uma história do conto

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UMA HISTÓRIA DO CONTO por Guillermo Cabrera Infante O escritor cubano traça um amplo percurso do gênero literário mais antigo e vers primeiras epopéias, passa pelas "il e !ma oites" e, no século #$, por autores c 'c%ecov, até c%egar, no século (), a Guimar*es +osa e orges O conto é t*o antigo quanto o %omem- 'alve. até mais, pois podem muito bem ter e ancestrais que contavam contos feitos inteiramente de grun%idos, que s*o a orige um grun%ido, bom1 dois grun%idos, mel%or1 três grun%idos 2á s*o uma frase- &ssim com ela a epopéia- as antes desta, cantada ou escrita, %ouve contos feitos inte em verso n*o é um conto, mas outra coisa0 um poema, uma ode, uma narraç*o com mé rima0 uma ocasi*o cantada, n*o contada, uma canç*o- &ntes até que aquele an3nimo artista de &ltamira pintasse seus minuciosos murais autor an3nimo na regi*o que contasse contos para seus compan%eiros de caverna se fogueira- O %omem, como sabemos, é o 4nico animal que fa. fogo- O contista é o 4 contos- 5sses contos seriam, por e/emplo, narraç6es de um dia de caça perdido no branco com um c%ifre na testa- Os contos n*o perduraram nas paredes da caverna, foram reencontrados, contados, na mem7ria coletiva- 8éculos mais tarde, outro contista pegou o mesmo conto, embele.ou o cervo branco c%amá9lo unic7rnio- 5mbora a e/periência fosse al%eia, tomou e fe. seu o tema do séculos mais tarde, outro contista enfeitou com metáforas :isto é, embele.ou poe 4nico com seu 4nico c%ifre- <assados outros tantos séculos, o %omem que conta 2á :e, é claro, a ler;, e outros animais e outros %omens que se transformavam em an o que c%amamos mitologia, mas que para eles era essa transcendência c%amada reli 5m outro século, quando outros %omens 2á n*o acreditavam nessa religi*o de deuse confundiam com os simples mortais, um deles, um poeta c%amado Ovídio, escreveu " religi*o, esses te/tos n*o tin%am mais do que aqueles primeiros contos contados numa caverna- Isso fe. do conto o gênero literário mais antigo e mais protéico- <rotéico, como se sabe, vem de <roteus, deus grego que estréia na cena olímpica feito de contos- <roteus sabia tudo de tudo, mas mudava de forma para n*o ser in contrário de um autor atual, que nunca muda de forma, mas procura sempre ser int pelo rádio e pela televis*o >e, ?s ve.es, pela polícia- Creio desnecessário fris metamorfose feita deus- <roteus está muito perto de prosa, que é o que os contis prosaico >dá na mesma- Os gregos, além de @omero e sua "Odisséia", cultivavam o conto, e um romance.in% Cloé", publicado no segundo ano da nossa era, foi seu provável precursor- as s*o contos os fragmentos que fa.em do "8atAricon", de <etr3nio, um romance, memoráveis é aquele intitulado "& Bi4va de feso", um conto perfeito e muitas ve 5ntre outros por Dean Cocteau, poeta t*o teatral que transformou o conto em peça O conto, logo protéico, parece desaparecer na Idade édia, mas na verdade se ves romance, se2a nos "romans courtois", onde aparece como %ist7ria de aventuras, se em que serve a um fabulário, n*o longe do .ool7gico de 5sopo- a saga arturiana : com a sopa asturiana, conto de favas;, o romance adquire um tom mágico, quase mí as a %ist7ria paralela do amor fatal de 'rist*o pela bela Isolda é, como quer loucura e de morte cu2a aura mágica n*o fica nada a dever aos modelos gregos e r as o conto, sempre recomeçado, reaparece onde menos esperariam os trovadores me Os árabes, entre o %arém e a areia "&s il e !ma oites" é a mais monumental compilaç*o de contos do final da Idade a mais tradu.ida :e con%ecida; literatura árabe depois do Cor*o- 8uas %ist7rias "&ladim e a F mpada aravil%osa" e "8imbá, o aru2o"; s*o %o2e t*o populares com tradu.idas aos diversos idiomas europeus- 8ua influência é perceptível desde oc antes deles, um e/traordinário escritor espan%ol, o infante d- Duan anuel, incl 5n/iemplos" mais de um conto árabe e/traído de "&s il e !ma oites", ent*o recon oral- &o contrário do que acontece com os contos contempor neos na 5uropa, "&s il e ! um autores, e a esperta princesa 8%era.ade é um autor coletivo que conta com vo. caso, contos de encanto, e até seu título em árabe é encantador, encantat7rio0 " vasta coleç*o de contos rastreou9se a origem até o século $ d-C- 8ua 4ltima fo di.er que, com seu feitiço oriental, o livro cobre quase toda a Idade édia cris

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UMA HISTRIA DO CONTO

UMA HISTRIA DO CONTO

por Guillermo Cabrera Infante

O escritor cubano traa um amplo percurso do gnero literrio mais antigo e verstil, que tem incio com as primeiras epopias, passa pelas "Mil e Uma Noites" e, no sculo 19, por autores como Machado de Assis e Tchecov, at chegar, no sculo 20, a Guimares Rosa e Borges

O conto to antigo quanto o homem. Talvez at mais, pois podem muito bem ter existido primatas ancestrais que contavam contos feitos inteiramente de grunhidos, que so a origem da linguagem humana: um grunhido, bom; dois grunhidos, melhor; trs grunhidos j so uma frase. Assim nasceu a onomatopia e com ela a epopia. Mas antes desta, cantada ou escrita, houve contos feitos inteiramente de prosa: um conto em verso no um conto, mas outra coisa: um poema, uma ode, uma narrao com mtrica e talvez com rima: uma ocasio cantada, no contada, uma cano.Antes at que aquele annimo artista de Altamira pintasse seus minuciosos murais, deve ter existido um autor annimo na regio que contasse contos para seus companheiros de caverna sentados em volta de uma fogueira. O homem, como sabemos, o nico animal que faz fogo. O contista o nico ser humano que faz contos. Esses contos seriam, por exemplo, narraes de um dia de caa perdido no encalo de um cervo branco com um chifre na testa. Os contos no perduraram nas paredes da caverna, mas no se perderam: foram reencontrados, contados, na memria coletiva.Sculos mais tarde, outro contista pegou o mesmo conto, embelezou o cervo branco e o converteu em mito ao cham-lo unicrnio. Embora a experincia fosse alheia, tomou e fez seu o tema do unicrnio perdido. Muitos sculos mais tarde, outro contista enfeitou com metforas (isto , embelezou poeticamente) esse animal nico com seu nico chifre. Passados outros tantos sculos, o homem que conta j havia aprendido a escrever (e, claro, a ler), e outros animais e outros homens que se transformavam em animais povoaram com contos o que chamamos mitologia, mas que para eles era essa transcendncia chamada religio.Em outro sculo, quando outros homens j no acreditavam nessa religio de deuses to humanos que se confundiam com os simples mortais, um deles, um poeta chamado Ovdio, escreveu "As Metamorfoses". De religio, esses textos no tinham mais do que aqueles primeiros contos contados em volta de uma fogueira numa caverna. Isso fez do conto o gnero literrio mais antigo e mais protico.Protico, como se sabe, vem de Proteus, deus grego que estria na cena olmpica com a "Odissia", poema feito de contos. Proteus sabia tudo de tudo, mas mudava de forma para no ser interrogado. Isto , fazia o contrrio de um autor atual, que nunca muda de forma, mas procura sempre ser interrogado: pela imprensa, pelo rdio e pela televiso _e, s vezes, pela polcia. Creio desnecessrio frisar que Proteus era uma metamorfose feita deus. Proteus est muito perto de prosa, que o que os contistas cultivam. Protico, prosaico _d na mesma.Os gregos, alm de Homero e sua "Odissia", cultivavam o conto, e um romancezinho, que o que "Dafne e Clo", publicado no segundo ano da nossa era, foi seu provvel precursor.Mas so contos os fragmentos que fazem do "Satyricon", de Petrnio, um romance, e um de seus mais memorveis aquele intitulado "A Viva de feso", um conto perfeito e muitas vezes citado, copiado at. Entre outros por Jean Cocteau, poeta to teatral que transformou o conto em pea, ganhando-o para o teatro.O conto, logo protico, parece desaparecer na Idade Mdia, mas na verdade se veste com os versos do romance, seja nos "romans courtois", onde aparece como histria de aventuras, seja no "Roman de Renart", em que serve a um fabulrio, no longe do zoolgico de Esopo. Na saga arturiana (que no se deve confundir com a sopa asturiana, conto de favas), o romance adquire um tom mgico, quase mstico, que lhe exclusivo. Mas a histria paralela do amor fatal de Tristo pela bela Isolda , como quer Bdier, um conto de amor, de loucura e de morte cuja aura mgica no fica nada a dever aos modelos gregos e romanos.Mas o conto, sempre recomeado, reaparece onde menos esperariam os trovadores medievais: no Oriente.Os rabes, entre o harm e a areia "As Mil e Uma Noites" a mais monumental compilao de contos do final da Idade Mdia. Esses contos so a mais traduzida (e conhecida) literatura rabe depois do Coro. Suas histrias ("Ali Bab e os 40 Ladres", "Aladim e a Lmpada Maravilhosa" e "Simb, o Marujo") so hoje to populares como quando foram traduzidas aos diversos idiomas europeus. Sua influncia perceptvel desde Boccaccio e Chaucer. Mas, j antes deles, um extraordinrio escritor espanhol, o infante d. Juan Manuel, incluiu em seu "Libro de los Enxiemplos" mais de um conto rabe extrado de "As Mil e Uma Noites", ento reconvertidas em tradio oral.Ao contrrio do que acontece com os contos contemporneos na Europa, "As Mil e Uma Noites" tm mil e um autores, e a esperta princesa Sherazade um autor coletivo que conta com voz de mulher. So, em todo caso, contos de encanto, e at seu ttulo em rabe encantador, encantatrio: "Alf Layla wa Layla". Dessa vasta coleo de contos rastreou-se a origem at o sculo 9 d.C. Sua ltima forma do sculo 16. Isso quer dizer que, com seu feitio oriental, o livro cobre quase toda a Idade Mdia crist _embora diga, no incio de cada conto: "... mas Allah mais poderoso". Em seguida vem uma espcie desconhecida de poesia que as infiis e cruentas tradues no conseguiram aniquilar. Sherazade a mais poderosa mquina de matar o tdio e a crueldade do rei que sempre assassinava a consorte de cada noite, exceo da contista, uma mulher amena, apesar de ameaada.Chaucer repetiu o esquema em seus "Contos de Canterbury", mas em verso. Quem o conseguiu em prosa foi Boccaccio, em seu imitado, inimitvel "Decameron". curioso que Cervantes, um artista supremo, tenha buscado inspirao nos contos italianos e no nos exemplos do infante d. Juan Manuel, que, diga-se de passagem, deu a Shakespeare seu "Relato de Mancebo que Cas con Mujer Brava". Acontece que Boccaccio um contista natural, tal como a contadora de histrias rabe. Cervantes, que inaugurou o romance moderno, o mais imitado, chamou o "Quixote" de livro e de "novelas exemplares" seus contos, declarando que "de modo algum poders fazer", leitor, "mistifrio". Mas revelou seu ofcio e arte: "Meu intento foi armar (...) uma mesa de carambolas". E acrescentou: "Onde cada qual encontre com o que se entreter".Um escritor cairota, Naguib Mahfuz, em suas "Noites das Mil e Uma Noites", que o editor cataloga como romance (os editores so capazes de chamar de romance a lista telefnica, que pode no ter narrao, mas tem uma poro de personagens), esse escritor consciente, demasiado consciente, tenta se tornar uma Sherazade assdua. Mas fracassa em seu intento. O livro quer ser rabe e apenas egpcio.Por outro lado, "Los Cuentos Negros de Cuba" so minhas mil e uma noites negras, contadas por uma Sherazade branca, Lydia Cabrera, para entreter as noites em claro de uma amiga agonizante. No final do livro, a doente j estava morta, mas os contos vivem na imortalidade da literatura. Eu os classifiquei, qualifiquei, como "antropoesia".A trama tecida noite aps noite por Sherazade, Penlope contista com milhares de pretendentes, levou muitos escritores _desde d. Juan Manuel, Boccaccio e Chaucer_ a tentar uma imitao em que diversos talentos buscam emular o encantamento rabe. Poucos o conseguiram, mas um escritor nosso contemporneo, Manuel Puig, em seu "O Beijo da Mulher Aranha", uma Sherazade argentina que a cada noite conta um filme inventado para seu companheiro de cela, seu vizir cruel: completamente surdo s ddivas orais que lhe oferece Puigrazade _assim como cego a suas investidas sexuais.Edgar Allan Poe inventou com trs contos _"Os Crimes da Rua Morgue", "O Mistrio de Marie Roget" e "A Carta Roubada"_, ele sozinho, a literatura policial, que so o conto e o romance de mistrio. Todos os cultivadores do gnero recm-criado foram seus epgonos, de Arthur Conan Doyle, criador do inslito Sherlock Holmes, a Dashiell Hammett e Raymond Chandler, romancistas que foram tambm contistas e, de passagem, renovaram o gnero. Uma epgona (se algum disse "jvenas", eu posso muito bem dizer "epgona"), Agatha Christie, disse: "O conto o domnio natural da literatura de crime e mistrio".Muitos contistas, quase todos anglo-saxes, fizeram do conto seu hbitat, que era como uma casa mal-assombrada. Todos seguiram o ditame de Poe, que disse que o conto " uma narrao curta em prosa" e definiu o conto breve como uma pea literria que "requer de meia hora a uma hora e meia ou duas de leitura". Eis a um importante modo de usar, "com cuidado". Mas h _ah!_ leitores descuidados. Para estes, a melhor maneira de ler no avio _e um best-seller ou livro que se compra porque se vende.Os herdeiros de Mark Twain so to numerosos quanto os seguidores de Poe, mas os primeiros, que chamaremos aqui humoristas, atentaram apenas para o lado luminoso da lua de Twain _sem enxergar suas regies de sombra e de penumbra. O mais bem-sucedido deles foi Damon Runyon, com suas historietas em que o submundo de Nova York aparecia povoado de gngsteres sentimentais, jogadores sementais e uma poro de mulheres de moralidade duvidosa e um (pouco) siso legvel como sexo. O cinema e o teatro, onde ningum l, criaram um Runyon ilustrado para iletrados. Runyon, que fazia rir, ia ao banco sempre rindo.No foram s os contistas com humor que tiveram sucesso popular. A partir do sculo 19, houve tambm quem cultivasse _e fosse popular por algum tempo_ essa estranha e elusiva planta chamada "conto fantstico". Na Inglaterra, onde se desperdiara a tradio realista iniciada por Chaucer, houve muitos autores de fantasias cujo objetivo no era induzir o sonho, e sim o pesadelo. Lembro, entre outros, Arthur Machen, Saki e Roald Dahl.Na Irlanda, terra de luzidas lendas nada lcidas, Sheridan le Fanu foi um contista de mistrio e terror cuja coleo "In a Glass Darkly" (em Dublin, cidade alcolica, tomam o espelho, "glass", como copo, e o livro se chama "Em um Copo Escuro") um dos clssicos do conto de terror como horror. Sua contrapartida foi mais tarde o norte-americano H.P. Lovecraft, um precursor da fico cientfica, gnero praticamente inventado por H.G. Wells na Inglaterra. A fico cientfica encontrou no conto sua forma perfeita para uma arte imperfeita. Vale registrar que todos os mestres do conto de horror anglo-saxo tm, tambm eles, em Poe seu antecessor primordial. preciso abrir aqui um pargrafo para Rudyard Kipling, talvez o maior contista ingls de todos os tempos. Kipling no fica nada a dever a Poe ou a Mark Twain, e para a Inglaterra o que Maupassant foi para a Frana e Tchecov para a Rssia: um contista natural. Comeou publicando em jornais indianos e, quando afinal foi a Londres, ento o centro do universo literrio, tinha apenas 20 anos (Kipling quase nosso contemporneo, morreu em 1936). Deixara para trs a ndia, embora fosse justamente seu lado muulmano, mais do que o hindu, o que mais lhe interessava no subcontinente.Kipling cultivou todas as modalidades do conto, do monlogo conversa, sendo alguns de seus contos feitos inteiramente de digresses, como queria Sterne, mas tambm de invenes memorveis. E muito antes que Conrad ou Somerset Maugham descobrissem o mundo extico do Oriente. Com a diferena de que, para Kipling, nascido em Bombaim, aquilo era a vida vivida e vvida.A Frana no teve um Chaucer, mas teve um mestre do conto no sculo 18, tardio, mas nada lerdo em sua arte da ironia, exercida com uma inteligncia incomum. Refiro-me a Voltaire, cuja obra-prima, "Cndido", no um romance, e sim uma fbula com uma moral em cada pgina. Os franceses tiveram de esperar todo o sculo 19 para que, afinal, surgisse um dos maiores contistas de todos os tempos, Guy de Maupassant, assombroso autor de sucessivas obras-primas do gnero. Maupassant teve Gustave Flaubert como mestre e mile Zola como mentor. Mas nenhum dos dois, embora tanto Flaubert como Zola tenham escrito contos memorveis, conseguiu superar o discpulo nascido para o conto. Sua influncia foi enorme em toda parte e teve seguidores (se no verdadeiros plagirios) na Inglaterra, nos EUA e na Rssia. na Rssia que Maupassant encontrar um rival extraordinrio, Anton Tchecov, que comeou contando anedotas e piadas na imprensa e acabou transpondo seus principais contos para o teatro, com uma arte inesperada. Tchecov, que podia reivindicar para si Nicolai Gogol (autor de "O Nariz" e "O Capote", entre outros contos), era um admirador de Tolsti, que escreveu contos como relatrios de guerra e foi contemporneo de outro mestre cultivador da forma breve, Ivan Turgueniev. Mas a influncia maior no autor de "A Dama do Cachorrinho" e "A Cigarra" , evidentemente, Maupassant. De Tchecov derivam Grki e todos os contistas russos do incio do sculo 20, que pareciam brotar da terra russa _at que chegou Stlin e, com seu cultivo forado do realismo socialista, transformou a frtil literatura russa num deserto com tratores.Outro seguidor de Tchecov foi, na Inglaterra, Somerset Maugham, mestre do conto ingls e mundial. Foi, ainda , um autor com uma popularidade que se estendeu aos palcos e s telas: vrias obras-primas do cinema, como "A Carta" (do diretor William Wyler, de 1940), se baseiam em seus contos. Maugham, em seus contos exticos, foi influenciado pelas narraes dos "mares do sul" de Conrad e, por sua vez, teve influncia sobre outros contistas, evidente sobretudo nos contos urbanos de John Cheever e John Updike, tpicos produtos da revista "The New Yorker".Se James Joyce tivesse morrido logo depois de publicar "Dublinenses", ainda assim seria considerado um escritor notvel e um grande contista. Traduzir reescrever. Traduzindo "Dublineses", tive a oportunidade de encontrar os "tricks" e tiques de Joyce mas tambm seus magistrais contos originais e sombrios e sua escritura cmica."The Dead" (que traduzi como "El Muerto") uma obra-prima dolorosa e um dos grandes contos escritos em ingls, quase um romance, por seus personagens inesquecveis e sua extenso. "The Dead" no um precursor do "Ulisses", e sim uma pea acabada em si mesma, de uma prosa milagrosamente extraordinria.No se poderia deixar de falar de um dos escritores mais originais do sculo 20, Franz Kafka, inventor da fbula com moral teolgica, ou seja, metafsica. Sua influncia se faz sentir em muitos escritores judeus, como Isaac Bashevis Singer, ou genuinamente gentlicos como Milan Kundera, que o reclama para a literatura tcheca, embora Kafka tenha escrito em alemo e pertena cultura talmdica. Felizmente para ns, que no somos nem tchecos nem judeus nem alemes, Kafka pode ser lido com verdadeiro deleite literrio.Um epgono de Kafka, judeu como Kafka, apareceu no na Tchecoslovquia, mas na Polnia: Bruno Schulz, contista. Seu "Lojas de Canela" de uma originalidade delicada: uma viso da vida judia numa cidadezinha da Polnia que oscila entre a magia e um doce realismo. Schulz, no podemos esquecer, foi assassinado por um tenente da SS nazista, castigo tremendo apenas por estar parado numa esquina sem fazer nada. Ao contrrio de Kafka, nunca nem sequer sonhou seu final. que o totalitarismo sempre inimigo da literatura.Hemingway e Tarantino O conto americano do sculo 20 nada deve a Maupassant, mas sim a Tchecov. Seu renascimento lembra mais Twain do que Poe e comeou, como ocorrera com Twain, com uma literatura regional que pulava as fronteiras do Meio-Oeste para chegar a Nova York e da ao mundo. Seu pioneiro se chamava Sherwood Anderson, patrocinador de William Faulkner e modelo de Ernest Hemingway. Seu livro "Winesburg, Ohio" (conhecido na Amrica do Sul e em Cuba como "Las Novelas de lo Grotesco", embora no sejam romances, e sim contos, e essa histria de grotesco seja gratuita, mas no deixa de ser um ttulo com gancho) continha uma nova viso do mundo adolescente num lugarejo de Ohio, e sua linguagem, coisa bem importante, era entre ingnua e sbia.Faulkner, que graas a Anderson publicou seu primeiro romance, famoso como romancista, ou melhor, como um poeta falastro, mas escreveu meia dzia de contos memorveis. Hemingway, por sua vez, mais contista do que romancista: um artista que renovou a prosa moderna americana com seus dilogos sofisticados para conversar com primitivos, que so de uma mestria ainda atual. Seu conto "Os Assassinos", em que apenas com o dilogo se oferece uma amostra do mal sob a forma de uma conversa aparentemente casual, revela uma violncia latente que nunca se faz patente.Desse breve conto partiu a renovao do romance policial com Hammett e Chandler, que escreveram primeiro contos de mentira e de morte. Um filme recente, "Pulp Fiction" [de Quentin Tarantino], com seus dilogos recorrentes, interminveis e perigosos, no teria lugar se antes no tivesse existido "The Killers". Seu ttulo mesmo, direto e brutal, serviu ao cinema desde que este comeou a falar: dilogos ditos com o canto da boca, que como se lem, sem mexer os lbios, as conversas de Hemingway.Dos grandes escritores americanos dos anos 20, Scott Fitzgerald o nico que frequentou a universidade, mas nunca chegou a se formar. Todos, portanto, foram autodidatas. Alguns, como John Steinbeck e William Faulkner, exerceram as mais variadas atividades, quase sempre manuais. Ernest Hemingway se dedicou ao jornalismo _que quase um trabalho manual. O nico instrumento que se tem de aprender a utilizar a mquina de escrever, e Hemingway sempre foi um mau datilgrafo. Todos eles eram contistas respeitveis, mas, exceo de Hemingway, o cultivo do romance ocultou essa qualidade.O exemplo mais evidente o de Fitzgerald. Todos vocs j leram ou sabem que se deve ler "O Grande Gatsby", festejado pela crtica, favorecido pelo cinema em produes coloridas e em preto-e-branco, com Alan Ladd, o perdedor nato, e com Robert Redford, numa verso chocha de Alan Ladd. Alguns conhecem seu conto "O Diamante do Tamanho do Ritz", mas poucos sabem que faz parte de seu livro "Contos da Era do Jazz", e ningum sabe nada de suas coletneas "All the Sad Young Men" e "Taps at Reveiile". Depois de sua morte, foram publicados dois volumes de contos, "Afternoon of an Author" e "The Pat Hobby Stories", uma compilao surpreendentemente leve para um tema dolorosamente autobiogrfico: as aventuras e desventuras de um escritor de aluguel em Hollywood, onde o autor morreu.Faulkner, como Fitzgerald, tambm foi alcolatra e, como Fitzgerald, tambm foi a Hollywood e serviu como tarefeiro de ouro (ou dourado), especialmente para o diretor Howard Hawks. Mais esperto ou mais duro de domar, Faulkner ia a Hollywood, mas, assim que recebia seu dinheiro, voltava correndo para Oxford. No a universidade inglesa, mas o pobre povoado do Mississippi onde ele nasceu e morreu, no mais profundo e racista Sul. Ao contrrio de Fitzgerald e Hemingway, Faulkner era um reacionrio pblico e um liberal privado. Dessas tenses so feitos no apenas seus romances mas os muitos contos que ele escreveu.Alguns de seus romances, como "Palmeiras Selvagens", cujo belo ttulo acaba de ser surrupiado e estropiado pelo diretor Oliver Stone, e "Desa, Moiss", so feitos de contos mais ou menos longos, entre os quais algumas obras-primas como "O Urso". Outras de suas narraes breves, como "A Rose for Emily" e "Barn Burning", constam de todas as antologias e integraram a seleo feita pelo prprio Faulkner em suas "Selected Stories". William Faulkner chegou a publicar um livro de contos detetivescos. Chama-se "Knight's Gambit", e seu fio condutor uma atividade que ningum associaria ao narrador de "Enquanto Agonizo" e "O Som e a Fria": o xadrez.Steinbeck e John Ford To contraditrio quanto Faulkner foi John Steinbeck: primeiro, comunista; depois, liberal e, mais tarde, um dos defensores mais ferrenhos do presidente Johnson e da Guerra de Vietn. Alm de seus grandes xitos novelsticos, como "Vinhas da Ira" (conhecido na Espanha por um ttulo menos bblico e mais vitcola, "Las Uvas del Rencor"), que , apesar da opinio de certos crticos americanos como Mary McCarthy, uma obra-prima popularizada em todo o mundo por John Ford, Steinbeck escreveu e publicou muitos contos, e seu segundo livro, "Pastagens do Cu", uma coleo de contos. Seu conto "O Cavalinho Vermelho" uma pequena obra-prima, e seus contos longos, como "Ratos e Homens" e "A Prola", so obras-primas desse gnero, a novela, que parece ter sido inventado pelos escritores americanos, de Henry James, com "A Volta do Parafuso", a Hemingway, com "O Velho e o Mar".Mas vim aqui falar do conto. Toda intromisso de outros gneros deve ser considerada uma digresso. E a digresso nunca deve ser considerada uma agresso. Como diz Laurence Sterne, o sol que brilha sobre a conversa. Tambm, diriam vocs, sobre meu monlogo. Outro escritor contemporneo desses autores artistas foi um jornalista que era um contista nato: o risonho e frgil Ring Lardner, que influenciou todos os mestres do humor americano que o sucederam. Lardner, embarcado numa misso impossvel _criar o conto de humor absurdo_, se autodestruiu com o lcool.Outro escritor agora esquecido, Erskine Caldwell, que j foi considerado o melhor contista do Sul selvagem, sabia mesclar o drama rural com uma sexualidade que, na poca, era franca e atrevida, mas divertida. Agora, perto do que se v no cinema, seus contos parecem se passar num convento de freiras que fumam.Lardner, contudo, teve colegas de mrito, como James Thurber, Robert Benchley e Dorothy Parker, que apostavam tudo no humor.Ao mesmo tempo, outros de seus colegas da revista "New Yorker" fiavam, mas no confiavam no esquivo amor _que muitas vezes se escrevia dio; outras, tdio. Talvez o maior mestre entre eles tenha sido John O'Hara, que fez dos dilogos aprendidos de Hemingway uma espcie de sbia sarabanda em que tudo se fiava conversa, para revelar, mas muitas vezes ocultar, os conversantes, conversos de uma religio atia.Desde ento no houve nenhum contista americano to influente e to lido _se excluirmos Raymond Carver. Ambos, O'Hara e Carver, so, sua maneira, epgonos de Hemingway. H outro grande contista contemporneo que no vem da tradio americana, que no americano, mas cria sua prpria tradio na Amrica, embora sua arte singular no tenha seguidores. Alm de seus grandes romances, escreveu contos perfeitos que, curiosamente, foram quase todos publicados pela primeira vez na revista "New Yorker". Seu nome, claro, Vladimir Nabokov. Acabaram de sair seus contos completos, e entre eles h pelo menos meia dzia de obras-primas do gnero _a dzia de Nabokov.Se "Os Contos de Canterbury" no tiveram continuadores (a no ser, claro, no uso do ingls: Chaucer tem na literatura inglesa o mesmo papel crucial que Dante na italiana), talvez porque os ingleses do sculo 16 e 17 no sabiam ler, embora soubessem, sim, ouvir e apreciar a msica das palavras, que vinha de poetas dramticos como Marlowe e Shakespeare e Ben Jonson. Todos, sobretudo Jonson e Shakespeare, grandes contistas. Algo parecido ocorreu na Espanha, onde se preferiu o romance picaresco e a comdia ao conto.O conto espanhol da Amrica Cervantes, ningum duvida disso, um grande contista, tanto em suas "Novelas Exemplares" como em seus entremezes e em muitos dos contos que retardam com passos certos os incertos passos do cavaleiro, ginete louco, e seu demasiadamente sensato escudeiro que segue a seu lado num burro. Todos sabemos que os sculos 18 e 19 fizeram da Espanha uma terra baldia literria e que o grande conto espanhol que percorrer o mundo em palcos e cinemas foi escrito por um francs. Estou falando de "Carmen", cujo autor, Prosper Mrime, situou a ao na Andaluzia, mas o escreveu em Paris.Assim como ocorreu nos EUA com o conto escrito em ingls, o conto escrito em espanhol ser escrito na Amrica. Um crtico peruano chamou a Amrica (referia-se antes Amrica hispnica) de "romance sem romancistas". Estava enganado, claro, mas no teria errado se tivesse chamado as Amricas de continente que contm contos. Pelo menos, se o ttulo no exato, ele poderia ter tirado algum proveito de minha aliterao.Thomas Colchie, tradutor norte-americano, conseguiu organizar uma antologia intitulada "A Hammock Beneath the Mangoes" ("Uma Rede sob as Mangueiras" ou sob as mangas), o que mais parece a descrio do suti de, digamos, Sarita Montiel.Mas uma excelente coletnea de contos breves sul-americanos. No poderia, no entanto, ter feito uma antologia similar de contos espanhis chamada, digamos, "Os Dotes de Roco Jurado".Por qu? Simplesmente porque haveria peitos a conter, mas no contos a contar. Toda regra tem uma exceo lutando por vir tona, e deve-se dizer que uma recente coletnea de contos de Javier Maras, "Cuando Fui Mortal", que contm contos no imorais, mas sim imortais, poderia continuar a tradio inaugurada por d. Juan Manuel, que foi neto e sobrinho de reis, adiantado do reino de Mrcia quando Mrcia era um reino. Mas no o escritor da nobreza o que nos interessa, e sim a nobreza do escritor _e sobretudo suapopularidade: em poucos meses, Maras vendeu perto de 50 mil exemplares de seu livro de contos. Mas eu no vim aqui para fazer o elogio de Maras, e sim do conto americano ou hispano-americano, muito embora trs dos maiores contistas cubanos (Hernndez Cat, Carlos Montenegro e Lino Novs Calvo) tenham nascido na Espanha: em Castela e na Galcia, respectivamente. Lino Novs, outra surpresa, foi o verdadeiro criador dessa coisa curiosa chamada realismo mgico. Aparece pela primeira vez num conto dele, "Aquella Noche Salieron los Muertos", muito antes que Alejo Carpentier formulasse sua teoria esttica (tomada emprestada de um surrealista francs) do "real maravilhoso".Horacio Quiroga o primeiro contista qua contista (gosto dessa palavra latina, qua, porque lembra gua, aqua, e repetida, qua, qua, parece um chamariz para patos, qu, qu, qu) e um louco perseguido pelo infortnio. Perdeu o pai num acidente de caa (caava patos na fronteira do Uruguai com a Argentina: os dois pases reivindicam sua paternidade) e seu padrasto se suicidou pouco depois. Perder o pai pode ser uma desgraa, mas perder um padrasto me parece um descuido.Ambos, tomem nota, por favor, morreram de morte violenta. Poucos anos depois, Quiroga matou seu melhor amigo, no que os juzes qualificaram de acidente. Quiroga se casou, e, no muito depois da lua-de-mel (ele obrigou sua jovem mulher a pass-la na mais densa selva brasileira), quase nem preciso diz-lo, foi a vez de ela se suicidar. Casado mais uma vez, sua nova mulher, como a oitava de Barba Azul, sobreviveu a ele. Doente de cncer da prstata (at nisso ele foi um pioneiro), Quiroga escolheu o suicdio.Detive-me na vida de Horacio Quiroga porque parece uma violenta telenovela e mais interessante que sua fico _que no menos violenta. Um de seus livros de contos se chama "A Galinha Degolada". No conto que d ttulo e tom ao volume, dois irmos gmeos, ambos idiotas, tm uma linda irmzinha. Mas os dois irmos vem _ou melhor, observam_ a madre degolar uma galinha para o jantar. Eles provam que a imitao a me da experincia e cortam o pescoo da irmzinha.Li os contos de Quiroga, todos, na adolescncia e acreditei em todos. Eu era, como vocs j devem ter deduzido, mentalmente so, mas impressionvel. Agora, mesmo que me ameaassem com a expulso deste encontro, eu no os leria nem amarrado. Vocs j devem ter deduzido tambm que Horacio Quiroga era dependente no s de morfina mas da literatura de Poe.Outro escritor de contos nascido na Argentina, mas com a cabea bem no lugar, Adolfo Bioy Casares. Muitas vezes associado a Jorge Luis Borges s porque eram amigos e colaboravam em empresas narrativas. Algum os chamou, a ambos, Biorges. Mas Bioy continuou escrevendo depois da morte de Borges e foi cada vez mais individual e distinto, no apenas no porte mas na escritura. Bioy escreveu a mais comovente histria de amor da literatura em espanhol do sculo 20. Chama-se "A Inveno de Morel" e, embora alguns a chamem de romance, uma novela ou conto longo e, para mim, perfeita. a melhor ilustrao do conselho francs "cherchez la femme".Agora uma breve interpolao para falar, brevemente, embora ele merea ensaios e tratados, desse grande autor: um americano que no escreve em espanhol e que no segue a tradio de sua lngua, porque est criando as duas. Refiro-me a Machado de Assis, o nico grande romancista sul-americano do sculo 19, que tambm um contista extraordinrio: sempre original, sempre na vanguarda de um homem s. Leiam, como aperitivo para o festim de um Trimalcio literrio, seu conto "O Alienista".O uruguaio Felisberto Hernndez era o oposto fsico do cubano Virgilio Piera. No gostava de homens magros, como Virgilio, mas de mulheres, muitas, gordas e caras: casou-se quatro vezes. Ao contrrio de Virgilio, que nunca foi musical, Felisberto (podemos cham-lo Felisberto: ningum se chama assim) era um msico profissional, que, curiosamente, trabalhava como pianista de teatro, mas no de palco, e sim no fosso, e no para acompanhar sopranos, mas fazendo msica de fundo para filmes mudos.Suas vidas opostas tiveram um final parecido, mas diferente. Virgilio morreu reconhecido como pederasta passivo, com passagens pela priso, condenado por invertido. Sua morte foi chorada por poetas pederastas, mas seu cadver desapareceu do velrio: as autoridades estavam convencidas de que seu corpo presente recriaria o ausente com fins polticos. Felisberto morreu de leucemia muito mais jovem que Virgilio, mas seu corpo inchou tanto que foi preciso procurar s pressas um caixo adequado, uma coisa to enorme que no pde ser tirada pela porta da funerria e saiu para a eternidade por uma janela.H um provrbio latino que prope que se chega ao final da vida conforme se viveu. Os respectivos finais de Virgilio Piera e Felisberto Hernndez foram, se no vidas, mortes paralelas. Acho que no por acaso a editora americana que publicou os "Contos Frios" de Piera agora publique os contos completos de Hernndez. Mas vale notar e anotar uma diferena notvel: Felisberto estava meio louco, Virgilio, ao contrrio, sempre teve a cabea bem assentada na guilhotina. Precisava apenas de uma revoluo, e a teve.Juan Rulfo chamou Guimares Rosa de "o maior autor surgido nas Amricas neste sculo". No se deve exagerar, mas Guimares Rosa, que escreveu o melhor romance do chamado "realismo mgico", um grande escritor. Para deleite de vocs (j que sua obra-prima, "Grande Serto: Veredas" longa, complexa e metafsica), ele tem um volume de contos, mais zen do que sensacionais, intitulado "Primeiras Estrias", que em espanhol ganhou o sugestivo ttulo de um de seus textos, "A Terceira Margem do Rio". H outros compatriotas de Machado de Assis que vale a pena citar, ainda que rapidamente. Murilo Rubio, com seu conto "O Ex-Mgico da Taberna Minhota", que "sui generis", como so os contos de Joo Ubaldo Ribeiro, sobretudo seu "Foi um Dia Diferente o da Matana do Porco" e o elusivo e alusivo Rubem Fonseca, que com seu "Coraes Solitrios" criou um escndalo internacional ao ser proibido pelas autoridades de seu pas.O escndalo chegou aos ouvidos do presidente Carter, mais conhecido como "el manisero", no por causa da saborosa rumba havanesa, mas por ter enriquecido cultivando amendoim. H outra rumba chamada "Tanta Lipidia por un Medio de Man" cujo ttulo me leva a explicar aqui meu interesse e at meu afeto pelos cariocas do conto. No h outro pas na Amrica que se parea tanto com a minscula Cuba como o gigantesco Brasil: ambos tm sua musicalidade na msica e na lngua, ambos so uma mistura de brancos ibricos e negros africanos, ambos criaram uma nova religio, que no Brasil se chama macumba e, em Cuba, "santeria".Todos acreditamos que o ritmo no est s na msica mas na fala, nos movimentos do corpo e nesse balano que em Havana se chama "el caminao". Este meu ensaio, por exemplo, foi escrito como falam em Havana os "hablaneros".Penso, ou sinto, no serem muito bons os contos de Rulfo, que me parecem parcos, mas primitivos. Em compensao, acredito que "Pedro Pramo" um grande romance em poucas palavras e o melhor romance mexicano j escrito _neste e em outros sculos. O contrrio acontece com o defunto Julio Cortzar: seus romances so para mim enfadonhos exerccios de uma vanguarda que o tempo mandou para a retaguarda.Mas seus contos, sobretudo os contos de famlia, so extraordinrios, e um ou dois _por exemplo, "O Perseguidor"; por exemplo, "A Auto-Estrada do Sul"_ so admirveis. O mesmo acontece com Alejo Carpentier, cujos ltimos romances so lamentveis quando comparados aos romances que escreveu na Venezuela: "O Reino deste Mundo", "Os Passos Perdidos", "O Cerco". Mas seu conto "Viagem Semente" uma obra-prima do gnero.Tambm o seu conto longo "Concerto Barroco" _se esquecermos seu final, que eu no quero esquecer. Tambm Gabriel Garca Mrquez, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa escreveram e publicaram contos. Mas, apreciados ou desprezados, devem ser considerados romancistas antes de mais nada ou depois de tudo.Chegamos aqui grande literatura no apenas regional ou continental mas mundial, universal at. Agora vem, e com tudo, Jorge Luis Borges. No houve no idioma um escritor maior desde que Caldern de la Barca morreu em Madrid em 1681. Toda pessoa que tenha lido um nico conto de Borges (e felizmente Borges s escreveu contos e ensaios maneira de contos) percebe que est diante de um escritor excepcional. Foi Borges quem disse de Quevedo que no era um escritor, mas uma literatura. Com maior justia se pode dizer o mesmo de Borges. Ele sozinho, em sua remota Buenos Aires, que depois dele sempre est perto, aqui ao lado, virando a pgina, Borges sozinho fez do conto toda uma literatura e at mais, uma teoria literria. No preciso citar nenhum ttulo, pois vocs conhecem todos. Mas so contos no para ler, e sim para reler, recordar, memorizar e sempre nos assombrar. No s com sua cultura e seu humor, mas tambm com sua arte narrativa. O oportunismo poltico o privou do Prmio Nobel que ele tanto almejou. Pior para o prmio: no mereceu Borges. Mas todos os seus leitores, todos os dias, lhe oferecemos o prazeroso desagravo da leitura, pois ele , argentino nobre que era, nosso prmio.No me escapa e, claro, no escapar a vocs, que fui parco em nomes e largo em adjetivos. No era meu propsito compor aqui um guia de autores, mas oferecer um panorama do conto mais geogrfico do que histrico. Depois de passear _como queria Anatole France que fosse a viso, no a misso, do crtico_ por entre obras-primas, posso chegar a uma concluso, se que chego. Talvez o conto requeira mais arte que verdade. Isto , uma quantidade maior de fico.Anatole France, alis, deu uma aula sobre memria histrica em seu magistral conto "O Procurador da Judia". Em Roma, Pncio Pilatos, que fora procurador da Judia, vai a uma festa romana, que vocs podem chamar orgia, e seu anfitrio lhe pergunta por "um judeu desordeiro" chamado Jesus. Pilatos, uma taa de vinho na mo, a toga impecvel, o penteado Csar, pensa por um momento e diz: "Jesus? No conheci ningum com esse nome".Por favor, no me perguntem pelos autores que esqueci.

Guillermo Cabrera Infante escritor cubano e vive em Londres. autor, entre outros, de "Havana para um Infante Defunto" e "Mea Cuba" (Companhia das Letras).

Traduo de Sergio Molina.

Folha de So Paulo, 30/12/2001.