uma leitura do horror no cotidiano feminino dos contos

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  • 5/25/2018 Uma Leitura Do Horror No Cotidiano Feminino Dos Contos

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    UMA LEITURA DO HORROR NO COTIDIANO FEMININO DOS CONTOS

    IMITAO DA ROSA, DE CLARICE LISPECTOR, E O PAPEL DE PAREDE

    AMARELO, DE CHARLOTTE PERKINS GILMAN

    Daniela Gomes Loureiro1& Rosana Cristina Zanelatto Santos2

    1Acadmica do Curso de Letras da UFMS, voluntria de Iniciao Cientfica PIBIC 2008/09.

    2Professora da UFMS, Departamento de Letras e-mail: [email protected]. Bolsista de Produtividadeem Pesquisa CNPq Nvel 2.

    O que caracteriza o ser humano sua

    liberdade, sendo a prpria razo uma

    expresso dessa liberdade.

    (Rosana C. Zanelatto Santos)

    Resumo: Este estudo configura uma linha de investigao prpria da crtica feminina eprope um olhar sobre as representaes de gnero na cultura patriarcal, a partir doscontos A imitao da rosa, de Clarice Lispector, e O papel de parede amarelo, deCharlotte Perkins Gilman. As autoras entrelaam seus textos a experincias trgicas,atualizando, ao mesmo tempo, pensamentos e sentimentos, seguindo novas concepes

    de tragicidade, associadas ao cotidiano. Lidos em conjunto, os contos representampolaridades de uma mesma situao: tentativas de sobrevivncia em um mundo incertoe de enfrentamento de uma existncia transitria e, embora se encontrem caractersticassemelhantes na construo de suas personagens principais femininas, ambos os contosevidenciam interpretaes e intenes diferenciadas dentro do contexto em que foramproduzidos.

    Palavras-chave: Crtica feminina; Gnero; Tragicidade.

    A COMPARATIVE ANALYSIS OF THE HORROR IN THE DAILY FEMININE

    OF THE STORIES IMITAO DA ROSA, OF CLARICE LISPECTOR, AND OPAPEL DE PAREDE AMARELO, OF CHARLOTTE PERKINS GILMAN

    Abstract: This study configures a line of own investigation of the feminine critic and itproposes a glance about the gender representations in the patriarchal culture, startingfrom the stories A imitao da rosa, of Clarice Lispector, and O papel de paredeamarelo, of Charlotte Perkins Gilman. The authors interlace their texts to tragicexperiences, updating, at the same time, thoughts and feelings, following newconceptions of the tragic associated to the daily. Read together, the stories representpolarities of a same situation: survival attempt in an uncertain world that it takes the

    characters to face a transitory existence and, although they are similar characteristics in

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    their feminine main characters' construction, both stories evidence interpretations andintentions differentiated inside of the context in that they were produced.

    Keywords:feminine critic; gender; the tragic.

    INTRODUO

    O homem moderno se insere num contexto histrico em que parte das pessoas

    no acredita mais em progresso e em igualdade de chances para todos: os

    conhecimentos tecnolgicos e cientficos no conseguem conter o pessimismo quepassa a dominar o meio urbano, acentuando o descrdito do homem em relao a ele e

    ao mundo (cf. NIEZSTCHE, 2002).

    Inicia-se, ento, uma era trgica, devido ao aspecto destrutivo de revolues e de

    guerras, ao individualismo crescente que marca o capitalismo, falta de identidade

    representada por uma massa em busca de um destino nico para todos. E nessa

    perspectiva surge uma outra maneira de interpretar o fenmeno que descrevemos como

    a instabilidade do mundo contemporneo. De um lado ou de outro, o homem perde o

    sentido de si prprio e encontra-se instvel, vive cada minuto de forma incerta. O

    destino representado em escala social passa a ser a Histria e esta, que indicava o final

    das fatalidades pelo exerccio da racionalidade, passa a ser a prpria, pois detm o poder

    e a arbitrariedade (cf. MAFFESOLI, 2003).

    Segundo Szondi (2004), o trgico que se torna presente no cotidiano e na

    literatura no se limita a configurar apenas tragdias, passando a povoar outros gneros

    textuais. Ele est presente na banalidade do dia-a-dia. Os seus mistrios visveis

    manifestam-se nas ruas, entre as multides, nos lares, sendo considerados comuns.

    Para Williams, os

    [...] eventos que no so vistos como trgicos esto profundamente inseridosno padro da nossa prpria cultura: guerra, fome, trabalho, trfego, poltica.No ver contedo tico ou marca de ao humana em tais eventos, ou dizerque no podemos estabelecer um elo entre eles e um sentido geral, eespecialmente em relao a sentidos permanentes e universais, admitir umaestranha e especfica falncia, que nenhuma retrica sobre a tragdia pode,

    em ltima anlise, encobrir (2002, p.73).

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    Na atualidade, muitos so os estudos que tratam da anlise das personagens

    femininas em obras de autoria tanto masculina como feminina. Os estudiosos, sua

    maneira, expressam o desejo de ouvir a histria daquelas vozes silenciadas e

    murmurantes e, mediante sua interlocuo com elas, querem saber quem eram essas

    mulheres, como sentiam, o que pensavam e como viviam.

    A partir de uma leitura comparatista e feminista aplicada aos contos A imitao

    da rosa, de Clarice Lispector, e O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins

    Gilman, este relatrio tem por objetivo apresentar os resultados das anlises das atitudes

    de personagens femininas circunscritas aos limites impostos ao seu cotidiano pela

    vontade masculina, abordando a tragicidade, tanto na evoluo da literatura quanto no

    papel da mulher na sociedade, mostrando, com isso, a fantasia, o horror e o irreal,

    impresses de mundos estranhos e ilgicos visveis nas personagens. Tais contos foram

    escolhidos porque as personagens femininas apresentam padres comportamentais e

    perfis que se assemelham.

    Assim, este estudo, que configura uma linha de investigao prpria da crtica

    literria feminista, prope um olhar crtico das representaes do feminino na cultura

    patriarcal. O estudo busca, tambm, estabelecer um elo comparativo entre os contos de

    Lispector e de Gilman e suas personagens femininas sufocadas num mundo

    tradicionalmente patriarcal, em que elas perdem a identidade e passam a vivenciar a

    angstia, o medo, a solido.

    Clarice Lispector, assim como Charlotte P. Gilman, por meio do enfoque

    individual dado s suas personagens, conferem um valor metonmico a elas em relao

    ao homem moderno. Lispector revela uma poca em que o cotidiano torna-se espao

    para o trgico. O ser humano comum trazido cena com suas dores e suas alegrias.

    Do mesmo modo procede Gilman.O conto A imitao da rosa tem vrias passagens que chamam a ateno para o

    cansao e a alienao da personagem principal (Laura), em virtude de suas

    responsabilidades domsticas. O que mais impressiona, porm, o fato de ela se

    orgulhar de sua exausto, o que implica a sua real dedicao s tarefas condizentes

    casa e ao marido, porm, nunca a ela. No conto O papel de parede amarelo, sobressai o

    horror, numa histria de desagregao mental de uma mulher que se instala numa

    manso vitoriana e comea a enxergar padres difusos e fantasmagricos no papel deparede de um quarto da casa.

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    Pode-se observar, segundo a perspectiva de Bordieu (2002), nesses contos que a

    ideologia patriarcal vale-se de elementos autoritrios para excluir as mulheres da

    sociedade. Nesse processo, projeta-se um movimento de violncia que reduz a mulher

    ao espao do cotidiano/caseiro, subjugando-a aos anseios masculinos e da sociedade em

    redor. Quando a mulher sai dos limites que lhe so impostos pelo ambiente domstico,

    ela cooptada por diferentes mecanismos, observando-se, ento, uma

    autodesvalorizao da personagem, alm da sua submisso frente ideologia masculina.

    1 OS CONTOS

    1.1 A imitao da rosa

    Nesse conto, a personagem Laura, esposa de Armando, passa por uma

    readaptao ao cotidiano familiar aps perodo de internamento numa clnica

    psiquitrica. Logo, a personagem mergulha em um dilogo interior, prendendo-se,

    obsessivamente, sua imperfeio de mulher afeita rotina do lar, desinteressante e

    pouco original. Enquanto reflete essa monotonia, a perfeio das rosas que comprara

    pela manh a atrai de maneira sedutora. Ela, ento, compara as rosas a uma das

    tentaes de Cristo, lembrada com base no livro A Imitao de Cristoque lera quando

    estava no colgio, sem entender a histria; apenas tinha a certeza de que aquele que O

    imitasse estaria perdido.

    Laura tenta, ainda, defende-ser do abismo que ameaa trag-la novamente: o

    abismo da perfeio de Cristo e das rosas. A beleza das rosas torna-se um transtorno. E

    ela volta ao estado anterior de transe e alienao.

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    1.2 O papel de parede amarelo

    Esse conto narra a histria de Else, cujo marido - um mdico - confinou-a no

    quarto de um casaro, que ele alugara, para que ela se recuperasse do que elediagnosticou como uma "temporria depresso nervosa - uma leve tendncia histrica",

    um caso comum entre as mulheres da poca. As janelas do quarto so gradeadas e um

    porto no topo das escadas permite ao marido certo controle ao restante da casa. Por

    essa razo e por no lhe ser permitido trabalhar, ela resolve, ento, escrever um dirio

    secreto.

    O conto ilustra o efeito do confinamento na sade mental da personagem e sua

    propenso psicose. Nada tendo para estimul-la, ela se torna obsessiva pela textura epela cor do papel de parede do quarto. No final, Else comea a ver mulheres arrastando-

    se atrs do papel de parede amarelo, acreditando ser uma delas. Isso a leva a trancar-se

    no quarto, que agora o nico lugar onde se sente segura.

    2 REFLEXES

    Com base no cruzamento dos dois contos e com a leitura das duas personagens

    escritas por autoras diferentes, percebemos que, independente da poca e das

    formalidades do grupo social em que se vive, sempre haver indivduos que tero seus

    ideais abalados, conduzindo suas vidas conforme preceitos alheios e de acordo com os

    padres de conduta impostos pela sociedade. Laura e Else so exemplos de mulheres

    que vivem uma vida que no escolheram. Esse choque de imposies faz com que

    surjam reflexes acerca do papel da mulher no grupo no qual est inserida.

    2.1 Dois contos, duas autoras

    Uma anlise dos contos A imitao da rosa, de Clarice Lispector, e O papel de

    parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman, mostra-nos como o patriarcalismo

    projetou-se violentamente no universo feminino, submetendo as mulheres a um

    cotidiano domstico, subjugando-as aos seus anseios e roubando delas a sua identidade,

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    deixando-as expostas a diferentes mecanismos de submisso: solido, medo, angstia,

    constituindo um processo de excluso.

    Alm de ser a autora de vrios poemas e contos, entre eles O papel de parede

    amarelo (1892), Gilman tambm escreveu trabalhos de no fico em que discute a

    questo feminina. Sua obra mais conhecida nessa rea Women and Economics (1898),

    na qual argumentado que os papis sexuais e maternais femininos foram

    supervalorizados em detrimento do social e do econmico. No seu ponto de vista,

    somente a independncia econmica poderia trazer a liberdade definitiva para a mulher.

    Em A imitao da rosa, de Clarice Lispector, pode-se observar que a

    personagem Laura expressa a situao da mulher absorvida pela rotina da vida

    domstica que, por suas limitaes, no oferece espao para uma explorao das

    potencialidades mais ntimas e profundas do ser. desse modo que Clarice Lispector

    define, nos seus textos, a situao da mulher na sociedade: ela enfatiza o aprisionamento

    fsico-social do ser feminino no lar e insinua a possibilidade de inaugurao de um

    espao novo, de libertao, em que a protagonista busca se encaixar. Ela vai mostrando

    rachaduras a partir do momento em que Laura mergulha em um dilogo interior com

    suas outras vozes e vontades que vo tentando romper com aquele padro.

    O conto mostra, num primeiro momento da histria, que a personagem Laura

    passa por uma readaptao com o ambiente, pois ela estava afastada de seu cotidiano

    familiar aps ter sido internada para tratamento psiquitrico. Um trecho do conto nos

    apresenta Laura como uma tpica esposa e dona de casa:

    Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e elaprpria j no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto elese vestia, e ento sairiam com calma, de brao dado como antigamente(LISPECTOR, 1977, p. 34).

    notrio, no decorrer do conto, o uso do verbo dever repetido em vrios

    trechos da histria, indicando como as coisas devem permanecer no cotidiano da

    personagem e como ela se anula para no preocupar o marido.

    Durante uma longa espera, Laura procura se prender obsessivamente rotina

    domstica. Em um determinado momento da histria, enquanto reflete, a perfeio das

    rosas que comprara pela manh cada vez mais sedutora. Observa-se ento que ela

    tenta se defender do abismo ao qual estava novamente se entregando: o abismo da

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    perfeio de Cristo e das rosas. A beleza das rosas torna-se um transtorno. Assim, ela

    volta ao estado de transe que fez com que fosse internada.

    Lispector trata da monotonia tambm como uma ameaa prpria ordem, afinal,

    a personagem pode ser arrebatada, quase sempre atravs do olhar, por algo

    aparentemente banal, mas capaz de provocar as perturbaes mais violentas e decisivas:

    [...] Como era rica a vida comum, ela que enfim voltara da extravagncia. Atum jarro de flores. Olho-o. Ah! Como so lindas, exclamou seu corao derepente um pouco infantil. [...][...] Olhou-as com ateno. Mas a ateno no podia se manter muito tempocomo simples ateno, transformava-se logo em suave prazer, e ela noconseguia mais analisar as rosas, era obrigada a interromper-se com a mesmaexclamao de curiosidade submissa: como so lindas! (LISPECTOR, 1976,p. 57)

    Quando Armando finalmente chega, encontra a mulher num pedido de perdo

    que se confunde com a altivez de uma solido quase perfeita Ao final, esse conflito

    agrava-se e ela sucumbe em meio ao ideal de perfeio que desejava atingir e embarca

    no trem da insanidade. luz da sala, as rosas estavam em toda a sua completa e

    tranqila beleza. E, Armando, da porta aberta, via sua mulher que estava sentada no

    sof sem apoiar as costas, de novo alerta e tranqila como num trem. Que j partira

    (LISPECTOR, 1976, p.68-70).Assim, da abordagem do cotidiano, nasce uma leitura que nega a hegemonia do

    real e que revela ser possvel o trnsito do homem entre o real e o sonho, entre os fatos

    como so e a iluso criada em torno destes. A obra clariceana apresenta personagens

    fragmentadas e inquietas, em condies propcias para a especulao da relao entre o

    eu e seu interior, o eu e o mundo, entre o eu e o outro (NOLASCO, 2001).

    Muitos eus habitam cada personagem e manifestam-se de diversas formas, por

    meio de mscaras, fantasias, loucura. No conto A imitao da rosa, Laura foge ao

    padro de normalidade e considerada desequilibrada, embora as razes do abalo

    emocional da personagem no sejam explicadas. O prprio vocbulo loucura um tabu,

    por marcar a transgresso da ordem e da racionalidade. J tendo sido arrebatada uma

    vez, Laura capturada pela fragilidade e pela beleza das rosas e pelo desejo do

    insondvel mistrio prpura e da posse do belo.

    na cor vermelha, smbolo fundamental do princpio da vida, com sua fora,

    cor do fogo e do sangue, na ambivalncia simblica do vermelho noturno, que

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    simboliza o fogo central do homem e da terra, o ventre e atanor 1, onde se opera a

    digesto, o amadurecimento, a gerao ou regenerao do homem: ali que Laura se

    (des) encontra. o vermelho que se transforma, para simbolizar a imortalidade que vem

    devorar Laura. o vermelho sagrado e secreto, mistrio vital escondido no fundo das

    trevas e dos oceanos primordiais. Os oceanos Purpreos dos gregos e o Mar Vermelho

    esto ligados ao mesmo simbolismo: eles representam o ventre, onde morte e vida se

    transmutam uma na outra.2Assim, Laura transmuta-se nas rosas vermelhas e msticas.

    O mesmo acontece no conto de Gilmam, que narra a histria de uma

    personagem levada pelo marido durante o vero para uma manso colonial, para se

    restabelecer emocionalmente. A personagem sente-se deslocada e comea a fantasiar

    coisas. A colonial mansion, a hereditary state, I would say a haunted house, and reach

    the height of romantic felicity but that would be asking too much of fate!3

    (GILMAN, 1997, p. 1). nessa manso, num quarto da casa, que um papel de parede

    amarelo faz Else vislumbrar espectros fantasmagricos, enlouquecendo-a.

    A personagem, para no se entregar a seus pensamentos angustiantes, resolve

    escrever um dirio: I sometimes fancy that in my condition if I had less opposition(

    ntida a posio do marido fora do universo domstico e aqui se percebe a solido) [...]

    and more society and stimulus - but John says the very worst thing I can do is to think

    about my condition, and I confess it always makes me feel bad. So I will let it alone and

    talk about the house4(GILMAN, 1997, p. 2).

    Nesse momento, ela narra a casa, o local; lembra do quarto e de quando comea

    sua angstia ao olhar para o papel de parede: [...] I am afraid, but I don't care - there

    is something strange about the house - I can feel it5(GILMAN, 1997, p.2). Por vrias

    vezes, pede a John para trocarem de quarto, pedidos feitos inutilmente, pois, usando de

    sua autoridade como marido e como mdico, ele taxativo e no aceita as

    argumentaes da esposa, mantendo-a naquele quarto, prisioneira de seus medos.Durante trs meses ela obrigada a dormir ali, com aquele (horrendo) papel de parede,

    1Forno do alquimista.2Ver CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, e CIRLOT, 1984.3Um solar colonial, uma herdade, eu diria at uma casa mal-assombrada, para atingirmos omximo da felicidade romntica mas isso seria pedir demais ao destino! (Traduo nossa).4s vezes, imagino como estaria se tivesse menos oposio e mais companhia e estmulo apesar de John dizer que a pior coisa que posso fazer ficar pensando em minha condio confesso que isso sempre me deixa mal. Ento, vou esquecer e contar sobre a casa(Traduo nossa).

    5"[...] eu tenho medo, mas no me preocupo - h algo estranho na casa - eu posso sentir isto"(Traduo nossa).

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    at que, no ltimo dia, John passa a noite na cidade, para resolver alguns compromissos

    e a deixa com a empregada. Nessa noite, ela manda que a criada durma em outro quarto,

    para ficar sozinha com o papel de parede e, assim, comeam seus delrios: The color is

    repellent, almost revolting; a smouldering unclean yellow, strangely faded by the slow-

    turning sunlight6 (GILMAN, 1997, p. 3). No outro dia, depois de imaginar que

    conseguiu derrotar o papel de parede, resolve trancar-se no quarto e joga [...] the key

    down into the front path7(GILMAN, 1997, p. 14), at que o marido aparea.

    No interior do quarto, em delrio, observa-se a submisso da mulher contida em

    seu inconsciente: I don't like to look out of the windows even - there are so many of

    those creeping women, and they creep so fast. I wonder if they all come out of that

    wallpaper as I did?8(GILMAN, 1997, p. 14).

    6 A cor repelente, revoltante; um amarelo sujo, queimando sem chama, estranhamenteenfraquecido pela luz solar (Traduo nossa).7[...] a chave l embaixo, na parte da frente (Traduo nossa).8 Eu no gosto nem de olhar pela janela h tantas mulheres rastejando, e rastejam torpido. Ser que todas elas saram do papel de parede como eu? (Traduo nossa).

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    2.2 A Perda da identidade e a procura pelo eu

    A obra clariceana, assim como a gilmaniana, est repleta de personagens em

    condies propcias a especulaes da relao entre a perda da identidade e a procura

    pelo eu. Nesse vis, da abordagem do cotidiano nasce, ento, uma leitura que nega a

    hegemonia do real e que revela ser possvel o trnsito do homem entre a realidade e o

    sonho, entre os fatos como so e a iluso criada em torno deles.

    2.3 Duas vidas: o mesmo desfecho?

    Buscando o ininteligvel, as palavras incompreensveis, as personagens dos dois

    contos aproximam-se do arqutipo do louco, pois ficam margem da sociedade, com

    suas regras de normalidade e do que no . Elas passam pelo trgico e encontram-se em

    situaes nas quais todas as regras se rompem e a realidade social anula-se (cf.

    MAFFESOLI, 2003).

    A rosa e o papel (ambos frgeis objetos), o vermelho e o amarelo (cores

    aparentemente vivas) so os elementos desencadeadores da loucura das personagens

    Laura e Else, em face da opresso em que vivem. O amarelo representa a terra frtil, o

    sol, a cor das espigas maduras do vero, que tambm anuncia a chegada do outono,

    quando a terra se desnuda, perdendo seu manto verde. Ela ento a anunciadora do

    declnio, da velhice, da aproximao da morte. Para Else, o amarelo do papel de parede

    anuncia o (seu) fim e torna-se o substituto do negro, do labirinto no qual ela se integra e

    se perde.

    E o vermelho, smbolo de uma renascena mstica, est tambm presente navida, na cruz, no tmulo. Se ele simboliza a vida tambm pode simbolizar a morte,

    como o foi para Laura.

    O vermelho e o amarelo tm, ento, dupla incidncia: amor, mas morte; dia, mas

    noite; proteo, mas sufocamento; defesa, mas priso. Na parede e na flor esto

    smbolos do elemento feminino: na fragilidade do papel e da rosa, o vermelho e o

    amarelo indicam o vazio, num plano de morte com o qual Else e Laura se identificam.

    patente que as personagens esto justamente no mundo do sensvel, e no doracional, do desencontro e no do encontro, da sombra e no da luz. Nota-se, ento, que

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    os dois contos contemplam a histria dessas duas mulheres que vivenciam o absurdo, a

    fantasia, o horror, o irreal, impresses de mundos estranhos, ilgicos, frutos da violncia

    introduzida por uma ideologia patriarcal/masculina, postas em narrativas que mostram a

    to presente e constante realidade do feminino. E, a todo o momento, elas tm o mesmo

    intuito: resgatar a prpria sanidade.

    Mais uma vez, a transgresso est em a personagem desejar algo bom e no se

    considerar merecedora. A felicidade de Laura e Else tambm clandestina. Elas no se

    consideram possibilitadas a imitar o belo e a vida que a natureza lhes apresenta nos

    instantes mais inesperados. A simplicidade de apenas existir como so torna-se um

    grande desafio e uma grande tortura. Uma rosa uma rosa, um papel de parede um

    papel de parede, e isto fascina Laura e Else, por elas no saberem ao menos quem ou o

    que elas so.

    Assim, o trgico est, alm da decepo com o outro, no fato de no se saber

    lidar com a tenso causada pelo inesperado nos relacionamentos; o trgico est no

    sentimento de abandono vivido por Laura e Else ao perceberem que o outro no um

    porto seguro; o trgico est no fato de se desconhecerem. Elas no concebem as muitas

    facetas do ser humano, apresentando um senso de moralidade bastante forte, entretanto,

    incompatvel com sua natureza. Por isso, entram em crise e no encontram solues

    alm de atos desesperados.

    Devido instabilidade das personagens e das circunstncias que as cercam, a

    felicidade transitria: s se feliz por um breve momento. Na verdade, a felicidade

    ocorre somente enquanto se ignora algo desconcertante. Na revelao de tal fato, a

    tranquilidade desfaz-se, acompanhada de decepo e dor. O conforto e a segurana

    passam a mal estar em segundos. Nos textos de Gilman e de Lispector, a felicidade est

    na possibilidade de as personagens tomarem decises, de conhecerem suas naturezas.

    Est mesclada dor, mas no menos intensa e menos esperada.Todas essas imagens traduzem conflitos de foras que manifestam os nveis de

    existncia do ser humano: o vermelho representando foras noturnas, negativas e

    involutivas, e o amarelo, a fora do sol, do ouro, que queima e que leva o homem

    destruio.

    No conto de Lispector, quando Laura enlouquece e se torna super-humana,

    rompendo os limites impostos por sua condio humana, ela continua a sentir o amor e

    a compaixo pelo outro. O mesmo acontece com Else no conto de Gilman.

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    [...] a fizera subitamente super-humana em relao a um marido cansado eperplexo. [...] o que dava a ela uma piedade pungente, sim, mesmo dentro desua perfeio acordada, a piedade e o amor, ela super-humana e tranqila noseu isolamento brilhante (LISPECTOR, 1976, p. 57-60).

    Dear John! He loves me very dearly, and hates to have me sick. [...] Anddear John gathered me up in his arms, and just carried me upstairs and laid

    me on the bed, and sat by me and read to me till it tired my head(GILMAN,1997, p. 7)9.

    Assim, as escritoras desenvolvem em suas obras a tragicidade como

    consequncia da falta de apoio e de sustentao que as personagens vivenciam, pois

    habitam um mundo onde as regras de convvio oprimem e no auxiliam; um mundo

    onde no possvel manter certezas. Experimentam, portanto, situaes conflitantes ao

    perceberem a multiplicidade dos outros e a sua prpria. A decepo constante edireciona os atos para o inesperado e as personagens caminham de um extremo a outro

    em constante conflito. As personagens buscam umas s outras e, para tanto, so muitas

    as indagaes feitas e so muitos os limites ultrapassados.

    9 Querido John! Ele me ama muito e odeia me ver doente. [...] O querido John me recolheunos braos, me levou escada acima, me ps na cama e leu para mim at que eu me cansasse(Traduo nossa).

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    3 CONSIDERAES FINAIS

    Os contos das escritoras desenvolvem um questionamento da existncia, em que

    o trgico se torna presente no cotidiano, banalizando-se no dia-a-dia.Existe uma busca por reconstruir o indivduo em Clarice Lispector e por destruir

    quem ele se tornou, sem uma perspectiva de reconstruo, em Charlotte Gilman. Tais

    fatores caminham para o indagar da existncia. O sofrimento das personagens inicia-se

    no momento da revelao de mundos prximos e interiores, porm desconhecidos, e

    prossegue com a liberdade sem perspectiva de futuro que elas enfrentam.

    Lispector e Gilman discorrem sobre questes inquietantes e inerentes natureza

    humana e sobre a dimenso que estas possuem em uma sociedade masculina. Soautoras que expem as realidades sufocadas, camufladas e mesmo proibidas das

    personagens, demonstrando com isso o grau de sofrimento oculto pela aparncia da vida

    cotidiana.

    Na personagem Laura, por exemplo, predomina o marrom, uma cor neutra

    distribuda pelos cabelos, olhos e vestido (aqui, apenas a gola creme), e essa cor

    compe um perfil impessoal que refora a insignificncia de Laura e a sufoca. Os

    olhos marrons [...] a pele morena e suave, tudo dava a seu rosto j no muito moo umar modesto de mulher. [...] E poria o vestido marrom com gola de renda creme

    (LISPECTOR, 1976, p. 57). Percebe-se que Lispector, em certo momento, vale-se

    tambm da expresso castanha para defini-la: castanha como obscuramente achava que

    uma esposa devia ser (LISPECTOR, 1976, p. 57).

    Gilman escreve sobre as relaes conflituosas, os obstculos e as dificuldades

    que se repetem constantemente nos relacionamentos e revela por meio de temas como

    dominao, impotncia e opresso aspectos negados da natureza humana. A autora

    aborda principalmente o trajeto errante e fatalista da personagem Else. Ela apresenta ora

    seres atados s condutas sociais e em crise pela dificuldade de lidar com as prprias

    vontades, ora seres que burlam as normas sem maiores conflitos e desmoronam as

    verdades alheias. Na obra da autora, o homem opressor o grande antagonista da

    mulher, seja em conflitos internos, seja em dilemas interpessoais: John does not know

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    how much I really suffer. He knows there is no reason to suffer, and that satisfies him

    (GILMAN, 1997, p. 3)10.

    A obra de Clarice Lispector questiona verdades tidas como absolutas, estando

    em sintonia com o sculo em que foi produzida. As personagens anseiam por respostas.

    Quem sou eu? O qu sou eu? So indagaes angustiantes para eus que tiveram suas

    verdades abaladas ou mesmo destrudas (S, 2004).

    As personagens passam da resposta pergunta que no conseguem responder.

    Elas so o mistrio a ser decifrado. O desafio encontrar o eu escondido dentro de si.

    Lispector escreve sobre a relao conflituosa que a personagem estabelece

    primeiramente consigo mesma e depois com o outro.

    Todavia, percebe-se, nitidamente, que as autoras escrevem sobre e a partir dos

    momentos em que a viso das personagens sobre o mundo posta em dvida. Por isso,

    entrelaam seus textos a experincias trgicas, atualizando, ao mesmo tempo,

    pensamentos e sentimentos de acordo com novas concepes do trgico associadas

    vida moderna. Esse olhar diferenciado motivado por fatores de sua poca: sentimento

    de solido, fragilidade, desamparo e finitude.

    Nos contos, pode-se observar que a ideologia masculina vale-se de elementos

    autoritrios para excluir as mulheres da sociedade. Nesse processo, projetou-se um

    movimento de violncia que reduziu a mulher ao espao do cotidiano/caseiro.

    Os textos analisados dialogam entre si, medida que apresentam semelhanas

    nos pontos de vistas que desenvolvem. Cada citao feita visa a ressaltar como se

    manifesta a tragicidade nos contos analisados, juntamente com todas as peculiaridades

    que possam existir associadas ao homem moderno e s suas indagaes. As leituras

    partem das obras literrias e retornam a elas. Afinal, as narrativas desenvolvem formas

    paralelas ao apresentarem a relao do homem com o outro, com o mundo e com a

    existncia. Por isso, no possvel eleger uma nica teoria que abarque as muitaspossibilidades de leitura sobre a tragicidade presentes nas obras das autoras.

    Por conseguinte, no so eleitos conceitos. O enfoque recai sobre as vises de

    tragicidade expostas nos escritos gilmanianos e clariceanos e, a partir de ento, so

    estabelecidos dilogos com textos de alguns pesquisadores que fizeram do trgico parte

    de seus estudos.

    10John no sabe quanto eu realmente sofro. Ele acha que no h razo para eu sofrer, e issoo satisfaz (Traduo nossa).

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    As experincias das personagens esto interligadas a um arrebatamento causado

    por um mergulho em seus interiores, pela descoberta de suas naturezas e pela realidade

    do sofrimento, do trgico em suas vidas, e suas indagaes so elementos centrais nas

    obras analisadas, pois revelam a procura do ser humano moderno por um lugar para si.

    O desenrolar dessa busca e os eventuais encontros causam rupturas e situaes decisivas

    para as personagens nos contos de Lispector e de Gilman.

    O que est em evidncia o ser humano moderno sem marcas de glria e de

    superpoderes. A condio herica no est nos grandes feitos, mas na simplicidade de

    viver. Tal aspecto observado na obra de Gilman e de Lispector. As autoras trazem

    para o plano do cotidiano e para a frgil e limitada condio humana um novo conceito

    de herosmo, mostrando as dificuldades do ser humano comum diante das escolhas do

    dia-a-dia e das constantes revelaes por que passa. Ambas criam personagens humanas

    que so desnudadas linha por linha de suas capas sociais, para surgir o que mais as

    atormenta e fascina. Um aspecto em comum nas autoras que o ser humano encontra-se

    desarmado diante de si mesmo e diante das fatalidades.

    O cotidiano das personagens o espao em que percepes do mundo,

    associadas s inquietaes da modernidade, so suscitadas. O que abala as personagens

    de Gilman e de Lispector a inautenticidade dos conceitos presentes no processo de

    autodescoberta e de confronto do eu com o outro, com o mundo e consigo mesmas.

    Com efeito, o estudo dos contos de Lispector e de Gilman aponta-nos muitos

    dos papis que a sociedade atribui condio de ser mulher e, paralelamente, s

    escolhas que ela faz (ou deixa de fazer) quanto aos valores que significam e sustentam o

    ser feminino.

    Um dos dados de maior relevncia da anlise o que se relaciona importncia

    do fazer individual do sujeito feminino na construo do seu ser. Desse modo, ainda

    que o sujeito masculino possua papel fundamental, propondo ou impondo valores, aescolha sempre da prpria pessoa e, sobretudo, essencialmente livre.

    4 REFERNCIAS

    BOURDIEU, Pierre.A dominao masculina. Traduo deMaria Helena Khner. 2. ed.Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.

    CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. (1969).Dictionnaire des symboles.Paris:ditions Robert Laffont S.A. et ditions Jupiter, 1982.

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    CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionrio de smbolos. Trad. FRIAS, Rubens EduardoFerreira. So Paulo: Editora Moraes Ltda, 1984.

    GILMAN, Charlotte Perkins. The yellow wallpaper and other stories. Mineola, NY:

    Dover Publications Inc, 1997.

    LISPECTOR, Clarice. A imitao da rosa. In: _____. Felicidade Clandestina2. ed. Riode Janeiro: Artenova, 1976.

    MAFFESOLI, Michael. O instante eterno: o retorno do trgico nas sociedadespsmodernas. Traduo de Rogrio de Almeida e Alexandre Dias. So Paulo: Zour,2003.

    NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Para alm do bem e do mal. Traduo de AlexMarins. So Paulo: Martin Claret, 2002.

    NOLASCO, Edgar Cezar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. So Paulo:Annablume, 2001.

    S, Olga de. Clarice Lispector: a travessia do oposto. 3. ed. So Paulo: Annablume,2004.

    SZONDI, Peter.Ensaio sobre o trgico. Traduo de Pedro Sssekind. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2004.

    WILLIAMS, Raymond. Tragdia moderna. Traduo de Betina Bischof. So Paulo:Cosac & Naif, 2002.

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    Apresentao de comunicao no 56 Seminrio do GEL/SP (2008), intitulado UMAANLISE COMPARATIVA DO HORROR NO COTIDIANO FEMININO DOS CONTOSIMITAO DA ROSA, DE CLARICE LISPECTOR, E O PAPEL DE PAREDE AMARELO,DE CHARLOTTE PERKINS GILMAN.

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    Apresentao de painel no II Seminrio Internacional da Amrica Platina (2008),intitulado O COTIDIANO FEMININO DOS CONTOS IMITAO DA ROSA, DECLARICE LISPECTOR, E O PAPEL DE PAREDE AMARELO, DE CHARLOTTE

    PERKINS GILMAN: SOB A LUZ DAS CULTURAS LATINOAMERICANAS.

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