacional. Assim, os artistas ficariam

informados sobre o que ocorria em Paris e Nova Iorque e também sobre o que se passava na

América Latina.

A iniciativa brasileira foi vista com admiração pelo crítico argentino Jorge Romero

Brest. A edição nº 26 de Ver y Estimar, de novembro de 1951, propôs uma extensa e detalhada

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análise sobre o evento internacional brasileiro, em função de seu caráter ímpar e colaborativo

para o desenvolvimento das artes na América Latina:

Por primera vez en América Latina se realiza un certamen internacional de artes plásticas, en la ciudad brasileña de San Pablo, exhibiéndose más de mil quinientas obras de pintura y escultura, y un centenar de proyectos y maquettes de arquitectura. El hecho asume una importancia extraordinaria. Levantar un edificio, organizarlo para que funcionen los pabellones de veinte países, no es tarea fácil, pero más difícil que solucionar los problemas materiales es obtener el apoyo de gobiernos e instituciones que con alguna razón suelen desconfiar de las iniciativas americanas. Para tener éxito en empresa semejante es menester energía, tenacidad, inteligencia, sensibilidad, tolerancia, sobre todo fe- la que se tiene y la que se inspira. Y bien, los dirigentes del Museo de Arte Moderno de San Pablo: Francisco Matarazzo Sobrinho y Lourival Gómez Machado, así como sus esforzados colaboradores, han logrado realizar lo que hasta hace unos meses parecía imposible. América es así, y aunque más de una vez esta manera de trabajar a impulsos, a puro corazón y a pura vitalidad, no debe ser alentada porque impide obtener frutos en esa verdadera sazón que proporciona el tiempo debido en el crecimiento, sea por esta vez ensalzada, ya que eran tantos los obstáculos que debían ser superados como para que un reflexivo se echara atrás. Nadie piensa en San Pablo, por otra parte, que se ha logrado la perfección. Todos, con loable modestia, destacan el carácter de experiencia de esta Primera Bienal y se proponen aprovecharla como dóciles discípulos. Por estas razones, a las que se agrega la tradicional cortesía de los brasileños, han logrado algo todavía más difícil: la creación de un clima de compresión altamente simpático. (…) En resumen, una exposición que exige muchas horas, varios días, a quienquiera visitarla detenidamente. ¡Ojalá puedan hacerlo los artistas y los aficionados de toda América! Encontrarán el modo de fraternizar en un clima de emociones universales. 62

Para Brest, o Museu de Arte Moderno de São Paulo, ao instituir uma exposição

internacional e periódica de artes plásticas, cumpriu uma função deveras importante:

convergiu a atenção da crítica e dos artistas internacionais para a América Latina. Em uma

postura aglutinante, o Museu estabeleceu premiações com valores igualitários para os artistas

nacionais e estrangeiros. E o mais importante: a grande quantidade e relevância dos prêmios,

todos doados por instituições privadas, o que para o crítico argentino era um traço de distinção

cultural, pois revelava um país, cujos setores econômicos63 e intelectuais, preocupavam-se

amiúde com o grau de desenvolvimento artístico de seu país.

62 Jorge Romero Brest, “Primera Bienal de San Pablo”. VER y ESTIMAR. Número 26, novembro de 1951. p. 01. 63 Vale lembrar que os prêmios-aquisição da Bienal de São Paulo tinham o objetivo de fomentar o acervo do antigo MAM. Para tanto, utilizava-se a política de mecenato, em que a direção do Museu captava junto a empresários, associações e colecionadores uma quantia em dinheiro para financiar a compra de uma obra ou um conjunto de obras. Em alguns casos, eram os órgãos diplomáticos dos países participantes da Bienal que

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Como Brest havia participado do júri de premiação, em sua análise se propôs a não

expressar opinião sobre os prêmios:

Me limitaré a ofrecer mis juicios con total independencia y a informar, de acuerdo con la declaración que formuló aquel, sobre el criterio con que fueron discernidos: “El Jurado Internacional de la I Bienal saluda a los grandes maestros extranjeros y brasileños cuya generosa participación tan ampliamente ha contribuido al éxito de la Primera Exposición Bienal de San Pablo. Espera que en las exposiciones siguientes se continúe rindiendo este homenaje a los que han sido pioneros del arte moderno. En la distribución de los premios el Jurado se ha esforzado por consagrar los esfuerzos nuevos e sinceros. 64

A obra de Jean Bazaine parecia ter concentrado a atenção da crítica nacional e

internacional, de forma positiva. Segundo Brest, o artista demonstrava um grande avanço em

direção a contenção formal, retirando de sua pintura aderências e vibrações românticas,

dedicando-se mais diretamente ao problema da expressão espacial. Ainda que a análise

realizada por Antonio Bento tenha sido extremamente rigorosa, revelando certa insatisfação

com alguns participantes da Bienal, Bazaine o havia agradado. Porém, em relação à Chastel,

Léger e Pignon, Brest e Bento diferiram em alguns aspectos de seus julgamentos estéticos.

Segundo Romero Brest, Fernand Léger, ao contrário de Bazaine, não havia imposto seu

estilo e personalidade com as obras enviadas à mostra internacional, nem mesmo com

Composição sobre fundo cinza, que tanto agradara ao crítico potiguar. De acordo Brest, as

telas de 1947 e 1948 suscitavam no espectador certa insatisfação, pela ausência de densidade

das formas e certo toque de ligeireza pictórica que desfavorecia o artista:

Luego están los pintores que cultivan un arte de compromiso. No lo digo sólo por el hecho de que no se decidan entre lo figurativo y lo no figurativo, sino más bien por la falta de una clara voluntad de estilo. Difícil será no encontrar en ellos alguna nota positiva de sensibilidad, fantasía e inteligencia, pero la pintura es otra cosa a mi juicio. Sólo Edouard Pignon, afortunadamente menos sumergido en la pesadilla del realismo socialista, y Oscar Domínguez, quien explota recursos inventados otrora por Braque infundiéndoles un medido espíritu superrealista, merecen ser destacados. En cuanto a Roger Chastel, una sola de sus telas tiene valor- Enamorados en el café- valor de buen gusto y de sugestión, no de profundidad de ideas. 65

intermediavam essas aquisições ou as realizavam. Ao contrário da premiação regulamentar, os prêmios-aquisição da Bienal de São Paulo assumiam um caráter de permanência. 64 Jorge Romero Brest, “Primera Bienal de San Pablo”. VER y ESTIMAR. Número 26, novembro de 1951. p. p.03. 65 Ibídem. p.05.

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De um modo geral, para Romero Brest, os artistas abstratos não tinham sido bem

representados com duas importantes ausências: Hartung e Léon Gischia. A presença do

veterano Frank Kupka, com seus planos de cores puras, e Gérard Schneider, pintor abstrato

expressionista, cujas telas apresentam grandes manchas que se organizam mais com o

chiaroscuro do que com a cor, trouxeram contribuições menos valiosas, por forçarem a nota

cromática.

Em seu texto, Brest dedicou-se a avaliar a contribuição de cada um dos países que

enviaram obras a Bienal. Alguns mais sábios e comprometidos em suas escolhas e outros

menos criteriosos. Consoante Brest, a participação da Holanda foi uma quase ausência, uma

vez que o país enviara um conjunto de quadros acadêmicos, de baixo nível e pretensiosos.

Tal postura, segundo o crítico era lamentável, uma vez que impedia aos visitantes da Bienal

de interagirem com as obras de Mondrian e y Van Doesburg, iniciadores do neoplasticismo,

uma das correntes mais fecundas da arte do século XX. Mas, se a postura holandesa revelava

imperícia para com a mostra internacional paulista, a Bélgica havia estruturado suas salas

com extremo cuidado, visando apresentar um panorama sugestivo da arte de seu país:

No está mal que se envíen a un certamen de arte moderno representantes de tendencias envejecidas, siempre que ellas hayan significado un aporte valioso en la evolución del arte de un país y que las obras tengan la necesaria calidad. Critico por eso la inclusión de los pintores holandeses, pero no la de algunos maestros de la pintura belga: Constant Permeke, Jan Brusselmans, Edgard Tytgat, y el eminente grabador Frans Masereel. El robusto Permeke está particularmente bien. Los siete cuadros, entre los que se destaca Recolección de 1947, revelan el caso extraño de un pintor que si bien no se renueva, tampoco si repite. En la tela señalada se diría que vuelve a una mayor concreción constructiva de la forma, a una mayor unidad entre la potencia expansiva de la materia rica, que lo ha caracterizado siempre, y la capacidad de organizarla. Ni cubista, ni expresionista, menos aun fauve: el arte de Permeke tiene caracteres especiales, tanto de índole personal como racial, y no permite esos acercamientos. 66

Entretanto, foi o contato com o pavilhão suíço que permitiu ao crítico desfrutar de obras

dotadas de inestimável valor estético. Artistas como Sophie Tauber-Arp- com seu jogo

aparentemente trivial de figuras geométricas coloridas sobre fundo branco ou neutro- as peças

de Richard Lohse e de Oskar Dalvit, assim como as construções com arame de Walter

Bodmer, abriram um capítulo à parte na I Bienal paulista, por revelarem, segundo Brest, a

única nota plena e atrevidamente moderna de toda exposição. Mas, foi Unidade Tripartida de

66 Jorge Romero Brest, “Primera Bienal de San Pablo”. VER y ESTIMAR. Número 26, novembro de 1951. p. 09

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Max Bill que refletiu a grande carga emotiva da elevação estética. A capacidade de obter êxito

na superação de fronteiras pessoais, raciais ou nacionais ao conceber uma obra intensa, repleta

de dimensão universal:

Es una gruesa cinta de acero que en absoluta continuidad toma posesión del espacio, no como un volumen que lo llena sino como un signo que le agrega significación y lo puebla de ritmos. El espectador adivina que el proceso de creación de una pieza semejante intervienen otros elementos que no son los habituales, y acierta, puesto que la forma tiene un fundamento matemático, pero a poco que demore la observación y comience a sentir el goce, advertirá que también posee todos los elementos característicos de la escultura de bulto, con lo cual se prueba que esta escultura, lejos de constituir un empobrecimiento del arte, significa un enriquecimiento absoluto. A mi modo de ver, la pieza de Max Bill es la más importante de cuentas se exhiben en la Bienal. 67

Em relação aos oito artistas brasileiros convidados pela Bienal, Romero Brest

considerava-os detentores de uma boa coleção artística. Portinari figurava como um grande

mestre na execução do desenho e capacidade de obter efeitos dramáticos com o traço em

algumas telas de 1944 e 1945. Porém, de acordo com Brest, todo esse vigor encontrava-se

esmaecido nas obras expostas: Primeira Missa no Brasil, Via Sacra, Sertaneja e Cangaceiro.

O impulso perdia em vigor, tanto no manejo da cor, sobretudo, nos fundos arbitrariamente

divididos em planos, na repetição dos esquemas expressivos, na preponderância de um

naturalismo acadêmico, falsamente bem executado68.

O caso de Di Cavalcanti detinha algumas similaridades com a situação de Portinari. Para

o crítico, Di Cavalcanti apresentava uma produção que perdia em qualidade por atrelar-se a

um passado folclórico sem vigência. O artista se negava a perceber o cotidiano por meio de

uma abordagem mais realista.

Lasar Segall, por sua vez, era detentor de grande habilidade pictórica, mas possuía uma

produção debilitada no aspecto formativo:

¿No se comprende el artificio absolutamente irreal que implica el mantenimiento de ciertos temas y de los modos de tratamientos de los mismos? ¿No se comprende que nada tiene que ver esa realidad con la realidad igualmente legitima de las ciudades? El mismo pintor que se aleja de las poblaciones indígenas, aunque tenga la ilusión de que persisten esas formas vitales en su retina y en su alma, las conserva sólo como

67 Jorge Romero Brest, “Primera Bienal de San Pablo”. VER y ESTIMAR. Número 26, novembro de 1951. p.14 68 Ibídem. p. 30

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recuerdo, como algo puramente estético, no con la energía que le pudiera prestar la íntima y viva adhesión. Lasar Segall comenzó siendo un eminente pintor expresionista alemán. Afortunadamente se exponen al mismo tiempo óleos, acuarelas, dibujos y grabados de aquella época en el Museu d’Arte de San Pablo, lo que permite establecer un cotejo entre las obras de entonces y de ahora. Todo lo que era fuerza de invención, hallazgo feliz de forma en síntesis apretada, todo lo que era emoción de descubrimiento, se ha ido perdiendo, porque también él, movido sin duda por razones diferentes a las de Portinari y Di Cavalcanti, pretende retornar a la pintura de contenido social. Y si bien es cierto, las calidades no se pierden-Ganado en reposo y Paseo por el campo lo prueban- no menos cierto es que la pintura no es solamente expresión, sino mensaje de aliento universal. Condenados, el gran tríptico de más reciente factura que expone, permite reflexionar sobre las graves consecuencias que pueden determinar en un gran pintor una idea primara sin vigencia cultural. 69

No que se refere à Maria Martins, Victor Brecheret e Bruno Giorgi, todos tinham optado

por formas mais universalizantes. Na opinião de Brest, os escultores pareciam ter

compreendido que o futuro artístico do Brasil não estava em destacar os aspectos regionais ou

locais, mas descobrir as formas aptas a expressarem a impactante e vigorosa vitalidade

moderna.

O fato era que o Brasil se apresentava bastante contraditório em suas contribuições

artísticas. Se as obras de Maria Leontina agradavam ao crítico, outra situação parecia deixar

Brest bastante desconfortável. As telas recentes apresentadas por artistas consagrados

careciam de maturidade estilística, parecendo não acompanhar o intenso processo de

renovação vivenciado pelo país:

Entre los demás envíos de pintura sobresale netamente, a mi juicio, Maria Leontina Franco Dacosta. Tanto Figura como las dos Naturalezas muertas que expone, y más todavía las telas que he podido ver en los Salones actuales de San Pablo y Río, demuestran que está en un camino de franco ascenso. Todavía en las telas de hace un año nada más se la veía sujeta a ciertas imprecisiones románticas: ahora, su color se afianza, sus formas se clarifican, sus ritmos se enriquecen, y aunque sigue siendo figurativista, tengo la certeza de que dejará de serlo en cuando descubra las inmensas posibilidades que le presentan sus propios planteos plásticos, ahogados por el principio del mantenimiento en la representación del mundo concreto como punto de partida. También Milton Dacosta presenta telas interesantes, pero a él lo veo más detenido en la estilización geométrica de las formas naturales, peligrosa posición que no le permitirá, a mi juicio, dotar a la pintura del aliento lírico que busca. Una gran tela de Tarsila do Amaral fechada en 1928- calidad y estilo- informa al espectador que no está al corriente de la evolución del arte moderno en Brasil sobre los magníficos comienzos. Lástima que el paisaje fechado en 1950 no esté a la altura

69 Jorge Romero Brest, “Primera Bienal de San Pablo”. VER y ESTIMAR. Número 26, novembro de 1951. p. 30.

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de aquella tela. Algo similar habría ocurrido si la mayoría de los buenos pintores que allí exponen hubieran mostrado alguna obra de hace años. ¿Qué ocurre en Brasil, lo mismo que en Argentina, Chile, Uruguay o México, para que se produzca ese sensible descenso de nivel? ¿Por qué José Pancetti, Alfredo Volpi, Alberto Guignard o Flavio de Carvalho denotan fatiga en sus telas? Lo grave es que tampoco se advierte una potente juventud que quiera reemplazarlos. Se pueden señalar algunos cuadros sensibles, como los de Danilo Di Prete. (…) El balance no es favorable, pero no debe extrañar demasiado a los brasileños, porque mutatis mutandis ocurre lo mismo en todos los países americanos que conozco, excepción hecha de Estados Unidos. 70

Ainda de acordo com Brest, as obras mais promissoras que figuraram na Bienal

pertenciam aos escultores e gravadores. No entanto, outra contribuição deveria ser ressaltada

com otimismo: o esforço de um grupo de jovens que pretendiam introduzir correntes

vanguardistas da arte abstrata no Brasil. A iniciativa aprazia ao crítico intensamente. Ivan

Serpa, Waldemar Cordeiro, Almir da Silva Mavignier e outros despertaram a atenção de

Brest, não por terem construído formas plenas e expressivas, mas porque o esforço era digno

de nota. Captou atenção especial de Brest a máquina de Abrahão Palatnik criada a partir do

princípio do caleidoscópio, cujo mecanismo de funcionamento era singular, sutil e, sobretudo,

cativante:

Sobre una pantalla de film, obedeciendo a un complejo mecanismo interior, se van dibujando formas diversas, animadas por un colorido intenso que puede llegar a ser muy fino y sutil, estructurándose como composiciones que la pintura propiamente dicha quiere obtener y no obtiene. 71

2.3. A avançada abstrata.

O balanço realizado por Romero Brest sobre a I Bienal de São Paulo deixou patente a

imensa importância da mostra internacional, mas também revelou um desalento, por parte do

crítico, com os rumos da arte na América Latina. Poucas obras receberam de Brest uma

aprovação cabal e definitiva. As sucessivas viagens que o crítico fez pela Europa e Estados

Unidos, desde 1948, lhe permitiram entender e conhecer profundamente as diversas

70 Jorge Romero Brest, “Primera Bienal de San Pablo”. VER y ESTIMAR. Número 26, novembro de 1951. p.35. 71 Idem.

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manifestações da arte moderna. Assim, observava representações com grande potência

criativa e outras superficiais, percepções que revelavam que a arte como expressão

individualista estava em crise, em relação à estrutura adotada por mais de cinco séculos.

Assim, o quadro de cavalete e a escultura também estavam em colapso por serem estruturas

que permitem a criação de minúsculas formas, que expressam reduzidos âmbitos expressivos.

Segundo Brest, desde começos do século XX, existiu um esforço dos artistas plásticos em

adequar os meios materiais estáticos, ou seja, a pintura e a escultura a uma concepção vital.

Essa tentativa de viés espiritual exige o espaço e o movimento como meio de emanação

emotiva. Exatamente por essa razão, todos os movimentos que tentaram reduzir,

minimamente, os meios estáticos ou criar outros, ao menos capazes de produzir a ilusão

dinâmica, foram interpretados como progressistas. A adesão à vida moderna estabeleceu

padrões cada vez mais exigentes, rompendo barreiras radicalmente. Chegou-se a um estágio

em que os esforços realizados, por mais genuínos, inteligentes e engenhosos que fossem, por

mais que revelassem uma sensibilidade dinâmica e moderna, não resultariam em soluções

satisfatórias. Consoante Brest, exatamente por essa razão

Asistimos a la repetición amanerada de formas caducas o a la tímida incorporación de algunos elementos nuevos que no destruyen las estructuras viejas, o a la invención de formas que conducen, de despojamiento en despojamiento, a la negación por lo menos de la pintura. Menos evidente es, en efecto, cuando se trata de la escultura, o de la construcción si se tiene repugnancia en llamar las piezas de Max Bill o de Hans Uhlmann o de Lardera con el mismo nombre que a las de Miguel Ángel, porque ella maneja espacios reales; pero aun en el caso de estas construcciones sigue persistiendo, salvo en casos muy aislados, como el de Calder, el ideal formal de la estatua. El desconcierto es mayor porque pocos se deciden a juzgar los productos nuevos de acuerdo a patrones también nuevos. Y es evidente que cuando se busca en las obras de los abstractos las mismas emociones que en las obras de los figurativos, el juicio no puede ser sino adverso. (…) Es muy fácil achacar el carácter estacionario del arte en nuestros días a la falta de cultura de las masas, que no se ocupan de la pintura o la escultura, y cuando se ocupan, claro está, prefieren las obras más adocenadas y vulgares. Pero en verdad no se interesan por estas sino cuando se les inyecta el virus de culturalismo falso. Lo real es que se desinteresan, simplemente, porque de manera inconsciente advierten que no son expresivas de su mundo y cuando pretenden serlo lo hacen de modo tan complejo como para que no lo sientan. Este argumento parecería dar la razón a quienes sostienen la bandera del llamado arte de contenido social. Y en verdad se la da, porque todo arte, como ya he dicho, es de contenido social. La divergencia aparece cuando se trata de establecer cuáles son las formas que exteriorizan ese contenido social: para unos se trata de las formas de un vitalismo humanitario que

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como tal es siempre pasajero aunque no deleznable; para otros, de las formas que construyen una vida mejor. 72

Já que as formas de afirmação da vida devem ser extraídas dos elementos que a

compõem, para Brest, esse fato explicaria a postura do artista de vanguarda que refuta com a

figura humana, tudo o mais que estabelece relação de matéria. O artista procede à criação de

formas capazes de exteriorizar uma nova concepção do espírito. Desse modo, se o quadro de

conteúdo romântico ou naturalista encontrava-se em crise, era porque a vida moderna não o

admitia, ou melhor, não o estimulava:

Bastará que el lector se ponga a meditar sobre los presupuestos espirituales de un cuadro y los compare con los caracteres comunes de la vida cotidiana para que comprenda, de golpe, las razones que determinan la crisis del arte contemporáneo. Lo que necesita el hombre actual son espacios limpios para vivir y la belleza penetrándolo todo, no como un molde hecho sobre la base de la figura humana, sino como una forma elástica que implique la adivinación de lo perfecto. Y lo perfecto, para nuestro tiempo, está indisolublemente unido al movimiento. Más que un estar es un devenir. Soy un profesional de la crítica y además un historiador, de modo que estimo las obras del presente de acuerdo a principios y reacciones emotivos que me permiten hallar parcelas de verdad y de belleza aun en las obras que en general deben ser consideradas como fracasadas. No soy ajeno, además, por las mismas razones, a un tipo de sensibilidad universal que permite estimar con la misma vara un cuadro cubista de Braque, uno expresionista de Kokoschka o uno superrealista de Matta, y los cuadros de antepasados que tampoco interpretan el sentir de la humanidad actual. (…) Ahora se trata de otra cosa y por eso cambia el modo de juzgar: se trata de obtener formas que no pueden ser ni remotamente parecidas a las del pasado, por razones obvias, y a través de las cuales se ha de manifestar la actualidad, claro está, pero también la universalidad; se trata de obtener formas que interpretando la vitalidad presente expresen al mismo tiempo la eterna vigencia universal. 73

É fato que, desde suas viagens pela Europa, Romero Brest interagia plenamente com

soluções artísticas diferenciadas. Todavia, era na América Latina que buscava deparar-se com

uma representação unívoca capaz de transmitir uma objetividade espiritual. O convite

realizado por Ciccillo Matarazzo para que Brest participasse como membro do Júri da I Bienal

paulista foi decisivo para uma avançada em direção a abstração no Brasil. Nesta primeira

edição, a Argentina, por conta da atonia cultural imposta pelo peronismo, não participou com

o envio de obras. Mas, Brest teve a oportunidade de utilizar a legitimidade adquirida no 72 Jorge Romero Brest, “Primera Bienal de San Pablo”. VER y ESTIMAR. Número 26, novembro de 1951. p.38. 73 Ibídem. p.39.

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ambiente paulista para marcar uma adesão total à causa abstrata. A severidade com que

julgara as obras participantes da Bienal, em Ver y Estimar, resultava da quase ausência de

produções artísticas capazes de integrar o espectador às novas formas artísticas. O crítico via

com lucidez a sua missão de compreender, julgar com rigor, imparcialidade e apoiar tudo que

significasse um avanço no caminho de novas criações artísticas. Entretanto, tais criações

deveriam estar conectadas com o caráter dinâmico e mutável da vida. Exatamente por isso,

Brest argumentou e defendeu a outorga do primeiro prêmio em escultura à obra Unidade

Tripartida de Max Bill:

El nombramiento (de jurado para la I bienal) me llegó a último momento y no pude estar en San Pablo cuando se reunió el jurado. Éste ya había entrado en funciones, otorgando el gran premio en pintura a André (sic) Chastel. (El que nunca hubiera votado), y los colegas me dieron sólo una hora para que viera toda la bienal. Lo hice devorando las obras y al final de la planta inferior, gran sorpresa, en rincón estaba Unidad Tripartita de Max Bill, una obra sobresaliente aun entre las sobresalientes de este artista. Con este bagaje de mínimas observaciones volví a la reunión del jurado dispuesto a dar la batalla por esa obra.74

Desse modo, o posicionamento de Brest na I Bienal paulista foi de vital importância, ao

captar a atenção dos jurados para Max Bill, cuja obra influenciaria, doravante, a produção

artística brasileira. A sua figura de estudioso sério e reconhecido, juntamente com uma

atuação marcante em Ver y Estimar, constituiu meio relevante de inserção no cenário

internacional, estabelecendo contatos com distintas personalidades no âmbito da cultura. O

número 26 de Ver y Estimar trazia também uma crítica elogiosa aos esforços empreendidos

por Francisco Matarazzo e sua esposa Yolanda Penteado em desviar a geografia das artes para

São Paulo. Tratava-se de um grande esforço para promover a participação de artistas e obras

européias e americanas nas edições futuras da Bienal paulista. Por outro lado, a ausência da

Argentina em um evento de grande projeção internacional, como a I Bienal, exigia dos

portenhos uma análise mais rigorosa e crítica de sua própria realidade cultural e política.

Brest, de sua parte, expunha nas páginas de Ver y Estimar as suas considerações sobre o

assunto:

74 GIUNTA, Andrea; COSTA, Laura Malosetti. (org.) Arte de Posguerra- Jorge Romero Brest y la Revista Ver y Estimar. Buenos Aires: Paidós, 2005.p.143.

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Ignoramos las razones que motivaron la ausencia de la Argentina en la reciente bienal de San Pablo, en la que figuraron los grandes países europeos y la mayoría de los americanos que pueden presentar un conjunto homogéneo de arte, salvo México, porque las autoridades se hallaban preparando la que se realizará este año en Paris. (…). Seguimos preguntando por qué la Argentina no concurrió. (…) No asombraremos al mundo artístico con nuestras expresiones –en la Bienal de San Pablo, una buena selección argentina hubiera hecho excelente papel, por lo menos en la sección americana-, pero como no se trata de asombrar sino de provocar el acercamiento de artistas y obras, facilitar el intercambio de ideas y emociones, impulsar nuevas corrientes de expresión, el hecho no parece justificable. Todo el mundo pregunta en Europa y América: ¿Cómo son la pintura y la escultura argentinas? ¿Cuáles, las tendencias predominantes? Sin malicia y confiados, deseosos de que se abran las puertas para entrar en contacto positivo con nuestra cultura artística. 75

Consoante Kátia Canton76, a Bienal paulistana exerceu um papel de referência ao

divulgar e expor aos brasileiros ao que havia de mais novo e significativo na arte

internacional. O prêmio, em sua edição inaugural, à escultura Unidade Tripartida, obra

abstrata do artista suíço, foi um reflexo do impacto causado por Max Bill com suas formas

geométricas e matemáticas. Esse abstracionismo rigoroso influenciara definitivamente as artes

brasileiras. A sua obra tornou-se um símbolo que corroborou para o desenvolvimento da arte

construtiva brasileira a qual já passava por um processo de expansão desde o desenvolvimento

da arquitetura moderna brasileira dos anos de 1930 e 1940.

A edição seguinte da Bienal, 1953, que coincidia com o IV centenário de São Paulo,

trazia uma série de iniciativas que visavam demonstrar um aperfeiçoamento e um caráter mais

expressivo e dinâmico da Bienal. Tal caráter se consolidaria através das negociações, que

pretendiam trazer ao país a obra Guernica de Picasso e da construção do Parque do Ibirapuera,

projeto de Oscar Niemayer.

A segunda Bienal apresentou de uma só vez, o cubismo, o futurismo e o neoplasticismo,

além de retrospectivas de alguns dos maiores mestres do nosso tempo– Picasso, Mondrian,

Klee, Munch, Moore, Calder e outros – enquanto as Bienais posteriores trouxeram o

expressionismo e o surrealismo, além da retrospectiva de outros mestres, como Léger,

Morandi e Chagall. A II Bienal, 1953, também contou com a presença de Brest como membro

do Júri. Desta vez, a Argentina participou com envio de obras, mormente abstratas. Brest

participaria novamente do Júri da Bienal, apenas em 1961.

75 Jorge Romero Brest, “Primera Bienal de San Pablo”. VER y ESTIMAR. Número 26, novembro de 1951. p.03. 76 CANTON, Kátia. Tendências Contemporâneas: Questões sobre a Arte no Brasil e no Mundo Ocidental. In: AQUINO, Victor. (org.) Metáforas da Arte. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte/MAC USP. 2008.

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Em 1953, Antonio Bento compôs tanto a Comissão Artística quanto o Júri de Seleção

das Artes Plásticas da Bienal de São Paulo. Em 1955, novamente, o crítico brasileiro fez parte

do Júri de Seleção de Artes Plásticas, ressaltando a importância de se estabelecer uma arte de

linguagem universal:

Como a Bienal paulista é uma competição de arte de vanguarda, tendendo mesmo a ser, dado o empenho de seus dirigentes, uma das mais avançadas do mundo, impunha-se ao júri o propósito de fazer uma escolha, senão rigorosa, pelo menos em harmonia com os princípios estéticos do modernismo. Foi igualmente seu desejo reunir um conjunto de obras que pudesse ser posto ao lado das exposições congêneres da Europa, sem que baixasse sensivelmente o nível qualitativo da representação brasileira, como aconteceu na I Bienal. Graças às modificações operadas em nossos meios artísticos desde 1951, como conseqüência das duas Bienais já realizadas, acentua-se a preocupação dos jovens artistas brasileiros de expressar-se através de uma linguagem plástica de caráter internacional, ao contrário do que se verificou nos primeiros tempos do modernismo. A tendência “nacional” vai assim aos poucos se enfraquecendo, enquanto aumenta o número dos artistas abstratos.77

Romero Brest participou ativamente das mudanças culturais que ocorriam no Brasil,

relacionando-se intimamente com as instituições oficiais, como o MAM-SP e o MASP.

Infelizmente sua posição difusa como crítico de arte não era proporcional a circularidade da

arte argentina na América Latina. O fato era que, no que tange às artes, a Argentina assumira

uma posição introvertida, posicionando-se às margens dos eventos internacionais. Romero

Brest através das páginas de sua revista manifestava-se extremamente contrário aos

partidarismos, determinismos e tradicionalismos impostos à arte argentina. Coube à

heterogeneidade temática de sua revista romper as barreiras históricas e geográficas impostas

pelo regime peronista, ao analisar indiscriminadamente os expoentes de uma arte latino-

americana, européia e/ou norte-americana.

Foi somente em 1952 que se promoveu um significativo envio de obras para a

participação da XXVI Bienal de Veneza. Tal realidade, em termos comparativos, demonstrava

que nem a gestão privada, nem o deficitário projeto cultural peronista eram capazes de

sustentar um projeto tão atrativo e aglutinante quanto o brasileiro:

En contraposición con la Argentina, tanto el ámbito institucional artístico paulista como el panorama brasileño en general se activaron intensamente en la segunda posguerra. La política de la “boa vizinhança” – como se denominó a la aproximación

77 Catálogo da 3ª. Bienal de São Paulo. Texto de apresentação da Sala Geral/ Brasil. Antonio Bento, 1955. p.11.

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que Brasil sostuvo con los Estados Unidos a partir de la Segunda Guerra – tendría múltiples conexiones y resultados en el espacio cultural. El proyecto paulista no sólo era avasallador como emprendimiento sino que también asombraba a Jorge Romero Brest la voluntad institucional de confrontar las numerosas líneas vinculadas a la definición de lo moderno. Recuérdense las exposiciones de Alexander Calder en Río y la de Max Bill en San Pablo a fines de los 40 y principios de los 50. Para JRB éste era un espacio de acción claro y específico que se articulaba con su propio programa moderno e internacional de cultura y lo legitimaba. Espacio que le era negado, al igual que a otras tendencias progresistas del ámbito de la cultura argentina, en el medio local.78

Pode-se afirmar, portanto, que o desenvolvimento da arte abstrata no Brasil, seguiu

caminhos diversos daqueles percorridos pelos argentinos. Ainda que o governo brasileiro não

fosse adepto do movimento, valorizando uma arte nacionalista, como também o fez o governo

Perón, o diferencial era a porcentagem de envolvimento do setor privado em consonância com

subsídios públicos, notadamente na gestão de Eurico Gaspar Dutra79. A partir da criação dos

Museus e da Bienal, o país desfrutou de uma maior visualidade na América Latina,

principalmente na Argentina, através da figura de Romero Brest e seus relatos entusiasmados

sobre os rumos das artes brasileiras nas páginas de Ver y Estimar.

Além disso, a criação do movimento de Arte Concreta, com Waldemar Cordeiro, Luís

Sacilotto, Geraldo de Barros e outros importantes nomes, em fins de 1949, também contribuiu

para o fortalecimento e afirmação do modernismo brasileiro. Suas influências transcenderam a

década de 1950, sendo visível a opinião do grupo em 1961, através da fala de Cordeiro no II

Congresso de Críticos de Arte. O Manifesto Ruptura seria assinado pelos artistas concretos

em 1952. Porém, desde 1948, Samsor Flexor já se dedicava à pintura abstrata, fundando na

seqüência o ateliê Abstração. No Rio de Janeiro, já em 1947-1948 a cidade contava com a

presença de artistas concretos (Abraham Palatnik, Ivan Serpa etc.) ligados ao crítico de arte

Mário Pedrosa, profundo defensor e divulgador da arte concreta no país.

Em dezembro de 1950, São Paulo experimentava a efervescência em torno da chegada

de Brest à cidade por convite de Pietro Maria Bardi, então diretor do Museu de Arte de São

Paulo. A primeira proposta de cursos foi planejada em 1948, mas somente dois anos depois e,

após grande insistência de Brest, se concretizou o projeto. Tratava-se de uma série de cinco

conferências80 intituladas Cómo un sudamericano ve el movimiento artístico europeo.

78 78 GIUNTA, Andrea; COSTA, Laura Malosetti. (org.) Arte de Posguerra- Jorge Romero Brest y la Revista Ver y Estimar. Buenos Aires: Paidós, 2005. P.139 79 As idéias gestadas em 1945 tiveram a sua consolidação efetiva no Governo Dutra (31/01/ 1946-31/01/1951), prolongando-se para além do retorno de Vargas em 1951. 80 Vide detalhamento das conferências em Anexos.

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Em entrevista concedida ao Diário da Noite, em 06 de dezembro de 1950, Romero

Brest assegurou sua posição de estudioso comprometido com o desenvolvimento e afirmação

do abstracionismo:

É justamente sobre a pintura abstrata que vou tratar em minhas conferências. Pretendo focalizar a arte atual, desde o ponto de vista dos ideais estéticos que justificam a arte abstrata. Entretanto, não quero parecer um defensor dessa tendência porque essa atitude poderia parecer a de um historiador ou crítico sectário. Creio que os artistas abstratos em geral encaram o problema mais corretamente. Por isso estudo todo o panorama da arte dos últimos 50 anos de acordo com as idéias que sustentam os abstratos. Todavia, não me interessam particularmente as obras que se fizeram até o momento. Logicamente, desde que o movimento apenas se inicia, a preocupação principal reside apenas na idéia. Nenhum movimento pode começar com obras primas. Estamos na fase dos estudos. Reconheço, por isso que ainda há muita pobreza, muita polêmica e muito esnobismo. É incontestável, porém, que estamos diante da única idéia viva. Tudo mais pertence ao passado e rememora obras mortas.

A intensa correspondência travada entre Pietro Maria Bardi e Romero Brest revelou o

grande interesse que o crítico detinha pelo ambiente artístico paulista. Os informes feitos por

Bardi sobre exposições inauguradas no MASP e o envio periódico de catálogos revelam um

empenho mútuo de atualização em torno da arte moderna. Brest, por sua vez, encarregou-se de

despachar regularmente os exemplares de sua revista Ver y Estimar para que, no Brasil, se

tivesse notícias do desenvolvimento das artes na Argentina. O crítico chegou mesmo a enviar

uma cópia datilografada de Panorama da Pintura Européia Contemporânea, para a

apreciação de Bardi e uma futura publicação da obra, em português.

Como já citado anteriormente, o movimento em torno da pintura abstrata, na Argentina,

havia se desenvolvido entre os jovens, subdividindo-se em diversos grupos. O movimento

contava mais com o apoio do público do que dos próprios artistas. Segundo Brest, em sua

terra existia uma neofobia elegante, porém sensível. A resistência desenvolvida contra a arte

abstrata era latente, caracterizando-se pelo desinteresse. Portanto, ao contrário do Brasil, não

ocorriam grandes polêmicas e debates em torno da arte abstrata.

As conferências proferidas por Brest deram-se no auditório do Museu de Arte

Moderna de São Paulo, nos dias 06, 08, 11, 13 e 15 de dezembro de 1950. Em suas

explanações sobre o abstracionismo, Brest considerou dois tipos de artes plásticas: a clássica e

a abstracionista. A arte clássica caracteriza-se por estabelecer uma relação direta com os olhos

e com as mãos do homem, transportando a realidade por meio da sensibilidade. A arte

abstracionista, por sua vez, não se pauta pela sensibilidade que é subjetiva e pessoal. Mas,

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sendo a sensibilidade inerente ao ser humano, as novas formas artísticas buscam, sobretudo, a

intervenção da vontade para que a inteligência predomine sobre a sensibilidade. De acordo

com Brest, essa foi uma postura que caracterizou, com matizes diferentes, todos os

movimentos classicistas, constituindo conceitos permanentes na História da Arte. Assim, os

elementos de diferenciação das duas correntes artísticas podem ser resumidos nas seguintes

acepções: a figurativista é a arte sentida e a abstracionista a arte pensada. Exatamente por isso

a arte abstrata não captou facilmente a empatia do público, pois não se funda na sensibilidade,

mas na inteligência. Portanto, a arte abstrata não será sentida antes de ser compreendida:

A emoção que produz a obra figurativista está carregada de sentimento romântico, enquanto que o caráter objetivo das novas formas produz uma emoção intelectual. A poesia de Valeri - exemplo- é expressiva porque é abstrata. As palavras são claras, definidas, não como significado literário, mas como sentido estético- o que o poeta intelectual chamava de lirismo do espírito. Nesses termos a linha de Max Bill pode ter um sentido análogo à de um corpo de Ingres. Em geral, pode-se afirmar que os românticos abusam da sensibilidade enquanto que os abstracionistas a dominam. 81

Para María Amalia García, a presença de Brest no Brasil e o seu discurso legitimador da

arte abstrata constituíam outra faceta das dificuldades vivenciadas em âmbito local. A

resistência em aceitar as correntes abstratas estaria na forte permanência do modernismo

nacionalista e da tendência social. Segundo Otília Arantes82, a atividade artística brasileira

deveria estar diretamente vinculada a uma arte de caráter nacional, capaz de refletir e

expressar o país em todas as suas vertentes. Basta lembrar-se da hostilidade com que Mário de

Andrade advertia à Tarsila do Amaral sobre os perigos da “tentação abstrata”. Além disso, o

destino social da arte constituiu tópico privilegiado das discussões entre Andrade e Sérgio

Milliet. O fenômeno da instalação institucional da arte abstrata se via como uma estratégia

forçada que carecia de vínculo com a realidade brasileira. A adesão ao novo movimento

suscitou na crítica nacional sentimentos diferenciados sobre a divulgação e defesa do

abstracionismo, levando em consideração suas várias vertentes.

81 Como ve un sudamericano el movimiento artístico contemporáneo en Europa. III. Viejo y nuevo concepto de la abstracción en las artes plásticas. 11 de diciembre de 1950. In: Centro de Documentação/Arquivo Histórico- MASP. Caixa 03. Pasta 12. S/d. 82 PEDROSA, Mário. Atualidade do Abstracionismo. In: ARANTES, Otília. (Org.). Modernidade Cá e Lá: textos escolhidos IV. São Paulo: EDUSP, 2000.

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Mário Pedrosa, por exemplo, em Atualidade do Abstracionismo83, assinalou que a arte

figura-se como dotada de uma independência tal que a permitiria engendrar uma revolução

através da dinâmica concernente às formas. A arte abstrata encarnaria essa possibilidade,

sendo capaz de executar com êxito tal propósito. Entretanto, Pedrosa não será adepto de todas

as vertentes da arte abstrata: considera o abstracionismo informal como uma arte evasiva,

introspectiva, incapaz de uma postura definida frente à realidade. O próprio termo informal

trazia em seu cerne a idéia de antiforma, de anticonstrução, propondo a negação da percepção,

o que, para Pedrosa, era significativo. A arte concreta, por sua vez, na busca por uma cor pura,

exigia estilo, impingia um rigor, sendo capaz de fornecer subsídios para a formação da infra-

realidade humana. Para Pedrosa, a arte concreta representava um esforço construtivo, uma

disciplina, uma postura otimista ante um país em vias de crescimento.

Sérgio Milliet, personalidade de vital importância na criação do MAM-SP, manteve uma

postura compreensiva a respeito dos debates entre a abstração e a figuração, ainda que não

manifestasse nenhum interesse em defender a primeira corrente. Pelo contrário, no Prefácio do

Catálogo da exposição Do figurativismo ao abstracionismo, Milliet marcava com elegância o

seu desacordo com o abstracionismo militante de Degand.

Em outras oportunidades, Milliet manteve o seu posicionamento. No artigo Dois

conceitos de arte84, publicado no jornal A Manhã do Rio de Janeiro, Sérgio Milliet também

deixa patente as suas observações sobre a arte dita abstrata:

É o contato constante com a arte é que torna os homens diferentes dos animais, que lhes inculca ideais, que lhes sugere soluções humanas para seus problemas e os leva à apreciação moral da vida. A arte intelectualista, abstracionista, contorcionista de muitas escolas modernas é uma arte de melancólica negação do homem: é uma arte egoísta e estéril que isola o indivíduo e destrói nele a capacidade de simpatia. Que chega, portanto exatamente ao extremo oposto daquilo que visa em sua essência a arte.

Antonio Bento, por outro lado, sempre foi um dos maiores defensores da abstração lírica

dentro de um contexto de intenso repúdio a essa vertente:

83 PEDROSA, Mário. Atualidade do Abstracionismo. In: ARANTES, Otília. (Org.). Modernidade Cá e Lá: textos escolhidos IV. São Paulo: EDUSP, 2000 84 O artigo aparece citado em nota de rodapé de outro texto de Sérgio Milliet, cujo título é Marginalidade da Pintura Moderna à página 243. O artigo Dois conceitos de Arte não traz data. MILLIET, Sérgio. Marginalidade da Pintura. Moderna. In: GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. (Org.). Sérgio Milliet, 100 anos. São Paulo: ABCA: Imprensa Oficial do Estado, 2004.

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Que diferença há, bem feitas as contas, entre um “conceito”, da arte geométrica ou concreta, e uma “emoção” ou uma “sensação” da arte lírica? Do ponto de vista da psicologia ou da estética, essa diferença simplesmente não existe. Até mesmo pelo fato de saber-se que o papel do inconsciente é maior do que o do consciente e da razão, em todas as artes. Não somente nas artes visuais, como principalmente na música, na poesia e na literatura. A música é a mais universal das artes, exatamente pelo fato de ser aquela em que as forças ocultas da alma e o mistério, inerente à própria condição humana, manifestam-se com maior intensidade. (BENTO, 1983, p.183)

No fim da década de 40, o surto criador da abstração geométrica encontrou o seu fim na

Europa, mas começava, a partir de 1949, o desenvolvimento da abstração lírica propondo

novos problemas. No Brasil, o movimento construtivista iria iniciar-se apenas na década de

40:

O seu pioneiro absoluto foi Cícero Dias, que começou a fazer quadros rigorosamente geométricos em 1946, na capital francesa. Coloco merecidamente nesta posição este pintor. Embora não ligado à Escola de Paris, ele jamais repudiou ou se desligou de suas raízes brasileiras. Em nosso país, quem primeiro realizou obras construtivistas, desde 1948, foi a escultura Mary Vieira. Depois viriam, a partir de 1951 e da I Bienal de São Paulo, o concretismo e o neoconcretismo, um e outro tributários da vanguarda européia. Em última análise, Mondrian e Max Bill foram os mestres desta tendência no Brasil85.

Coube a Portinari, segundo Bento, a primazia de compor telas abstracionistas no Brasil.

No catálogo da exposição do artista no Museu Nacional de Belas Artes, em 1939, tinham dois

quadros com a designação de abstratos. Realizou também a pedido do antigo Ministério da

Educação do Rio de Janeiro, quatro painéis abstratos concluídos em 1945. O tema

encomendado era o dos quatro elementos da natureza, cuja interpretação deu-se através de

formas abstratas.

Em 1948, o artista pernambucano Cícero Dias realizou arte geométrica em Recife ao

decorar o prédio da Secretaria da Fazenda, antecipando-se a popularização da arte geométrica

no Brasil com a I Bienal de São Paulo, aberta em 1951. Os prêmios desta Bienal, como já

citado, foram concedidos ao escultor suíço Max Bill e ao pintor carioca Ivan Serpa.

Volpi foi, para o crítico Antonio Bento, um dos maiores representantes da vertente

concretista no Brasil ao abstratizar, em suas telas, mastros e bandeirolas das festas de São

85 BENTO, Antonio. Abstração na Arte dos Índios Brasileiros. Spala: Rio de Janeiro, 1979. P53

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João. Tratava-se de um conjunto de estruturas que partem do concreto para o abstrato, método

comum a essa corrente. Após o concretismo, os manifestos de Ferreira Gullar deram origem

ao neoconcretismo com especial interesse pela criação de uma arte menos fria e racionalista,

tendo por importante expoente a pintora e escultura Lygia Clark.

No plano da abstração lírica, Antonio Bandeira (1922-1967) foi o responsável pela

introdução dessa vertente no país em 1951. O artista transitava livremente no circuito

internacional, com produções que despertavam o interesse da crítica, além de ter se associado

ao artista alemão Alfred Otto Wolfgang Schulze, mais conhecido como Wols (1913-1951) e

Camille Bryen (1907-1977) em Paris, formando o grupo “Banbriwols” que durou de 1949 a

1951. Segundo Bento,

Antonio Bandeira foi elogiado por Michel Seuphor, o principal historiador da Arte Abstrata. Este mestre o considerou como pintor de vanguarda, não somente “em Paris, como em Londres”. Começou Bandeira fazendo “cidades e florestas” abstratizadas. Depois pintou quadros gestualistas e outros tachistas. Realizou estruturas líricas diversas, como um dos criadores mais fecundos de seu gênero de abstração do qual se tornou, sem a menor contestação, seu principal expoente. Foi pena que tivesse morrido tão moço em Paris, onde foi popular desde cedo, no “Café de Flore”, na época de fastígio dos existencialistas e do “Tabou”, em Saint-Germain-des-Prés.86

De acordo com Bento, no que tange à vertente tachista, manchas e marcas deixadas

sobre a tela quase caligraficamente, próximo a escrita oriental, o precursor, no Brasil, foi

Tadashi Kaminagai. Entretanto, o artista mais conhecido e premiado (Bienal de Paris e São

Paulo no mesmo ano) foi Manabu Mabe. O artista ganhou projeção nacional e, durante algum

tempo, realizou composições com texturas diversas, inspirando-se nos signos da caligrafia de

seu país.

Assim, para Bento, as influências emanadas por Kandinsky transcenderam o circuito

europeu e encontraram no Brasil formas específicas de representação. O caso mais

emblemático para o critico será o artista Cícero Dias, responsável pela introdução da abstração

geométrica no país. Quando este artista esteve fixado na Europa e inclinou-se para as

abstrações, possivelmente considerou o ideal e as ponderações do mestre russo. Cícero Dias

conheceu-o pessoalmente, e viu de perto o fruto da fase parisiense do artista.

86 BENTO, Antonio. Expressões da Arte Brasileira. Spala: Rio de Janeiro, 1983. P. 138-139.

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2.4. Antonio Bento e o II Congresso de Críticos de Arte (1961).

Uma posição mais nítida por parte de Antonio Bento em relação ao abstracionismo

informal adveio alguns anos depois, em 1961, ratificada pelo II Congresso de Críticos de Arte.

Nesses anos, a figura de Kandinsky, após estudos sobre o artista e das teses de Michel

Seuphor, adquiriu nas análises de Antonio Bento um papel de destaque, ao ressaltar as

contribuições do mestre da abstração, inclusive para os artistas nacionais. Mas, ao acautelar as

diversas tendências abstracionistas, Antonio Bento considerava a vertente informal a mais

profícua, por revelar o que o artista detém de mais denso e ímpar, sua espiritualidade. Tal

posição, conforme já mencionado, contrapunha-se ao pensamento dos principais críticos da

época como Sérgio Milliet e Mário Pedrosa, por exemplo. Antonio Bento visava demonstrar o

valor da abstração e da pintura subjetiva de Kandinsky, definindo-o como “o mestre por

excelência da arte não representativa” ao aproximar pintura e música, obtendo nessa proposta

êxito. Nesse sentido, Antonio Bento consagrou-se como um dos maiores defensores do

abstracionismo informal no país, assumindo uma posição de vanguarda no cenário artístico

nacional, uma vez que a crítica e as instituições formais refutavam esse meio de expressão

artística por avaliá-la superficialmente ou por nem sequer considerá-la arte.

A atuação de Antonio Bento mediante uma série de novas propostas e transformações

no campo das artes plásticas e da crítica foi fundamental. Através de coluna regular no Diário

Carioca, meses antes, o crítico já preparava seus leitores para o intenso debate que ocorreria

em 1961, entre adeptos do figurativismo e da abstração. O crítico fixava seu ponto de vista e

antecipava importantes questões conceituais que ganhariam dimensões mais amplas, chegando

a ser consultado com freqüência, por sua posição quase uníssona dentro da crítica de arte, em

defesa do abstracionismo, sendo na maioria das vezes somente apoiado por artistas adeptos ao

movimento.

De 12 a 15 de dezembro de 1961 realizou-se, por ocasião da 6ª. Bienal de São Paulo, o

II Congresso de Críticos de Arte, realizado pela Associação Brasileira de Críticos de Arte,

com patrocínio do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Tal evento dispôs da presidência

geral de Antonio Bento de Araújo Lima, sob o tema comum: A problemática da Arte

Contemporânea. Integraram a lista de convidados: Francisco Matarazzo Sobrinho (Presidente

da Bienal), Mário Pedrosa (Diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo), Aloísio de

Paula (Diretor do Museu de Arte Moderna do Rio), José Roberto Teixeira Leite (Diretor do

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Museu Nacional de Belas Artes), Ícaro de Castro Melo (Presidente do Instituto de Arquitetos

do Brasil), dentre outros.

O evento foi composto por importantes e variados nomes da arte e crítica nacional87 ao

longo de oito sessões. Entretanto, aqui serão ressaltadas as contribuições da 5ª Sessão

Plenária, ocorrida no final do dia 14 de dezembro de 1961, cujo tema era CONTROVÉRSIA

FIGURATIVISMO-ABSTRACIONISMO. Nessa oportunidade, o crítico Antonio Bento além

de presidir o evento também apresentou o ensaio Figuração – Arte Abstrata. O crítico na

abertura da Sessão ratificou seu interesse pelo debate que julgou “um dos mais apaixonantes

para a crítica”, sobretudo a partir da metade dos anos 40. Ponderou ainda Antonio Bento que,

somente após a última grande guerra o embate entre as duas correntes tornou-se mais intenso,

ainda que a abstração tivesse sua origem no século XX, como uma continuidade ou

conseqüência do movimento cubista. Nesse âmbito, os trabalhos iniciais de Kandinsky,

anteriores a Primeira Guerra Mundial, foram de vital importância para a progressão do

movimento, que iria apenas consolidar-se e universalizar-se com mais intensidade após 1945.

Nas palavras de Antonio Bento:

87 Datada de 12 de dezembro de 1961 a Sessão Especial do II Congresso da AICA foi presidida por Francisco Matarazzo Sobrinho e teve por tema: Homenagens a Lionello Venturi, Lasar Segall e Oswaldo Goeldi. A Mesa foi composta pelos seguintes palestrantes: Antônio Bento, Francisco Matarazzo Sobrinho, Mário Pedrosa, Flávio de Aquino, Celso Kelly, Lourival Gomes Machado, Eduardo Rocha Virmond, Quirino Campofiorito, Ferreira Gullar, Michel Kamenka. No dia 13 de dezembro realizou-se 1ª. Sessão Plenária com duração de 15 horas presidida por Mário Pedrosa. O tema foi A 6ª. Bienal e o panorama atual das artes plásticas. A mesa foi composta por Antônio Bento, Celso Kelly, Flávio de Aquino e Maria Eugenia Franco. A 2ª. Sessão Plenária iniciou-se às 18 horas do dia 13 de dezembro de 1961, cujo tema foi Função e Fases da Crítica de Arte no Brasil e presidência de José Geraldo Vieira. A mesa foi composta por Antônio Bento, Mário Pedrosa, Flexa Ribeiro, Celso Kelly e Lourival Gomes Machado. A 3ª. Sessão Plenária teve início no mesmo dia às 21h00min horas. Temática proposta: As raízes da Arte Moderna no Brasil com presidência de José Roberto Teixeira Leite. A mesa foi composta por Antônio Bento, Mário Pedrosa, Celso Kelly, Quirino Campofiorito e Paulo Emílio Sales Gomes. A 4ª. Sessão Plenária principiou-se dia 14 de dezembro de 1961. Tema proposto: Características internacionais da Arte Moderna e seus possíveis traços nacionais. O presidente foi Eduardo Rocha Virmond (em substituição a Aloísio de Paula). A mesa foi composta por Antônio Bento, Mário Pedrosa, Flávio D'Aquino, Flexa Ribeiro e José Geraldo Vieira. A 5ª. Sessão Plenária teve início às 18 horas do dia em questão. A mesa composta por Celso Kelly, Flávio de Aquino, Maria Eugênia Franco, Lourival Gomes Machado, Ferreira Gullar, Michel Kamenka e Waldemar Cordeiro debateu a temática Controvérsia Figurativismo-Abstracionismo. A presidência da mesa coube a Antonio Bento. A 6ª. Sessão Plenária ocorreu dia 15 de dezembro com início às 15h30 min. A mesa integrada por Antônio Bento, Lourival Gomes Machado, Celso Kelly e Mário Pedrosa foi presidida por Ícaro de Castro Mello. O assunto apresentado foi A arquitetura moderna no Brasil e seus traços autóctones. A 7ª. Sessão Plenária ocorreu dia 15 de dezembro às 18h00min sob a temática A Crítica de Arte na Arquitetura Moderna e presidência de Oswaldo Corrêa Gonçalves. Compuseram a mesa: Antônio Bento, Flávio de Aquino, Mário Pedrosa e Eduardo Corona. A 8ª. Sessão Plenária ocorrido às 21h00min min. do dia 15 de dezembro de 1961 encerrou as atividades do II Congresso. O presidente da mesa intitulada Debate Livre sobre o Temário foi Mário Pedrosa em substituição a Sergio Milliet. Integraram a mesa: Antônio Bento, Flávio de Aquino, Lourival Gomes Machado, Rocha Virmond, José Geraldo Vieira e Maria Eugenia Franco.

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Tratando-se de uma tendência renovadora, no campo da arte, era natural que a abstração viesse despertar, como ainda hoje desperta, uma polêmica muito viva. A divisão política do mundo em dois campos antagônicos concorreu para acirrar ainda mais o debate, dado que a abstração é considerada reacionária dentro da cortina de ferro e revolucionária no lado oposto. A arte abstrata enfrenta conseqüentes preconceitos ideológicos e maneiras de ver, velhos hábitos visuais, nascidos da longa, da imemorial tradição figurativa, tão arraigada outrora, em tantas civilizações. Como as tendências e as escolas artísticas, neste mundo dinâmico em que vivemos, têm curta duração (o que não acontecia na antiguidade), uma parte da crítica e do público esforça-se hoje em harmonizar as correntes opostas, procurando uma solução dialética para por termo às divergências surgidas. Sustenta-se em conseqüência que a abstração logo passará, dando lugar, em curto prazo, a uma nova tendência artística. No último Congresso da AICA, realizado em Varsóvia, em setembro de 1960, o nosso colega Haim Ganzu, referiu-se mesmo à academização da arte abstrata. Segundo a sua afirmativa já existe um “pompier” abstrato, “tão falso quanto o ‘pompier’ figurativo”. Críticos diversos têm feito observações idênticas. Outros acrescentam que a abstração entrou definitivamente em decadência. A verdade é que os vaticínios feitos, nesse sentido, há dois, cinco, dez ou quinze anos, não se têm confirmado. E o fato é que a arte abstrata vem resistindo às sentenças de morte de todos os que a condenaram prematuramente. Tanto no terreno da estética como no da política, não vingaram as objeções à sua trajetória atual, que me parece ainda na sua curva normal de desenvolvimento. Não creio de minha parte, na decadência ou no desaparecimento rápido da arte abstrata ou da arte figurativa. Entendo que uma e outra podem coexistir, embora nem sempre pacificamente, até mesmo porque cada qual corresponde a necessidades profundas de artistas e de uma parte considerável do público da nossa época. Nunca foi, e estou certo de que jamais será possível a existência de uma única forma de arte em todos os países. A hipótese somente seria realizável num mundo dominado por uma absurda tirania totalitária. No plano da crítica como no terreno da criação artística, é fecundo o diálogo travado entre as duas correntes opostas. Cada qual representa uma parte viva da humanidade deste século, que se pode muito bem rever tanto em Picasso como em Kandinsky.88

Havia entre as duas correntes um desejo proeminente de uma linguagem comum.

Contudo, os intensos debates ao invés de redundarem em um consenso, deram origem a uma

nítida concepção de que abstratos e figurativos situavam-se em lados opostos de uma

barricada. A abdicação de crenças ou conciliação de estilos era pouco provável nesse contexto

de intensas divergências. Também presente no II Congresso, na condição de relator, Atílio

Peduto resumiu com propriedade o sentimento da época:

Estamos num ponto em que duas trincheiras opostas, duas posições se defrontam: de um lado estão formados os figurativos e tudo que não entra nos figurativos é desprezível; e, de outro lado, os abstratos, os informais e os concretistas, para os quais tudo o que é figurativo está sob a marca do abominável e da perdição. Os primeiros seguem e cultuam a tradição: desdenham e desprezam o novo como corrupção e degeneração do gosto e traição ao augusto ideal da beleza.

88 II CONGRESSO DE CRÌTICOS DE ARTE, 2, 1961, Museu de Arte Moderna. Anais. São Paulo: ABCA, 12dez-15dez. p. 106.

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Os segundos afirmam serem inovadores e antecipadores, buscando novas técnicas expressivas, uma nova linguagem e uma nova e promissória florescência da beleza. Pode parecer que os primeiros, reagindo ao novo, ajam com um espírito de pura conservação; os outros, desprezando a tradição, parecem ser partidários da revolução. (...) O figurativismo e o abstracionismo são duas concepções de vida, duas visões do mundo que se encontram e desencontram. E, como a arte desvenda vozes e expressões destas tendências opostas, nasce aquela necessidade e aquela ânsia de esclarecimento: ver e acertar o que une e o que divide e quais são os pontos de contato e de convergência: se se trata de uma ruptura que pode ser recomposta ou se os dois mundos estão separados por um abismo intransponível; se se pode estabelecer um equilíbrio dos opostos ou então se tal equilíbrio é transitório e a luta entre eles é absoluta. Que a contradição existe é um fato, e não só na arte: todo o real é contraditório e a dialética é o estudo das contradições inerentes à própria natureza das coisas.89

Uma das principais críticas tecidas pelos adeptos do figurativismo consiste no fato de

que as ramificações do abstracionismo informal, o expressionismo abstrato, o concretismo,

assim como o neodadaísmo seriam a expressão da tensão humana e da agonia individual.

Seriam, portanto, responsáveis pelo advento de uma arte intimista e anárquica, de caráter

burguês. Por outro lado, os abstracionistas, consideravam que a arte em seus primórdios, ainda

que figurativa, partiu da idealização, da abstração da natureza sensível, tanto no Ocidente

como no Oriente. A posição formalista adotada pelo realismo colocou-o em uma categoria

cômoda, com semblante de tradição.

Uma das questões apresentadas por Celso Kelly, no contexto do II Congresso, foi que o

século XX consagrava-se como o século da pintura e do cinema, sendo a sétima arte a

representação figurativa por excelência, capaz de condensar diferentes recursos. Essa situação

gerava dois caminhos distintos de criação plástica dentro de uma mesma sociedade: de um

lado recursos ilimitados sob uso do figurativismo e de outro, a presença de talento em grau

suficiente para um mergulho interior, capaz de encontrar recursos de uma criação própria e

bem resolvida esteticamente.

O debate entre abstracionistas e figurativistas suscitou importantes questões estéticas e

técnicas, mas também conceituais e mercadológicas. Também presente no II Congresso, o

artista Samson Flexor realizou um aparte em meio às Comunicações realizadas na 5ª Sessão

Plenária, expondo a situação dos artistas abstratos em meio às mudanças das diretrizes de

mercado, pautado pelo rápido êxito e declínio das modas. A partir do momento em que as

telas abstracionistas tornaram-se item de valor para os colecionadores e galeristas artistas, que

outrora em adeptos da arte acadêmica ou realista, passaram a aderir ao movimento. Para o

89 II CONGRESSO DE CRÌTICOS DE ARTE, 2, 1961, Museu de Arte Moderna. Anais. São Paulo: ABCA, 12dez-15dez. p.107-108.

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artista não se tratava, pois de uma aderência sincera, mas da tentativa de encontrar “brechas”

no abstracionismo informal e assim conciliar o antigo realismo com as novas tendências. Tal

movimento daria origem ao surgimento de um informalismo difuso, às texturas de caráter

aproximadamente pós-impressionista ou fauvista, sem abdicar do aspecto emotivo e comum

do cromo figurativo. Ou seja, tratava-se de uma contraposição a uma nova linguagem artística

que também se utilizava de signos e símbolos, entretanto, estes são provenientes do mundo

interior; uma mensagem que se consolidou através da pintura:

A batalha foi dura e sem mercê, mas uma minoria de artistas corajosos, alguns eruditos e críticos clarividentes, entusiastas providos duma argumentação convincente e duma capacidade de estudo dialético dos fenômenos contemporâneos, conseguiram demonstrar e fazer sentir a justeza e a extrema atualidade dos conceitos que animam os pintores abstracionistas. Paradoxalmente, com ajuda da publicidade e do esnobismo, formou-se também um público de vanguarda, vieram simpatia, encorajamento, prêmios e sorrisos dos poderes públicos. Surgiram galerias de vanguarda; um quadro abstrato tornou-se um bom investimento. A pintura abstrata, como toda espécie de arte, só é autêntica e válida quando é ditada por uma “necessidade interior”, quando é um resultado de lutas, pesquisas e violências, que acarreta uma transformação profunda no mais íntimo do pintor. A pintura abstração não é melhor, nem é pior do que a figurativa, ela só é uma expressão mais autenticamente pictórica, uma descoberta própria do nosso tempo. Sempre houve e haverá pintores bons e maus, figurativos e abstratos. A pintura abstrata não é uma escola, mas uma nova visão do fenômeno pictórico. Como a figurativa, ela contém todas as escolas e tendências conforme o temperamento, formação, origem e meio do artista. De Mondrian a Mathieu, ela abrange todos os matizes humanos. É clássica ou romântica, construtiva ou destrutiva. Sendo uma expressão pictórica direta, dirige-se à sensibilidade do contemplador, transmitindo emoções específicas de calma ou de agitação, de tristeza ou de alegria, de aceitação ou de revolta. Esta força comunicativa e a sua intensidade, que serão o critério principal de sua qualidade intrínseca para o espectador que, sem preconceitos e com boa vontade, procurará nela o que ela é e não aquilo que poderia lembrar. Eis a regra do jogo.90

O II Congresso tinha, pois, o objetivo de explicitar desejos, insatisfações e conceitos

sobre uma arte em pleno desenvolvimento e ascensão em conflito com a tradição realista.

Mas, o evento também deixou patente que a questão do abstracionismo era de alta

complexidade, uma vez que não existia consonância nem entre suas ramificações: informal e

geométrica; concretos e neoconcretos. Tal fato pôde ser ilustrado pela fala do artista

Waldemar Cordeiro, que apresentou o texto Controvérsia Figurativismo-Abstracionismo:

90 II CONGRESSO DE CRÌTICOS DE ARTE, 2, 1961, Museu de Arte Moderna. Anais. São Paulo: ABCA, 12dez-15dez. p.116-117.

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Sou pintor e talvez não tenha preparo suficiente, mas não me parece que a imagem possa a certo momento encontrar fundamento na esfera do conhecimento abstrato, fora do conhecimento filosófico. Concordo, nesse sentido, com Nicolas Bukharin, que apresentou no I Congresso Pan-Soviético uma tese em que punha lado a lado o pensamento por conceitos e o pensamento por imagens, tão válido quanto o pensamento por conceitos, evidentemente numa esfera diferente, quer dizer, a do realismo, digamos assim, da imagem. Por esta razão, não concordo com a orientação que o Sr. Peduto deu à tese dele, quando faz o que eu critiquei há pouco: cita o cinema como forma de arte figurativa. Nesse sentido, penso que já respondi. Do momento em que o cinema é arte, do momento em que cria a imagem, já não seria mais o figurativismo. Minha preocupação foi a de situar o figurativismo de maneira tão geral que pudesse servir tanto para combater o figurativismo clássico como essas mesmas manifestações de figurativismo, quer dizer, todas essas novas tentativas de tirar à arte moderna aquilo que é o seu conteúdo específico. A arte moderna, como Júlio Argan disse em São Paulo, no último Congresso Internacional da AICA, aqui realizado, não é uma coisa separada da arte antiga. Não seria possível essa diferenciação, e a arte apenas se distingue por certos conteúdos de caráter histórico. Por isto este exemplo de Piero della Francesca não é uma impropriedade, porque realmente se deu isto. Piero della Francesca era um artista, criava imagens, quer dizer, Piero della Francesca era concreto, e concreta é a sua arte hoje. A diferença que pode existir entre Piero della Francesca e um concreto de hoje, na minha opinião, é uma diferença de caráter histórico, mas não artístico. A possibilidade de um artista hoje é criar imagens. Criando imagens ele cria arte. E a arte é uma arte de todos os tempos, se baseia numa faculdade humana primitiva de pensar pela imagem. A diferença é histórica, e está na construção espacial de Piero della Francesca, como está em todas as características formais ligadas àquele contexto cultural da Renascença. O naturalismo da Renascença é de caráter histórico, não é verdade? Todo mundo sabe que ele nasceu da descoberta do mundo exterior, pela aproximação direta dos objetos. Mas a diferença é apenas de caráter histórico e não artístico, ao passo que a diferença entre Mabe e Piero della Francesca é de outra natureza. Acontece que Mabe para mim não é um artista, quer dizer, é um homem que seleciona sinais e entre os sinais inclusive há modos pictóricos adquiridos, e também a própria pintura tem sido sinal de si mesma. Por isso ele não é um artista.91

A fala do Professor Michel Kamenka, embora curta, externalizou a compreensão de que

diferenciadas desavenças eram inerentes a um processo criativo e ao modo como a sociedade

relacionava-se com novas soluções estéticas. Nem sempre uma nova concepção artística era

acolhida prontamente, sendo necessário sensibilizar o espectador. Cabia ao artista encontrar o

seu melhor modo de expressão. Aparentemente, o ponto nevrálgico da discussão incidia na

crítica ao abstracionismo enquanto incapaz de gerar uma contribuição que superasse a herança

figurativa:

91 I II CONGRESSO DE CRÌTICOS DE ARTE, 2, 1961, Museu de Arte Moderna. Anais. São Paulo: ABCA, 12dez-15dez. p.121.

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O figurativismo abrange uma sessão muito maior que o academismo. É de ver o que foi conseguido no passado, quanto ao figurativismo e no presente quanto ao abstracionismo. Não vou discutir sobre o que é abstracionismo e figurativismo. O que é preciso ver é onde pode chegar e o que deu até agora o abstracionismo. Mathieu diz que os teóricos do abstracionismo puro, os inventores do “não figurativismo lírico”, pretendem desligar-se totalmente do passado, mergulhar no caos original, virgem de tradições, virgem de técnicas, virgem de tudo, enfim, partir dum nada total. No seu comentário, Mathieu escreveu o seguinte: “Os valores espirituais ligados pelo pensamento helênico, que queria o cosmos na medida do homem, nada mais representam senão um pesado jugo, que a pintura contemporânea já sacudiu, abrindo perspectivas ilimitadas à arte nova e inutilizando quarenta mil anos de atividades artísticas, sob a condição de fazer abstração do métier, regulando a improvisação à quase totalidade do ato criador”. Dubuffet, que se situa na extrema esquerda do movimento, escreve: “Consideramos como Arte obras executadas por pessoas alheias à cultura artística”. Por outro lado, René Huyghe afirma: “Existe no caso uma vertigem do elementar... uma atração irresistível para com os materiais miseráveis... elaborações infantis...” Por isso, acho que só devemos pensar onde pode chegar esse movimento atual, que é a realidade, e não devemos ficar nas abstrações e nas denominações acadêmicas. O primeiro ponto é que o artista deve ter possibilidade de ser emocionado a ponto de transmitir essa emoção ao público. Nesse sentido o que foi alcançado pelo figurativismo no passado é infinitamente superior do que poderemos esperar da nossa pintura moderna. Eu indago na minha tese: “qual a reação da arte contemporânea?92 Pertence ela ao ciclo do formalismo racional ou ao da veemência afetiva em busca da evasão no ilimitado, no infinito? O drama parece residir na falta de direção definida, na multiplicação de reações sensoriais às quais somos submetidos”. Depois eu digo: “Um dos poucos que conseguiram captar as ondas de vibração tão diferente na sua obra foi Picasso”. Agora, gostaria de dar um exemplo: Um dos quadros mais importantes do mundo é “A queda de Ícaro”. É uma obra realista, figurativa. É uma coisa pequena, mas de profunda filosofia e tem em si a resposta a certos estudos que a classificam de acadêmica. Para concluir, penso que talvez a arte abstrata ainda esteja no estado de análise, ao passo que no passado temos o resultado da arte figurativa, a sua filosofia. Como diz meu amigo Celso Kelly, não temos que desesperar da arte abstrata; apenas, penso eu, ela está no princípio. Espero que encontre a síntese a que deverá chegar, hoje, amanhã ou em 20 anos.93

Na concepção crítica de Antonio Bento, o abstracionismo engloba um elemento

fundamental da criação: a arte como exercício da liberdade interior. A obra conscientemente,

ou não, revela características profundas de uma sociedade diversificada e múltipla no seu

modo de pensar e de agir, posto que o artista traduz o que sente e conhece. A existência da

arte abstrata, assim como da figurativa amplia o poder de escolha e identificação do

espectador. Este como ser experenciador de uma determinada realidade social, política e

econômica, poderá sim ver na obra de um Braque, Klee ou Kandinsky pontos de contato,

refúgio ou entendimento. Falar em criação artística resulta em investigar a natureza da arte no

que ela tem de peculiar e permanente, de universal e necessário, em relação a todas as outras

92 O termo refere-se à arte em voga na década de 50/60, ou seja, o figurativismo e o abstracionismo. 93 Op. Cit.

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formas de criatividade humana. A criação transcende a arte, incidindo também sobre a

estruturação de argumentos lógicos, científicos ou filosóficos. Assim, a abstração seria apenas

uma etapa natural do desenvolvimento de uma sociedade que valoriza o indivíduo em toda sua

potencialidade, sem excluir ou negar o valor de sua dimensão simbólica e espiritual.

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CAPÍTULO III: A CRÍTICA MILITANTE DE

JORGE ROMERO BREST E A REVISTA VER

Y ESTIMAR.

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As diversas contribuições intelectuais que se desenvolveram nos anos de 1960 na

Argentina nos permitem abordar diferentes problemáticas em torno do ambicioso projeto de

converter o país em um importante centro mundial de arte. Tal empreitada havia concentrado

os esforços contínuos de artistas, instituições, críticos e galeristas na tentativa de obter o

reconhecimento internacional para uma arte argentina que se mostrava ímpar e inovativa, um

movimento de atualização sem precedentes.

Neste contexto, os apontamentos de Jorge Romero Brest constituem importante fonte

avaliativa de uma década da qual ele foi ativo protagonista. Em sua obra El Arte en la

Argentina (Buenos Aires-1969) o crítico propõe uma abordagem valorativa entre “os novos” e

os “que não avançaram”, dedicando-se mais àqueles que inovaram, estabelecendo posições

que nos permitem entrever algumas das razões que pautaram suas decisões ao longo de sua

gestão à frente do Instituto Torquato Di Tella.

A busca por uma arte internacional traz a necessidade de identificar as exposições que

colocaram a arte argentina em contato com o mundo, o critério adotado pelos curadores e

críticos argentinos e a recepção crítica destas mostras nos Estados Unidos. Mas segundo

Romero Brest, a idéia de um internacionalismo somente tomaria corpo e atingiria êxito com a

elevação do nível da arte argentina. Para o crítico, fazia-se necessário um processo de

atualização de uma arte atrasada, que passara por um “aniquilamento do espírito” e por um

“enclausuramento suicida” no período peronista.

Porém, tanto as condições nacionais quanto internacionais indicavam que, através de um

esforço coletivo, a arte argentina sairia de sua condição periférica e seria o expressionismo

abstrato uma alternativa viável frente ao realismo social. Tal perspectiva revelava a

receptividade argentina à influência e inserção norte-americanas. Tratava-se, sobretudo, da

percepção por parte da alta cultura argentina, que após a Segunda Guerra Mundial, Paris já

não mais representava a potência artística do Ocidente. Iniciava-se um momento de

renovação e reconhecimento de um novo pólo artístico centrado em Nova Iorque. Através de

palavras e imagens, argumentos e projetos, atores argentinos distintos projetaram-se rumo a

um mesmo ideal: internacionalizar-se. Estabeleceram-se iniciativas diferenciadas, com

políticas desenvolvidas junto às instituições públicas e privadas. Realizou-se neste contexto a

“importação” de mostras de artistas internacionais contemporâneos, assim com o envio de

bolsistas ao exterior com o objetivo de aprimorarem suas técnicas, contribuindo, ao

retornarem, para a “elevação da qualidade” artística local. Outra iniciativa consistiu na

organização de prêmios conduzidos por importantes críticos internacionais, assim como, o

envio de exposições de artistas argentinos à Europa e, sobretudo, aos Estados Unidos.

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Portanto, concretizadas as diretrizes propostas e atingido o nível esperado, internacionalizar-se

poderia ser definido tanto como “exportar” cultura como transformar Buenos Aires em um

centro internacional, um aporte para artistas reconhecidos, importantes exibições e críticos

influentes, ou seja, um importante centro de confluência artística. Consoante Andrea Giunta, o

termo internacionalismo tornou-se cada vez mais recorrente, porém, assumindo facetas

diferenciadas à medida que os debates se intensificavam, ressignificando projetos e idéias:

El proyecto de internacionalización no comprometió sólo a la plástica argentina, sino a un amplio circuito del arte latinoamericano. De un modo esquemático podríamos anticipar que, en 1956, internacionalizarse significaba, ante todo, romper con el aislamiento; en 1958 implicaba sumarse a un frente internacional de artistas; en 1960 era elevar el arte argentino a un plano de calidad que le permitiera disputar con el de los centros internacionales; en 1962, traer a artistas de Europa e Estados Unidos a competir con los argentinos; en 1964, llevar el “nuevo arte argentino” al exterior; en 1965, mostrar el éxito “en el mundo” de los artistas argentinos ante el público local y, finalmente, desde 1966, trastornando su anterior valoración positiva, internacionalismo fue, cada vez más, sinónimo de “imperialismo” y “dependencia”. 94

Nesse cenário, fica patente o uso propagandístico que os Estados Unidos fizeram do

expressionismo abstrato durante o período da Guerra Fria, agregando e difundindo novas

bases e parâmetros. Conjuntamente com a influência econômica, a arte teria, assim, se

convertido em instrumento de neocolonialismo na América Latina, o que não impediu que

alguns países como Brasil e Argentina, por exemplo, delineassem seus próprios meios de

expansão. Ainda de acordo com Giunta:

La política cultural que se instrumentó desde las instituciones norteamericanas para contribuir a frenar el avance del comunismo en el continente no consistió únicamente en el envío de exhibiciones de artistas estadounidenses al exterior. Esta política, que por supuesto existió, fue sólo la parte visible de una estrategia más compleja y sutil que también consistió en llevar a artistas e intelectuales latinoamericanos a los Estados Unidos a fin de mostrarles el interés que allí despertaban y hasta qué punto ahora estaban dadas las condiciones para un verdadero intercambio. Este reconocimiento de existencia, junto con la necesidad de proclamarlo en cada ocasión que fuese posible, enriqueció con una nueva modalidad la retórica de la guerra fría, y tenía como propósito interferir en la identificación de los intelectuales latinoamericanos con la revolución cubana. 95

94 GIUNTA, Andrea. Vanguardia, internacionalismo y política. Arte argentino en los años sesenta. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2008. p.24 95 Ibídem p.25.

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Portanto, o processo de internacionalização na Argentina não teve um viés

exclusivamente local e deve ser entendido dentro de uma conjuntura internacional marcada

pela Guerra Fria. Tratava-se de um projeto que buscava estabelecer novos rumos para a

história da arte nacional. No período do pós-peronismo o país encontrava-se confiante em um

programa de industrialização que trazia todos os pressupostos necessários para retirar a

Argentina do isolamento provocado pela guerra e políticas econômicas internas que

impediram a integração do país junto ao mercado internacional.

Conjuntamente com o desejo de estabelecer uma tabula rasa sobre o passado artístico

fundacional, surgiram um conjunto de instituições argentinas dispostas a concretizarem as

iniciativas que tinham por objetivo colocar a arte em um novo patamar, agora de destaque.

Porém, os projetos de internacionalização não foram fruto apenas de uma classe dirigente

adepta de um rígido mecenato artístico, mas de uma força maior que disponibilizava em

relação às produções culturais, um apoio de programas econômicos, promoções e estímulos

com o objetivo de agenciar uma transformação ímpar e definitiva no campo cultural. Neste

sentido, o apoio dado pelas instituições estadunidenses à arte latino-americana, pode ser

entendido como instrumento de propaganda, neutralizando as possibilidades de fecundação e

promoção da política cubana entre os intelectuais latino-americanos, regularmente convocados

a discutir a cultura da revolução. De acordo com Giunta (2008) em começos dos anos de

1960, a grande maioria dos artistas argentinos via com interesse e admiração os estilos, as

galerias, os críticos, e museus de Paris e Nova Iorque, tendo-os como um pólo muito mais

forte que a entrada de Fidel Castro em Havana:

Para las instituciones argentinas lo prioritario era tener un arte de vanguardia: si se buscaba intervenir en la escena internacional había de presentarse con un arte distinto del que circulaba en los principales centros culturales, un arte diferente y, al mismo tiempo, actualizado. (…). El proyecto fue bastante indefinido en términos de imágenes. Se trataba de ofrecer todo lo que se consideraba nuevo y, preferentemente, lo realizado por jóvenes. La idea era que, en las expresiones, que surgieran del clima de experimentación y aventura que predominaba entre los artistas de Buenos Aires, estaba la clave de un arte original y anticipado respecto del que se hacía en los centros tradicionales. Esto era algo con lo que las instituciones artísticas de Buenos Aires, quizás por primera vez, sentían que podían contar, aun cuando no pudiesen determinar por qué estilo decidirse. (…) Otro aspecto que considero fundamental es la paradoja estética que plantea la relación entre modernidad y vanguardia en los sesenta, y las formas que ésta adoptó en el arte argentino. Si por un lado es incuestionable que la vanguardia asumió en estos años muchos de los rasgos característicos de la modernidad (exaltación de lo urbano, perpetua desintegración, ambigüedad, angustia, necesidad de transformación del individuo e del mundo), en lo que hace a los programas artísticos hubo una generalizada renuncia a un rasgo central en el paradigma de la estética moderna: la

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autonomía formal (autosuficiencia, antinarratividad) como conciencia crítica de oposición. (GIUNTA, 2008, p. 27-28)

Os artistas de Buenos Aires criaram, portanto, um clima de experimentação e renovação

ate então sem precedentes, fatores essenciais para enfrentar o desafio de promover uma arte de

vanguarda. Coube às instituições agenciarem essa nova empreitada, permitindo um processo

de colaboração e interesses mútuos. As declarações e prólogos que acompanhavam cada um

dos prêmios concedidos e exibições inflamavam e sustentavam um interesse, cada vez mais

intenso, por uma arte experimental. Em fins de 1950 e durante a primeira metade de 1960 era

grande a receptividade em relação a uma atitude experimental de transformação das estruturas

formais.

O projeto de vanguarda artística insere-se dentro de um intenso processo de

modernização cultural que caracterizou o momento desenvolvimentista. Um país que se

expandia economicamente de forma tão expressiva deveria apresentar um índice de

transformação e desenvolvimento também no campo cultural. Tal iniciativa contou com o

apoio dos intelectuais e representantes da burguesia industrial. Além do mecenato que

permitia o financiamento de ousadas iniciativas, houve também a necessidade de uma

pesquisa, de um projeto, de valores e pautas que permitissem entrever quais os elementos a

serem priorizados para que o país emergisse no cenário internacional com uma arte

diferenciada e de inquestionável qualidade.

Jorge Romero Brest despontou neste cenário como personagem fundamental no

processo de divulgação e introdução de um paradigma modernista na Argentina, almejando

bases sólidas para uma arte que, segundo Romero Brest afirmara em 1948, não havia

encontrado a raiz metafísica de sua existência e nem o centro de seu destino que lhe permitisse

criar a sua própria arte formal universal.96

Brest pode ser considerado um intelectual modernizador, que desde 1956 estava

intrinsecamente inserido no cenário artístico, como diretor do Museu Nacional de Belas Artes,

tendo a oportunidade de colocar em prática todas as idéias e projetos gestados durante o seu

ostracismo no peronismo.

Após sua destituição do cargo de professor da Universidad de La Plata em 1947, Brest

desenvolveu práticas e formações alternativas para movimentar os circuitos oficiais como a

Revista Ver y Estimar (1948-55), os cursos de Estética e História da Arte que ministrou na

96 Jorge Romero Brest, “El arte argentino y el arte universal”. VER y ESTIMAR. Número 01, abril de 1948. p. 04-16.

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Librería Fray Mocho e em seguida no Colégio de Estudios de la Lengua Inglesa, por exemplo.

Tais iniciativas contribuíram de forma decisiva para traçar um plano que detinha

grande proximidade com as aspirações oriundas de um estrito setor da burguesia

modernizadora disposta a apoiar a arte moderna e que teve como principal representante o

jovem e culto industrial Guido Di Tella. O modelo de patrocínio cultural empreendido pelo

Instituto Di Tella permitiu que o discurso construído por Brest, enquanto gestor cultural e

crítico de arte, se desenvolvesse plenamente, além de preencher as necessidades ideológicas

de alguns setores da burguesia.

3.1. Ver y Estimar: uma nova percepção estética.

Em seus primeiros dez anos de existência, o peronismo desenvolveu uma relação de

instabilidade com a arte e a cultura. A primeira intervenção de Perón deu-se nos Salões

Nacionais. A partir de 1946, ocorreu uma modificação na nomenclatura. O Grande Prêmio de

Pintura e o Grande Prêmio de Escultura passaram a receber a denominação de Presidente da

Nação Argentina. Conjuntamente, foram criados prêmios ministeriais que possuíam a função

de promover o envio oficial de obras- pintura e escultura- em consonância com as funções

exercidas pelos ministérios, a partir de uma temática previamente estabelecida. De fato, o

Salão constituía o grande evento artístico do ano aguardado por críticos e artistas. De acordo

com Andrea Giunta, a edição de 1946 apresentaria estilo e temática diversificada ao

incorporar obras que tinham participado do Salão Independente, como as de Berni, Forner e

Fontana e composições de tendência abstrata como as de Curatella Manes, Salvador Presta e

as de Emilio Pettoruti. Houve também a inclusão de obras realistas, mas somente a pintura

Los descamisados de Adolfo Monteiro, fazia menção a fatos recentes:

Pese al uso de la imagen que hizo en su propaganda el gobierno, el territorio de la plástica prácticamente careció de adeptos que sacralizaran el régimen con sus obras o, en sentido contrario, de exposiciones de corte político que implicaran descalificaciones o eliminaciones sistemáticas de obras y de artistas, como había sucedido en el caso de España y de Alemania. Si bien hubo un fuerte desarrollo de pinturas destinadas a santificar la imagen de Eva Perón, realizadas por el pintor de origen francés Numa Ayrinhac (retratista también de la alta sociedad), la figura de este artista se diluyó tras la imagen de su retratada a punto tal que su pintura alcanzó una función protagónica en la retórica oficial, pero no logró competencia en el

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Evita Perón após desembarcar de um Dakota DC-4, enviado pelo General Franco e luxuosamente equipado para atender as necessidades da primeira dama argentina. Evita é recepcionada pelo Chefe do Estado Espanhol, sua esposa, Carmen Polo de Franco, sua filha, membros do governo, autoridades locais e eclesiásticas.

espacio del arte. Difícilmente podía ser reconocido en un medio artístico que, en bloque, formaba en las filas de los sectores enfrentados al gobierno. 97

Para os opositores do regime

peronista, a grande proximidade do

governo argentino com a Espanha

gerava descontentamento. Eva Perón,

em sua viagem à Europa, visitou

países como a Itália, Suíça e França,

mas foi o seu apoio público a

Francisco Franco98 (contrariando

juntamente com Portugal, a

Resolução da Assembléia Geral da

ONU de 194699) que deixou marcas

profundas no cenário político

argentino.

Em 08 de junho de 1947, Eva Perón desembarcou no Aeroporto Adolfo Suárez, Madrid-

Barajas. Sua visita ao longo do país durou 18 dias, proferindo discursos solidários a favor dos

queridos descamisados de España ao longo de sua passagem por Madrid, Toledo, Sevilha,

Granada, Zaragoza, Barcelona. Além do acordo comercial de 350 milhões de dólares, firmado

entre Argentina e Espanha- que garantia o abastecimento do mercado espanhol com trigo,

milho e carne congelada, a juros baixos- a visita de Eva Perón resultou no envio, por parte do

97 GIUNTA, Andrea. Vanguardia, internacionalismo y política. Arte argentino en los años sesenta. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2008. p.51. 98 Francisco Paulino Hermenegildo Teódulo Franco y Barramonde (Ferrol, Galiza, Espanha, 4/12/1892 - Madri, Espanha, 20/11/1975) foi um general e chefe de estado espanhol. Franco liderou um governo de orientação fascista na Espanha de 1936 até sua morte, em 1975. 99 La Asamblea General, Convencida de que el Gobierno fascista de Franco en España, fué impuesto al pueblo español por la fuerza con la ayuda de las potencias del Eje y a las cuales dió ayuda material durante la guerra, no representa al pueblo español, y que por su continuo dominio de España está haciendo imposible la participación en asuntos internacionales del pueblo español con los pueblos de las Naciones Unidas; Recomienda que se excluya al Gobierno español de Franco como miembro de los organismos internacionales establecidos por las Naciones Unidas o que tengan nexos con ellas, y de la participación en conferencias u otras actividades que puedan ser emprendidas por las Naciones Unidas o por estos organismos, hasta que se instaure en España un gobierno nuevo y aceptable. In: Resolución 39(I) de la Asamblea General de la ONU sobre la cuestión española, aprobada por la Asamblea General durante la primera parte de su primer período de sesiones, Quincuaésima nona reunión plenaria, 12 de diciembre de 1946, pp. 57-58.

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governo de Franco, da Exposición de arte español contemporáneo, exibida no Museu

Nacional de Belas Artes. Ainda que a mostra trouxesse em sua nomenclatura o termo

contemporâneo, não apresentava o que havia de mais recente e representativo da arte

espanhola: Juan Gris, Maruja Mallo, Joan Miró, Manolo Hugué e a inaceitável ausência de

Pablo Picasso. Por seu caráter nacionalista, a exposição foi duramente criticada entre os

núcleos artísticos favoráveis a promoção de uma arte questionadora e inventiva. O exemplar

número 02 de Ver y Estimar de maio de 1948, coincidentemente ou propositadamente trouxe

uma edição dedicada, exclusivamente, ao mestre cubista espanhol.100 Romero Brest realizou

uma análise sobre a extensa contribuição do artista e na seção Camino de la observación,

apresentou reproduções de algumas obras de Picasso, em preto e branco, devidamente

comentadas. Brest iniciou seu ensaio, Picasso El Inventor, ressaltando a necessidade de

divulgar no meio artístico argentino o legado artístico desse importante mestre cubista:

Escribo sobre Picasso aquí, en Buenos Aires, a cientos y cientos de kilómetros de todas las ciudades que lo cobijan; aquí, donde vive una comunidad que no bebe en las fuentes primordiales de la existencia- la tierra y el hombre- sino en otras aguas que se enturbian al ser miradas con narcisista pretensión, y por eso le cuesta trabajo comprender la limpia postura del pintor español. Diez años han transcurrido, además, desde la última vez que enfrenté sus cuadros, en los que recién apuntaba la verdadera expresión picassiana, en una Europa ya doliente y desvitalizada. Y me asaltan dudas sobre la legitimidad de mi ensayo. Pero la hago con resuelta pasión, justificándome al pensar que el mensaje de un gran artista supera las limitaciones de tiempo y espacio, y se hace patente hasta en la más humilde imagen fotográfica.101

Segundo Brest, por mais diferentes que tenham sido os métodos de criação na Idade

Moderna, desde Giotto todos os artistas do Ocidente compartilhavam o mesmo desejo mútuo

de representar a realidade concreta por meio da análise e da síntese. Todos esses artistas,

segundo Brest, se ajustaram ao jogo lógico, dando vazão a formas que pareciam verdadeiras,

seja pelo exercício da experiência emotiva ou sensível, seja pela construção racional, ou pelo

equilíbrio de ambas, uma vez que respondiam a um conceito científico natural da verdade.

Picasso teria também respeitado esse jogo durante as primeiras etapas de sua vida. Todavia,

Picasso era detentor de um gênio inventivo e por isso, consoante Brest, se lançou abertamente 100 Nas páginas subseqüentes veremos como a Revista Ver y Estimar seguia uma estrutura formal padrão. Em relação à edição número 02 de maio de 1948: texto de abertura “Picasso. El inventor” (análise crítica) Jorge Romero Brest, Inventário por Blanca Stabile, “Picasso em Buenos Aires”. Outras contribuições de colaboradores da Revista sobre Picasso: “Ángulo Eluard-Picasso”, por Marta Traba, “Eugenio D’Ors e Picasso por Damián C. Bayón e resenhas sobre bibliografias picassianas por: Clara Diament, Lia Carrea, Raquel Edelman, Angelia Beret, Alfredon E. Roland e Isolina Grossi. 101 Jorge Romero Brest, “Picasso. El inventor”. VER y ESTIMAR. Número 02, maio de 1948. p.01.

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a invenção de formas, que respondem a um novo jogo, ilógico e dinâmico, sem haver

transposto, claramente, a extensa pausa do desconcerto que toda invenção produz. Nesse

contexto, Brest se propôs a determinar, primeiramente o conceito de invenção e a estabelecer

lo que Picasso es y no es.

O conceito de invenção pode ser interpretado como a criação de algo novo a partir da

força da inteligência, do saber, ou da intuição e não por obra do acaso. Entretanto, a invenção

parte de uma estrutura preexistente. O artista cria a partir de conhecimentos fragmentados e

mediante hipóteses, que, ao serem comprovadas, se transformam em descobertas, em novas

verdades:

No hay entre el invento y el descubrimiento más que una diferencia de grado, si se quiere de eficiencia: el primero es un proyecto de verdad; el segundo, la verdad misma. Y es menester que el invento se incorpore como necesidad para que se trueque en verdad descubierta. 102

Para Brest, Picasso se afigura como um artista

capaz de variar suas técnicas de forma surpreendente,

pois lhe interessam mais os objetos do que as idéias,

ou seja, as idéias são concebidas em função dos

objetos:

Picasso es un artista apegado a las cosas, a la materia de las cosas, por lo que tiene de plástica y en cuanto le permite componer sus objetos sin partir de la idea, como acto previo, sino de su instinto de la forma. Sus obras son estudios de realidades observadas, como lo revelan sus títulos, siempre descriptivos y nada sentimentales, también sin aliento físico. (…) Incluirlo entre los cultores del mal llamado arte abstracto es no conocerlo, ya que su arte no está hecho de relaciones conceptuales, sino de formas concretas, al mismo tiempo reales y virtuales. (…) Muchas veces se ha dicho que Picasso es un racionalista, pensando en sus cuadros cubistas, como si en ellos hubiera pretendido reducir el espectáculo del mundo a un esquema de fuerzas controladas. El error de los que afirman tal cosa, a

102 Jorge Romero Brest, “Picasso. El inventor”. VER y ESTIMAR. Número 02, maio de 1948. p.03.

Madre e hijo (1921). Se habla de un período clásico de Picasso, al que corresponde este cuadro. Bastará compararlo con Mujeres en el mostrador, para comprender que vuelve a crear figuras barrocas, más sólidamente construidas merced a la experiencia cubista, y de mayor fuerza expresiva como resultado de la experiencia negra: ellas revelan, en su inestable estatismo y en su deformado gigantismo un ansia de lo explosivo-una salvaje potencia sensualista pero despersonalizada y sin eros-del que derivaron sus imágenes posteriores, así como la perdida de resabios sentimentales al volver a crear volúmenes con plenitud. Camino de la Observación: las metamorfosis de Picasso. JRB

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mi modo de ver, procede de la consideración superficial del cubismo como un movimiento que hubiera tendido a instaurar un orden geométrico, en vez de advertir todo lo que hay de irracional en él, volcado en rítmicos moldes que de ningún modo son precisos, sino de pura invención fantástica. (…) Si en Picasso hay una inteligencia lúcida y una sensibilidad visual y táctil muy desarrollada, no son esas las fuerzas determinantes de su hacer: esa fuerza es su instinto para descubrir en las cosas aspectos inéditos, puntos de vista sorprendentes, y para inventar con estas notas formas que muestran la apariencia y la otra cara de la apariencia. 103

Brest ao longo de seu ensaio irá discutir as

diversas fases da produção picassiana, do

naturalismo, ao classicismo. Um processo que

despontaria em uma luta pela invenção de objetos

concretos, nos quais deveriam incidir emoções

diferenciadas mediante o espetáculo da vida.

Segundo o crítico, sua meta parecia residir em

grandes esforços para tornar o elemento plástico

independente dos conteúdos emotivos individuais,

com o objetivo de criar uma linguagem nova capaz

de expressar os conteúdos emotivos mais gerais e

universais. Picasso detém a virtude de transformar as

paixões individuais em paixões arquetípicas. O

artista trará para as suas telas temas do cotidiano e

transcende os meios tradicionais de representação

quando concede aos objetos uma carga emocional. A

indignação contra o tirano, a destruição trágica de

Guernica darão vazão a uma obra repleta de fortes

alegorias, alusões políticas, excluindo a cor e potencializando simbolicamente a força

expressiva do traço e o jogo de luz e sombra:

Picasso siente el tremendo sacudón que implica la felonía de la casta militar-“que ha sumido a España en un océano de dolor y de muerte”- y se vuelve contra ella, en el momento oportuno en que sus formas ya exigían, con perentoriedad, contenidos de vibración emotiva universal. (…). Todas las formas inventadas en Sueño y mentira de Franco, feas y torpes todavía desde el punto de vista del nuevo contenido universal, recibieron una primera purificación en el gran mural de la Exposición de Paris de 1937: Guernica. Basta comparar a unas con otras para comprender que en el segundo ganaran en fuerza simbólica, conservándose como formas concretas y al mismo tiempo como esquemas de un nuevo modo de sentir colectivo. Por eso son

103 Jorge Romero Brest, “Picasso. El inventor”. VER y ESTIMAR. Número 02, maio de 1948. p. 07-08.

Estudio para Guernica (1937). Picasso exacerba y deforma, especialmente con el trazo, al que otorga la mayor potencia expresiva, pero respeta la solidez de la forma total –impersonales trazos de la nariz, cráneo y cuello- y la descarga de sus contenidos materiales. El sentimiento no se manifiesta como vibración superficial sino como forma; no es emanación sino estructura. El pintor pretende y logra presentar más bien la imagen del dolor que la de una mujer dolorida. Camino de la Observación: las metamorfosis de Picasso. JRB

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inventos la cara impasible del toro, la lastimera del caballo, la mujer presa de indignación, porque habrán de quedar, lo mismo que el efebo helénico o la virgen rafaelesca, como modelos, a través de los cuales se expresara el dolor del mundo en cuento fuerza primigenia de adhesión a la tierra y al hombre. Prueba de esa capacidad normativa del invento picassiano, la que permite augurarle su transformación en descubrimiento, así como las más inesperadas metamorfosis, es el empleo de esas formas por parte de grandes pintores contemporáneos, Portinari por ejemplo, los cuales no enajenan de ese modo su personalidad, sino confiesan tácitamente que aquéllas constituyen el lenguaje de nuestro tiempo. (…) Curioso es observar cómo vinieron a fundirse en Guernica todas las conquistas de Picasso. 104

Para Brest, Picasso pode ser definido como um

genial malabarista de nosso tempo, capaz de fundir os

tênues e livres elementos de irracionalidade com as firmes

estruturas que expressam, por meio do instinto, o valor

imanente da vida. Assim, a guerra e a afiliação política do

artista teriam influenciado diretamente o processo criativo,

como afirmou Picasso: “a pintura não é realizada para

decorar apartamentos, é um instrumento de guerra para

atacar e defender-se dos inimigos” 105. Prossegue Brest:

Demasiadas pruebas ha dado Picasso de su capacidad de inventor como para que nadie pueda imaginarlo detenido. ¿No estará cuajando en él alguna nueva invención? Entre tanto, ánimo para escapar del falso idilio que implica añorar una vida cerrada y completa; existe la obligación de comprender a Picasso, porque es como entenderse a uno mismo en limpia postura, y para ello es menester que se considere toda su obra como una permanente revolución. Picasso problematiza el hacer plástico, para construir la realidad a imagen y semejanza de sus angustias, basándose en lo único que parece sostenerse: la fuerza instintiva del vivir: Su arte no puede ser agradable, ni bello en el sentido definitivo de una forma final: tiene que tener los flancos desgarrados, y junto a ellos los brotes de iniciación, como tienen unos y otros los hombres que viven alerta.106

104 Jorge Romero Brest, “Picasso. El inventor”. VER y ESTIMAR. Número 02, maio de 1948. p.19. 105 Ibídem p. 22. 106 Ibídem p. 24.

El gallo (1938). Gallo y veleta. Otra muestra del alegorismo zoomórfico de Picasso, quien hace del gallo una imagen-símbolo del estremecimiento doloroso, del grito en paroxismo. Siguiendo un método parecido al de Estudio para Guernica, carga a la figura del gallo de sentimientos humanos despersonalizados. Y acaso sea en estas figuras de gallos, dibujos y pasteles donde más se humaniza, combinando ritmos brutales de líneas y de claroscuro-cabeza y cuerpo del animal- con el ritmo sutil aéreo casi de la cola. Camino de la Observación: las metamorfosis de Picasso. JRB

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Compreender a obra de Picasso era, também, inteirar-se das tramas e tensões que

inquietavam a humanidade naquele momento histórico singular. Nesse sentido era impossível

pensar em qualquer exposição de arte contemporânea que não incluísse o artista entre seus

expoentes. Exatamente por isso, Romero Brest considerava que a mostra de arte espanhola

nada agregaria de estimulante ao cenário artístico argentino. Coube a Ver y Estimar, através

das análises de Brest, difundir junto ao público as reproduções de obras devidamente

comentadas do inventivo artista espanhol.

De fato, a natureza do contato artístico internacional promovido pelo governo Perón,

assim como os prêmios com temas introduzidos no Salão, decepcionavam profundamente o

meio artístico argentino, de uma forma geral. Para a revista Sur, por exemplo, em artigo de

Júlio E. Payró107, a mostra não era nitidamente propagandística, mas também não se encaixava

no título de arte contemporânea, estando mais próxima da arte acadêmica.

A esse cenário já conturbado, somavam-se os conflitos em torno da arte abstrata. Todos

os tumultos e tentativas de entendimento encontravam na figura emblemática do Ministro da

Cultura Oscar Ivanissevich um ponto de tensão.

Ivanissevich era médico especialista em prática cirúrgica, supervisionou a Universidade

de Buenos Aires entre 1946 e 1949, foi embaixador dos Estados Unidos, secretário de

Educação e ministro da Educação entre 1948-50. Todos esses predicados serviam bem aos

interesses e anseios de Perón, em relação ao desenvolvimento da ciência no país. Segundo

Ivanissevich, o elemento fundamental da cultura é o seu viés espiritual, desse modo, a

sociedade pode ser dividida entre os que desejam a pátria e os apátridas, daí sempre

apresentar-se em conferências envolto na bandeira argentina para demarcar sua posição dentro

desta dicotomia. Sustentava ainda que a liberdade reduzia-se à medida que a sociedade

passava por um processo civilizatório e, portanto, a liberdade expressiva exigida pela arte

moderna, deveria ser em si mesma, uma “aberração” 108.

Em seus discursos, Ivanissevich, pretendia alertar seus espectadores contra uma arte

nefasta, incompreensível e, portanto, incomunicável. Não havia vergonha nenhuma em se

admitir a não compreensão de uma obra abstrata, pois, esta trazia em seu cerne a semente da

degeneração, da imperfeição. Em 1949 irrompiam em Buenos Aires duas exposições que

107 Nos agrada desligar al arte de las contingencias políticas, recordar la sana frase liberal: “el arte no tiene fronteras. Quede entendido que ello se refiere al arte de verdad, al arte libre por definición: no a cierto tipo de seudo -arte que encubre sin sutileza propaganda en este o aquel sentido, y del cual, grato es decirlo, los españoles no nos enviaron muestras. In: Julio E. Payró, “Exposición de arte español contemporáneo”, Sur, núm. 159, enero de 1948, p.119-125. 108 PUIGGRÓS, Adriana. (coord.) Peronismo: cultura, política y educación (1945-1955). Buenos Aires: Galerna, 1993. pp. 121-127.

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causavam grande descontentamento no ministro. Em 23 de junho havia sido inaugurada a

exposição de pintura francesa De Manet a nuestros dias, no Museu Nacional de Belas Artes e

nos mês subseqüente o Instituto de Arte Moderna exibia a mostra Arte Abstracto, organizada

pelo crítico belga, residente em Paris, Léon Degand. Ambas as exposições foram capazes de

tumultuar os debates em torno da arte abstrata. Para a crítica especializada, as obras

selecionadas pelo governo francês revelavam uma postura de descaso para com o público

argentino. Do mesmo sentimento partilhava Julio E. Payró que através das páginas de Sur109

demonstrava sua irritação com o governo francês. Das 165 obras enviadas apenas 15

pertenciam ao museu, sendo as demais emprestadas por marchands e, segundo Payró, eram de

segunda categoria. Ainda de acordo com o crítico, a exposição não constituíra um fiasco em

função do magnífico aporte dos colecionistas argentinos- Santamarina, Wolf, Crespo,

Williams, Helft, Wildenstein, Koenigsberg- que cederam obras de Cézanne, Braque, Forain,

Guillaumin, Léger, Monet, Picasso, Tolouse-Lautrec, Van Gogh, Rafaelli, Rouault e Vuillard.

Mas, em meio a ação de colecionadores e defensores da arte abstrata como a verdadeira

linguagem artística a ser assumida pelos argentinos, havia o forte sentimento de indignação e

rejeição. Para os opositores do movimento abstrato, como Ivanissevich, os argumentos

utilizados eram muito próximos, em seu sentido, com os valores e críticas integrantes do texto

de apresentação da exposição de Arte Degenerada promovida pelo nazismo em varias cidades

da Alemanha, entre 1937 e 1938110. Ivanissevich concedeu ao seu discurso uma marca

peculiar, ao introduzir metáforas médicas na definição e repudio a arte abstrata:

El arte morboso, el arte abstracto, no cabe entre nosotros, en este país en plena juventud, en pleno florecimiento. No cabe en la Doctrina Peronista, porque es ésta una doctrina de amor, de perfección, de altruismo, con ambición de cielo

109 Julio E. Payró, “De Manet a nuestros días”, Sur, núm.177, julio de 1949.p.82-88. 110 Sobre o assunto comenta Andrea Giunta: La exposición estuvo en noviembre de 1937 en Múnich y en febrero de 1938 abría en Berlín, iniciando luego un recorrido por varias ciudades de Alemania y Austria. El texto, escrito por Fritz Kaiser, quien había trabajado en el directorio de la propaganda del Reich desde 1935, evoca el antimodernista “Limpieza del templo del arte” publicado en 1937 por Wolfang Willrich. El catálogo incluía, entre sus reproducciones, obras de Nolde, Dix, Schmidt-Rottluff, Kirchner, Schwitters, Metzinger, entre otros. Las obras habían sido confiscadas en las campañas contra el arte degenerado realizadas en 1937, cuando Goebbels transmitió la orden de Hitler de buscar ejemplos de arte degenerado en los museos para una exhibición. (…) Sin embargo, pese a los ecos del texto de la exposición de Arte Degenerado, las apreciaciones de Ivanissevich eran más generales y carecían, entre otras cosas, del furioso y explicito antisemitismo del que hacía gala el catálogo alemán. Por otra parte, tampoco se produjeron durante el peronismo las quemas, exposiciones, proscripciones y ventas masivas que caracterizaron la política del nazismo en materia de arte. La política del peronismo dependió más de los intereses de coyunturales gestores que de un programa predeterminado; y así como Ivanissevich atacaba el arte abstracto, otros funcionarios como Ignacio Pirovano, director en ese momento del Museo de Arte Decorativo, lo defendían e incluso lo coleccionaban. In: GIUNTA, ANDREA. Vanguardia, Internacionalismo y Política: arte argentino en los años 60. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2008. p. 53.

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sobrehumano. No cabe en la Doctrina Peronista, porque ella nace en las virtudes innatas del pueblo y trata de mantenerlas, estimularlas, exaltarlas.111

O ministro desenvolveu clara e ferrenha oposição a arte abstrata, dentro de um cenário

de contradições, disputas e ações que pautaram um enfrentamento não apenas estético, mas

também político.

Em setembro de 1945, a imprensa internacional noticiava a inevitável derrota dos países

que compunham o Eixo, posto que a Alemanha já houvesse assinado sua rendição em maio e,

portanto, a guerra restringiu-se à Ásia e ao Pacífico. A partir deste panorama, na Argentina,

tornava-se impossível sustentar o alinhamento ao fascismo iniciado pelos coronéis argentinos

em 1943. A fragilidade do movimento político e filosófico desnudada pela vitória dos Aliados

impulsionou a saída às ruas de representantes pertencentes aos diferentes setores sociais, para

exigir a imediata normalização institucional e o fim do isolamento diplomático.

Em 17 de setembro de 1945, neste clima de manifestações públicas, o Salão

Independente iniciava seus trabalhos na Rua Florida em aberta oposição ao Salão Nacional,

cuja imagem estava associada à ditadura e ao oficialismo. Também os artistas decidiram

assumir um posicionamento mais militante, protestando pelo retorno da democracia e pela

livre expansão da personalidade humana. A palavra de ordem era liberdade - temática e

formal- que fazia da obra, da imagem, um instrumento mais contundente de protesto. Em 19

de setembro do mesmo ano, deu-se a Marcha de la Constituición y la Libertad realizada na

Plaza Congreso organizada por uma ampla coligação política que reunia radicais, socialistas,

comunistas, conservadores e até mesmo militares. Esse quadro de reivindicações e protestos

marcaria a conturbada relação entre campo artístico e o peronismo até 1955.

As ações desenvolvidas, durante o peronismo, para a consolidação de uma arte moderna

encontravam em Jorge Romero Brest um aliado e idealizador de vital importância. Seus

antecedentes desnudam um homem engajado com as principais mudanças culturais de seu

tempo. Desde 1940 fazia parte da direção do Colegio Libre de Estudios Superiores, instituição

opositora ao peronismo, criando, conjuntamente com Júlio E. Payró, a cátedra de

Investigación y Orientación Artística. Além de promover cursos de interesse geral, era

também objetivo da cátedra estudar o cenário artístico argentino através de métodos modernos

(estéticos, históricos e sociológicos), considerando a realidade do país como base para a

promoção de uma orientação artística. O Colégio Livre constituiu um espaço paralelo à 111 DOSIO, Andrea. Ver y Estimar. In: História de Revistas Argentinas. Buenos Aires: Asociación Argentina de Editores de Revistas. Tomo III.1999. pág.335.

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universidade de suma importância, ao abrigar intelectuais, economistas, políticos e gestores

culturais como Romero Brest que estariam em evidência durante a Revolução Libertadora,

momento em que se funda uma instituição bastante significativa: o Museu de Arte Moderna

de Buenos Aires, em 1956.

Em 1946, um amplo setor das elites intelectuais vivenciou um processo de destituição.

Como professor da Universidad de La Plata, Brest, representava o setor que mais oposição

fizera a ascensão de Perón. A favor da reordenação institucional as aulas foram suspensas em

agosto de 1945, protestando-se contra a exoneração de professores. A universidade, firme em

seu propósito, acabou fechada. Os meses que se seguiram não foram marcados por uma tensão

menor. A designação de Oscar Ivanissevich como delegado interventor, antes da posse de

Perón, em junho de 1946, simbolizava apenas um ponto de partida para um ano repleto de

destituições de professores, demissões solidárias de outros, estudantes suspensos e expulsos,

ações que tinham por objetivo promover uma universidade sem política, como desejava Perón.

Mesmo após a greve de estudantes em fins de 1946, mais intensa em La Plata, o banimento de

professores se manteve ainda em 1947. Nesse momento deu-se o afastamento de Romero

Brest, que, impulsionado pelo peronismo, decidiu consolidar a sua empatia com a esquerda,

filiando-se ao Partido Socialista:

No sé si por neurótico o para demostrar que no me interesaba el Derecho, al principio de mi juventud me sentí muy lejos de la política, permaneciendo neutral en mis años de Facultad (1926-1933), aunque las luchas estudiantiles ya eran enconadas. Me sentía aristócrata del pensamiento y no deseaba manchar la pureza de mis actitudes. La situación cambió con motivo de la Revolución de 1930, la cual produjo en mí la conversión hacia la desdeñada política –aunque sólo como actitud personal- y hacia la izquierda, lanzándome a la lectura fervorosa de Marx, Engels y Lenin, así como de quienes exponían sus ideas. Pero nunca fui comunista, ni pensé entonces afiliarme a partido alguno.112

Militante convicto, Romero Brest, expressava-se através das páginas de La

Vanguardia113. Em 1939, o então novo diretor do diário socialista, Mario Bravo, o convidou

112 Jorge Romero Brest. “A Damián Carlos Bayón, discípulo y amigo”.Caja1, Sobre 6, Archivo Jorge Romero Brest, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires. 113 Segundo seus idealizadores, o Periódico La Vanguardia foi criado em 1894 com o objetivo de questionar o regime de governo vigente, propondo novas formas de organização social e econômica. A partir de 1896, figurou como órgão oficial do Partido Socialista. Apesar das repressões sofridas, destruições, fechamentos e revisões de posição ante o socialismo, La Vanguardia teria se mantido firme no propósito de: representar e promover reformas que melhorem a situação dos trabalhadores, fomentar a participação destes na política, combater os privilégios, difundir as novas idéias e brigar por uma mudança social.

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para escrever crítica de arte. Brest relutou de início, pois acreditava que o seu grande ofício

era ser historiador, mas finalmente aceitou o convite, e manteve coluna periódica até

suprimirem sua seção em 1940. Quando da sua adesão ao Partido Socialista, apostava na

intervenção direta, e publicou nas páginas de La Vanguardia as diretrizes de seu programa de

ação, que partia de definições estéticas. O crítico pretendia esclarecer a população, divulgando

as importantes manifestações culturais em voga e tal esforço somava-se a postura do Partido

Socialista de iniciar um programa cultural e político em uma Argentina convulsionada

mediante protestos, agitações, conferências e publicações várias:

Espero ser útil al Partido, en la medida de mis fuerzas y en el plano de mis posibilidades, ayudando a que los dirigentes realicen una gran tarea de capacitación cultural del pueblo, que me parece impostergable. Aun a riesgo de herir la modestia de Arnaldo Orfila Reynal, secretario de la Comisión de Cultura del Partido, le diré que tengo mi fe puesta en la acción que piensa desarrollar y que estoy dispuesto a trabajar al lado suyo, en la redacción de El Iniciador, en la organización de bibliotecas circulantes, transmisiones radiales, etc., hasta que llegue el momento de que fundemos y llevemos a buen término la Universidad Obrera que es menester. Si el Partido quiere utilizarme, además, como hombre de consejo en lo que se refiere a las actividades artísticas, que son las de mi especialidad, también me prestaré gustosamente.114

Ciente das dificuldades, Brest sabia que o caminho seria árduo e contínuo para atingir o

desenvolvimento cultural, em um território muito distante da modernidade. O crítico manteve-

se sempre em constante atividade durante o peronismo, com ações diversificadas115 a fim de

resistir ao eclipsamento cultural que havia se instalado na cena oficial. Dentro desse contexto,

no entanto, havia uma definição de arte a ser estabelecida e almejada pelo verdadeiro artista:

La gran paradoja del arte consiste en que el artista debe sumergirse en la realidad para poder extraer de ella, no lo común y lo pasajero, sino lo permanente y lo eterno. ‘Y el artista contemporáneo se verá imposibilitado de inspirarse en la idea justa si desea defender la burguesía en su lucha con el proletariado’- ha escrito Plejanov-. Es un error del teórico marxista: el artista contemporáneo no defiende a la burguesía ni al proletariado, es tan extraño a una como a otro; sólo pretende construir, quizás

114 “El futuro reserva un papel rector al socialismo, nos dice Jorge Romero Brest”, La Vanguardia, 19 de fevereiro de 1946, p.05. 115 Como já mencionado anteriormente, durante o peronismo, JRB foi: fundador e professor de Altamira. Escuela Libre de Artes Plásticas, projeto que desenvolveu conjuntamente com Lucio Fontana e Emilio Pettoruti em 1946; co-fundador do editorial Argos, juntamente com Luis Miguel Baudizzone e José Luis Romero, também em 1946. Alem disto, atuou ministrando conferências e cursos em Buenos Aires e América Latina e em 1948, destaca-se como fundador e diretor da revista Ver y Estimar.

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sobre bases falsas, lo admito, un mundo universal y absoluto, razón pela cual huye de la alegoría. 116

Um programa artístico diferenciado desenvolveu-se às margens de uma arte oficial

enunciada e incentivada pelo peronismo. Este projeto buscou pontos de contato, de formas

variadas, com outras concepções desenvolvidas por espaços alternativos da cultura, como o

círculo em torno da revista Sur117 e especificamente no campo artístico pela revista Ver y

Estimar, dirigida por Jorge Romero Brest.

Em 1948, Brest se encontrava desvinculado dos núcleos oficiais da arte. O espaço

fornecido pelo Partido Socialista não se figurava como o mais adequado para sua expressão no

momento que o peronismo arrefecesse. As conferências realizadas junto aos setores socialistas

não traziam pautas capazes de concretizar uma ação efetiva no campo das artes visuais. Trata-

se de um ambiente marcado pela política, motivo pelo qual não obteria amplo apoio dos

setores influentes no meio intelectual, principalmente o grupo de Sur. Era necessário, para

gestar a arte do futuro, sobretudo, distanciar a arte da política, interessando-se pela arte pura,

distante das necessidades impostas pela realidade imediata.

116 Jorge Romero Brest. “Acerca del llamado ‘Arte social’”. (10 páginas) Caja1, Sobre 6, Archivo Jorge Romero Brest, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires. p. 08. 117 As origens da Revista Sur remontam a 1929. Waldo Frank- intelectual estadunidense que se encontrava na Argentina cumprindo uma etapa de um ciclo de palestras que empreendeu por diversos países da América Central e do Sul- propôs à Victoria Ocampo, membro da alta sociedade portenha, criar uma revista com perfil americanista. Ambos associaram-se a Samuel Glusberg que deixaria a parceria pouco tempo depois. A Revista também perdeu seu viés americanista. Desde sua origem a Revista foi orientada pela vontade pessoal de sua diretora Victoria Ocampo que tinha por inspiração La Nouvelle Revue Francaise, tendo estabelecido estreito contato com seus editores. O primeiro número, publicado em 1931, era uma edição de luxo, com papel personalizado ; 199 páginas das quais 24 eram ricamente ilustradas com fotografias e obras de Picasso, Pettoruti, Anjart e Spilimbergo. A partir da décima publicação, sua circulação tornou-se mensal e o seu valor foi reduzido. Sur promoveu obras literarias de importantes intelectuais nacionais e estrangeiros como Frederico Garcia Lorca e Virginia Woolf. A Revista desempenhou papel relevante ao ceder espaço à intelectuais, divulgando suas produções, e atualizando os leitores sobre as novidades literárias produzidas no país, assim como divulgando as correntes européias. A política era considerada um ponto particularmente tenso dentro de Sur, em função do momento politico e cultural conturbado vivido pelo país. Tal tensão era fruto de uma concepção partilhada tanto por intelectuais quanto pela literatura, de que eram agentes divulgadores da cultura e, portanto, estavam acima da política. Sur encontrava-se isolada entre as revistas literárias de direita e esquerda que marcaram os anos de 1930 e 40. Em 1937, Victoria Ocampo pronunciou-se contra a polêmica iniciada pela revista Criterio. A Revista de cunho nacionalista e católico acusara Sur de empreender uma postura duvidosa no panorama internacional, demonstrando afinidade com a esquerda. A resposta de Victória Ocampo nas páginas de Sur deixa evidente o caráter universalizante da Revista e a postura ora engajada, ora distanciada que manterá durante o peronismo : No sabemos lo que significa ser una revista de izquierda. No nos interesa la cosa política sino cuando está vinculada con lo espiritual. Cuando los principios cristianos, los fundamentos mismos de espíritu aparecen amenazados por una política, entonces levantamos nuestra voz. Esta revista no tiene color político, como no sea el color que impone a una inteligencia la defensa de esos principios, de esos fundamentos. In: EUJANIAN, Alejandro C. Historia de Revistas Argentinas. 1900/1950. Buenos Aires: Asociación Argentina de Editores de Revistas, 1999. p.88.

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O próprio título da revista trazia as diretrizes de seu projeto: Ver y Estimar. Valores que

deveriam ser estabelecidos através da teoria, da história e da estética, sem abdicar da

sensibilidade, ou seja, o fundamental era compreender o ato criativo. Atingir o equilíbrio entre

duas forças distintas. O artista emergindo como uma força individual, que consolida uma

pulsão criativa, a partir de uma força coletiva que o impulsiona e inspira:

(…) no admitimos que la crítica se reduzca al análisis de las formas e contenidos, ni a la caracterización psicológica de los artistas. Es menester que, al sugerir posiciones, aclarar ideas, destruir prejuicios- en una palabra, al preparar la vía de los sentidos por una mejor afirmación de la emotividad-, haga resplandecer en la significación espiritual de la obre de arte; y cuando se trata del creador, que llegue a una tipología en que la subjetividad se explique por lo objetivo y no a la inversa. Se trata, para nosotros, de ver y estimar: de dominar el complejo de reacciones sensibles que conducen al conocimiento y de comprender la proyección hacia el mundo de lo absoluto, pues una obra de arte, además de existir en el plano físico, vale en el plano del espíritu. 118

Desde seu primórdio Ver y Estimar não estabelecia oponentes, ignorou discursos

prontos, rebelando-se contra um paupérrimo panorama cultural, sem registro de culturas de

origem pré-hispânicas valorosas, projetos arquitetônicos, culturais ou escultóricos relevantes.

O objetivo era criar uma arte moderna e universal, sólida, coerente, e não artificial e inerte.

Como diria Brest, na primeira edição de Ver y Estimar, era fundamental saber pintar como os

naturalistas para poder inovar como os modernos. O crítico assumiu uma posição severa ao

analisar historicamente o panorama artístico vigente:

Las formas del arte denuncian una sed, un apetito, una urgencia de conocimiento, porque la curiosidad priva sobre cualquier otro aspecto del obrar; pero lo que no manifiestan es el deseo de los artistas por incorporarse a fondo las formas traídas desde lejanos países, para realizar con ellas su verdadera personalidad. Se conforman ellos con una refinada exaltación de la sensibilidad superficial y no intentan una construcción inteligente y apasionada del organismo plástico. Por eso es tierra de buenos pintores y escultores Argentina, pero no de auténticos artistas. No quiero ser pesimista y no lo soy. Tan sólo quiero mostrar al desnudo, tal como lo pienso y siento, las causas que han conducido a esta fase de adolescencia en trance de frustración que aqueja a la creación plástica; así como afirmar que el destino del arte en una comunidad, si bien depende de las condiciones económicas, sociales y políticas, tiene que ser elaborado por el hombre, al elevar su cabeza y hundir su corazón. Acaso el remedio esté en querer la vuelta a lo que somos, y la verdadera espiritualidad a que podamos aspirar sea la que se obtendría, por añadidura, mediante una justa apreciación de nuestro ser moral y una honrada incorporación de los medios técnicos para expresarlo; acaso esté en partir de las formas y los temas que

118 Jorge Romero Brest.” Introducción”. VER y ESTIMAR. Número 01, abril de 1948. p. 01.

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tienen arraigo natural en la mayoría de los nuestros, para refinarlos y ennoblecerlos lentamente. No tienen razón, a mi juicio, los torpes que subestiman el magnífico esfuerzo de los artistas de vanguardia, pero también parecen estar en lo justo éstos al ignorar sistemáticamente las potencias de la tierra y el hombre. Por ahora hemos llegado a un impasse, en el que actúan negativamente el desinterés de las masas y el esnobismo de ciertas minorías. Ejemplos hay en América de pueblos que han ensayado o ensayan la solución del problema; la nota de mayor culpabilidad que nos oprime es que nada se hace aquí para superar los términos de una crisis angustiante. ¿Será en verdad angustiante para muchos?119

Como deixa entrever, em carta a Damián Carlos Bayón, após ser desligado da

Universidad de la Plata, Brest dedicou-se a uma série de atividades paralelas, já mencionadas

anteriormente, que lhe concederam grande liberdade para pensar e agir, obtendo melhor

consciência de si mesmo. O curso de Estética e História da Arte ministrado na Librería Fray

Mocho, em 1947, em paralelo com o curso de História da Arte da Facultad de Humanidades y

Ciencias (Universidad de la República, Montevideo) lhe permitiram conceber uma revista a

partir da colaboração de discípulos, estudantes que, certamente compartilhavam dos mesmos

ideais defendidos pelo crítico. Conjuntamente com esse grupo, Brest desfrutou do apoio de

importantes nomes da crítica nacional e internacional120, transformando Buenos Aires em um

importante ponto de confluência. Ver y Estimar conseguiu agregar mais do que proximidades

estéticas e ideológicas. Romero Brest converteu em palavras as imagens que não poderiam ser

vistas, por conta do isolamento cultural vivenciado pelo país. O objetivo fundamental não era

apenas formar o gosto do público, mas também originar uma crítica de arte fundamentada. A

revista trazia a dupla missão de mapear as grandes exibições e publicações internacionais,

divulgando-as, assim como inventariar as principais obras de artistas europeus presentes em

coleções argentinas. Tal fato demonstrava que ao menos no que tange à arte européia, a

Argentina encontrava-se inserida no circuito internacional, com nomes como Renoir, Gauguin

e Goya, em coleções particulares. Cabia aos discípulos e colaboradores de Brest, a tarefa de

ver as exposições, escrever sobre cada uma delas, analisando as suas contribuições.

Surgida em abril de 1948 Ver y Estimar teve duas épocas: a primeira de 1948 até 1953,

com 34 edições e a segunda, de 1954 até 1955, com 10 números. Suas páginas deixaram

119 Jorge Romero Brest, “El arte argentino y el arte universal”. VER y ESTIMAR. Número 01, abril de 1948. p.12. 120 A partir de algumas edições de Ver y Estimar é possível compilar alguns colaboradores: Rafael Alberti (Buenos Aires), Damián Carlos Bayón, Blanca Stabile, José Pedro Argul (Montevidéu), Francisco Ayala (Puerto Rico), Córdova Iturburu (Buenos Aires), Jose Luis Romero (Buenos Aires), Guillermo de Torre (Buenos Aires), Margarita Sarfatti (Roma), Bruno Zevi (Roma), Hans Platschek (Montevidéu), Mathias Goeritz (México), Diogo de Macedo (Lisboa), Sérgio Milliet (São Paulo), Ángel Ferrant (Madri), entre outros. No final de 1948, Brest realiza sua terceira viagem à Europa, momento que aproveita para nomear correspondentes em cada uma das principais cidades que visitou: René Huyghe (Paris), Max Bill (Zurique), Lionello Venturi (Roma), por exemplo.

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entrever a pujante e urgente necessidade de aprenderem, os discípulos e o público

especializado, como ver e estimar criticamente a arte. E mais, prezar pela formação de um

colecionismo, apreender informação atualizada, analisar as políticas culturais, contribuindo

para traçar o caminho que arte seguiria no futuro. Caminho este construído a partir da história,

da teoria e da estética, dominando as reações sensíveis que levam ao conhecimento. Na

primeira edição de Ver y Estimar, de abril de 1948, Brest menciona a importância da liberdade

criadora, da crítica que transcende a simples estrutura de idéias para promover uma integração

do pensamento com a dimensão sensível:

Tan falso es, a juicio nuestro, reducir el acto creador a un juego mecánico de de factores exógenos, como afirmar la omnipotencia inventiva del artista. ¿Qué sería de él si no sublimara el barro de la vida, si no disparara sus flechas desde una posición firme en la tierra? No hay audacia en la historia del arte, aunque parezca individual desvarío, que se justifique por una adivinación genial: siempre se descubren en su napa de germinación las inconexas fuerzas colectivas que la originaron. 121

Mas, o grande desafio apontado pelo crítico era o de conseguir notar-se vivo, nas obras

vivas de seu próprio tempo, e mais do que isso, identificar quais eram essas obras. Coube a

Ver y Estimar estabelecer um perfil estético, que se modificou paulatinamente ao longo de sua

existência. Porém, a revista não adotou um modelo estético radical ou excludente. Na

primeira edição da revista ficou nítido seu caráter investigativo, de levantamento de

contribuições valorosas na arte. Romero Brest ainda não considerava a abstração como a

forma de expressão artística que a Argentina deveria adotar. Tratava-se de um movimento de

vanguarda de época, que deveria antes de tudo ser compreendida, ou melhor, sentida. Para

Brest, a crítica deveria enriquecer-se por seus fundamentos teóricos e por seu modo inteligente

de explorar, conhecer e conceber a realidade:

Consideramos a la teoría, la historia y la estética de las artes como formas de la crítica, cuya función es estimar valores. No hay una teoría o una técnica fuera del campo de los valores especialmente creados por el artista, ni hay una diferencia sustancial entre la crítica de lo pasado y lo presente, ni existe el pensamiento estético como algo que se pueda desprender del constante fluir y refluir de las realizaciones prácticas. Así justificamos el subtítulo de estos cuadernos.122

121 Jorge Romero Brest, “Punto de Partida”. VER y ESTIMAR. número 01, abril de 1948. p.6. 122 DOSIO, Andrea. Ver y Estimar. In: História de Revistas Argentinas. Buenos Aires: Asociación Argentina de Editores de Revistas. Tomo III.1999. pág.03.

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Um posicionamento mais nítido sobre a arte abstrata deu-se em 1949, após uma viagem

à Europa e em suas conferências em defesa da arquitetura moderna e da arte abstrata no

Museu de Arte de São Paulo, em 1950.

Até aproximadamente o número 34, Ver y Estimar manteve uma estrutura básica, com

seções regulares que garantiam a

continuidade do método

investigativo estruturado por

Brest. Seções que possuem o

nítido objetivo de estabelecer

critérios valorativos das obras,

realizando um mapeamento das

melhores contribuições artísticas

presentes em Buenos Aires. As

páginas iniciais eram destinadas

à publicidade dos mais variados ramos: galerias de arte, lojas esportivas e /ou de artigos

masculinos, joalheria, projetos imobiliários e etc.

Toda revista trazia também um folder, mencionando a estrutura da publicação e no verso

uma ficha para solicitar a assinatura do periódico.

Quarta página de Ver y Estimar. v.8, n.27, 1952.

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Ao tomarmos por modelo o número 26 de Ver y Estimar, de novembro de 1951, com o

intuito de exemplificar o conteúdo abordado, notamos uma organização padrão, que se repetiu

ao longo das 34 edições:

Camino de la observación: setor responsável pela análise de temas de ordem mais

complexa, a partir de fragmentos ou fichas sintéticas. No caso do número 26, Brest

propõe uma análise, ricamente ilustrada e exemplificativa, sobre a Primeira Bienal de

São Paulo, que, segundo o crítico, proporcionou uma visão das mais significativas

tendências da arte moderna.

Reseñas bibliográficas: apresentavam a contribuição de colaboradores com textos,

cuja temática, se vincula, na maior parte das vezes, ao tema monográfico de cada

número. A referida edição trouxe a análise de Córdova Iturburu sobre o livro Pintores

y grabadores rioplatenses de Jorge Romero de Brest, que havia sido recentemente

publicado pela Editorial Argos (1951). E também uma resenha de Alicia Puente sobre

a obra Pablo Curatella Manes escrita por Maurice Raynal, publicada pela Oslo em

1948.

Inventario: setor dedicado a apreciação crítica da obra de expoentes da arte européia-

Renoir, Gauguin, Tolouse-Lautrec, Degas- presente nas coleções públicas e privadas

de Buenos Aires. Este tópico foi suprimido em algumas edições.

Miscelánea: apresentava fragmentos críticos informativos sobre mostras ou livros

contemporâneos. A referida edição apresentou uma crítica sobre a exposição de

Massimo Campligi na Galerie de France, realizada por Damián Carlos Bayón,

ressaltando os fundamentos da arte abstrata e o neo-realismo.

Crítica: notas sobre exposições vigentes em Buenos Aires. No número 26, Raquel

Edelman trouxe as contribuições do artista Pedro Figari, com obras na Galería Van

Riel e na Librería Kraft; Brest analisou a mostra de Horacio Butler na Galeria Viau. Já

a exposição do jovem pintor alemão Hans Platschek, no Instituto de Arte Moderno

teve uma avaliação positiva de Rodolfo G. Bruhl, enquanto Celina Rolleri López

tratava dos desenhos e paisagens de José Cúneo em vigor na Galería Windsor de

Montevidéu.

Apostillas: comentários ou sucintas notas críticas sobre exposições. No caso da edição

mencionada, apresentou-se um breve comentário de Blanca Stabile sobre Margot

Portela e sucintas, porém rigorosas considerações de Brest sobre Pompeyo Audivert,

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Luis Seoane e, uma análise, um pouco mais extensa sobre Ernesto Farina, reproduzida

aqui na íntegra: Por primera vez expone un conjunto de sus telas ERNESTO FARINA, en la Galería

Bonino. Pintor de procedencia italiana en la concepción y en la factura, con algunos toques de imaginación vagamente superrealistas y una gran mesura. Sensible y fino, dicen muchos, y no se equivocan. Muchas virtudes pero falta la esencial: la que permite superar el campo de lo puramente sensible y entrar en el campo de la gran conmoción, es decir, la virtud de creación de formas precisas, plenas de contenido existencial y al mismo tiempo capaces de sugerir esencias definitivas. Farina se repite porque no piensa suficientemente su pintura. Y

por lo mismo se satisface, hasta donde puede hacerlo un artista de verdad como es él, con signos de emoción que carecen de verdadera profundidad.123

Quanto à estrutura formal, Ver y Estimar apresentou mudanças no layout da capa. Até o

exemplar de número 9, o título apresentava um formato mais solto, próximo a uma letra

cursiva, sem um molde rígido, a presença mais forte do desenho no plano de fundo. A partir

da revista de número 10, adota-se a impressão sobre cor pura, com ênfase no texto.

Para Andrea Giunta, a mudança formal da revista também pode ser associada a uma

alteração no âmbito das idéias. A partir desse momento, teria ocorrido uma guinada em defesa

da arte abstrata: Entre fines de 1948 y los primeros meses de 1949, JRB realiza su tercer viaje a Europa, en el recorre Italia, Francia, España, Portugal, Bélgica, Holanda, Suiza e Inglaterra. El número 9 señala un momento de transición. Registra el impacto de lo que JRB ve en Europa, en el mismo momento en que el contacto se produce. Desde París, con fecha 15 de abril, escribe un corto ensayo en el que funde sus apreciaciones sobre los métodos sociológicos de aproximación al arte y los cambios que percibe en el arte europeo. Lo que JRB ve y valora es que los artistas no están ya guiados por búsquedas subjetivas e individuales. Los “jóvenes progresistas”, sostiene, quieren aportar formas que universalicen el lenguaje, contribuyendo así a la formación de una lengua capaz de dar cuenta del mundo actual y de sus ideales, accesible a un mayor número de personas. En esta nueva definición estética se enlazaban una actitud vital, una concepción social y un ideal político. 124

123 BREST, Jorge Romero. Ver y Estimar. Cuadernos de Crítica Artística. v.7, n.26, p.64, 1951. 124 GIUNTA, ANDREA. Vanguardia, Internacionalismo y Política: arte argentino en los años 60. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2008. p. 23

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Antes da referida viagem, Brest deixou constituída a associação Ver y Estimar Sociedad

de Responsabilidad Limitada como o nítido objetivo de explorar e editar a revista Ver y

Estimar. A primeira reunião dessa associação se deu em 06 de julho de 1949, após o regresso

de Brest da Europa.

A publicação de número 13 de Ver y Estimar, de outubro de 1949, trouxe uma edição

dedicada à análise do movimento abstrato, em um apoio nítido a essa vertente. A revista

apresentou, pela primeira vez, a colaboração de Lionello Venturi com um texto sobre os

fundamentos da abstração. Tal participação foi resultado da viagem realizada por Brest em

1948, quando o crítico se propôs a desvendar o interesse que a revista despertaria nos

principais núcleos intelectuais europeus, agregando novos colaboradores.

Com um caráter informativo e contemporâneo, Ver y Estimar proporcionava ao leitor

uma dimensão local e internacional. Ainda na mesma edição de outubro de 1949, Blanca

Stábile, que se dedicou em várias oportunidades aos abstratos, deixava sua contribuição sobre

o recém publicado livro de Michel Seuphor, Arte Abstrata, na seção Reseñas bibliográficas.

Stábile retomou os artistas e argumentos utilizados por Seuphor, entrosando o leitor com as

produções e vocabulários típicos desse movimento artístico, quase que simultaneamente a

publicação do livro na Europa.

Dois acontecimentos contribuíram para que a arte abstrata tivesse grande centralidade no

número 13 da revista: duas exposições realizadas meses antes em Buenos Aires, ou seja, De

Manet a nuestros días, no Museu Nacional de Bellas Artes, e Arte Abstracto, no recém

inaugurado Instituto de Arte Moderno (IAM). Como já comentado anteriormente, as duas

exposições geraram polêmicas no cenário artístico argentino. Ambas foram duramente

criticadas pela revista Sur, embora fossem representativas dos artistas que atuavam no cenário

parisiense. As duas mostras foram sustentadas por catálogos bem estruturados, com

ilustrações e textos didáticos sobre a origem e evolução da arte moderna, mas não foi

suficiente. Ver y Estimar analisou as duas exposições como se ambas compusessem um só

corpo, ainda que uma tivesse sido organizada pelo governo francês e a outra por Degand. As

obras foram divididas em duas vertentes: uma linha de abstração lírica com obras de Tal Coat,

Marchand, Atlan, André Masson, Manessier, Le Moal, Singier, entre outros, tendo sido

analisadas por Raquel Edelman; e uma linha mais concreta formada por composições de

Delaunay, Léger, Kandinsky, Magnelli, Herbin, Vantorgerloo, etc., com texto de Samuel F.

Oliver. Mais do que promover uma valoração crítica das obras apresentadas, os dois artigos

tinham por finalidade elucidar as linhas evolutivas, as qualidades expressivas, filiações e

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valores formais, dando corpo a uma análise formalista, que era característica marcante de Ver

y Estimar.

O movimento concreto local tornou-se marcante nos números 14 e 15 de novembro de

1949. Blanca Stábile era a colaboradora responsável pela arte concreta. Sua análise sobre as

obras de Kosice, Iommi, Maldonado, etc., deixava nítido que, aos argentinos, interessava a

vertente racionalista empreendida por Mondrian. Mas, a outra linha defendida por Seuphor, a

romântica instintiva representada por Kandinsky, também foi analisada em seu ensaio. Ver y

Estimar dedicou-se ao movimento abstrato local, mas também ao desenvolvimento e

promoção da arte abstrata em outros países como o Brasil e México, por exemplo. Entretanto,

em seus primeiros números, Ver y Estimar dedicou-se muito pouco à América Latina. Os

objetivos da revista estavam mais focados nos expoentes da arte européia, nas resenhas

bibliográficas sobre artistas e no inventário dos acervos argentinos. A grande mudança se dá a

partir do número 10 da revista, quando as resenhas bibliográficas passaram a tratar da arte

colombiana, cubana ou da arquitetura peruana, desvelando um cenário positivo da arte latino-

americana. Tal fato contrapunha-se a visão desalentadora que Brest relatara no primeiro

exemplar da revista, sobretudo, em relação à arte argentina. Mas, as análises mais recorrentes

foram sobre artistas e obras provenientes do Uruguai, México e Brasil. Com esse último, Brest

desenvolvera laços mais estreitos desde o início dos anos de 1940, entre outros motivos, por

conta da exposição Veinte artistas brasileños organizada por Marques Rebêlo e levada a

Argentina com a colaboração de Emilio Pettoruti, então diretor do Museo Provincial de Bellas

Artes de La Plata. A partir dessa exposição, Brest compôs o livro La pintura brasileña

contemporánea editada pela Poseidón em dezembro de 1945.

Como visto no Capítulo II, também a edição dedicada a I Bienal de São Paulo, marcou

a grande proximidade de Brest com os principais eventos artísticos que movimentaram a

América Latina. No caso do Brasil, por exemplo, a sua participação no júri da Bienal de 1951,

assim com seu compromisso com o debate em torno da abstração ajudaram a reforçar a

premissa que pautou a sua trajetória intelectual. Dessa forma, é preciso, sobretudo conhecer

para saber apreciar, compartilhando de juízos e valores, assim como de perspectivas

diferenciadas, ao aquilatar o suporte de colaboradores pertencentes a realidades artísticas

diferenciadas. O número 31 de Ver y Estimar publicada em abril de 1953, exatamente cinco

anos após o primeiro exemplar de abril de 1948, finalizou qualquer dúvida que por ventura

existisse sobre a forma de expressão artística que a Argentina deveria assumir. Se em 1948

havia certo receio com a abstração, em 1953, a revista já possuía um programa estético

definido. A extensa viagem realizada por Brest à Europa (1948-1949) modificou seus critérios

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de apreciação, estimando o movimento iniciado por Kandinsky e Mondrian, que deu origem a

arte concreta que era a vertente da abstração apreciada por Brest. Para o crítico o movimento

concreto era o mais importante do momento, por ser o único que respondia a um sistema de

idéias em consonância com a concepção de mundo presente. Porém, nem a arte concreta

deveria ser defendida cegamente, sem critérios, sem valorações: “Desgraciado de él si cree

tener alguna vez ideas claras y definitivas, pero más lo será todavía si por escepticismo

renuncia a poseer ideas, aunque sean provisionales. ¿No es éste el suplicio que genera el

progreso del espíritu?”125

A quarta viagem 126realizada pelo crítico entre 1950 e 1951 teve por roteiro novamente a

Europa e os Estados Unidos e apenas consolidou a admiração de Brest pelos dois mestres da

abstração, Kandinsky e Mondrian. Em forma de cartas a uma discípula com o objetivo de

demonstrar a trajetória e importância de tal movimento, Brest escreveu Qué es el arte

abstracto (Editorial Columba, 1953). Segundo Brest, avaliar o cenário artístico europeu era

fundamental para entender seu legado e as formas que assumiu na America Latina. Em meio

às viagens, estudos e pesquisas, houve também a publicação de livros gestados antes e

paralelamente a sua atuação em Ver y Estimar, desnudando um processo profícuo e intenso de

dedicação à crítica de arte:

Otros libros había publicado en ese lapso, los que demuestran la variedad de mis intereses: Prilidiano Pueyrredón (Editorial Losada, Buenos Aires, 1942); David (Editorial Poseidón, Buenos Aires, 1943); La pintura brasileña contemporánea (Id., 1943); Lorenzo Domínguez (Id., 1944); así como los tres primeros tomos de mi Historia. Pero fue al volver de mi cuarto viaje a Europa (1951) que terminé el libro que iba a cimentar mi prestigio, sobre todo en América Latina: La pintura europea contemporánea (1900-50) editado por el Fondo de Cultura Económica de México. Lo escribí porque necesitaba ordenarme, pero también porque comprendí que se necesitaba una versión actualizada del proceso del arte en el viejo continente. En él me ocupo de la pintura solamente y excluyo los nuevos movimientos en ciernes, a los que pensaba dedicar un segundo volumen que nunca llegué a escribir.127

125 Jorge Romero Brest. “A Damián Carlos Bayón, discípulo y amigo”.Caja1, Sobre 6, Archivo Jorge Romero Brest, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires. 126 Romero Brest realizou sua primeira viagem a Europa aos 29 anos, em fins de 1933 e início de 1934, logo após seu casamento, quando viu despertada uma grande paixão pela arte ocidental. Em 1938 realizou sua segunda viagem à Europa, momento em que se dedicou ao estudo da arte medieval, mais especificamente a pesquisa sobre a arte bizantina e os cemitérios cristãos europeus. Em sua terceira viagem ao continente europeu (1948-1949) dedicou-se aos estudos e fundamentos da arte abstrata. In: Jorge Romero Brest. “A Damián Carlos Bayón, discípulo y amigo”.Caja1, Sobre 6, Archivo Jorge Romero Brest, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires. 127 Ibídem.

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Em torno de Ver y Estimar, despontaram outras atividades e instituições que

prolongaram as propostas encabeçadas pela revista, ações essas que perduraram muitos anos,

mesmo após seu encerramento.

Apesar da situação política e artística vivenciada pela Argentina, Brest acreditava em

dias melhores. Ver y Estimar constituía uma oportunidade de fomentação da atividade crítica.

Mas faltava um projeto, mais ousado, cujo esboço só poderia ser desenvolvido às margens do

peronismo, para que no momento certo, fosse colocado em prática.

A oportunidade surgiu em 23 de setembro de 1955, quando um golpe militar destituiu

Juan Domingo Perón de seu cargo. Em outubro do mesmo ano, Brest encerrou as atividades

de Ver y Estimar para ascender ao cenário oficial como interventor do Museo Nacional de

Bellas Artes, fixando aliança com o novo Estado, encabeçado pelo general Eduardo Lonardi.

Três anos depois, em 1958, Brest foi nomeado diretor do mesmo museu, fato que constituiu

uma experiência oportuna e emblemática em sua trajetória profissional e intelectual:

Pues por primera vez puse en práctica la teoría. Me acostumbré a manejar obras de arte, a moverlas de un lugar a otro, a relacionarlas según necesidades de la contemplación, a conocerlas y estimarlas como objetos, y esto no digo que modificó mis ideas pero sí que les dio densidad y más que nada operatividad. En efecto, ahora me doy cuenta de que mi paso por el Museo, con independencia de todo cuanto se ha dicho a propósito de mi gestión, es decir que lo transformé en un centro viviente, fue benéfico para mí. Tal vez haya sido el factor decisivo para obtener mi propia identificación.128

Com a Revolución Libertadora, despontava um novo caminho para as artes, mais otimista,

uma nova gestão cultural. Brest desde sua intensa pesquisa e produção em Ver y Estimar

adquirira a compreensão de que arte também se afigura como instrumento político:

El país acaba de pasar por una dura prueba: más de diez años de una dictadura que, además de entorpecer el progreso social y diezmar la economía, trató de aniquilar el espíritu por todos los medios posibles, tergiversando la historia, enalteciendo falsos valores y fomentando bajos instintos. Lo que significó un encerramiento suicida. Pero las fuerzas vitales no estaban agotadas, como lo prueba la magnífica Revolución Libertadora de setiembre, que le permitirá volver a ponerse a tono con los países civilizados del orbe y, en el campo del arte plástico, esta exposición que

128 Jorge Romero Brest. “A Damián Carlos Bayón, discípulo y amigo”.Caja1, Sobre 6, Archivo Jorge Romero Brest, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires.

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Revista Arturo: Raúl Lozza, Edgar Bayley, Arden Quin, Tomás Maldonado, Rhod Rothfus y Gyula Kosice. Un solo número, 1944.

Maldonado, Tomás. Sin título (Untitled), 1945. Témpera s/ carton, pegada s/esmalte s/ cartón 79x60 cm. Colección privada. Buenos Aires.

revela cuáles han sido los esfuerzos de los jóvenes pintores y escultores para hablar el libérrimo lenguaje de la modernidad. 129

3.2. O Grupo MADÍ e Gyula Kosice: o concretismo na Argentina.

Como mencionado

anteriormente, o cenário artístico

argentino, após a Segunda Guerra

Mundial, encontrava-se debilitado.

Uma tomada de posição frente à crise

foi realizada de forma mais

contundente pelos artistas concretos.

Segundo Romero Brest, desde os anos

de 1944-45 esses artistas dispunham de

informações fragmentadas do

movimento europeu e, em 1948, já eram nítidas, nas obras desses concretos, as influências de

Vantongerloo, Max Bill e Van Doesburg, principalmente nas composições de Claudio Girola

(1923-1994) e Tomás Maldonado (1922), após retorno

de viagem feita à Europa. Nesse contexto, destacam-se

ainda artistas como Alfredo Hlito (1923-1993), Lidy

Prati (1921-2008), Ennio Iomi (1926-2013) que

rapidamente expressaram um viés concretista, adotando

de imediato uma posição de legitimidade e se

diferenciando dos fauvistas, expressionistas e cubistas

pelo esgotamento da experimentação. Some-se a isso a

consciência sobre a necessidade de manter um olhar não

somente para a realidade nacional, mas também para o

cenário artístico mundial. Comenta Brest:

¿Para qué iban a practicarlos a medias sobe pretexto de respetar la tradición y las exigencias de la comunidad, cuando éstas eran nada más que paja? Los sudamericanos tenían que aprender en Europa tanto como fuera posible, y aprender a hacerlo bien. Algo similar debió pensar la pintora

129 Jorge Romero Brest, “Palabras liminares”, en XXVIII Exposición Bienal Internacional de Arte de Venecia, 1956, pp. 7-8.

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Maldonado, Tomás Sin título (Untitled), 1948 Oil on canvas; 23 3/8 x 16 3/8 in. Collection of Raúl Naon, Buenos Aires, Argentina© Tomás Maldonado.

Girola, Claudio. Sin titulo. Metal, sin definir cm. 1962

brasileña Tarsila do Amaral, cuando a la vuelta de un viaje a Europa recomendó a sus compatriotas que hicieran un período de ‘servicio militar obligatorio en el cubismo’. Nuestros creadores hicieron su servicio militar en el concretismo. Lo cierto es que por primera vez los europeos se interesaron por una manifestación artística argentina. En 1953, Max Bill llegó a decirme que después del grupo argentino dirigido por él, en Zurich, sobresalía netamente el de Buenos Aires. Y en ese mismo año tuvieron éxito los nuestros exponiendo en el Museo de Arte Moderno de Río de Janeiro y en el Stedelijk Museum de Amsterdam. Tuve la satisfacción de presentarlos en ambas exposiciones, haciendo notar cómo sobresalían “por el empeño en obtener formas que configuran un lenguaje universal, empeño que los conecta con los movimientos más progresistas de Occidente…”130

O grupo de artistas abstratos na Argentina vivenciava uma série de agregações e

dissidências desde os princípios dos anos de 1940, sendo um importante marco a publicação

da revista Arturo (de Arte Abstrata) em gestação desde 1941. Em 1944, foi publicado o único

número da revista com textos ou poemas de Arden Quin, Bayley, Vicente Huidobro, Kosice,

Rothfuss, Mendes, Torres García e reproduções de Kandinsky, Mondrian, Maldonado e Vieira

da Silva.

A vertente concreta imediatamente respondeu à

publicação com o Manifiesto de Arte Concreto Invención

no qual afirmavam que:

La era artística de la representación toca a su fin…la materia prima del arte representativo ha sido siempre la ilusión. Ilusión de espacio, de expresión, de realidad, de movimiento… Las experiencias estéticas no representativas… han sido una exaltación de los valores concretos de la pintura… Exaltar la óptica decimos nosotros… El arte concreto habitúa al hombre a la relación con las cosas y no con las ficciones de las cosas…131

130 ROMERO BREST, Jorge. Arte en la Argentina. Buenos Aires: Paidós, 1969. p. 34 131 Blanca Stabile, “Para la historia del arte concreto en la Argentina”, Ver y Estimar, 2ª. época, Número 2, 1954.

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Girola, Claudio. Rombo plano o custodia Bronce, 100x84x20 cm.

Kosice: “El água y la lluvia van adheridos a mi nombre.”

Como já mencionado anteriormente, entre os artistas concretos, destacava-se Tomás

Maldonado, segundo Brest, por sua potência criadora, temperamento forte e dramático.

Apesar do refinamento das zonas cromáticas de suas criações e da tênue severidade de suas

estruturas lineares, seus quadros apresentam áreas com

certo grau de tensão, sobretudo, pelos contrastes. Já Claudio

Girola, se destacava entre os escultores concretos pelo seu

forte apego aos princípios matematizantes da criação e

extrema habilidade no manuseio do metal. Sua formação

começou junto ao seu pai que era escultor cinzelador e

ourives. Suas primeiras esculturas figurativas logo se

converteram em planos despregados no espaço,

apresentando em alguns casos incisões ou aquisição de

direções oblíquas, horizontais ou curvas. Em 1946, realizou

a sua primeira exposição como integrante do grupo Arte

Concreto, juntamente com Alfredo Hlito e Maldonado. Em 1949, passou a residir em Paris e

Milão, momento em que teve maior contato e aprendizado com o artista Georges Vatongerloo

que influenciaria determinantemente a sua

produção. Girola pretendia dar por superada as

etapas figurativas e abstratas na arte, dando vazão a

criações impares advindas de complexas

elaborações intelectuais e poéticas.

Do Grupo Arte Concreto Invención,

surgiram os dissidentes que deram origem ao

Movimiento Madí, liderados por Arden Quin e

Gyula Kosice. O objetivo principal era opor-se a

uma arte estática, lutando por composições que

saíssem da base tradicional ao apresentar

articulações e movimento. Para os artistas Madí, a

tecnologia e a ciência caminhavam conjuntamente

com a arte, ao abrir novas possibilidades no campo

criativo, permitindo ao artista e espectadores vivenciar uma atmosfera futurista atrelada a um

imaginário de ficção científica. Assim, o termo Madí englobaria em suas iniciais o

Movimento, a Abstração, a Dimensão e a Invenção, conceitos personificados em novas

formas de representação, ou seja, o uso de polígonos regulares ou irregulares: triângulos,

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Quin, Arden. Coplanal 1 Diábolo. A Geométrie Variable (1945). Óleo sobre madera. – 38 x 46,5 cm.

Kosice, Gyula. De la Ciudad Hidroespacial,

proyecto de 1960. Técnica: Acrílico.

losangos, pentágonos, hexágonos, formas individuais ou justapostas das quais o círculos

também fazem parte. Um exemplo contundente desse conceito é obra de Carmelo Arden Quin,

Coplanal 1 Diábolo. A Geométrie Variable de

1945.

Assim, a proposta era superar a ausência de

universalidade da arte concreta por meio da

invenção e criação de objetos eternos e de valor

absoluto. Incidiam nesse conceito, visivelmente as

influências do construtivismo russo e também do

futurismo italiano ao fazer uso de uma sintaxe

pictórica baseada no plano e nas formas

geométricas. Ao mesmo tempo buscava-se uma

ruptura com os formatos quadrados e retangulares. A idéia de ruptura com o marco ortogonal

libera a obra de sua relação com o fundo, permitindo ao núcleo, que agora adquire as mais

variadas formas, vivenciar o espaço como qualquer outra natureza.

De acordo com o Manifiesto de 1946:

Arte Madí es la organización de todos os elementos propios de cada arte en su continuo. Con lo concreto comienza el gran período del arte no figurativo, en el cual el artista sirviéndose del elemento y de su respectivo continuo crea la obra en toda su pureza. Pero en lo concreto ha habido una falta de universalidad y de consecuencias de organización. Se ha retenido la superposición, el cuadro rectangular, el atematismo plástico, el estatismo, la interferencia entre volumen y contorno… de aquí el triunfo de los impulsos instintivos contra la reflexión, de la intuición contra la conciencia… de la metafísica contra la experiencia…Madí confirma el deseo del hombre de inventar objetos, al lado de la humanidad luchando por una sociedad sin clases que libera la energía y domina el espacio y el tiempo en todos los sentidos, y la materia en sus últimas consecuencias.132

132 Blanca Stabile, “Para la historia del arte concreto en la Argentina”, Ver y Estimar, 2ª. época, Número 2, 1954.

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Para Romero Brest, o Manifiesto Madí, desenvolveu um grande viés intelectual que, na

prática, não correspondeu a obras com uma grande potência criadora. Gyula Kosice seria

possivelmente a única exceção, pois abandonara os princípios rígidos do Manifiesto, dando

lugar ao ímpeto criativo guiado por sua própria percepção da realidade. Na obra de Kosice se

vislumbra mundos em movimento que remetem a energia permanente da vida ou do universo.

É uma particularidade do artista, demonstrar que a natureza não precisa ser necessariamente

enfrentada ou conquistada, pelo contrário: a natureza deve ser exaltada como um elemento

fundamental capaz de ser vivida e compartilhada ludicamente.

3.3. Instituto Torcuato Di Tella: uma usina cultural de vanguarda.

A Fundação Torcuato Di Tella foi criada em junho de 1958, como uma iniciativa dos

irmãos Guido e Torcuato, em

homenagem a memória do pai Torcuato

Di Tella, famoso industrial e engenheiro.

O Instituto, financiado pela Fundação e

pelo apoio de organismos nacionais e

estrangeiros, (como as Fundações Ford e

Rockefeller, por exemplo) trazia, como

afirma Romero Brest, o objetivo claro de:

Promover, estimular, colaborar, y/o intervenir en toda clase de iniciativas, obras y empresas de carácter educacional, intelectual, artística, social y filantrópico"; y el Instituto tenía "el propósito fundamental de promover el estudio y la investigación de alto nivel, en cuanto atañe al desarrollo científico, cultural y artístico del país, sin perder de vista el contexto latinoamericano en que la Argentina está ubicada".i

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Minujin. Marta. Importación Exportación, Instituto Di Tella, Buenos Aires, 1968. Archivo Marta Minujin.

Para consolidar essa missão, a entidade contava com dez centros de investigações

científicas e artísticas especializados em distintas temáticas: artes, economia, ciências sociais e

urbanismo.

Durante os anos de 1960 a 1962, foram outorgados os prêmios Nacional e

Internacional denominados Instituto Torcuato Di Tella, que pela primeira vez, traziam ao país,

como jurados, eminentes críticos estrangeiros que fizeram parceria com Brest (que ainda

dirigia o Museu Nacional de Belas Artes nesta época): Lionello Venturi, Giulio Carlo Argan e

James Johnson Sweeney sucessivamente.

Com o prêmio Internacional dedicado a escultores, em 1962, o panorama artístico

argentino modificou-se. Houve um grande intercâmbio cultural, permitindo que público e

artistas nacionais conhecessem e desfrutassem das obras de artistas representativos como:

Kenneth Armitage, Lygia Clark, Pietro Consagra, John Chamberlain, Lucio Fontana, Nino

Franchina, Louise Nevelson, Eduardo Paolozzi, Gio Pomodoro, Pablo Serrano e William

Turnbull.

No que diz respeito ao Centro de Artes Visuais (1963-1969), ele desenvolveu suas

atividades sob as colaborações e diretrizes de Lionello Venturi e Romero Brest, modificando

inevitavelmente a percepção dos fenômenos

artísticos no país. Brest, então diretor do Centro,

foi responsável por transformá-lo em sinônimo

de vanguarda e polêmica, assim como em um

dos ícones mais emblemáticos dos anos sessenta.

Entre maio e junho de 1965, o Instituto

abrigou o que Romero Brest denominara de “el

manifiesto de la nueva actitud creadora em

Buenos Aires”, ou seja, La Menesunda,

experiência de recriação da vida cotidiana

elaborada por Marta Minujin e Rubén

Santantonín. A obra teve também a colaboração

de Pablo Suárez, David Lamelas, Rodolfo

Prayón, Floreal Amor, todos objetuais e

Leopoldo Maler como cineasta.

La Menesunda foi responsável por um rompimento com os moldes de expressão

artística vigentes ao colocar espectadores e artistas em uma situação extremamente ambígua.

O público compareceu massivamente, ainda que a crítica tenha sido adversa. Segundo Brest,

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os artistas, em contato direto com o público, criaram uma instalação dotada de uma série de

ambientes a serem desfrutados em diversas situações inesperadas:

Un corredor con luces de neón, una habitación con una cama y una pareja hombre y mujer desnudos, una enorme cabeza en cuyo interior se maquillaba a los visitantes, una cápsula de vidrio en la que se cubría a los espectadores con papel picado y una cámara fría (a varios grados bajo cero), entre otras divisiones. Tal vez le corresponda mejor el nombre de “recorrido” a tales situaciones, que se realizaron en el Instituto Torcuato Di Tella, entre el 18 de mayo y el 6 de junio de 1965, siendo destruidas después las instalaciones que cubrían una superficie de 150 metros cuadrados, dispuestas en dos pisos. Se llamó “La Menesunda” además, usando una palabra del argot porteño que significa confusión, porque fue un capricho, un disparate, un modo de poner al contemplador en situaciones inesperadas, con el ánimo de intensificar su existir más allá de dioses, ideas, sentimientos, mandatos y deseos.133

Por iniciativas dessa ordem, o Instituto converteu-se em um hiato cultural, constituindo

um centro de investigação e disseminação de idéias avançadas em um cenário genuinamente

plural, influenciando de forma ímpar as várias manifestações de cunho vanguardista. O

Instituto também contribuiu para a formação de várias gerações de artistas, profissionais e

acadêmicos de projeção local e internacional como: Marta Minujin e León Ferrari (Arte),

Gerardo Gandini e Les Luthiers (Música), Antonio Seguí (Pintura), Tulio Halperin Donghi e

Ezequiel Gallo (História), Héctor Diéguez e Rolf Mantel (Economia), Clorindo Testa

(Arquitetura), Natalio Botana (Ciência Política) e Juan Carlos Torre (Sociologia), entre outros.

133 ROMERO BREST, Jorge. Arte en la Argentina. Buenos Aires: Paidós, 1969. p.75.

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CAPÍTULO IV: A ORIGEM DO PENSAMENTO ABSTRATO

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4.1. Importantes considerações de Romero Brest e Antonio Bento.

Jorge Romero Brest se dedicou a compreender o fenômeno estético da arte abstrata, sua

significação no período histórico no qual se insere, assim como suas repercussões e

contribuições para a História da Arte Argentina e da América Latina, considerando o

panorama artístico brasileiro e a importância das bienais. Tal postura ratifica a concepção de

que fazer história da arte é exercer também a crítica de arte.

O crítico argentino, em seus textos, convida o leitor a pensar sobre os mecanismos de

criação de uma obra de arte. Mantém um diálogo aberto e direto com o seu leitor e afirma que

nas academias ou escolas de Belas Artes, a aprendizagem da arte começa pela cópia dos

modelos vivos ou inertes. As esculturas clássicas encerram em si grande habilidade técnica na

conquista da representação verossímil, formas feitas, mas que segundo Brest, imobilizam o

espírito criador. Com os modelos vivos ocorre algo diferente, embora a imobilidade também

se concentre em formas mortas, pois o olho do artista, em vez de recrear os signos espirituais

do modelo na forma, limita-se apenas a registrar o que vê. O método criativo mais adequado

deveria agir inversamente. Ao invés de partir dos elementos, deveria partir do espírito, como

fazem as crianças que vão encontrando os meios adequados de expressão à medida que

amadurecem o pensamento sobre o que desejam expressar. Entretanto, a idéia disseminada

pelo crítico não é buscar uma forma de representação semelhante às infantis, mas descobrir

nesta ingênua posição uma verdade que, por distintas razões, manteve-se oculta aos adultos:

El verdadero artista, sin embargo, trabaja como los niños, y por ello la naturaleza animada o inanimada sólo le proporciona los medios para dar vida a una expresión que surge de su propia subjetividad. No piense que representa el mundo concreto por lo que es en sí, como materia y forma; piense que al representar-lo encuentra el apoyo que necesita para expresarse. Sé que le podrá parecer excesivamente sutil el distingo, pero ¿es lo mismo creer que la expresión surge de la representación de las cosas, por el mero hecho de ser fielmente representadas, o que al representarlas se exterioriza una expresión que nace y se desarrolla en la intimidad del artista? En el primer caso se rebaja al creador; cuando más, se le reconoce cierta habilidad para transponer esa realidad concreta a la obra. En el segundo, se lo estima como se debe y, lo que es más importante, se establece el equilibrio entre el sujeto y el objeto.134 Completa Brest:

134 ROMERO BREST, Jorge. Así se mira el arte moderno. Buenos Aires: Beas Ediciones, 1993. p. 70

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¿Comprende Ud. que es tan importante la calidad del sentimiento como la capacidad de expresarlo? ¿Qué hace Ud. cuando, presa de una emoción, quiere comunicarla? ¿No busca en el repertorio de su idioma las palabras adecuadas? Lo mismo hace el artista, busca las formas adecuadas, que sólo van a serlo si responden tanto al sentimiento que lo embarga como al sentimiento que debe producir en quien las contemple. Si fuera necesario solamente sentir, ¿qué hombre no podría ser artista en alguna medida? Mas se trata de sentir y comunicar, lo que complica enormemente la faena.135

Segundo Brest, a representação resulta na substituição de uma coisa por outra e o artista

nunca substituí. O artista não concebe o que sente, ainda que observe a realidade, mas

expressa uma emoção condensada em uma idéia e para expressá-la se apóia na imagem do

objeto.

A materialização das emoções vivenciadas pelo artista, o seu processo de comunicação

ocorre, desde a Antiguidade, através de formas presentes na natureza. A natureza e tudo aquilo

que o homem originou a partir de produtos naturais configuram o sistema de formas objetivas

para o pintor ou escultor. Portanto, de acordo com Brest, toda a dinâmica da expressão

artística incide na relação entre a maneira que o artista sente e planeia a vida. O sentir

proporciona o extrato emotivo, enquanto o conceber permite a conformação e a comunicação,

convertendo a arte em uma linguagem, ou seja, o sentido espiritual da arte, como se emanara

apenas do artista:

Si ahora estos artistas abstractos y concretos no se apoyan más en los objetos visibles para crear sus imágenes, es porque se ha modificado también el carácter de la expresión espiritual, que ya no puede referirse a ninguna fuerza de inmanencia vital o de trascendencia sentimental o espiritual que se funde en la experiencia sensible.136

Brest em seus escritos se dedicou a analisar os artistas que se tornaram referência no

emprego de formas plenas, robustas e espontâneas na cor. Tais artistas predominaram na Itália

e na França, fato decorrente da presença de uma tradição mediterrânea de objetividade

sensual. Alberto Magnelli, para Brest, é o artista que conserva a materialidade das formas

através de uma linha potente, uma matéria densa, cores nítidas, baixa valorização tonal e

acordes perfeitos. Ao mesmo tempo, que o artista faz uso de certa dureza, de um rigor

135 ROMERO BREST, Jorge. Así se mira el arte moderno. Buenos Aires: Beas Ediciones, 1993.p.71. 136 Ídem. P.111.

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representativo, ele não descarta o sentimento. Suas formas ainda que não se assemelhem a

nada, parecem recrear a natureza, cuja característica é apresentar objetos com vida potencial e

movimentos restringidos. Imagens ordenadas por meio de ritmos dinâmicos, compondo um

espaço único, sem os limites construídos a partir do uso da perspectiva, no qual pesadas

formas parecem se movimentar. Magnelli não faz uso nem da régua, nem do compasso, mas

pinta com o pulso leve e sereno que lhe permite criar formas aparentemente geométricas. O

artista originou um organicismo latente, uma espécie de força oculta que encerra cada forma e

a própria composição. Segundo Brest, o observador se vê engendrado por este mundo e

embora não busque encontrar referenciais da natureza, percebe não só a criação de um mundo

novo, mas a substituição de um mundo conhecido por outro com caracteres similares:

Por eso no vacilo en clasificar a Magnelli como un naturalista, desde el punto de vista de la actitud aunque falte la naturaleza. Y como él tantos pintores en cada uno de los cuales se advierte una personal ecuación de términos de experiencia, de ideación y de fantasía. Lo que quiero destacarle es que, no obstante la falta de representación, perdura en ellos algo que podría llamar el mecanismo abstracto de la representación, es decir: los ritmos, los modos de disponer las formas, que recuerdan los objetos orgánicos e inorgánicos, según los casos, del mundo visible. Magnelli es italiano, como Ud. sabe, y sufrió la influencia del futurismo, de modo que es fácilmente comprensible esa mezcla de sentido del espacio, necesariamente espiritual, y de sentido materialista de los volúmenes137

Segundo Brest, é possível estabelecer ainda alguma correlação entre a obra de

Magnelli e Léger, embora o último seja representativo em quase todas as etapas de sua

produção artística. Léger teve a faculdade de prover as suas imagens de uma fria potência

interior, fixando-as como claras composições que excluem os ritmos orgânicos quase em sua

totalidade.

Ainda segundo Brest, outros artistas menos rigorosos no “controle” dos sentimentos,

sentem mais a dinâmica interior das formas e tendem a converter a pintura em complexo jogo

de signos, através dos quais expressam seus estados de ânimo plenamente individuais. Tais

artistas criam formas abstratas, mas em vez de abstraírem esquemas essenciais e objetivos,

abstraem de si mesmos esquemas subjetivos, sentimentais, apoiando-se na necessidade de

totalizar a vida no estremecimento de um instante:

137ROMERO BREST, Jorge. Así se mira el arte moderno. Buenos Aires: Beas Ediciones, 1993. p.116.

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Los alemanes, especialmente, militan en esta dirección, fieles a la tradición expresionista. Un calígrafo de la emoción como Hans Hartung, que se expresa con trazos curvos sobrepuestos en los que se descarga y con manchas que los apoyan, como si se desplazara en un espacio virtual de dimensiones indefinidas; un constructor de formas primitivistas que conservan rastros representativos, unidas mediante espacios de color plano, como Willi Baumeister; un geómetra más decidido, creador de laberintos rítmicos en espacios sugestivos que parecen embudos a veces, como Theodor Werner; un lírico más fantástico pero menos constructor, demasiado sujeto todavía a sus reacciones sensibles, como Fritz Winter. Los cuatro ejemplifican convenientemente la tendencia.138

Consoante Antonio Bento, o abstracionismo apenas entrou em voga em Paris e nos

demais centros europeus, após a Segunda Guerra Mundial, embora tivesse seu princípio na

Europa, após o cubismo, com os trabalhos de Kandinsky, Mondrian e outros. Os artistas

assumiram uma posição introspectiva, voltando-se para seu mundo interior, “numa tentativa

de fugir dos problemas, das inquietações e dos infortúnios desencadeados pela disputa

imperialista. Situação bastante similar acontecera com o romantismo, após a Revolução

Francesa”.139

No caso da abstração lírica, além de uma natureza antropológica, ela possui, segundo

Bento, sua origem ligada à psicologia e a amplas manifestações da alma humana. Nesse

quesito, são importantes as contribuições da psicologia de Jung e Freud, tanto para a arte lírica

como geométrica. O mesmo pode afirmar-se em relação à arte gestual, pois conforme Bento,

uma pincelada, meramente gestual, obedece, na verdade, a uma decisão subjetiva, apesar da

posição de alguns críticos em ignorar os conhecimentos psicológicos, censurando e

combatendo tachistas e gestualistas.

Aponta o crítico que outro elemento intensificador da propagação da arte abstrata foi o

interesse manifestado pelos colecionadores, pela crítica e público norte-americanos pela obra

dos pintores abstratos, trazendo mudanças substanciais para os caminhos da arte a partir da

década de 40. O surto da abstração informal dominaria doravante o cenário internacional de

vanguarda:

Desde 1930 realizavam-se nos Estados Unidos exposições de trabalhos dos maiores nomes desse movimento. Seria assim criado pelos norte-americanos um mercado maior para as obras abstratas, inclusive na própria França. Esse fato contribuiu de maneira decisiva para o surto irresistível da abstração em Paris. Esta corrente fora

138 ROMERO BREST, Jorge. Así se mira el arte moderno. Buenos Aires: Beas Ediciones, 1993. p.117. 139 BENTO, Antonio. Abstração na Arte dos Índios Brasileiros. Spala: Rio de Janeiro, 1979. p.77.

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muito hostilizada na época de seu aparecimento e mesmo após sua eclosão, nos fins da década de 30, sobretudo pelos adeptos da figuração realista. A luta travou-se nos meios artísticos e no seio da própria crítica, porque os partidários dos regimes socialistas, em ascensão após a derrubada de Hitler e Mussolini, atacavam abertamente os abstratos. 140

Antonio Bento ao longo de sua formação revelou profundo interesse, sobretudo pelas

análises de Henri Focillon depois Michel Seuphor, Herbert Read e Argan (apesar das

diferentes linhas de abordagens desses autores). Nesses anos de pesquisa, a figura de

Kandinsky também assumiu nas análises de Antonio Bento um papel de destaque, ao ressaltar

as contribuições do mestre da abstração, inclusive para os artistas nacionais. Ao comentar as

diversas tendências abstracionistas, Antonio Bento considerava a informal a mais densa, por

revelar a intimidade e a sensibilidade do artista, resultando em um processo criativo ímpar.

Romero Brest, por sua vez, foi conhecido por muitos estudiosos não apenas como o pai

das vanguardas da década de 1960 na América Latina, mas como um crítico de vanguarda, um

visionário de uma arte do porvir, uma manifestação de novas projeções estéticas, rompendo

com os vestígios dos padrões clássicos de representação. Não foi um acadêmico, um filósofo

de formação universitária, mas as suas contribuições junto ao Centro de Artes Visuais do

Instituto Di Tella, revelaram uma política ultravanguardista baseada no desenho e na técnica,

variações de uma arte tecnológica já praticada na Europa e nos Estados Unidos. Brest, já

possuía o seu olhar voltado para essa questão, porém o fechamento do instituto Di Tella, na

década de 1970, impediu que desenvolvesse um laboratório de investigação e experimentação

da máquina televisiva na Argentina.

Assim como Antonio Bento, o crítico também se propôs a organizar os fundamentos,

características e projeções da arte abstrata. Seu interesse transcendia a pintura de cavalete e os

suportes tradicionais, envolvendo-se com a desmaterialização da arte, interessando-se pela

capacidade interativa e aglutinante das instalações e dos procedimentos pictóricos aplicados

aos meios tecnológicos. Dedicava-se, portanto, a novas atitudes artísticas, a valorização de

outros artistas e a uma nova abordagem estética.

Em 1956 Brest foi nomeado professor titular de Estética na Faculdade de Filosofia e

Letras de Buenos Aires e também de História da Arte, na Faculdade de Humanidades e

Ciências da Educação de La Plata. Segundo Brest, foi nesse momento que se dedicou ao

140 BENTO, Antonio. Portinari. Rio de Janeiro: Léo Christiano, 1980. p. 194.

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profundo estudo dos existencialistas, Sartre, Jaspers, Marcel e, sobretudo Heidegger141. Tais

leituras propiciaram ao crítico a percepção da dimensão viva da obra de arte, despertando-lhe

o ímpeto por manejá-las em um museu.

Nas páginas de Ver y Estimar, na sua passagem por La Vanguardia e em seus escritos

sobre arte abstrata, sempre objetivou considerar a produção artística atrelada ao seu contexto

histórico, interessando-se pela forma que o artista compreende a sua produção e a sociedade

que habita. Para Brest, todas as criações artísticas deveriam estar conectadas com o caráter

dinâmico e mutável da vida.

Antonio Bento costumava ressaltar que a arte abstrata teve sua origem nos primórdios

do modernismo, tendo sido importantes os estudos promovidos por etnólogos e antropólogos,

valorizando e reconhecendo a herança das culturas primitivas. Os artistas modernos, ao

contrário dos arqueólogos, desenvolveram um especial interesse pelas máscaras e esculturas

oriundas das tribos africanas, assim como pelas pinturas rupestres. Tais pinturas eram

preferencialmente geométricas e por isso essa tendência seria a dominante na produção dos

primeiros mestres abstratos.

Essa descoberta e valorização da riqueza plástica e visual das artes tribais foi um evento

pertencente a diversos países e continentes, constituindo uma peculiar postura empreendida

pelos artistas modernos:

Vários dos pioneiros do modernismo, no início da Escola de Paris, compravam máscaras e esculturas africanas. Picasso, Matisse e outros grandes pintores europeus, além de André Lhote, pintor e crítico, passaram a ver nessas criações verdadeiras obras de arte e não objetos destituídos de valor. Esse novo comportamento iria ter influência decisiva no processo de abertura trazido pela Abstração. Mas não foram apenas as máscaras e esculturas da África e da Oceania, que concorreriam para o aparecimento do Cubismo e da Abstração no Velho Mundo. As culturas antigas, pré-arcaicas da Índia e dos países árabes, habituados ao culto das formas abstratas,

141 Em Carta a Damián Carlos Bayón, Romero Brest relatou as suas experiências com o existencialismo, evidenciando como essa linha de pensamento influenciou a sua produção crítica: Qué es el cubismo (Editorial Columba, Buenos Aires, 1961), creo que es uno de mis mejores trabajos, pues no describo los hechos sino que los interpreto. En el prólogo establezco la doctrina: “Sostengo que el orden lógico del pensamiento no coincide con el orden existencial que instauran las obras de arte, y que de este desacuerdo nacen las dificultades del uno para comprender el otro. Pero admito la posibilidad de que un pensamiento, sin dejar de ser lógico en cuanto se lo comunica, sea capaz de considerar la obra, o las obras, en su dimensión existencial, siempre y cuando las tome en totalidad, siendo él mismo totalidad. Y llamo a esta manera de concordar evidencia del espíritu, porque mi ya larga frecuentación de obras de arte me ha llevado a la convicción de que no es a la altura de los ojos sino del espíritu donde se producen los acuerdos verdaderos: que allí donde los ojos necesariamente fraccionan, el espíritu une, sólo él.”(…) Dos años antes había expuesto estas ideas, de corte netamente heideggeriano, en un largo curso que dicté en Ver y Estimar sobre El ser y la imagen, tema sobre el cual pensaba escribir un libro que después no escribí.

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conceberam não somente os caracteres do alfabeto como os números arábicos, que iriam constituir a base da matemática. Essas contribuições abstratas enriqueceram a cultura posterior do Ocidente e mais tarde permitiram o desenvolvimento da literatura e da matemática superior, entre os povos europeus, ao lado das contribuições trazidas pelos filósofos gregos a partir de Sócrates e Platão.142

Segundo Antonio Bento, Michel Seuphor não compartilhava da tese de que a abstração

teve suas origens, na arte dos primitivos. As diversas lições e exposições que aprendera ao

longo de sua vida, não foram suficientes para convencer Seuphor dessa filiação, embora não

negasse a influência da arte negra sobre o cubismo. Entretanto, as estatuetas negras não eram a

arte abstrata ou o cubismo em si. Seuphor admite a existência de quadros abstratos, cuja

autoria pertence à Braque e Picasso. Ambos os artistas, ao lado de Léger, são considerados os

três mestres cubistas responsáveis pela feitura de uma arte abstrata.

Seuphor acentuava em seus argumentos que a arte dos primitivos teve a sua origem na

magia, voltando seus esforços e preocupações para a função ornamental. Essas criações

constituem signos ideográficos, cujo sentido se perdeu. Exatamente por isso, a tentativa de

encontrar um sentido de decoração ou magia na obra dos primeiros mestres abstratos foi

infértil. A explicação empreendida pelo crítico belga143, parte da premissa de que uma análise

imparcial desvela no abstracionismo duas principais tendências. A primeira, representada pelo

neoplasticismo, advém do anseio por disciplina e renovação estética através de uma

valorização das faculdades intelectuais. A segunda é proveniente de um desejo romântico de

libertação; o mundo interior como ponto de partida ou domínio do espiritual, como pregara

Kandinsky.

Consoante Antonio Bento, o desprezo de um ponto de partida antropológico para a arte

abstrata é o responsável por estabelecer-se a correspondência direta da abstração com o

impressionismo, o fauvismo e o cubismo. Seuphor preferia, segundo o crítico, voltar-se para

exemplos baseados na estética e na história da arte de seu tempo.

Antonio Bento, por sua parte, buscou reforçar a idéia de que as contribuições cubistas de

Braque e Picasso foram importantes para o desenvolvimento de uma arte abstrata:

142 BENTO, Antonio. Expressões da Arte Brasileira. Spala: Rio de Janeiro, 1983. P. 129-131. 143 Michel Seuphor é um pseudônimo de Fernand Berckelaers.Nasceu na Antuérpia em 1901e faleceu na França em 1999. Seuphor (anagrama de Orpheus) estabeleceu-se em Paris em1925, onde foi um dos fundadores da associação Cercle et Carré de artistas abstratos, em 1929, e editor de sua revista. Tornou-se cidadão francês em 1954. Apesar de ser um artista da vertente abstrato geométrica é mais conhecido por seus textos e dicionários sobre pintura abstrata. Antonio Bento considera-o como uma das grandes influências teóricas sobre o seu trabalho, sobretudo no que tange as influências de Kandinsky para uma arte verdadeiramente abstrata.

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Foi depois da última grande guerra que se intensificou a disputa entre as duas correntes, embora a abstração tivesse nascido, em nosso século, logo após o cubismo, como um desenvolvimento ou uma conseqüência inevitável desse movimento. Antecedeu, com os trabalhos iniciais de Kandinsky, a primeira conflagração mundial, mas somente iria crescer e projetar-se através de todos os continentes, após o conflito terminado em 1945.144

O legado de Kandinsky insurge como um ponto de partida inicial para compreender o

desenvolvimento da arte abstrata na América Latina. A admiração que Antonio Bento nutria

por Kandinsky adveio de um processo paulatino de fruição e estudo das obras do mestre russo.

De acordo com os apontamentos do crítico brasileiro, baseados na História da Arte145,

Kandinsky certa vez ao retornar ao seu atelier, deparou-se com uma tela de sua autoria

invertida, após ser pendurada pela faxineira. Kandinsky considerou tal posição mais atraente e

inspiradora para uma arte totalmente abstrata, a exemplo da música.

O artista foi o primeiro a postular as premissas de uma arte onde a imaginação gratuita

concederia espaço a relações abstratas puras ou matemáticas. Para Kandinsky essas formas

eram “seres espirituais”, daí suas figuras geométricas (triângulos, quadrados e linhas)

assumirem ao longo de seu processo criativo, uma personalidade própria.

Com base na História e Crítica da Arte, notamos que Kandinsky deu vazão a uma arte

composta de cores e formas associadas que não mais revelavam comprometimento com uma

reprodução fiel da natureza. Suas influências iniciais advêm da arte dos cubistas, em especial

dos elementos geométricos, que após uma lenta gestação mental, contrapuseram-se a palheta

de cores dos expressionistas, tons ainda presentes em suas paisagens. Kandinsky considerava

as formas do passado dotadas de um esgotamento, posto que, a subjetividade do artista

encontrara na cor e na forma melhores condições de expressão do que no objeto ou na

perspectiva. O exterior perdeu seu valor e importância, pois é na espiritualidade que reside o

visionário.

Trata-se de um processo paulatino de deformação do objeto, alterando-lhe, reduzindo-o

a mera abstração até a eliminação completa de seus vestígios no período pós Mondrian. Coube

144 ANTONIO BENTO. Figuração-Arte Abstrata. Diário Carioca, 15 de dez. de 1961, p. 04. 145 Michel Seuphor em seu livro também alude ao mesmo fato: Something had its beginning when Kandinsky, returning to his Studio at twilight one Day, was surprised to see a canvas “of an indescribable and incandescent beauty” which he did not at once recognize as his own, because it had been placed on its side; (…).Tradução livre: Algo teve seu início quando Kandinsky, retornando ao seu estúdio em um dia de crepúsculo, ficou surpreso ao ver uma tela "de uma beleza indescritível e incandescente", que ele não reconheceu prontamente como sua, porque tinha sido colocada de lado; p.11 SEUPHOR. Michel. Abstract Painting. New York: Dell.2. ed. 1967.

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também a Kandinsky a primazia de uma nova postura frente ao objeto: compreendê-lo

enquanto capaz de provocar emoção. Para André Breton, todo o desenvolvimento da arte

moderna se consolidou a partir da “crise do objeto” em que o mundo exterior deixava de ser

referência, dando espaço às diretrizes de um “modelo interior”.

De acordo com Michel Seuphor, a influência dos artistas cubistas para uma arte

verdadeiramente abstrata é inegável. Em 1909, esses artistas destruíram o objeto e o

reconstruíram de uma maneira diferente sem considerar a realidade objetiva como modelo.

Com tal atitude, os cubistas descobriram tacitamente a inutilidade do objeto, mas não o

repudiaram totalmente.

Ainda citando Seuphor, desde os princípios de 1912, a multiplicidade de formas de

expressão tem sido uma das mais singulares características da pintura abstrata. Ao realizar um

balanço das conquistas e caminhos percorridos pelo abstracionismo, um regresso temporal

conduz a um minúsculo círculo de artistas trabalhando em 1912. É possível entrever, não sem

admiração, que todos os elementos básicos estavam já presentes, desde o início, na

combinação dos trabalhos de Kandinsky, Kupka e Robert Delaunay. O estilo retangular e

horizontal-vertical pode ser encontrado em certas telas de Kupka de 1912; a efusividade lírica

é a grande essência do trabalho de Kandinsky nesse período, e algumas dessas primeiras

pinturas poderiam ser chamadas tachistas ou informais caso tivessem sido pintadas em

décadas posteriores. Finalmente, Robert Delaunay trouxe ordem e sabedoria através de um

estilo rico com uma espécie de vibração interior. Em suas pinturas, a luz é controlada quase

como uma composição musical bem balanceada para a qual o pintor concede apenas a quantia

exata de entusiasmo requerido, sem se deixar conduzir ou dominar por ele.

Romero Brest também afirmou a importância e fecundidade do movimento cubista, o

qual tornou possível, conquistas imediatas, sobretudo pela invenção do plano como elemento

de expressão. A consolidação da idéia do espaço virtual, que não existe por conta de seus

limites, e sim pela sua capacidade expansiva, notável através de signos de movimento.

Segundo Brest:

No hay pintor, sobre todo entre los que han madurado después de la guerra del 14, que no haya abrevado en el cubismo: todos han comprendido muchas cosas útiles para fortificarse en su fe antinaturalista, anticlásica y aun antirromántica, y cada uno de ellos ha extraído una lección diferente; quién se ha detenido en la simple descomposición de los cuerpos en planos (neocubistas) o en las estructuras de

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elementos primarios (puristas), quién ha sabido superarlo indagando más profundamente en las posibilidades expresivas del movimiento. 146

Na perspectiva de Antonio Bento, a essência de uma arte abstrata pode ser definida pela

contribuição de três importantes artistas: Mondrian, que a concebeu como uma arte capaz de

exprimir o sentido universal de toda coisa. As telas abstratas do artista produzidas a partir de

1913 foram chamadas por ele de sinfonias para indicar o parentesco espiritual entre ambas as

disciplinas. Kandinsky que definia a arte como a expressão do espiritual e da vida interior,

enquanto Delaunay compreendia a arte abstrata como a manifestação da alma lírica da cor.

Para esse artista francês, a abstração consistia em qualquer representação que não tivesse

ligação ou evocação da realidade direta, premeditadamente ou não.

Consoante Brest, Robert Delaunay teria sofrido já no começo do século XX, a influência

do impressionismo (que o acompanhou ao longo de toda sua produção artística) e da estampa

japonesa. Ressaltam-se também as contribuições de Van Gogh e do fauvismo especialmente

em algumas paisagens e autorretratos da época em que desenvolveu uma formação artística

essencialmente autodidata. São exemplos, as primeiras telas pintadas na Bretanha, durante o

verão de 1903. Cross e Signac, segundo Brest, foram as influências mais importantes,

juntamente com Cézanne, que iluminou toda a obra do artista. Delaunay desenvolveu uma

investigação plástica em torno do complementarismo cromático e da luminosidade, questões

que se tornaram cruciais no desenvolvimento da sua obra. Numa segunda viagem à Bretanha,

o artista também encontrou em Gauguin e na pintura do grupo de Pont-Aven, importantes

referências.

Para Brest, o estado de espírito inicial de Delaunay estava distante de conduzi-lo a

exacerbação total do eu, impelindo-o em direção a um exame rigoroso do organismo plástico

em si, naquilo que possui de especificamente pictórico, ou seja, na dimensão da cor. Com tal

atitude, Delaunay não pretendia descobrir novos meios de objetivação através do instinto,

como faziam os fauves e, ao desenvolver suas indagações formais entre 1909 e 1910, ainda

não havia se encantado com a obra de Cézanne. Os jogos de pequenos planos de cor

modulados, como os de vertente cubista, os quais foram mergulhados em esfumaçados de

cinzas e ocres, conservaram a força desenhística. Esta se deu, sobretudo, pelos ritmos de

simplificação total da forma, responsáveis por equilibrar movimento e repouso. Ainda que

146BREST, Jorge Romero. La Pintura Europea Contemporánea. México: Fondo de Cultura Económica. 1952. P.139

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Delaunay pretendesse romper esse equilíbrio, em benefício do movimento, levaria tempo até

suplantar o caminho percorrido por Cézanne:

Ni fauve ni cubista, pues. Los cubistas se encierran en sí mismos y aun no saben que están destinados a provocar, mediante un complejo proceso cuyo sentido no se hace explícito hasta nuestros días, el descubrimiento de la verdadera nueva objetividad en la creación más subjetiva, la creación matemática, mientras Delaunay, fundándose todavía en la objetividad natural, tiende a crear una especie de neonaturalismo, como Léger, con quién tiene algunos puntos de contacto, de concepción abstracta pero de ejecución muy concreta, material.147

Segundo Brest, o fato mais sugestivo que denunciou o desenvolvimento de Robert

Delaunay é a persistência dos temas através de longos períodos. Tal fato revelou que sua

capacidade de abstração se exercia através do objeto, interessando-se não pelo objeto em si,

mas pelo que poderia descobrir no objeto. Para o crítico argentino, em períodos de formação

de uma linguagem artística, são mais valiosos os artistas capazes de abrir novas possibilidades

de expressão do que aqueles que se encerram em seu próprio mundo, ainda que estes sejam

mais profundos que os primeiros. Assim, se as obras de Delaunay fossem julgadas desde o

ponto de vista da madura plenitude de sua expressão, para Brest, ele não poderia ser definido

como um grande pintor, mas se julgado a partir do ponto de vista do que antecipou em termos

de experimentação da cor e do movimento, sua contribuição seria inegável:

Pesaron sobre él resabios procedentes de concepciones pasadas y no pudo dominar ampliamente su sensualidad mediterránea, que a menudo lo traicionó, pero sus búsquedas y sus logros en el campo del color, de su empleo como vehículo de exteriorización del movimiento- el movimiento como tal e no como medio de poner en marcha la sentimentalidad subjetiva- lo señalan como uno dos más importantes precursores del arte actual de vanguardia. Acaso le faltó para llegar a realizaciones más completas un sentido de la invención formal más agudo y complejo, para superar a ingenua estructura de círculos y espirales, de la que nunca pudo o quiso evadirse. Su afán de pureza lo salvó y fue por él sin duda por lo que Apollinaire llamó orfismo a su tendencia, pero ahora es fácil comprobar cuánto apresuramiento hubo en ese bautizo, ya que si bien la secta helénica implicó una energía de liberación dionisíaca, la equilibró con una depurada persecución intelectual del símbolo, un ascetismo y una renuncia a los valores del cuerpo que sólo debilitadamente se dan en el arte de Delaunay. 148

147 BREST, Jorge Romero. La Pintura Europea Contemporánea. México: Fondo de Cultura Económica. 1952. p. 152. 148 Ibídem. p.156/157

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Ainda segundo Brest, uma tendência similar ao dinamismo materialista não figurativo se

desenvolveu na Rússia, poucos anos depois que na França e na Itália. Miguel Larionov foi o

iniciador desta tendência, tendo em Natalia Gontcharova sua principal colaboradora, sendo

ambos partícipes de uma pintura, na qual, facilmente se nota a influência do futurismo-

Marinetti havia dado conferências em Moscou em 1910- e do cubismo, o que não significa

que a pintura de ambos tenha carecido de originalidade.

De acordo com Michel Seuphor, Larionov afirmara que seu primeiro quadro raionista

(irradiantista) datava de 1909, embora o manifesto do grupo tivesse sido publicado em 1913.

Os raionistas, assim como os futuristas, se atinham aos temas da vida concreta, sustentavam

que a realidade era um estimulante para o pintor e se baseavam nas potencialidades

expressivas da cor. Para Brest, eles foram responsáveis pela criação de um futurismo sui

generis. As pinturas e desenhos apresentavam planos com forte presença do chiaroscuro,

chocando-se com violência entre suas arestas e vértices. Tal fenômeno assumiu o lugar de

uma complexa interpenetração dos planos, característica dos italianos e da justaposição e

sobreposição dos franceses. De acordo com o Manifesto dos raionistas:

La tela da la impresión de deslizarse y tiene el aire de estar fuera del tiempo y el espacio, emanando de ella una sensación de lo que se podría llamar la cuarta dimensión, ya que su largo y su ancho, unidos a la profundidad de los rayos de color, son los únicos signos del mundo que nos rodea. 149

Consoante Brest, essa idéia de raios de cor, fator responsável pela criação da

profundidade na tela, demonstrava que a posição dos artistas russos diferia profundamente da

atitude dos cubistas e futuristas, mais do que se imaginava supor, principalmente no que tange

a obra do russo Wassily Kandinsky, influenciado pelo expressionismo alemão. Embora,

afirmassem que suas composições se fundavam na cor, é na manipulação dos planos que os

traços tomam à dianteira. Até mesmo em algumas obras de Larionov, de pinceladas fortes e

caóticas, observa-se uma ordenação mental que organiza a cor segundo linhas de força que

configuram um espaço irreal. De acordo com o crítico argentino, a amizade entre Larionov,

Kandinsky e o empresário, diretor artístico e crítico de arte russo Serge de Diaghilev, com

149 In: BREST, Jorge Romero. La Pintura Europea Contemporánea. México: Fondo de Cultura Económica. 1952. p. 157.

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quem colaboraram, constituiu uma importante pista para analisar a obliquidade simbólica e

original da vertente raionista.

Segundo Brest, o movimento não foi muito valioso nem de larga duração, porém sua

importância fundou-se no fato de ter se desenvolvido na Rússia, antes da Primeira Guerra

Mundial, país sem tradição artística, mergulhado até então em estereótipos acadêmicos ou na

banalidade naturalista. O raionismo respondia a um estado de espírito em que o cubismo

ortodoxo, por conta das suas limitações, não satisfazia aos homens mais sagazes. Sobre essa

base, indubitavelmente heterogênea, de cubismo, futurismo, orfismo e raionismo, surgiriam

outros movimentos destinados a superar as tendências iniciais. E não seria a Rússia, o país que

estaria na retaguarda.

Como assinalou Brest, foi exatamente um russo, Wassily Kandinsky, o responsável por

realizar a segunda grande revolução da arte no século XX:

Wassily Kandinsky, quien introduce una nueva óptica que libera el movimiento de las adherencias materiales que aún conservaba en la pintura de sus contemporáneos y echa las bases para prestarle un nuevo fundamento objetivo. Un ruso que además de aristócrata era científico y músico, condiciones que a pesar de no ser las más adecuadas para un renovador de la pintura, merecen ser tenidas en cuenta para estudiar las curiosas reacciones de su espíritu dialéctico. Por ser ruso le atrae el pasado épico de su país y la tradición en sus raíces populares, pero se aparta tanto del icono como de cualquier forma pintoresca y salta así de una posición localista a la más universal que haya conocido el siglo en los primeros treinta años. Piensa y siente como un aristócrata, pero se opone a todo lo que signifique liviandad y espíritu de clan, transformándose en el campeón de todas las libertades. Estudia las disciplinas más concretas en el orden de las relaciones humanas —la economía política, el derecho romano y el penal, la historia del derecho ruso y la etnografía— pero ellas le sirven para “penetrar la esencia de lo espiritual, es decir lo abstracto”. Cultiva la música y encuentra metáforas musicales para explicar el sentido de las formas, pero construye una teoría esencialmente plástica. Kandinsky era un dialéctico. Lo mismo hace cuando se trata de la pintura, campo de lucha permanente de contrarios que se polarizan en el objeto y el sujeto. Pero aplicaba el método dialéctico por intuición y por ello no alcanzó todos los resultados que sus geniales planteos hicieron prever.150

Kandinsky era, sobretudo, um antimaterialista e um antipositivista, de onde derivam

suas duas afirmações capitais, ou seja, que existe uma realidade espiritual distante da natureza

e que se submete a ela por um método de penetração que exclui o empirismo ingênuo. Mas,

nem por isso se imiscui em um empirismo absoluto, pelo contrário. Kandinsky encontra a

síntese em um princípio motor que seja ao mesmo tempo sensível e espiritual, concreto e 150 BREST, Jorge Romero. La Pintura Europea Contemporánea. México: Fondo de Cultura Económica. 1952. P 159.

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racional. E embora o artista se veja inicialmente rodeado de inflexões românticas, se aparta

delas com o passar dos anos, em nome de um princípio ao qual denomina de necessidade

interior. É um chamado urgente que se manifesta por um som interior capaz de produzir,

quando se desvincula de um objeto concreto, uma vibração supersensível da alma. Esta

vibração alude a uma zona objetiva e absoluta da realidade que escapa tanto do mundo

exterior quanto da simples experiência emotiva do sujeito. Assim, quando ensaia a

sistematização “dos três caminhos místicos” que conduzem a necessidade interior, ainda que

reconheça a importância da personalidade e do estilo, agrega que o único fator

verdadeiramente progressista é o que denomina de arte pura e eterna; a partir da qual

demonstra ter descoberto a dimensão metafísica que deveria levá-lo a superação do

individualismo romântico. Quando mais tarde associa a necessidade interior com o estado de

tensão de cada forma, estado que provém da ação da força sobre o material, demonstra que

essa imperiosa exigência da alma, que conduz a necessidade interior, é concebida como

movimento. Será o movimento o grande elemento de sua criação artística, movimento

desprendido da matéria que a princípio parece força, traço romântico que o vincula com os

expressionistas, mas que lentamente vai se modificando em direção aos mundos invisíveis,

aos quais não são regidos pelas leis do mundo limitado e concreto em que vive o homem.

Para Brest, o mestre abstracionista encontrava-se encerrado em sua alma, uma vez que

havia destruído a instancia objetiva em que se fundava a arte anterior: a natureza e seu

pensamento se convertem quase absolutamente psicológicos, projetando-se com tal caráter nas

pesquisas formais e na fundamentação do valor estético que ingenuamente desemboca no

prazer; contudo, ao mesmo tempo intui a necessidade de encontrar outra instância objetiva

para substituir a natureza. Questiona-se não apenas o que deve substituir o objeto, mas como

substituir o objeto. Nesse contexto, se destacam, portanto, duas ordens de idéias: por uma

parte, as que procedem de suas experiências anímicas e se condensam na necessidade interior

e por outra as provenientes do empenho por conceder a essa necessidade interior um

fundamento objetivo alheio à personalidade:

Los dos órdenes de ideas se conectan cuando escribe: “El inevitable deseo de lo objetivo de expresarse por sí mismo es el poder que se designa aquí como necesidad interior y que emplea una forma generalmente subjetiva hoy y otra mañana”. En esto reside el espiritualismo de Kandinsky: el poder espiritual es para él algo que está más allá del tiempo y el espacio, algo objetivo actuando de manera permanente, rigiendo los destinos del hombre profundo y conformando una imagen de absoluta perfección que ha de irse logrando. ¿Es una idea esa imagen como en los idealismos platónicos? ¿Es una energía como en los románticos? Kandinsky responde: “En

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suma, el trabajo de la necesidad interior y del desarrollo del arte, en consecuencia, es siempre una avanzada expresión de lo eternamente objetivo en lo temporariamente subjetivo.” Nada más explícito, pero se ve cómo en 1910 el programa estaba esbozado. Desde entonces hasta su muerte no hizo más que buscar lo eternamente objetivo fuera de la naturaleza en un sí mismo desprovisto de contingencias físicas y emocionales hasta donde le fue posible concebirlo. ¿De qué medios prácticos se vale para reemplazar el objeto? Tres hechos se imponen: primero, que no tratará de elevarse al signo espiritual por despojamiento progresivo de la materia del objeto, como hicieran los occidentales; segundo, que encontrará esa posibilidad, técnicamente en la composición, espiritualmente en el espacio dinamizado; tercero, que todos los estudios objetivos sobre color y forma estarán orientados hacia el logro de elementos claros y concretos, capaces de expresar lo que es oscuro y abstracto. “Ninguna cosa es visible o tangible, o para ser más explícito, bajo lo visible y comprensible están lo invisible y lo incomprensible.”151

Para Kandinsky, portanto, a pintura era somente composição. Cada forma necessita de

significação sensível própria, ainda que o modo, como concebê-la e realizá-la dependa do

efeito de conjunto, pois obedece a uma idéia e não registra vibrações ocasionais da alma

individual. Por isso, o valor estético está exclusivamente radicado no ritmo. Não será o ritmo

simples e superficial da ornamentação que o artista teme; será um ritmo de extrema

complexidade que pode interpretar, segundo a disposição das formas no espaço, as grandes

atitudes da alma coletiva. Todavia, a alma coletiva não possui acepção política e tampouco os

sentimentos possuem sentido humanitário. Se fosse possível estabelecer uma definição,

segundo Brest, a terminologia adequada seria psicológica e metafísica. São sentimentos que se

transformam em atitudes metafísicas por causa de sua generalidade e não se fundam em

fenômenos particulares como os que causam o amor, o ódio ou a morte, a não ser o que se

poderia chamar a essência do que sente. É a alma coletiva, não como agregação de

necessidades, ainda espirituais, mas como um nível diferenciado que apaga as diferenças e

intensifica os desejos. Tão geral é o seu sentido de humano que somente poderia expressá-lo

por meio das formas casuais por definição, ou seja, as geométricas. De acordo com Brest, é

neste instante que o espaço perde os limites que o afogava na projeção herdada dos

renascentistas italianos. Ao eliminar a concretude do plano básico através do emprego da cor

branca, as direções que implicam as formas, afiadas como flechas, não obedecem a nenhuma

referencia sólida e a tela parece a organizar-se de acordo com uma multiplicidade de

dimensões. Espaço e movimento não são termos que se correspondam em antítese, como no

151 BREST, Jorge Romero. La Pintura Europea Contemporánea. México: Fondo de Cultura Económica. p.161.

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caso da pintura de profundidade perspectiva, ou seja, espaço e movimento constituem faces de

um mesmo fenômeno, de uma implicação comum que não permite diferenciá-los. Desse

modo, afirma Brest, penetra o tempo, levado pela mão através do movimento em direção ao

infinito em um espaço também infinito da arte do século XX:

Tal es la concepción que domina en los cuadros que pinta a partir de 1920. Desaparecen las manchas de color amorfo, se endurece el trazo hasta admitir la regla, se multiplican las formas geométricas, en un espacio que se diría enrarecido si Kandinsky no mantuviera siempre la transparencia del color y su gradación tonal. Triángulos, rectángulos, círculos grandes y pequeños, flechas que recorren la tela, puntos a granel, formas que se chocan y se repelen, barritas misteriosas y medias lunas sonrientes, todo balanceado como si esa bóveda estelar pendiera en un punto desconocido del cosmos inconmensurable. El sentimiento musical del pintor, turbulentamente romántico en los años de Munich, se vuelve serenamente clásico. Jamás la imaginación de un artista había llegado a grado igual de universalidad, presentando un mundo de formas que parece totalmente ajeno a las angustias del hombre y en el que se siente, sin embargo, la palpitación de esas mismas angustias, en estado de tensión extrema, liberadas de contaminaciones pintorescas. Lanza entonces la suprema boutade: “El ángulo agudo de un triángulo en contacto con un círculo no es menos efectivo que el dedo de Dios en contacto con el dedo de Adán en la pintura de Miguel Ángel.” ¿De qué efectividad se trata? ¿Por qué se le ocurre comparar su contrapunto de formas geométricas con el contrapunto de formas orgánicas creado por Miguel Ángel en el techo de la Sixtina? Porque no deja de ser dramático y sólo cambia el modo de generalizar, llegando a una síntesis más apretada en la eterna lucha entre el espíritu y la materia; porque cree, y con razón, que al limpiar sus formas de adherencias locales sostiene un estado de tensión emocional más hondo y verdadero. Parecía asegurado el triunfo de la geometría, pero no sólo faltan declaraciones explícitas, sino abundan otras que permiten suponer la admisión de las formas geométricas “sólo como un medio”. Ante todo no es la geometría que se funda en el ángulo recto, muerta para él, pero tampoco es la nueva geometría, pues sigue empleando con carácter dinámico el viejo repertorio de formas. No obstante, entre la pintura de Kandinsky de esa época y la nueva física se han encontrado vinculaciones legítimas; Kenneth L. C. Linsay, por ejemplo, con la teoría de los cuantos de Max Planck.152

De acordo com o crítico portenho, as leis da composição correspondem aos meios de

dispor de formas homogêneas, mais ou menos claramente limitadas e diferenciadas segundo

os casos, mas sempre homogêneas. Os cubistas e os futuristas não tinham inovado

majoritariamente porque somente substituíam essas formas por planos, também homogêneos.

Porém, a revolucionária ideia de Kandinsky necessitava de novos princípios ordenadores, já

que queria dispor de traços e manchas, não como peixes na água ou pássaros no ar, mas como

elementos que deveriam compor uma harmonia sinfônica de signos. Exatamente por isso, o 152 BREST, Jorge Romero. La Pintura Europea Contemporánea. México: Fondo de Cultura Económica. 1952. P 166.

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seu primeiro objetivo teórico-prático foi criar um teclado de cores de acordo com as suas

reações emotivas, para evitar a dispersão a qual conduz a emotividade desordenada,

postulados presentes em Über das Geistige in der Kunst, escrito em 1910. O artista russo

procurou incessantemente todas as espécies de associação sensíveis com o som e outras

sensações, acreditando encontrar nelas o misterioso poder da cor sobre a alma humana.

Analisou as variações de temperatura (cores quentes e frias) e as que provocavam a luz (cores

luminosas e sombreadas), assim como o valor expressivo de cada tinta, desembocando nas leis

da composição fundadas no contraponto que tende a criar um espaço ilimitado, infinito.

Segundo Brest, Kandinsky passou a rejeitar a geometria como fundamento da pintura. O

mestre russo criticou os cubistas por terem empregado “triângulos tridimensionais, ou seja,

pirâmides”, quando existiam outros meios para criar na tela um espaço profundo sem cair na

perspectiva: através da finura ou grossura da linha, posicionando a forma sobre a superfície ou

sobrepondo uma forma a outra, além da cor, que quando bem empregada, pode avançar ou

retroceder convertendo a pintura em uma entidade pulsante. É certo que o mestre russo repeliu

a geometria, mas também eliminou do plano toda representação e iniciou a era da pintura não

objetiva. Segundo Brest, tal posicionamento nos permite exercer uma série de

questionamentos:

¿Qué pinta entonces, entre 1911 y 1914? Desaparece todo resabio de formas objetivas y se impone un ritmo demoníaco de trazos de diverso grosor, de líneas y manchas de color puro, manteniendo la unidad orgánica de cada uno y del conjunto, y la unidad física, gracias a los fondos, compactos a pesar de su riqueza en transparencias tonales. Todavía los trazos recogen notas de vibración sentimental se diría bajo la influencia del arte del Extremo Oriente— que le otorgan más calidad de significación propia que de signo trascendente, pero el espectador comprende que no están puestas al azar y que un misterio expresan, sin develarlo, que supera ampliamente la zona de lo personal. Todavía el color, tornasolado a veces, necesita expandirse por los bordes difusos de la forma, pero el principio de la dinámica espacial está claramente establecido, con un carácter de inmaterialidad que no habían logrado cubistas ni futuristas. Ya no pinta impresiones, pero tampoco verdaderas composiciones; predominan las improvisaciones, en las que se advierte la trágica lucha del pintor consigo mismo para dominar el color, que con frecuencia sigue expresando la angustia del hombre, el caos del espíritu y la fantasía no depurada.153

153 BREST, Jorge Romero. La Pintura Europea Contemporánea. México: Fondo de Cultura Económica. 1952. p 163.

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Já em relação à depuração, ao analisarmos o conjunto de obras de Piet Mondrian,

notamos ser ele o artista que realizou a depuração final, pois a obra de arte é um conjunto de

ritmos apartados de qualquer referência exterior; inclusive da sugestão de espaço. O artista

representa a ala mais radical da arte abstrata, com bases puramente geométricas. O seu

interesse é pela realização de uma arte puramente impessoal, lógica, racional, eliminando

qualquer indício da condição emocional ou temperamental do artista. Assim, qualquer alusão

a figuras ou objetos externos é interpretada pelo artista como um deslize em relação à

autonomia absoluta da obra de arte. Mondrian foi o responsável por uma produção detentora

de grande força persuasiva e ainda que suas composições revelem uma aparência de fácil

realização é, pois, uma arte de difícil apreensão. Segundo Michel Seuphor, nenhum outro

pintor levou a disciplina a um grau tão elevado quanto Mondrian; tornou-se difícil outro

artista acompanhá-lo em sua fidelidade. Por mais de trinta anos, o artista deteve-se a uma

regra severa, ao emprego de meios plásticos extremamente limitados. Tal opção tornou a sua

personalidade ímpar, ao considerar-se que Mondrian praticou em principio todos os estilos,

todas as técnicas de sua época, sem excetuar-se nenhuma. As obras produzidas entre 1913 e

1914 são orquestrações de linhas e cores sobriamente concebidas, nas quais o movimento

horizontal-vertical domina a tela muito calmamente, por suaves modulações. Essas obras não

ultrapassam um número superior a quinze composições, mas todas expressam grande

qualidade artística e pulsão interior.

Para Romero Brest, Mondrian pode ser definido como o verdadeiro artífice. As suas

primeiras composições o apresentam como um naturalista motivado por uma controlada

potencia expressionista que exterioriza a linha. Porém, ele não buscou o símbolo da

emotividade individual, como os alemães, mas sim o ritmo escondido nas formas menos

dinâmicas, permitindo que estejam vivas e serem relativamente perenes. Por isso se explica

sua franca inclinação por Paris, onde encontrou nos cubistas o ponto de partida que

necessitava para as suas indagações. Seu grande foco de interesse não foi Braque, mas Picasso

e, sobretudo Léger, uma vez que neles encontrou um tom de objetividade similar ao que

utilizava. Segundo Brest, a análise dos ensaios de estudo de árvores ou de fachadas de igrejas

que realizou na Holanda, aplicando o método do cubismo analítico, nos permite entrever,

entretanto que ele se afasta do movimento francês, em busca de um ritmo puro e de um

equilíbrio constante, mas não estático. A verdadeira pesquisa começou em 1913 quando

abandonou a árvore como ponto de partida. No mesmo momento em que os cubistas iniciaram

o retorno às formas sensíveis, Mondrian seguiu o caminho oposto, transformando o espaço do

quadro em um jogo de verticais e horizontais que determinavam ângulos de diversos tamanhos

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e posições justapostos. Além disto, são preenchidos com cores suaves de delgadas variações

tonais. Desse modo, apesar da cor seguir acentuando o caráter de forma independente de cada

retângulo, a persistência no emprego dessa figura geométrica e o sentido rítmico dos traços lhe

indicam que direção tomar: não se tratava de compor os planos, mas de destruir os planos por

meio do ritmo linear que os limita, destruição que levou a primeira superação da antinomia

fundo-figura.

Como assinala Brest, o passo seguinte a ser vivenciado pelo artista foi conceder

independência à linha colorida, o que obtém fazendo desaparecer a vibração tonal de fundo e

interrompendo o caminho das verticais e horizontais de modo que não cheguem a completar

retângulos. Buscou a dissolução da forma plena para que se produzisse uma maior mobilidade

no plano da tela; de fato, os signos se organizavam em um ritmo assimétrico, uma vez que são

feitos à mão, perseverando elementos de sensibilidade e sentimento, mas que já se

desprendiam do fundo para constituírem um espaço dinâmico virtual. Teria sido este o

primeiro momento crucial no desenvolvimento da produção artística de Mondrian. Comenta

Brest:

Por una parte obtenía un equilibrado ritmo de signos, en el que introducía elementos de riqueza sensible gracias a la variación de tamaño de los pequeños espacios; por otra, ese ritmo seguía siendo, no obstante su desnudez, ritmo de la emoción individual del pintor; finalmente, reaparecía la antinomia fondo-figura, aunque ésta fuera reemplazada por un tupido canevá de rectángulos imperfecto. Si se quisiera disminuir el valor de creación en tales telas podría decirse que sólo había clarificado y ordenado el esquema del cubismo sintético, pero si se quiere aumentarlo se dirá que en ese periodo llega a tener conciencia de que la pintura debía ser forma y espacio. Mondrian vuelve atrás en el período siguiente al emplear cuadrados y rectángulos que sigue ordenando en series verticales y horizontales. Nueva experiencia que le permite descubrir el valor expresivo del ritmo basado en la ordenación perfecta de la geometría. Ahora se trata de cuadrados y rectángulos geométricos que registran, sin embargo, una actitud sensorial por el color que los anima y por los espacios desiguales que los hacen avanzar y retroceder. Pero no era la solución. Tenía que llegar a la composición ortogonal rigurosamente geométrica, la que le permitiera destruir la unidad de cada rectángulo y armonizar el todo en un equilibrio de espacios ordenados pero sin límites. Entonces Mondrian empieza a ser Mondrian, y con paciencia severa va encontrando el modo de dividir la tela en series de rectángulos de diferente tamaño y color, cuyos lados son continuación unos de otros, porque en el conjunto responden a esquemas de grandes verticales y horizontales. De tal modo logra que el plano comience a desaparecer como tal y que el espectador se deje envolver por un ritmo preciso, absoluto, introduciendo el color en variantes de claroscuro con una nota reprimida de emotividad espacial. No eran rectángulos bailarines, como en los cuadros anteriores, sino una estructura de rectángulos, y el ser estructura implicaba un carácter distinto al de cada uno de sus componentes. El color era denso y emotivo, todavía prestaba individualidad de forma independiente a cada rectángulo, y era menester un ritmo que no aludiera a la materia, sino al espacio. El simple hecho de que los grandes trazos negros continúen como cabos sueltos después de intercederse o de que no lleguen hasta los bordes de la tela le permite independizar el ritmo gráfico: el abandono del color del fondo,

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reemplazando las tintas puras por blancos o grises, intensificar la expresión rítmica de aquellos trazos, los que parecen moverse en un espacio transparente; la sobria disposición de algunas zonas de color primario, romper la monotonía del blanco y el gris movilizándolos de acuerdo con un procedimiento bien conocido por los románticos y empleado frecuentemente por Corot.154

Coube, entretanto a Kandinsky a primazia de associar a arte não representativa a

concepções puramente espirituais. Como afirma Antonio Bento:

Também é exato que Kandinsky, cuja mãe era descente de mongóis, conhecia os tapetes orientais, sobretudo os caucasianos e os de outras regiões da Rússia. Estas obras de arte possuem uma linguagem geométrica muitíssimo elaborada. Vêm igualmente de uma longa tradição primitiva. Em suas estruturas complexas, de tão profundas implicações psicológicas, encontra-se uma visualidade muito rica. É claro que esse pintor também espelhou ou incorporou em suas criações os símbolos, os signos e as figuras da arte das culturas arcaicas do Oriente. Transplantou-as ou as trouxe para a pintura mais refinada do Ocidente desenvolvido. Tornou-se, deste modo, uma das culminâncias do gênio artístico deste século de tantas mutações e descobertas. É de longe o mais completo de todos os pintores abstratos. Mas a idéia inicial de abstração já se encontrava nos quadros dos mestres cubistas, sobretudo Braque e Picasso, antes do aparecimento das obras kandinskianas e a de seus seguidores.155

Michel Seuphor também ressaltou em seu livro a importância da bagagem oriental de

Kandinsky, sempre presente em suas composições. Suas telas revelam cores abundantes que

emergem através de um imenso e vívido tumulto. Ao contrário do neoplasticismo de

Mondrian que desenvolveu laços com os cubistas, Kandinsky demonstrou maior afinidade

com os fauves. Ainda que os olhos do artista tenham sido estimulados pelos palheiros de

Monet, foram as pinturas fauvistas vistas em Paris por volta de 1907 que deram a ele um real

impulso. Os elementos russos orientais na palheta de Kandinsky encontraram uma saída e

prosseguiram se afirmando com ousadia e força, por meio de uma destreza incomum.

Igualmente, Herbert Read, atentou para a importância de uma herança oriental:

A primeira intenção de Kandinsky era ser músico --outro fato significativo, que ocorreria também na vida de Klee. Mas com vinte anos de idade foi para a Universidade de Moscou estudar direito e economia, e durante esse período teve o primeiro contato com a antiga arte da Rússia. Costumava ressaltar que a profunda impressão nele causada pelos ícones medievais russos influenciou todo o seu

154 BREST, Jorge Romero. La Pintura Europea Contemporánea. México: Fondo de Cultura Económica. 1952. p.174/175. 155 BENTO, Antonio. Expressões da Arte Brasileira. Rio de Janeiro: Spala, 1983.p. 48.

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desenvolvimento artístico. Outra influência precoce foi a arte folclórica da Rússia, com a qual se familiarizou durante um estudo etnográfico que fez nas províncias do norte em 1889. Naquele mesmo ano estudou os antigos mestres em Moscou e São Petersburgo, fazendo a primeira visita a Paris. (...) Em 1895, com vinte e nove anos, viu pela primeira vez uma exposição dos impressionistas franceses, experiência esta decisiva. Abandonou a carreira legal e no ano seguinte foi para Munique estudar pintura. Três anos depois, em 1900, recebeu o diploma da Academia Real de Munique. (...). Kandinsky amealhara muita experiência nesses doze anos de vai-e-vem e aprendizagem, e na época que foi para Munique, em 1908, sua pintura já havia atravessado várias fases estilísticas: partindo do academicismo que aprendera na Academia, com Franz Stuck, e passando por sucessivos graus de ecletismo (arte folclórica, impressionismo, pós-impressionismo), aos trinta e quatro anos de idade ele sentia ter chegado o momento de consolidar experiências e formular intuições sobre as possibilidades da arte pictórica, possibilidades que lhe haviam invadido o espírito e a visão no dia em que, doze anos antes, vira pela primeira vez um quadro de Monet. O que mais tinha visto naqueles doze anos? Cézanne, claro, e os fauves: o que quer que houvesse para se ver na Paris de 1902-06. Naquele período também foi fauve, mas voltando a Munique começou a seguir seus próprios instintos, e o resultado foi a completa emancipação em relação às influências que até então o haviam dominado.”156

Kandinsky foi o responsável pela realização da primeira aquarela considerada abstrata

de fato. Sua tela de 1910 é um colorido esboço que pode corresponder em vivacidade e

ousadia a qualquer pintura

tachista ou informal do auge

da abstração. Essa tela,

segundo Seuphor, é o marco

do aparecimento da pintura

abstrata no Ocidente. Já

Antonio Bento reforça a idéia

de que foram algumas telas

de Kandinsky que

concorreram para fixar o

período inicial do

movimento. Depois de

Kandinsky surgiram artistas, cujas obras assumiram importância inquestionável no panorama

da História da Arte mundial, mas foi, sem dúvida, o artista russo, para o crítico, o pioneiro

absoluto.

156 READ, Herbert. Uma história da pintura moderna. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P.166-67.

Kandinsky, Wassily. Sem Título (Primeira Aguarela Abstracta), 1910. Centre Georges Pompidou, Paris.

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Antonio Bento acompanhou de perto o desenvolvimento da carreira de Kandinsky. Com

muita cautela, o crítico foi consolidando a concepção de gênio que passou a envolver as suas

abordagens sobre o artista, desde sua coluna regular no Diário Carioca.

Kandinsky iniciou suas composições artísticas com o emprego de manchas com o intuito

de revelar a presença do inconsciente na arte abstrata. Entretanto, suas abordagens evoluíram

para o fortalecimento da pintura européia de vanguarda, formulando também as diretrizes da

abstração geométrica através de estruturas singulares. De acordo com as observações de

Antonio Bento, o artista,

Fazia ainda rebentar, quando isto lhe aprazia, as mais rigorosas criações do espírito. Era como se uma explosão tivesse quebrado figuras bem ordenadas. Surgia então uma nova catástrofe, despedaçadora de triângulos, quadrados, círculos e espirais. Parecia um turbilhão destroçando as formas rigorosas elaboradas pelo raciocínio. Esta polivalência de suas criações trouxe igualmente o germe da abstração lírica, que mais tarde captaria ou registraria as forças incontroláveis da mente humana, em outra etapa da arte não-objetiva do Ocidente desenvolvido. É por isto que Kandinsky ocupa um lugar único na história da pintura abstrata deste século. Os outros pioneiros ou principais criadores desta corrente fizeram de início, uma arte de caráter mais construtivista, despedaçada depois pelas explosões subjetivas do tachismo e dos pintores gestuais, obedientes à dinâmica de sismos avassaladores, que abalaram os cálculos do pensamento do artista ou suas ordenações espirituais. A psicologia comprova o acerto das proposições kandinskianas que se harmonizam ainda com o automatismo da escrita, preconizada por André Breton, no manifesto surrealista157.

Ao pesquisar as questões suscitadas pelo crítico, nota-se que o grande objetivo de

Kandinsky era dar vazão a uma arte que não mais exprimisse o mundo exterior e suas

particularidades, mas expressasse um mundo interior, subjetivo, mais denso e variado, de

possibilidades infinitas.

A partir de 1909, Kandinsky realizou uma divisão sugestiva de suas obras. Uma

distinção entre três diferentes níveis de inspiração: Impressões (predomínio de uma visão

naturalista), Improvisações (reflexo de emoções espontâneas) e por último, Composições. Esse

constituía o grau mais elevado e elaborado, pois era resultado de constantes pesquisas e

análise preparatória. Havia, portanto, o domínio de três fatores: razão, consciência e propósito.

O emprego dessas classificações era, muitas vezes, arbitrário por parte do artista. As pinturas

fauvistas, ou seja, as obras do artista produzidas até 1910 estariam inseridas no primeiro

grupo. As abstrações expressionistas de 1910 a 1921 correspondem ao segundo grupo,

enquanto as abstrações construtivas de 1921 em diante compõem o terceiro grupo. 157 BENTO, Antonio. Abstração na Arte dos Índios Brasileiros. Spala: Rio de Janeiro, 1979.p.48/49.

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Em suma, compreende-se a partir dos escritos do próprio artista158, que essas três fontes

tinham o objetivo de promover uma paulatina emancipação da arte em relação à natureza

como referência. O intuito era atribuir por meio do uso de formas plásticas (como sistema de

simbolização) uma forma externa à necessidade interior. A necessidade interna constituía para

Kandinsky, um estado de percepções não verbais, intuições inefáveis, sentimentos essenciais

de tudo o que constitui a vida do espírito.

Todo esse processo deveria ser tributário de uma linguagem simbólica precisa e

articulada. Assim, as formas coloridas lançadas sobre a tela deveriam prescindir da mesma

clareza de notas de uma partitura de orquestra.

Títulos como Improvisação e Composição foram empregados muitas vezes como

referencia à música, vibrando e ressoando formas e cores:

Segue-se, naturalmente, que os elementos de uma arte vêem-se confrontados com os de uma arte diferente. As aproximações com a música são, a esse respeito, as mais ricas de ensinamentos. A música é, há muitos séculos, a arte por excelência para exprimir a vida espiritual do artista. Seus meios jamais lhe servem, fora alguns casos excepcionais em que ela se afastou do seu verdadeiro espírito, para reproduzir a natureza, mas para inculcar vida própria nos sons musicais. Para o artista criador que quer e que deve exprimir seu universo interior, a imitação, mesmo bem-sucedida, das coisas da natureza não pode ser um fim em si. E ele inveja a desenvoltura, a facilidade com que a arte mais imaterial de todas, a música, alcança esse fim. Compreende-se que ele se volte para essa arte e que se esforce, na dele, por descobrir procedimentos similares. Daí, na pintura, a atual busca de ritmo, da construção abstrata, matemática; daí também o valor que se atribui hoje á repetição dos tons coloridos, ao dinamismo da cor.159 .

Em Do espiritual na arte publicado em dezembro de 1911 em Munique, Kandinsky

apresentou como principal premissa a afirmação da necessidade interior, de um impulso

interior autônomo, uma espécie de elo vital bergsoniano aplicado à pintura. Assim, o artista

deve ser cego para reconhecer e “desconhecer” formas, surdo para os ensinamentos e desejos

de seu tempo. Seus olhos abertos devem estar direcionados para sua vida interior e seus

ouvidos devem estar constantemente sintonizados com a voz da necessidade interior.

Consoante o artista, essa necessidade interior, entretanto, floresce através de três fontes

místicas, que correspondem, por sua vez, a três necessidades místicas: a primeira provém do

fato de que cada artista ou criador deve expressar a essência de sua própria personalidade, a

158 KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte e na pintura em particular. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 2ª. Edição. 159 Ibídem. p.57/58.

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segunda de que cada artista, como filho de seu tempo, deve exprimir a essência de seu

período. Por último, cada artista como servo da arte, deve expressar aquilo que constitui

essência geral da arte, ou seja, o que é puro e intemporal.

A filosofia idealista alemã (Kant, Fichte e Schelling) e o antipositivismo foram uma das

influências que marcaram o artista no período em que escreveu Do espiritual na arte. Para

Kandinsky a humanidade encontrava-se carente de uma introspecção espiritual e as artes (não

apenas a pintura) ansiavam de renovação. Essa renovação advinha de uma aproximação cada

vez mais intensa com o abstrato e para Kandinsky o grande exemplo disso eram alguns de

seus contemporâneos: na música Arnold Schönberg (1874-1951), Claude Debussy (1862-

1918), Richard Wagner (1813-1883), Alexander Scriabin (1872-1915), Robert Schumann

(1810-1856) e Modest Mussorgsky (1839-1881)160. Enquanto na pintura, Henri Matisse

(1869-1954) se apresentava na cor, como o artista do futuro e Pablo Picasso (1881-1973) no

domínio da forma. A síntese de todas as artes, atentando as suas minúcias e particularidades -

através do exame individual de cada um de seus elementos - seria a responsável pelo

desenvolvimento dessa renovação espiritual:

Não é nem um homem, nem uma maçã, nem uma árvore, que Cézanne quer representar; ele serve-se de tudo isso para criar uma coisa pintada que proporciona um som bem interior e se chama imagem. É igualmente com esse nome que um dos maiores pintores franceses contemporâneos, Henri Matisse, qualifica suas obras. Também ele pinta “imagens”, procura reproduzir o “divino”. O próprio objeto é para Matisse um ponto de partida. (...). Ele serve-se exclusivamente dos meios da pintura: a cor e a forma. Seus dons excepcionais, seu talento de colorista, que ele deve à sua qualidade de francês, levaram-no a conceder em suas obras um papel preponderante à cor. Tal como Debussy, nem sempre soube libertar-se da beleza convencional: tem o impressionismo no sangue. (...) O espanhol Pablo Picasso, esse outro grande parisiense, jamais sucumbiu à tentação dessa beleza. (...). Em suas últimas obras (1911), ele consegue, à força da

160 De acordo com Kandinsky: A palavra tem, por conseguinte, dois sentidos: um sentido imediato e um sentido interior. Ela é a pura matéria da poesia e da arte, a única matéria de que essa arte pode servir-se e graças à qual consegue tocar a alma. Richard Wagner realizou algo semelhante em música. Seu célebre “leitmotiv” tende igualmente a caracterizar um herói, não por meio apenas de acessórios teatrais, de maquilagem ou de efeitos luminosos, mas por um “motivo” preciso, ou seja, por um procedimento puramente musical. Esse motivo é uma espécie de atmosfera espiritual evocada por meios musicais. (...) Os músicos mais modernos, como Debussy, fornecem impressões que, com freqüência, tiram da natureza e transformam em imagens espirituais, sob uma forma puramente musical. Por essa razão, Debussy tem sido aparentado aos pintores impressionistas. (...). A música russa (Mussorgsky) exerceu grande influência sobre Debussy. Portanto, nada tem de surpreendente que nele se descubra certa afinidade com os jovens compositores russos, sobretudo com Scriabin. É evidente o parentesco de timbre inferior. (...) Schönberg dá-se claramente conta de que a liberdade sem a qual a arte sufoca nunca é absoluta. Cada época recebe seu quinhão dela e o gênio mais poderoso não pode ir mais além. Mas essa medida deve esgotar-se por inteiro de cada vez, e o será sempre. (...) Sua música faz-nos penetrar num reino novo onde as emoções musicas já não são somente auditivas mas, sobretudo, interiores. Aí começa a música futura. Op. Cit. P.50/51/52.

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lógica, destruir os elementos “materiais”, não por dissolução, mas por uma espécie de fragmentação das partes isoladas e pela dispersão construtiva dessas partes isoladas na tela. Coisa surpreendente, Picasso parece, ao proceder assim, querer conservar, apesar de tudo, a aparência material. Não recua diante de nenhum meio e se, numa forma, a cor o incomoda, não se embaraça com isso e pinta seu quadro com marrom e branco. É sua audácia que faz sua força. MATISSE: cor PICASSO: forma. Duas grandes tendências, um grande objetivo. 161

Dessa maneira, forma e cor são as bases para a construção de uma linguagem adequada

para a expressão da emoção, pois como o som de uma música, ambas influenciam a alma

diretamente. Forma e cor devem ser configuradas para conceder ao observador uma

mensagem correta sobre a expressão da necessidade interior. Kandinsky estava convicto da

existência de uma correspondência interior entre espectador e obra de arte:

A cor, não obstante, é um meio de exercer sobre a alma uma influencia direta. A cor é a tecla. O olho o martelo. A alma é o piano de inúmeras cordas. Quanto ao artista, é a mão que, com a ajuda desta ou daquela tecla, obtém da alma a vibração certa. É evidente, portanto, que a harmonia das cores deve unicamente basear-se no principio do contato eficaz. A alma humana, tocada em seu ponto mais sensível, responde. Chamaremos essa base de Princípio da Necessidade Interior.162

Apesar de viver na Alemanha e de seu incontestável legado artístico, a declaração alemã

de guerra à Rússia, em 1914, forçou o afastamento do artista. Kandinsky saiu de Munique,

cruzando a Suíça, a Itália e os Bálcãs, para finalmente chegar a Moscou no princípio de 1915.

Em 1918, tornou-se professor da Academia de Belas-Artes de Moscou e em 1919 assumiu o

cargo de diretor dos Museus de Cultura Pictórica. Em 1920 foi nomeado professor da

Universidade de Moscou e finalmente, em 1921, fundou a Academia de Artes e Ciências,

sendo seu vice-presidente. Kandinsky permaneceu na Rússia até 1922, quando começou a

ministrar aulas na escola Bauhaus, através de um curso teórico e prático de pintura.

Durante os últimos anos de Bauhaus, da qual o artista foi professor de junho de 1922 a

julho de 1933163, Kandinsky reforçou o papel da intuição no processo criativo, condição

161 KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte e na pintura em particular. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 2ª. Edição. P.53/54. 162 Ibídem. p.68/69. 163 A Escola Bauhaus foi fundada em Weimar, em 1919, pelo arquiteto Walter Gropius. Em 1925, em função de pressões políticas, a Escola instalou-se em Dessau, onde em torno do novo edifício foi projetado um Campus, reservando a cada professor uma casa branca e racional. Dentre eles estava Kandinsky e Paul Klee que eram vizinhos. Em 1933, a instabilidade política, econômica e social da Alemanha facilitou a ascensão do Partido

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primordial para o nascimento de uma obra de arte. Posteriormente fez uso da linguagem

onírica de sinais postulada por Paul Klee. Ambos os artistas desfrutaram de uma sólida

amizade, embora cada qual criasse a partir de princípios artísticos distintos. Mas, a harmonia

da experimentação de técnicas e materiais novos, presente em Klee, parece ter contagiado

Kandinsky. Basta considerar-se o tipo de execução pictórica e a técnica de pulverização de

algumas telas produzidas em 1930, já em Dessau, marcadas por uma leveza e humor sutis.

Cada quadro constituía, portanto, um universo único, pintura em estado puro, lirismo absoluto

capaz de transmitir uma espiritualidade inquieta e solitária, porém controlada: a

materialização da obra de arte através da lógica e da intuição, tornando-se acessível aos

sentidos humanos.

Ao mesmo tempo, pintores mais ousados intentaram levar as últimas consequências o

legado dos cubistas, fato que deveria resolver-se em uma superação da antinomia fundo-

figura, fragmentando a idéia de forma. Foi esta a terceira grande revolução na arte do século

XX: a pintura que se ocupou em destruir, além da matéria e da forma, os ritmos do sentimento

e a sensibilidade, transformando o quadro em um sutilíssimo jogo de relações proporcionais

de espaço destinado a envolver o espírito do espectador em um clima despido de tensões que

constituirá a essência da realidade.

Para Antonio Bento, além de Kandinsky, é importante ressaltar as contribuições de

Malevitch, pois ele também desenvolveu os principais fundamentos de uma arte abstrata

oriunda da manifestação artística de culturas primitivas. Assim tanto em um contexto

espiritual quanto antropológico, a arte dos primitivos foi valorizada, não somente no plano da

sensibilidade como também da forma. Para Romero Brest, a importância de Malevitch é de

outra ordem:

Kasimir Malevitch, creador del suprematismo en Rusia, da el primer paso al presentar un cuadro en el que sólo se ve un cuadrado negro sobre fondo blanco (1913), pretendiendo que de ese modo destierra definitivamente los objetos y se mueve en el campo de la pura sensibilidad. ¿Cómo recurre al cuadrado, forma mental típica, para dotar a la pintura de una dimensión absolutamente sensible? ¿Qué es lo sensible para él? No es por cierto “la capacidad de recibir las representaciones según la manera como los objetos nos afectan”, como decía Kant, sino todo lo contrario: es la capacidad de escapar al objeto como punto de partida de la experiencia artística para entrar en “un desierto en el que nada es reconocido salvo la sensibilidad”. ¿Sensibilidad sin objeto, vale decir sin experiencia? Sí, porque da al vocablo una significación metafísica y lo emplea para designar simplemente el

Nacional-Socialista. Um dos primeiros atos do novo regime, sob a liderança de Adolf Hitler, foi cercear as atividades da Bauhaus. Kandinsky mudou-se para Berlim, para uma antiga fábrica de telefones, onde a Escola funcionaria como instituto particular, entretanto, isso não impediu o seu fechamento definitivo em julho do mesmo ano.

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enfrentarse del artista con las esencias. Ser sensible no es descubrir la vida con su inevitable nota de contingencia, ni proyectar las no menos contingentes emociones individuales, sino intuir lo absoluto. Si apela al cuadrado, entonces, es por la misma razón por la que desde fines del siglo XIX se impone la naturaleza muerta —diferencias de grado nada más—; porque así como Cézanne veía en los objetos inertes la posibilidad de cargar las formas con un significado lírico que procedía de él mismo, precisamente por ser inertes, Malevitch ve en el cuadrado la forma vacía, tan elemental como para que predominen las relaciones sensibles de tamaño, color y posición. Un cuadrado negro sobre un cuadrado blanco: no es una sensibilidad que se refleja, como en la pintura que representa objetos; es una sensibilidad que se concreta. Así entiende expresar su adivinación de espacio que abarca el cosmos, un espacio que debía parecer vivo por su latencia dinámica.164

Mas quando Malevitch se vale de quadrados, retângulos, triângulos, círculos, cruzes,

barras, etc., formas que preenchem o espaço da tela criando silêncios e transmitindo violências

da alma, indicando direções como se fossem raios vetores, o artista retorna ao signo e à

sensibilidade, em sua acepção legítima. Segundo Brest, portanto, Malevitch mais do que

expressar um grande ritmo, expressa ritmos de sensações com os mesmos títulos que os seus

quadros anunciam: Sensação de atração (1914), Sensação de voo (1914), Sensação da vontade

mística (1915), Sensação de derrame (1915), Sensação de sons metálicos (1915), Sensação do

movimento e da resistência (1916), confundindo os acontecimentos físicos com os espirituais.

Nesse momento, Malevitch se aproxima de Kandinsky, embora tenha se inclinado em direção

à escultura arquitetônica, volumes plenos que apenas admitem o espaço e a luz, aproximando-

se novamente dos cubistas.

Portanto, Malevitch, de fato, plantou um problema e concedeu soluções estéticas

válidas, porém não teve a tenacidade necessária para persistir e amadurecer suas premissas,

pois era, sobretudo, um romântico. Ou seja, um místico, um niilista capaz de destruir o deleite

da pintura, mas não o de reconstruir o mundo de suas instituições. Mas, coerente e de maiores

projeções, foi o movimento neoplástico holandês que possui conexões, pelo espírito que o

constitui, com as primeiras experiências de Malevitch.

***

As contribuições de Kandinsky são indeléveis para a História da Arte. Antonio Bento,

Romero Brest e tantos outros críticos reforçam tal afirmação. Ambos valorizam em Kandinsky

a sua capacidade em cultivar a música, encontrando metáforas musicais para expressar o

sentido das formas, porém através de uma teoria essencialmente plástica. 164 BREST, Jorge Romero. La Pintura Europea Contemporánea. México: Fondo de Cultura Económica. 1952. P.171

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Ambos os críticos concordam que, sobre bases múltiplas e densas, como o cubismo, o

orfismo, o raionismo, o impressionismo, desenvolveram-se movimentos capazes de superar

com originalidade, as tendências iniciais.

Coube a Kandinsky, a primazia de ter desnudado a verdadeira herança estilística dos

impressionistas, libertando as formas geométricas para novas funções, significações e

experimentações. O objeto dentro de uma nova dimensão empírica, não obedece ao real

imediato, convertendo-se em metáfora e signo plástico. O mestre russo foi o primeiro artista a

tentar dar forma às emoções sem utilizar-se da figura, ou compor a forma, obedecendo, única

e exclusivamente, aos imperativos interiores, por isso, foi entre os artistas–teóricos quem mais

forneceu subsídios para compreender a natureza afetiva da forma.

O que mais encantou Antonio Bento na trajetória de Kandinsky foi a busca, a pesquisa e

realização de uma pintura igual à música. Para Brest, foi o conhecimento e a leitura da tese de

doutoramento de Wilhelm Worringer (Abstração e Intuição, 1907) o fator primordial para o

fortalecimento da concepção de que a arte não necessitava de um motivo figurativo. Esse foi o

ousado propósito de Kandinsky, em sua teorização em torno da arte abstrata: queria que essa

se assemelhasse a música, que diz tudo com os sons. A pintura poderia ser igualmente uma

ária ou uma sinfonia de cores e formas. Os quadros da fase parisiense do artista russo são, para

o crítico brasileiro, os mais belos do genialíssimo artista. Uma festa de tonalidades, formas e

figuras raras. Era de fato pintura transfigurada em música visual.

Portanto, a busca pela pureza impeliu os artistas a abstraírem as formas naturais que

escondiam os elementos plásticos. A concretização da idéia de um espírito criador tornou-se a

principal base de uma pintura pura, rumo a uma arte de linguagem universal, que encontraria

na América Latina, base fecunda para seu desenvolvimento e expansão.

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CAPÍTULO V: INTERSECÇÕES POLÍTICAS E ARTÍSTICAS ENTRE

BRASIL E ARGENTINA: A ARTE ABSTRATA COMO FLUXO

UNIVERSAL.

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Como lembra Jorge Schwartz sobre a década de 1920 no Brasil, sobretudo em São

Paulo, o ano de 1922 foi marcado por uma ruptura vanguardista que culminou no final da

década com o movimento da Antropofagia. Os anos seguintes mostraram que as influências da

arte abstrata transcenderam o circuito europeu e, no Brasil, assumiram características e

dimensões bastante peculiares, desvelando uma atuação mais determinante da crítica de arte

através de nomes como Antonio Bento de Araújo Lima, Mário Pedrosa e Sérgio Milliet,

mediante uma produção artística de viés mais abstratizante:

(Vicente do Rego Monteiro) É o único artista de toda a geração de 1922 que se volta para motivos indígenas, com uma linguagem vanguardista em que prevalecem o primitivo e a geometria ortogonal. Em 1922, inspirado no design ameríndio e marajoara, produz os primeiros óleos de abstração geométrica no Brasil. (...). É o mesmo Milliet que não hesita em considerar Tarsila, em vários momentos de sua crítica, como precursora em nosso meio do cubismo, do expressionismo (com Segall e Anita Malfatti) e do surrealismo.165

Essa descoberta e valorização da riqueza plástica e visual das artes tribais foi um evento

pertencente a diversos países e continentes, constituindo uma peculiar postura empreendida

pelos artistas modernos.

Junto com a fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em julho 1948,

instituiu-se o debate figuração x abstração. O crescimento da arte abstrata no Brasil foi

marcante e, já no início dos anos 50, o país presenciou, sobretudo em São Paulo e Rio de

Janeiro, movimentos de arte concreta e neoconcreta. Ambos originaram um processo artístico

ciente de sua especificidade, enquanto elemento de informação construído a partir de

processos mentais e sistemáticos.

A Segunda Guerra Mundial trouxe mudanças significativas nas esferas política,

econômica e social não somente para o Brasil, mas também para a Argentina, demudando o

campo artístico de ambos os países e tecendo aproximações entre eles.

Ao final da Segunda Guerra, Brasil e Argentina apresentavam, em alguns aspectos,

importantes semelhanças. Houve um retorno à democracia, com os presidentes de ambos os

países, coincidentemente militares, eleitos pelo voto direto166. Soma-se a isso, o fato de que

165 SCHWARTZ, Jorge. Fervor das vanguardas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.p.53. 166 Com o fim do Estado Novo (1937-1945) chefiado por Getúlio Vargas, os brasileiros reencontravam-se com a democracia, elegendo para a presidência do país o general Eurico Gaspar Dutra, candidato do Partido Social Democrático. Em 1951, Getúlio Vargas retornou ao poder, com mandato até 24 de agosto de 1954. No mesmo período, na Argentina, 1946, Juan Domingo Perón, assumia o governo. Geralmente se divide a gestão econômica do governo de Perón em duas fases. A primeira cobre o período 1946-1949 e a segunda o período 1950-1955.

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desde a década anterior, ambas as nações vivenciavam o crescimento da atividade industrial e

uma atmosfera favorável ao seu beneficiamento e desenvolvimento.

O centro da cultura artística mundial, e, por conseguinte do mercado de arte, deslocou-se

de Paris para Nova Iorque. Como mostra Giulio Carlo Argan, as tendências não figurativas

(mais imunes aos conteúdos e características nacionais) passaram a angariar um número cada

vez maior de adeptos. A arte se configurava como ambiente profícuo à regeneração do

pragmatismo alienante da vida cotidiana: se por um lado a arte assumia dimensões ativistas e

objetivas, por outro ela propunha o domínio do espiritual, do criativo.

Neste contexto, explicita-se novamente a importância, também como fonte teórica, da

Revista Ver y Estimar, dirigida por Jorge Romero Brest, contribuindo para a construção de um

pensamento de vanguarda na Argentina. Ainda em 1955, o governo da Revolución

Libertadora nomeou Romero Brest interventor no Museu Nacional de Belas Artes, cargo que

se converteu em de Diretor durante o governo Frondizi de 1958 até outubro de 1963,

momento em que Brest renunciou ao cargo. Nesse mesmo ano, Brest partiu para uma política

artística mais expressiva ao assumir imediatamente a direção do Centro de Artes Visuais do

Instituto Torcuato Di Tella.

Segundo a crítica de arte Lisbeth Rebollo Gonçalves167, a análise de uma história da arte

latino-americana perpassa pelo âmbito regional e pela constante tentativa de uma expressão

peculiar. Essa, somada à necessidade de uma constante atualização, origina um movimento

ímpar para o processo artístico situado entre o local e o universal. E é nesse contexto que se

desenvolveu uma modernidade latino-americana, com a presença do regional e o ímpeto das

vanguardas artísticas:

No caso da arte latino-americana, temos como fonte sensível uma teia cultural de valores de complexidade “híbrida”, que se expressam através de “técnicas” pelo artista em múltiplos programas estéticos da realidade contemporânea advinda dos centros propulsores do desenvolvimento artístico. (GONÇALVES, 1994, p.77)

5.1. A era dos manifestos: o caso brasileiro.

167 GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Regionalidade e universalidade na expressão artística latino-americana. In: BULHÕES, Maria Amélia; KERN, Maria Lúcia Bastos. (org.) Artes Plásticas na América Latina contemporânea. Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 1994.

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As mudanças provenientes do fim Segunda Guerra Mundial na Europa tiveram

ressonância no Brasil e na Argentina. O país portenho preparava-se para a ascensão de Juan

Domingo Perón à presidência. Porém, desde o segundo governo de Hipólito Yrogoyen em

1928, mudanças políticas, econômicas e sociais pretendiam reestruturar a administração

pública, modificar o regime de ensino e conseqüentemente restabelecer a autoridade do poder

estatal. Comenta Jorge Romero Brest:

La primera de esas revoluciones, en 1930, marcó un claro retroceso sea por la restauración del conservadorismo con tinte nacionalista y algún ribete de fascismo, sea por el debilitamiento del impulso económico que había cimentado nuestra riqueza, sea por el encerramiento que ya habían impuesto los radicales y aumentó la alianza militar-conservadora. El ascenso en el plano artístico que desde 1924 significara la acción del grupo Martín Fierro y la Asociación Amigos del Arte, se detuvo tan drástica como repentinamente. La segunda revolución, en 1943, fue más compleja, porque si bien tuvo caracteres similares a la anterior, cambió su rumbo cuando Perón la condujo, hasta llegar a la presidencia en 1946, adoptando métodos dictatoriales: autosuficiencia neurótica, libertad de opinión suprimida, medidas demagógicas constantes, debacle financiera, afección a los antecedentes hispanocriollos en el orden cultural.168

A América Latina foi amplamente influenciada pelos debates instaurados pelas

vanguardas européias, compartilhando de seu desprezo pelo antigo e de seu desejo de originar

uma arte conectada com o seu próprio tempo. De forma análoga ao que aconteceu na Europa

na década de 1910, os anos 20 na América Latina compreenderam o surgimento de uma série

de manifestos, revistas e polêmicas locais, todos gerados pela importação direta ou indireta de

modelos oriundos dos constantes movimentos de vanguarda europeus. Datam desse período,

as publicações tanto no Brasil quanto na Argentina das revistas: Proa, Martín Fierro,

Klaxon e Revista de Antropofagia e dos manifestos Ultraísta, Manifesto de Martín

Fierro, Manifesto da Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropófago.

Consoante Schwartz, Brasil e Argentina apresentam pontos de contato entre os

movimentos de vanguarda do período citado no que se refere à tentativa de fixação de uma

retórica antipassadista que busca eliminar as convenções vigentes:

Produz-se na linguagem dessas novas poéticas um verdadeiro processo de carnavalização, com a subversão dos gêneros, com formas coloquiais da linguagem

168 ROMERO BREST, Jorge. Arte en la Argentina. Buenos Aires: Paidós, 1969. p. 25/26.

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em convivência com o poético tradicional, ao mesmo tempo em que se introduz a manifestação do cotidiano na arte.169

O diferencial brasileiro estaria na tentativa de criação e consolidação de uma arte

voltada para a realidade nacional. Nesse contexto, a atuação de Oswald de Andrade

manifestou caráter ímpar, ao fazer de seu conceito de antropofagia uma densa reflexão sobre o

aspecto original da cultura brasileira. A grande contribuição da fórmula oswaldiana, ante as

diversas iniciativas na América Latina, estava na assimilação do estrangeiro para a exportação

do nacional, ou seja, ao valorizar a dimensão primitiva da cultura brasileira, Oswald

conseguiu coaduná-la com a feição moderna e contemporânea dos ismos europeus. A Paris

dos anos de 1920, freqüentada por Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, era notadamente

marcada por um profundo interesse pelo canibalismo, pelo selvagem e pelo primitivo. Tal

atmosfera influenciaria o Manifesto Antropófago publicado por Oswald, no qual ele retomou

algumas idéias contidas no Manifesto Pau-Brasil, de 1924. Ao delinear o conceito de

antropofagia, o escritor pretendia se servir da herança cultural européia não mais como

modelo, rejeitando as fórmulas preestabelecidas de composição poética e abdicando de todo o

eruditismo. Já em 1924, tais ideais apresentavam-se nítidos, segundo Oswald:

A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição

milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. […] Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres. […] A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna. […] Apenas brasileiros de nossa época.170

Entretanto, se por um lado o Manifesto Pau-Brasil buscava um retorno aos primórdios

de uma originalidade nativa, por outro o Manifesto Antropófago propunha a absorção do

inimigo para ressignificá-lo, transformá-lo em totem. O passado esquecido, a rica herança

cultural brasileira seria extremamente profícua para o panorama artístico nacional se

interpretada e valorizada pelos artistas pátrios, ou seja, “contra a realidade social, vestida e

169 SCHWARTZ, Jorge. Vanguarda e cosmopolitismo na década de 20: Oliverio Girondo e Oswald de Andrade. São Paulo: Perspectiva, 1983. p. 45. 170 Idem, p.53.

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opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições

e sem penitenciária do matriarcado de Pindorama”.171

Assim, mais que uma especulação estética, pretendia-se, ainda que de forma

idealizada, a concretização de um projeto mais amplo: a transformação social. Nesse

panorama, o homem brasileiro agiria com vigor, dotado de uma nova concepção de mundo,

em que, conforme Oswald, o bom selvagem, “celebrando o canibal tupi por seu poder

transformador, por sua capacidade de criar a instabilidade, o conflito, em vez de um resultado,

uma conclusão ou síntese.” 172

Todos os esforços empreendidos por Oswald não foram suficientes para que a sua

antropofagia fosse vitoriosa mediante as outras propostas modernistas de interpretação da

especificidade cultural brasileira, tanto em seu princípio quanto nos anos posteriores marcados

por um engajamento político, religioso e social no campo artístico. Mas, no que tange a

década de 1960 no Brasil, a antropofagia deixou uma importante contribuição para o debate

artístico nacional, ao servir de base para o questionamento do paradigma nacionalista vigente

pelos tropicalistas. Esses consideravam que a idéia de uma produção originalmente nacional

era desprovida de sentido.

Desde a década de 1950, o país já adotara uma atitude universalizante no campo das

artes, esta era caracterizada por uma clara adesão a uma linguagem abstrata de base

construtiva e raiz européia e para alguns autores, como Ronaldo Brito, por exemplo, seriam os

anos 50 e não os anos 20 o grande marco da entrada do Brasil em um contexto de

modernidade nas artes visuais.

5.2. Um encontro cultural: do regional ao universal.

Para a uma breve análise do processo de estreitamento das relações entre Brasil e

Argentina, aponta-se como importante marco a presença do crítico Jorge Romero Brest em

solo brasileiro, em fins de 1940. Tal presença teria corroborado para a legitimação das

correntes modernistas, com abertura para o abstracionismo como ápice de uma arte que se

apresenta essencialmente por formas, através de um discurso progressista de âmbito

internacional. A partir de uma trama regional deu-se a interação entre artistas, críticos e

171 ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia, São Paulo, n. 1, ano 1, maio 1928. 172 MOTA, Regina. Manifesto Antropófago – 80 anos e indo ao infinito. In: www.fafich. ufmg.br/manifestoa/pdf/analisemanifestoa. Acesso em 18. jun. 2014.

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instituições na criação e divulgação da arte abstrata como linguagem universal. Para Aracy do

Amaral173, a efervescência cultural paulista de fins dos anos de 1940 e as palestras proferidas

pelo crítico no MASP foram de salutar importância para o surgimento da arte concreta

brasileira.

Quanto aos programas das conferências proferidas no MASP por Brest, essas consistiam

em um balanço de meio século de pintura174, em que a partir dos ensinamentos de Picasso e

Matisse, se perpetuaram quatro falsos ideais na história da representação: o neo-humanismo, o

neo-romantismo, o neonaturalismo e o neo-realismo. A arte baseada nesses ideais era para o

crítico, uma arte sem autenticidade. Conseqüentemente, o balanço da história da arte argentina

era negativo, por ser uma arte proveniente de um passado pré-hispânico pobre. Era uma arte

colonial rústica e de baixo valor, pois dos espanhóis importara-se fórmulas culturais gastas,

sem a compreensão das formas locais barrocas e neoclássicas. Para Brest, entre o velho e o

novo em artes plásticas, figurava a idéia da abstração entendida como a autonomia da

linguagem. Nesse ponto, surgem as distinções entre o abstrato e o concreto, o orgânico e o

inorgânico, o funcional e o expressivo. Todas essas abordagens permitiam à Brest marcar a

dicotomia entre esse novo momento histórico e o rumo das artes plásticas na América Latina.

A percepção de Brest sobre a realidade brasileira em contraposição ao cotidiano cultural

argentino possibilita-nos realizar algumas aproximações e distanciamentos quanto à iniciativa

privada e estatal de ambos os países no campo das artes.

Brest divulgava através das páginas da Revista de Ver y Estimar a vontade dos

brasileiros em consolidar um projeto de caráter modernista. Na publicação do número 26, de

1951, o crítico mostrava-se intrigado com o processo singular e expressivo de implementação

de novos museus no Brasil, ou seja, empreendimentos financiados por capitais privados e

subsídios públicos.

A criação, em 1947, sob o patrocínio do empresário de comunicações Assis

Chateaubriand (1892-1968), do Museu de Arte de São Paulo, desempenhou importante papel,

ao abrigar a mais valiosa pinacoteca reunida no cenário mundial da época. A iniciativa do

empresário financiou a vinda do casal Lina Bo e Pietro Maria Bardi para a organização de um

novo espaço cultural, assim como a aquisição de importantes obras de significativos pintores

173 AMARAL, Aracy. (org.). Projeto Construtivo brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro/São Paulo: Museu de Arte Moderna/Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1977. 174 Brest propunha um conceito de síntese das artes visuais a partir da seguinte equação: “a arquitetura como rainha e senhora; a pintura e a escultura: funcionalismo expressivo, o decorativo: as artes derivadas”. A questão da arte moderna projetada na síntese das artes em função de uma arquitetura integral, assim como o balanço de meio século da pintura européia são discutidas em BREST, J. Romero. La Pintura Europea – 1900-1950. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1952.

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europeus de várias épocas, constituindo o mais importante acervo do gênero na América do

Sul. Para a formação dessa cultura cosmopolita, contribuíram também a criação do Museu de

Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Museu de Arte Moderna de São Paulo (Núcleo gerador

das bienais de artes plásticas) ambos em 1948. Brest acompanhou rigidamente todos estes

projetos: as conferências, os cursos, as compras de obras e publicações realizadas pelo MASP,

além da criação do MAM-SP, sobretudo a sua exposição inaugural, “Do Figurativismo ao

Abstracionismo”, realizada em 1949.

A exposição inicial do MAM-SP lançou as primeiras fagulhas sobre o intenso debate

sobre a figuração versus abstração que ocorreria ao longo da década de 1950 e apareceria no

Congresso de 1961. Léon Degand, primeiro diretor do MAM de São Paulo, era filiado às

correntes francesas da abstração e ao convidar para a exposição em sua maioria artistas

franceses, contribuía decisivamente para o conhecimento desta corrente no Brasil,

fortalecendo o caráter didático-informativo das primeiras bienais.

Como já mencionado, a exposição organizada por Léon Degand também foi apresentada

em Buenos Aires no Instituto de Arte Moderno (IAM), instituição fundada em 1949 e

financiada exclusivamente por Marcelo De Ridder. O Instituto mantinha um projeto

diferenciado com a presença de artistas nacionais e estrangeiros, alguns nem sempre

consagrados.

Romero Brest acompanhou também de forma bastante próxima o nascedouro e

desenvolvimento do IAM, através de Ver y Estimar. Porém, para Brest o IAM não foi capaz

de representar um projeto realmente moderno, pois o critério para a eleição de exposições,

assim como os textos dos catálogos e os conjuntos selecionados para os salões “A Jovem

Pintura Argentina”, (prêmio que Ridder sustentou de 1949 a 1959) não estimulavam a

projeção de uma arte vanguardista. Ao contrário da dinâmica paulista, Ridder, na opinião de

Brest, executava apenas um projeto de cunho romântico, individualista. Em São Paulo,

instituía-se uma nova modalidade de mecenato, vinculado à indústria e aos setores emergentes

da sociedade paulista, que buscavam projetar-se em um mundo econômico através de

dispositivos culturais.

De acordo com os apontamentos da pesquisadora María Amalia Garcia175, é possível

se realizar uma comparação bastante profícua entre o momento cultural e político vivenciado

pelo Brasil e Argentina, na década de 1940. Observamos um cenário conturbado em ambos os

175 GARCÍA, María Amalia. Entre la Argentina y Brasil. IN: GIUNTA, Andrea; COSTA, Laura Malosetti.(org) Arte de Posguerra- Jorge Romero Brest y la Revista Ver y Estimar. Buenos Aires: Paidós, 2005.

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países, no qual se desenvolveu uma arte internacionalista que encontrou em níveis

diferenciados resistências e críticas. Como observa Carlos Marichal,

Hacer la historia de América Latina constituye un desafío permanente en la medida que se trata de un esfuerzo por abordar, comparar y contrastar una multiplicidad de realidades geográficas, políticas, económicas, sociales y culturales. Implica por consiguiente, una labor de historia comparada no sentido más lato del término. Pero, en verdad, no todos los aspectos de la historia son siempre comparables. En todo caso, hay temas y problemas que pueden abordarse de manera más productiva desde una óptica comparativa y otros que requieren más bien un enfoque singular y específico. Por ello, suele correrse el riesgo - al hacer la historia comparada - de fracasar en ese difícil empeño. Pero también se ofrece la posibilidad del éxito, lográndose abrir ventanas amplias y renovadoras para problemas que interesan a los "latinoamericanistas" de ésta y otras latitudes (FUENTES, 1994, p.7)

No Brasil, o período correspondente a novembro 1937 até outubro de 1945 ficou

conhecido como Estado Novo. O regime político em questão foi resultado de uma forte

instabilidade política ocasionada pelo Plano Cohen176, assim como pela Intentona Comunista

(1935). Desde 1935, os movimentos operários interpretados como ameaçadores, a

conseqüente promulgação da Lei de Segurança Nacional de abril do mesmo ano e o

fechamento da Aliança Nacional em julho revelavam já uma atmosfera alarmista. A fim de

interromper os sucessivos estados de sítio e uma possível dominação comunista, Getúlio

Vargas, impulsionado e apoiado pelo exército brasileiro, promoveu um golpe de estado, que

deu início a uma ditadura em 10 de novembro de 1937, quarta-feira. A essa atmosfera já

conturbada, somavam-se os problemas econômicos, sobretudo, aqueles oriundos da produção

cafeeira, posto que a ausência de autonomia econômica e a dívida externa travavam qualquer

possibilidade de renovação do aparato econômico. Se existiam problemas financeiros, por

outro lado, as dissidências no interior das classes dominantes também começavam a surtir

preocupações, além dos levantes das classes subalternas. Toda essa atmosfera parecia

assinalar que o liberalismo clássico e o sistema representativo de governo eram inadequados à

realidade brasileira, pois, para os setores dominantes da época, estavam distantes de contribuir

176 Em 1937, quando o clima de instabilidade nascido em 1935 parecia se acalmar, surgiram indícios falsos de um plano organizado pelos comunistas de cunho revolucionário que incluiria uma série de assassinatos e violências na busca pelo poder e da instalação do credo russo. Cogita-se que, a princípio, um relatório realizado pelo capitão Olímpio Mourão Filho foi interpretado pelo general e integralista Góis Monteiro como um documento oficial, obrigando o exército a agir em pró da estabilidade política e social do país. Como lembra o almirante Ernani do Amaral Peixoto, também genro de Vargas, “O Estado Novo viria com Getúlio, sem Getúlio ou contra Getúlio”. In: GARCIA, Nelson Jahr. Estado Novo - Ideologia e propaganda política. São Paulo: Loyola, 1982. p. 53.

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para a consolidação da unidade do país e para a defesa dos interesses nacionais. A justificativa

para o golpe era, portanto, que prevalecia no país a defesa de interesses individuais em

beneficio das infiltrações comunistas, fragilizando a estrutura e a segurança nacionais,

promovendo a desordem e, inevitavelmente, uma guerra civil. Segundo Nelson Garcia, em

1938, já não havia para o regime de governo vigente diferenciação entre os extremistas de

direita ou de esquerda, integralistas e comunistas, que se valiam de artifícios múltiplos para a

tomada do poder. Ambos os grupos, conscientemente ou não, eram provenientes de um

regime de governo repleto de falhas e vícios, permitindo a influência de agentes estrangeiros.

De acordo com Garcia, o argumento sempre presente era o de que o regime anterior promovia

a desagregação, ameaçando a unidade da pátria e colocando o país sob a iminência de uma

guerra civil. Daí a intensa necessidade justificada ou não de uma união sólida em prejuízo das

antigas teses federalistas. Portanto, a divisão do país, fruto do prevalecimento de interesses

regionais e particulares, deveria dar lugar à “unidade nacional”.

O novo momento político, econômico e social propunha que a força adquirida pelo

operariado urbano, através de algumas conquistas como as provenientes das leis trabalhistas

do primeiro Governo Vargas (1930-37), fosse minimizada. Durante a vigência do Estado

Novo, ao mesmo tempo em que se atendiam antigas reivindicações, procurava-se soterrar o

passado de luta operária, maquiando-se as reais condições de trabalho e salário da categoria.

Afigurava-se um discurso em que os dirigentes possuíam por princípio uma preocupação com

os seus trabalhadores. A imagem transmitida era a de que ao contrário de outras nações, no

Brasil, os benefícios eram outorgados pelo Estado de forma pacífica. Desse modo, o Primeiro

de Maio, outrora conhecido como uma data de balbúrdia e desordem era agora um momento

de confraternização em uma sociedade homogeneizada, em que os interesses divergentes das

classes diluíam-se no interesse da nação. Todos, independentemente da classe social a qual

pertenciam, eram iguais, todos eram trabalhadores na construção de um destino comum. Uma

vez que capital e trabalho dependiam um do outro, a cooperação mútua era imprescindível,

pois permitiria equilibrar ambos os fatores e realizar os interesses tanto dos patrões quanto dos

empregados.

A imagem de um governo paternalista e construtivo era consolidada através de um

aparelho propagandístico extremamente eficiente em difundir informações e imagens que

suscitavam um nacionalismo confesso, mediante um povo brasileiro repleto de qualidades,

ordeiro, tolerante, compreensivo e, portanto, incompatível com reivindicações, lutas ou

conflitos.

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O processo de legitimação do Estado Novo foi sustentado pela veiculação de uma série

de mensagens, que visavam corroborar a adequação da estrutura e funcionamento do regime

às concepções e objetivos sugeridos. Dessa forma, justificava-se o golpe e o regime pela sua

adequação à realidade nacional, pela capacidade do Chefe, pelas obras realizadas e pelo apoio

da população. Era como o nome propunha, um novo Estado, uma nova fase do país que tinha

em Vargas uma pessoa adequada a cumprir essa função de líder excepcional, carismático, mas

simples e acessível, capaz de consolidar e cumprir os interesses do povo. A construção da

personalidade ímpar de Getúlio foi uma das mais significativas atividades da propaganda do

Estado Novo, capaz de produzir um verdadeiro culto à sua personalidade, através da

popularização da imagem presidencial, ao mesmo tempo em que enrijecia o controle sobre a

liberdade de expressão no país.

Como lembra Nelson Garcia,

Inicialmente a censura era exercida pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, através do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, pela Polícia Civil do Distrito Federal (teatro e diversões públicas) e pela Comissão de Censura Cinematográfica. Com a criação do DIP em 1939, este ficou encarregado de toda atividade censória em relação ao Teatro, Cinema, funções recreativas e esportiva, radiodifusão, literatura social e política e imprensa. (...) As sanções previstas para os infratores eram as mais diversas: simples advertência, multas e suspensão para artistas e empresários, suspensão de funcionamento de empresas teatrais e de diversões públicas, apreensão de filmes, cassação de licenças para funcionamento, censura prévia durante tempo determinado, apreensão, suspensão ou interdição de periódicos, destituição de cargos, suspensão do exercício profissional, suspensão de favores e isenções, prisão.(...) Também eram objeto do corte censório as notícias de certos incidentes como brigas, agressões, crimes, corrupção, suborno, assim como de processos, inquéritos e sindicâncias. Assuntos políticos em geral, externos ou internos, principalmente quando consistissem em antecipação de medidas e atos oficiais, eram também vedados. Além desses temas mais constantes, eram também cerceadas: a divulgação de notícias e fotos sobre a Rússia, anúncios de certos livros — geralmente considerados comunistas, como os da Editora Calvino — referências desfavoráveis a autoridades e países estrangeiros, informação sobre nomeações e demissões.177

Na Argentina, em 1943, um golpe militar contra o presidente Castillo, instaurado pelos

generais Pedro Pablo Ramirez e Edelmiro Farrel, no dia 4 de junho, direcionou à cúpula do

poder o então coronel Juan Domingo Perón. Dotado de carisma pessoal e uma sólida

capacidade de mobilização das massas, Perón obteve a maioria dos votos nas eleições

presidenciais de 1946. Anteriormente, no período compreendido entre o golpe de 43 e as

177 GARCIA, Nelson Jahr. Estado Novo - Ideologia e propaganda política. São Paulo: Loyola, 1982. p. 58.

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eleições de 46, a Argentina encontrava-se afligida por agitações políticas e protestos de toda

ordem. Os militares optaram por suprimir os descontentamentos gerais, partindo de uma

fórmula que mesclava nacionalismo e autoritarismo: os partidos políticos foram dissolvidos,

houve uma série de arrestos, estado de sitio, intervenção nas universidades, banindo

intelectuais e artistas de orientação liberal. Romero Brest foi um deles.

Durante a Segunda Guerra, a posição de neutralidade argentina iniciada com o Governo

Castillo durou até o alinhamento forçado com os norte-americanos, imposto ao Governo

Militar já no final do conflito, fato que redundou em conseqüências pouco benéficas para a

política internacional. Mediante a turbulência ideológica, as preferências contraditórias dentro

das Forças Armadas, a conjuntura política interna e a transformação do cenário internacional,

concluíra-se que a política exterior não lograra êxito em sua função básica de contribuir para o

desenvolvimento interno da Argentina, assim como para o fortalecimento da competência em

decidir os próprios caminhos dentro da ordem mundial. A necessidade de uma transformação

social iminente, aliada ao repúdio à dependência, foi solidificada pelo conflito provocado pela

intervenção na política interna argentina pelo embaixador dos Estados Unidos, Spruile

Braden. Essa foi uma das plataformas em que se apoiou o triunfo do general Perón na eleição

presidencial de 1946. O novo governo surgiu, assim, com um perfil radicalizado em suas

políticas sociais e em sua posição quanto à política internacional.

A situação da Argentina afigurava-se favorável, após a Segunda Guerra Mundial posto

que o enclausuramento provocado pela guerra gerasse um elevado nível de reservas e uma

dívida externa zerada. O nível de reservas era em torno de 1,7 bilhões de dólares entre ouro e

divisas. Por outro lado, segundo Aldo Ferrer, o processo de capitalização foi afetado

negativamente, ao se suspender as importações de maquinaria e equipamento, que eram

indispensáveis para a expansão da capacidade instalada na indústria e sua diversificação. Entre

1938 e 1945, o estoque de capital em maquinaria e equipamento caiu em cerca de 30%. Em

conseqüência desses fatores o crescimento da economia durante o conflito foi muito lento.

Entre 1939 e 1945 o produto interno bruto cresceu em 13%, contra 23% nos seis anos

anteriores, e o produto do setor manufatureiro aumentou em 27%, contra 43% em 1933-1939.

Entretanto, tal condição foi profícua para as primeiras proposições do que seria a política

econômica do início do governo de Perón, fundamentada no amplo incentivo do setor

industrial, por meio da substituição de importações aliada ao redesenho socioeconômico do

País.

Juan Domingo Perón desempenhou, portanto, uma política econômica de cunho

nacionalista, que fixaria as suas bases na expansão do gasto público, no reforço do papel do

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Estado na produção e na distribuição. Houve, simultaneamente, a implementação de uma

prática de distribuição de renda baseada na alteração dos preços relativos em benefício dos

assalariados, além da criação de um sistema de incentivos e subsídios a favor da produção

direcionada ao mercado interno, desestimulando a produção voltada para a exportação. O

principal objetivo era estabelecer uma proteção das atividades domésticas, elemento que só

mudaria em 1952.

Se por um lado as mudanças implementadas no sistema de produção eram extremamente

visíveis, assim como o crescimento das vagas de emprego no setor industrial e de serviços, por

outro, as políticas sociais postas em prática pelo peronismo pouco faziam pela questão cultural

no país. Houve de fato uma manifesta integração do tecido social argentino, assim como uma

maior equidade na distribuição de renda, mas como afirmara Romero Brest, para além das

ações individuais no campo da cultura, que eram restritas, o plano oficial estabelecido pelo

Governo argentino indicava um panorama ainda mais debilitado que o brasileiro no campo da

cultura:

Nunca fue más bajo el nivel artístico, pero como nunca las clases trabajadora y media fueron comprendidas, siendo extremamente curioso que tanta insensatez como demostró Perón durante larguísimos diez años, haya tenido consecuencias en cierto modo progresistas. No me refiero a las leyes sociales que dictó; otros países de Latinoamérica las obtuvieron sin recurrir a la dictadura; me refiero a la desilusión de toda clase de ideología que los más avisados empezaron a tener acerca de la posibilidad de desarrollarse al margen de la política oficial. Una consecuencia reactiva que sólo pudo manifestarse claramente en el campo del arte, por ser el de la libertad interior.178

Se ambos os países, Brasil e Argentina, apresentavam similaridades maiores ou menores

no plano econômico e político, ambos aproximavam-se também por uma ação estatal tênue

direcionada à cultura, através da defesa de uma arte de cunho nacionalista. Porém, a iniciativa

privada no Brasil havia construído um projeto mais consistente do que o argentino, durante as

gestões Dutra/Vargas, em relação à criação e expansão de museus e mostras, dando

oportunidade ao desenvolvimento de uma arte de vanguarda, internacionalista, já que,

segundo Nelson Garcia, os esforços governamentais eram de outra ordem:

A orientação no sentido de resguardar os recursos nacionais refletia-se, também, no plano da produção cultural, através de uma intensa preocupação e curiosidade para

178 BREST, ROMERO. El arte en la Argentina. Buenos Aires: Paidós, 1969. p.26.

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com temas e problemas especificamente brasileiros. A direção da corrente se fazia com a atuação do Estado, principalmente através do DIP, encarregado de “estimular as atividades espirituais, colaborando com artistas e intelectuais brasileiros no sentido de incentivar uma arte e uma literatura genuinamente brasileiras”. A idéia se manifestava, ainda, na criação e reformulação de órgãos destinados a incentivar a produção cultural brasileira como o Instituto Nacional do Livro, o Serviço Nacional de Teatro, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Instituto Nacional do Cinema Educativo. Criaram-se diversos museus para impedir a evasão de bens culturais do país. Nacionalizou-se o ensino, tornando obrigatória a educação em língua portuguesa, e o cultivo da História do Brasil. Realizaram-se, também, promoções, exposições, concessão de prêmios, edição de livros e publicações diversas, produção de filmes educativos e documentários, emissão de programas radiofônicos, todos voltados para a discussão e difusão de aspectos da realidade brasileira. 179

No caso da Argentina, os pronunciamentos do Ministro da Educação Oscar

Ivanissevich180 aliados às formas culturais do peronismo ligadas aos setores populares e

distantes de projetos culturais mais complexos, marcaram uma profunda tensão entre o

desenvolvimento de uma arte moderna e o peronismo. A Argentina de Perón era

fundamentada em uma relação estabelecida entre trabalhadores e o Estado. O processo de

nacionalização da economia era apenas uma das direções tomadas pela intervenção estatal.

Seguiu-se uma nova dinâmica, contrária às oligarquias, que era direcionada aos trabalhadores,

que ansiavam por conquistas sociais. Na nova conjuntura, interna e externa, a indústria passou

a ter uma dimensão nova, observada e norteada pelo governo federal. Tornou-se, portanto, o

setor de prioridade, já que o lugar privilegiado ocupado pelo comércio de bens agropecuários

perdera importância, definindo novas opções econômicas e políticas diante da nova ordem

econômica mundial.

179 GARCIA, Nelson Jahr. Estado Novo - Ideologia e propaganda política. São Paulo: Loyola, 1982. p. 65. 180 Como já aludido anteriormente, a oposição realizada à arte abstrata pelo Ministro da Educação Oscar Ivanissevich assumiu dimensões caricaturais e revelava o panorama artístico oscilante pelo qual passou a Argentina ao longo do governo Perón. São contradições, disputas e ações que não foram somente estéticas, mas também políticas. No discurso de abertura Del Salón Internacional de 1949, Ivanissevich, antiliberal e antireformista, deixou evidente a sua aversão à arte abstrata: Ahora los que fracasan, los que tienen ansias de posteridad sin esfuerzo, sin estudio, sin condiciones y sin moral, tienen un refugio: el arte abstracto, el arte morboso, el arte perverso, la infamia en el arte. Son éstas etapas progresivas en la degradación del arte. Ellas muestran y documentan las aberraciones visuales, intelectuales y morales de un grupo, afortunadamente pequeño, de fracasados. Fracasados definitivos e incorregibles que no se resignaron a guardar en el anónimo su dolorosa miseria, tal como si un leproso en el periodo más repugnante de su mal saliera a exhibirse haciendo gala de sus tumores ulcerosos supurantes. In: El arte moderno en los márgenes del peronismo. GIUNTA, Andrea. Vanguardia, internacionalismo y política. Arte argentino en los años sesenta. Buenos Aires: Paidós, 2001. p. 67.

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Assim, no plano das artes e da literatura, o peronismo se estruturava sob formas

conservadoras e tradicionais, através da valorização dos ensaios regionalistas e heranças

criollas. Houve um processo de exaltação das figuras populares e de um passado hispânico,

além da manutenção da Geração de 40. A imagem de um Estado forte e ascendente foi

cultivada através da adoção de uma arquitetura neoclássica monumental, presente em países

que vivenciavam outra realidade cultural, política e socioeconômica, como Alemanha, Itália e

Rússia.

Os meios de comunicação na Argentina, assim como no Brasil, vivenciaram forte

censura. A Secretaría de Información Pública, chefiada por Raúl Apold foi responsável pelo

total controle e divulgação de informações provenientes do cinema, do rádio, teatro e

imprensa escrita. Algumas concessões eram feitas no sentido de equilibrar forças em conflito,

liberando-se ou legalizando-se o que outrora era arbitrário, como as Revistas culturais de

circulação periódica. Tal fato indicava uma leve abertura ideológica, permitindo pequenas

expressões para além da adesão total ao sistema vigente, defendendo outros projetos culturais,

responsáveis por um processo fendido no terreno das artes.

Foi nesse contexto que surgiu a Revista Ver y Estimar, conhecida por constituir um

novo canal de difusão da arte contemporânea do período, auxiliando os leitores na apreciação

estética e na elaboração de um pensamento crítico sobre o panorama estético local e mundial.

A sua legitimidade se constrói na promoção e divulgação de uma arte que Brest definia

como verdadeira, ou seja, despregada de qualquer forma de submissão política ou da

realidade. A excêntrica iniciativa de propor uma revista junto a discípulos marcou uma visão

formativa para aqueles que contribuíram bravamente para construir seu corpo teórico.

Discípulos que enxergavam em Brest uma vitalidade crítica e constante participação. Os

esforços de ordem formativa fincados na tradição européia deram vazão a um modelo

monográfico. Picasso foi o primeiro a ter uma edição da revista inteiramente dedicada ao seu

legado artístico. A análise da obra do mestre espanhol propiciou a Brest os melhores

argumentos sobre como relacionar arte e política. Para o crítico, Picasso foi inventivo ao

converter sua posição política em forma. Em Guernica, forte exemplo desta tese, mediante um

tema tão dramático, o artista utilizou suas formas desnudas para que elas aludissem aos fatos,

por meios alegóricos, condensando essências emotivas em essências formais. Ver y Estimar

demonstrou todo o seu comprometimento com o desenvolvimento e consolidação da arte

moderna. Apoiou a fundação do Instituto de Arte Moderna, comentando e acompanhando o

programa inaugural dessa instituição. Dessa forma, marcou em suas páginas os primeiros

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registros de um movimento recente com expressões locais da arte concreta, que teve em

Blanca Stábile, uma grande colaboradora no assunto.

Todos os temas e análises presentes nas duas fases da revista possuíam um caráter

preparatório, um objetivo nítido de definir um modelo artístico sólido e articulado para a cena

cultural argentina. Como diria Brest, para aceitar ou refutar uma expressão artística, somente é

necessário saber se ela corresponde às grandes mudanças de seu tempo. E o abstracionismo,

com seu viés dinâmico, múltiplo e complexo, exprimia perfeitamente, o caráter mutável da

vida.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A concepção do crítico como mediador entre a obra de arte e o grande público, emerge

no discurso de Romero Brest, sendo também um dos objetivos de Antonio Bento. Desse

modo, cabe ao crítico evitar que toda a possibilidade de promover aproximações entre objetos

estéticos e os receptores seja nula, incapaz de contribuir para o conhecimento e interiorização

dos novos códigos artísticos. Assim, um desígnio maior era estabelecer uma sólida ponte entre

arte, artistas e grande público, para o fortalecimento da recepção estética.

Antonio Bento defendeu a valorização do artista, a necessidade do crítico em

compreendê-lo e assim estar apto em diminuir a distância entre objeto artístico e receptor. Este

era o seu real ponto de interesse: levar a arte à vivencia e à experiência estética do grande

público. Daí a visão do crítico como ente privilegiado. No caso específico da polêmica entre

abstração e figuração, Antonio Bento defendeu a primeira corrente, sendo a justificativa bem

simples: a existência da arte abstrata, ao lado da figurativa amplia o poder de escolha e

identificação do espectador. Esse, como ser que vivencia uma determinada realidade social,

política e/ou econômica, pode encontrar na obra de um Braque, Klee ou Kandinsky pontos de

contato, refúgio ou entendimento. Falar em criação artística resulta em investigar a natureza

da arte no que ela tem de peculiar e permanente, de universal e necessária, em relação a todas

as outras formas de inventividade humana.

Para Antonio Bento a crítica, assim como a arte, não é puramente racional, o sentimento

é importante para a interpretação estética e para o ato criativo. A humanidade revelada do

crítico é fundamental para compreender o artista e eliminar distancias entre todos os

envolvidos no processo de recepção estética. O crítico potiguar procurava se pautar sempre na

Teoria e Estética da Arte o que lhe rendeu um conjunto de obras que muito mais que explicitar

períodos e transformações artísticas, pretendia revelar a beleza e a espiritualidade do processo

criativo em comunhão com o processo de fruição. De Apollinaire e suas obras, Antonio Bento

procurou apreender o ímpeto revolucionário, assim como um novo conceito de liberdade

artística sem, no entanto, desprender-se da cautela, sensibilidade e ambição interpretativa. A

linguagem empregada em seus textos busca proximidade com um público eclético. Antonio

Bento realiza, pois, uma abordagem informativa embasada em eventos históricos, dando uma

concepção didática aos seus escritos. As menções e comparações realizadas pelo crítico e as

pequenas narrativas, às vezes bem humoradas, permitem que a arte não seja interpretada como

atividade dissociada da vida e do cotidiano de seus leitores.

Brest, por sua vez, pretendia uma nova concepção crítica a partir da reformulação dos

padrões de análise estética, da promoção da arte moderna, conclamando o público a pensar e

interagir com uma nova modalidade artística. Para tanto, Brest se apoiou em uma perspectiva

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fenomenológica. Esta se encontrava vinculada ao pensamento filosófico desenvolvido por

Husserl, concebendo a arte como um fenômeno original composto no tempo por sucessivos e

únicos momentos de trocas permanentes; momentos esses oriundos das atividades de artistas e

receptores. Ver y Estimar assumiu assim, posição ímpar no cenário artístico argentino. A

origem da Revista está intrinsecamente ligada às aulas ministradas na Librería Del Colegio

libre de Estudios Superiores e na Academia Altamira de Estética e Historia del Arte, desde

1948. A partir da interação e discussão com os alunos, o título da Revista, assim como o seu

conteúdo, passaram a ganhar forma. Dentro de um ambiente carente de valorosas

contribuições culturais, a revista foi um marco inicial importante. Com o objetivo inicial de

resgatar o patrimônio artístico local, Ver y Estimar constituiu fonte segura e ampla de

informação, agregando as contribuições de críticos e artistas vários em uma Argentina que

estava às margens dos circuitos artísticos internacionais.

Romero Brest nunca se desprendeu da docência, tendo realizado mais de 400

conferências e palestras, ao longo de sua trajetória profissional. Quando adere à crítica de arte,

dedica-se apaixonadamente a suplantar a estagnação cultural de seu país. A Argentina de

finais da década de 1940 afigurava-se como um espaço ainda pouco voltado às vanguardas

artísticas. Para Brest, qualquer ato decidido e permanente implicava em uma nova visualidade

para a arte argentina. O fato de propor a realização de uma revista em parceria com alunos e

não com os colegas acadêmicos revelava um caráter formativo de execução do projeto.

Reafirma-se, desse modo, a idéia de que era necessário partir de um ponto zero. E Ver y

Estimar constituiu um marco importante para a propagação e desenvolvimento do discurso do

crítico, personificando as elucubrações e anseios em torno do abstracionismo.

De fato, as influências do abstracionismo transcenderam o circuito europeu e, no Brasil,

assumiram características e dimensões bastante peculiares. Como recorda Antonio Bento, o

triunfo da arte abstrata ocorreu de fato, após a Segunda Guerra Mundial, de 1945 a 1950,

rompendo, gradualmente as objeções a essa arte. A produção predominante era a da abstração

geométrica, que se havia tornado, principalmente através do Salon des Realités Nouvelles, a

expressão em voga da época. A publicação em Paris da Revista Cercle et Carré , 1930, a

organização de diversas mostras além da formação do grupo Abstraction Création, 1931,

foram acontecimentos importantes. Muitos pintores figurativos aderiram à arte abstrata,

enquanto outros se filiaram ao movimento porque sentiam que a abstração se havia tornado a

verdadeira linguagem artística da atualidade.

O crescimento da arte abstrata no Brasil foi marcante e, já no início dos anos de 1950, o

país presenciou, sobretudo em São Paulo e Rio de Janeiro, movimentos de arte concreta e

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neoconcreta que originaram um processo artístico ciente de sua especificidade enquanto

processo de informação construído a partir de processos mentais e sistemáticos. Segundo

Canton181, o concretismo /neoconcretismo, na arte, constitui-se como promessa da construção

do novo por meio de uma linguagem universal ausente de excessos de subjetividade e

emotividade. Libera a arte de questões externas a ela mesma, ao mesmo tempo em que

estabelece sua autonomia e necessidades formais e construtivas.

O abstracionismo encontrou meios de expansão e desenvolvimento em função da

receptividade favorável que encontrara nos Estados Unidos. No contexto da Segunda Guerra

Mundial, a migração de diversos artistas europeus para o país norte-americano, contribuiu

para que, primeiramente o cubismo já em 1939 e depois as modalidades não figurativas, de

uma forma geral, se consolidassem em Nova York. Posteriormente o fenômeno encontrou

meios de desenvolvimento em Paris em 1946, assim como nas demais cidades européias.

Mondrian desfrutou de indiscutível sucesso, angariando admiradores e adeptos à sua técnica.

A arte não-figurativa encontrou na exposição de Kandinsky realizada pelo Museu de Arte

Moderna de Nova York um meio eficiente de divulgação e consolidação do movimento. A

cidade norte-americana tornou-se por excelência, o centro mundial das artes plásticas, até que

Paris tivesse condições de retomar suas atividades artísticas.

Se em Nova Iorque a grande questão era por qual motivo a arte abstrata consolidara-se

de forma tão unânime, se por convicção ou gosto, no caso do Brasil, o problema era de outra

ordem. Aqui o que permanecera era a dúvida sobre a capacidade da arte abstrata em expressar

a preocupação com o homem e os problemas sociais, principal inquietação dos figurativos. A

conotação alienada, individualista impingida aos abstratos, desde fins do Estado Novo,

fortalecia a idéia de uma arte frágil e pouco útil à sociedade como instrumento de mudanças e

crítica social. Tal imagem fortaleceu-se no final da década de 1950, quando o Brasil, sob a

presidência de Kubistchek, buscou um novo padrão de desenvolvimento e industrialização

proposto pelo plano de Metas182.

181 CANTON, Kátia. Tendências Contemporâneas: Questões sobre a Arte no Brasil e no Mundo Ocidental. In: AQUINO, Víctor. (org.) Metáforas da Arte. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte/MAC USP. 2008. 182 Lançado pelo Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Juscelino Kubitschek venceu a disputa pela presidência do Brasil em 1955 contra os candidatos Adhemar de Barros e Plínio Salgado. O período anterior a sua posse foi marcado por forte turbulência política. O rumor de um golpe, tramado pelo então presidente em exercício Carlos Luz e por políticos e militares pertencentes a UDN contra a posse de Juscelino Kubitschek, gerou reação por parte do ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott. O Ministro mobilizou tropas militares que ocuparam importantes prédios públicos, estações de rádio e jornais. Em caráter provisório, o governo foi assumido pelo presidente do Senado, Nereu Ramos que se encarregou de transmitir o cargo a Juscelino Kubitschek a 31 de janeiro de 1956. Iniciou-se a partir de então um governo de caráter populista com objetivos de desenvolvimento tanto para o setor público quanto para o privado. No âmbito

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Em um contexto, de questões políticas, econômicas, artísticas e sociais intensas, surgiu o

abstracionismo em suas várias vertentes em oposição a uma arte figurativa preocupada ao

mesmo tempo com a modernidade e a identidade cultural; uma arte de valorização do homem

e de suas necessidades. O modernismo com seu caráter de defesa do local, do artesanato e da

capacidade criativa intensificou o debate, cujo ponto nevrálgico pode ser identificado,

segundo Lisbeth Rebollo Gonçalves, como uma oposição entre “arte nacional X arte

internacional”.

Nesse sentido, Lisbeth Rebollo, em As Bienais e a abstração suscita importantes

questões, sobre o elemento abstração, no contexto da Bienal, enquanto concretização desse

movimento de internacionalização:

1. Se se trataria de uma “forma revolucionária” ou de uma “reforma” coerente com um projeto ideológico mais amplo. 2. Se a linguagem universal apregoada seria um valor de ascensão a uma “nova etapa”, mais condizente com a realidade brasileira. 3. Se a enfatização de uma “racionalização orgânica”, “funcional”, ou de uma “subjetividade emocional”, depreendida em depoimentos de artistas atuantes no período, não estaria de acordo com tudo isso.183

É fato que, ao tornar-se centro de atração para todos os artistas do Brasil e do mundo, a

Bienal de 1951 pôde, por sua vez, despertar também um movimento interno de aproximação

artística entre as diversas províncias culturais do país.

A década situada entre a criação da Bienal, em 1951, e a inauguração de Brasília, em

abril de 1960, foi um dos períodos mais férteis da história da arte brasileira no século passado.

Foi também o período áureo da crítica de arte no país. As críticas difundidas em periódicos,

como o Diário Carioca, por exemplo, buscavam uma aproximação do público e dos

intelectuais da época com os principais debates e mudanças artísticas vivenciadas pelo país. A

presença de uma crítica especializada como a de Antonio Bento fomentou os debates em torno

econômico, o lema do governo era "Cinqüenta anos de progresso em cinco anos de governo" para transformar esta proposta em realidade criou-se o chamado Plano de Metas. Houve investimentos em estradas, em siderúrgicas, em usinas hidrelétricas, na marinha mercante e a construção de Brasília, que embora não constasse no projeto inicial, foi um reflexo desta era de progresso. O Programa baseava-se em 30 metas que compreendiam os Setores de energia (1 a 5), Setores do transporte (6 a 12), Setores da alimentação (13 a 18), Setor da indústria de base (19 a 29), Setor da educação (30). Apesar do intenso crescimento da indústria (aproximadamente 80% na área de bens de capital,) e do apoio dos diversos setores sociais (militares, empresários e sindicatos) houve também um crescimento da dívida externa e a abertura do país ao capital das multinacionais, gerando uma paulatina desnacionalização econômica. 183 GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. (Org.). Ségio Milliet, 100 anos. São Paulo: ABCA: Imprensa Oficial do Estado, 2004. p.29.

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da abstração versus figuração rumo à consolidação da arte abstrata como linguagem artística

válida também para a realidade brasileira. Isso porque, simultaneamente à busca de uma

linguagem universal, fez-se um esforço extraordinário no sentido de definir uma linguagem

própria para as artes visuais, promovendo a autonomia dos meios plásticos e, ao mesmo

tempo, a criação de um vocabulário específico para a crítica de arte.

Tal autonomia e inventividade também constituíram anseios de Romero Brest. A grande

necessidade de ver os artistas inserindo-se no cotidiano, dando vazão a uma obra dinâmica e

capaz de expressar as mutações e urgências dos grandes centros urbanos. Em um primeiro

instante havia um desejo intrínseco, em canalizar as influências européias e, logo depois, as

estadunidenses. Mas, as aparências criadas por uma minoria ocidentalizada enfraqueceram-se

mediante o conceito de identidade.

Portanto, a herança indígena, mestiça e negra na América Latina abriu uma nova

perspectiva de representatividade artística. Novos anseios imiscuíram-se nas obras de uma

minoria de artistas dispostos a entregarem-se às proposições e experiências de valorização da

sensibilidade, dominando-as em sua plenitude. Ou seja, vida que se torna consciente, a

emoção que transcende e preenche a composição artística de sensibilidade.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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6.7. Textos de Romero Brest. Jorge Romero Brest. “A Damián Carlos Bayón, discípulo y amigo”.Caja1, Sobre 6, Archivo Jorge Romero Brest, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires. ____________ Arte visual; pasado, presente y futuro. 1981. Teoría artística y estética. Buenos Aires. Universidad de Buenos Aires. Biblioteca Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo. ____________ El arte en la Argentina; últimas décadas. C.1969. Arte y Estética, 2. Buenos Aires. Universidad de Buenos Aires. Biblioteca Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo. ____________ Ensayo sobre la contemplación artística. C.1966. Colección ensayos. Buenos Aires. Universidad de Buenos Aires. Biblioteca Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo. GIUNTA, Andrea. Jorge Romero Brest; escritos I: 1928-1939. 2004. Estetica, Critica de arte. Buenos Aires. Biblioteca Colegio Nacional 6.8. Revistas. REVISTA DE ANTROPOFAGIA. São Paulo, n. 1, ano 1, maio 1928. SUR. Revista Mensual Buenos Aires: Imprenta López. n.159, enero de 1948.

SUR. Revista Mensual Buenos Aires: Imprenta López. n.177, julio de 1949. VER Y ESTIMAR. Buenos Aires: Editorial Losada, n.01, abril de 1948. VER Y ESTIMAR. Buenos Aires: Editorial Losada, n.02, mayo de 1948. VER Y ESTIMAR. Buenos Aires: Editorial Losada, n.13, octubre de 1949. VER Y ESTIMAR. Buenos Aires: Editorial Losada, n.26, noviembre de 1951.

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VER Y ESTIMAR. Buenos Aires: Editorial Losada, n.27, abril de 1952. VER Y ESTIMAR. Buenos Aires: Editorial Losada, n.31, abril de 1953. VER Y ESTIMAR. Buenos Aires: Editorial Losada, n. 02, 2ª época, 1954.

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ANEXOS

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6- Diário Carioca, Rio de Janeiro, 27 outubro de 1951. ____________________________________________________

ARTES

QUEIXAS CONTRA AS DECISÕES DA BIENAL

ANTONIO BENTO

Assim que foram conhecidos os resultados finais dos prêmios da I Bienal Paulista, despontaram protestos e manifestações de desagrado da parte de expositores e de certos setores artísticos. Aliás, isso é coisa normal em todas as grandes exposições. No caso da Bienal, os protestos, queixas e descontentamentos surgidos são de origens diversas, decorrendo de motivos artísticos ou políticos. No segundo caso, estão os que combatem os abstratos e o formalismo da Escola de Paris, em nome da arte interessada ou do realismo socialista. Além dos que se batem por princípios artísticos, há alguns elementos que defendem princípios nacionalistas. Pertencem a esse grupo os que se insurgiram contra o premio dado a Danilo Di Prete, por motivos ou sentimentos patrióticos. Numa competição de caráter essencialmente internacional, esses motivos não podem obviamente prevalecer. Mesmo porque, do ponto de vista regulamentar, nada se pode objetar em relação ao prêmio conferido àquele pintor italiano, desde que concorriam, em igualdade de condições, os brasileiros e os estrangeiros residentes no país a mais de dois anos. Como Danilo Di Prete se encontrava em São Paulo desde 1946, preenchia as condições exigidas pelo regulamento da Bienal para expor entre os nossos artistas. Resta saber si o seu quadro era o melhor de toda a representação brasileira. É possível que a impressão desfavorável da maioria do júri em relação aos nossos artistas tenha decorrido não só do local como da arrumação das salas e “boxes” do primeiro pavimento. Diga-se de passagem, que a seleção de trabalhos também foi mal feita, misturando-se todas as tendências, num ecletismo estéril. E o bom não raro se prejudicava, pela vizinhança sempre predominante do mau. Por isso mesmo, o visitante, quando descia do pavimento superior para o inferior, tinha a sensação automática de que baixara o nível da arte brasileira. As condições técnicas do local é que eram sensivelmente inferiores às do pavimento principal. Isso explica, de certo modo, o julgamento desfavorável da maioria do júri, que estava tomando contato inicial com as nossas artes plásticas, sem a possibilidade imediata de separar o joio do trigo e de chegar a uma decisão ponderada ou justa. O prêmio dado a Di Prete reflete, sem a menor dúvida, um sentimento instintivo de repulsa da maioria do júri pela arte brasileira. Esse sentimento foi avaliado de perto pelos nossos representantes no júri, os quais em nenhum momento (justiça lhes seja feita) pretenderam defender princípios nacionalistas.

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Estou certo de que, se o júri, examinando melhor a representação brasileira, tivesse refletido com calma, durante uma semana, chegaria a outro resultado, pois numerosos trabalhos dos nossos artistas eram nitidamente superiores ao quadro apenas agradável de Danilo Di Prete. Do ponto de vista moral, cumpre aos vencidos respeitarem o veredicto do júri, dando fim aos protestos e aos ranger de dentes. A verdade é que não houve intenções mesquinhas nas decisões do júri. E cabe também notar que os dirigentes da Bienal se conduziram no caso, com invariável isenção de ânimo e perfeito senso de responsabilidade. Jamais procuraram influir nos julgamentos que, embora susceptíveis de críticas, devem ser acatados pelos concorrentes e pelo público, no interesse da cultura brasileira e do prestígio da Bienal.

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COMO VE UN SUDAMERICANO EL MOVIMIENTO ARTÍSTICO

CONTEMPORANEO EN EUROPA

I. BALANCE DE MEDIO SIGLO DE PINTURA Premisas. – PICASSO, tema con variaciones.- MATISSE y la parábola de los expresionistas.- El aporte de los italianos.- De los ingenuos y los líricos a los superrealistas.-Cuatro falacias: neohumanismo, neorromantismo, neonaturalismo y neorrealismo. –Los anacrónicos y la autenticidad.

II. ¿ES UNA LENGUA MUERTA LA ESCULTURA?

Estabilidad del arte del volumen.- en el área del Mediterráneo: naturalistas y clasicistas.- En el área atlántica: cubistas y expresionistas.- en el área continental: la exacerbación del pathos. – Perplejidad de los nuevos viejos escultores.- MARINO MARINI Y HENRI MOORE.- Sentido trágico de la confesión de ARTURO MARTINI.-

III. VIEJO Y NUEVO CONCEPTO DE LA ABSTRACICION EN LAS ARTES PLASTICAS.

Lo abstracto y lo concreto, lo orgánico y lo inorgánico, lo personal y lo impersonal, lo funcional y lo expresivo, lo figurativo y lo no figurativo: introducción al arte de nuestro tiempo.- El problema de la fundamentación matemática.-

IV. TENDENCIAS DEL ARTE ABSTRACTO

Naturalismo y arte abstracto.- Influencia del cubismo, el futurismo y el orfismo. – Los movimientos rusos y holandeses.- Expresionismo, dadaísmo, barroquismo y romanticismo en el arte abstracto actual.- El arte abstracto de vanguardia: la dinamización del espacio.

V. IDEA E IMAGEN DEL MUNDO EN 1950

El mundo físico y la nueva metafísica. Nuevas bases del universalismo: el hombre no es más “la medida de todas las cosas”. – La cultura standard.- Crisis de crecimiento en las artes plásticas.- El nuevo planteo de la creación espacial: la arquitectura, reina y señora; la pintura y la escultura: funcionalismo expresivo, no decorativo: las artes derivadas.- Profecía.

JORGE ROMERO BREST

Callao 555 Buenos Aires

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