uma física para o novo ensino médio - l.c. menezes

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6 Física na Escola, v. 1, n. 1, 2000 O novo ensino médio, desde a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, dez. 96), é uma defini- ção legal, mas não é ainda uma reali- dade efetiva. Segundo essa lei, o novo ensino médio deve ser etapa conclu- siva da Educação Básica, cuja base nacional comum desenvolveria com- petências e habilidades para a cidada- nia, para a continuidade do aprendi- zado e para o trabalho, sem pretender- se profissionalizante ou simplesmente preparatória para o ensino superior. Uma parte diversificada poderá am- pliar esses objetivos formativos, de acordo com características específicas regionais, locais ou mesmo da clien- tela de cada escola. Há dois anos, outros documen- tos, na forma de diretrizes e de parâ- metros 1 , passaram a regulamentar e orientar esta definição legal. As dire- trizes traduzem a intenção legal, em termos éticos, esté- ticos e políticos, ou seja, de princípios norteadores gerais, assim como estabe- lecem uma organi- zação do currículo em três áreas, res- pectivamente, de Linguagens e Códi- gos, de Ciências Hu- manas e de Ciências da Natureza e Matemática; cada área sendo também responsável pelas tecnologias a elas associadas. Os parâmetros, que não têm força legal, orientam o ensino das disciplinas e de sua articulação dentro de cada área, dando alguns contornos do que poderá vir a ser aprendido em nossas escolas do ensino médio, mas Luis Carlos de Menezes Professor do Instituto de Física e coordenador da Pós-Graduação em Ensino de Ciências (modalidades Física e Química), da USP. É também coordenador da área de Ciências da Natureza e Matemática na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino médio. que ainda está longe de se concretizar. A Física para o novo ensino médio com- põe, portanto, juntamente com a Bio- logia, a Química e a Matemática, uma das áreas em que se organiza este ensi- no. A LDB já estabelece, relativa- mente à formação a ser desenvolvida, que esta deve promover “a compre- ensão dos fundamentos científico- tecnológicos dos processos produ- tivos, relacionando a teoria com a prá- tica no ensino de cada disciplina”, lado a lado com “a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensa- mento crítico”, enquanto as diretrizes acrescentam que o aprendizado das ciências deveria levar a comprendê- las “como construções humanas... ...relacionando o conhecimento cien- tífico com a transformação da socie- dade”. Vê-se assim que, de diversas formas, estes docu- mentos já esboçam atributos da educa- ção para o novo en- sino médio, que certamente já sina- lizam rumos do en- sino das ciências. Assim, os pa- râmetros para cada área não foram elaborados como um exercício de livre proposição, mas sim compondo coe- rentemente um quadro mais amplo de propostas educacionais. No entan- to, ao fazer seu trabalho de elabo- ração, a equipe responsável pelos Parâmetros Curriculares da área de Ciências da Natureza, Matemática e Este artigo aborda as diretrizes que nortearam a elaboração dos novos parâmetros curriculares nacionais para a área de Ciências da Natureza e Matemática. A LDB já estabelece, relativamente à formação a ser desenvolvida, que esta deve promover “a compre- ensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática no ensino de cada disciplina” Física para o Ensino Médio

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Page 1: Uma Física para o Novo Ensino Médio - L.C. Menezes

6 Física na Escola, v. 1, n. 1, 2000

Onovo ensino médio, desde apromulgação da nova Lei deDiretrizes e Bases da Educação

Nacional (LDB, dez. 96), é uma defini-ção legal, mas não é ainda uma reali-dade efetiva. Segundo essa lei, o novoensino médio deve ser etapa conclu-siva da Educação Básica, cuja basenacional comum desenvolveria com-petências e habilidades para a cidada-nia, para a continuidade do aprendi-zado e para o trabalho, sem pretender-se profissionalizante ou simplesmentepreparatória para o ensino superior.Uma parte diversificada poderá am-pliar esses objetivos formativos, deacordo com características específicasregionais, locais ou mesmo da clien-tela de cada escola.

Há dois anos, outros documen-tos, na forma de diretrizes e de parâ-metros1, passaram a regulamentar eorientar esta definição legal. As dire-trizes traduzem a intenção legal, emtermos éticos, esté-ticos e políticos, ouseja, de princípiosnorteadores gerais,assim como estabe-lecem uma organi-zação do currículoem três áreas, res-pectivamente, deLinguagens e Códi-gos, de Ciências Hu-manas e de Ciências da Natureza eMatemática; cada área sendo tambémresponsável pelas tecnologias a elasassociadas. Os parâmetros, que nãotêm força legal, orientam o ensino dasdisciplinas e de sua articulação dentrode cada área, dando alguns contornosdo que poderá vir a ser aprendido emnossas escolas do ensino médio, mas

Luis Carlos de MenezesProfessor do Instituto de Física ecoordenador da Pós-Graduação emEnsino de Ciências (modalidades Físicae Química), da USP. É tambémcoordenador da área de Ciências daNatureza e Matemática na elaboraçãodos Parâmetros Curriculares Nacionaispara o ensino médio.

que ainda está longe de se concretizar.A Física para o novo ensino médio com-põe, portanto, juntamente com a Bio-logia, a Química e a Matemática, umadas áreas em que se organiza este ensi-no.

A LDB já estabelece, relativa-mente à formação a ser desenvolvida,que esta deve promover “a compre-ensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produ-tivos, relacionando a teoria com a prá-tica no ensino de cada disciplina”, ladoa lado com “a preparação básica parao trabalho e a cidadania do educandocomo pessoa humana, incluindo aformação ética e o desenvolvimentoda autonomia intelectual e do pensa-mento crítico”, enquanto as diretrizesacrescentam que o aprendizado dasciências deveria levar a comprendê-las “como construções humanas......relacionando o conhecimento cien-tífico com a transformação da socie-

dade”. Vê-se assimque, de diversasformas, estes docu-mentos já esboçamatributos da educa-ção para o novo en-sino médio, quecertamente já sina-lizam rumos do en-sino das ciências.

Assim, os pa-râmetros para cada área não foramelaborados como um exercício de livreproposição, mas sim compondo coe-rentemente um quadro mais amplode propostas educacionais. No entan-to, ao fazer seu trabalho de elabo-ração, a equipe responsável pelosParâmetros Curriculares da área deCiências da Natureza, Matemática e

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Este artigo aborda as diretrizes que nortearama elaboração dos novos parâmetros curricularesnacionais para a área de Ciências da Natureza eMatemática.

A LDB já estabelece,relativamente à formação aser desenvolvida, que estadeve promover “a compre-

ensão dos fundamentoscientífico-tecnológicos dos

processos produtivos,relacionando a teoria com aprática no ensino de cada

disciplina”

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suas Tecnologias2, não só por com-preender o sentido não compulsóriode suas recomendações3, como tam-bém por concordar, no essencial, comos pressupostos dos quais deveria par-tir, trabalhou sem outro constrangi-mento, além de prazos exíguos, tendoorientado a aplicação da LDB/96, semdeixar de expressar sua visão de ciên-cia e de seu ensino, fundada em suavivência como educadores.

A orientação geral, que acabousendo partilhada com as demais equi-pes, fundou-se na compreensão deque as áreas não deveriam ser simplesarticulações entre as disciplinas de ca-da uma delas, mas que deveriam tam-bém articular-se entre si, no sentidode promover as qualificações huma-nas mais amplas dos educandos. Des-ta forma, a área das Ciências da Na-tureza e Matemática tem objetivosformativos comuns com a de Lingua-gens e Códigos, como interpretar eproduzir textos, utilizar diferentesformas de linguagem, a exemplo degráficos, imagens e tabelas. Da mes-ma forma, tem objetivos comuns comCiências Humanas, como a compre-ensão histórica das ciências ou dequestões sociais, ambientais e econô-micas, associadas à ciência e à tecno-logia. Estas interfaces entre as áreasnão enfraquecem o sentido mais espe-cífico, próprio das ciências e da mate-mática, de investigação e compreen-são de processos naturais e tecnoló-gicos mas, ao contrário, estabelecemmelhor o contexto para os conheci-mentos científicos e para as compe-tências e habilidades a eles associadas.

Assim, na descrição a seguir doconhecimento em Física propostopara o novo ensinomédio nos PCN estascaracterísticas geraisestarão presentes.Por exemplo, tantoas linguagens espe-cíficas da Física,derivadas de mo-delagens do mundomacroscópico ou microscópico e ins-trumentais para certas representaçõesabstratas de eventos e processos,

como outras linguagens que a físicafaz uso, a exemplo da matemática,como as expressões algébricas, os grá-ficos cartesianos ou representaçõesestatísticas, umas e outras passam aser parte dos objetivos formativos doaprendizado da física, não simplespré-requisitos que o professor deveesperar que o aluno tenha adquiridoem outra disciplina ou em outra cir-cunstância.

Em outras palavras, interessasim que o aluno aprenda física, masinteressa tambémque, juntamente,aprenda os instru-mentos gerais queacompanham oaprendizado da fí-sica. Em certa me-dida isto semprepoderia ter sidorecomendado, mastrata-se de expli-citar e reforçar talfato. O mesmo vale dizer de elementoshistóricos, éticos e estéticos, indiscuti-velmente presentes na física, mas cujoaprendizado nem sempre foi tomadocomo objetivo, senão como elementode motivação, como adorno ou com-plemento cultural, já que o sentidocentral do aprendizado de outra na-tureza era geralmente propedêutico,ou seja, só vinha a fazer sentido emetapas posteriores à escolarização.

É importante que se apontem es-tas características, preconizadas parao ensino da física no novo ensinomédio, para evitar o que usualmenteacontece, que é tomar as mudançascurriculares como se devessem ser re-duzidas as novas ementas, ou seja,

listas de tópicos enovas propostas daordem em que taistópicos deveriamser tratados. Istonão significa quenão tenha havidosinalização de in-clusões de assuntos

e de ênfases entre os temas sugeridospara o novo ensino da física. Porexemplo, mesmo respeitando-se o

necessário sentido prático do aprendi-zado escolar, procurou-se ressaltar osentido da física como visão de mun-do, como cultura em sua acepçãomais ampla.

É parte desta preocupação a novaênfase atribuída à cosmologia física,desde o universo mais próximo, comoo sistema solar e, em seguida, nossagaláxia, até o debate dos modelos evo-lutivos das estrelas e do cosmos. Sabi-damente, estão ausentes dos currícu-los tradicionais tanto estes aspectos

de caráter culturalgeral, como outrosde cultura mais tec-nológica, não neces-sariamente prag-mática; a exemploda interpretação deprocessos envol-vendo transforma-ções de energia, nageração de energiaelétrica, nos moto-

res de combustão interna, em refri-geradores, ou mesmo em pilhas ele-troquímicas, para não falar nos equi-pamentos óptico-eletrônicos e de pro-cessamento de informação, que hojefazem parte de toda a vida contem-porânea, desde relógios de pulso acomputadores, e que envolvem umamicroeletrônica quântica, impensávelna escola tradicional, nem mesmo co-mo simples fenomenologia, especial-mente devido à tradição lógico-dedutiva do seu ensino.

Diferentemente de outras disci-plinas escolares, a física escolar temexcluído qualquer ensino de sentidoinformativo, mesmo que trate dasimples descrição de fenômenos, semacompanhá-lo de imediato enquadra-mento explicativo no quadro teóricomais amplo desta ciência. Por esta tra-dição propedêutica e formalista, jun-tamente com fenômenos quânticos,como a interação luz-matéria, que éessencial para uma caracterização dossemicondutores, tem sido despres-tigiada toda a física de materiais que,no ensino médio, deveria ao menosrelacionar propriedades físicas demateriais e substâncias aos seus usos

Diferentemente de outrasdisciplinas escolares, a

Física escolar tem excluídoqualquer ensino de sentidoinformativo, mesmo que setrate da simples descrição

de fenômenos, semacompanhá-lo de imediatoenquadramento explicativo

no quadro teórico maisamplo desta ciência

Interessa sim que o alunoaprenda física, mas

interessa também que,juntamente, aprenda osinstrumentos gerais que

acompanham oaprendizado da física

Física para o Ensino Médio

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práticos.É claro que precisa ser cautelosa

a sinalização para a inclusão dessesnovos conteúdos, seja pelos desafiosdidáticos que implica, encontrandoprofessores despreparados e textosescolares desguarnecidos, seja porqueas próprias universidades, ainda poralgum tempo, continuarão a solicitaros velhos conteúdos em seus vesti-bulares. Será preciso algum tempopara que a mensagem seja primeirocompreendida e, mais tarde, aceita.

Ao enfatizarem novos aspectosfoi preciso ousar apontar que há ana-cronismos, como uma ênfase exces-siva na cinemática que tem servidode abertura para uma mecânica res-trita à dinâmica dos pontos materiais.Também a termodinâmica tem usual-mente se restringido a condições uni-camente idealizadas, não tratando demáquinas e motores reais que operamnos ciclos Otto ou Diesel, nem lidandocom ciclos atmosféricos ou com de-mais questões de importância para acompreensão do clima e de fenômenosambientais. O eletromagnetismo doensino médio também tem discutido

pouco motores e geradores, muitomenos a eletrônica dos equipamentosou transmissão de ondas, e por issofoi preciso apontar a óbvia impor-tância destes temas. É claro que, emcada uma destas partes da física, fo-ram sugeridas alternativas de trata-mento, mas sempre evitando prescri-ções ou receitas. A mecânica e a ter-modinâmica, por exemplo, são apon-tadas como apropriadas para asprimeiras formulações de princípiosgerais, assim como o eletromag-netismo é privilegiado para uma pri-meira formulação de modelagensmais abstratas, tendo-se em vista anatureza microscópica das cargas.

Nos PCN para o ensino médio,não se prescrevem metodologiasespecíficas para a física, mas simrecomendações gerais para o ensinodas ciências e, ainda assim, semadotar uma única escola de pensa-mento pedagógico. O documento daárea mostra quais linhas educacio-nais se sucederam, como tendênciahegemônica nas últimas décadas eseu significado, ou falta deste, paraa efetiva condução do ensino nas

escolas brasileiras. A idéia de umafísica como cultura ampla e comocultura prática, assim como a idéiade uma ciência a serviço da cons-trução de visão de mundo e com-petências humanas mais gerais, foia motivação e o sentido mais clarodas proposições daquele documen-to.

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Referências e Notas1. A Resolução de junho de 1998, da Câ-

mara de Ensino Básico do Conselho Nacionalde Educação, que estabelece Diretrizes parao Ensino Médio e os Parâmetros CurricularesNacionais que orientam a aplicação destasdiretrizes para o ensino médio.

2. A equipe foi composta pelas físicasMaria Regina Dubeux Kawamura e YassukoHosoume; pelas matemáticas Kátia CristinaStocco Smole e Maria Ignez Vieira Diniz;pelos químicos Luiz Roberto de MoraesPitombo e Maria Eunice Ribeiro Marcondese pelos biólogos Maria Izabel Iório Sonsinee Miguel Castilho Júnior, além do físico LuísCarlos de Menezes (coordenador).

3. Além disso, quando do início dos tra-balhos do grupo, supunha-se que a reformaseria mais amplamente debatida, expectativaque acabou sendo frustrada pelos prazosimpostos para a publicação.

Física para o Ensino Médio

Equipe brasileira na XXXI International Physics Olympiad8 a 16 de julho de 2000 - Leicester - Inglaterra

A delegação brasileira que participou pela primeira vez de uma Olimpíada Internacional foi formada pelo lídercientífico prof. José Evangelista Moreira, da UFC, e pelo líder pedagógico prof. Ozimar S. Pereira, coordenador regional(São Paulo) da Olimpíada Brasileira e tendo como observadora a profa. Maria José Moreira, também da UFC.

A equipe brasileira (foto) que participouda XXXI Olimpíada Internacional de Física foicomposta por (da esquerda para direita):

• Maurício Masayuki Honda (São Paulo)• Roberto de Melo Dias (Pernambuco)• Prof. Ozimar S. Pereira• Profa. Maria José Moreira• Prof. José Evangelista Moreira• Guilherme Veríssimo Barreto Guima-

rães Lima (Ceará)• Victor Júlio Ferreira (Minas Gerais)• Danilo Jimenez Rezende (São Paulo)Por falta de um treinamento mais inten-

sivo, a equipe brasileira não conseguiu umaboa classificação nesta sua primeira partici-pação. É essencial que as escolas invistam emseus estudantes mais talentosos para que te-nhamos melhor desempenho na próximacompetição.

A equipe brasileira em frente ao De Montford Hall, o mais importante auditóriode Leicester, pouco antes da cerimônia de abertura, em 9 de julho.