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Um Tapirape atinge a maioridade S ÍNDIOS Tapirapé habitam o Brasil central do Pará ao norte do rio Tapirapé, afluente esquerdo do Araguaia, situado no extremo sul do Estado , Falam um dialeto tupi-guarani - a língua nativa mais difundida no Brasil. Apesar de grande cle- clinio de população, ainda possuem uma rica tradição cultural, que lhes é própria e os destaca tle outras tribos. Com grande carinho, transmitem oralmente, de geração a geração, costumes e tradições. Entre estas é das mais interessantes a cerimônia pela qual o jovem passa à con- dição de homem adulto. Essa passagem é assinalada em quase todos os povos. Entre nós, quando um jovem civilizado atinge os 2l anos de idade, pode votar, ca- sar-se, assinar documentos, etc. ; em muitos grupos pri- mitivos, o jovem prova gue se tornou adulto suportando torturas ou conseguindo êxito na caça. Entre os Tapirapé, essa tradição é assinalada por um festival de canto e dança, chamado "amarrar o ca- belo", pois que desde então o rapaz passâiá- á úsàr o cabelo amarrado sôbre a nuca, à maneira dos adultos. Durante alguns anos gue precedem a cerimônia, o jovem tem o corpo pintado de preto com genipapo, usa o ca- belo cortado rente à cabeça - "como um macaco", no dizer dos Tapirapé - sujeita-se a restrições na alimen- tação, e tem os braços e pernas escarificados até san- grar, "para ficar forte". Quando êle atinge 14 ou 15 anos de idade, a família decide que é chegaclo o tempo de se tornar adulto. Ào findar a estação das chuvas, época da colheita e conseqüente lartura para a tribo, realiza-se a cerimô- nia de'"amarrar o cabelo". Meses antes, o jovem deixa o cabelo crescer até lhe cair pelos ombros. Durante êsse tempo, mãe e tias tecem fios (cordões) para en- Íeitá-lo, enquanto pai e tios colecionam penas com que fúriquem caprichosos ornatos. Todos os jovens Ta- pirapé se tornam adultos por meio dêsse rito : os filhos de homens importantes, porém, e os que foram "filhos prediletos" (os Tapirapé elegem determinadas crianças para um tratamento preferencial) são muito mais rica- mente ornamentados que os outros. A cerimônia é dis- pendiosa à família, sendo necessária muita antecedência para recolher o material - penas de cauda de arara. penas curtas de arara azul e de papagaio, penugem do peito de patos selvagens, fios de algodão para os orna- mentos e missangas. Todos êsses artigos são valores para os Tapirapê, que medem por êles a própria riqueza. Na véspera do ritual, iniciam-se os preparativos. O corpo do jovem ê pintado de preto, com genipapo. No rosto, é desenhada uma linha preta abaixo da bôca, Cnanrss WacrBy Àntropólogo da Universidade de Colúmbia, Estados Unidos da Àmérica do Norte, atualmente ' no Brasil e um circulo sob os olhos, cujos cantos são alongados com um traço. O pai ou os tios ultimam a preparação de um grande diadema. Ao amanhecer do dia da ceri- mônia, o jovem é conduzido à grande casa cerimonial, edificada no centro da aldeia tapirapé, e o seu cabelo é preparado para receber o grande ankungitana (diade- ma), fabricado de múitas penas de arara, papagaio e pato, prêsas a uma base de buriti e madeira dura, pe- sando cêrca de cinco quilos. O cabelo é aparado e amarado num rôlo, sôbre a nuca, com uma corda de pelo menos cinco metros de comprimento, para fornecer base à fixação do grande diadema. O labio inferior é ornado com um tembetá cerimonial de quartzo. A cerimônia propriamente dita tem início com a manhã avançada. Durante 24 horás o jovem dança seguidamente, cercado peios companheiros de tribo, e acompanhado pelos cantos e danças de homens Íru- iheres. Dança pouco à vontade, não tardando a fati- gá-lo o pêso e o desconfôrto dos ornamentos. A tra- dição tapirapé explica êsse ritual como uma prova de resistência para os seus jovens. Segundo uma lenda, um antepassado tapirapé, chamado Xauanamu, e sell Íi\ho Makanci foram capturados por uma tribo inimiga. Xauanamu, foi devorado, e o filho obrigado a dançar sob o pêso de um grande diadema, além de inúmeros ornamentos que the cobriam o corpo. Ao fim de um longo dia de dança, Maleanci, ainda forte, logrou fugir, embrenhando-se pela Ílorcsta, seguido de perto pelos inimigos. Ao chegar a um grande tronco ôco, desapa- receu. Hoje em dia os jovens tapirapês usam ornamen- tos semelhantes ao que seu antepassado abandonou. Em 1941, quando assistimos ao "amarrar o cabelo" do jovem Kancinampió, vários Tapirapé predisseram que êle choraria, "pois ia ficar muito cansado durante a noite", mas o jovem resistiu valentemente. Contudo, é de outra forma que os homens relembram a sua inicia- ção. Um dêles disse: "Quando eu danceji, estava mais belo que em qualquer outra ocasião". E'certo que em nenhuma outra época da vida o indivíduo recebe tantas atenções, se exibe tanto e com tão ricod ornamentos. E isto na adolescência ! Assim, os Tapirapé transformam esta cerimônia em oportunidade de divertimento, que seus homens recor- dam mais ou menos da rnesma forma por que as nossas jovens relembram o primeiro baile. Na época que se scgue ao plantio, êle deve traba- lhar nas roças, participando daí por diante das caçadas, provando assim a capacidade para casar e sustentar família. l6 REVISTÀ DO MUSEU NÀCIONÀL

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Um Tapirape atinge a maioridade

S ÍNDIOS Tapirapé habitam o Brasil central

do Pará

ao norte do rio Tapirapé, afluente esquerdo doAraguaia, situado no extremo sul do Estado, Falam um dialeto tupi-guarani - a língua

nativa mais difundida no Brasil. Apesar de grande cle-clinio de população, ainda possuem uma rica tradiçãocultural, que lhes é própria e os destaca tle outras tribos.Com grande carinho, transmitem oralmente, de geraçãoa geração, costumes e tradições. Entre estas é das maisinteressantes a cerimônia pela qual o jovem passa à con-dição de homem adulto. Essa passagem é assinaladaem quase todos os povos. Entre nós, quando um jovemcivilizado atinge os 2l anos de idade, pode votar, ca-sar-se, assinar documentos, etc. ; em muitos grupos pri-mitivos, o jovem prova gue se tornou adulto suportandotorturas ou conseguindo êxito na caça.

Entre os Tapirapé, essa tradição é assinalada porum festival de canto e dança, chamado "amarrar o ca-belo", pois que desde então o rapaz passâiá- á úsàr ocabelo amarrado sôbre a nuca, à maneira dos adultos.Durante alguns anos gue precedem a cerimônia, o jovemtem o corpo pintado de preto com genipapo, usa o ca-belo cortado rente à cabeça - "como um macaco", nodizer dos Tapirapé - sujeita-se a restrições na alimen-tação, e tem os braços e pernas escarificados até san-grar, "para ficar forte". Quando êle atinge 14 ou 15anos de idade, a família decide que é chegaclo o tempode se tornar adulto.

Ào findar a estação das chuvas, época da colheitae conseqüente lartura para a tribo, realiza-se a cerimô-nia de'"amarrar o cabelo". Meses antes, o jovem deixao cabelo crescer até lhe cair pelos ombros. Duranteêsse tempo, mãe e tias tecem fios (cordões) para en-Íeitá-lo, enquanto pai e tios colecionam penas com quefúriquem caprichosos ornatos. Todos os jovens Ta-pirapé se tornam adultos por meio dêsse rito : os filhosde homens importantes, porém, e os que foram "filhosprediletos" (os Tapirapé elegem determinadas criançaspara um tratamento preferencial) são muito mais rica-mente ornamentados que os outros. A cerimônia é dis-pendiosa à família, sendo necessária muita antecedênciapara recolher o material - penas de cauda de arara.penas curtas de arara azul e de papagaio, penugem dopeito de patos selvagens, fios de algodão para os orna-mentos e missangas. Todos êsses artigos são valorespara os Tapirapê, que medem por êles a própria riqueza.

Na véspera do ritual, iniciam-se os preparativos.O corpo do jovem ê pintado de preto, com genipapo.No rosto, é desenhada uma linha preta abaixo da bôca,

Cnanrss WacrByÀntropólogo da Universidade de Colúmbia,

Estados Unidos da Àmérica do Norte, atualmente' no Brasil

e um circulo sob os olhos, cujos cantos são alongadoscom um traço. O pai ou os tios ultimam a preparaçãode um grande diadema. Ao amanhecer do dia da ceri-mônia, o jovem é conduzido à grande casa cerimonial,edificada no centro da aldeia tapirapé, e o seu cabelo épreparado para receber o grande ankungitana (diade-ma), fabricado de múitas penas de arara, papagaio epato, prêsas a uma base de buriti e madeira dura, pe-sando cêrca de cinco quilos. O cabelo é aparado eamarado num rôlo, sôbre a nuca, com uma corda depelo menos cinco metros de comprimento, para fornecerbase à fixação do grande diadema. O labio inferior éornado com um tembetá cerimonial de quartzo.

A cerimônia propriamente dita tem início com amanhã já avançada. Durante 24 horás o jovem dançaseguidamente, cercado peios companheiros de tribo, eacompanhado pelos cantos e danças de homens € Íru-iheres. Dança pouco à vontade, não tardando a fati-gá-lo o pêso e o desconfôrto dos ornamentos. A tra-dição tapirapé explica êsse ritual como uma prova deresistência para os seus jovens. Segundo uma lenda,um antepassado tapirapé, chamado Xauanamu, e sellÍi\ho Makanci foram capturados por uma tribo inimiga.Xauanamu, foi devorado, e o filho obrigado a dançarsob o pêso de um grande diadema, além de inúmerosornamentos que the cobriam o corpo. Ao fim de umlongo dia de dança, Maleanci, ainda forte, logrou fugir,embrenhando-se pela Ílorcsta, seguido de perto pelosinimigos. Ao chegar a um grande tronco ôco, desapa-receu. Hoje em dia os jovens tapirapês usam ornamen-tos semelhantes ao que seu antepassado abandonou.

Em 1941, quando assistimos ao "amarrar o cabelo"do jovem Kancinampió, vários Tapirapé predisseram queêle choraria, "pois ia ficar muito cansado durante anoite", mas o jovem resistiu valentemente. Contudo, é

de outra forma que os homens relembram a sua inicia-ção. Um dêles disse: "Quando eu danceji, estava maisbelo que em qualquer outra ocasião". E'certo que em

nenhuma outra época da vida o indivíduo recebe tantasatenções, se exibe tanto e com tão ricod ornamentos.E isto na adolescência !

Assim, os Tapirapé transformam esta cerimônia em

oportunidade de divertimento, que seus homens recor-dam mais ou menos da rnesma forma por que as nossasjovens relembram o primeiro baile.

Na época que se scgue ao plantio, êle deve traba-lhar nas roças, participando daí por diante das caçadas,provando assim a capacidade para casar e sustentarfamília.

l6 REVISTÀ DO MUSEU NÀCIONÀL

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