um olhar sobre abril (josué rogério, 12º a)

4

Click here to load reader

Upload: joao-camacho

Post on 05-Jul-2015

388 views

Category:

Education


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Um olhar sobre Abril (Josué Rogério, 12º A)

Um Olhar Sobre Abril: “David e Golias” - Crónica de Josué Rogério

O edifício esbelto, repleto de insuperáveis acabamentos, visto de cima como

uma peça de brinquedo saído da loja seja ela qual for, cobiçado por vários projectos

de homens elevados (tanto arquitectónicos como económicos), cujo brilho parece

refilar com o Sol, onde o desenrolar interior das vidas habitantes é brindado aos não-

aparecimentos de humidades ou características do género, é concebido, decerto, por

identidades humanas que não foram forçadas a elaborar um trabalho de competição

com a escrita de um médico em hora de redacção flash de uma receita que,

posteriormente, se vai encaminhar a uma farmácia, se estiver de serviço. Não é com

pressas, ou com ordens todas-poderosas, sem dar o devido espaço a cada

trabalhador, que se vai atingir um resultado boquiaberto, positivamente. É com a

aplicação de incentivos, de remuneração justa, de cedência de espaço necessário à

elaboração de uma obra pensada, sem trocar o cimento por areia e de conversas

colectivas e particulares baseadas no respeito que se vai ao longe no que diz respeito

a um produto final digno de aplausos sonoros ou mudos.

Há vários tempos atrás, não muitos, mas alguns, deu-se uma revolução não

indiferente: em francês, o surgimento de uma Declaração dos Direitos do Homem e

do Cidadão (1789). Locke, Montesquieu, Rousseau, entre outros, contribuíram para a

afirmação universal, numa fase inicial, de direitos intitulados “inalienáveis” e

“naturais”. A partir desses finais de dezoito, inícios de dezanoves, já havia bases -

alicerces que serviam de protecção ao ser humano num contexto de desrespeito.

Todavia, o desrespeito pelos direitos do Homem continuou a decorrer. A própria II

Guerra Mundial jogou-se com intuitos futuros de uma índole mais humana. Ou seja,

vistos tantos maus tratos a semelhantes à imagem de Deus, a guerra depois da

grande primeira pretendeu, no seu fim, findar as fugas aos Direitos Humanos.

Conseguiu, então, e com êxito, com ajuda de vários países unidos na mesma causa,

recriar o documento antigamente redigido (e inteligentemente): concretizou-se a

Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. As liberdades

globalizaram-se. Nem todas. Não se discuta agora se a Globalização é uma bola com

os vértices todos iguais.

Num Portugal situado na Europa, as liberdades estavam tímidas na sua

entrada, ou foram intimidadas na sua entrada (isto nos anos da grande ditadura do

Estado Novo). Por isso falo dos Direitos Humanos. Tudo no contexto. A liberdade tem

que ter fundamentos. Porém, por vezes, contra fundamentos há argumentos. E

Salazar tinha-os. E Caetano, O Sucessor, tinha-os. Ter, que palavra: porventura seria

esse o desejo e anseio dos líderes do Estado Novo em geral e de Salazar em

particular: ter os portugueses e os colonizados como Seus, ter o conhecimento de

Page 2: Um olhar sobre Abril (Josué Rogério, 12º A)

todos os movimentos. Se vivesse nestes tempos, poderia correr nas bocas das

conversas da reforma “olhó Cusco”. Os viventes das colónias ou pseudo-províncias

portuguesas não deviam ter a mínima noção do vocábulo Ter. Não por falta de

dicionário mas por falta de prática. Por um lado, se calhar, ainda bem. Assim, não se

tornariam gananciosos. Antes isso. Depois, poucos amigos. Os colonos estavam

submetidos, indubitavelmente, à metrópole. Esta controlava o comércio, a cultura

(incluindo o ensino), as mentes. No entanto, este controlo não foi intenso o

suficiente a ponto de neutralizar a grande vaga de descolonizações que pairava sob a

atmosfera mundial. As revoltas, nem que fossem interiores, aumentaram e o desejo

de emancipação emergiu em contexto de desenvolvimento crítico. Abre-te Sésamo.

Não se abriu. Por isso é que sinto, apesar de não ter vivido, o Abril. O quarto mês do

ano 1974 - dia 25 dos mencionados indicadores datais. Talvez este feeling provenha

do sangue, da união familiar que circula nas artérias de cada pertencente, da

espiritualidade escondida que nos rodeia. Não há nada como um espírito geral de

liberdade, de felicidade contagiante, penetrativa nos óvulos das estradas, esquinas e

ruas. O Movimento das Forças Armadas aplicou-se (como quem está para tirar a carta

de condução pela segunda vez e não tem à sua disposição quantia suficiente de

posses monetárias para realizar uma terceira) e teve o sucesso merecido e que os

portugueses mereciam. O secretismo das reuniões que conceberam o plano da

revolução afastou os bufos e as P.I.D.E.´S do assunto. Se nas tais junções que

reuniam os colaboradores da grande revolta estivessem presentes bufos era muito

provável que alguns dos cabeças do movimento ficassem paraplégicos do nariz. Uma

alternativa mais saudável seria comprar frascos vazios para enfrascar em espírito

carnavalesco.

O descontentamento já era vasto, atingia a invisibilidade dos cegos. Portugal

estava isolado internacionalmente, as condições de trabalho eram indignas, a

ausência de liberdade proliferava (visível nas alterações dos resultados das eleições

supostamente livres, na repressão da policia política, em restantes medidas de

controlo social) e o descontentamento militar fazia-se ressentir (a revolta foi

organizada por oficias militares). A pele seca pedia hidratação. Portugal pedia

hidratação. Portugal pedia mudança. Liberdade. Democracia. A própria questão da

Guerra Colonial já era debatida negativamente por parte de oficiais de renome do

exército português. Julgava-se não fazer sentido. E não fazia. Não fez.

Uma reunião secreta de militares realizou-se no Quartel da Pontinha no dia

vinte e quatro do mês quarto. Pouco mais tarde deu-se a ocupação de rádios de foro

nacional (primeiro, para transmitir duas senhas que forneceriam continuidade à

revolução – a música “Depois do Adeus” de Paulo de Carvalho, que tocou antes da

meia noite, e a música “Grândola Vila Morena” de Zeca Afonso, que foi transmitida

Page 3: Um olhar sobre Abril (Josué Rogério, 12º A)

vinte minutos depois da meia noite, isto é, no dito dia 25). Segundo, para deixar os

parêntesis a respirar, a ocupação de rádios serviu para se fazerem os comunicados

gerais, relativos à “nova situação” do país, durante o dia. Com a luz do Sol, Salgueiro

Maia dirigiu-se ao Quartel do Carmo onde se encontrava Marcello Caetano que

posteriorizou Salazar devido à sua incapacidade salutar. Já se sentia a emoção na voz

e nos rostos do povo português junto ao quartel. Pediam o General Spínola. Tiveram-

no. O verbo “ter” já se pode empregar aqui. Caetano entrega o poder provisório a

Spínola ao final do dia 25. A palavra espalhou-se como se tivesse vida própria, e tem.

Ao fim ao cabo, a rádio já era descensurada e os anúncios com cheiro a liberdade e

não a bufos se faziam sentir. Lá em Moçambique, as notícias não demoraram a

comparecer. Sendo a terra de minha mãe, a mesma teve o orgulho de me relatar

acontecimentos pertinentes na análise da História. Minha mais velha Helena ia a

caminho da escola quando se dá o anúncio geral “Não há aulas! Voltem para casa!

Houve revolução na metrópole!”. Isto no próprio dia 25 de Abril. A minha mãe, que

na altura ainda nem sonhava sê-lo, repleta de confusões na sua cabeça de miúda,

passa por uma pensão de portugueses a caminho e, como o rádio se encontrava sob

efeitos sonoros incomuns, confirmou o antes dito: havia revolução em Portugal, o

regime caíra. Não tardaram a chegar os famosos cravos às ruas de Moçambique. Uma

criança de 9 anos, como seria de esperar, deixa-se levar pela emoção dos

acontecimentos, apesar de não se chamar Helena Maria Vai Com Todos, mas sim

Helena Maria Rodrigues. Meu avô era administrador de uma vila. Trabalhava para o

governo de Salazar era devoto ao mesmo. Decerto que com as novidades da

metrópole o seu estado de espírito não permaneceu o mesmo.

Só mesmo o ser humano para conseguir planear, organizar e aplicar uma

revolução tão eficaz e sem-sangue. Já era sem tempo. Mesmo a beleza dos cravos

ajudou a confirmar a revolução apaziguada. O poder da música foi também visível.

Como uma simples letra ou melodia pode mudar estados de espírito ou incentivar o

espírito crítico. Minha mãe estranhou quando ouviu passar na rádio da pensão de

portugueses e dos carros que poluíam as estradas a “Grândola Vila Morena”, obra

antes censurada pelo seu carácter interventivo-político. Foi bom saber que

Moçambique, o país onde cresceu, ia ficar independente, liberto de subjugações.

Com o 25 de Abril, o mundo português alterou-se. Uma alteração bastante

saudável. Ditadura nunca edificou. Diversas injustiças tiveram o seu fim, contudo

ainda se fazem sentir em várias situações actuais, mas não da mesma maneira. Para

que não volte a acontecer uma situação semelhante é bom que se continue a

desenvolver o espírito crítico e a fomentar os princípios da liberdade e da igualdade.

Caso contrário, estaríamos a tornar-nos mais fracos que Golias.

Page 4: Um olhar sobre Abril (Josué Rogério, 12º A)

Texto e ilustração: Josué Rogério (07-03-2010)