uma abelha na chuva c de oliveira

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Carlos de Oliveira

Uma Abelha na ChuvaIntroduo de Manuel de Gusmo

Crculo de Leitores Este volume faz parte da srie

Romances Portugueses Obras-Primas do Sculo XXcoordenada e dirigida por David Mouro-Ferreira e assinala o XV Aniversrio do Crculo de Leitores

Capa de Jos Antunes Fotocomposto em Garamond 12/11,5 por fotocompogrfica foi impresso e encadernado no ms de maro de 1986 por resopal em exclusivo para os scios do crculo de leitores

Licena editorial por cortesia da livraria S da Costa Editora

Edio n. 1903 Depsito legal n. 14 746/87

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IntroduoO Homem e a Obrapor Manuel Gusmo

O homem j no est entre ns, a obra sim. Desde 1 de julho de 1981 que j no o podemos encontrar num caf, ao virar de uma esquina, em casa. Amigos houve que falavam limpidamente da solido que por essa perda lhes chegava (Mrio Dionsio, por exemplo). A obra... essa espera por ns, reservada e rigorosa, num apelo quase silencioso. Espera que a visitemos e compensar-nos- da viagem de a irmos ler. O autor que nessa obra se ia fazendo preparou-a para isso: para nos convidar. Trabalhou e disse discretamente essa espera, por exemplo num poema intitulado Mapa:O poeta [O cartgrafo] Observa As suas Ilhas caligrficas Cercadas por um mar Sem mares, o arquiplago a que falta o vento, fauna, flora, e o hlito hmido da espuma, Pensando Que Talvez alguma Ave errante Traga solido Do mapa, Aos recifes desertos Um frmito, Um voo, Se for possvel voar Sobre tanta Aridez.

Os primeiros versos de cada uma das duas partes deste poema dizem que o poeta est pensando, ou seja, escrevendo sobre a sua obra e os leitores que sero (talvez) capazes de a visitar. As ilhas caligrficas, o arquiplago, o mapa dizem a obra, a ave errante somos ns, os leitores que obra vm, e nela reconstituiro o vento, a fauna, a flora, e o hlito hmido da espuma, que na sua solido e aridez, restituiro a respirao humana de que ela tambm feita.

4 A obra deste autor um trabalho que insistentemente se pensou e deu a pensar, que se viveu e deu a viver, paciente e sobriamente atormentado. Carlos de Oliveira nasceu a 10 de agosto de 1921 em Belm do Par, no Brasil, filho de pais portugueses, emigrados. Dois anos depois veio com eles para Portugal. Para a regio da Gndara, concelho de Cantanhede, primeiro para o lugar da Camarneira, e, quatro anos depois, para Febres. A, o pai exercer medicina como mdico municipal. A Amaznia e a Gndara so assim as duas primeiras paisagens em que Carlos de Oliveira viveu. So tambm as paisagens dominantes do seu primeiro livro de poemas, Turismo, que, depois de reescrito, comporta precisamente trs partes: Infncia, Amaznia, Gndara. O pai era mdico mdicos so o Dr. Seabra, no seu primeiro romance, Casa na Duna, e o Dr. Neto em Uma Abelha na Chuva. Ambos so personagens relativamente laterais s histrias principais dos dois romances, mas personagens particularmente importantes. Disso mesmo nos fala num texto do seu livro de prosas, Aprendiz de Feiticeiro (1971):meu pai era mdico de aldeia, uma aldeia pobrssima: Nossa Senhora das Febres. Lagoas pantanosas, desolao, calcrio, areia. Cresci cercado pela grande pobreza dos camponeses, por uma mortalidade infanta, enorme, uma emigrao espantosa. Natural portanto que tudo isso me tenha tocado (melhor tatuado). O lado social e o outro, porque h outro tambm, das minhas narrativas ou poemas publicados (quatro romances juvenis e alguns livros de poesia) nasceu desse ambiente quase lunar habitado por homens e visto, aqui para ns, com pouca distanciao... o que no quer evidentemente dizer que tenha desaproveitado experincias diferentes (ou parecidas) que a vida e a cultura me proporcionaram depois. (3. ed., p. 204.)

O nome da prpria aldeia, as palavras, que a descrevem neste texto, so palavras que ocorrem na obra de Carlos de Oliveira, com significativa frequncia e acentuado valor simblico. Elas dizem uma paisagem, natural e social, geografia humana literria, mas podem tambm dizer aspectos da obra, dos romances ou dos poemas: febres, sezes, maleitas; lagoa, pntano, apodrecimento animal e vegetal; solido, desolao, aridez (e morte); calcrio e cal, areia e slica (o poema: cal e grafia); a pobreza (o fantasma da misria que apavora lvaro Silvestre em Uma Abelha na Chuva), a morte de filho ou a ausncia de filho (de Casa na Duna, a Uma Abelha na Chuva e a Finisterra), a emigrao e a transumncia dos camponeses. No liceu e na universidade, em Coimbra, Carlos de Oliveira convive com Fernando Namora, Joaquim Barradas de Carvalho e Egdio Namorado, com Joaquim Namorado, Joo Jos Cochofel, Rui Feij, que na passagem dos anos 40 para os anos 50, constituem uma componente fundamental do movimento neo-realista, sobre o qual Mrio Dionsio, outro dos seus amigos, dir:

5eu insistia em que tal movimento no pretendia ser uma escola literria nem, muito menos e por isso mesmo um regresso ao realismo de oitocentos (da o detestvel neo...), nem um novo aspecto do modernismo, nem a dogmtica imposio de certos assuntos, de certas personagens, de um esquema ou esquemas de avaliao e exposio, mas qualquer coisa to vasta e revolucionria como o Renascimento o fora nos tempos da gloriosa afirmao do mundo agora em decadncia. Um renascimento em que cabiam todas as tendncias, todas as escolas, todas as tradies e todas as inovaes, tudo o que permitisse exprimir a nova mentalidade no sentido mais vasto da palavra em que tudo jogvamos (e jogamos): a expresso, por mil maneiras como escrevi mais tarde e agora sublinho, da realidade total em movimento. (Prefcio a Casa na Duna, pp. 10 e 11.)

Desde muito cedo comea a publicar: trs contos e um poema, num livro de que coautor com Artur Varela e Fernando Namora, Cabeas de Barro (1937). Ao longo dos anos 40, colabora em vrias revistas, Seara Nova e Vrtice, nomeadamente, e publica em colees onde o Neo-Realismo se afirma, Novo Cancioneiro e Novos Prosadores. Ele prprio, com Joaquim Namorado, organizar a coleo O Galo e, em 1945, um dos escritores que organizam a renovao da revista Vrtice. Em 1949, ano em que publicar um belo poema Descida aos Infernos, casa com ngela, uma jovem da Madeira que conhecera na universidade e cujo nome anagramatizar em vrios momentos da sua obra (Ann Gall e Gelnaa). Em 1950, fixa-se definitivamente em Lisboa. Ser por breve tempo professor, trabalha no arquivo de um jornal e numa redao de revista, de 1953 a 1972. Trabalhando na sua obra, vai convivendo com amigos, uns que vm de trs, outros que vo surgindo, de outras geraes: Joo Jos Cochofel, Fernando Namora, Jos Gomes Ferreira, Mrio Dionsio, Manuel da Fonseca, Joel Serro, Augusto Abelaira, Jorge Reis, Urbano Tavares Rodrigues, lvaro Salema, Herberto Helder, Jos Cardoso Pires, Alexandre Pinheiro Torres, Helder Macedo, Gasto Cruz, Joo Csar Monteiro, Nuno Jdice, e outros ainda. De si prprio dir:Pensando bem no tenho biografia. Melhor, todo o escritor portugus marginalizado sofre biograficamente do que posso denominar complexo do icebergue: um tero visvel, dois teros debaixo de gua. A parte submersa pelas circunstncias que nos impediram de exprimir o que pensamos, de participar na vida pblica, um peso (quase morto) que dia a dia nos puxa para o fundo. Entretanto a linha de flutuao vai subindo e aparte que se v diminui proporcionalmente. (em O Aprendiz de Feiticeiro, 3 ed., p. 181.)

Os que o conheceram falaro dele com uma impressionante constncia de opinies: era um homem cheio de pudor, um homem reservado e quase secreto. Recordam o seu rigor e a sua sobriedade. A sua dignidade e inteireza. Notam como era avesso vida literria pblica e nomeadamente pequena glria da feira literria. Mas sublinham tambm duas caractersticas

6 aparentemente contraditrias (Cardoso Pires, por exemplo): a de que era um solitrio intensamente solidrio. E era. solidrio, com o qu? Com o trabalho literrio do seu pas, com o povo (da Gndara, daqui e dali) a que pertencia. Essa pertena no o limitava, era-lhe uma exigncia. Exigia-lhe o trabalho verbal paciente, obstinado, intransigente e uma paixo moral profunda e no demaggica. Era solidrio com a revoluo portuguesa, que uma expresso para dizer a libertao de uma opresso longa, violenta e insidiosa. Ele imaginava a relao que existe entre um cristal de rocha, um fragmento de slica, o desenho inverossmil de uma estalactite e o orvalho num jardim, a apario fulgurante de uma estrela, entre um desenho infantil e a cosmologia de um universo imenso, entre um rio e a Via Lctea. Mas precisamente por isso doa-lhe a violncia econmica, social e cultural imposta a camponeses, ou outros. H quem pense que um grande convvio com a solido e a dor nos fecha aos outros. H tambm quem pense que a partilha, como nossa, de uma dor de outros, de uma dor coletiva, nasce da falta de uma dor prpria. Carlos de Oliveira mostra que pode no ser assim. A sua obra um dos mais claros e rigorosos casos de conjuno entre uma dor ou paixo pessoal e uma dor ou paixo coletiva. Conjuno trabalhada, no demagogia. A obra de Carlos de Oliveira a obra do que podemos chamar uma imaginao rigorosa: uma imaginao que une uma intensa e vibrante ateno ao mundo real e um tenso trabalho verbal. Trata-se de um rigor potico e, mesmo, de um rigor potico: evidncia do trabalho da linguagem e moral prtica, produo de valores, na relao com o mundo e a linguagem comunitria. Produzida pelo trabalho arquitetural, pela fortssima tessitura das relaes verbais da sua obra, a relao com o mundo estrutura-se em duas grandes referncias simblicas: paisagem e povoamento. Paisagem e povoamento o subttulo do seu ltimo romance, Finisterra, que tambm a ltima obra que publicou em vida. Este subttulo pod-lo-ia ser tambm de Turismo e, como o notou vital Moreira, poderia ser o subttulo de todos os livros de Carlos de Oliveira ou da sua Obra Completa. A crtica referiu a relao desse ltimo romance com o primeiro que publicara, Casa na Duna. Em ambos, de forma acentuadamente diferente, se trata da decadncia de uma casa familiar (e social). Podemos notar ainda um outro eco entre estes dois romances, extremidades da obra narrativa. Casa na Duna comea por esta frase: na Gndara h aldeolas ermas esquecidas entre pinhais, no fim do mundo. Ora Finisterra diz o fim da terra (o cabo finisterra) ou a terra do fim, a ltima terra. E claro que na frase de Casa na Duna, no fim do mundo a expresso para dizer, no imediato, o enorme isolamento, o lugar escondido, perdido e, nesse

7 sentido, distante. Mas a histria que nesse livro se conta tambm uma histria do fim de um mundo social (ainda preservado das relaes capitalistas de produo) e familiar (a decadncia da famlia dos Paulos - morte do filho, enlouquecimento do pai, fim da linhagem e preparao da destruio da casa da famlia). Ora, tambm, em Finisterra se fala do fim de uma casa familiar, recordada e participada pelo filho que no tem filhos que continuem a linhagem. O fim do mundo, a terra do fim, so ento metforas, na geografia humana literria, de uma terra onde se vive beira do fim (da morte), onde se vive ao extremo, ou seja, intensa e extremamente, tocando a morte. Esta terra extrema (tambm metfora de vida intensa e da literatura, como aventura extrema, transformao dos limites) a da obra de Carlos de Oliveira, como se ver tambm em Uma Abelha na Chuva. A paisagem (por excelncia a da Gndara, na obra romanesca e na poesia e tambm a paisagem urbana, na poesia e nas prosas de O Aprendiz de Feiticeiro) tatua simbolicamente o corpo de quem escreve e produz-se na obra. uma paisagem de extrema aridez, mas metamrfica apesar disso: produto e fator de metamorfoses. A geografia e a geofsica constroem a histria natural de uma natureza que exemplar e insistentemente se l no ltimo romance. Mas tambm uma paisagem social: a que o povoamento faz. E por a, de outra forma, histrica. Trata-se ento da fixao e tambm da transumncia dos camponeses, da emigrao e do trabalho difcil, da construo e decadncia das casas. O povoamento sciohistrico e, indissociavelmente, drama familiar individual. H escritores que manifestamente evoluem ao longo da sua obra, na sua forma de escrever e nos universos que vo construindo. E h outros que parecem escrever e reescrever sempre um mesmo livro, como se acrescentassem episdios de uma mesma histria, desenvolvessem frases, modulassem de outra forma um tom, como se executassem de formas diferentes uma mesma partitura musical. Carlos de Oliveira parece combinar estas duas possibilidades. Por um lado, h uma tremenda fora coesiva na sua obra, uma rede de ecos e de relaes que estreitamente une os seus diferentes livros, a poesia como a prosa, numa unidade complexa mas insistente em tomo da(s) paisagem(s) e do(s) povoamento(s) que desenha e conta. Mas, por outro lado, ntida uma evoluo em direo do rigor, do despojamento, da concentrao explosiva de efeitos significativos. Este movimento traduz-se num fenmeno relativamente singular na literatura portuguesa deste sculo: a constante reescrita de livros j publicados, em consonncia com o movimento de depurao que se desenvolve nos livros que vai publicando. Como se os livros, posteriores, reagissem retrospectivamente sobre os anteriores, modificando-os e produzindo uma mais coesa unidade.

8 Cantata (1960) um livro de poesia j intensamente depurado. Poesias (1962) edita todos os livros anteriores, com exceo de Turismo que excludo, e corrige j alguns poemas. Mas Trabalho Potico (1976) reedita de novo todos os livros, incluindo agora Turismo, profundamente reescrito. Mas no s este livro. Entre Poesias e Trabalho Potico desaparecem poemas, outros so fundidos, desaparecem estrofes, so modificadas frases, versos, palavras, alterada em diversos casos a prpria pontuao. E no porque tenham mudado as regras da lngua, mas por um trabalho de depurao que ao mesmo tempo apaga a grandiloquncia e potencia a polissemia. Entretanto, o que ia fazendo na poesia como que se projeta sobre a prosa. Em 1964 sai refundido o romance Casa na Duna, mais de vinte anos depois da sua primeira edio (1943). Em 1970 sai uma nova verso de Pequenos Burgueses (1 edio em 1948). Uma Abelha na Chuva sofrer constantes modificaes, mesmo que mais pequenas. Antes de morrer, Carlos de Oliveira trabalhava numa nova verso de Alcateia, que no deixara reeditar at ento, porque considerava indispensvel a sua reescrita. Em 1978, Finisterra uma espcie de apoteose desse trabalho da poesia sobre o romance. Romance-poema, ou longo poema em prosa, onde converge o trabalho da sua ltima poesia, algumas das prosas de O Aprendiz de Feiticeiro e o universo dos seus romances. Livro de uma beleza convulsiva de to intensa e extrema, entretanto contida. Nos seus romances, como na sua poesia, Carlos de Oliveira um poeta. Como tal se lhe referiram, mesmo falando de romances seus, escritores to diferentes como Vitorino Nemsio e Mrio Dionsio. Poeta o que faz um mundo de palavras e, nisso, refaz com palavras, a nossa linguagem e o nosso mundo.

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Uma Abelha na Chuva: uma cosmologia trgicapor Manuel Gusmo

O leitor l Uma Abelha na Chuva e tem muitas pontas por onde tentar organizar a sua leitura, por onde procurar entender melhor o livro. Que romance este? Eduarda Dionsio (1971, cf. Bibliografia) interrogou-se sobre isso: um romance social que tem pelo meio uma novela passional e um conto exemplar de raiz popular? E concluiu que Uma Abelha na Chuva era tudo isso, um romance completo e complexo. Mas tambm parece que a histria de lvaro Silvestre e D. Maria dos Prazeres uma espcie de no-histria (no progride por aes, no tem um desfecho conclusivo) e, nesse sentido, histria propriamente dita parece ser s a de Jacinto e Clara, do oleiro e de Marcelo. Isso o notou Maria Alzira Seixo. Como notou que se trata de um romance da opresso, sendo a opresso entendida como social e processo fsico e psquico de abatimento do outro ou de si prprio, dominao e existncia de um peso de aniquilamento (1976, rep. em 1986). O leitor pode ento procurar os mltiplos sinais, as formas e as funes dessa opresso densssima. O leitor pode tambm perguntar-se: quem , no livro, uma abelha na chuva? O que que significa este ttulo? de imediato, parece que uma abelha na chuva, tal como o Dr. Neto a v, no final do romance, Clara. Mas ser que no so abelhas na chuva todas as personagens. De certo modo assim parece. Nenhuma destas personagens consegue reunir em si, numa afirmao plena, o desejo, o querer, o saber e o poder. Em todas algo falha, algo est reprimido, opresso. Mas ento por que que o livro se chama Uma Abelha na Chuva? Ou melhor, por que uma? Trata-se de indicar uma lei geral: neste livro cada pessoa uma abelha na chuva? possvel. Mas tambm claro, lido o ttulo atravs da reflexo-viso final do Dr. Neto, que se trata de privilegiar uma personagem. E ela ento, de fato, Clara. Mas a que propsito, se uma personagem que no parece principal, se no uma das que ocupa mais pginas do livro. Adiantemos uma hiptese. Em que que Clara se distingue de todas as outras personagens? a que decide morrer. Mas decide completamente? Ou de vrios modos forada a essa deciso? A resposta est certamente entre as duas alternativas. Mas h uma outra diferena. Essa, sim, fulgurante: Clara a nica que traz no ventre um filho. Clara iria transformar as duas pequenas mortes amorosas de um par, num terceiro: uma criana. Carlos de Oliveira falou disso, assim, num poema de entre duas memrias:

10Somam-se duas mortes E obtm-se uma criana; ela, sim: Resistir, crescendo Ao desgaste do dia, Procurar na outra noite O corpo que define o seu;

Mas na continuao desse poema diz-se, sobre essa criana no futuro:Das duas uma: reproduz-se tambm; ou extingue em si o fluxo da dana;

Aqui, em Uma Abelha na Chuva, o filho no chega a nascer, por morte de pai e suicdio de me. Entretanto, gerado, o filho o oiro mais ntido: a fecundidade, o triunfo do nascimento que coroa o desejo partilhado. Neste livro, esse oiro para todas as personagens, diferentemente embora, contaminado por aquele que lvaro Silvestre experimenta na sua viagem para fora de casa e de regresso a casa: levantou-se e tomou o caminho de casa. Na lama onde ia afundando os passos fermentavam as folhas cadas de outubro, oiro conspurcado que os vermes devoravam. (Cap. XVII; somos ns que sublinhamos.) Oiro enterrado e perdido, impedido de fulgurar no cimo de uma haste. Oiro contaminado por uma morte que cresce. Neste romance, e desde logo no seu ttulo, parece tratar-se de uma tenso de smbolos, de elementos da imaginao material. Fogo e gua, como diz Eduarda Dionsio, do mel s cinzas, mel e tabaco, como mostra Maria Alzira Seixo; abelha e gua, mel e chuva, gua desdobrando-se em chuva e gua ardente, fonte e rio, mar e poo, como o anotaram Maria Alzira Seixo e Carlos Reis. Mas estes smbolos multiplicam os seus valores, opem-se mas tambm se interpenetram; cada um dos plos pode ser negativo ou positivo, de acordo com as representaes em que aparece, de acordo com os momentos do texto ou com as personagens atravs de quem surge. Repare-se um pouco no plo em que se renem o fogo, o oiro, o mel. O fogo da lareira deforma o rosto das personagens mas, assim fazendo, revela a sua verdade, aos olhos do Dr. Neto (Cap. XXXIV). Esse fogo da lareira junto da qual trs pares se renem no os une contudo. A convivialidade vazia ou esvaziada, simples dormncia dos conflitos. Entretanto, o fogo invisvel dos lares da aldeia, de onde sai fumo, parece indicar a possibilidade dessa convivialidade (Cap. XVII), por contraste com a viso de lvaro. O fogo une-se gua, na gua de fogo; o brande, que lvaro bebe, conforta-o, proporciona-lhe a sonolncia que atenua o dilaceramento, mas causa de humilhao e transforma-se em vinagre (Caps. XI, XII e XIII). O fogo une-se tambm gua e ao ar (ao vento), na tempestade, e ento forma o coro da destruio (Caps. XXII a XXIV). O fogo, enquanto oiro das folhas, une-se com a terra, mas nisso decompe-se, com a terra e a gua, forma lama. Isso poderia figurar um

11 hmus, terra gensica, palpitao de uma germinao, mas para lvaro s apresenta sinais de destruio e da decomposio mortais: pela aldeia floria o rumor humano, de mistura com o fumo dos lares e o cheiro dos currais abertos. O dia chegava por fim. Olhando para tudo, entrevia apenas no palpitar da terra a intimidade decomposta, os sinais da destruio. (Cap. XVII.) Assim, o valor das metamorfoses materiais marcado pela apercepo subjetiva (que social). Aquilo que poderia ser transformao gensica (dia que chega) para lvaro ameaa de destruio, anteviso da morte: do corpo apodrecendo na terra. Mas o fogo tambm, no oiro, a imagem transfigurada do desejo: o oiro do cabelo ruivo de Jacinto para D. Maria dos Prazeres, ou ento o oiro bao da luz que d beleza a esta, aos olhos do marido (Caps. IV e VI). Mas o desejo por Jacinto fere D. Maria dos Prazeres, porque um fantasma do desejo insaciado e porque a humilha, desejo de senhora por cocheiro, fogo que acentua o gelo do quarto (cap. XIV). Assim o oiro de Jacinto belo mas terrvel para D. Maria dos Prazeres. Como a beleza desta, ao oiro bao da luz, chicoteando a mula, terrvel para o marido: de fato era bela, bela, quase terrvel (Cap. VI) imagem de beleza castradora. O fogo, o oiro do desejo, partilham-no Jacinto e Clara, envolvidos pelo calor do gado, no palheiro da natividade profana (Cap. XVI). Jacinto, o ruivo, Clara, a de luz no nome como no riso. Mas a esses ser imposta a morte; o oiro ser enterrado ou, mais propriamente, afogado. A mesma mltipla ambivalncia e metamorfose (natural e social) atinge os valores da gua. Contraste entre a gua de fogo que se transforma em vinagre e a gua fria que lvaro bebe de madrugada depois da bebedeira. Contraste com a gua da fonte na memria (na infncia gorgolejante e fresca, murmura, coada pelo bero do areal, no Cap. XVII) e com a gua de fonte que o riso de Clara no palheiro parece, aos ouvidos de lvaro (Cap. XVI). Com lvaro, como o sublinhou Carlos Reis, a fonte da infncia seca, quando necessria para lavar o sofrimento presente, transforma-se na lama onde afunda os passos. Com D. Maria dos Prazeres, a recordao da infncia (estado social pleno, e depois decado, na casa de Alva) tambm uma fonte, mas a sua gua, no caminho para o presente, turva-se irremediavelmente: primeiro, a fonte brotou tenuemente, muito ao longe, na infncia; depois, a gua mansa turvou-se ao longo do caminho, do tempo, com o lixo que lhe foram atirando das margens; agora cachoante, escura, desesperada. (Cap. IV.) Pelo contrrio, para Clara e Jacinto a fonte o lugar de encontro, no presente, para combinar o futuro: s Trindades, pega no cntaro e passa pela fonte. Temos de combinar o resto (Cap. XVI). Mas, no Cap. XXI, por interveno do outro tempo (o de lvaro e Maria dos Prazeres, atravs do oleiro), quando Clara se dirige ao encontro, a fonte vai transformar-se em lugar onde a morte vigia para se desencadear.

12 E nesse captulo, caminhando para o crime, a chuva fora-se tornando mais pesada a chuva engrossava pouco a pouco... a chuva, cada vez mais pesada). Mas a trovoada, a princpio, sente-a Marcelo, o oleiro cego no a sente. Cometido o crime, as guas (do mar) so destinadas a esconder o corpo: as guas l se encarregaro de lhe dar sumio (Cap. XXI). Mas, outras guas, as da chuva, junto com o vento e os relmpagos, dificultaro o caminho para o mar (Caps. XXII a XXIV). Depois de atirado o corpo s guas, ento, a tempestade afasta-se para o interior e a madrugada vai nascer (Cap. XXV). Em notaes brevssimas mas vibrantes, os elementos constituem o coro da tragdia, fazem vibrar um clmax. Reparemos ainda: o mar pode ser uma poderosa figura gensica, mas , aqui, lugar de morte e apagamento, de esquecimento ou anulao da (cons)cincia: o mar engolir o corpo do delito. Tambm para lvaro, o mar pode surgir como esse sono que suspende o sofrimento e figura a morte (e sem querer afogou-se num mar estonteante, de uma brancura incrvel. Adormeceu, no fim do Cap. XXVII). Mas nem esse sono para ele a paz e, no incio do captulo seguinte, esse mar transforma-se: sufocava numa gua densa, irrespirvel; no havia peixes, plantas, conchas, nada: apenas o deserto lquido, cada vez mais espesso, a transformar-se em gelo, em peso; cintilava, doa. Para lvaro, o fogo do inferno e o gelo do deserto coincidem. S que a morte, para lvaro, aparece, como no encontro com a mulher na noite da bebedeira (Cap. XIII), e dura, vivida suspensa. O mar fora j assim, na obra de Carlos de Oliveira, quando em Casa na Duna, se conta a morte de Hilrio, o filho: apressa o passo, transpe o porto. E nunca mais saber como a gua turva de que efeito se perdeu no mar. Uma dor fulgurante detm-no por segundos; e oscila, ajoelha, sem conscincia de nada. Aqui em Uma Abelha na Chuva, Jacinto e Clara morrem. lvaro no. Para ele a morte um fantasma onipresente, opresso prolongada. Duas outras figuras da gua se tornam finalmente figuraes da morte; o poo em que Clara se afoga (gua nos pulmes) e a chuva que arrasta e mata a abelha. Estas diferenas e mesmo contradio entre os valores das diversas figuras dos elementos, a sua distribuio por uma linha de fronteira que separa Clara e Jacinto do mundo dos senhores, e a contaminao do positivo pelo negativo, projeo do universo de lvaro e Maria dos Prazeres sobre o outro, mostram vrias coisas: que a imaginao da natureza tem uma funcionalidade narrativa, produzida pelo texto ao construir personagens e aes; que os valores dos elementos naturais so sobredeterminados pelo universo social que o romance reconstri e pelo drama das personagens desse universo.

13 Universo social (e histrico) e drama das personagens unem-se intimamente neste livro. So construes de uma topografia (marcao de um sistema de posies, governado por uma lgica implacvel), de uma mquina de acontecimentos. A tessitura do universo social e a conjuno e disjuno dos dramas so assim extremamente apertadas. A inscrio social das personagens no uma pura determinao exterior, mas uma componente da personagem enquanto figura, constitui uma determinante do seu drama. Por sua vez, a individualidade da personagem no a profundidade de uma psicologia discorrida e explicitada, mas uma configurao de ditos, aes e sinais de posio. Sem serem tteres ou tipos, as personagens so sobretudo relaes, papis dramticos e, como se ver, trgicos, numa grande economia de processos. Uma Abelha na Chuva uma espcie de tragdia, uma constelao de destinos trgicos. O tradutor francs do romance relata de uma conversa com Carlos de Oliveira: lembrei-me (ter dito o escritor) da tragdia grega, do destino, do fatum. Quis substituir ao fatum, as atuais condies econmicas e sociais, inexorveis. Os meus romances so como tragdias. Os protagonistas caminham para a sua perda, sem remdio... (Adrien Roig, Correspondncia e conversa com Carlos de Oliveira sobre Uma Abelha na Chuva, Vrtice, n. 450-1, p. 617.) A posio e a histria sociais das personagens so uma componente do seu drama. O que une lvaro e Maria dos Prazeres, Silvestre e a casa de Alva, uma troca social, um contrato que gera as impossibilidades vrias e a constante reverso da humilhao. Sangue por dinheiro esta frase ocorre por duas vezes, no Cap. IV, a duas pginas de distncia, primeiro, no discurso do narrador emergindo do discurso interior de D. Maria dos Prazeres, depois, ecoando no discurso dessa personagem. Ela , alm do mais, a perda (a decadncia) do estatuto aristocrtico da sua famlia e da sua infncia: o casamento a sua opresso; entre o nojo do marido e o desejo fantasmtico por Jacinto ou Leopoldino. A manuteno do poder (ela o senhor no afrontamento com os populares, no Cap. XXX) custa-lhe a represso do desejo, transforma-a num grito sempre reprimido (Caps. IV e XXIX). A represso que sofre e a represso que exerce so indissociveis. Algo de semelhante se passa com a personagem do marido. lvaro, o pequeno-burgus comerciante e proprietrio de terras, viu-se beneficirio da compra de sangue por dinheiro (foram os pais que contrataram o casamento), mas tal benefcio transforma-se no repdio do par, no inferno; assim como o exerccio do poder e o fantasma da misria (ameaa do pai na infncia) se mudam na oscilao entre o poder e a impotncia. No microcosmos social do romance, lvaro Silvestre e D. Maria dos Prazeres so os senhores, os que dominam, mas entre eles reproduz-se, em pelo menos dois planos, a relao assente na distino e na dominao de classe: lvaro, o Silvestre (o rural), no deixa de ser o cocheiro que ascendeu (ele prprio assim se assume no Cap. XIII, e a mulher assimila-o ao cocheiro que

14 seu pai chicoteou no passado); D. Maria dos Prazeres, a aristocrata que decaiu e que s no compromisso humilhante (Alva conspurcada) pode ainda exercer poder. Dominada, pelo contrato e a queda, ela domina o marido, reprimindo o seu desejo; mas a mesma represso reverte sobre ela. Dominante-dominado, lvaro no pode o que quer e pode o que no chega a querer. Assim, contraditrio embora, o mundo deles domina o dos outros. O inferno interior ao mundo dos senhores projeta o destino destruidor sobre o mundo dos servos. Maria Alzira Seixo notou agudamente a diferena entre o tipo de acontecimentos na histria dos senhores e na histria dos servos: nesta que tudo se desfecha em assassinato, suicdio e priso. Na outra, o conflito, latente e constante, permanece. O que importante reconhecer que a lei do domnio que rege este pequeno universo social, clivado ou dividido, multiplica a opresso nas suas vrias fraes e projeta-a, em diferentes formas, sobre todas as personagens. No corao desta reproduo da opresso est o lugar feito ao cocheiro: objetualizao e instrumentalizao de quem sujeito. Esta objetivao repressiva reverte sobre o seu agente, cresce e multiplica-se como um cancro, um destino. O poder, ento, comporta sempre uma componente de impotncia: lvaro pode desencadear a destruio de Jacinto e de Clara, como de outra forma de Antnio e Marcelo, mas no pode [ter] o amor da mulher nem o domnio de si prprio; D. Maria dos Prazeres pode dominar o marido, conter os populares, mas no pode libertar-se do marido, nem do grito que a oprime, no pode o seu desejo. Mesmo o Dr. Neto, lateral relao de poder fundamental, pode interpretar o real, mas no pode fazer que Clara no morra. Trao essencial deste universo o de que ele multiplica a opresso, infecundo e reprime a fecundidade. Tem sido notado e seria impossvel no o notar: neste romance, onde h quatro pares ou casais, trs deles so infecundos, e o nico que o no, destrudo. lvaro e Maria dos Prazeres no tm filhos: a condenao simblica da m aliana; o padre Abel e D. violante no tm filhos; o Dr. Neto e D. Cludia tambm os no tm: ela porque frgil e teme a natureza, ele porque receia a gerao do filho, receia uma descendncia degenerada esto condenados infecundidade. S Jacinto e Clara geram: ele o oiro (o ruivo) e ela, a abelha fecunda (o mel). Mas ambos e o filho-por-nascer morrem. Nuno Jdice, num texto inteligente e que anota estes aspectos, v na morte de Jacinto a atualizao da morte do zango pela fmea depois de \ fecundada e, na morte desta, a exorcizao do fantasma castrador da mulher-amazona, do feminino. \ uma tal leitura pode

15 dar a ler o ponto de vista de \ lvaro, ou da relao lvaroMaria dos Prazeres, mas projeta um simbolismo j feito sobre aquele que o \ texto constri, e torna-se uma leitura unilateral. Porque \ Clara um feminino diferente e contraditrio em relao a D. Maria dos Prazeres e nada a marca no texto como mulher-amazona. Por outro lado, Jacinto no morre apenas por ter fecundado Clara (aceitemos que tambm por isso morre), mas por um conjunto de razes, de relaes. Morre por ser o objeto de desejo de D. Maria dos Prazeres e por ter revelado (aos ouvidos de lvaro) o desejo da mulher do qual o marido excludo. Morre por ter falado dos senhores: lvaro mostra isso por duas vezes ao contar mulher dizendo a falarem de ti e riam-se de ns, da nossa vida (Cap. XXIX). Se lvaro determina, pela denncia ao oleiro, a morte de Jacinto, a mulher sanciona-a por duas vezes e agora, mesmo depois de morto, odeio esse maldito ruivo, talvez te sirva de consolo, odeio-o por ter dado conta do que era s comigo, to ntimo, que o esconderia de mim prpria se pudesse (Cap. XXIX) e tanta filosofia por causa dum cocheiro, doutor (Cap. XXXIV). Neste sentido, Jacinto morre porque se deu conta, porque soube o segredo e porque falou e riu. Morre porque, destinado a objeto, um intruso como sujeito no mundo de lvaro e D. Maria dos Prazeres. Jacinto morre ainda, porque se intromete no sonho de ascenso do oleiro. Por sua vez, a morte de Clara rene dois movimentos: uma morte decidida por paixo, e tambm uma morte simblica, Clara morre por ser fecunda. A sua morte assim o momento extremo da tragdia, morte a que no assistimos mas que se desdobra em duas: a de Clara no poo, a da abelha na chuva morte da fecundidade, que diz a extremidade da violncia que rege este universo. Mecanismo pelo qual a morte adiada dos senhores se reproduz na morte fsica da serva fecunda. Em que a infecundidade oprime a fecundidade. O tempo dos senhores , na narrativa, cclico, pontuado pela convivialidade vazia dos seres e pelas crises repetidas entre lvaro e a Mulher. O ciclo a repetio da conjuno do deserto e do grito reprimido. Dominao e sujeio apenas se invertem. O que se reproduz o deserto e a humilhao, a represso e o dilaceramento. O tempo dos dominados progride, mas progride para a aniquilao, determinada pela projeo do tempo cclico opressivo sobre essa progresso. Pela relao social de domnio, o tempo cclico produz apenas a progresso para a morte ou a priso (enclausuramento e priso). O apodrecimento do enxame dos Silvestres na sua colmeia pintada, como observa o Dr. Neto, projeta (maquina) a violncia destruidora da colmeia fecunda. E entretanto no se trata de esquematismo mecanicista nem de maniquesmo ideolgico ou moral. H evidentemente uma paixo no texto e na sua narrao: a condenao de um microcosmos social que a si prprio se condena por assentar na dominao infecunda. Mas essa

16 dominao, sublinhe-se, sofrem-na todas as personagens nos seus diferentes dramas. Se a tragdia de Clara e de Jacinto conduz morte fsica, se a de Antnio e Marcelo conduz priso e ao falhano dos seus desejos, a tragdia de lvaro e de Maria dos Prazeres a do apodrecimento prolongado, a da repetio cclica da reverso do poder em impotncia, da represso do outro em represso sobre si prprio, do enclausuramento desesperado. Todos sofrem pela sua posio no microcosmos regido pela lgica da violncia destrutiva e infecunda. Para melhor o compreendermos, convir tentar perceber quem fala neste texto, quem conta e como conta, que voz se tece neste romance como narrador. Trata-se de uma voz complexa e essa complexidade est ligada s vrias outras que temos vindo a notar. A complexidade da voz a da construo deste universo (entenda-se construo, como a forma de construir o universo e este enquanto construdo). Maria Alzira Seixo notou aquilo que designou como a ambiguidade e indefinio que caracterizam o narrador ao longo do texto. Liga-a leitura do embaciamento da escrita e limpidez da vidraa que mostra. No Cap. XVIII, contando-se lvaro, no escritrio da sua mercearia, folheando um livro de escriturao, disse: fogachos breves que o hlito soprava. Como se respirasse de encontro a uma vidraa. A escrita embaciada. Trata-se de tomar estas frases no s como uma situao narrada, mas tambm como uma metfora deste livro que estamos a ler. Vejamos: a escrita enquanto vidraa por onde se v um mundo ntida: isso pode representar o carter rigoroso, depurado deste livro. Mas uma respirao, embaciando-a, d-lhe uma espessura que faz ver, agora, j no o mundo para l da escrita, mas a prpria escrita. O embaciamento diz que a escrita no uma pura transparncia. E diz que a escrita uma respirao. E essa respirao que embacia. Tomaremos, aqui, a respirao como a vibrao moral da voz que conta. Esta voz, como vrios leitores o notaram, nomeadamente Carlos Reis, combina trs processos ou tcnicas de manifestao: por um lado parece estar de fora, olhando o evoluir de personagens, conhecendo apenas aquilo que v. Assim por exemplo, no primeiro captulo, nem sequer nos diz o nome da personagem que introduz: certo viajante, um homem gordo.... No segundo captulo, trata-se a princpio de o visitante... o outro e s lhe sabemos o nome, porque est escrito no incio do documento que ele entrega ao diretor do jornal. Mas, em outros momentos, o narrador parece conhecer tudo, inclusivamente o discurso interior (o que pensam as personagens), nesses momentos parece, no limite, apagar-se para deixar que as personagens falem o seu pensamento. Finalmente, intromete-se em cenas, em dilogos ou pensamentos ntimos das personagens e fala-lhes, comenta as suas decises. O exemplo mais ostensivo deste processo encontra-se no Cap. XIII: Mas no tenhas medo, Silvestre, podes

17 insultar-me vontade. Os mortos no empunham chicotes. [...] no os retratos dos nobres Pessoas pendem solenes nas paredes do escritrio. Olhe para eles, D. Maria dos Prazeres. Os mortos esto dentro desta sala, com um chicote implacvel. O orgulho de velhos senhores, as carrancas severas, o p das calendas, as tretas do costume. O seu marido tem de destruir os mortos. De tentar pelo menos. Que outra coisa pode ele fazer? Deixe-o experimentar. Ou eu me engano muito ou vai sair-se mal. Ora repare. Tal arrojo de um narrador uma sua exibio complexa. Simula a oniscincia e a distncia em relao s personagens. Discorda de uma para a seguir ironizar sobre a outra. Mas a distncia, a discordncia e a prpria ironia, so o gesto visvel que esconde uma participao. A combinao dos diferentes gestos do narrador, apagando-se e exibindo-se, marcando-se na forma como diz e conta, distante e ntimo da sua voz como sendo, indissociavelmente, dico de uma condenao trgica e compaixo. A distncia exprime ento o movimento da escrita sobre um mundo em que se est includo e do qual a separao s se pode no ato de o contar, de o refazer na compaixo, apaixonadamente. Mas numa paixo depurada e rigorosa, para melhor se ouvir no silncio:...um rigor que simula a reao qumica ou um pequeno sistema planetrio. Todo esse rigor, toda essa frieza, partiram assim do real, do quotidiano. Frieza aparente, julgo eu. O livro, qualquer livro uma proposta feita sensibilidade, inteligncia do leitor: so elas que em ltima instncia o escrevem. Quanto mais depurada for a proposta (dentro de certos limites, claro est), maior a sua margem de silncio, maior a sua inesperada carga explosiva. A proposta, a pequena bomba de relgio, entregue ao leitor. Se a exploso se der ouve-se melhor no silncio.

(Carlos de Oliveira, em O Aprendiz de Feiticeiro, 3 ed., p. 205.)

18

Uma Abelha na ChuvaIPelas cinco horas duma tarde invernosa de outubro, certo viajante entrou em Corgos, a p, depois da rdua jornada que o trouxera da aldeia do Montouro, por maus caminhos, ao pavimento calcetado e seguro da vila: um homem gordo, baixo, de passo molengo; samarra com gola de raposa; chapu escuro, de aba larga, ao velho uso; a camisa apertada, sem gravata, no desfazia no esmero geral visvel em tudo, das mos limpas barba bem escanhoada; verdade que as botas de meio cano vinham de todo enlameadas, mas via-se que no era hbito do viajante andar por barrocais; preocupava-o a terria, batia os ps com impacincia no empedrado. Tinha o seu qu de invulgar: o peso do tronco rolio arqueava-lhe as pernas, faziao bambolear como os patos: dava a impresso de aluir a cada passo. A respirao alterosa dificultava-lhe a marcha. Mesmo assim, galgara duas lguas de barrancos, lama, invernia. Grave assunto o trouxera decerto, penando nos atalhos gandareses, por aquele tempo desabrido. Havia sobre a vila, ao redor de todo o horizonte, um halo de luz branca que parecia o rebordo duma grande concha escurecendo gradualmente para o centro at se condensar num cncavo alto e tempestuoso. Ameaava chover. O vento ia descoalhando as nuvens e abria caminho grossa chuvada que a tarde esperava. O homem cruzou a praa devagar, entrou no caf Atlntico e sacudiu as botas com cuidado no capacho de arame. Sentou-se, pediu um brandy e engoliu-o dum trago. Na sua lentido natural era a nica coisa que fazia com alguma pressa. Encostava o clice boca bem aberta, imobilizava-o um momento e de seguida, num golpe brusco, atirava o brandy garganta. Repetiu a operao segunda e terceira vez. Pagou e saiu. Atravessou de novo a praa, batendo pausadamente o taco das botas, deixando cair os ltimos pingos de lama, e dirigiu-se redao da comarca de Corgos, sempre no mesmo passo oscilante e pesado, como se o levasse a custo o vento que arrastava no cho as folhas quase podres dos pltanos.

IIO escritrio do Medeiros, diretor da comarca, era escuro e desconfortvel; uma vulgar secretria de pinho, dois ou trs cadeires com almofadas de palha, um quebra-luz de missanga na lmpada do teto e montes de jornais aos cantos; cheirava a p como num caminho de estio. Sente-se, faz favor.

19 O visitante sentou-se e, abrindo a carteira, tirou uma folha de papel cuidadosamente dobrada: Para sair no prximo nmero do jornal, se puder ser. Pago o que for preciso. O Medeiros desdobrou o papel, desfez-lhe os vincos um a um com a unha enorme do polegar, a unha da viola, e ps-se a ler. Da a nada, erguia os olhos assombrado: E quer o senhor que eu lhe estampe uma coisa destas na comarca? O outro baixou o rosto inexpressivo: Exatamente. Afastou a papelada da secretria para os lados como se lhe faltasse o ar, afeioou melhor os culos ao nariz afilado, e na esperana de ter confundido as coisas comeou a ler o documento outra vez. Mas no. Ali estava de fato exarada a tinta verde, numa caligrafia de mo pouco segura, a confisso pasmosa:Eu, lvaro Rodrigues Silvestre, comerciante e lavrador no Montouro, Freguesia de S. Caetano, concelho de Corgos, juro por minha honra que tenho passado a vida a roubar os homens na terra e a Deus no cu, porque at quando fui mordomo da senhora do Montouro sobrou um milho das esmolas dos festeiros que despejei nas minhas tulhas. Para alguma salvaguarda juro tambm que foi a instigaes de D. Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho Silvestre, minha mulher, que andei de roubo em roubo, ao balco, nas feiras, na soldada dos trabalhadores e na legtima de meu irmo Leopoldino, de quem sou procurador, vendendo-lhe os pinhais sem conhecimento do prprio, e agora a vem ele de frica para minha vergonha, que no lhe posso dar contas fiis. A remisso comea por esta confisso ao mundo. Pelo Padre, pelo Filho, pelo Esprito Santo, seja eu perdoado e por quem mais mo puder fazer.

Saiu da segunda leitura como da primeira. De boca aberta. Que um sujeito arredondasse um tanto os preos de balco, percebia; que descesse a extorquir uns alqueires de milho aos sobejos dum santo, percebia tambm; que enfim, dando o real valor a uma procurao, vendesse meia dzia de pinhais alheios, porque que no havia de perceber se as tentaes, com mil demnios, so tentaes para isso mesmo? Mas l vir confess-lo em pblico, na primeira pgina dum jornal, francamente, entender semelhante coisa era para o Medeiros como teimar com a cabea numa aresta de granito. Encarou de novo o rosto gordo do lavrador do Montouro. Feies paradas, sonolentas. Havia porm um ar de seriedade naqueles olhos pouco geis, na linha branda da boca, no beio levemente cado, na cinza das tmporas, que impedia o jornalista de concluir no ntimo, decisivamente: um imbecil; e contudo seria difcil avaliar o caso de outro ngulo; claro que

20 no ia imprimir a declarao sem mais nem menos: a coisa tem a sua gravidade, envolve terceiros, o homem capaz de ser de fato parvo e pode a famlia aparecer-me depois com exigncias, desmentidos, trapalhadas. Calculo que tenciona fazer um ato pblico de contrio. Tenciono. Na primeira pgina, letra bastante gorda, se for possvel. E pode saber-se por qu? Ajeitou-se no cadeiro. Tinha pousado o chapu nos joelhos e afagava-o com os dedos brancos, grossos: preciso ter em dia as contas com Deus e com os homens. Sobretudo com Deus. Nem mais. E preciso ter isso em ordem. E depois? Depois o Diabo andar com estas coisas c dentro. A pesar, a moer. O diretor da comarca tirou os culos, enfiou-os lentamente no estojo de prata: Eu, no seu lugar, sabe o que fazia? Procurava um padre e desabafava. A confisso... Estou confessado, mas no chega. Pensei bastante no assunto e o padre Abel no chega. Em todo o caso, a confisso um grande alvio, sem escndalos, sem nada. Aninhou as mos de cera na copa do chapu: Deus escreve direito por linhas tortas. Talvez seja o escndalo que Ele quer. E acrescentou, quase sem transio: Podemos assentar no seguinte: prximo nmero da comarca, primeira pgina, letra redonda dos anncios. Quanto me leva por isso? O jornalista no desistia: E um arranjo em famlia? Indenizar o seu irmo, por exemplo. Depois, uma palavra do padre Abel para acertar as contas com a santa. E tirar da o sentido. Dos lbios de lvaro Silvestre caiu sobre a insistncia do outro a mesma pergunta de h momentos: Quanto me leva afinal? As palavras rolaram ntidas, desamparadas. O Medeiros sentiu-lhes o peso e admitiu que estava a cuspir contra o vento, mas disse ainda, por dizer: E a sua mulher, que pensa ela disto?

21 Soergueu-se no cadeiro. A face imvel, animou-lha um jogo complicado de tiques, rugas, olhadelas furtivas. Parecia assustado. No entanto, o Medeiros viu-o recostar-se outra vez com o ar aliviado de quem conseguiu afastar a sombra de uma ideia desagradvel: Deus me livre que ela soubesse disto. H-de sab-lo quando o jornal sair. Encolheu os ombros e sorriu pela primeira vez: Nessa altura -me indiferente, claro. Como dizia o outro: burro morto, cevada ao rabo. Teve ainda um breve sobressalto: Se ela o soubesse agora e me impedisse a confisso que era um entalano. Mas apressou-se a bater o n dos dedos na secretria do Medeiros: o Diabo seja surdo. Surdo e cego.

IIIAntes da chuvada estalar no pavimento, entrou pela vila a toda a brida uma charrete de rodado silencioso; a gua castanha espumava entre os varais; o cocheiro, alto e ruivo, fez estacar o animal em frente do caf Atlntico e saltou da boleia para receber as ordens da dona da charrete, uma senhora plida, de meia idade, agasalhada num xaile de l e com a manta de viagem enrolada nas pernas: Pergunta no caf se o viram. O ruivo voltou da a nada com indicaes precisas: Esteve no caf e h coisa de um quarto de hora foi para o jornal. Para o jornal? Sim, senhora. Vamos l ao jornal, disse ela brevemente numa ponta de rouquido. A charrete rodeou a praa, parou diante da comarca. A senhora sacudiu a manta de viagem e o cocheiro ajudou-a a apear-se. Leva a gua a beber. No te demores. Enquanto o ruivo tornava a subir para a boleia, empurrou ela a porta do jornal; rompeu pela saleta de espera, indagou do empregado do Medeiros se tinha estado ali um sujeito gordo, baixo, de samarra; e como o rapaz lhe apontasse o escritrio, entrou. O Medeiros levantou-se, um tanto surpreendido. lvaro Silvestre rodou o pescoo macio penosamente, mas reconhecendo-a precipitou-se com uma energia desconhecida sobre a secretria do jornalista, agarrou o papel em que escrevera a confisso, amarfanhou-o com a

22 rapidez que pde e sumiu-o no bolso da samarra. A sucesso brusca de movimentos atarantouo, o chapu rolou-lhe para o cho, hesitou entre apanh-lo e dizer qualquer coisa, as pernas tropearam-lhe uma na outra e recaiu no cadeiro, desamparado. A mulher sorriu: Incomodei-os ao que vejo. No me apresentas, lvaro? Mas o marido era uma concha de silncio pasmado e ela prpria se apresentou: Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho... Silvestre. Destacou com ironia o sobrenome do marido. O Medeiros gaguejou. Mui... muito... prazer. E indicou-lhe um cadeiro. ento o senhor quem dirige a comarca? Examinava os mveis pobres do escritrio. Continuava a sorrir. O vestido de veludo escuro afagava-lhe o pescoo numa gargantilha rendada e branca, como um leve colar de espuma; as mangas enfunadas vinham morrer aos pulsos na mesma alvura breve e ntida, donde a mo nervosa emergia longamente. Um pouco antiquado tudo aquilo, mas ficava-lhe bem, adelgaando-a; e havia um toque excitante no contraste que faziam o vestido sombrio e a palidez das feies. Malares salientes, os cabelos negros, aconchegados num novelo espesso e entranados sobre a nuca; a boca de lbios tmidos; os olhos grandes, vivos, quase ansiosos; cado pelos ombros, o xaile de l clara, cinza-prola, punha no conjunto uma nota de intimidade inesperada. Todavia qualquer coisa naquela mulher esplndida gelava o jornalista: o franzir irnico da boca, a avidez do olhar, o tom escarninho da voz gelada?; no sabia ao certo e avaliava-a com prudncia: uma mulher de mo cheia, sim senhor, mas dura de roer. E em voz alta, um pouco mais sereno: Joo Medeiros, s ordens de V. Ex.. Entretanto D. Maria dos Prazeres sentara-se e apontava as botas enlameadas do marido: - As tuas botas, homem! Fez um esforo baldado para esconder os ps debaixo do cadeiro. E j ela se espantava outra vez: Nem sequer trouxeste gravata! Levou a mo ao peitilho da camisa, mas suspendeu a meio o gesto de temor quase infantil; e ficou com a mo no ar, hesitante, vexado. Imagine o senhor que veio do Montouro a p com este tempo. Com charrete em casa, cavalos e cocheiro. Uma criana de cinquenta anos. No sei o que o trouxe aqui. Seja l o que

23 for. O certo que anda doente, com ideias estranhas, e tem de se lhe dar o devido desconto. O que ele diz no nenhuma Bblia, compreende? Baixou-se para apanhar o chapu que lhe cara chegada da mulher e gemeu, humilhado: Basta, Maria. O mdico aconselhou-lhe o abandono dos negcios, das terras prosseguiu ela imperturbvel. Repouso e distraes. Pois o repouso, as distraes, foram hoje duas lguas de lama, a corta-mato, na iminncia do temporal. L fora, a chuvada despenhou-se por fim. Sentiram-na retinir nas vidraas. O jornalista aproveitou para mudar de conversa: Forte aguaceiro. Estala. lvaro Silvestre anuiu logo: Boa btega, sim senhor. S ela preferiu continuar a bater no mesmo prego: A boa btega que te podia ter apanhado no caminho. J pensaste nisso? Fechou os olhos, de puro desalento: cala-te, Maria, cala-te. O Medeiros levantou-se, foi janela espreitar as cordas de gua fumegante: mas que dois.

IVQuando estiou, partiram. Anoitecera j de todo. O ruivo tinha acendido a lanterna da charrete e o claro batia na lombeira da gua lustrosa de suor e chuva. O perfil do cocheiro arrancava-o da sombra da luz amarelada: o queixo espesso, o nariz correto, a fronte no muito ampla mas firme. De encontro noite, parecia uma moeda de oiro. O moo ia hirto, de olhos postos no caminho escalavrado que a lanterna abria a custo, e a tenso (a ateno) dava-lhe um relevo enrgico aos tendes do pescoo que o bluso de bombazina deixava a descoberto. Ela fitava-o e no resistia tentao de um paralelo com o homem mole e silencioso que levava ao lado. A charrete rompia o barrocal, embatia no talhe das covas levantando chapadas de gua enlameada. parecia desmantelar-se. A cada solavanco, lvaro Silvestre escorregava sobre a mulher que sentia no flanco o peso desagradvel; esquivava-se presso, encolhida ao canto da bancada; e olhava para o homem de oiro, na boleia, sob a morrinha. Primeiro, a fonte brotou tenuamente, muito ao longe, na infncia; depois, a gua mansa turvou-se ao longo do caminho, do tempo, com o lixo que lhe foram atirando das margens; e agora cachoante, escura, desesperada. A runa entrou na casa de Alva: dinheiro, terras, mveis, levados pela voragem; lustres arrancados dos tetos (comeou a seroar-se luz de pobres lamparinas); velhas arcas de madeira

24 olorosa e pesadas de belos linhos, reposteiros, cadeirinhas graciosas forradas a damasco, armrios de talha, guarda-loias de cristais finssimos, camas torneadas, deu o sumio em tudo; desapareceram os quadros das paredes, a prata dos talheres; a dona da casa arrancou as jias do colo, os anis dos dedos; venderam-se espingardas de caa, galgos, cavalos, traquitanas, relquias de nebulosos tempos como aquele punhal antigo cravejado de diamantes; e quando ela fez dezoito anos, o pai fidalgo, que era Pessoa, Alva e Sancho, descendente de um Coudel-Mor, de um guerreiro das linhas de Elvas e primo do bispo missionrio de Cochim, negociou o casamento da filha com os Silvestres do Montouro, lavradores e comerciantes: sangue por dinheiro (a franqueza dum homem sem outra alternativa); assim seja, concordou o pai de lvaro Silvestre, compra-se tanta coisa, compre-se tambm a fidalguia. A charrete bateu rudemente num barranco e parou. Ch, Moira, ch, linda! Gritava o ruivo a encurtar as rdeas, a estimular o animal. Mas nada. lvaro Silvestre tentou erguer-se do fundo do assento e recaiu pesadamente, sem uma palavra. Ela, com a garganta tocada de humidade, perguntou a custo, muito rouca: Ento, Jacinto? O moo saltou da boleia, admitindo: S se o eixo partiu. Mergulhou debaixo da charrete: Qual partiu! o que se chama ao. Ps-se de p e metendo o ombro traseira do carro deu uma ajuda gua. L galgaram por fim o socalco barrento. Com o breve desequilbrio das coisas que lhe margeavam o pensamento, o fio das recordaes quebrou-se; a marcha suspensa da charrete, o esforo intil do marido para se levantar, o silncio cortado pelo dilogo com o cocheiro, o poisar mais audvel da chuva mida no oleado da capota, marearam a nitidez das velhas imagens como num lago que estremece; apesar disso a viagem continuou, agora e no passado: no era possvel resistir a um casamento como o seu seno enquistando numa casca de hbito o gosto de viver, as emoes, os desejos, o amor, ou ento... lvaro Silvestre tornou a resvalar-lhe para cima, ela interps o cotovelo entre os dois e cravou os olhos no cocheiro, inteirio como um bloco, atento noite e estrada: ou ento aquilo, homem devia-o ser aquele pedao de pedra doirada que a treva contornava, luminoso e rude, homens alis eram aos pontaps, mas tinha-lhe calhado em sorte o gebo que ali ia abatido no banco da charrete; sangue por dinheiro; as casas de fidalgos na penria amparavam-se a lavradores boais e ricos, a slidos comerciantes, retemperavam o braso no suor da boa burguesia; e os Alvas no fugiam regra; quando soou a hora da misria vieram entregar a menina aos lavradores do Montouro; um desgosto de famlia, no ser o casamento em Alva, no palacete, que tinha capela privativa, porm haveria que refazer para o

25 jantar da boda todo o mobilirio das grandes salas que a usura despira e o velho Silvestre foi de entender que no, que nem tanto: l sangue de Pessoas e Sanchos a correr nas veias dos meus netos muita honra, mas nunca a troco da runa. O fidalgo achou-o de pedra e cal na deciso e desistiu. Fez-se o casamento no Montouro. Conseguia recordar ainda com uma agudeza incrvel a onda de sentimentos contraditrios que a arrastara vagarosamente ao altar, a amarga obedincia aos pais e o desejo de os ajudar, a curiosidade e o medo, o medo e um pouco de esperana; avanava pelo brao do pai, toda de branco, entre um murmrio de rgo e vozes sussurradas; sorria, mas dentro de si ia nascendo um grito, um grito sempre reprimido; a chuva caa, caa com certeza, no passado e agora.

VO ruivo voltou-se para trs: Ou eu me engano muito ou a gua manqueja. Desta vez, lvaro Silvestre pde articular: Vai l andando, mesmo assim. Ouviu as palavras ensonadas do marido e estremeceu. Suspensa por um momento, a gua da memria l recomeou a correr. Meu Deus, este homem viscoso agarrado s saias, at quando? A lapa no rochedo, a lapa dbia, o homem cobarde que nem coragem tem de ser ganancioso. Faz tudo para saciar a cobia, o justo e o injusto, mas depois cobre-lhe a alma a lepra do remorso e corre igreja, ao confessionrio, s penitncias. Ri-o o pecado como ri o musgo a concha da lapa. Leva noites de insnia a rezar pelos cantos, temeroso do inferno e do fogo sem fim. vezes, por nada. Por descontar na jorna a preguia dum campons que chega tarde ao trabalho. Outras, por coisas maiores mas que um homem a srio tem o dever de encarar com a espinha direita. A venda dos pinhais de Leopoldino, por exemplo; o irmo valdevinos que depois da morte do velho Silvestre derretera quase toda a sua herana em negociatas sem ponta por onde lhe pegassem ou em estrdias de aldeia fora de muito vinho tinto. Carrasco. abalara para a frica arruinado e anos depois caiu sobre ele o silncio dos mortos. Nem novas nem mandados. Julgaram-no arrumado numa dessas rixas de taberna que lhe iam a matar ao gnio aventureiro e habituaram-se ideia da sua morte; habituaram-se, como quem diz, porque eu nunca me habituei. Mas enfim. A madeira comeara a subir vertiginosamente com a guerra e lvaro Silvestre, que o irmo nomeara procurador, lembrou-se da fortuna remanescente do outro, meia dzia de pinhais velhos e encorpados que ganhavam de sbito um valor considervel: que dizes tu,

26 Maria, vendem-se os pinhais?; talvez ele no tenha morrido; ora, est morto e remorto; sabe-se l; mete-se o dinheiro da madeira na loja e o negcio cresce, vendem-se ou no?; como entenderes, se ele morreu e s tu o herdeiro que escrpulos te prendem? Vendeu, mas passados tempos, faz hoje precisamente quinze dias, chegavam ao Montouro notcias do vagabundo, uma carta do seu prprio punho anunciando o regresso, nem de propsito, volta o estoira-vergas, riqussimo, diz ele, descobriu umas minas fabulosas, no explica onde nem de qu, mas coisa para comprar a Gndara em peso, sem esquecer o belo femeao de Corgos. Sempre o mesmo, mulheres, tesoiros, aventuras. A leitura da carta avivoulhe na memria o retrato de Leopoldino, mais novo do que lvaro, o avesso do irmo, alto, magro, a pele enegrecida torreira das caadas, e ali se pusera ela a recordar com um sorriso de complacncia a vida buliosa do cunhado, de feira em arraial, de zaragata em arruaa, de gorra com uma camponesa hoje ou com a filha dum armazenista de Corgos amanh, ouo-o ainda, dum atrevimento a roar pela grosseria, quando eu e o lvaro chegamos da viagem de npcias: bela coisa, mano, v-se pela cara. Perdoava-lhe agora, perturbada pela confusa alegria que a notcia do regresso inesperado lhe dera. Com o marido foi diferente. Mal acabou a carta, ps-se a vaguear no escritrio, a tropear nos mveis. Voltava-lhe o remorso, cclico como as sezes: e os pinhais, Senhor, que contas lhe darei eu dos pinhais? Como era de uso, correu ao padre Abel a desabafar e desabafou com tal veemncia que o padre, dessa vez, procurou D. Maria dos Prazeres e avisou-a. Foi ressalvando o segredo da confisso: palavras a um sacerdote, no confessionrio, so palavras ao ouvido de um morto, quer dizer, vai-se a lembrana delas... l encontrou por fim maneira de levantar a lebre; emaranhou-se a lebre ao princpio numas cautelas sibilinas que o padre punha no deslindar da meada, mas acabou por correr em campo aberto, e o caso era que lvaro Silvestre comeava a prometer graves dissabores: declaraes pblicas inconvenientes, D. Prazeres, como j as fez ao Antunes antes de me procurar para a confisso, claro que chamei o sacristo e lhe pedi silncio, mas o deslize pode repetir-se onde a minha influncia no chegue; declaraes ao Antunes, padre Abel?; exatamente, ao Antunes: que trazia a conscincia cheia de roubos at aos gorgomilos... o Antunes limitou-se a achar o dito engraadssimo, mas lanada a semente a seara vai crescendo; passou a mo devagar pela testa e permitiu-se um alvitre: a altura de o entregar ao Dr. Neto... talvez a telha seja passageira, em todo o caso nunca fiando, Dr. Neto com ele; o Dr. Neto declarou: cansao, esgotamento nervoso, a carroa fora dos eixos, enfim, a chave desta fechadura o repouso, quanto mais repouso melhor (falava por falar; conhecia bem o inferno que era a vida dos Silvestres e no inferno repouso difcil; receitou brometos, por descargo de conscincia).

27 Ao sero, ela comunicou o diagnstico ao padre Abel, que ponderou: deu-lhe para a confidncia e o melhor agora impedir-lhe os desabafos indiscretos; olho nele, D. Prazeres. Se lhe ficava de olho! No, que os desabafos indiscretos comprometem-me tambm a mim, mulher dum louco que anda a penitenciar-se pelos cantos, a varrer diante de A e B (do sacristo Antunes!) o lixo que lhe enche a conscincia. Ainda bem que a misericrdia de Deus j te levou, D. Fernando Egas Pessoa de Alva Sancho, meu pai, ainda bem ou acabarias por me ver discutida entre jornaleiros e almocreves: l vai a mulher do Silvestre ladro, aquilo cada um ao que mais pode, disse-mo ele a mim. Comeou a vigi-lo, mas naquela tarde deixara-o estendido no meiple do escritrio, para um salto cozinha, experimentar uma receita espanhola de almndegas, e ao voltar, que dele? Correu a casa toda: lvaro, lvaro. Mandou procur-lo igreja, loja. Nada. Desceu ao ptio: aparelha a charrete, Jacinto. E partiram. Foi um castigo para colher informaes sobre o caminho do fugitivo. O ruivo interrogava quem ia encontrando e por fim, j na estrada da vila, alcanaram notcia dele. Ali vinham agora de regresso, com a gua a tentear vagarosamente o lamaal: e parece que as ferraduras do bicho mergulham no meu prprio passado.

VIArrastava-se a viagem. A morrinha parara mas havia mais frio. Traou o xaile de l sobre a garganta, sempre aquilo, colhia-a um golpe de humidade e a voz, rouca de natureza, tornava-se inaudvel. S o calor lhe permitiria falar outra vez desafogadamente. Passou de memria a sala do Montouro, com pinhas acesas e desfeitas no tijolo do lar, as conversas vagarosas, o grande candeeiro de petrleo com as senhoras debruadas sobre as malhas, e ela que em geral se azedava no pasmo daquelas noites desejava-o agora de todo o corao, quem me dera estendida na cadeira de verga, ao brando crepitar do lume. A gua tropeou, foi quase de focinho estrada, e o ruivo insistiu: Vai trpega, que eu j o disse. Deixa l ir, respondeu lvaro Silvestre da meia sonolncia em que ficam os gordos quando viajam. A certas coisas, rompiam nela um velho fogo emborralhado espera de o soprarem; nunca se sabia quando nem porqu; mas nos piores dias ento, as palavras, a simples existncia do marido, davam no lume como vento, e a labareda vinha, o que de repente aconteceu, porque ela, ainda h pouco desejosa de calor e sossego, ordenou ao cocheiro: Qual deixa ir! Para, Jacinto, para imediatamente. E v se a gua vai ferida. Acrescentando, por conta de lvaro Silvestre:

28 Selvajarias na minha frente, no. O ruivo apeou-se, feliz por o ir em socorro do animal. Examinou-lhe a perna coxa e gritou: Leva um joelho que uma fonte de sangue. Deve ter encepado na brita do barranco e esfolou-se. Despiu o bluso com presteza, puxou a fralda da camisa, segurou-a nos dentes e rasgou uma larga faixa de tecido. Ligou a perna gua, apertando-a um pouco acima do joelho, de modo a estancar o sangue sem prejuzo dos movimentos, assentou-lhe na anca uma palmada encorajadora, e a viagem recomeou, no sem que D. Maria dos Prazeres comentasse: Devagar, Jacinto. E mesmo que te mandem esfolar a gua, no a esfoles. O rapaz sufocou sabe-se l como a risada quase irreprimvel que lhe subiu do fundo da garganta: isto ali com o safardana; mas o safardana mal ouvia; a jornada a p do Montouro vila e o vexame a que a mulher o obrigara no escritrio do Medeiros tinham-no derreado: a tua fria agora pouco adianta. O pior era o longo patinhar da charrete na lama. Covas, paragens, lentido. Fechava os olhos e deixava-a bramar. Responder, para qu? A modorra ia-lhe empurrando os pensamentos at um stio escuso da cabea, donde no viriam aborrec-lo por enquanto: e tenho sono; podes mandar-me novas ferroadas; vontade. Bastava-lhe a ele cingir as plpebras, apert-las mais, um pouco mais ainda; quando sentia o canto dos olhos bem franzido, deixava de a ouvir; e pouco a pouco ia-se enconchando no seu prprio cansao; dormitava. Ao mesmo tempo que lvaro Silvestre assim resvalava pelo sono, nela crescia o fogo: com que ento indiferente, vejam bem, superior s canseiras que me d, ao lamaal que me obriga a trilhar por um tempo destes, sua excelncia cabeceia, qual cabeceia, sua excelncia dorme, indiferente ao que eu digo, s mazelas da gua, estupidez desta viagem que nunca mais acaba, indiferente ao mundo; corro atrs dele como de um filho, mas o Silvestre, dos ilustres Silvestres do Montouro, quer l bem saber disso, trago-o s costas para casa como um fardo e o Silvestre, o das confisses que ladro e no sei qu, ressona h uma eternidade e h uma eternidade que eu o oio, que eu me mexo no bico dos ps para o no acordar; a charrete desfaz-se nas covas, mas o Silvestre no se rala, o Silvestre compra guas destas que no atam nem desatam, desencanta cocheiros destes to frescos como as guas e depois ronca satisfeito, mas isto acaba, meu Deus, e acaba j. Ergueu-se de repente, afastando o xaile e a manta de viagem. Lavrava o incndio dentro dela. Arrancou o chicote das mos do ruivo e uma vez, duas vezes, uma dzia, malhou no lombo da gua at poder; ento, senhora, ento, senhora; o chicote descia da treva, silvo furioso que a luz da lanterna transformava em golpe e dor visvel, a gua afocinhava mas l ia puxando, trpega e dorida; lvaro Silvestre emergiu do seu meio sono, esfregou os olhos para ver se era

29 verdade ou mentira aquilo, e a meio da charrete, com as lgrimas em baga pela cara, os cabelos soltos, manchada do oiro bao da luz, de fato era ela, bela, quase terrvel: Acaba, acaba, acaba, acaba...

VIIChegaram tarde. Serenara, readquirindo modos, compostura e paz. A paz que sobrevm clera, cansao, indiferena. Ao jantar ainda perguntou, levemente irritada, que diabo fora o marido fazer a Corgos, ao escritrio do Medeiros, mas ele, de boca cheia, murmurou qualquer coisa vaga e como entretanto as visitas bateram porta a conversa ficou por ali. Abre, Mariana. Seroavam numa sala de lareira, espaosa mas atravancada de grandes mveis de nogueira; mantas de l, grossas e discretas, atapetavam todo o soalho; o calor das achas, gordas de cerne, clareava-lhe a voz: Mexe-te, rapariga. A criada abriu a porta que dava para o ptio por uma escadaria lateral de pedra e a D. Violante e o padre Abel entraram. Parecidos como o ovo e o espeto. Sempre que os via juntos, ela macia e baixa, o padre esgrouviado, D. Maria dos Prazeres tinha um sorriso de dvida: realmente... ningum dir que so irmos. As beatas do Montouro garantiam que no e embora lhe tivessem perdoado a ele h muito reservavam ainda a D. Violante um dio velho. Mas cansado tambm. Chamavam-lhe a irm do padre, num sublinhar irnico do parentesco que deixava em aberto as suposies mais escabrosas. Houve uma altura em que a situao do padre foi difcil, quando a viva do Teixeira Marchante, riqussima e piedosa, tentou arranjar ambiente para uma representao ao bispo-conde, que lhe pedisse cobro escandalosa mancebia: padres da repblica, j de si mal formados, com badalhocas desta fora em casa que podem eles fazer pela santssima doutrina? A campanha esmoreceu, porm, quando D. Maria dos Prazeres, acabada de casar, comeou a receber o padre e a irm. Duma vez o primo da fidalga, o bispo missionrio de Cochim, de regresso ao continente, veio visit-la e o padre foi visto de conversa com ele, sorridentes os dois, para trs, para a frente, no jardim da casa. Tanto bastou para restabelecer o prestgio do padre e aaimar as beatas: amigo dos bispos, d-se com o missionrio da China; tambm se d com o nosso bispo-conde, dos poucos que lhe comem mesa quando l vai ao pao; o que a Teixeira nos ia arranjando, podamos limpar as mos parede. Contudo, havia nelas um vinagre turvo de azedume que era foroso despejar em algum. O padre estava a salvo e despejaram-no em D. Violante, anos e anos, tenazes e constantes como de lei nos grandes

30 dios, mas durante anos ela aguentou-se com a ajuda do padre, vozes de burro no chegam Violante, e o mistrio daquelas relaes persistiu, por aviso ou inocncia deles.

VIIIAcolheu as visitas com a amabilidade habitual; talvez um pouco mais crispada: Uma cadeira, D. Violante. Faz favor, padre Abel. Onde quiserem. E lvaro Silvestre afundou-se nos almofades da cadeira de verga, ao p do lume. Tinha o brandy mo, na mesinha holandesa que viera do palacete de Alva, uma das ninharias que o sogro pudera reunir para a prenda de casamento, a mesinha holandesa, meia dzia de retratos a leo (restos da galeria dos avs) e um velho elmo que o fidalgo garantia ter andado nas linhas de Elvas, ao lado do conde de Cantanhede, com um Pessoa de Alva dentro a levar o Meneses vitria: a certa altura, a coisa estava fusca, estava mesmo preta, e D. Antnio Lus, um grande general mas prudente (os Meneses foram sempre prudentes), receando o envolvimento dos seus homens, tinha j a ordem retirada na ponta da lngua, quando o meu av D. Jernimo se lhe chegou ao p: Elvas tem de ser libertada, conde, eu no retiro, eu embico com o meu tero pelo flanco da cavalaria deles e isto h-de ir; pois embicou e aquilo realmente foi; apontava o elmo ao velho Silvestre: aqui lho deixo, quero-lhe tanto como Maria dos Prazeres, aqui lhe deixo os dois; o lavrador bateu a ponta dos dedos na relquia e tirou um som choco, de lata: como material, no l grande coisa, mas fica na sala grande, prega-se ao meio da parede, e aprende a histria, lvaro, para se contar a quem vier. Os retratos ficaram tambm na sala grande, trs de cada lado do elmo. O fidalgo pediu especial ateno para o do av que amparara el-rei D. Jos no couto de Almeirim: grande caada, j se v, trompas, galgos, batedores; o rei ao transpor o valado de uma fossa desequilibra-se e se no a mo segura de meu av D. Nuno l ia sua majestade lama ou a coisa pior, o que no era muito prprio, com toda a corte a ver; D. Jos deixou passar a comoo e quando pde agradeceu: o velho pulso dos Alvas, D. Nuno, a velha gana, e olhe que se no levasse j o grande marqus a guiar-me o barco, era porta dum Alva que eu ia bater; sem tirar nem pr, amigo Silvestre, textual; decora, filho, o prstimo destas coisas t-las de memria para largar a um sero. Recordava-as agora, no sabia porqu, poisando o clice vazio na mesinha holandesa, e absurdamente apeteceu-lhe contar uma dessas histrias: H l dentro na sala... Mas calou-se logo. Ningum deu pelas suas palavras ciciadas e ele prprio ps em dvida se as teria chegado a dizer. O padre Abel perguntou-lhe: E a sua sade, que tal vai?

31 Indo, elucidou sucintamente, a encher de novo o clice. D. Maria dos Prazeres, no entanto, alargou a brevidade da resposta a propores mais educadas: Um pouco deprimido. Tambm o tempo no ajuda. Um Outubro sisudo, com efeito. Pois se eu que tenho os nervos sos no ando bem, claro que o lvaro h-de ressentir-se. Estranhou que a mulher no referisse a fuga para Corgos. De resto, pouco se lhe dava. Ps os olhos no grande candeeiro de petrleo que ocupava o centro da mesinha e deixou-se ficar, com uma golada de brandy na boca, a fazer bochechos lentos, distrados. D. Maria dos Prazeres falava agora da imagem nova de Nossa Senhora do Montouro que tencionava oferecer igreja nos prximos festejos santa tutelar da freguesia. Encarregara-se da obra o mestre Antnio, um oleiro do stio, que trocara h muito o fabrico da loua pelas imagens sagradas: Fui a semana passada oficina dele e a Nossa Senhora vai adiantada. Cego, padre Abel, mas duas mos abenoadas a mexer no barro. Com efeito, extraordinrio. Eu conheo-lhe um santo Antnio em Corrocovo que pede meas a qualquer outro. Quando Deus queria do norte chovia, disse a D. Violante que era um adagirio vivo. E erguendo a cabea do bordado explicou-se melhor: Quando Deus quer, at os cegos veem. A imagem de tamanho natural. Dos ombros da virgem desce um grande manto, que h-de ser todo a oiro e branco. O menino ao colo, meio agasalhado nas dobras do manto. O rosto da santa, que est quase acabado, um primor. O padre Abel ver. L irei ver, D. Prazeres; e, se mo permite, dar o meu conselho, porque enfim sempre h certas coisas cannicas a vigiar; o cnone por assim dizer... Estendeu a mo para a garrafa, voltou a encher o clice. A mulher reparou e enquanto o padre falava da medida justa, das lutas da igreja com os artistas, veja-se o tamanho exagerado das asas dos anjos, por exemplo, a celeuma que isso foi, no sei mesmo se chegou a haver conclio, seguia ela os gestos do marido que erguia o clice, o levava boca, tudo pausado e lento at ao brusco despejar do brandy na garganta: bebe cada vez mais, passa o tempo alapado na cama, nos canaps, nos cadeires, com a aguardente mo; olhava-o e assaltavam-na certos momentos de piedade como agora, mas raramente, porque o habitual era o escoar quotidiano

32 do seu orgulho, ora indiferente, ora tempestuoso. Quantas vezes o vira meter o ombro muralha que ela erguia entre os dois, como quem bate s cegas numa porta recndita que no sabe onde nem para onde d e ali fica toda a noite, aos umbrais, gelado e miservel; l pela madrugada aulam os ces da casa a quem bater, o que ela tinha feito sempre, depois de o abandonar ao silncio onde no h ningum ou se h no acorda e se acorda no responde nem abre; nunca lhe estendi a mo para um pouco de compreenso recproca e, no contente com isso, respondi s tentativas dele, que ao fim e ao cabo tambm queria paz, desaaimando os ces (a clera, as frias, os vexames); que outra coisa poderia ter feito? pois o despacho do ministro foi contrrio, o Dr. Neto andava s voltas com o presidente da Cmara e o presidente da Cmara s voltas com Lisboa, a ver se era possvel o Dr. Neto concorrer ainda ao lugar de mdico municipal que vai ser criado aqui, no Montouro. Bem se mexeu o nosso amigo, bem pediu, mas claro, lugares pblicos depois dos trinta e cinco anos... como o outro que olhava para Braga, D. Prazeres, por um canudo. Bem pediu, bem se mexeu, resmungava a D. Violante, se as oraes dos ces chegassem ao cu choviam ossos. Ento, Violante; diz S. Joo: no julgueis segundo as aparncias. certo que o Dr. Neto no frequenta a igreja, ignora a confisso, no saber mesmo fazer o sinal da cruz, mas continuo a ter esperana, porque apesar de tudo h verdadeira bondade naquela alma. No se trata disso. J to disse no sei quantas vezes. O que me importa o namoro. A entreter a pobre da senhora h tantos anos, no era tempo de ir pensando no altar? J te disse tambm que o assunto melindroso. Tens de lhe falar. No podes assistir a uma coisa destas de braos cruzados. Noiva serdia, nem miolo nem cdea. Calma, Violante. Tinha decidido h muito no tocar no problema do Dr. Neto: bom sujeito, certo, mas capaz de uma parelha de coices quando lhe chegam a mostarda ao nariz. Achas que meu dever falar-lhe, mas santo Antnio no me encomendou ainda o sermo. Se uma alma em apuros me procura, dou-lhe o conselho que me pede, se uma das minhas ovelhas se extravia, ajudo-a conforme posso. Ora pediu-me ele algum conselho? E por acaso do rebanho que apascento? Pode dizer-se que esse namoro seja uma ofensa a Deus ou moral? Se no pode, que tenho eu a ver com o caso? Sou um sacerdote, no sou uma comadre.

33 Exaltei-me, claro; mas recaiu em si logo depois e, batendo a ponta dos dedos no ombro de D. Violante, sorriu: Acredita que o melhor deix-los em paz: boda e mortalha no cu se talha, para me servir dum dos teus provrbios, se ds licena.

IXA meio do sero, chegou a D. Cludia, plida e medrosa. Dava a aula diria e metia-se em casa. Recortava meticulosamente os folhetins do sculo, encadernava-os depois em capas de carneira, que ela prpria pirografava copiando paisagens de velhos calendrios ou flores arrancadas s revistas de bordados, natureza no, a D. Cludia temia a natureza, a chuva, o sol, o mar, o vento, ignorava as flores que irrompem dos estrumes, e a prpria vida humana, as relaes sociais, os pequenos equvocos da convivncia, as conversas mais acaloradas, assustavam-na. O namoro com o Dr. Neto arrastava-se h anos e a culpa no era apenas dele. Um instinto profundo, a que no dava nome, avisava D. Cludia de que em tudo havia uma crueza que era melhor no desvendar. Se olhava para dentro de si l entrevia ao fundo, num relance, essa mesma crueza asfixiada sob cndidos folhetins ou girassis imaginrios. E asfixiava-a mais. Recortava o exlio de amor com renovado zelo, pegava no cautrio e, apertando o folezinho de borracha, avivava a ponta de fogo, abria na carneira um rio manso de salgueiros, a guardadora, os patos, a sugesto do silncio, ou ento fragas que o musgo amaciava, grutas rasgadas numa quase ogiva de templo, uma ou outra cegonha solitria, coisas mansas, paradas. Ia protelando o casamento e o Dr. Neto concordava. Tambm ele era um tmido a seu modo, embora amasse as coisas vivas e criadoras. Atascado at ao pescoo na vida do Montouro, sabia bem o que custava uma espiga de milho, aos homens e terra, conhecia as escuras germinaes de um girassol ou de uma rosa porque ele prprio os plantava para as suas abelhas (cortios e colmeias enchiam-lhe o quintal), seguia desveladamente o trabalho e o sono dos bichinhos sbios comedores de plen (como ele dizia), simbolizava no doce destilar dos favos o que a vida, a natureza, Deus ou l o que era, podia arrancar de belo e saboroso ao tempo, uma filosofia nascida de trs ou quatro jeiras de quintal, assente em realidades vivas, botnicas e animais, porque o Dr. Neto amava a realidade e s da que partia para as abstraes, simbologias camponesas em que o mel, por exemplo, quase alcanava o teor da suma perfeio. Largar do concreto para o ideal era o seu lema, assentar a evoluo de uma ideia em coisas palpveis como sementes, flores, abelhas, cortios, mel, e tanto assim que quando partia para o seu platonismo amoroso recusava-se a considerar que fosse a timidez a empurr-lo, aduzia razes de ordem absolutamente material, cientfica: sou um heredo-sifiltico; a D. Cludia, uma constituio linftica, fragilssima; pois bem, casamo-nos e depois que filhos deitaremos ao

34 mundo? Saltava daqui para as implicaes morais: no me parece justo chamar vida um ser doentio, deformado ou louco; punha mesmo em dvida se era lcito a algum faz-lo, um rei que fosse, com o problema da sucesso s voltas; e a verdade que tudo isso est dentro das possibilidades do nosso casamento; etc, etc; at se ver claramente que no tinha o direito de insistir com a D. Cludia. Neste ponto encontravam-se os dois. Por caminhos diversos chegavam ao acordo tcito de que aquele puro amor lhes ia bastando por agora, e um dia que a cincia possa garantir-me uma s descendncia, dizia o Dr. Neto, um dia em que eu me atreva a fitar a crueza da vida, pensava a D. Cludia, nesse dia, talvez acabassem por casar.

XO Dr. Neto veio ao fim do sero. Uma chamada urgente levara-o de tarde a S. Caetano e s agora regressava. A segunda investida, uma angina de peito matara o campos ferrador. O mdico deixou-se cair na poltrona e o seu corpanzil de gigante fez a poltrona ranger, ajoujada. Aquele j l vai, padre Abel, e eu nem o cura de S. Caetano pudemos grande coisa por ele. No tanto assim, porque se era catlico sempre ter ido confortado pela Santa Madre Igreja. Cristo... J sei, o evangelho segundo santo Abel, e interrompeu-o: Muito pouco pode ainda o homem pelo homem. Estamos no comeo de tudo. Fixou um momento a chama da lareira: Mas, pensando bem, vida e morte o que so? A pergunta inesperada ecoou em lvaro Silvestre, de fibra em fibra e nervo em nervo, at lhe ressoar no mais ntimo da conscincia. Ficou espantado, como algum que ferido a uma esquina, de surpresa, e balbuciou sem querer: Vida e morte o que so? A conversa continuava: Para ns, catlicos, vida e morte so o que so. Um dia, a Vontade Criadora de Deus resolveu-se e criou... Pois sim, mas tomemos para exemplo as abelhas. Partir do simples para o complexo. Sabe-se que aps a fecundao o destino dos machos a morte. Ora, como fecundar criar, pergunto eu... As coisas em redor, o grande candeeiro de petrleo, a mesinha holandesa, as cadeiras, o relgio esmaltado, os mveis de nogueira velha, a tenaz cada no tijolo do lar: um abandono

35 sem remdio. As terras, a vivenda, a grande mercearia de taipais ondulados, a melhor do concelho, mesmo em Coimbra no so aos pontaps (convico do padre Abel), nada lhe pertencia verdadeiramente. A riqueza amargou-lhe pela primeira vez, um travo doloroso de que tudo era passageiro, de emprstimo, para largar quando Deus achasse justo mergulh-lo na pobreza extrema dum coval. Entendia vagamente o padre: No aplique aos bichos a medida dos homens. E S. Francisco? L falar, falavam. Mas ele sabia que nenhum dos dois estava a ser varado pelo pavor. Vida e morte o que so? A morte perder as terras, a loja, o dinheiro, para sempre; e apodrecer, devorado pelos vermes; ali estava a explicao da sua repugnncia por bichos midos, aranhas, minhocas, carochas, centopeias, larvas, essa infinidade pululante de pequenas monstruosidades. Esmagou as mos uma na outra, porque a morte existe, pode chamar porta quando lhe apetecer, e imaginou-se demoradamente no caixo aberto, ainda em casa, ainda acompanhado do murmrio humano que o velava, da a nada atirado garganta da cova com cal por cima e terra, depois a lousa, o abandono: os outros regressam casa e eu para ali fico, sufocado, sozinho, a morrer outra vez, porque via tudo isso como se as coisas se passassem e ele com conscincia, como se ouvisse o rumor da noite em que o velavam, o latim do padre Abel no cemitrio, as pazadas de terra a cair no caixo, o fervilhar irreparvel dos vermes. Atirou-se ao brandy para no gritar. Nunca suspeitara com tamanha agudeza que a sua vida pudesse deixar de fincar-se em lajedos indestrutveis como um prdio de sculos; vivia sem pensar que tinha de morrer; as confisses ao padre Abel fazia-as com frequncia, certo, dava conta a Deus dos mais pequenos passos para uma hiptese remota de julgamento, um dia de clera divina perdido ainda na distncia e tambm para impedir qualquer antecipao possvel da justia, as doenas, os desastres, um incndio na mercearia, mas agora a coisa fiava mais fino, o tempo contado pela morte apertava em limites breves o terror, os remorsos. Procurou o olhar da mulher como uma criana amedrontada que pedisse auxlio: peo-te auxlio, Maria. A D. Violante fazia nessa altura um resumo da questo: Nem rei nem Papa morte escapa. Nem rei nem Papa. Era verdade, morriam todos afinal, o padre, o mdico, as senhoras, e a ideia deu-lhe algum consolo; levados tona do sero, falando outra vez do despacho contrrio ao Dr. Neto, mal podiam supor o que se adivinhava por trs deles; a mulher, por exemplo, que ignorara h pouco o seu pedido: deixa , Maria, no preciso de ti, descobri-te o segredo, a fragilidade, ir como os outros, com a cal e o abandono dos outros, mas a alma?, porque h tambm a alma, ser melhor a dela do que a minha?; e cerrou as plpebras, apertou-

36 as brutalmente; formas convulsas comearam a crescer do mundo turvo que se abrira nela s palavras do mdico, com a ajuda do brandy, estranhas metamorfoses, cavalos de crinas ardentes desgrenhadas, e l vinha a mulher sobre o xairel e a sela das vises, trazia reflexos de fogo nos cabelos, era uma amazona atravs de labaredas; esteira da amazona cavalgavam os outros, o padre Abel, a D. Cludia, a D. Violante, o Dr. Neto e ele prprio; acometiam-nos chamas cidas de enxofre, torciam-se entre um fumo negro, miserveis, desfeitos, calcinados. Estavam todos no inferno.

XIMal as visitas saram, acendeu o castial e dirigiu-se sala grande que lhe servia de escritrio. Pela porta aberta, a mulher ficou a olh-lo. Pareceu-lhe mais atarracado, mais disforme. A chama da vela batia nas paredes do corredor, a sombra que as cobria era acossada para o teto, e ento despenhava-se do alto, caa-lhe nos ombros, esmagava-os; l vai aos tropees, provavelmente bbado; ao levantar a hiptese lembrou-se da garrafa de brandy: vazia, j se v; por conseguinte, reforou a ideia: bbado e como um almocreve. Viu-o desaparecer no cotovelo do corredor; ouvia-se o ranger do soalho quando as botas assentavam fora da passadeira; depois, a casa ficou silenciosa. Poisou o castial na secretria e, enquanto procurava a carta de Leopoldino, preparava-se para os dois problemas que tinha a resolver: em primeiro lugar, no queria ser enterrado; desde longa data que o velho Silvestre pensara num jazigo, mas fora adiando sempre, agarrado ao dinheiro como a carraa orelha do co; vinha o canteiro, o jazigo deitava para uns contos de ris, e o pai Silvestre com a sade dum cavalo novo protelava: h tempo, que diabo, no v a morte achar que estando o ninho feito pode a pega morrer; acabara por aninhar-se no coval raso e simples dos mais: e isso que eu no quero, num jazigo sempre se fica c fora ao ar e luz; j no pouco entrar pela porta gradeada dum tmulo a rstia de sol, a lufada de vento, o cheiro caricioso das terras no outono: mandarei fazer o jazigo, quanto mais depressa melhor. A azia vinha-lhe garganta por guinadas: ser preciso gritar bem alto que terra na boca, s pazadas, por nada deste mundo?; o estmago sempre uma coisa muito azeda, louvado Jesus Cristo; porque as almndegas pareciam encrespadas de espinhos como ourios. Encontrou por fim a carta do irmo entre os papis da secretria. Levou a vela para cima do piano que a mulher deixara aberto e, ao pois-la no teclado, desprendeu um som agudo que o fez rir. Foi garrafeira, abriu a porta envidraada, encheu um clice de porto: um vinho digestivo, padre Abel, digestivssimo. Sentou-se banqueta do piano e desdobrando a carta na estante, sobre o lbum de romanzas que a mulher trouxera de Alva, comeou a ler em voz alta:

37Luanda, 16 de setembro Meu caro lvaro: Aqui estou na capital desta nossa Angola, depois de seis anos de serto. A falta de notcias foi isso, a selva, os pretos, a civilizao por um canudo e eu pelo mato, promovido a Conselheiro do Soba duma tribo de canibais, onde salvei a pele porque tu bem sabes que nunca me faltou gana para sair das enrascadas. At de feiticeiro lhes servi. No te posso dizer o que a frica, a frica vir c e ver. A pretalhada onde estive, afinal no era m gente e depois de amansados, que ainda assim custou, foram comigo em busca de tesoiros para os lados das minas de Salomo, que havia a na estante do Montouro compradas pela cunhada.

Conseguiu levantar-se, pegou na vela e foi verificar estante; no deu com as minas de Salomo, mas bebeu outro porto, aproveitando a passagem pela garrafeira; regressou ao piano com o castial e ps-se a lamentar diante da carta: No esto c as minas, Leopoldino, no sei delas. Tinha a conscincia de que ia ficando cada vez mais bbado; a azia, no entanto, pareceu acalmar-se e ele prosseguiu na leitura:... compradas pela cunhada. E que tal vai ela, mano? O que me valeu a mim foi a sade de ferro nos pntanos que atravessamos. O Soba deu-me trinta pretos, dois elefantes, bagagens e duas das suas mulheres para meu uso prprio. No leias esta passagem cunhada, mas fica sabendo que uma preta, bem espremida, deita mais sumo do que uma laranja. A questo ench-las dumas aguardentes levedas que por aqui h e eu quero ver onde que est a branca que d um rendimento destes. L fomos para o sul em busca de minas. As febres atiraram metade da caravana s malvas, at um elefante as apanhou e foi-se. Ao fim de anos de trabalho, dei com minas num recanto de rochas entrada do deserto. Metade para o Soba, era o contrato, mas a outra parte, a minha, d para comprar todas essas casas, palacetes, terras, quintas e armazns, o que houver por a, sem esquecer o belo femeao de Corgos, claro. Estou em Luanda agora para embarcar para a metrpole a descansar uns tempos e depois volto a assentar com o Soba na explorao disto. Vou riqussimo mas sou o mesmo, mano, o cabea de unto como dizia o nosso pai, o doido varrido como tu dizias, o estoira-vergas que era como me chamava a cunhada. D-lhe recados meus e a me tero daqui a umas semanas. Depois sempre te falarei com mais vagar das feras, da caa, dos macacos, das florestas, das minas, eu sei l, e a preceito do mimo que uma preta com um homem na cama, ou melhor, um homem com uma preta na dita. Quero-te fazer meu scio e tu com um pouco de capital podes s-lo, a com coisa de cem ou duzentos contos para uma maquinariazita. O Soba agora deu com o tesoiro em pantanas numa guerra santa e eu...

Um vmito sacudiu-o de alto a baixo. J no pde acabar a carta, nem meditar no regresso de Leopoldino, que era o outro dos seus problemas. Arrastou-se para uma das janelas, abriu-a dificilmente e debruou-se do peitoril.

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XIIUma cabaa de vinagre despejada, os resduos cidos que escorrem com dificuldade pelo interior do bojo at pingarem do gargalo, espessos, vagarosos; a mo na espuma que lhe azedava os lbios; boiar numa onda incerta de enjoo e ter sede de repente como se tivesse de repente uma dor; o orvalho da noite poisava-lhe na nuca; podia erguer a cabea tombada para fora da janela, virar a cara para o cu e beber daquela frescura suspensa pelo espao; voltou-se com dificuldade e a moinha da gua bateu-lhe ao de leve na fronte, nas plpebras fechadas, foise acumulando gota a gota, deslizou em seguida pela face, encarreirou nas asas do nariz, veio depositar-se-lhe ao canto dos lbios; abriu a boca e sorveu a humidade lentamente; de sbito, qualquer lembrana remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabea de fora da janela, a boca aberta a aparar as goteiras do telhado, um perfil de criana recortado ao longe; a cinza da morrinha embaciava a distncia, o tempo, mas havia por baixo de tudo, ao fundo das coisas, esse fulgor inapagvel, o seu prprio perfil de criana, e muito mais, uma ternura dispersa pela casa paterna, por campos e pessoas, por bichos e por estrelas; o corao talhado numa grande pureza j perdida, a alma ainda livre da condenao do fogo, o corpo onde no acordara ainda o medo morte, porque lhe era fcil ento estender-se para fora da janela e beber alegremente das goteiras. Agora no. O vento impelia o marulho da treva, vinha salpic-lo numa poeira hmida de runas; as costas doam-lhe de encontro ao peitoril; mudou de posio, fez um esforo para se endireitar, fincando as mos no rebordo da janela, e ficou cambaleante, de olhos abertos para a noite, negra de lado