uma cidade oculta 1 · 2011-03-17 · quem a vida concede pouco para que poucos dela recebam muito....

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Uma cidade ocultaUma cidade ocultaUma cidade ocultaUma cidade ocultaUma cidade oculta em em em em emSão José dos CamposSão José dos CamposSão José dos CamposSão José dos CamposSão José dos Campos

ANA LUÍSA LACERDA

Universidade do Vale do Paraíba - UNIVAP 2008

ÀDona Ergina e a muitos outros aquem a vida concede pouco paraque poucos dela recebam muito.

“O inferno dos vivos não é uma coisa que virá aexistir; se houver um, é o que já está aqui, oinferno que habitamos todos os dias, que nósformamos ao estarmos juntos. Há dois modos denão o sofrermos. O primeiro torna-se fácil paramuita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele aponto de já não o vermos. O segundo é arriscadoe exige uma atenção e uma aprendizagemcontínuas: tentar e saber reconhecer, no meiodo inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-loviver, e dar-lhe lugar.”

Ítalo Calvino em As Cidades Invisíveis

ÍNDICE

Introdução 01 Prosperidade econômica em manchetes 04

Itinerantes 07 Imagens de um resgate 16

Um lugar ao Sol 19 Ergina em um banho de Sol 24

Enclausurados 27 Sob o domínio do abandono 40

Sonho roubado 45 Pinheirinho 52

Geração ultrajada 57 Uma projeção de sonhos 64

Por uma utopia na reconstrução do imaginário joseense 66

O que não é, mas pode vir a ser 73

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Introdução

Na construção do imaginário de São José dosCampos prevalece o ideário da prosperidade, doconhecimento e da riqueza. Há mais de meio século que a cidade é apontadaem manchete de jornais, revistas e almanaques porseus avanços econômicos e tecnológicos. Em 11 de março de 1945 uma manchete dojornal Folha de São José dos Campos afirma: “São Joséprogride... prosperando em todos os sentidos, nãoobstante as inegáveis dificuldades da hora presente”. “Passamos para o 3º lugar” é a chamada deprimeira página no jornal O Valeparaibano de cincode novembro de 1972: “(...) São José dos Camposacaba de galgar a invejável situação de terceiracidade do Estado baseada nos índices do ICM orapublicado no Diário Oficial”. Em 02 de novembro de 1998 no jornal Folha deSão Paulo: “São José lidera exportações no interior”.Quatro dias mais tarde no mesmo jornal: “GM fechacontrato de exportação recorde”. A economia dispara e, em 30 de Julho de 2001,o jornal Folha de São Paulo anuncia: “São José terá R$40 mil a mais de ICMS e está em segundo lugar noranking do Estado de SP”.

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Embraer” é a chamada do jornal espanhol El Pais de28 de abril de 1983. “A NASA comprou informações de satélitesregionais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais(INPE) em São José dos Campos” deu no The NewYork Times de 26 de março de 1991. Mais recentemente, a chamada de primeirapágina, em “letras garrafais” no jornal Valeparaibanode 28 de agosto de 2008 reforça este ideário: “SãoJosé atinge recorde de exportação em 2008”...aviões, carros e derivados de petróleo sãoresponsáveis por alta de 32% das vendas”. Contudo, foi no convívio diário, ao longo dosúltimos seis anos, com os moradores dascomunidades da região sul e norte da cidade, que aautora deste trabalho deparou-se com um processode desconstrução deste imaginário idealizado dacidade. Foi pela percepção de uma cidade oculta,camuflada por moradias aparentemente viáveis,localizadas em ruas asfaltadas e iluminadas, mas ondediversas famílias coabitam em condições precárias.

Na imprensa internacional as chamadasaparecem com mais freqüência a partir dos anos 70.No The New York Times de 26 de março de 1973:“Brasil desenvolve rápida indústria automobilística; aGeneral Motors construiu a fábrica do seu novoChevette em São José dos Campos.” No mesmo jornalem dois de setembro de 1974: “O boom econômicobrasileiro vai continuar”. “Estados Unidos tentam recuperar os mercadosmundiais perdidos em razão da

Mas foi sobretudo pela aproximação eparticipação de rotinas dentro destes lares que nasceu

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a idéia deste livro-reportagem. Nele será contada a história de uma família quemigrou, na década de 70, expulsa do campo e atraídapela perspectiva de uma vida mais digna na prósperaSão José dos Campos. No processo narrativo serádada voz aos personagens. Foram ouvidos, também, pesquisadores da áreade habitação e planejamento urbano, representantesdo governo municipal, assim como lideranças domovimento dos sem-tetos. Este trabalho não tem como objetivo apontaresse ou aquele setor da sociedade ou do poderpúblico como os responsáveis pela exclusão social dafamília aqui retratada. Tampouco pretende ditarsoluções para a complexa situação habitacional emSão José dos Campos, mas propor uma reflexãocrítica do papel dos “mais iguais” fase à impotênciados “menos iguais”.

Brazil Expects a Slowing of ‘Economic Miracle’; BankersSays Tight ...Howe Engine assembly for Opels in General Motor’s SaoJose dos Campos plant. ...September 2, 1974

Prosperidades econômicas em manchetes

Brazil, Aided by Lottery, Forges Booming Auto Industry; Dreams and ...... for its new Chevette at Sao Jose dos Campos, 55 miles from Sao Paulo. ...March 26, 1973

Amazon Forest Loss Is Sharply Cut in BrazilFor the project, the Pan Amazon Deforestation Study, NASA has purchasedregional satellite data from the Space Research Institute in Sao Jose dosCampos. ...March 26, 1991 - By JAMES BROOKE in The New York Times

Le constructeur brésilien Embraer mise sur un modèle de 100 placesArticle publié le 31 Octobre 2001Par CHRISTOPHE JAKUBYSZYN

A Sao José dos Campos (à 80 km de Sao Paulo), les ordinateurs del’Institut national de la recherche spatiale (INPE) balayent avecprécision ce qui se passe dans la lointaine forêt amazonienne.Article publié le 26 Mai 2005

Par Annie Gasnier EL PEL PEL PEL PEL PAÍSAÍSAÍSAÍSAÍSEstados Unidos intenta recuperarlosmercados mundiales perdidos a causa dela‘agresividadcomercial’ de Brasil

São José terá R$ 40 mi a mais de ICMSNovos índices de participação no imposto mostram que o município superouGuarulhos e está em segundo lugar no ranking 30 de Julho de 2001

LUIS MIR 28/04/1983

The government’s change was brought about by a number of export shocks,including indications of possible backing off on a big U.S. order for commuterairplanes made by state-owned Embraer, which exports $200 million yearly tothe United States.

Richard House Nov 25, 1987

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Itinerantes

Nasci em Poço Fundo, Minas Gerais há 69 anos.Desde criança ajudei minha família na lavoura. Nuncativemos nossa própria terra, sempre trabalhávamos emregime de meeiro e mudávamos com frequência deroça, por isso meus irmãos nunca puderam participarassiduamente de uma escola. Já minhas irmãs e eusequer conhecíamos uma sala de aula; meu pai diziaque não era lugar para mulher freqüentar. Aos oito anosde idade foi preciso fugir da região, pois um tio, irmãode meu pai engravidou uma moça e não quis casar-secom ela. Jurado de morte toda a nossa família partiupara bem longe dali. Naquela época falava-se muitodas terras férteis e baratas no norte do Paraná e foi paralá que nós fomos tentar a vida. Fomos bem recebidos pelos fundadores domunicípio de Astorga. Sabiam que os mineiros eramtrabalhadores e bons conhecedores da cultura cafeeira. Nos primeiros anos formamos o cafezal da fazendaVolta Redonda de propriedade de Alfredo Lemes queem troca permitia que plantássemos um pouco de tudopara nossa subsistência. Após seis anos, quando ocafezal já estava produzindo plenamente, fomosdispensados.

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E assim foi nossa vida de muita labuta e poucodinheiro. Vivíamos saltando de fazenda em fazenda.Trabalhávamos de sol a sol ou de chuva a chuva semnunca ter um dia de descanso, pois, quando sobravatempo íamos cuidar de nossa roça. Conheci meu marido, quero dizer, ele é que menotou, no casamento da minha irmã mais velha, eu tinhaentão 12 anos. Sua família também era itinerante eraramente coincidia de nos encontrarmos em datafestiva. Voltamos a nos rever quando fiz 17 anos.Passamos a namorar desde então, mas os encontros sóaconteciam uma vez por mês. Quando nos casamos, cinco anos depois, passamosa viver juntos com a família de meu marido. A rotinacontinuava a mesmo, sempre mudando de local detrabalho, portanto também de moradia. Alguns anos mais tarde meu sogro conseguiucomprar um terreninho e nos cedeu uma parte. Masuma doença me atacou as juntas. Ia do tornozelo, depoispassava para o punho, joelho, cotovelo, mãos queficavam inchadas, eu tinha febre e sentia muita dor. Nãodava para trabalhar na enxada. Para lidar na roça sótinha mesmo o meu marido. Eu mal conseguia manteros afazeres domésticos e cuidar das crianças. O quedeixou meu sogro insatisfeito e nos pediu a terra devolta para colocar uma outra família mais produtiva nolugar. E lá voltamos nós para a vida itinerante. Oproblema é que com a chegada das máquinas eequipamentos agrícolas na região os fazendeiros já nãoprecisavam mais de muitos empregados. Apesar de tanta luta, tanto suor, e humilhação nãoconseguimos comprar uma chacrinha e permanecer nocampo. Não era uma vida fácil, mas eu gostava de

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semear a terra e viver na natureza. Ficar junto de meusfilhos que protegidos brincavam livres ao meu ladodurante a lida, além de poder amamentar, nosintervalos, os menorzinhos.

*

Minha irmã mais velha depois de casada foi morarem São José dos Campos e em 1976 nos mandou umacarta falando das oportunidades desta cidade e quedeveríamos vir com toda a família, pois eles nosajudariam. Chegamos com a roupa do corpo e com os seisfilhos a tiracolo. Eu nunca tinha ido a uma cidadegrande. Ao chegar à rodoviária a emoção foi enorme,achei tudo uma maravilha, diferente, movimentado. Difícil foi encontrar a casa da minha irmã. Era umlugar que tinha um nome estranho: Vidoca. Para chegarlá, era tudo muito confuso. Quando chegamos a casa,percebemos que uma nova batalha nos aguardava,pois em um único cômodo ficariam abrigadas 13pessoas, sendo quatro adultos e nove crianças. Nãohavia água nem luz no local. Começamos a procurar emprego. Meu maridona mesma semana foi contratado pela indústriaAlpargatas. Já no meu caso precisava acomodar meusfilhos antes de começar a trabalhar. Além de tentarorganizar a rotina de minha filha deficiente por seqüelasda meningite, também precisava matricular os outroscinco filhos em uma escola. Lá fui eu pedir vaga e

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confesso que tive uma grande surpresa. Não imaginavaque uma escola era daquele jeito: salas com um montede cadeiras e desenhos nas paredes. Mais ou menos ajeitados, dentro do possível,consegui um emprego como doméstica e assimconvivemos durante quatro meses, todos, dentro de umúnico barraco. Um belo dia, quero dizer, uma noite, umachuva forte com muita ventania chamou a atenção demeu cunhado que acordou e saiu animado à procurade placas e material reaproveitável que seriam soltosdurante a tempestade. Correu por toda a São José equando voltou nos propôs vender o material obtido dosinistro além de vender uma pequena parte do terrenona mesma favela. Aceitamos. Finalmente iríamos ternossa “casa” própria. Era um barraco com um únicocômodo, mas dividido por placas de maderite queseparava o nosso “quarto”, o das crianças, e da cozinha.Onde moramos durante sete anos. Ah! Sou Ergina. Nunca soube de outra pessoa como mesmo nome. Meu pai me contava que quando foime registrar no cartório o escrivão trocou a ordem dasletras e como ele não sabia ler para fazer a correção,deixei de ser Regina.

*

A favela do Vidoca surgiu no início dos anos 70e ficava localizada próxima à Rodovia Presidente Dutra,no extremo norte do Jardim Satélite. Além deste núcleoque contava com 158 barracos e 818 pessoas vivendoem condições sub-humanas, sem água tratada, sem

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infra-estrutura e com fossas negras esgotadas1, jáexistiam na cidade as favelas do Banhado, da LinhaVelha (hoje conhecida como Vila Santa Cruz) e daVila Guarani 2. “São José dos Campos está vivendo o seu tempode explosão urbana” foi o título do editorial de 03 dejaneiro de 1979 no jornal Valeparaibano que criticavao elenco de informações disponíveis sobre os dadosdo déficit de moradias na cidade: “A Prefeitura precisase armar melhor nesse campo. Precisa conhecer seuspróprios números e, a partir daí, fazer suas projeçõesde forma a diagnosticar com precisão o problema edefinir suas necessidades imediatas, a curto e a longoprazo”. De fato, a população de São José praticamentedobrou em 10 anos, passando de 146.612 habitantesem 1970 para 285.587 em 1980³. O problema habitacional na cidade tornara-se“visível” no final desta década desencadeando umadisputa política entre os partidos da Arena e do MDB,únicos da época. O então prefeito nomeado Ednardode Paulo Santos da Arena insistia em manter o sistemade empréstimo junto ao Banco Nacional de Habitação(BNH), enquanto o MDB pleiteava, através de

1 Estudo do Departamento da Promoção Humana da PMSJC datadode 04 de janeiro de 1979 ² ROSA FILHO, Artur. As políticas públicas do poder Municipal naremoção e/ou reurbanizaçãoo de favelas no Município de São Josédos Campos. São José dos Campos, 2002. Dissertação (mestrado) -Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP), Instituto de Pesquisa eDesenvolvimento, São José dos Campos, 2002

³ Memórias das Estatísticas Demográficas da Fundação SistemaEstadual de Análise de Dados (SEADE)

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projeto de lei de autoria do vereador Luiz Paulo Costa(MDB) a criação de uma cooperativa municipal nosmoldes da Companhia Metropolitana de HabitaçãoS.A. (Cohab), de São Paulo: “Os planos definanciamentos do BNH atendem as pessoas comrenda familiar superior a cinco salários mínimos. É aíque percebemos onde está o nosso déficit habitacional.Não são as pessoas com essa renda as que precisamde casas populares. São os trabalhadores querecebem entre um e três salários mínimos e que nãotem casas para morar ou os favelados que vivem emhabitações subumanas”4 . Venceu o projeto que criaria a Empresa Municipalde Habitação (EMHA) uma sociedade anônima deEconomia Mista com a finalidade de sanar asquestões relativas à habitação. Eleito prefeito, em outubro de 1978, JoaquimBevilacqua comprometeu-se a priorizar o problema demoradia na cidade e criou um grupo de trabalho paraassuntos habitacionais composto por técnicos do BHN,representantes da EMHA, da Secretaria dePlanejamento, da Promoção Social e da comunidadeque resultou no “Programa Habitacional do Município”.O estudo concluiu que o déficit habitacional naqueleano era de 13.000 moradias5 .

5A metodologia e os parâmetros utilizados para o cálculo deste déficitnão está disponibilizada no inventário da EMHA no Arquivo Públicodo município.

4 Entrevista de Luiz Paulo Costa ao jornal Agora em 19 de abril de1978

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O alvo principal da EMHA para solucionar osproblemas habitacionais no município era a populaçãocarente. Tinha como meta facilitar a compra,construção, ampliação ou reforma da casa, além deprojetos para a erradicação e à higienização das áreasocupadas6 de favelas e cortiços através decooperativas e outras formas associativas. Assim, iniciou-se o processo de Desfavelamentodo Vidoca. O destino de seus moradores seria oConjunto Residencial Elmano Ferreira Veloso a serconstruído nos confins dos Campos dos Alemães,região sul de São José dos Campos.

6 Destaque de Rosa Filho em sua dissertação de Mestrado

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“A fotografia vista como conjunto narrativo dehistórias, e não como mero fragmento imagético, sepropõe como memória dos dilaceramentos, dasrupturas, dos abismos e distanciamentos, comorecordação do impossível, do que não ficou e nãoretornará. Memória das perdas.”

José de Souza Martins em Sociologia da Fotografia e da Imagem

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Dona Ergina tirou poucos fotografias em sua vida.Esta é uma delas que guarda consigo até hoje. Foto-grafou sua mãe Alexandrina há 17 anos, colhendofrutos do pé de café que plantou em frente à cozinhada casa onde morava no bairro do Jardim Colonial, emSão José dos Campos

Imagens de um resgate

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Fotos realizadas poruma irmã e prima dedona Ergina.

Ao lado a matriarca cuidada horta em um dos terre-nos baldio do ConjuntoHermano Veloso no final dosanos 80.

Dona Alexandrina orgu-lhosa exibe em foto oarroz já pilado, que foiplantado por ela em umoutro terreno baldio domesmo bairro, tambémnos anos 80.

Imagens de um resgate

Dona Alexandrina faleceuaos 94 anos em dezembrode 2007.

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Um lugar ao sol

Quando eu fiquei sabendo que o prefeito iaconstruir casas no terreno dos Alemães comecei apesquisar para saber como conseguir uma para minhafamília. Nesta época eu já trabalhava como faxineira emcondomínio e só tinha o horário do almoço para buscarinformações. Na inauguração dos postes de luz noVidoca o prefeito Bevilacqua prometeu que iria dividiras terras desapropriadas em lotes e que construiriauma pequena casa para cada família e assim todospoderem ir embora da favela. Avisou que ospretendentes deveriam ir às reuniões com os técnicose assistentes sociais para assinar documentosconfirmatórios da vontade da compra do terreno e umacasa, assim como de aprender o trabalho de pedreiropara os mutirões. Foram muitas reuniões, durante meses seguidos.Ficava sempre sem almoço para poder cumprir com asexigências. Os locais dos encontros eram semprealterados e eu vivia correndo pra lá e pra cá. Um diaem um prédio perto do CTA chamaram todos oscandidatos e mostraram um mapa bem grande comumas casas desenhadas, tudo certinho e que era para

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a gente escolher um lote no mapa. Escolhi um bem pertoda estrada e perto do ponto de ônibus porque era tudomuito longe. A casa era bem pequena, não sei dizer quantosmetros, mas, tinha um quarto minúsculo, uma cozinha eum banheiro. Quando mudamos meu único filho dormiano banheiro, enquanto as filhas mais velhas na cozinhae no quarto ficávamos eu, meu marido e as caçulinhas.O desconforto era grande agravado por estarmos longede tudo. Estava feliz, apesar disso. Deus me dera uma casa,agora me daria força para trabalhar ainda mais econseguir pagar o terreno, as parcelas da casa e aindacomprar material de construção e erguer mais doiscômodos. Então nem seria justo reclamar da lonjura docentro da cidade e das vezes que faltava água no bairro.Da lama em dias de chuva e da poeira em épocas deseca. Meus filhos começaram a freqüentar a escola nobairro, mas, como eu ficava muito tempo ausente, e meumarido trabalhava à noite não havia ninguém paraincentivar as crianças a estudar. Maria e Marlene, as duasmais velhas, não terminaram o quarto ano primário. Elascuidavam da casa, da comida e da irmã doente.Valdemir, o único filho estudou até o quinto ano. Sônia não aprendeu a ler nem escrever. Ela até iaà escola, mas tinha dificuldade para entender e fazer alição. A mais estudada é a caçula Lucilene que foi atéa sexta série. Eu queria ficar mais tempo cuidando de meusfilhos só que precisava trabalhar e fazer muita horaextra para dar uma vida mais confortável a eles.

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Foi uma vida de muito sacrifício. Aos poucosconseguimos aumentar nossa casa e dar um quartopara as seis meninas e um outro para o filho. Mas oespaço tão sonhado dentro do lar nunca chegou a serrealizado. Demos abrigo ao meu cunhado durantequatro anos que não tinha onde morar. E logocomeçaram a chegar os primeiros netos que tambémpassaram a viver em casa. Dos sete filhos três casaram e moram em suascasas – alugadas – os outros quatro continuam morandoconosco. Sonilda é doente e sempre foi dependente dagente. Valdemir, após uma decepção amorosa passoua beber, perdeu o emprego e há anos estádesempregado. Maria e Marlene são mães solteiras ecada uma delas tem três filhos. Posso dizer que tivemos muita sorte, meu maridoe eu, pois mesmo sem nenhum estudo sempreconseguimos trabalhos com carteira assinada. Temosuma aposentadoria pequena, um salário e meio paracada um, mas garantida. E são graças a estes trêssalários mínimos por mês que são mantidos seis adultose seis netos. Na tentativa de redistribuir o espaço da casaresolvemos, há alguns anos, fazer um “puxadinho”.Tivemos que inutilizar a área da lavanderia. Cobrimoso corredor de acesso a ela e nos fundos da casaconstruímos um cômodo, um banheiro e uma cozinha,todos infelizmente sem janelas. Neste corredor mora meu filho, que cedeu seuquarto para Maria dormir com suas três filhas. E nosfundos mora Marlene com duas crianças e umaadolescente.

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Com tudo isso, há anos perdemos a entrada deluz dentro de casa. Agora para tomar sol só mesmosentada na calçada.

*

O projeto e a construção do Conjunto ResidencialElmano Ferreira Veloso fazia parte de um plano deurbanização elaborado pela EMHA em com o objetivode implantar um programa chamado Sistema deEmbriões. Após desapropriação de extensas terrasno eixo sudeste da cidade entre os bairros JardimColonial, Jardim Imperial e Cidade Jardim iniciaram-se a terraplenagem, abertura de ruas, colocação deguias e a divisão de quadras com 36 lotes de 144 m²(16 X 9) cada um, totalizando 504 unidades. Prioridadefoi dada aos moradores da favela do Vidoca quepuderam escolher entre morar nestes núcleos oureceberem uma verba para retornar as seus estadosde origens. O Sistema de Embriões foi idealizado para queas famílias com renda de até três salários mínimospudessem pagar pelo terreno e pela área construídade 10,44m² (embrião) financiados em 20 anos, pelaprópria carteira da EMHA e uma carência de 12 mesespara iniciar quitação. Uma área foi reservada para ainstalação de um escritório da EMHA no local comfuncionários da empresa para administrar o ConjuntoResidencial e uma agência bancária para facilitar opagamento das prestações dos mutuários.

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A EMHA que foi concebida basicamente paraatender a trabalhadores de baixa renda desvirtuou-se de seu projeto inicial e foi sendo moldado aosprogramas do BNH, como afirma o ex-vereador e autordo projeto: “Passou a ser mais um escritório do BNH ourepassadora de seus programas habitacionais, mesmosem os seus recursos (só em projetos a EMHA já gastoupelo menos duas vezes mais do que gastou nos lotesurbanizados ou embriões até hoje). (...) E atédescambou para os “negócios” imobiliários, tipo dorealizado com a Sérgio Porto Engenharia Ltda(Conjunto Integração), beneficiando uma empresaparticular com a venda de um terreno público abaixodo preço de mercado e sem qualquer vantagem paraos adquirentes dos apartamentos construídos” 7. Em janeiro de 1983 surgem as primeirasdenúncias nos meios de comunicação local de “máadministração” da empresa: “EMHA não paga contade luz e deixa todo um bairro sem água. A empresanão pagou a Eletropaulo e foi suspenso o fornecimentode energia elétrica à bomba que joga água nas casas”no jornal Valeparaibano. Em 23 de junho do mesmo ano, e no mesmojornal denuncia grave de irregularidade e de desviode verbas, entre maio e outubro de 1982, através denotas fiscais emitidas por uma empresa desativadadesde 1978 de propriedade do próprio contador daEMHA. O fato é que em 13 de setembro de 1984 aEmpresa Municipal de Habitação foi extinta.8

7 Na luta pelos direitos do povo, COSTA, L.P.1982, pg898 Inventário da EMHA no Arquivo Público de São José dos Campos

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Enclausurados

Nasci em 1964. São vagas as lembranças quetrago de minha infância no Paraná; as brincadeiras comas outras crianças ao redor de casa e das galinhas soltasno terreiro. Havia uma única escola, feita de madeira, paraensinar os filhos dos empregados de todas as fazendasda região. Só tinha uma sala de aula e um só professorpara todos os alunos e não tinha aquela coisa deprimeiro ano, segundo ano e assim por diante. Oprofessor ia ensinando de acordo com o aprendizadode cada um. Lá eu mesma não aprendi quase nada. Só vim aler e a escrever aos doze anos quando chegamos emSão José. Fui para uma escola de verdade, com muitascarteiras e quadro negro. Lembro-me até hoje do nomeda escola: Professora Otacília Madureira de Moura, queficava na Vila Nair, perto da favela do Vidoca, ondeestudei até a terceira série. Parei porque comecei atrabalhar em casa de família, e dormia no emprego. Eutinha entre quatorze e quinze anos. Quando minha família e eu viemos morar aqui noConjunto Elmano, em 1982, comecei a fazer o supletivo

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na escola do Caic do D. Pedro I, comecei a quarta sériemas desisti porque trabalhava o dia todo comodoméstica e quando chegava à noite estava muitocansada. Consegui meu primeiro emprego registrada em1989, como balconista na padaria Pão de Queijo, daavenida Adhemar de Barros. Após um ano de trabalhofui demitida após um acordo com os donos daempresa. Fui readmitida três meses depois com umsalário inferior. Fiquei decepcionada, trabalhei maisalguns dias e decidi voltar a trabalhar como doméstica. Alguns anos depois consegui meu segundo eúltimo emprego registrada. Foi em uma lavanderia queficava em Jacareí onde trabalhei dois anos e meio e sósaí porque a empresa faliu. Desde então minha vida é uma luta para manterum emprego mesmo em casa de família, que, vira emexe me dispensam. Quando sou demitida minha mãeErgina me ajuda a procurar um novo trabalho. É raro euter dinheiro para a condução, então ela leva meucurrículo nos lugares onde há uma chance de eu serselecionada mas a idade já não ajuda mais: tenho 44anos. Meu sonho é contribuir para a previdência epoder ter uma velhice amparada. Mas nem gosto maisde pensar nisso, parece um pesadelo. Às vezes penseque vou enlouquecer com tantas dificuldades.

*

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Tive minha primeira filha aos 30 anos. Quandoconheci o pai dela logo começamos a namorar.Engravidei mas percebi que o relacionamento não iadar certo, não casei. Continuei morando com meus pais. Seis anos mais tarde me envolvi com um outrohomem e tive outra filha. Precisei entrar na justiça paraque ele reconhecesse a paternidade da criança.Alguns meses depois de legalizada a situação voltamosa namorar e novamente engravidei. Só que desta vezmeus pais não me aceitaram mais em casa e meexpulsaram. Foi morar na casa dos pais dele levandominhas duas filhas. Foi uma época difícil; além de nãotermos nossa própria casa o convívio com a sogra eracheio de conflitos. Na tentativa de salvar o casamentoalugamos uma casa mas poucos meses depois ele“aprontou” e precisou fugir para bem longe pois estavajurado de morte. Voltei para a casa de meus pais que nos aceitaramde volta. A casa estava superlotada. Ficamos morandonos cômodos do fundo que não tem janelas. E é lá ondevivemos há sete anos. João Paulo, meu filho caçula tem problemarespiratório e com freqüência tem crise de bronquite.Desde bebê vivo levando ele ao médico e no ProntoSocorro para fazer inalação. Sei que o principalresponsável por isso é o bolor que tem dentro de casapois não entra sol no quarto nem na cozinha. Eu queria entrar na fila do programa de habitaçãoda prefeitura logo quando minha segunda filha nasceumas não pude porque na época eu não tinha nenhumtipo de renda. Só quando fui chamada pela Frente deTrabalho e então passei a ter um salário fixo é quefinalmente fiz a inscrição em meados de 2004, para

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tentar conseguir uma casa de verdade, com janelas,para abrigar meus filhos. Para piorar, recentemente João Paulo andava comdor de barriga e vômito. Levei ao médico. Após umasemana descobriram que ele estava com apendicite.Foi operado. Minha mãe me ajudou dormindo nohospital com ele mas mesmo assim acabei sendodemitida mais uma vez.

*

O mais recente estudo sobre o déficit habitacionalda cidade de São José dos Campos, foi realizado em2004 pelo Núcleo de Estudos Populacional (NEPO) daUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp), apedido e em parceria com a Prefeitura Municipal. Após obter os dados relacionados ao número dedomicílios, de famílias e demais informaçõesnecessárias à pesquisa através de uma amostragemcom 7.910 residências um workshop foi realizado em04 de fevereiro de 2004 na Unicamp, em Campinas,com a presença de uma equipe da Prefeitura de SãoJosé dos Campos, de convidados especiais daCompanhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano(CDHU) e convidados da Fundação Sistema Estadualde Análise de Dados (SEADE) para identificar a melhormetodologia a ser aplicada no cálculo dasnecessidades habitacionais de São José dos Campos. Os parâmetros incluídos neste cálculo foram:casas construídas com material reutilizável; cômodo;domicílios improvisados; casas de alvenaria e/oumadeira com sanitário de uso comum a mais de umdomicílio; casas de alvenaria e/ou madeira sem

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sanitário quando foi obtido um déficit “imediato” de2.600 moradias. Nesta metodologia foram incluídas também asfamílias que não tem moradia e comprometem maisde 30% de seu rendimento mensal com o aluguel eencontraram 7.440 famílias nesta condição9. Mas este estudo excluiu como déficit habitacionaltodas as famílias conviventes secundárias. Que é o casode Marlene e seus filhos. Em uma entrevista com o coordenador desteestudo, o pesquisador Roberto do Carmo do NEPO/Unicamp argumentou que este parâmetro foi excluídoconvencido que “A coabitação é o resultado de umaestratégia de sobrevivência”. Assim como a FundaçãoSeade opta sempre pela exclusão das famíliasconviventes em seus cálculos do déficit habitacionalargumentando que “a modernização da família nãosignifica a passagem de um modelo “extenso” para ummodelo “nuclear” (...) as famílias que coabitam nãoquerem outras casas, elas desejam ampliar suas atuaisresidências para comportar mais pessoas, “pois ascondições da vida da maioria da população sãoinstáveis o suficiente para impedir que este padrão segeneralize nos níveis europeus”.10

Ao contrário, a Fundação João Pinheiro (FJP), deBelo Horizonte, responsável pelos dados dasnecessidades habitacionais no Brasil em parceria como Ministério das Cidades, o Banco Interamericano deDesenvolvimento (BID) e o Programa das NaçõesUnidas para o Desenvolvimento (PNUD), utilizando

9 Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado PDDI 2006 - PMSJC10 SEADE/CDHU. 2001

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A insalubre moradia a que está submetidaMarlene e seus três filhos não é um caso isolado.

dados da Pesquisa Nacional por Amostragem deDomicílios (PNAD/IBGE) inclui, para o cálculo do déficithabitacional, toda família em condição de coabitação,ou seja, quando duas ou mais pessoas, ligadas por laçode parentesco, dependência doméstica ou normas deconvivência residem com outra família denominadaprincipal, independentemente de dividirem ou não ummesmo cômodo da residência. O argumento da FJP pela inclusão de todas asfamílias conviventes no cálculo é que: “há umaexpectativa extremamente difundida entre todos ossetores sociais brasileiros na busca da habitaçãounifamiliar, refletida no ditado popular que diz “quemcasa quer casa”11

Fonte: NEPO/UNICAMP

11 FJP, 2005, pág.86

Número de famíliaspor domicílio

1 130.7522 13.0993 1.2734 94

TOTAL 145.218

Número de domicílios em 2003

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12 Pesquisa de Instrumentação do Planejamento Urbano e Avaliaçãodo Déficit Habitacional em São José dos Campos. Relatório Final.NEPO/PMSJC. 2003.

Número de total defamílias por domicílio

Famílias conviventes excluídasdo cálculo do déficithabitacional

130.752 26.198 3.819 376

161.145

-13.099 2.546 282

15.927

Considerando dados levantados pelo NEPO/Unicamp é possível encontrar um número elevado defamílias conviventes excluídas neste levantamento.12

Com um agravante de gênero. Dados do últimocenso demográfico permitiram uma caracterizaçãodas famílias conviventes e mostram que a maioria dasmulheres pertencentes a esta categoria foi deixadapelo companheiro e que menos de 10% delas vivemmaritalmente. Já no caso dos homens a situação éinversa:mais de 90% convivem com companheiras. Essa é uma informação que, deve servir comoparâmetro para a definição de prioridades na seleçãode mutuários de programas de habitação populartendo como público alvo as mulheres sós eresponsáveis pelo sustento familiar.

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Um estudo realizado em 2006 pela UniversidadeEstadual Norte Fluminense Darcy Ribeiro em parceriacom o IBGE fez uma pesquisa em Campos deGoytacazes, cidade com aproximadamente 400.000habitantes, localizada na baixada fluminense, dandoênfase às famílias conviventes secundárias. Os resultados apontaram que 36% dessas famíliasnão tinham intenção de constituir outro domicílio,enquanto as demais 64% das famílias pesquisadaspretendiam conquistar sua própria moradia, devendoportanto serem incluídas no cálculo do déficithabitacional daquela cidade. A pesquisa apontou ainda que a maioria doschefes das famílias conviventes que almejavam umacasa própria, tinham baixa escolaridade: 66% tinhamapenas o ensino fundamental e destes 46% incompleto;23% o ensino médio e apenas 11% tinham cursosuperior. E que a renda média destas famílias era deaté três salários mínimos em 44% dos casos; entre trêse cinco salários mínimos em 34% das famílias. Nesse sentido é importante procurar identificar,igualmente, através de pesquisas direcionadas, ocomportamento das famílias conviventes em São Josédos Campos. Avaliar até que ponto estas famíliasoptam pela coabitação ou assim vivem por falta deoportunidade material-financeira ou por deficiência napolítica social habitacional da cidade. Uma projeção das porcentagens encontradaspelo estudo da Universidade Estadual NorteFluminense Darcy Ribeiro sobre os números de famíliasem situação de coabitação em São José dos Camposindicaria um acréscimo no cálculo do déficithabitacional da cidade de 10.193 moradias.

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* Marlene está inscrita desde 08 de julho de 2004no Programa Habitacional de São José dos Campos13 ,onde mantém anualmente atualizado seu endereço,como recomendado pelo Departamento de Habitação– SOH/ Prefeitura. Em 05 de junho de 2008 a autora deste trabalhosolicitou à Prefeitura Municipal 14, informações sobreo número de famílias candidatas aos programashabitacionais da cidade, assim como o ano deinscrição e a renda mensal destas famílias. Respostaem 25 de junho: “Informamos que temos 28.157famílias inscritas nos Programas Habitacionais domunicípio, na faixa salarial entre 0 à 10 saláriosmínimos”15. As demais informações não foramfornecidas. Em uma sabatina promovida pelo SECOVI em11 de setembro de 2008 ao então candidato areeleição prefeito Eduardo Cury sobre a questão dodéficit habitacional de São José ele respondeu: “ Odéficit não é tão grande assim. Temos cerca de 25 milpessoas inseridas no programa. Metade tem direito. Aoutra, ou já tem um imóvel, ou se mudou de São José,ou passou os dados errados”16. Prometeu se reeleitoentregar, no mínimo, 4.000 casas populares no próximomandato.13 Nº PH2126914 Protocolo 55695/200815 Documento assinado por Maria Cristina Ronconi Caldas da Divisão de Avaliação e Atendimento de Demanda16 Jornal Valeparaibano de 12 de setembro de 2008

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Os dois institutos de pesquisa que fornecemdados sobre perfil habitacional; a Fundação Seade17

– referente ao Estado de São Paulo - e a Fundação JoãoPinheiro18 – referente a União - apontam númerossignificativamente desfavoráveis para a cidade de SãoJosé dos Campos quando comparados aos de RibeirãoPreto, se levado em conta o PIB per Capita de cadauma destas cidades, como mostram os quadros abaixo.

Fundação João Pinheiro / 2005

Ribeirão

Preto

São José dosCampos

Déficithabitacional

Habitaçõesinadequadas

9.094 15.135

11.263 22.972

RibeirãoPreto

São José dosCampos

População Fundação Seade 2007

557.156

612.312

17 Disponível em www.seade.gov.br/produtos/perfil.php18 Disponível em www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/secretaria-de-habitacao/biblioteca/publicacoes/DeficitHabitacionalBrasil.pdf

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Marlene apesar de não ser muito boa para fazercontas desconfia que terá que ficar ainda muito tempona fila até chegar o dia em que poderá oferecer aosseus três filhos uma casa com janelas.

Domicílios com espaçosuficiente

Dom. c/infra-estrutura internaurbana adequada

91,07%

86,74%

96,16%

92,69%

Fundação Seade / 2007

PIB per Capita Fundação Seade 2005

Posição no ranking do Indice deDesenvolvimento Humano-M (IDH-M)

Estadual -2000

RS$ 18.311,88

RS$ 28.481,33

11º

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“As pessoas não se insensibilizamàquilo que lhes é mostrado por causa daquantidade de imagens despejada em cima delas.É a passividade que embota o sentimento. Osestados definidos como apatia, anestesia moral ouemocional, são repletos de sentimentos. Mas, seponderarmos quais emoções seriam desejáveis,parece demasiado simples escolher asolidariedade. A proximidade imaginária dosofrimento infligido aos outros que é asseguradapelas imagens sugere um vínculo entre ossofredores distantes. Nossa solidariedadeproclama nossa inocência, assim como proclamanossa impotência. Nessa medida (a despeito detodas as nossa boas intenções), ela pode ser umareação impertinente, senão imprópria. Pôr departe a solidariedade que oferecemos aos outros,a fim de refletirmos sobre o modo como os nossosprivilégios se situam no mesmo mapa que osofrimento deles e podem estar associados a essesofrimento, assim como a riqueza de alguns podesupor a privação para outros, é uma tarefa para aqual as imagens dolorosas e pungentes fornecemapenas uma centelha inicial.” Susan Sontag em Diante da Dor dos Outros

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CONJUNTO HABITACIONAL NA REGIÃOSUL DA CIDADE ONDE HÁ COABITAÇÃO

FAMILIAR E ADENSAMENTO EXCESSIVO DEPESSOAS EM CÔMODOS COM POUCA OU

NENHUMA VENTILAÇÃO

Sob o domínio

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do abandono

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MORADORES DA VILA DIRCE, REGIÃO NORTEDA CIDADE, ONDE HÁ COABITAÇÃO FAMILIARE ADENSAMENTO EXCESSIVO DE PESSOAS EM

CÔMODOS COM POUCA OU NENHUMAVENTILAÇÃO

Sob o domínio

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do abandono

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Sonho roubado

Em fevereiro de 2004 uma amiga de minhasfilhas assim que soube da invasão do terreno no“Pinheirinho” veio até aqui avisar que pessoasdesconhecidas, mas também muitos moradores dobairro estavam montando barracos por lá. As meninascorreram e conseguiram pegar quatro lotes de frentepara a avenida principal, um para a Marlene, Maria,Lucilene e para a Sônia. O mato estava muito alto e foi preciso contrataralguns homens para ajudar na roçada e na carpida dosterrenos. Peguei as poucas economias que tinha e aposteique havia ali uma possibilidade de meus filhosconquistarem uma morada. Comprei tábuas, telhas emourões para cercar tudo. Quando o dinheiro estavaacabando cobrimos o restante com uma lona. Íamos fazendo tudo ao mesmo tempo enquantouns cuidavam de erguer os barracos eu mesma iacarpindo o resto do mato e da limpeza do terreno. Certa manhã quando cheguei bem cedo paracontinuar o trabalho percebi que o casal vizinho tinhamudado a área de demarcação. Durante a noite

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avançaram muitos metros do terreno já limpo por mim.Aí fiquei uma fera. Fui reclamar com o rapaz e aviseique voltaria na metragem anterior, então ele meperguntou se eu sabia com quem eu estava lidando, oque imediatamente respondi com a mesma perguntasem temer as ameaças. Meu sangue subiu, estavaindignada com tanta safadeza e como não tinha a quemrecorrer, resolvi enfrentar. Outros vizinhos vieram meadvertir que se tratava de um homem perigoso. Poisdisse que ele fosse se danar que eu não tinha medo eque era para ele não mexer na cerca novamente. Finalmente com os terrenos limpos, os barracoserguidos e cercas bem fincadas as filhas mudaram comas crianças para lá. Mas não durou muito. Assustadascom os tiros à noite e o ambiente perigoso paramulheres sozinhas resolveram voltar para casa. Pediram para que meu filho fosse passar as noitesno assentamento. Durante duas ou três semanas tudotranqüilo, o tal do Marrom fazia a ronda e dava aimpressão de segurança, mas uma noite chamarammeu filho e ordenaram que ele pegasse tudo o que tinhapor lá e que fosse embora imediatamente porque agoraaqueles barracos tinham novos donos. Como ele era oúnico homem para se defender apanhou muito eacabou tendo que abandonar o local.

*

Um dos principais fundadores do MovimentoUrbano dos Sem Tetos (MUST) Valdir Martins,

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juntamente com técnicos e simpatizantes domovimento, estudaram minuciosamente a topografiae a situação tributária do terreno conhecido comoPinheirinho antes de sua invasão em 26 de fevereirode 2004, localizada na região sul de São José dosCampos. A propriedade pertencente à holding SelectaIndústria e Comércio, de Naji Nahas, falida em junhode 1989, não paga IPTU desde então, acumulandouma dívida de aproximadamente R$ 5 milhões aomunicípio19

Membro do Sindicato dos Metalúrgicos de SãoJosé dos Campos e líder do movimento, Valdir maisconhecido como Marron, ressalta a contradição queexiste entre a riqueza de São José dos Campos e seuelevado número de moradores sem-teto. O principalobjetivo do MUST com a ocupação desta área de 57alqueires era chamar a atenção da sociedade sobre aindiferença e omissão do poder público quanto aodéficit habitacional na cidade20 . Lembra que o Pinheirinho é considerado o maiore mais organizado assentamento urbano do país. Aestrutura e organização foram previamente planejadase a “cidade ilegal” foi dividada em 14 setores com umcoordenador por setor e de quatro a cinco segurançaspor coordenação. Nestes quatro anos e oito meses deluta já foi visitado por estudiosos brasileiros, alemães,franceses, argentinos e outros. E que a permanênciada ocupação tem no mínimo protagonizado uma

19 Disponível em www.direitos.org.br20 Entrevista concedida à autora pelo líder do MUST Valdir Martins,em 28/10/2008

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discussão das desigualdade urbanas em São José,além de mobilizar o poder executivo exemplificando acriação da Secretaria da Habitação em 2005. No mais recente levantamento da populaçãoexistente no assentamento foram contabilizadas 1685famílias e uma média de cinco pessoas por família,totalizando 8425 assentados. O líder do movimentonegou-se a entregar uma cópia deste estudo, comnúmero de mulheres, homens e crianças, faixa etária,tempo de moradia na cidade e outros. Informou queos dados foram obtidos com a ajuda de estudantes daUniversidade Federal de Juiz de Fora e que por umaquestão estratégica não poderia fornecer maisdetalhes. Apenas salientou que 87% daquelapopulação já eram moradores da cidade há mais decinco anos quando da invasão. Ao ouvir o relato da chegada e do desfechodramático da fuga das filhas de D. Ergina noacampamento Valdir mostrou-se surpreso. Referindo-se ao estudo recente afirmou que há 125 mulheressolteiras ou separadas com filhos morando hoje ali. Eque soube “em off” que assistentes sociais daPrefeitura ou de entidades sociais indicam oPinheirinho quando são procuradas por mulheresvítimas de agressão ou abandono por seus parceiros,certas de que encontrarão abrigo e proteção no local. Valdir acredita que o mais provável é que com oelas foram uma das primeiras a chegar ao oassentamento e a rede de comunicação não estavacompletamente instalada naquela ocasião o caso nãochegou ao conhecimento da coordenação. Convidou-as formalmente a retornar, se assim desejar, que se

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compromete a resgatar os lotes perdidos, embora omovimento não esteja mais aceitando novos assentados.Há uma “fila de espera” de mais de 2.000 famílias paraentrar no acampamento, mas que “não cabe aomovimento solucionar a questão habitacional apenasalertar para o problema”. Afirma que se houvervontade política para a aplicação de habitação decunho social, a propriedade do Pinheirinho temcondições de comportar 10.000 famílias.

*

O autor do projeto de Lei que criou em 1978 aEmpresa Municipal de Habitação (EMHA), o entãovereador pelo MDB Luiz Paulo Costa é hoje assessorda Secretaria de Desenvolvimento Econômico de SãoJosé dos Campos. Luiz Paulo Costa é jornalista e em 25 de outubrode 1975, foi testemunha ocular de um crime quedesencadeou o princípio do fim da ditadura militar noBrasil. Estava detido juntamente com mais 11jornalistas no Destacamento de Operações deInformações – Centro de Operações de Defesa Interna,o DOI-CODI, em São Paulo, dentre eles Sérgio Gomes,Marinilda Marchi, Frederico Pessoas da Silva, Ricardode Morais Monteiro, José Póla Galé, Anthony de Cristo,Paulo Sérgio Markun, Diléia Markun, George DuqueEstrada, Rodolfo Konder e Vladimir Herzog, entãodiretor de jornalismo da TV Cultura, que ali foitorturado até a morte.

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24 Na luta pelos direitos do povo, COSTA, L.P.1982, p. 86

“Um fator de intranqüilidade naquele dia era oestado de saúde de Luiz Paulo Costa, correspondentedo jornal Estado em São José dos Campos, internadona Beneficiência Portuguesa depois de ter sidolibertado às pressas do DOI-CODI. Luiz Paulo, quesofria de osteomielite, fora espancado ao ponto de sóse manter em pé amparado pelos companheiros decela. Seu estado era grave e os militares do DOI só olibertaram porque não podiam correr o risco de maisum cadáver naquele momento.”21

“Ao jornalista Vladimir Herzog, que com osacrifício de sua morte, devolveu-nos à vida”, comessas palavras Costa fez uma homenagem póstuma aHerzog e requereu no terceiro ano da morte do mártirejunto ao legislativo de São José dos Campos que o dia25 de outubro fosse proclamado o Dia da Defesa dosDireitos Humanos dos Trabalhadores.22

Em entrevista23 o jornalista, falou sobre a históriahabitacional da cidade a partir da década de 70salientando o papel do Sindicato dos Trabalhadores naIndústria da Construção e do Mobiliário de São Josédos Campos e da luta de seu presidente, na época,

21 Na luta pelos direitos do povo, COSTA, L.P.1982, (in dossiê Herzog –Prisão, Tortura e Morte no Brasil, de Fernando Pacheco Jordão) p. 10022 Na luta pelos direitos do povo, COSTA, L.P.1982, p. 10123 Entrevista concedida em 29/10/2008

Pedro Rocha em combater o déficit de moradia queera estimado em cerca de 20 mil casas populares 24 eque atingia principalmente os trabalhadores de baixarenda do setor; “aqueles que construíam casas nãotinham a sua própria”. Lembrou que apesar de ter sido sancionada a leique criou a EMHA esta só foi de fato atuante um ano

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suportavam mais esperar por moradia partiram parauma iniciativa inédita intermediados por Rocha e osindicato adquiriu uma grande área e em regime demutirões construíram mil casas populares, onde hoje éo Parque Novo Horizonte. Apenas no ano seguinte éque se iniciou a construção do Conjunto HabitacionalElmano Veloso. O jornalista ressalta a bem sucedida iniciativa dosindicato que com poucos recursos e com ajuda mútuade seus membros concretizaram o sonho da casaprópria daqueles que tinham renda inferior a trêssalários mínimos. Lamenta que a experiência não tenhamais se repetido no município. Quanto a questão do déficit em São José disseque a política habitacional de hoje articula váriosprogramas que contam com recursos da União e doEstado, assim como os programas a fundo perdidoque praticamente extinguiram todas as favelas dacidade com exceção das 300 e poucos famílias queainda permanecem no Banhado. “Não fosse aocorrência do Pinheirinho, e o processo dedesfavelização da cidade estaria encerrado”.

após a sua criação. Os operários que já não

Esta invasão foi política, afirma Costa. Lembraque o MUST é ligado ao Partido Socialista dosTrabalhadores Unificado (PSTU) da antigaConvergência Socialista e que faz parte do MovimentoTrotskysta da IV Internacional que por sua vez tem ocontrole do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dosCampos. Sugere que a experiência com os operáriosda construção civil no final dos anos 70 poderia ser c Fcopiada por esse Sindicato que tem um orçamentosignificativo. Faz uma conta e condena a invasão de

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uma propriedade privada uma vez que o custo doterreno corresponde de 15 à 20% do custo total damoradia que poderia ser negociado pela entidade.Lembra porém, que a área onde está localizada oPinheirinho pertence a uma ZUPI (Zona dePredominância Industrial) de acordo com o planodiretor da cidade. Naquela região há um adensamento importantede residências por isso é preciso instalar ali atividadeseconômicas e criar empregos. Evitar assimdeslocamento diário de um grande número detrabalhadores de uma região a outra, diz Costa. Finaliza se compadecendo das famílias quevivem em condições insalubres no assentamento e queforam instigadas à invasão pelo movimento e sindicatoque as manipulam. Esses poderiam e deveriam atuarconcretamente evitando sofrimento a tantas pessoas.Contribuindo e somando para que a cidade seja maisordenada.

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Artigo XVII.1. Todo ser humano tem direito àpropriedade, só ou em sociedade comoutros.2. Ninguém será arbitrariamente privadode sua propriedade.

Declaração Universal dos DireitosHumanos - 1948

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ASSENTAMENTO URBANO EM SÃO JOSÉ DOS CAMPOS CONHECIDO COMO “PINHEIRINHO”

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Geração ultrajada

Meu nome é Manuela (nome fictício), tenhoquatorze anos, moro nesta casa desde que nasci. Nãogosto de falar de como vivo aqui. Sinto vergonha detudo. Estudo no “Terezinha” estou na oitava série egosto da escola. Pego livro na biblioteca toda quarta-feira. Comecei a fazer informática, primeiro digitaçãoe agora “Power Point”. É legal aprender a mexer nocomputador, mas não dá para treinar muito. Eu nãotenho equipamento em casa e só posso praticar na“Lan House”, mas é muito caro. Gosto de abrir o “Orkut”e quero aprender como colocar uma foto minha ládentro e também ter um “email” porque ainda não seicomo fazer. As minhas colegas estão mais adiantadasdo que eu e quando podem me explicam como fazer. Minha melhor amiga mora nas casinhas doD.Pedro I com toda a família dela, a mãe, o pai e umirmão. A casa é própria. Sempre vou lá, mas nuncatrouxe ela aqui porque uma casa sem janela não é umacasa e como explicar uma coisa dessas.

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Meu maior sonho é um dia poder viver com aminha família completa, com o meu pai junto. Sonhocom um quarto só para mim onde eu possa ficar comoquiser, sem ninguém bisbilhotando, com umcomputador e que eu possa trancar e ter uma chave sóminha. Minha mãe Marlene reclama que ou fico em frentea televisão ou que fico o tempo todo na rua, mas comoficar dentro de casa sem ar para respirar. Pelo menosna rua estou com meus amigos e posso me divertir umpouco. O que a gente faz na rua é conversar. Depoisque construíram uma quadra aqui no bairro a genteaté gostava de jogar bola mas agora os molequestomaram conta. Bola só queimada na rua. Nos finais de semana é igual durante a semana.Nunca fui ao shopping, nem sei onde fica. Nem nuncafui ao cinema que fica lá dentro. Fui ao teatro uma únicavez com a escola quando estava na segunda série.Passeio com a escola além deste, só uma vez que eupude ir porque minha mãe não tem dinheiro para extras.Mas me lembro muito bem quando fomos conhecer oParque da Cidade, é lindo. Só que também não volteimais lá. Até queria mas não tenho passe. Quando eu crescer quero continuar estudando.Não quero ser como minha mãe que não consegueemprego fixo. Quero ser bióloga, não me pergunte porque. Eunão sei exatamente o que o biólogo faz mas sei quetem que aprender muita coisa interessante. Eu nãoquero parar de estudar.

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Um estudo realizado em 1998 em um ConjuntoHabitacional no Vale do Paraíba25 apontou para umafragilidade do vínculo social de seus moradores.Achavam-se “fracassados, desprivilegiados edesvalorizados por morarem em um conjuntohabitacional”. Aspectos negativos foram observadosligados ou à razão de serem pobres, ou ao preconceitoe à desqualificação social gerada nas relações dentrodo próprio bairro ou fora dele. A nova geração que já nasce com DNA digitalressente de maneira mais intensa a desigualdadesocial. A proximidade e contato em tempo real, emboravirtualmente, com um mundo dos bens de consumomaterial e cultural, aos quais não têm acesso étraduzido por estes jovens como uma estigmatizaçãode sua condição social. Com poucas opções de lazer, atividades culturaise esportivas relatado pelos próprios jovens que moramno bairro afirmam que muitos dos amigos recorremao mundo das drogas na tentativa de aliviar osofrimento causado por essa exclusão. Por conseguintepassam a cometer pequenos delitos para comprar oentorpecente.

25 NEVES, L. R.; SANTOS, J. A A Auto Representação de um bairro deperiferia da cidade de Taubaté, SP Relações de dominação epreconceito. 1998. 117 f. Monografia (Graduação em Psicologia)-Faculdade de Psicologia,Universidade de Taubaté, Taubaté.

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Após a conversa com Manuela em sua casa elafoi convidada para um desafio. Dar uma volta pelacidade e fotografar uma casa de seus sonhos e delugares que gostaria de conhecer em São José. Empouco menos de meia hora aprendeu a manusear e alidar com a máquina digital que lhe foi oferecida. Pediu a permissão para levar junto uma prima,Adriana (nome fictício) 12 anos. Coube a Manueladecidir por onde começar o passeio. Pediu para serlevada, próxima dali, no bairro Jardim Morumbi. Meioperdida, procurava por uma rua que não sabia o nomemas sabia exatamente o que procurava. Após ter seperdido umas duas vezes finalmente encontrou. Pediupara parar o carro e começou a fotografar uma casade esquina, de vários ângulos até que de repente oportão automático da casa se abriu e de lá saiu umcarro que permaneceu parado no meio da rua.Manuela observava no visor da câmera as imagens járegistradas. Animada buscou uma outra posição parafazer mais fotos. Surpreendentemente o automóvelque estava parado no meio da rua deu uma ré, e amotorista sem sair do carro, apenas abaixando o vidro,perguntou desconfiada e hostil porque a meninaestava fotografando sua casa. Após a explicaçãosobre o trabalho que estava sendo realizado à senhoravisivelmente amedrontada Manuela desconcertadanão quis mais permanecer ali.

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Um estudo sobre as questões habitacionais nopaís elaborado pela ONG paulista Instituto Cidadaniaentre 1999 e 2000 e sob a coordenação da arquiteta eurbanista Ermínia Maricato foi condensado em umacartilha chamada Projeto Moradia. Chamou à atençãoquanto a retração das classes socias menos atingidaspelo problema de habitação. Como no caso damoradora, de um bairro de classe média/média,assustada com a presença de meninas em frente asua casa e que vive protegida por uma cerca elétrica. A atitude desta moradora reforça a urgência daaplicabilidade do que é sugerido na cartilha: “Apossibilidade de redução da violência, pode ser umgrande catalisador de ações de solidariedade dapopulação. Como indicado pelas pesquisas deopinião pública, as famílias de classe média e alta,que se encarceram em “fortalezas” dotadas dedispositivos de segurança cada vez mais caros, têmcomo principal preocupação o crescimento da violênciaurbana. As propostas de moradia digna a todos sãocapazes de trazer benefícios a toda a cidade,melhorando a qualidade de vida coletivamente.(INSTITUTO CIDADANIA, 2000)

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Manuela procurou por outras casas no bairropara fotografar mas não se contentou com nenhumaoutra, gostava mesmo era daquela de esquina. Sugerido pela prima a próxima escolha foi emdireção ao shopping. Passando pela avenida Bacabalviu uma grande loja de plantas ornamentais e quisconhece-la. As duas jovens ficaram estarrecidas como colorido e a quantidade de flores e plantas aliexpostas. Felizmente Manuela pode fotografar àvontade sem ser agredida ou importunada pelosfuncionários. Ao sair da loja logo em seguida no anel viárioela avistou um condomínio de luxo bem visível àesquerda da via. Quis fotografar, mas não foi possívelparar naquele local. Ansiosa esperou a volta lateral eentão pode fazer as imagens de casas e do jardim emfrente ao condominio. Quis mudar de idéia quanto a conhecer oShopping quando chegou ao estacionamento. Ficouassustada e referia estar mal vestida, gorda edespreparada para entrar ali. Após ser asseguradaque não havia nada de errado com sua roupa ou seuaspecto aceitou mais esse desafio, porém abandonoua câmera fotográfica. Em um momento especialdaquele queria liberdade para desfrutar a realizaçãode um sonho tão esperado. Conhecer o famosoShopping Center da cidade onde nasceu, que sempreouviu falar e que precisou esperar quatorze anos paraacontecer.

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“A fotografia não documenta o cotidiano. Ela faz partedo imaginário e cumpre funções de revelação eocultação na vida cotidiana. Portanto, as pessoas sãofotografadas representando-se na sociedade erepresentando-se para a sociedade. A fotografiadocumenta, como atriz, a sociabilidade comodramaturgia. Ela é parte da encenação. Ela reforça ateatralidade, as ocultações, os fingimentos. A fotografia“conserta” o fato de que na vida cotidiana aapresentação social desmente a representaçãosocial.(...) Nem me parece que favelados e intelectuaistenham critérios diferentes e até opostos derepresentação visual da pessoa. Em circunstânciasociais radicalmente diversas, o retrato é concebido eesperado do mesmo modo, como imagem icônica,como imagem do invisível, como expressão visual devirtudes humanas e interiores, e não como meraaparência externa e mera forma. (“Sejam pintados oufotografados, os retratos registram não tanto arealidade social, mas ilusões sociais, não a vida comum,mas performances especiais” – Peter Burke)”

José de Souza Martins em Sociologia da Fotografia e da Imagem

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“MANUELA” FOTOGRAFASÃO JOSE DOS CAMPOS DESEUS SONHOS

PORQUE UMA CASA SEM JANELA

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NÃO É UMA CASA. É UMA VERGONHA! “Manuela”, 14 anos

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Por uma utopia na reconstrução do imagináriojoseense

“A utopia está lá no horizonte.Aproximo-me dois passos, ela seafasta dois passos. Caminho dezpassos e o horizonte corre dez passos.Por mais que eu caminhe, jamaisalcançarei. Para que serve a utopia?Serve para isso: para que eu não deixede caminhar”.

Eduardo Galeano

O processo de globalização é hoje um fatoinconteste. Tem um domínio e força de tal ordem quetoda e qualquer tentativa de transformação social emnosso tempo é alvo de descrença e imobilismo. Háuma tendência para o conformismo da realidadeexistente no mundo globalizado. O próprio conceitode utopia foi desvirtuado. “A caracterização de utopiacomo mera ilusão e de utópicos como sujeitosdistantes da realidade, sonhadores e alucinados,reforça uma tendência explícita da ideologiadominante na sociedade de naturalizar a realidadeexistente como a única possível e deslegitimarprocessos sociais com potencial de transformação”26.

26 Antônio ANDRIOLI em Utopia e realidade, RevistaEspaçoAcadêmico 2006 em://www.espacoacademico.com.br/056/56andrioli.htm

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Andrioli afirma que uma utopia, não é algoilusório, e sim algo “que não é, mas pode vir a ser” ereporta-se ao alemão Ernest Bloch27 conhecido comoo filósofo da Utopia e da Esperança, que pregava a“utopia real”: a intenção utópica de avançar, oprincípio esperança, a antecipação real daquilo quenão é garantido vivenciar, mas que move ahumanidade e dá real sentido ao viver, ao “vir-a-ser”mais humano.”

O conceito de “utopia real “ torna-se relevanteface à desumanização crescente no planeta e suaaplicabilidade fundamental. O simples gesto decobrança coletiva do cumprimento da vasta edecorativa legislação vigente sobre direitos humanosà moradia (em âmbito nacional ou internacional)desencadearia certamente uma resposta–reflexo. No artigo 25 da Declaração Universal dosDireitos Humanos adotada pela Assembléia Geraldas Nações Unidas, em 1948, onde determina que“Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capazde assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar,inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidadosmédicos e os serviços sociais” vem sendodesrespeitado há 60 anos. Na Conferência das Nações Unidas sobreAssentamentos Humanos – Habitat II, realizada emIstambul em 1996, o depoimento de uma participante,a brasileira e urbanista Ermínia Maricato,impressiona pela previsibilidade do descumprimentodo que ali foi determinado. No parágrafo 26 diz quetodos terão adequada habitação sadia, segura,protegida, acessível, e o gozo de liberdade frente a27Ernest BLOCH (1885-1977)

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discriminações de moradia e segurança legal deposse; e no parágrafo 61 que todos os governos, semexceção, têm responsabilidade no setor dehabitação, e que devem adotar ações apropriadaspara promover, proteger e assegurar a plena eprogressiva realização do direito à moradia. Maricato conta que ela mesma pode constatar,andando pelas ruas de Istambul, que a cidade foi“objeto de uma operação de maquiagem através dareforma dos pisos das calçadas, da limpeza das ruas eda coleta dos mendigos e crianças pobres das ruas docentro, todas as manhãs, durante o período da HabitatII. “(...) A exclusão e a dualidade não tem lugar nocenário definido pelo poder monopolista midiático.A versão é, frequentemente, mais forte que o fato.”28

No artigo 5°, parágrafo 2º da ConstituiçãoFederal Brasileira ficou determinado que o Estadodeve cumprir os compromissos éticos e políticosassumidos nas convenções, tratados e pactosinternacionais com os quais o Brasil torna-sesignatário. A “utopia real” pode ativamente ser exercidapor todo cidadão na melhoria das condições de vidae moradia dos citadinos joseenses, incentivando areativação do Conselho Municipal da Habitação e doConselho Municipal de Desenvolvimento Urbanocriado em 1997. E o cumprimento das determinaçõeselaboradas no Plano Diretor 29 conforme Lei n° 10.257/

28 Ermínia MARICATO, Brasil, Cidades. Alternativas para a criseurbana. 2002, pg 17829 Disponível em://www.sjc.sp.gov.br/spu/downloads/Caderno_Tecnico.pdf

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2001, conhecida como Lei do Estatuto da Cidade. Eda Lei Orgânica do Município de 1990 que determinaem seu artigo 16 que a população tome ciência daelaboração ou alteração de alguma medidacomplementar de interesse geral, através deaudiência pública. E se todos aqueles que moram em casasconfortáveis cumprirem com a legislação trabalhista,e registrarem todos os seus empregados estarãocontribuindo não só por ficar em dia com a justiça,mas por resgatar a dignidade destes trabalhadores,assim como, beneficiá-los com a segurançaprevidênciária, o que certamente refletirá de formapositiva em toda a comunidade. Enfim, contribuir na realização do que não é,mas pode vir a ser: Todo citadino de São José dosCampos se tornar cidadão.

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Jean Carlos Galvão, 36 anos, é cartunista hádezessete, trabalha para o jornal Folha de São Pauloe é morador da cidade de São José dos Campos. Aolado, charge criada por ele e publicada na Folha deSão Paulo em 07 de novembro de 2008.

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DOMINGO, 25 DE DEZEMBRO DE 20...

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“O que não é , mas pode vir a ser”

Primeira cidade brasileira com mais de 500 mil habitantes, conquista marcoinédito no país: todos os seus cidadaõs tem uma casa própria para morar.