um suspiro no meio das pedras

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  UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE PSICOLOGIA HELENA WERNECK BRANDÃO UM SUSPIRO NO MEIO DAS PEDRAS: O fazer clínico como ato de resistência às linhas duras do contemporâne o Rio de Janeiro 2015

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Monografia UFRJ

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    HELENA WERNECK BRANDO

    UM SUSPIRO NO MEIO DAS PEDRAS:

    O fazer clnico como ato de resistncia s linhas duras do contemporneo

    Rio de Janeiro

    2015

  • Helena Werneck Brando

    UM SUSPIRO NO MEIO DAS PEDRAS:

    O fazer clnico como ato de resistncia s linhas duras do contemporneo

    Monografia apresentada ao Instituto de

    Psicologia da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro como requisito parcial obteno do

    grau de formao em Psicologia.

    Orientador: Prof. Dr. Joo Batista Ferreira

    Rio de Janeiro

    2015

  • HELENA WERNECK BRANDO

    UM SUSPIRO NO MEIO DAS PEDRAS:

    O fazer clnico como ato de resistncia s linhas duras do contemporneo

    Monografia apresentada ao Instituto de

    Psicologia da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro como requisito parcial obteno do

    grau de formao em Psicologia.

    Aprovada por:

    Professor Doutor Joo Batista Ferreira

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Data: Nota:

    Rio de Janeiro

    2015

  • Aos bons encontros.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus pacientes por compartilharem a vida e o viver; por me darem a oportunidade

    de outrar o ser e o fazer; por con-fiar.

    Ao meu orientador Joo pela orientao carinhosa e afetiva; por sempre acreditar no

    meu trabalho e me dar a oportunidade de inventar; pela poesia e pelo bom encontro.

    Aos meus pais por investirem o possvel (e o impossvel) para eu alcanar os meus

    sonhos e objetivos; pelo suporte, ouvidos e amor incondicional.

    Ao Joo e ao Pedro por estarem sempre presentes e me ensinarem, desde cedo, o valor

    da diferena.

    Karla por ter sido vento que me ventou em tantas outras direes; por ser um pouco

    supervisora, um pouco me e sempre amiga; pelos desvios.

    s amizades que a UFRJ me deu. Principalmente Camilla, rika, Gabi, Nathalia, Paula

    e Yasmim por dividirem os trabalhos e as conquistas e fazerem desses cinco anos um

    tempo precioso.

    Aos meus queridos companheiros de estgio que dividiram comigo os casos e acasos do

    clinicar. Por me mostrarem a potncia do grupo e pela superviso inigualvel. Ruan,

    Natlia, Clara, Micael, Mateus, Alexander, Marcela, Miguel, Lara, Karla, Gustavo,

    Rafael, Helena, Willy, Tet, Ana, Carol, Thiago, Matheus, Ian, Yasmim, Alex, Sofia,

    Gabriela, Victor, Brbara e Gergia, aqui vai minha escrileitura disto que compomos

    juntos!

    Catarina pela doce companhia no processo infindvel de tornar-me outra.

    Angela pela oportunidade de contato com um territrio ainda desconhecido. Pelas

    trocas, ensinamentos e carinho.

    Lucia Rabello por dividir comigo a riqueza de seu trabalho e pelas acolhidas

    incondicionais.

    Ao Breno por discordar e me ensinar; Ftima por cuidar to bem de ns; aos dois pelo

    lindo trabalho que construmos juntos.

    Aos amigos de sempre - Joyce, Marina, Fernanda, Cssio, Kelson, Gustavo, Ricardo,

    Gil, Carol, Anas, Isadora, Rafaela e Nery - por serem presentes at nas minhas

    ausncias, entenderem e apoiarem as minhas escolhas.

    Ao Antonio Carlos por me acompanhar desde sempre nos caminhos tortuosos da

    psicologia.

    s minhas avs, tias, tios, primos e primas; a famlia de sangue e de corao por me

    oferecer um ambiente seguro; pelo amor e admirao.

    vida.

  • Resumo

    A partir de autores da Filosofia da Diferena, como Deleuze e Guattari, este trabalho de

    concluso de curso constri uma ideia de clnica pautada na experincia do

    contemporneo. Afrouxando as duras fronteiras que limitam, enrijecem, sufocam,

    pensamos uma clnica transdisciplinar que investe em processos de produo de

    subjetividade: cartografa o desejo, intervm criticamente, causa desvios. Considerando

    as linhas duras que compem a experincia do contemporneo, o fazer clnico emerge

    como ato de resistncia e aproxima-se, desta forma, do fazer artstico. Arte e clnica

    confundem-se em um movimento de expanso da vida.

    Palavras-Chave: Arte; Clnica; Contemporneo; Experincia; Subjetividade.

  • Sumrio 1. UMA INTRODUO POSSVEL .................................................................................... 8

    2. DESAPRENDER 8 HORAS POR DIA ENSINA OS PRINCPIOS ............................ 12

    2.1. DA ESTRUTURA AO PROCESSO: UM PENSAMENTO TRANSDISCIPLINAR 13

    2.2. DO INDIVDUO PRODUO DE SUBJETIVIDADE: A POSSIBILIDADE DE

    SER OUTRO ........................................................................................................................... 16

    2.3. DA FALTA AO EXCESSO: O DESEJO COMO PRODUO ............................... 20

    3. EU PRECISO SER OUTROS .......................................................................................... 23

    3.1. O OBJETO DE ESTUDO DA CLNICA: PLANO DE PRODUO ...................... 26

    3.2. TRAANDO CARTOGRAFIAS EXISTENCIAIS ................................................... 29

    3.3. A CLNICA COMO CRTICA ................................................................................... 32

    4. INVENTAR AUMENTA O MUNDO ............................................................................. 34

    4.1. O FAZER CLNICO COMO PRODUO ARTSTICA ......................................... 37

    5. UMA IMPOSSVEL CONCLUSO ............................................................................... 40

    6. REFERNCIAS BIBLIOGRAFICAS ............................................................................ 42

  • 8

    1. UMA INTRODUO POSSVEL

    Ser preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar

    enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei

    que acrescentar: no isso, no isso! Mas preciso tambm no ter medo

    do ridculo, eu sempre preferi o menos ao mais por medo tambm do

    ridculo: que h tambm o dilaceramento do pudor. Adio a hora de me falar.

    Por medo?

    E porque no tenho uma palavra a dizer.

    No tenho uma palavra a dizer. Por que no me calo, ento? Mas se eu no

    forar a palavra a mudez me engolfar para sempre em ondas. A palavra e a

    forma sero a tbua onde boiarei sobre vagalhes de mudez.

    E se estou adiando comear tambm porque no tenho guia. O relato de

    outros viajantes poucos fatos me oferecem a respeito da viagem: todas as

    informaes so terrivelmente incompletas. (LISPECTOR, 2009, p.18)

    Eu olho para a pgina em branco e ela me olha de volta. Eu finjo no ver.

    difcil encar-la e no sei por onde comear. No sei por onde comear o que ser o fim.

    Um trabalho de concluso de curso anuncia o fim de um ciclo, uma pequena morte. Eu

    sei que estou na iminncia de morrer. Tambm sei que toda morte traz vida. E essa vida

    que vir agora muito me interessa. Mas viver uma morte sempre difcil, est sendo

    difcil. Queria pular para a parte onde recebo o meu diploma. Pular o sofrimento que

    est sendo escrever.

    A escrita sempre fez parte de mim, desde que eu me entendo por gente. Com pai

    e me artistas, a arte sempre preencheu minha vida. E a literatura era o pontinho

    especial. Sempre gostei de histrias e, assim que aprendi a escrever, pude coloc-las no

    papel. No sei dizer o que acontece em mim quando escrevo, sei que no posso parar.

    Uma espcie de movimento que no tem fim.

    Como que a escrita agora est sendo to dolorida? Seria por ser a marca de um

    final de um processo, incio de outros? Ou ser a angstia que colocar em palavras a

    minha experincia? O medo de me deparar com a pobreza da coisa dita? Tambm. De

    saber que toda traduo uma traio e que, para escrever aqui, trairei cem por cento a

    minha experincia. Mas no posso deixar de faz-lo.

    Afinal, por onde comear? Vejo uma primeira pergunta: como foi que cheguei

    aqui? Se a pergunta fosse introduzida por um porque, seria uma resposta fcil.

    Sempre foi mais fcil explicar a vida do que acompanh-la. No entanto, responder a este

    como em um texto corrido, pede algumas racionalizaes. Algumas retificaes de

    linhas. Vai ver esse tambm um dos motivos que torna to difcil essa tarefa: a

  • 9

    conscincia de que ela impossvel. Pra comear, ento, precisarei estabelecer um

    comeo.

    Estabelecer um comeo assim mesmo: de forma totalmente voluntria e

    impositiva. Escolher, dentre todas as formas que tenho para fazer, alguma que me d um

    sentido. o que venho tentando.

    2010, l estava eu, caloura de psicologia, animada para comear a sua nova

    trajetria na vida. O ensino mdio ficou para trs, a menoridade tambm. O curso

    escolhido foi psicologia. E, por que psicologia? - era a pergunta de todos - Porque eu

    quero ajudar as pessoas. Essa era a resposta padro. Mas era o que realmente me movia.

    Como ajudar as pessoas? Isso eu no fazia a menor ideia.

    Logo de incio dei de cara com uma figura peculiar que, mal sabia eu, mudaria a

    minha trajetria inteira na universidade. Karla Valviesse estava montando grupos com

    alunos de psicologia para discutir a formao atravs de poemas do Manoel de Barros.

    Eu desconhecia o poeta, mas gostava de poesia. L fui eu, naquele gs de primeiro

    perodo que abraa qualquer novidade. E comecei a minha graduao ouvindo alunos

    quase formados lamentando como a universidade era ruim, como as disciplinas eram

    chatas, os professores eram esquisitos. Reclamao, reclamao, reclamao... E eu que

    acabara de chegar ficava como uma espectadora que s sabia que detestava ter aulas de

    anatomia, embriologia, gentica, etc, etc. Da veio a Karla e bagunou tudo. Pegou o

    Manoel e desarrumou a gente todinha. Falou dos desvios e causou desvio em mim. E

    desde ento aprendi a ser uma aluna-bugre: veja que bugre s pega por desvios, no

    anda em estradas (BARROS, 2010, p.319) e traar o meu curso, fazendo com que ele

    me seguisse e no o contrrio.

    Da eu dou um pulo na histria e vou para 2012. A UFRJ tinha passado uns trs

    meses em greve, o que adiou o fim do meu quarto perodo. Esperava ansiosamente para

    entrar no quinto, aquele perodo em que poderia comear a estagiar. Queria ver a

    psicologia na prtica. Qualquer coisa que surgisse seria boa para me tirar daquele monte

    de teoria que no fazia sentido nenhum para mim. E eu me encontrei mais uma vez com

    essa figura que, como j disse, seria peculiar na minha trajetria. O estgio era a partir

    do sexto, eu estava entrando no quinto, mas queria mesmo assim. E ela me disse que

    no quero saber como as coisas se comportam, quero inventar comportamento para as

    coisas (idem, p.395) e eu enfiei o p na porta. Comeava, ento, o meu primeiro

    estgio.

  • 10

    Eu sempre quis clinicar. Aquela imagem senso-comum do psiclogo no

    consultrio com o paciente: um fala dos seus problemas e o outro tenta ajud-lo. Acho

    engraado pensar nisso hoje em dia. Hoje que eu j sou outra com tantas diferenas

    dessa de quem eu falo. Naquela poca, de alguma forma, eu acreditava que o trabalho

    clnico tinha a ver com o outro, com o paciente, com o sujeito que deita no div. Afinal,

    ramos duas entidades que se encontrariam numa sala para falar de problemas. E

    surpreendi-me em ver que nas salas da DPA no havia nem lenos de papel. O que

    posso dizer que, desde que me coloquei nesta prtica, vivi constantes

    desterritorializaes. Movimentos de abertura e fechamento que me trouxeram at aqui.

    E que me (trans)tornaram esta que vos fala.

    L na equipe eu era a mais nova: de idade, de perodo e de conhecimentos

    tericos. Nunca tinha ouvido falar em psicoterapia institucional francesa, nem em

    Deleuze ou Guattari. Um pouco de Foucault, conhecia de nome. Mas tudo bem, eu no

    era a mais nova de experimentao. Havia sido aquele vvido perodo no grupo da Karla

    (que agora seria minha supervisora) que me levara at ali. Ento, de experincia no

    corpo, de contato, eu j no era virgem. Entreguei-me completamente para aquela

    novidade que se apresentava pra mim, com coragem e medo, medo e coragem. Ainda

    lembro do primeiro dia, dos textos que eu deveria ler, era um tal de tempo que no

    cronolgico, uma clnica que kliniks e clinamen, e outras coisas que no faziam o

    menor sentido aparentemente. Era grego, literalmente. E s mais tarde que eu fui

    aprender que, se no t vendo, a gente tem que trocar de olho.

    Agora eu perco o Chronos, pois no sei mais colocar em linha reta o que me

    aconteceu e tudo bem, porque expresso reta no sonha (idem, p.349) No sei mais o

    que veio antes e o que veio depois. Mas o fato que eu fui sofrendo inmeras mudanas

    e fiz da minha formao uma constante transformao.

    Do que eu poderia falar no meu trabalho de concluso de curso seno do

    clinicar? Falar de clnica para mim falar da vida, da melhor forma que encontrei para a

    vida, do meu vivido, do meu vvido. Foi com essa experincia que eu fui caminhando

    em direo a um diploma, mas, mais ainda, foi a partir dela que fui me aproximando do

    que eu concebo como ser psicloga. Resolvi, ento, fazer do meu TCC, de fato, um

    trabalho de concluso de curso. Lembrando que concluir, no encerrar, ou fechar. E

    esse curso continua cursando. Fluindo, esbarrando-se em pedras, desviando. um

    movimento que no para.

  • 11

    S que para escrever um TCC a gente precisa de orientador. E isso me

    desestabilizava. Afinal, dentro do Instituto de Psicologia eu no havia encontrado quem

    pudesse entrar nessa jornada comigo. E a eu fico feliz, muito feliz, com outro encontro

    marcante que tive durante este curso: com o meu orientador, Joo. que no meio das

    pedras tinha um caminho e agora eu podia v-lo. Escancarei a fresta e entrei. E, essa

    que vos fala, est mais uma vez transformada, mais uma vez desviada. Foi mais uma

    vez encontrada. isso que acontece quando a gente d abertura pra vida, ela entra e o

    faz sem a menor pretenso de manter nada no lugar. Agora, com essa parceria, eu posso

    escrever sobre o que eu quero e, mais importante ainda, da forma como eu quero.

    , acho que foi mais ou menos assim que cheguei at aqui. Com certeza essa

    verso que contei apenas uma das tantas outras que poderiam ter sido contadas.

    Afinal, como diz Nietzsche (1983), quantas folhas no so tradas para podermos

    chamar uma folha de folha? Aqui, ento, trairei a minha experincia trazendo-a para o

    papel - preciso dar algum contorno, organizao, delimitao. E, junto com alguns

    autores que tm me dado suporte, trarei o que me soa como essencial para concluir o

    meu curso: clnica, arte, vida.

    Vou criar o que me aconteceu. S porque viver no relatvel. Viver no

    vivvel. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir no.

    Criar no imaginao, correr o grande risco de se ter a realidade. Entender

    uma criao, meu nico modo. Precisarei com esforo traduzir sinais de

    telgrafo traduzir o desconhecido para uma lngua que desconheo, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonmbula

    que se eu estivesse acordada no seria linguagem. (LISPECTOR, 2009, p.19)

  • 12

    2. DESAPRENDER 8 HORAS POR DIA ENSINA OS PRINCPIOS1

    [...] a aproximao, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai

    aproximar (Clarice Lispector)

    Durante esses trs anos de imerso neste fazer clnico, vivi um constante

    rompimento de vises. Estudar a filosofia da diferena desacostumar o pensamento,

    opondo-se a um pensamento mais tradicional e homogneo em nossa sociedade

    ocidental, como, por exemplo, o pensamento cartesiano. abrir-se para o novo. Buscar

    uma abertura verdadeiramente possvel para mergulhar nessa aventura filosfica. Bater

    cabea na parede; ler um texto enorme e no entender nenhum pargrafo. perceber

    que no se entende um conceito, mas o corporifica. Torna-o corpo. Foi isso que

    comeou a fazer sentido para mim.

    Pouco a pouco eu fui deixando de lado a ideia de aprender os conceitos atravs

    do meu intelecto e percebendo que, a partir da experincia, eu os apreendia pelo corpo.

    A dimenso da experincia sempre foi importante para mim e no entendia como

    podiam haver tantas pessoas que se interessassem por ler teorias e mais teorias a fim de,

    ao final, t-las compreendido. Eu nunca compreendi. Desta forma, no era mais saber

    ou entender o que me importava, mas conhecer. Elegendo outras formas de percepo

    do mundo, que no a razo; entrando em contato com os meus prprios afetos. E,

    contrariando Descartes, percebi que nossa razo, muitas vezes, nos engana. Foi

    necessrio aprender a confiar nos sentidos. Talvez isso signifique dizer que um conceito

    pode ser aprendido por livros, mas s conhecido pelo viver na dimenso da

    experincia.

    preciso experimentar um conceito at que ele se faa (como)vida. E, assim

    como a vida, um conceito no estvel e nem imortal. Quando buscamos criar

    conceitos que durem no tempo e no espao de forma infinita, estamos nos aproximando

    da busca de uma verdade. No acredito em verdades. Ou melhor, no acredito em uma

    verdade. Talvez esse seja um dos pontos que me separa de algumas psicologias e de

    muitos saberes psis. difcil habitar um espao (fsico ou no) no qual as pessoas

    pretendem defender com unhas e dentes suas verdades absolutas. Afirmar-se a partir da

    negao do outro. No assim que venho trabalhando, no isto que intento produzir.

    1 Trecho do poema Uma didtica da Inveno de Manoel de Barros (BARROS, 2010, p.299).

  • 13

    Gosto do Deleuze (FOUCAULT & DELEUZE, 1979) quando ele aproxima os

    conceitos de uma caixa de ferramentas que devem ser usados enquanto servirem. Gosto

    da Cristina Rauter (RAUTER, 1993) quando se prope fazer uma clnica que, antes de

    preocupar-se com a consistncia interna de um discurso, preocupa-se com os efeitos de

    suas prticas. E gosto do Manoel que me mostra que desaprender 8 horas por dia

    ensina os princpios (BARROS, 2010, p. 299). A gente precisa saber desaprender.

    Ento, j de incio, posso dizer que o que pretendo, no s nesse captulo, mas ao

    longo desse TCC, no criar verdades institudas e nem convencer algum que a forma

    como eu estou pensando superior sua, ou a qualquer outra. O que quero, aqui,

    compartilhar o que ao longo desses anos comeou a fazer sentindo pra mim. E, por

    enquanto, ainda tem feito.

    Assim como vejo a importncia da experimentao de um conceito como vida,

    cheguei ao ponto onde percebi que vida e clnica j no mais se separavam. No apenas

    pelas suas caractersticas semelhantes como a imprevisibilidade, mas pela sensao de

    sentir-me viva naquilo que fao. Foi preciso tomar a clnica como vida, dar a ela um

    movimento prprio para por no mundo. E, assim, produzir o mundo que eu acredito e

    quero viver. Acreditar na minha prpria prtica.

    Trarei, ento, neste captulo, alguns conceitos que foram se fazendo importantes

    na minha compreenso de clnica e que se tornaram parte fundamental da minha

    experincia. Fao uma contraposio com outros conceitos (pensando na importncia de

    desaprender!) que j no serviam mais para mim. Cada um de ns vai montando sua

    prpria caixa de ferramentas.

    2.1. DA ESTRUTURA AO PROCESSO: UM PENSAMENTO

    TRANSDISCIPLINAR

    Habitamos um mundo enrijecido. inquestionvel que vivemos sob uma tica

    racionalista-explicativa onde devemos nos fazer entender. preciso tomar lados, criar

    certezas, verdades absolutas. No h espao para o no saber, para o ser e no ser, para

    o paradoxo. E dessa forma que constitumos, sumariamente, nossos saberes. Busca-se

    uma linha reta de fcil apreenso, um simples. Sobre o assunto, Passos et al. (2003)

    dizem:

    Para a cincia moderna simples o que isolado, descrito e explicado por

    uma disciplina. simples o que se submete luz de um paradigma cientfico.

    A simplicidade de um problema da cincia resultado da semelhana ou

  • 14

    adequao entre a questo investigada e o paradigma dominante, no sentido

    atribudo a este conceito por Thomas Kuhn. graas ao paradigma que

    unifica as teorias de um dado campo cientfico, que possvel identificar e

    isolar um problema evitando a forma complicada como ele inicialmente se

    apresenta. [...] Na oposio entre simplicidade e complexidade, opta-se pelo

    primeiro termo, definindo-se o compromisso cientfico.

    Simplificar unificar, totalizar, retificar; tornar exato aquilo que no o ;

    delimitar fronteiras precisas. Tornar o complexo assimilvel pela nossa compreenso.

    uma reduo em nome do entendimento e no do conhecimento! -, da concordncia,

    do unssono. A busca pela simplicidade, desta forma, desconsidera a multiplicidade do

    ser/ de ser.

    Podemos dizer, no entanto, que hoje j h buscas por certa flexibilizao destas

    fronteiras, reconhecendo-se a importncia de somar olhares, ou de criar zonas de

    interseo. Na rea da sade, por exemplo, as equipes multi/interdisciplinares so cada

    vez mais frequentes, afirmando-se a impossibilidade de olhar para a complexidade do

    ser humano por apenas um vis, seja ele qual for. Todavia, o que vemos como efeito,

    seja da multidisciplinaridade, seja da interdisciplinaridade, a manuteno das

    fronteiras disciplinares, dos objetos e, especialmente, dos sujeitos desses saberes.

    (PASSOS & BARROS, 2000). Desta forma, por mais que haja um movimento de

    multiplicar olhares, tornar as fronteiras mais maleveis, ainda uma tica de limitao

    que prevalece. Os limites entre um saber e outro ainda so claramente marcados.

    Neste contexto, o conceito de transdisciplinaridade faz frente a esta perspectiva

    hegemnica nos trazendo outro olhar sobre a vida/ o viver. A transdisciplinaridade,

    como o prefixo trans indica, diz respeito quilo que est ao mesmo tempo entre as

    disciplinas, atravs das diferentes disciplinas, e alm de qualquer disciplina

    (NICOLESCU, 1999). Assim, ela diz do pensamento que se produz no atravessamento

    das disciplinas, entre elas e no mais no seu interior (PASSOS et al. 2003), uma vez que

    a produo dada no encontro.

    Rompe-se com dicotomias como sujeito-objeto, teoria-prtica, indivduo-

    sociedade, afirmando a relao como constituidora dos termos. a partir do encontro de

    foras que emergem e assumem posies os termos dessa relao. A diferena aqui a

    noo de plano, em lugar de, por exemplo, uma noo de campo, como em Kurt Lewin.

    O psiclogo alemo introduziu a ideia da existncia de relaes funcionais entre os

    termos de um sistema. H a compreenso que o sujeito est inserido em um meio

    ambiente e suas aes individuais so explicadas por ele. Com a mxima o todo mais

    do que a soma das partes, coloca a ideia de sujeito e campo como elementos de uma

  • 15

    relao. Entretanto, dizer desta relao assumir a existncia a priori do campo e do

    sujeito que entram em relao e mudam a partir dali. Sujeito e campo, a, so duas

    entidades e que reforam dicotomias como sujeito-objeto, indivduo-coletivo, eu-

    mundo, etc. Passos e Barros afirmam que o rompimento dessas dicotomias implica na

    constituio de planos onde sujeitos-objetos advm simultaneamente:

    No lugar de campo epistemolgico pensamos ento em um plano de

    constituies ou de emergncias a partir do qual toda realidade se constri,

    desfazendo-se qualquer ponto fixo ou base de sustentao da experincia. O

    conhecimento cientfico no escapa desta mecnica, estando ele tambm

    constitudo sem fundamento substancial, sem natureza mantenedora da sua

    neutralidade e objetividade. No podemos, doravante, aceitar a pretenso de

    um conhecimento desinteressado que apenas desvela a realidade de seu

    objeto. Pois conhecer estar em um engajamento produtivo da realidade

    conhecida, mas tambm constituir-se neste engajamento por um efeito de

    retroao, j que no estamos imunes ao que conhecemos. Sujeito e objeto se

    engendram no ato de conhecimento, no restando nenhuma anterioridade,

    nenhuma garantia prvia. (PASSOS & BARROS, 2000, p.76-77).

    Podemos dizer, ento, que o que salta como diferena na ideia de plano a

    extino de formas fechadas que se comunicam, ou de partes que compem o todo

    mesmo que o todo seja maior do que sua soma. Afirma-se o trans no lugar do inter e do

    multi, pois as disciplinas j no so mais disciplinas e no existem em separado: so

    efeito.

    Se antes se pretendia um pesquisador neutro, agora, torna-se impossvel almejar

    esta posio, pois nem pesquisador nem campo de pesquisa existem antes de seu

    encontro, de seu plano constitutivo. No se entra em um campo, uma vez que no se

    existe antes dessa entrada. A ideia de plano causa grande impacto nos conhecimentos da

    psicologia, uma vez que coloca em questo o nosso objeto de estudo: o sujeito.

    Desta forma, a perspectiva transdisciplinar coloca de lado ideais estruturalistas,

    afirmando um carter processual do ser. Passa a no ser mais possvel olhar o mundo

    como formas fechadas que se encerram em si mesmas, uma vez que todas as formas

    advm de relaes, formando e transformando-se nelas. a partir dessa viso - de

    carter processual - que pensaremos os sujeitos no mais como totalidades, estruturas ou

    unidades indivisveis, mas como processos subjetivos em constante atualizao.

    Subjetividades que se produzem a partir dos encontros que fazem, e, na mesma tica

    transdisciplinar, so produtoras e produtos de relaes.

  • 16

    2.2. DO INDIVDUO PRODUO DE SUBJETIVIDADE: A

    POSSIBILIDADE DE SER OUTRO

    Foras dominantes, foras dominantes, foras dominantes! disso que estamos

    falando. Formas de viver que foram se cristalizando ao longo da histria e tornando-se

    modos hegemnicos da existncia tais como conhecemos hoje. No tendemos a pensar

    sobre a hegemonia, question-la. Aceitamos, somos produzidos e produzimos a partir

    dela. Formas vo se tornando verdades; e verdades so inquestionveis. Essa a

    verdade do homem ocidental: um indivduo em oposio sociedade. Uma unidade

    indivisvel pautada em sua prpria histria, com sua essncia. Um sujeito estrutural que

    no tem como fugir de ser eu mesmo. Um eu que se diferencia dos demais como parte

    destacada e nica. Um ser pronto e no construdo. H uma crena na fixidez do mundo.

    Oponho-me a concepo de subjetividade tratada como substncia, entidade

    dada desde sempre, naturalizada por leis universais estritamente psquicas, que a

    regrariam e lhe assegurariam contornos conceituais bem delimitados e imutveis

    (TEDESCO, 2006). Afirmo um carter processual da subjetividade. Somos movimentos

    constantes, que se fazem, desfazem, refazem. Subjetividade compreendida por

    Guattari como um processo de produo no qual comparecem e participam mltiplos

    componentes e que no passvel de totalizao ou de centralizao no indivduo

    (GUATTARI & ROLNIK, 1996, p.31). Assim, o sujeito efeito de um processo de

    produo: processo de subjetivao, plano de subjetivao ou de criao do si (PASSOS

    & BARROS, 2004). Em contraposio ao efeito dado pelas modulaes do capitalismo

    a separao entre produto e produo e, consequentemente, entre produo de

    subjetividade e sujeito tem-se uma subjetividade plural, polifnica, e sem nenhuma

    instncia dominante de determinao (idem).

    Portanto, falar de subjetividade falar de uma maqunica, de um processo de

    produo dirigido gerao de modos de existncias, ou seja, modos de agir,

    sentir, de dizer o mundo. analisar um processo de produo que tem a si

    mesmo, o sujeito, como produto. Precisamos entender a subjetividade ao

    mesmo tempo como processo e produto. [...] No h dicotomia sujeito-objeto

    ou sujeito-mundo. O que temos a subjetividade como um plano de foras,

    onde tanto o sujeito quanto o mundo so j efeitos. (TEDESCO, 2006, p.358)

    Assim, pode-se dizer que do processo de produo de subjetividade, de um

    plano histrico-poltico, emerge o sujeito como efeito. Como afirma Guattari,

    subjetividade o conjunto das condies que torna possvel que instncias individuais

    e/ou coletivas estejam em posio de emergir como um territrio existencial

  • 17

    autorreferencial, em adjacncia ou em relao de delimitao com uma alteridade ela

    mesma subjetiva (GUATTARI, 2012, p. 19). Aqui, temos uma concepo de sujeito

    como territrio, destacando a sempre nomadizao das fronteiras territoriais. Fronteiras

    que delimitam o dentro e o fora de forma cambiante e aberta. Sendo o territrio sempre

    composto por uma dimenso perceptvel e outra imperceptvel e que nos escapa

    constantemente (OLIVEIRA & FONSECA, 2006, p.142).

    inegvel o movimento do sujeito de se reconhecer, de se reafirmar e de buscar

    uma identidade. O carter autorreferencial que nos expe Guattari , de alguma forma,

    uma individuao da subjetividade. Pois tambm a identidade uma fora hegemnica

    no contemporneo e que atua no plano de constituio subjetiva. Desta forma, no h

    uma negao da existncia de um eu, mas assuno de que eu sempre efeito e est

    sempre em via de ser eu-outro e no eu mesmo. Do caos das foras a forma-sujeito

    surge como efeito. No h existncia possvel que no contorne o caos dando-lhe

    alguma organizao mesmo que provisria. Este movimento de formar a partir do caos

    ser aqui chamado de territorializao. O territrio que consideramos est sempre em

    via de formar-se e transformar-se. Assim, se considerarmos o territrio em constante

    formao, h dinmicas e movimentos que o constituem. Ele formado por

    agenciamentos que reterritorializam, normatizam, estriam e estratificam, mas tambm

    que desterritorializam e provocam transgresses. (idem, p. 144).

    Um territrio nunca est fechado em uma forma. Ele tem fronteiras que so

    flexveis e que se fazem e desfazem nos encontros com outras foras. A cada contato a

    superfcie se alarga ou se retra, mudando, inclusive, de forma. Ou seja, o contorno se

    modifica a todo instante, cambiando, at mesmo, o que est dentro e o que est fora

    simultaneamente.

    Dentro e fora no so meros espaos, separados por uma pele compacta que

    delineia um perfil de uma vez por todas. Percebemos que eles so

    indissociveis e, paradoxalmente, inconciliveis: o dentro detm o fora e o

    fora desmancha o dentro. Vejamos como: o dentro uma desintensificao

    do movimento das foras do fora, cristalizadas temporariamente num

    determinado diagrama que ganha corpo numa figura com seu microcosmo; o

    fora uma permanente agitao de foras que acaba desfazendo a dobra e seu

    dentro, diluindo a figura atual da subjetividade at que outra se perfile.

    (ROLNIK, 1997, p.2)

    Outra sempre se perfila. Pois h em ns a impossibilidade de habitar o caos. Isto

    no significa dizer que no haja caos em nossas formas, entretanto, diante do caos,

    haver sempre uma busca por organizao. Algum rgo que torne possvel o corpo

  • 18

    respirar. Alguma pausa que traga ar aos pulmes. Deste movimento, nos fala

    brilhantemente Clarice:

    J que tenho que salvar o dia de amanh, j que tenho que ter uma forma

    porque no sinto fora de ficar desorganizada, j que fatalmente precisarei

    enquadrar a monstruosa carne infinita e cort-la em pedaos assimilveis pelo

    tamanho de minha boca e pelo tamanho da viso de meus olhos, j que

    fatalmente sucumbirei necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar

    indelimitada ento que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a

    nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de

    resistir tentao de inventar uma forma (LISPECTOR, 2009, p.13).

    A cada passagem de corpo pelo caos, pela desorganizao, pelo aforme, tem-se

    uma experincia de reinveno. A isso cabe dizer que o territrio subjetivo nunca

    permanecer o mesmo. Vale lembrar que estamos aqui falando de microcosmos, do que,

    constantemente, invisvel aos nossos olhos, principalmente aos olhares acostumados.

    O que podemos apreender certa regularidade, certo ritmo subjetivo que nos permite

    dizer eu sou assim, mesmo que assim seja outro a cada instante; que eu seja um

    efeito; e ser, apenas um estado de corpo. seria um erro no reconhecer que esta forma

    regular corresponde apenas a um instante nico da subjetividade, um momento de um

    processo maior, uma fase de uma atividade contnua de produo de si (SCHERR

    apud TEDESCO, 2006, p. 358). Este processo maior talvez possa ser entendido a partir

    da noo de ritornelo:

    Segundo Deleuze e Guattari (1997), h trs momentos sucessivos na

    evoluo do ritornelo: no primeiro, o caos um imenso buraco negro no qual

    estamos imersos em afectos que no conseguimos discernir, mas somos

    afectados por um centro frgil e incerto. No segundo, construmos um em-

    casa, traamos um crculo na tentativa de organizar um espao limitado e

    seguro, sendo que o em-casa no preexiste, algo do buraco negro que se

    tornou um em-casa. No terceiro, somos lanados para fora do em-casa a fim

    de que possamos construir novos em-casa. O ritornelo produz e produzido

    pelos agenciamentos que constituem os territrios. [...] As trs formas de

    agenciamento esto sempre presentes em um territrio, sendo trs os

    momentos do ritornelo: o infra-agenciamento o movimento de agrupamento

    para se dar forma a algo, em que alguns elementos de um plano direcionam-

    se em movimentos pr-territoriais, concentrando-se em um foco para

    enfrentar as foras do caos. Nem tudo afeta tudo, h uma atrao, uma

    tendncia, um contgio, algo que produz uma consistncia; o intra-

    agenciamento como os componentes conectados agenciam-se e organizam-

    se, consolidando uma forma, um repouso amigvel. O em-casa so as

    conexes que se consegue estabelecer com o caos produzindo territrio a

    partir das matrias expressivas. O interagenciamento a necessidade de devir

    do territrio, o que, paradoxalmente, consolida-o e abre-o a outros

    agenciamentos, um movimento de desterritorializao atravs do material,

    uma vez que transita pelo plano de consistncia e de desenvolvimento.

    Ritornelo o ato de fazer trajetos criando um territrio e suas paisagens.

    (OLIVEIRA & FONSECA, 2006, p.145-146).

  • 19

    H um movimento sempre expansivo e que busca a abertura ao invs do

    fechamento, do encerramento, da clausura. Em um movimento de ritornelo h sempre

    transformaes, mudanas, devires. Organiza-se e desorganiza-se simultaneamente.

    Criando-se um mnimo-eu. Algo que se repete e que no o mesmo. Trata-se de uma

    fuga que sempre faz retornar, que sempre retoma o punhadinho de terra necessrio; h,

    como afirma Luciano Bedin (DA COSTA, 2006, p.7) uma impossibilidade de um

    reconhecimento pleno na retomada, afinal de contas, ela nunca ser a mesma e, assim,

    conserva-se a estrangeiridade na retomada.

    Estamos pensando a existncia desse processo maior como o movimento que

    rege o formar, o desformar e o reformar, e, ao mesmo tempo, presta certa regularidade

    que faz possvel o reconhecimento de uma forma; um mnimo-eu, ou a to bela

    metfora de Luciano Bedin (2006), o punhadinho de terra necessrio. Assim, podemos

    inferir que as subjetividades esto em constantes transformaes. E que nunca se o

    que se era ou o que se ser. Rompe-se completamente com a ideia de uma unidade

    indivisvel ou de uma estrutura subjetiva. Toda forma que nosso olhar capta

    inseparvel de foras invisveis que a impulsionam transformao. Retomando Rolnik

    (1997) o que vemos uma forma que com esta simples viso do olho nu, nos permite

    estabelecer um dentro e um fora, no entanto, h as foras invisveis que esto

    temporariamente cristalizadas no dentro e fortes e pulsantes no fora. Essas foras podem

    ser captadas por ns apenas com nosso olhar vibrtil, que v o invisvel mas so a

    afirmao e a garantia de que sempre haver uma transformao. assim que podemos

    pensar o ser sempre aberto ao devir, ao outrar-se e abandonar o olhar fixador para poder

    olhar o mundo como uma potente diferena. Olhar o mundo como uma possibilidade;

    de produo, de inveno, de criao.

    Como poderamos pensar a clnica sem este olhar? Como pensar o encontro

    entre subjetividades se no com a abertura de se produzir o diferente? Pensar o ser como

    uma estrutura fixa sempre me desassossega. Para mim, desta forma, no h como haver

    vida. E se no houver vida, no haver tambm clnica. Ento, com esta compreenso de

    sujeito a partir de uma produo de subjetividade, na qual produzem-se territrios

    autorreferenciais a partir de um movimento incessante de transformao, sempre em

    atualizao, com abertura para o novo, que ser possvel para mim pensar uma clnica.

    Uma clnica transdisciplinar.

    No entanto, antes de chegar ideia desta clnica, antes de tra-la na tentativa de

    coloc-la em algumas formas (que, por favor, so sempre provisrias! E necessrias!),

  • 20

    h mais uma transformao do meu pensamento que deve ser colocada em texto. A

    seguir tratarei a noo de desejo partindo de uma forma mais hegemnica de conceb-lo

    (como falta) para a forma como eu o concebo atualmente a partir das leituras de

    Deleuze, Guattari e Rolnik (como produo).

    2.3. DA FALTA AO EXCESSO: O DESEJO COMO PRODUO

    O desejo criao de mundo.

    (ROLNIK, 2014, p.56)

    Parto da frase da Suely, pois afirmo, desde o incio, que desejo aqui ser visto

    como produo. Explico: estou falando at agora de como eu (e outros) rompi com

    alguns conceitos enraizados, enrijecidos e para alm sufocantes e, este modo de

    rompimento sempre feito com uma proposta. Ou seja, a crtica pela crtica no me

    interessa, precisamos afirmar algo. Comear este tpico dizendo que desejo no falta,

    de nada me acrescenta. Ento sigo com Suely afirmando que desejo criao, produo;

    e outro que no uma realidade individuada.

    J rompemos com a noo de indivduo e de sujeito estrutural afirmando

    subjetividades em processo. E a partir desta mxima que pensaremos o desejo. Ou

    seja: teremos que romper com toda e qualquer forma que aprisione o desejo em um

    corpo, em um dentro, que o individualize, que o relacione a um eu que para

    onde o nosso pensamento acostumado nos leva. Se a forma hegemnica de pensar,

    contemporaneamente, coloca a vida a girar em torno dos nossos prprios umbigos,

    um movimento fcil e assimilvel o que se faz de pensar o sujeito como depositrio do

    desejo. Eu desejo. No entanto, como j consideramos o eu como efeito de um

    processo de produo, teremos que fazer o mesmo com um desejo dito individual. E,

    assim, desejo no mais um movimento do dentro, mas uma produo do plano.

    Um exemplo para pensarmos essa noo a propaganda. comum no nosso

    dia-a-dia sentir desejo de algo aps assistir uma propaganda: comprar um celular, tomar

    uma cerveja, etc, etc... Acontece, pois, que esta se usa, justamente, de sua capacidade de

    produzir o desejo.

    Do meu ponto de vista no d para se falar em desejo individual. a

    produo de subjetividade capitalstica que tende a individualizar o desejo, e

    quando vitoriosa nessa operao, no h mais acmulo processual possvel.

    Instaura-se um fenmeno de serializao, de identificao, que se presta a

    toda espcie de manipulao pelos equipamentos capitalsticos. A questo,

    portanto, no se situa em nvel do agrupamento de indivduos, e sim de uma

  • 21

    pragmtica de processos de produo de desejo, que nada tem a ver com esse

    tipo de individuao. (ROLNIK & GUATTARI, 2011, p. 281)

    Guattari e Deleuze j afirmavam que a produo de subjetividade capitalstica

    maqunica e, uma das mquinas engendradas que opera nessa produo a mdia. Muito

    para alm da propaganda que pode ter seus efeitos minimizados quando se pensa a

    implantao de vontade de consumir algo podemos pensar outras formas que essas

    mquinas incidem em nossas subjetividades, outros desejos que produzem. Produzem

    em ns ideais, formas consolidadas, verdades e pouco ou nada nos questionamos

    sobre elas. Ao contrrio, nossos corpos se movem atravs dos desejos e, muitas vezes, o

    desejo produzido hegemonicamente pelas mquinas de produo difere-se (e muito) de

    outros desejos que so produzidos no atravessamento dessas foras com a nossa

    existncia.

    Tomarei o livro Cartografia Sentimental de Suely Rolnik (2014) para pensar

    essa ideia. Suely descreve perfeitamente os movimentos do desejo. Com a figura da

    aspirante-a-noivinha ela nos apresenta a ideia de mscaras (que so artifcios produzidos

    pelo desejo) que impem um tipo de movimento no mundo. A aspirante-a-noivinha que

    se localiza antes da dcada de 50 ao encontrar-se com um homem responde a esta

    afetao e ele tambm de forma que a aspirante a noivinha vinga. No entanto, quando a

    cena se passa aps a dcada de 50, quando os territrios matrimoniais vm sofrendo um

    processo de desabamento, a aspirante-a-noivinha gora. A mscara da noivinha, neste

    caso, j no lhe serve. No entanto, no h aqui uma ideia de que por trs da mscara

    (artifcio do desejo) existe uma verdade um rosto autntico, originrio; o que h por

    trs da mscara nada, um vazio de formas com foras atuantes na criao de novas

    mscaras.

    Esta histria das noivinhas ser usada aqui, no apenas para ilustrar a ideia de

    um desejo produzido no social, mas a ideia que uma produo de desejo no se

    compromete com uma verdade. No existe um por trs do desejo, alis, nem na frente

    e nem dos lados. O desejo produo que se desdobra em movimentos; de

    territorializaes e desterritorializaes, de abertura para o novo por linhas de fuga.

    Veremos isso mais adiante quando falarmos em cartografias.

    Retomando a maqunica capitalstica, o que temos que estas mquinas

    produzem o desejo e, assim, podemos pensar este desejo como pertencente ao social. H

    de se fazer uma ressalva: pensar o desejo como social no significa dizer que o social

    seja uma juno de desejos individuais, construdo a partir desses desejos; no

  • 22

    afirmamos o todo como sendo mais do que a soma das partes, pois, como j pensamos

    a partir da noo de transdisciplinaridade, no h partes que compem; o social no a

    soma dos indivduos, mas os indivduos so efeito do social; destes agenciamentos

    coletivos. O desejo no corresponde a um suposto campo individual ou interindividual,

    o qual estaria numa relao de exterioridade ao campo social [...] o desejo a prpria

    produo do real social (ROLNIK, 2014, p.57-58).

    A concepo de desejo no campo social, que Gilles Deleuze e eu tentamos

    desenvolver, tende a questionar a ideia de que o desejo e a subjetividade

    estariam centrados nos indivduos e resultariam da interao de fatos

    individuais no plano coletivo. Partimos mais da ideia de uma economia

    coletiva, de agenciamentos coletivos de desejo e de subjetividade que, em

    algumas circunstncias, alguns contextos sociais, podem se individualizar.

    (ROLNIK & GUATTARI, 2011, p. 280-281)

    Se o desejo no centrado no indivduo podemos dizer, to logo, que no

    possvel pensar o desejo a partir da falta, da castrao; pela busca do prazer. Para

    Guattari (idem, p.260-261) h formas de conceber o desejo, numa psicologia e moral

    dominantes que veem o desejo como algo secreto e vergonhoso e, assim, lhe atribuem

    um carter repressivo. Esta aura que envolve o desejo colocando-o como algo a ser

    vivido na clandestinidade enxerta uma impotncia no corpo desejante. Aqui pensamos

    um corpo que s opera na potncia, na positividade. Como afirma Espinosa (apud

    BOVE, 2009), o desejo a prpria potncia de afirmar a vida e de produzir efeitos. A

    falta no movente, o que produz um movimento a fora (fora motriz) e, nesse

    sentido, desejo excesso; o que transborda delimitando novos contornos para o dentro

    e para o fora.

    O desejo , ento, sempre produo de algo, o modo de construo de algo e

    nada tem a ver com o caos; nunca uma funo da desordem (ROLNIK &

    GUATTARI, 2011, p. 261). A aproximao do desejo com o caos tem como finalidade,

    em ltima instncia, sua modelizao e disciplina. Para Rolnik (2014, p.63), a

    concepo do desejo como caos e da subjetividade como interioridade fazem parte de

    uma estratgia de pensamento que est a servio da conservao. E o que se produz a

    partir deste pensamento uma vida que est preocupada com o reconhecimento; temos

    a impresso de nos caracterizarmos por um conjunto de representaes e sensaes

    fixas, um dentro a impresso de ter um dentro e at de ser esse dentro. Um

    suposto dentro que morre de medo de se perder (idem, p.43).

    Utilizar-nos-emos desta ideia do desejo como produo tambm para pensar a

    clnica. Neste sentido, o psiclogo que entende o desejo como produo de real social

  • 23

    poder ser chamado de cartgrafo, j que, assim, seu trabalho ser o de acompanhar

    os meandros desta produo.

    3. EU PRECISO SER OUTROS2

    Isso de querer ser exatamente aquilo

    que a gente

    ainda vai

    nos levar alm (Paulo Leminski)

    Usar o nome Clnica Transdisciplinar no deve, de forma alguma, delimitar

    esta clnica associando-a como uma tcnica, ou dizer de um corpo terico especfico.

    No se trata da aplicao de uma teoria, uma vez que rompe-se, inclusive, com a ideia

    de teoria e prtica. Pelo olhar da transdisciplinaridade vemos tanto teoria quanto prtica

    como efeito de um plano constituinte. Quer-se us-la como possibilidade para pensar o

    campo da clnica nisso que ele tem de potncia de se criar e recriar a cada instante

    (PASSOS & BARROS, 2000). Dizer de uma clnica transdisciplinar muito mais do

    que dizer quais autores estamos lendo, mas de que modo estamos lendo. um modo

    trans. um modo que no se prende aos limites territoriais, mas que busca potncias. A

    visada no a de clausura, mas a de ampliao.

    Cristina Rauter (1993) afirma que pensar uma clnica transdisciplinar pensar

    uma prtica orientada por um campo do saber que chama de campo de disperso,

    opondo-se a qualquer saber que se proponha universal e ordenado, no se preocupando

    com a coerncia interna do discurso, mas com os efeitos que produziro no campo das

    prticas. Para Deleuze (FOUCAULT & DELEUZE, 1979), uma teoria como uma

    caixa de ferramentas, ou seja, preciso que ela sirva, que funcione; que haja pessoas

    para utiliz-la. Ento, poderamos dizer que um modo trans de ver a clnica importa-se

    com os efeitos e com a boa utilizao das ferramentas. Preocupando-se menos com o

    unssono e mais com o polifnico.

    Segundo Fonseca e Kirst (2004) o modelo hegemnico de clnica tem algumas

    de suas razes em princpios de uma episteme que privilegia a dicotomizao

    (consciente e inconsciente, interioridade e exterioridade, clnica e poltica, sujeito e

    vida); a correo do que est fora da norma alimentada por modelos de identificao

    2 Trecho do poema Biografia do Orvalho de Manoel de Barros (BARROS, 2010, p.374).

  • 24

    a serem reproduzidos em nome da ordem e do bem-estar; a tarefa de constituio de

    certa homogeneidade dos seres; a busca pela verdade. Nesta perspectiva, clnica se

    coloca como uma repetio dos modos primazes de existncia, garantindo um

    apaziguamento do sofrer mediante a adequao na repetio, na familiaridade;

    domesticando corpos. Coloca-se como uma barreira petrificante de fluxos, garantindo o

    conforto desconfortvel da rigidez.

    Uma prtica que reafirma um modo indivduo de subjetivao afirmando o

    sujeito como causa de si mesmo; compreendendo o inconsciente como produto e

    produtor, causa e efeito. Busca, dessa forma, na histria do sujeito, sadas para o futuro.

    No entanto, a busca no pela transformao, mas pela repetio. Evitando o contato

    com o diferente, com o outro, com o desvio. A busca incansvel de continuar a ser o que

    se . "Ao buscar ensinamentos no que j foi para viverem o que est sendo, querem, em

    ltima anlise, assegurar-se de que continuaro a viver como sempre viveram, ser como

    sempre foram" (RAUTER, 2012, p.67).

    Quero pensar uma outra forma de clnica. Um clinicar que garanta a respirao,

    a fluidez: a vida. Clnica ser tomada aqui pelo seu movimento instituinte, seu potencial

    transformador, seu vis intercessor; acreditando que o fazer clnico se d no encontro e

    apenas nele, no existindo como instituio; ele da ordem do acontecimento. Clinicar,

    ser clnico, fazer-se clnica.

    Temos, ento, os consultrios psicoterpicos no como clnica a priori, mas

    como espaos com potncia clnica; clnica em potencial. Quando pensamos a clnica na

    experincia do contemporneo temos que tanto um, quanto outro tm os desvios e a

    desestabilizao como caractersticas e, assim, podemos afirmar que a clnica sempre

    uma figura do contemporneo. Desta forma, a clnica no pode ser definida por um

    espao fsico, nem por um tempo medido. Como afirmam Passos e Barros (2001 p. 91-

    92):

    A clnica do contemporneo/ no contemporneo uma clnica

    necessariamente utpica e intempestiva. Essas duas figuras, uma do espao

    (utopia) e a outra do tempo (intempestividade), se entrelaam pela

    caracterstica comum da instabilidade. Pois a clnica no est nem

    completamente aqui nem completamente agora, sob o risco de ser acusa de

    adaptacionista, utilitria, ortopdica. Entretanto, no podemos tambm dizer

    que ela seja uma clnica de l ou do passado, sob o risco de aprisionar as

    foras produtivas do desejo seja nas estruturas arqueolgicas, seja na histria.

    Se a clnica no est aqui, nem est l, porque ela se localiza em um espao

    a ser construdo. Nesse sentido, podemos dizer que ela habita uma utopia,

    uma vez que pela afirmao do no-lugar (u-topos) que ela se compromete

    com os processos de produo da subjetividade. Assim que ela tambm no

    pode ser uma ao do presente ou do passado. Sua interveno se d num

  • 25

    tempo intempestivo, extemporneo, impulsionado pelo que rompe as cadeias

    do hbito para a constituio de novas formas de existncia.

    Dizemos ento que a clnica est localizada neste no-lugar, neste entre. E

    justamente por estar neste entre vazio e potencial que ela tem como possibilidade a

    criao de desvios. Os desvios s podem acontecer a partir do nada, do sem limite, do

    indefinido, do vazio. Por trs das mscaras (artifcios do desejo) isso que existe: o

    nada. E, ao mesmo tempo que o entre o nada, o tudo, pois comporta todas as

    possibilidades de vir-a-ser. a existncia e criao de entres que potencializa a clnica.

    E dizer que a clnica se d no entre no significa, de modo algum, que no h linhas

    duras que atravessam a clnica, o clnico e o clinicar. , pois, a afirmao do entre que

    nos lembra: h sempre uma brecha/ possibilidades de suspiros no meio das pedras.

    Um entre, passagem hbrida que comporta um tanto das formalizaes de

    configuraes identitrias ou a rigidez das formas-sujeito que tanto vislumbramos no viver e tambm a emergncia de movimentos inventivos abertura variao, ao fluxo cambiante e produo de diferena, como movimentos contnuos e incessantes. (VALVIESSE, 2013, p.19).

    Pensemos a procura por atendimento psicolgico, ento, como uma busca por

    sadas para os ns apertados e quase sufocantes da experincia do contemporneo; por

    desejo de respirar em meio s foras aprisionadoras de subjetividades; por formas mais

    leves de ser e viver. Os consultrios dos psiclogos se enchem de pessoas buscando

    alternativas a esses modos rgidos de existncia. Encontram-se, ento, subjetividades

    que caminhavam cada qual ao seu sentido. E a que a clnica acontecer, neste entre-

    dois, nesta possibilidade. E, neste encontro no vazio, quando clnico, h choque:

    produo de desvio.

    O sentido da clnica, para ns, no se reduz a esse movimento do inclinar-se

    sobre o leito do doente, como se poderia supor a partir do sentido etimolgico

    da palavra derivada do grego klinikos (que concerne ao leito; de klne, leito, repouso; de klno inclinar, dobrar). Mais do que essa atitude de acolhimento de quem demanda tratamento, entendemos o ato clnico como a

    produo de um desvio (clinamen), na acepo que d a essa palavra a

    filosofia atomista de Epicuro (1965). Esse conceito da filosofia grega designa

    o desvio que permite aos tomos, ao carem no vazio em virtude de seu peso

    e de sua velocidade, se chocarem articulando-se na composio das coisas.

    Essa cosmogonia epicurista atribui a esses pequenos movimentos de desvio a

    potncia de gerao do mundo. na afirmao desse desvio, do clinamen,

    portanto, que a clnica se faz. (PASSOS& BARROS, 2001, p. 91).

    Desta forma, o fazer clnico coloca-se como uma busca de alternativa vida. A

    clnica no aparece aqui mais como mantenedora de linhas duras, mas como uma busca

    por brechas, linhas tortas, de fuga, sadas, entres. Isto , afirma-se um compromisso

  • 26

    tico com a diferena, a transformao, a flexibilizao, a fluidez; com o devir. Uma

    clnica transdisciplinar.

    3.1. O OBJETO DE ESTUDO DA CLNICA: PLANO DE PRODUO

    Ao pensarmos uma clnica orientada por um movimento transdisciplinar, que

    difere-se de um modelo hegemnico e tradicional no campo da clnica, faz-se necessrio

    traar algumas coordenadas acerca dos contornos que estamos marcando. Sendo assim,

    o primeiro ponto que ser mapeado no presente trabalho o objeto de estudo da clnica.

    Afirmamos subjetividades em processo no lugar de sujeitos ou indivduos. Desta forma,

    a clnica no se refere aos impasses do sujeito a uma realidade essencialmente psquica,

    ou aos conflitos intimistas, mas, antes disso, debrua-se sobre o plano de foras do qual

    emergem os sujeitos. Para alm do sujeito emergente, constitudo e produzido, existe o

    seu plano de produo/constituio e este plano que se torna o objeto da clnica.

    Se estamos tomando uma subjetividade como efeito, precisamos nos perguntar:

    efeito de que? Efeito de relaes entre foras de produo. Abandonou-se aqui a ideia

    de um indivduo em separado da sociedade. Como consequncia, precisamos

    considerar o carter poltico, as relaes de poder que compem este plano, as relaes

    de foras implicadas no processo de produo (TEDESCO, 2006, p. 358). No

    podemos mais separar clnica e poltica, pois toda anlise, toda clnica poltica,

    porque problematiza os lugares institudos, as dicotomias naturalizadoras, porque

    pergunta sobre os modos de constituio das instituies (BARROS, 2013, p. 13)

    sendo assim, imprescindvel uma investigao dos modos de exerccio de poder na

    contemporaneidade (PASSOS & BARROS, 2004).

    Para falarmos em poder torna-se indispensvel irmos ao encontro de Foucault. O

    autor, apesar de nunca ter se proposto responder a pergunta o que poder?, fez

    brilhantes anlises acerca das formas de exerccio do mesmo. Aqui ser ento

    importante traar alguns pontos da histria do poder, buscando nesta histria - aquela

    fora propulsora que nos permite dela desviar (PASSOS & BARROS, 2001, p.90). Em

    Histria da sexualidade I: A vontade de saber Foucault escreve pela primeira vez em

    livro o conceito de biopoder. Este importante para compreendermos a forma como as

    relaes de poder se do, sumariamente, em nossos tempos. numa transio de uma

    sociedade disciplinar para uma sociedade de controle que Foucault escreve. Para

  • 27

    Deleuze (2003, p. 219) certo que j entramos em sociedades de controle, que j no

    so exatamente disciplinares.

    Nas sociedades disciplinares o indivduo est imerso em grandes meios de

    confinamento, no cessando de passar de um espao fechado a outro, cada um com suas

    leis - famlia, escola, casebre, fbrica, etc (idem, p. 223). Neste modelo de sociedade -

    que sucede uma soberana na qual o poder se incide sobre o direito de vida e morte, ou

    seja, o direito de causar a morte ou de deixar viver (FOUCAULT, 1985, p. 128)

    aparece a norma como forma de controle alm da lei. Enquanto esta discrimina entre o

    permitido e o proibido, aquela se move em relao a um campo de comparao no qual

    h maior ou menor adequao a respeito do que se considera timo; para estabelecer

    esse padro de referncia, no se serve de cdigos, mas de saberes e, finalmente, no

    busca separar uns de outros, mas adequar e homogeneizar, normalizar (CASTRO,

    2014, P.93-94). neste poder disciplinar que surge o modelo do panptico. Esta torre

    centralizada - que pode ser vista e ver qualquer ponto e, ao mesmo tempo no possibilita

    que os que esto de fora vejam o que se passa l dentro - o smbolo deste poder

    invisvel e presente a todo momento. A disciplina cria seres normalizados que no mais

    preocupam-se em respeitar uma lei, mas em estar dentro da normalidade. A sociedade

    disciplinar cria, desta forma, corpos dceis e teis.

    Aqui j se torna possvel falar em um biopoder. Este contrape-se ao poder

    soberano, uma vez que incide sobre a vida. J no se trata de pr a morte em ao no

    campo da soberania, mas de distribuir os vivos em um domnio de valor e utilidade

    (FOUCAULT, 1985, p. 135). Assim, temos que esse biopoder se fez elemento

    indispensvel ao desenvolvimento do capitalismo, que s pde ser garantido custa da

    insero controlada dos corpos no aparelho de produo e por meio de um ajustamento

    dos fenmenos de populao aos processos econmicos (idem, p. 132).

    nesta insurgncia do capitalismo que Benevides (BARROS, 2013) afirma

    encontrarmos os primeiros sinais de um modo indivduo de subjetivao. a partir do

    capitalismo liberal que se difunde a ideia de que todas as diferenas de classe, sexo,

    idade devem desaparecer diante da lei, uma vez que todos tm os mesmo direitos e

    deveres (idem, p.43). No entanto, a partir deste iderio capitalista surge, por outro lado,

    a ideia de que os indivduos podem ascender na hierarquia social e isto se d por meio

    de suas caractersticas individuais. Destaca-se [...] a categoria de indivduo, foco de

    uma poltica que comeava a se instaurar e que visava corpos teis e produtivos, efeitos

    do capitalismo (idem, p.44).

  • 28

    Guattari afirma uma produo de subjetividade capitalstica (ROLNIK &

    GUATTARI, 2011). Isso significa dizer que a fora do capitalismo incide fortemente

    nos planos de produo de subjetividade, o que nos aponta para a emergncia de

    subjetividades serializadas e normalizadas. Para ele (idem, p. 33), a produo de

    subjetividade no sistema capitalstico industrial e se d em escala internacional.

    Tudo o que produzido pela subjetivao capitalstica tudo o que nos chega pela linguagem, pela famlia e pelos equipamentos que nos rodeiam no apenas uma questo de ideia ou de significaes por meio de

    enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade ou a

    identificaes com polos maternos e paternos. Trata-se de sistemas de

    conexo direta entre as grandes mquinas produtivas, as grandes mquinas de

    controle social e as instncias psquicas que definem a maneira de perceber o

    mundo (idem, p. 35).

    Para Deleuze (2003, p. 220), estamos entrando nas sociedades de controle que

    funcionam no mais por confinamento, mas por controle contnuo e comunicao

    instantnea. Desta forma, a comunicao instantnea e a circulao da informao,

    tornam-se mquinas de controle social. A informao exatamente o sistema de

    controle (DELEUZE, 1999). Este controle social no se d apenas em nvel do

    comportamento do sujeito, mas nas formas como ser subjetivado. A informao nos

    chega a todo o momento sem nos darmos conta, seja por meio de conversas, textos,

    programas de televiso, filmes, etc. Um exemplo para pensarmos como essas

    informaes que nos chegam participam da nossa subjetivao o ideal romntico.

    Ideal este que circula desde as mais tenras idades, com princesas que esperam seus

    prncipes que chegaro montando o cavalo branco, e as despertaro do sono profundo,

    at as novelas e filmes em que o amor sempre vence.

    Essas informaes que circulam o tempo inteiro incidem nos processos de

    produo de subjetividade, ou seja, so foras que atravessam nossos planos de

    constituio. preciso desnaturalizar os efeitos da histria, para extrair dela seus

    processos de produo, fazendo aparecer este jogo de foras que d corpo realidade

    (PASSOS & BARROS, 2001, p.92). Este plano que salta o plano que Deleuze e

    Guattari (apud PASSOS & BARROS, 2001, p. 92) chamaram de micropoltico, plano

    de engendramento das palavras e das coisas. Este plano micropoltico contrape-se e

    complementa-se a um plano macropoltico. Enquanto no macro podemos nos aproximar

    de territorializaes mais delineadas, de recortes visveis, no plano da micropoltica h

    apenas intensidades. O plano, na lgica da micropoltica, nada tem a ver com a

    transcendncia: ele se faz ao mesmo tempo que seu processo de composio

  • 29

    (ROLNIK, 2014, p. 62). o plano dos afetos no subjetivados que so determinados

    pelos agenciamentos que se faz e, assim, inseparveis das relaes com o mundo.

    Acreditamos que a clnica est comprometida com este plano de produo ou

    de individuao sempre coletivo e que indissocivel do domnio da

    realidade individuada. Assumir a dimenso poltica da clnica apostar na

    fora de interveno sobre a realidade efetuada apostando nos processos de

    produo de si e do mundo (PASSOS & BARROS, 2001, p. 92).

    A partir das anlises de Foucault e, mais precisamente, ao conceito de biopoder,

    percebemos que contemporaneamente as relaes de poder se incidem sobre a prpria

    vida. nesta sociedade de controle que Foucault j alertava a passagem e que Deleuze

    nos localizou que urge um reequacionamento das formas de luta e de intervenes

    clnico-polticas. Para tal, elegemos o plano de produo como objeto de estudo da

    clnica nos orientar politicamente a fim de afirmar modos de resistncia da vida a

    poderes que a sucumbem.

    Surge ento, como tarefa clnica, tanto a cartografia o traar de coordenadas

    dos territrios existenciais quanto o exerccio crtico que desnaturaliza o institudo e

    desestabiliza o conjunto de verdades constitudas. Uma busca por um respiro, um

    suspiro no meio das pedras...

    3.2. TRAANDO CARTOGRAFIAS EXISTENCIAIS

    Considerando que toda forma constituda e atravessada por foras, nos importa

    saber quais so essas foras. Neste sentido, o clnico torna-se tambm um cartgrafo:

    traando coordenadas e mapeamentos dos movimentos do desejo. Um mapear das

    intensidades e dos afetos que constituem nossos estados e que ocupam nossos corpos a

    cada momento (FONSECA & KIRST, 2004, p.29). Traar cartografias existenciais.

    O termo cartografia vem da geografia e difere-se dos mapas. Para os gegrafos,

    a cartografia diferentemente do mapa: representao de um todo esttico um

    desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformao

    da paisagem (ROLNIK, 2014, p.23). Ou seja, a cartografia vai alm do que possvel

    capturar de forma esttica (sem movimento, sem fluxo, sedimentada) e prope um

    desenho que acompanha as transformaes das paisagens. Desta forma, opta-se pelo

    termo que faz meno a um movimento. possvel traar cartografias psicossociais,

    pois, uma vez que estamos partindo de uma ideia de subjetividades emergentes de um

    plano de produo/ constituio, sujeito-efeito, produto, temos uma paisagem subjetiva.

  • 30

    Paisagem que no est esttica e por isso no usamos a ideia de mapas mas sempre

    em constante transformao, em via de no-ser e de vir-a-ser; territrios na iminncia da

    desterritorializao.

    H sempre uma passagem de afetos e, na cartografia, busca-se possibilitar esta

    passagem. Para Suely (2014) a tarefa do cartgrafo a de dar lngua para afetos que

    pedem passagem. Para tal necessrio que esteja mergulhado nas intensidades de seu

    tempo e que devore as que lhe parecerem elementos possveis para a composio das

    cartografias que se fazem necessrias. O cartgrafo , antes de tudo, um antropfago

    (idem, p.23).

    Se h a escolha por cartografias e no por mapas , tambm, pois uma

    cartografia no feita somente a partir de elementos visveis, captveis pelos olhos.

    necessrio que o cartgrafo crie para si um corpo vibrtil (idem). Corpo que acompanhe

    os acontecimentos que no so visveis a olho nu, que se abre para a dimenso do

    sensvel, que v as intensidades, as vibraes. Assim vemos que, aqui, o cartgrafo (e

    clnico) ao contrrio de buscar um lugar neutro, utiliza-se de seu prprio corpo, dos

    afetos que se produzem no encontro, para realizar a sua tarefa de cartografar. E, para tal,

    pouco importam as referncias tericas a priori. O que importa que a teoria seja

    sempre cartogrfica, ou seja, se faa juntamente com as paisagens cuja formao ele

    acompanha, e, para isso, o cartgrafo absorve matrias de qualquer procedncia (idem,

    p. 65).

    Neste fazer de cartografias o clnico-cartgrafo busca dar lngua as linhas que

    constituem as cartografias. So trs tipos de linhas de vida que delineiam os

    movimentos do desejo e que aparecem sempre juntas, sempre imanentes umas s outras

    e dizem de fluxos e sedimentaes: as dos afetos (linhas de fuga), de simulao e de

    organizao de territrios (linhas duras). As duas primeiras podem ser vistas como

    fluxos, enquanto a ltima seria a nica linha propriamente dita, no sentido de delinear

    um territrio captvel pela viso de nossos olhos, produzir recortes visveis. Tambm se

    pode pensar apenas a existncia da segunda como uma linha-fluxo, visto que ela carrega

    a possibilidade da primeira e da terceira consigo. Ou seja, diversas maneiras de se olhar

    para estas linhas, mas que nos mostram a inseparabilidade das mesmas.

    A linha dos afetos ou de fuga invisvel e inconsciente. Ela faz um traado

    contnuo e ilimitado que emerge da atrao e repulsa dos corpos, de suas capacidades de

    afetar e serem afetados. Ela um fluxo que nasce entre os corpos e varia em

    velocidade e intensidade. A linha de fuga incontrolvel, como explica Suely, que

  • 31

    enquanto se est vivo no se para de fazer encontros com outros corpos (no s

    humanos) e com corpos que se tornam outros. Isso implica, necessariamente, novas

    atraes e repulsas (idem, p. 49). So afetos que escapam de nossa forma de expresso

    atual, daquela pela qual nos reconhecamos. Sendo assim, traar uma linha de fuga

    traar a possibilidade de um desvio, o que nada tem a ver com fugir do mundo [...] o

    mundo que foge de si mesmo por essa linha. (idem, p. 49-50).

    A linha de simulao comporta em si uma dupla face (seu prprio nome

    simulao trs a ideia de uma ao que acontece simultaneamente), da a

    possibilidade de ser vista como a nica linha-fluxo. A primeira face vai da invisvel e

    inconsciente produo de afetos para a visvel e consciente composio de territrios,

    ou seja, num movimento de territorializao. J a outra face, inversamente, vai do

    visvel, dos territrios, para o invisvel dos afetos que escapam, em um movimento de

    desterritorializao. Rolnik (2014, p.50):

    Essa segunda linha, portanto, double-face: uma face na intensidade

    (invisvel, inconsciente e ilimitada) e outra na expresso (visvel, consciente e

    finita). nela que se opera a negociao entre o plano constitudo pela

    primeira linha (a dos afetos que nascem entre os corpos, em sua atrao e

    repulsa) e o plano traado pela terceira linha (a dos territrios).

    A terceira linha, que a nica linha propriamente - pois que vai traando um

    desenho - a linha de organizao de territrios, a linha dura (segmentada, rgida, de

    difcil passagem) finita, visvel e consciente. No traado da linha dura formam-se

    territrios bem discriminados, numa dura segmentao. Os sujeitos (com sua classe,

    seu sexo, sua idade, sua profisso, sua raa, sua identidade...), assim como os objetos,

    so recortados do plano de organizao desenhado por essa linha: sequncia de uma

    biografia, constituio de uma memria (idem, p.52).

    Os homens esto expostos a viver essas trs linhas, em todas as suas dimenses.

    atravs delas que eles se expressam, se orientam. em seus exerccio que se

    compem e decompem seus territrios, com seus modos de subjetivao, seus objetos

    e saberes (idem, p. 53).

    Cartografar no implica em sistematizar, tampouco em organizar, e tampouco

    em atitude neutra por parte do sujeito-cartgrafo. Na cartografia, percorre-se

    os espaos de ruptura e de propagao. Procura-se desaprender os cdigos,

    embaralh-los mesmo, aguar as sensaes, abrir o corpo, para torn-lo

    passagem das vozes/imagens do mundo ainda no conhecido e

    experimentado. O modo rizomtico, no centrado, conectivo, heterogentico,

    expansivo e no totalizador conduz o obeservador-cartgrafo, mantendo-o

    mergulhado em suas prprias afeces e intensidades. Atento ao dentro que

    se constitui como um avesso do fora que pede passagem, ele se deixa tornar

    suporte tradutor de fluxos a-significantes, canal de expresso do impessoal e,

  • 32

    portanto, sua prpria manifestao encarnada e vivida e subjetivada.

    (FONSECA & KIRST, 2004, p.31-32).

    O que se busca, ento, no cartografar, no dar conta de uma paisagem

    subjetiva, de territrios existenciais, afim de entend-los, esquematiz-los, orden-los,

    mas mergulhar no encontro entre corpos com a potncia de afetar e ser afetado;

    acompanhar os movimentos do desejo. Esta clnica que, por esse olhar, pode ser

    pensada como uma clnica dos afetos/ das afetaes afirma nessa ativao de um corpo

    vibrtil uma abertura para a experincia do devir. Se falo de pedras e de linhas duras

    que preenchem a experincia do contemporneo, tambm falo em suspiros:

    preenchimento dos poros de vida, de devir. Atravs das cartografias podemos

    estabelecer contatos/afetaes pelas linhas de fuga e criar outros possveis.

    O cartgrafo no se guia por uma moral, mas por uma tica. E, aqui, tica

    tomada como produo de vida. O cartgrafo tem a ver com o quanto a vida que se

    expe sua escuta se permite passagem; com o quanto os mundos que essa vida se cria

    tm como critrio sua passagem (ROLNIK, 2014, p.70). A tica aqui a de sustentar a

    vida em seu movimento de expanso. Ao contrrio de reforar palavras de ordem, linhas

    duras, investir sobre linhas que rompam com o enrijecimento e afirmem a vida em

    devir.

    Neste constante movimento entre territorializaes e desterritorializaes h

    sempre a possibilidade de criar para si um outro; devir outro. Buscamos aqui a clnica

    no seu clinamen, na experincia de desvio a partir do encontro. Para tal, alm de pensar

    nas cartografias que nos aproximam das linhas constituintes, nos mostrando

    possibilidades de fazer o mundo fugir, podemos pensar tambm num exerccio crtico

    da existncia. E, assim, que a clnica se estabelece como crtica.

    3.3. A CLNICA COMO CRTICA

    Penso primeiro uma afirmao necessria: esta clnica que falo aqui no se

    preocupa em manter formas, buscar regularidades, ou estabilidades. Como j disse

    anteriormente, o que h uma inteno de desvio; de desestabilizar os institudos.

    Sendo assim, a clnica aqui pode ser entendida como crtica que tomada na sua dupla

    acepo: exerccio de crtica e experincia de crise. Vale, portanto, distanciar a crtica

    de qualquer relao com o julgamento, com a moral, ou com uma busca por verdades.

    Aqui a crtica se enderea aos institudos, aos territrios subjetivos cristalizados, as

  • 33

    formas enrijecidas, a falha tentativa de ser eu mesmo. E esta fora crtica traz, ao

    mesmo tempo, uma experincia de crise a partir da desterritorializao. Para Rolnik

    (2014, p.50) este desabamento de territrio traduzido em termos subjetivos como

    sensao de irreconhecvel, de estranhamento, de perda de sentido em suma, de

    crise. Suely ainda afirma que, pelo fato de haver uma ambiguidade nas produes do

    desejo (territorializar reconhecer e desterritorializar estranhar, movimentos que no

    cessam de acontecer simultaneamente) h sempre uma angstia pairando no ar.

    Angstia que tem uma face ontolgica (medo de a vida se desagregar, de ela

    no conseguir perseverar; medo de morrer); uma face existencial (medo de a

    forma de exteriorizao das intensidades perder credibilidade, ou seja, de

    certos mundos perderem legitimidade, desabarem; medo de fracassar); uma

    face psicolgica (medo de perder a forma tal como vivida pelo ego; medo de

    enlouquecer). (idem, p.51)

    s vezes a angstia to grande que morremos pelo medo de morrer. Pois a

    fixao no conhecido, a busca pelo conforto desconfortvel, nos mata, pouco a pouco,

    no sentido de tirar nossa potncia. Entretanto, no intento atribuir morte um carter

    ruim, pois j dissemos desde o comeo que aqui o binrio, dual, no tem vez. Morte

    pode ser tambm vida, potncia de vida. preciso tambm matar, morrer, deixar-

    morrer. A morte de um eu pode ser necessria existncia de outros, outros que tragam

    vida. Sobre o assunto Valviesse (2013, p.83-84) fala lindamente:

    Podemos morrer, sendo o morrer experimentar uma pequena morte, em um

    ponto de ns, ou seja, algo ns que morre, e portanto a j no somos. [...] A morte no mata a existncia, mas uma existncia. seu limiar

    intransponvel, como aquilo pelo que algum atravessa para mudar uma

    forma ou estado, para trans-formar-se. Podemos tambm fugir, ultrapassar os

    limites, numa variao da prpria morte, que se transmuta em dissoluo das

    formas mais rgidas em favor das foras fluidas. Que permite a entrada de

    lufadas de ar! Vento em movimento, redemoinho que convoca o rodopio.

    A tarefa clnica aqui a de possibilitar a vida, ou como diria Espinosa, de

    expandir a vida, mesmo que, para tal, habitemos uma experincia de crise. No

    buscamos uma estabilidade, talvez um equilbrio instvel. Abandonamos a buscar em

    ser eu mesmo e instauramos a busca por um eu-outro, acreditando que no outrar-se se

    abre a possibilidade de existir vida. Se temos corpos disciplinarizados, enrijecidos,

    mortificados, urge na necessidade de colocar em produo foras crticas propulsoras de

    diferenas.

    Para haver interferncia preciso que haja dois, que haja um entre-dois, um

    intermezzo, para haver cruzamento, transversais. As intervenes clnicas tm, assim,

    um carter de desestabilizao. importante ressaltar que no so desestabilizaes,

    crises, estranhamentos do sujeito; j abandonamos a ideia de interioridade. H o plano

  • 34

    transdisciplinar da clnica, do qual paciente e analista - que no j-existem, como

    entidades - emergem neste encontro, neste contgio, neste cruzamento. O plano tambm

    no existe a priori, mas composto pelo atravessamento de foras que compem essa

    relao. Desta forma, as intervenes clnicas se fazem na criao de intercessores com

    foras de produzir crise, desestabilizar.

    Compreendemos, ento, que tarefa do clnico, neste sentido, intervir criando

    intercessores, elementos de passagem de um territrio a outro, de desestabilizao;

    abalos, terremotos!

    A clnica transdisciplinar se formaria como um sistema aberto onde o analista

    no apenas criaria intercessores, elementos de passagem de um territrio a

    outro, mas onde ele prprio seria um intercessor. Produzindo agenciamentos,

    misturando vozes, as enunciaes, agora sem sujeito, nasceriam da polifonia

    dos regimes de signos que se atravessam. Por exemplo, uma sensao, um

    som, um cheiro experimentado como ato no territrio que define o nvel de

    interveno, produz interferncias, ressonncias, amplificaes, mantendo o

    sistema em aberto para o tempo. (PASSOS & BARROS, 2000).

    Podemos dizer que mais do que construir interpretaes, ou fechar histrias,

    tarefa do clnico desconstruir, estranhar, desconectar. A anlise se d menos no

    encadeamento de ideias e mais no movimentar de corpos. Se como j dissemos antes a

    clnica busca uma fluidificao que abra passagem para o devir, busca-se no a

    repetio, mas a diferena. E por a que podemos pensar a clnica como crtica.

    4. INVENTAR AUMENTA O MUNDO3

    Arte no tem pensa: O olho v, a lembrana rev, e a imaginao transv.

    preciso transver o mundo. (Manoel de Barros)

    Vivemos. Vivemos em um mundo formatado, normatizado, enrijecido. A fora

    do contemporneo instituinte de linhas duras, apertadas, sufocantes. Somos um ser

    que e que deve continuar a ser; numa incansvel busca pela repetio, pelo sentido

    circular, pelo encerramento das coisas. Vivemos em uma sociedade de controle que a

    extenso das disciplinas para dentro de casa. Se antes o controle se dava nas esferas

    pblicas como fbricas, escolas, etc; aqui falamos em um controle incessante, implcito,

    3 Trecho do poema Retrato do Artista Quando Coisa de Manoel de Barros (BARROS, 2010, p.362).

  • 35

    disfarado que se insere em todo e qualquer microespao da vida; que ganha poder

    atravs da comunicao instantnea.

    Somos em meio a palavras de ordem e em toda palavra de ordem, mesmo de

    um pai a seu filho, h uma pequena sentena de morte (DELEUZE & GUATTARI,

    1995, p.13). Enunciaes que mortificam, tiram potncia do ser, de vir-a-ser, de devir.

    Um mundo da informao, da instantaneidade, da informao instantnea, onde

    informar fazer circular uma palavra de ordem; A informao exatamente o sistema

    de controle (DELEUZE, 1999). Comunicar transmitir/propagar uma informao.

    Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer [...] ou nem mesmo

    crer, mas para nos comportar como se crssemos (idem).

    Existem entres. Respiros, suspiros, vazios. Brechas, rachaduras, frestas.

    Passagens. Existe a arte. Para falar de arte cabe, primeiramente, afast-la de qualquer

    fuso com o belo ou com a noo de produto (mercantilizao da arte). No se usa desta

    para julgar o que belo ou original e nem tomamo-la por sua materialidade.

    Consideramos aqui arte pelos seus efeitos, podendo portar algo de catico,

    desestabilizador, crtico. A arte procede por estranhamentos, crises, sensaes que se

    abismam na matria (ZORDAN, 2005, p. 269). Ela se afasta de qualquer relao com a

    repetio, com o uniforme, com o padro, com o j-dado; distanciando-se da atividade

    do pensamento, da materialidade da vida; arte no tem pensa (BARROS, 2010, p.

    350). antes uma experincia de devir, de criao de povo, de inveno de mundo.

    respiro necessrio para a existncia; um pouco de possvel para no sufocar (DELEUZE

    & GUATTARI, 2010, p.210).

    A arte desorganiza. Afastando-se da materialidade do atual, afina-se com o

    movimento de criao de virtualidades, de possveis - que no necessariamente esto em

    processo de atualizao. No se intenta passar de um estado atual a outro, mas criar

    potncias virtuais que podem ou no se atualizar. O corpo que cria um corpo-sem-

    rgos, que se relaciona com o inumano do homem, com o devir-animal; um corpo do

    acontecimento, da intensidade. A arte devir; bloco de sensaes composto de afectos e

    perceptos, onde os afectos so devires no humanos e os perceptos as paisagens no

    humanas da natureza (idem, p.200). As afeces e as percepes pessoais no

    produzem arte; a criao artstica da ordem do impessoal. S se cria com o corpo,

    mas fazendo dele um corpo diferente, estranho, matria para um devir que no pertence

    ao nome e a pessoa que o configuram (ZORDAN, 2010, p.68). O bloco de sensaes

    independe do criador; "o artista cria blocos de perceptos e de afectos, mas a nica lei da

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    criao que o composto deve ficar de p sozinho [...] o composto de sensaes criado

    se conserva em si mesmo (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p.194).

    A arte dura. A durao dos blocos de sensaes independe da durao no tempo

    de sua matria. O que se conserva na arte no so seus materiais, mas seus perceptos e

    afectos que se tornam materiais.

    Mesmo se o material s durasse alguns segundos, daria sensao o poder de

    existir e de se conservar em si, na eternidade de que coexiste com esta curta

    durao. Enquanto dura o material, de uma eternidade que a sensao

    desfruta nesses mesmos momentos. A sensao no se realiza no material,

    sem que o material entre inteiramente na sensao, no percepto ou no afecto.

    Toda matria se torna expressiva (idem, p.197).

    A arte resiste morte. Andr Malraux (apud DELEUZE, 1999) diz que a arte a

    nica coisa que resiste morte. a partir deste conceito filosfico que Deleuze vai

    aproximar arte e ato de resistncia sendo arte o que resiste. Todo ato de resistncia

    no uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faa parte dele. Toda obra de

    arte no um ato de resistncia, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo

    (DELEUZE, 1999). A arte o que resiste: ela resiste morte, servido, infmia,

    vergonha (DELEUZE, 2003, p. 219).

    Deleuze afasta arte e comunicao, dizendo que a primeira de nada tem a ver

    com a segunda. Se, como dissemos, a comunicao a transmisso de informao, o

    sistema de controle, arte nada tem a ver com isso. Ela no comunica, no coloca no

    mundo palavras de ordem, comportamentos esperados, faz justamente o contrrio. A

    arte aproxima-se mais da contrainformao e esta ganha potncia/torna-se efetiva

    quando se faz ato de resistncia. A arte um espao de resistncia ao esteretipo,

    estandartizao. O artista recupera uma potica de ruptura (...) como negao da

    comunicao normalizada (PIGLIA apud FERREIRA, 2014). A arte faz frente morte,

    ao institudo; se faz ato de resistncia, enfretamento; potncia de vida e de viver.

    Podemos pensar com Deleuze (idem, p.216) movimentos artsticos como

    mquinas de guerra que no seriam definidas de modo algum pela guerra, mas por

    uma certa maneira de ocupar, de preencher o espao-tempo, ou de inventar novos

    espaos-tempos. O movimento artstico opera no sentido da desterritorializao; da

    aposta nas linhas de fuga e, assim h tantos modos de criar quantas forem as

    possibilidades de linhas de fuga. (ZORDAN, 2010, p.70). Segundo Zordan (2005,

    p.268) a arte funciona como mquina de guerra criadora, que opera uma

    desterritorializao intrnseca ao pensamento e s formas encontradas para solucionar os

    problemas que a Terra coloca. Diante da desterritorializao nos reterritorializamos na

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    busca por uma menor vulnerabilidade violncia das foras da terra. A arte acontece

    justamente nesta passagem, no entre. Precisa das brechas e dos vazios para promover

    efeitos que componham vida. Tudo o que se pode supor que a arte uma experincia

    de encontro entre diferentes superfcies, criao de uma paisagem outra (idem, p. 266).

    Por colocar a questo da transformao de territrios, Deleuze e Guattari

    aproximam a arte da noo de ritornelo. Para eles a primeira arte a arquitetura, a

    construo da casa; tudo comea por ritornelos. A casa contorna o caos e, tambm,

    abre-se a ele. uma membrana que filtra e ao mesmo tempo abre-se para o fora: criar

    espaos de existncia no somente abrigar-se, construir territrios habitveis, mas

    expressar uma relao de inseparabilidade com o fora, com afectos inesperados,

    disjunes na matria da analtica, monstros (idem, p.269). A casa envolve o sentido

    trgico; as marcas, as pegadas, os riscos, a impresso manual e todos os pequenos

    vestgios na matria que se experimenta, so as expresses dos devires-criana que

    povoam a arte (idem, p.266), afirmando o seu carter transgressor. A arte transgride

    quando se ocupa do novo, inventa potncias para a matria.

    Transgredir romper. O artista rompe com as tradies, com as instituies, com

    os movimentos da mquina de Estado, com a maqunica capitalstica. Rompe com a

    comunicao, com as subjetividades mass-miditicas, com as criaes em srie. A

    criao artstica justamente a inveno de mundo, o suspiro que enche os pulmes de

    ar. Arte a capacidade de tornar (a matria, o pensamento, a si) outro. Arte devir. E

    neste sentido que se torna possvel uma aproximao de arte e clnica.

    4.1. O FAZER CLNICO COMO PRODUO ARTSTICA

    Viemos at aqui tecendo compreenses conceituais/experienciais sobre a vida.

    Vida sendo compreendida como potncia de estar vivo, de ser outro. Viver, aqui, de

    nada tem a ver com o funcionamento fisiolgico do corpo, mas com um exerccio de

    liberdade. A palavra liberdade me vem de uma forma bem imagtica. Como se o mundo

    nos colocasse em amarras, que so linhas duras que nos dizem eu, eu sou, eu

    fao, eu penso, que nos determinam, que nos prendem em algum lugar. A vida

    acontece ento quando as amarras so rompidas, as formas engessadas diludas e as

    foras do caos desterritorializam as formas institudas, misturando o dentro e o fora,

    compondo novas dobras. A liberdade de ser outro.

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    Pensamos a potncia dos encontros clnicos atribuindo-lhes um carter sempre

    transformador, criador do novo. E eu vejo a clnica como potncia de romper com essas

    amarras, de possibilitar-nos ir a qualquer outro lugar. E essa tirada de algemas no

    necessariamente e acho que nunca- feita a partir de uma chave descoberta para

    encaixar perfeitamente e romper o aprisionamento. Mas por formas subversivas, que

    vem pelas beiradas, que contornam e que libertam.

    E a arte? A