uma introduçâo à psicanâlise em · 2015. 2. 11. · 12 pelo contrario, infelizmente, sabemos...

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A H T I G O Uma Introduçâo à Psicanâlise em Cïnco Liçôes Leandro de Lajonquière" Com o objetivo de pôr em contato os leitores - profïssionais da psieopedago- gia - nâo com algumas temâticas e conceitos inerentes ao campo analïtieo mas também com o estilo propriamen- te freudiano de pensâ-los, apresenta- mos à continuaçâo urn comentârio in- trodutôrio as Cinco Liçôes de Psicanâ- lise que Freud ministrou na Clark Uni- versity em 1909. Mais ainda, e na me- dida em que as linhas que se seguem merecem ser lidas junto ao texto objeto de comentârio, pode-se afirmar que nosso objetivo é convidar o leitor a debruçar-se sobre os originais. A razâo disto é muito simples. Geralmente costuma-se pensât que a psicanâiise é uma teorîa do desenvoivi- mento afetivo e que, enquanto tal, isto é, enquanto explicaçào mais ou menos vitalista do dito desenvolvimento psico- lôgico, ela é também o resultado de um processo linear e mecânico de produçâo em funçâo do quai as variadas "linhas analïticas" divergeriam no acessôrio ou na ênfase que dâo a aspectos diverses da teoria. Nâo obstante, como ao nosso ver, tanto um como outro pressuposto sâo totalmente discutïveis à luz da expe- riência e do pensamento freudiano, pro- pomos se nos aeompanhe no propedêuti- co exercicio de uma certa operaçào de leitura. Essa empresa, claro esta, nâo nos parece, em absoluto gratuita uma vez que, ao nosso juizo, nâo sô esta em jogo o que se deve entender por psicanâ- iise mas também, mima outra instância, a natureza das "interaçôes" com outras âreas do conhecimento e, em particular, a conexâo com a (psico)pedagogia - centro de nosso interesse, 0 termo inconsciente converteu-se no maior equf- voco que atormenta a psicanâiise e sua transmissào jâ que apesar de estar certo de que sem ele a psica- nâiise desaparece, também nâo é menos verdadeiro que se o inconsciente é pensado como o négative psicolôgico da consciêneia, como o produto das re- pressôes da civilizaçâo moderna ou como a morada dos instintos e ritmos biolôgicos, o prôprio invento freudiano acaba esterilizado. Por outra parte, cabe assinalar que sâo, precisamente, estas versées psi- cologistas, culturalistas e biologistas da psicanâiise as que, em ûltima instância e através de diferentes rodeios argumentativos, sustentam a crença de que, por um Iado, a psicanâiise dever ser entendida como uma teoria do desenvolvimento e, por outro, a expe- riência clfnica freudiana situa-se num para além da "funçâo e campo da palavra e da linguagem..." (titulo do Discurso de Roma de Lacan), Desta forma, a conexâo psicanâlise-(psico)peda- gogia nâo poderia, mesmo na melhor das hipôteses, se pensar nurna outra chave que nâo seja aquela almejada por Anna Freud, Por que na melhor das hipôteses? Lembremos (pois uma anâlise-critica do annafreudismo ultra- passaria os limites do présente) que Anna Freud pretendia fundar uma pedagogia analïtica, fruto das contribuiçôes que a psicanâiise teria para dar à educaçâo nos très sentidos seguintes: crîtica das normas educacionais visando a prevençâo da neuro- se, ampliaçâo do conhecimento que se tem do homem e elaboraçâo de um método terapêutico especifico afim de remediar os danos psicolôgicos que as crian- ças possam experimentar no curso de sua educaçâo. Psicanalista, Doutor em Educaçâo. LAJONQUIÈRE. L. - Uma Introduçâo à Psîcanâlise em Cinco Liçôes REVISTA PSICOPEDAGOGIA 12(27):! 1-18,1993.

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Page 1: Uma Introduçâo à Psicanâlise em · 2015. 2. 11. · 12 Pelo contrario, infelizmente, sabemos que, em nâo poucas oportunidades a consabida contribuiçâo nem chega a tanto: ela

AHTIGO

Uma Introduçâo à Psicanâlise emCïnco Liçôes

Leandro de Lajonquière"

Com o objetivo de pôr em contato osleitores - profïssionais da psieopedago-gia - nâo sô com algumas temâticas econceitos inerentes ao campo analïtieomas também com o estilo propriamen-te freudiano de pensâ-los, apresenta-mos à continuaçâo urn comentârio in-trodutôrio as Cinco Liçôes de Psicanâ-lise que Freud ministrou na Clark Uni-versity em 1909. Mais ainda, e na me-dida em que as linhas que se seguemsô merecem ser lidas junto ao textoobjeto de comentârio, pode-se afirmarque nosso objetivo é convidar o leitor adebruçar-se sobre os originais. A razâodisto é muito simples.

Geralmente costuma-se pensât que apsicanâiise é uma teorîa do desenvoivi-mento afetivo e que, enquanto tal, istoé, enquanto explicaçào mais ou menosvitalista do dito desenvolvimento psico-lôgico, ela é também o resultado de umprocesso linear e mecânico de produçâoem funçâo do quai as variadas "linhasanalïticas" divergeriam sô no acessôrioou na ênfase que dâo a aspectos diversesda teoria. Nâo obstante, como ao nossover, tanto um como outro pressupostosâo totalmente discutïveis à luz da expe-riência e do pensamento freudiano, pro-pomos se nos aeompanhe no propedêuti-co exercicio de uma certa operaçào deleitura. Essa empresa, claro esta, nâonos parece, em absoluto gratuita umavez que, ao nosso juizo, nâo sô esta emjogo o que se deve entender por psicanâ-iise mas também, mima outra instância,a natureza das "interaçôes" com outras

âreas do conhecimento e, em particular, a conexâocom a (psico)pedagogia - centro de nosso interesse,

0 termo inconsciente converteu-se no maior equf-voco que atormenta a psicanâiise e sua transmissàojâ que apesar de estar certo de que sem ele a psica-nâiise desaparece, também nâo é menos verdadeiroque se o inconsciente é pensado como o négativepsicolôgico da consciêneia, como o produto das re-pressôes da civilizaçâo moderna ou como a moradados instintos e ritmos biolôgicos, o prôprio inventofreudiano acaba esterilizado. Por outra parte, cabeassinalar que sâo, precisamente, estas versées psi-cologistas, culturalistas e biologistas da psicanâiiseas que, em ûltima instância e através de diferentesrodeios argumentativos, sustentam a crença de que,por um Iado, a psicanâiise dever ser entendida comouma teoria do desenvolvimento e, por outro, a expe-riência clfnica freudiana situa-se num para além da"funçâo e campo da palavra e da linguagem..." (titulodo Discurso de Roma de Lacan),

Desta forma, a conexâo psicanâlise-(psico)peda-gogia nâo poderia, mesmo na melhor das hipôteses,se pensar nurna outra chave que nâo seja aquelaalmejada por Anna Freud,

Por que na melhor das hipôteses? Lembremos sô(pois uma anâlise-critica do annafreudismo ultra-passaria os limites do présente) que Anna Freudpretendia fundar uma pedagogia analïtica, fruto dascontribuiçôes que a psicanâiise teria para dar àeducaçâo nos très sentidos seguintes: crîtica dasnormas educacionais visando a prevençâo da neuro-se, ampliaçâo do conhecimento que se tem do homeme elaboraçâo de um método terapêutico especificoafim de remediar os danos psicolôgicos que as crian-ças possam experimentar no curso de sua educaçâo.

Psicanalista, Doutor em Educaçâo.

LAJONQUIÈRE. L. - Uma Introduçâo à Psîcanâlise em Cinco Liçôes REVISTA PSICOPEDAGOGIA 12(27):! 1-18,1993.

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Pelo contrario, infelizmente, sabemos que, em nâopoucas oportunidades a consabida contribuiçâo nemchega a tanto: ela se reduz a um diagnostico mais oumenos requintado.

Com efeito, nestes casos, a psicanâlise vem obtu-rar, com uma soltura e uma simplicidade nem sequer sonhadas pela fîlha de Freud, uma certa faltade saber (psicopedagogico). Eni outras palavras, aiquando os diverses saberes pedagôgicos. neurologi-cos, psicolôgicos e sociologicos convocados acabamrecortando no horizonte um limite intransponivel,costuma-se apelar à psicanâlise para que, suprindo-os, produza um saber sem falta/faîha - paradigmaimaginârio de toda empresa cientîfîca,

Justamente em situaçôes como essas, a psicanâ-lise é convocada na direçâo contraria que CatherineMillot sintetizara desta forma: "... tudo o que opedagogo pode aprender da anâlise e pela anâlise ésaber pôr limites à sua açâo - um saber que nâocorresponde a nenhuma ciência, e sim à arte(1992:154). Direçâo que, alias, os trabalhos de MaudMannoni começaram a trilhar pioneiramente jâ faztempo.

Neste sentido, afirmamos que a "contribuiçâo" dapsicanâlise, tendo em vista o contexto clïnico especï-fîco, passa, entâo, por uma certa "modulaçâo daatençào" do profîssional ou, em outras palavras, porpossibilitar o atravessamento da experiência psico-pedagôgica por uma escuta psicanalîtica visandoquestionar cada "passo técnico" à luz da transferên-cia que ele mesmo articula. Por sinal, ûnica chancede nâo cairmos numa mecânica ortopédica de re-educaçâo que afaste toda possibilita de reabrir erecolocar, permanentemente, a pergunta acerca dodestine da criança- enquanto sujeito do desejo in-consciente as voltas da procura de reconhecimentosimbôlieo.

Mas... ficamos por aqui. Prometendo voltar sobreesta questâo numa outra oportunidade; eis à conti-nuaçâo as cinco ligôes.

m ICostuma-se afîrmar que o trabalho freudiano

operou uma revoluçâo no pensamento ocidental.Mais ainda, que a revoluçâo freudiana nâo era aprimeira, mas a ûltima de uma série de révoltas: acopernicana e a darwiniana. Em certo sentido, nospodemos afirmar que de fato é assim. As très teriamem comuna o fato de ter espatifado a imagem narcï-sica que a humanidade tinha, numa época determi-nada, de si mesma. Em primeiro lugar, Copérnico

veio nos dizer que a Terra que habitâvamos nâo erao centre do sistema planetârio. Em segundo lugar,Darwin disse que nossa existência nâo obedecia anenhum piano necessârio de nossa mâe naturezamas, muito pelo contrario, que nos eramos aleatoria-mente seus filhos. Por sua vez, a reviravolta freudia-na completou essas operaçôes de des-centramentoao postular a sobre-determinaçâo inconsciente doagir humano.

Cada uma destas revoluçôes constituîram-secomo tais em oposiçâo a uma tradiçâo paradigmâticado pensamento ocidental. No caso particular dostrabalhos freudianos, estes op6em-se à identidadecartesiana sujeito=cogito=consciência, tradicionaldesde o século XVII. Por sinal, é precisamente estaidentidade axiomâtiea a que Freud prétende ques-tionar na sua primeira liçâo nos U.S.A. a partir dacaracterizaçào psicanalîtica do sintoma histérico.

Nessa espécie de exportaçâo napoleônica dos pre-ceitos revolucionârios, Freud relata as origens dapsicanâlise. Em primeiro lugar, destaca o trabalhode hipnose que Breuer desenvolvera, pela primeiravez, no tratamento de uma moça histérica (18807 82).O trabalho clïnico com essa jovem, chamada AnnaO., aproximou Freud com seu professer circunstan-cial - Breuer -, e possibilitou que escrevessem juntosEstudos sobre a histeria (1895), mas também abriu,simultânea e paradoxalmente, a brecha para o pos-terior distanciamento entre ambos. Nâo obstanteeste desfecho, Freud nâo restou mérito algum asobservaçôes clinicas de Breuer. Estas, por um lado,permitem-nos embasar "uma teoria puramente psi-colôgica da histeria, onde assinalamos o primeirolugar para os processos efetivos" (p.20); e, por outro.levam-nos a reconhecer que "num mesmo individuosâo possïveis varies agrupamentos mentais que po-dem ficar mais ou menos indépendantes entre si, semque um nada saiba do outro, e que podem se alternarentre si em sua emersâo à consciêncîa" (p.21).

A primeira conclusâo se contrapôe àquelas idéîasda época (e nâo tâo daquela época) que afirmavamque a etiologia da histeria encontrava-se ern alguma"afecçâo cérébral orgânica" (p. 14). Freud sustentaque a doença deve-se ao fato do sujeito ter passadepor "violentes abalos emocionais" (p.14). Estes, nocaso de Anna, tiveram lugar durante o periodo noquai a jovem cuidou do pai doente. Assim foi que"traumas psiquicos" ou "resfduos de experiênciasemocionais" (p. 17) acontecidas nesse momento pas-sade determinavam os sintomas atuais ou perturba-çôes psiquicas e fisicas. Estas ûltimas deviam-se aum processo chamado de "conversâo histérica" (p.20)que consistia numa transformaçâo em "insolitas in-versées e inervaçôes somâticas" (p.20) dos afetos

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surgidos na cena traumâtica. Ao contrario, umaoutra porçâo considerâvel dos afetos, pensados comomagnitudes deslocâveis ou "grandezas variâveis"(p.20) perdurava, em parte, como "carga continua davida psïquica e fonte permanente de excitaçâo paraa mesma" (p.20).

Nestas conceitualizaçôes freudianas podemos, àsimples vista, entrever a clâssica pergunta da meta-fisica ocidental peîa relaçâo mente-corpo. Perguntaque adquire uma fisionomianova nos estudos atuaisde medicina psicossomâtica. Nâo obstante, quandonosso autor palestrava para seus ouvintes america-nos nâo estava pensando numa espécie de conjunçàosomato-psiquica mas, muito pelo contrario, que oorganisme funciona como sustento ou suporte daletra sintomâtica. Isto é, sobre o organisme que osmédicos estudam se escreve/inscreve uma escritahieroglîfîca que os psicanalistas decifram.

Este trabalho de escrita détermina as singulari-dades dos fenômenos histérieos e coloca o médico namesma situaçâo que o profano jâ que "todo seu sabere todo seu prépare em anatomia, fîsiologia e patolo-gia deixam-no desamparado" (p.15). Isto acontece,precisamente, porque a maneira histérica de escre-ver transgride e perverte as leis da medicina. Oorganisme médico adquire uma fisionomia fantas-magôrica como Freud o descrevera com relaçâo apaciente de Breuer: Anna "tinha uma paralisia es-pâstica de ambas as extremidades do lado direito,com anestesia, sintoma que se estendia por vezesaos membres do lado oposto; perturbaçôes dos mo-vimentos oculares e varias alteraçôes da visâo;dificuldade de manter a cabeça erguida; repugnân-cia aos alimentos,,." (p.14),

Assim, o organisme de Anna funcionava comosuporte para a construçâo de mensagens que nâofaziam mais do que manter présente sua historiapassada (ou seja, o passado é, entâo, um passado-nâo-passado). Este fato leva Freud a afirmar, por umlado, que "os histérieos sofrem de reminiscências"(p. 18) (que, na medida em que o passado nâo passou,nâo podem ser confundidas com as reminiscênciasplatônicas) e, por outro, que para poder compreenderas mensagens deve-se realizar uma tarefa de deci-fraçâo. Esta trata de desentranhar o côdigo perdidoque funciona na combinatoria dos "simbolos mnêmi-cos" (p.lS),

No que diz respeito a estas idéias, Freud fazquestâo de assinalar as diferenças que mantem comBreuer: "nern sempre era um ûnico acontecimentoque deixava atrâs de si os sintomas; para produzirtal efeito uniam-se na maioria dos casos numerosostraumas, as vezes anâlogos e repetidos" (p.17).

Acrescentamos, por ûltimo, que em virtude de sera palavra o instrumente de intervençâo deste trata-mento singular, a jovem paciente de Breuer o cha-mou de "talking cure" (p.23).

A segunda conclusâo se contrapôe diretamente aoconceito tradicionaî de sujeito agente centrado nocogito. Este é, precisamente, o ponte central dateoria psicanalitica que Freud tentava apresentar aseu auditôrio.

O pensamento cartesiano postula uma perfeitacoincidência do sujeito consigo mesmo (ou seja, ocentramento do sujeito sobre si mesmo). A proposi-çâo analftica "cogito ergo sum" afirma que o momen-to da cogitatio é congruente com o da consciência.Esta é, para Descartes, uma pura reflexividade:quando penso nâo faço outra coisa que constituir-meem objeto pensado, Precisamente, este momentoabsoluto é questionado pela experiência freudiana.

0 sujeito freudiano esta marcado por uma ruptu-ra que diferencia instâncias topicas (consciente, pré-consciente e inconsciente) e que, portante, descentraa subjetividade. O sujeito esta subordinado a umaoutra cena assim como essa senhora de uns quarentaanos que fora paciente de Freud. Com efeito, Freudnos diz nesta primeira conferência que essa mulherera objeto de uma força ou "contra...vontade" (p.18)que a condenava a ter um tic singular. Nesta opor-tunidade, Freud também afirma que a consciêncianâo é uma pura reflexividade quando diz que a"doente de Breuer.. .em seu estado normal...ignoravatotalmente as cenas patogênicas" tante quanto aconexâo com os sintomas (p.20). Entre as cenaspatogenas e os sintomas foi destruïda a conexâo pelaquai os segundos aparecem como um "corpo...estra-nho.,.no estado normal" (p.21), Mais ainda, Freud,acrescenta: "Casos destes, também ocasionalmente,aparecem de forma espontânea, sendo entâo descri-tos como exemples de double conscience, Quandonessa divisâo da personalidade a consciência ficaconstantemente ligada a um desses dois estados,chama-se esse o estado mental consciente e o quedelà permanece separado o inconsciente" (p.21).

Essa fenda ou hiato estrutural da subjetividadesubverte a proposiçào cartesiana: em certo sentido,Freud estava dizendo a seus ouvintes americanosque onde nos pensam,os nâo somos.

Na atualidade aceita-se, com certa facilidade, aafïrmaçâo freudiana da divisâo do psiquismo emconsciente e inconsciente. Talvez o publiée reunido

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na Clark também passou a sustentâ-la quandoFreud acabara de ministrar sua primeira liçâo. Po-rém, nem por isso devemos nos apressar a tirar comoconclusâo que esses americanos do começo do século,bem como muitos de nossos contemporâneos, concor-dem com todas as conseqiiências que implica em simesma a peste que nosso autor, em virtude de suaviagem, dissera trazer para o Novo Mundo. Comefeito, nos temos sobre este ponto certas dûvidaspois, aceitar a existência de processos psiquicos in-conscientes é condiçâo necessâria para comungarcom a psicanalise, mas nâo é suficiente. Por sinal,Freud faz este mesmo esclarecimento logo no começode sua segunda conferência.

Nosso conferencista eomeça, precisamente, assi-nalaiido as diferenças existantes entre ele, Janet,Charcot e Breuer embora todos concordassem sobreo fenômeno da "dissociaçâo psïquica" (p.23).

Em primeiro lugar, entre Freud e Charcot media-va a afirmaçào deste ûltimo sobre a influência pato-logica de supostos traumas fïsicos. Ern segundo lu-gar, entre Freud e Janet, a afirmaçào deste relativaà "alteraçâo degenerativa do sistema nervoso"(p.23). E por ûltimo, entre Freud e Breuer interpu-nham-se consideraçôes dissimeis sobre o fenômenodo hipnotismo.

Tînhamos afirmado que o trabalho com o hipno-tismo ao tempo que aproximou também distanciouFreud de Breuer. O fato de que cada um delesacabasse tomando por rumos diferentes nâo sô este-ve relacionado com a impericia aiiedotica de Freudpara hipnotîzar seus pacientes mas, fondamental -mente, porque nosso autor começou a "ver" a expe-riência breuriana a partir dos "olhos" de Bernhein.Com efeito, o médico de Nancy mostrou a Freud queseus pacientes, no estado normal, "so aparentementeperdiam a lembrança" (p.24); isso é, eles "sabiam"sobre as "cenas patogênicas olvidadas" (p.24) embo-ra num primeiro momento afirmassem nâo ter ammima idéia. Assim foi que se impôs a Freud a idéiade que "as recordaçôes esquecidas nâo se haviamperdido" (p.25) e que podiam "ressurgir em associa-çâo com outros fatos ainda sabidos" (p.25) na medidaem que se vencesse uma certa força que as obrigavaa permanecer inconscientes. A essa força, nosso au-tor a chamou de resistência e pensou-a como o indïciodo acontecer de um outro processo que, no seu mo-mento. expulsou da eonsciência certos acontecimen-tos; este ûltimo processo foi chamado repressâo(p.25) (verdrangung).

A esta altura da histôria da psicanalise, Freudestava totalmente persuadido de que a divisâo dopsiquismo pode ser explicada "dinamicamente peloconflito de forças mentais contrarias" (p.26); isto é,

ela é "resultado de uma luta ativa da parte dos doisagrupamentos psiquicos entre si" (p.26) (os coneien-tes e os inconcientes).

Assim, a teoria da repressâo ou recalque queFreud elaborou, quando conseguiu tirar de seusolhos os restes do hipnotismo, possibilitou-lhe arti-cular uma maneira psicanalïtica de pensar "os pro-cessos psiquicos da histeria" (p.25). Operado essemovimento epistêmico, marcaram-se terminante-mente as fronteiras entre a nascente psicanalise etodas as outras numerosas teorias (pré-freudianas)sobre a divisâo do psiquismo. Por sinal, é precisa-mente essa fronteira - que sô a ponte da teoria darepressâo une e desune - a que muitos nâo estâodispostos a atravessar mesmo que aceitem facilmen-te o suposto sobre a divisâo do psiquismo.

Nosso autor considéra que esta nova maneira de"1er" os sintomas é decisoria e, por conseguinte,esforça-se por ser didâtico perante seu pûblico.Mais ainda, Freud sabe que se conseguir conven-cê-los disto, seus ouvintes terâo em seu poder achave para compreender as forniaçôes do incons-ciente das quais Ihes falarâ na terceira liçâo,

A formulaçâo freudiana da teoria da repressâo foiuma espécie de cerimônia de batismo para a psica-nalise. O jovem Freud eomeça, em certa forma, adeduzir a partir delà um leque de afirmaçôes que vâooutorgar fisionomia defïnitiva à sua singular criatu-ra. Com efeito, se o par repressào/resistência Ihepossibilita pensar os sintomas como formaçôes subs-titutivas do repriniido, entào, eomeça logo a fazersentido a seguinte pergunta: quai é a lôgica que podetornar inteligivel esse processo de formaçâo de sin-tomas?

A essa pergunta Freud dâ resposta no curso destaterceira liçâo. Porém, antes de começar a analisâ-lalembremos que essa questâo pressupôe a convicçàosobre a rigorosa sobre-determinaçâo dos processosanïmicos. Em outras palavras, Freud sô pode per-guntar-se pela légica que descreve o processo deformaçâo de sintomas uma vez que esta convicto deque no psiquismo nâo hâ aleatoriedade. Por sinal,assinalemos que a tese da sobre-determinaçâo é o nôda psicanalise na medida em que ela é a chave quecoloca em andamento um jogo de perguntas e res-postas que so tem sentido no interior de seus pro-prios limites paradigmeticos.

Freud no momento de suas Liçôes na Clark jâsabia do papel centrai que tem a tese da sobre-de-

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terminaçâo. Logo, nâo poupa esforços para tentarpersuadir seus ouvintes a esse respeito.

Assim, retomando as consideraçôes que expus naliçâo anterior sobre os acontecimentos que marca-ram a utilizaçâo, pela primeira vez. da associaçâolivre, Freud vai levando, devagar, seu pûblico até aresposta àquela pergunta inicial. Em primeiro lu-gar, preveniu-se das objeçôes que poderiani ser colo-cadas contra a tese do determinismo com a anâlisede um suposto contra-exemplo: "a aparente falta deidéias", manifestada em diverses momentos do tra-tamento pelos pacientes. Depois e pressupondo queconseguiu ganhar a partida contra as resistências deseu pûblico para aceitar a tese de que as "idéias aoacaso" dos pacientes sâo o meio técnico idôneo paraa descoberta do inconsciente, Freud começa a Ihesfalar a respeito dos sonhos e dos atos falhos. Tantoa interpretaçâo de uns quanto a de outros sâo apre-sentadas ao pûblico americano como vias de acessoas représentâmes reprimidas ou inconscientes. Astrès técnicas têm em comum o fato de partir sempredaquilo que nos aparece, isto é. das idéias "espontâ-neas" e isoladas do paciente. a partir dos elementossegmentados do sonho manifesta e, por ultime, dasbobagens da psieopatologiea vida cotidiana. Em resu-mo, sempre se trata de dirigir a atençâo para aquilomais "tonto" e insignifîcante visto que a repressâo,embora tenha apagado a ligaçâo significativa (entre osacontecimentos, entre as idéias) aos olhos da consciên-cia, nâo impede que a lembrança reprimida continueprésente ("agindo") no inconsciente.

Desta forma, o fato de Freud dizer a seu pûblicoque as técnicas de interpretaçâo vâo em sentidocontrario ao processo mesnio de formaçâo dos produ-tos substitutos e que. em ûltima instância, as trèsagem da mesma maneira, cria a atmosfera propiciapara que os americanos aceitem também a tesepsicanalitica que afirma a identidade dos processuspsïquicos envolvidos. Logo, sustentada tal identida-de, Freud esta Ihes dizendo que o inconsciente secaracteriza, precisamente, por sua universalidadeestrutural. Assim, o inconsciente cifra suas mensa-gens na cotidianeidade dos cbistes e sonhos, bemcomo no interior da vida neurotica onde elas seapresentam mascaradas nos sintomas. A este res-peito, Freud se expressa nestes termos: "... testemu-nham a existência da repressâo e da substituiçâo domesmo na saûde perfeita" (p.36).

Pois bem, tratemos agora da resposta freudianaà pergunta acerca das leis do processo formador/de-formador.

Freud a explica por ocasiâo de analisar a seme-Ihança existente entre a elaboraçâo dos sonhos e ados sintomas neurôticos. Afirma que a operatôria se

résume a dois processus psiquicos batizados de con-densaçâo e deslocamento (p.34). Estes sâo os respon-sàveis das impressôes (as lembranças) do dia ante-rior estarem ligadas entre si conforme uma légicaestranha. A ligaçâo-aparente entre elas déterminaa fîsionomia do sonho manifeste que, por sinal, nâoé outra coisa que uma "realizaçào de um desejonâo-satisfeito" (p.34) (observa-se que Freud opôerealizaçào a satisfaçâo; logo, o desejo realiza-se niasnâo se satisfaz). Justamente, entre as representaçô-es do complexe oculto entretecido pelo desejo e oconteûdo manifeste, intermedeia um trabalho deelaboraçâo que realiza o desejo à medida que cifra adisposiçâo das representaçôes. O conteûdo manifes-te do sonho nâo é uma cornposiçâo pictorica queexpressa analogicamente as idéias latentes mas oproduto de uma legalidade formai que détermina acombinatoria ou disposiçâo de suas representaçôes.Desta forma, as imagens do sonho nâo podem seranalisadas em bloco como o fazem aqueles que Iheatribuem um valor profético. Freud é muito claro aeste respeito: "Pondo de lado a aparente conexâo doselementos do sonho manifesta, procurarâo os senho-res evocar idéias por livre associaçâo, partindo decada um desses elementos e observando as regras deprâtica analïtica" (p.34).

Essas idéias evocadas por associaçâo sâo conside-radas por Freud como estando rigorosamente deter-minadas e, portante, na medida em que se enca-deiarn entre si, tornam perceptïvel a sintaxe doprocesso articulatôrio inconsciente. Este nâo temum ponte de detençâo définitive jâ que sempre hâalguma outra "idéia espontânea" que pode perdersua espontaneidade (ou liberdade) ao ser encadeada(associada a outra anterior). Por sinal, Freud desdeque abandonara a idéia do trauma ûnico estava"disposto a aceitar causas mûltiplas para o mesmoefeito, enquanto nossa necessidade causal, que su-pomos inata, se satisfaz plenamente com uma ûnicacausa psïquica" (p.36).

. IVFreud, nesses dias de 1909. tentava expor sinté-

tica, mas convincentemente, seus jâ quase 25 anosde estudo. Quando do inicio da quarta liçâo, Freudjâ havia exposto a seu auditorio uma boa parte desuas criaturas novedosas. Assim, havia falado a seupûblico americano da universalidade estrutural doinconsciente, da formaçâo de sintomas, da histeria,da interpretaçâo dos sonhos e do desejo. Talvez, detodas estas idéias freudianas, a mais esquisita emaluca para os ouvidos americanos foi esta ûltima.

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Isto nâo poderia ter sido de outro modo pois os outrostermos ou noçôes comportant, em certa medida, sig-nificaçôes mais ou menos familiares (embora o mé-rito freudiano tenha sido, precisamente, descons-truir essas noçôes carmins). No entanto, a idéia deum desejo sempre insatisfeito e reprimido que serealiza sem parar, sob a mascara das formaçôes doinconsciente, résume em si mesma o inconfundïvelcarâter revolucionârio da psicanâlise no contextedas teorias psicologicas.

Ciente disso, Freud décide ocupar sua quartaliçâo na elucidaçâo da natureza sexual do desejo demodo que nâo restem dûvidas do traço distintivo quecaracteriza a psicanâlise. Isto comportava apresen-tar ao pûblico outras criaturas tipicamente freudia-nas: as noçôes de libido e de pulsâo (trieb) (na ediçâobrasileira é traduzido de forma incorreta por instin-to). Assim, nosso palestrante, apresentando estestrès termos complementàrios entre si (desejo, libidoe pulsâo) delimitava o carnpo do psfquico que cons-iitui o terreno da prdtica e da teoria da psicanâlise.Em outras palavras, poder-se-ia dizer que como es-ses termos definem a "sexualidade freudiana", en-tâo, Freud estava dizendo a seus ouvintes america-nos que o campo da psicanâlise se constitui comouma reflexâo sobre "A" sexualidade.

Pois bem, esta quarta liçâo, que bem poderiaintitular-se "uma reflexâo freudiana sobre A sexua-lidade para americanos", mostra-nos as claras queas idéias de Freud acerca da sexualidade estâo longede constituir uma reflexâo à moda americana.

O que queremos dizer com isto? Por um lado,queremos remarcar aquilo que o proprio Freud dei-xou entrever a seu pûblico quando comentara oestudo do Dr. Bell: o método de reflexâo freudianonâo se parece com essas empresas americanas deobservaçâo infatigâvel de fatos sexuais. Muito pelocontrario, Freud constroi sua teoria sexual sem "ob-servar" (de certa forma, da mesma maneira como ascrianças constroem as suas prôprias e infantis teo-rias na medida em que elas nâo "vêem" a diferençaanatômica); ele a constroi à medida que inventatermos teôricos que visam tanto instituir coordena-das para escuta clinica quanto resolver as aporiasque derivam do mesmo trabalho de montagem teô-rica. Por outro lado, queremos ressaltar que a refle-xâo freudiana sobre a sexualidade uma vez que nâose confunde corn esses conhecidos manuais de sexua-lidade, escritos com inconfundïvel espïrito america-no, nosso autor nâo é uni sexologo mais.

Mas, como isto pode ser possfvel? Ou seja, comoé possivel que Freud que fala sobre sexualidade nâoseja um teorico que saiba sobre as qùestôes sexuaistal como sabe um sexologo? A resposta a esta per-

gunta articula, precisamente, a quarta liçâo poisesta destinada a persuadir seu pûblico de que emestritos termos psicanaliticos nâo hâ saber sobre osexo. Porém, é muito comum supor o contrario, istoé, supôe-se que hâ um saber sobre "A" sexualidade.Este saber séria de ordem biologica e estaria encar-nado no instinto que leva o organisme a procurarseus objetos naturais de satisfaçâo.

Pois bem, se as coisas sâo colocadas deste rnodo,entâo, as perversôes sâo desvios ou aberraçôes quesofre uma conduta padrâo. Complementariamentea esta idéia, também se costuma sustentar estaoutra: a cultura é a responsâvel por perverter essepercurso natural. Para tranqiiilidade de muïtos es-piritos assim mesmo isto deve ser, pois, é necessâriomanter honrosa a idéia de uma infância pura.

No entanto, a reflexâo freudiana subverte todaesta certeza évidente. As perversôes nâo sâo consi-deradas um desvio ulterior de uma conduta padrâodada desde a infância, mas uma inibiçâo no "desen-volvimento" da caôtica sexualidade infantil. Assim,nesta espécie de sexualidade-sem-sexo dos menores,germinam "o nada raro infantilisme gérai da vidasexual" dos adultos (p.43). Mais ainda, Freud assi-nala que também é necessârio ter em mente que "nasperversôes evidenciam-se... os mesmo componentesinstintivos (leia-se pulsionais) que mantêm os com-plexos e sâo formadores de sintomas; mas aqui elesagem do inconsciente, onde puderam firmar-se ape-sar da repressâo sofrida" (p.43). Desta forma, asneuroses e as perversôes (Freud afirma que as pri-meiras sâo o negativo das segundas) sâo considera-das rodeios particulares que a libido faz, na suaempresa de cercar objetos para além da normativi-dade biologica da espécie. Neste sentido, acrescen-temos que o ûnico que esta determinado é a diferen-ça sexuaî anatômica (e claro esta, sua complemen-taridade em prol da sobrevivência da espécie} umavez que a identidade sexual ou a escolha de objeto éniera possibilidade.

Contudo, precisemos um pouco mais estas idéiasfreudianas. E isto pelo seguinte: ainda nesta alturado raciocmio se poderia pensar que o "desenvolvi-mento" que comporta a sexualidade admite estarregido por leis necessârias e apodïticas ou, em outraspalavras, que o processo de desenvolvimento encar-na em si mesmo algum saber natural. A este respei-to, Freud afirma: "Esta vida sexual infantil desorde-nada, rica mas dissociada, ...expérimenta uma con-densaçâo e organizaçào em duas principais direçôes,de tal modo que ao fini da puberdade o carâter sexualdéfinitive esta completamente formado... Mas nemtodos os componentes pulsionais originârios sâo ad-mitidos a tomar parte nesta fîxaçào defînitiva da

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vida sexual" (p.42), Isto é, as pulsôes jamais sefundem completamente mima résultante tida comonormal: sempre fica um resto, umplus.

O resto pulsional se comporta de uma formaperversa, pois seu carâter errante escapa, precisa-mente, a todo saber preditivo prôprio de qualquer leiclâssica, Desta forma, o "desenvolvimento" da se-xualidade esta longe de aparecer-nos como um suce-der regulado pela sabedoria da natureza.

Entretanto, devemos esclarecer que com estaafirmaçâo Freud nâo queria dizer que a sexualidadese résume a um mero caos. Se assim fosse, nossoautor estaria cometendo o mesmo erro, mas emsentido oposto, das ideologias naturalistas-vitalis-tas, Ao contrario, Freud professa um certo artificia-lismo que o leva a afïrmar que o sexual esta regrado,isto é, que nâo é um mero caos, por uma lei um poucosui generis. Esta lei é a lei o desejo (a outra cara dalei do signifîcante) que enquanto ignorante das leisnaturais que cuidam da sobrevida da espécie, co-manda as cegas a pulsâo.

Pois bem, da sexualidade pensada nestes termesnos fica, no final das contas, uma imagem um tantoconfusa ou, em outras palavras, que hâ um certograu de desordem que Ihe é inerente; talvez desor-dem comparâvel com aquela que as crianças sabemdeixar depois de usufruir de um baû saturado debrinquedos. Por sinal, disto se trata, nâo sendo in-gênua nossa comparaçâo: Freud fala da "vida sexualinfantil desordenada" (p.42). E, precisamente, dessadesordem infantil que os adultes - "a maioria doshomens, observadores médicos e outros" (p.41) -nada querem saber. Por que? Ou mais ainda: o queé inerente à vida sexual das crianças e aos infanti-lismos dos adultos (em suma, o que é inerente àprôpria sexualidade) que deles nada se quer saber?

Esta quarta liçâo prétende dar resposta a essapergunta: aquilo que na sexualidade se recalca é o fatode que nâo comporta em si mesma nenhum saber.Freud endereça seus argumentas nesta direçâo. Po-rém, nâo é seguro que todos os americanos que esta-vam Ihe ouvindo acabassem compartilhando seme-Ihante conclusâo pois, como diz Oscar Masotta, o su-jeito "nada quer saber sobre o fato de que nào podesaber que nâo existe saber sobre o sexual" (1988:26).

Podemos afïrmar que, quando do inïcio da quintaliçâo, Freud j a havia desmascarado devidamente nafrente de seus ouvintes a "plasticidade dos compo-nentes sexuais" (p.50). De certa forma, até entâo,

havia feito aquilo mesmo que estava tentaiido expli-car a seu pûblico a respeito da direçâo da cura: levaro paciente a debruçar-se com o seu desejo. Porém,agora dévia Ihes contar o final da histôria, isto é,ainda restava explicar quais, em certo sentido, se-riam os destines dos "desejos inconscientes liberta-dos (desmascarados) pela psicanâlise" (p.49). Assim,nesta ocasiâo torna pûblico dois novos termes teôri-cos: transferência e sublimaçâo. Estes termes nâo sose relacionam entre si ao nivel da prôpria teoria, mastambém no interior do imaginârio cotidiano: supôe-se, por um lado, que o fenômeno transferencial serestringe à situaçâo analitica e, por outro, que asublimaçâo poderia se converter num novo e requin-tado objetivo de uma pedagogia mais cientificamen-te humana.

Freud é claro e terminante a esse respeito. Pri-meiro, fala aos americanos sobre a transferência.Diz: "A transferência surge espontaneamente emtodas as relaçôes humanas e de igual modo nas queo doente entretém com o médico; é ela, em gérai, overdadeiro veïculo da açâo terapêutica" (p.48) poisos sintomas "se na elevada temperatura da transfe-rência podem dissolver-se e transformar-se em ou-tros produtos psiquicos" (p.48).

Pois bem, por que a transferência é condiçâonecessâria para o trabaiho analitico dos sintomas?Porque as "forças instintivas sexuais da neurose"(p.47) sâo as mesmas que dâo suporte ao fenômenoda transferência. E isto é assim uma vez que apropria transferência consiste na consagraçâo aoanalista de "uma série de sentimentos... nâo justifi-cados em relaçôes reais e que, pelas suas partieula-ridades, devem provir de antigas fantasias tornadasinconscientes" (p.47). Em outras palavras, dandouma definiçâo categôrica, pode-se afirmar que atransferência "é a atualizaçâo da realidade do in-consciente" (Lacan, 1985:130). Assim, por um lado,a transferência esta ai, esta entre o analista e opaciente (ou mais ainda, ambos estâo na transferên-cia) e, por outro, o primeiro "delà se apossa a fim deencaminhâ-la ao termo desejado" (p.48). Esta opera-çâo para tornar-se uma condiçâo suficiente da disso-luçâo dos sintomas deve acompanhar aquela outraque tende a elevar a temperatura do fenômenotransferencial. Porém, para que isto aconteça o ana-lista deve reconhecê-la e esperar. resguardado nosilêncio, o fracasso da repressào, pois se décide, pelocontrario, enfrentâ-la de nada adiantarâ mesmo quese esgrima o consabido principio de realidade. Maisainda, poder-ser-ia afîrmar que se se trata de arguira favor de alguma realidade, aquele que em melho-res condiçôes se encontra de fazê-lo é o prôpriopaciente. Isto nâo poderia ser de outro modo uma vez

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que ele défende uma justa causa: a defesa do direitode usufruîr o gozo ou bénéficie do sintoma. Estasconclusôes nâo devem ter surpreendido os ouvintesamericanos na medida em que, logo no começo,Freud jâ afirmara: o sujeito "se desprende da reali-dade, recolhendo-se aonde pode gozar, isto é, ao seumundo de fantasia, cujo conteûdo, no caso de molés-tia, se transforma em sintoma" (p.47).

Assim, temos que o sintoma apresenta duas ca-ras: a do prazer e a da dor. Isto é, o sintoma nâo émais do que um gozo menor e substituto, produto deuma estratégia de refûgio para se evitar uma insa-tisfaçào maior. Ressaltemos, por sinal, que a satis-façâo maior que o sintoma pode comportai* nâo é "A"satisfaçâo mas sô uma parte da satisfaçâo, portanteele nâo deixa de ser, no final das contas, tambémuma insatisfaçâo.

Pois bem, por que o neurôtico, em certo sentido,conforma-se com tào pouco? ou seja, por que secontenta com uma (in)satisfaçâo menor? poderiamestar se perguntando alguns dos présentes na Clark,Nosso palestrante, à sua maneira, responde: "acha-rnes a realidade de todo insatisfatôria" visto que oaparelho psïquico padece de uma "ausência de adap-taçâo interna" (p.46).

Mas que coisa mais esquisita Freud esta dizendo?Ele nâo esta afirmando outra coisa que esta: a rea-lidade sô pode ser vivida, experimentada, necessa-riamente como insatisfatôria. O principio de reali-dade apenas nos diz que o objeto que encontrarnoscircunstancialmente nâo é aquele procurado (aquelebatizado por Freud no Projeta como Das Ding). Este,puro ser fantasmagôrico, leva consigo a chave "dA"Satisfaçâo. Assim, o falante (Lacan; parlêtre) repré-senta a opereta da sua busca abrigando a intimaesperança de nâo encontrar-se cara a cara com ela poisnâo suportaria ver seu rosto sinistre. A Satisfaçâo sopode ser entrevista por causa de uma "ausência deadaptaçào interna" do aparelho psiquico (p.46).

Pois bem, ordenando um pouco nossas idéias e otexto mesmo de Freud, résumâmes: "A" Satisfaçâodo desejo inconsciente nâo so é impossïvel comotambém evitada, pois se consumasse acabaria, pa-radoxalmente, fazendo-o como uma categôrica emortal insatisfaçâo. Por conseguinte, o neurôtico secontenta (se satisfaz) so com (na) realizaçâo do de-sejo. Eealizaçâo ou articulaçâo do desejo que tentadomesticar o mal-estar na civilizaçâo. Justamente,é a respeito deste destine do desejo que Freud falaaos americanos quando explica em que consiste asublimaçâo,

Freud diz que a sublimaçâo é um dos destinespossïveis para os "desejos inconscientes libertados

pela psicanâlise" (p.49). Os outres dois seriam acondenaçâo e a satisfaçâo direta (p.50).

A condenaçâo tem lugar quando os desejos "sâoanulados pela açào mental, bem conduzida. dos me-Ihores sentimentos contrârios" (p.49). Isto é, graçasà condenaçâo (ao dizer nâo), o paciente se dâ tempocomo o desejo o faz. exatamente, no sonho pois, aopasso que neste articula-se, mediatiza e demora suaprôpria satisfaçâo.

Jâ em relaçâo ao ûltimo destino possivel, Freudafirma: "Certa parte dos desejos libidinais reprimi-dos faz jus à satisfaçâo direta e deve alcançâ-la navida" (p.50). Como vemos, ela também nâo passa deser, em ûltima instância, uma satisfaçâo parcial deuma parte do corpo. A satisfaçâo Total, como temosafirmado, é impossïvel e este é o preço que o parlêtrepaga por sua dita normalidade. Porém, ao passo queeste ûltimo consiste em atingir parcialmente o fini,a sublimaçâo constitui (para decepçâo de todos) umasatisfaçâo que diretamente nâo chega a seu fini.Esta "faculdade..." que a pulsâo tem "de permutar ofini sexual por outro mais distante e de maior valorsocial" (p.50) obedece ao fato de que no falante o fime a satisfaçâo estâo cindidos. Desta forma, a subli-maçâo, ou seja, este se por a fazer outras coisassempre outras, desloca na "normalidade" a exclusi-vîdade que, outrora na "doença", detinha a repressâopara refrear "A" satisfaçâo (chamada de Gozo Outropor Lacan).

As empresas que o sujeito empreende na "norma-lidade" de sua psicopatolôgica vida cotidiaiia subli-mam a pulsâo e afastam o sujeito do Gozo uma vezque pôem a funcionar a fantasia. Em outras pala-vras, a "vida de fantasia" (p.46) pôe em marcha asempresas humanas mais ou menos fantâsticas nointerior das quais o desejo se realiza.

Bibiiografi*1. LAJONQUIÈRE, L. - DePiageta Freud: para repensa* as aprendi-

zagens. A (psico)pedagogia entre o conhecimento e o saber,Petrôpolis, Vozes, 1993.

2. FREUD, S. - Cinco liçôes de psicanatise. In; Ediçâo StandardBrasileira das Obras Psicolôgicas Complétas, Vol. XI, Rio Janeiro,Imago Editora, 1970.

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APPOA, ano III, 7,1992.5. MANNONI, M. - La Primera Entrev/sta com el Psicoanalista, Bue-

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1988.7. MILLOT, C. - Freud Anti-Pedagogo, Rio Janeiro, Zahar Editer,

1992.

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