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Um novo modo de ensinar o Direito Internacional: a delícia de experimentar
Alberto do Amaral Júnior,1 Adriane Sanctis de Brito,2 Déborah de
Sousa e Castro Melo,3 Guilherme Bonácul Rodrigues,4 Marcel
Kamiyama,5 Mariana Boer de Andrade,6 Thiago R. S. M. Nogueira 7
Este artigo foi escrito em colaboração com os meus atuais monitores da
Faculdade de Direito da USP, que me ajudam a pensar e a executar um novo modo de ensinar o
direito internacional. Agradeço à Fábia Fernandes Carvalho Veçoso e à Andréia Costa Vieira,
minhas antigas monitoras, que colaboraram na concepção e no desenvolvimento do método aqui
exposto.
Alberto do Amaral Júnior
1. Introdução
O ensino do Direito internacional no Brasil é metodologicamente confuso, técnicamente deficiente e historicamente ultrapassado. Esta sumária descrição refere-se, como não poderia deixar de ser ao modelo predominante do ensino do Direito internacional em nossas faculdades de Direito. Todo modelo é seletivo, isto é, focaliza as principais características da realidade vigente. Não abrange, de forma completa e exaustiva, todas as experiências em curso relativas ao ensino da disciplina. Algumas delas,
1 Alberto do Amaral Júnior é Professor Associado junto ao Departamento de Direito Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Coordenador do Centro de Estudos em Direito e Relações Internacionais – ORBIS.2 Adriane Sanctis de Brito é mestranda em Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Direito Global da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. 3 Déborah de Sousa e Castro Melo é mestranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogada em Direito do Comércio Internacional junto ao escritório Magalhães e Dias Advocacia.4 Guilherme Bonácul Rodrigues é mestrando em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.5 Marcel Kamiyama é graduando da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.6 Mariana Boer de Andrade é graduanda da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.7 Thiago Rodrigues São Marcos Nogueira é Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, advogado em São Paulo e pesquisador junto ao Centro do Comércio Global e do Investimento (CCGI) da EESP/FGV.
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aliás, distamciam-se do modelo descrito e têm introduzido avanços significativos que assinalam verdadeira ruptura com a situação que hoje prevalece em nossas Faculdades de Direito.
O ensino do Direito internacional, ademais, guarda especificidades derivadas da natureza da disciplina, mas compartilha, em larga medida, os traços essenciais que configuram o modelo do ensino do Direito aplicado no Brasil desde o século XiX quando, em 1827, foram criadas as Faculdades de Direito de São Paulo e Olinda. Há pelo menos três décadas, referido modelo enfrenta profunda crise, que foi agravada, nos últimos tempos, pelo avanço da globalização, pelas novas técnicas comunicacionais que comprimem o espaço e o tempo, além das transformações estruturais da sociedade brasileira. Por esse motivo, grande parte do que a seguir será analisado aplica-se à totalidade do ensino jurídico entre nós. As reformas curriculares são importantes, mas essa importância se esvai se o método de ensino continua obsoleto, voltado para um mundo que não mais existe.
O objetivo central, ao elaborar este artigo, é contribuir para a renovação metodológica do ensino do Direito Internacional. Uma das sugestões apresentadas é a adoção do método socrático como forma de aperfeiçoar a transmissão do conhecimento. A palavra método, do grego méthodos, indica uma busca, uma caminhada, um plano8; consiste em um conjunto de procedimentos para atingir certo resultado. Nicola Abbanagno afirma que o termo método tem dois significados fundamentais:
1- qualquer pesquisa ou orientação de pesquisa;
2- uma técnica particular de pesquisa.9
O escopo aqui perseguido é dedicar atenção ao primeiro sentido da palavra método.
O fundamento do método Socrático está nos Diálogos de Platão e, posteriormente, nos escritos de Xenofonte, especialmente no texto Memorabilia. Essa metodologia foi disseminada principalmente nos países de Common Law, tendo ganhado mais adeptos no continente americano após a sua introdução nos cursos da Universidade de Harvard ainda no século XIX10. É um processo de questões e respostas no qual os estudantes são levados pelos seus professores a tomar posição e, então, esclarecer conceitos jurídicos. Ao invés de ser perguntado sobre o que pensa de determinado tema, o professor estimula a
8 SINACEUR, Hourya. Méthode, in BLAY, Michel (org.). Grand Dictionnaire de la Philosophie. Paris : Larousse, 2003, pp. 688-689.
9 ABBAGANANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 668-669.
10 STEVENS, Robert. “Two Cheers for 1870: The American Law School”, in Perspectives in American History, t. V (FLEMING, Donald; BAILYN, Bernard), Cambridge (Massachusetts, EUA): Harvard University Press, 1971, pp. 9-13.
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crítica elaborada a partir de um texto-base em que uma primeira definição para o que se propõe debater já está lançada11.
É um método crítico porque parte de um conceito dado em um texto-base e porque parte de uma
conjuntura de perguntas e respostas, não da atividade de reproduzir o conteúdo do debate já iniciado.
Não se trata, porém, de estabelecer um regime alicerçado nos receios e nos medos evidenciados pelos
discentes a cada tópico de discussão, eivados pela necessidade individual de não cometer erros de
conteúdo.
Assim, não é o objetivo provocar o “terror” das aulas do Professor Charles Kingsfield, descrito no
livro The Paper Chase, que retrata o método competitivo e de disputa empregado pela personagem em
sua aula de Direito dos Contratos12. O método Socrático não tem como pilar o estímulo à competição
visceral e desarrazoada entre seus participantes. Ao contrário, fundamenta-se em uma plataforma de
diálogo.
O método a seguir delineado não se compõe de múltiplas técnicas sem diretrizes comuns que as
orientem. Ele baseia-se, pois, em três pressupostos estruturais:
1. elevar o conhecimento técnico dos estudantes com o propósito de lograrem melhor inserção no
mercado de trabalho. Tende a aprofundar-se, na atual conjuntura, o hiato entre a formação
escolar e as necessidades do mercado de trabalho. É extremamente precária a formação do
operador jurídico, seja ele advogado, juiz ou promotor de justiça, para lidar com questões
internacionais que passaram a integrar a rotina da atividade jurídica devido à crescente
internacionalização do Direito doméstico. É grande o desconhecimento acerca dos tratados
sobre Direitos humanos recentemente incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro. Não é
usual refletir nem nos cursos acadêmicos nem no âmbito da doutrina sobre o impacto que
podem ter na realidade cotidiana do cidadão. Mesmo os acordos componentes do sistema
multilateral de comércio e sobre a participação do Brasil em acordos regionais, com enormes
efeitos distributivos internos, pertencem ao domínio de poucos especialistas. O debate em torno
11 HEFFERNAN, William C. “Not Socrates, But Protagoras: The Sophistic Basis of Legal Education”, in Buffalo Law Review, v. 29, 1980, p. 400.12 Ver OSBORN JR, John Jay. The Paper Chase. Whitston Publishing Co Inc. (Special Anniversary Ed. Edition), January 2003. Posteriormente, o livro foi adaptado para o cinema, em filme com o mesmo título, de 1973, e para uma série de televisão, devido às excelentes críticas que recebeu por retratar, hipoteticamente, o ambiente vivenciado pelos estudantes da faculdade de Direito de Harvard.
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da celebração de novos tratados comerciais bem como as opções que nos oferecem passam ao
largo das escolas de Direito. Contratos internacionais complexos como o contrato de joint
venture, as cláusulas contratuais gerais elaboradas por organizações de cunho empresarial, a
expansão da arbitragem para a resolução de litígios, os Standards privados que ditam o
comportamento em inúmeros mercados, a mescla de interesses públicos e privados em práticas
mercantis, a desterritorialização da produção de bens e o aparecimento de novos modelos de
organização industrial estão a exigir que o ensino jurídico se torne criativo, transversalizado e
interdisciplinar sob pena de vir a ser disfuncional.
2. A formação de cidadãos globais. No mundo westfaliano o indivíduo só participava das relações
internacionais pela mediação estatal. O Estado era a forma suprema de organização da
sociedade humana a quem cabia, em última instância, declarar a guerra e firmar a paz. Com o
ingresso do indivíduo na cena internacional, fenômeno concomitante às mudanças nas
comunicações, enriqueceram-se os mapas cognitivos pelos quais os homens podem antever o
curso de futuras ações e projetar o impacto que irão exercer. A cidadania, tradicionalmente
concebida como vínculo jurídico e político a interligar o indivíduo e o Estado, ganhou, no
continente europeu, dimensão regional com o advento da União Europeia. Embora destituída de
institucionalização jurídica, menciona-se hoje a existência de uma cidadania global para designar
o interesse dos indivíduos em temas que dizem respeito à indivisibilidade do globo, como a paz,
o desenvolvimento e a tutela do meio ambiente. É claro que a cidadania global não substitui o
clássico conceito de cidadania, mas lhe acrescenta nova faceta, de modo que se tornou possível
falar de vários níveis de cidadania: nacional, regional e global. Costumeiramente refratário à
visão prospectiva, o ensino do Direito internacional deve não só compreender mas investigar a
larga repercussão desse fato.
3. A responsabilidade Moral. A ênfase dogmática do ensino do Direito internacional exclui a relevância
das questões morais ou trata a Moral como circunscrita ao que é juridicamente regulado. A
consequência imediata desse entendimento é a indiferença Moral, que tem contaminado boa parte da
reflexão jurídica das últimas décadas. A separação entre o Direito e a Moral funda-se no ceticismo ético,
ou seja, na crença de que as questões éticas são subjetivas e não se submetem, por isso, a regras
racionais. Sustentamos, ao contrário, não apenas a intrínseca ligação entre o Direito e a Moral, mas
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também que as escolhas jurídicas são quase sempre escolhas morais. Logo, é tarefa do ensino do Direito
internacional numa época, como a nossa, ameaçada pelo terror nuclear e pela hecatombe ambiental,
revelar os efeitos morais das escolhas jurídicas que privilegiam alguns valores em detrimento de outros.
Cabe, por exemplo, no aprendizado do Direito internacional do meio ambiente, acentuar que não há
primazia axiológica da geração presente em relação às gerações futuras. As gerações formam, por
conseguinte, uma parceria de tal sorte que não é lícito a nenhuma delas limitar ou extinguir o
patrimônio genético indispensável para a sobrevivência daqueles que nos sucederão. A justiça deixa de
ser pensada em termos espaciais para adquirir um caráter temporal e finalístico.
As faculdades de Olinda e do Largo de São Francisco representam as primeiras
expressões do ensino superior no Brasil, tendo ambas iniciado os seus trabalhos pelos cursos
jurídicos. Desde então, o ensino jurídico no país experimentou diversas modificações e contextos
que lhe trouxeram novos elementos. Entretanto, não houve o mesmo avanço nos métodos de
ensino adotados nas principais instituições do país.
No que tange ao Direito Internacional, é preciso reconhecer as mudanças
vivenciadas com o avanço persistente da globalização, as quais provocaram maior
interdependência entre os Estados e, por conseguinte, geraram mais iniciativas de integração.
Esse modelo muito se distancia da realidade existente no Brasil Império ou em qualquer outro
período de nossa história.
O presente artigo é dividido em duas partes principais. A primeira, após
realizado um breve levantamento histórico, dedica-se ao diagnóstico dos problemas atuais do
ensino do direito internacional no Brasil. Em seguida, são detalhadas a proposta de ensino
adotada em suas diversas frentes e as inovações didáticas que temos aplicado, desde o ano de
2012, nas disciplinas lecionadas no curso de graduação da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo 13.
2. Panorama sobre o Ensino do Direito Internacional no Brasil
13 As disciplinas são Direito das Relações Internacionais (lecionada durante o primeiro semestre letivo) e Solução de Disputas - Princípios Gerais (lecionada durante o segundo semestre letivo), ambas ligadas ao Departamento de Direito Internacional e Comparado da FDUSP.
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Compreender o momento atual do ensino do Direito Internacional no Brasil é
condição indispensável para se avançar nas técnicas de metodologia propostas, o que em muito
pode contribuir para o debate sobre os métodos de ensino no contexto contemporâneo.
Assim, é preciso fazer breves apontamentos sobre a evolução da disciplina na
legislação nacional e os efeitos que geraram na condução atual do ensino e dos métodos
empregados pelos professores de Direito de uma maneira geral, especialmente aplicada à
disciplina em estudo.
2.1 Breves apontamentos históricos
De 1827 a 1962, a grade curricular do curso de direito ficou adstrita a um grupo
limitado de disciplinas. Os órgãos reguladores nacionais entendiam que a criação de um
“currículo único” era o mais indicado para garantir uniformidade no ensino da área no país. É
importante observar que o contexto histórico reforçava essa necessidade de união nacional, ainda
mais se considerado que havia apenas cinco anos da independência em relação à Coroa
Portuguesa e, após, movimentos que culminaram na alteração de regime de governo no país,
provocando relevantes mudanças na prática jurídica nacional.
Apenas a partir de 1962 o Conselho Federal de Educação (CFE) propôs a tese
do “currículo mínimo”, indicando um número de disciplinas obrigatórias, mas permitindo às
instituições de ensino superior certa margem de autonomia para trabalharem conteúdos
adicionais. A legislação já havia previsto o “currículo mínimo” ancorado a “currículos plenos”
institucionais. Temos, então, duas grandes fases na concepção da montagem dos cursos jurídicos
no país.
A primeira fase, compreendida entre 1827 e 1962, estabeleceu a criação das
“cadeiras” ou cátedras, num total de nove, divididas por cinco anos. Eram rígidas e não
permitiam qualquer tipo de modificação de conteúdo. É dessa expressão que surgirá a figura dos
chamados “professores catedráticos” que, pela legislação atual, estariam a latere dos “professores
titulares”. A rigidez das cátedras provocava uma sensação de posse dos rumos do conteúdo
ministrado por parte de seus titulares. Segundo o Parecer 211 do Conselho Nacional de Educação
(2004, p. 5), a única modificação oficial ocorreu em 1854, com a inclusão das cadeiras de Direito
Romano e de Direito Administrativo, sendo que a disciplina de “Direito Internacional” constava
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da 1ª cadeira do 1º ano do curso de direito, composta pelo “Direito das Gentes e Diplomacia”.
Desde aquela época, portanto, o ensino do direito internacional já era regulamentado no Brasil.
Durante o Brasil Império, o curso de direito era muito influenciado pelas teses
do Direito Natural e pela Igreja. Como apontado pelo referido parecer, com a proclamação da
República em 1889, a prática jurídica nacional passou a atuar de maneira a dissociar o Estado da
Igreja. Dessa forma, a Lei 314, de 30 de outubro de 1895, alterou a grade curricular dos cursos
jurídicos e incluiu as cátedras de “Direito Internacional Público e Diplomacia” (3ª cadeira do 2º
ano) e também “Legislação Comparada sobre Direito Privado” (4ª cadeira do 5º ano).
Esse foi o primeiro momento em que se introduziu uma disciplina voltada para
o Direito Comparado na grade curricular dos cursos de Direito no país. Dessa maneira, o estudo
do Direito Internacional e Comparado é contemplado no Brasil desde a proclamação da
República.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 4.024/61) iniciou a
segunda fase da concepção das grades curriculares nacionais, a qual passou a incluir o
“bacharelado em Direito” em oposição aos diplomas anteriores expedidos sob a insígnia de
“Curso de Ciências Jurídicas e Sociaes”.
O Parecer 215 do então recém-criado Conselho Federal de Educação (1962, pp.
81-83), modificou a grade curricular, que passou a contar com 14 disciplinas, dentre as quais
“Direito Internacional Privado” e “Direito Internacional Público”.
O grande desapontamento para os acadêmicos de Direito Internacional ocorreu
com a aprovação da Resolução CFE nº 3/72, a qual fixou novo currículo para os cursos de
direito, relegando o ensino do Direito Internacional à condição de matéria optativa pela primeira
vez desde a criação dos cursos jurídicos no país. A referida resolução criou três categorias de
disciplinas: Básicas, Profissionais e Opcionais. As duas primeiras eram obrigatórias nos
currículos das faculdades de direito, enquanto apenas duas do terceiro grupo de disciplinas
seriam mandatórias na grade curricular, facultando-se às instituições superiores de ensino decidir
sobre qual caminho seguir. Essa medida foi devastadora para o ensino do Direito Internacional no
Brasil. Entre as opcionais, constavam oito possibilidades: (I) Direito Internacional Público; (II)
Direito Internacional Privado; (III) Ciências das Finanças e Direito Financeiro (Tributário e
Fiscal); (IV) Direito da Navegação (Marinha e Aeronáutica); (V) Direito Romano; (VI) Direito
Agrário; (VII) Direito Previdenciário; e (VIII) Medicina Legal.
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A nova diretriz curricular era perversa, pois colocava ramos variados do direito
em competição, sendo que uma vez escolhida para o currículo da uma instituição, a disciplina
não seria obrigatória, de forma que a estruturação de linhas de pesquisa e o estímulo ao ensino
passaram a ser muito difíceis de atingir.
Essa lógica produziu um número significativo de profissionais, ainda no
exercício de suas funções, sejam juízes, desembargadores, promotores, agentes de governo,
legisladores, ministros, dentre outros, que não contaram em sua formação com a disciplina de
Direito Internacional. Da mesma forma, é raro encontrar professores dessas disciplinas que
tenham tido um curso adequado em seus tempos de graduação.
Como as instituições de ensino superior poderiam dispensar a oferta de seis das
oito matérias opcionais para terem seus cursos aprovados junto ao Ministério da Educação e
Cultura, não raro existiam cursos sem qualquer formação em Direito Internacional e, portanto,
sem qualquer pesquisa ou profissional de ensino na área.
Esse hiato durou mais de duas décadas e provocou um atraso ainda não
superado no ensino do Direito Internacional no Brasil. Em 1980, o MEC criou a Comissão de
Especialistas de Ensino Jurídico, que, em 1981, apresentou proposta de alteração das diretrizes
nacionais de currículo mínimo para os cursos de Direito. Nessa proposta, as disciplinas de Direito
Internacional Público e de Direito Internacional Privado foram fundidas para formar a matéria de
“Direito Internacional”, que seria parte das matérias de formação profissional e, portanto,
reinserida na grade curricular mínima obrigatória.
O referido parecer não foi aprovado e apenas em 1996, com a implantação das
“Diretrizes Curriculares e o Conteúdo Mínimo do Curso Jurídico”, fixados pela Portaria
Ministerial MEC nº 1.886/94, a disciplina geral “Direito Internacional” foi reinserida na grade
curricular mínima obrigatória, cabendo ao “currículo pleno” de cada instituição desdobrá-la em
matérias mais específicas (Artigo 6º, parágrafo único, Portaria Ministerial MEC nº 1.886/94). Em
2004, pelo Parecer 211/04, o Conselho Nacional de Educação manteve a diretriz curricular
inalterada, sendo esta a atual vigente no país (Artigo 5º, II, da mesma resolução).
De maneira geral, os currículos dos cursos de Direito não eram pensados de
forma a considerar a interdisciplinaridade dos ramos jurídicos, com pouco incentivo às atividades
complementares, tidas como critérios a serem inseridos no Projeto Pedagógico de cada curso de
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Direito, conforme os Artigos 2º, §1º, IV, V, e 8º da mesma resolução aprovada pelo Parecer
211/04.
2.2. Diagnóstico do ensino no Direito Internacional no Brasil
Algumas características do ensino do Direito Internacional são semelhantes às
do ensino jurídico como um todo, enquanto outras apresentam as especificidades próprias àquela
área do conhecimento. Encontram-se, no primeiro grupo, as aulas ministradas no velho estilo
coimbrão, baseadas exclusivamente no direito positivo e na transmissão de categorias
dogmáticas, que realçam a figura do professor-conferencista e eliminam a participação dos
alunos. Preleções monologais veiculam um direito supostamente neutro, coerente e completo,
cuja racionalidade não se contamina pelas paixões inerentes à política.
O jurista intenta despolitizar os conflitos, transformando-os em questões
técnicas passíveis de decisão por critérios presumivelmente lógicos. Verifica-se, desse modo,
verdadeiro cisma entre a realidade e as normas instituídas para regulá-la. O jurista embrenha-se
no emaranhado das regras e só recorre aos fatos para justificar ou corroborar as normas já
concebidas. A dinâmica do sistema normativo, estruturada em regras de competência, pretende
absorver a mudança social ao filtrar preferências valorativas em normas vinculantes, pela
interferência do poder obscurecido e domesticado pelo direito. A separação radical entre o direito
e a política converte-se em um dos pilares do conhecimento jurídico tradicional.14 Prevaleceu, em
nossos cursos jurídicos, desde a Independência, a exótica combinação entre o positivismo
legalista e um jus naturalismo cristalizado nas instituições.
Nesse contexto, o ensino do direito internacional é parte constitutiva da
realidade que formou e informou os operadores do direito em quase dois séculos de história. Se
há indissociável conexão entre o ensino jurídico e o ensino do direito internacional, existem,
14 A rígida divisão entre direito e política, aliás, teve grande impacto na doutrina de direito internacional. Não é à toa que, em 1933, Hersch Lauterpacht dedicou uma de suas obras mais importantes, The Function of Law in the International Community, a rebater a difundida ideia de que determinadas disputas internacionais não seriam justiciáveis, notadamente em razão de se tratarem de questões políticas ou de ameaçarem os interesses vitais dos Estados. Os célebres Tratados de Locarno, por exemplo, previam que as disputas relativas a direitos deveriam ter solução judicial e todas as outras questões deveriam ser resolvidas por meio da conciliação. Se hoje são instintivas ao jurista a artificialidade dessa distinção e a percepção de que toda disputa é passível de ser resolvida pela aplicação de regras de direito, além de ser política em maior ou menor grau, isso nem sempre foi tão claro.
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contudo, particularidades que o singularizam. O direito internacional ocupou, tradicionalmente,
posição secundária na grade curricular das faculdades de direito. Era visto como “perfumaria
jurídica”, com escassa utilidade prática, para quem pretendia exercer, cotidianamente, as diversas
profissões jurídicas. Despertava interesse apenas em uma pequena minoria composta por aqueles
que desejavam dedicar-se aos estudos diplomáticos ou que nele viam um objeto de interesse
acadêmico. A quase totalidade dos estudantes tinha pouca curiosidade pelo direito internacional,
que não passava de mero requisito a ser cumprido para a conclusão do curso universitário. Essa
situação reflete, diretamente, a posição do Brasil no cenário internacional. País de dimensões
continentais com a necessidade de integrar as várias regiões, o governo voltava-se aos problemas
internos exceto quando, em circunstâncias excepcionais, a solução das disputas fronteiriças
exigiu a ação governamental.
A nossa posição no mundo estava, quase sempre, ausente no debate político
doméstico. De costas para os nossos vizinhos, os assuntos internacionais chamavam a atenção de
uma pequena elite formada consoante os padrões culturais europeus. O advento da globalização
pouco concorreu para a significativa mudança da situação atual. Ainda não se percebeu que, em
consequência da diluição das fronteiras rígidas entre o interno e o externo, o direito internacional
permeia todos os ramos do conhecimento jurídico. Do direito constitucional ao direito
administrativo, do direito civil ao direito penal, do direito comercial ao direito do trabalho, não é
mais possível estudar as instituições jurídicas sem levar em conta a celebração de tratados que
internacionalizaram temas domésticos e as tentativas que constitucionalizaram questões
tipicamente internacionais, como demonstra o art. 4° da Constituição Federal.
Três problemas principais estão na origem do ensino do Direito Internacional
no Brasil do limiar do século XXI: a (I) deficiência técnica; (II) a confusão metodológica; e (III)
a incapacidade para responder aos desafios propostos pelo mundo globalizado. Referimo-nos,
como não poderia deixar de ser, à tendência que prevalece nas Faculdades de Direito e não às
saudáveis iniciativas renovadoras promovidas pelos jovens professores, em diferentes partes do
país, e pelos que demonstram aguda consciência dos vícios que ainda hoje persistem.
Do ponto de vista técnico, o ensino não propicia aos alunos conhecimento
adequado do funcionamento das organizações internacionais, dos meios de solução de
controvérsias e da interação entre o direito interno e o Direito Internacional. Falta marcar com a
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devida clareza os efeitos sobre o país do descumprimento das decisões vinculantes proferidas no
âmbito das organizações internacionais. As aulas transcorrem, em geral, em clima monótono,
conduzidas por um professor que se ocupa em repetir manuais, cuja leitura bem poderia dispensar
as exposições15. Não se estimula o intercâmbio de opiniões sobre pontos controvertidos que
dividem os Estados e os indivíduos em campos antagônicos. Os seminários, observados com
certo descaso pelos alunos e professores, têm lugar em salas numerosas, onde a discussão
raramente se verifica. Os alunos são levados a memorizar textos doutrinários ou decisões
jurisprudenciais sem o indispensável uso público da Razão por intermédio da crítica. O incentivo
à pesquisa é esporádico e quando se manifesta não se dirige a aspectos que promovam a
ampliação do conhecimento.
A confusão metodológica exprime a ausência de um método abrangente e
formulado a partir de bases epistemológicas seguras. Esse fato é consequência de um traço mais
amplo da produção acadêmica por parte de juristas em Direito Internacional: a ausência de
engajamento e reflexão teórica sobre o próprio embasamento intelectual da disciplina.
Envolvidos por uma atmosfera em nada atraente e incapazes de relacionar os
conhecimentos aprendidos com as demais disciplinas, os alunos não se sentem motivados ao
estudo do direito internacional. No Brasil, o direito internacional é ensinado, ainda, segundo uma
metodologia confusa, que não capta, de modo epistemologicamente articulado, as especificidades
que o particularizam e as relações que mantém com as disciplinas afins. Predomina um método
que mistura um culturalismo ambíguo à descrição dogmática das regras e instituições sem a
necessária interlocução com outros campos do saber. O culturalismo aparece no início do curso
pelas referências genéricas aos fatores históricos que explicam o nascimento e a expansão do
direito internacional, bem como, ocasionalmente, durante a análise dogmática para justificar, com
grande dose de superficialidade, os vários aspectos da disciplina ministrada. Não se procura
formar no aluno o hábito de buscar as causas políticas, sociais e econômicas que ditam a criação
das regras jurídicas internacionais e sobre como estas influenciam o comportamento dos seus
15 A tradição brasileira de manuais revela-se como uma maneira engessadora de transmissão de conhecimento dogmático, entravando a possibilidade de produção de novos conhecimentos. Os manuais são criados e vistos como instância definitiva de conhecimento sobre determinado tema, desincentivando a crítica e o questionamento e desempenhando o papel de argumento de autoridade. Assim, os manuais seriam “cemeteries in which knowledge is buried” (LACHS, 1986, p. 159).
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destinatários. Tudo se passa como se não houvesse uma conexão íntima entre o mundo dos fatos
e o mundo das normas.
O forte apelo à dogmática de inspiração europeia16, produzida há algumas
décadas, caracteriza a exposição do professor. Esse fato encerra, na verdade, um paradoxo: o
direito internacional é, provavelmente, entre todos os ramos do direito, o que mais sofre a
influência da política. Aceita-se, subrepticiamente, a tese de que o direito molda, de forma
unilateral, a conduta dos Estados, das organizações internacionais e dos indivíduos. Não há, ao
mesmo tempo, um debate aprofundado a respeito da natureza do direito internacional e das
relações que mantém com a e economia, a história e a teoria das relações internacionais. Por
exemplo, os professores não costumam focalizar as teorias recentes que, no plano jurídico,
abordam a fragmentação do direito internacional contemporâneo. Pode-se afirmar que o Direito
Internacional foi despolitizado e profissionalizado (LORCA, 2006, p. 299, passim) na esteira da
tradição estrangeira e no contexto mais amplo de sua tecnicização, a partir das últimas décadas
do último século.
O ensino do direito internacional é, ainda, historicamente ultrapassado ao se
revelar inadequado para enfrentar as transformações oriundas do processo de globalização.
Surtos periódicos de modernização social percorrem a história desde os primeiros agrupamentos
humanos. A compressão do espaço e do tempo, fruto da revolução nas comunicações, distingue o
momento presente de todas as épocas históricas anteriores. A globalização envolve o
alongamento das relações sociais, não mais confinadas ao conjunto das interações humanas no
interior de uma única sociedade. Na dialética entre o universal e o particular, eventos distantes
modelam acontecimentos locais e são por eles modelados. A desigualdade de poder, a
proliferação dos atores internacionais e o multiculturalismo abalaram a concepção clássica do
ensino do direito internacional, fundada na igualdade soberana dos Estados.
16 Internacionalmente, a partir dos anos 1990, os debates sobre a força vinculante e a relação do Direito Internacional ao seu ambiente político polarizaram-se entre os juristas europeus (que tendem a enfatizar a força normativa do Direito Internacional, examinando e desenvolvendo as suas regras-estruturas) e os juristas americanos e terceiro-mundistas (que preocupam-se com questões acerca do escopo normativo do Direito Internacional e de seu arranjo e manuseio institucional), em duas frentes taxadas, respectivamente, de “normativa” e “sociológica” (KOSKENNIEMI, 2013, p. 28). Obviamente, estas distintas perspectivas refletem-se nos métodos de ensino da disciplina.
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Concomitantemente, o conflito e a cooperação entre os Estados e as
organizações não é objeto de atenção e estudo. O mesmo ocorre com as novas configurações de
poder que reúnem os governos e associações privadas, como sucede na Organização Mundial do
Comércio. O ensino do direito internacional não se conscientizou de que a eficácia das normas
jurídicas apoia-se em ligaduras culturais destruídas com o fim do colonialismo europeu, o
aumento do número de Estados, o fortalecimento das organizações não governamentais e o
aparecimento do indivíduo na cena internacional, que provocaram a erosão do direito
internacional clássico. Em meio à multiplicidade de culturas é urgente estabelecer diálogos
interculturais, requisito indispensável para a efetividade do direito existente e das futuras normas
que venham a ser criadas.
Feita essa análise, o ensino do direito internacional no Brasil deve desenvolver
nos alunos múltiplas capacidades, conforme descrito a seguir.
A primeira delas seria a compreensão de que as normas internacionais resultam
de processos de negociação e barganha que exprimem a política dos Estados. Apesar do avanço
do Estado de direito no plano internacional, a política está também presente na aplicação das
regras jurídicas internacionais, fato demonstrado pela dificuldade de execução das sentenças da
Corte Internacional de Justiça e pelas resistências dos governos dos países desenvolvidos em
cumprir as decisões do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Fatores econômicos, sociais
e culturais interferem, poderosamente, na eficácia do direito internacional. Sérias dissonâncias
cognitivas, por exemplo, constituem grave obstáculo para a obediência às normas internacionais.
Do mesmo modo, também o direito internacional está presente na política,
tornando-se, nas palavras de Gerry Simpson (2012, pp. 42-45), uma ética que organiza a vida
global e uma linguagem da política e da diplomacia. Não é de se espantar, então, que mesmo
flagrantes violações de direito internacional sejam justificadas com base no próprio direito
internacional, como demonstra o caso da invasão do Iraque de 2003.
Em segundo lugar, busca-se desenvolver a percepção do abismo entre o
excesso de poder e o excesso de impotência entre os países e a necessidade de pensar molduras
jurídicas que viabilizem a democracia cosmopolita, bem como a consciência da superlatividade
dos riscos representados pelos fantasmas da destruição nuclear e da hecatombe ambiental.
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Por fim, e não menos importante, a aptidão para relacionar conhecimentos
diversos com o propósito de estimular a criatividade e não apenas a mera reprodução do
conhecimento. A globalização requer um novo tipo de internacionalista que demonstre domínio
técnico, capacidade crítica, direção axiológica e possibilidade de formular instrumentos jurídicos
novos numa época em que se acentua a perda de legitimidade das instituições concebidas a partir
da ótica westfaliana.
3. A proposta de ensino adotada
Pela razões expostas e como forma de sanar as deficiências apontadas,
adotamos um modelo de ensino pautado pela participação, distinto do padrão utilizado no ensino
do direito internacional e que tem o objetivo de fomentar nos alunos o desenvolvimento de
diferentes habilidades. Tal modelo tem como premissas as necessidades de sintonia entre o
ensino do direito internacional e a complexidade das relações internacionais contemporâneas e de
adequação entre a formação acadêmica e as demandas de um mundo em mudança. Essa proposta
desdobra-se em três frentes, cujo denominador comum é o papel ativo dos alunos na construção
do conhecimento: (I) a adoção do método socrático, (II) a elaboração de um artigo científico e
(III) a realização de um julgamento simulado perante um tribunal internacional.
3.1. Aulas: Divisão e Método Socrático
O método socrático tem por objetivo subverter a lógica da aula expositiva
tradicional, na qual o professor ministra o conteúdo a um público passivo. Esse método mostra-se
o mais adequado para estimular os estudantes a refletir sobre a matéria que lhes é transmitida,
privilegiando o permanente diálogo com o professor. Na primeira parte das aulas, o docente
discute, conforme um modelo de perguntas e respostas, leituras previamente recomendadas. Ao
sabor de uma reflexão problemática, é incentivado o intercâmbio com outras disciplinas da grade
curricular e com a História, a Economia e a Teoria das Relações Internacionais. Parte-se do
pressuposto de que o ensino do Direito Internacional não pode ser feito de maneira a incutir nos
alunos a concepção de que a matéria consiste em um ramo do conhecimento hermeticamente
14
isolado, fazendo-se imprescindível a sua conexão com as demais disciplinas jurídicas e outras
ciências (LACHS, 1987, p. 173).
O método socrático, de natureza dialógica, auxilia a romper o distanciamento
do professor em relação aos discentes, superando assim um dos principais entraves à construção
do pensamento crítico. Os alunos, ao serem estimulados a expor a suas perspectivas publicamente
em resposta a uma pergunta, podem testar a própria consistência de seu raciocínio e eliminar
eventuais distorções de entendimento ou preconceitos que possam ter a respeito de determinado
tópico. Dessa maneira, a internalização do conhecimento pode ser realizada de modo mais eficaz
do que o estudo solitário puro e simples. Cabe mencionar, além disso, que as leituras propostas
não são extraídas de manuais convencionais, cuja abordagem superficial favorece a memorização
irrefletida, mas são selecionadas dentre artigos científicos, voltados ao teste de hipóteses e à
problematização de noções aparentemente consolidadas.
A segunda parte da aula, por sua vez, gira principalmente em torno da
discussão crítica da jurisprudência internacional. Nesse momento, é importante frisar que um
mesmo problema ou situação fática podem ser vistos sob diferentes perspectivas e que a
regulação jurídica internacional é apenas uma das maneiras possíveis. É preciso examinar as
consequências advindas da escolha de outras formas de solucionar uma disputa.
Procura-se desconstruir a percepção, bastante difundida, de que as sentenças de
cortes internacionais são um dado incontestável e de que a fundamentação dos juízes corresponde
à síntese necessária de um raciocínio silogístico. Para tanto, são dissecadas as diversas etapas de
construção da sentença, de modo a esclarecer as escolhas subjacentes ao emprego de
determinadas técnicas de decisão. No decorrer das monitorias, busca-se igualmente analisar o
papel de cada instituição e de que maneira o Direito é por elas utilizado com vistas à garantia da
governança do mundo globalizado.
O estudo jurisprudencial, portanto, realiza-se em forma de debate, em
consonância com a proposta de ensino participativo. Além disso, a análise das sentenças vem
associada à leitura de um texto, destinado a subsidiar as monitorias. Trata-se de um instrumento
de conexão epistêmica entre teoria e prática, necessário a uma compreensão aprofundada do
Direito Internacional.
15
3.2 Artigo Científico
Em adição às aulas e monitorias, a segunda frente da proposta de ensino
participativo corresponde ao engajamento dos discentes na redação de um artigo científico. Como
a metodologia de pesquisa não é normalmente ensinada na faculdade em nível de graduação, essa
atividade foi introduzida com o intuito de desenvolver nos estudantes uma habilidade útil não
somente para aqueles que pretendem ingressar na vida acadêmica. Os temas dos trabalhos a
serem entregues são de livre escolha, desde que se relacionem com aqueles que foram abordados
ao longo do curso. Aos estudantes, portanto, é dada oportunidade de pesquisar sobre um tópico
de sua preferência, com a orientação dos monitores. Ademais, os alunos são incentivados a
enviarem suas propostas de artigo, reservando-se um momento do curso, em meados do semestre,
para a sua discussão, como forma de permitir maior reflexão sobre o caminho a ser seguido na
realização da pesquisa.
Cabe mencionar que as leituras indicadas para as aulas e monitorias, as quais,
conforme explicado, consistem em artigos científicos, além de subsidiarem os debates, também
servem como modelos de organização de argumentos. Em outras palavras, também são utilizadas
como objeto de análise para que os alunos possam construir satisfatoriamente o seu próprio
artigo.
Há que se ressaltar que o enfoque aqui pretendido não é o de mera reprodução
de assuntos já consolidados. Pelo contrário, o que se pretende é o estímulo à inovação e ao
pensamento crítico não apenas com relação aos fatos, como também quanto às decisões
proferidas no âmbito das diversas cortes voltadas ao Direito Internacional em suas diversas
facetas. Ainda, a fim de estimular o empenho na elaboração dos artigos, bem como fomentar a
cultura de elaboração de trabalhos científicos na área de direito internacional pelos graduandos,
pretende-se providenciar a consolidação para posterior publicação online dos melhores artigos
produzidos.
3.3. Simulação
16
Dentro da proposta de ensino participativo, a simulação, ou moot court, foi
adotada como uma maneira de engajar os alunos na aplicação de seus conhecimentos diante de
um caso hipotético. Trata-se de um método difundido em países de tradição de Common Law,
sobretudo nos Estados Unidos e no Reino Unido, onde são altamente valorizados como atividade
extracurricular ou, cada vez mais, demandados como requisito para a conclusão do bacharelado
em Direito17.
Há, pelo menos, quatro vantagens ao jurista que participa de simulações. Em
primeiro lugar, o ganho de habilidades em pesquisa em Direito: a complexidade do problema de
moot obriga o aluno a buscar soluções inovadoras para as questões jurídicas envolvidas. Isso
demanda, desde o princípio, um grande esforço, tendo em vista a necessidade de realização de
pesquisas doutrinárias e jurisprudenciais, feitas em bases de dados online. Vale ressaltar que o
contato com essas ferramentas é de grande valia para o futuro percurso acadêmico e profissional
do bacharel em Direito, que poderá utilizar esse instrumento em outras situações, dentro e fora da
sala de aula. Em segundo lugar, destaca-se o desenvolvimento das capacidades interpretativa e
argumentativa. Não há dúvidas de que o exercício criativo de elaboração de argumentos jurídicos
para a defesa de uma posição em caso concreto é um ensaio de alto nível de raciocínio jurídico,
canalizando o conhecimento teórico acumulado do estudante. O terceiro ponto é a desenvoltura
em sustentações orais e peças escritas: a habilidade de consolidar argumentos e conclusões de
forma oral e escrita com clareza é atributo essencial do jurista (SNAPE e WATT, 2000, p. 13).
Finalmente, há de se mencionar o trabalho em equipe, promovido pela pesquisa e treinamento em
conjunto. Cuida-se, igualmente, de habilidade indispensável para o jurista que pretende atuar no
mundo globalizado (KEE, 2006, p. 4).
O órgão judicial eleito para a simulação, em nosso primeiro experimento, em
2013, foi a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Essa escolha deve-se à maior
proximidade do Sistema Interamericano de Direitos Humanos com o cotidiano dos alunos, em
comparação com órgãos mais tradicionais, como a Corte Internacional de Justiça. Foi
17 Como exemplo, as Universidades de Oxford (Reino Unido), Toronto (Canadá), Leiden (Países Baixos) e Auckland (Nova Zelândia) exigem que os estudantes em Direito participem em uma simulação, ao menos, durante a graduação. Outras instituições de renome, como as Universidades de Harvard (EUA), Yale (EUA), Nova Iorque (EUA) e Cambridge (Reino Unido), bem como o Institut d’études politiques (França), encorajam, oficialmente, a participação de estudantes, inclusive com a concessão de suporte financeiro e físico. As referências para essas instituições estão listadas nas referências bibliográficas, ao final do texto.
17
considerada, também, a sua pertinência em relação ao viés temático do curso, que tem por
enfoque os direitos humanos.
O principal objetivo da simulação, portanto, é o desenvolvimento do raciocínio
jurídico, de maneira que o repertório adquirido pelos alunos não apenas durante as aulas do
curso, mas de toda a graduação, seja instrumentalizado para o satisfatório desempenho de um
papel. Para que essa finalidade seja atingida, é preciso levar em conta o posicionamento do
estudante em sua interação com os demais, o que requer a rápida adequação de estratégias e do
conhecimento a serem aplicados conforme as circunstâncias, sendo a imprevisibilidade o
elemento central desse tipo de exercício (GHIRARDI, 2012, p. 60).
Esse exercício é relevante, ainda, na medida em que, como apontado por Martti
Koskenniemi (2007, p. 4), os desenvolvimentos mais recentes do direito internacional apontam
para a fragmentação e para a emergência de regimes de especialização funcional. Esse fenômeno,
acentuado sobremaneira com o fim da Guerra Fria, torna ainda mais delicados os problemas, em
direito internacional, de determinação de jurisdição e de direito aplicável. Com efeito, como
indicado pela Comissão de Direito Internacional (2006, §483) em relatório específico sobre o
tema, a resposta a questões jurídicas passa a ser cada vez mais dependente do ente ao qual as
perguntas jurídicas são dirigidas e do sistema de regras adotado.A utilização da simulação em um
curso de direito internacional, desse modo, é um convite para que se possa perceber a
complexidade dessas questões e a necessidade, por parte do intérprete, de olhar de forma criativa
para as fontes de direito internacional.
3.4 Avaliação
Como se sabe, os exames escritos, embora tenham seu papel específico,
consistem normalmente em uma mera verificação pontual de desempenho, sendo que a sua
aplicação ao fim do semestre nada mais representa do que um requisito formal de aprovação na
disciplina. A proposta de ensino adotada, em que o foco não está mais nas aulas expositivas, mas
em atividades que demandam dos alunos um papel de protagonismo, privilegia,
consequentemente, a realização de uma avaliação contínua.
18
Essa avaliação, portanto, é uma decorrência das frentes de ensino participativo
adotadas durante o curso. A participação dos alunos é apreciada nas aulas e monitorias com base
em critérios quantitativos e qualitativos. Quanto a esses últimos, subdividem-se nas seguintes
considerações: a) se os comentários do aluno são fundamentados nos textos sugeridos para
leitura, b) se os comentários do aluno foram construídos de forma a indicar uma contribuição
pessoal ao tema e c) se os comentários do aluno provocaram um debate sobre o tema ou
contribuíram para a interação dos colegas naquele assunto, ou ainda, para um fechamento,
compilação ou estratificação das idéias já levantadas. A participação responde por parte
substancial da nota final, dada a sua importância fundamental para o sucesso da disciplina.
Os critérios de avaliação são constantemente esclarecidos aos alunos, que
podem acompanhar o desenvolvimento de seu desempenho a cada aula, se assim desejarem.
Elimina-se, em grande medida, a tão criticada vagueza e subjetividade das avaliações, tal como
constatado na maior parte das disciplinas da faculdade de Direito.
Da mesma forma, a avaliação do artigo é pautada por critérios precisos, cuja
observância é refletida na nota final. São eles: formal, linguístico, material, de fundamentação, de
sala de aula e de participação no debate. O critério formal consiste em averiguar se o aluno
respeitou a limitação ao número máximo de páginas, se apresentou as ideias com clareza, se
entendeu o propósito do exercício e se cumpriu os requisitos formato e conteúdo. O critério
linguístico é a verificação do respeito à norma culta da língua portuguesa de maneira coesa,
concisa e objetiva. O critério material orienta-se pelo recorte do tema, pela relação entre o tema
escolhido e a proposta da disciplina, pela profundidade do tema e pelo cumprimento da proposta
apresentada na introdução do artigo. O critério de sala de aula resume-se na atribuição de pontos
à ligação das propostas dos trabalhos com os temas vistos em sala de aula e que se utilizem de
argumentos levantados pelos próprios alunos, professor ou durante a monitoria. Por fim, o
critério de participação nos debates foi pensado para estimular a participação no debate sobre os
artigos produzidos de maneira frutífera. O preenchimento desse requisito pode resultar na
atribuição de uma pontuação extra sobre a nota final. Tendo em vista a presença de alunos
intercambistas em sala de aula, o critério linguístico foi eliminado de sua avaliação.
Outrossim, a avaliação da participação dos alunos na simulação não se limita,
evidentemente, à observância de aspectos procedimentais, mas privilegia sobretudo a capacidade
19
de raciocinar juridicamente, por meio da articulação de normas convencionais com a construção
argumentativa baseada na jurisprudência da Corte. Os critérios de avaliação, portanto consistem
em a) aferir a qualidade da pesquisa jurídica, por meio da apreciação da consistência dos
argumentos utilizados, a desenvoltura e a clareza nas sustentações orais e b) a boa coordenação
entre os membros das equipes, isto é, se atuam de forma coerente e concertada ao longo do
exercício. Embora facultativa, a participação eficiente na simulação confere significativo
acréscimo na nota final, de até um ponto sobre a média obtida no semestre.
Percebe-se, portanto, que a obtenção de uma nota satisfatória ao fim do semestre não dependerá
apenas da realização de um exame escrito, o que normalmente induz os estudantes a dedicarem
tão somente a véspera ou a antevéspera da prova ao estudo e, muitas vezes, ao efetivo
“aprendizado” da matéria. O grande peso na média final das demais atividades requer a
participação e o aprendizado contínuos, tornando mais realista a mensuração daquilo que foi de
fato assimilado pelo aluno e o seu progresso no desenvolvimento das múltiplas competências
necessárias aos profissionais do Direito da atualidade.
4. Resultados
A experiência metodológica retratada no presente artigo consiste em um
programa de constante aprimoramento, de modo que ainda não há resultados objetivos
pertinentes à todas as propostas ora apresentadas. Ao final de cada semestre letivo, os resultados
são avaliados pela equipe com o intuito de aprimorar as falhas, sendo que nessa ocasião são
apresentadas novas propostas direcionadas ao refinamento da metodologia adotada. Diante disso,
é preciso ressalvar que os resultados ora apresentados não contemplam, por exemplo, a realização
do exercício de simulação, que não havia sido utilizado no último semestre.
Na experiência mais recente,18 após o término das aulas, foi oferecida aos
alunos a oportunidade de se manifestarem acerca do método desenvolvido ao longo do semestre.
As opiniões, em sua maioria, mostraram-se bastante positivas. Foram também ouvidas diversas
críticas construtivas, as quais auxiliaram na busca do aperfeiçoamento do ensino.
18 A experiência relativa ao curso de Direito das Relações Internacionais, disciplina lecionada no primeiro semestre deste ano.
20
Neste panorama, é relevante salientar que grande parte das reações positivas
apresentadas pelos alunos resultaram do estudo detido de casos práticos, que infelizmente não
constitui prática comum no ensino jurídico brasileiro. Tal falha é frequentemente lamentada pelos
estudantes, sobretudo considerando o fato de que o estudo de sentenças provenientes de cortes
internacionais é ainda mais raro do que aquele voltado para tribunais domésticos.
A análise dos trabalhos e artigos apresentados, por seu turno, demonstrou a
existência de deficiências metodológicas no domínio da pesquisa jurídica, a qual é pouco
explorada no curso de Direito. Fortalecer essa capacidade nos alunos consiste em um objetivo
permanente a ser perseguido nas disciplinas ministradas.
Os últimos resultados colhidos revelam que os estudantes, de maneira geral,
acolheram as inovações introduzidas e perceberam nitidamente o seu contraste com o ensino
jurídico tradicional, o que serve de estímulo a reformas no âmbito das demais disciplinas.
5. Considerações finais
O ensino do direito internacional no Brasil, como explicado, é tecnicamente
deficiente, metodologicamente confuso e historicamente ultrapassado. Qualquer proposta de
ensino adotada deve ter como objetivo sanar esses problemas. O modelo que adotamos tem como
características a interdisciplinaridade, a historicidade, a reflexividade, a multihabilidade, a
dialogicidade, o estudo crítico das decisões jurisdicionais, o uso de simulações e a avaliação
contínua. Acreditamos que, desse modo, incentivando um papel ativo dos alunos na construção
do conhecimento, resultados mais satisfatórios podem ser obtidos. Se, por um lado, as propostas
elencadas requerem empenho por parte dos estudantes, por outro, não podem prescindir de
dedicação e comprometimento por parte do professor e dos monitores. Trata-se, enfim, de um
projeto conjunto.
Como apontado por Dickinson (2009, p. 109-110), o objetivo final de um
professor ao adentrar uma sala de aula é que estudantes e docente possam aprender com suas
contribuições mútuas, sem a necessidade de se criar um vínculo em que cabe aos discentes
endeusar a opinião e o conhecimento explorado pelo professor. Não se trata, portanto, de
estimular a competição entre os alunos, mas de promover um verdadeiro diálogo em que, a partir
21
dele, seja possível se questionar sobre os temas debatidos, de forma a se concluir que a
competência em fazê-lo sempre esteve com o estudante, sendo o professor, apenas um facilitador
do alcance de tais reflexões.
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