um sopro no coraÇÃo
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Experiência de VidaTRANSCRIPT
UM SOPRO NO CORAÇÃO
- A senhora tem um sopro no coração!
Não sabia o que era um sopro no coração. Fiquei algum tempo
pensativa, ponderando a gravidade do problema. Nunca fui, no entanto,
de ficar com dúvidas sobre qualquer assunto e por isso, inquiri:
- O que é, concretamente, um sopro no coração, senhor doutor?
- Um sopro no coração é detectado através da auscultação e significa
que qualquer coisa não está bem com este órgão. Não é propriamente
uma doença, mas um sinal de uma provável doença. A senhora vai fazer
uns exames, para nos certificarmos da gravidade do problema.
O médico puxou dos papéis para fazer a requisição dos exames e
começou a garatujar. Sobressaltei-me com a perspectiva de uma doença
grave. No entanto, sentia-me bem. Apesar de ter uma vida muito activa,
nunca senti qualquer sintoma de doença, mesmo quando o ritmo, por
vezes alucinante, da profissão de professora assim o exigia. Terminada a
consulta, dirigi-me à funcionária do guichet para marcar os exames, cuja
data me seria posteriormente comunicada por carta.
Durante algum tempo, o trabalho absorveu-me completamente e
quando já quase esquecera o assunto eis que uma carta me chega às
mãos, com a data dos exames.
- A senhora já fez alguma vez um ecocardiograma? Interrogou o
médico que executava o exame.
- Não, senhor doutor. É a primeira vez.
Deitei-me na marquesa, conforme me foi indicado e o médico
perscrutou com muita atenção toda a zona do lado esquerdo do peito,
com um objecto semelhante a um microfone. Fazia pressão sobe o meu
seio esquerdo, a ponto de me fazer doer, mas nada que não pudesse
aguentar, por isso mantive-me silenciosa. Terminado o exame, questionei
sobre a origem do problema.
- A senhora apresenta estenose na válvula aorta.
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O meu rosto deve ter denotado alguma confusão, porque o médico
acrescentou:
- Trata-se da acumulação de fibrose na válvula, que pode levar ao seu
colapso. No entanto, só o médico cardiologista poderá avaliar da
gravidade da sua situação.
Passados uns dias, dirigi-me de novo ao médico de família.
Perguntou-me se eu tinha falta de ar, se me doía o peito, se me cansava
muito, se me doíam as costas, mas a cada pergunta eu respondia
negativamente. Explicou-me em pormenor o que se estava a passar
comigo, receitou-me alguns medicamentos e sugeriu encaminhar-me para
uma consulta de cardiologia no Hospital Universitário de Coimbra. Mais
uma vez a funcionária de serviço ficou de marcar a consulta, sendo que
posteriormente me seria comunicada, por carta, a data da mesma.
Embora um pouco apreensiva, regressei aos meus afazeres diários,
que me absorviam totalmente. Um ano se passou quase sem dar por isso,
até que em Setembro, logo após o regresso de férias, uma carta me
avisou que teria consulta de cardiologia em Outubro.
……………………………………………
Dei entrada no Centro de Cirurgia Cárdio torácica dos HUC no dia 22
de Junho, sabendo que viria a ser operada no dia seguinte. Às 9 horas da
manhã, o meu marido acompanhou-me à recepção e passado pouco
tempo despediu-se de mim, com a promessa de voltar na visita das quatro
horas. Levaram-me para uma camarata espaçosa, onde mais duas
pessoas aguardavam o mesmo destino. Esperei calmamente o desenrolar
dos acontecimentos: fui submetida a várias entrevistas com enfermeiros e
outro pessoal. Decretaram a todos os pacientes uma dieta líquida,
composta por um caldo e dois iogurtes, o que no meu caso era um
banquete, habituada a uma dieta tão drástica como a dos últimos dois
meses.
- A primeira coisa que vai ter de fazer é uma dieta drástica –
anunciara o cardiologista quando vira os resultados dos exames. Vai ter de
perder a maior quantidade de peso que puder, porque com o que
apresenta neste momento ninguém a opera!
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Ninguém me opera… a frase caiu-me em cima da cabeça como um
malho. Eu tinha oitenta e cinco quilos…
- Quantos quilos é que terei de perder?
- Para a sua altura, o ideal seria chegar aos sessenta e cinco, mas a
senhora não vai ter tempo para tanto.
- Não vou ter tempo…então posso morrer a qualquer momento?
O médico desviou o olhar de mim, comprometido, como quem foi
apanhado em grande falta e por fim disse, com voz baixa mas segura:
-Pode!
Pela primeira vez tive plena consciência de que tinha uma seta
apontada à minha cabeça, que poderia desferir o golpe final a qualquer
momento. Fui reduzindo a alimentação, à medida que fazia caminhadas.
Não podia percorrer ladeiras nem planos muito inclinados, pelo que me
decidi calcorrear as estradas circundantes da pequena vila rodeada de
montanhas. Cada semana era uma batalha com pequenas conquistas. A
princípio a dieta resultou e perdi cinco quilos em quinze dias, mas depois a
perda de peso foi muito lenta. Cortei o jantar, restringindo os alimentos
que ingeria a pequeníssimas porções. Por fim, praticamente não comia:
bebia pequenas doses de sumos de fruta e ao almoço comia meio queijo
fresco magro, dos pequenos.
Comuniquei por telefone, ao cardiologista, que me encontrava com
setenta e cinco quilos e passado pouco tempo ele informou-me que a
equipa me tinha aceitado para a operação. Deveria, no entanto, continuar
a fazer dieta, para ver se conseguia perder mais peso. Nunca o facto de
ser aceite por alguém me causou maior alegria. Ser aceite num grupo de
amigos, ou ser aceite no seio familiar, é importante, mas ser aceite para a
operação delicada de substituição de uma válvula cardíaca por outra
mecânica, correspondia a ser aceite no mundo dos vivos, ao qual eu
gostaria de poder continuar a pertencer ainda por algum tempo.
Agora estava para ali sentada, a ver televisão, na sala de espera do
hospital. Chamaram-me para fazer um ecocardiograma e de seguida para
fazer a inspecção. Fui. Numa sala grande, uma equipa de médicos e
enfermeiras inspeccionavam o grupo de pacientes que iriam ser sujeitos a
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cirurgia no dia seguinte. Pesaram. 76 quilos! Mais dois do que na minha
balança. O coração deu dois saltos no meu peito.
- A senhora mentiu no peso que disse! Devia voltar para casa. Já não
era a primeira! O que lhe vale é a sua constituição, tem o peso bem
repartido pelo corpo…
Não respondi. Não era preciso. Mas eu não mentira. A verdade era
que estava já a voltar a ganhar peso e a dieta mínima sem fazer efeito. O
coração apertava-se e a minha cara deve ter denotado sofrimento, porque
a enfermeira mandou-me encostar a um aparelho de medição e depois
mandou-me perfilar, junto de outros pacientes, em frente da equipa de
médicos, que escutava com atenção a enfermeira relatora: “indivíduo do
sexo feminino, cinquenta e dois anos, estenose severa da válvula aorta,
assintomática, um metro e cinquenta e nove, setenta e seis quilos…”
Depois da inspecção voltámos para a sala, onde nos foram feitas muitas
perguntas e onde tivemos que assinar um documento, onde dávamos o
nosso consentimento para sermos operadas.
- As senhoras estão muito preguiçosas! Daqui a três dias quero ver-
vos a passear por estes corredores! O Dr. Manuel Antunes concebeu este
hospital com uns corredores largos e compridos, para os doentes poderem
passear… - comentou uma das enfermeiras de serviço. Por mim, estava
disposta a passear o que fosse preciso, desde que fosse capaz.
- Deverão tomar um banho com Betadine líquido, que encontrarão
na casa de banho. Não devem enxaguar o corpo.
Depois do banho, chamaram-me para a depilação. Com uma lâmina
de barbear escanhoaram as minhas virilhas, a seco, sem nenhuma
humidade, o que tornava a operação extremamente desagradável. Ainda
tinha na virilha direita a cicatriz do cateterismo que fizera havia três
semanas e uma mancha negra espalhava-se pela perna até ao joelho.
Regressada ao quarto, sem saber muito bem o que fazer, observei
atentamente as minhas companheiras de infortúnio. À minha direita
estava uma jovem que não devia ter mais de dezoito anos. Conservou-se
atenta à televisão, o que me facilitou inspeccioná-la em pormenor. A pele,
muito branca, contrastava com o cabelo negro de azeviche. O rosto
redondo apresentava-se salpicado de sardas castanhas e os olhos escuros,
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curiosos e assustados, ainda húmidos de choro, abriam-se sob as pestanas
negras e sedosas. O nariz estava encarnado e entupido, o que a fazia
fungar de vez em quando, limpando-o de seguida à manga do pijama. A
despedida da família tinha sido difícil. A mãe e a irmã abraçaram-na
comovidas e disseram palavras carinhosas, de incentivo à Idalina.
-Vá lá! Tens de ter coragem. Vais ficar bem. Vais ver que depressa
te vais poder ir embora…
Mas a garganta queria gritar o contrário. Abraçavam-se, os olhos em
bica, molhando as faces umas das outras. Por fim lá se separaram e os
braços acenaram adeus, ao longo do corredor, até que numa curva o
grupo de familiares se perdeu na tarde, que se findava.
Na outra cama encontrava-se uma senhora na casa dos setenta
anos. Baixa, com os cabelos grisalhos, curtos e ondulados a emoldurar um
rosto cansado, desgastado, onde os olhos azuis-claros luziam
desconfiados. A boca ao lado sugeria que tivera algum problema cardíaco,
talvez uma trombose. Era enfermeira reformada o que lhe granjeara, da
minha parte, alguma admiração.
Éramos doentes “valvulares”, como ouvira as enfermeiras comentar
com a equipa de médicos que nos veio inspeccionar. Estávamos ali para
substituir válvulas, enquanto outros estavam para fazer “by-passes” nas
artérias e veias. Deram-nos um comprimido para descansarmos durante a
noite e de facto só acordei já de manhã, embora muito cedo. As pacientes
seriam levadas segundo uma determinada ordem para a sala de
operações e rezei para que não fosse a última a ir. Uma enfermeira entrou
com um carrinho e explicou-nos que nos iam dar uma injecção para nos
mantermos calmas, antes de nos darem a anestesia. Seguidamente
empurraram a minha cama, onde eu estava deitada, por um corredor e
entraram com ela num elevador. Pelo caminho, as pessoas olhavam-me
com curiosidade. Largaram a cama debaixo de umas luzes fortes e
disseram-me para esperar.
………………………………………
Um peso enorme exercia-se sobre o meu corpo e eu ouvia vozes
muito distantes. Quis levantar a mão esquerda, mas não fui capaz, tal era
o peso que sentia sobre o meu corpo.
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-O que é isto que sinto em cima de mim, tão pesado? Terei morrido?
É isto, a morte? Será o peso da terra em cima de mim? – Coloquei estas
questões a mim própria sem angústias, sem sobressalto, como se
estivesse a tomar consciência daquilo que era, como se pela primeira vez
fosse, existisse…os pensamentos rasgavam a minha consciência, que
recuperava e processava informação a uma velocidade vertiginosa. Eu era
eu. Soube que fora operada, soube que estava a voltar à vida. Tentei
articular algumas palavras, mas então senti uma forte convulsão vinda do
estômago, um vómito enorme, que me sufocava e me tirava o ar. Quanto
mais vomitava, mais aflita ficava e menos ar tinha para respirar. Qualquer
coisa se enterrava pela minha garganta e quanto mais tentava respirar,
mais o bloqueio aumentava. Pensei então que se me sentia tão mal por
não poder respirar e se tinha vómitos, era porque não estava morta. Não
estava morta! Uma força enorme subiu pelo meu corpo e a consciência da
vida que me restava pôs-me alerta. Se vomito, falta-me o ar, se inspiro,
sufoco. Vou fazer o oposto. O oposto de vomitar é engolir. O oposto de
inspirar é expirar. Expirei e engoli. Engoli. Parei de respirar e engoli.
Melhorei.
- Ninguém vê o que se está aqui a passar? Parece impossível! –
berrou uma voz feminina a meu lado, enquanto me colocava qualquer
coisa sobre a cara, me aconchegava o corpo, me prendia a cabeça…me
mexia, me apalpava, me tocava. Tocava, apalpava, mexia. Que bom! Eles
estão por aqui. Alguém sabe que eu estou aqui. Eu estou aqui e alguém
sabe disso. O corpo que estava ali não respondia, estava desligado, era
um apêndice pesado, na minha consciência, mas eu tinha consciência de
mim. Eu ainda era e estava, permanecia. Estava no Hospital, fora operada
ao coração, sentia-me mal…mas isso era bom.
……………………………………………………
- Está aqui o seu marido, D. Eulália! Olhe!
Olhei, mas não vi.
- Ela não abre os olhos…
- Abre, sim, senhor.
Abriram-me as pálpebras e eu vi um rosto esfumado e uma cabeça
coberta com uma touca de plástico. Sorri, mas eles não viram que eu sorri.
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Não viram, porque não comentaram. Mas eu sorri, porque vi uma cara
esfumada e uma touca. O meu marido de touca! Pois, fazia sentido. Num
hospital daqueles, só de touca e pantufas nos pés. Sorri por sorrir, para
eles verem que eu vi. Mas eles não viram que eu vi. No entanto, eu vi e
isso foi bom.
…………………………………………………………………
- Água! Tenho sede! Que sede! Abri os olhos e vi. Os olhos
obedeceram. Vi uma figura feminina.
- Bom dia! Como se sente?
- …Sede...
- Tem sede!
Os olhos fecharam-se de esforço. Qualquer coisa húmida me roçou
pelos lábios e um líquido muito amargo penetrou-me na boca. Que
amargo. Mas era bom.
…………………………………………………………………
- Quero água! Dêem-me água! – gritava uma voz feminina.
- Tem de ter paciência. Não pode beber. A sede é normal, não pode
beber. Beber água faz mal ao seu coração.
A minha garganta pedia água. A sede espremia o meu corpo como
uma prensa. O meu cérebro doía-me de sede. Não pedi água. Sabia que
não podia beber. A enfermeira continuou a cirandar por ali. Senti que todo
o meu corpo se espremia e as últimas gotas de humidade rolaram-me pelo
canto dos olhos, escorrendo até às orelhas.
- Abra a boca, que vou dar-lhe um pouco de chá verde – murmurou
uma voz junto de mim. Um líquido amargo esguichou para dentro da
minha boca e eu engoli de imediato. Que bom.
………………………………………………………
- Está tudo a correr muito bem! Em breve poderá sair dos cuidados
intensivos – afirmou um médico de bata verde e touca na cabeça. Vamos
desentubá-la, retirar a algália e o termómetro anal. Engula, vá!
Engoli e senti os tubos a deslizar para fora da garganta. Agora ia
respirar. Será que ainda sabia respirar? Sabia! Respirava. Retiraram tubos
dos meus orifícios. Sobre a boca e nariz colocaram uma máscara de
oxigénio. Sede! Sede, era tudo o que sentia. Não sentia fome, não sentia
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frio, não sentia medo, não sentia solidão. Sentia sede. A sede fazia-me
companhia. Nunca me abandonava. Mas sabia que não podia beber.
Quanto menos água, menos sangue, quanto menos sangue, menos
esforço, para o coração.
Tinha mais consciência do meu corpo e ele de mim. Já nos
obedecíamos mutuamente. Mas às vezes ele ainda me ignorava.
……………………………………………………………………
- Respire, D. Eulália – ordenou a enfermeira, enquanto me abanava.
Ofeguei rapidamente. O meu corpo não respirou enquanto eu dormia. Ele
ainda estava perro, ainda não funcionava bem. Agarrei-me bem a ele e ele
aconchegou-se a mim. Senti as mãos, os pés, a cabeça, a barriga. E o
peito? Não sentia o peito! Devia estar por ali, entre os dois braços, mas
não o senti. Os ouvidos funcionavam bem. Ouvia os gemidos dos outros
pacientes no quarto, as suas súplicas. Os olhos também já funcionavam.
Via quase tudo em meu redor. Vi um homem que se levantava, que
esticava o braço para uma garrafa de água. Vi a enfermeira que correu
para o impedir e que o deitou na cama. Vi que lhe segurava a cabeça e as
pernas e que lhe aconchegava a roupa. Vi uns olhos tristes, um esgar
desconsolado.
-Não pode levantar-se assim! Não pode beber! Tem de ter paciência!
Eu tinha paciência. Não gritava, não pedia, não suplicava, não
ralhava, não me zangava. Confiava. Eles é que sabem. Se me quisessem
matar, já o tinham feito. A sede continuava. Há-de passar, pensava eu.
Mas não passava.
- Abra a boca. Vou dar-lhe um pouco de água. Água! Um esguicho
caiu-me na bochecha esquerda e eu engoli de imediato. Soube a pouco,
mas soube. Soube a água. Arrependi-me de ter engolido logo. Devia ter
guardado a água na boca, para mim. Mas o corpo pedia tanto, que eu não
pensei em mim e dei-lha logo. Fiquei sem ela e comecei logo a sentir a sua
falta. Mas o corpo recompensou-me. Acalmou-se. Por segundos deixei de o
sentir a reclamar e relaxei. Que bom.
……………………………………………………………………
A máscara de oxigénio foi-me retirada da cara e colocada sobre o
peito.
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- Agora o oxigénio vai subir até ao seu rosto. Não retire a máscara
daqui – explicou a enfermeira. Em breve vai comer um caldinho. Tem
fome? Não, não tinha fome. Nem cheiro. Nada me cheirava. O corpo
negava-se a dar-me o cheiro. Veio a sopa, que me deram à colherada.
Tinha água, isso eu sentia. Mas não sabia a nada. Não cheirava a nada.
Tosse! Ui! O peito! Finalmente senti o peito, que doía. Uma dor funda,
enorme.
- Tem de segurar o peito, quando tossir. Vá, cruze os braços sobre o
peito, as mãos por detrás dos seios. Isso. Sempre que se levantar, ou se
deitar, ou tossir ou espirrar, tem sempre que segurar o peito. Nunca se
poderá deitar, nem levantar sozinha. Tem de ser sempre ajudada. Segure
sempre muito bem o seu peito.
…………………………………………………………………
Saí dos cuidados intensivos dois dias depois da operação. No quarto
onde me colocaram ficou também a Idalina. Gostei da companhia. Era
melhor do que ter a enfermeira reformada, rezingona e antipática.
- Acabou a preguiça! Toca a andar, por esse corredor. Sempre que
se quiserem levantar, peçam ajuda. Está aqui uma campainha para o
efeito. Tem aqui uma garrafa de litro e meio de água, que vai ter de dar
para dois dias. Vê este risco? Não pode beber mais do que isto, hoje. Que
sede. Coloquei um pouco de água no copo e enchi a boca. Deixei-a lá ficar
um bocadinho, bochechando levemente. Depois engoli. Descobri que se
deixasse a água na boca um bocadinho, teria menos sede.
Quis logo levantar-me e andar, mas não consegui dar mais do que
quatro ou cinco passinhos de bebé, até à casa de banho. Também perdera
o andar. Tinha de voltar a recuperá-lo. Cada vez sentia mais o peito, que
tinha pouco espaço para respirar e doía muito. Respirar pouco, beber
pouco, andar pouco. Olhei-me ao espelho. A cicatriz! Enorme! Rompia da
parte de baixo da garganta até ao fundo do estômago, onde os drenos
furavam a pele, por baixo dos seios, e de onde escorria um líquido
avermelhado. Um aparelho pendente estorvava, do lado esquerdo, ligado
ao peito por uma data de fios. Aquilo era eu? Inchada. A cara era o dobro
da minha; os braços pareciam os de uma boneca insuflável. Um buraco, do
lado direito do pescoço, indicava que ali estivera espetada uma agulha
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grande. Uma agulha enorme na mão esquerda, espetada, deixava entrar
um líquido que escorria de um saco, dependurado de um suporte de
metal, com rodinhas, que eu tinha de puxar, ao meu lado, sempre que me
queria deslocar. Aquele corpo estava mal! Por isso é que me custou
encontrá-lo! O que lhe fizeram, na minha ausência! Cortaram, serraram,
abriram, coseram. Estranhei o meu corpo desfigurado, recortado,
maltratado. Cansaço. Cama.
……………………………………………………………………
- Hora do almoço! – anunciou uma empregada, que ajudou a Idalina
a levantar e depois me ajudou a mim. Devo ter dormido bastante, para já
serem horas de almoço, pensei. Penosamente, arrastámo-nos pelo
corredor, ao mesmo tempo que arrastávamos o aparelho com o saco
dependurado. Outros corpos, masculinos e femininos, se arrastavam ao
nosso lado, ou se cruzavam connosco. Quase todos exibiam a grande
cicatriz, mas alguns arrastavam sacos cheios de líquido ensanguentado.
Nojentos. Eram os operados aos pulmões.
Soco no nariz. Cheiro. Hugh! O cheiro! Cheiro a comida. Vómito.
Enjoo. O corpo restituiu-me o cheiro, mas antes não o tivesse feito.
Percebi então porque é que ainda não o tinha feito. Era difícil, intolerável.
Frango com ervilhas, arroz, sopa e laranja. E fome? Onde estava a fome?
Sabia que tinha de me alimentar, mas não tinha fome e o cheiro a comida
era intolerável. Perdera também a vontade de comer. Bebi a sopa e comi a
laranja. O frango enrolava-se na boca, onde a língua áspera não
ensalivava e desisti de comer. A Idalina também não comeu. Olhei em
redor. O barulho de conversas misturava-se com o dos talheres e dos
pratos. Peitos retalhados, caras lívidas, membros trôpegos. Viajantes no
tempo e no espaço, retornados do além, gente de segunda oportunidade.
Voltámos para o quarto, arrastando o corpo e o aparelho metálico.
- Pode-me deitar, por favor? – pedi a uma funcionária. Segurar o
peito. Sentar na cama. Segurar, puxar, já está!
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- Então?
Uma mão familiar pousou na minha testa. Macia. Mão de marido
amigo, saudoso, preocupado. Beijo. Sorriso.
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- Estou bem. E vocês?
Falou, contou, conversou. Dormi. Falar custava. Cansava.
- Até amanhã. Amanhã vem o David.
- Sim. Até amanhã.
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