uma leitura do horror no cotidiano feminino dos contos
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UMA LEITURA DO HORROR NO COTIDIANO FEMININO DOS CONTOS
IMITAO DA ROSA, DE CLARICE LISPECTOR, E O PAPEL DE PAREDE
AMARELO, DE CHARLOTTE PERKINS GILMAN
Daniela Gomes Loureiro1& Rosana Cristina Zanelatto Santos2
1Acadmica do Curso de Letras da UFMS, voluntria de Iniciao Cientfica PIBIC 2008/09.
2Professora da UFMS, Departamento de Letras e-mail: [email protected]. Bolsista de Produtividadeem Pesquisa CNPq Nvel 2.
O que caracteriza o ser humano sua
liberdade, sendo a prpria razo uma
expresso dessa liberdade.
(Rosana C. Zanelatto Santos)
Resumo: Este estudo configura uma linha de investigao prpria da crtica feminina eprope um olhar sobre as representaes de gnero na cultura patriarcal, a partir doscontos A imitao da rosa, de Clarice Lispector, e O papel de parede amarelo, deCharlotte Perkins Gilman. As autoras entrelaam seus textos a experincias trgicas,atualizando, ao mesmo tempo, pensamentos e sentimentos, seguindo novas concepes
de tragicidade, associadas ao cotidiano. Lidos em conjunto, os contos representampolaridades de uma mesma situao: tentativas de sobrevivncia em um mundo incertoe de enfrentamento de uma existncia transitria e, embora se encontrem caractersticassemelhantes na construo de suas personagens principais femininas, ambos os contosevidenciam interpretaes e intenes diferenciadas dentro do contexto em que foramproduzidos.
Palavras-chave: Crtica feminina; Gnero; Tragicidade.
A COMPARATIVE ANALYSIS OF THE HORROR IN THE DAILY FEMININE
OF THE STORIES IMITAO DA ROSA, OF CLARICE LISPECTOR, AND OPAPEL DE PAREDE AMARELO, OF CHARLOTTE PERKINS GILMAN
Abstract: This study configures a line of own investigation of the feminine critic and itproposes a glance about the gender representations in the patriarchal culture, startingfrom the stories A imitao da rosa, of Clarice Lispector, and O papel de paredeamarelo, of Charlotte Perkins Gilman. The authors interlace their texts to tragicexperiences, updating, at the same time, thoughts and feelings, following newconceptions of the tragic associated to the daily. Read together, the stories representpolarities of a same situation: survival attempt in an uncertain world that it takes the
characters to face a transitory existence and, although they are similar characteristics in
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their feminine main characters' construction, both stories evidence interpretations andintentions differentiated inside of the context in that they were produced.
Keywords:feminine critic; gender; the tragic.
INTRODUO
O homem moderno se insere num contexto histrico em que parte das pessoas
no acredita mais em progresso e em igualdade de chances para todos: os
conhecimentos tecnolgicos e cientficos no conseguem conter o pessimismo quepassa a dominar o meio urbano, acentuando o descrdito do homem em relao a ele e
ao mundo (cf. NIEZSTCHE, 2002).
Inicia-se, ento, uma era trgica, devido ao aspecto destrutivo de revolues e de
guerras, ao individualismo crescente que marca o capitalismo, falta de identidade
representada por uma massa em busca de um destino nico para todos. E nessa
perspectiva surge uma outra maneira de interpretar o fenmeno que descrevemos como
a instabilidade do mundo contemporneo. De um lado ou de outro, o homem perde o
sentido de si prprio e encontra-se instvel, vive cada minuto de forma incerta. O
destino representado em escala social passa a ser a Histria e esta, que indicava o final
das fatalidades pelo exerccio da racionalidade, passa a ser a prpria, pois detm o poder
e a arbitrariedade (cf. MAFFESOLI, 2003).
Segundo Szondi (2004), o trgico que se torna presente no cotidiano e na
literatura no se limita a configurar apenas tragdias, passando a povoar outros gneros
textuais. Ele est presente na banalidade do dia-a-dia. Os seus mistrios visveis
manifestam-se nas ruas, entre as multides, nos lares, sendo considerados comuns.
Para Williams, os
[...] eventos que no so vistos como trgicos esto profundamente inseridosno padro da nossa prpria cultura: guerra, fome, trabalho, trfego, poltica.No ver contedo tico ou marca de ao humana em tais eventos, ou dizerque no podemos estabelecer um elo entre eles e um sentido geral, eespecialmente em relao a sentidos permanentes e universais, admitir umaestranha e especfica falncia, que nenhuma retrica sobre a tragdia pode,
em ltima anlise, encobrir (2002, p.73).
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Na atualidade, muitos so os estudos que tratam da anlise das personagens
femininas em obras de autoria tanto masculina como feminina. Os estudiosos, sua
maneira, expressam o desejo de ouvir a histria daquelas vozes silenciadas e
murmurantes e, mediante sua interlocuo com elas, querem saber quem eram essas
mulheres, como sentiam, o que pensavam e como viviam.
A partir de uma leitura comparatista e feminista aplicada aos contos A imitao
da rosa, de Clarice Lispector, e O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins
Gilman, este relatrio tem por objetivo apresentar os resultados das anlises das atitudes
de personagens femininas circunscritas aos limites impostos ao seu cotidiano pela
vontade masculina, abordando a tragicidade, tanto na evoluo da literatura quanto no
papel da mulher na sociedade, mostrando, com isso, a fantasia, o horror e o irreal,
impresses de mundos estranhos e ilgicos visveis nas personagens. Tais contos foram
escolhidos porque as personagens femininas apresentam padres comportamentais e
perfis que se assemelham.
Assim, este estudo, que configura uma linha de investigao prpria da crtica
literria feminista, prope um olhar crtico das representaes do feminino na cultura
patriarcal. O estudo busca, tambm, estabelecer um elo comparativo entre os contos de
Lispector e de Gilman e suas personagens femininas sufocadas num mundo
tradicionalmente patriarcal, em que elas perdem a identidade e passam a vivenciar a
angstia, o medo, a solido.
Clarice Lispector, assim como Charlotte P. Gilman, por meio do enfoque
individual dado s suas personagens, conferem um valor metonmico a elas em relao
ao homem moderno. Lispector revela uma poca em que o cotidiano torna-se espao
para o trgico. O ser humano comum trazido cena com suas dores e suas alegrias.
Do mesmo modo procede Gilman.O conto A imitao da rosa tem vrias passagens que chamam a ateno para o
cansao e a alienao da personagem principal (Laura), em virtude de suas
responsabilidades domsticas. O que mais impressiona, porm, o fato de ela se
orgulhar de sua exausto, o que implica a sua real dedicao s tarefas condizentes
casa e ao marido, porm, nunca a ela. No conto O papel de parede amarelo, sobressai o
horror, numa histria de desagregao mental de uma mulher que se instala numa
manso vitoriana e comea a enxergar padres difusos e fantasmagricos no papel deparede de um quarto da casa.
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Pode-se observar, segundo a perspectiva de Bordieu (2002), nesses contos que a
ideologia patriarcal vale-se de elementos autoritrios para excluir as mulheres da
sociedade. Nesse processo, projeta-se um movimento de violncia que reduz a mulher
ao espao do cotidiano/caseiro, subjugando-a aos anseios masculinos e da sociedade em
redor. Quando a mulher sai dos limites que lhe so impostos pelo ambiente domstico,
ela cooptada por diferentes mecanismos, observando-se, ento, uma
autodesvalorizao da personagem, alm da sua submisso frente ideologia masculina.
1 OS CONTOS
1.1 A imitao da rosa
Nesse conto, a personagem Laura, esposa de Armando, passa por uma
readaptao ao cotidiano familiar aps perodo de internamento numa clnica
psiquitrica. Logo, a personagem mergulha em um dilogo interior, prendendo-se,
obsessivamente, sua imperfeio de mulher afeita rotina do lar, desinteressante e
pouco original. Enquanto reflete essa monotonia, a perfeio das rosas que comprara
pela manh a atrai de maneira sedutora. Ela, ento, compara as rosas a uma das
tentaes de Cristo, lembrada com base no livro A Imitao de Cristoque lera quando
estava no colgio, sem entender a histria; apenas tinha a certeza de que aquele que O
imitasse estaria perdido.
Laura tenta, ainda, defende-ser do abismo que ameaa trag-la novamente: o
abismo da perfeio de Cristo e das rosas. A beleza das rosas torna-se um transtorno. E
ela volta ao estado anterior de transe e alienao.
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1.2 O papel de parede amarelo
Esse conto narra a histria de Else, cujo marido - um mdico - confinou-a no
quarto de um casaro, que ele alugara, para que ela se recuperasse do que elediagnosticou como uma "temporria depresso nervosa - uma leve tendncia histrica",
um caso comum entre as mulheres da poca. As janelas do quarto so gradeadas e um
porto no topo das escadas permite ao marido certo controle ao restante da casa. Por
essa razo e por no lhe ser permitido trabalhar, ela resolve, ento, escrever um dirio
secreto.
O conto ilustra o efeito do confinamento na sade mental da personagem e sua
propenso psicose. Nada tendo para estimul-la, ela se torna obsessiva pela textura epela cor do papel de parede do quarto. No final, Else comea a ver mulheres arrastando-
se atrs do papel de parede amarelo, acreditando ser uma delas. Isso a leva a trancar-se
no quarto, que agora o nico lugar onde se sente segura.
2 REFLEXES
Com base no cruzamento dos dois contos e com a leitura das duas personagens
escritas por autoras diferentes, percebemos que, independente da poca e das
formalidades do grupo social em que se vive, sempre haver indivduos que tero seus
ideais abalados, conduzindo suas vidas conforme preceitos alheios e de acordo com os
padres de conduta impostos pela sociedade. Laura e Else so exemplos de mulheres
que vivem uma vida que no escolheram. Esse choque de imposies faz com que
surjam reflexes acerca do papel da mulher no grupo no qual est inserida.
2.1 Dois contos, duas autoras
Uma anlise dos contos A imitao da rosa, de Clarice Lispector, e O papel de
parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, mostra-nos como o patriarcalismo
projetou-se violentamente no universo feminino, submetendo as mulheres a um
cotidiano domstico, subjugando-as aos seus anseios e roubando delas a sua identidade,
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deixando-as expostas a diferentes mecanismos de submisso: solido, medo, angstia,
constituindo um processo de excluso.
Alm de ser a autora de vrios poemas e contos, entre eles O papel de parede
amarelo (1892), Gilman tambm escreveu trabalhos de no fico em que discute a
questo feminina. Sua obra mais conhecida nessa rea Women and Economics (1898),
na qual argumentado que os papis sexuais e maternais femininos foram
supervalorizados em detrimento do social e do econmico. No seu ponto de vista,
somente a independncia econmica poderia trazer a liberdade definitiva para a mulher.
Em A imitao da rosa, de Clarice Lispector, pode-se observar que a
personagem Laura expressa a situao da mulher absorvida pela rotina da vida
domstica que, por suas limitaes, no oferece espao para uma explorao das
potencialidades mais ntimas e profundas do ser. desse modo que Clarice Lispector
define, nos seus textos, a situao da mulher na sociedade: ela enfatiza o aprisionamento
fsico-social do ser feminino no lar e insinua a possibilidade de inaugurao de um
espao novo, de libertao, em que a protagonista busca se encaixar. Ela vai mostrando
rachaduras a partir do momento em que Laura mergulha em um dilogo interior com
suas outras vozes e vontades que vo tentando romper com aquele padro.
O conto mostra, num primeiro momento da histria, que a personagem Laura
passa por uma readaptao com o ambiente, pois ela estava afastada de seu cotidiano
familiar aps ter sido internada para tratamento psiquitrico. Um trecho do conto nos
apresenta Laura como uma tpica esposa e dona de casa:
Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e elaprpria j no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto elese vestia, e ento sairiam com calma, de brao dado como antigamente(LISPECTOR, 1977, p. 34).
notrio, no decorrer do conto, o uso do verbo dever repetido em vrios
trechos da histria, indicando como as coisas devem permanecer no cotidiano da
personagem e como ela se anula para no preocupar o marido.
Durante uma longa espera, Laura procura se prender obsessivamente rotina
domstica. Em um determinado momento da histria, enquanto reflete, a perfeio das
rosas que comprara pela manh cada vez mais sedutora. Observa-se ento que ela
tenta se defender do abismo ao qual estava novamente se entregando: o abismo da
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perfeio de Cristo e das rosas. A beleza das rosas torna-se um transtorno. Assim, ela
volta ao estado de transe que fez com que fosse internada.
Lispector trata da monotonia tambm como uma ameaa prpria ordem, afinal,
a personagem pode ser arrebatada, quase sempre atravs do olhar, por algo
aparentemente banal, mas capaz de provocar as perturbaes mais violentas e decisivas:
[...] Como era rica a vida comum, ela que enfim voltara da extravagncia. Atum jarro de flores. Olho-o. Ah! Como so lindas, exclamou seu corao derepente um pouco infantil. [...][...] Olhou-as com ateno. Mas a ateno no podia se manter muito tempocomo simples ateno, transformava-se logo em suave prazer, e ela noconseguia mais analisar as rosas, era obrigada a interromper-se com a mesmaexclamao de curiosidade submissa: como so lindas! (LISPECTOR, 1976,p. 57)
Quando Armando finalmente chega, encontra a mulher num pedido de perdo
que se confunde com a altivez de uma solido quase perfeita Ao final, esse conflito
agrava-se e ela sucumbe em meio ao ideal de perfeio que desejava atingir e embarca
no trem da insanidade. luz da sala, as rosas estavam em toda a sua completa e
tranqila beleza. E, Armando, da porta aberta, via sua mulher que estava sentada no
sof sem apoiar as costas, de novo alerta e tranqila como num trem. Que j partira
(LISPECTOR, 1976, p.68-70).Assim, da abordagem do cotidiano, nasce uma leitura que nega a hegemonia do
real e que revela ser possvel o trnsito do homem entre o real e o sonho, entre os fatos
como so e a iluso criada em torno destes. A obra clariceana apresenta personagens
fragmentadas e inquietas, em condies propcias para a especulao da relao entre o
eu e seu interior, o eu e o mundo, entre o eu e o outro (NOLASCO, 2001).
Muitos eus habitam cada personagem e manifestam-se de diversas formas, por
meio de mscaras, fantasias, loucura. No conto A imitao da rosa, Laura foge ao
padro de normalidade e considerada desequilibrada, embora as razes do abalo
emocional da personagem no sejam explicadas. O prprio vocbulo loucura um tabu,
por marcar a transgresso da ordem e da racionalidade. J tendo sido arrebatada uma
vez, Laura capturada pela fragilidade e pela beleza das rosas e pelo desejo do
insondvel mistrio prpura e da posse do belo.
na cor vermelha, smbolo fundamental do princpio da vida, com sua fora,
cor do fogo e do sangue, na ambivalncia simblica do vermelho noturno, que
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simboliza o fogo central do homem e da terra, o ventre e atanor 1, onde se opera a
digesto, o amadurecimento, a gerao ou regenerao do homem: ali que Laura se
(des) encontra. o vermelho que se transforma, para simbolizar a imortalidade que vem
devorar Laura. o vermelho sagrado e secreto, mistrio vital escondido no fundo das
trevas e dos oceanos primordiais. Os oceanos Purpreos dos gregos e o Mar Vermelho
esto ligados ao mesmo simbolismo: eles representam o ventre, onde morte e vida se
transmutam uma na outra.2Assim, Laura transmuta-se nas rosas vermelhas e msticas.
O mesmo acontece no conto de Gilmam, que narra a histria de uma
personagem levada pelo marido durante o vero para uma manso colonial, para se
restabelecer emocionalmente. A personagem sente-se deslocada e comea a fantasiar
coisas. A colonial mansion, a hereditary state, I would say a haunted house, and reach
the height of romantic felicity but that would be asking too much of fate!3
(GILMAN, 1997, p. 1). nessa manso, num quarto da casa, que um papel de parede
amarelo faz Else vislumbrar espectros fantasmagricos, enlouquecendo-a.
A personagem, para no se entregar a seus pensamentos angustiantes, resolve
escrever um dirio: I sometimes fancy that in my condition if I had less opposition(
ntida a posio do marido fora do universo domstico e aqui se percebe a solido) [...]
and more society and stimulus - but John says the very worst thing I can do is to think
about my condition, and I confess it always makes me feel bad. So I will let it alone and
talk about the house4(GILMAN, 1997, p. 2).
Nesse momento, ela narra a casa, o local; lembra do quarto e de quando comea
sua angstia ao olhar para o papel de parede: [...] I am afraid, but I don't care - there
is something strange about the house - I can feel it5(GILMAN, 1997, p.2). Por vrias
vezes, pede a John para trocarem de quarto, pedidos feitos inutilmente, pois, usando de
sua autoridade como marido e como mdico, ele taxativo e no aceita as
argumentaes da esposa, mantendo-a naquele quarto, prisioneira de seus medos.Durante trs meses ela obrigada a dormir ali, com aquele (horrendo) papel de parede,
1Forno do alquimista.2Ver CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, e CIRLOT, 1984.3Um solar colonial, uma herdade, eu diria at uma casa mal-assombrada, para atingirmos omximo da felicidade romntica mas isso seria pedir demais ao destino! (Traduo nossa).4s vezes, imagino como estaria se tivesse menos oposio e mais companhia e estmulo apesar de John dizer que a pior coisa que posso fazer ficar pensando em minha condio confesso que isso sempre me deixa mal. Ento, vou esquecer e contar sobre a casa(Traduo nossa).
5"[...] eu tenho medo, mas no me preocupo - h algo estranho na casa - eu posso sentir isto"(Traduo nossa).
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at que, no ltimo dia, John passa a noite na cidade, para resolver alguns compromissos
e a deixa com a empregada. Nessa noite, ela manda que a criada durma em outro quarto,
para ficar sozinha com o papel de parede e, assim, comeam seus delrios: The color is
repellent, almost revolting; a smouldering unclean yellow, strangely faded by the slow-
turning sunlight6 (GILMAN, 1997, p. 3). No outro dia, depois de imaginar que
conseguiu derrotar o papel de parede, resolve trancar-se no quarto e joga [...] the key
down into the front path7(GILMAN, 1997, p. 14), at que o marido aparea.
No interior do quarto, em delrio, observa-se a submisso da mulher contida em
seu inconsciente: I don't like to look out of the windows even - there are so many of
those creeping women, and they creep so fast. I wonder if they all come out of that
wallpaper as I did?8(GILMAN, 1997, p. 14).
6 A cor repelente, revoltante; um amarelo sujo, queimando sem chama, estranhamenteenfraquecido pela luz solar (Traduo nossa).7[...] a chave l embaixo, na parte da frente (Traduo nossa).8 Eu no gosto nem de olhar pela janela h tantas mulheres rastejando, e rastejam torpido. Ser que todas elas saram do papel de parede como eu? (Traduo nossa).
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2.2 A Perda da identidade e a procura pelo eu
A obra clariceana, assim como a gilmaniana, est repleta de personagens em
condies propcias a especulaes da relao entre a perda da identidade e a procura
pelo eu. Nesse vis, da abordagem do cotidiano nasce, ento, uma leitura que nega a
hegemonia do real e que revela ser possvel o trnsito do homem entre a realidade e o
sonho, entre os fatos como so e a iluso criada em torno deles.
2.3 Duas vidas: o mesmo desfecho?
Buscando o ininteligvel, as palavras incompreensveis, as personagens dos dois
contos aproximam-se do arqutipo do louco, pois ficam margem da sociedade, com
suas regras de normalidade e do que no . Elas passam pelo trgico e encontram-se em
situaes nas quais todas as regras se rompem e a realidade social anula-se (cf.
MAFFESOLI, 2003).
A rosa e o papel (ambos frgeis objetos), o vermelho e o amarelo (cores
aparentemente vivas) so os elementos desencadeadores da loucura das personagens
Laura e Else, em face da opresso em que vivem. O amarelo representa a terra frtil, o
sol, a cor das espigas maduras do vero, que tambm anuncia a chegada do outono,
quando a terra se desnuda, perdendo seu manto verde. Ela ento a anunciadora do
declnio, da velhice, da aproximao da morte. Para Else, o amarelo do papel de parede
anuncia o (seu) fim e torna-se o substituto do negro, do labirinto no qual ela se integra e
se perde.
E o vermelho, smbolo de uma renascena mstica, est tambm presente navida, na cruz, no tmulo. Se ele simboliza a vida tambm pode simbolizar a morte,
como o foi para Laura.
O vermelho e o amarelo tm, ento, dupla incidncia: amor, mas morte; dia, mas
noite; proteo, mas sufocamento; defesa, mas priso. Na parede e na flor esto
smbolos do elemento feminino: na fragilidade do papel e da rosa, o vermelho e o
amarelo indicam o vazio, num plano de morte com o qual Else e Laura se identificam.
patente que as personagens esto justamente no mundo do sensvel, e no doracional, do desencontro e no do encontro, da sombra e no da luz. Nota-se, ento, que
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os dois contos contemplam a histria dessas duas mulheres que vivenciam o absurdo, a
fantasia, o horror, o irreal, impresses de mundos estranhos, ilgicos, frutos da violncia
introduzida por uma ideologia patriarcal/masculina, postas em narrativas que mostram a
to presente e constante realidade do feminino. E, a todo o momento, elas tm o mesmo
intuito: resgatar a prpria sanidade.
Mais uma vez, a transgresso est em a personagem desejar algo bom e no se
considerar merecedora. A felicidade de Laura e Else tambm clandestina. Elas no se
consideram possibilitadas a imitar o belo e a vida que a natureza lhes apresenta nos
instantes mais inesperados. A simplicidade de apenas existir como so torna-se um
grande desafio e uma grande tortura. Uma rosa uma rosa, um papel de parede um
papel de parede, e isto fascina Laura e Else, por elas no saberem ao menos quem ou o
que elas so.
Assim, o trgico est, alm da decepo com o outro, no fato de no se saber
lidar com a tenso causada pelo inesperado nos relacionamentos; o trgico est no
sentimento de abandono vivido por Laura e Else ao perceberem que o outro no um
porto seguro; o trgico est no fato de se desconhecerem. Elas no concebem as muitas
facetas do ser humano, apresentando um senso de moralidade bastante forte, entretanto,
incompatvel com sua natureza. Por isso, entram em crise e no encontram solues
alm de atos desesperados.
Devido instabilidade das personagens e das circunstncias que as cercam, a
felicidade transitria: s se feliz por um breve momento. Na verdade, a felicidade
ocorre somente enquanto se ignora algo desconcertante. Na revelao de tal fato, a
tranquilidade desfaz-se, acompanhada de decepo e dor. O conforto e a segurana
passam a mal estar em segundos. Nos textos de Gilman e de Lispector, a felicidade est
na possibilidade de as personagens tomarem decises, de conhecerem suas naturezas.
Est mesclada dor, mas no menos intensa e menos esperada.Todas essas imagens traduzem conflitos de foras que manifestam os nveis de
existncia do ser humano: o vermelho representando foras noturnas, negativas e
involutivas, e o amarelo, a fora do sol, do ouro, que queima e que leva o homem
destruio.
No conto de Lispector, quando Laura enlouquece e se torna super-humana,
rompendo os limites impostos por sua condio humana, ela continua a sentir o amor e
a compaixo pelo outro. O mesmo acontece com Else no conto de Gilman.
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[...] a fizera subitamente super-humana em relao a um marido cansado eperplexo. [...] o que dava a ela uma piedade pungente, sim, mesmo dentro desua perfeio acordada, a piedade e o amor, ela super-humana e tranqila noseu isolamento brilhante (LISPECTOR, 1976, p. 57-60).
Dear John! He loves me very dearly, and hates to have me sick. [...] Anddear John gathered me up in his arms, and just carried me upstairs and laid
me on the bed, and sat by me and read to me till it tired my head(GILMAN,1997, p. 7)9.
Assim, as escritoras desenvolvem em suas obras a tragicidade como
consequncia da falta de apoio e de sustentao que as personagens vivenciam, pois
habitam um mundo onde as regras de convvio oprimem e no auxiliam; um mundo
onde no possvel manter certezas. Experimentam, portanto, situaes conflitantes ao
perceberem a multiplicidade dos outros e a sua prpria. A decepo constante edireciona os atos para o inesperado e as personagens caminham de um extremo a outro
em constante conflito. As personagens buscam umas s outras e, para tanto, so muitas
as indagaes feitas e so muitos os limites ultrapassados.
9 Querido John! Ele me ama muito e odeia me ver doente. [...] O querido John me recolheunos braos, me levou escada acima, me ps na cama e leu para mim at que eu me cansasse(Traduo nossa).
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3 CONSIDERAES FINAIS
Os contos das escritoras desenvolvem um questionamento da existncia, em que
o trgico se torna presente no cotidiano, banalizando-se no dia-a-dia.Existe uma busca por reconstruir o indivduo em Clarice Lispector e por destruir
quem ele se tornou, sem uma perspectiva de reconstruo, em Charlotte Gilman. Tais
fatores caminham para o indagar da existncia. O sofrimento das personagens inicia-se
no momento da revelao de mundos prximos e interiores, porm desconhecidos, e
prossegue com a liberdade sem perspectiva de futuro que elas enfrentam.
Lispector e Gilman discorrem sobre questes inquietantes e inerentes natureza
humana e sobre a dimenso que estas possuem em uma sociedade masculina. Soautoras que expem as realidades sufocadas, camufladas e mesmo proibidas das
personagens, demonstrando com isso o grau de sofrimento oculto pela aparncia da vida
cotidiana.
Na personagem Laura, por exemplo, predomina o marrom, uma cor neutra
distribuda pelos cabelos, olhos e vestido (aqui, apenas a gola creme), e essa cor
compe um perfil impessoal que refora a insignificncia de Laura e a sufoca. Os
olhos marrons [...] a pele morena e suave, tudo dava a seu rosto j no muito moo umar modesto de mulher. [...] E poria o vestido marrom com gola de renda creme
(LISPECTOR, 1976, p. 57). Percebe-se que Lispector, em certo momento, vale-se
tambm da expresso castanha para defini-la: castanha como obscuramente achava que
uma esposa devia ser (LISPECTOR, 1976, p. 57).
Gilman escreve sobre as relaes conflituosas, os obstculos e as dificuldades
que se repetem constantemente nos relacionamentos e revela por meio de temas como
dominao, impotncia e opresso aspectos negados da natureza humana. A autora
aborda principalmente o trajeto errante e fatalista da personagem Else. Ela apresenta ora
seres atados s condutas sociais e em crise pela dificuldade de lidar com as prprias
vontades, ora seres que burlam as normas sem maiores conflitos e desmoronam as
verdades alheias. Na obra da autora, o homem opressor o grande antagonista da
mulher, seja em conflitos internos, seja em dilemas interpessoais: John does not know
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how much I really suffer. He knows there is no reason to suffer, and that satisfies him
(GILMAN, 1997, p. 3)10.
A obra de Clarice Lispector questiona verdades tidas como absolutas, estando
em sintonia com o sculo em que foi produzida. As personagens anseiam por respostas.
Quem sou eu? O qu sou eu? So indagaes angustiantes para eus que tiveram suas
verdades abaladas ou mesmo destrudas (S, 2004).
As personagens passam da resposta pergunta que no conseguem responder.
Elas so o mistrio a ser decifrado. O desafio encontrar o eu escondido dentro de si.
Lispector escreve sobre a relao conflituosa que a personagem estabelece
primeiramente consigo mesma e depois com o outro.
Todavia, percebe-se, nitidamente, que as autoras escrevem sobre e a partir dos
momentos em que a viso das personagens sobre o mundo posta em dvida. Por isso,
entrelaam seus textos a experincias trgicas, atualizando, ao mesmo tempo,
pensamentos e sentimentos de acordo com novas concepes do trgico associadas
vida moderna. Esse olhar diferenciado motivado por fatores de sua poca: sentimento
de solido, fragilidade, desamparo e finitude.
Nos contos, pode-se observar que a ideologia masculina vale-se de elementos
autoritrios para excluir as mulheres da sociedade. Nesse processo, projetou-se um
movimento de violncia que reduziu a mulher ao espao do cotidiano/caseiro.
Os textos analisados dialogam entre si, medida que apresentam semelhanas
nos pontos de vistas que desenvolvem. Cada citao feita visa a ressaltar como se
manifesta a tragicidade nos contos analisados, juntamente com todas as peculiaridades
que possam existir associadas ao homem moderno e s suas indagaes. As leituras
partem das obras literrias e retornam a elas. Afinal, as narrativas desenvolvem formas
paralelas ao apresentarem a relao do homem com o outro, com o mundo e com a
existncia. Por isso, no possvel eleger uma nica teoria que abarque as muitaspossibilidades de leitura sobre a tragicidade presentes nas obras das autoras.
Por conseguinte, no so eleitos conceitos. O enfoque recai sobre as vises de
tragicidade expostas nos escritos gilmanianos e clariceanos e, a partir de ento, so
estabelecidos dilogos com textos de alguns pesquisadores que fizeram do trgico parte
de seus estudos.
10John no sabe quanto eu realmente sofro. Ele acha que no h razo para eu sofrer, e issoo satisfaz (Traduo nossa).
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As experincias das personagens esto interligadas a um arrebatamento causado
por um mergulho em seus interiores, pela descoberta de suas naturezas e pela realidade
do sofrimento, do trgico em suas vidas, e suas indagaes so elementos centrais nas
obras analisadas, pois revelam a procura do ser humano moderno por um lugar para si.
O desenrolar dessa busca e os eventuais encontros causam rupturas e situaes decisivas
para as personagens nos contos de Lispector e de Gilman.
O que est em evidncia o ser humano moderno sem marcas de glria e de
superpoderes. A condio herica no est nos grandes feitos, mas na simplicidade de
viver. Tal aspecto observado na obra de Gilman e de Lispector. As autoras trazem
para o plano do cotidiano e para a frgil e limitada condio humana um novo conceito
de herosmo, mostrando as dificuldades do ser humano comum diante das escolhas do
dia-a-dia e das constantes revelaes por que passa. Ambas criam personagens humanas
que so desnudadas linha por linha de suas capas sociais, para surgir o que mais as
atormenta e fascina. Um aspecto em comum nas autoras que o ser humano encontra-se
desarmado diante de si mesmo e diante das fatalidades.
O cotidiano das personagens o espao em que percepes do mundo,
associadas s inquietaes da modernidade, so suscitadas. O que abala as personagens
de Gilman e de Lispector a inautenticidade dos conceitos presentes no processo de
autodescoberta e de confronto do eu com o outro, com o mundo e consigo mesmas.
Com efeito, o estudo dos contos de Lispector e de Gilman aponta-nos muitos
dos papis que a sociedade atribui condio de ser mulher e, paralelamente, s
escolhas que ela faz (ou deixa de fazer) quanto aos valores que significam e sustentam o
ser feminino.
Um dos dados de maior relevncia da anlise o que se relaciona importncia
do fazer individual do sujeito feminino na construo do seu ser. Desse modo, ainda
que o sujeito masculino possua papel fundamental, propondo ou impondo valores, aescolha sempre da prpria pessoa e, sobretudo, essencialmente livre.
4 REFERNCIAS
BOURDIEU, Pierre.A dominao masculina. Traduo deMaria Helena Khner. 2. ed.Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. (1969).Dictionnaire des symboles.Paris:ditions Robert Laffont S.A. et ditions Jupiter, 1982.
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CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionrio de smbolos. Trad. FRIAS, Rubens EduardoFerreira. So Paulo: Editora Moraes Ltda, 1984.
GILMAN, Charlotte Perkins. The yellow wallpaper and other stories. Mineola, NY:
Dover Publications Inc, 1997.
LISPECTOR, Clarice. A imitao da rosa. In: _____. Felicidade Clandestina2. ed. Riode Janeiro: Artenova, 1976.
MAFFESOLI, Michael. O instante eterno: o retorno do trgico nas sociedadespsmodernas. Traduo de Rogrio de Almeida e Alexandre Dias. So Paulo: Zour,2003.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Para alm do bem e do mal. Traduo de AlexMarins. So Paulo: Martin Claret, 2002.
NOLASCO, Edgar Cezar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. So Paulo:Annablume, 2001.
S, Olga de. Clarice Lispector: a travessia do oposto. 3. ed. So Paulo: Annablume,2004.
SZONDI, Peter.Ensaio sobre o trgico. Traduo de Pedro Sssekind. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2004.
WILLIAMS, Raymond. Tragdia moderna. Traduo de Betina Bischof. So Paulo:Cosac & Naif, 2002.
PRODUTOS ALCANADOS
Apresentao de comunicao no 56 Seminrio do GEL/SP (2008), intitulado UMAANLISE COMPARATIVA DO HORROR NO COTIDIANO FEMININO DOS CONTOSIMITAO DA ROSA, DE CLARICE LISPECTOR, E O PAPEL DE PAREDE AMARELO,DE CHARLOTTE PERKINS GILMAN.
Apresentao de painel na ABRALIN em Cena MS (2008), intitulado UMA LEITURADO HORROR NO COTIDIANO FEMININO DOS CONTOS IMITAO DA ROSA,DE CLARICE LISPECTOR, E O PAPEL DE PAREDE AMARELO, DECHARLOTTE PERKINS GILMAN.
Apresentao de painel no II Seminrio Internacional da Amrica Platina (2008),intitulado O COTIDIANO FEMININO DOS CONTOS IMITAO DA ROSA, DECLARICE LISPECTOR, E O PAPEL DE PAREDE AMARELO, DE CHARLOTTE
PERKINS GILMAN: SOB A LUZ DAS CULTURAS LATINOAMERICANAS.
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