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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia 14º SNHCT Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 UNIVERSAIS DE FILOSOFIA, HISTÓRIA E GEOGRAFIA DAS CIÊNCIAS ... E O EXEMPLAR FÉRTIL DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA Dante Flávio da Costa Reis Júnior * 1. INTRODUÇÃO Podemos definir que, tradicionalmente, o âmbito da Filosofia da Ciência (FC) lida com averiguação de confiabilidades”. A confiabilidade “lógica” das proposições explicativas, e a utilitária” das operações técnicas. Por sua vez, no domínio da História da Ciência (HC) trataríamos, comumente, dos papéis-chave jogados por personagens e/ou instituições: concepção de ideias e sua retransmissão. Como “terceiro âmbito”, apesar de que ele tende a estar oculto nas tradições bibliográficas de FC e HC, poderíamos ainda demarcar o setor investigativo da “Geografia da Ciência” (GC) como subcampo que se incumbiria de examinar questões a ver com “contexto espacial”: a interpretação especialmente local, regional ou nacional daquelas proposições e/ou operações referidas acima. Neste texto de comunicação, por se tratar de um Simpósio concebido para a discussão do caso histórico das chamadas Ciências Humanas, desejamos apresentar um balão de ensaio que reputamos interessante (e sobretudo por se tratar de um caso esquecido pela literatura em FC e HC): a ciência geográfica. Nosso propósito é, primeiramente, destacar o que julgamos ser os principais aspectos identitários dos estudos trisetoriais, de FC, HC e GC; e, em seguida, demonstrar de que formas estes aspectos têm podido (ou poderiam, virtualmente) ser explorados por eventuais interessados em historiografia ou epistemologia da Geografia. 2. OS UNIVERSAIS DE FC, HC E GC 2.1 FC: embasamento filosófico, limites epistêmicos e complexo causal 2.1.1 A orientação: ou, o “embasamento filosóficoEste primeiro universal de Filosofia da Ciência refere-se a uma já bastante longeva modalidade de reflexão, a qual pretende denotar os sistemas de pensamento que alicerçame, por isso, definem matrizes orientadoras dos gêneros de discurso que o cientista verbalizará. * Doutor em Ciências; Professor Adjunto do Departamento de Geografia (Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília).

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08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

UNIVERSAIS DE FILOSOFIA, HISTÓRIA E GEOGRAFIA DAS CIÊNCIAS

... E O EXEMPLAR FÉRTIL DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA

Dante Flávio da Costa Reis Júnior*

1. INTRODUÇÃO

Podemos definir que, tradicionalmente, o âmbito da Filosofia da Ciência (FC) lida com

averiguação de “confiabilidades”. A confiabilidade “lógica” das proposições explicativas, e a

“utilitária” das operações técnicas. Por sua vez, no domínio da História da Ciência (HC)

trataríamos, comumente, dos papéis-chave jogados por personagens e/ou instituições:

concepção de ideias e sua retransmissão. Como “terceiro âmbito”, apesar de que ele tende a

estar oculto nas tradições bibliográficas de FC e HC, poderíamos ainda demarcar o setor

investigativo da “Geografia da Ciência” (GC) – como subcampo que se incumbiria de

examinar questões a ver com “contexto espacial”: a interpretação especialmente local,

regional ou nacional daquelas proposições e/ou operações referidas acima.

Neste texto de comunicação, por se tratar de um Simpósio concebido para a discussão do caso

histórico das chamadas Ciências Humanas, desejamos apresentar um balão de ensaio que

reputamos interessante (e sobretudo por se tratar de um caso esquecido pela literatura em FC e

HC): a ciência geográfica. Nosso propósito é, primeiramente, destacar o que julgamos ser os

principais aspectos identitários dos estudos trisetoriais, de FC, HC e GC; e, em seguida,

demonstrar de que formas estes aspectos têm podido (ou poderiam, virtualmente) ser

explorados por eventuais interessados em historiografia ou epistemologia da Geografia.

2. OS UNIVERSAIS DE FC, HC E GC

2.1 FC: embasamento filosófico, limites epistêmicos e complexo causal

2.1.1 A orientação: ou, o “embasamento filosófico”

Este primeiro universal de Filosofia da Ciência refere-se a uma já bastante longeva

modalidade de reflexão, a qual pretende denotar os sistemas de pensamento que “alicerçam”

e, por isso, definem matrizes orientadoras dos gêneros de discurso que o cientista verbalizará.

* Doutor em Ciências; Professor Adjunto do Departamento de Geografia (Instituto de Ciências Humanas,

Universidade de Brasília).

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O debate em torno do assunto tem antecedentes célebres. Mais contemporaneamente, porém,

um nome ilustre é o de Alexandre Koyré (1892-1964), autor de um texto-marco grandemente

recorrido a partir da segunda metade do séc.XX. O “De l’influence des conceptions

philosophiques sur l’évolution des théories scientifiques” é a versão textual de uma

conferência que Koyré proferiu na reunião da Associação Americana para o Progresso da

Ciência (Boston, 1954); e apareceu sob a forma de capítulo num dos mais importantes livros

de autoria de Koyré: nos Études d’histoire de la pensée philosophique, editado em 1961.

Ali é veiculada a ideia de que as teorias são produtos sempre influenciados por uma

infraestrutura ou “horizonte” filosófico; e que tal influência talvez até seja mais intensa do

que a que se dá no “sentido contrário”, digamos assim. Neste sentido, o pensamento científico

de personagens tais como Descartes e Kant seria altamente tributário de suas respectivas

visões filosóficas do mundo. E, nesse mesmo espírito de interpretação, os sistemas de

pensamento atribuídos aos filósofos do Círculo de Viena, a Mach, a Comte, a Bacon e a

pensadores mais pretéritos ainda, teriam respingado de algum modo nos empreendimentos

intelectuais das ciências em geral. As ideias metafísicas de “harmonia do mundo”, de

“imutabilidade divina”, por exemplo, ver-se-iam reencarnadas em muitas das explanações

físicas acerca da mecânica planetária e da conservação do movimento.

O postulado basilar inerente a esse princípio geral da orientação ou embasamento filosófico

reside, então, na concepção de que o pensamento científico nunca se desenvolve no vácuo;

ele, na verdade, estará sempre inscrito num “quadro de ideias”. E, por ser assim, a própria

transição entre tradições de pesquisa (marcada por aquilo que o historiador chamará

“revoluções”) já deve, muito provavelmente, prever na escala do substrato ou “subestrutura”

uma correspondente mudança de atitude filosófica. A transição entre os mundos físicos

aristotélico e ptolomaico teria, assim, derivado da gradativa passagem de uma filosofia da

“ordem cósmica” a uma filosofia da “geometrização” – aparentemente, respondendo por uma

relativa alteração na ideia de conhecimento (do sensualista ao intelectual/abstrato).

É fora de dúvida que a obra de Einstein foi inspirada por uma meditação filosófica

e dele poder-se-ia dizer que, como Newton, foi tão filósofo quanto físico. É

perfeitamente claro que sua negação terminante, e até apaixonada, do espaço

absoluto, do tempo absoluto, do movimento absoluto [...] fundamenta-se em um

princípio metafísico. (KOYRÉ, 1979: 69).

2.1.2 As fronteiras e linguagens identitárias: ou, os “limites epistêmicos”

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Este segundo universal remete às tentativas (esforços recorrentes, por ser tema irresistível ao

olhar intérprete) de definir o preciso domínio de atuação das disciplinas. De hábito, esse estilo

de análise vai expor também a condição de “interface” do campo disciplinar em questão com

demais ciências – e isso, normalmente, na intenção de desenhar as possibilidades de tráfego

epistemológico entre as vizinhanças: trânsito de conceitos, teorias, técnicas.

Essa tendência à demarcação de âmbitos tem, como se depreende, íntimo parentesco com

outra datada propensão: a classificação das ciências. Apesar de possuir, é claro, antecedentes

bem mais longínquos (aristotélicos, depois baconianos, p.ex.), o séc.XIX testemunharia

notáveis empreendimentos com essa intenção: o clássico Cours de philosophie positive, de A.

Comte (1830), o Essai sur la philosophie des sciences, de A.-M. Ampère (1834) e o The

classification of the sciences, de H. Spencer (1864) – obras nas quais, sob terminologias

distintas (cosmológico/noológico, abstrato/concreto), são definidos os setores particulares das

ciências físicas e humanas (ABBAGNANO, 2003). Ainda assim, a defesa da existência de um

denominador comum estaria presente em declarações igualmente célebres. É que o respeito a

procedimentos fundamentais acabaria aproximando aqueles setores; por exemplo, a

enunciação de afirmações seguida de testes de verificação – ou seja, o entendimento de que os

fatores “hipótese” e “critério de confirmação” pertenceriam ao quadro processualístico de

toda e qualquer disciplina pretendida científica (HEMPEL, 1974).

De todo modo, malgrado a recorrência dos discursos pró-ecumenismo, mantém-se íntegra a

ideia de “setorização”; a noção de que haveria “irredutíveis especificidades” aos domínios

físico e humano. Por exemplo, estas: as ciências sociais procuram a “compreensão”; têm

dificuldade em escapar de especulações metafísicas; praticam, irresistivelmente, abordagens

relativistas; e ostentam “certa resistência” às práticas de abstração matemática (RAVOUX,

2004). Por consequência (em lógica opositiva), as naturais possuiriam como peculiaridades, o

anseio de explicação causal, o comprometimento com a verificação empírica, o

autoconvencimento da universalidade/reprodutibilidade do fenômeno e a grande afinidade

com a linguagem lógico-abstrata. Sendo assim, haveria pontos de divergência, tanto quanto de

convergência. Dentre os primeiros, a possibilidade de manipular/combinar as variáveis em

questão; dentre os últimos, o fato de que, a rigor, todo objeto de estudo pertence (e deveria,

portanto, ser restituído) a uma família ou conjunto maior e complexo de fenômenos.

E a distinção entre essas classes de interesse investigativo é mesmo um tanto antiga:

Je viens de classer toutes les vérités qui se rapportent au MONDE MATÉRIEL; je

vais maintenant faire un travail semblable à l’égard des vérités relatives à LA

PENSÉE, considérée, soit en elle-même, soit dans les signes par lesquels les

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hommes se transmettent leurs idées, leurs sentiments, leurs passions, etc.; soit dans

tous les développements qu’elle prend à mesure que les sociétés humaines se

développent elles-mêmes. Les divisions et subdivisions de ces véritées forment les

sciences auxquelles j’ai donné le nom de noologiques. (AMPÈRE, 1843: 1, grifo do

autor).

2.1.3 A causalidade e a indeterminação: ou, o “complexo causal”

Este terceiro universal de FC tem a ver com a reflexão sobre até que ponto ou em que

circunstâncias o cientista, em sua atividade investigativa, está diante de fenômenos passíveis

de explicação por meio de relações de causa-efeito enunciáveis de um modo suficientemente

simples. Ou se, por outro lado, se defronta com processos que, de tão intrincados, dão a

entender que se trata de dinâmicas incorporadoras de imprevisibilidade ou, quem sabe, de

situações em que o intelecto e/ou os instrumentos disponíveis simplesmente não capturam a

totalidade de variáveis supostas – o que pode levar o cientista a sugerir níveis graduais de

indeterminação. Em todo caso, sem que se caia na tentação de decretar a não-causalidade,

pode-se trabalhar com uma imagem (menos drástica) de “bruma causal”.

O mais expressivo dilema do determinismo possivelmente resida na observação de que

“escolhas livres” na natureza tenderão a ensejar ações/efeitos distintos; e isso constrange o

ideal preditivo da ciência moderna. O acolhimento do fato é bastante remoto em Filosofia; é

pré-socrático. Mas parece só ter sido pacífica e friamente racionalizado em Ciência com as

mecânicas estatística e quântica e com o evolucionismo neodarwinista – quando, então, um

olhar mais contemporâneo vai matematizar a ocorrência de sistemas cuja dinâmica é não-

linear; e que, de modo curioso, conseguem ser “criativos” diante da fatalidade do irreversível.

A partir do séc.XIX a mecânica clássica/newtoniana passaria a estar restrita a alguns setores

do mundo. Seria revogada para a explanação dos setores onde há flutuações, assimetria

passado/futuro, sensibilidade a condições iniciais. A causalidade mesma não chega a ser

abolida, é claro. (Isso simplesmente repeliria o olhar científico sobre o mundo e seus setores.).

Todavia, parecerá oportuno lidar com a abordagem de “populações”, a qual, insinuada por Ch.

Darwin e L. Boltzmann, sugere haver informações que não são vistas quando miramos as

trajetórias individuais. Já quando observamos o agregado, sim. Trata-se das “propriedades

emergentes” – que à visão clássica (de causalidade linear) escapam.

I believe that we are therefore indeed at the beginning of a “New Physics”. Until

now, our view of nature was dominated by the theory of integrable systems, both in

classical and quantum mechanics. This corresponds to an undue simplification. The

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world around us involves instabilities and chaos, and this requires a drastic revision

of some of the basic concepts of physics. (PRIGOGINE, 1990: 29-30).

2.2 HC: contexto social e consonâncias efêmeras

2.2.1 A sociologia do conhecimento: ou, o “contexto social”

Este universal de História da Ciência, colocado nesses termos genéricos, acaba adquirindo de

fato uma condição de aspecto inquestionável. Pois que se trata aqui dos fatores de época –

designativo bastante amplo, e que remete às várias formas de “condicionamento”; por

exemplo, aquelas derivadas de uma atmosfera política que possa ter promovido (ou inibido)

tanto as operações técnicas, quanto as proposições explicativas do cientista.

Um autor que explorou questões especiais do assunto foi Robert K. Merton (1910-2003). Ele,

portanto, inscreve-se celebremente no moderno discurso que desconstrói a imagem de ciência

como atividade blindada às paixões e vicissitudes do meio social. Ela, neste sentido, descida

de uma “torre de marfim”, não estaria imune a ações restritivas e repressivas; assim como seu

praticante não teria sempre posturas ilibadas. (Aliás, seriam perfeitamente naturais as atitudes

competitivas e, não raras vezes, pretensões mais “espúrias”.). Contudo, haveria um “ethos”

correspondente à atividade; um complexo de normas legitimado institucionalmente, e depois

internalizado pelo grupo – o que só denota e reforça, pois, seu caráter sociológico (dada a

evidente “estrutura de controle”, operada pelo imperativo da comunicação).

The abuse of expert authority and the creation of pseudo-sciences are called into

play when the structure of control exercised by qualified compeers is rendered

ineffectual. (MERTON, 1973: 277).

O universal envolve o fato da ciência estar embebida num meio de processos sociais

complexos (dele absorvendo, então, demandas e regulamentos), mas não menos o fato de que

ela retroage (dando sustentação ou questionando o sistema social instaurado). Por outro lado,

esse largo âmbito que é a discussão sociológica também pode convidar o historiador das

ciências a se perguntar em que medida a atividade científica restaria, ainda assim, “objetiva”.

Quer dizer, apesar do poder normativo (em geral concentrado e redifundido a partir de certos

centros de desenvolvimento técnico), que margem ainda haveria para escaparmos dos valores

de circunstância e época? Diferentemente, é claro, de dizer que seria possível suprimir os pré-

juízos ideológicos (hipótese que nenhum sociólogo da ciência toleraria), a “objetividade” não

poderia se evidenciar pela simples ação de explicita-los sem pudor? (VARSAVSKY, 1975).

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2.2.2 Os padrões de evolução: ou, as “consonâncias efêmeras”

Este segundo universal de HC é, a exemplo do anterior, colocado aqui em termos bastante

genéricos, mas com o propósito de salientar sua indubitável relevância.

Nos referimos aos estudos, há muito empreendidos pela comunidade de historiadores da

ciência, que procuram identificar na linha do tempo a ocorrência de temporadas ao longo das

quais determinadas tendências interpretativas e procedimentais parecem cativar a adesão da

maior parte dos praticantes de uma dada ciência. Assim sendo, este universal chama a atenção

para a condição interina/provisória daquilo que nos habituamos a chamar “paradigma”. Mas o

historiador praticante do universal também poderá, não raras vezes, nos demonstrar outras

situações pertinentes – tal como o caso intrigante da manifestação de uma “coexistência” de

modelos rivais, sem que necessariamente se perceba a adesão preponderante a um deles.

De qualquer maneira, como o tema tem discussão longeva no estudo histórico das ciências,

encontramos autores cujas reflexões a respeito, conquanto possam assemelhar-se por admitir

o caráter transitório dos protótipos descritivos, propõem mecanismos distintos para que estas

mudanças teóricas se deem. Um trio especial de autores costuma ser referido como o que

estabelece os fundamentos mais essenciais para o debate da questão na cena de pós-guerra: K.

Popper, I. Lakatos e T. Kuhn. O primeiro, entendido como o mais normativo dos três, define

uma dinâmica de proposições que são seguidas de testes crescentemente rigorosos até que sua

refutação (uma espécie de desígnio final, mas que se tenciona com boa-fé e rigor lógico)

venha a nos trazer uma teoria mais bem-sucedida que a precedente. O segundo refina a

proposta popperiana: por meio da ideia de estrutura programática, define um núcleo de

hipóteses a ser, o mais possível, preservado do ímpeto falsificador; logo, de vez que admite a

existência de uma hierarquia de proposições, insinua que o cientista teria de recrutar para a

linha de frente aquelas que pareçam não comprometer o conteúdo nuclear, e, assim, favorecer

sua rotina de atividades. O terceiro, provavelmente o mais popular do trio, ganhou

notoriedade por ter incorporado em seu modelo um elevado teor de elementos sociológicos. A

começar pela passionalidade ou subjetivismo que poderão estar embutidos nas atitudes dos

praticantes. Deste modo, períodos de transição entre duas tradições de pesquisa tenderiam a

prever comportamentos que, em realidade, seriam difíceis de associar ao estatuto da

racionalidade lógica: rivalidades cegas, alinhamentos dogmáticos, oportunismos de toda sorte.

Quer dizer, as temporadas de conflituosidade (previsíveis, no modelo kuhniano, até que um

próximo período de suficiente consenso se instale) não se caracterizam necessariamente por

um jogo que levará à vitória aquela proposição cujos aderentes provaram, com tempero e

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parcimônia, sua superioridade lógica – desmistificação esta compartilhada por um quarto

também notabilizado personagem (o mais impertinente), P. Feyerabend (CHALMERS, 1993).

Preconception and resistance seem the rule rather than the exception in mature

scientific development. Furthermore, under normal circumstances they characterize

the very best and most creative research as well as the more routine. Nor can there

be much question where they come from. Rather than being characteristics of the

aberrant individual, they are community characteristics with deep roots in the

procedures through which scientists are trained for work in their profession.

Strongly held convictions that are prior to research often seem to be a precondition

for success in the sciences. (KUHN, 1970: 357).

2.3 GC: conjuntura local

2.3.1 A dimensão tópica da ciência: ou, a “conjuntura local”

Este universal, que a bem dizer sintetiza num atributo só as características inerentes a esse

âmbito de investigação que podemos denominar Geografia da Ciência, costuma ficar

encoberto pelas célebres tradições dos estudos de filosofia e de história das ciências.

Trata-se aqui, no mais das vezes, de estudos atraídos pelo fato de que um mesmo ideário ou

práticas científicos (estilos de abordagem, expedientes técnicos) são apreendidos e

retransmitidos de modos distintos, de acordo com especificidades do lócus de manifestação –

sendo que isso poderá se dar numa mesma época ou com defasagens temporais (considerando

como parâmetro, é claro, a ocorrência original daquilo que se entenderá como manifestação

genuína). Noutras palavras, estudos de GC põem na alça de mira as “idiossincrasias” do lócus

em questão, procurando desvendar o motivo pelo qual o ideário (e/ou a prática) da ciência sob

análise acabou sendo incorporado(a) de um modo peculiar – dando, portanto, uma impressão

de “releitura particular”, endógena ... ou, quem sabe, melhor adjetivando, “indígena”.

Um notável movimento que se enquadra nas preocupações teóricas em GC são os chamados

“Science Studies” (SS) – os quais exemplificam bastante bem o questionamento dos cânones

interpretativos vigorantes até os anos 1950. Entre os estatutos principais dos SS encontramos

a recusa categórica da velha distinção entre os contextos de descoberta e de justificação e a

saliente ênfase na máxima de que ciência seria mesmo algo praticado localmente – quando,

então, fatores tais como biografia e instrumento poderiam jogar um papel realmente

determinante na viabilização dessa prática (VIDEIRA, 2005). Haveríamos, então, de sondar a

natureza peculiar dos ambientes em que ela é exercitada; quem os constrói e por que. A fim

de captar os detalhes decisivos, empreender quase que uma “etnografia” dos laboratórios.

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Não ternos escolha [...] se quisermos aplicar nossa primeira regra metodológica: se

os cientistas, que seguimos como se fôssemos sombras, entram em laboratórios,

então também ternos de entrar [...] (LATOUR, 2000: 106).

3. OS “REBATIMENTOS” NO CASO DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA

3.1 FC(G): “substrato”, “território/fronteiras” e “nuvem”

Com propósitos mais linguístico-literários que propriamente por precisão científica, nos

valeremos de expressões que farão alusão “geográfica” aos seis universais apresentados há

pouco. Isso se dará mediante metáforas que exprimem fenômenos de interesse corrente de

geógrafos físicos ou humanos.

3.1.1 “Substrato”

Embora não sejam tão frequentes as pesquisas consagradas especialmente ao diagnóstico das,

digamos assim, “filosofias subjacentes às geografias”, tem havido entre os epistemólogos da

Geografia uma aceitação tácita em torno da questão. Toda escola de pensamento geográfico

estaria assentada sobre um substrato de ordem filosófica. Sua epistemologia sedimentada

sobre horizontes ontológicos (CAPEL, 1981; JOHNSTON, 1986; AITKEN; VALENTINE,

2006). O tema, porém, caberia ser mais atentamente examinado, a fim de medirmos os graus

(decerto variáveis) de introjeção dos sistemas de pensamento filosófico nos raciocínios e

práticas geográficos.

Até que ponto, p. ex., a Fenomenologia se viu sustentando o juízo interpretativo dos

geógrafos que, a partir dos anos 1970, se preocupariam com a percepção do meio ambiente e

o papel das experiências afetivas na relação entre homens e lugares? Uma forma especial de

enxergar elos de correspondência entre a filosofia desenvolvida por Edmund Husserl (1859-

1938) – e prosseguida/remodelada por nomes como o de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961)

– e a ciência geográfica sob a forma de uma de suas vertentes (intitulada “humanista”) é

mediante a detecção de harmonias entre certas cláusulas ou “preceitos” do sistema filosófico e

determinados atributos ou “premissas” da escola científica; o que em geral se traduz pela

potencialidade que o sistema acaba tendo enquanto orientador do método a ser empregado

pelo cientista (REIS JÚNIOR, 2011). Sendo assim, uma seara potencial de investigações seria

aquela em que o filósofo da ciência geográfica avaliaria os efetivos proveitos que seus

praticantes poderiam tirar daquelas cláusulas – no caso da Fenomenologia, os preceitos da

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intersubjetividade, da redução eidética, da intencionalidade, etc. (NOGUEIRA, 2005). Por

conseguinte, uma inspiração filosófica poderia estar, enquanto substrato, dando amparo ao

tratamento conceitual e metodológico do fenômeno espacial em Geografia.

Deliberadamente, o cientista poderá sair à caça da orientação paradigmática que estaria

enraizando o terreno científico. A correspondência cláusulaatributo (ou,

preceitopremissa) pode prender a atenção do filósofo da ciência num plano eminentemente

teórico: o da reflexão sobre a procedência originária de tal ou tal estilo de

atividade/procedimento. Por detrás das “proposições teóricas” poderíamos, então, buscar o

“pano de fundo” – constituído, talvez, de concepções metafísicas. Sondar a fundo as camadas

estratigráficas (uma espécie de subsuperfície filosófica) que dão sustentação àquilo que

eclodirá à superfície (nas conjecturas e operações do cientista).

A filosofia monista de Haeckel exerceu forte influência em Ratzel, pois, por questões

políticas e territoriais, associadas ao forte impacto dos postulados positivistas e

mecanicistas, mais o problema que os postulados darwinianos colocavam para os

impérios, pois com o primado da competição e da evolução colocava um problema

sério para a manutenção política das extensas áreas coloniais. (VITTE, 2009: 28).

3.1.2 “Território/fronteiras”

Este é um tema de assídua presença na literatura que trata da identidade epistemológica da

Geografia. E a razão mais forte para que isso se dê é precisamente o fato desta disciplina,

desde períodos pré-científicos, já desenhar para si uma destinação bifacial: lugares e/ou

homens. Daí, sem que se tenha definido essa “licença” em regulamento, muitos geógrafos

passariam a estudar especialmente os fenômenos do quadrante físico; enquanto outros tantos,

as características regionais dos povos; e ainda alguns, embora em menor número, se

empenhariam em desvendar as ações coordenadas dos fatos natural e cultural. Em meio a

estes últimos, personagens que deram um esboço precursor das abordagens que, no futuro,

seriam denominadas “ecológicas” – isto é, apresentando povos e lugares em relações de

mútua dependência. Tal parece ser o caso, p.ex., de Ibn-Khaldun, e já no séc.XIV (DIKSHIT,

2013). Diante, então, da tremenda abertura de temas que, teoricamente, pode estar na alça de

mira do geógrafo, desde muito cedo se manifestarão ponderações acerca das espécies de

“cuidado” que este profissional deve ter para (talvez em vão) salvaguardar uma mínima

identidade linguística e metodológica. No entanto, mais intrigante que esse longevo status de

disciplina estilhaçada – o que, aliás, tende a suscitar nas vizinhanças uma imagem de não-

ciência, ou então de mero saber enciclopédico –, é o fato de que dessas mesmas ponderações

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derivam ideias extremamente antagônicas: uma, de preocupação ou mesmo consternação;

outra, de autoelevação, quase soberba. A Geografia não teria mais como demarcar para si um

território autônomo, dentro de cujos limites ela agiria com soberania (a despeito, é claro, das

trocas que sempre se dão através de fronteiras porosas). Ou ... a Geografia seria excepcional

exatamente porque teria nascido num contexto em que o juízo científico recomendava a

fragmentação disciplinar (ela, por isso, teria sido “indisciplinada” ... quando ansiou

transgredir a imposição das disjunções). Parece-nos que isso a torna, em todo caso, um prato-

cheio para estudos de Filosofia da Ciência. E ainda mais porque, considerando a conjuntura

atual – em que se preconizam atitudes mais ecumênicas, de livre-trânsito e amplas trocas e

compartilhamentos –, averiguam-se casos pioneiros. Isto é, a história mais pretérita já nos

notifica de iniciativas dianteiras nesse projeto que hoje chamamos, correntemente, de

transdisciplinar.

[...] a Geografia foi impossibilitada (pelo caminho que assumiu) de construção

unitária e mesmo de um lugar preciso entre as ciências. Isso, nos parece, dificultou,

para a Geografia, a construção de um método, pois propunha-se a unidade

natureza-sociedade num contexto científico onde estas dimensões disjuntas

perseguiam métodos diferentes. Hoje esta perspectiva de conjuntividade inicia seus

alicerces, para além da Geografia no âmbito das demais ciências.

(SUERTEGARAY, 2003: 46).

3.1.3 “Nuvem”

São seculares as considerações acerca da estrutura causal operando por trás dos fenômenos de

interesse da Geografia. No período moderno, duas escolas nacionais emblemáticas ilustrariam

vieses opostos neste histórico debate: a germânica, dando a entender a possibilidade de

explanarmos sobre a relação homem-meio via princípios causais rígidos (determinação

linear); e a francesa, por sua vez desabonando a razão muito sistematizadora (combinação

complexa). Uma terceira via – anglo-saxônica e de pós-guerra –, mesclando talvez o que

havia de perspicaz nas primeiras duas, abriria para a ciência geográfica trilhas de acesso a um

tratamento mais fino da complexidade subjacente aos processos que investiga: o estocástico.

Intuímos ser conveniente aprofundar estudos comparativos que examinem as intersecções e as

disjunções das geografias clássica e teorética. Daí, a hipótese sugerida (de que a New

Geography, buscando o controle e a previsão dos fenômenos, teria conservado o que havia de

útil nos insights alemão e francês) pode vir a explicar o fato de que as “emergências” e

“concomitâncias” – há muito atraindo a atenção desta ciência – vêm recebendo uma leitura

matemático-abstrata por meio de modelos probabilísticos. Isto é, a nova geografia teria

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recuperado da primeira escola o anseio por uma explicação causal, e da segunda, o certo

receio de ossificar a realidade em questão. Teria despertado, assim, uma empresa explicativa

sustentada sobre modelos que incorporam o fator incerteza. Modelos pelos quais o que se

descreve é uma soma compacta ... feita dos pequenos (e, quando isolados, inevitavelmente

obscuros) particulados.

[...] le fonctionnement d’un système territorial est le résultat de processus qui se

déroulent à des échelles spatiales différentes. Or, la résultante de la combinaison de

ces dynamiques imbriquées est généralement méconnue car complexe, en effet, les

phénomènes observés à l’échelle macro ne sont pas la somme de ceux intervenant à

l’échelle micro. Parallèlement, les processus se déroulent à des échelles temporelles

variables – temps longs et temps courts – mais concomitants et s’expriment avec des

délais de réaction et des anticipations. (VOIRON; CHÉRY, 2005: 3).

3.2 HC(G): “ambiente” e “conflito”

3.2.1 “Ambiente”

Possivelmente o ângulo de abordagem mais recorrente nas pesquisas brasileiras em história

do pensamento geográfico é o que incide nas questões a ver com o condicionamento de época.

Trate-se da preocupação em demonstrar o papel que um dado personagem jogou, digamos,

para a difusão de novas teorias, ou trate-se do interesse em comprovar o relevo que certa

instituição teve, p.ex., no estímulo a novos ritos procedimentais, as pesquisas invariavelmente

vão procurar realçar o peso determinante dos agentes e episódios de conjuntura.

Ricos levantamentos acerca da criação de ambientes propícios à manifestação/reprodução dos

saberes geográficos têm aparecido em anais de congresso e compilações de programas de pós-

graduação há pelo menos duas décadas. São estudos tópicos que pretendem apontar os fatores

responsáveis pelo surgimento de cursos universitários, entidades de representação, institutos

de pesquisa, etc. – e que, por atribuírem significância à atmosfera cultural (constituição de

novos imaginários), ao panorama político-econômico (transformação do modelo produtivo) e

ao cenário social (surgimento de novos anseios), acabam contribuindo para a “história

institucional da geografia brasileira” (MACHADO, 2000: 137).

Sobre a associação da Sociedad Mexicana de Geografía com a política e os governos, Luz

Bernal aponta:

[...] las sociedades científicas desempeñaron papeles de diverso peso e importancia

en su relación con el poder. Los gobiernos y las empresas [...] encontraron en las

asociaciones a los peritos y estudiosos que podían asesorarlos en la solución de

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problemas específicos. Y también, el vehículo para efectuar acciones de promoción

política y partidista. [...] Aquí obviamente destacaron las relaciones de las

sociedades de geografía con los gobiernos, pues como es bien sabido, la disciplina

suele emplearse como indispensable herramienta política, por sus objetivos de

amplio espectro y por sus alcances metodológicos. Aspectos ambos, que

reconocieron los ideólogos mexicanos del siglo XIX. (BERNAL, 2003: 156).

3.2.2 “Conflito”

O tema das mudanças científicas em Geografia, embora saliente, não é expressivo em número

de estudos dedicados a ele. Por consequência, predomina entre os discursos o refrão da

fraseologia kuhniana (“paradigma-crise-revolução”); no entanto, os estudos históricos desta

disciplina tendem a replica-lo sem maiores ponderações. Corre-se o risco, portanto, de

veicular informações contraditórias, porque inconciliáveis com a proposta genuína de Kuhn.

Consideramos, neste sentido, que seria conveniente apropriarmo-nos de modo menos

superficial dos modelos de evolução científica; e a fim, justamente, de procedermos a leituras

mais balizadas sobre como se dão as disputas teóricas em Geografia. Por felicidade, certos

pesquisadores fogem à regra e cumprem o requisito: percebem, p.ex., que a história particular

desta disciplina pode prever eventos de “infidelidade” circunstancial dos usuários, tanto

quanto de “simultaneidade” conjuntural de teorias que se pretendem excludentes.

Adriano Figueiró preocupou-se em examinar o caso dos estudos de climatologia, divulgados

pela Revista Brasileira de Geografia ao longo de quase cinquenta anos. Verificou que o

ajustamento a um esquema evolutivo em que há convergência de comportamentos não é

exatamente o predicado da comunidade de climatologistas do país.

Analisada a seqüência histórica de aparecimento de artigos vinculados a um ou

outro paradigma [climatologia “descritiva” ou “dinâmica”], foi possível concluir

que a produção geográfica brasileira na área da climatologia, quando confrontada

com as idéias propostas por Thomas Kuhn apresenta uma série de

incompatibilidades [...] (FIGUEIRÓ, 2011: 155).

3.3 GC(G): “lugar”

3.3.1 “Lugar”

Até mesmo pelo evidente fator semântico, os assuntos pertinentes à Geografia da Ciência

poderiam ter um magnífico aproveitamento desde a ótica do geógrafo. Mas o desperdício de

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trilhas investigativas fecundas parece ser um mal atávico de que padece este profissional. E o

terreno fértil da GC parece ser mais um campo do qual ele, inadvertido, desvia seu olhar.

Ironicamente, há uma multiplicidade de casos interessantes que, guardando uma ampla

interface com a perspectiva dos estudos históricos, se manifestam na evolução da ciência

geográfica. (Uma evolução tomada em seu aspecto “locacional”, bem entendido.). Para

ficarmos num assunto-chave mais evidente, temos o caso da incorporação defasada dos

ideários atinentes a uma dada escola de pensamento. Noutras palavras, o fato de que, a

depender dos elementos conjunturais (manifestos em um país, em uma região), certa atitude

metodológica ou viés de abordagem é assimilado de um modo muito particular – isto é, em

conformidade com demandas/expectativas deste contexto –, ou então só se dá depois de

transcorrido um tempo determinado (absolutamente necessário este, a fim de que um novo

contexto engendre os elementos conjunturais propícios a acolher a, digamos assim, “novidade

tardia”). Senão, como explicar a retransmissão à distância daqueles ideários? Distâncias

propriamente geográficas e apreciáveis (de uns a outros continentes); e até mesmo a distância

morosa definida pela história (de uns a outros regimes).

Même si les vidaliens doivent leur renommée mondiale à leurs excellentes études ou

monographies régionales, cette caractéristique de leur école n’a jamais été

reconnue au Japon. Dans ce pays, les études régionales, plutôt locales, ont été

effectuées par des professeurs des écoles normales dans chaque département [...]

Mais très peu de ces travaux ont été écrits par des universitaires et ceux-ci

préféraient faire des études thématiques plutôt que régionales. (NOZAWA, 1998:

222).

La géographie japonaise [...] s’est développée sous la très forte influence de la

géographie allemande, et le Japon en a tiré ses idées géopolitiques. [...] la

géographie française n’a malheureusement pas été assez forte au Japon durant la

guerre pour empêcher le développement de cette géopolitique.

Celle-là [geografia francesa] a été considerée comme un antidote contre la

géographie fasciste ou la géopolitique. (NOZAWA, 1998: 223).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cumprindo o rito de introdução deste nosso promissor Simpósio Temático (cujo título,

ademais, já sintetiza a magnitude do que ambicionamos aqui tratar – “História, Filosofia e

Geografia das Ciências Humanas”), esta comunicação pretendeu não mais que sumariar os

elos de correspondência entre a tradicional pesquisa histórico-epistemológica em ciências

(normalmente, físicas) e o campo disciplinar – ainda pouco cultivado, assim entendemos – da

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Geografia. Pareceu-nos que se a abertura de exposições trouxesse à audiência o caso

emblemático de uma disciplina esquecida pela literatura corrente em História da Ciência,

instauraríamos um empolgante bom-começo para nossas vindouras discussões.

Porque, como dissemos, por mais que computemos já um número razoável de pesquisas que,

de algum modo, têm tornado os geógrafos brasileiros mais familiarizados com o quadro de

temas caros aos historiadores e filósofos da ciência (fato atestado, p.ex., pela existência de

encontros nacionais de “história do pensamento geográfico”), há todo um largo espectro de

abordagens que permanecem intocadas. E estamos convictos que, se por um lado boa parte

desta nossa condição de “debutantes” – pelo menos se nos comparamos aos historiadores da

Química ou das ciências médicas – deve-se à histórica pouca apetência dos geógrafos a

romperem sua endogenia e frequentar fóruns diversos dos seus, por outro, a criação de um

“ST” consagrado às Ciências Humanas, dentro de um célebre Seminário que reúne

pesquisadores das mais variadas procedências, poderá ajudar à recuperação do tempo perdido.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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