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fascinação pela foto- grafia não é um fato novo. Ter a possibili- dade de congelar uma imagem, um momento específico que nunca será como antes e que posteriormente nos trará lem- branças – boas ou ruins – exerce sobre o ser humano um poder quase transcendental. Sendo assim, por que, ainda hoje, num mundo completamente invadido pela tecnologia, pelas cores, pela realidade tal como é, as imagens em preto e branco ainda não foram esquecidas? Por que ainda fazem tanto sucesso nas artes e na publicidade? É isso que vamos tentar descobrir, desde a in- venção da fotografia até os dias atuais. Das trevas à luz Leonardo da Vinci, no século XV, já havia pensado na arquite- tura de uma câmara escura – sala sem luz onde se revelam os milagres da fotografia – mas só em julho de 1827, com Nicephore Niépce, é que se conseguiu tirar a primeira foto propriamente dita. Ao usar material que se tornava rígido em contato com a clari- dade, a imagem aparecia so- mente depois de oito horas de exposição. Dois anos após a experiência bem sucedida do cientista, outro interessado pelo processo, o francês Louis Daguerre, resolveu oferecer seus serviços a Niépce, e ambos se tornaram parceiros ra- pidamente. Mesmo com a morte de seu sócio, quatro anos mais tarde, Daguerre não desistiu de tentar aperfeiçoar as técnicas da fotografia e descobriu uma ma- neira de revelar as imagens em placas revestidas de iodeto de prata. Sua invenção, que passou a se chamar daguerreótipo, con- seguia, a partir de uma pro- priedade da prata, escurecer a imagem quando exposta à luz ou clarear quando não havia este contato. O processo tornou-se rapidamente conhecido quando o inventor vendeu sua idéia ao governo francês, que, em troca, lhe deu pensão vitalícia. Vários motivos fizeram com que o daguerreótipo não sobre- vivesse por mais do que algumas décadas: apesar da alta quali- dade das imagens, elas eram invertidas lateralmente e pro- duziam imagens que, às vezes, eram vistas de um ângulo positi- vo, outras, negativo ou ambos. Não era possível fazer cópias ou ampliá-las e o processo incluía o vapor de mercúrio, substância e x t remamente tóxica. Mesmo assim, a técnica despertou o interesse da sociedade, gerando a “daguerreomania” e, com isso, a revolta de alguns europeus, que consideravam a fotografia uma obra diabólica. No mesmo ano em que Da- guerre apresentava sua invenção na França, William Henry Fox Talbot mostrou na Inglaterra a sua importante inovação que possibilitava, através do negativo original em papel produzir quan- tas cópias positivas se desejasse, um avanço essencial à fotografia e que resolvia o principal proble- ma enfrentado por Daguerre. Um instante em preto e branco Julho/Dezembro 2006 2 GIOVANA CHICHITO, MARIA CLARA REZENDE, RACHEL BELO E RAFAEL BOKOR Arte em tons de ciza

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Page 1: Um instante em preto e branco - Portal PUC-Rio Digitalpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/1 - um instante em preto e... · Mas não tomou. Ao contrário das tendências, o filme em

fascinação pela foto-grafia não é um fatonovo. Ter a possibili-dade de congelar uma

imagem, um momento específicoque nunca será como antes e quep o s t e r i o rmente nos trará lem-branças – boas ou ruins – exercesobre o ser humano um poderquase transcendental. Sendoassim, por que, ainda hoje, nummundo completamente invadidopela tecnologia, pelas cores, pelarealidade tal como é, as imagensem preto e branco ainda nãoforam esquecidas? Por que ainda

fazem tanto sucesso nas artes ena publicidade? É isso que vamostentar descobrir, desde a in-venção da fotografia até os diasatuais.

Das trevas à luzLeonardo da Vinci, no século

XV, já havia pensado na arquite-tura de uma câmara escura –sala sem luz onde se revelam osmilagres da fotografia – mas sóem julho de 1827, com NicephoreNiépce, é que se conseguiu tirar aprimeira foto propriamente dita.Ao usar material que se tornavarígido em contato com a clari-dade, a imagem aparecia so-mente depois de oito horas deexposição.

Dois anos após a experiênciabem sucedida do cientista, outroi n t e ressado pelo processo, ofrancês Louis Daguerre, resolveuoferecer seus serviços a Niépce, eambos se tornaram parceiros ra-pidamente. Mesmo com a mortede seu sócio, quatro anos maistarde, Daguerre não desistiu detentar aperfeiçoar as técnicas dafotografia e descobriu uma ma-neira de revelar as imagens emplacas revestidas de iodeto deprata. Sua invenção, que passoua se chamar daguerreótipo, con-seguia, a partir de uma pro-priedade da prata, escurecer a

imagem quando exposta à luz ouclarear quando não havia estecontato. O processo torn o u - s erapidamente conhecido quandoo inventor vendeu sua idéia aogoverno francês, que, em troca,lhe deu pensão vitalícia.

Vários motivos fizeram comque o daguerreótipo não sobre-vivesse por mais do que algumasdécadas: apesar da alta quali-dade das imagens, elas erami n v e rtidas lateralmente e pro-duziam imagens que, às vezes,eram vistas de um ângulo positi-vo, outras, negativo ou ambos.Não era possível fazer cópias ouampliá-las e o processo incluía ovapor de mercúrio, substânciae x t remamente tóxica. Mesmoassim, a técnica despertou ointeresse da sociedade, gerando a“daguerreomania” e, com isso, arevolta de alguns europeus, queconsideravam a fotografia umaobra diabólica.

No mesmo ano em que Da-guerre apresentava sua invençãona França, William Henry FoxTalbot mostrou na Inglaterra asua importante inovação quepossibilitava, através do negativooriginal em papel produzir quan-tas cópias positivas se desejasse,um avanço essencial à fotografiae que resolvia o principal proble-ma enfrentado por Daguerre.

Um instante empreto e branco

Julho/Dezembro 20062

GIOVANA CHICHITO, MARIA CLARA REZENDE, RACHEL BELO E RAFAEL BOKOR

Arte em tons de ciza

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O Brasil não quer ficar de foraPoucos meses se passaram datarde de 19 de agosto de 1839,quando a invenção foi consagra-da em Paris, para que afotografia chegasse ao Rio deJaneiro em 1840, pelas mãos doabade Louis Compte. O Jornal doCommércio deste período revelavaa excitação do povo diante danovidade: “É preciso ter visto acoisa com os seus próprios olhospara se fazer idéia da rapidez edo resultado da operação. Emmenos de nove minutos, o cha-fariz do Largo do Paço, a Praçado Peixe e todos os objetos cir-cunstantes se achavam re p ro-duzidos com tal fidelidade, pre-cisão e minuciosidade, que bem

se via que a coisa tinha sido feitapela mão da natureza, e quasesem a intervenção do artista".

As novidades aqui eram muitobem recebidas, tornando-se mo-da num curto espaço de tempo.Com a fotografia não foi difer-ente. Os debates na Europa emrelação à validade ou não dafotografia enquanto manifes-tação artística, comparada à pin-tura, não encontraram espaço noBrasil no primeiro momento. Aalta sociedade brasileira doperíodo do Império estava maispreocupada em usufruir a novatécnica – só conhecida até entãopela teoria – e em se deixarf o t o g r a f a r, do que em re f l e t i rsobre os aspectos artísticos e cul-turais do novo invento. As

camadas dominantes ainda cul-tuavam padrões e valores estéti-cos arcaicos, puramente aca-dêmicos, já ultrapassados emseus respectivos países de origem,que só seriam questionados ecombatidos com a Semana deArte Moderna de 1922.

Vida em preto e branco:sobrevivência no mundo colorido

A era do descartável é assim. Aslâmpadas são projetadas paraq u e i m a rem em dois anos, nomáximo, quando existe tecnolo-gia para que sigam iluminandodurante oito décadas. No Japão, apopulação tem o hábito de jogarfora suas televisões a cada 12meses, mesmo que estejam em

P & B 3

A foto em P&B revela a sensibilidade do fotógrafo

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p e rfeito funcionamento. A notíciapassada de manhã, por baixo dap o rta, já está velha quandoanoitece. E a fotografia em core schegou para tomar o lugar dop reto-e-branco. Mas não tomou.

Ao contrário das tendências, ofilme em preto-e-branco per-maneceu nas câmeras profissio-nais mesmo com a difusão dasmáquinas digitais de alta reso-lução e alta definição.

“Existem reputações que, umavez estabelecidas, nunca deixarãode existir”, argumenta JoãoHenrique Steffen, fotógrafo: “Écomo ter um carro esporte comcâmbio manual quando já exis-tem os modelos automáticos”.

Uma reputação não constru í d aapenas pelo tempo e pela tra-dição. O P&B, como é conhecidaa fotografia em preto e branco,está ligado, entre outras coisas,ao cinema mudo, à chegada dohomem à Lua e, também, ao re-g i s t ro jornalístico de uma páginatriste da história humana.

“As duas grandes guerr a s ,principalmente a Segunda, fo-ram fotografadas em P&B. Coisassérias, históricas foram re g i s-

tradas desta maneira”, ressaltouSteffen, que sinaliza também olado banal da fotografia emcores. “Quando surgiu o filmecolorido comercial a fotografiat o rnou-se acessível e popular.Aconteceu aí uma associaçãoentre o colorido, o amador e omedíocre. Já o preto-e-branco erarelacionado ao profissionalismoe à qualidade”.

A aura do P&B também está noque é mais elementar, no simplesato de se olhar uma foto: “afotografia em preto-e-branco é umaabstração do real, se coloca em umuniverso interpretativo e se encaixap e rfeitamente na definição de art e .A foto em cores é impregnada dee x t remo realismo, já que traduzcom exatidão o que se vê na re a l i-dade”, diz Leonardo Vilela, fotó-grafo e sócio da agência de pro p a-ganda Platinum FMD, que temtrabalhos exibidos na exposiçãop e rmanente de publicidade do Mu-seu do Louvre, em Paris.

Carlos Lázaro, diretor do canalTelecine e que tem como h o b b y afotografia, considera o lado art í s-tico deste tipo de re g i s t ro: “teóri-cos que defendem o P&B advo-

gam que a verdadeira arte foto-gráfica está em captar o mundonão como ele é, mas sim em umagradação de tons de cinza”.L á z a ro, que costuma exibir suasfotos em exposições e s i t e s e s p e-cializados, como o da Nikon e oda BBC, ressalta a força do P&B ea dramaticidade do objeto fo-tografado, enquanto a cor podechamar a atenção para si, re-duzindo o impacto do re g i s t ro .

O conflito entre a distração e acontundência também é conside-rado pelo professor de Fotojor-nalismo Paulo Rubens, da PUC-Rio, na batalha entre os dois tiposde fotografia. Argumenta que asc o res podem desviar o foco doo b s e rv a d o r, enquanto as fotos emP&B tendem a incomodar: “sãoambíguas e contraditórias”, dizRubens.

Há outros contornos para o valordo preto-e-branco. No mundo dafotografia, ele é um artigo nobre .Em geral, filmes deste tipo custammais caro para serem re v e l a d o s .Além disso, passam por um pro c e s-so artesanal de revelação e depen-dem da sensibilidade do labora-torista. O filme colorido é re v e l a d oem um processo semi-automático.No P&B, encontrar os tons decinza ideais de uma foto é inter-p retar o que o fotógrafo pensou nahora de apertar o botão.

O que antes era o limite do pos-sível tornou-se opção de lin-guagem. Até meados do séculoXX, retratar o mundo em preto-e-branco era o melhor que ohomem podia fazer. Com o filmecolorido, o preto-e-branco deixoude ser refém da realidade etornou-se uma alternativa estéti-ca ou de linguagem.

Julho/Dezembro 20064

A Segunda Guerra Mundial foi fotografada em preto e branco

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P & B 5

Eclética: Qual é a vantagem de se usaruma foto P&B em uma campanha pu-blicitária?

Márcia G: A meu ver, não há vanta-gens e, sim adequação, isto é, a lin-guagem a ser usada deve estar em con-sonância com a premissa que vai ser asustentação, a espinha dorsal da cam-panha. Tudo tem um “por que”refletindo o conceito, a atitude a ser“vendida”.Eclética: Porque o P&B não desapareceuna publicidade?

Márcia G: Ao contrário, desde que aGap Inc.,em 1980, lançou uma cam-panha publicitária usando fotos P&Bde estrelas de Hollywood, com artistase personalidades importantes, a fotografia P&Bretomou seu lugar tendo conotações específicas,principalmente na publicidade. A Gap quisressaltar o “indivíduo” mais do que o “meio” e asfotos em preto e branco permitem isso mais do queas em cor. Até hoje a Gap usa freqüentemente fotosem P&B em suas campanhas, da mesma formacom que fazem outras empresas, por que elas dãoum sentido mais forte, prendem o olhar, ressaltan-do e diferenciando o produto, a idéia. Em publici-dade nada é por acaso! A fotografia publicitáriapretende atrair a atenção e diferenciar produtos ea foto P&B preenche essas funções.Eclética: Por que P&B é considerado mais poético doque em cor?

Márcia G: As fotografias em cor e em preto-e-branco têm sistemas de representação diferentes.Têm diferentes funções e conotações. Têm seupróprio sentido de espaço e tempo. Carregando emsi a atmosfera intelectual e o sentido de austeri-dade, a foto em preto-e-branco, por sua ênfase nasformas, texturas, sombras e perspectivas leva àconceituação e à estetização do assunto e, tam-bém, à diferenciação e à abstração. Sendo assim,de um modo bem generalizado, podemos dizer quefotos P&B são abstrações da realidade, permitindoao observador preencher as lacunas com a suaprópria história, com suas próprias sombras psi-cológicas. Eclética: Que campanhas, em P&B, foram marcantespara você e por quê?

Márcia G: As campanhas de jeans e perfumes daCalvin Klein. Quem não desejou ser ou ter Kate

Moss lânguida, sensual e semi-nua naqueles jeans?!Quem nãoexperimentou o CK1 depoisdaquelas fotos, digamos, bemousadas. Ou um Eternity, com aleve sensação de ter alcançadoum lugar ao Sol? Outra boalembrança é Dominique Isser-mann que “deu um show” depoesia e sensualidade, explo-rando o corpo nu masculinopara uma campanha de per-fumes. Totalmente inesque-cível! Eclética: Em que sentido o uso doP&B no Brasil é diferente comrelação aos outros países?

Márcia G: As grandes agências brasileiras nãodeixam nada a desejar em relação a outros países;ao contrário, chegam até ser referência estética.Temos grandes criadores, portanto, gente gabari-tada para saber como, quando e porque usar fotoisto, foto aquilo...Eclética: Atualmente,quais os melhores fotó-grafos em P&B?

Márcia G: O adjetivo“melhor” tem váriossignificados em foto-grafia... Os fotógrafosde que mais gosto são:Ansel Adams, Dominique Issermann, Herb Ritts,morto em 2002, porém, totalmente atual, BruceWe b e r, Peter Lindberg, Vânia Toledo, ClaudiaJaguaribe. E, claro, para todos nós que apreciamose trabalhamos em P&B, todos aqueles fotógrafos,do início da fotografia, com seus estilos tão pes-

soais, que formarama base para tudo oque hoje chamamosde “o universo da fo-tografia em P&B”.Para falar a verdade,acredito que para serum excelente fotó-grafo em cor é ne-cessário ser primeira-mente um grande fo-tógrafo em pre t o - e -branco.

A foto P&B na publicidadeEntrevista com Márcia G, professora da PUC-Rio.

Ansel Adams

Herb Ritts