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DADOS DECOPYRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra édisponibilizada pelaequipe Le Livros e seusdiversos parceiros, com oobjetivo de oferecer

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conteúdo para uso parcialem pesquisas e estudosacadêmicos, bem como osimples teste daqualidade da obra, com ofim exclusivo de comprafutura.

É expressamente proibidae totalmente repudiável avenda, aluguel, ouquaisquer uso comercialdo presente conteúdo

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O Le Livros e seusparceiros disponibilizamconteúdo de dominiopublico e propriedadeintelectual de formatotalmente gratuita, poracreditar que oconhecimento e aeducação devem seracessíveis e livres a todae qualquer pessoa. Você

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pode encontrar maisobras em nosso site:LeLivros.site ou emqualquer um dos sitesparceiros apresentadosneste link.

"Quando o mundoestiver unido na busca

do conhecimento, e nãomais lutando por

dinheiro e poder, entãonossa sociedade poderá

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enfim evoluir a um novonível."

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JÚLIOVERNE

Um Herói deQuinze Anos

Título da edição original

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UN CAPITAINE DEQUINZE ANS

1878

IlustraçõesHENRI MEYER

Tradução

PEDRO GUILHERMEDOS SANTOS DINIS

(tradutor Séc. 19)

LIVRARIA BERTRANDLISBOA

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Primeira Parte

A VIAGEMFATAL

Quando a decisão e aaudácia habitam um corpo jovem

geram abnegação e heroísmo.Pelos vastos mares nem sempre

pacíficos do grande mundo, entrea Nova Zelândia e as Américas

oceano afora, Dick Sand temapenas quinze anos, mas não se

deixa amedrontar. O

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desaparecimento de seu capitãodeixou-lhe nas mãos uma grande

tarefa: levar a cabo a missão.Como fazer aportar o Pilgrim esalvar os que ficaram sob sua

guarda? Não são apenas osperigos do grande oceano;

também a bordo poderosas forçasvão confrontá-lo.

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CAPÍTULO I

O PATACHO “PILGRIM”

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No dia 2 de fevereiro de1873 estava o patacho “Pilgrim”

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por 43° 57 minutos de latitude sule 165° 19 minutos de longitudeoeste do meridiano deGreenwich.

Navio de quatrocentastoneladas, aparelhado em SanFrancisco para a grande pescanos mares austrais, pertencia aJames W. Weldon, rico americanoda Califórnia, o qual desdemuitos anos confiara seu comandoao capitão Hull.

O “Pilgrim” era um dosmenores mas dos melhores naviosda flotilha que James W. Weldonmandava todos os anos além doestreito de Bering, até aos mares

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boreais, e desde as paragens daTasmânia ou do Cabo Horn até aooceano Antártico. Era navio deboa marcha, e, por ter aparelhomuito leve, podia aventurar-secom pouca gente a manobrar porentre as grandes e impenetráveismassas de gelo do hemisférioaustral. O capitão Hull sabiasafar-se bem, como dizem osmarinheiros, navegando por entreos gelos que durante o Verão seencontram nas proximidades daNova Zelândia ou do Cabo daBoa Esperança, por latitude muitoinferior à que chegam nos maressetentrionais do Globo.

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Aludimos, bem entendido, àspequenas massas de gelo, gastasjá pelos choques e corroídas pelaágua de temperatura relativamenteelevada e o maior número dasquais vão fundir-se no Pacíficoou no Atlântico.

Sob o comando do capitãoHull, bom marinheiro e um dosmais hábeis arpoadores daflotilha, havia uma tripulaçãocomposta de cinco marinheiros ede um prático. Era pouca gentepara a pesca da baleia, que exigepessoal muito numeroso, tantopara a manobra das embarcaçõescomo para o corte dos animais

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capturados; mas James W.Weldon, seguindo o exemplo deoutros armadores, achava maiseconômico não embarcar em SanFrancisco senão o número demarinheiros que fosseestritamente necessário para amanobra do navio. Na NovaZelândia não faltavamarpoadores, marinheiros de todasas nacionalidades, desertores ounão, os quais procuravamcontratar-se pela estação,servindo como hábeispescadores. Terminado o tempoútil, pagava-se-lhes edesembarcavam-se, e eles lá iam

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esperar que, no ano seguinte,viessem outros baleeiros valer-sedos seus serviços. Por estemétodo havia melhor emprego dagente disponível e tirava-se maisproveito da sua cooperação.

Assim se fez a bordo do“Pilgrim”. O patacho fizera aestação da pesca no círculo polarantártico, mas não tinha ocarregamento completo de barrisde azeite e de barbas de baleia.Naquela época já a pesca eradifícil. Os cetáceos, por muitoperseguidos, tornavam-se cadavez mais raros. A baleiaordinária, que tem o nome de

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nord-caper no oceano boreal e sechama sulpher-boltone nos maresdo sul, desaparecia de dia paradia; os pescadores viam-se poisobrigados a lançar-se sobre a fin-back ou jubarte, grande mamíferocujos ataques não são isentos deperigos.

Foi o que fez o capitãoHull durante o tempo que estevena pesca, contando, porém, na suapróxima viagem ir até mais altalatitude, e, se preciso fosse,chegar até à vista das terras deClara e de Adélia, cujadescoberta, contestada peloamericano Wilkes, pertence

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definitivamente ao ilustrecomandante do “Astrolábio” e da“Zelosa”, o francês Dumontd'Urville.

Em suma, a estação nãofora feliz para o “Pilgrim”. Noprincípio de Janeiro, isto é, pelosmeados do Estio austral, apesarde não ser chegada ainda a épocada volta para os baleeiros, ocapitão Hull foi obrigado a deixaras paragens da pesca. A gente quecontratara a mais dera-lhe muitoque fazer, e por isso tratou de sever livre dela.

O “Pilgrim” soltou rumopara o noroeste, em demanda da

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Nova Zelândia, que avistou a 15de Janeiro. Chegou a Waitemata,porto de Auckland, no golfo deChouraki, na costa leste da ilhasetentrional, e desembarcou ospescadores que tinha ajustado.

A tripulação não estavasatisfeita. Faltavam, pelo menos,duzentos barris de azeite paracompletar a carga do “Pilgrim”.Nunca a pesca fora tão má. Ocapitão Hull voltava quase tãocontrariado como o caçadoremérito que pela primeira vezerra todos os tiros. O seu amor-próprio estava irritado, e nãopodia perdoar àqueles que, pela

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sua insubordinação, foram acausa de tão escassa colheita.

Foi em vão que tentourecrutar em Auckland novacompanha para a pesca. Todos osmarinheiros disponíveis tinham jáembarcado a bordo de outrosnavios baleeiros. Perdeu, pois, aesperança de completar ocarregamento do “Pilgrim”, edispunha-se a partir de Aucklandquando uma pessoa a quem elenão podia deixar de satisfazer lhepediu passagem a seu bordo.

Mrs. Weldon, mulher dodono do “Pilgrim”, estava entãoem Auckland, com Jack, seu filho,

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criança de cinco anos, e com umdos seus parentes, o primoBénédict. James Weldon, a quemos negócios chamaram à NovaZelândia, levara para ali os três,contando trazê-los depois consigopara São Francisco. Mas, naocasião em que toda a família iapartir, Jack adoeceu gravemente,e seu pai, obrigado por negóciosurgentes, teve de sair deAuckland, deixando a mulher, ofilho e o primo Bénédict.

Decorreram três meses,três longos meses de separação ede angústias para Mrs. Weldon.Entretanto restabeleceu-se o

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filhinho, e já se dispunha a partirquando lhe anunciaram a chegadado “Pilgrim”.

Ora, naquela época, Mrs.Weldon para voltar a SãoFrancisco tinha de ir à Austrália,a fim de embarcar num dos naviosda companhia transoceânicaGolden Age, que fazem a carreirade Melburne ao istmo de Panamá,tocando em Papeiti; e teria deesperar em Panamá que partisse ovapor americano que estabelece acomunicação regular entre oistmo e a Califórnia. Distoresultavam demoras ebaldeações, sempre incómodas

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para uma senhora e uma criança.Foi pois em boa ocasião que o“Pilgrim” veio fundear emAuckland. Mrs. Weldon nãohesitou e pediu ao capitão Hullque lhe desse lugar a bordo e alevasse para São Francisco, bemcomo ao filho, ao primo Bénédicte a Nan, preta já idosa, que aservia desde a infância. Três milléguas marítimas a percorrer abordo de um navio de vela eramuito! O navio do capitão Hull,porém, estava bem arranjado, e amonção era ainda favorável deum e do outro lado do equador. Ocapitão Hull pôs imediatamente

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os seus aposentos à disposição dasua passageira, porque desejavaque durante a viagem, a qualdevia durar quarenta a cinquentadias, Mrs. Weldon fosseacomodada do melhor modopossível a bordo do naviobaleeiro.

Havia para Mrs. Weldonalgumas vantagens em fazer aviagem nestas condições e oúnico inconveniente provinha dacircunstância de o “Pilgrim” serobrigado a ir descarregar emValparaíso, no Chile. Mas istofeito, era seguir depois pela costaamericana com os terrais, que

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tornam aquelas paragens muitoagradáveis.

Mrs. Weldon era senhoraanimada, a quem o mar nãoapavorava. Tinha então trintaanos e boa saúde; habituada aosincômodos das longas viagens,porque muitas fizera,acompanhando o seu marido,nãoreceava meter-se a bordo de umnavio de medíocre tonelagem.Tinha o capitão Hull porexcelente marinheiro, em quemJames W. Weldon depositavagrande confiança. O “Pilgrim” eranavio seguro, de bom pé e muitoacreditado entre os baleeiros

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americanos. A ocasião era boa;convinha aproveitá-la, e Mrs.Weldon aproveitou-a.

O primo Bénédict, bementendido, devia acompanhá-la.Era ele excelente pessoa, e,apesar de contar então cerca decinquenta anos de idade, nãoseria prudente deixá-lo sair só.Mais comprido que alto, maisesguio que magro, de cara ossuda,cabeça enorme e farta de cabelos,denunciando na sua interminávelpessoa uma dessas criaturasinofensivas e boas, que toda avida são crianças, e acabam develhos, como se fossem

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macróbios entregues ainda aoscuidados das aias.

“Primo Bénédict”, queassim lhe chamavam todos, atémesmo aqueles que nãopertenciam à sua família, eefetivamente era ele daquelaspessoas que parecem aparentadascom toda a gente, era incapaz dese livrar do mais insignificanteperigo sem auxílio estranho. Nãose podia chamar importuno, pelocontrário, mas era incômodo paraos outros e para si mesmo.Vivendo bem com todos,sujeitando-se a tudo, esquecendo-se de comer ou de beber, se lhe

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não davam de beber ou de comer,insensível ao frio como ao calor,mais parecia pertencer ao reinovegetal que ao animal. Era comouma árvore sem frutos e semfolhas, que não pudesse alimentar,nem dar abrigo, mas cujo âmagofosse bom.

Tal era primo Bénédict.Teria de boa vontade prestadoserviços a toda a gente se, comodiria Prudhomme, fosse capaz deos prestar!

Finalmente a sua própriafraqueza o fazia estimado. Mrs.Weldon considerava-o como umacriança: como um irmão mais

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velho de Jack.Deve dizer-se que o primo

Bénédict não era ocioso, nemlivre de ocupações; pelocontrário, trabalhava, e a suaúnica paixão, a história natural,prendia-o completamente.

Dizer “história natural” édizer muito, pois é sabido que asdiferentes partes que compõemesta ciência são a zoologia, abotânica, a mineralogia e ageologia; ora o primo Bénédictnão era botânico, nemmineralogista, nem geólogo. Seriapois um zoólogo em toda aextensão da palavra, um Cuvier

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do Novo Mundo, quedecompusesse os animais pelaanálise e os recompusesse pelasíntese, um destes conhecedoresprofundos, versados no estudodos quatro tipos aos quais aciência moderna refere toda aanimalidade: os vertebrados, osmoluscos, os articulados eradiarios? Destas quatrodivisões, o ingênuo mas estudiososábio teria observado as diversasclasses e investigado as ordens,as famílias, as tribos, os gêneros,as espécies e as variedades queas distinguem?

Não.

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Ter-se-ia entregado aoestudo dos vertebrados,mamíferos, pássaros, répteis epeixes?

Também não.Seriam os moluscos, desde

os cefalópodes até aosbriozoários, que tiveram apreferência, e na malacologia nãohaveria segredos para ele?

Tampouco.Seria pois o estudo dos

radiários, equinodermes,acalefos, pólipos, briozoários,entomozoários, espongiários einfusórios que lhe tivessequeimado as pestanas?

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Não foi.Como da zoologia só falta

citar a divisão dos articulados, éclaro que foi a esta divisão que seaplicou o primo Bénédict.

Efetivamente assim foi,mas convém precisar que no ramodos articulados se contam seisclasses: os insetos, osmiriápodes, os aracnídeos, oscrustáceos, os cirrípedes e osanelídeos.

Ora, cientificamentefalando, o primo Bénédict nãosabia distinguir os vermes daterra das sanguessugas, ospercevejos dos baianos, as

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aranhas dos lacraus, os camarõesdas raninas, os mourões(1) dasescolopendras.

Mas, finalmente, o que erao primo Bénédict? Era umsimples entomologista, nada mais.

Dir-se-á, porém, que, nasua acepção etimológica, aentomologia é a parte dasciências naturais que compreendetodos os articulados. Falando nageneralidade, assim é, mas ocostume tem admitido umasignificação mais restrita àquelapalavra, a qual não se aplica, porconsequência, senão ao estudopropriamente dito dos insetos,

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isto é: todos os animaisarticulados, cujo corpo, formadode anéis ligados uns aos outros,sucessivamente, forma trêssegmentos distintos, e, porque têmtrês pares de pernas, receberam onome de hexápodes.

Ora, como primo Bénédicttinha restringido o seu estudo aosarticulados desta classe, era porisso apenas entomologista.

Deve, porém, ter-sepresente que nesta classe deinsetos contam-se não menos dedez ordens: os ortópteros(2), osneurópteros(3), oshimenópteros(4), os

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lepidópteros(5), oshemípteros(6), os coleópteros(7),os dípteros(8), os ripípteros(9),os parasitas(10) e ostisanuros(11). Em algumas destasordens, na dos coleópteros, porexemplo, conhecem-se trinta milespécies, e sessenta mil na dosdípteros; não faltam, portanto,assuntos para estudo, e neste hámatéria bastante para ocupar todaa vida de um homem, e toda avida do primo Bénédict foiinteiramente consagrada àentomologia.

A esta ciência dedicavaele todas as horas, todas, sem

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exceção, porque até mesmoquando dormia sonhava em“hexápodes”. Não se podiamcontar os alfinetes que traziapregados nas mangas e na gola docasaco, na copa do chapéu e norebuço do colete. Quando primoBénédict voltava de um passeiocientífico, o chapéu,principalmente, era como umacaixa de história natural,completamente cheia, tantointerna como externamente, deinsetos espetados em alfinetes.

Finalmente, ter-se-á dadocompleta ideia deste homemsingular quando se disser que foi

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unicamente por amor àentomologia que ele acompanhouMr. e Mrs. Weldon à NovaZelândia. Ali enriqueceu a suacoleção com alguns exemplaresraros, e por isso tinha pressa devoltar, para os classificar nosarmários do seu gabinete em SãoFrancisco.

Como Mrs. Weldon e seufilho voltassem para a América abordo do “Pilgrim”, era naturalque primo Bénédict osacompanhasse. Mas não podiaMrs. Weldon contar com ele emqualquer situação embaraçosa.Felizmente a viagem era fácil, o

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tempo bom, o navio seguro e ocapitão merecia toda a confiança.

Durante os três dias que o“Pilgrim” esteve fundeado emWaitemata, Mrs. Weldon fezapressadamente todos ospreparativos para a viagem,porque não queria retardar apartida do patacho. Despediu oscriados indígenas que a serviamem Auckland, e a 22 de Janeiroembarcou a bordo do “Pilgrim”,com Jack, primo Bénédict e Nan.

O primo Bénédict levavanuma caixa especial toda a suacuriosa coleção de insetos. Nestacoleção viam-se alguns

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exemplares de novos estafilinos,coleópteros carniceiros, cujosolhos estão colocados na partesuperior da cabeça, e os quais atéentão se julgava que pertenciamexclusivamente à NovaCaledónia.

Tinham-lhe recomendadomuito uma aranha venenosa,kapito, dos Maores, cujamordedura é quase sempre mortalpara os indígenas; mas umaaranha não pertence à ordem dosinsetos propriamente ditos;agrupa-se entre os aracnídeos, eportanto tinha pouco ou nenhumvalor para primo Bénédict, que

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pouco caso fez dela. O melhorobjeto da sua coleção era umnotável estafilino da NovaZelândia.

Fácil é de crer que primoBénédict, pagando bom prêmio,segurou toda a sua coleção, quepara ele tinha mais valor do que acarga de azeite e de barbas debaleia que o “Pilgrim” tinha noporão.

Na ocasião da partida,quando Mrs. Weldon e os seuscompanheiros de viagementravam na coberta do patacho, ocapitão Hul, aproximando-se,disse à sua passageira:

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— Mrs. Weldon, é semdúvida sob sua responsabilidadeque empreende esta viagem abordo do “Pilgrim”?

— Porque me faz essapergunta, Mr. Hull?

— Porque não tive ordensde Mr. Weldon a este respeito, eporque um patacho não pode dargarantias de uma boa viagemcomo um paquete, feitoespecialmente para transportarpassageiros.

— Se meu marido aquiestivesse, julga Mr. Hull que elehesitaria um instante em embarcarcom sua mulher e seu filho a

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bordo do “Pilgrim”?— Não, Mrs. Weldon, não

hesitaria decerto. O “Pilgrim”,apesar desta vez não ter sidomuito feliz, é um bom barco!Tenho a certeza disso, conheço-ocomo um marinheiro podeconhecer o navio em que embarcahá muitos anos. O que eu disse,Mrs. Weldon, foi para ressalvar aminha responsabilidade, para lherepetir que, a bordo deste navio,não encontrará as comodidades aque está habituada.

— Como se trataunicamente de comodidades —respondeu Mrs. Weldon —, não

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tem dúvida. Não sou daspassageiras mais difíceis decontentar, das que a toda a hora sequeixam da pequenez dosbeliches e do mau serviço damesa.

Mrs. Weldon, depois deter olhado para Jack, cuja mãosegurava, acrescentou:

— Partamos, Mr. Hull.Deram-se as ordens para

largar; mareou-se o pano, o“Pilgrim” navegou para sair dogolfo e voltou depois rumo para acosta da América.

Três dias depois, opatacho, obrigado por ventos

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contrários e frescos de leste,cingiu de bolina, com amura abombordo.

No dia 2 de Fevereiro ocapitão Hull estava por mais altalatitude que desejava e naposição de quem mais parecequerer montar o Cabo Horn doque chegar-se para a costa daAmérica.

_____________________Obs.: As notas não

assinaladas por "(N. do T.)" ou"O Tradutor" são do Autor.

* (...) Também se chamamjulos; conservamos o nome

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português antigo que lhe dá azoologia de Cuvier, traduzida emportuguês e revista por Brotero.Tipos — Gafanhotos.. Tipos —Mirmeleão, libelinha.. Tipos —Abelhas, vespas, formigas.. Tipos— Borboletas.. Tipos —Cigarras.. Tipos — Besouros,pirilampos.. Tipos — Mosquitos,moscas.. Tipos — Estilopes..Tipos — Ácaros.. Tipos —Lepismas (N. do T.)

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CAPÍTULO II

DICK SAND

O mar estava sereno e,salvo pequenas contrariedades, anavegação fazia-se em condiçõesmuito regulares.

Mrs. Weldon alojara-se abordo do “Pilgrim” tãocomodamente quanto erapossível. Não havendo, nacoberta à ré, nem tombadilho,nem gaiuta, teve a passageira dese contentar com a câmara docapitão Hull, modesto alojamento

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de um marinheiro; e para isto foipreciso que o capitão insistissepara ela aceitar. Naquele pequenoespaço estavam Mrs. Weldon, seufilho Jack e a velha Nan. Alijantavam, na companhia docapitão e do primo Bénédict, paraquem se improvisara um camaroteà amurada.

O comandante do“Pilgrim” alojou-se num camaroteda proa, que pertenceria ao pilotose o houvesse a bordo; mas, comose sabe, o patacho navegava emtais condições que podiadispensar um outro oficial.

A tripulação do “Pilgrim”

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era composta de marinheiros bonse experimentados e muito unidospela conformidade de ideias e decostumes. Era a quarta estação depesca que faziam juntos; todosamericanos de Oeste, conhecidosde longa data e pertencentes aomesmo litoral do Estado daCalifórnia. Tinham muitasatenções para Mrs. Weldon, amulher do seu patrão, a quem elesestimavam muito. Deve dizer-seque, largamente interessados noslucros do navio, haviam navegadoaté então tirando sempre bonsganhos. Se em razão do pequenonúmero o trabalho era maior,

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também maior era a paga quando,no fim da viagem, se ajustavam ascontas. Desta vez, porém, oslucros seriam pequenos, e porisso eles, com razão,praguejavam contra a gente queembarcara em Nova Zelândia.

Havia um único homem abordo que não era de origemamericana, mas cujanacionalidade se não conhecia:chamava-se Negoro, falava inglêsregularmente e exercia no patachoo modesto emprego decozinheiro.

O cozinheiro do “Pilgrim”tinha desertado em Auckland;

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Negoro, que então estavadesempregado, ofereceu-se parao substituir. Era homem taciturno,pouco comunicativo, não sechegando muito para os outros,mas desempenhando regularmenteo seu ofício. O capitão parecia teracertado ajustando Negoro, quenunca dera motivo para serrepreendido. Contudo, o capitãolastimava-se por não ter tidotempo de se informar a seurespeito. A fisionomia de Negoro,ou, antes, o seu olhar, não lheagradava muito, e, tratando-se demeter um indivíduo desconhecidona restrita e íntima vida de bordo,

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deviam empregar-se todas ascautelas.

Negoro teria quarentaanos. Magro, musculoso, deestatura meã, cabelos escuros etrigueiro, parecia homem robusto.Via-se pelas observações, queraras vezes fazia, que tiveraalguma instrução. Nunca falavado seu passado nem da suafamília. Donde vinha e onde tinhavivido, ninguém o podiaadivinhar. Qual seria o seu futuro,também não era fácil de saber.Revelava unicamente a intençãode desembarcar em Valparaíso.Era um homem extraordinário.

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Não era marinheiro e parecia atémais alheio às coisas do mar doque geralmente costumam ser oscozinheiros que têm embarcado.Contudo, o balanço não oincomodava, como acontece àspessoas que nunca navegaram,circunstância muito para apreciarnum cozinheiro de bordo.

Em suma, via-se pouco.Durante o dia estava na cozinha,em frente do fogão de ferrofundido, que ocupava grandeespaço. À noite, logo queapagava o fogão, Negoro ia parao lugar que lhe estava destinadono alojamento da marinhagem,

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deitava-se e dormia.A tripulação do “Pilgrim”,

como se disse já, compunha-se decinco marinheiros e de umprático. Tinha este quinze anos eera enjeitado. Abandonado, desdeque nasceu, fora recolhido pelacaridade pública e por elaeducado.

Dick Sand, que assim sechamava, devia ser oriundo doEstado de Nova York e semdúvida da capital deste mesmoEstado. O nome de Dick,abreviatura de Richard, foi dadoao enjeitadinho porque aquelenome era o da pessoa caridosa

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que o recolheu duas ou três horasdepois de ele ter nascido. O nomede Sand(1) é uma recordação dolugar em que foi encontrado, naponta de Sandy-Hook que forma aentrada do porto de Nova York,na embocadura do Hudson. DickSand, quando tiver atingido todoo seu desenvolvimento físico, nãodeve exceder a estatura regular;contudo, é de constituiçãorobusta. Não se pode duvidar queé de origem anglo-saxónia, e,apesar de ser trigueiro, tinhaolhos azuis muito vivos. O masterde marinheiro dispusera-o para aslutas da vida. Na sua fisionomia

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inteligente mostrava-se a energia;não tinha os traços da audácia,tinha os da ousadia. Citam-semuitas vezes as três palavrasseguintes, de um versoincompleto de Virgílio:

“Audaces fortuna juvat...”mas citam-se

incorretamente. O poeta disse:“Audentes fortuna juvat...”

*1. Sand = areia eminglês.

E é aos ousados e não aosaudazes que a fortuna quasesempre sorri. O audaz pode ser

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irrefletido; o ousado pensaprimeiro e age depois: tal é adiferença.

Dick Sand era audente.Aos quinze anos sabia já resolvere levar a cabo o que em seuespírito tivesse decidido fazer. Oseu ar, vivo e sério ao mesmotempo, atraía a atenção de toda agente; não dissipava gestos nempalavras, como fazem geralmenteos rapazes da sua idade.

Desde muito cedo, naidade em que ainda se nãodiscutem os grandes problemasda vida, viu ele qual era a suamiserável condição, e a si mesmo

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prometeu lutar e vencer.E assim foi: era quase

homem na idade em que outrossão crianças.

Desembaraçado e hábil emtodos os exercícios corporais,Dick Sand era dos entes bem-fadados que depressa aprendem,que tudo fazem e tudo conseguem.

Educado pela caridadepública, como atrás se disse,esteve primeiro num asilo, ondehá sempre, na América, lugarpara as criancinhas abandonadas.Aos quatro anos Dick aprendia aler, a escrever e a contar, numadas escolas do Estado de Nova

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York que as subscrições decaridade sustentamgenerosamente.

Aos oito anos o gosto pelavida do mar, que em Dick erainato, faziam-no embarcar comomoço de convés num navio quenavegava para os mares do sul. Abordo deste navio aprendia ele aarte de marinheiro, como se deveaprender quando se é ainda muitonovo. Pouco a pouco foi-seinstruindo sob a direção dosoficiais, que se interessavammuito por Dick. Assim o moço doconvés progredia sempre,esperando sempre mais. A

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criança que, desde o princípio dasua carreira, vê que o trabalho é alei da vida, que de muito cedosabe que deve ganhar o pão como suor do seu rosto — preceito daBíblia, que é a lei da humanidade—, está provavelmente destinadapara as grandes coisas, porqueum dia virá em que juntará àvontade a força para as executar.

Foi quando Dick Sand eraainda moço de bordo que ocapitão Hull o viu. Afeiçoou-se ocapitão a ele e mais tarde fê-loconhecido do seu armador, JamesW. Weldon, que tomou muitointeresse pelo enjeitado e

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mandou-o para São Francisco, afim de completar a sua educação,fazendo-o seguir a religiãocatólica, à qual pertencia suafamília.

Durante o curso dosestudos, Dick Sand mostrou maiorpredileção pela geografia e pelasviagens, esperando a idadeprópria para aprender a parte damatemática que se refere ànavegação. À parte teórica dainstrução que recebia não seesquecia ele de juntar a prática.Foi como prático que embarcoupela primeira vez a bordo do“Pilgrim”. Os bons marinheiros

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devem conhecer a grande pesca,como as navegações grandes,porque habilitam para todas aseventualidades da vida marítima.Dick Sand partia a bordo de umnavio de James W. Weldon, o seubenfeitor, comandado pelohomem que o protegera, o capitãoHull. Estava, pois, em excelentescondições.

Dizer até que pontochegaria a sua dedicação pelafamília Weldon seria supérfluo.Melhor será deixar falar os fatos.Compreende-se, porém, ocontentamento do jovemmarinheiro quando soube que

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Mrs. Weldon embarcaria a bordodo “Pilgrim”. Mrs. Weldon forapara ele uma boa mãe. Dickconsiderava Jack como um irmãomais novo, respeitando-o semprecomo filho do rico proprietáriode navios. Não ignoravam os seusprotetores que a boa semente poreles lançada não caíra em terrenoingrato. O reconhecimento dopobre órfão era cada vez maior, ese um dia fosse preciso dar a suavida por aqueles que o tinhammandado instruir e ensinado aamar a Deus, não hesitaria ummomento em fazê-lo. Em poucaspalavras, tinha quinze anos e

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pensava como se tivesse trinta.Tal era Dick Sand.

Sabia Mrs. Weldon quantovalia o seu protegido: por issopodia, sem cuidado, confiar-lheJack. Dick Sand acariciava acriancinha, a qual, conhecendoque ele a estimava, gostava deestar com ele. Durante as horasde ócio, que as há às vezes emviagem, quando se navega combom mar e vento galerno, Dick eJack estavam quase semprejuntos. O jovem prático mostravaa Jack tudo quanto da sua arte opudesse interessar. Era semreceio que Mrs. Weldon via Jack,

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acompanhado por Dick Sand,subir pelas enxárcias, trepar aocesto de gávea, e descer comouma seta pelos brandais. DickSand ou o precedia ou o seguia,sempre pronto a segurá-lo se ostenros bracinhos de Jackfraquejassem naqueles exercícios.Tudo isto era de grande proveitopara Jack, a quem a doença tinhaenfraquecido; a bordo do“Pilgrim”, porém, recuperaradepressa forças, graças a estaginástica quotidiana e àssaudáveis brisas do mar.

Assim corriam as coisas,assim ia a viagem, e, se o tempo

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fosse mais favorável, nem ospassageiros nem a tripulação do“Pilgrim” teriam razão de sequeixar.

Entretanto a constância dovento por leste não deixava depreocupar o capitão Hull, que nãovia o navio em boa rota ereceava, mais tarde, perto dotrópico de Capricórnio, encontrarcalmas que ainda mais ocontrariariam, sem falar dacorrente equatorial, queirresistivelmente o levaria paraoeste. Inquietava-seprincipalmente por Mrs. Weldone pelas demoras, de que ele

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decerto não era responsável.Pensava até em aconselhar à suapassageira que fosse para bordode algum vapor que seencontrasse no caminhonavegando para a América.Infelizmente estava em latitudesmuito elevadas, onde não cruzamos vapores da carreira doPanamá, e naquela época aindanão eram tão frequentes, comodepois se têm feito, ascomunicações pelo Pacífico entrea Austrália e o Novo Mundo.

As coisas tinham pois decorrer à vontade de Deus. Pareciaque nada vinha perturbar esta

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monótona viagem quando se deu oprimeiro incidente, justamente nodia 2 de Fevereiro, na latitude elongitude indicadas no princípiodesta história.

Dick Sand e Jack, pelasnove horas da manhã, como otempo estivesse claro, tinhamsubido para os vaus de joanete deproa. Dali dominavam todo onavio e o vasto espaço dooceano. À ré o círculo dohorizonte era, às suas vistas,apenas interceptado pelo mastrogrande e pelas velas deste mastro,a vela grande-latina e o gafe-tope;para a proa via-se, como se

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estivesse estendido sobre asondas, o gurupés com as suasvelas, as quais, caçadas ao portarpela esteira, pareciam três asasde desigual grandeza; por debaixodeles enfunava-se o traquete e ovelacho; acima deles estava ojoanete, cuja testa ia sempre abater por coar o vento. O patachonavegava de bolina cerrada comamuras a bombordo.

Dick Sand estavaexplicando a Jack a razão por queo “Pilgrim”, por estar bemalastrado, não corria perigo defazer da quilha portaló(1), apesarde ir muito inclinado para

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sotavento, quando Jack ointerrompeu, perguntando-lhe:

— Que vejo eu além?— Vê alguma coisa? —

perguntou Dick Sand, pondo-sede pé sobre os vaus.

— Vejo — tornou Jack,designando um ponto no mar,entre o estai da bujarrona e abaluma da giba.

Dick Sand olhou comatenção para o ponto indicado eimediatamente gritou: — Umcasco à tona de água! Pela proa,um pouco para estibordo!

________________*1. Fazer da quilha

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portaló significa virar. (N. do T.)

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CAPÍTULO III

À TONA DE AGUA

Ao grito de Dick Sandacudiu toda a tripulação. A genteque não estava de quarto correupara o convés; o capitão Hull saiudo camarote e dirigiu-se para aproa.

Mrs. Weldon, Nan e até oindiferente primo Bénédictvieram encostar-se à amuradapara ver o casco que se avistara.

Só Negoro não saiu dacozinha; de toda a tripulação foi

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ele o único, como sempre, a quema vista de um casco à tona deágua não parecia interessar.

Todos olharam atentamentepara o objeto flutuante, que asondas balouçavam a três milhasdo “Pilgrim”.

— Que será aquilo? —perguntou um marinheiro.

— Uma jangada sem gente— respondia outro.

— Quem sabe —observou Mrs. Weldon — senaquela jangada, que além vemosà mercê das ondas, estarão algunsnáufragos?

— Veremos — respondeu

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o capitão Hull —, mas aquilo nãoé uma jangada, é um cascoadornado.

— Talvez seja algummonstro marinho, algum mamíferode dimensões colossais —lembrou primo Bénédict.

— Não creio — opinou oprático.

— Então o que julgas ser,Dick? — perguntou Mrs. Weldon.

— Um casco adornado,exatamente o que disse o capitão,Mrs. Weldon. Até me parece quevejo luzir o cobre da carena.

— É verdade — afirmou ocapitão Hull. Depois, virando-se

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para o homem do leme, ordenou-lhe:

— Põe o leme deencontro, Bolton; deixa arribaruma quarta; governa a passarperto do casco.

— Vai arribado —declarou o timoneiro.

— Mas — continuouprimo Bénédict —, estou aindapelo meu dito. Aquilo é com todaa certeza um animal.

— Então será um cetáceoforrado de cobre — respondeu ocapitão Hull —, porque também,com toda a certeza, vejo luzir ocobre...

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— Em todo o caso, primoBénédict — acrescentou Mrs.Weldon —, há de convir que ocetáceo está morto, porque écerto que não faz o menormovimento.

— Ora, minha prima —respondeu Bénédict, teimandosempre —, não seria a primeiravez que se vê uma baleia dormir àtona d'água.

— Efetivamente assim é— admitiu o capitão Hull —, maso que está ali não é uma baleia, éum navio.

— Veremos — teimavaBénédict, que, apesar de tudo,

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teria dado de boa vontade todosos mamíferos dos mares árticos eantárticos por um gafanhoto deespécie rara.

— Andar assim, Bolton,andar assim — recomendou denovo o capitão Hull para otimoneiro. — Não arribar mais;não quero atracar com o navio,quero passar perto dele. Seatracássemos com aquele casco,ele pouco perderia, e nóspodíamos ter avaria grossa. Orçaum pouco, Bolton!... Orça aindamais!

A proa do “Pilgrim”, queia direita ao navio adornado,

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desviou para barlavento.O patacho estava ainda a

uma milha do casco avistado. Osmarinheiros não deixavam de oobservar com interesse. Talvezque ele tivesse carregação devalor, que fosse possível baldearpara bordo do “Pilgrim”. Como ésabido, em casos de salvamento,a terça parte do valor da cargapertence aos salvadores, e nestecaso, se o carregamento nãoestivesse avariado, a tripulaçãodo “Pilgrim” teria apanhado boamaré, como se costuma dizer.Seria a compensação da má pescaque fizeram.

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Um quarto de hora depoiso casco estava a meia milha do“Pilgrim”.

Era um navio, não haviadúvida; mostrava o costado deestibordo, adornado a tocar com atrincheira na água, e estava portal modo inclinado que seriaimpossível andar de pé nacoberta. Da mastreação nadarestava; das mesas das enxárciaspendiam unicamente alguns cabose os colhedores dos ovéns; naamura de estibordo via-se umgrande rombo.

— Aquele navio foidecerto abalroado — afirmou

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Dick Sand.— Sem dúvida —

acrescentou o capitão Hull —, esó por milagre é que não está nofundo.

— Se foi abalroado —observou Mrs. Weldon — „ énatural que a tripulação fossesalva pelo outro navio.

— Sim, Mrs. Weldon, énatural — respondeu o capitãoHull —, exceto se a tripulaçãodepois do choque não tentousalvar-se nos próprios escaleres,por ter o navio abalroadorcontinuado o seu caminho, o queinfelizmente acontece algumas

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vezes.— Parece incrível! É

realmente grande desumanidade,Mr. Hull!

— Pois é como lhe digo,Mrs. Weldon, é como lhe digo, enão são raros os casos. Quanto àtripulação daquele navio, o queme faz crer que ela o abandonou énão ver um único escaler a bordo,e, a não ser que tivesse sidosalva, o que em minha opinião émais crível é que ela tentoudemandar a terra. Mas a estadistância da América ou das ilhasda Oceânia, receio muito que nãotivesse conseguido o seu intento!

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— Talvez — continuouMrs. Weldon — fique parasempre ignorado o segredodaquela catástrofe; contudo, nãoserá impossível que se encontreainda alguém a bordo.

— Julgo que não éprovável — respondeu o capitãoHull.

— Se lá houvesse alguém,perceberia que nos aproximamose decerto já nos teria feitoqualquer sinal. Enfim, veremos.Ainda mais de ló, Bolton! Maisde ló! — gritou o capitão,indicando ao mesmo tempo com amão onde queria orçar.

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O “Pilgrim” estavaaproximadamente a três amarrasde distância do cascodesmastreado, que não haviadúvida tinha sido abandonadopela guarnição.

Nesta ocasião Dick Sand,com um gesto imperioso, impôssilêncio a todos.

— Ouçam! — disse ele.Todos prestaram atenção.

— Parece-me que ouviladrar.

Efetivamente ouviu-se umladrido longínquo dentro do outronavio. Estava lá pois um cão,preso talvez, porque era possível

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que as escotilhas estivessemcompletamente fechadas, o quenão se podia saber de modoalgum, porque ainda não se via acoberta.

— Ainda que ali não hajasenão um cão, nós o salvaremos,Mr. Hull — disse Mrs. Weldon.

— Sim, sim —acrescentou Jack —, há de sersalvo, e por esse motivo passaráa ser muito nosso amigo...Mamãe, vou buscar um torrão deaçúcar para dar ao cão.

— Sossega, meu filho —disse Mrs. Weldon, sorrindo. —Creio que o pobre animal deve

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estar a morrer de fome e quepreferirá um pedaço de carne aotorrão de açúcar.

— Então há de dar-se aele minha sopa — continuou Jack.— Passo bem sem ela.

Os ladridos ouviam-sedistintamente, e os dois naviosnão estariam a mais de trezentospés quando apareceu, trepando àtrincheira de estibordo, umenorme cão, ladrandodesesperadamente.

— Howick — disse ocapitão Hull, voltando-se para ocontramestre do “Pilgrim” —,atravesse o navio e arrie

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imediatamente o bote ao mar.— Espera! Espera! —

disse Jack para o cão, queparecia responder com umladrido abafado.

O pano do “Pilgrim” foirapidamente mareado, de modoque o navio ficou quase imóvel ea menos de meia amarra dedistância do casco.

Arriou-se o boteimediatamente, e neleembarcaram o capitão Hull, DickSand e dois marinheiros.

O cão ladrava sempre,tentando suster-se, mas caindo nacoberta repetidas vezes. Parecia

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que os latidos não se dirigiamàqueles que iam em seu socorro.Seriam pois para os marinheirosou passageiros encerrados abordo do navio em que eleestava?

“Estará a bordo algumnáufrago que tenha sobrevivido àcatástrofe?”, pensava Mrs.Weldon.

Algumas remadas mais e obote do “Pilgrim” atracaria aonavio adornado.

De repente, porém, o cãofez notável mudança. Àqueleslatidos, que pareciam chamarpelos seus salvadores,

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sucederam-se outros, furiosos. Amais violenta cólera excitava semdúvida o animal.

— Que terá aquele cão?— perguntava o capitão Hull,enquanto o bote passava pelapopa do navio, a fim de ir atracarà parte da ponte que estavasubmersa.

O que o capitão Hull nãopôde ver, o que não foi notado abordo do “Pilgrim”, é que a fúriado cão se manifestouprecisamente no momento em queNegoro saía da cozinha e sedirigia para o castelo de proa.

O cão conhecia o

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cozinheiro, e reconheceu-o então?Não é crível.

Seja como for, porém,Negoro, depois de ter olhadopara o cão sem manifestar amenor surpresa, conquantotivesse franzido o sobrolho,entrou para o alojamento damarinhagem.

O bote, entretanto, passarajunto da popa do navio, em cujopainel estava unicamente pintadoeste nome: “Waldeck”.

“Waldeck”, semdesignação da praça a quepertencia; mas pela forma docasco e por certos sinais que os

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marinheiros descobrem àprimeira vista, o capitão Hullreconheceu que o navio era deconstrução americana. O nomeconfirmava-o. Era o casco de umgrande brigue de quinhentastoneladas.

Na amura do “Waldeck”,um grande rombo indicava o lugarpor onde fora abalroado. Emconsequência da inclinação donavio, estava aquela abertura acinco ou seis pés acima do nívelda água, o que explicavaperfeitamente a razão por que obrigue não tinha soçobrado.

Na coberta, que o capitão

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Hull via de vante a ré, não estavaninguém.

O cão, que saltara datrincheira, deixou-se escorregaraté à escotilha grande, que estavaaberta, e, ora da parte de dentro,ora de fora dela, ladrava sempre.

— Este animal não está sóa bordo! — notou Dick Sand.

— Decerto! — concordouo capitão Hull.

O bote prolongou-se entãocom a amurada de bombordo,quase toda metida na água. Comondulação forte, o “Waldeck” ter-se-ia submergido em poucosminutos.

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A coberta do brigue estavavarrida de popa à proa. Restavamapenas uns fragmentos do mastrogrande e do traquete, quebradosdois pés acima das enoras;deviam ter caído por efeito doabalroamento, levando enxárcias,brandais e cabos de laborar.Contudo, tão longe quanto a vistapodia alcançar, nada se avistavaem torno do “Waldeck”, o queparecia indicar que a catástrofeacontecera havia dias.

— Se alguns desgraçadossobreviveram à colisão — disseo capitão Hull —, é provável quetenham morrido de fome e sede,

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porque a água invadiu os porões.Não há com certeza a bordosenão cadáveres!

— Não me parece! —exclamou Dick Sand. — Sehouvesse só cadáveres, o cão nãoladraria assim. Nada. Aqui hágente viva!

O animal, chamado peloprático, deixou-se escorregar atéo mar e a muito custo nadou parao bote. Parecia extenuado.

Logo que o recolheram,precipitou-se para um balde quecontinha água doce, desprezandoo pedaço de pão que Dick Sandlhe ofereceu.

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— Estava a morrer à sede!— disse Dick Sand.

O bote procurou lugarfavorável para atracar maisfacilmente ao “Waldeck”, e paraisso teve de se afastar algumasbraças. O cão julgou que os seussalvadores não queriam ir abordo, porque agarrou Dick Sandpela jaqueta, e recomeçou commais força os seus ladridoslamentosos.

Perceberam o que elequeria. A sua pantomina elinguagem era tão clara comopode ser a de um homem. O botechegou-se para o navio e atracou

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junto ao turco de bombordo, ondeos dois marinheiros o amarraram,enquanto o capitão Hull, DickSand e o cão saltavam para acoberta e não sem custo trepavamaté à escotilha grande, que seabria entre os fragmentos dosdois mastros.

Por esta escotilhadesceram ambos ao porão do“Waldeck”, o qual, meio de água,não continha mercadoria deespécie alguma. O briguenavegava em lastro, lastro deareia, que correra a bombordo,mantendo por consequência onavio inclinado.

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No porão não havia nadapara salvar.

— Aqui não está ninguém!— afirmou o capitão Hull.

— Ninguém — confirmouo prático, depois de ter descidoaté onde era possível.

Mas o cão, que estava nacoberta, ladrava sempre e pareciachamar mais insistentemente aatenção do capitão.

— Subamos — disse ocapitão Hull ao prático. Ambossubiram para a coberta.

O cão, correndo para eles,parecia querer levá-los para otombadilho.

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Seguiram o cão.Ali, na câmara, viram

então cinco corpos, cincocadáveres talvez, estendidos nochão.

À luz do dia, que seinfiltrava pela gaiuta, o capitãoviu que eram cinco negros.

Dick Sand, correndo deum para outro, percebeu que osdesgraçados ainda respiravam.

— Vamos já para bordo!— ordenou o capitão Hull.

Chamaram os doismarinheiros, que tinham ficado nobote, os quais ajudaram atransportar os náufragos para fora

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do tombadilho.Não custou pouco, mas

dois minutos depois os cinconáufragos estavam deitados nopaneiro da embarcação, sem quenenhum deles tivesse consciênciados esforços que se tentavam paraos salvar. Algumas gotas de umlicor cordial e água administradacom prudência podiam, talvez,chamá-los à vida.

O “Pilgrim” mantinha-se ameia amarra de distância docasco e por isso o bote não levoumuito tempo a chegar.

Deitaram uma retenida dolais da verga do traquete, e cada

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um dos negros, içadosseparadamente, descansou enfimna coberta do “Pilgrim”.

Acompanhava-os o cão.— Desgraçados! —

exclamou Mr. Weldon, vendoaqueles corpos inertes.

— Vivem, Mrs. Weldon! Ehavemos de os salvar! Afirmoque os havemos de salvar —assegurou Dick Sand.

— Que lhes aconteceuentão?... — perguntou primoBénédict.

— Em eles podendo falar— respondeu o capitão Hull —,saberemos. Agora é preciso que

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bebam água com rum.Depois, voltando-se,

chamou:— Negoro!Ao ouvir este nome o cão

levantou-se, pronto a acometer.Tinha o pelo eriçado e a bocaaberta. O cozinheiro, porém, nãovinha.

— Negoro! — repetiu ocapitão Hull. Negoro saiu enfimda cozinha.

Apenas apareceu nacoberta, o cão correu para ele,querendo mordê-lo.

Com uma pancada dadacom o poker o cozinheiro repeliu

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o animal, cuja raiva os outrosmarinheiros conseguiram refrear.

— Conhece por acaso essecão? — perguntou o capitão Hullao cozinheiro.

— Eu? — respondeuNegoro. — Nunca o vi!

— É singular! —murmurou Dick Sand.

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CAPÍTULO IV

OS NÁUFRAGOS DO“WALDECK”

A escravatura pratica-seainda em grande escala em quasetoda a África Equinocial. Apesarda atenta vigilância doscruzadores ingleses e franceses,vários navios carregados deescravos saem todos os anos dascostas africanas, transportandonos seus bojudos porões centenase centenas de negros para os mais

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diversos pontos do mundo, e,custa dizê-lo, do mundocivilizado.

Não o ignorava o capitãoHull. Ainda que aquelas paragensnão fossem frequentadas pelosnegreiros, o capitão Hullperguntava a si mesmo se osnegros que salvara não seriam osúnicos que tivessem sobrevividoda carregação de escravos que o“Waldeck” fosse vender a algumacolônia do Pacífico.

Se assim fosse, aqueleshomens podiam considerar-selivres desde já, só pelo fato deterem pisado o seu navio. Hull

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ardia em desejos de os informarda verdade.

Entretanto, a bordo do“Pilgrim” prodigalizavam-se aosnáufragos os mais diligentescuidados, que se justificavamdado o estado de fraqueza em queesses infelizes se encontravam.

Mrs. Weldon, ajudada porNan e Dick Sand, tinha-lhes dadoa beber algumas gotas de água, daqual estavam privados havia dias;isto e pequena porção de comidafoi quanto bastou para osreanimar.

O mais idoso dos cinconegros — teria sessenta anos —

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passado pouco tempo estava emestado de falar, e pôde, porconsequência, responder eminglês às perguntas que lhefizeram.

— O navio que ostransportava foi abalroado poroutro? Sabe alguma coisa a esserespeito? — foi a primeirapergunta que o capitão Hull fez.

— Sim, senhor —respondeu o negro. — Há dezdias que isso aconteceu. Foi numanoite escura. Estávamos todos adormir...

— Mas o que é feito datripulação do “Waldeck”? —

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prosseguiu o capitão.— Já não se encontrava a

bordo, senhor, quando eu e osmeus companheiros subimos paraa coberta.

— Talvez que a tripulaçãotivesse podido saltar para bordodo navio que abalroou o“Waldeck”? — sugeriu o capitãoHull.

— Sim, talvez, e oxalá queassim tenha acontecidoefetivamente.

— E o navio, depois dochoque, não tentou recolhê-los abordo?

— Não, senhor.

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— Teria ido a pique?— Não foi a pique —

declarou o velho negro,sacudindo a cabeça —, porque ovimos fugir, apesar de ser noite.

Este fato, confirmado portodos os náufragos do “Waldeck”,pode parecer incrível, mas éverdadeiro. Há capitães que,depois de uma terrível colisão,devida à sua imprudência,continuam a navegar, desprezandoos desgraçados que eles lançarama uma morte aflitiva, não tentandosequer prestar-lhes socorro!

Que os cocheiros nas ruaspúblicas façam o mesmo e

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deixem aos outros o cuidado dereparar o mal que fizeram, écondenável, apesar de haver acerteza de que as vítimas terãosocorros prontos. Mas que hajahomens que deixem outrosabandonados no meio do mar, éincrível e é infame!

Contudo, o capitão Hullsabia de muitos casos de tãogrande desumanidade, e podiapor isso afirmar a Mrs. Weldonque tais fatos, por monstruososque parecessem, infelizmente nãoeram raros.

Depois continuouperguntando:

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— De onde vinha o“Waldeck”?

— De Melburne.— Então vocês não são

escravos?— Não, senhor, não somos

escravos!... — respondeuvivamente o negro, queaparentava ter sessenta anos,pondo-se de pé. E acrescentou,não sem um certo orgulho:

— Somos súbditos doestado da Pensilvânia e cidadãosda América livre.

— Pois, meus amigos,creiam que não perderam a sualiberdade passando para bordo

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do patacho americano “Pilgrim”.Efetivamente, os cinco

negros vindos de bordo do“Waldeck” pertenciam ao estadoda Pensilvânia. O mais velho,vendido na África quando tinhaseis anos, e transportado depoispara os Estados Unidos, estavalivre, havia muito tempo, pelo atode emancipação. Os seuscompanheiros, muito mais novosque ele, filhos de libertos antesdo seu nascimento, nasceram jálivres; nunca nenhum brancotivera sobre eles o direito depropriedade. Não falavam alinguagem dos negros, que nunca

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empregam o artigo e só conhecemo infinito dos verbos, linguagemque desapareceu desde a guerracontra a escravidão. Aquelesnegros haviam, pois, deixadolivremente os Estados Unidos elivremente para lá voltavam.

Tinham-se ajustado,segundo disseram ao capitãoHull, como trabalhadores, comum inglês que possuía vastosterrenos em exploração perto deMelburne, na AustráliaMeridional. Estiveram lá trêsanos, colhendo bons resultados, eno fim do contrato quiseramvoltar para a América.

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Embarcaram no“Waldeck”, pagando passagem.Saíram de Melburne em 5 dedezembro, e dezessete dias maistarde, durante a noite, escura eassustadora, foram abalroadospor um grande vapor.

Estavam deitados. Algunssegundos depois do choque, quefoi terrível, correram para oconvés.

Já então o “Waldeck”estava adornado; não foi, porém,a pique, porque a água não encheuo porão.

O capitão e marinheirosdo “Waldeck” tinham

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desaparecido todos, uns porquese precipitassem ao mar, outrosporque tivessem se lançado emescaleres atrás do navioabalroador, o qual, depois dochoque, continuou a navegar enunca mais voltou.

Ficaram, pois, sós oscinco negros, a bordo de umcasco meio soçobrado, e ainda aduzentas milhas da terra maispróxima.

O mais velho se chamavaTom. A sua idade, o seu caráterenérgico e a sua experiência,provada em muitas circunstânciasde uma longa vida de trabalhos,

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deram-lhe muito naturalmente olugar de chefe entre oscompanheiros que com ele seencontravam.

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Os outros eram homens devinte e cinco a trinta anos;

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chamavam-se Bat(1), filho deTom, Agostinho, Acteon eHercule. Todos os quatro deconstituição vigorosa, teriamvalido bom preço nos mercadosda África Central.

*1. Bat é abreviatura deBartolomeu.

Tom e os seuscompanheiros estavam, pois, sósa bordo do “Waldeck”, depois daabalroação, não tendo meio depôr em condições de navegaraquele casco inerte, sem mesmopoder abandoná-lo, porque asduas únicas embarcações quehavia a bordo foram destruídas

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quando os navios colidiram.Estavam, pois, reduzidos aesperar que passasse algumnavio, enquanto o casco, à tona deágua, era levado pela ação dascorrentes, e esta ação explicava omotivo por que o “Waldeck” foraencontrado tão longe da suaderrota, pois, tendo saído deMelburne, devia estar em latitudemuito mais baixa.

Durante os dias quedecorreram entre o sinistro e omomento em que o “Pilgrim”avistou o navio naufragado, oscinco negros sustentaram-se dealimentos que encontraram na

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despensa da câmara; mas nãotendo podido ir ao paiol dovinho, porque a água o invadiracompletamente, não tinhamnenhuma bebida espirituosa, esofreram por isso atrozmente. Asquartolas de água que vinham nacoberta despedaçaram-se com ochoque. Desde a véspera que Tome os seus companheiros,torturados pela sede, estavam semsentidos. O “Pilgrim” chegou,pois, muito a tempo.

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Tal foi a narrativa que Tomfez, em poucas palavras, ao

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capitão Hull. Não se podiaduvidar do que dizia o velhonegro. Os seus companheirosconfirmaram tudo quanto eledisse, e os fatos vinham em favordestes desgraçados.

Um outro ente teria faladocom a mesma franqueza, se a falafosse a sua voz. Era o cão, que avista de Negoro impressionavatão desagradavelmente. Haviadecerto entre aqueles dois seresuma antipatia inexplicável.

Dingo — assim sechamava o cão — era de raça dosmastins, peculiar à NovaHolanda; contudo, não foi ele

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trazido da Austrália pelo capitãodo “Waldeck”. Dois anos antes,Dingo, perdido e quase morto defome, foi encontrado no litoral dacosta ocidental da África,próximo à entrada do Zaire. Ocapitão do “Waldeck” recolheu obelo animal, que, pouco sociável,parecia sempre saudoso do antigodono, de quem violentamentetivesse sido separado, e o qualnão se encontraria decertonaquelas paragens desertas. — S.V. — Estas letras, gravadas nacoleira, eram tudo quantorelacionava Dingo com umpassado inteiramente misterioso e

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que em vão se teria tentadodescobrir.

Dingo, animal grande eforte, maior que os cães dosPirenéus, era soberbo espécimeda sua raça. Quando seendireitava e entesava a cabeça,igualava a estatura de um homem.Pela sua agilidade e forçamuscular, podia acometer semmedo as onças e as panteras, enão recearia a luta com os ursos.

Dingo tinha pelo espesso,cauda comprida, farta e direita,como a do leão, era de corarruivascada, tendo apenas nofocinho algumas malhas brancas.

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Quando se encolerizasse, deviaser temível, e por isso Negoronão ficou contente com oacolhimento que lhe fez estevigoroso exemplar da raçacanina.

Contudo, Dingo, se não erasociável, também não era mau.Parecia triste. Uma observaçãofizera Tom, a bordo do“Waldeck”: era que o cão parecianão gostar de pretos. Não lhesfazia mal, mas evitava-os. Talvezque os indígenas da costaafricana, onde ele andaraperdido, lhe tivessem dado maustratos.

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Assim, conquanto Tom eos seus companheiros fossembons, Dingo não se chegava paraeles. Durante os dez dias que osnáufragos passaram a bordo do“Waldeck”, o cão andou sempreafastado, não sabendo eles de quese sustentou, mas tendo tambémsofrido sedes cruéis.

Tais eram os náufragosdaquele casco, que o primeirogolpe de mar submergiria, e quesó teria levado cadáveres para asprofundezas do oceano se achegada inesperada do “Pilgrim”,retardado pelas calmas e pelosventos contrários, não tivesse

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dado ao capitão Hull a ocasião defazer tão humanitária obra. Para acompletar, tinha ele de repatriaros náufragos do “Waldeck”, osquais haviam perdido com onaufrágio as economias de trêsanos de trabalho. Era o que ocapitão Hull tencionava fazer. O“Pilgrim”, depois de descarregarem Valparaíso, seguiria pelacosta da América até ao litoral daCalifórnia. Aí, Tom e os seuscompanheiros seriam bemrecebidos por James W. Weldon— assim o garantia a suagenerosa esposa — e, bemprovidos de tudo quanto lhes

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fosse necessário para a viagem,seguiriam para o Estado dePensilvânia.

Os náufragos, tranquilospelo seu futuro, agradeceram aMrs. Weldon e ao capitão Hull.Deviam-lhes muito, sem dúvida,e, apesar de serem uns pobresnegros, esperavam pagar maiscedo ou mais tarde esta dívida dereconhecimento.

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CAPÍTULO V

S. V.

O “Pilgrim” entretantocontinuava a navegar, esforçando-se em ganhar para leste. Apersistência das calmas nãodeixava de preocupar o capitãoHull, não porque tivesseimportância a demora de maisuma ou duas semanas, numaviagem da Nova Zelândia aValparaíso, mas pelo cansaço quetal demora podia produzir à sua

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passageira.Mrs. Weldon, porém, não

se queixava e encarava comresignação esta contrariedade.

No mesmo dia, 2 deFevereiro, pela noite, perdeu-sede vista o casco abandonado.

O capitão Hull tratou antesde tudo de alojar o maisconvenientemente possível Tom eos seus companheiros. A cobertada tripulação, disposta avante emforma de gaiuta, era pequena.Acomodaram-se, pois, debaixodo castelo. Aquela gente,habituada aos trabalhos rudes,contentava-se facilmente com

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tudo, e como o tempo estava bom,quente e saudável, o alojamentoservia-lhes admiravelmente paratoda a viagem.

A vida de bordo,perturbada um instante na suamonotonia por aquele incidente,de novo voltou ao seu cursoregular.

Tom, Agostinho, Bat,Acteon e Hercule desejavamtornar-se úteis. Mas quando ovento é constante, o pano uma vezbraceado, nada há que fazer.

Se se tratava de virar debordo, o velho negro e os seuscompanheiros corriam em auxílio

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da tripulação, e é forçoso dizerque, se o colossal Herculedeitava a mão a um cabo,percebia-se imediatamente. Estevigoroso negro, de seis pés dealtura, valia bem por três homens!

Jack entretinha-se a olharpara o gigante, de quem não tinhamedo; e, quando Hercule lhepegava ao colo, como se opequenino fosse um boneco decortiça, a alegria de Jack eraimensa.

— Levanta-me bem alto— pedia Jack.

— Lá vai, muito alto! —acedia Hercule.

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— Sou pesado?— Como uma pena. Nem o

sinto!— Então levanta-me mais!

Até onde chegarem os teusbraços.

E Hercule, com os doispezinhos de Jack numa das mãos,passeava com ele, como faria umginasta no circo. Jack, vendo-seem grande altura, gritava muito etentava fazer-se pesado, o queHercule nem sequer percebia.

Tinha pois Jack doisamigos, Dick Sand e Hercule,mas não tardou que a estesjuntasse um terceiro.

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Foi Dingo.Disse-se que Dingo era

pouco sociável, porque nãogostava da gente do “Waldeck”. Abordo do “Pilgrim” era porémoutra coisa. Jack soube fazer-seestimar por Dingo, ao qualagradava brincar com Jack. Viu-se então que Dingo era daquelescães que têm predileção especialpelas crianças. Jack não lhe faziamal; o seu maior prazer eratransformar Dingo em cavalo, epode-se afirmar que valia muitomais que os quadrúpedes depapelão, embora tenham rodasnas patas. Jack cavalgava o cão,

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que tudo deixava fazerpacientemente; o peso de Jack erapara ele como a metade do pesode um jóquei para um cavalo decorridas.

Mas que grande brecha sefazia todos os dias no açúcar dadespensa!

Em pouco tempo Dingoera o favorito de toda atripulação.

Só Negoro evitavaencontrar-se com ele, cujaantipatia era tão grande comoinexplicável.

Jack não desprezava, poramor a Dingo, Dick Sand, seu

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antigo amigo. O tempo que oprático não aplicava ao serviçodo navio passava-o com Jack.

Mrs. Weldon via comgrande satisfação aquelaintimidade.

Um dia, a 6 de Fevereiro,falava Mrs. Weldon com ocapitão Hull a respeito de DickSand, e o capitão fazia os maioreselogios do jovem prático.

— Asseguro — dizia ocapitão a Mrs. Weldon — queaquele rapaz há de vir a ser umgrande marinheiro! Tem o instintodas coisas do mar, e com esteinstinto supre a teoria que lhe

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falta. Espanta o que ele sabe,principalmente quando se pensaque tem tido pouco tempo paraaprender.

— É preciso acrescentartambém — fez notar Mrs. Weldon— que é muito bom rapaz, muitosuperior ao que é de esperar nasua idade, e que nunca mereceuser repreendido, pelo menosdesde que o conhecemos.

— Sim, é muito bom rapaz— confirmou o capitão Hull — emerecidamente estimado eapreciado por todos.

— Quando acabar estaviagem, sei que é intenção do meu

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marido mandá-lo seguir o cursode navegação, para que possaobter depois a carta de piloto.

— E faz muito bem,porque Dick Sand há de honrarum dia a marinha americana.

— Este pobre órfãocomeçou tristemente a sua vida— observou Mrs. Weldon. — Foieducado no meio dos trabalhos.

— É verdade, mas foram-lhe proveitosas as lições.Compreendeu que precisava detrabalhar, e vai a bom caminho.

— Certamente, vai pelocaminho do dever!

— Olhe para ele —

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continuou, o capitão Hull. — Estáao leme, não tira os olhos da testado traquete; não se distrai e porisso não toca nunca com o navioem vento.

Governa como os velhosmarinheiros. Bons princípios,Mrs. Weldon, bons princípios!Para ser grande nesta arte épreciso começar de criança.Quem nunca embarcou comomoço, não será nunca marinheiroconsumado, pelo menos namarinha mercante. É preciso vertudo e em tudo aprender para queno homem do mar tudo seja aomesmo tempo instintivo e

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pensado — a resolução que sedeve tomar, como a manobra quese tem a fazer.

— Contudo, capitão Hull— observou Mrs. Weldon —, nãofaltam bons oficiais na marinhade guerra.

— Não, certamente, masna minha opinião os melhorescomeçaram todos a sua carreiramuito cedo, sem falar de Nelson ede muitos outros. Os piores nãosão os que começaram pormoços.

Neste momento saía daescotilha primo Bénédict, sempreabsorto, e sempre tão pouco deste

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mundo como será o profeta Elias,quando voltar à Terra.

Primo Bénédict começou adivagar pela coberta, penetrandocom a vista as fendas dasamuradas, procurando debaixodas capoeiras e passando a mãosob as costuras da coberta, ondeo breu estava estalado.

— Então, primo Bénédict— perguntou Mrs. Weldon —,continua passando bem?

— Muito bem... mas játenho bastantes desejos de chegara terra.

— O que procura debaixodesse banco, Sr. Bénédict? — -

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perguntou o capitão Hull.— Procuro insetos —

respondeu Bénédict. — Pois quequer que eu procure senãoinsetos?

— Insetos? Parece-me quenão será no mar que há deenriquecer a sua coleção.

— E porque não?... Não éimpossível achar a bordo algumexemplar de...

— O primo Bénédict —atalhou Mrs. Weldon — devemaldizer o capitão Hull, porquetem o seu navio tão asseado que oprimo nada pode descobrir nassuas explorações.

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O capitão Hull riu-se.— Mrs. Weldon exagera

— disse este —, contudo, parece-me que perde o seu tempoprocurando pelos camarotes.

— Bem sei — disse primoBénédict, encolhendo os ombros.

— Mas no porão do“Pilgrim” — continuou o capitãoHull — talvez encontre algumasbaratas, bichinhos aliás poucointeressantes.

— Quê? Poucointeressantes! Esses ortópterosnoctívagos, que mereceram asmaldições de Virgílio e deHorácio! — retrucou primo

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Bénédict, endireitando-se. —Pouco interessantes essesparentes próximos do periplanetaorientalis e do kakerlacamericano, e que habitam...

— Que infestam... —corrigiu o capitão Hull.

— Que reinam a bordo...— replicou com altivez primoBénédict.

— Amável realeza!...— O senhor não é

entomologista?— Nunca fui.— Primo Bénédict —

disse Mrs. Weldon, sorrindo —,não nos deseje ver devorados por

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amor da ciência!— Não desejo, prima, não

— respondeu o ardenteentomologista —, o que querounicamente é juntar à minhacoleção algum exemplar raro, quelhe faça honra.

— Não está satisfeito comas conquistas que fez na NovaZelândia?

— Muito satisfeito, primaWeldon. Fui até muito feliz porter obtido um dos novosestafilinos que até aqui só seencontravam a algumas centenasde milhas mais longe, na NovaCaledónia.

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Neste momento, Dingo,que brincava com Jack,aproximou-se, pulando, do primoBénédict.

— Vai-te! Vai-te! — disseeste, repelindo o cão.

— Oh! Sr. Bénédict! Gostadas baratas e despreza os cães!— exclamou o capitão Hull.

- E um cão tão bom comoeste — disse Jack, agarrando comas mãozinhas a cabeça de Dingo.

— Sim... não digo quenão!... — admitiu Bénédict. —Mas, que querem, se este animalnão realizou as esperanças que oseu encontro me prometia.

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— Ora, com efeito! —exclamou Mrs. Weldon. —Contava poder classificá-lo entreos dípteros ou na ordem doshimenópteros?

— Não — volveu primoBénédict, com gravidade. — Masnão será verdade que Dingo,conquanto seja de raçaneozelandesa, foi encontrado nacosta ocidental da África?

— É verdade —respondeu Mrs. Weldon. — Tommuitas vezes o ouviu dizer aocapitão do “Waldeck”.

— Pois bem, eu pensei,esperei até... que este cão traria

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no pelo alguns espécimes dehemípteros especiais da faunaafricana.

— Ainda bem que não ostrouxe! — exclamou Mrs.Weldon.

— É que podiam ser —acrescentou primo Bénédict —algumas pulgas penetrantes ouirritantes... de nova espécie...

— Ouves, Dingo? — disseo capitão Hull. — Ouves?Faltaste ao teu dever!

— Catei-o, mas debalde— prosseguiu, com pesar,Bénédict —, pois não lheencontrei um único inseto...

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— E se o tivesse achadotê-lo-ia imediata edesapiedadamente morto —afirmou o capitão Hull.

— Saiba — respondeusecamente primo Bénédict — queSir John Franklin tinha escrúpulode matar o mais pequeno inseto,ainda que fosse um moscardo,cujos ataques são mais para temerque os da pulga; e, contudo, creioque convirá que Sir John Franklinera homem do mar como hápoucos!

— Certamente —concordou, inclinando-se, ocapitão Hull.

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— Um dia, depois de tersido terrivelmente mordido porum díptero, soprou-o, dizendo-lhe, sem sequer o tratar por tu:“Ide! O mundo é muito grandepara, para mim!”

— Ah! — exclamou ocapitão Hull.

— É como lhe digo!— -Pois bem, Sr. Bénédict

— redarguiu o capitão Hull —, jáoutro antes de Sir John Franklinhavia dito o mesmo!

— Antes!— É verdade, foi o tio

Tobias.— Era entomologista? —

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perguntou com vivacidade primoBénédict.

— Nada, não! O tio Tobiasde Sterne pronunciouprecisamente as mesmaspalavras, sacudindo um mosquitoque o importunava, mas que eletratou com pouca cerimônia.“Vai-te, pobre diabo, disse-lheele, o mundo é muito grande parati e para mim!”

— Grande homem era otio Tobias! — disse primoBénédict. — Já morreu?

— Creio que sim —respondeu com muita seriedade ocapitão Hull —, se alguma vez

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existiu.Todos se riram olhando

para primo Bénédict.Nestas e outras

conversações semelhantes, quequase sempre caíam sobre algumponto de entomologia, se acasoprimo Bénédict tomava partenelas, se iam passando as longase fastidiosas horas daquelacontrariada viagem. O mar serenosempre, mas os ventos escassosobrigavam o patacho a navegar debolina. O “Pilgrim” poucoganhava; era já tempo de chegaràs paragens onde os ventosreinantes lhe seriam favoráveis.

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Deve dizer-se que primoBénédict tentou iniciar o jovemprático nos mistérios daentomologia, mas Dick Sandmostrou-se muito refratário paraeste estudo. Não achando emquem melhor pudesse empregar oseu tempo, o sábio quis ensinar osnegros, mas estes nada entendiam.Tom, Acteon, Bat e Agostinhoabandonaram a escola, de sorteque o professor ficou só comHercule,

que lhe parecia terdisposição natural para distinguiros parasitas dos tisanuros.

O colossal preto vivia

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pois no mundo dos coleópteros,carniceiros, caçadores,cavadores, cicindelas, sirfos,escaravelhos de todas asespécies, tenebriões, gorgulhos ecoccinelas, estudando na coleçãodo primo Bénédict, não sem queeste receasse ver os seusdelicados espécimes entre osdedos de Hercule, que tinham adureza e a força de uma turquês.Mas o colossal discípulo ouviatão docilmente as lições doprofessor, que só por isso valia apena arriscar alguma coisa.

Enquanto primo Bénédictse entretinha deste modo, Mrs.

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Weldon não deixava Jackdesocupado. Ensinava-lhe a ler ea escrever. Os primeiroselementos da arte de contaraprendia-os com o seu amigoDick Sand.

Aos cinco anos de idadeé-se ainda muito pequenino, emelhor se faz a instrução pormeios práticos do que por liçõesteóricas, necessariamente maisdifíceis.

Jack não aprendia a lerpor abecedário, mas por meio deletras, impressas com tintaencarnada sobre cubos demadeira, com os quais brincava,

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formando palavras. Muitas vezes,Mrs. Weldon compunha comalguns cubos uma palavra,misturava-os e dava-os a Jackpara os dispor na ordem devida.

O pequenino gostava muitodeste modo de aprender a ler.Passava muitas horas do dia, orana câmara, ora na coberta, aarrumar e a desarrumar as letrasdo seu alfabeto.

Um dia, porém, provocouisto um incidente tãoextraordinário e tão inesperadoque merece ser referido comtodas as particularidades.

Na manhã de 9 de

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Fevereiro, Jack, meio estendidosobre o convés, brincava,formando uma palavra, que Tomadivinharia, depois de baralhar asletras. Tom tinha as mãos nosolhos, para não fazer trapaça.Nada devia ver e nada via do queJack estava a fazer.

As diversas letras, emnúmero de cinquenta, umas erammaiúsculas, outras minúsculas.Alguns cubos tinham algarismos;serviam para ensinar a formar osnúmeros como outros ensinavama formar as palavras.

Os cubos estavamdispostos em certa ordem sobre o

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convés e Jack ia tirando, ora um,ora outro, para compor a palavra.Grande trabalho, na verdade.

Dingo, que andava à rodade Jack havia não muito tempo,parou. Fixou os olhos, levantou apata direita e agitou a caudaconvulsivamente. De repente,lançou-se sobre um dos cubos demadeira, pegou-lhe com os dentese foi largá-lo no convés, a algunspassos de distância de Jack.

Neste cubo estava umaletra maiúscula — a letra S.

— Dingo! Dingo! —exclamou Jack, receando que oseu S fosse engolido pelo cão.

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Mas Dingo voltou e,recomeçando no mesmo manejo,pegou num outro cubo e foicolocá-lo junto ao primeiro.

Este segundo cubo tinhaum V maiúsculo.

Jack desta vez deu umgrito, ao qual acudiram Mrs.Weldon, o capitão Hull e oprático, que andavam a passearna coberta. Jack contou-lhes entãoo que acabava de acontecer.

— Dingo conhecia asletras! Dingo sabia ler! Não haviadúvida! Jack tinha visto.

Dick Sand tentou apanharas letras, a fim de as dar ao seu

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amigo, mas Dingo mostrou-lhe osdentes.

O prático, porém,conseguiu apoderar-se dos doiscubos e repô-los no jogo.

Dingo arremessou-senovamente, pegou nas mesmasletras e tornou a pô-las de lado.Desta vez, porém, assentou asduas mãos sobre elas, decidido aguardá-las. As outras letras doalfabeto eram para ele como senão existissem.

— Isto é maravilhoso! —disse Mrs. Weldon.

— É muito extraordinário— concordou o capitão Hull,

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olhando atentamente para as duasletras.

— S. V. — disse Mrs,Weldon, — S. V. — repetiu ocapitão Hull. — Sãoprecisamente as mesmas letrasque Dingo tem na coleira!

Depois, virando-sesubitamente para o negro,perguntou-lhe:

— Tom, não disse quehavia pouco tempo que este cãopertencia ao capitão do“Waldeck”?

— Sim, senhor —respondeu Tom. — Dingo estavaa bordo havia dois anos, se tanto.

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— E não me contoutambém que o capitão do“Waldeck.” encontrara o cão nacosta ocidental da África?

— .Sim, senhor, perto doZaire. Ouvi-o contar muitasvezes.

— Assim — continuou ocapitão Hull —, nunca se soube aquem pertenceu, nem de ondeveio?

— Nunca.— Pior é encontrar um cão

perdido que uma criança. O cãonão tem papéis nem sabe seexplicar.

O capitão Hull calou-se.

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Parecia refletir.— Aquelas letras

despertam-lhe alguma lembrança?— perguntou Mrs. Weldon aocapitão Hull, depois de o terdeixado por alguns instantesentregue às suas reflexões.

— Sim, Mrs. Weldon, umalembrança, ou antes umaaproximação...

— Qual é?— Aquelas letras podem

ter um determinado sentido efixar-nos sobre a sorte de umviajante intrépido.

— Que quer dizer? —inquiriu Mrs. Weldon.

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— Quero dizer que em1871 — há por consequência doisanos — um viajante francêspartiu, seguindo as indicações daSociedade de Geografia de Paris,com a intenção de atravessar aÁfrica de oeste para leste. O seuponto de partida era exatamente afoz do Zaire, e o seu ponto dechegada devia ser, tanto quantofosse possível, em Cabo Delgado,nas embocaduras do Rovuna, cujocurso devia seguir. Este viajantefrancês chamava-se SamuelVernon.

— Samuel Vernon! —repetiu Mrs. Weldon.

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— Sim, e estes dois nomescomeçam exatamente pelas duasletras escolhidas por Dingo entretodas; as mesmas que estãogravadas na coleira.

— É verdade — disseMrs. Weldon. — E que éfeito desse viajante?

— Partiu efetivamente —respondeu o capitão Hull —, masnunca mais se soube dele.

— Nunca? — perguntou oprático.

— Nunca — repetiu ocapitão Hull.

— O que conclui de tudoisto? — interrogou Mrs. Weldon.

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— Que Samuel Vernon nãochegou com toda a certeza à costaoriental da África, ou porquetivesse sido prisioneiro dosindígenas, ou porque tivessemorrido.

— E o cão?— O cão seria dele, e

mais feliz que seu dono, se aminha hipótese é verdadeira, teriaconseguido voltar para o litoral,perto do Zaire, pois que foi aí, naépoca em que estes fatos sedeviam ter dado, que o capitão do“Waldeck” o encontrou.

— Mas — observou Mrs.Weldon — sabe se esse viajante

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francês, quando partiu, iaacompanhado por um cão? Ou ésimples suposição da sua parte?

— Efetivamente é simplessuposição — respondeu o capitãoHull. — Mas é certo que Dingoconhece as duas letras S e V, quesão as iniciais dos dois nomes doviajante francês. Ascircunstâncias, porém, em que oanimal aprendeu a conhecê-las,não as sei eu explicar; mas,repito, conhece as letras muitobem, e, repare, empurra-as comas patas e parece, até, desejarquerer que as vejamos.

Não podia haver ilusão a

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respeito das intenções de Dingo.— Samuel Vernon ia só

quando partiu do Zaire? —perguntou Dick Sand.

— Não sei — volveu ocapitão Hull —, mas é provávelque ele levasse consigo algunsindígenas.

Neste momento apareceuNegoro, que saía da cozinha.Ninguém dera por ele e ninguémpôde observar o olhar que elelançou sobre o cão quando viu asduas letras, que este pareciaguardar. Mas Dingo, vendo ocozinheiro, deu logo mostras degrande furor.

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Negoro entrou noalojamento da tripulação, fazendopara Dingo um gesto de ameaça.

— Ali há grande mistério!— murmurou o capitão Hull, quenada perdera desta cena.

— Mas, senhor — disse oprático —, não é espantoso queum cão conheça as letras doalfabeto?

— Não é, não —respondeu Jack. — A mamãeconta-me muitas vezes a históriade um cão que sabia ler eescrever, e que até jogava odominó.

— Meu filho — disse,

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sorrindo, Mrs. Weldon —, essecão, que se chamava Munito, nãoera erudito como julgas.Acreditando no que me contaram,não sabia ele distinguir, umas dasoutras, as letras com quecompunha as palavras. O seudono, que era americano e muitohábil, tendo notado que Munitotinha ouvido delicado, dedicou-se-lhe a exercitar-lho,conseguindo efeitosmaravilhosos.

— Como fazia ele entãoisso, Mrs. Weldon? — perguntouDick Sand, a quem a históriainteressava quase tanto como a

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Jack.— Da seguinte maneira:

quando Munito devia “trabalhar”perante o público, punha letrassemelhantes a estas ordenadassobre uma mesa. Sobre elaandava o cão de um para o outrolado, esperando que seescolhesse a palavra, ou fosse emvoz alta ou em segredo; havia sóuma condição essencial: era queo dono soubesse qual era apalavra escolhida.

— E quando o dono nãoestava presente? — quis saber Oprático.

— O cão nada podia fazer

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— elucidou Mrs. Weldon —, e arazão é esta: as letras estavamexpostas sobre a mesa e Munitoandava por diante delas. Quandochegava em frente da letra quedevia tirar para formar a palavra,parava, porque ouvia o ruído —imperceptível para os outros —de um palito que o americanoquebrava dentro da algibeira.Este ruído era para Munito o sinalpara abocar a letra e vir dispô-laconvenientemente.

— Eis o grande segredo!— exclamou Dick Sand.

— Era este com efeito osegredo — continuou Mrs.

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Weldon —, mas muito simples,como tudo que respeita àprestidigitação. Na falta doamericano, Munito não teria sidoo que foi. Admira-me pois queDingo, não estando aqui o dono,se efetivamente Samuel Vernonfoi o dono, saiba distinguir asduas letras.

— E com efeito —ponderou o capitão Hull — épara espantar, mas é ainda maisnotável que neste caso se trata deduas determinadas letras, e nãode uma palavra escolhida aoacaso. Mas o cão que batia àportaria do convento para se

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apoderar da comida reservadapara os pobres pedintes, o outroque tinha com um seu semelhanteo encargo de mover um torno emdias alternados e que se recusavaa trabalhar quando lhe nãocompetia, estes dois cães iammais longe pela inteligência, aqual é predicado do homem.Estamos em presença de um fatoindiscutível. De todas as letrasdaquele alfabeto, Dingo escolheusó duas: S e V; as outras pareceque lhe são desconhecidas. Épreciso, pois, concluir que poruma razão qualquer, que nosescapa, a sua atenção foi guiada

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particularmente para aquelasletras.

— Ah! capitão Hull —observou o jovem prático —, seDingo pudesse falar!... Talvez nosdissesse a significação das duasletras e a razão por que mostra osdentes ao mestre cozinheiro.

— E que dentes! —respondeu o capitão Hull,exatamente na ocasião em queDingo abria a boca e mostrava assuas enormes presas.

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CAPÍTULO VI

BALEIA À VISTA

Como é natural, esteextraordinário incidente foi maisde uma vez o assunto dasconversações na câmara do“Pilgrim”, entre Mrs. Weldon, ocapitão Hull e o jovem prático.Este, principalmente, tinhainstintiva desconfiança deNegoro, cuja conduta continuava,no entanto, a não merecercensura.

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Na proa as conversas eramsemelhantes, mas asconsequências diferentes. Entre amarinhagem, Dingo era um cãoque sabia ler e talvez escrevermelhor do que alguns dosmarinheiros de bordo. Se nãofalava é porque tinha razões paraandar calado.

— Um belo dia — diziaBolton —, um belo dia, vocêsverão: o cão vem perguntar-nosaonde vai a proa, e se o ventoestá oés-noroeste, e há deresponder-se-lhe.

— Não há animais quefalam? Porque não há de o cão

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fazer outro tanto se tiver vontade?É mais difícil falar com o bico doque com a boca!

— É verdade — admitiu ocontramestre Howick —, masisso nunca se viu.

Aquela gente ficariaespantada se soubesse que, pelocontrário, não era caso novo, eque um sábio dinamarquês tinhaum cão que pronunciavadistintamente cerca de vintepalavras; mas entre dizê-las ecompreendê-las havia um abismo.Evidentemente, este cão, cujaglote podia emitir sons regulares,ligava tanto sentido às palavras

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que dizia como ligam ospapagaios e as pegas às quepronunciam. A frase nos animaisé uma espécie de canto ou degrito falado, tirado de línguaestranha e cujo sentido é paraeles imperceptível.

Seja porém como for, ocerto é que Dingo se tornou oherói de bordo, mas não tinhaorgulho por isso. Muitas vezes ocapitão Hull recomeçou aexperiência. Os cubos demadeira, do alfabeto, punham-sediante de Dingo einvariavelmente, sem erro e semhesitação, as letras S e V eram

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separadas pelo notável animal,enquanto as outras nem sequer lheatraíam a atenção. Estaexperiência foi repetida mais deuma vez em presença do primoBénédict sem que este lhe ligassegrande importância.

— -Contudo — dignou-seele dizer um dia —, não se julgueque só os cães são inteligentes.Outros animais os igualam,seguindo apenas o próprioinstinto. Os ratos, por exemplo,que abandonam o navio em mauestado e em risco de ir a pique;os castores, que prevêem ascheias e se abrigam delas

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levantando diques; os cavalos deNicomedes, de Scanderberg e deÓpio, cuja dor pela morte dosseus donos foi tal que nãoresistiram a ela e morreram; osburros, tão notáveis pela suamemória, e tantos outrosirracionais, que fazem honra àanimalidade! Não se têm vistopássaros tão admiravelmenteensinados que escrevem semerros as palavras que lhes ditamos mestres, catatuas que contamtão bem como qualquer calculistade observatório as pessoasreunidas numa sala? Não houveum papagaio — custou cem

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escudos de ouro! — que recitava,sem se enganar, ao cardeal seudono, todo o Símbolo dosApóstolos? Finalmente, não sedeve elevar muito o legítimoorgulho dos entomologistasquando se vêem simples insetosdar provas de inteligênciasuperior e afirmar eloquentementeo axioma: In minimis, maximusDeus? As formigas que ensinaramos edis das grandes cidades,argironetas aquáticas, quefabricam sinos de mergulhadoressem nunca terem aprendido amecânica; as pulgas, que puxamcarrinhos, que fazem exercícios

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como soldados e dão fogo àspeças como os bons artilheiros deWest Point?(1) Não me parece,pois, que Dingo mereça tãograndes elogios, e, se acasoconhece tão bem o alfabeto, é semdúvida porque pertence a umaespécie de mastins nãoclassificada ainda na ciênciazoológica, o canis alphabeticusda Nova Zelândia.

Apesar destes e doutrosdiscursos semelhantes dodesdenhoso entomologista, Dingonada perdia da estima pública econtinuava a ser consideradocomo um fenômeno nas conversas

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à roda da abita.É contudo muito provável

que Negoro não participasse doentusiasmo que havia a bordo porDingo. Talvez que o achasseinteligente de mais. Seja porémcomo for, o certo é que o cãocontinuava a mostrar a mesmaanimosidade contra o cozinheiro,e talvez Dingo tivesse sofridogrande mal se a si mesmo nãofosse capaz de se defender e nãoestivesse, além disso, protegidopela simpatia de toda atripulação.

Negoro evitava mais doque nunca encontrar-se com

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Dingo, mas Dick Sand nãodeixara de observar que, depoisdo incidente das duas letras, aantipatia recíproca do homem edo cão tinha aumentado. Erainexplicável.

A 10 de Fevereiro, o ventonordeste, que até então soprara,depois das fastidiosas calmas queimobilizaram o “Pilgrim”,abonançou sensivelmente. Ocapitão Hull teve, pois, aesperança de que se fizessequalquer mudança na direção dascorrentes atmosféricas. O patachonavegaria, finalmente, tendoventos de feição. Contava apenas

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dezenove dias de viagem; ademora não era muitoconsiderável e o “Pilgrim”, combom vento do través e todo opano pargo, facilmenterecuperaria o tempo perdido.

*1. Escola militar doEstado de Nova York.

Mas tinha ainda de esperaralguns dias antes de encontrar osventos bem firmes pelo quadrantenoroeste.

Aquela região do Pacíficoestava quase sempre deserta:nenhum navio aparecia poraquelas paragens. Eram latitudesabandonadas pelos navegadores,

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e os baleeiros dos mares austraisainda julgavam cedo paraatravessar o trópico. Comexceção do “Pilgrim”, quecircunstâncias especiaisobrigaram a abandonar asparagens piscosas, não eraprovável que outro naviopassasse por aquela latitude,vindo das mesmas regiões.

Os paquetestranspacíficos, como se disse já,não procuravam paralelo tãoelevado nas suas carreiras entre aAustrália e o continenteamericano.

Contudo, e talvez mesmo

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porque o mar estava deserto, nãose devia deixar de observar ohorizonte. Por muito monótonoque o mar possa parecer aosespíritos menos atentos, não deixacontudo de ser infinitamentevariado para quem o sabeobservar. As mais insignificantesmudanças encantam a imaginaçãode quem sabe compreender apoesia do mar. Uma alga marinhaque flutua, ondulando, um ramode sargaço com a sua tênueesteira à superfície das águas, umpedaço de madeira, cuja históriadespertaria a curiosidade, bastampara prender a atenção. Ante esta

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grandeza imensa o espírito nãopára. A imaginação alarga-se.Cada molécula de água, que aevaporação elevaincessantemente do mar para aatmosfera, tem em si talvez osegredo de mais de umacatástrofe. Ditosos aqueles quenos seus íntimos pensamentossabem interrogar os mistérios dooceano, espíritos que, da suasuperfície sempre em movimento,se erguem às grandes alturas docéu.

A vida manifesta-se portoda a parte, tanto acima comoabaixo da superfície das águas.

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Os passageiros do “Pilgrim”tiveram ocasião de ver cardumesde pequenos peixes perseguidospelos bandos de aves que duranteo Inverno fogem do áspero climados pólos, e, mais de uma vez,Dick Sand, discípulo neste ponto,como em muitos outros, de JamesW. Weldon, mostrou a sua rarahabilidade em atirar com aespingarda ou à pistola, matandoalguns dos rápidos voláteis.

Aqui proceláriasbrancas(1), ali outras com as asasorladas de cinzento-escuro;algumas vezes viam-se passarbandos de feijões-frades(1) ou de

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pinguins(1), cujo andar em terra étão pesado como feio. O capitãoHull disse que os pinguins seservem dos cotos comobarbatanas, excedendo a nadar ospeixes mais rápidos, a ponto deos marinheiros confundiremalgumas aves com os bonitos(2).

Em mais elevada altura osalbatrozes, ou carniceiros-do-cabo(1), librados nas suasgrandes asas, cuja envergaduratem dez pés de comprimento,vinham como que pousar àsuperfície da água e com o bicoprocurar nela alimento.

*1. Aves aquáticas. 2.

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Peixes.Tudo isto formava um

espetáculo variado, que só osespíritos rebeldes paracompreender os encantos danatureza achariam monótono.

Naquele dia, Mrs. Weldonpasseava à popa do “Pilgrim”quando um fenômeno muitonotável lhe chamou a atenção. Aságuas do oceano fizeram-severmelhas quase subitamente.Seria fácil de acreditar que setinham tingido de sangue; aquelacor inexplicável estendia-se atéonde a vista alcançava.

Dick Sand e Jack estavam

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nesse momento junto de Mrs.Weldon.

— Vês, Dick — disse elaao jovem prático —, esta cor tãoextraordinária da água do oceanoPacífico? Será causada poralguma erva marinha?

— Não é, Mrs. Weldon —respondeu Dick Sand —, esta coré produzida por muitas miríadesde pequenos crustáceos, queordinariamente servem parasustentar os grandes mamíferosdo mar. Os pescadores chamam aisto o manjar da baleia.

— Crustáceos! — repetiuMrs. Weldon —, mas são tão

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pequenos que bem se poderiamchamar insetos do mar. Talvezque o primo Bénédict gostasse deos colecionar. Primo Bénédict?!— gritou Mrs. Weldon.

Bénédict surdiu daescotilha quase ao mesmo tempoque o capitão Hull.

— Primo Bénédict —disse Mrs. Weldon —, veja estaimensa extensão avermelhada dooceano; estende-se até onde osolhos podem ver.

— Olá! — exclamou ocapitão Hull. — Isto é o manjarda baleia. Sr. Bénédict, excelenteocasião para estudar esta espécie

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de crustáceos.- — Ora!... — desdenhou

o entomologista.— Não desdenhe —

observou o capitão Hull. — Nãotem razão para afectar talindiferença! Aqueles crustáceosque além vê, se acaso não estouem erro, formam uma das seisclasses dos articulados, e comotais...

— Ora, adeus!... — tornouprimo Bénédict, abanando acabeça.

— Com efeito!... Parece-me muito desdenhoso paraentomologista.

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— Entomologista! Poisseja entomologista! — admitiuprimo Bénédict —, masprincipalmente hexapodista,entende, capitão Hull, tome notadisto...

— Já vejo que aquelescrustáceos não lhe despertaminteresse; mas olhe que o casoseria diferente se o Sr. Bénédicttivesse estômago de baleia. Quegrande banquete ali tinha! Mrs.Weldon, quando nós, osbaleeiros, andamos à pesca, evemos o mar coalhado destescrustáceos, não temos tempo senão para preparar arpéus e linhas,

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porque com certeza a baleia nãoanda longe.

— Mas como é possívelque animaizinhos tão pequenospossam sustentar outros tãograndes? — perguntou Jack comcuriosidade.

— Diga-me, meu menino— volveu o capitão Hull —: nãose fazem excelentes sopas comfarinhas diversas? Fazem. Anatureza tudo previu. Quando umabaleia flutua no meio de águasvermelhas, está a comer a sopa.Não tem mais que fazer senãoabrir a enorme boca parapenetrarem nela, de uma só vez,

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miríades de crustáceos. Asgrandes lâminas que lhe revestemo paladar estendem-se comoredes de pescador. Nada podedali sair, e grande quantidade decrustáceos se abisma no vastoestômago, como a sopa do seujantar, Jack, entra para o seuestômagozinho.

— Olha, Jack — observouDick Sand —, que a senhorabaleia não perde tempo em osdescascar, a um por um, como tufazes aos camarões!

— É na ocasião em que agrande comilona se estáregalando — continuou o capitão

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Hull — que é mais fácil chegarperto dela, sem lhe causardesconfiança. É a ocasiãofavorável para com bom êxito aarpoar.

No mesmo instante, ecomo para dar razão ao capitãoHull, ouviu-se um marinheirogritar de cima do castelo:

— Uma baleia porbombordo da proa!

O capitão Hull endireitou-se e exclamou: — Uma baleia!

Impelido pelo instinto depescador, correu para a proa.

Mrs. Weldon, Jack, DickSand e primo Bénédict seguiram

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o capitão imediatamente.Com efeito, a quatro

milhas por barlavento, umaespécie de cachão que se via nomar indicava a presença de umgrande mamífero marinho, a nadarno meio das águas vermelhas. Osbaleeiros não se haviamenganado.

A distância era, porém,ainda grande para que se pudesseconhecer a espécie a quepertencia o mamífero. Asespécies são realmente muitodistintas.

Pertenceria por acaso àespécie das baleias ordinárias,

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procuradas de preferência pelospescadores do mar do Norte?Aqueles cetáceos, sem barbatanadorsal e cuja pele reveste grossacamada de gordura, atingem àsvezes oitenta pés decomprimento, apesar de, emmédia, não excederem sessenta.Um só de tais monstros dá cembarris de óleo.

Seria um hump-back, daespécie dos baleinópteros —designação esta cuja terminaçãolhe devia ter valido a estima doentomologista? Têm estescetáceos barbatanas dorsaisbrancas, de extensão igual a

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metade do seu comprimento,parecendo asas, o que faz suporque pudessem voar.

Ou estaria à vista um fin-back, mamífero que também seconhece pelo nome de jubarte, oqual tem barbatana dorsal e cujocomprimento iguala às vezes o dabaleia ordinária?

Nem o capitão Hull nem asua gente podiam dizer coisaconcreta a respeito do enormemamífero, mas olhava para ele,com mais vontade de o apanharque de o admirar.

Se os relojoeiros nãopodem entrar em salas onde haja

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relógios, sem que os tente avontade de lhes dar corda, commais razão os baleeiros devemsentir-se arrastados peloimperioso desejo de apanhar umabaleia. Diz-se que os caçadoresde caça grossa porfiam mais doque os que só atiram à caçamiúda. Quanto maior é o animal,maior é o desejo de o caçar. Quede emoções devem sentir oscaçadores de elefantes e ospescadores de baleias! Acresciaa tudo isto que a tripulação do“Pilgrim” se encontrava poucosatisfeita, por voltar da pescacom a carregação incompleta.

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Diligenciava o capitãoHull reconhecer o animal que setinha avistado, o que não erafácil, em razão da distância a queestava; contudo, a vistaexercitada do marinheiro não seenganava vendo alguns sinaisfáceis de distinguir de longe.

Os jatos, isto é, as colunasde vapor de água que a baleialança, deviam decerto chamar aatenção do capitão Hull e dar-lhea completa certeza da espécie aque pertencia o cetáceo.

— Não é uma baleiaordinária! — afirmou ele —, se ofosse, lançaria jatos mais altos,

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mas de menor volume. Se o ruídoque o jato fizer na ocasião de serexpelido imitar a detonação deuma peça de artilharia a grandedistância, então inclino-me aacreditar que aquele cetáceopertence à espécie do hump-back;mas não me parece, e, escutandobem, percebe-se que o ruído é denatureza diferente. Qual é a tuaopinião, Dick? — perguntou ocapitão Hull ao jovem prático.

— Tenho quase a certeza,capitão — respondeu Dick Sand—, de que é uma jubarte. Vejacomo atira para o ar aquelacoluna líquida! Não lhe parece

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que naquele repuxo há mais águaque vapor condensado? E, seassim é, tenho razão, porque, senão me engano, é sinalcaracterístico da jubarte.

— É verdade, Dick —confirmou o capitão Hull. — Nãohá dúvida, é uma jubarte quevemos a flutuar sobre aquelaságuas vermelhas.

— É admirável! —exclamou Jack.

— É verdade, meumenino! Mas se a enorme baleia,que está ali a almoçarsossegadamente, soubesse queestão baleeiros tão perto...

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— Quase que me atrevo aafirmar que é colossal —observou Dick Sand.

— É, com toda a certeza— concordou o capitão Hull, emquem o entusiasmo ia crescendopouco a pouco. — Dou-lhe pelomenos setenta pés decomprimento.

— Bastava — acrescentouo contramestre — meia dúzia debaleias como aquela para encherum navio como o nosso.

— Decerto — aprovou ocapitão, saindo ao gurupés paramelhor ver o cetáceo.

— E com aquela, se a

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apanhássemos — continuou ocontramestre —, meteríamos abordo metade do carregamentoque nos falta.

— Sim, sim — murmurouo capitão Hull.

— Tudo isso é verdade —disse Dick Sand —, mas... éperigoso algumas vezes atacar asgrandes jubartes!

— Perigosíssimo —confirmou o capitão Hull. — Énecessário ter muito cuidado naaproximação daquelesbaleinópteros, porque, com asformidáveis caudas que têm,podem facilmente escangalhar a

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mais bem construída canoa. Mas,também, o muito que se aproveitacompensa o trabalho.

— Quem apanha umajubarte — declarou ummarinheiro — faz boa presa.

— E que dá dinheiro —reforçou outro.

— Seria pena se não lhedisséssemos a razão por queestamos aqui, e não lhefizéssemos os nossoscumprimentos...

Evidentemente, osmarinheiros animavam-se com avista da baleia. Se era umacarregação de barris de óleo que

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andava a flutuar perto deles!Quem os ouvisse julgaria

que nada mais havia a fazer senãoarrumar os barris no porão do“Pilgrim”.

Alguns marinheirostrepados à enxárcia do traquetesoltavam gritos de contentamento.O capitão não dizia nada; roía asunhas. Havia uma espécie de ímãirresistível que atraía o “Pilgrim”e toda a sua tripulação.

— Mamãe — disse Jack—, gostava de ter aquela baleiapara ver como é.

— Ah! Quer ter aquelabaleia? E porque não? — disse o

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capitão Hull, cedendo enfim aosseus íntimos desejos. — Faltam-nos, é verdade, os pescadoresauxiliares; mas nós tambémsomos homens e prestamos paraalguma coisa...

— Certamente! —gritaram os marinheiros a umtempo.

— Não será a primeiravez que vou arpoar, e vocês vãover se eu sei ainda lançar oarpéu!

— Hurra! Hurra! Hurra!— foi a resposta da marinhagem.

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CAPÍTULO VII

PREPARATIVOS

É fácil de acreditar que avista do prodigioso mamíferoproduzisse grande excitação natripulação do “Pilgrim”. A baleiaque flutuava naquelas águasvermelhas parecia enorme.Capturá-la e com ela completar ocarregamento era realmente paratentar. Podiam pescadores deixar

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escapar tão boa ocasião?Mrs. Weldon entendeu,

porém, que devia perguntar aocapitão Hull se não havia perigopara a sua gente e para ele em iratacar uma baleia naquelascondições.

— Não há perigo, Mrs.Weldon — asseverou o capitãoHull. — Tem-me acontecido maisduma vez perseguir baleias sócom uma embarcação, e conseguisempre pescá-las. Repito, não háperigo para nós, nem o haverá porconsequência para Mrs. Weldon.

Mrs. Weldon,tranquilizada, não insistiu mais.

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Depois o capitão Hullcomeçou os preparativos parapescar a jubarte. Sabia porexperiência própria que a pescadeste baleinóptero oferecedificuldades e queria porconsequência preveni-las. Apesca tornava-se menos fácil,porque, conquanto o “Pilgrim”tivesse a lancha nos picadeiros,entre o mastro grande e o mastrodo traquete, e mais três baleeiras,duas das quais andavamsuspensas nos turcos, a bombordoe a estibordo, e a terceira napopa, a guarnição do patacho nãochegava para guarnecer mais do

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que uma delas.Habitualmente

empregavam-se as três baleeirasna perseguição dos cetáceos, mas,como ficou dito, para reforçar atripulação do “Pilgrim”contratava-se gente na NovaZelândia.

Nas circunstânciaspresentes, o “Pilgrim” tinhaunicamente os cinco marinheiros,isto é, o estritamenteindispensável para guarnecer umabaleeira. Não se podia aproveitaro serviço de Tom e dos seuscamaradas, que de boa vontade setinham oferecido, porque a

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manobra de uma canoa de pescaexige gente especialmenteadestrada. O mau governo ou osmaus remadores podiamcomprometer a segurança daembarcação durante o ataque.

Por outro lado, o capitãoHull não queria abandonar onavio sem deixar a bordo umhomem da tripulação, pelo menos,que lhe merecesse confiança. Erapreciso prever todas aseventualidades.

Obrigado, pois, o capitãoa guarnecer a baleeira com a suagente, entregou o “Pilgrim” aDick Sand.

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— Dick — disse-lhe ocapitão — ficas encarregado donavio durante a minha ausência,que espero seja curta.

— Sim, senhor — volveuo prático.

Dick Sand teria preferidotomar parte na pesca, que para eletinha grandes atrativos, mascompreendeu imediatamente queos braços de um homem valiammais que os seus na manobra dapequena embarcação, e que só elepodia substituir o capitão Hull abordo do “Pilgrim”.

Ficou, pois, satisfeito.A guarnição da baleeira

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compunha-se de cinco homens,entrando neste número ocontramestre Howick: quase todaa tripulação do “Pilgrim”. Osquatro marinheiros eram para osremos, Howick governaria com oremo armado na popa, como é deuso em embarcações destegênero, porque os lemes vulgaresnão têm ação tão pronta, e quandose inutilizam os remos dos lados,o da popa, bem manejado, põe aembarcação fora da ação daspancadas da cauda do monstro.

Restava o capitão Hull.Para este estava reservado olugar de arpoador que, como ele

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dizia, não era a primeira vez queexercia. A ele competia lançar oarpéu, vigiar quando sedesenrolava a comprida linha queo fixa, e finalmente acabar dematar o animal às lançadas, logoque este voltasse extenuado àsuperfície das águas.

Os baleeiros empregamalgumas vezes armas de fogo paraeste gênero de pesca. Por meio deum engenho especial, uma espéciede canhão de pequenasdimensões, montado a bordo donavio ou na proa da embarcação,lançam eles ou o arpéu, que levafixado o cabo, ou balas

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explosivas, as quais produzemgrandes estragos no corpo doanimal.

O “Pilgrim” não tinhadestes aparelhos. São máquinasdispendiosas, difíceis de manejar,e os pescadores, pouco amigos deinovações, preferem empregar asarmas primitivas, isto é, o arpéu ea lança, dos quais se servem comgrande habilidade.

Era, pois, pelos meioscorrentes, atacando a baleia àarma branca, que o capitão Hullia tentar a pesca da jubarte,avistada a cinco milhas dedistância do seu navio.

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O tempo devia favorecer aexpedição. O mar, sereno comoestava, propiciava as manobrasda baleeira; o vento tendia aacalmar, e, como era natural, o“Pilgrim” não se afastariaabatendo.

Arriou-se a baleeira deestibordo e saltaram para ela osquatro marinheiros.

Howick meteu-lhe dentrodois grandes arpéus e duas lançascom as pontas aguçadas. A estasarmas juntou cinco peças de cabomacio, mas resistente, a que osbaleeiros chamam linha, e cujocomprimento é de seiscentos pés.

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Não é muito, porque não rarasvezes sucede que estes cabos,ligados uns aos outros peloschicotes, não dão ainda filamebastante à baleia quando elaprofunda.

Tais foram os poderososengenhos que se dispuseram naproa da embarcação.

Howick e os quatromarinheiros estavam prontos;aguardavam só a ordem paralargar.

Havia ainda na baleeiraum lugar desocupado: era o docapitão Hull.

É evidente que a

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tripulação do “Pilgrim”, antes desair de bordo, atravessou o navio.Por outras palavras, dispôs opano de modo que as velas,contrariando a ação umas dasoutras, mantinham o patachoquase estacionário. No momentode embarcar, o capitão Hulllançou mais uma vez a vista sobreo navio, para se certificar de quetudo estava em boa ordem, oscabos com volta e o pano bemmareado. Como deixava o jovemprático a bordo durante a suaausência, que poderia duraralgumas horas, queria, e comrazão, que Dick Sand não tivesse

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de manobrar, a não ser para casomuito urgente.

Na ocasião de largar fez-lhe as suas últimasrecomendações.

— Dick — disse o capitão— :, deixo-te só. Olha por tudo.Se por acaso for necessáriomarear o navio, porque nostenhamos afastado muitoperseguindo a jubarte, Tom e osseus companheiros podem servir.Recomendando-lhes bem o quedevem fazer, estou certo de quetudo farão.

— Certamente, capitãoHull — afirmou o velho Tom —,

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o Sr. Dick pode contar conosco.— É preciso alar algum

cabo? — perguntou Hercule,arregaçando as mangas.

— Por enquanto nãopreciso de nada — respondeu,sorrindo, Dick Sand.

— Pois nós estamos àssuas ordens — continuou ocolosso.

— Dick — tornou ocapitão Hull —, o tempo estábelo, o vento caiu completamentee não há sinais de refrescar; mas,toma conta: aconteça o queacontecer, não arries embarcaçãoalguma ao mar e não abandones o

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navio.— Isso está sabido.— Se for necessário que o

“Pilgrim” vá ter conosco, faço-teimediatamente sinal, içando abandeira americana na vara de umcroque.

— Vá descansado,capitão, que eu não perco de vistaa baleeira — assegurou DickSand.

— Muito bem —continuou o capitão Hull. —Ânimo e prudência! Estás feitopiloto, é preciso que honres oposto que tens agora. Olha quecom a tua idade ainda ninguém o

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teve.Dick Sand não respondeu,

mas sorriu-se e o rubor subiu-lheàs faces. O capitão Hullcompreendeu o rubor e o sorriso.

— Belo rapaz! — dizia ocapitão. — Todo ele é modéstia ealegria!

Por aquelas instantesrecomendações se via claramenteque, conquanto não houvesserisco em sair do navio, o capitãonão o deixava sem cuidado,apesar de ser por pouco tempo.Mas o irresistível instinto dopescador, e sobretudo o loucodesejo de completar o

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carregamento de óleo, nãodeixando de satisfazer aosfornecimentos a que se tinhaobrigado James W. Weldon, emValparaíso, tentavam-no aaventurar-se. O mar, sereno comoestava, prestava-seadmiravelmente para a pesca docetáceo que tinham à vista. Nem atripulação nem ele podiamresistir a tal tentação. A viagemtornar-se-ia boa, e estaconsideração valia por todas noespírito do capitão Hull.

O capitão dirigiu-se para oportaló.

— Estimarei que seja

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feliz! — desejou Mrs. Weldon.— Obrigado, Mrs.

Weldon!— Não faça muito mal à

baleia — recomendou Jack. —Não, meu menino, não faço —respondeu o capitão Hull.

— Prenda-a sem lhe fazerdoer!

— Sim, fiquedescansadinho; hei de pegar-lhesó... com dois dedos...

— Às vezes — observouprimo Bénédict — encontram-seinsetos muito raros no dorsodesses mamíferos.

— Pois, Sr. Bénédict —

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volveu rindo o capitão Hull —,dou-lhe licença paraentomologizar a jubarte, quandoela estiver atracada ao “Pilgrim”.

Depois, voltando-se paraTom, disse-lhe: — Tom, contoconsigo e com os seuscompanheiros para nos ajudarema cortar a baleia, quando ativermos amarrada ao navio, oque não tardará muito.

— Estamos à suadisposição--declarou o velhonegro.

— Muito bem —continuou o capitão Hull. —Dick, estes homens ajudar-te-ão a

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preparar os barris vazios.Enquanto estamos fora, iça-ospara a coberta. É trabalho quefica adiantado.

— Tudo se fará, capitão!Para quem ignora, convirá

dizer que a jubarte, depois demorta, devia ser rebocada para o“Pilgrim”, e bem amarrada nocostado de estibordo. Depois osmarinheiros, calçados comgrandes botas de rompões,instalados sobre o dorso doenorme cetáceo, cortá-lo-iammetodicamente em tiras paralelas,na direção da cabeça para acauda. Estas tiras seriam depois

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cortadas em pequenas talhadas depé e meio de comprimento,depois ainda divididas emquantidades menores, e estasmetidas em barris, que seriam porúltimo arrumados no porão.

Habitualmente o naviobaleeiro, quando finda a pesca,navega de maneira que dê fundo omais depressa possível, a fim determinar todos os trabalhos. Atripulação vai para terra e é láque faz derreter a gordura, quepela ação do calor deixa livretoda a parte útil, isto é, o óleo(1).

*1. Nesta operação, agordura da baleia perde pouco

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mais ou menos um terço do peso.

Mas nas circunstâncias emque estava o “Pilgrim”, o capitãoHull não pensava em voltar paratrás com o fim de concluir estaoperação. Só em Valparaísocontava ele derreter a gorduraque obtivesse desta última pesca,e, como o vento não tardaria apuxar para oeste, esperava porisso avistar a costa da Américadentro de vinte dias, tempo esteque não comprometeria os bonsresultados da pesca.

Chegou o momento delargar. O “Pilgrim”, antes de

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atravessar, aproximou-se do lugaronde a jubarte se mostrava pelosjatos de vapor.

A jubarte nadava sempreno meio da vasta extensão daágua avermelhada peloscrustáceos, abrindoautomaticamente a enorme boca eabsorvendo por cada tragomiríades de animálculos.

Diziam os práticos debordo que não havia receio deque ela lhes escapasse. Era sem amenor dúvida o que ospescadores chamam baleia decombate.

O capitão Hull saltou por

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cima da borda e desceu pelaescada de cabo para a proa dabaleeira.

Mrs. Weldon, Jack, primoBénédict, Tom e os seuscompanheiros despediram-senovamente do capitão, desejando-lhe boa sorte.

Dingo, levantando-sesobre as patas e pondo a cabeçapor cima do talabardão, pareciatambém despedir-se damarinhagem.

Depois todos se dirigirampara vante, a fim de não perderemuma só das interessantesperipécias daquela pesca tão

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cheia de atrativos.Largou a baleeira, e pelo

esforço dos quatro remos,vigorosamente puxados, afastou-se do “Pilgrim”.

— Toma conta, Dick, vigiabem! — gritou pela última vez ocapitão Hull ao prático.

— Vá descansado,capitão.

— Olho no navio, olho nabaleeira, meu rapaz! Não teesqueças.

— Sim, senhor capitão —respondeu Dick Sand; e foi para oleme.

Já a frágil canoa distava

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muitas centenas de pés do navio eainda o capitão Hull, erguido naproa, porque já não se podia fazerouvir, renovava as suasrecomendações por gestos osmais expressivos.

Foi então que Dingo, aindacom a cabeça sobre o talabardão,soltou um uivo lamentoso, queteria impressionado até mesmo aspessoas menos supersticiosas.

Este uivo fez estremecerMrs. Weldon.

— Dingo — disse ela —,Dingo! Então é assim que tuanimas os teus amigos? Vamos,ladra de outro modo e nada de

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tristezas!Mas o cão não ladrou;

deixou-se cair para dentro e foivagarosamente deitar-se junto deMrs. Weldon, cujas mãos lambeu.

— Não mexe o rabo!... —murmurou Tom. — Mau sinal!Mau sinal!...

Mas quase repentinamenteDingo levantou-se e soltou umrugido de cólera.

Mrs. Weldon voltou-se.Negoro saíra da cozinha e

dirigia-se para a proa, com aintenção, sem dúvida, de ver asmanobras da baleeira.

Dingo, cheio de grande

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mas inexplicável furor, arremeteupara o cozinheiro.

Negoro deitou a mão a umespeque e pôs-se em guarda.

O cão ia saltar-lhe.— Aqui, Dingo, aqui já!

— gritou Dick Sand, deixando oseu lugar e correndo para a proado navio.

Mrs. Weldon, por suaparte, diligenciou tambémacalmar o cão.

Dingo obedeceu, ainda quecom relutância, e voltou,rosnando sempre, para junto doprático.

Negoro não dissera uma

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única palavra, mas empalidecera,e, deixando cair o espeque,voltou para a cozinha.

— Hercule — ordenouentão Dick Sand —, vigia bemaquele homem!

— Vigiá-lo-ei —respondeu simplesmente Hercule,fechando as mãos enormes.

Mrs. Weldon e Dick Sandvoltaram de novo a sua atençãopara a baleeira, que voavapuxada pelos seus quatro remos.

Era já apenas um pontonegro no meio do mar.

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CAPÍTULO VIII

A JUBARTE

O capitão Hull, comobaleeiro consumado que era, nadadevia deixar ao acaso. A pesca deuma jubarte é difícil. Não sedeve, pois, desprezar nenhumaprecaução, e nenhuma sedesprezou.

O capitão Hull principioupor navegar de modo queatacasse a baleia por sotavento, afim de que a aproximação da

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embarcação se não denunciassepelo mais pequeno ruído.

Howick dirigia a baleeira,seguindo a curva que desenhavana água a mancha vermelha, e nomeio da qual flutuava a jubarte.

O contramestre eramarinheiro de grande serenidadede ânimo, que inspirava muitaconfiança ao capitão Hull. Nãohavia a recear que ele hesitasseou se distraísse.

— Atenção ao governo,Howick — ordenou o capitãoHull. — Vamos diligenciarsurpreender a jubarte e não nosdescubramos senão já ao alcance

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do arpéu.— Está claro —

respondeu o contramestre. — Vouseguir a orla da água vermelha equanto possível conservar-me porsotavento.

— Muito bem — tornou ocapitão Hull. — Rapazes, poucabulha com os remos.

Estes, previamenteforrados, quase que se nãosentiam.

A embarcação, habilmentegovernada pelo contramestre,chegara à grande manchaproduzida pelos crustáceos. Osremos de estibordo vogavam na

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água verde e límpida, ao passoque os do bombordo, quando selevantavam do líquido vermelho,pareciam escorrer sangue.

— Olha lá! Vinho e água!— disse um dos marinheiros.

— É verdade —concordou o capitão Hull —, maságua que se não bebe e vinho quese não pode tragar. Vamos,rapazes! Nada de conversas epiquem a voga!

A baleeira, dirigida pelocontramestre, deslizava sobreaquelas águas gordurosas comose estivesse flutuando em óleo.

A jubarte não fazia o

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menor movimento; parecia atéque não vira ainda a embarcação,a qual descrevia um círculo emvolta dela.

O capitão Hull, fazendo ocircuito, afastava-se do“Pilgrim”, que pela distânciaparecia diminuir pouco a poucode grandeza.

É de efeito extraordinárioa rapidez com que os objetosdiminuem no mar. Parece que seolha para eles pela objetiva deum óculo. Provém a ilusão ópticaevidentemente de não haverpontos de referência naquelevastíssimo espaço. Assim

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aconteceu ao “Pilgrim”, que, pordiminuir a olhos vistos, pareciamais distante do que realmenteestava.

Uma hora depois de tersaído de bordo, o capitão Hullachava-se precisamente porsotavento da baleia, de tal modoque esta ocupava um pontoequidistante entre o navio e apequena embarcação.

Chegara o momento de seaproximarem. Convinha fazer omenor ruído possível. Não seriadifícil atacar o animal pelo lado earpoá-lo estando a curtadistância, antes mesmo de lhe

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despertar a atenção.— Remem mais devagar,

rapazes — recomendou o capitãoHull, baixando a voz.

— Parece-me — observouHowick — que a menina ouviualguma coisa! Sopra agoramenos!...

— Silêncio! Silêncio! —repetiu o capitão Hull. Cincominutos depois a baleeira estavaa menos de meia amarra(1) dajubarte.

*1. A amarra é medidaespecial da marinha; tem cento evinte braças,

ou duzentos metros.

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O contramestre, de pésobre o paneiro, governava pormodo que se aproximava domamífero, evitando, porém, como maior cuidado, passar aoalcance da formidável cauda, daqual bastaria uma só pancadapara destruir a embarcação.

À proa, o capitão Hull,com as pernas abertas paramelhor se equilibrar, tinha na mãoo instrumento com que ia vibrar oprimeiro golpe. Era de esperar dasua habilidade que o arpéupenetrasse na massa volumosaque emergia das águas.

Perto do capitão, numa

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selha, estava colhida a primeiradas cinco linhas, bem amarradaao arpéu; nesta linha ir-se-iamemendando sucessivamente asoutras quatro, se o cetáceoprofundasse muito.

— Pronto, rapazes? —perguntou em voz baixa o capitãoHull.

— Prontos — respondeuHowick, agarrando o removigorosamente.

— Aproxima-te!Aproxima-te!

O contramestre obedeceu,e a baleeira foi passar a menos dedez pés de distância do cetáceo.

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Este não se movia; pareciadormir. As baleias que sãosurpreendidas durante o sonooferecem mais fácil presa, e não éraro que o primeiro golpe as firamortalmente.

— Tanta imobilidade épara admirar! — pensou ocapitão Hull. — É impossível queesteja a dormir... Isto faz-medesconfiar de alguma coisa.

O contramestre, quepensava do mesmo modo,procurava ver o lado oposto doanimal.

Não era, porém, ocasiãopara refletir, se não para atacar.

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O capitão Hull, agarrandoo arpéu pelo meio da haste,balanceou com ele repetidasvezes, a fim de ter mais certezade acertar, apontando para ajubarte; depois arremessou-o comtoda a força do seu braço.

— Cia! Cia! — gritou ele;e os marinheiros, ciando com osremos ao mesmo tempo, fizeramrecuar a baleeira, a fim de aporem fora do alcance do rabo docetáceo.

Mas nesta ocasião, por umgrito do contramestre, todoscompreenderam a razão por que abaleia se conservara por tanto

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tempo e tão extraordinariamenteimóvel à superfície do mar.

Com efeito, a jubarte,depois de ferida pelo arpéu,quase se virara sobre o lado,descobrindo o baleote que elaamamentava.

Esta circunstância — nãoo ignorava o capitão Hull —devia fazer mais difícil a capturada jubarte. A mãe ia defender-semais furiosamente, tanto por ela,como para proteger o filhinho, setal diminutivo é aplicável a umanimal que não tinha menos devinte pés de comprimento.

Contudo, como era para

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recear, a jubarte não searremessou imediatamente sobrea embarcação; não houve, pois,ocasião de cortar a linha queprendia o arpéu. Pelo contrário,como acontece a maior parte dasvezes, a baleia, seguida pelobaleote, mergulhou, seguindo logouma linha oblíqua; depois elevou-se por um salto enorme econtinuou nadando entre águascom extrema rapidez.

Antes, porém, delamergulhar, o capitão Hull e ocontramestre tiveram tempo de aver e, consequentemente, de lhedar o devido valor.

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Aquela jubarte erarealmente dos maioresbaleinópteros conhecidos. Dacabeça até à cauda media vinte equatro pés, pelo menos. A pele,de cor cinzenta-amarelada, tinhamanchas de pardo-escuro.

Custava na verdade,depois de um ataque tãofelizmente principiado, ter deabandonar tão boa presa.

Começara a perseguiçãoou, melhor dizendo, o reboque. Abaleeira, cujos remos tinham sidodesarmados, voava sobre asondas como uma seta.

Howick conservava-se

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imperturbável, apesar das rápidase terríveis oscilações daembarcação. O capitão Hull, comos olhos pregados na sua presa,não cessava de repetir: —Governa bem, Howick! Governabem!

Podia haver a certeza deque o contramestre não deixariaum momento de governar bem.

Como, porém, a baleeiranão corria tanto como a baleia, alinha do arpéu desenrolava-secom tal velocidade que era pararecear que, pelo atrito, pegassefogo a bordo da baleeira; por issoo capitão Hull teve o cuidado de

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molhar a linha, enchendo de águaa selha em que estava colhida.

A jubarte parecia nãoquerer parar na sua corrida, nemsequer moderá-la.

Emendou-se segunda linhano chicote da primeira, a qual foilevada com a mesma velocidade.

Cinco minutos depois foipreciso emendar a terceira linha,que também desapareceu naságuas.

A jubarte não parava.Evidentemente o arpéu nãopenetrara em qualquer parte vitaldo corpo do cetáceo. Podia-seobservar, pela inclinação mais

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pronunciada da linha, que oanimal, em vez de vir àsuperfície, mais se abismava nasprofundezas do mar.

— Diabo! — exclamou ocapitão Hull. — Estaendemoninhada come-nos ascinco linhas.

— E leva-nos para boadistância do “Pilgrim” —observou o contramestre.

— Mas ela há de virrespirar! — tornou o capitãoHull.

— Não é peixe, e precisade ar como qualquer um de nós.

— Talvez que suprimisse a

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respiração para correr melhor —disse rindo um dos marinheiros.

A linha continuava ainda adesenrolar-se com a mesmarapidez.

À terceira linha foinecessário juntar a quarta, o quefez desconfiar os marinheiros dafutura parte da presa.

— Diabo! Diabo! —murmurou o capitão Hull. —Nunca vi isto! Leva o demônio nocorpo.

Enfim, corria já na quintalinha e estaria por metade quandopareceu abrandar.

— Bem, bem! —

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exclamou o capitão Hull. — Alinha já não está tão rija. Ajubarte já se cansou.

Nesta ocasião o “Pilgrim”estava a mais de cinco milhas dedistância da baleeira.

O capitão Hull içou umabandeira na vara de um croque.Era o sinal convencionado parase aproximar.

E quase ao mesmo tempoDick Sand, ajudado por Tom epelos seus companheiros,bracearam as vergas, de bolinacerrada.

Mas o vento estavafraquíssimo e incerto. Eram

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aragens apenas. O “Pilgrim”teria, com certeza, grandedificuldade de alcançar abaleeira, se acaso pudessealcançá-la.

Neste meio tempo, comoera de prever, a jubarte veiorespirar à superfície da água como arpéu fixado no costado. Estavaquase imóvel, parecendo queesperava pelo baleote, que nestacarreira furiosa se distanciara.

O capitão Hull mandouremar com força, a fim de seaproximar dela, e em poucotempo estava a curta distância.

Desarmaram-se dois

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remos, e os homens que osmanejavam pegaram emcompridas lanças, assim como ocapitão Hull, para ferirem oanimal.

Howick manobrou entãohabilmente, pronto sempre a fazerguinar a embarcação no caso de abaleia vir a acometê-la.

— Atenção! — gritou ocapitão Hull. — Não dêem golpesno ar. Golpes certeiros, rapazes.Vamos a ela, Howick?

— Estou pronto! —respondeu o contramestre. —Mas há uma coisa que meinquieta! É que este animal,

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depois de ter fugido do modo quevimos, tão rapidamente, estáagora tranquilo, como se nadafosse com ele.

— É verdade, Howick.Tens razão: é para estranhar!

— Será bomdesconfiarmos!

— Sim, é, mas vamos paraavante.

O capitão Hull animava-secada vez mais.

A embarcaçãoaproximava-se sempre. A jubartenão fazia senão girar no mesmolugar. O baleote não estava ali.Talvez que ela o procurasse.

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Repentinamente fez ummovimento com a cauda eafastou-se cerca de trinta pés.

Iria fugir novamente, eseria preciso continuar aquelainterminável perseguição sobre aságuas?

— Atenção! — exclamouo capitão Hull. — Vai ganhardistância para arremeter contranós! Governa bem, Howick!Governa bem!

A jubarte tinha-se virado eapresentava-se de frente àbaleeira. Depois, impelindo-sepor meio das enormes barbatanas,precipitou-se para diante.

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O contramestre, que jáesperava este ataque direto, de talmodo fez girar a embarcação quea jubarte passou sem lhe tocar.

O capitão Hull e os doismarinheiros brandiram-lhevigorosas lançadas, procurandoferir-lhe algum órgão essencial.

A jubarte parou e lançou agrande altura duas colunas deágua e sangue, e novamente sevoltou para a embarcação, quaseaos saltos, diga-se assim. Só vê-la fazia medo.

Aqueles marinheiros erampescadores denodados. Por issonão perderam o ânimo em tal

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ocasião.Howick evitou ainda desta

vez, com grande destreza, oataque da jubarte, guinando com aembarcação.

Três novas lançadas foramtrês novas feridas feitas nocetáceo. Mas este, ao passar,bateu por tal modo a água com aenorme cauda, e levantou tãogrande vaga, que o mar ficoucomo se tivesse embravecido derepente.

A baleeira esteve a pontode ir a pique; a água que entroupor cima da borda chegava quaseàs bancadas.

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— Os baldes, peguem nosbaldes! — ordenou o capitãoHull.

Os outros dois marinheirosdeixaram os remos e começarama esgotar rapidamente a baleeira,enquanto o capitão cortava alinha, que já era inútil.

Engano! O animal, furiosocom a dor, não cuidava em fugir.Chegava-lhe a ocasião de atacar ea sua agonia começava a serterrível.

Uma terceira vez o cetáceovirou em roda, como dizem osmarinheiros, e novamente seprecipitou sobre a embarcação.

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Mas a baleeira, meia deágua, não manobrava com amesma facilidade. Em taiscondições, como se evitaria ochoque que a ameaçava?

Não podia dar pelo leme enão podia fugir.

Demais, por muitodepressa que a embarcaçãocaminhasse, a rápida jubartealcançá-la-ia facilmente.

Não era ocasião deatacarem, mas a de sedefenderem.

O capitão Hull não seiludiu.

O terceiro ataque do

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animal não pôde, pois, serevitado. Ao passar, roçou apenasna baleeira com a enormebarbatana dorsal, mas com talforça que Howick caiu.

As três lanças,infelizmente desviadas pelaoscilação, resvalaram e não aferiram.

— Howick, Howick! —exclamou o capitão, que comgrande dificuldade se mantiverade pé.

— Cá estou — respondeuo contramestre, levantando-se.

Percebeu, porém, que,quando caiu, o remo da popa se

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quebrara pelo meio.— Arma o outro remo! —

disse o capitão Hull.— Não há — respondeu

Howick.Nesta ocasião viu-se, a

curta distância, a água agitar-se.Era o baleote que

reaparecera. A jubarte viu-o ecorreu para ele.

Esta circunstância ia dar àluta caráter ainda mais terrível. Ajubarte ia bater-se por ambos.

O capitão Hull olhou parao lado onde estava o “Pilgrim” eagitou freneticamente a vara decroque, que tinha a bandeira.

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Que podia fazer Dick Sandque não tivesse já feito aoprimeiro sinal do capitão? Asvelas do “Pilgrim” estavammareadas e o vento começava aenfuná-las. Infelizmente, opatacho não tinha hélice queauxiliasse a ação do pano, nãopodendo por consequência andarcom mais velocidade. Arriar umaembarcação ao mar e, ajudadopelos negros, correr em socorrodo capitão, seria perder muitotempo; demais, o prático receberaordem para não sair de bordo,acontecesse o que acontecesse;contudo, arriou o escaler da popa

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e levou-o a reboque, a fim de que,se fosse necessário, o capitão eos seus companheiros sesalvassem nele.

Entretanto a jubarte,cobrindo o baleote com o seucorpo, voltou à carga. Desta vezatacou diretamente a embarcação.

— Atenção, Howick!... —ordenou mais uma vez o capitãoHull.

Mas o contramestre estavapor assim dizer desarmado; emvez de uma alavanca, cujocomprimento daria força, nãotinha mais do que um remorelativamente curto.

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Tentou virar de bordo.Impossível.Os marinheiros

compreenderam que estavamcompletamente perdidos.

Levantaram-se todos, etodos deram um grito terrível quefoi ecoar, talvez, a bordo do“Pilgrim”!

O monstro bateu com acauda no fundo da baleeira.

A embarcação, projetadapara o ar com irresistívelviolência, caiu, feita em pedaços,no meio das águas furiosamenteagitadas pelos saltos que dava abaleia.

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Os infelizes marinheiros,ainda que gravemente feridos,talvez tivessem forças para nadarou para se sustentarem,agarrando-se a algum dosdestroços de baleeira.

O capitão Hull aindaatirou um remo ao contramestre.

Mas a jubarte, no últimograu de furor, voltou, talvez já nasvascas de terrível agonia,sacudindo com violência as águasagitadas em que nadavam osdesgraçados tripulantes dabaleeira.

Durante alguns minutosnão se via senão uma tromba

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líquida, espadanando água paratodos os lados.

Um quarto de hora maistarde, quando Dick Sand, que,seguido dos negros, se precipitarapara o escaler, chegou ao local dacatástrofe, tinham já desaparecidotodos os pescadores.

Viam-se apenas os restosda baleeira, flutuando à superfíciedas águas tintas de sangue.

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CAPÍTULO IX

O CAPITÃO SAND

A primeira impressão quesentiram os passageiros do“Pilgrim” ao ver aquela pavorosacatástrofe foi um sentimento emque havia ao mesmo tempo pesare horror. Não podiam esquecer amorte do capitão Hull e dos cincomarinheiros. Aquela cenamedonha passara-se quasedebaixo dos olhos dos queestavam a bordo do “Pilgrim”,

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sem que nada tivessem podidofazer para salvar o capitão e osoutros tripulantes. Não puderamchegar a tempo para os recolher abordo, feridos, é certo, mas vivosainda, nem para opor o costadodo “Pilgrim” aos formidáveisarremessos da jubarte. O capitãoHull e os homens que oacompanhavam tinhamdesaparecido para sempre nasprofundezas do mar.

Quando o patacho chegouao lugar do sinistro, Mrs. Weldonajoelhou e, pondo as mãos, disse:— Rezemos.

Jack, chorando, ajoelhou

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junto de sua mãe. A criança tinhapercebido tudo quanto se haviapassado. Dick Sand, Nan, Tom eos companheiros inclinaram acabeça. Todos repetiram a oraçãoque Mrs. Weldon elevava a Deus,encomendando à sua bondadeinfinita aqueles que havia poucosmomentos tinham sido chamadosperante Ele.

Depois, Mrs. Weldon,voltando-se para os seuscompanheiros, recomendou: —Agora imploremos do céu força eânimo para nós! E, na verdade,era tão grave a situação em que seencontravam que não pediam de

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mais, por muito que pedissem,Àquele que tudo pode.

O navio em que estavamnão tinha já nem capitão que odirigisse nem marinheiros que omanobrassem. Estava no meio doimenso oceano Pacífico, acentenas de milhas das terrasmais próximas e à mercê dosventos e das ondas.

Que fatalidade foi a quetrouxe a baleia à vista do“Pilgrim”! Que maior fatalidadeainda levou o infeliz capitão Hull,habitualmente tão prudente, asacrificar tudo para completar ocarregamento do seu navio! E que

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catástrofe, entre as mais raras,nos anais da grande pesca, eraesta, da qual não escapou umúnico homem! Terrível fatalidade!

Não havia mais do que ummarinheiro a bordo do “Pilgrim”!

Um único! Dick Sand,prático ainda, um jovem dequinze anos apenas!

Capitão, contramestre,marinheiros, toda a tripulação,enfim, se resumia agora nele.

A situação tornava-sedifícil, por haver a bordo umapassageira com o seu filho. Haviatambém alguns pretos, boa gente,valentes e zelosos, prontos para

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fazer tudo quanto lhes fosseordenado, mas ignorando os maissimples rudimentos da arte demarinheiro.

Dick Sand ficara imóvel,com os braços cruzados, olhandopara o lugar onde tinhadesaparecido o capitão Hull, oseu protetor, e por quem ele tinhaafeição filial. Percorria com avista o horizonte, esperandodescobrir algum navio, ao qualpedisse socorro, ou, pelo menos,entregasse Mrs. Weldon.

Não abandonaria o“Pilgrim” sem tudo tentar para oconduzir a porto de salvamento,

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onde Mrs. Weldon e seu filhoficariam livres de maiores riscos.Depois, nada mais teria a recearpor aqueles a quem se votara decorpo e alma.

O oceano estava deserto.Desde a desaparição da jubartenada mais viera perturbar asuperfície das águas. Em volta do“Pilgrim”, só céu e mar. Sabia oprático que se achava fora dasderrotas dos navios mercantes, eque os baleeiros navegavamainda longe dali, nas paragens dapesca.

Contudo, era precisoencarar a situação de frente, e ver

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as coisas tais elas seapresentavam. Foi o que fez Dick,rogando a Deus, do fundo do seucoração, proteção e auxílio!

Que resolução deveriatomar?

Quando assim pensavaapareceu Negoro na coberta, queele deixara logo depois dodesastre. O que teria sentido —ele que era um enigma — à vistade tão irreparável desgraça,ninguém o poderia dizer. Tinhavisto o fatal acontecimento, semfazer um gesto sequer, sem sair dasua habitual mudez. Haviaseguido avidamente, com o olhar,

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todos os pormenores. Mas, se emtal momento alguém o tivesseobservado, admirar-se-ia de verque naquele rosto impassível nemum só músculo se contraiu.Fingindo que não tinha ouvido,não correspondeu à piedosasúplica de Mrs. Weldon pelatripulação submergida.

Negoro caminhou para aré, dirigindo-se para Dick Sand,que se conservava imóvel. Paroua três passos do prático.

— Quer falar comigo? —perguntou Dick Sand.

— Desejo falar ao capitãoHull — respondeu Negoro

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friamente — ou, na sua falta, aocontramestre Howick.

— Bem sabe que ambosmorreram! — disse o prático.

— Quem é então que noscomanda? — perguntou Negorocom modo insolente.

— Eu! — respondeu DickSand sem hesitar.

— O senhor! — redarguiuNegoro, encolhendo os ombros.— Um capitão de quinze anos!...

— É verdade, um capitãode quinze anos! — repetiu oprático, avançando para ocozinheiro.

Este recuou.

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— Lembre-se bem! —interveio Mrs. Weldon. —Lembre-se de que aqui a bordo háuma pessoa que comanda... É ocapitão Sand, e bom será quetodos saibam que ele se farárespeitar!

Negoro inclinou-se,murmurou algumas palavras quese não puderam ouvir, e voltoupara o seu lugar.

Como se vê, Dick tinha járesolvido o que devia fazer.

Entretanto o patacho, pelaação do vento, que começava arefrescar, passou o vasto espaçoonde estavam os crustáceos.

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Dick Sand examinou opano, depois baixou os olhos,pressentindo o peso daresponsabilidade, masconhecendo que era necessárioter força para a suportar. Olhoupara os que ficaram do “Pilgrim”,os quais tinham naquele momentoas vistas fixadas sobre ele. E,conhecendo nos seus olhares quepodia contar com eles, assegurou-lhes que contassem também com asua dedicação.

Dick Sand haviaconsultado a sua consciência.

Se sabia diminuir ouaumentar de pano ao patacho

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segundo as circunstâncias,empregando para isso os braçosde Tom e dos seus camaradas,não possuía ainda todos osconhecimentos necessários paradeterminar o ponto pelo cálculo.

Com mais quatro ou cincoanos, Dick Sand conheceria bema vela mas difícil arte náutica!Saberia fazer uso do sextante,instrumento com que todos osdias o capitão Hull tomava aaltura dos astros! Saberia contarno cronometro a hora domeridiano de Greenwich, e dela,pelo ângulo horário, deduzir alongitude! O Sol aconselhá-lo-ia

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todos os dias. A Lua, os planetas,dir-lhe-iam: “O teu navio estáaqui, neste ponto do oceano!” Ofirmamento, onde as estrelas semovem como os ponteiros deperfeitíssimo relógio, que nenhumabalo pode perturbar e cujaexatidão é absoluta, o firmamentomarcar-lhe-ia as horas e asdistâncias! Pelas observaçõesastronômicas fixariaquotidianamente, como o seucapitão, o lugar do “Pilgrim”,com a aproximação de uma milha,a derrota seguida e a que se deviaseguir.

Por ora, só pela estima,

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isto é, pelo andamento medidopela barquinha e pelo rumo daagulha, correto da variação e doabatimento, sabia ele traçar o seucaminho.

Contudo, não desanimou.Mrs. Weldon compreenderaperfeitamente tudo quanto agitavao coração resoluto do jovemprático.

— Obrigada, Dick —disse ela, sem querer mostrar navoz a mais leve comoção. — Ocapitão Hull morreu; amarinhagem desapareceu com ele.O destino do navio está nas tuasmãos, Dick! Tu o salvarás, e

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aqueles que nele ainda existem.— Sim, Mrs. Weldon —

respondeu Dick Sand —, sim! Euo farei com o auxílio de Deus!

— Tom e os seuscompanheiros são homens bons ecom os quais podes contar.

— Bem sei. Farei delesmarinheiros e com elesmanobrarei o navio. Com bomtempo tudo é fácil, mas com mautempo... com mau tempo...havemos de lutar... e havemos dea salvar, Mrs. Weldon, e a Jack ea todos, enfim! Sim! Sinto que oposso fazer.

E repetiu: — Com o

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auxílio de Deus!— Podes saber, Dick, qual

é agora a posição do “Pilgrim”?— perguntou Mrs. Weldon.

— Muito facilmente —respondeu o prático. — Basta-mever a carta, onde o capitão Hullmarcou ontem o ponto.

— E sabes que rumotomar?

— Tomo rumo de leste.Por aí demora o lugar na costa daAmérica para onde era o nossodestino.

— Mas Dick — tornouMrs. Weldon —, creio quecompreendes que esta catástrofe

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pode e deve até modificar osnossos primeiros projetos. Não setrata já de levar o “Pilgrim” paraValparaíso. O porto mais próximona costa da América é agora oporto do nosso destino.

— Sem dúvida, Mrs.Weldon — respondeu o prático—, e deste modo não receie nada.A costa da América estende-semuito para o sul, e por isso nãodeixaremos de a avistar.

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— Onde fica ela? —perguntou Mrs. Weldon.

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— Ali — respondeu DickSand, apontando com o dedo parao lado de leste, que marcou pelabússola.

— Muito bem, Dick! Quevamos para Valparaíso ou paraqualquer outro ponto do litoral, éindiferente! O que importa é darcom a terra.

— Fá-lo-emos, Mrs.Weldon, espero que a hei dedesembarcar em lugar seguro —respondeu o prático —, e nãoperdi ainda a esperança deencontrar, logo que chegue àcosta, alguns barcos decabotagem. Ah! Mrs. Weldon, o

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vento começa a firmar-se pelonoroeste. Se Deus o conservarassim, andaremos a caminho ebem! Com o vento largo todo opano serve, desde a giba até àvela grande!

Dick Sand falava com aconfiança do marinheiro que tembom navio, seguro e obediente atodas as manobras. Corria já parao leme e ia chamar os seuscompanheiros para marcar o panoconvenientemente, quando Mrs.Weldon lhe lembrou que, antes detudo, devia conhecer a posição do“Pilgrim”.

E era, com efeito, a

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primeira coisa a fazer. Dick Sandfoi buscar à câmara a carta, ondeestava marcado o ponto davéspera, e mostrou a Mrs. Weldonque o patacho se encontrava por43 ° e 35 minutos de latitude sul e164 ° e 13 minutos de longitudeoeste de Greenwich, porquedurante as últimas vinte e quatrohoras pouco tinha andado.

Mrs. Weldon, inclinadasobre a carta, via os traços quefiguravam a terra, à direita dovasto oceano; era o litoral daAmérica- do Sul, muralha imensalançada entre o Pacífico e oAtlântico, desde o Cabo Horn até

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às praias da Colômbia.Contemplando aquela carta, ondese via um oceano inteiro, julgar-se-ia que era obra fácil restituir àpátria os passageiros do“Pilgrim”. Ilusão, mas ilusão quese reproduz invariavelmente emquem não está habituado com asescalas das cartas marítimas. E,com efeito, a Mrs. Weldonparecia que a terra devia estar àvista do “Pilgrim”, como estavano pedaço de papel que tinha sobos seus olhos!

Contudo, naquela páginabranca, o “Pilgrim”, representadoem escala exata, seria mais

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pequeno que o mais microscópioinfusório! Ponto matemático, semdimensões apreciáveis, pareceriaperdido, como realmente estava,na imensidade do oceanoPacífico!

Dick Sand não teve amesma impressão que Mrs.Weldon. Sabia quanto a terraestava afastada e quantas centenasde milhas mediam a distância queo separava dela. Tinha, porém,tomado a sua resolução; aresponsabilidade fizera-o homem.

Chegara o momento deexecutar. Era preciso aproveitar onoroeste, que refrescava. Ao

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vento contrário sucedera O ventofavorável, e algumas nuvensespalhadas no zênite, sob a formade cirros, indicavam que teriaduração.

Dick Sand chamou Tom eos seus companheiros.

— Meus amigos — disse-lhes ele —, não temos a bordooutra tripulação senão vocês. Nãoposso manobrar sem que vocêsme auxiliem. Bem sei que não sãomarinheiros, mas vejo que têmbraços afeitos ao trabalho. Se ospuserem ao serviço do “Pilgrim”,poderemos governá-lo. A nossasalvação depende da boa ordem

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com que tudo caminhar.— Sr. Dick — respondeu

Tom —, seremos agora os seusmarinheiros. Não nos faltará aboa vontade, e tudo quantopuderem fazer homenscomandados pelo senhor, ofaremos nós.

— Muito bem, Tom — -aprovou Mrs. Weldon.

— Muito bem — repetiuDick Sand —, mas é preciso serprudente. Não farei força de velapara não arriscar alguma coisa.Será melhor andar um poucomenos, mas com mais segurança.Assim o exigem as circunstâncias.

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Eu lhes indicarei o que cada umtem a fazer, quando manobrarmos.Pela minha parte, fico ao lemeenquanto o cansaço me nãoobrigar a deixá-lo. De tempos atempos, algumas horas de sonobastarão para me dar novo alento.Mas durante essas horas é precisoque algum de vocês vele em meulugar. Tom, vou ensinar-te acartear a agulha. Não é difícil.Prestando atenção saberás, empouco tempo, governar o navio.

— Quando quiser, Sr. Dick— respondeu o negro.

— Bem — prosseguiu oprático —, conserva-te aqui,

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junto de mim, ao leme, até quevenha a noite; e se o cansaço mevencer, já me poderás substituirpor algumas horas.

— E eu — perguntou Jack—, não posso ajudar o meu amigoDick?

— Sim — disse Mrs.Weldon, apertando o filho nosbraços —, tu aprenderás tambéma governar, e tenho a certeza deque enquanto estiveres ao lemeteremos bom vento!

— Sim! Sim! Prometo isso— respondeu Jack, pulando ebatendo com as mãozinhas uma naoutra.

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— Sim — acrescentousorrindo o prático —, os bonsmoços sabem conservar o ventode feição, dizem os velhosmarinheiros.

Depois, dirigindo-se paraTom e para os outros negros,declarou:

— Vamos bracear asvergas mais pelo redondo. Só têma fazer o que eu lhes disser.

— Às suas ordens —respondeu Tom —, às suasordens, capitão Sand!

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CAPÍTULO X

OS QUATRO DIASSEGUINTES

Dick Sand, promovido acapitão do “Pilgrim”, não perdeuum instante, e tudo fez para pôr onavio a caminho. É claro que ospassageiros só tinham uma únicaesperança: a de chegar a qualquerponto do litoral da América,quando não fosse a Valparaíso. O

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que Dick Sand pensava fazer eraapreciar a direção e a velocidadedo “Pilgrim”, a fim de fazer ocálculo pela estima, e marcar nacarta o caminho indicado pelabarquinha e pela bússola. Abordo havia um mostrador quedava com bastante aproximação avelocidade para um determinadotempo. Este útil instrumento, defácil emprego, prestava muitobom serviço, e os homens jásabiam fazer uso dele.

Subsistia, pois, uma sócausa de erros — as correntes.Para combater tal causa, a estimaera insuficiente, e só as

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observações astronômicas dariamdela conta exata. Ora estasobservações não as podia aindafazer o jovem prático.

Dick Sand pensouprimeiro em reconduzir o“Pilgrim” para a Nova Zelândia.A viagem era menos longa, e ateria feito se o vento, que atéentão fora contrário, não tivessese tornado favorável. Mais valiapois dirigir-se para a América.

O vento, que tinha rondadoquase dezesseis quartas, sopravaagora do noroeste, mostrandotendência para refrescar.Convinha aproveitá-lo, andando

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quanto fosse possível. Dick Sanddispôs-se a marcar o pano, demodo que levasse o vento quatroquartas para ré do través.

Num patacho, um mastrodo traquete tem quatro velasredondas: o traquete, no mastro-real; logo acima, o velacho, nomastaréu deste nome; depois, nomastaréu do joanete, o joanete e osobre.

No mastro grande não temtanto pano. No mastro-real, andaa vela grande, latina, e por cima,caçado na carangueja, o gafetope.

Entre os dois mastros, nosestais que sustentam para avante o

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mastro grande e o respetivomastaréu, há ainda três velastriangulares.

Finalmente, à proa, nogurupés, envergam-se a vela deestai, a bujarrona e a giba.

As três velas de proa, alatina, o gafetope e as velas deestai de entre mastros sãomanejáveis da coberta, dondepodem ser içadas ou arriadas.Pelo contrário, a manobra dopano redondo do mastro dotraquete exige mais hábito da vidado mar, porque é necessáriotrepar pelas enxárcias aotraquete, ao velacho, aos vaus de

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joanete e às encapeladuras destemastaréu, ou seja para largar ouferrar o pano ou para meter nosrizes as velas que os têm. Daqui aindispensável agilidade paraandar sobre os estribos de cabos,que se estendem por baixo dasvergas, a necessidade de sabertrabalhar com uma das mãos,segurando-se com a outra,manobra perigosíssima para quemnão estiver habituado. Asoscilações de bombordo aestibordo e de popa à proa, e assapatadas das velas debaixo devento fresco, têm atirado mais deum homem ao mar. Era, por

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consequência, operaçãoperigosíssima para Tom e para osseus camaradas.

Felizmente, o vento estavabonançoso e o mar plano. Tanto obalanço de bombordo a estibordocomo o de popa à proa tinhamamplitude moderada.

Quando Dick Sand, aosinal do capitão Hull, se dirigiupara o teatro da catástrofe, o“Pilgrim”, em velas de proa, velagrande, traquete e velacho, estavaatravessado; para o marear debolina, o prático teve de alar porsotavento os braços de proa ecaçar alguma escota que estivesse

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folgada. Os negros facilmente oajudaram, a fazer esta manobra.

Agora, porém, ia bracearlargo do vento e aumentar depano, largando o joanete e osobre, o gafetope e as velas deestai de entre mastros.

— Olá, meus amigos —disse o prático aos cinco negros—, façam o que lhes vou dizer, etudo se fará bem.

Dick Sand ficou ao leme.— Tom — gritou ele —,

larga depressa esse cabo!— Larga?... — perguntou

Tom, que não compreendera aexpressão.

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— Sim, tira-lhe volta daí!E tu, Bat... faz o mesmo a esseoutro! Bom... ronda primeiro...Ala agora! Ala por cima!

— Assim? — perguntouBat.

— Assim mesmo. Muitobem. Vamos, Hercule, ala comforça! Vamos, ala à uma!

Dizer a Hercule ala comforça era talvez imprudência,porque o gigante, mesmo semquerer, podia quebrar tudo.

— Está bom, basta! —exclamou Dick Sand, sorrindo. —És capaz de deitar a mastreaçãoabaixo.

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— Eu não puxei muito! —declarou Hercule.

— Pois bem, finge só quepuxas! É quanto basta! Bem, folgaagora... larga da mão!... Dávolta... assim! Bom! Agora, todosjuntos, além... puxem pelosbraços de proa a barlavento.

Todas as vergas de proa,cujos braços de sotavento setinham largo, giravam lentamente.O vento, atuando melhor sobre asvelas, imprimiu maior velocidadeao navio.

Dick Sand mandou entãofolgar as escotas das velas deproa e chamou depois os negros

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para a ré.— O que está feito,

amigos, está bem feito. Agoravamos ao mastro grande. Mas nãorebentes por aí alguma coisa,Hercule.

— Farei o melhor quepuder — respondeu o colosso,sem querer obrigar-se a muito.

Esta manobra era maisfácil. Arriou-se sobre volta aescota da retranca, e a velagrande, recebendo o vento maisnormalmente, juntou a suapoderosa ação à das velas deavante.

Içou-se o gafetope, o qual

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ferrava no calcês, mas, porqueestava naquela ocasião apenascarregado, bastou alar pelaadriça, amurá-lo e depois caçá-lo. Mas Hercule alou tão bem,como o seu amigo Acteon e Jack,que se juntara a eles, que a adriçarebentou.

Os três caíram de costas,sem felizmente se magoarem. Jackestava contentíssimo.

— Não é nada, não é nada!— exclamou o prático. —Amarrem um chicote ao outro eicem com cautela.

Tudo isto foi feito à vistade Dick Sand, sem que ele

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deixasse o leme. O “Pilgrim”navegava já rapidamente comproa de leste. Era mantê-lonaquela direção. Nada mais fácil,porque, estando certo o vento, asguinadas não eram para recear.

— Muito bem, meusamigos! — disse Dick Sand. —Antes de findar a viagem, estãovocês marinheiros!

— Faremos as diligências,capitão Sand — volveu Tom.

Mrs. Weldon também lhesdirigiu algumas palavrasagradáveis e, a seguir, elogiouJack, por ter trabalhado tão bem.

— Creio, menino Jack —

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gracejou Hercule, sorrindo —,creio que foi o menino quemrebentou a adriça! Que boamãozinha que tem! Sem o meninonada teríamos feito.

Jack, cheio de orgulho,sacudiu a mão de Hercule.

O “Pilgrim” ainda podiapuxar com mais pano. Estavamferradas algumas velas, cuja açãonão era para desprezar nascircunstâncias em que navegava.O joanete, o sobre, as velas deestai de entre mastros, deviampor certo aumentar o andamentodo patacho, e Dick Sand resolveulargá-las.

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Esta manobra, mais difícilque as outras que se tinham feito,não o era, contudo, por causa dasvelas de estai, que se podiamiçar, amurar e caçar da coberta,mas pelas velas redondas domastro do traquete. Para as largarera necessário subir acima dosvaus, e, como Dick Sand nãoqueria sacrificar ninguém da suaimprovisada tripulação, subiu ele.

Chamou Tom para o leme,mostrando-lhe como deviagovernar. Distribuiu depois asadriças e as escotas do joanete edo sobre por Hercule, Bat,Acteon e Agostinho. Subir pelas

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enxárcias do traquete, agarrar-seàs arreigadas, tornar a subir pelaenxárcia do velacho e passaralém dos vaus de joanete, erapara Dick coisa de poucaimportância. Num momentoestava ele sobre o estribo dojoanete, largando as bichas queseguravam a vela para a verga.

Trepou depois até à vergade sobre, cuja vela largoutambém.

Logo que acabou, DickSand deitou as mãos a um brandale deixou-se escorregar por ele atéchegar ao convés da embarcação.

Aqui, sob as suas

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indicações, caçaram-se as duasvelas. Também se içaram,amuraram e caçaram as velas deentre mastros. Feito isto, estavaacabada a manobra.

Hercule desta vez não fezavaria.

O “Pilgrim” navegava comtodo o pano, mas Dick Sand aindapodia largar os cutelos e avarredoura; era, porém, difícil,nas circunstâncias em que seencontrava, meter dentrorapidamente estas velas, se caíssealgum aguaceiro. Decidiu, pois, oprático deixá-las na enxárcia.

Dick rendeu Tom, que

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estava ao leme.O vento refrescava. O

“Pilgrim”, um pouco inclinadopara estibordo, corria sobre asuperfície do mar, deixando apósde si esteira tão bonita que bemmostrava a beleza das suas linhasde água.

— Vamos a caminho, Mrs.Weldon, e com bom vento. Deusqueira que ele não mude!

Mrs. Weldon, fatigada portantas emoções, apertou a mão doprático, desceu para a câmara ecaiu em profundo abatimento.

A nova tripulação dopatacho ficou em cima, velando

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pronta a obedecer às ordens deDick Sand, isto é, a modificar amareação do pano, consoante asvariações do vento; mas enquantoeste se conservasse constantenada havia que fazer.

Que era feito de primoBénédict?

Estudava, com o auxílio dalupa, um articulado que por fimconseguira encontrar a bordo, umsimples ortóptero, cuja cabeça sesumia no toracete, inseto deélitros achatados, abdômenarredondado, asas longas, dafamília das blattas e da espéciedas baratas da América.

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Foi procurando na cozinhade Negoro que Bénédict fez tãoprecioso achado, e exatamente nomomento em que o mestrecozinheiro ia esmagarimplacavelmente o inseto. Irritou-se por isto o entomologista, masNegoro não fez caso.

Primo Bénédict saberia damudança que se dera a bordodesde que o capitão Hull e osseus companheiros começaram apesca da jubarte? Sabia.Encontrava-se mesmo na cobertaquando o “Pilgrim” chegou aolugar onde estavam os destroçosda baleeira. Fora, pois,

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testemunha ocular do triste fim datripulação do patacho.

Julgar que tão funestacatástrofe o não impressionaraseria fazer injustiça ao seu bomcoração. A comiseração poroutrem, que toda a gente sente,sentia-a ele também. Afligira-o asituação de sua prima, e por issofoi apertar-lhe a mão, como paralhe dizer: Não tenha medo! Aindacá estou! Fiquei eu!

Depois, primo Bénédictvoltou ao camarote, para semdúvida refletir nas consequênciasdo desastroso acontecimento enas medidas enérgicas que

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convinha tomar em taiscircunstâncias.

Mas no caminho encontroua barata em questão, e como a suapretensão — aliás justificadacontra certos entomologistas —era provar que as baratas de umcerto gênero, notáveis pelas suascores, têm hábitos muitodiferentes das barataspropriamente ditas, entregou-seao estudo, e esqueceu-se de quehouvera a bordo do “Pilgrim” umcapitão chamado Hull, e que esteinfeliz perecera, pouco tempoantes, juntamente com atripulação! A barata absorvia

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completamente primo Bénédict!Admirava-a tanto e tanto aestimava como se ela fosse umescaravelho de ouro.

A vida de bordo retomarao seu curso regular, conquantotodos tivessem ficado, por muitotempo, impressionados por tãotriste quanto inopinada desgraça.

Dick Sand, durante aqueledia, tudo fez, a fim de tudo terpreparado para as maisinsignificantes eventualidades. Osnegros obedeciam-lhe, cheios dezelo. A bordo do “Pilgrim”reinava a melhor ordem. Haviarazão para esperar que tudo

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caminharia sem estorvo.Negoro, pela sua parte,

não fez nenhuma outra tentativapara se subtrair à autoridade deDick Sand. Parecia tê-lotacitamente reconhecido.Ocupado como sempre naacanhada cozinha, aparecia tantocomo dantes. Dick Sand estavadisposto a prendê-lo no porão,até ao fim da viagem, à menorinfração de disciplina. Bastavaum sinal de Dick Sand paraHercule deitar as mãos às goelasdo cozinheiro. Se tal acontecesse,Nan, que sabia cozinhar,substituiria Negoro. Este

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reconhecia que não eraindispensável, e como, alémdisto, era vigiado de perto,entendeu que não devia darmotivo algum para procederemcontra ele.

O vento, conquantorefrescasse para a noite, não foitanto que obrigasse a fazeralteração no pano do “Pilgrim”. Amastreação estava segura por bemconservado massame de ferro, demodo que o “Pilgrim” podiaainda assim aguentar mais vento.

Usa-se, às vezes, durante anoite, diminuir o pano eprincipalmente o pano alto, como

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as velas de estai, de entremastros, gafetope, sobres ealgumas vezes joanetes. É istoprudente quando se receia ventode rajadas ou tempo deaguaceiros; mas Dick Sand julgoupoder dispensar tal precaução. Oestado da atmosfera era bom, ecomo o jovem prático tencionavavelar toda a noite em cima dacoberta, por tudo e para tudoolharia. Como ia, caminhavamais. Lá lhe tardava achar-se emparagens menos desertas.

Disse-se que a barquinha ea bússola eram os únicosinstrumentos de que Dick Sand se

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podia servir para estimar ocaminho percorrido pelo“Pilgrim”.

O prático fez deitar abarquinha de meia em meia hora,e notou as indicações dadas peloinstrumento.

Havia a bordo duasagulhas ou bússolas. Uma estavana bitácula, para serviço dohomem do leme. A rosa desta,esclarecida pela luz do dia até aopôr do Sol, e durante toda a noitealumiada por duas lanternaslaterais, indicava a todos osinstantes a proa do navio, isto é, adireção que ele devia seguir.

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A outra agulha era umabússola invertida, fixada num dosvaus da câmara que fora docapitão Hull. Sem sair da câmara,o capitão via se o rumo que eletinha dado era exatamenteseguido, e se o homem do leme,por inabilidade ou negligência,deixava andar o navio àsguinadas.

Não há navios empregadosem viagens de longo curso quenão tenham pelo menos duasagulhas de marear e trêscronômetros. É preciso compararestes instrumentos entre si, econsequentemente verificar as

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indicações que derem.O “Pilgrim” estava bem

provido a este respeito, e DickSand recomendou à sua gente quetomasse bastante cuidado nasagulhas, que tão necessárias lheeram.

Infelizmente, na noite de12 para 13 de Fevereiro,enquanto o prático vigiava dequarto e ao mesmo tempo fazialeme, ocorreu um desagradávelacidente. A bússola invertida, queestava fixa por um arco de cobrea um vau da câmara, desprendeu-se e caiu; porém, só no diaseguinte se deu por tal.

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Como faltou a virola? Erainexplicável. Seria possível,porém, que estivesse oxidada,que um balanço mais seco debombordo a estibordo ou de popaa proa a desligasse do vau. O mardurante a noite estivera maispicado. Fosse como fosse, o certoé que a bússola se desmanchou demodo que não se podia consertar.

Dick Sand ficou poucosatisfeito, e viu-se reduzido daliem diante unicamente àsindicações da agulha da bitácula.Ninguém evidentemente tinharesponsabilidade do fracasso quesucedeu à agulha da câmara, mas

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o certo é que o acidente podia tergraves consequências. O práticotomou depois todas as precauçõespara pôr a agulha da bitácula aoabrigo de qualquer desastre.

Até então, excetuando esteacontecimento, tudo ia bem abordo do “Pilgrim”.

Mrs. Weldon, vendo aserenidade de Dick Sand,recuperou a antiga confiança,ainda que não tivesse nuncadesesperado. Confiança nasuprema bondade de Deus, e,como católica sincera e religiosa,fortificava-se pelas orações.

Dick Sand arranjara as

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coisas de modo que passava asnoites ao leme. Dormia cinco ouseis horas durante o dia e eraquanto lhe bastava, porque não sesentia fatigado. Enquanto dormia,Tom e seu filho Bat revezavam-seao leme e, graças aos conselhosde Dick, iam-se fazendo, pouco apouco, sofríveis timoneiros.

Muitas vezes Mrs. Weldonconversava com o prático, e DickSand ouvia os conselhos daquelainteligente senhora.

Todos os dias Dickmostrava a Mrs. Weldon adistância percorrida, feitaunicamente pela direção e

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velocidade aparentes do navio.— Veja, Mrs. Weldon —

repetia-lhe Dick muitas vezes —,continuando este vento, nãodeixaremos de avistar a costa daAmérica do Sul. Não possoafirmar, mas creio que, quando onosso navio chegar à vista daterra, não estará muito longe deValparaíso.

Mrs. Weldon não duvidavade que o rumo que o navio levavaera bom, e que os ventos denoroeste o favoreciam. Mas quãoafastado da América lhe pareciaque ainda estava o “Pilgrim”!Quantos perigos entre ele e a

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terra firme, não contando com osque podiam sobrevir pelamudança do estado do mar ou docéu!

Jack, despreocupado comotodas as crianças da sua idade,tinha voltado aos seus brinquedoshabituais, correndo na coberta eentretendo-se com Dingo. Achavaque o seu amigo Dick nãobrincava tanto com ele comodantes; mas Mrs. Weldon fez-lheperceber que era preciso nãodistrair o jovem prático das suasocupações. Jack cedera às razõesde sua mãe e não incomodava ocapitão Sand.

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Assim corriam as coisas abordo. Os negros trabalhavamcom inteligência e, pouco apouco, iam adquirindo a práticade marinheiros. Tom fazianaturalmente de contramestre. Osseus camaradas tê-lo-iamescolhido para esse cargo.Comandava o quarto, enquanto oprático repousava, e tinha consigoseu filho Bat e Agostinho. Acteone Hercule acompanhavam DickSand.

Assim, enquanto umgovernava, estavam os outrosvigiando a vante.

Ainda que aquelas

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paragens fossem poucofrequentadas, e as abordagenspouco para temer, o prático exigiarigorosa vigilância durante anoite. Acendia os faróis denavegação, isto é, a luz Verde aestibordo e a luz encarnada abombordo. Procedia com muitoacerto.

Contudo, durante as longasnoites que Dick Sand passouencostado à roda do leme, sentiualgumas vezes uma irresistívelprostração apoderar-se dele. Eracansaço, de que ele não faziacaso.

Aconteceu que durante a

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noite de 13 para 14 de Fevereiro,Dick Sand, sentindo-se muitofatigado, foi descansar poralgumas horas, indo substituí-loao leme o velho Tom.

O céu estava carregado denuvens, as quais sob a influênciado frio da noite tinhamengrossado. A atmosfera estavamuito escura, e tanto que não sepodiam ver os topes dos mastrosperdidos nas trevas. Hercule eActeon estavam de vigia, à proa.

À ré, a luz da bitáculadava apenas vaga claridade, quefazia refletir suavemente asguarnições de metal da roda do

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leme. Os faróis de navegação,projetando a luz lateralmente epara vante, deixavam a coberta namais profunda obscuridade.

Pelas três horas da manhãproduziu-se uma espécie defenômeno de hipnotismo, sem queo velho Tom tivesse consciênciade tal acontecimento. Os olhos deTom, que se haviam fixado sobrea parte luminosa da bitácula,perderam subitamente osentimento da visão, e Tom caíraem profunda sonolênciaanestésica.

Somente não via, comonada sentiria se o tivessem

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puxado ou beliscado.Não deu, pois, por uma

sombra que se arrastavamansamente sobre a coberta. EraNegoro.

Chegado à ré, o cozinheirocolocou debaixo da bitácula umobjeto pesado que trazia na mão.

Depois de ter observadopor pouco tempo o discoluminoso, retirou-se sem servisto.

Se, no dia seguinte, DickSand descobrisse o objetocolocado por Negoro debaixo dabitácula, tê-lo-ia tiradoimediatamente.

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Era um pedaço de ferro,cuja influência alterou asindicações da agulha, que,desviada, em vez de marcar onorte magnético, que naquelelugar não coincidia com o nortedo mundo, marcava o nordeste.

Havia portanto o desviode quatro quartas, ou, por outraspalavras, de meio ângulo recto.

Tom, quase ao mesmotempo, acordou do torpor em queestava. Viu a agulha. Acreditou edevia acreditar que o “Pilgrim”se tinha afastado do caminho.

Girou pois com o lemepara pôr a proa do navio a leste...

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Julgava que ia bem.Mas pelo desvio da

agulha, que Tom não suspeitava, aproa, diminuída de quatroquartas, ia rumo de sueste.

E de tal arte que o“Pilgrim”, que pela ação do ventofavorável podia seguir na direçãodesejada, caminhava com o errode quarenta e cinco graus no seurumo!

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CAPÍTULO XI

A TEMPESTADE

Durante a semana que seseguiu a este últimoacontecimento, isto é, de 14 a 21de Fevereiro, nenhum outroincidente perturbou a vida debordo. O vento pelo quadrantenoroeste refrescava pouco apouco e o “Pilgrim”, se tinhasingraduras de cento e sessentamilhas, tinha outras muitomaiores, o que já não era mau

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para um navio da sua grandeza epara as circunstâncias em quenavegava.

Dick Sand supunha que opatacho se aproximava dasparagens mais frequentadas pelosnavios que querem passar de umpara o outro hemisfério.Esperava, pois, encontrar algumdesses navios com a firmeintenção ou de mudar ospassageiros, ou de lhe pediralguns marinheiros e talvez umoficial. Mas, apesar da ativavigilância, nenhum navio seavistou: o mar continuavadeserto.

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Não deixava este fato decausar admiração a Dick Sand.Tinha ele atravessado váriasvezes o Pacífico por aquelasparagens, quando ia pescar paraos mares austrais. Pela latitude elongitude que lhe dava a estima,era raro não aparecerem naviosingleses ou americanos, vindosdo Cabo Horn para o equador oudirigindo-se para a ponta extremada América do Sul.

Mas o que Dick Sandignorava, o que mesmo não podiasaber, é que o “Pilgrim” estava namais alta latitude, isto é, mais aosul do que supunha. Duas eram as

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razões.A primeira, devida às

correntes, cuja velocidade edireção o prático não podiaapreciar, e que afastaram o naviodo seu caminho.

A segunda provinha dodesvio da bússola, causado pelamão criminosa de Negoro. Abússola não dava indicaçõesexatas, e Dick Sand não podiaachar os erros, porque tinhaperdido a agulha da câmara.Assim, acreditando que navegavaao rumo de leste, seguia para osueste! Olhava para a agulharepetidas vezes, e mandava deitar

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a barquinha com regularidade. Sóestes dois instrumentosempregava para dirigir o“Pilgrim” e medir o caminhopercorrido. Mas bastava isto?

Entretanto o práticotranquilizava quanto podia Mrs.Weldon, a quem os incidentes daviagem deviam às vezes inquietar.

— Havemos de chegar,Mrs. Weldon! Havemos dechegar! — repetia ele. — Queavistemos a costa da Américamais para o norte ou mais para osul é indiferente, o que importa échegar lá; mas havemos dechegar.

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— Não duvido, Dick.— Na verdade, eu estaria

mais sossegado se Mrs. Weldonnão viesse a bordo, se apenas pormim respondesse — afirmou oprático.

— Mas — tornou Mrs.Weldon —, se o primo Bénédict,Jack, Nan e eu não tivéssemostomado passagem no “Pilgrim”,se também Tom e os seuscompanheiros não tivessem sidorecolhidos, não haveria aquisenão duas pessoas, tu eNegoro?... Que te teriaacontecido, então, achando-te só,em companhia de um homem tão

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mau, e em quem não tensconfiança?... Que teria sido feitode ti?

— Teria começado —respondeu resolutamente DickSand — por inutilizar Negoro.

— E manobrarias só?— Sim, sozinho... com o

auxílio de Deus!A firmeza destas palavras

alentava Mrs. Weldon, a qualmuitas vezes se sentia inquietacontemplando Jack! Se a mulhernão queria mostrar o que sentia amãe, não podia contudo evitarque íntima tristeza lhe oprimisseo coração!

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Mas se o prático nãoestava bastante adiantado noestudo da astronomia náutica, demodo que pudesse fazer o pontopelo cálculo, tinha contudo o farode marinheiro para conhecer otempo. A aparência da atmosfera,por um lado, e por outro asindicações do barômetro, diziam-lhe que se precavesse. O capitãoHull, como bom meteorologista,ensinara-o a ler este instrumento,cujos prognósticos são muitocertos.

Eis em poucas palavras oque contêm as indicaçõesrelativas à observação do

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barômetro(1): *1. Resumido doDicionário Ilustrado, deVorepierre.

Quando, depois de longoperíodo de bom tempo, obarômetro desce precipitada econtinuamente, é sinal de chuva; eo mercúrio pode descer tendosido longo o período de bomtempo, sem que haja mudança noestado aparente da atmosfera.Neste caso, quanto maior é oespaço de tempo entre a descidado barômetro e a chegada dachuva, maior será a duração dotempo chuvoso..o Se, pelocontrário, durante o tempo

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chuvoso e de já longa duração, obarômetro começa a subir lenta eregularmente, é certo que voltaráo bom tempo e que durará tantomais quanto maior for o intervaloentre a sua chegada e o princípioda subida barométrica..o Nosdois casos precedentes, se amudança de tempo segueimediatamente o movimento dacoluna barométrica, essa mudançaterá curta duração..o Se obarômetro sobe lenta econtinuamente durante dois, trêsou mais dias, anuncia bom tempo,ainda que não cesse de choverdurante esses dias, e vice-versa;

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mas se o barômetro sobe durantedois ou mais dias, ainda quechova, e depois desce logo quechega o bom tempo, este durarámuito pouco, e vice-versa..o NaPrimavera e no Outono a descidarápida do barômetro pressagiavento. No Verão, estando o tempomuito quente, denuncia trovoada.No Inverno, depois das grandesgeadas, o rápido abaixamento dacoluna barométrica anunciamudança de vento, degelo echuva; porém, a subidabarométrica que vem durante ageada, que já tenha algumaduração, prognostica neve..o

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Nunca se devem interpretar asoscilações rápidas do barômetrocomo presságio de tempo seco ouchuvoso de longa duração. Estasindicações são dadasexclusivamente pela alta oubaixa, se for lenta e contínua..oSe pelo fim do Outono, depois detempo chuvoso e ventoso muitoprolongado, a coluna barométricase eleva, há indício certo damudança de vento para o póloelevado e aproximação de neve.

Tais são as consequênciasque em geral se podem tirar dasindicações de tão preciosoinstrumento.

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Tudo isto sabiaperfeitamente Dick Sand, e tinha-o verificado em diversascircunstâncias da sua vida demarinheiro, o que o habilitava,por consequência, a precaver-secontra qualquer eventualidade.

Aconteceu que, pelos finsde Fevereiro, Dick Sand começoua preocupar-se com as oscilaçõesdo barômetro, cuja leitura faziarepetidas vezes. A colunabarométrica baixava lenta econtinuamente, pressagiandochuva; mas porque esta tardavaem cair, concluiu Dick Sand que omau tempo teria grande duração.

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Assim devia acontecer.Mas, em vez da chuva,

veio vento, o qual refrescou tantoque tinha já a velocidade desessenta pés por segundo ou trintae uma milhas por hora(1).

*1. Cinquenta e setequilômetros e meio.

Dick Sand tomou entãoalgumas precauções para nãoarriscar a mastreação e o pano do“Pilgrim”.

Tinha já ferrado o sobre, ogafetope e a giba, e resolveuferrar o joanete, arriar abujarrona e meter o velacho mos

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segundos.Esta última operação

apresentava algumas dificuldadespara uma tripulação poucoexperimentada. Não podiacontudo hesitar, e ninguémhesitou. Dick Sand, acompanhadopor Bat e Agostinho, trepou econseguiu, mas com dificuldade,ferrar o joanete. Se o tempo fossemenos ameaçador, teria deixadoas duas vergas cruzadas, mas,prevendo que seria obrigado aacachapar o mastaréu, e talvezmesmo arriá-lo ao convés, arrioupor isso as duas vergas. Quando ovento sopra com muita violência,

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é necessário não só diminuir depano, mas também de mastreação;alivia o navio, que, menoscarregado por cima, não se fatigatanto com os balanços debombordo a estibordo ou de popaà proa.

Feito este primeirotrabalho — no qual seempregaram duas horas —, DickSand e os seus companheirostrataram de reduzir a superfíciedo velacho, metendo-o nossegundos rizes. Não tinha o“Pilgrim” gávea partida, isto é,gávea e sobregávea, como amaior parte dos navios modernos,

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o que facilita a manobra. Era poisnecessário trabalhar segundo ovelho sistema, isto é, andar sobreos estribos, puxar para si eagarrar o pano, batido e açoutadopelo vento, e amarrá-lo com osrizes. Foi difícil, longa e perigosaa manobra; mas fez-se, e ovelacho, reduzido, aliviou muitoo “Pilgrim”.

Desceram Dick Sand, Bate Agostinho. O “Pilgrim” estavaentão nas condições que o estadodo vento exigia, e que éconhecido pela qualificação de“vento duro”.

Durante os três dias que se

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seguiram, 20, 21 e 22 deFevereiro, a força e a direção dovento não tiveram mudançasensível; o barômetro porémcontinuava a descer, e nesteúltimo dia notou o prático que elese conservava abaixo de vinte eoito polegadas e sete décimos(1).

*1. Os barômetrosingleses e americanos contam-sepor polegadas e décimos. Vinte eoito polegadas e sete décimoscorrespondem a setecentos evinte e oito milímetros.

Não mostrava tendênciapara subir. O aspecto da

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atmosfera era mau eextremamente ventoso. Névoasgrossas cobriam o céu, e tãocerrado estava, tão profunda era acamada de nuvens, que não sepodia enxergar o Sol, e até seriadifícil designar onde ele nascia eonde se ocultava.

Dick Sand começou ainquietar-se. Não deixava acoberta e dormia pouco; mas asua energia moral dava-lhe forçaspara esconder no fundo docoração as maiores angústias.

No dia 23 de Fevereiro ovento pareceu abonançar; DickSand, porém, não se iludiu. Fez

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bem, porque pela tarde o ventorefrescou mais e o mar tornou-semais alteroso.

Pelas quatro horas,Negoro, que raras vezes se via,saiu da cozinha e subiu ao casteloda proa. Dingo dormia decerto,porque não rosnou, comocostumava.

Negoro, calado comosempre, demorou-se meia horaobservando o horizonte.

As vagas, já muitoalterosas, sucediam-se umas àsoutras, mas não rebentavamainda; contudo, eram grandes demais para o vento que fazia.

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Devia-se supor que havia mautempo para oeste, não muitolonge, e o qual não se demorariaem chegar àquelas paragens.

Negoro contemplou avasta extensão do mar, tãoprofundamente agitado em voltado “Pilgrim”. Depois lançou oseu olhar frio para a atmosfera.

Era inquietador o cariz docéu. As nuvens corriam comdiferentes velocidades; as maisaltas iam mais velozes do que asdas camadas inferiores. Erapreciso prever o caso, aliás muitoprovável, de se abaixarem essaspesadas massas e tornar-se em

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iminente tempestade, ou talvezmesmo em temporal desfeito, oque era por enquanto só ventomuito duro, isto é, a deslocaçãodo ar com velocidade de quarentamilhas por hora.

Ou porque Negoro nãofosse homem que se assustasse,ou porque nada entendesse doaspecto do tempo, é certo que elenão se mostrou impressionado.Contudo, brincou-lhe nos lábiosum sorriso de maldade. Dir-se-iamesmo que mais lhe agradava queaborrecia aquele estado dotempo. Subiu de uma vez aogurupés e foi até ao pau da

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bujarrona a fim de estender avista, como se procurasse veralguma coisa no horizonte.Depois desceu sossegadamente, esem dizer uma palavra, sem fazerum gesto, voltou para oalojamento da tripulação.

Em tais conjunturas,porém, havia uma circunstânciafeliz, e que todos a bordo deviamter notado: era que o vento, pormuito violento que fosse ouviesse a ser, era favorável elevava rapidamente o “Pilgrim”para a costa da América. Se otempo continuasse o mesmo, enão se desencadeasse a

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tempestade, a navegaçãocontinuaria a fazer-se sem risco, eos verdadeiros perigos surgiriamunicamente na ocasião dedemandar a terra num ponto maldeterminado da costa.

Era o que já preocupavaDick Sand. Como navegaria ele,logo que enxergasse a terra, senão encontrasse piloto prático dacosta? No caso em que o mautempo o obrigasse a arribar aalgum porto, como e para ondeiria ele, se a costa lhe eradesconhecida? Era ainda cedopara se inquietar com estaeventualidade. Quando chegasse a

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hora do perigo, chegaria aocasião de resolver, e Dick Sandresolveria então.

Durante os treze dias quemediaram entre 24 de Fevereiro e9 de Março, o estado daatmosfera não teve alteraçãosensível. O céu conservou-sesempre carregado de nuvensgrossas. O vento abonançavadurante algumas horas, mastornava a soprar com a mesmaviolência. O barômetro subiuduas ou três vezes, mas foi subidade poucos décimos e tão rápidaque não podia indicar mudança detempo e diminuição de vento.

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Depois a coluna barométricatornava a descer e nada faziaesperar o próximo fim dovendaval.

As grandes trovoadas, queentão rebentaram, inquietaramDick Sand. Mais de uma vez osraios caíram no mar, não muitolonge do patacho. Chuvatorrencial e turbilhões de vaporesmuito condensados envolviam o“Pilgrim” em espesso nevoeiro.

Durante muitas horas, ohomem de vigia nada podialobrigar pela proa fora.Caminhavam pois à aventura.

Ainda que o navio se

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portasse muito bem com o mar,jogava contudo bastante. Mrs.Weldon, felizmente, suportava obalanço sem se incomodar. Jack,pelo contrário, sofria muito, e porisso ela lhe prodigalizava todosos cuidados que podia.

Primo Bénédict estava tãoincomodado como as baratas daAmérica, suas companheiras.Passava o tempo a estudar comose estivesse no seu gabinete emSão Francisco.

Felizmente também, Tom eos seus companheiros, poucosensíveis ao enjoo, puderamcontinuar a prestar auxílio ao

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jovem prático — completamenteafeito a todos os movimentosdesordenados do navio que correcom o tempo.

O “Pilgrim” navegavarapidamente com o pano járeduzido, mas Dick Sand previaque era necessário diminuí-loainda mais; desejava porémconservar as velas em cimaenquanto não houvesse perigo.Pela sua estima, a costa não deviaestar longe. Vigiava-se muito ecom muito cuidado; o prático,porém, não confiava nos olhosdos seus companheiros paradescobrir os primeiros sinais de

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terra. Efetivamente, quem nãoestiver habituado a interrogar ohorizonte com a vista, por melhorque esta seja, não pode distinguiras primeiras sombras da terra,principalmente quando as brumasa envolvem. Por isso Dick Sandvigiava também, e muitas vezessubia até aos vaus de joanete,para ver melhor. Mas a costa daAmérica não aparecia ainda.

Causava-lhe isto espanto,e Mrs. Weldon percebeu-o poralgumas palavras que escaparama Dick.

Em 9 de março, o práticoestava à proa, ora observando o

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mar e o céu, ora vendo amastreação do “Pilgrim”, quecomeçava a fatigar-se pela forçado vento.

— Não vês nada, Dick? —perguntou ela, no momento emque ele largava o óculo.

— Nada, Mrs. Weldon,absolutamente nada — respondeuo prático —, contudo, o horizonteparece querer aliviar um pouco,talvez por efeito deste ventoviolentíssimo, mas que ainda vairefrescar mais.

— E na tua opinião, Dick,a costa da América ainda estálonge?

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— Não pode estar e, sealguma coisa me espanta, é não aavistar ainda.

— Mas o navio temsempre navegado em boa rota? —tornou Mrs. Weldon.

— Sempre, desde que ovento se fixou para o quadrantenoroeste — respondeu Dick Sand—, isto é, desde o dia em queperdemos o nosso infeliz capitãoe a sua gente! Foi a 10 deFevereiro, estamos a 9 de Março,há por consequência vinte e setedias!

— Mas nessa época a quedistância estávamos da costa? —

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inquiriu Mrs. Weldon.— A quatro mil e

quinhentas milhas, pouco mais oumenos. Se há coisas sobre asquais eu tenha dúvida, nestenúmero não tenho, posso garanti-lo, com a aproximação de vintemilhas.

— E qual tem sido avelocidade do navio?

— Tem sido, termo médio,cento e oitenta milhas por diadesde que o vento refrescou —elucidou o prático. — Por issome surpreende que a terra nãoesteja à vista. E o que é maisextraordinário ainda é não

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encontrarmos um só dos muitosnavios que andam ordinariamentepor estas paragens.

— Não te enganarias natua estima, Dick? — tornou Mrs.Weldon.

— Não, Mrs. Weldon; nãoera possível enganar-me. Abarquinha deitou-se sempre demeia em meia hora, e eu mesmovi. Vou fazê-la deitar novamente,e verá que neste momento vamosandando dez milhas por hora, oque dá para a singradura mais deduzentas milhas!

Dick Sand chamou Tom edeu-lhe ordem para deitar a

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barquinha — operação em que ovelho negro já estava muitoprático.

A barquinha, bemaimarrada no extremo da linha,foi lançada ao mar.

Tinham apenas corridovinte e cinco braças quando alinha afrouxou rapidamente nasmãos de Tom.

— Ah! Sr. Dick! —exclamou ele.

— Que foi, Tom?— Rebentou a linha!— Rebentou! — exclamou

Dick Sand. — E foi-se abarquinha!

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Tom mostrou o chicote dopedaço da linha que lhe

ficara na mão.Era, com efeito, verdade.

Não foi, porém, o nó que aprendia que se desfez, porque alinha estava rebentada pelo meio,apesar de ser linho entrançado.Era, pois, condição essencial queos cordões estivessem coçados, eestavam-no efetivamente, assim overificou Dick Sand.

— Mas estariam coçadospelo uso? — perguntavadesconfiado, a si mesmo, Dick.

Seja como for, é certo quea barquinha estava perdida e que

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Dick não tinha outro meio deavaliar com exatidão avelocidade do navio. O únicoinstrumento que possuía era abússola, cujas indicaçõesignorava que eram falsas!

Mrs. Weldon viu-o tãomelancólico por causa desteincidente que não insistiu mais e,cheia de tristeza, desceu para ocamarote.

Mas se a velocidade do“Pilgrim” e, por consequência, ocaminho que percorria não podiaser estimado, era contudo fácilavaliar que o andamento do navionão diminuíra.

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No dia seguinte, 10 deMarço, o barômetro desceu avinte e oito polegadas e doisdécimos(1). Era prenúncio de umdesses temporais em que o ventochega a atingir a velocidade desessenta milhas por hora.

*1. Setecentos e novemilímetros.

Urgia diminuir ainda maiso pano, a fim de não pôr em riscoa segurança do navio.

Dick Sand resolveu arriarao convés o mastaréu de joanete eo do gafetope e ferrar todo opano, deixando apenas a vela de

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estai e o velacho nos últimos.Chamou Tom e os seus

companheiros para que oajudassem a fazer aquela difíciloperação, a qual, infelizmente,não podia executar-se comrapidez.

O tempo, porém, exigiapressa, porque o temporal já sedesencadeava com violência.

Dick Sand, Agostinho,Acteon e Bat subiram para agávea, enquanto ficaram Tomgovernando ao leme, e Hercule noconvés, pronto para arriar osandrébelos quando lhe fosseordenado.

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Depois de numerososesforços, os mastaréus de joanetee de gafetope foram arriados, masos pobres pretos muitas vezescorreram o risco de serarremessados ao mar, tão forteseram as pancadas que sacudiam amastreação por efeito de balanço.Depois que se meteu o velachonos últimos e a vela grande foipara a gaxeta, o patacho nãolevava outro pano além da velade estai e do velacho sobre apega.

Apesar, porém, de o panoestar já muito reduzido, o“Pilgrim” continuava a correr

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com excessiva velocidade.No dia 12 o tempo

carregou mais e mostrou piorcariz. Nesse dia, desde amadrugada, Dick Sand viu, nãosem receio, o barômetro desceraté vinte e sete polegadas e novedécimos(1).

*1. Setecentos e dezesseismilímetros.

Era um temporal desfeito etão grande que o “Pilgrim” nãopodia já com o pouco pano queainda levava largo!

Dick Sand, vendo que ovelacho se ia rasgar, mandou que

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o ferrassem.Foi em vão. Uma rajada

mais forte caiu nesse momentosobre o navio e fez o velacho emestilhas. Agostinho, que seencontrava em cima da verga, foiatingido com a escota debombordo. Ferido, maslevemente, pôde descer para acoberta.

Dick Sand, extremamenteinquieto, tinha um únicopensamento: era que o navio,levado com tal fúria, ia-se perderde um momento para o outro,porque, segundo a estima, osescolhos da costa não deviam

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estar longe. Foi para a proa, mas,não vendo nada que lhe parecesseterra, voltou para o leme.

Pouco tempo depoisNegoro apareceu na coberta.Então, repentinamente, como semse lembrar, estendeu o braço paraum ponto do horizonte. Dir-se-iaque avistara alguma terra altaenvolvida pelas brumas!

Sorriu maliciosamentemais uma vez, e, sem dizer nadado que vira, retirou-se para o seualojamento.

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CAPÍTULO XII

NO HORIZONTE

A esta altura o vendavaltomava a sua feição mais terrível,a da tempestade. O vento rondarapara o sudoeste, o ar deslocava-se com a velocidade de noventamilhas(1) por hora.

*1. Cerca de cento esessenta e sete quilômetros.

Era, com efeito, umadessas tempestades que fazem dar

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à costa todos os navios que estãofundeados, e às quais, mesmo emterra, não resistem as maissólidas construções. Tal foi atempestade que em 25 de julho de1825 devastou Guadalupe.Quando as pesadas peças de vintee quatro são arrebatadas dosrespetivos reparos, julgue-se doque poderá acontecer a um navioque não tem outro ponto de apoiosenão o mar embravecido! E,contudo, é à sua mesmamobilidade que o navio deve asalvação! Cede aos impulsos dovento e, sendo bem construído,pode afrontar os mais violentos

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golpes de mar! Neste caso estavao “Pilgrim”.

Poucos minutos depois deo velacho se ter rompido, a velade estai foi também levada pelovento. Dick Sand não pensou emenvergar e largar a polaca,pequena vela feita de lona muitoforte, a qual teria servido paraajudar o navio a governar melhor.

O “Pilgrim” corria, pois,em árvore seca; o vento queatuava sobre o casco, sobre amastreação e aparelho, bastavapara dar ao patacho excessivavelocidade. Parecia algumasvezes que ele ia saltar das ondas,

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e era para crer que apenas lhestocava de leve. Em tais condiçõesos balanços do navio, produzidospelas enormes vagas, que atempestade levantava, erammedonhos. Havia motivo paratemer que metesse algum grandegolpe de mar pela popa. Asmontanhas de água corriam maisdo que o patacho, ameaçandoengoli-lo se ele não fugissedepressa. O perigo é sempregrande para qualquer navio quecorre com o tempo.

Mas o que se devia fazerpara prevenir esta eventualidade?Não era possível aumentar a

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velocidade do “Pilgrim”, por issoque não se podia largar pano. Erapois indispensável governar bem,tendo cuidado com o leme. DickSand não o abandonava. Tinha-seamarrado pela cintura, a fim denão ser levado por algum golpede mar. Tom e Bat, amarradostambém, estavam prontos a correrem auxílio de Dick. Hercule eActeon, agarrados às abitas,vigiavam pela proa fora.

Mrs. Weldon, Jack, primoBénédict e Nan conservavam-se,por ordem do prático, noscamarotes. Mrs. Weldon teriapreferido vir para a coberta. Mas

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Dick Sand opôs-se formalmente.Seria expor-se sem necessidade.

Todas as escotilhasestavam hermeticamentefechadas. Era de esperar que elasresistissem, se o navioembarcasse grandes golpes demar; mas se por fatalidadecedessem sob o peso das enormesmassas de água, o naviosoçobraria. Felizmente, a cargaestava bem estivada e não sedeslocava, apesar de o patachoinclinar bastante.

Dick Sand reduzira aindamais o número de horas que tinhadestinadas para dormir, e por isso

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Mrs. Weldon, receando que eleadoecesse, obrigou-o a descansaralgum tempo.

Foi também quando Dickestava deitado, na noite de 13para 14 de Março, que ocorreunovo incidente.

Tom e Bat estavam à ré,quando Negoro, que vinha rarasvezes para a popa, se aproximoue quis entabular conversação comeles; porém, Tom e seu filho nãolhe responderam.

De repente, com umbalanço mais forte, Negoro caiu eteria ido para o mar se não setivesse agarrado à bitácula.

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Tom deu um grito,julgando que a bússola se tinhaquebrado.

Dick Sand, que estavaacordado, ouviu o grito, saiu doseu alojamento e correu para apopa.

Negoro estava já de pé,mas conservava na mão o pedaçode ferro que ele tirara debaixo dabitácula, e que escondeu antesque Dick Sand o visse.

Tinha, portanto, Negorointeresse em que a agulharetomasse a sua verdadeiradireção? Sim; porque lhe servia ovento sudoeste que então soprava!

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— Que aconteceu? —perguntou o prático.

— Aconteceu que omaldito cozinheiro do infernocaiu sobre a bitácula! —respondeu Tom.

A estas palavras, DickSand, extremamente agitado,inclinou-se sobre a bitácula...Estava inteira, e a agulha,alumiada pelas duas lanternas,descansava nos dois círculosconcêntricos.

O coração do práticopulsou de novo. A avaria na únicaagulha que havia a bordo seriauma desgraça irreparável.

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Mas o que Dick Sand nãopôde observar foi que, desde quese tirou o pedaço de ferro dabitácula, a agulha retomou a suaposição normal e indicava comexatidão o norte magnético, comodevia ser indicado naquelemeridiano.

Se não se podia fazerNegoro responsável pela queda,que parecia involuntária, DickSand tinha, no entanto, razão parase admirar de que o cozinheiroestivesse àquelas horas na ré donavio.

— Que faz aí? —perguntou Dick Sand.

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— O que quero —respondeu Negoro.

— Que diz? — gritou DickSand, não podendo reprimir ummovimento de cólera.

— Digo — volveu ocozinheiro — que não háregulamento que me proíba depassear aqui à ré.

— Mas faço eu esseregulamento — replicou Dick —,e proíbo-o de voltar aqui.

— Está bem! — respondeuNegoro.

E este homem, sempresenhor de si, fez um gestoameaçador.

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O prático tirou umrevólver da algibeira e disse,dirigindo-se para o cozinheiro:

— Negoro, saiba que esterevólver não me deixa nunca, eque ao primeiro ato deinsubordinação lhe faço saltar osmiolos!

Ao mesmo tempo, Negorosentiu-se irresistivelmente curvaraté ao convés.

Foi porque Hercule lhepôs simplesmente a pesada mãosobre o ombro.

— Capitão Sand —perguntou o gigante —, quer queatire este maroto pela borda fora?

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É bom petisco para os peixes, quesão de boa boca!

— Ainda não —respondeu Dick Sand.

Negoro levantou-se logoque a mão do negro deixou de lhecarregar sobre o ombro, mas,quando passou por diante deHercule, murmurou:

— Negro maldito, tu maspagarás!

Entretanto o ventorondava, ou pelo menos pareciater saltado quarenta e cinco graus;e contudo, coisa notável, queimpressionou o prático, o mar nãoindicava tal mudança. O navio

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seguia ao mesmo rumo, mas ovento e as vagas, em vez de viremdiretamente da popa, vinham deavante da alheta de bombordo —situação esta muito perigosaporque expõe o navio a recebermaus golpes de mar. Dick Sandteve, pois, de arribar quatroquartas para continuar a corrercom o tempo.

Por outro lado, a suaimaginação estava maissobressaltada que nunca.Perguntava a si mesmo se nãohaveria alguma relação entre aqueda de Negoro e a avaria daagulha da câmara? O que tinha

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vindo fazer ali o cozinheiro?Teria ele algum interesse em quea segunda agulha se inutilizasse?Que interesse podia ser esse?Nada disto se explicava. Nãodesejaria Negoro, como todos,chegar o mais cedo possível àcosta da América?

Quando Dick Sand faloudeste incidente a Mrs. Wel-don,esta, conquanto desconfiassetambém de Negoro, até certoponto, não achou motivoplausível para supor umacriminosa premeditação docozinheiro.

Negoro foi, por prudência,

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muito vigiado; não desatendeu asordens do prático, e nunca maisse atreveu a vir à ré, onde,demais a mais, o serviço não ochamava e onde Dingo foraalojado como sentinelapermanente.

Passou a semana sem quea tempestade diminuísse. Obarômetro desceu ainda mais.Desde o dia 14 até 26 nuncahouve um recalmão que seaproveitasse para largar o pano.O “Pilgrim” corria para onordeste com velocidade nãoinferior a duzentas milhas emvinte e quatro horas, e contudo a

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terra não aparecia! E a terra era aAmérica, que se estende comoimensa barreira entre o Atlânticoe o Pacífico, na extensão de centoe vinte graus!

Dick Sand pensava seacaso teria enlouquecido, se teriaainda o sentimento da verdade, senão navegava havia tempo emdireção errada. Não! Não podiaenganar-se tanto. O Sol, apesar decoberto pelas nuvens, nascia-lhesempre pela proa e ocultava-separa o lado da popa! Mas foientão a terra que desapareceu? Aterra da América, sobre a qual oseu navio se ia perder talvez,

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onde estava ela? Ou fosse ocontinente do sul ou o do norte,porque tudo era possível naquelecaos, o “Pilgrim” não deixaria deavistar um ou outro! O queacontecera desde o começo damedonha tempestade? O que eraque acontecia ainda, porque acosta tão desejada, ou fosse asalvação ou a perda, nãoaparecia?

Devia Dick Sand suporque a bússola o enganava, mas oserros não os podia verificardesde que perdera a agulha dacâmara. Assaltou-o este receio,único que explicava a ausência da

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terra!Por isso Dick Sand,

quando não estava ao leme, nãotirava os olhos da carta! Eraporém inútil interrogá-la, porquenão lhe podia ela decifrar oenigma que Negoro engendrara, eque era tão incompreensível paraDick como seria para qualqueroutra pessoa!

No dia 21 de Março, pelasoito horas da manhã, produziu-seum incidente muito grave.

Hercule, que estava devigia à proa, gritou: — Terra!Terra!

Dick Sand saltou para o

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castelo. Hercule, porque não tinhaa vista de marinheiro, não sepoderia ter enganado?!

— Terra? — perguntouDick Sand. — Onde?

— Ali — respondeuHercule, apontando para umponto quase imperceptível nohorizonte, na direção do nordeste.

A custo se ouviam asvozes, entre os rugidos do mar e ozunido do vento.

— Viste a terra? —perguntou o prático.

— Vi — assegurouHercule, afirmando com a cabeça.E estendeu a mão para a amura de

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bombordo.O prático olhava, mas não

avistava nada.Mrs. Weldon, que tinha

ouvido o grito de Hercule, subiupara a coberta, apesar dapromessa em contrário que haviafeito.

— Mistress!... —exclamou Dick Sand.

Mrs. Weldon, não podendofazer-se ouvir, tentou ver a terra eparecia que tinha concentradostodos os sentidos nos seus olhos.Era de crer que a mão de Herculeindicasse mal o ponto dohorizonte que pretendia designar,

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pois nem Mrs. Weldon nem oprático conseguiram ver a terra.

Mas, de repente, DickSand estendeu também a mão.

— Sim! Sim, é terra! —disse então.

Via-se uma espécie depico elevado, aparecendo porentre as nuvens. Os olhos de DickSand, olhos de marinheiro, não oenganavam.

— Enfim! — exclamouele. — Enfim!

Dick agarrava-se à bordacom esforço febril. Mrs. Weldon,segura por Hercule, não deixavade olhar aquela terra quase

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inesperada.A costa formada pela terra

alta que se avistava demoravaentão por bombordo à distânciade dez milhas. Quando aclarou,viu-se melhor por uma aberta dasnuvens. Era talvez algumpromontório do continenteamericano. O “Pilgrim”, emárvore seca, como ia, não podiaorçar, mas não deixaria de sechegar para terra.

Era questão de poucashoras. Seriam, quando isto sepassou, oito horas da manhã; porconsequência era provável queantes do meio-dia o “Pilgrim”

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estivesse próximo da terraavistada.

A um sinal de Dick Sand,Hercule conduziu Mrs. Weldonpara a ré, porque sozinha nãoteria resistido à violência dobalanço de popa à proa.

O prático demorou-seainda à proa, mas por poucotempo, e voltou para o leme, ondeestava o velho Tom.

Descobriu, enfim, a costa,tão tardiamente vista e tãoardentemente desejada! Mas via-acom pavor.

Com efeito, nas condiçõesem que se encontrava o

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“Pilgrim”, isto é, correndo com otempo, a terra por sotavento era onaufrágio com todos os seushorrores.

Passaram duas horas. Opromontório ficava então pelotravés do navio.

Nesta ocasião viu-seNegoro no convés. Olhava para acosta com grande atenção;sacudiu a cabeça como homementendido, e voltou para o seuposto, depois de ter pronunciadoum nome, que ninguém pôdeouvir.

Dick Sand procuravaavistar a costa, que devia

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aparecer por detrás dopromontório.

Passaram mais duas horas.O promontório demorava já pelaalheta, e a costa ainda se não via!

O horizonte, porém, estavamais leve; uma terra alta, como aAmérica, coroada pelacordilheira dos Andes, deviaavistar-se a mais de vinte milhas.

Dick Sand pegou no óculoe correu com ele o horizonte parao lado de leste.

Não viu nada!Às duas horas da tarde os

últimos vestígios da terra tinhamjá desaparecido pela popa do

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“Pilgrim”. Para a proa o óculonão conseguia descobrir ocontorno de uma costa, alta oubaixa.

Um grito escapou então aDick Sand. Abandonou a cobertae desceu precipitadamente àcâmara, onde estava Mrs.Weldon, Jack, Nan e primoBénédict.

— Uma ilha! Era uma ilha!— disse ele.

— Uma ilha, Dick! Masqual pode ser? — perguntou Mrs.Weldon.

— A carta no-lo dirá! —respondeu o prático. E foi buscar

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a carta.— Ela aqui está, Mrs.

Weldon, aqui! — disse ele. —Aquela terra que avistamos nãopode ser senão este ponto perdidono meio do Pacífico! Não podeser senão a ilha de Páscoa. Nãohá outra nesta altura.

— E já nos fica para a ré?— perguntou Mrs. Weldon.

— Fica pela popa, muito abarlavento de nós!

Mrs. Weldon olhava commuita atenção para a ilha dePáscoa, que na carta serepresentava por um ponto quaseimperceptível.

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— E a que distância está ailha da costa da América?

— A trinta e cinco graus.— Que representam?...- — Mais de duas mil

milhas.— Parece pois que o

“Pilgrim” não tem andado, porisso que estamos tão afastados docontinente!

— Mrs. Weldon —respondeu Dick Sand, passando amão pela fronte, como paraconcentrar as suas ideias -, nãosei... não posso explicar esteincrível atraso. Não sei, repito,não o posso explicar, salvo se as

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indicações da agulha têm sidoerradas! Mas esta ilha não podeser outra senão a ilha de Páscoa,porque nós corremos à popa aorumo do nordeste; e devemos dargraças aos céus por nos terempermitido corrigir a nossaderrota. Sim, é a ilha de Páscoa!Está ainda a duas mil milhas dacosta! Sei finalmente para ondenos impeliu a tempestade, e,quando abonançar, aproximar-nos-emos do continenteamericano com probabilidades denos salvarmos! Agora já o nossonavio não está perdido naimensidade do oceano Pacífico!

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A confiança de que davamostras o prático comunicou-se atodos que o ouviam, até mesmo aMrs. Weldon. Parecia que aquelapobre gente, enfim, ao cabo detodos os seus trabalhos, e que o“Pilgrim”, achando-se abarlavento do porto do seudestino, só aguardava ocasiãopropícia para entrar!

A ilha de Páscoa — overdadeiro nome é Valhou — ,descoberta por David em 1686,visitada por Cook e La Pérouse,está na latitude sul de 27° e 112°na longitude este. Se o patachofora levado de mais de quinze

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graus para o norte, eraevidentemente devido àtempestade do sudoeste, diante daqual fugia.

O “Pilgrim” estava,portanto, a duas mil milhas dacosta; contudo, sob a ação dovento tão forte, devia em menosde dez dias chegar a qualquerponto do litoral da América doSul.

Não seria provável que ovento abonançasse, e que sepudesse largar algum panoquando se reconhecesse a terra?

Tal era a esperança deDick Sand. Dizia ele que o

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temporal, que durava haviamuitos dias, acabaria cansado; eagora que, pela marcação da ilhade Páscoa, conhecia exatamente asua posição, tinha razões paraacreditar que, senhor do navio,saberia conduzi-lo a lugar seguro.

O conhecimento daqueleponto isolado no meio do mar,como se fosse um favor daProvidência, dera confiança aDick Sand; se continuava anavegar ao capricho do temporal,que ele não podia dominar, aomenos não navegava às cegas.

O “Pilgrim”, porque erasolidamente construído e bem

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aparelhado, pouco sofreu com oschoques impetuosos do mar. Asavarias reduziam-se unicamente àperda do velacho e da vela deestai — perda que aliás seriafácil de reparar. Não abrira águanem pelo fundo nem pelos altos.As bombas funcionavamotimamente. A este respeito nãohavia nada a recear.

Restava, pois, ointerminável temporal, sem darindício de moderar os seusfurores. Se Dick Sand podia como seu navio lutar contra atormenta, não podia mandarabonançar o vento, abater o mar e

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serenar o céu. A bordo era ele“senhor depois de Deus”; foradali, só Deus dominava os ventose as ondas.

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CAPÍTULO XIII

TERRA! TERRA!

A confiança de Dick Sandia ser em parte justificada. No diaseguinte, 27 de Março, a colunade mercúrio elevou-se no tubobarométrico. A oscilação não foirápida, nem muito grande, algunsdécimos apenas, mas aprogressão parecia continuar. Otemporal diminuía evidentemente,e, se o mar continuavaexcessivamente alteroso, notava-

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se que o vento enfraquecia àproporção que rondava para ooeste.

Dick Sand não podiapensar em largar o pano. A maispequena vela teria sido levada;contudo esperava que antes devinte e quatro horas poderia içara polaca.

Durante a noite o ventoabonançou muito e o navio foimenos sacudido pelos balanços,que pareciam desligá-lo.

Os passageiroscomeçaram a reaparecer nacoberta. Já não havia risco deserem levados pelo mar.

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Mrs. Weldon foi aprimeira que saiu da câmara,onde Dick Sand por prudência aobrigou a estar enquanto durou otemporal. Veio conversar com oprático, que uma vontadesobrenatural tornara apto pararesistir a tantas fadigas. Magro,pálido, apesar de queimado,devia sentir-se fraco, pelaprivação do sono, tão necessáriona sua idade. Contudo, aquelaconstituição robusta a tudoresistia. Talvez que mais tardeviesse a pagar tantas provações!Não era, porém, a ocasião paradesanimar.

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Dick Sand conhecia bemisso e Mrs. Weldon veioencontrá-lo mais enérgico quenunca.

Demais, Sand tinhaconfiança em si, e a confiança nãose ordena, mas domina.

— Dick, meu filho, meucapitão! — disse Mrs. Weldon,apertando a mão do prático.

— Ah! Mrs. Weldon —exclamou Dick Sand, sorrindo —,desobedece ao seu capitão! Deixaa câmara e vem para a coberta,apesar de todos os pedidos queele lhe fez!

— Sim, desobedeço-te —

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-tornou Mrs. Weldon —, porquepressinto que a tempestadeacalmou ou vai acalmar!

— Acalma com efeito.Não se engana. Desde ontem queo barômetro não desce e o ventoabonança; por isso acredito queas nossas privações já passaram.

— O céu te ouça, Dick.Tens sofrido muito, meu filho! Tu,tens feito...

— A minha obrigação,Mrs. Weldon.

— Mas vais enfimdescansar?

— Descansar! —respondeu o prático. — Não

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tenho necessidade de descansar,Mrs. Weldon! Graças a Deus,sinto-me bem, e já agora éindispensável levar isto ao fim.Nomeou-me capitão, sereicapitão até desembarcar todos ospassageiros do “Pilgrim”.

— Dick — tornou Mrs.Weldon —, meu marido e eununca esqueceremos o que tufizeste.

— Foi Deus quem tudo fez— afirmou Dick Sand. — Tudo!

— Dick, repito-te, pela tuaenergia moral e física, mostraste-te homem e digno de comandar, edentro de pouco tempo, logo que

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concluíres os teus estudos — meumarido não me há de contrariar—, comandarás os navios da casaJames W. Weldon!

— Eu... Eu!... — exclamouDick Sand, cujos olhos sevelaram de lágrimas.

— Dick — prosseguiuMrs. Weldon —, tu já eras nossofilho adoptivo; agora és mais,porque és o salvador de tua mãe edo teu irmão Jack! Meu queridoDick, abraço-te por meu marido epor mim!

Desejaria a animosasenhora não se comover quandoapertou o prático nos seus braços,

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mas o seu coração trasbordava.As impressões de reconhecimentoque Dick Sand sentia, qual é apena que poderá descrevê-las?!Perguntava a si mesmo se dar avida pelos seus benfeitores erabastante, e aceitava de antemãotodas as provações que o futurolhe tivesse reservadas.

Depois desta conversa,Dick Sand sentia-se maisfortalecido. Fosse o vento maisbrando, de modo que pudesselargar algum pano, e não teriadúvida de dirigir o navio paraqualquer porto, onde finalmentedesembarcaria sãos e salvos

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todos aqueles que conduzia a seubordo.

A 29, tendo o ventodiminuído, Dick Sand fez largar otraquete ao velacho, a fim deaumentar a velocidade do“Pilgrim”, mantendo-o a navegar.

— Vamos, Tom, vamos! —gritou Dick, logo que subiu para acoberta, ao amanhecer. — Tenhonecessidade de vocês.

— Estamos todos prontos,capitão Sand — respondeu ovelho Tom.

— E prontos para tudo —acrescentou Hercule. — Nãohavia nada a fazer enquanto durou

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o temporal; parece-me que osbraços se iam enferrujando!

— Se soprasses com a tuagrande boca — disse Jack —,aposto que teria tanta força comoo vento.

— Isso é boa ideia, Jack!— respondeu Dick Sand rindo. —Quando houver calma, Hercule háde soprar!

— Porque não, Sr. Dick!— replicou o negro, enchendo asbochechas como se fosse umBóreas gigante.

— Agora — continuou oprático —, vamos começar porenvergar o velacho de

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sobresselente, porque o quetínhamos na verga foi levado pelatormenta. Não é difícil, mas énecessário que se faça.

— E há de fazer-se —asseverou Acteon.

— Posso ajudar? —perguntou Jack, sempre dispostopara a manobra.

— Sim, Jack — respondeuo prático. — Tu vais para a rodado leme com Bat, para o ajudaresa governar.

É supérfluo dizer que Jackficou cheio de orgulho por sermoço do governo a bordo do“Pilgrim”.

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— Mãos à obra — tornouDick Sand —, e, tanto quanto forpossível, não nos exponhamos.

Os negros, guiados peloprático, começaram o trabalho.Envergar uma gávea ofereciadificuldades para Tom e para osseus camaradas. Primeiro haviade içar-se a vela enrolada, edepois se fixaria na verga.

Porém, Dick Sand -mandou com tal acerto e foi tãobem obedecido que, depois deuma hora de trabalho, a velaestava envergada, caçada e içadanos segundos rizes.

O traquete, que pôde ser

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ferrado antes de o temporal sedeclarar, bem como a vela deestai, largaram-se semdificuldade apesar da força dovento.

Enfim, naquele dia, às dezhoras da manhã, já o “Pilgrim”navegava com o traquete, velachoe vela de estai.

Dick Sand não julgaraprudente largar mais pano. Asvelas, que levava largas,garantiam, enquanto o vento nãoabonançasse mais, singraduras deduzentas milhas; era quantobastava para chegar à costa daAmérica em menos de dez dias.

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O prático estavasatisfeitíssimo quando voltoupara o leme e retomou o seuposto, depois de ter agradecido aJack, o moço de governo do“Pilgrim”. Já não navegava àmercê do mar. Ia em boa rota.Compreendem a alegria de DickSand todos aqueles que conhecemas coisas do mar.

No dia seguinte as nuvenscorriam ainda com a mesmavelocidade, deixando, porém,grandes claros, por onde os raiosdo Sol desciam até à superfíciedas águas. O “Pilgrim” ainda devez em quando embarcava alguma

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água.Era magnífica aquela luz

vivificante! Algumas vezeseclipsavam-na grandes massas devapores, que caminhavam paraleste, depois aparecia de novo,tornava a desaparecer ainda; maso tempo melhorava sempre.

Abriram-se as escotilhaspara ventilar o interior do navio.O ar salubre penetrava no porão,na câmara e no alojamento datripulação. O pano, que estavaúmido, estendeu-se a enxugarsobre as antenas. Baldeou-se acoberta. Dick Sand não queriaque o seu navio fundeasse sem ir

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limpo. Algumas, mas poucashoras, empregadas todos os diasneste serviço, bastavam, e semcansar a tripulação, para chegarcom o navio asseado.

Conquanto o prático nãotivesse barquinha, tinha contudo aprática bastante de estimar, pelavista, o andamento do navio. Nãoduvidava pois avistar a terradentro de sete dias, e destaopinião fez ele participar Mrs.Weldon, depois de lhe termostrado na carta a posiçãoprovável do “Pilgrim”.

— A que ponto da costaaportaremos, meu caro Dick? —

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perguntou ela.— A este, Mrs. Weldon —

respondeu o prático, indicando alonga faixa da costa que seestende do Peru ao Chile. — Nãosei calcular melhor. Aqui está ailha de Páscoa, que deixamos aoeste, e pela direção do vento,que foi constante, concluo quemarcaremos a costa a leste. Osancoradouros são em grandenúmero por toda esta costa, masprecisar aquele que avistaremosnão me é possível agora.

— Muito bem, Dick, sejaqual for o ponto que se avistar,será visto com alvoroço!

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— Decerto, Mrs. Weldon,e nele encontrará meios de seguirimediatamente para SãoFrancisco. A Companhia deNavegação do Pacífico tem umserviço muito bem organizado emtoda a costa, e os seus vaporesfazem escala por todos os portosprincipais. Ser-lhe-á, pois, muitofácil, Mrs. Weldon, tomarpassagem para a Califórnia.

— E tu tencionas levar o“Pilgrim” para São Francisco? —perguntou Mrs. Weldon.

— Sim, depois de a terdesembarcado. Se encontrarmosum oficial e tripulantes, iremos a

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Valparaíso descarregar, como eraintenção do capitão Hull. Depoisvoltaremos para o nosso porto deamarração. Mas isto retardá-la-ámuito, e apesar de eu ter muitapena de me separar de Mrs.Weldon...

— Bem, Dick — tornouMrs. Weldon. — Veremos maistarde o que convém fazer.Parecia-me que receavas osperigos da terra?

— E são para temer comefeito — respondeu o prático —,mas espero encontrar naviosnessas alturas, e admiro-me atéde ainda os não ver. Um só que

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passasse bastaria;comunicávamos com ele e delesaberíamos qual era a nossaposição, o que facilitaria achegada do “Pilgrim” à terra,

— Não há práticos nestacosta? — perguntou Mrs. Weldon.

— Devem encontrar-se —respondeu Dick Sand —, masmuito mais perto da terra. Énecessário aproximarmo-nosmais.

— E se não encontrarmospilotos?... — tornou Mrs.Weldon, insistindo, para sabercomo o prático resolveria asdificuldades que se

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apresentassem.— Em tal caso, Mrs.

Weldon, ou o tempo se conservaclaro, o vento regular, e eucosteio a terra, muito perto, paradescobrir porto seguro, ou ovento refresca, e então...

— Então? Que farás tu,Dick?

— Nas condições em queestá o “Pilgrim”, uma vezchegado para a terra, seria difícilfugir para o mar.

— Mas que farás tu messecaso? — repetiu Mrs. Weldon.

— Ver-me-ei obrigado aencalhar — declarou o prático,

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cuja fronte se anuviou uminstante. — Ah! Seria cruelextremidade. Deus no-la afaste!Mas repito, Mrs. Weldon, aaparência do céu estátranquilizadora e é impossívelque um navio ou um barco depilotos nos não veja! Portanto,não desanimar! Levamos a proa àterra, havemos de avistá-la dentrode pouco tempo!

Dar com o navio à costa édura extremidade, a qual o maisvalente marinheiro não encarasem pavor! Por isso, Dick Sandnão queria pensar em tal,enquanto lhe sorrissem algumas

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probabilidades de escapar aoperigo. Durante alguns dias houvede novo alternativas no estado daatmosfera, que inquietaram muitoo prático. O vento mantinha-semuito fresco, e as oscilações dacoluna barométrica indicavamque ele tendia a refrescar. DickSand pensava que talvez tivesseainda de correr em árvore seca.Tinha tão grande empenho deconservar largo, pelo menos ovelacho, que resolveu não meteresta vela dentro, enquanto nãotivesse risco de a perder. Maspara garantir a segurança dosmastros fez tesar as enxárcias e

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os brandais. Importava nãoagravar a situação, que setornaria perigosíssima se o“Pilgrim” desarvorasse.

Uma ou duas vezestambém, a subida do barômetrofez recear que o vento mudasse ese fixasse para leste. Seria entãonecessário navegar de bolina.

Novos motivos deansiedade para Dick Sand. Quefaria ele tendo o vento contrário?Bordejar? Mas, se a tal fosseobrigado, que de delongas eriscos de ser arrastado para maislonge!

Estes receios, felizmente,

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não se realizaram. O vento,depois de ter variado durantealguns dias, soprando, ora donorte, ora do sul, fixou-se nooeste; mas era sempre vento duro,que fatigava muito a mastreação.

Chegara o dia 5 de Abril.Mais de dois meses se tinhampassado desde a partida do“Pilgrim” da Nova Zelândia.Durante vinte dias, foram osventos contrários e as calmas quelhe retardaram a marcha; depoisachou-se em condiçõesfavoráveis para seguirrapidamente para o seu destino.Enquanto durou o temporal, a

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velocidade do patacho foi grande.Dick Sand não a estimava emmenos de duzentas milhas por dia,termo médio. Por que razão nãose avistava ainda a costa? Fugiriaela diante do “Pilgrim”? Erainexplicável.

E, contudo, nenhuma terrase avistava ainda no horizonte,apesar de um dos negros estarsempre de vigia nos vaus dejoanete.

Muitas vezes Dick Sandsubia também, e lá em cima, deóculo assestado, procuravadescobrir qualquer aparência demontanhas. A cordilheira dos

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Andes é muito elevada; era poisacima das nuvens que se deviaprocurar algum pico queemergisse das brumas dohorizonte.

Mais de uma vez Tom e osseus companheiros foramenganados por falsos indícios deterras. Eram vapores, afectandoformas caprichosas, que selevantavam no último plano.Aconteceu até que os negrosteimavam nas suas afirmações,mas, passado tempo, reconheciamque tinham sido enganados poruma ilusão de óptica. A supostaterra deslocava-se, mudava de

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forma e por fim desfazia-secompletamente.

A 6 de Abril, porém, nãohouve dúvida, não a podia haver.Eram oito horas da manhã. DickSand subira aos vaus de joanete.Nesse momento as névoascondensavam-se sob a influênciados raios solares, e o horizonteestava limpo.

Da boca de Dick Sandescapou-se, enfim, o grito tãoansiosamente esperado.

— Terra! Terra pela proa!A este grito todos

correram para a coberta: Jack,curioso como todas as crianças

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da sua idade; Mrs. Weldon, cujoscuidados cessavam com achegada; Tom e os seuscompanheiros, que iam finalmentepisar de novo o solo da América,e até primo Bénédict, queesperava fazer uma rica coleçãode novos insetos.

Só Negoro não apareceu.Todos viram então o que DickSand já tinha visto, unsdistintamente, outros com osolhos da imaginação.

O prático, habituado comoestava a observar o horizonte nomar, não se iludia, e uma horadepois verificou-se que não se

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enganara.À distância de cerca de

quatro milhas para o lado deleste, desenhava-se uma costabaixa, ou pelo menos tinha essaaparência. Devia dominá-la a altacordilheira dos Andes, mas aúltima zona de nuvens nãodeixava ver as cumeadas dasmontanhas.

O “Pilgrim” corria direta erapidamente sobre a costa, a qualse estendia a olhos vistos.

Duas horas depois distavadela apenas três milhas. Estaparte da costa terminava aonordeste por um cabo bastante

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elevado, que encobria umapequena enseada. Pelo contrário,para o sudoeste alongava-se,formando estreita língua de terra.

Raras árvores coroavamrochas escarpadas e pouco altas,as quais se destacavam entãosobre o céu, mas era evidente,pelo caráter geográfico do país,que a elevada cadeia dos Andesdevia formar o fundo do quadro.

Nenhuma habitação,nenhum porto, nenhumaembocadura de rio que pudesseservir de refúgio aos navios.

O “Pilgrim” corria direitopara a terra. Com o pano reduzido

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que levava e vento de travessia,Dick Sand não podia orçar com onavio.

Na proa floreava largafaixa de recifes, sobre os quais omar estendia alvos lençóis deespuma. Viam-se as ondas,desenrolando-se, chegarem atémeia altura das rochas. A ressacadevia ser enorme.

Dick Sand, depois de estarno castelo a observar a costa,voltou para a ré, silencioso, e foipara o leme.

O vento refrescava mais.O patacho estava apenas a umamilha da terra.

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Dick Sand viu então umaespécie de pequena angra, na qualresolveu abicar, mas antes dechegar a ela tinha de atravessaruma linha de recifes, entre osquais seria difícil descobrir umcanal. A rebentação indicava quea água saltava por toda a parte.

Dingo, que naquelaocasião andava na coberta, devante para ré, correu para a proae, vendo a terra, ladroutristemente. Dir-se-ia que o cãoconhecia o litoral e que o seuinstinto lhe recordava tristeslembranças. Negoro ouviu-o, semdúvida, porque um irresistível

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sentimento o arrastou para fora dacozinha, e, ainda que receasse ocão, veio encostar-se à amurada.

Felizmente para Negoro,Dingo, cujos latidos sempretristes se dirigiam para a terra,não o via.

Negoro olhava para arebentação sem dar mostras desusto. Mrs. Weldon, que oobservava, julgou ver que Negorocorara e que as suas feições secontraíram.

Conheceria Negoro aqueleponto do continente para onde osventos tinham levado o“Pilgrim”?

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Dick Sand neste momentodeixou o leme, que entregou aTom. Viu ainda a pequena angraque se abria, pouco a pouco;depois, dirigindo-se para Mrs.Weldon, disse-lhe com voz firme:— Perdi toda a esperança deencontrar refúgio! Antes de meiahora o “Pilgrim” estará sobre osescolhos. É inevitável dar àcosta. Não levarei o meu navio aporto de salvamento! Souobrigado a perder o patacho paraa salvar; mas, Mrs. Weldon, entrea sua salvação e a do navio, nãohesito!

— Fizeste tudo quanto

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estava ao teu alcance, Dick? —perguntou Mrs. Weldon.

— Tudo! — afirmou oprático.

E imediatamente começouos preparativos necessários paraencalhar.

Antes de tudo forampostos, a Mrs. Weldon, Jack,primo Bénédict e Nan, cintos desalvação. Dick Sand, Tom e osnegros, como hábeis nadadores,prepararam-se para ganhar a terraa nado, se acaso tivessem de selançar ao mar.

Hercule deviaparticularmente tomar conta em

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Mrs. Weldon. O práticoencarregava-se de Jack. PrimoBénédict, muito tranquilo,apareceu na coberta trazendo atiracolo a sua caixa deentomologista. O práticorecomendou-o a Bat e aAgostinho. Quanto a Negoro, oseu aspecto, singularmentesereno, dizia claramente que elenão necessitava do auxílio deninguém.

Dick Sand, por supremaprecaução, mandou pôr sobre ocastelo doze barris docarregamento, cheios de óleo debaleia.

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O óleo, lançado ao marexatamente no momento em que o“Pilgrim” estivesse sobre aarrebentação, devia acalmá-lopor algum tempo, lubrificando,por assim dizer, as moléculas daágua. Esta operação facilitariatalvez a passagem do navio entreos recifes.

Dick Sand nada queriadesprezar de quanto pudesseconcorrer para a salvação detodos.

Tomadas as necessáriasprecauções, o prático retomou oseu lugar ao leme.

O “Pilgrim” estava a duas

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amarras da costa, isto é, quase atocar nas pedras; o costado deestibordo banhava-se na escumabranca da ressaca. A cadamomento o prático esperavasentir a quilha do navio bater emalgum rochedo do fundo.

De repente, Dick Sandpercebeu, pela mudança na cor daágua, que um estreito canalpassava entre os recifes. Erapreciso sem hesitar seguiratrevidamente por ele, a fim de irencalhar o mais perto possível dapraia.

Não hesitou. Com umaguinada, meteu o navio pelo

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estreito e sinuoso canal. Nestelugar o mar estava ainda maisfurioso e as ondas ressaltavampara a coberta.

Os negros estavam naproa, próximo dos barris,esperando as ordens do prático.

— Despejem o óleo!Despejem! — gritou Dick Sand.Sob a ação do óleo, que sedeitava com abundância, o marsossegou como por encanto, maspronto a tornar-se mais furioso,instantes depois.

O “Pilgrim” deslizourapidamente sobre as águaslubrificadas e pôs a proa direita

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para a terra.Subitamente sentiu-se um

choque. O navio, levantado poruma onda formidável, tinhaencalhado, e a mastreação caiu,sem ferir ninguém.

O casco do “Pilgrim”,aberto pelo choque, foi invadidopela água, com grande violência.Mas a praia estava a menos demeia amarra, e uma fiada depedras pequenas e negras davafácil passagem.

Assim, dez minutosdepois, todos que o “Pilgrim”trazia a bordo tinhamdesembarcado junto das rochas.

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CAPÍTULO XIV

O QUE CONVINHAFAZER

Em seguida a uma viagemcontrariada ao princípio porcalmas e favorecida depois pelosventos dos quadrantes noroeste esudoeste, a qual durou setenta equatro dias, o “Pilgrim” deu àcosta.

Contudo, Mrs. Weldon eos seus companheiros deramgraças à Providência logo que se

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encontraram salvos. Foi comefeito sobre um continente e nãonuma das funestas ilhas daPolinésia que a tempestade oslançou. A repatriação dosnáufragos, qualquer que fosse oponto da América do Sul em queestivessem, não devia apresentargrandes dificuldades.

O “Pilgrim” estavacompletamente perdido. Eraapenas um casco de pouco ounenhum valor, que a rebentaçãodesfaria dentro de poucas horas.Seria impossível salvar algumacoisa. Se Dick Sand não teve oprazer de levar o navio intato ao

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seu dono, ao menos aqueles quevinham a bordo estavam sãos esalvos em terra hospitaleira, eentre eles a mulher e o filho deJames Weldon.

Pelo que dizia respeito aoconhecimento do lugar onde opatacho naufragou, assunto eraeste de não fácil resolução. Seria,como supunha Dick Sand, a costado Peru? Talvez, porque DickSand sabia, pelas marcações quefez na ilha de Páscoa, que o“Pilgrim” tinha sido levado parao nordeste pela ação dos ventos etambém pela influência dascorrentes da zona equatorial.

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Dos quarenta e três grausde latitude, chegara até aosquinze. Era, pois, muitoimportante fixar bem e o maisdepressa possível o ponto dacosta em que o patacho seperdera. Aceitando-se como certoque aquela costa era a do Peru, osportos, as aldeias ou as vilas nãofaltavam, e, consequentemente,seria fácil alcançar qualquerponto habitado. A parte do litoralonde o navio naufragara pareciade todo deserta.

Era uma estreita praia deareia, semeada de pedras escuras,da qual se erguia a rocha

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escarpada e cortada por sulcosirregulares. Aqui e ali ladeirassuaves davam acesso para aeminência.

Do lado do Norte, talvez aum quarto de milha do lugar donaufrágio, abria-se a embocadurade um pequeno rio, que se nãoavistou do mar. Nas suas margenscresciam numerosos rizóforos,espécie de mangueirasessencialmente distintas das suascongêneres da índia.

No alto do rochedo —viu-se pouco depois — havia umaespessa floresta, cujos tufos deverdura, ondulantes à vista, se

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estendiam até às montanhas queformavam o fundo do quadro. Seprimo Bénédict fosse botânico,quantas árvores novas para eleteriam provocado a suaadmiração!

Viam-se as altasadansônias, árvores a queerradamente se tem atribuídolongevidade extraordinária e cujacasca se assemelha à sieniteegípcia, os tamarindos,pimenteiras de espécie rara, ecentenas de outros vegetais, queos Americanos não estãohabituados a ver na região borealdo novo continente.

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Mas — circunstânciamuito notável — entre estasvárias espécies florestais não seencontrou um exemplar danumerosa família das palmeiras,que conta mais de mil espécies,profusamente espalhadas por todaa superfície do Globo.

Sobre a praia esvoaçavammuitas aves, soltando gritosestrídulos, a maior parte dasquais, pertencentes às diferentesvariedades de andorinhas, tinhamplumagem negra com reflexosazulados e a parte superior dacabeça de cor ruiva-acastanhada.Aqui e ali viam-se algumas

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galinhas do mato. Mrs. Weldon eDick Sand notaram que aquelesdiversos voláteis não pareciammuito selvagens. Deixavamaproximar-se-lhes sem nadarecearem. Não teriam aindaaprendido a temer o homem eseria por acaso aquela costa tãoabandonada que a detonação dasarmas de fogo nunca ali se tivesseouvido?

Na orla dos escolhospasseavam alguns pelicanos daespécie do pelicanominori, osquais se entretinham enchendo depeixes o saco que têm namandíbula inferior.

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Algumas gaivotas, vindasdo mar, giravam em roda do“Pilgrim”.

Estas aves eram os únicosseres vivos que pareciamfrequentar aquele lugar,excetuando, porém, grandenúmero de insetos, que primoBénédict decerto descobriria.Jack desejava muito saber o nomedo país em que estava, mas asaves e os insetos não o podiamdizer; para lhe responder seria,pois, necessário perguntá-lo aosindígenas. Não os havia ou não seviam. Tão-pouco se encontravamsinais de habitação, cabana ou

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choça, nem ao norte, para além dopequeno rio, nem para o sul, nemfinalmente para a parte superiorda rocha, entre as árvores daespessa floresta. Não se via no arum fumozinho sequer. Nem umsinal, vestígio ou pegada,indicava que aquela porção docontinente fosse visitada porseres humanos.

Dick Sand estava cada vezmais surpreendido.

— Onde estamos, ondepodemos estar? — perguntavaele. — Pois que não há aquininguém?

Ninguém, na verdade, e

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seguramente, se algum indígena seaproximasse, Dingo tê-lo-iasentido e anunciado ladrando. Ocão percorria a praia de um paraoutro lado, com o focinholevantado, a cauda caída,rosnando surdamente, e muitoextraordinário no aspecto, nãodenunciando, porém, aaproximação de homens ou deanimais.

— Dick, olha para Dingo!— advertiu Mrs. Weldon.

— É verdade, tem algumacoisa de extraordinário —respondeu o prático. — Pareceque procura um rasto.

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— Muito extraordinário, éverdade! — murmurou Mrs.Weldon.

Depois continuou:— Que faz Negoro?— Faz o mesmo que Dingo

— respondeu Dick Sand. — Andade um para outro lado!... Aquiestá livre. Não tenho o direito delhe dar ordens. O seu serviçoterminou quando acabou o“Pilgrim”!

Efetivamente, Negoroandava sobre a areia, voltava-se,contemplava a praia e as rochas,como quem procura reunir e fixartodas as suas lembranças.

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Conheceria ele aquele sítio?Provavelmente recusar-se-ia aresponder a esta pergunta se lhafizessem. O melhor era nãoatender àquela personagem tãopouco sociável. Dick vira-oencaminhar-se para o lado dopequeno rio, e, logo quedesapareceu na curva da rocha,nunca mais pensou nele.

Dingo ladrou quando ocozinheiro chegou à praia, mascalou-se pouco depois.

Era ocasião de pensar nomais instante. O que urgia maisera escolher um refúgio, umabrigo qualquer onde pudessem

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provisoriamente dormir e comer.Depois se pensaria e decidiria oque mais convinha fazer.

A alimentação não davacuidado. Sem falar dos recursosque a região devia oferecer, adespensa do navio ficaradespejada em proveito dosnáufragos. O mar, aqui e ali, porentre os escolhos que a vazantedescobriu, arrojara grandequantidade de objetos. Tom e osseus companheiros tinhamapanhado barricas de bolacha,latas de conservas alimentícias ebarris de carne salgada, que aágua não havia ainda avariado. A

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alimentação do pequeno grupoestava pois garantida por maistempo que o necessário parachegar a qualquer aldeia oupovoação. Sob este ponto de vistanada havia a recear.

Os diversos salvadosestavam postos em sítio onde nãochegava a preia-mar.

Não faltava a água doce.Em primeiro lugar, Dick Sandteve o cuidado de mandarHercule buscar uma pequenaquantidade de água. Mas ovigoroso negro trouxe aos ombrosuma quartola de pura e boa águado rio, que na baixa-mar ficava

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perfeitamente potável.Lume, se fosse necessário,

não faltaria; havia nasproximidades madeira seca eraízes de mangueiras, parafornecer o combustível de que secarecesse. O velho Tom, fumadorinsaciável, tinha consigo, emcaixa hermeticamente fechada,uma porção de isca, e, quando sequisesse, petiscaria fogo aindaque fosse com os sílex da praia.

Só faltava encontrar agruta onde se abrigasse o pequenogrupo, para o caso de serconveniente descansar antes de sepôr a caminho.

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Foi Jack quem encontrou oabrigo que se procurava.Brincando junto à rocha, numacurva que ela fazia, Jackdescobriu uma dessas cavernas,limpas e nuas, que o mar cava emrochedos, quando as ondas,engrossadas pela fúria dastempestades, rebenta nas costas.

A criança estavasatisfeitíssima. Chamou a mãe,dando gritos de alegria, emostrou-lhe com ar de triunfo asua descoberta.

— Muito bem, .meu Jack!— disse Mrs. Weldon. — Sefôssemos Robinsons, destinados a

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viver largo tempo sobre estapraia, não nos esqueceríamosdecerto de dar o teu nome à tuagruta.

A gruta tinha dez pés deprofundidade e outros tantos delargura; mas para Jack era umacaverna enorme; bastava porémpara abrigar os náufragos, e Mrs.Weldon e Nan viram comsatisfação que estavaperfeitamente seca. Por ser quartocrescente, as marés eram mortas;por consequência, a água nãochegaria à base do rochedo emenos ainda à gruta. Era, pois,quanto bastava para descansar

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algumas horas.Dez minutos depois

estavam todos estendidos sobreum tapete de vareques. Negoroveio também juntar-se ao grupo etomar parte na refeição, que seriafeita em comum. IndubitavelmenteNegoro não julgara convenienteaventurar-se só pela espessafloresta, por entre a qual se sumiaaquele sinuoso rio.

Era uma hora da tarde.Carne de conserva, bolacha, águadoce com algumas gotas de rum,de uma pequena quartola que Batsalvou, foi o jantar.

Negoro comeu, mas não

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tomou parte na conversação, naqual se discutiam as medidas queexigia a situação dos náufragos.Sem contudo o parecer, prestoumuita atenção e por certoaproveitou do que ouviu.

Durante este tempo Dingo,que não fora esquecido, guardavaa gruta. Podia-se estar ali semreceio. Nenhum ser vivoapareceria na praia sem que o fielanimal desse aviso.

Mrs. Weldon, que tinhaJack reclinado sobre os braços equase adormecido, disse,dirigindo-se a Dick Sand:

— Dick, agradeço em

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nome de todos a dedicação quepor nós tens mostrado, mas aindate resta alguma coisa que fazer.Serás o nosso guia em terra, comofoste o nosso capitão a bordo.Tens toda a nossa confiança. Fala!Que devemos fazer?

Mrs. Weldon, a velha Nan,Tom e os seus companheirosolhavam para o jovem prático.Negoro também olhava para elecom extraordinária insistência.Evidentemente, a resposta deDick Sand interessava-oparticularmente.

Depois de refletir umpouco, Dick Sand respondeu: —

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Mrs. Weldon, o que mais importaé saber, antes de tudo, em quelugar estamos. Julgo que o nossonavio veio dar com a terra naparte do litoral da América queforma a costa peruana. Os ventose as correntes trouxeram-no atéesta latitude. Mas estamos nós naprovíncia meridional do Peru,isto é, na parte menos habitadaque confina com os Pampas?Talvez. Tenho até mais razão paracrer em tal, vendo esta praiadeserta e que deve ser poucofrequentada. Neste caso, éprovável que estejamos muitodistantes da mais próxima

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aldeola, o que será muito penoso.— Mas que devemos

fazer? — repetiu Mrs. Weldon.— A minha opinião é que

se não deixe este abrigo semestarmos bem certos da nossasituação. Amanhã, depois determos repousado esta noite, doisde nós irão à descoberta. Os queforem tratarão, sem se afastarmuito, de encontrar algunsindígenas e de obter deles ospossíveis esclarecimentos, depoisdo que voltarão para esta gruta. Éimpossível que num raio de dezou doze milhas não se encontreninguém.

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— Mas temos de nosseparar! — objetou Mrs. Weldon.

— Parece-me necessário— respondeu o prático. — Masse nada pudermos saber, se aregião for completa-mentedeserta, então veremos o que serámelhor fazer.

— E quem deve ir àdescoberta? — perguntou Mrs.Weldon depois de refletir.

— É o que resta decidir— redarguiu Dick Sand. — Pensocontudo que Mrs. Weldon, Jack, oSr. Bénédict e Nan não devemsair desta gruta. Bat, Hercule,Acteon e Agostinho ficarão

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também, enquanto Tom e euiremos ver se alguma coisadescobrimos. Negoro, semdúvida, prefere ficar aqui? —acrescentou Dick Sand, olhandopara o cozinheiro.

— Provavelmente fico —respondeu Negoro, que não erahomem que se obrigasse a muito.

— Levaremos Dingoconosco — disse ainda o prático.— Ser-nos-á útil durante a nossaexploração.

Dingo, ouvindo pronunciaro seu nome, apareceu à entrada dagruta, e parecia aprovar porligeiros latidos os projetos de

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Dick Sand.Mrs. Weldon ficou

pensativa logo que ouviu aproposta do prático. Custava-lhemuito a ideia da separação, aindaque por pouco tempo. Nãopoderia acontecer que as tribosíndias, que frequentavam olitoral, tanto ao norte como aosul, soubessem do encalhe do“Pilgrim”, e, no caso de viremalguns ladrões para roubar osdespojos do naufrágio, não seriamelhor que todos estivessemreunidos para os repelir?

Esta objeção merecia serrealmente discutida.

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Caiu, porém, ante osargumentos de Dick Sand, o qualobservou que os índios daAmérica não se deviam confundircom os selvagens da África ou daPolinésia, e que provavelmente assuas agressões não seriam pararecear. Mas internarem-senaquele território sem saber a queprovíncia da América do Sulpertencia, nem a que distância seestava da povoação maispróxima, era exporem-se a -muitas fadigas. A separação tinhainconvenientes, sem dúvida, masmuito menores do que caminharcegamente por entre florestas, que

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se prolongavam até à base dasmontanhas que se viam lá -muitoao longe.

— Não julgo que estaseparação dure muito, e ousoafirmar que será por poucotempo. Se no fim de dois dias,quanto muito, Tom e eu nãotivermos encontrado habitaçõesnem habitantes, voltaremos paraesta gruta; mas isto é inverosímil,e creio que não andaremos maisde vinte milhas pela terra dentrosem que saibamos exatamente anossa situação geográfica. Possoter-me enganado na estima, e nãoé para admirar, faltando-me os

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meios astronômicos, queestejamos em latitude mais alta oumais baixa.

— Certamente... tensrazão, meu rapaz! — respondeuMrs. Weldon, ansiosa.

— E o que pensa o Sr.Bénédict deste projeto? —perguntou Dick Sand.

— Eu? — volveu primoBenédict.

— Sim, qual é a suaopinião?

— Eu... não tenho opiniões— respondeu primo Bénédict. —Acho tudo bom, e farei tudoquanto quiserem. Querem ficar

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aqui um ou dois dias? Não medesagrada. Empregarei o tempoem estudar a praia sob o ponto devista entomológico.

— Faz a tua vontade —disse então Mrs. Weldon a DickSand. — Ficaremos nós, e tupartirás com Tom.

— Está dito —acrescentou primo Bénédict omais tranquilamente que épossível. — Vou fazer os meuscumprimentos aos insetos destessítios.

— Não se afaste muito, Sr.Bénédict — aconselhou o prático.— Olhe que bem lho

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recomendamos. — Não sepreocupe por minha causa.

— E sobretudo não nostraga muitos mosquitos! —acrescentou Tom.

Poucos minutos depois, oentomologista, com a suapreciosa caixa de folha a tiracolo,saiu da gruta.

Quase ao mesmo tempo,Negoro saía também. Pareciamuito natural a este homem não seocupar senão de si; e quandoprimo Bénédict trepava pelasladeiras da rocha, a fim de irexplorar a orla da floresta,Negoro voltava para o lado do

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rio, afastava-se vagarosamente, epela segunda vez desaparecia,trepando pelas ribanceiras.

Jack continuava a dormir.Mrs. Weldon, deixando-o sobreos joelhos de Nan, desceu para apraia, seguida por Dick Sand epelos seus companheiros.Tratava-se então de ver se oestado do mar permitiria ir ao“Pilgrim”, onde ainda estavammuitos objetos que lhes podiamser úteis.

Os recifes em queencalhara o patacho estavamcompletamente descobertos. Nomeio dos destroços de toda a

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espécie avultava o casco donavio, que a água na preia-martinha quase imerso. Não deixouisto de causar espanto a DickSand, porquanto sabia que asmarés crescem pouco no litoralamericano do Pacífico. Ofenômeno, porém, podia explicar-se pela fúria do vento de encontroà costa.

Revendo o seu navio, Mrs.Weldon e os seus companheirossentiram tristíssima impressão.Ali tinham vivido muitos dias,fora ali que muito sofreram!

O aspecto do infeliz navio,quase quebrado, sem mastros e

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sem velas, deitado sobre um lado,como que privado de vida,pungia-lhes o coração.

Era, porém, necessário iraté ao barco, antes que o maracabasse de o desfazer.

Dick Sand e os negrosentraram facilmente, depois de seterem içado para a coberta pormeio de alguns cabos quependiam da amurada do“Pilgrim”. Enquanto Tom,Hercule, Bat e Agostinho tiravamda despensa tudo que podia seraproveitado, tanto comestíveiscomo líquidos, o prático foi até àcâmara. Graças a Deus, a água

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não tinha penetrado até aquelelugar do navio, porque a popaficara emersa depois do encalhe.

Dick Sand encontrou nacâmara quatro carabinas em bomestado, excelentes “Remingtons”da fábrica de Purdey & C.a,assim como cerca de cemcartuchos, cuidadosamentearrumados nas respetivascartucheiras. Era quanto bastavapara armar a sua gente e pô-la emestado de resistir se, contra todasas previsões, os índios osatacassem no caminho.

Não deixou tão-pouco oprático de lançar mão de uma

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pequena lanterna, mas os mapas,que estavam guardados no seualojamento avante, ficaramcompletamente avariados pelaágua e incapazes de servir.

Havia também a bordo do“Pilgrim” algumas machadinhas,que serviam para cortar asbaleias. Dick Sand escolheu seis,que destinou para completar oarmamento dos seuscompanheiros, e não se esqueceude trazer uma inofensivaespingarda de criança, quepertencia a Jack. Quanto aosoutros objetos que tinham ficadono navio, ou estavam perdidos, ou

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já não podiam servir. Eradesnecessário trazer muito parapoucos dias de viagem. Devíveres, armas e muniçõesestavam providos comabundância. Contudo, Dick Sand,por opinião de Mrs. Weldon, nãoquis deixar de trazer consigo todoo dinheiro que havia a bordo —cerca de quinhentos dólares.

Era pouco, realmente!Mrs. Weldon trouxera somasuperior àquela, mas não seencontrou.

Quem, senão Negoro, osteria precedido na visita a bordodo navio e seria capaz de se

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apoderar do pecúlio do capitãoHull e de Mrs. Weldon? Ninguém,senão ele, com toda a certeza, setornava suspeito. Contudo, DickSand ainda hesitou. O que Dicksabia de Negoro, o que delepensava, era que tudo se deviarecear daquela naturezaconcentrada, a quem os malesalheios faziam sorrir. Negoro eramau, mas, porque era mau, deviaconcluir-se que fosse ladrão?Repugnava ao caráter de DickSand ir tão longe. E, contudo,podiam as desconfianças recairsobre outra pessoa? Não, oshonestos negros não tinham saído

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da gruta, ao passo que Negorofora visto a passear pela praia.Só ele, pois, devia ser o culpado.Dick Sand resolveu, pois,interrogar Negoro, e em caso denecessidade revistá-lo logo queele voltasse.

O Sol descia para ohorizonte. Naquela data ainda nãotinha passado o equador para irlevar calor e luz ao hemisférioboreal, mas não tardaria muito.Baixou, pois, quaseperpendicularmente à linhacircular, onde o mar e o céu seconfundem. Durou pouco ocrepúsculo e a obscuridade fez-se

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prontamente, o que firmou oprático na ideia de que ele sechegara a terra num ponto dolitoral situado entre o trópico deCapricórnio e o equador.

Mrs. Weldon, Dick Sand eos negros voltaram para a gruta,onde deviam repousar algumashoras.

— A noite há de ser aindatormentosa — observou Tom,mostrando o horizonte carregadode nuvens espessas.

— É verdade —confirmou Dick Sand —, temosvento muito fresco. Mas o que nosimporta agora, se o nosso infeliz

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navio está perdido! A tempestadenão nos fará dano.

— Seja feita a vontade deDeus! — disse Mrs. Weldon.

Combinou-se que duranteaquela noite, que ameaçava serescuríssima, cada um dos negrosvigiaria alternadamente à entradada gruta. Além disto, contava-secom Dingo.

Deu-se então pela falta deprimo Bénédict.

Hercule chamou-o comtoda a força dos seus vigorosospulmões, e quase ao mesmotempo viu-se o entomologistadescer pela rocha, com risco de

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quebrar a cabeça.

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Primo Bénédict estavaliteralmente furioso. Não

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encontrara um único inseto novona floresta, nem um só que fossedigno de figurar na sua coleção.Escorpiões, escolopendras eoutros miriápodes, tudo quanto sequisesse e até mais, tudo havia.Mas, como se sabe, primoBénédict não se entusiasmavacom os miriápodes.

— Não valia a pena —dizia ele — ter andado cinco ouseis mil milhas, ter apanhado umatempestade e naufragar, para nofim de tudo não encontrar umúnico dos hexápodes americanosque dão honra aos museusentomológicos! Não! Para isto

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não valia a pena!Em conclusão, primo

Bénédict propôs que saíssemdaquele sítio. Não queria ficarnem mais uma hora naqueladetestável praia.

Mrs. Weldon sossegou-o.Deram-lhe esperanças de queseria mais feliz no dia seguinte.Todos se iam abrigar na gruta,para dormir até ao romper do Sol,quando Tom notou que Negoroainda não tinha voltado, apesar dejá ser noite fechada.

— Onde estará ele? —perguntou Mrs. Weldon.

— Que nos importa isso!

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— disse Bat.— Importa, pelo contrário

— replicou Mrs. Weldon. —Gostaria mais de o ver aqui.

— Sem dúvida, Mrs.Weldon — interveio Dick Sand—, mas se ele nos deixou por suaprópria vontade, não sei de quemodo o obrigaremos a voltar!Quem sabe se ele não tem razõespara fugir de nós?

E, chamando de parte Mrs.Weldon, Dick Sand comunicou-lhe todas as suspeitas que tinha.Não se espantou, porém, sabendoque Mrs. Weldon as tiveraigualmente.

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Só num ponto divergiam.— Se Negoro reaparecer

— afirmou Mrs. Weldon —, éporque escondeu o seu roubo emlugar seguro. Na minha opinião, omelhor que temos a fazer, porquenão podemos convencê-lo, seráocultar as nossas suspeitas, edeixá-lo acreditar que de coisaalguma desconfiamos.

Mrs. Weldon tinha razão eDick Sand acabou por concordarcom ela.

No entanto, Negoro foichamado muitas vezes... Nãorespondeu. Ou estava já muitolonge para ouvir ou não quis

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responder.Os negros não lastimaram

a perda de Negoro; mas, comobem dissera Mrs. Weldon, talvezele fosse mais para temer estandolonge do que perto! E comoexplicar que Negoro se quisesseaventurar sozinho por aqueleterritório desconhecido? Ter-se-ia, pois, afastado, ou andaria emvão procurando, por aquela noiteescura, o caminho da gruta?

Mrs. Weldon e Dick Sandnão sabiam o que pensar. Fosse,porém, como fosse, não podiam,para esperar Negoro, privar-sedo repouso, que a todos era tão

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necessário.Neste momento o cão, que

corria sobre a praia, ladrou comforça.

— Que é isso, Dingo? —perguntou Mrs. Weldon.

— É necessário sabê-lo— declarou o prático. — Talvezseja Negoro que volta...

Imediatamente Hercule,Bat, Agostinho e Dick Sand sedirigiram para a embocadura dorio.

Chegados à margem, nadaviram, nem ouviram. Dingocalou-se.

Dick Sand e os

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companheiros voltaram para agruta.

Arranjou-se tudo domelhor modo possível. Os negrosdispuseram-se para vigiaralternadamente, fora da gruta, masMrs. Weldon, inquieta, não pôdedormir. Parecia-lhe que aquelaterra, tão ardentemente desejada,não lhe dava o que ela tantoesperava: segurança para os seuse repouso para si mesmo.

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CAPÍTULO XV

HARRIS No dia seguinte, 7 de

Abril, Agostinho, que vigiavaquando nasceu o Sol, viu Dingocorrer ladrando para o lado dorio. Quase ao mesmo tempo, Mrs.Weldon, Dick Sand e os negrossaíram da gruta.

Havia, pois, alguma coisa

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extraordinária.— Dingo pressentiu

homem ou animal — disse oprático.

— Em todo o caso não éNegoro — observou Tom —,porque então Dingo ladraria comfuror.

— Se não é Negoro, ondeestará ele? — perguntou Mrs.Weldon, lançando para Dick Sandum olhar que só ele compreendeu.— Se não é Negoro, quem seráentão?

— Vamos sabê-lo, Mrs.Weldon — respondeu o prático.

Depois, voltando-se para

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Bat, Agostinho e Hercule,ordenou:

— Armem-se e venhamcomigo!

Cada um dos negros pegounuma espingarda e numamachadinha; na culatra das“Remingtons” entrou um cartucho,e armados deste modo dirigiram-se todos os quatro para a margemdo rio.

Mrs. Weldon, Tom eActeon ficaram à entrada dagruta, de onde Jack e Nan nãotinham saído.

Nascia então o Sol. Osseus raios, interceptados pelas

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altas montanhas queficavam para leste, não feriamainda as rochas, mas para o ladodo poente a luz da manhãcintilava no mar até ao horizonte.

Dick Sand e os seuscompanheiros seguiram a praia,cuja curva se apertava naembocadura do rio.

Ali Dingo, imóvel e comoque pronto a arremeter, ladravasempre.

Evidentemente vira ousentira algum indígena.

Com efeito, não era aNegoro, o seu implacável inimigode bordo, a quem desta vez o cão

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se dirigia.Um homem aparecia

naquele momento no lugar ondeacabava a rocha. Caminhavavagarosamente pela margem, epor gestos familiares tentavasossegar Dingo. Não seimportava de afrontar a cólera dovalente animal.

— Não é Negoro! — disseHercule.

— Não perdemos na troca!— continuou Bat.

— Não! — Concordou oprático. — É provavelmentealgum indígena, que nos evitará atristeza da separação. Vamos,

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pois, saber exatamente ondeestamos!

E os quatro, pondo asarmas ao ombro, encaminharam-se rapidamente para odesconhecido.

Este, vendo-os aproximar,mostrou-se surpreendido.

Não esperava encontrarestrangeiros naquele lugar dacosta. Evidentemente, não vira osdestroços do “Pilgrim”; se osvisse, a presença dos náufragosteria para ele fácil explicação.Durante a noite, o mar acabara dedestruir o casco do navio, do qualsó restavam alguns pedaços, que

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flutuavam à tona de água.No primeiro momento o

desconhecido, vendo dirigirem-separa ele os quatro homensarmados, fez um movimento comopara retrogradar. Trazia a arma atiracolo, mas passou-arapidamente para a mão e da mãopara o ombro. Percebe-se comfacilidade que não estivesseperfeitamente tranquilo.

Dick Sand fez-lhe umgesto de saudação, que odesconhecido sem dúvidacompreendeu, porque, depois deuma pequena hesitação, continuoua caminhar.

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Dick Sand pôde então vê-lo bem.

Era um homem vigoroso,de quarenta anos de idade,quando muito, olhar vivo, barba ecabelos grisalhos, tez queimada,como a dos nómadas, que vivemsempre ao ar livre da floresta ouda planície. Uma espécie decamisola de pele curtida servia-lhe de casaco, chapéu de abaslargas, botas até ao joelho eesporas assentes em tacões deprateleira.

O que Dick Sand percebeuimediatamente — não seenganava — foi que não tinha

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diante de si um índio vagabundodos Pampas, mas um dessesaventureiros, poucorecomendáveis, que se encontramfrequentes vezes nas mais remotasregiões. Pelo seu aspecto e pelacor arruivada de alguns cabelosda barba, parecia que odesconhecido devia ser de origemanglo-saxónica. Em todo o casonão era nem índio nem espanhol.

E disto houve aconfirmação quando Dick Sandlhe disse em inglês: — Seja muitobem-vindo.

O desconhecido respondeuna mesma língua e sem pronúncia

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mesclada: — Outro tanto digo eu.E dirigiu-se para o

prático, cuja mão apertou. Aosnegros fez um gesto, sem lhesdirigir palavra.

— São ingleses? —perguntou ele ao prático.

— Somos americanos —respondeu Dick Sand.

— Do Sul?— Do Norte.Esta resposta pareceu

agradar-lhe, porque apertou maisvigorosamente a mão do prático,e desta vez bem à americana.

— Posso saber por que seencontram nesta costa? Mas, sem

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esperar que o prático lherespondesse, o desconhecidotirou o chapéu e cumprimentou.

Mrs. Weldon, que viera atéà margem do rio, encontrava-seentão em frente dele.

Foi ela quem respondeu.— Somos náufragos. O

nosso navio perdeu-se ontemsobre aqueles recifes que alémvê!

No rosto do desconhecido,que com a vista procurava onavio naufragado, transpareceuum sentimento de dó.

— Nada resta do navio —disse Dick Sand. — Esta noite o

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mar destruiu-o completamente.— A nossa primeira

pergunta — continuou Mrs.Weldon — será para saber ondeestamos.

— Estão na costa daAmérica do Sul — respondeu odesconhecido, mostrando-sesurpreendido pela pergunta. — -Pois podem ter alguma dúvida asemelhante respeito?

— Sim, podemos, porquea tempestade desviou-nos danossa rota — respondeu DickSand. — Mas perguntarei eutambém: qual é precisamente anossa posição? É na costa do

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Peru, como eu penso?— Não! É mais para o sul!

Naufragaram na costa da Bolívia.— Ah! — exclamou Dick

Sand.— Exatamente na região

meridional da Bolívia queconfina com o Chile.

— Então que ponta éaquela? — interrogou Dick Sand,designando o promontório quelhes demorava ao norte.

— Não sei dizer o nome— respondeu o desconhecido. —Conheço em parte o interior daregião, porque a tenho percorridomuitas vezes, mas esta é a

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primeira vez que visito a costa.Dick Sand refletia no que

acabava de ouvir, mas admirava-se pouco, porque a estima podia edevia mesmo tê-lo enganado, porcausa das correntes; o erro porémnão era muito grande. Julgava-seentre os vinte e sete e os trintagraus de latitude pelas marcaçõesque fizera na ilha de Páscoa, e foina latitude de vinte e cinco grausque encalhou.

Não era impossível que o“Pilgrim” tivesse desvio tãorelativamente pequeno, numa tãolonga viagem. Nada autorizava aduvidar das asserções do

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desconhecido, e porque aquelacosta era a da baixa Bolívia, nãohavia motivo de espanto, por sertão deserta.

— Então — disse DickSand —, pelo que lhe ouvi, devoconcluir que estamos a grandedistância de Lima.

— Oh! Lima está longe...para além! Muito para o norte!

Mrs. Weldon, desconfiadapelo desaparecimento de Negoro,observava o recém-chegado commuita atenção. Mas nem nosmodos, nem pela maneira de seexpressar, descobriu coisaalguma que a fizesse suspeitar da

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boa-fé do desconhecido.— Parece-me que não é de

origem peruana? — disse Mrs.Weldon, que acrescentou: —Suponho que esta pergunta nãoserá indiscreta.

— Sou americano —informou o desconhecido,esperando que Mrs. Weldon lhedissesse o seu nome.

— Chamo-me Mrs.Weldon — respondeu esta.

— E eu, Harris. Nasci naCarolina do Sul. Há vinte anosque troquei o meu país pelosPampas da Bolívia. Tenho, pois,grande satisfação de ver

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compatriotas meus.— Habita nesta parte da

província, Sr. Harris? —perguntou Mrs. Weldon.

— Não, Mrs. Weldon,vivo no sul, na fronteira do Chile,mas agora dirijo-me a Atacama,que fica para o nordeste.

— Estaremos por acasonos limites do deserto dessenome? — perguntou Dick Sand.

— Exatamente, o desertoestende-se muito para além dasmontanhas que vemos nohorizonte.

— O deserto de Atacama?— repetiu Dick Sand.

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— Justamente —confirmou Harris. — Aqueledeserto é como se fosse outropaís, nesta vastíssima América doSul, da qual difere em muitospontos. É mesmo a região maisnotável e a menos conhecidadeste continente.

— Viaja só? — perguntouMrs. Weldon.

— Não é a primeira vezque faço esta viagem! —respondeu o americano. — Aduzentas milhas daqui há umafazenda importante, a hacienda deSan Felice, que pertence a um dosmeus irmãos. Lá vou eu para

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tratar dos meus negócios. Se mequerem acompanhar, asseguro-lhes que serão bem recebidos eque não lhes faltarão os meios dese transportarem para a cidade deAtacama. Meu irmão terá muitogosto em os poder servir.

Estes oferecimentos tãoespontâneos não podiam deixarde dispor bem os ânimos a favordo americano, que continuou,dirigindo-se para Mrs. Weldon, eapontando com a mão para Tom epara os seus companheiros: —Estes negros são seus escravos?

— Já não temos escravosnos Estados Unidos — respondeu

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Mrs. Weldon. — O Norte hámuito que aboliu a escravatura eo Sul seguiu-lhe o exemplo.

— Ah! É verdade —volveu Harris. — Esquecia-mede que a guerra de 1862 acabaracom esta grave questão. Peçoperdão a esses homens —continuou Harris, metendo obocadinho de ironia que osAmericanos do Sul nãodispensam nunca quando falamcom negros. — Mas vendo estessenhores a seu serviço, julguei...

— Não estão e nuncaestiveram ao meu serviço, senhor— explicou gravemente Mrs.

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Weldon.— Muito nos honraria

servi-la, Mrs. Weldon — disseTom —, mas bom é que o Sr.Harris saiba que a ninguémpertencemos. Fui escravo, éverdade, e como tal vendido naÁfrica, quando tinha apenas seisanos, mas meu filho Bat, que alivê, nasceu de pai liberto, e osmeus companheiros tiveram paisque eram homens livres.

— Felicito-os —respondeu Harris, mas de ummodo que Mrs. Weldon achoupouco sério. — Na Bolíviatambém não temos escravos.

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Nada pois têm a temer, e podemandar por aqui tão livrementecomo nos Estados da NovaInglaterra.

Nesta ocasião Jack,acompanhado por Nan, saía dagruta, esfregando os olhos. Vendosua mãe, correu para ela. Mrs.Weldon beijou-o com ternura.

— Que bonita criança! —disse o americano, aproximando-se de Jack.

— É meu filho —declarou Mrs. Weldon.

— Oh! Mrs. Weldon, temsofrido duplamente, por ver o seufilhinho exposto a tantos

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incômodos.— Deus quis salvá-lo,

assim como a nós, Sr. Harris -respondeu Mrs. Weldon.

— Dá-me licença que obeije? — perguntou Harris.

— Com muito gosto.Mas a cara do “Sr. Harris”

não agradou a Jack, porque seabraçou à mãe.

— Então — observouHarris — não quer que o beije!Meto-lhe medo?

— Desculpe-o, senhor —disse Mrs. Weldon. — É timidezde criança.

— Não importa! Ainda

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havemos de ser amigos. Quandoestivermos na hacienda, montaráum pónei muito bonito, e queservirá de medianeiro entre nós.

Mas o oferecimento do“bonito pónei” não seduziu opequeno Jack.

Mrs. Weldon, muitocontrariada, tratou de desviar aconversa. Convinha não desgostarquem tão obsequiosamenteoferecia os seus serviços.

Enquanto isto se passava,Dick Sand refletia na inesperadamas oportuna proposta de ir até àhacienda de San Felice. Tinham,conforme o que dissera Harris, de

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caminhar mais de duzentas milhaspor florestas e planícies, viagemmuito fatigante, porque faltavamos meios de transporte.

O prático fez algumasobservações a tal respeito, eesperou a resposta que lhe ia daro americano.

— A viagem é longa, comefeito — admitiu Harris —, masalém, a algumas centenas depassos da margem, tenho umcavalo, que ponho à disposiçãode Mrs. Weldon e de seu filho.Para nós não é difícil nemincômodo fazer o caminho a pé.Demais, quando lhes falei em

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duzentas milhas, era seguindo,como já fiz, o curso do rio; mas,se atravessarmos a floresta,encurtaremos o caminho oitentamilhas pelo menos. Ora,caminhando dez milhas por dia,chegaremos à hacienda semgrandes demoras.

Mrs. Weldon agradeceu aoamericano.

— Não pode agradecer-me melhor do que aceitando —afirmou Harris. — Conquanto eununca tivesse atravessado afloresta, creio que não meperderei. Tenho muita prática decaminhar nos Pampas. Há, porém,

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uma questão mais grave: é a dosvíveres. Só tenho o que me eraestritamente indispensável parachegar até à hacienda de SanFelice.

— Sr. Harris — retorquiuMrs. Weldon —, felizmente temosvíveres em grande abundância, epodemos reparti-los.

— Muito bem, Mrs.Weldon; parece-me que tudo searranjará do melhor modopossível, e que nada mais temos afazer senão partir.

Harris dirigia-se para amargem, com a intenção de irbuscar o cavalo ao sítio- onde o

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deixara, quando Dick Sand o fezparar, fazendo-lhe uma pergunta.

Não agradava muito aoprático abandonar o litoral parase embrenhar no interior daregião através da interminávelfloresta. Em tudo se revelavamarinheiro, e melhor e mais à suavontade se acharia subindo oudescendo a costa.

— Sr. Harris — observouele —, em vez de caminharmoscento e vinte milhas pelo desertode Atacama, porque nãoseguiremos de preferência olitoral? Distância por distância,não será melhor chegar à cidade

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mais próxima, quer seja ao norte,quer para o sul?

— Mas, meu amigo —respondeu Harris, franzindoligeiramente o sobrolho —,parece-me que nesta costa, que eumal conheço, se não encontracidade a menos de trezentas ouquatrocentas milhas.

— Ao norte, certamente,mas para o sul?...

— Para o sul — replicouo americano —, é necessáriodescer até ao Chile. Ora ocaminho é quase tão longo, e, noseu lugar, preferiria contornar osPampas da República Argentina.

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Pela minha parte, ainda que commuita pena, não podiaacompanhá-los.

— Os navios que vão doChile para o Peru não passam àvista desta costa? — perguntouMrs. Weldon.

— Não — informouHarris —, conservam-se ao largo.Por certo não avistaram nenhum.

— Efetivamente nãoencontramos — disse Mrs.Weldon. — Dick, tens maisalguma pergunta a fazer ao Sr.Harris?

— Uma só, Mrs. Weldon— respondeu o prático, que lhe

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custava muito a ceder. —Perguntarei ao Sr. Harris em queponto julga que poderemosencontrar navio que nos leve aSão Francisco?

— Não sei dizer, meuamigo — volveu o americano. —Tudo quanto sei é que lhesproporcionaremos na hacienda deSan Felice os meios de irem até àcidade de Atacama, e de lá...

— Sr. Harris —esclareceu então Mrs. Weldon —,não suponha que Dick Sand hesiteem aceitar os seus oferecimentos!

— Não, Mrs. Weldon, nãohesito — acudiu o prático —,

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mas não posso evitar de melastimar por não termosnaufragado alguns graus para onorte ou mais para o sul.Estaríamos próximos de qualquerporto, e esta circunstância,facilitando a nossa repatriação,evitaria o incômodo, ainda que deboa vontade, do Sr. Harris.

— Não receie incomodar-me, Mrs. Weldon — tornouHarris. — Repito: são raras asocasiões de me encontrar comcompatriotas. Tenho pois grandeprazer em poder agora obsequiá-los.

— Aceitamos o seu

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oferecimento, Sr. Harris — disseentão Mrs. Weldon —, mas nãoqueria privá-lo do seu cavalo.Ando bem a pé.

— E eu também —respondeu Harris, cortejando. —Habituado às longas caminhadasatravés dos Pampas, não serei euquem retardará a caravana. Mrs.Weldon e seu filho Jack seservirão do meu cavalo. É,porém, possível que no caminhoencontremos alguns criados dahacienda, que nos cederão asmontarias em que vierem.

Dick Sand percebeu que sefizesse novas objeções

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desagradaria a Mrs. Weldon.— Sr. Harris — perguntou

então Dick —, quando partimos?— Hoje mesmo. A estação

má começa em abril e énecessário, tanto quanto forpossível, que antes dissotenhamos chegado à hacienda deSan Felice. Em suma, o caminhoatravés da floresta, além de ser omais curto, é também o maisseguro. É menos exposto que acosta às correrias dos índiosnômades, que são ladrõesinsaciáveis.

— Tom, meus amigos —disse Dick Sand, voltando-se

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para os negros —, temos de fazeros preparativos para a partida.Escolhamos entre as provisões debordo as que forem de mais fáciltransporte, e façamos pequenospacotes, que cada um de nóscarregará.

— Sr. Dick — retorquiuHercule —, se quer, eu carregotudo.

— Não, Hercule —respondeu o prático. — É melhordividirmos os fardos.

— É robustíssimo —comentou Harris, dirigindo-separa Hercule e olhando-o comose este estivesse à venda.

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— Na costa de Áfricavaleria bom dinheiro.

— Valho quanto peso —respondeu Hercule, rindo.

— Os compradores terãode correr bem se me quiseremdeitar a mão.

Estava tudo combinado.Para apressar a partidatrabalhavam todos. Só restavacuidar dos mantimentosnecessários à pequena caravanapara a jornada desde a costa até àhacienda, isto é, para doze diasde marcha.

— Mas antes de partirmos,Sr. Harris, antes de aceitarmos a

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sua hospitalidade, peço-lhe queaceite a nossa, que de boavontade a oferecemos.

— Aceito, Mrs. Weldon,aceito com muito gosto! —respondeu Harris com satisfação.

— Daqui a pouco tempo oalmoço estará pronto.

— E eu aproveitarei essepouco tempo para ir buscar o meucavalo, que decerto já almoçou.

— Quer que o acompanhe?— perguntou Dick Sand aoamericano.

— Como quiser — acedeuHarris. — Venha, quero queconheça o curso daquele rio.

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Partiram ambos.Entretanto Hercule foi

procurar o entoimologista. PrimoBénédict pouco se lhe dava doque acontecia. Procurava sobre arocha um inseto, “que se nãoencontrava”, e que nãodescobriria com certeza.

Hercule trouxe consigoBénédict. Mrs. Weldon disse-lheque a partida fora decidida e queera necessário caminhar dozedias pelo interior do território.

Primo Bénédict respondeuque estava pronto a partir e que oseu maior prazer era atravessar aAmérica, contanto que o

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deixassem “fazer coleções” pelocaminho.

Mrs. Weldon, auxiliadapor Nan, ocupou-se do almoço.Excelente precaução para quemtinha de caminhar.

Harris e Dick Sand tinhamvoltado o ângulo que fazia arocha. Seguiram pela margemcerca de trezentos passos, atéonde estava um cavalo preso auma árvore, o qual, vendo o dono,relinchou.

Era um animalrobustíssimo e de espéciedesconhecida a Dick Sand. Tinhapescoço comprido, lombo curto,

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garupa alongada e testa quasechata; mostrava porém oscaracteres distintivos das raças aque se atribui origem árabe.

— Como vê — disseHarris — -é um bom cavalo, epode ter a certeza de que nãofraquejará no caminho.

Harris desprendeu ocavalo, pegou-lhe pelas rédeas edesceu a margem do rio, seguidopor Dick Sand. Este lançararápido olhar tanto sobre o riocomo para as florestas querevestiam as duas margens. Nadaviu que o inquietasse.

Contudo, logo que se

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aproximou mais do americano,fez-lhe subitamente e sem queHarris o esperasse a seguintepergunta: — Sr. Harris, nãoencontrou esta noite um homemchamado Negoro?

— Negoro? — respondeuHarris, como quem nãocompreende o que se lhe diz. —O que é Negoro?

— Era o cozinheiro debordo — tornou Dick Sand. —Desapareceu...

— Talvez se afogasse?...— lembrou Harris.

— Nada, não! —continuou Dick Sand. — Ainda

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ontem à tarde esteve conosco,mas durante a noite deixou-nos, eprovavelmente foi seguindo pelamargem deste rio. Por issoperguntei se o não vira para esselado, visto que de lá veio.

— Não encontrei ninguém— replicou o americano —, e seo seu cozinheiro se embrenhou sópela floresta, arrisca-se muito aperder-se. Talvez o encontremosno caminho.

— Sim... talvez — admitiuDick Sand.

Quando Harris e Dickchegaram à gruta, o almoçoestava pronto. Compunha-se,

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como a ceia da véspera, deconservas alimentícias, cornedbeef e bolacha. Harris comeu comgrande apetite.

— Vejo — disse ele —que não morreremos de fome.Não direi outro tanto daquelepobre diabo, o cozinheiro, dequem o nosso jovem amigo mefalou.

— Ah! Dick Sand contou-lhe — disse Mrs. Weldon — quenão tornamos a ver o cozinheiro?

— Contei, Mrs. Weldon —acudiu o prático. — Desejavasaber se o Sr. Harris o tinhaencontrado.

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— Não encontrei, não —repetiu Harris. — Mas deixemoso desertor e ocupemo-nos dapartida! Quando Mrs. Weldonquiser!

Todos pegaram nos fardosque lhes estavam destinados. Mrs.Weldon, ajudada por Hercule,montou a cavalo, e o ingrato Jack,com a sua espingardinha atiracolo,

escarranchou-se, semagradecer a quem punha à suadisposição tão bom ginete.

Jack disse então a sua mãeque sabia guiar perfeitamente ocavalo.

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Deram-lhe as rédeas parasegurar, e assim seguiu,acreditando que era ele overdadeiro chefe da caravana.

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CAPÍTULO XVI

NO CAMINHO Não foi sem apreensões,

aliás sem fundamento, que DickSand, depois de ter andado cercade trezentos passos pela margemdo rio, entrou enfim na floresta,onde, por veredas difíceis, ele eos seus companheiros tinham decaminhar durante uns doze dias.

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Pelo contrário, Mrs.Weldon estava cheia deconfiança, ela, mulher e mãe, aquem os perigos deviamduplamente inquietar.

Dois motivos, qual deles omais forte, concorreram para atranquilizar: o primeiro, porquenaquela região dos Pampas nãoeram muito para recear osindígenas e os animais; osegundo, porque sob a direção deHarris, que parecia guia seguro,não se arriscava a perder-se nafloresta.

Eis a ordem em quedeviam marchar e a qual se devia

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manter, tanto quanto possível,durante toda a jornada.

Dick Sand e Harris,armados, este com a suacomprida espingarda, aquele comuma carabina “Remington”, iamna frente.

Depois Bat e Agostinho,igualmente armados, cada um coma sua carabina e uma machadinha.

Seguiam-se a estes Mrs.Weldon e Jack, a cavalo, e logodepois Nan e Tom.

Acteon, com a quartacarabina, e Hercule, com ummachado à cinta, fechavam amarcha.

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Dingo andava de um para

o outro lado, como que farejando.Tinha visivelmente mudado deprocedimento desde o naufrágiodo “Pilgrim”. Parecia agitado, e,sem quase cessar, dava uivossurdos, mais lamentosos queenraivecidos. Todos notavam isto,mas ninguém sabia explicar omotivo.

No que diz respeito aoprimo Bénédict, fora impossível,como a Dingo, determinar-lheordem de marcha. A não ser que olevassem amarrado, não seria oentomologista que a ela se

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sujeitaria. Com a caixa de folha atiracolo, rede na mão, lupa aopescoço, ora caminhando adiante,ora ficando para trás, metendo-sepor entre as plantas, procuravaortópteros ou qualquer outroinseto de nome terminado em“ptero”, arriscando-se a sermordido pelas serpentesvenenosas.

Na primeira hora, Mrs.Weldon, inquieta, chamou-orepetidas vezes. Nada conseguiu.

— Primo Bénédict —disse-lhe ela enfim —, peço-lhemuito seriamente que não seafaste de nós. Pela última vez lhe

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digo que se não esqueça do meupedido.

— Mas se eu vir alguminseto? — objetou o obstinadoentomologista.

— Se vir algum inseto,deixe-o ir em paz, senão* obriga-me a mandar-lhe tirar a sua caixa!

— Quê? Tirar-me a caixa!— exclamou primo Bénédict,como se o ameaçassem de lhetirar as entranhas.

— A caixa e a rede! —acrescentou inexoravelmente Mrs.Weldon.

— Também a rede, prima?E porque não irão os óculos? Não

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faz isso! Não se atreve a fazerisso!

— E é verdade, os óculostambém. Agradeço-lhe, primo,por me haver lembrado o meio deo cegar, e por consequência de oobrigar a ser cauteloso.

Desta tríplice ameaçaresultou que o rebelde primo seconservou mais sossegadodurante uma horaaproximadamente; mas tempodepois afastava-se outra vez,como o teria feito se não tivessenem rede, nem caixa, nem óculos.Era pois melhor deixá-lo andar àvontade. Hercule encarregou-se

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de o vigiar, o que naturalmenteficou no número das obrigações aseu cargo. Tinha ordem deproceder como primo Bénédictprocedia com os insetos, isto é,em caso de necessidade, agarrá-lo e conduzi-lo tão delicadamentecomo o entomologista fazia aomais raro dos lepidópteros.

Depois disto, ninguémmais pensou no primo Bénédict.A caravana, como se sabe, ia bemarmada; mas Harris repetia quenão tinham a recear senão oencontro, aliás pouco agradável,dos índios nómadas. Em todo ocaso, porém, as disposições que

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haviam tomado bastariam para osconter em respeito.

As veredas da cerradafloresta, se tal nome se lhes podiadar, mais eram estreitíssimoscaminhos para animais do quepara homens. A muito custo seavançava por elas. Por isso,Harris, calculando em dez milhasa média do andamento por cadadia de jornada, calculara commuita exatidão.

O tempo estava bom. OSol, quase no zênite, dardejavaperpendicularmente os seus raios.Na planície haveria intolerávelcalor; mas ali, sob aquelas

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ramagens impenetráveis, o solsuportava-se fácil e impunemente.

A maior parte das árvoresda floresta eram desconhecidas,tanto de Mrs. Weldon como dosseus companheiros, brancos oupretos. Os entendidos, porém,veriam que mais era para notar aqualidade do que a grandeza.Aqui a bauínia, ou pau-ferro; ali omolompó, idêntico ao pterocarpo,madeira resistente e leve, própriapara fazer canoas e remos, e decujo tronco saía resina emabundância; além as tatajubas,cheias de matéria corante, e osguiáiacos, medindo alguns doze

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pés de diâmetro, mas assimmesmo inferiores aos guiáiacoscomuns.

Dick Sand, enquantocaminhava, pediu a Harris que lhedissesse os nomes das diversasárvores.

— Nunca desembarcou nolitoral da América do Sul? —perguntou-lhe Harris antes desatisfazer ao pedido do prático.

— Nunca — respondeueste —, nunca tive ocasião,durante o curso das minhasviagens, de visitar esta costa, eainda não encontrei ninguém quea conhecesse.

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— Mas já viu as costas daColômbia, do Chile ou daPatagônia?

— Também não.— Mas Mrs. Weldon

conhece provavelmente estaregião do novo continente? —perguntou Harris. — Osamericanos não receiam viajar etalvez...

— Não, Sr. Harris —atalhou Mrs. Weldon —, osinteresses comerciais de meumarido têm-no chamado semprepara a Nova Zelândia, e nunca oacompanhei para outra parte.Nenhum dos que estamos aqui

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conhece esta região da baixaBolívia.

— Pois vão ver um paísbem extraordinário, e que fazgrande diferença do Peru, doBrasil ou da RepúblicaArgentina. A flora e a fauna daterra em que estamos fariam aadmiração dos naturalistas. Ah!Podem dizer que naufragaram embom lugar, e se ao acaso sedevem favores...

— Creio que não foi oacaso, mas Deus quem nosconduziu para aqui.

— Deus! Sim, Deus!... —disse Harris, em tom de quem não

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admite a intervenção daProvidência nas coisas destemundo.

Como, pois, ninguém dacaravana conhecia o país ou assuas produções, Harris,obsequiosamente, mostrou asárvores mais notáveis da floresta.

Era realmente paralastimar que no primo Bénédict, oentomologista, não houvesse seuslaivos de botânico, porque, senão tinha até então encontradoinsetos raros ou novos, teria feito,com toda a certeza, magníficasdescobertas para a botânica.Havia ali grande quantidade de

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vegetais de todas as grandezas,cuja existência era desconhecidanas florestas do Novo Mundo.Primo Bénédict decerto deixariao seu nome ligado a algum fatodeste gênero. Mas não gostava dabotânica, nem mesmo a conhecia.Tinha aversão às flores, porquealgumas delas prendiam osinsetos nas suas corolas ou osenvenenavam com sucos tóxicos.

A floresta em muitos sítiosera pantanosa; sob os pés doscaminhantes corriam delgadosfios de água, que iamprovavelmente alimentar osafluentes do pequeno rio. Alguns

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destes, por serem mais largos,não puderam ser atravessadossenão em pontos vadeáveis.

Nas margens dos ribeiroscresciam grandes moitas decaniços, aos quais Harris deu onome de papiros. Não seenganava. Aquelas plantasherbáceas vegetavamabundantemente na parte maisbaixa das encostas úmidas.

Passados os brejos, o matoespesso tornava a cobrir osestreitos caminhos da floresta.

Harris fez notar a Mrs.Weldon e a Dick Sand belosébanos, mais grossos que o ébano

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comum, os quais dão madeiramais dura que a do comércio.Apesar de já longe do mar,encontravam-se ainda grandenúmero de mangueiras. Umaespécie de musgo lhes vestia ostroncos até aos ramos. A sombracopada destas árvores e os seusdeliciosos frutos fazem com queelas sejam muito apreciadas;contudo, Harris contou quenenhum indígena se atreve aplantá-las. “Quem semeia umamangueira, morre!”, tal é asuperstição no país.

Durante a segunda metadedo primeiro dia de jornada, a

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pequena caravana, depois dedescansar, começou a subir umterreno ligeiramente inclinado.Não eram ainda os declives dasprimeiras montanhas, mas umaaltura ligeiramente ondulada, queligava a planície à serra.

Aí as árvores estavammenos juntas e por vezes reunidasem grupos; a marcha seria, pois,mais fácil se o solo não estivessecoberto de plantas herbáceas.Dir-se-ia que se caminhava nosjuncais da índia. A vegetaçãoseria ali talvez menos luxuriantedo que era no vale do pequenorio, mas era muito superior à das

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regiões temperadas do Velho e doNovo Mundo. O anil cresciaexuberantemente, e, acreditandoHarris, esta leguminosa era aplanta que mais invadia a região.Quando se deixava qualquercampo inculto, aquele parasita,tão desprezível como os cardos eas urtigas, cobria-o rapidamente.

Parecia que a estasflorestas faltava uma árvore, quealiás devia ser vulgaríssima nestaregião do novo continente: era aárvore da borracha. Efetivamente,o ficus prinoides, a castilloaelástica, a cecropia peltata, acollophora utilis, a cameraria

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latifolia, e principalmente asyphonia elástica, que pertencema famílias diferentes, abundam naAmérica Meridional; e, contudo,era para notar que nenhuma sevisse por aqueles sítios.

Ora aconteceu que DickSand tinha prometido ao seuamigo Jack mostrar-lhe asárvores da borracha. Foi, pois,grande a decepção para opequenino, que imaginava ver asbolas, os bonecos e os balões decauchu brotando das árvores, enão pouco se lastimava por isso.

— Paciência — disse-lheHarris. — Perto da hacienda

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encontraremos centenas deárvores da borracha.

— E bonitas? —perguntou Jack.

— Sim, muito bonitas.Mas, enquanto não chegamos lá,quer o menino refrescar-secomendo um bom fruto?

Dizendo isto, Harriscolheu de uma árvore algunsfrutos, tão saborosos comopêssegos.

— Tem a certeza, Sr.Harris, de que estes frutos nãofazem mal?

— Mrs. Weldon, voutranquilizá-la já — respondeu o

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americano, dando uma grandedentada num dos frutos quecolhera. — É manga — explicou.

Jack, sem se fazer rogado,seguiu o exemplo de Harris,declarando que aquelas “pêras”eram excelentes. A árvore foimuito dizimada. Pertenciamaquelas mangueiras à espéciecujos frutos, maduros em Março eem Abril, e mais tarde emSetembro, estavam porconsequência em excelentescondições para se colherem.

— É muito bom, é muitobom! — afirmou Jack, com aboca cheia. — Mas Dick

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prometeu-me as árvores daborracha se eu tivesse juízo, e euquero-as.

— E vê-las-ás, Jack —disse Mrs. Weldon —, que já toassegurou o Sr. Harris.

— Mas — tornou Jack —Dick também :me prometeu outracoisa.

— Sim! Então o que foique lhe prometeu o amigo Dick?— perguntou Harris, sorrindo.

— Beija-flores.— Também os terá; mas

mais longe, muito mais longe! —afirmou Harris.

O fato é que Jack tinha

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direito a reclamar algumas destaslindas avezinhas num país em queelas deviam abundar. Os índios,que sabem enfeitar artisticamenteos cabelos, deram os maispoéticos nomes a estes primoresda raça volátil. Chamam-lhes os“raios” ou “cabelos do Sol”.Aqui é “o rei das flores”, ali é “aflor do céu que, voando, vemacariciar a flor da terra”, noutraparte é “um diadema de pedraspreciosas, brilhando à luz dodia”. É de crer que a imaginaçãodos índios saiba dar uma nova epoética nomenclatura a cada umadas cento e cinquenta espécies

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que constituem a maravilhosatribo dos chupa-méis.

Contudo, por muitonumerosos que fossem os beija-flores nas selvas da Bolívia, Jacktinha por enquanto de se contentarcom a promessa de Harris.Segundo dizia o americano, aindaestavam perto da costa, e aquelasavezinhas não procuravam osdesertos que ficavam próximosdo oceano. Não fugiam dohomem; na hacienda ouvia-sedurante o dia constantemente oseu canto e o zunido das suasasinhas.

— Ah! Quem me dera já

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lá! — exclamou Jack.O meio mais seguro de

chegar à hacienda de San Feliceera não se demorarem nocaminho, e Mrs. Weldon e os seuscompanheiros não perdiam senãoo tempo absolutamenteindispensável para repousarem.

A floresta começava amudar de aspecto. Entre asárvores, já menos juntas, abriam-se num e noutro lugar grandesclareiras. O solo mostrava-se,rompendo o tapete de verdura;era de granito cor-de-rosa eescuro, semelhante a lâminas delápis-lazúli. Nalguns pontos

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abundava a salsaparrilha, plantade tubérculos carnosos, a qual seenredava por modo inextricável.Era bem preferível a floresta comos seus estreitos caminhos.

Antes de anoitecer, apequena caravana estava a oitomilhas aproximadamente do seuponto de partida. Caminhara-seaté ali sem incidente algum e atésem grande fadiga. Foi o primeirodia de jornada; provavelmente osseguintes seriam mais custosos.

De comum acordodecidiu-se parar no ponto ondetinham chegado. Não se pensava,é certo, em estabelecer um

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acampamento, mas simplesmenteem arranjar sítio onde pudessemdormir. Um homem de sentinela,rendido de duas em duas horas,bastaria para vigiar durante anoite. Nem os indígenas nem asferas eram para recear.

O melhor abrigo que seencontrou foi uma mangueiraimensa, cujos ramos grandes efrondosos formavam como queuma cobertura natural. Em casode necessidade seria fácil dormirsobre a folhagem. À chegada,porém, do pequeno grupo, ouviu-se em cima da árvore um concertoinsuportável.

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É que a mangueira serviade poleiro a uma colônia depapagaios cinzentos, bulhentos epalradores, voláteis ferozes, osquais não se podem julgar pelosque na Europa se encontramdomesticados.

Gritavam tanto que DickSand pensou em lhes dar um tiropara os obrigar a calar ou a fugir.Mas Harris dissuadiu-o, dizendo-lhe que naquelas solidões eramelhor não serem descobertospela detonação de uma arma defogo.

— Passemos sem ruído —concluiu ele —, e passaremos

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sem perigo.Em seguida preparou-se a

ceia sem que fosse necessáriocozinhar os alimentos; compunha-se de conservas e bolacha. Umarroio, que serpeava por entre aservas, forneceu água potável, aqual não se bebeu sem se lhedeitar algumas gotas de rum. Asobremesa deu-a a mangueira,dos seus frutos sucosos, que senão colheram sem que ospapagaios protestassem, soltandogritos desagradáveis.

No fim da ceia começavaa noite. As sombras subiamlentamente do solo para o cimo

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das árvores, cuja folhagem sedestacava como fino recortesobre o fundo mais luminoso docéu. As primeiras estrelas que seviram pareciam flores debrilhantes, cintilando nas pontasdos últimos ramos. O vento caiucom o dia; não se ouvia o maisligeiro sussurro na folhagem. Ospapagaios calaram-se. A naturezaia adormecer e convidava osseres animais a acompanhá-la noseu profundíssimo sono.

Os preparativos para anoite deviam ser simplicíssimos.

— Não acendemosfogueira? — perguntou Dick Sand

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ao americano.— Para que serviria isso?

— volveu Harris. — As noites,felizmente, não estão frias, e estamangueira enorme evitará aevaporação do solo. Não temosque temer nem a frescura nem aumidade. Repito-lhe, meu jovemamigo, o que ainda há pouco lhedisse: passemos incógnitos, e,tanto quanto for possível, semfogueiras e sem tiros.

— Penso — -opinou Mrs.Weldon — que nada temos arecear dos índios, nem mesmodesses vagabundos dos bosques,de que nos falou o Sr. Harris.

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Mas não haverá outrosvagabundos de quatro patas, aosquais a vista do fogo afastaria?

— Mrs. Weldon —respondeu o americano —, dámuita importância às feras destepaís! Mais temem elas o homemdo que o homem as teme a elas.

— Estamos num bosque —observou Jack — e nos bosqueshá sempre bichos!

— Mas nenn todos osbosques são iguais, nem sãoiguais todos os bichos! —respondeu Harris, rindo. —Imagine que está num grandeparque. E, na verdade, não é sem

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razão que os índios dizem destepaís: “Ès como el paraíso!”

— -E serpentes? —lembrou Jack.

— Não, meu Jack — -acudiu Mrs. Weldon —, não háserpentes. Podes dormirdescansadinho.

— Mas há leões? —continuou Jack.

— Nem a sombra deles!— informou Harris.

— Então há tigres?— Pergunte à sua mamãe

se ela ouviu dizer alguma vez quehouvesse tigres neste continente.

— Nunca ouvi —

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confirmou Mrs. Weldon.— Bravo! — disse primo

Bénédict, que por acaso ouvira aconversação. — .Se não há tigresnem leões no Novo Mundo, o queé certíssimo, encontram-secontudo onças e pumas.

— E são maus? — quissaber Jack.

— Assim, assim! —respondeu Harris. — Mas não searreceiam deles os indígenas, enós somos bastantes. Olhe!Bastaria Hercule para estrangularao mesmo tempo duas onças, umaem cada mão!

— Então, Hercule, toma

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muito sentido — recomendouJack —, e se vier algum animalpara nos morder...

— Mordo-o eu primeiro,menino Jack — prometeuHercule, mostrando a suamagnífica dentadura.

— Sim, Hercule vigiará— disse o prático —, mas os seuscamaradas e eu o renderemos.

— Não, Sr. Dick —interveio Acteon. — Hercule,Bat, Agostinho e eu somos obastante. É necessário quedescanse toda a noite.

— Obrigado, Acteon —agradeceu Dick Sand —, mas

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devo também...— Dick, deixe que esses

rapazes vigiem! — disse Mrs.Weldon.

— Eu também hei de fazersentinela! — acrescentou Jack,cujos olhos se fechavam comsono.

— Pois sim, Jack —acedeu Mrs. Weldon, que o nãoqueria contrariar.

— Mas — tornou ainda adizer Jack —, se não há leõesnem tigres na floresta, há lobostalvez!

— Oh! Lobos que nãovalem de nada! — respondeu o

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americano. — Nem lobos são,mas uma espécie de raposas, oumais propriamente de cãesselvagens, a que dão o nome deguarás.

— E mordem, os guarás?— perguntou Jack.

— Qual! Bastava umadentada de Dingo para os matar!

— Apesar de tudo —prosseguiu Jack, bocejando —, osguarás são lobos, porque assim sechamam!

Depois disto, Jackadormeceu nos braços de Nan,que se tinha encostado ao troncoda mangueira. Mrs. Weldon,

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deitada junto dela, deu um últimobeijo no filhinho, e por fim osseus olhos fecharam-se também.

Pouco depois, Herculetrazia para o acampamento primoBénédict, que se afastara para darcomeço a uma caçada aospiróforos. São os cucuyos, oumoscas luminosas, com que aselegantes enfeitam os penteados,como se fossem pedras preciosas.Estes insetos, que lançam luz vivae azulada por duas manchassituadas no toracete, sãonumerosíssimas na América doSul. Primo Bénédict contava fazerdeles grande provisão, mas

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Hercule não lhe deu tempo, e,apesar das suas recriminações, ovigoroso negro trouxe consigo oentomologista. Hercule tinharecebido aquela ordem ecumpriu-a militarmente — o quesalvou grande número de moscasluminosas de serem encarceradasna caixa de folha.

Passados alguns minutos,excetuando o gigante, que velava,todos dormiam profundamente.

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CAPÍTULO XVII

CEM MILHAS EM DEZ

DIAS Acontece frequentemente

aos viajantes ou àqueles quevagueiam pelos bosques e queneles têm dormido ao ar livreserem acordados por gritos tãocaprichosos quanto

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extraordinários. Nestes concertosmatinais ouve-se cacarejar,grunhir, grasnar, rir, uivar e quase“falar”, se se pode admitir estapalavra para complemento dasérie dos diversos sons.

São os macacos quesaúdam por tal modo o romper damadrugada. Vê-se o mariquinha, osagui de cara mosqueada, o monopardo, de cuja pele os índios seservem para cobrir as fechariasdas espingardas, os saitaias,fáceis de reconhecer pelos doiscompridos penachos de pelo, emuitos outros espécimes destanumerosa família.

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Destes diversosquadrúmanos, os mais notáveis,incontestavelmente, são osguaribas, de cauda preênsil e carade Belzebu. Quando o Sol nasce,o mais experimentado do bandoentoa com voz forte e sinistra umsalmo monótono. É o barítono dacompanhia. Os jovens tenoresrepetem depois a sinfoniamatinal. Dizem então os índiosque os guaribas estão “rezandopadre-nossos”.

Mas naquele dia osmacacos não fizeram a costumadaoração, porque não se ouviram;contudo, a voz destes animais

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pode ser escutada de muito longe,porque é produzida pela vibraçãorápida de uma espécie de tamborósseo, formado peloengrossamento do osso hióide dopescoço.

Fosse qual fosse a razão, ocerto é que nem os guaribas, nemos saitaias, nem os outrosquadrúmanos daquela florestaimensa entoaram o concerto damanhã.

Não teria este fatoagradado aos indígenas, nãoporque eles gostem daquelegênero de música coral, mas pelacaçada que fazem aos macacos,

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em razão de ser excelente a carnedestes animais, principalmentequando é defumada.

Dick Sand e os seuscompanheiros não sabiam doshábitos dos guaribas, aliás teriasido para eles objeto de surpresao fato de os não ouvirem.Levantaram-se uns depois dosoutros, reparados de forças pelashoras de repouso, sem quenenhum sinal de alarme os tivesseperturbado.

Não foi Jack o último aacordar. O seu primeiro cuidadofoi perguntar a Hercule se haviacomido algum lobo durante a

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noite, mas, como nenhumaparecera, Hercule, porconsequência, não tinha almoçadoainda.

Todos estavam em jejum,como Hercule. Depois da oraçãoda manhã, Nan ocupou-se doalmoço.

Este foi como a ceia davéspera, mas, com o apetiteaguçado pelo ar matinal dafloresta, todos comeram bem.Convinha adquirir forças para ajornada, e pela primeira vezprimo Bénédict compreendeu queo comer não era um atoindiferente e inútil da vida.

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Declarou, porém, que não tinhavindo “visitar” aquele país paraandar com as mãos nas algibeiras,e que se Hercule continuasse anão deixar apanhar os cucuyos eoutras moscas luminosas, Herculeteria de se haver com ele.

Esta ameaça não pareceuassustar demasiadamente ogigante. Contudo, Mrs. Weldonchamou-o de parte, e disse-lheque talvez fosse melhor deixarprimo Bénédict andar de um parao outro lado, com a condição,porém, de nunca o perder devista. Não convinha privarcompletamente primo Bénédict de

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prazeres tão naturais na suaidade.

Às sete horas da manhã apequena caravana pôs-se acaminho, dirigindo-se para leste econservando a ordem de marchaadoptada no dia anterior.

Era sempre a mesmafloresta. Sobre aquele solovirgem, onde o calor e a umidadese combinam para ativar avegetação, era bem de julgar queo reino vegetal se mostrasse emtoda a sua grandeza. O paralelodaquela vasta região quase seconfundia com as latitudestropicais, e durante certos meses

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do Estio o Sol, quando passavapelo zênite, dardejavaperpendicularmente os seus raios.Havia, por consequência, grandequantidade de calor acumuladonaquelas terras, cujas camadasinferiores se conservavamúmidas. Nada, pois, mais belo doque esta sucessão de florestas ou,antes, esta floresta sem fim.

Contudo, Dick Sand nãodeixara de notar que, segundoHarris, estavam na região dosPampas, e pampa, na línguaquíchua, significa “planície”, e,se a memória o não enganava,Dick Sand julgava que tais

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planícies têm os seguintescaracteres: carência de água,ausência de árvores, falta depedras, abundância de cardos,durante a estação das chuvas,cardos que no tempo do calor setornam quase como arbustos, eformam então matagaisimpenetráveis, e, finalmente,algumas árvores e arbustosespinhosos, dando este conjuntoum aspecto de aridez e desolação.

Nada disto, porém, se viudesde que a pequena caravana,guiada pelo americano, deixara olitoral. A floresta estendia-se atéaos limites do horizonte. Não era,

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pois, o pampa, como imaginara ojovem prático. Teria a naturezacaprichado, como dissera Harris,em fazer daquela região doAtacama um territórioprivilegiado, do qual Dick Sandnão sabia mais senão que formavaum dos mais vastos desertos daAmérica do Sul, entre os Andes eo oceano Pacífico?

Naquele dia, Dick Sandfez a este respeito algumasperguntas ao americano, emostrou-lhe a surpresa que lhecausava o extraordinário aspectodo pampa.

Mas Harris desenganou-o

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imediatamente, dando-lhe sobreaquela região da Bolívia exatasparticularidades, provando assimo seu profundo conhecimento dopaís.

— Tem razão, meu jovemamigo — disse Harris ao prático.— O verdadeiro pampa é talcomo lho têm descrito os livrosde viagem, isto é, uma planícieimensa, muito árida, cuja jornadaatravés dela é a maior parte dasvezes impossível. Faz lembrar asnossas planícies da América doNorte, com a diferença, porém, deque estas são um pouco maispantanosas. Tal é o pampa do rio

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Colorado, tais são os “Uanos” doOrenoque e da Venezuela. Aqui,porém, estamos num país cujaaparência a mim mesmo meespanta. É a primeira vez que eupercorro este caminhoatravessando esta altura, caminhoque tem a vantagem de abreviar anossa viagem. Mas, se o não viainda, sei contudo que fazextraordinário contraste com overdadeiro pampa. Este vê-lo-ia,não entre a cordilheira de oeste, eas altas serras dos Andes, maspara além das montanhas, na parteoriental do continente, que seestende até ao Atlântico.

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— Teremos pois deatravessar a cadeia dos Andes?

— perguntou Dick Sand,com muito interesse.

— Não, meu amigo —volveu o americano, sorrindo.

— Disse-lhe “vê-lo-ia” enão “vê-lo-á”. Sossegue, que nãodeixaremos esta alta planura, daqual as maiores alturas nãoexcedem mil e quinhentos pés. Sefosse necessário atravessar ascordilheiras com os únicos meiosde transporte de que dispomos,não me teria arriscado asemelhante aventura.

— E com efeito —

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declarou Sand —, melhor seriaseguir ao longo pela costa.

— Antes isso, cem vezes!— replicou Harris. — Mas ahacienda de San Felice estásituada para aquém dacordilheira.

Tanto a primeira como asegunda parte da nossa viagemnão terão, pois, dificuldades.

— E não receia perder-senestas florestas, que pelaprimeira vez atravessa? —perguntou Dick Sand.

— Não receio. Sei que elaé como um mar imenso, ou, antes,como o fundo de um mar, onde

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nem os marítimos poderiam tomaralturas dos astros e conhecer asua posição; mas, habituado aviajar pelos bosques, sei procuraro caminho unicamente peladisposição de certas árvores,pela direção das suas folhas, pelomovimento ou composição dosterrenos e por mil outrasparticularidades, que decerto lheescapam. Tenha a certeza de queos hei de conduzir aonde devemparar!

Tudo isto dizia Harris comcerta franqueza. Dick Sand e oamericano, à frente da caravana,falavam muitas vezes um com o

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outro sem que ninguém entrassena conversação. Se o práticotinha algumas inquietações, que oamericano não conseguiadissipar, preferia guardá-las parasi.

Os dias 8, 9, 10, 11 e 12de Abril passaram-se semincidente notável. Nãocaminhavam mais de oito a novemilhas em doze horas. Osmomentos destinados às refeiçõesou ao repouso sucediam-seregularmente, e, embora a fadigajá se fizesse sentir, o estadosanitário era ainda muitosatisfatório.

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Jack começava a sofrerdaquele viver no bosque, a quenão estava acostumado. Demais amais não cumpriram as promessasque lhe fizeram. Os bonecos deborracha, os beija-flores, tudoparecia recuar constantemente.Também lhe tinham falado dosmais belos papagaios do mundo,os que deviam abundar naquelasriquíssimas florestas. Ondeestavam, pois, os papagaios depenas verdes, quase todosoriundos daquelas regiões; asararas de cabeça despida depenas, de longas caudaspontiagudas, de cores brilhantes e

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cujos pés nunca pousam na terra;os camindés, mais especialmentevistos nos países tropicais; osperiquitos multicolores, decabeça emplumada, e, finalmente,todas as aves parreiras, das quaisdizem os índios que falam ainda alíngua das tribos extintas?

Jack só via os papagaioscinzentos, de cauda encarnada,que superabundavam sob asárvores, mas estes papagaios jáele os vira. Para todas as partesdo mundo têm sido levados. Nosdois continentes enchem as casascom as suas garrulicesinsuportáveis, e de toda a família

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das psitácaras são os que maisfacilmente aprendem a falar.

Deve dizer-se que, se Jacknão estava contente, primoBénédict não estava maissatisfeito. Tinham-lhe dadoalguma liberdade durante amarcha para andar de um paraoutro lado; mas não encontrounenhum inseto digno de figurar nasua coleção.

À noite os piróforosobstinavam-se em não lheaparecer, nem em o atrair pelasfosforescências dos seustoracetes. A natureza pareciabrincar com o infeliz

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entomologista, que começava aestar de mau humor.

Durante mais quatro diascontinuou a marcha para onordeste, nas mesmas condições.A 16 de Abril contavam-se nãomenos de cem milhas percorridasdesde a costa. Se Harris se nãotinha perdido — e ele afirmavaque não — a hacienda de SanFelice estava apenas a vintemilhas do ponto ondedescansaram naquele dia. Antesde quarenta e oito horas apequena caravana teria abrigocômodo, onde poderia,finalmente, descansar de todas as

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fadigas.Contudo, apesar de o

planalto ter sido quase todoatravessado, não se encontrou umúnico indígena na extensafloresta.

Dick Sand, sem nada dizer,lastimava-se por não ter podidoencalhar noutro ponto do litoral.Mais para o sul ou imais para onorte, as vilas, as aldeias ou asplantações não faltariam, e Mrs.Weldon e os seus companheirosteriam mais cedo encontradoabrigo.

Mas se a região pareciaabandonada pelos homens, os

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animais reapareciam com maisfrequência nos últimos dias.

Ouviam-se algumas vezesgritos longos e tristes, que Harrisatribuiu a alguns dos corpulentostardígrados, hóspedes habituaisdaquelas vastas regiões cobertasde matas, os quais têm o nome depreguiças.

No mesmo dia, durante odescanso, ouviu-se um silvoagudo, que, por serextraordinário, não deixou deinquietar Mrs. Weldon.

— Que é isto? —perguntou ela, levantando-sesobressaltada.

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— É uma serpente! —exclamou Dick Sand, correndopara a frente de Mrs. Weldon coma carabina engatilhada.

Era para recear, comefeito, que algum réptil se tivessearrastado por entre as ervas atéao lugar onde descansavam. Nãoseria para espantar que fosse umaenorme sucuriúba, espécie dejibóia, que algumas vezes medequarenta pés de comprimento.

Mas Harris chamouimediatamente Dick Sand, a quemos negros iam seguindo, etranquilizou Mrs. Weldon.

Segundo a opinião do

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americano, o silvo que se ouviranão era de uma sucuriúba, porisso que esta serpente nãoassobia; indicava porém apresença de certos quadrúpedesinofensivos, mas muito numerososnaquele território.

— Descanse —recomendou ele — e não façanenhum movimento que possaassustar estes animais.

— Mas que animais são?— perguntava Dick Sand, que seimpusera o dever de obrigar oamericano a falar, e o qual, aliás,não se mostrava muito renitenteem lhe responder.

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— São antílopes, meujovem amigo — esclareceuHarris.

— Oh! Então quero vê-los! — exclamou Jack.

— É muito difícil, meuamigo — declarou o americano—, é muito difícil.

— Talvez possamos tentaraproximar-nos desses antílopesque assobiam — tornou DickSand.

— Qual! Não andaria trêspassos — respondeu oamericano, sacudindo a cabeça— sem que fugissem! É melhordeixá-los!

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Tinha porém razão de ser acuriosidade de Dick Sand. Quisver e, com a carabina na mão,meteu-se por entre as moitas.Imediatamente uma grandequantidade de gazelas graciosas,de chavelhos curtos e aguçados,passou com a velocidade de umatromba. Porque tinham pelo decor ruiva muito viva, pareciam,tal era a sua rapidez, uma nuvemde fogo que passava por debaixodo alto arvoredo da floresta.

— Já o tinha prevenido!— disse Harris, quando o práticovoltou.

Se foi realmente

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impossível distinguir aquelesantílopes, tão ligeiros na carreira,não aconteceu outro tanto a umoutro bando de animais, queapareceu no mesmo dia. Estesviram-se imperfeitamente, écerto, mas a sua aparição foicausa de animada discussão entreHarris e alguns dos seuscompanheiros.

O rancho, cerca das quatrohoras da tarde, parara um instantejunto de uma clareira, quando trêsou quatro animais de grandealtura desembocaram do mato,que estava a cem passos dedistância, e fugiram

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imediatamente, correndo comincrível velocidade.

Apesar dasrecomendações do americano, oprático desta vez, tendo firmadobem a pontaria, fez fogo sobre umdos animais; mas, no momento emque a carabina se disparava, foirapidamente desviada por Harris,e Dick Sand, apesar de bomatirador, errou o alvo.

— Não faça fogo! Nãofaça fogo! — ordenou oamericano.

— São girafas! —exclamou Dick Sand,respondendo assim à observação

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de Harris.— Girafas! — repetiu

Jack, endireitando-se no selim. —Onde estão elas?

— Girafas! — dissetambém Mrs. Weldon. —Enganas-te decerto, Dick. Não hágirafas na América.

— E, com efeito —acrescentou Harris, que pareciamuito perturbado —, não podehaver girafas neste país!

— Mas então?... —estranhou Dick Sand.

— Não sei realmente oque pense! — respondeu Harris.— Não o teriam enganado os

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olhos, meu amigo, e não serãoavestruzes os animais que viu?

— Avestruzes! — -repetiram. Dick Sand e Mrs.Weldon, olhando-se muitoadmirados.

— Sim — disse Harris.— Mas as avestruzes são

aves — replicou Dick Sand —, epor consequência não têm quatropatas.

— Mas eu julguei que osanimais que fugiram tãorapidamente eram bípedes!

— Bípedes! — volveu oprático.

— Pois parece-me ter

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visto muito bem animais dequatro patas — declarou entãoMrs. Weldon.

— E eu também — acudiuo velho Tom, cujas palavrasforam confirmadas por Bat,Acteon e Agostinho.

— Avestruzes de quatropatas! — exclamou Harris, rindo.— Isso seria engraçadíssimo.

— Por isso nós julgamosque eram girafas e não avestruzes.

— Não, meu amigo! Viumal com toda a certeza. A suailusão explica-se pela rapidezcom que aqueles animais fugiram.Mais de uma vez os caçadores se

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têm enganado, e na melhor boa-fé.O que dizia o americano

era plausível. Entre um avestruzde grande estatura e uma girafa demediana grandeza, vistos a certadistância, o engano seria fácil. Ouseja um bico, ou um focinho,ambos estão no extremo delonguíssimos pescoços, deitadospara trás; pode pois dizer-se queum avestruz é uma meia girafa. Sólhe faltam as pernas do quartotraseiro. Portanto, este bípede eaquele quadrúpede, passandoinesperada e rapidamente, podemser confundidos um com o outro.

Mas a melhor prova de

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que Mrs. Weldon e os outros seenganavam é que na América nãohá girafas.

Dick Sand fez então aseguinte reflexão: — Julgava queos avestruzes, como as girafas,não se encontravam no NovoMundo.

— Pois não, meu amigo —respondeu Harris —, e a Américado Sul possui uma espécieparticular. A esta espéciepertence o nandu, que foijustamente o que viu!

Harris dizia a verdade. Onandu é um pernalta muito comumnas planícies da América do Sul;

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a carne deste animal, quandonovo, é saborosa. Robusto, degrandeza que algumas vezesexcede a dois metros, tem o bicodireito, as asas compridas eformadas por penas espessas,tufadas e de cor azulada, os péstêm três dedos com unhas — oque principalmente os distinguedos avestruzes da África.

Estas exatíssimasparticularidades deu-as Harris,que parecia ser muito conhecedordos nandus. Mrs. Weldon e osseus companheiros convenceram-se, afinal, de que se tinhamenganado.

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— Mas — acrescentouHarris — é muito possívelencontrarmos novos bandos deavestruzes. Se assim for, olhemmelhor, para não confundiremoutra vez com quadrúpedes! Esobretudo, meu amiguinho,lembre-se das minhasrecomendações e não torne afazer fogo, seja qual for o animal!Não temos necessidade de caçarpara nos alimentarmos, e, repito-lhe, importa muito que adetonação de uma arma nãorevele a nossa presença nestafloresta.

Dick Sand, porém, ficara

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pensativo. Uma dúvida se lhelevantou no espírito.

No dia seguinte, 17 deabril, continuou a marcha. Oamericano afirmou que dentro devinte e quatro horas a pequenacaravana estaria por certo adescansar na hacienda de SanFelice.

— Lá, Mrs. Weldon —acrescentou ele —, será tratadacom todos os cuidados devidos auma senhora, e com poucos diasde repouso ficará completamenterestabelecida das fadigas dajornada. É provável que nãoencontre na fazenda o luxo a que

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está habituada na sua casa em SãoFrancisco, mas verá que nasnossas plantações não faltam boascomodidades. Não somosabsolutamente selvagens.

— Sr. Harris — respondeuMrs. Weldon —, só temosagradecimentos a dar-lhe emtroca do seu generoso auxílio,mas são agradecimentos sinceros.É, porém, tempo de chegarmos!

— Muito cansada, Mrs.Weldon?

— Sim, mas poucoimporta. O pior é que Jack vaienfraquecendo pouco a pouco. Afebre começa a atacá-lo em horas

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certas!— O clima nestas alturas é

muito sadio; contudo, deve dizer-se que, em Março e em Abril,reinam aqui febres intermitentes.

— Assim é — confirmouentão Dick Sand —, mas anatureza, sempre previdente, pôso remédio junto ao mal.

— Como, meu amigo? —perguntou Harris, que parecia nãoter compreendido.

— Pois não estamos naregião onde se encontram asárvores da quina? — disse DickSand.

— Tem razão. Aqui há as

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árvores que produzem a preciosacasca contra essa febre.

— Admiro-me —prosseguiu Dick Sand — de nãoas termos visto ainda.

— Meu jovem amigo —replicou Harris —, essas árvoresnão são fáceis de distinguir.Conquanto, pela maior parte dasvezes, sejam altas, tenham folhasgrandes, flores cor-de-rosa earomáticas, não se descobremfacilmente. Estão disseminadaspelas florestas, e os índios queapanham a quina só as conhecempor estarem sempre cobertas defolhas.

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— Sr. Harris — pediuMrs. Weldon —, se vir umadessas árvores, mostre.

— Certamente, Mrs.Weldon, mas na hacienda hásulfato de quinino, que é melhorpara cortar as febres do que acasca da árvore.(1)

*1. Antigamente reduzia-se esta casca a pó, o qual tinha onome de “pó dos jesuítas”,porque os jesuítas de Romareceberam da sua missão daAmérica considerávelquantidade dele.

Passou-se sem incidente o

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último dia da jornada. Veio anoite e pararam como eracostume. Não tinha chovido atéentão, mas o tempo ia mudar,porque uma evaporação quenteelevou-se do solo,transformando-se em espessonevoeiro.

Começava então a estaçãodas chuvas. Felizmente, no diaseguinte, confortável abrigo seriahospitaleiramente proporcionadoà pequena caravana. Poucas horasrestavam já a passar.

Apesar de, segundo diziaHarris, que fundamentava o seucálculo na duração da viagem,

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não poderem estar a mais de seismilhas da hacienda, tomaram-setodas as precauçõesindispensáveis para a noite. Tome os companheiros velariam, unsapós outros. Dick Sand cuidou emque nada fosse esquecido. Nãoqueria menos do que dantesdeixar a sua habitual prudência,porque uma suspeita terrívelentrara no seu espírito; mas nadaquis dizer.

Pararam junto de umpequeno bosque de árvores altase frondosas. Mrs. Weldon e osseus, a quem a fadiga dominava,dormiam já, quando foram

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sobressaltados por um gritoenorme.

— Que é isto? —perguntou vivamente Dick Sand,

pondo-se de pé primeiroque os outros.

— Sou eu! Sou eu! —respondeu primo Bénédict.

— O que houve? —perguntou Mrs. Weldon.

— Fui mordido!— Por uma serpente

talvez? — disse, assustada, Mrs.Weldon.

— Não, não! Não foiserpente, mas um inseto —explicou primo Benédict. — Ah!

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Mas peguei-o, peguei-o!— Pois bem, pise-o —

aconselhou Harris — e deixe-nosdormir descansados, Sr. Bénédict.

— Pisar um inseto! —exclamou primo Bénédict. — Issonão! É necessário ver primeiroque inseto é.

— Algum mosquito! —sugeriu Harris, encolhendo osombros.

— Qual! É mosca —elucidou primo Bénédict —, emosca que deve ser muito rara!...

Dick Sand, que tinhaacendido uma pequena lanterna,aproximou-se de primo Bénédict.

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— Ora graças àProvidência! — exclamou este.— Tenho a compensação de todasas minhas decepções! Fiz enfimuma descoberta!

O pobre homem deliravade prazer. Olhava para a moscacom ar triunfante. Seria capaz dea beijar.

— Mas o que é? —perguntou Mrs. Weldon.

— Um díptero, prima, umfamoso díptero!

E primo Bénédict mostrouuma mosca menor do que umaabelha, de cor escura, e listradade amarelo na parte inferior do

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corpo.— Não é venenosa? —

perguntou Mrs. Weldon.— Não, prima, não é, pelo

menos para o homem; mas para osantílopes, para os búfalos, e atémesmo para os elefantes, é casodiferente! Ah! Que adorávelinseto!...

— Mas não nos dirá comose chama essa mosca? —perguntou Dick Sand.

— Esta mosca —respondeu o entomologista —,esta mosca que eu tenho aqui,entre os meus dedos, esta mosca...chama-se tsé-tsé, famoso díptero

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que faz honra a um país e que atéhoje ainda não foi visto naAmérica!...

Dick Sand não se atreveu aperguntar a primo Bénédict qualera a parte do mundo ondeunicamente se encontrava aqueletemível inseto.

Passado este incidente,todos continuaram o sonointerrompido. Dick Sand, porém,apesar da fadiga que o prostrava,não pôde dormir.

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CAPÍTULO XVIII

A PALAVRA TERRÍVEL

Era tempo de chegar.Grande abatimentoimpossibilitava Mrs. Weldon decontinuar por mais tempo umaviagem feita em tão penosascondições. O seu filho, muitovermelho, durante os acessos dafebre, pálido nos intervalos, faziapena de ver. Mrs. Weldon,extremamente inquieta, não quisabandonar Jack, nem mesmo aoscuidados de Nan. Tinha-o meio

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deitado nos braços.Era tempo de chegar! Mas,

pelo que dizia o americano, natarde do dia que então começava,18 de Abril, a pequena caravanaestaria abrigada na hacienda deSan Felice.

Doze dias de jornada parauma senhora, doze noitespassadas ao ar livre, era paraabater Mrs. Weldon, por muitoforte que fosse. Mas pior eraainda para uma criança, e adoença de Jack, a quem faltara omais simples tratamento, bastoupara o prostrar completamente.

Dick Sand, Nan, Tom e os

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seus camaradas sofreram asfadigas da viagem.

Os víveres, conquantocomeçassem a rarear, não tinhamfaltado ainda e estavam bemconservados.

Harris parecia afeito àslongas caminhadas por entre asflorestas; não se mostravacansado. Dick Sand, porém, notouque à proporção que seaproximavam da hacienda Harrisparecia mais preocupado, e que oseu parecer era menos franco,quando o contrário seria maisnatural.

Era, pelo menos, a opinião

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do jovem prático, cada vez maisdesconfiado do americano. E,contudo, que interesse teriaHarris em os enganar? Dick Sandnão o sabia dizer, mas vigiavamuito de perto o seu guia.

O americanoprovavelmente percebia queestava já mal visto por DickSand, e era sem dúvida estadesconfiança que o fazia aindamais taciturno junto do seu“jovem amigo”.

Continuou a marcha.Na floresta menos cerrada,

as árvores destacavam-se emgrupos e já não formavam

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bosques impenetráveis. Seria overdadeiro pampa de que falaraHarris?

Correram as primeirashoras do dia sem que nenhumincidente viesse agravar asinquietações de Dick Sand. Elenotou, no entanto, dois fatos, quetalvez não tivessem grandeimportância, mas naquelasconjunturas nenhumaparticularidade se devia perder.

Foi o procedimento deDingo o que primeiramente atraiumuito especialmente a atenção doprático.

Efetivamente, Dingo, que

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durante todo o caminho pareciaseguir um rasto, mudou quaserepentinamente. Até então andarasempre com o focinho no chão, amaior parte das vezes farejandoas ervas e os arbustos ondeparava, ou se ladrava era tãotristemente que parecia quererexprimir penas ou saudades.

(Naquele dia, porém, osladridos do extraordinário animaleram mais agudos, e às vezesmais furiosos, como quando viaNegoro no convés do “Pilgrim”.

Uma suspeita passou peloespírito de Dick Sand, a qual lhaconfirmou Tom, dizendo-lhe:

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— É notável, Sr. Dick!Dingo não fareja a terra comofazia ainda ontem. Anda com ofocinho levantado, está agitado etem o pelo hirto! Parece que delonge lhe dá o faro de...

— Negoro, não é verdade?— atalhou Dick Sand, agarrandoo braço do velho negro e fazendo-lhe sinal para falar em voz baixa.

— Negoro, sim, Sr. Dick.Não será possível que ele tenhaseguido as nossas pegadas?

— É possível, Tom, e atémesmo que não esteja agora muitolonge.

— Mas... por quê? —

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perguntou Tom.— Por quê? Ou Negoro

não conhecia a região, e nessecaso tinha interesse em não nosperder de vista...

— Ou então?... — disseTom, que olhava para o práticocheio de ansiedade.

— Ou então — prosseguiuDick — conhecia-a e...

— Mas como poderiaNegoro conhecer esta região? Elenunca esteve aqui!

— Nunca esteve aqui? —murmurou Dick Sand. — Enfim, ofato incontestável é que Dingoladra como se aquele homem, que

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ele detesta, se tivesse aproximadode nós!

E, interrompendo-se parachamar o cão, que, depois dehesitar, correu para ele, disse: —Negoro! Negoro!

Um uivo furioso foi aresposta de Dingo. Aquele nomefez sobre o cão o efeito docostume, e Dingo avançou comose Negoro estivesse escondidopor trás das moitas.

Harris, que, tudo tinhavisto, aproximou-se do prático.

— Que quer Dingo? —inquiriu.

— Oh!... Nada ou quase

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nada, Sr. Harris — respondeuTom, ironicamente. — Pedíamosnotícias do nosso companheiro debordo, aquele que se perdeu!

— Ah! — disse oamericano. — O cozinheiro donavio, de quem já me falaram?

— Exatamente — explicouTom. — Quem vir Dingo dirá queNegoro anda perto.

— Como poderia elechegar até aqui? — prosseguiuHarris. — Que eu saiba, nuncaele veio a estes sítios!

— Decerto, salvo o casode o ter ocultado! — sugeriu Tom.

— Seria para admirar —

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continuou Harris —, mas, sequerem, podemos bater o mato. Épossível que o homem tenhanecessidade de socorro e queesteja em grande aflição...

— É inútil, Sr. Harris —retorquiu Dick Sand. — SeNegoro soube vir até aqui, sabe irpara diante. É homemdesembaraçado!

— Como quiser...— Vamos, Dingo, cala-te

— ordenou Dick Sand, para darpor finda a conversação.

A segunda observaçãofeita pelo prático dizia respeitoao cavalo do americano.

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Não parecia dar-lhe o“cheiro da cavalariça”, comoacontece aos animais da suaespécie.

Não sorvia o ar, nãoapressava o passo, não dilatavaas ventas nem relinchava, sinaisestes que indicam o fim de umajornada. Observando-o bem, via-se que estava tão indiferentecomo se a hacienda, à qual tinhaido muitas vezes, e que deviaconhecer, estivesse ainda a algunscentos de milhas.

“Não dá sinal de cavaloque chega a casa”, pensava oprático.

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E, contudo, pensando noque Harris havia dito na véspera,restavam apenas seis milhas acaminhar, e destas, às cinco horasda tarde, quatro estariam andadas,com toda a certeza.

Mas se o cavalo não davamostras de estar próximo dacavalariça, de que aliás deviagostar, não havia, tão-pouco,sinais de proximidade de umagrande plantação, tal como deviaser a hacienda de San Felice.

Mrs. Weldon, indiferente,como então estava, a tudo quantonão dizia respeito ao seu filho,ficou impressionada por ver

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ainda a região tão deserta. Nemum indígena, nem um moço dahacienda a tão curta distância!Ter-se-ia enganado Harris? Não!Repeliu esta ideia. Nova demoraseria a morte do seu Jack!

Todavia, Harris caminhavasempre na frente, mas observandoo bosque, ora para a direita, orapara a esquerda, como quem nãoestá certo de si... ou do caminhoque trilha!

Mrs. Weldon fechou osolhos para não ver.

Depois de percorreremuma planície de uma milha deextensão, a pequena caravana

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caminhou de novo por entre asárvores de outra floresta, a qualnão era contudo tão espessa comoa que ficava para oeste.

Às seis horas da tardetinham chegado a um bosquecerrado, pelo qual parecia terpassado um bando de grandesanimais.

Dick Sand olhou muitoatentamente em volta dele.

Numa altura que nãoexcedia muito o tamanho de umhomem, os ramos estavamarrancados ou quebrados; aomesmo tempo as ervas,violentamente afastadas,

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mostravam no terreno, um poucoalagadiço, pegadas que não eramde onças ou de pumas.

Seriam talvez daspreguiças ou dalguns outrostardígrados, cujos pés tinhamdeixado sinais no solo? Mascomo explicar, neste caso, osramos quebrados a tal altura?

Os elefantes poderiam,sem dúvida, deixar semelhantesvestígios, marcar tão largaspegadas, e fazer tão grandeabertura nas impenetráveisselvas. Mas não se encontramelefantes na América. Estesenormes paquidermes não são

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oriundos do Novo Mundo, nemtão-pouco se têm podidoaclimatar nele.

A hipótese, pois, de que oselefantes tivessem por alipassado era inadmissível.

Fosse, porém, como fosse,Dick Sand não disse o que aquelefato inexplicável lhe fazia pensar.A tal respeito nem sequerinterrogou o americano. Que sedevia esperar de um homem quetentara fazer-lhe acreditar que asgirafas eram avestruzes? Harristeria dado sobre o caso qualquerexplicação mais ou menos bemimaginada e que em nada mudaria

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a situação.Em todo o caso, a opinião

de Dick a respeito de Harrisestava formada. Convencia-se deque ele era um malvado!

Esperava apenas ocasiãopara pôr bem em relevo a suadeslealdade e para lhe pedircontas. Essa ocasião — tudo oindicava — estava próxima.

Qual era porém o fimsecreto de Harris? Qual era ofuturo que se antolhava aosnáufragos do “Pilgrim”? DickSand pensava repetidas vezes quea sua responsabilidade nãoacabara com o naufrágio.

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Competia-lhe, e mais do quenunca, atender à salvaçãodaqueles que o encalhe lançara àcosta! Aquela mulher com o seufilho, os negros, todos os seuscompanheiros de infortúnio,enfim, era ele quem os deviasalvar! Mas se alguma coisapodia tentar a bordo, se a bordopodia proceder como marinheiro,ali, no meio das terríveisprovações que previa, que deviafazer?

Dick Sand não quis fecharos olhos perante a terrívelrealidade, que de momento paramomento se tornava evidente.

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Capitão do “Pilgrim”, apesar deter quinze anos, era ele quemtornaria a comandar nas presentesconjunturas. Mas nada quis dizerque pudesse atemorizar a pobremãe, antes de chegar a ocasião deproceder conforme ascircunstâncias aconselhassem.

Nada disse nem mesmoquando, precedendo a caravana acerca de cem passos de distância,chegou à margem de uma largaribeira e viu grandes animaiscorrendo por entre as ervas altasda encosta.

— Hipopótamos!Hipopótamos! — ia ele a dizer.

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Eram, com efeito, estespaquidermes de enorme cabeça,focinho largo e grosso, bocaguarnecida de dentes formidáveis,pernas curtas, e cuja pele é de corruiva-escura! Mas hipopótamosna América!

Continuaram, mas commuito custo, caminhando duranteo dia. O cansaço começava aretardar até mesmo os maisfortes. Era tempo de chegar, ouseria forçoso parar novamente.

Mrs. Weldon, preocupadacom o seu filho Jack, não sentiatalvez a fadiga, mas tinha todas assuas forças esgotadas. Todos mais

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ou menos estavam fatigados.Dick Sand resistia pelo

excesso de energia moral que lhevinha do sentimento do dever.

Pelas quatro horas datarde, o velho Tom encontrouentre as ervas um objeto que lheatraiu a atenção. Era uma arma,uma espécie de faca de formaparticular, que tinha a lâminarecurvada e encabada num caboquadrangular, toscamente lavrado.

Tom levou a faca a DickSand, que lhe pegou, examinou-ae mostrou por fim ao americano,dizendo:

— Os indígenas não

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devem estar longe!— Não devem, não —

respondeu Harris —, contudo...— Contudo?... — repetiu

Dick Sand, fixando os olhos emHarris.

— Devíamos estar pertoda hacienda — tornou Harris,hesitando —, e não reconheço...

— Perdeu-se? —perguntou com vivacidade DickSand.

— Não, não estouperdido... A hacienda não deveficar agora a mais de três milhas.Quis vir pelo caminho mais curtoatravés da floresta, e fiz mal,

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talvez.— Talvez — admitiu Dick

Sand.— Farei melhor, penso eu,

em ir andando adiante — sugeriuHarris.

— Não, Sr. Harris, nãonos separemos — replicou DickSand, com modo decidido.

— Como quiser! — tornouo americano —, mas durante anoite ser-me-á difícil guiá-los.

— Não importa! — disseDick Sand. — Pararemos. Mrs.Weldon não se oporá a passarmais uma, a última noite, debaixodas árvores, e amanhã, depois do

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Sol nascer, continuaremos acaminhar. Duas ou três milhaspercorrem-se numa hora.

— Seja assim —respondeu Harris.

Neste momento Dingoladrava furiosamente.

— Aqui! Dingo, aqui! —chamou Dick Sand. — Tu bemsabes que não há ninguém e queestamos num deserto. ..

Decidiu-se que se fizessea última paragem.

Mrs. Weldon deixou queos seus companheirosresolvessem sem pronunciar umaúnica palavra. Jack, prostrado

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pela febre, descansava nos seusbraços.

Procurou-se o melhorlugar para passar a noite.

Foi sobre um pequenobosque que Dick Sand tratou dedispor tudo para poderem dormir.Tom, que se ocupava juntamentecom Dick dos preparativos, paroude repente, gritando:

— Sr. Dick... Veja!...Veja!...

— Que é, Tom? —perguntou Dick Sand, com aplacidez de quem está prevenidopara tudo.

— Ali... Ali... — indicou

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Tom —, naquelas árvores...manchas de sangue!... No chão,membros mutilados!...

— Cala-te, Tom, cala-te!Efetivamente, pelo chão

estavam mãos cortadas, e, junto aestes restos humanos, cangasquebradas e uma correntearrebentada.

Felizmente, Mrs. Weldonnada vira deste horrendoespetáculo.

Harris conservava-sedesviado, e quem o tivesse vistonaquele momento ficariaimpressionado com a mudançaque nele se operara. Havia na sua

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fisionomia traços de ferocidade.Dingo, que se aproximara

de Dick Sand, ladravaenraivecido diante dos restosensanguentados.

O prático enxotou-o, masnão sem muito custo.

Entretanto o velho Tom,vendo as cangas e a cadeiaquebrada, ficou imóvel, como seos pés estivessem pregados aochão. Com os olhosdemasiadamente abertos e asmãos hirtas, olhava, e murmuravaestas incoerentes palavras:

— Já vi... já vi... estesferros... Era muito pequenino...

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Vi!...É que, sem dúvida, as

recordações da sua infância oassaltavam vagamente... Faziadiligência para se lembrar!... Iafalar!...

— Cala-te, Tom! —repetiu Dick Sand. — Por Mrs.Weldon, por todos nós, te peçoque te cales!

E o prático levou consigoo velho negro.

Escolheu-se a algumadistância daquele lugar um outroem que pernoitassem.

Preparou-se a refeição,mas pouco se comeu dela. Havia

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mais cansaço do que fome.Estavam todos sob uma indizívelimpressão de desassossego, queera quase terror.

Caiu a noite. Em poucotempo as trevas eram profundas.O céu estava coberto de nuvensde trovoada. Para o lado dooeste, no horizonte, viam-se, porentre as árvores, brilharrelâmpagos de calor. O ventoacalmara completamente; nemuma folha sequer se agitava nasárvores. Aos ruídos do diasucedera absoluto silêncio. Erafácil de acreditar que a atmosfera,pesada e saturada de eletricidade,

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se tornara imprópria para atransmissão do som.

Dick Sand, Agostinho eBat velavam juntos.Diligenciavam naquela noiteprofunda ver alguma claridade ououvir algum ruído que lhes fossesuspeito. Nada, porém,perturbava o silêncio e aobscuridade da floresta.

Tom, não amedrontado,mas absorvido pelas suasrecordações, com a cabeçainclinada, continuava imóvel,como ferido por um golpeimprevisto.

Mrs. Weldon acalentava o

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filho nos braços, e só nelepensava.

Primo Bénédict dormiatalvez, porque era o único quenão sentia a impressão geral. Assuas faculdades para pressentirnão iam muito longe. De repente,pelas onze horas, ouviu-se umrugido prolongado e grave,acompanhado por uma espécie deurro mais agudo. Tom pôs-se depé, estendendo a mão para umamata espessa, que distava umamilha quando muito.

Dick Sand agarrou-o pelobraço, mas não pôde evitar queTom gritasse: — Leão! Leão!

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O velho negro reconhecerao rugido que tantas vezes ouviraquando era criança.

— É o leão! — repetiuele.

Dick Sand, não podendo jádominar-se, correu de punhal namão para o lugar onde ficaraHarris...

O americano, porém, játinha desaparecido, levandoconsigo o cavalo.

Houve como que umarevelação no espírito de DickSand... Não estava onde supunha!

Não foi a costa daAmérica que o “Pilgrim”

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avistara! Não foi a ilha de Páscoaque o prático marcou, mas outrailha, demorando precisamente aoeste do continente em queestavam, como a ilha de Páscoafica a oeste da América!

A bússola enganara-odurante uma parte da viagem. Éconhecida a razão! Arrastado coma tempestade, seguindo rumoerrado, devia ter montado o CaboHorn, e do oceano Pacíficopassado para o Atlântico! Avelocidade do seu navio, que sóimperfeitamente podia estimar,tinha duplicado, sem que sesoubesse, pela força do temporal.

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Eis a razão por que asárvores da borracha, as quinas, osprodutos da América do Sul,faltavam a este continente, quenão era nem o planalto deAtacama, nem o pampa daBolívia!

Eram girafas, e nãoavestruzes, que fugiram naclareira! Eram elefantes queatravessavam a mata espessa!Eram hipopótamos, cujo repousoao abrigo das ervas altas DickSand perturbara! Era a tsé-tsé, odíptero que Bénédict apanhou, atemível tsé-tsé, cujas mordedurasmatam os animais das caravanas!

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Era, finalmente, o rugidodo leão, que ressoava nosbosques! As cangas, as correntes,a faca de forma especial, eram osutensílios do mercador deescravos! Aquelas mãosmutiladas eram de cativos!

Negoro e Harris deviamestar conluiados!

E estas palavras terríveis,adivinhadas por Dick Sand,saíram, enfim, dos seus lábios:

— A África! A ÁfricaEquatorial! A África dosnegreiros e dos escravos!

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Segunda Parte

NA ÁFRICAQuando a decisão e a

audácia habitam um corpo jovemgeram abnegação e heroísmo.

Agora, pela terra adentro,perdido o Pilgrim nas costas de

Angola, na África, e não nas

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Américas, Dick Sand vaipenetrando no continente.

Florestas, rios e animais ferozessão perigos que surgem a cada

passo. Mas a verdadeiro ameaçaé outra... o homem. Dick Sand,embora muito jovem, tudo vaienfrentar pela salvação dos

amigos — e a glória de seu nome.

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CAPÍTULO I

A ESCRAVATURAA escravatura! Ninguém

ignora a significação destapalavra, que nunca devia serproferida pelos homens. Estetráfico abominável, feito durantemuito tempo em proveito dasnações europeias que possuíamcolônias de além-mar, masproibido, há já alguns anos, faz-secontudo ainda em grande escala,principalmente na África Central.

Na segunda metade doséculo XIX, a assinatura de

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alguns Estados, que se dizemcristãos, ainda se não lê notratado que aboliu a escravidão.

Seria para acreditar que otráfico de escravos se não fizessejá, que a compra e venda decriaturas humanas tivesseacabado.

Tal assim não acontece,porém, e é isto justamente o que oleitor deve conhecer se quisertomar verdadeiro interesse pelasegunda parte desta história.Convém saber-se o que são essascaçadas aos homens, queameaçam despovoar umcontinente inteiro com o fim de

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sustentar algumas colônias deescravos, onde e de que modo sefazem essas bárbaras correrias, osangue que custam, os incêndios eos roubos que provocam e,finalmente, a quem aproveitam.

Foi no século XV que pelaprimeira vez se viu o tráfico denegros. As circunstâncias em quetal comércio se estabeleceu foramas seguintes:

Os Muçulmanos, depois deexpulsos da Espanha, refugiaram-se para além do estreito na costada África. Os Portugueses, queentão ocupavam essa parte dolitoral, perseguiram-nos

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encarniçadamente. Algunsfugitivos foram feitos prisioneirose levados para Portugal.Reduzidos à servidão,constituíram o primeiro núcleo deescravos africanos que se formouna Europa Ocidental depois doestabelecimento da era cristã.

Mas aqueles muçulmanospertenciam na sua maioria afamílias opulentas, que osquiseram resgatar a troco degrandes riquezas. Recusaram-seos Portugueses: não tinham emque empregar o ouro estrangeiro.O que lhes faltava eram braçosindispensáveis para os rudes

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trabalhos das colônias nascentes,e, para que tudo se diga, osbraços do escravo.

As famílias muçulmanas,não conseguindo resgatar osparentes cativos, propuseramentão a sua troca por númeromaior de negros da África, dosquais facilmente se apoderariam.Aceitaram os Portugueses aoferta, que lhes dava vantagem, eassim se fundou a escravatura naEuropa.

Pelos fins do século XVI,este tráfico odioso estavageralmente admitido, sem querepugnasse aos costumes, ainda

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bárbaros, daqueles tempos. Todosos Estados o protegiam, a fim demais rapidamente e por modomais seguro colonizarem as ilhasdo Novo Mundo. Os escravos deorigem negra resistiriam melhornos lugares onde os brancos malaclimatados, e pouco afeitos aocalor inter-tropical, morreriamaos milhares. O transporte denegros para as colônias daAmérica fazia-se então em naviosespeciais, e foi este ramo decomércio transatlântico a causade se estabelecerem importantesmercados em diversos pontos dacosta da África. A mercadoria

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custava pouco no país que aexportava, e os lucros eramconsideráveis.

Mas, por muito necessáriaque fosse, sob todos os pontos devista, a fundação das colônias dealém-mar, essa necessidadecontudo não justificava aexistência dos mercados de carnehumana.

Levantaram-se entãoclamores, protestando contra ocomércio de negros e pedindo aosgovernos europeus a sua aboliçãoem nome dos princípioshumanitários.

Em 1751, os quacres

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puseram-se à frente domovimento tendente à abolição daescravatura no seio da Américado Norte, onde cem anos depoisrebentava a guerra separatista, aque não foi estranha a questão daescravatura. Diversos Estados doNorte, a Virgínia, o Connecticut,o Massachusetts e a Pensilvânia,decretaram a abolição daescravatura e a libertação dosescravos, trazidos por grandespreços para os territórios dessesEstados.

Mas a campanha iniciadapelos quacres não se limitou àsprovíncias setentrionais do Novo

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Mundo. Os partidários daescravatura foram energicamenteperseguidos além do Atlântico. AFrança, e mais notavelmente aInglaterra, recrutaram partidáriospara esta justa causa. “Antes sepercam as colônias que osprincípios!” Tal foi o lema queressoou por todo o Velho Mundoe, apesar dos grandes interessespolíticos e comerciais que seprendiam a esta questão,atravessou ele eficazmente toda aEuropa.

O impulso estava dado.Em 1807, a Inglaterra aboliu aescravatura nas suas colônias,

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seguindo a França este exemploem 1814. As duas poderosasnações celebraram um tratado,que foi confirmado por Napoleãodurante os Cem Dias, o qualtratado não era então mais do queuma declaração puramenteteórica. Os negreiros nãocessavam de navegar, indodescarregar nos portos coloniaisas cabeças-de-alcatrão.

Para pôr termo a talcomércio adoptaram-se medidasmais práticas. Os Estados Unidos,em 1820, e a Inglaterra, em 1824,declararam o tráfico daescravatura ato de pirataria, e

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piratas aqueles que o fizessem.Como tais, eram sujeitos à penade morte, e foramconsequentemente perseguidossem tréguas. A França deu logodepois a sua adesão ao novotratado; mas os Estados do Sul daAmérica, as colônias espanholase portuguesas não entraram no atoda abolição, e a exportação denegros continuou a fazer-se emproveito destas, apesar do direitode visita geralmente reconhecido,que se limitava unicamente àverificação da nacionalidade dosnavios suspeitos.

A nova lei da abolição da

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escravatura não teve porém efeitoretroativo. Não se faziam novosescravos, mas não se libertavamos antigos.

Nestas circunstâncias aInglaterra deu o exemplo. Em 14de maio de 1833, um decretoemancipou todos os negros dascolônias da Grã-Bretanha, e emagosto de 1838 seiscentos esetenta mil escravos eramdeclarados livres.

Dez anos depois, em 1848,a república emancipava osescravos das colônias francesas,isto é, duzentos e sessenta milnegros.

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Em 1859, a América doNorte seguia-lhes o exemplo.

As três grandes potênciastinham, pois, completado essagrande obra de humanidade.Agora só se faz a escravatura emproveito das colônias espanholasou portuguesas e para satisfazeras exigências das povoações doOriente, turcas ou árabes. Se oBrasil ainda não deu a liberdadeaos seus antigos escravos, pelomenos não recebe outros novos eos filhos dos negros nascemlivres*(1).

*1. Não há um único fato

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que prove que a escravatura sefaz ainda em proveito das nossasprovíncias ultramarinas. Se osportugueses merecem justascensuras por terem negociadoescravos, não estavam livresdelas os filhos de outras nações,e, em todo o caso, não é motivopara que ainda hoje escritoresapaixonados nos assaquemacusações menos justas, e sejama causa de pessoas, como osábio romancista, autor destaobra, se desviarem da verdade,involuntariamente é certo, e namelhor boa-fé. Repetimos, nãohá escravatura nos domínios

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portugueses. Vibrou-lhe o últimogolpe o Sr, Andrade Corvo,quando foi ministro interino daMarinha e Ultramar.

É no interior da África,após guerras sangrentas, que entresi fazem os chefes africanos paracaçarem homens, que tribosinteiras têm sido reduzidas àescravidão. Duas direçõesopostas seguem as caravanas:uma para oeste, a caminho dacolônia portuguesa de Angola*; aoutra, a leste, dirige-se aMoçambique.

*Seguiram, já não

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seguem. (N. do T.)Para esclarecimento dos

leitores, devemos dizer tambémque não foi Portugal a últimanação que se associou àsupressão da escravatura.

Num folheto publicado em1840 pelo falecido e honradomarquês de Sá da Bandeira, como título “O Tráfico daEscravatura e a Lei de LordPalmerston”, lê-se o seguinte,na pág. 3:

“A abolição total dotráfico da escravatura necessita,para ser eficaz, que para elaconcorram todas as potências

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marítimas e todas aquelas emque existe a escravidão. Istosomente se poderá conseguir:

“1. Quando todas aspotências, sem exceção,proibirem que os navios, queusam de suas bandeiras,transportem escravos, epermitirem ao mesmo tempo aosnavios de guerra de outrasnações que visitem os seusnavios mercantes..o Quandotodas as nações em que existe aescravidão a abolirem.

“Examinando-se o que aeste respeito se tem passado,achar-se-á que Portugal foi a

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primeira potência dacristandade que, em colôniassuas, aboliu o tráfico daescravatura e a própriaescravidão dos negros, o que foidecretado por el-rei D. José em1773, quanto às ilhas daMadeira e dos Açores, sendomuito para notar que istoacontecia no mesmo tempo que oGoverno britânico recusavasancionar os numerosos atos delegislatura da então sua colôniada Virgínia, tendentes a suprimirna mesma colônia o tráfico daescravatura, etc.”

Na pág. 9 do mesmo

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folheto lê-se:“Portugal foi a primeira

potência que se ligou à Grã-Bretanha para promover asupressão de escravos negros. Asprimeiras estipulações datam doano de 1810. Em 1815propuseram os plenipotenciáriosportugueses em Viena de Áustria,aos plenipotenciários britânicos,a abolição total do tráfico daescravatura para os súbditosportugueses ao fim de Oito anos,isto é, em 1823, no caso que aGrã-Bretanha conviesse emdesistir do tratado de comérciode 1810, cujas estipulações se

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reputavam extremamente lesivaspara Portugal. Esta propostanão foi aceita. Cedeu, por então,a abolição do tráfico aosinteresses comerciais que setiravam daquele tratado.Celebrou-se consecutivamente otratado de 22 de Janeiro daqueleano de 1815, a convençãoadicional de 28 de Julho de1817, e finalmente o artigoseparado de 11 de Setembro domesmo ano, etc.”

Em 10 de Dezembro de1836, sendo ministro o marquêsde Sá da Bandeira, entãovisconde, foi sancionado o

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decreto que aboliu totalmente emtodos os domínios da coroaportuguesa o tráfico daescravatura, impondo penasseveras aos transgressores.

Finalmente, em 3 dejunho de 1842, foi assinado emLisboa um tratado- entrePortugal e a Grã-Bretanha, paraa repressão da escravatura.

Mas para que se saibaquanto têm feito todos osgovernos de Portugal em favorda abolição da escravatura,extraímos do excelente livro Ascolônias Portuguesas, dodistinto escritor Miguel E. Lobo

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de Bulhões, o que se segue:O decreto de 14 de

Dezembro de 1854, referendadopelo visconde de Atouguia,libertou todos os escravospertencentes ao Estado emandou proceder ao registo,dentro de trinta dias, de todos osque pertenciam aos particulares,declarando livres os que, findo oprazo marcado no referidodecreto, não estivessemregistados. Continha mais estedecreto outras providênciastendentes a libertar o escravo oua melhorar a sua condição, e asquais não referimos para não

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alongarmos demasiadamenteesta nota.

A lei de 30 de Julho de1856 estendeu os benefícios dodecreto de 14 de Dezembro aosescravos pertencentes àscâmaras municipais eestabelecimentos debeneficência. Seguiram-se aestas outras medidas, entre asquais a lei de 5 de Julho de1850, abolindo a escravatura nodistrito do Ambriz, desde oLifune até Molembo, a lei de 24,declarando livres os filhos dosescravos nascidos depois dapublicação desta lei. Uma outra

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lei, de 25 do mesmo mês,estendia aos escravos dasigrejas os benefícios do decretode 14 de Dezembro de 1854, eoutra ainda, com data de 18 deAgosto, dava a liberdade a todosos escravos nacionais ouestrangeiros quedesembarcassem em qualquerponto da costa de Portugal, dosAçores, na Madeira, nos estadosda índia e em Macau e suasdependências.

Em 29 de Abril de 1858,el-rei o senhor D. Pedro Vdecretava que a escravaturaficaria abolida em todas as

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províncias ultramarinasportuguesas, vinte anos depoisdaquela data, isto é, em 29 deAbril de 1878, mas em 25 deFevereiro de 1860, o Sr. LatinoCoelho publicou um decretoabolindo a escravatura em todoo território português desde adata desse decreto, devendo,porém, os indivíduos feitos livresem virtude desta lei servir osseus antigos senhores até 29 deAbril de 1878.

Em 31 de Outubro de1874, o Sr. João de AndradeCorvo referendou um decretodeclarando livres os libertos da

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província de Cabo Verde. NaCâmara dos Pares, em sessão de13 de Janeiro de 1874, omarquês de Sá da Bandeirapropôs a abolição imediata daescravatura em todos osdomínios de Portugal, qualquerque fosse a denominação sob queela se escondesse. Não pôde esteprojeto ser convertido em lei namesma legislatura; mas, no anoseguinte, a lei de 26 de abril de1875 ordenou que fossemdeclarados livres todos osindivíduos a que se referia odecreto de 25 de fevereiro de1860, um ano depois da

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publicação daquela lei nasprovíncias ultramarinas, tendo,porém, efeito mais imediato paraas ilhas de São Tomé e Príncipe.

(O Tradutor)Dos infelizes negros, de

que apenas uma pequena partechega ao seu destino, sãomandados uns para Cuba ou paraMadagáscar, outros para asprovíncias árabes ou turcas daÁsia, Meca ou Mascate. Oscruzadores ingleses e francesesdificilmente conseguem impedir otráfico, tanto custa a manter avigilância e cruzeiro eficaz emtão vasta extensão de costas.

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Mas é grande ainda onúmero dessas odiosasexportações?

É. Avalia-se em não menosde oitenta mil os escravos quechegam ao litoral, e este número,segundo parece, representaapenas uma décima parte dosindígenas sacrificados. Depoisdas horríveis mortandades, oscampos devastados ficamdesertos, as povoaçõesincendiadas e sem habitantes, osrios levam nas suas correntesmuitos cadáveres e. as ferasinvadem as regiões desoladas.Livingstone, no dia seguinte ao

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daquelas caçadas, não reconheciaas terras que meses antes visitara.Todos os outros viajantes, Grant,Speke, Burton, Cameron eStanley, falam do mesmo mododessa região da África Central,coberta por densas matas, teatroprincipal das guerras entre oschefes indígenas. Na região dosgrandes lagos, sobre toda avastíssima extensão que alimentao mercado de Zanzibar, em Bornue em Fezan, .mais ao sul nasmargens do Niassa e do Zambeze,e para oeste nas regiões do AltoZaire, que o audaz Stanley hápouco tempo atravessou, vê-se o

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mesmo espetáculo: ruínas,mortandades e terrasdespovoadas. A escravidão sóacabará na África com a extinçãoda raça negra, que terá a mesmasorte que a raça australiana, naNova Holanda.

Mas o mercado dascolônias espanholas eportuguesas fechar-se-á um dia; avenda acabará, os povoscivilizados já não podem tolerara escravatura.

O ano de 1878 verá, semdúvida, a libertação de todos osescravos possuídos por Estadoscristãos. Contudo, durante muitos

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anos ainda, as naçõesmuçulmanas sustentarão o tráfico,que tanto despovoa o continenteafricano. É para elas que se faz aemigração de negros em maiorquantidade, pois que o númerodos indígenas arrancados às suasterras e enviados para a costaoriental excede anualmente onúmero de quarenta mil. Muitotempo antes da expedição doEgipto, os negros de Sennaareram vendidos aos milhares aosnegros de Daufur, ereciprocamente. O generalBonaparte comprou grandenúmero deles, dos quais fez

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soldados, com organizaçãosemelhante à dos mamelucos.Desde então, durante este século,do qual vão decorridas quasequatro quintas partes, o comérciode escravos não diminuiu naÁfrica. Pelo contrário.

O islamismo favorece aescravatura. É mister que oescravo negro substitua nasprovíncias muçulmanas o escravobranco de outrora. Assim, pois,negreiros de origens diversasfazem em grande quantidade tãonefando tráfico. De tal arte levamum suprimento de população àsraças, que pouco a pouco se vão

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extinguindo, e que desaparecerãoum dia, porque se não regenerampelo trabalho. Estes escravos,como no tempo de Bonaparte,fazem-se muitas vezes soldados.Entre alguns povos do Alto Níger,entram por metade na composiçãodos exércitos dos chefesindígenas. Em tais condições, asorte dos escravos não ésensivelmente inferior à doshomens livres. Quando umescravo não é soldado, servecomo moeda corrente; no Egipto,como em Bornu, oficiais eempregados são pagos em talmoeda.

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Disse-o, porque o viu,Guilherme Lejean.

Tal é o estado atual daescravatura.

Será necessárioacrescentar que muitos agentesdas grandes potências europeiasnão se envergonham de mostrar,por este comércio, lamentávelnegligência? E é contudoverdade; enquanto os cruzadoresvigiam as costas do Atlântico edo oceano Índico, a escravaturafaz-se no interior, as caravanascaminham sob as vistas de certosfuncionários, as carnificinas emque morrem dez negros por cada

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escravo que se prende executam-se em épocas determinadas.Assim, pois, compreende-sequanto tinham de terrível aspalavras que Dick Sandpronunciara: — A África! AÁfrica Equatorial! A África dosnegreiros e dos escravos!

Não se enganava. Era aÁfrica com todos os perigos paraos seus companheiros e para ele.

Mas a que ponto docontinente africano fora elelevado, por uma inexplicávelfatalidade? Evidentemente à costaocidental, e, circunstância aindamais agravante, o prático devia

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supor que o “Pilgrim” tinhanaufragado precisamente no lugarda costa de Angola, aondechegam as caravanas quefornecem toda esta porção daÁfrica. Com efeito, assim era.Estava no continente queCameron e Stanley atravessariamalguns anos depois, à custa deinauditos esforços, aquele pelosul e este pelo norte! Deste vastoterritório, que se compõe de trêsprovíncias, Benguela, Congo eAngola, apenas se conhecia olitoral. Estende-se este desde oCunene, ao sul, até ao Zaire, aonorte. Duas cidades principais

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dão o nome a dois portos,Benguela e São Paulo de Luanda,capital da colônia, que pertence aPortugal.

Para o interior era entãoterritório quase desconhecido.Poucos viajantes se lhe tinhamatrevido. Clima pernicioso,terrenos quentes e úmidos,causando febres, indígenasbárbaros, alguns ainda canibais, aguerra permanente entre as tribos,a desconfiança dos guerreiros dequalquer estranho que desejapenetrar os segredos do seucomércio infame, tais são asdificuldades a superar e os

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perigos que o viajante tem avencer na província de Angola,uma das mais perigosas da ÁfricaEquatorial.

Tuckey, em 1816, subiu oZaire até além das cataratas deZelala, percorrendo quando muitoduzentas milhas. Não bastava estaviagem para dar inteiroconhecimento do território, econtudo causou ela a morte àmaior parte dos sábios e oficiaisque formavam a expedição.

Trinta e sete anos maistarde, o Dr. Livingstone caminhoudesde o Cabo da Boa Esperançaaté ao Alto Zambeze. Dali, em

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Novembro de 1853, comatrevimento nunca excedido,atravessou a África, na direçãodo noroeste, passou o Coango, umdos afluentes do Zaire, e chegou aSão Paulo de Luanda em 31 deMaio de 1854. Foi a primeira luzque penetrou na escuridão dagrande colônia portuguesa.

Dezoito anos depois, doisintrépidos descobridores,vencendo dificuldades de toda aespécie, atravessaram a África nadireção de leste para oeste, umpelo sul, o outro pelo norte deAngola.

O primeiro, pela data, é o

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tenente da marinha inglesa VerneyHowet Cameron. Em 1872julgava-se, com razão, que aexpedição do americano Stanley,que fora enviado em busca deLivingstone, à região dos grandeslagos, se havia perdido.Ofereceu-se Cameron paraprocurar Stanley. Foi aceita aoferta. Cameron, acompanhadopelo Dr. Dillon, o tenente CecilMurphy e Robert Moffat,sobrinho de Livingstone, partiu deZanzibar. Depois de teratravessado o Ougogo, encontrouo corpo de Livingstone, que osseus servidores fiéis levavam

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para a costa oriental. Continuandono seu caminho para oeste, com ainabalável vontade de passar deuma para a outra costa,atravessando o Onyanyenibe,Ogunda, Kohuele, onde achou ospapéis do famoso viajante,transpondo o Tanganica, asmontanhas de Bombarre, oLualaba, que não pôde descer,depois de ter visitado todas essasprovíncias devastadas edespovoadas pelo tráfico daescravatura, Kilemba, Urua, asorigens do Lomane, o Ouluda, oLovale, depois de ter passadopara além do Cuanza e das

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imensas florestas, nas quaisHarris perdera Dick Sand e osseus, o enérgico Cameron avistou,enfim, o oceano Atlântico echegou a São Filipe de Benguela.Esta viagem, que durou três anose quatro meses, custou a vida adois dos seus companheiros, oDr. Dillon e Robert Moffat.

Ao inglês Cameron iasuceder quase imediatamente oamericano Henry MorelandStanley nesta via de descobertas.Como é sabido, o intrépidocorrespondente do New YorkHerald, enviado em busca deLivingstone, encontrara-o em 30

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de Outubro de 1871 em Ujiji, nasmargens do Tanganica. Mas o queStanley fizera tão felizmente comum fim puramente humanitário,quis empreendê-lo também poramor à ciência geográfica. Foientão o seu objetivo oreconhecimento completo doLualaba, que apenas viraimperfeitamente. Cameron andavaainda errante pelas províncias daÁfrica Central quando Stanley,em 1874, saía de Bagamoio, nacosta oriental, deixava vinte e ummeses depois, em 24 de Agostode 1876, Ujiji, dizimado por umaepidemia de bexigas, percorria

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em setenta e quatro dias adistância que vai do lago atéNyamgué, grande mercado deescravos, que Livingstone eCameron tinham já visitado, eassistia às mais horríveis cenasde extermínio, no país dosMarungus e dos Manyemas, pelosoficiais do sultão de Zanzibar.

Stanley dispôs-se então areconhecer o curso do Lualaba ea descê-lo até à foz. Cento equarenta carregadores,contratados em Nyamgué, edezanove barcos compunham omaterial e o pessoal daexpedição. Foi necessário

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combater desde o princípio osantropófagos do Ukusu, e desde oprincípio também carregar com asembarcações, a fim de tornearcataratas impossíveis de descer.No equador, no ponto em que oLualaba se inclina para o nor-nordeste, cinquenta e quatrocanoas, tripuladas por muitascentenas de indígenas, atacaram apequena flotilha de Stanley, queconseguiu pô-los em fuga. Depoiso valente americano, subindo atéao segundo grau de latitudeboreal, certifica-se de que oLualaba é o Alto Zaire ou Congo,e que seguindo-lhe o curso

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desceria diretamente para o mar.Foi o que fez, combatendo quasetodos os dias com as tribosmarginais. No dia 3 de Junho de1877, passando as cataratas deMâssassa, perdeu um dos seuscompanheiros, Francisco Pocock,e ele mesmo, em 18 de julho, eraarrastado na sua embarcação paraas cachoeiras de Mabelo,escapando da morte por milagre.

Finalmente, a 6 de Agosto,Henrique Stanley chegava àaldeia de Ni Sanda, a quatro diasda costa. Dois dias depois, naBansa de Mabuco, encontrava asprovisões enviadas por dois

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negociantes de Boma, edescansava, enfim, nestapovoação, tendo envelhecido aostrinta e cinco anos, pelas fadigase privações, depois de teratravessado completamente ocontinente africano, no quedespendera dois anos e novemeses da sua vida. Mas estavaconhecido o curso do Lualaba atéao Atlântico, e ficara sabido que,se o Nilo é a grande artéria donorte, se o Zambeze é a grandeartéria de leste, a África possuiainda para oeste o terceiro dosmaiores rios do mundo, o qual, naextensão de duas mil e novecentas

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milhas (1), sob o nome deLualaba, de Zaire ou Congo, ligaa região dos lagos do oceanoAtlântico.

Porém, entre os doisitinerários, o de Stanley e o deCameron, estava a província deAngola, quase desconhecida, noano de 1873, justamente na épocaem que o “Pilgrim” se perdia nacosta da África. O que apenas sesabia é que ela era o teatro daescravatura no Ocidente, devidoisto aos importantes mercados deBié, Caçange e Kasonde.

Foi para aquela região queDick Sand foi levado, distante da

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costa mais de duzentas milhas,com uma mulher extenuada pelocansaço e pela dor, umacriancinha quase morta, e osnegros, presa naturalmenteindicada à cobiça dos mercadoresde escravos.

Era a África, era, e não aAmérica, onde nem os indígenas,nem as feras, nem o clima sãorealmente para recear. Não eraaquela região propícia situadaentre as Cordilheiras e a costa,em que as povoações abundam, eas missões abremhospitaleiramente as suas portas atodos os viajantes. Estavam longe

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as províncias do Peru e daBolívia, aonde a tempestade teriacom toda a certeza arrastado o“Pilgrim”, se mão criminosa onão tivesse desviado do seucaminho, e onde os náufragosencontrariam meios fáceis de serepatriarem.

Era a Angola terrível, nãoa parte da costa diretamentevigiada pelas autoridadesportuguesas, mas o interior dacolônia, percorrido pelascaravanas de escravos dirigidospelo chicote dos verdugos.

O que conhecia Dick Sanddeste território em que a traição o

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lançara? Pouco; o que referiramos missionários dos séculos XVIe XVII, o que disseram osmercadores portugueses, quefaziam a viagem de São Paulo deLuanda para o Zaire e SãoSalvador, o que contou o Dr.Livingstone por ocasião da suaviagem em 1853, e bastava istopara abater um espírito mais forteque o seu.

Realmente, a situação eraterrível!

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CAPÍTULO II

HARRIS E NEGORO No dia seguinte àquele em

que Dick Sand e os seuscompanheiros fizeram a últimaparagem na floresta,encontravam-se dois homens atrês milhas do lugar onde Dick

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parara, conforme ao que fora deantemão combinado entre os dois.

Eram Harris e Negoro, evai ver-se que acaso pôs empresença um do outro, na costa deAngola, Negoro, vindo da NovaZelândia, e o americano, que oseu ofício de traficante deescravos obrigava a percorrerrepetidas vezes aquela provínciada costa ocidental da África.

Harris e Negoro estavamsentados à sombra de uma enormeárvore, na margem de uma ribeiracaudalosa, que corria entre umadupla ala de papiros.

Começava a conversação,

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porque Negoro e Harris tinham-seencontrado naquele mesmoinstante, e antes de tudo falaramnos acontecimentos das últimashoras.

— Assim, Harris — disseNegoro — , não pudeste levarcontigo para mais longe apequena caravana do capitãoSand, como eles chamam àqueleprático, que apenas conta quinzeanos de idade?

— Não, camarada —respondeu Harris —, e é até paraadmirar como consegui trazê-loscem milhas pela terra dentro!Havia muitos dias que o meu

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jovem amigo Dick Sand olhavapara mim desconfiado, as suassuspeitas iam-se transformandoem realidade, e pela minhaparte...

— Mais cem milhas,Harris, e aquela gente estaria commais segurança entre as nossasmãos. É preciso que não nosescape!

— Como podem elesescapar-nos? — volveu Harris,encolhendo os ombros. —Repito-te, Negoro, era tempo deos deixar. Li dez vezes nos olhosdo meu jovem amigo que ele tinhavontade de me meter uma bala no

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corpo. Ora eu tenho mauestômago para digerir daquelasamêndoas.

— Bem — .murmurouNegoro. — Tenho uma continha aajustar com o prático...

— E a ajustará à vontade ecom bons juros. Pela minha parteconsegui, nos primeiros dias demarcha, fazer-lhe acreditar queesta província era o deserto deAtacama, que noutro tempovisitei; mas o garotinho queriacauchus e beija-flores, a mãeárvore de quina, e o primoteimava em procurar cucuyos!Tinha esgotado toda a minha

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imaginação, e depois de ter feitoengolir, com grande custo,avestruzes por girafas... umachado, Negoro!, já não sabia queinventasse! Bem percebia eu queo meu jovem amigo não aceitavabem as minhas explicações.Depois viemos dar com aspegadas de elefantes. Oshipopótamos também apareceram!Ora tu bem sabes, Negoro, quehipopótamos e elefantes naAmérica são como homens debem nas prisões de Benguela!Enfim, para acabar de medesmascarar, o velho negroimaginou que viu junto a uma

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árvore golilhas e correntesdeixadas por escravos queconseguiram fugir! No mesmomomento, e para remate ruge oleão, e é difícil fazer tomar orugido do rei das selvas pelomiar de qualquer gato inofensivo!Só tive, pois, tempo para montara cavalo e correr para aqui.

— Compreendo —respondeu Negoro. — Contudo,parece-me que gostaria de os vercem milhas mais para o interiorda província.

— Fez-se o que se pôde,camarada — declarou Harris. —Quanto a ti, que nos seguias desde

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a costa, fizeste bem em teconservares a distância.Desconfiavam que andavaspróximo.

Aquele Dingo parece quenão simpatiza muito contigo. Quelhe fizeste?

— Nada — respondeuNegoro — , mas daqui a poucoapanhará com uma bala nacabeça.

— Exatamente como tu aapanharias de Dick Sand, se temostrasses, pouco que fosse, aduzentos passos de distância daespingarda dele. Ah! Olha que ébom atirador o meu jovem amigo,

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e, aqui para nós, sou obrigado aconfessar que é rapaz atrevido.

— Pois, por muito que oseja, há de pagar-me caro as suasinsolências — respondeu Negoro,em cuja fisionomia transpareciaimplacável crueldade.

— Bem — murmurouHarris — , o meu camarada estácomo sempre o conheci. Asviagens não o mudaram.

Depois de curto silêncio,Harris continuou: — É verdade,Negoro, quando tãoinesperadamente te encontrei noteatro do naufrágio, só tivestetempo de me recomendar aquela

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boa gente, pedindo-me para aconduzir, tão longe quanto fossepossível, através desta supostaBolívia, mas não me contaste oque fizeste durante estes doisanos. Dois anos na nossaexistência aventurosa é muito,camarada! Um belo dia, depoisde teres tomado a teu cuidado acondução de uma caravana deescravos por conta do velhoAlves, de quem apenas somosmuito respeitosos agentes,deixaste Caçange e nunca maisouvi falar de ti. Pensei quetivesses passado algunsincômodos com o cruzeiro inglês

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e que tivesses sido enforcado.— Por pouco escapei,

Harris.— Sim, mas alguma vez

pagarás tudo.— Obrigado.— Que queres? —

respondeu Harris, com filosóficaindiferença. — São percalços doofício. Não se faz escravatura nacosta da África sem correr orisco de morrer fora da cama.Mas, finalmente, fosteprisioneiro?...

— Fui, sim.— Dos ingleses?— Qual! Dos portugueses.

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— Antes ou depois deteres entregado o carregamento?

— Depois... — replicouNegoro, que hesitara um momentoem responder. — Os portuguesesagora perseguem os negreiros!Não querem escravatura,conquanto se tivessem por muitotempo aproveitado dela! Fuidenunciado e vigiado.Prenderam-me...

— E condenaram-te?...— A passar o resto da

minha vida numa enxovia em SãoPaulo de Luanda.

— Oh, com mil demônios!— exclamou Harris. — Uma

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enxovia! Ora aí está um lugarpouco higiênico para quem, comonós, está habituado a viver ao arlivre. Eu antes queria serenforcado.

— Não se escapa aopatíbulo — disse Negoro —, masda prisão...

— Pudeste evadir-te?...— Sim, Harris. Quinze

dias apenas depois de me teremprendido, consegui esconder-meno porão de um vapor inglês, queestava de partida para Auckland,na Nova Zelândia. Um barril deágua e uma caixa de conservasalimentícias, atrás de que me

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escondera, deram-me que comer eque beber durante a viagem. Sofrimuito por não querer aparecerquando já estávamos no mar; -mas se eu tivesse cometido aimprudência de o fazer, erairremediavelmente mandado parao fundo do porão, e,voluntariamente ou não, a torturaera a mesma. Além disso, logoque chegássemos a Auckland,entregar-me-iam às autoridadesinglesas, e eu era afinalreconduzido para a prisão deLuanda, ou talvez enforcado,como tu dizes. Eis a razão porque preferi viajar incógnito.

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— E sem pagar passagem!— exclamou Harris, rindo. —Ah, amigo, isso não é decavalheiro! Comida e transportede graça!...

— É verdade, mas olhaque foram trinta dias de viagemno fundo de um porão!...

— Enfim, o caso é quefoste, Negoro. Partiste para aNova Zelândia, o país dosmaoris! E como voltaste? Foiacaso nas mesmas condições?

— Não, Harris. Devessupor que lá só tinha uma ideiafixa: voltar para Angola e retomaro meu lugar de negociante de

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negros.— É verdade —

concordou Harris —, gosta-se doofício... é hábito!

— Durante dezoitomeses...

Negoro, mal tinhapronunciado estas palavras,calou-se. Apertou o braço do seucompanheiro e escutou.

— Harris — disse ele,baixando a voz —, não ouvisteuma espécie de ruído nessa moitade papiros?

— Pareceu-me ter ouvidoqualquer coisa — respondeuHarris pegando na espingarda,

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pronta sempre a fazer fogo.Negoro e Harris

levantaram-se, olharam em voltadeles e escutaram com maisatenção

— Não é nada — afirmouHarris. — É o ribeiro que atempestade engrossou e corremais ruidosamente. Há dois anos,camarada, que perdeste o hábitodestes rumores das florestas, masdepressa te acostumarás.Continua a narrativa das tuasaventuras. Quando eu estiver bemao fato do passado, falaremos dofuturo.

Negoro e Harris tinham-se

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assentado novamente junto daárvore. Aquele continuou nestestermos: — Durante dezoito mesesvegetei em Auckland. Logo que ovapor chegou, -consegui sair debordo sem ser visto; mas nãotinha um dólar na algibeira! Paraviver tive de me empregar emtudo...

— Até fizeste de homemde bem, Negoro?...

— Até isso, Harris.— Coitado!— Esperava uma ocasião,

e já me ia tardando quando obaleeiro “Pilgrim” chegou aoporto de Auckland.

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— Era aquele navio quenaufragou na costa de Angola?

— Esse mesmo, Harris, eno qual Mrs. Weldon, o filho e oprimo iam embarcar comopassageiros. Ora eu, como antigomarinheiro, porque cheguei a serpiloto a bordo de um navionegreiro, não me embaraçava comqualquer serviço. Apresentei-meao capitão do “ Pilgrim”, mas àtripulação não faltava ninguém.Felizmente, porém, o cozinheirodo patacho desertara, e como nãohá marinheiro que não saiba decozinheiro, ofereci-me paraexercer aquele importante cargo.

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À falta de outro, aceitaram-me, edias depois o “Pilgrim” tinhaperdido de vista as terras deAuckland.

— Mas — perguntouHarris — , pelo que me contou omeu jovem amigo, o “Pilgrim”não se destinava à costa daÁfrica! Como veio, pois, pararaqui?

— Dick Sand ainda nãopôde saber isso, e talvez quenunca o saiba — respondeuNegoro —, mas eu vou explicar-te tudo quanto se passou, e sequiseres podes contá-lo ao teujovem amigo!

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— Como foi então? Contalá isso, camarada!

— O “Pilgrim” —continuou Negoro — , ia deviagem para Valparaíso. Quandoembarquei não julgava passar doChile. É bem metade do caminhoentre a Nova Zelândia e Angola, eaproximava-me assim uma boaporção de milhas da costa daÁfrica. Mas sucedeu que, trêssemanas depois de termos saídode Auckland, o capitão Hull, quecomandava o “Pilgrim”,desapareceu com toda atripulação, ao perseguir umabaleia. Nesse dia só ficaram a

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bordo dois marinheiros, o práticoe o cozinheiro Negoro.

— E tu tomaste o comandodo navio? — perguntou Harris.

— Pensei nisso primeiro,mas percebi que desconfiavam demim. Havia a bordo cincovigorosíssimos pretos, gentelivre. Não os podia dominar, e,pensando bem, deixei-me ficar noque era quando partimos: ocozinheiro do “Pilgrim”.

— Foi então o acaso quetrouxe o navio à costa da África?

— Não, Harris, não háoutro acaso em toda esta aventurasenão o haver-te encontrado num

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dos teus giros de traficante,precisamente no ponto da costaonde naufragou o “Pilgrim”. Maspelo que diz respeito ao fato deter vindo até Angola, foi a minhavontade oculta que o causou. Oteu jovem amigo, pouco práticoainda em navegação, não podiafazer o ponto senão pela estima.Pois bem, um dia, a barquinha foipara o fundo. Numa noite abússola desviou o “Pilgrim”, que,levado por violenta tempestade,fez rumo errado. A lonjura daviagem, inexplicável para DickSand, tê-lo-ia sido do mesmomodo para o mais consumado

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marinheiro. Sem que o práticosoubesse, sem que ao menossuspeitasse, montamos o CaboHorn; mas eu, Harris, reconheci-oentre as brumas. Então a agulhada bitácula retomou, por obra egraça da minha pessoa, a suaverdadeira direção, e o navio,arrastado para noroeste poraquele terrível vendaval, veioperder-se na costa da África, naterra de Angola, em que eu queriadesembarcar...

— E nessa ocasião,Negoro — interrompeu Harris —, um feliz acaso conduziu-me lápara receber e guiar aquela gente

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pelo sertão. Julgavam-se e nãopodiam julgar-se senão naAmérica e foi-me por isso fácilfazer-lhes acreditar que estaprovíncia era a baixa Bolívia,com a qual tem algumasemelhança.

— Acreditaram, como oteu jovem amigo acreditou quemareava a ilha de Páscoa, quandopassaram à vista da ilha deTristão da Cunha!

— Outro qualquer seenganaria, Negoro.

— Bem sei, Harris, e eucontava aproveitar este erro.Enfim, o certo é que Mrs. Weldon

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e os seus companheiros estão acem milhas da costa, no sertão daÁfrica, aonde eu os queria trazer.

— Mas — tornou Harris— sabem eles agora onde estão!

— Que importa isso? —disse Negoro.

— O que contas fazer? —perguntou Harris.

— O que conto fazer? —repetiu Negoro. — Antes dedizer, Harris, dá-me notícias deAlves, que eu não vejo há doisanos.

— Oh! O velhote estáótimo! — respondeu Harris. —Há de ficar contentíssimo de te

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ver.— Está no mercado do

Bié? — perguntou Negoro.— Não. Há um ano que se

estabeleceu em Kasonde.— E como vão os

negócios?— Menos mal — disse

Harris — , ainda que aescravatura esteja de dia para diamais difícil. Por um lado asautoridades portuguesas, poroutro os cruzadores ingleses,impedem a exportação. Só nasproximidades de Moçâmedes, aosul de Angola, se pode fazer oembarque de negros com

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probabilidades de escapar (1).Agora estão os barracões cheiosde escravos, esperando os naviosque devem conduzi-los para ascolônias espanholas. Mas passarescravos por Benguela ou porSão Paulo de Luanda éimpossível. Nem o governador,nem os chefes dos concelhostoleram tal comércio. É, pois,indispensável dirigir a atençãopara as feitorias mais do interiore é exatamente o que tenta fazer ovelho Alves. Irá para as bandasdo Nyamgué e do Tanganicapermutar as fazendas por marfime escravos. Os negócios são

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sempre lucrativos com o AltoEgito e com Moçambique, queabastece Madagáscar. Mas receioque venha tempo em que ocomércio de escravos sejacompletamente impossível. OsIngleses fazem grandesprogressos no interior da África.Os missionários caminham eavançam contra nós. Esse malditoLivingstone, depois de terexplorado a região dos lagos,dirige-se, segundo se diz, paraAngola. Fala-se também de umtenente Cameron, que se propõe aatravessar a África de leste paraoeste. É para recear que o

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americano Stanley queira fazeroutro tanto. Todas estas visitasprejudicarão as nossasoperações, Negoro, e, se nóstemos o sentimento dos nossosinteresses, nenhum destesvisitantes irá contar à Europa oque teve a indiscrição de ver naÁfrica!

Não se diria, ouvindoconversar estes tratantes, quefalavam como negocianteshonrados, a quem uma crisecomercial embaraçasse osnegócios? Quem acreditaria que,em vez de sacas de café ou debarricas de açúcar, se tratava de

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mandar homens como se fossemmercadorias? É que os traficantesde negros não têm o sentimentodo justo ou do injusto. Falta-lhesabsolutamente o senso moral, e,se o tivessem, depressa operderiam no meio das horríveisatrocidades da escravaturaafricana.

No que, porém, Harristinha razão era em dizer que acivilização penetrava naquelasregiões selvagens, após osatrevidos viajantes, cujos nomesficarão ligados para sempre àsdescobertas da África Equatorial.

Na frente, David

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Livingstone, logo depois Grant,Speke, Burton, Cameron e Stanley(1). Estes heróis deixarão renomeimortal entre os beneméritos dahumanidade.

1. Os portugueses jápercorriam essas paragens bemantes destes exploradores. (N. doT.)

Chegada a conversaçãoàquele ponto, sabia Harris ahistória dos dois últimos anos davida de Negoro.

O antigo agente donegreiro Alves, o fugitivo da

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prisão de Luanda, reapareciacomo sempre o conhecera, isto é,homem para tudo. Mas o queNegoro tencionava fazer aosnáufragos do “Pilgrim” não osabia ainda Harris, e por issoperguntou ao seu cúmplice:

— E agora o que projetasfazer daquela gente?

Entre as viagens dosPortugueses ao interior da Áfricacontam-se as que foramordenadas pelo Governo, e são,segundo refere o Dr. José deLacerda no seu livro Exame dasviagens do Dr. Livingstone,publicado em 1867, as seguintes:

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“a de José Maria de Lacerda em1787, a do Dr. Lacerda e Almeidaem 1798 e 1799, a de Barbosa eVasconcelos em 1799, a dosmajores Monteiro e Gamito em1831 e 1832, a do tenente Garciaem 1841, a de Joaquim R. Graça,começada em abril de 1843 eterminada em outubro de 1847, ade Silva Porto, começada emSetembro de 1853 e concluída emAbril de 1856, e outras etc.”. Nãose deve esquecer também aviagem que através da Áfricafizeram Pedro João Baptista e oseu companheiro, Amaro ouAnastácio José, os quais, partindo

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de Caçange em Novembro de1802 por ordem do tenente-coronel Francisco HonoratoFerreira, com um ofício para ogovernador do distrito de Tete, aíchegaram a 2 de Fevereiro de1811, em razão de diversasdemoras a que foram obrigadospelos régulos, ficando retidos noCazembe desde 1806 até 1810.

Ainda aos nomes de tantosintrépidos exploradores daÁfrica, portugueses ouestrangeiros, se devem juntar osde Hermenegildo Capelo,Roberto Ivens, Serpa Pinto eAnchieta. Este último, pelo seu

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entranhado amor à ciência, andahá mais de doze anos embrenhadopelos sertões de Angola,Benguela, Moçâmedes etc.,explorando e estudando a faunaafricana. Grandes são os serviçosque este sábio português temprestado à ciência zoológica,dando ao mesmo tempo lustre aoseu nome e glória ao seu país.

— Divido-a em duaspartes — explicou Negoro, comoquem tem o seu plano de muitotempo feito —, uma vendo-a, aoutra...

Não acabou, mas a suafisionomia feroz dizia bastante.

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— Quem vendes tu? —perguntou Harris.

— Os negros queacompanham Mrs. Weldon —respondeu Negoro. — O velhoTom pouco valor terá, talvez; masos outros são quatro negrosrobustos, que hão de valer bomdinheiro no mercado de Kasonde.

— Acredito, Negoro. Sãonegros fortes, habituados aotrabalho, e que pouco se parecemcom esses negros boçais que nosmandam do sertão. Decerto queos venderás por bom preço.Escravos nascidos na América eexpedidos para os mercados de

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Angola, é mercadoria rara. Mas— acrescentou o americano —não me disseste ainda se haviaalgum dinheiro a bordo do“Pilgrim”?

— Ah! Havia uns... centosde dólares, que eu salvei.Felizmente, conto receber...

— O quê, camarada? —perguntou Harris, cheio decuriosidade.

— Nada... não é nada —respondeu Negoro, arrependidode ter dito mais do que queria.

— Agora só resta deitar amão a toda essa mercadoria degrande valor — volveu Harris.

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— É muito difícil? —inquiriu Negoro.

— Não. A dez milhasdaqui, no Cuanza, está acampadauma leva de escravos, conduzidapelo árabe Ibu Hamis, e que sóespera pela minha volta para sepôr a caminho de Kasonde. Há láguardas indígenas mais do que ossuficientes para prender DickSand e os seus companheiros.Bastaria só que o meu jovemamigo tivesse a ideia de se dirigirpara o Cuanza...

— Mas pensará ele nisso?— Com toda a certeza,

porque é inteligente e não

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suspeita o perigo que o espera.Dick Sand não cuida em voltarpara a costa pelo caminho quetrouxemos. Perder-se-ia nessasflorestas imensas. Procurará, porconsequência, um dos rios quecorrem para o mar, para o descerem jangada. Não tem outra coisaa fazer, e porque o conheçoafirmo que fará isto.

— Sim... talvez — admitiuNegoro, refletindo.

— Não é “talvez”; é certoque se deve dizer — replicouHarris. — Olha, Negoro, tenhotanta certeza do que te disse comose tivesse combinado com o Dick

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Sand que nos encontraríamos nasmargens do Cuanza!

— Pois bem — tornouNegoro — , a caminho. ConheçoDick Sand. Não perde uma hora,é necessário chegarmos antesdele.

— Vamos, camarada!Harris e Negoro

levantaram-se quando o ruído,que já havia chamado a atençãodo cozinheiro do “Pilgrim”, seouviu de novo. Era uma agitaçãode hastes entre os altos papiros.

Negoro parou e agarrou amão de Harris.

De repente ouviu-se um

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surdo latido, e junto da encostaapareceu um cão, espumando deraiva e em ação de arremeter.

— Dingo! — exclamouHarris.

— Ah! Desta vez não meescapará — bradou Negoro.Dingo ia saltar-lhe quandoNegoro, tirando a espingarda deHarris, apontou e fez fogo.

Um prolongado uivo dedor respondeu à detonação, eDingo desapareceu entre a duplafileira de arbustos que orlavam oribeiro.

Negoro desceuimediatamente até à baixa da

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encosta. Gotas de sanguemanchavam alguns troncos depapiros e um extenso rastovermelho tingia as pedras damargem.

— Finalmente, tens a tuaconta, maldito! — exclamouNegoro.

Harris assistira a toda estacena sem pronunciar uma palavra.

— Olá! Negoro, o cãotinha por ti predileção especial?

— Assim parece, Harris,mas agora acabou-se aquela boaamizade.

— E porque te detestavaele tanto, camarada?

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— Oh! Era uma contaantiga que tínhamos que ajustar.

— Conta antiga? —estranhou Harris.

Negoro calou-se, e Harrisconcluiu que o seu camarada lheocultava alguma aventura do seupassado. Não insistiu.

Instantes depois, seguindoo curso do ribeiro,encaminhavam-se ambos para oCuanza, atravessando as florestas.

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CAPÍTULO III

A CAMINHO! África! Este nome, terrível

nas circunstâncias atuais, estenome que era forçoso substituirao de América, não podia tirar-seda ideia de Dick Sand. Quando ojovem prático se recordava doque acontecera havia poucas

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semanas, perguntava a si mesmode que modo o “Pilgrim” veio daràquela praia cheia de escolhos,como montara o Cabo Horn epassara de um para o outrooceano? Agora sabia decertoexplicar a razão por que, apesardo rápido andamento do seunavio, avistara terra tão tarde,porque o caminho que tinha apercorrer para chegar à costaamericana parecia ter duplicado!

— A África! A África! —repetia ele.

Mas quando recordava osincidentes de tão inexplicávelviagem, veio-lhe subitamente à

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ideia de que a bússola podia tersido desviada. Lembrou-setambém de que a agulha dacâmara aparecera quebrada, que alinha da barca rebentara também,ficando assim impossibilitado deapreciar com mais exatidão avelocidade do “Pilgrim”.

— Efetivamente —pensava ele — , só ficou a bordouma bússola, cujas indicações eunão podia verificar!... E umanoite fui acordado por um grito deTom!... Negoro estava à ré!...Tinha caído sobre a bitácula! Nãoseria ele o causador da avaria?...

Esclarecia-se o espírito de

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Dick Sand. Tocava a verdade comas mãos. Compreendia, enfim,quanto havia de suspeito noprocedimento de Negoro. Via amão do cozinheiro em toda asérie de acidentes que levaram o“Pilgrim” à sua perda, e que tãoextraordinariamente arriscaramaqueles que vinham a seu bordo.

Mas quem era aquelemiserável? Teria sido marinheiro,conquanto o ocultasse sempre?Soube ele dominar a odiosamaquinação que lançou o“Pilgrim” sobre uns rochedos nacosta da África?

Fosse como fosse, se

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havia ainda pontos obscuros nopassado, o presente não os tinhajá. O jovem prático sabia queestava na África, e muitoprovavelmente na funestaprovíncia de Angola, a mais decem milhas de distância da costa.Não ignorava também a traiçãode Harris, e a mais simples lógicaensinava-o a concluir que oamericano e Negoro seconheciam de longa data, que umacaso fatal os juntara na costa, eque entre ambos combinaram umplano, cuja execução devia serfunesta para os náufragos donavio baleeiro.

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Mas qual era o motivo detão odioso procedimento? QueNegoro quisesse apoderar-se deTom e dos seus companheiros,vendê-los como escravosnaquelas terras de escravidão,compreendia-se. Que, movido porqualquer sentimento de ódio,tentasse vingar-se de Dick Sand,que o tratara como ele merecia,também se percebia. Mas de Mrs.Weldon, dessa pobre mãe e dapobre criancinha, o quepretenderia fazer aqueleperverso?

Se Dick Sand tivesseouvido, ainda que muito pouco, a

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conversação entre Harris eNegoro, saberia o que lheconvinha fazer e que perigos oameaçavam, assim como a Mrs.Weldon e aos negros.

A situação era terrível,mas o jovem prático nãodesanimou. Comandante a bordo,era ele quem também comandavaem terra. Cumpria-lhe salvar Mrs.Weldon, Jack e todos os que o céuconfiara à sua guarda. Os seustrabalhos tinham apenascomeçado, mas havia de levá-losao fim.

Passadas duas ou trêshoras, durante as quais pesou no

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seu espírito as probabilidadesfavoráveis e as contrárias, estasúltimas em número maior, DickSand levantou-se enérgico eresoluto.

A luz da madrugadailuminava as altas margens doarvoredo da floresta. Excetuandoo prático e Tom, todos dormiamainda.

Dick Sand aproximou-sedo velho negro.

— Tom — disse-lhe eleem voz baixa — , ouviste osrugidos do leão, viste osutensílios do mercador deescravos. Sabes, pois, que

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estamos na África?— Sei, Sr. Dick, sei.— Pois bem, Tom, nem

uma palavra a respeito disso, nema Mrs. Weldon, nem aos teuscompanheiros. Basta que sejamosnós dois os únicos a saber etambém os únicos a recear.

— Únicos... sim... Éconveniente — concordou Tom.

— Tom — continuou oprático — , temos de vigiar commais atenção do que nunca.Estamos em território inimigo. Eque inimigo, e que território!

“Bastará dizer aos nossoscompanheiros que fomos

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atraiçoados por Harris para quefiquem prevenidos. Pensarão quepodemos ser atacados pelosíndios nómadas. É quanto basta.

— Pode contar com abravura e dedicação dos meuscamaradas, Sr. Dick.

— Bem sei, assim comoconto com o teu bom senso e coma tua experiência. Auxiliar-me-ásbastante, Tom.

— Em tudo e para tudoestou às suas ordens.

A resolução de Dickestava fixada, e o velho negroaprovou-a. Porque a traição deHarris fora descoberta a tempo, o

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jovem prático e os seuscompanheiros não corriam riscoiminente. A vista dos ferrosabandonados por alguns escravos,o inesperado rugido do leão,foram a causa dodesaparecimento repentino doamericano. Percebera que otinham conhecido e fugiuprovavelmente antes de a pequenacaravana chegar ao ponto ondedevia ser atacada. Negoro, queDingo pressentira nos últimosdias de “marcha, devia ter-seencontrado com Harris, a fim detramar de acordo com ele. Emtodo o caso, como ainda

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passariam algumas horas antes deDick Sand e os seus seremassaltados, convinha aproveitá-las. O único plano era voltar omais depressa possível para acosta, a qual o jovem práticotinha razão para supor que deviaser a costa de Angola. Depois delá chegar, Dick Sand procurariapara o norte ou para o sul osestabelecimentos portugueses,onde os seus companheirospoderiam aguardar com segurançaos meios de se repatriarem.

Mas para voltar à costaseria mister retomar pelosmesmos caminhos? Não o julgava

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conveniente Dick Sand, e nesteponto pensava como Harris, quebem previra que as circunstânciasobrigariam o prático a procurarcaminho mais curto.

E com efeito era muitodifícil, senão impossível,caminhar pelas más veredasatravés da floresta, as quais iamdar só ao ponto de partida. Seriatambém facilitar aos cúmplicesde Negoro um rasto seguro, queeles seguiriam decerto. A maneirade passar sem deixar vestígios sóum rio a podia oferecer. Aomesmo tempo, por este meio erammenos de recear os ataques das

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feras, que por feliz acaso sehaviam conservado até então agrande distância. Uma agressãodos indígenas tinha tambémmenos gravidade. Dick Sand e osseus companheiros, logo queestivessem embarcados numa boajangada e bem armados, achar-se-iam em melhores condições. Oque importava era encontrar umrio.

Deve acrescentar-se queeste modo de transporte era o quemais convinha atendendo aoestado de Mrs. Weldon e dofilhinho. Sobravam braços, écerto, para pegar na criancinha

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doente. Na falta do cavalo deHarris podia fazer-se umapadiola com ramos de árvores, naqual Mrs. Weldon seriaconduzida. Mas para carregarcom a padiola seria necessárioempregar dois dos cinco negros, eDick Sand queria que todosestivessem em circunstâncias dese defenderem se inopinadamentefossem atacados.

Demais a mais, descendoum rio, o jovem prático achar-se-ia no seu elemento.

Reduzia-se pois a questãoa saber se haveria algum nasproximidades cuja corrente

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pudesse ser utilizada. Dick Sandjulgava que sim, pela seguinterazão:

O rio que se lançava noAtlântico, no sítio onde naufragouo “Pilgrim”, não podia dirigir-senem muito para o norte, nemmuito para leste da província,porque uma cadeia de montanhasmuito próximas — as mesmas queforam tomadas pelas Cordilheirasamericanas — fechavam ohorizonte dos dois lados. Porconsequência, ou a ribeira desciadaquelas alturas, ou se inclinavapara o sul, e em ambos os casosDick Sand depressa daria com

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ela. Talvez que antes de descobriro rio — que assim se devechamar por ser direto tributáriodo oceano — se visse algum dosseus afluentes, pelo qual setransportariam. Em todo o caso,porém, não devia estar muitolonge um curso de água qualquer.

Efetivamente, durante asúltimas milhas que sepercorreram, notou-se que anatureza dos terrenos eradiferente. Os declivesmostravam-se menos inclinados emais úmidos. Aqui e aliserpeavam arroios, indicando quesob o terreno havia uma espécie

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de tecido aquoso. No último diada jornada a pequena caravanacosteou um desses ribeiros, cujaságuas, avermelhadas pelo óxidode ferro, se tingiam nas margensjá corroídas. Encontrá-lonovamente não devia ser nemmuito demorado nem muitodifícil. Não se podia descerevidentemente o seu cursotorrencial, mas seria fácil chegarà embocadura seguindo algumafluente mais considerável e demais fácil navegação. Tal foi oplano simplicíssimo que DickSand adoptou depois de haverconferenciado com o velho Tom.

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Quando despontou o dia, todos osseus companheiros se forampouco a pouco levantando. Mrs.Weldon passou Jack, aindaadormecido, para os braços deNan.

O pequenino,extremamente pálido no períododa intermitência, fazia pena.

Mrs. Weldon aproximou-se de Dick.

— Dick — perguntou ela,olhando-o fixamente — , ondeestá Harris? Não o vejo...

O jovem prático pensouque, conquanto fosse convenientefazer acreditar aos seus

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companheiros que pisavam asterras da Bolívia, não lhes deviacontudo ocultar a traição doamericano. Por isso, sem hesitar,respondeu:

— Harris não está aqui!...— Foi andando adiante?

— tornou Mrs. Weldon.— Fugiu — replicou Dick

Sand. — Harris é um falso, e foide combinação com Negoro quenos trouxe até aqui!

— Com que fim? —perguntou Mrs. Weldon comvivacidade.

— Ignoro — respondeuDick — , mas o que sei é que

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devemos quanto antes voltar paraa costa.

— Traidor! Traidor aquelehomem! — repetiu Mrs. Weldon.— Não me enganavam os meuspressentimentos! E julgas, Dick,que ele está combinado comNegoro?

— Assim deve ser, Mrs.Weldon. Aquele maldito seguia-nos. O acaso fez com que os doisgrandes marotos se encontrasseme...

— E eu espero que eles senão tenham ainda separado,quando eu os encontrar. Queroquebrar-lhes as cabeças uma na

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outra — interrompeu o gigante,fechando as formidáveis mãos.

— E o meu filho! —exclamou Mrs. Weldon. — E ascomodidades e os cuidados queeu esperava encontrar nahacienda de San Felice!,..

— Jack há derestabelecer-se — afirmou ovelho Tom — logo que seaproximar dos lugares maissalubres do litoral.

— Dick — tornou Mrs.Weldon — , tens a certeza de queHarris nos atraiçoou?

— Sim, Mrs. Weldon,tenho a certeza — respondeu o

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jovem prático, que, querendoevitar mais explicações a esterespeito, se apressou aacrescentar, olhando para o velhonegro:

— Esta noite, Tom e eudescobrimos a traição, e, seHarris não tivesse fugido no seucavalo, tê-lo-ia eu morto.

— Assim... aquelaplantação?

— Não há plantação, nemvila, nem aldeia, por estes lugaresmais próximos — respondeu DickSand. — Repito-lhe, Mrs.Weldon, é preciso voltar para acosta.

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— E pelo mesmo caminho,Dick?

— Não. Mrs. Weldon,descendo um rio que nos leve aomar sem fadigas e sem perigos.Temos de andar algumas, maspoucas, milhas a pé e acreditoque...

— Oh! Sou forte, Dick! —atalhou Mrs. Weldon, lutandocontra a própria fraqueza. —Caminharei e levarei o meufilho!...

— Estamos nós aqui parao transportar, Mrs. Weldon —declarou Bat.

— Sim, sim, Bat diz bem

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— acrescentou Agostinho. —Dois ramos de árvores e algumasfolhas...

— Obrigada, meusamigos, obrigada — respondeuMrs. Weldon —, prefiro porém ira pé. Posso andar. Vamos, acaminho!

— A caminho! — repetiuo jovem prático.

— Deixe-me levar omenino Jack — pediu Hercule,tirando o pequenino dos braçosde Nan. — Quando não carrego,canso-me...

E o robusto negro pegoutão cuidadosamente no pequeno

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Jack que nem sequer o acordou.Revistaram-se

minuciosamente as armas. Todasas provisões, que ainda restavam,se juntaram num fardo único parasó carregar um homem. Acteonpôs o fardo aos ombros e os seuscompanheiros ficaramcompletamente desembaraçados.

Primo Bénédict, cujaspernas, compridas e rijas como sefossem de aço, não fatigavamnunca, estava pronto a partir.Notaria ele o desaparecimento deHarris? Não é fácil dizê-lo. Era-lhe, porém, indiferente, estandodemais a mais sob a impressão de

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uma das maiores catástrofes quelhe podia acontecer.

O caso era com efeitograve: primo Bénédict perdera alente e os óculos.

Felizmente, porém, massem que ele o suspeitasse, Batachou os preciosos aparelhosentre as ervas, no lugar ondetinham pernoitado; mas, porconselho de Dick Sand, Batguardou-os. Deste modo havia acerteza de que Bénédictcaminharia com sossego, poisque, como vulgarmente secostuma dizer, não via um palmodiante do nariz.

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Colocado entre Acteon eAgostinho, com ordem terminantede os não deixar, o pobreBénédict não soltara uma queixa ecaminhava como um cego.

Não teria ainda a pequenacaravana andado cinquentapassos quando Tom a fez parar,perguntando:

— E Dingo?— É verdade, Dingo não

está aqui — notou Hercule. Ecom a sua potentíssima vozchamou o cão repetidas vezes.

Nenhum latido respondeuao chamamento.

Dick Sand conservava-se

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calado. A falta do cão era muitodeplorável, porque decerto lhesevitaria surpresas desagradáveis.

— Dingo terá ido comHarris? — perguntou Tom.

— Harris!... Não! —respondeu Dick Sand. — Mastalvez procurasse Negoro. O cãopressentiu que ele nos seguia.

— O maldito cozinheiromete-lhe com certeza uma bala nocorpo! — disse Hercule.

— Sim! Se acaso Dingonão lhe saltar primeiro às goelas— atalhou Bat.

— Talvez — disse oprático — , mas não podemos

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esperar por Dingo. Se ointeligente animal está vivo, elesaberá vir ter conosco. Vamospara diante!

Fazia intensíssimo calor.Desde o amanhecer que se viamnuvens grossas e pesadascarregando o horizonte. Eramprenúncios de trovoada. Nãoacabaria o dia sem que elaestalasse. Felizmente, a floresta,apesar de menos densa,conservava frescura à superfíciedo solo. Aqui e ali grandes matasrodeavam campinas cobertas deplantas altas e abundantes. Emalguns lugares, troncos enormes,

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já solidificados, jaziam por terra,indícios de terrenos carboníferos,que frequentemente se encontramno continente africano. Nasclareiras dos bosques, os tapetesverdejantes matizavam-se deflores de cores variadas, viam-seas gengibres amarelas e azuis, aslobélias claras e as orquídeasvermelhas, incessantementebeijadas pelos insetos que asfecundam.

As árvores não formavamneste ponto bosques tãoimpenetráveis; mas eram dequalidades mais várias. ElaisGuineensis, ou palmeira

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espinhosa, que produz o bemconhecido óleo de palma, tãoprocurado na África, algodoeirosformando moitas de oito a dez pésde altura e cujas hastes produzemum algodão de fios longos, quaseigual ao de Pernambuco. Além asárvores de goma-copal,ressumando, por pequenosburacos feitos por insetos, resinaaromática, a qual corria até aosolo, onde se juntava e de ondeera depois tirada pelos indígenas.Aqui estavam espalhados oslimoeiros, as romãzeirassilvestres e muitas outras plantasarbóreas, mostrando a prodigiosa

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fertilidade desta parte da ÁfricaCentral. Em muitos lugarestambém o olfato eraagradavelmente impressionadopelo finíssimo aroma da baunilha,sem que fosse contudo possívelsaber que arbusto o exalava.

Todo aquele conjunto deárvores e plantas verdejava,apesar de ser o pino da estaçãoseca e de só raríssimas trovoadasregarem tão feracíssimosterrenos. Era a época das febres;mas, como notara Livingstone, éfácil a cura, fugindo do lugaronde elas se apanharam.Conhecia Dick Sand esta

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observação do grande viajante eesperava que Jack a nãodesmentiria. Comunicou-a a Mrs.Weldon, mas só depois de sehaver certificado de que nãovoltara o acesso periódico, comoera de recear, e que o pequeninodormia sossegadamente nosbraços de Hercule.

Assim iam caminhandoprudente e rapidamente. Algumasvezes encontravam vestígiosrecentes de passagem de homensou de animais. Os ramos dasmoitas de arvoredo ou dasbrenhas, afastados ou quebrados,facultavam melhor o caminho.

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Mas, repetidas vezes, múltiplosobstáculos, que era precisovencer, retardavam a marcha, como que não pouco se aborreciaDick Sand. Eram cipósentrelaçados uns aos outros, quecom propriedade se comparavamao aparelho desordenado de umnavio, folhas como alfanges,cujas lâminas eram guarnecidasde espinhos compridos, serpentesvegetais de cinquenta a sessentapés de extensão e que têm apropriedade de se revirarem paraferirem o caminheiro com os seusdardos agudos. Os negros tudocortavam com os machados, mas

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os cipós reapareciamconstantemente desde a terra até àcopa das mais altas árvores queeles engrinaldavam.

O reino animal não eramenos notável do que o vegetalnesta parte da província. As avesvolitavam em grande númerosobre as ramagens, como fácil éde supor, e não tinham a recear ostiros de espingarda de quemqueria passar tão rápida esecretamente. Viam-se bandosconsideráveis de galinhas domato, francolins de diversasespécies, e dos quais não é fácil aaproximação, e alguns desses

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pássaros a que os americanos doNorte têm, por onomatopeia, dadoo nome vhip-poor-will, trêssílabas que reproduzem comexatidão os gritos dessas aves.

Até então as feras, tãoperigosas na África, não setinham aproximado da pequenacaravana. Encontraram-se aindano primeiro dia de marchaalgumas girafas, a que Harristeria sem dúvida dado o nome deavestruzes, mas desta vez sem quefosse acreditado. Aqueles velozesanimais passavam rapidamente,assustados pela aparição de umacaravana naquelas pouco

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frequentadas florestas. Ao longe,na orla das campinas, via-se àsvezes espessa nuvem de pó. Erauma manada de búfalos, que nasua carreira imitavam o ruído degrandes carros excessivamentecarregados.

Dick Sand seguiu o cursodo pequeno ribeiro, na extensãode duas milhas, e que devia irdesaguar em algum rio maisimportante. Queria confiar o maisdepressa possível os seuscompanheiros à corrente rápidade um rio que os conduzisse aolitoral. Confiava que os perigos eas fadigas seriam menores.

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Ao meio-dia haviam jácaminhado três milhas, sem quefelizmente tivessem tido qualquermau encontro. De Harris ou deNegoro não havia o mais leveindício. Dingo também nãoaparecera. Convinha parar paradescansar e comer.

Assentou-se oacampamento dentro de umbambual, que abrigoucompletamente o pequeno rancho.

Pouco se conversoudurante a refeição. Mrs. Weldontornara a pegar no filhinho; nãodespegava a vista dele e nãopodia comer.

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— É preciso que tomealgum alimento, Mrs. Weldon —aconselhou repetidas vezes DickSand. — Que quer fazer se lhefaltarem as forças? Coma, coma!Daqui a pouco estaremosnovamente a caminho, e depoisuma corrente rápida nos levarásem cansaço até à costa.

Mrs. Weldon fitava DickSand enquanto ele falava. Osolhos brilhantes do jovem práticoexprimiam bem a coragem de quese sentia animado. Vendo-oassim, vendo os bravos negrostão dedicados, ela, que eramulher e mãe, não desesperava. E

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que razões tinha ela para perderas esperanças? Não se julgava emterra hospitaleira? A traição deHarris não lhe parecia que tivessegraves consequências. Dick Sand,que adivinhava os pensamentosde Mrs. Weldon, esteve quase adesanimar.

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CAPÍTULO IV

MAUS CAMINHOS Nesta ocasião, Jack

acordou e abraçou-se ao pescoçode sua mãe. Tinha os olhos menosamortecidos. A febre não voltara.

— Estás melhor, meufilhinho? — perguntou Mrs.Weldon, aconchegando o

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pequenino doente ao seu coração.— Sim, minha mãe —

respondeu Jack — , mas tenhosede.

Não havia para dar aopequenino senão água, que elebebeu com sofreguidão.

— E o meu amigo Dick?— Aqui estou —

respondeu Dick Sand, correndo aapertar a mão do pequenino.

— E Hercule?— Presente, Sr. Jack —

respondeu o gigante,aproximando-se.

— E o cavalo? —perguntou Jack.

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— O cavalo? Foi-se,menino Jack — informou Hercule—, agora sou eu o cavalo! Sou euquem carrega com o menino.Acha que tenho mau trote?

— Não, não! — disse Jack— , mas então agora já não tenhorédeas?

— Oh! Ponha-me um freio,se quiser — volveu Hercule,abrindo a enorme boca — , epode puxar depois à sua vontade.

— Tu bem sabes que nãopuxarei com força.

— Pois fará mal! Sou rijode boca.

— E a plantação do Sr.

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Harris? — perguntou ainda opequenino.

— Já pouco nos falta parachegarmos, Jack — declarou Mrs.Weldon.

— Quer que continuemos aandar? — interrogou Dick Sandpara cortar a conversação.

— Sim, Dick. Vamos! —acedeu Mrs. Weldon. Levantou-seo acampamento e continuou amarcha na mesma ordem. Foinecessário passar através dematas cerradas, para não sedesviarem do curso do riacho.Outrora havia por ali algumasveredas, mas estavam “mortas”,

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segundo a expressão indígena,isto é, arbustos, espinhos e sarçastinham crescido sobre elas.Tiveram de caminhar assim umamilha, no que gastaram três horas.Os negros trabalhavam semdescanso. Hercule, depois dehaver entregado Jack a Nan, foitrabalhar também, e que trabalhoera o dele! Aos golpes da suamachada rompia-se a florestacomo se lavrasse um incêndiodevorador.

Felizmente, este penosotrabalho não devia durar muito.Passada a primeira milha, viu-seum largo corte praticado na mata,

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o qual conduzia obliquamente aoriacho e seguia pela riba. Era umapassagem feita por elefantes.Centenas destes animaiscostumavam sem dúvida descerpor ali. Grandes buracos, feitospelas patas dos enormespaquidermes, crivavam o terrenomolhado na época das chuvas, oqual, pela sua natureza esponjosa,se prestava aos sinais indeléveisque ali se notavam.

Viu-se depois que apassagem referida não servia sópara os gigantes animais. Sereshumanos haviam mais de uma vezseguido o -mesmo caminho, mas

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como rebanhos brutalmenteconduzidos para o matadouro.Aqui e ali via-se o chão juncadode ossos, restos de esqueletos jámeio roídos pelas feras, e algunsdos quais tinham ainda asalgemas dos escravos!

Há na África Centralextensos caminhos marcadospelos restos humanos. Centenasde milhas são percorridas pelascaravanas, e muitos infelizescaem na jornada, sob o chicotedos agentes, mortos pelo cansaçoou pelas privações e dizimadospelas doenças. Quantos ainda sãoassassinados pelos próprios

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traficantes quando faltam víveres!Não os podendo sustentar, matam-nos a tiro de espingarda, a golpesde sabre ou de machado, e nãosão raros tais morticínios!

Era pois evidente quecaravanas de escravos tinhampassado por aquele caminho.Durante mais de uma milha, DickSand e os seus companheirostoparam a cada passo comossadas dispersas, obrigando afugir grandes aves de rapina, quecom o seu voo pesado selevantavam à aproximação deDick e dos seus, volteando no ar.

Mrs. Weldon olhava, mas

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não via; Dick Sand receava queela o interrogasse, porqueconservava a esperança de areconduzir à costa sem lhe dizerque a traição de Harris osperdera no meio de um sertãoafricano. Felizmente, Mrs.Weldon não percebia quanto via.Quis pegar novamente no filho,que estava a dormir. Jackabsorvia-lhe todos os seuspensamentos. Nan caminhava aopé dela, e nem uma nem outrafizeram ao prático as perguntas deque ele tanto receava. O velhoTom caminhava com os olhosbaixos. Demais sabia ele a razão

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por que aquele corte da mataestava cheio de ossadas humanas.

Os seus companheirosolhavam surpreendidos para adireita e para a esquerda, comose fossem atravessando umcemitério sem fim, cujassepulturas tivessem sidorevolvidas por um cataclismo.Passavam, porém, sem dizernada.

Entretanto o leito doriacho, ao mesmo tempo que setornava mais profundo, alargava-se também. A corrente era menosImpetuosa. Esperava Dick Sandque dentro de pouco tempo seria

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navegável ou se lançaria emalgum rio mais importante,tributário do Atlântico.

Seguir, custasse o quecustasse, essa corrente de águaera a firme resolução do jovemprático.

Por isso não hesitava emdeixar a aberta da floresta poronde ia caminhando, quando,seguindo uma linha oblíqua, elase afastou do riacho.

A pequena caravanaaventurou-se, mais uma vez,através dos matagais. Seguia,abrindo caminho a machado, porentre plantas e sarças

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inextricavelmente embaraçadas.Mas, se estes vegetais obstruíamo solo, não igualavam contudo adensa floresta que confinava como litoral. As árvores eram raras.Grandes feixes de bambus selevantavam apenas acima daservas, tão altas que Hercule nãoas excedia. A passagem dapequena caravana não podia poisser revelada senão pela agitaçãodas plantas.

Naquele dia, pelas trêshoras da tarde, foi notado que anatureza do terreno se mostravacompletamente diferente. Eramextensas planícies, que deviam

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ficar inteiramente inundadasdurante a estação das águas. Osolo, mais úmido, atapetava-se demusgos densos e de belíssimosfetos. Se acaso se elevava porladeira escarpada, via-se ahematite cinzenta, últimos veiossem dúvida de algum jazigo demineral.

Dick Sand lembrou-seentão, a propósito, do que leranas viagens de Livingstone. Maisde uma vez o intrépido doutoresteve a ponto de ficar enterradonaqueles traiçoeiros pântanos.

— Tenham cuidado —recomendou Dick, passando para

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a frente de todos. —Experimentem o solo antes decaminhar.

— Na verdade —acrescentou Tom — , parece queestes terrenos foram alagadospelas chuvas, e contudo não temchovido nestes últimos dias.

— Não — disse Bat — ,mas a tempestade não tardarámuito.

— Razão de mais —tornou Dick Sand — para nosapressarmos em atravessar estepaul, antes que ela rebente!Hercule, pegue em Jack. Bat eAgostinho conservem-se junto de

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Mrs. Weldon, a fim de a ampararsendo preciso. O Sr. Bénédict!...É verdade! Que faz, Sr.Bénédict?...

— Eu... creio —respondeu simplesmente primoBénédict, que desaparecia, comose se tivesse aberto um alçapãosob os seus pés.

Com efeito, o pobrehomem atrevera-se a passar poruma espécie de pego e sumia-seaté metade do corpo em lamaviscosa. Deram-lhe a mão e elelevantou-se coberto de lodo, massatisfeitíssimo por não teravariado a sua preciosa caixa de

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entomologista. Acteon foi para opé dele, com o fim de evitar arepetição das quedas dodesastrado míope.

Demais a mais, primoBénédict escolhera mal o charcoem que se foi meter. Quando otiraram do paul, grandequantidade de bolhas vieram àsuperfície, as quais, rebentando,exalaram pelo ar gases de cheirosufocante. Livingstone, quealgumas vezes esteve metido atéao peito em lodo igual,comparava aqueles terrenos auma reunião de enormes esponjas,feitas de terra negra e porosa, de

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onde com o pó se faziam repuxarinúmeros fios de água. Estesterrenos eram sempreperigosíssimos.

Por espaço de meia milhaDick Sand e os seuscompanheiros tiveram decaminhar sobre aquele soloesponjoso. Tornou-se mesmo tãomau que Mrs. Weldon foiobrigada a parar, porque seenterrava muito. Hercule, Bat eAgostinho, querendo evitar-lhemais os incômodos do que afadiga de andar sobre terreno tãopantanoso, fizeram uma padiolade bambus, na qual ela se

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assentou. Deram-lhe Jack, e assimse diligenciou atravessar o maisdepressa possível o pestíferopântano.

Grandes foram asdificuldades. Acteon seguravavigorosamente primo Bénédict.Tom ajudava Nan, que sem eleteria decerto desaparecido emalgum atoleiro. Os três negros querestavam conduziam a liteira. Nafrente. Dick Sand apalpava oterreno. A escolha do lugar ondese assentasse o pé não era fácil.Era preferível andar pelos lados,que uma erva espessa e coriáceacobria, mas muitas vezes faltava

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o ponto de apoio, e todos semetiam no lodo até os joelhos.

Finalmente, pelas cincohoras da tarde, estando jápassado o pântano, o soloretomou a consistência suficiente,devido à sua natureza argilosa,mas por baixo sentia-se úmido.Evidentemente, aqueles terrenosestavam mais baixos que os riospróximos, e a água filtrava-sepelas terras.

O calor, entretanto,tornava-se excessivamenteincômodo. Seria até insuportávelse as nuvens densas da trovoadase não interpusessem entre os

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raios ardentes do sol. Ao longe osrelâmpagos rasgavam as nuvens,e surdos rumores do trovãoretumbavam nas alturas do céu.Uma tempestade formidável iarebentar.

Estes cataclismos sãoterríveis na África. Chuvastorrenciais e rajadas de vento, aque não resistem as mais valentesárvores, raios uns após outros, talé a luta dos elementos nestaslatitudes. Sabia-o Dick Sand, epor isso estava extremamenteinquieto. Não se podia passar anoite sem abrigo. A planícieameaçava ficar inundada, e não

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mostrava um único ressalto noqual fosse possível achar refúgio!}

Mas onde ir buscar abrigonaquela extensão baixa e deserta,sem árvores, sem uma sarçasequer? As mesmas profundezasdo solo não o dariam. A dois pésabaixo da sua superfície ter-se-iaencontrado água.

Contudo, para o lado donorte, uma série de colinas poucoelevadas pareciam limitar aalagadiça planura. Era como abordo daquela depressão doterreno. Algumas árvores sedesenhavam mais além, na linha

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do horizonte, numa zona maisclara, onde as nuvens nãochegavam.

Lá, se o abrigo faltasseainda, o pequeno rancho nãocorreria o risco de morrer nainundação. Ali estava talvez asalvação de todos.

— Vamos, meus amigos,vamos para diante — repetiuDick Sand. — Três milhas ainda,e estaremos mais seguros quenestes terrenos tão baixos.

— Ânimo! Ânimo! —exclamava Hercule.

O valente negro teria deboa vontade pegado em toda a

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gente e carregado com ela.Aquelas palavras

animaram os corajosos negros,que, apesar das fadigas de um diade marcha, avançavam mais doque no princípio da jornada.

Quando a trovoadaestalou, o ponto aonde queriamchegar estava ainda a duasmilhas. Contudo, o que era maispara temer — a chuva — nãoacompanhou as primeirasdescargas, que se fizeram entre osolo e as nuvens carregadas deeletricidade. A obscuridade eraquase completa, conquanto o Solainda “não tivesse descido para

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baixo do horizonte. Mas aabóbada de vapores baixavapouco a pouco, como seameaçasse cair; devia porémresolver-se em chuva torrencial.Relâmpagos, vermelhos ouazulados, a rasgavam em muitaspartes e envolviam a planícienuma rede de fogo.

Muitas vezes Dick e osseus companheiros estiveramquase fulminados pelos raios.Naquele lugar, despido deárvores, eram eles os únicospontos salientes que podiamatrair as descargas eléctricas.Jack, acordado pelo estampido

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dos trovões, escondia-se nosbraços de Hercule. Tinha muitomedo a pobre criança, mas não oqueria manifestar a sua mãe,receoso de mais a afligir.Hercule, andando sempre tãodepressa quanto podia, iaconsolando o menino.

— Não tenha medo,menino Jack — repetia ele.- —Se o trovão se chegar para cá, eusó com uma das mãos racho-o aomeio! Sou mais forte do que ele...

E realmente a força dogigante tranquilizava um pouco opequenino Jack.

A chuva, porém, não podia

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tardar, e quando caísse seriamtorrentes que lançariam asnuvens, condensando-se. Queaconteceria a Mrs. Weldon e aosseus companheiros se nãoachassem abrigo?

Dick Sand parou uminstante junto do velho Tom.

— Que faremos? — disseele.

— Continuar a andar, Sr.Dick — respondeu Tom.

— Não podemos ficarnesta planície que a chuva virátransformar numa lagoa!

— Não, Tom, nãopodemos, mas o abrigo? Onde

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está ele? Qual pode ser? Sehouvesse ao menos uma cabana!...

Dick Sand interrompera afrase repentinamente. Umrelâmpago mais claro alumiaratoda a planície.

— Que vi eu a um quartode milha daqui? — exclamouDick Sand.

— E eu também vi algumacoisa — declarou o velho Tom,abanando a cabeça.

— Um acampamento não éverdade?

— Sim, Sr. Dick, deve serum acampamento... mas deindígenas!

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Um outro relâmpagodeixou ver mais distintamente oacampamento, que ocupava parteda imensa planície.

Com efeito, não (muitolonge, levantavam-se cerca decem barracas de forma cônica,simetricamente dispostas emedindo dez a quinze pés dealtura. Não se via porém umguarda. Estariam eles abrigadosdentro das suas tendas, deixandoque a tempestade passasse, ouestaria abandonado o campo?

No primeiro caso, DickSand, quaisquer que fossem asiras do céu, devia fugir o mais

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depressa possível. No segundo,estava ali talvez o abrigo queprocurava.

— Eu saberei — disse ele.Depois, dirigindo-se ao velhoTom:

— Fica aqui. Não consintoque ninguém me siga! Eu ireireconhecer o campo.

— Deixe que um de nós oacompanhe, Sr. Dick.

— Não, Tom. Irei só.Posso aproximar-me sem servisto. Fica.

A pequena caravana queTom e Dick precediam parou. Oprático marchou para a frente e

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desapareceu na obscuridade, queera profundíssima, exceto quandoos relâmpagos rasgavam asnuvens.

Começavam a cairalgumas gotas grossas.

— Que é? — perguntouMrs. Weldon, que se aproximoudo velho negro.

— Enxergamos umacampamento, Mrs. Weldon —respondeu Tom — , umacampamento... ou talvez umapovoação que o nosso capitãoquis reconhecer antes de nosconduzir para lá.

Mrs. Weldon ficou

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satisfeita com a resposta. Trêsminutos depois voltava DickSand.

— Venham, venham —dizia ele, com voz que bemexprimia o seu contentamento.

— Está abandonado ocampo? — perguntou Tom.

— Qual! — respondeu ojovem prático. — Não éacampamento nem povoação...São formigueiros!

— Formigueiros! —exclamou primo Bénédict, a quemesta palavra encheu decuriosidade.

— Sim, Sr. Bénédict, mas

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olhe que são formigueiros dedoze pés de altura pelo menos, edentro dos quais vamos ver senos metemos.

— Mas então — continuouprimo Bénédict — , serão osformigueiros da térmite fatal ouda térmite mordaz. Só estesindustriosos insetos podemlevantar tais monumentos, quefariam honra aos mais hábeisarquitetos.

— Quer sejam térmitesquer não, Sr. Bénédict, é precisodesalojá-las, e tomar-lhes o lugar.

— Devorar-nos-ão! Eestarão no seu direito!

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— Vamos, vamos...— Mas, esperem! —

observou primo Bénédict. —Julgava eu que esses formigueirossó na África se encontravam.

— Vamos! — repetiu DickSand com intimativa, tantoreceava que Mrs. Weldon ouvisseas últimas palavras pronunciadaspelo entomologista.

Seguiram Dick Sand a todaa pressa. Levantou-se ventofurioso; grossas gotas de águabatiam no chão com estrépito.Dentro de poucos instantes asrajadas seriam impetuosíssimas.

Entretanto chegaram a um

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dos cones, e, por muito terríveisque fossem as térmites, convinhanão hesitar em participar comelas da sua habitação, dado ocaso de não se conseguir pô-lasfora.

Na base, que era feita deuma espécie de argilaavermelhada, abriu-se umestreitíssimo buraco, que Herculealargou com a faca, de modo quedesse passagem a um homem dasua estatura.

Com grande surpresa doprimo Bénédict, não apareceuuma única dos milhares detérmites que deviam habitar o

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formigueiro. Estaria por elasabandonado?

Logo que o buraco sealargou, Dick e os seuscompanheiros penetraram por ele.Hercule foi o último que entrou, eexatamente no momento em que achuva caía com tal intensidadeque parecia apagar osrelâmpagos.

Mas nada havia a temer jádos aguaceiros. Um acaso felizfornecera ao pequeno ranchoseguro abrigo, melhor que umabarraca, melhor que uma cabanade indígenas.

Era um desses cones das

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térmites, que, segundo acomparação do tenente Cameron,são, por serem construídos porpequenos insetos, mais dignos deadmiração que as pirâmides doEgito, que a mão do homemlevantou.

— É — diz ele — comose um povo tivesse feito o monteEverest, uma das mais altasmontanhas da cordilheira doHimalaia.

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CAPÍTULO V

LIÇÃO SOBRE AS

FORMIGAS DADA NUMFORMIGUEIRO

Naquele momento a

tempestade rebentava comviolência desconhecida naslatitudes temperadas.

Foi providencial que Dick

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Sand e os seus companheirostivessem achado aquele refúgio.

A chuva não caía em gotasdistintas, mas em fios de água degrossura variável. Era algumasvezes como que uma massacompacta, um lençol de água, umacatarata, um Niágara. Imagine-seum grande tanque aéreo, quecontivesse um mar e se virassepor súbito movimento. Pela açãode tais derramamentos formam-seas barrocas, as planíciestransformam-se em lagos, osribeiros em torrentes, e os riosinundam vastíssimos territórios. Éo contrário do que acontece nas

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zonas temperadas, onde aviolência das trovoadas está narazão inversa da sua duração. NaÁfrica, por muito fortes Quesejam, duram muitos dias. Comose pode acumular tantaeletricidade nas nuvens? Como sepodem juntar tantas massas devapor? É difícil compreender.Mas é assim, e a vista de taisfenômenos transporta-nos àsépocas extraordinárias doperíodo diluviano.

Felizmente, porém, oformigueiro, porque tinha paredesmuito grossas, era perfeitamenteimpermeável. Uma toca de

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castores feita de terra bemamassada não estaria mais seca.Podiam passar sobre ela torrentesde água, sem que uma gota só sefiltrasse através dos seus poros.Logo que Dick Sand e os seuscompanheiros tomaram posse docone, trataram de reconhecer asua disposição interior. Acendeu-se a lanterna, que deu aoformigueiro luz suficiente. Ocone, que media doze pés dealtura na parte interior, tinha alargura de onze pés, com exceção,porém, da parte superior, que searredondava em forma de pão deaçúcar. As paredes tinham

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grossura uniforme, deproximamente um pé, e entre osdiversos andares de células queas revestiam havia espaçosvazios.

Embora cause espanto aconstrução de tais monumentospor industriosas falanges deinsetos, é contudo certo que elesse encontram frequentemente nointerior da África. Um viajanteholandês do século passado,Smeathman, ocupou, com maisquatro dos seus companheiros, ovértice de um desses cones. NoLunde, viu Livingstone muitosformigueiros construídos de

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argila vermelha, cuja alturaatingia quinze a vinte pés. Otenente Cameron confundiu muitasvezes com acampamentos aquelasaglomerações de cones, queeriçavam as planícies emNyamgué. Chegou a parar juntode verdadeiros edifícios, não devinte pés de altura, mas dequarenta e de cinquenta, conescirculares, enormes, rodeados depequenos campanários, àsemelhança do zimbório de umacatedral! Assim são os que seveem na África Meridional.

A que espécie de formigase devia a prodigiosa edificação

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de tais formigueiros?“À térmite fatal”,

respondeu sem hesitar primoBénédict, logo que reconheceu anatureza dos materiaisempregados na construção deles.

E, com efeito, as paredes,como ficou dito, eram feitas deargila vermelha. Se fossemfabricadas de terras de aluvião,pardas ou negras, deviamatribuir-se às “térmitesmordazes” ou às “térmitesatrozes”.

Como se vê, estes animaistêm nomes pouco animadores, quenão podem agradar senão a um

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entomologista insigne, como eraprimo Bénédict.

A parte central do cone, aqual a pequena caravana primeiroocupou, e que formava o espaçointerior, não bastava paraacomodar tanta gente; masgrandes cavidades sobrepostaseram como outras tantas cabanas,nas quais qualquer pessoa de meãestatura caberia regularmente.Imagine-se uma série de gavetasabertas, no fundo delas milhõesde alvéolos, que as térmitestinham ocupado, e formar-se-áideia da disposição interior doformigueiro. Em suma, estas

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gavetas assentavam umas sobre asoutras, como os beliches de umcamarote de navio, e foi nosbeliches superiores que Mrs.Weldon, Jack, Nan e primoBénédict se abrigaram.

Na carreira inferiorficaram Agostinho, Bat e Acteon.Dick Sand, Tom e Herculeficaram na parte mais baixa docone.

— Meus amigos — disseentão o jovem prático aos doisnegros — , o terreno começa aimpregnar-se de água. É mister,pois, secá-lo, esboroando a argilada base; mas tenhamos cuidado

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em não tapar o buraco por ondeentra o ar. Não nos arrisquemos amorrer abafados dentro desteformigueiro.

— Uma noite depressapassa — respondeu o velho Tom.

— Pois bem, tratemos dedescansar de tantas fadigas. Emdez dias é esta a primeira vez quedeixamos de dormir ao ar livre.

— Dez dias! — repetiuTom.

— Ora — continuou DickSand — , como esta pirâmide éabrigo seguro, talvez nosconvenha ficar mais vinte equatro horas. Durante esse tempo

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de demora irei reconhecer o -rioque procuramos e que não podeestar longe. Penso mesmo que,enquanto não construirmos umajangada, o melhor de tudo seránão sairmos de dentro desteabrigo. A tempestade não noschegará. Tornemos, pois, o chãomais resistente e mais seco.

As ordens de Dick Sandforam imediatamente executadas.Hercule com a machada esborooua primeira ordem de alvéolos, osquais eram feitos de argilafriável.

Levantou de mais de um péa parte interior do terreno

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lamacento sobre o qual assentavao formigueiro. Depois Dick Sandviu que o ar podia penetrarlivremente para o interior do coneatravés do buraco que este tinhana base.

Foi decerto uma felizcircunstância a de ter sido oformigueiro abandonado pelastérmites. Com alguns milharesdestas formigas seria inabitável.Mas tinha ele sido evacuadohavia muito tempo, ou estesvorazes neurópteros tinham saídopoucos momentos antes? Não erasupérflua esta questão.

Antes de todos pensara

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nisto primo Bénédict, tal era asurpresa que semelhanteabandono lhe causava, masdepressa se convenceu de que aemigração fora muito recente.

Não se demorou em descerà parte inferior do cone, e lá,alumiado pela lanterna,investigou por todos os lugaresmais recônditos do formigueiro.Conseguiu descobrir o que elechamou o “celeiro das térmites”,isto é, o sítio onde estesindustriosos insetos guardavam asprovisões da colônia.

Era uma cavidade abertana parede, não longe da célula

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real, que o trabalho de Herculedeitara por terra, juntamente comas células destinadas às larvasainda novas.

Do celeiro tirou primoBénédict uma pequena quantidadede parcelas de goma e de sucosde plantas apenas solidificadas, oque provava que as térmites astinham trazido de fora poucotempo antes.

— Não! Não! — exclamouele como se respondesse aalguma objecção que lhefizessem. — Não! Esteformigueiro não foi abandonadohá muito tempo!

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— Quem lhe diz ocontrário, Sr. Bénédict? — acudiuDick Sand. — Recentemente ounão, o que nos importa é que astérmites o tenham deixado, porisso que nos convém ocupá-lo.

— O que importa —respondeu primo Bénédict — ésaber os motivos por que elassaíram! Ontem, esta manhã ainda,esses sagazes neurópteros ohabitaram, porque estão aquisubstâncias líquidas, e estanoite...

— Mas quer concluir, Sr.Bénédict? — interrompeu DickSand.

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— Quero concluir que umsecreto pressentimento as incitoua abandonar o formigueiro. Nãosó nenhuma delas se conservounas células, mas tão longelevaram o seu cuidado quecarregaram com as pequenaslarvas, das quais nem uma sóencontro. Repito que nada distose fez sem motivo e que osperspicazes insetos previramperigo iminente...

— Previram que nós lhesíamos invadir a casa! — disseHercule, rindo.

— Sim! — replicou primoBénédict, a quem esta resposta do

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negro chocou visivelmente.- —Com que então julga-se tão forteque seja um perigo para tãocorajosos insetos? Bastavamalguns milhares destesneurópteros para o reduzirem aesqueleto, se acaso oencontrassem morto no caminho!

— Morto, sim! —respondeu Hercule, que nãoqueria ceder —, mas vivoesmigalharia muitos milhõesdeles!

— Sim, esmagaria cemmil, quinhentos mil, um milhãomesmo! — replicou primoBénédict, animando-se — , mas

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não mil milhões, e mil milhões detérmites devorá-lo-iam, vivo oumorto, até ao mais pequenopedacinho!

Durante esta conversação,que era menos frívola do que àprimeira vista poderia parecer,Dick Sand refletia sobre aobservação que fizera primoBénédict. Sem dúvida, o sábioconhecia bem os costumes dastérmites, para que se pudesseenganar. Se ele afirmava que umsecreto instinto as advertira paraabandonar recentemente oformigueiro, era porque narealidade poderia haver perigo

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em estar ali.Contudo, como não se

podia pensar em deixar aqueleabrigo, na ocasião em que atempestade se desencadeava comintensidade pouco vulgar, DickSand não procurou saber aexplicação do que parecia tãoinexplicável, e satisfez-se emresponder: — Sr. Bénédict, se astérmites deixaram as suasprovisões neste formigueiro, nãonos esqueçamos de que trouxemosas nossas, e ceemos. Amanhã,quando a tempestade tiverpassado, veremos o que nosconvém fazer.

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Trataram então depreparar a ceia, porque, pormuito grande que fosse a fadiga,não pôde ela alterar o apetite detão bons caminhantes. Pelocontrário. Os víveres, que haviamde durar ainda dois dias, tiverambom acolhimento. A bolachaconservava-se seca, e, por isso,durante alguns minutos ouviu-seestalar sob os magníficos dentesde Dick Sand e dos seuscompanheiros. Entre a dentadurade Hercule estava como o grãosob a mó do moinho. Hercule nãoa trincava, moía-a.

Só Mrs. Weldon comia

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pouco, e isso mesmo porque DickSand instou muito com ela.Parecia ao jovem prático que estaanimosa senhora estava maispreocupada e mais triste do quenunca. No entanto Jack estavamelhor; o acesso de febre nãovoltara, e naquele momentodescansava ele, sob as vistas desua mãe, num alvéolo bemestofado com roupa. Dick Sandnão sabia o que julgasse.

Inútil é dizer que primoBénédict fez honra ao banquete,não porque apreciasse aqualidade ou a quantidade doscomestíveis, que ainda assim

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devorava, mas porque teveocasião de fazer uma lição deentomologia sobre as térmites.Ah! Se ele tivesse achado umatérmite, uma só que fosse, noformigueiro abandonado! Masnada!

— Estes admiráveisinsetos — disse ele, sem tratar desaber se o ouviam ou não — ,estes admiráveis insetospertencem à maravilhosa ordemdos neurópteros, cujas antenassão mais compridas que a cabeça,as mandíbulas muito distintas, asasas inferiores quase sempreiguais às superiores. Cinco tribos

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constituem esta ordem: panorpas,mirmileões, hemeróbios, térmitese perlídeos. É inútil acrescentarque os insetos, cuja casaocupamos, talvez indevidamente,são as térmites.

Neste momento Dick Sandouvia com muita atenção primoBénédict. O encontro das térmitesteria despertado a Bénédict aideia de que talvez estivesse nocontinente africano, sem saberpor que fatalidade ali fora parar?O prático estava ansioso porsaber isto.

O sábio continuava:— Ora as térmites são

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caracterizadas por quatroarticulações nos tarsos, pelasmandíbulas córneas e deextraordinário vigor. Há o gêneromantispo, o gênero rafídia, ogênero térmite, muitas vezesconhecido pelo nome de formiga-branca, no qual se conta a térmitefatal, a térmite de toraceteamarelo, a térmite lucifuga, amordaz, a daninha...

— E quais foram as queconstruíram este formigueiro? —perguntou Dick Sand.

— Foram as térmites fataisou belicosas — respondeu primoBénédict, que pronunciou este

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nome como se falasse dosMacedónios ou de outro povoguerreiro da Antiguidade. — Sim,foram as térmites belicosas detodas as grandezas! Entre Herculee um anão, a diferença é menorque entre o maior e o maispequeno destes insetos. Se entreeles se encontram trabalhadores eoperários de cinco milímetros, esoldados de dez milímetros degrandeza, machos e fêmeas devinte, encontra-se também outraespécie, não menos curiosa, a das“sirafus”, que têm meia polegadade comprimento, tenazes em vezde mandíbulas, e a cabeça mais

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grossa do que o corpo, como ostubarões. São os tubarões dosinsetos, e num combate entre umtubarão e as “sirafus” euapostaria por estas.

— E onde se encontramesses insetos? — perguntou DickSand.

— Na África —respondeu primo Bénédict —, nasprovíncias centrais e meridionais.A África é por excelência o paísdas formigas. É muito para se lero que diz Livingstone nos últimosapontamentos trazidos porStanley. Mais feliz do que eu, odoutor assistiu a uma batalha

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homérica entre um exército deformigas pretas e outro deformigas vermelhas. Estas, que sechamam “drivers” e a que osindígenas dão o nome de“sifarus”, ficaram vencedoras. Asoutras, as “chungus”, fugiram,levando ovos e larvas, depois dese terem valentemente defendido.Nunca, segundo refereLivingstone, nunca o furor dapeleja foi levado tão longe, nementre os homens nem entre asferas! Com a sua mandíbulaaferradora, as “sifarus” fazemrecuar os homens, ainda os maisvalentes. Os maiores animais, os

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leões e os elefantes, fogem delas.Nada as faz parar, nem asárvores, que elas escalam até aocimo, nem os rios, queatravessam fazendo pontessuspensas com os seus próprioscorpos ligados uns aos outros!São numerosas. Um outro viajanteafricano, Du Chaillu, viu desfilardurante duas horas uma colunadestas formigas, sem parar nocaminho! Mas porque nosespantaremos à vista de tantasmiríades? A fecundidade dosinsetos é assombrosa, e, voltandoa falar das térmites fatais, estáprovado que uma fêmea chega a

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pôr sessenta mil ovos por dia!Assim, estes neurópterosfornecem aos indígenas suculentaalimentação. Formigas grelhadas,meus amigos, há alguma coisa demelhor neste mundo?

— Já comeu, Sr. Bénédict?— perguntou Hercule.

— Nunca — respondeu osábio professor —, mas ainda heide comer.

— Onde?— Aqui.— Aqui? Mas nós não

estamos na África — acudiu Tom.— Não... não... —

respondeu Bénédict — e contudo

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até aqui as térmites fatais e assuas aldeias de formigueirosainda não foram observadassenão no continente africano. Oravejam lá como são os viajantes!Não sabem ver. Tanto melhor! Jádescobri uma tsé-tsé na América!A esta glória juntarei a de tervisto as térmites fatais no mesmocontinente! Que assunto para umamemória, que fará decertosensação na sábia Europa, etalvez mesmo para algum in-fóliocom estampas e gravuras emseparado!...

Era evidente que averdade não penetrara no cérebro

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de primo Bénédict. O pobrehomem e todos os seuscompanheiros, com exceção deDick Sand e de Tom, julgavam-se,e tinham razão para isso, em lugaronde realmente não estavam!Outras eventualidades, fatos maisgraves do que certas curiosidadescientíficas, deviam acontecerpara que se desenganassem.

Eram então nove horas danoite. Primo Bénédict falaramuito tempo. Percebeu ele que osseus ouvintes, deitados nosalvéolos, tinham pouco a poucoadormecido durante a lição deentomologia? Não. Dissertava

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por gosto. Dick Sand, conquantonão estivesse dormindo, não ointerrogava e conservava-seimóvel. Hercule resistira mais doque os outros; mas o cansaçoobrigou-o por fim a fechar osolhos, e com os olhos os ouvidos.

Primo Bénédict durantealgum tempo ainda continuou adissertar, até que, vencido pelosono, trepou para a cavidadesuperior do cone, onde já tinhaescolhido lugar.

Profundo silêncio reinavaentão no interior do formigueiro,enquanto a trovoada enchia oespaço de ruído e de fogo. Não

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havia sinais que indicassem o fimdo cataclismo.

Apagara-se a lanterna. Nointerior do cone a escuridão eraprofunda.

Todos dormiam. Só DickSand não procurava no sono orepouso, que contudo lhe era tãonecessário. Os cuidadosabsorviam-no. Pensava nos seuscompanheiros, que queria salvarcustasse o que custasse. Onaufrágio do “Pilgrim” nãomarcara o termo das suas cruéisprovações, e outras, não menosterríveis, o ameaçavam, se caísseem poder dos indígenas.

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E como evitar este perigo,o pior de todos, quandovoltassem para a costa?Evidentemente, Harris e Negoronão os tinham levado cem milhaspelo sertão de Angola sem osecreto desígnio de seapoderarem deles. Mas quemeditava, então, o malditocozinheiro? A quem tinha eleódio? O jovem prático dizia a simesmo que só ele o tinhamerecido, e recordava todos osincidentes mais notáveis daviagem do “Pilgrim”, o encontrodo casco abandonado e dosnegros, a perseguição da baleia, e

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a desaparição do capitão Hull eda tripulação...

Dick Sand achara-seentão, aos quinze anos,encarregado do comando de umnavio, em que a bússola, pelamão criminosa de Negoro,mostrara caminho errado.Lembrava-se de se ver usando dasua autoridade, na presença doinsolente cozinheiro, ameaçando-o de o prender a ferros, ou de lhefazer saltar os miolos com um tirode revólver! Ah! Porque teriahesitado a sua mão? O cadáver deNegoro teria sido lançado ao mar,e não teriam sucedido tantas

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catástrofes.Tal era o curso das ideias

do jovem prático. Depoispensava um instante sobre onaufrágio com que acabara aviagem do “Pilgrim”. O traidorHarris aparecia então, e aprovíncia da América Meridionaltransformava-se pouco a pouco. ABolívia mudava-se em Angola,com o seu mau clima, as feras eos indígenas, ainda mais cruéis!Poderia a pequena caravanaescapar a tudo isto, até chegar àcosta? Esse rio, que Dick Sandprocurava e que esperavaencontrar, levá-los-ia ao litoral

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com mais segurança e menosfadiga? Não queria duvidar,porque sabia que uma marcha decem milhas, naquela inóspitaregião e no meio de perigosincessantes, era impossível.

— Felizmente — pensavaele —, Mrs. Weldon e todosignoram a gravidade da situação!Só eu e o velho Tom somos osúnicos que sabemos que Negoronos lançou para a costa da África,e que Harris nos trouxe para ossertões de Angola.

Dick Sand chegara a esteponto dos seus aflitivospensamentos, quando sentiu como

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um sopro passar pela sua frente.Uma mão se apoiou sobre o seuombro e uma voz comovidamurmurou ao seu ouvido estaspalavras: — Sei tudo, meu pobreDick, mas Deus pode salvar-nosainda! Faça-se a sua vontade!

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CAPÍTULO VI

O SINO DE

MERGULHADOR A essa inesperada

revelação Dick Sand não podiaresponder! Além de que Mrs.Weldon voltou imediatamentepara o seu lugar ao pé de Jack.Não queria, evidentemente, dizer

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mais do que dissera, e o jovemprático não teve a coragem de areter.

Mrs. Weldon sabia tudo.Os diversos incidentes docaminho tinham-na esclarecido etalvez também a palavra“África”, tão desastradamentepronunciada na véspera porprimo Bénédict!

“Mrs. Weldon sabe tudo”,dizia para consigo Dick Sand.“Talvez seja melhor. A corajosasenhora não desespera! Nãodesesperarei eu também!”

Tardava o dia a Dick Sandpara poder ir explorar os

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arredores daquela povoação detérmites. Um rio, tributário doAtlântico, dotado de rápidacorrente, era o que Dick queriadescobrir para transportar todo oseu rancho, e ele tinha umaespécie de pressentimento asegredar-lhe que uma corrente deágua não estava longe. O quesobretudo convinha era evitar oencontro dos indígenas, talvez jáem sua perseguição, dirigidos porHarris e Negoro.

Mas o dia não vinha.Nenhuma claridade se infiltravapelo orifício inferior para dentrodo cone. Rugidos, que a grossura

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das paredes abafava, indicavamque a trovoada não se aplacara.E, escutando bem, ouvia-se achuva cair com grande violênciana base do formigueiro, e, comoas grossas gotas não batiam sobreterreno duro, era forçoso concluirque toda a planície estavainundada.

Deviam ser onze horasproximamente. Dick Sand sentiuentão uma espécie de prostração,se não era verdadeiro sono que seapoderava dele. Em todo o casoseria repouso. Mas no momentoem que ia adormecer veio-lhe àideia de que, pelo amontoamento

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da argila embebida, o orifícioinferior podia obstruir-se.Fechar-se-ia a entrada ao arexterior, e, dentro, a respiraçãode dez pessoas prontamente oviciaria, carregando-o de ácidocarbônico.

Dick Sand deixou-se, pois,escorregar até ao chão, que sealteara com a argila da primeiraordem de alvéolos.

O pequeno aterro circularestava ainda enxuto e o orifícioperfeitamente aberto. O arpenetrava livremente para ointerior do cone e com ele aclaridade dos relâmpagos e o

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estampido da trovoada que umachuva diluviana não podiaenfraquecer.

Dick Sand certificou-se deque tudo estava bem. Nenhumperigo parecia, por enquanto,ameaçar aquelas térmiteshumanas, que substituíram acolônia dos neurópteros. Pensou,pois, o jovem prático em serefazer da fadiga, dormindoalgumas horas, pois que já sesentia dominar pelo sono.

Porém, por extremaprecaução, Dick Sand deitou-sesobre o aterro de argila, na basedo cone, e perto do estreito

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orifício. Deste modo nenhumacidente sobreviria sem que elefosse o primeiro a pressenti-lo. Aprimeira luz da madrugadaacordá-lo-ia decerto, e poderia,por consequência, começar muitocedo a explorar a planície.

Dick Sand deitou-se, coma cabeça apoiada à parede e acarabina na mão. Pouco depoisadormeceu.

Não podia dizer quantotempo durou aquele letargo.Sentiu-se acordado por grandesensação de frio.

Levantou-se e reconheceu,não sem ansiedade, que a água

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invadia o formigueiro e tãorapidamente que em poucossegundos atingiria a ordem dealvéolos que Tom e Herculeocupavam.

Estes, acordados por DickSand, souberam imediatamente danova contrariedade.

Acendeu-se a lanterna, queiluminou o interior do cone.

A água chegara até à alturade cinco pés proximamente eficara estacionária.

— Que aconteceu, Dick?— interrogou Mrs. Weldon.

— Não é nada —respondeu o jovem prático. — A

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parte inferior do cone estáalagada. É provável que com atrovoada alguma ribeira próximativesse saído do seu leito einundado a planície.

— Bom — disse Hercule—, isso prova que o rio estáperto.

— É verdade —respondeu Dick Sand —, e seráele que nos conduzirá à costa.Descanse, pois, Mrs. Weldon, aágua não lhe chegará, nem a Jack,nem a Nan, nem ao Sr. Bénédict!

Mrs. Weldon nãorespondeu. Primo Bénédictdormia como uma verdadeira

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térmite.Entretanto os negros,

inclinados sobre a água, querefletia a luz da lanterna,esperavam que Dick Sand lhesdissesse o que deviam fazer.

Mas Dick Sand nada dizia,e mandava pôr as provisões e asarmas onde não chegasse ainundação.

— A água penetrou peloorifício? — perguntou Tom.

— Sim — elucidou DickSand — e agora impede que o arse renove.

— Não poderíamos fazerum buraco na parede, acima do

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nível da água? — perguntou ovelho negro.

— Podíamos... Tom; masse temos cinco pés de água cádentro, é porque há talvez seis ousete... ou mesmo mais... lá fora!

— Sabe isso com certeza,Sr. Dick?

— Sei, Tom, que a água,subindo no interior doformigueiro, devia tercomprimido o ar na partesuperior, e que este ar é agora oobstáculo que se opõe a que elase eleve mais. E se nósfizéssemos um buraco na parede,pelo qual o ar passasse, ou a água

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subiria ainda até que igualasse onível exterior, ou, se excedesse ofuro, subiria até ao ponto em queo ar comprimido a contivesse.Devemos estar aqui como osoperários nos sinos demergulhadores.

— Que se deve fazerentão? — perguntou Tom.

— Pensar bem antes deproceder — retorquiu Dick Sand.— Uma imprudência poderiacustar-nos a vida.

A observação do jovemprático era justíssima. Tinhamuita razão em comparar o conecom um sino imenso. A diferença

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porém está que neste aparelho oar é incessantemente renovadopor meio de bombas, osmergulhadores respiramregularmente, e não têm outrosinconvenientes senão os queresultam de uma longapermanência sob a ação de umaatmosfera comprimida e que nãoestá à pressão normal. Mas aqui,além destes inconvenientes, oespaço estava já reduzido à terçaparte, pela invasão da água, e o arnão podia ser renovado senãoabrindo-se um furo que pusesse oformigueiro em comunicação coma atmosfera exterior.

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Poder-se-ia, pois, semcorrer os riscos que mencionaraDick Sand, furar a parede, e nestecaso não se agravaria a situação?

O que é certo é que a águase mantinha então a um nível talque duas razões unicamente ofariam subir: ou fazendo-se o furoe sendo mais alto o nível exterior,ou se a altura da cheia aumentasseainda. Em ambos os casos nãoficaria no interior do cone senãoum apertado espaço em que o ar,não renovado, se comprimiriaainda mais.

Mas o formigueiro nãopodia ser arrancado do solo pela

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inundação, com grande perigo dosque lá estavam dentro? Não; tantocomo uma toca de castores, portal modo estava ele seguro pelabase.

O que constituía, pois, aeventualidade mais para temerera a persistência da tempestade epor consequência o crescimentodas águas. Trinta pés de água naplanície cobririam o cone comdezoito pés de água, ecomprimiriam o ar no interior soba pressão de uma atmosfera.

Refletindo bem, Dick Sandconvenceu-se de que a inundaçãonão era extraordinária, nem devia

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atribuir-se unicamente ao dilúvioque as nuvens lançavam. Pareciamais provável que um riopróximo, engrossado pelas águas,tivesse saído do seu leito e seespalhasse na planície, que lheficava inferior. Mas o queprovava que o formigueiro nãoestava então inteiramentemergulhado, e que não era jápossível sair dele, mesmo pelasua calota superior, a qual nãoseria difícil, nem levaria muitotempo a demolir?

Dick Sand, extremamenteinquieto, perguntava a si mesmo oque devia fazer. Conviria esperar

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ou precipitar o desfecho dasituação depois de terreconhecido o estado das coisas?

Eram três horas da manhã.Todos escutavam, imóveis esilenciosos. Os ruídos exterioreschegavam, mas já muitoenfraquecidos, através do orifícioobstruído. Contudo um rumorsurdo, extenso e contínuo,indicava bem que a luta doselementos não cessara ainda.

Nesse momento o velhoTom notou que o nível da água seelevava pouco a pouco.

— Sim — respondeu DickSand —, e se sobe, apesar de o ar

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não poder sair, é porque a cheiacresce e o comprime cada vezmais.

— Por ora é pouco —disse Tom.

— É — confirmou DickSand —, mas onde parará?

— Sr. Dick — perguntouBat —, quer que eu saia doformigueiro? Mergulho e façodiligência para sair pelo buraco...

— É melhor que eu tentefazer isso — disse Dick Sand.

— Não, Sr. Dick, não —interveio o velho Tom. — Deixeir meu filho e confie nele. Se elenão puder voltar, paciência, mas a

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sua presença, Sr. Dick, énecessária aqui!

Depois, falando maisbaixo, continuou: — Não se deveesquecer de Mrs. Weldon e dopequenino Jack.

— Pois sim — concordouDick Sand. — Vai, Bat. Se oformigueiro estiver submergido,não tentes entrar. Nósdiligenciaremos sair como tu.Mas se o cone emerge ainda, batena calota grandes pancadas com amachada que contigo levarás. Nóste ouviremos e para nós será esseo sinal de pela nossa parte ademolirmos também. Entendes

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bem?— Muito bem, Sr. Dick —

respondeu Bat.— Vai, meu rapaz! —

acrescentou o velho Tom,apertando a mão do filho.

Bat, depois de ter feitoboa provisão de ar por uma longaaspiração, mergulhou na massalíquida, cuja profundidadepassava já de cinco pés. Eratrabalho muito difícil, pois quetinha de procurar primeiramente oorifício inferior, passar atravésdele e subir à superfície exteriordas águas. Tudo isto requeriapronta execução.

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Passou mais de meiominuto. Dick Sand pensava queBat conseguira passar para o ladode fora, quando o negro apareceu.

— Então? — exclamouDick Sand.

— O buraco estáentulhado! — informou Bat logoque cobrou alento.

— Entulhado! — repetiuTom.

— Sim. A águaprovavelmente fez deslizar aargila... Apalpei com a mão àroda das paredes... Não encontreipassagem!...

Dick Sand abanou a

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cabeça. Os companheiros e eleestavam presos naquele cone, quea água submergia talvez já.

— Se não há passagem —observou então Hercule —, énecessário abrir uma.

— Espera — atalhou ojovem prático, fazendo pararHercule, que, com o machado namão, se dispunha a mergulhar.

Dick Sand refletiu durantealguns instantes e depoisdeclarou: — Vamos proceder deoutra maneira. A questão está emsaber se a água cobre ou não oformigueiro.

— Se fizéssemos uma

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pequena abertura no vértice docone, sabê-lo-íamos logo. Mas seo formigueiro estiver todosubmergido, a água invadi-lo-ácompletamente e ficaremosperdidos. Procedamos pois portentativas.

— Mas depressa —recomendou Tom. Efetivamente, onível subia sempre e a pouco epouco. Havia já seis pés de águano interior. À exceção de Mrs.Weldon, do seu filho, de primoBénédict e de Nan, que se haviamrefugiado nas cavidadessuperiores, todos tinham mais demeio corpo metido na água.

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Era, pois, urgente apressara resolução que Dick Sandpropusera.

Foi um pé acima do nívelinterior, a sete pés do solo, porconsequência, que Dick Sandresolveu abrir um furo na paredede argila.

Se por aquele furo seestabelecesse a comunicação como ar exterior, era porque o coneemergia. Se, pelo contrário, ofuro ficasse abaixo do nívelexterior, o ar seria repelidointernamente, e em tal casourgiria tapar o furo com rapidez,ou a água se elevaria até ao

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orifício. Depois recomeçar-se-iaa experiência um pé mais acima,e assim seguidamente. Mas se,enfim, na parte superior da calotanão se encontrasse ainda o ar daatmosfera, era porque havia maisde quinze pés de água na planície,e que toda a aldeia das térmitesdesaparecera com a inundação!Em tal caso, que esperançarestava aos presos do formigueirode escapar à mais terrível detodas as mortes, a morte porasfixia lenta?!

Tudo isto sabia Dick Sand,mas a sua presença de ânimo nãoo abandonou nunca. As

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consequências da experiência queele queria tentar, calculara-asbem, mas esperar mais tempo eraimpossível. A asfixia ameaçava-os naquele acanhado espaço, quede instante para instante sereduzia mais, numa atmosfera jásaturada de ácido carbônico.

O melhor instrumento queDick Sand achou para abrir o furona parede foi uma vareta deespingarda, o qual tinha naextremidade uma rosca, queservia para limpar o cano.Girando rapidamente com avareta a rosca entraria na argilacomo uma broca, e far-se-ia o

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furo pouco a pouco. Não teriamaior diâmetro que o da vareta,mas era quanto bastava. O arpenetraria facilmente.

Hercule, com a lanternalevantada, alumiava Dick Sand.Havia velas de reserva; por issonão faltaria a luz.

Um minuto depois de terprincipiado a operação a varetapenetrou livremente na parede.Ouviu-se imediatamente um ruídosurdo, semelhante ao que fazemas bolhas de ar subindo atravésde uma coluna de água. O ar saíapara fora, e no mesmo momento onível da água subiu no cone e

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parou à altura do furo, o queprovava que ele se fizera muitobaixo, isto é, inferiormente àsuperfície da massa líquidaexterior.

— Recomecemos — dissecom placidez o prático, depois deter rapidamente tapado o furocom argila.

A água estacionaranovamente dentro do cone, mas oespaço de ar diminuíra mais deoito polegadas. A respiraçãotornava-se difícil, porque ooxigénio começava a faltar. Via-se também que a luz da lanternase avermelhava e perdia parte do

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brilho.Um pé acima do primeiro

furo, Dick Sand começou a fazersegundo, pelo mesmo processo.Se a experiência não desse bomresultado, a água continuaria asubir no interior do cone... masera mister correr o risco.

Enquanto Dick Sandgirava com a sua broca, ouviu-serepentinamente primo Bénédictgritar: — Ah! Aí está a razão! Aíestá a razão!

Hercule levantou alanterna e dirigiu a luz sobreprimo Bénédict, na cara do qualse revelava a maior satisfação.

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— Sim — repetiu ele —,aí está porque as inteligentestérmites abandonaram oformigueiro! Pressentiram ainundação. Ah! O instinto, meusamigos, o instinto! São maisespertas do que nós, muito maisespertas!

Tal foi a moralidade queprimo Bénédict tirou da situação.

Naquele momento DickSand retirava a vareta, queatravessara na parede. Ouviu-seum silvo. A água subiu mais umpé no interior do cone. O furo nãoencontrara o ar livre na parteexterior!

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A situação era pavorosa.Mrs. Weldon, a quem a águaquase chegava, levantava Jacknos braços. Todos abafavamnaquele acanhadíssimo espaço.Sentiam já zunido nos ouvidos. Alanterna dava frouxa luz.

— O cone estarácompletamente mergulhado? —murmurou Dick Sand.

Era indispensável sabê-lo,abrindo-se para isso um terceirofuro na calota.

Mas era a asfixia, era amorte imediata, se o resultadodesta última tentativa fosseinfrutífero. O ar que restava no

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interior passaria através dacamada superior, e a águaencheria o cone completamente.

— Mrs. Weldon — disseentão Dick Sand —, conhece bema situação. Se nos demorarmos, oar respirável falta-nos. Se falha aterceira tentativa, a água encherátodo este espaço. A únicaprobabilidade de salvação quenos resta é que o vértice do coneesteja acima do nível da cheia. Éconveniente tentar esta últimaexperiência. Quer tentá-la?

— Quero, Dick! —respondeu Mrs. Weldon.

No mesmo momento

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apagou-se a lanterna naquelemeio, já impróprio para acombustão. Mrs. Weldon e osseus companheiros ficarammergulhados na mais completaescuridão.

Dick Sand tinha trepadonos ombros de Hercule, o qual seagarrava a uma das cavidadeslaterais, tendo apenas a cabeçafora de água. Mrs. Weldon, Jack eprimo Bénédict estavam na últimaordem de alvéolos.

Dick Sand começou a furara parede; a vareta penetravafacilmente na argila. Naquelelugar a parede, mais grossa e

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mais resistente, foi também menosfácil de furar. Dick Sandapressava-se, não sem terrívelansiedade, porque daquelaabertura ou entraria a vida com oar, ou com a água a morte.

De repente ouviu-se umsilvo agudo. O ar comprimidosaiu... mas um raio de luz passouatravés da parede. A água subiumais oito polegadas somente, eparou, sem que Dick Sand tivessenecessidade de tapar o furo. Oequilíbrio entre o nível interior eexterior estava restabelecido. Ovértice do cone emergia. Mrs.Weldon e os seus companheiros

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estavam salvos.Logo depois de um

frenético hurra, no qual dominoua voz de Hercule, as machadascomeçaram a trabalhar. A calotadesfazia-se pouco a pouco. O furoalargava-se, o ar puro entrava àsondas, e com ele os primeirosraios do sol nascente. Assim queo cone estivesse sem a calota,fácil seria trepar pela parede, eentão se pensaria no modo dechegar a qualquer altura próximae ao abrigo das inundações.

Dick Sand foi o primeiroque trepou.

Soltou um grito.

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Um estrépito,particularmente conhecido dosviajantes africanos, que fazem asflechas quando sibilam, passoupelo ar.

Dick Sand tivera tempo dever, a cem passos do cone, naplanície inundada, canoascompridas carregadas deindígenas.

Foi de uma dessas canoasque partiu a nuvem de flechas, nopróprio momento em que acabeça do jovem práticoapareceu.

Dick Sand com umapalavra fez compreender tudo aos

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seus companheiros. Pegando nasua carabina, seguido porHercule, Acteon e Bat,reapareceu sobre o cone, e todosfizeram fogo sobre uma dascanoas.

Caíram muitos indígenas, egritos selvagens, acompanhadospor tiros de espingarda,responderam à detonação dasarmas de fogo.

Mas o que podiam DickSand e os seus contra um cento deafricanos que os cercavam portodos os lados?

O formigueiro foiassaltado. Mrs. Weldon, Jack,

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primo Bénédict, todos enfim,foram brutalmente arrebatados, esem terem tempo de dizer umapalavra, nem de apertarem a mãoa última vez, viram-se separadosuns dos outros, decerto emvirtude de ordens previamentedadas.

A primeira canoa levouMrs. Weldon, o pequenino Jack eprimo Bénédict. Dick Sand viu-osdesaparecer entre oacampamento.

Dick, acompanhado deNan, do velho Tom, de Hercule,Bat, Acteon e Agostinho, foiatirado para outra canoa, que se

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dirigiu para outro ponto dacolina.

Vinte indígenas tripulavamesta embarcação, que era seguidade mais cinco. Resistir-lhes eraimpossível, e contudo Dick Sande os seus companheiros tentaramfazê-lo. Alguns guardas dacaravana foram por eles feridos,e decerto Dick e os seus teriampago a resistência com as vidasse não houvesse ordem terminantede lhas poupar.

Fez-se o caminho empoucos minutos. No momentoporém em que a canoa atracava,Hercule deu um salto e lançou-se

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para a terra. Dois indígenascorreram atrás dele, mas ogigante, fazendo da espingardauma clava, deitou por terra osindígenas, com as cabeçasquebradas. Instantes depois,Hercule desaparecia entre asbrenhas, no meio de um chuveirode balas, na mesma ocasião emque Dick Sand e os seuscompanheiros, depois de teremdesembarcado, eram acorrentadoscomo escravos.

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CAPÍTULO VII

UM ARRAIAL NAS

MARGENS DO CUANZA O aspecto da região

depois que a inundação fizera umlago da planície onde se erguia aaldeia das térmites, tinha mudadocompletamente. Cerca de vinteformigueiros emergiam apenas os

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seus vértices e eram os únicospontos salientes naquela enormelagoa.

Fora o Cuanza quetrasbordara durante a noite,carregado pelas águas dos seusafluentes, engrossados pelatempestade.

O Cuanza, um dos rios deAngola, lança-se no Atlântico acem milhas distante do lugar ondeo “Pilgrim” encalhara. É o mesmorio que o tenente Cameron deviaatravessar anos depois, antes dechegar a Benguela. Deve oCuanza vir a ser o veículo docomércio do interior de boa

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porção de Angola. Os vaporespercorrem já a parte inferior dorio, e não passarão dez anos semque naveguem no seu leitosuperior. Dick Sand procedera,pois, acertadamente procurandopara o norte algum rio navegável.O riacho que ele seguira vinhalançar-se no Cuanza. Se não fosseo inesperado ataque, contra oqual não se pudera prevenir, teriaDick encontrado o rio uma milhamais longe; os seus companheirose ele embarcariam numa jangadafácil de construir, e teriam porconsequência todas asprobabilidades de descer o

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Cuanza até às povoaçõesportuguesas onde os vaporesfazem escala. Lá, a sua salvaçãoera certa.

Mas não devia acontecerassim.

O arraial que Dick Sandvira estava assente sobre umaaltura próxima do formigueiro noqual a fatalidade o lançara comose fosse uma emboscada. Nocimo daquela altura elevava-seum enorme sicômoro, quefacilmente abrigaria quinhentoshomens sob a sua imensaramagem. Quem nunca viu estasárvores gigantes da África

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Central não pode delas formarideia. Os seus ramos formam umafloresta. Mais longe, grandesbanianas, das que não dão frutos,completavam o quadro davastíssima paisagem.

Fora ao abrigo dosicômoro que, escondida comoem lugar misterioso, umacaravana, a mesma cuja chegadaHarris anunciara a Negoro, tinhaparado. Aquela numerosa cáfilade indígenas, arrancados das suasaldeias pelos agentes dotraficante Alves, dirigia-se aomercado de Kasonde. De lá, osescravos, segundo os pedidos,

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seriam mandados para osbarracões da costa ocidental oupara Nyamgué, na região dosgrandes lagos, a fim de seremdivididos pelo alto Egipto oupelas feitorias de Zanzibar.

Logo que chegaram aoarraial, Dick Sand e os seuscompanheiros foram tratadoscomo escravos. Ao velho Tom, aoseu filho Bat, a Agostinho, aActeon e à pobre Nan, negros deorigem, conquanto nãopertencessem à raça africana,deram-lhes o tratamento doscativos indígenas. Depois deterem sido desarmados, ao que

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opuseram tenaz resistência, forampresos pelo pescoço, dois a dois,por meio de uma vara de seis asete pés de comprimento,bifurcada nos extremos e fechadapor hastes de ferro. De tal arteeram obrigados a caminhar emlinha, um atrás do outro, sem sepoderem desviar nem para adireita nem para a esquerda. Paramaior precaução, uma cadeiapesada os ligava pela cintura.Tinham apenas os braços livrespara carregar os fardos, e os péspara andar, mas não para fugir.Era assim que iam percorrercentenas de milhas, sob o

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azorrague de um condutor!Estendidos em lugar

desviado, prostrados pela reaçãoque se seguiu aos primeirosmomentos da luta contra osnegros, não faziam um únicomovimento. Não terem elespodido seguir Hercule, quandofugiu! E, contudo, que se deviaesperar para o fugitivo? Emboravigoroso como era, o que lheaconteceria naquela terrainóspita, onde a fome, oisolamento, as feras, os indígenas,tudo enfim era contra ele? Nãoviria ainda a lastimar-se por nãoter a sorte dos seus

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companheiros? E estes, contudo,nenhuma compaixão podiamesperar dos chefes da caravana,árabes ou portugueses, falandouma linguagem que eles nãocompreendiam, dirigindo-lhesapenas olhares ou gestosameaçadores.

Dick Sand não estavaligado a nenhum escravo. Erabranco e não se atreveram ainfligir-lhe o tratamento comum.Desarmado, tinha os pés e asmãos livres, mas um condutorestava encarregado de o vigiar.Observava o arraial, esperando acada momento ver Negoro ou

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Harris... Enganou-se. Todavia,não duvidava de que estes doistratantes haviam dirigido o ataquecontra o formigueiro.

Veio-lhe também aopensamento que Mrs. Weldon, opequenino Jack e primo Bénédicttivessem sido levados para outrolugar, por ordem do americano ede Negoro. Não via um nemoutro, e por isso consigo mesmodizia que os dois cúmplicesacompanhavam talvez ambos assuas vítimas. Que intentariamfazer? Era o seu maior cuidado.Dick Sand esquecia-se de si paraapenas pensar em Mrs. Weldon e

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nos seus.A caravana, acampada sob

o gigantesco sicômoro, não tinhamenos de oitocentas pessoas, istoé, quinhentos escravos de ambosos sexos, duzentos guardas, gentepara carregar ou para a pilhagem,condutores, agentes ou chefes.

Estes últimos eram deorigem árabe ou portuguesa.Custa a imaginar as crueldadesque estes desumanos infligem aoscativos. Batem-lhes sem cessar, eaos que caem extenuados, e já nascircunstâncias de não poderemser vendidos, acabam de os matarou a tiro ou a machado.

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Assim os levam peloterror; mas o resultado destesistema é que, à chegada dacaravana, cinquenta por cento dosescravos faltam na conta aotraficante, ou porque algunsconseguiram fugir, ou porque asossadas dos que morreram pelostormentos ficam marcando oslongínquos caminhos do interioraté à costa.

Como é de prever, osagentes de origem europeia, emgrande parte portugueses, são osfacínoras que os seus respectivospaíses têm expulsado do seu seio,condenados, fugidos das prisões,

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e negreiros que escaparam de serpresos; numa palavra, a escóriada humanidade. Tal era Negoro,tal era Harris, presentemente aoserviço de um dos maiorestraficantes de negros da ÁfricaCentral, José António Alves,conhecido de todos os negreirosda província e a respeito do qualo tenente Cameron deu curiosasnotícias.

Os guardas que escoltamos cativos são geralmenteindígenas pagos pelos traficantes.Mas não têm estes o monopóliodessas correrias que lhes dãoescravos em grande número.

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Os reis negros tambémfazem guerras atrozes, com omesmo fim, e então os vencidosadultos, as mulheres e ascrianças, reduzidos à escravidão,são vendidos pelos vencedoresaos traficantes, a troco de algunsmetros de chita, pólvora, armasde fogo, pérolas cor-de-rosa ouencarnadas, e muitas vezes até,diz Livingstone, por alguns grãosde milho.

Os guardas queescoltavam a caravana do velhoAlves podiam dar exata ideia doque são os exércitos africanos.Era uma horda de bandidos

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negros, quase nus, armados degrandes espingardas depederneira, com o canoguarnecido de anéis de cobre.Com tal escolta, a que se juntavaa gente de pilhagem, que não valemais, os agentes têm pela maiorparte das vezes muito que fazer.Discutem as ordens, impõem osdias e as horas de descanso,ameaçam deixá-los, e não é raroque os agentes sejam obrigados aceder às exigências de tal gente.

Conquanto os escravos,homens ou mulheres, sejam emgeral obrigados a carregar com osfardos, quando a caravana vai a

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caminho, há também um certonúmero de carregadores. Têmestes o nome especial de“pagasis”, e são eles os quecarregam os pequenos pacotes deobjetos valiosos, principalmentemarfim. É tal às vezes a grandezados dentes do elefante quechegam a pesar cento e setentalibras, sendo precisos dois“pagasis” para os levar àsfeitorias, de onde esta preciosamercadoria é expedida para osmercados de Cartum, de Zanzibare da costa do Natal. À chegada,os “pagasis” recebem o preçoajustado, que consiste

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habitualmente em vinte metros detecido de algodão ou de umafazenda que tem o nome de“mericani”, uma pequena porçãode pólvora, um punhado decauris(1)*, algumas pérolas, oumesmo escravos que tenhamdifícil saída, se acaso o negreironão tem outra moeda.

* 1. Búzios muito comunsno continente, e que servem dedinheiro.

Entre os quinhentos

escravos que contava a caravanaviam-se poucos homens feitos.Provinha isto da seguinte causa:

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acabada a correria e incendiada apovoação, todos os indígenas demais de quarenta anos são mortossem piedade e enforcados nasárvores dos arredores.Unicamente os jovens adultos, deambos os sexos, e as crianças vãoabastecer os mercados. Apenassobrevive a estas caçadas umadécima parte dos vencidos.Assim se explica o extraordináriodespovoamento que transformaem desertos os vastíssimosterritórios da África Ocidental.

Aqui, as crianças e osadultos tinham por únicovestuário um pedaço de “mouzu”,

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tecido feito da casca que certasárvores produzem. Assim, pois, oestado daquele rebanho de sereshumanos, formado de mulherescobertas de chagas feitas peloschicotes dos condutores, decrianças magras e esfomeadas,com os pés escorrendo sangue, eas quais as mães tentavam levarao colo, apesar de já carregadascom os fardos, de raparigas erapazes, presos às forquilhas,mais custosas de sofrer

do que as grilhetas dasgalés, é quanto se pode imaginarde mais lamentável. Na verdade,o aspecto de tais desgraçados,

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vivos apenas, e cuja voz nem játinha timbre, “esqueletos deébano”, empregando a expressãode Livingstone, teria tocado ocoração das feras; mas nãoimpressionava aqueles árabesinsensíveis, nem aquelesportugueses, que, segundo dizCameron, são ainda mais cruéis(1).

Inútil será dizer quedurante as marchas, como nasparagens, os prisioneiros eramtratados com todo o rigor. Assim,Dick Sand compreendeu logo quenão podia mesmo tentar a fuga.Mas, então, como encontrar Mrs.

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Weldon? Que ela e o filho tinhamsido levados por Negoro, nadahavia de mais certo. O cozinheiropensara em a separar dos seuscompanheiros, por motivos que ojovem prático não descobriraainda, mas não duvidava daintervenção de Negoro, e ocoração despedaçava-se-lhepensando nos perigos de toda aespécie que ameaçavam Mrs.Weldon.

“Ah!”, dizia ele consigo.“Quando penso que tive a vidadestes dois homens na boca daminha carabina e que os nãomatei!...”

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*1. Eis o que dizCameron: “Para obter cinquentamulheres, das quais Alves sedizia proprietário, dez aldeiasforam destruídas, dez aldeiastendo cada uma de cem aduzentas almas: a totalidade demil e quinhentos habitantes;alguns conseguiram fugir, mas amaior parte — quase todos —tinham ou morrido nas chamas,defendendo as suas famílias, ousucumbido à fome no meio dosmatos, se os animais ferozes lhesnão deram pronto fim aossofrimentos...

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Estes crimes, perpetradosno centro da África por genteque se vangloria com o nome decristã e se qualifica deportuguesa, parecerão incríveisaos habitantes dos paísescivilizados. É impossível que oGoverno de Lisboa não saibadas atrocidades cometidas porhomens que hasteiam a bandeiraportuguesa e que se orgulham deserem seus súbditos.” (Tour duMonde, trad. H. Loreau.) N. B.— Houve em Portugal protestosenérgicos contra as afirmaçõesde Cameron.

(O Tradutor)

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Era este um dos

pensamentos que maisobstinadamente acudiam aoespírito de Dick Sand. Quantasdesgraças a morte, a justíssimamorte de Harris e de Negoro,teria evitado! Quantossofrimentos de menos paraaqueles que os dois corretores decarne humana tratavam agoracomo escravos!

Todos os horrores dasituação de Mrs. Weldon e deJack se representavam a DickSand. Nem a mãe nem o filhopodiam contar com primo

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Bénédict. O pobre homem deviabastar para si! Todos três eramsem dúvida conduzidos paraalgum distrito remoto daprovíncia de Angola. Mas quemlevaria o pequenino aindadoente?

“Sua mãe; não podia seroutra pessoa senão sua mãe!”,repensava Dick Sand. “Teráachado forças, terá feito o quefazem as desgraçadas escravas, ecairá extenuada também! Ah!Permita Deus que eu ainda meencontre frente a frente com essesmalvados, e eu...”

Mas se estava prisioneiro!

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Se ele se contava por uma cabeçadaquele rebanho que oscondutores levavam diante de sipara o interior da África! Nãosabia se Negoro e Harris dirigiama cáfila, da qual faziam parte assuas vítimas! Dingo não estava alipara descobrir Negoro e dar sinalda sua aproximação. Só Herculepodia socorrer a desgraçada Mrs.Weldon. Mas seria lícito esperartal milagre?

Dick Sand contudoabraçava esta ideia. A si mesmodizia que o vigoroso negro estavalivre. Da sua dedicação tudohavia a esperar! Tudo quanto

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humanamente fosse possívelfazer, fá-lo-ia Hercule nointeresse de Mrs. Weldon; eHercule tentaria descobrir-lhe ospassos e pôr-se em comunicaçãocom eles, ou, não a encontrando,trataria de se combinar com DickSand, e talvez arrebatá-lo, por umrasgo de atrevimento! Durante anoite, quando estivessem adescansar, ele, confundindo-secom os prisioneiros, negro comoeles, não poderia iludir avigilância dos guardas, chegar atéao pé de Dick, quebrar-lhe ascorrentes, levá-lo para a floresta,e, ambos livres, quanto não

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fariam para salvar Mrs. Weldon?Um rio os levaria ao litoral, eDick Sand continuaria a pôr emprática, com probabilidades desucesso, e maior conhecimentodas dificuldades, o seu plano tãodesgraçadamente malogrado peloataque dos indígenas...

O jovem práticoentregava-se assim a alternativasde receios e de esperanças.Resistia, porém, ao abatimento,graças à sua enérgica natureza, esentia-se pronto para seaproveitar de qualquer acaso quese lhe oferecesse. O que antes detudo convinha saber era para que

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mercado os agentes conduziam aleva de escravos. Seria paraalguma das feitorias de Angola, eem tal caso era obra de poucosdias de marcha, ou caminhariaainda muitas centenas de milhasatravés da África Central? Oprincipal mercado dos negreirosé o de Nyamgué, no Manyema,sob o meridiano que divide ocontinente africano em duaspartes iguais e por onde seestende a região dos grandeslagos, que Livingstone entãopercorria. Mas era muito longe doarraial do Cuanza aquelapovoação, e seriam precisos

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alguns meses de viagem para láchegar. Era esta uma das maissérias preocupações de DickSand, porque de Nyamgué, aindamesmo que Mrs. Weldon,Hercule, os outros pretos e elepróprio conseguissem fugir, comoseria difícil, para não dizerimpossível, voltar ao litoral, porentre os perigos de tão longajornada!

Mas Dick Sand teve empouco tempo razão para acreditarque a leva não estava longe dechegar ao seu destino. Conquantonão entendesse a linguagem doschefes da caravana, isto é, ou o

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árabe ou o idioma africano, notoucontudo que o nome de umimportante mercado daquelaregião foi frequentes vezespronunciado. Este nome eraKasonde, e não ignorava Dickque lá se fazia grande comérciode escravos. Foi, pois, levado aconcluir que em Kasonde sedecidiria da sorte dosprisioneiros, ou fosse em favordo rei do distrito, ou por conta dealgum rico traficante daprovíncia. Não se enganava.

Dick Sand, conhecendo ageografia moderna, sabia o que sepodia saber de Kasonde. A

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distância de São Paulo de Luandaa esta povoação do interior nãoexcede quatrocentas milhas, e,por consequência, duzentas ecinquenta, quando muito, aseparavam do arraial assente nasmargens do Cuanza. Dickassentava aproximadamente o seucálculo, tomando por base ocaminho feito pelo pequenorancho sob a direção de Harris.Ora, nas circunstâncias correntes,este caminho não exigia senão deza doze dias. Duplicando o tempo,atendendo à necessidade derepouso de uma caravana jácansada por longo caminhar,

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avaliava Dick Sand em trêssemanas a duração da viagem doCuanza a Kasonde. Dick Sanddesejava comunicar o que julgavasaber a Tom e aos seuscompanheiros. Terem estes acerteza de que os não levariampara o centro da África, paraessas funestas terras de onde nãopode haver esperança de sair,seria para eles de algum modoconsolador. Bastariam algumaspalavras lançadas quandopassasse junto deles para lhesdizer o que decerto ignoravam.Conseguiria fazer o quedesejava?

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Tom e Bat — o acaso tinhareunido o pai e o filho —, Acteone Agostinho, presos dois a dois,estavam na extremidade direitado arraial. Um condutor e maisdoze guardas os vigiavam. DickSand, que tinha os movimentoslivres, decidiu diminuir pouco apouco a distância que o separavado grupo que formavam os seuscompanheiros a cinquenta passosafastados dele. Começou, pois, aproceder de modo queconseguisse o fim que tinha emvista.

Provavelmente, o velhoTom adivinhou o pensamento de

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Dick Sand. Uma palavra em vozbaixa preveniu os seuscompanheiros para estarem comatenção. Não se moveram, eachavam-se prontos para ver oupara ouvir.

Já Dick Sand tinhaavançado com ar indiferentecerca de cinquenta passos. Deonde estava teria podidopronunciar, de modo que fosseouvido de Tom, o nome Kasonde,e dizer qual seria a duraçãoprovável da viagem, mas sepudesse dar informaçõescompletas e combinar com eles alinha de conduta que deviam

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seguir, seria decerto melhor.Continuou, pois, a aproximar-se.Já lhe pulsava o coração cheio deesperança, estava apenas apoucos passos do lugar ondequeria chegar, quando o condutor,como se tivesse percebido aintenção de Dick, se precipitousobre ele. Aos gritos doenfurecido condutor acudiram dezguardas, e Dick Sand foibrutalmente repelido para trás,enquanto Tom e os seuscompanheiros eram conduzidospara a outra extremidade doacampamento.

Dick Sand, desesperado,

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lançou-se sobre o condutor.Conseguiu quebrar-lhe aespingarda, que quase lhearrancou das mãos, mas sete ouoito negros o seguraram aomesmo tempo, e foi por issoobrigado a deixar o seuadversário.

Furiosos como estavam,tê-lo-iam morto, por certo, se umdos chefes da caravana, um árabede grande estatura e fisionomiaferoz, não interviesse. Este árabeera o chefe Ibn Hamis, de quemHarris falara.

Disse algumas palavras,que Dick Sand não entendeu, e os

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guardas, contrariados, deixaram-no e afastaram-se.

Era pois evidente que, sepor um lado havia formalproibição para o jovem práticode comunicar com os seuscompanheiros, era por outro ladocerto que se tinha recomendadoque lhe não tirassem a vida.Quem teria dado tais ordenssenão Harris ou Negoro?

Naquele momento — novehoras da manhã do dia 19 deAbril — os sons rouquenhos deum chavelho de “codu”(1)estrondearam no ar, e o tambor“mefu” também se fez ouvir. Ia

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findar o descanso.*1. Ruminante da fauna

africana. Todos, chefes, soldados,

condutores, escravos, puseram-sede pé. Os fardos carregados,vários grupos de cativos seformaram sob a direção de umcondutor, que desfraldou umabandeira de cores vivas.

Deu-se o sinal de partida.Ouviram-se então cantos

diversos: eram dos vencidos enão dos vencedores.

Eis o que nesses cantos,ameaça em que se revelava

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sincera fé, diziam os escravoscontra os seus opressores, contraos seus algozes:

“Entregais-me àescravidão; mas eu, quandomorrer, serei livre, e voltareipara me vingar, matando-vos!”

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CAPÍTULO VIII

ALGUNS BREVES

APONTAMENTOS DE DICKSAND

Conquanto a tempestade

da véspera tivesse cessado, otempo conservava-se ainda turvo.Era então a época chamada da“masica”, segundo período da

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estação das chuvas naquela zonado céu africano. As noitesprincipalmente iam ser chuvosas,por espaço de uma, duas ou trêssemanas, o que ainda maisaumentava as misérias esofrimentos da caravana.

Partiu esta no dia referido,estando o céu nublado, e logo quedeixou as margens do Cuanzadirigiu-se quase diretamente paraleste.

Na frente caminhavamcerca de cinquenta guardas, maisde cem de cada um dos lados dacaravana, e o resto na retaguarda.Seria impossível aos prisioneiros

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fugir, ainda mesmo que nãofossem ligados por cadeias.Mulheres, crianças e homenscaminhavam misturados; oscondutores apressavam-nos,dando-lhes chicotadas. Haviaentre as negras algumas que erammães, e tão infelizes que,amamentando um filho,conduziam um segundo com amão que tinham livre. Outraspuxavam os pequeninos, semvestidos e descalços, sobre aservas espinhosas do solo.

O chefe da caravana, oferoz Ibn Hamis, que interviera naluta entre Dick Sand e o seu

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condutor, dirigia toda aquelamanada, percorrendo a longacoluna, desde a frente até àretaguarda. Ele e os seus agentespreocupavam-se pouco com ossofrimentos dos cativos, mastinham de atender maisseriamente ou aos guardas quereclamavam maior ração, ou aos“pagasis” que queriam parar.Dava isto lugar a discussões, ealgumas vezes a troca degrosserias. Os escravos tinhamentão a suportar mais ainda airritação constante doscondutores. Não se ouviam senãoameaças e gritos de dor, e os que

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iam nas últimas fileiras pisavamo solo que os primeiros haviammanchado com sangue.

Os companheiros de DickSand, postos muito adiante, navanguarda da caravana, nãopodiam, pois, comunicar com ele.Caminhavam em filas, com opescoço metido na pesadaforquilha, que lhes não permitiaum único movimento de cabeça.Os azorragues não os poupavam aeles mais do que aos seuscompanheiros de infortúnio!

Bat, ligado a seu pai,marchava adiante dele, cuidandoem não abalar a forquilha,

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procurando os melhores lugarespara pôr os pés, porque o velhoTom caminhava logo depois. Deespaço a espaço, quando ocondutor ficava um pouco paratrás, Bat dizia uma ou outrapalavra de conforto, algumas dasquais chegavam aos ouvidos deTom. Tentava mesmo diminuir oandamento, quando percebia queseu pai se fatigava. Era umsuplício para o bom filho nãopoder vê-lo, ele que tanto oestimava. Tom gozava asatisfação de ver o filho, massatisfação que pagava muito cara.Quantas vezes grossas lágrimas

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lhe saltaram dos olhos, ao ver ochicote do condutor zurzir ocorpo de Bat! Maior o tormento;antes fosse ele o açoitado.

Agostinho e Acteoncaminhavam alguns passos maisatrás, ligados um ao outro, econtinuamente azorragados. Ah!Muito era o que eles invejavam asorte de Hercule! Quaisquer quefossem os perigos de que este seuantigo companheiro estivesseameaçado naquela terraselvagem, podia ao menos usar daforça e defender a vida.

Durante os primeirosmomentos do seu cativeiro, o

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velho Tom fizera, enfim, conheceraos seus companheiros toda averdade. Dele souberam, comgrandíssimo espanto, que estavamna África, que a dupla traição deNegoro e de Harris os lançaraprimeiro ali, os internara depois,e que nenhuma compaixão deviamesperar dos seus senhores.

Nan não era mais bemtratada. Fazia parte de um grupode mulheres que ocupava o meioda caravana. Ia presa a uma preta,nova ainda, mãe de dois filhinhos,um de peito, outro de três anos, eque mal podia andar. Condoeu-seNan da criancinha, e encarregou-

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se dela. A pobre mãe agradeceu-lhe com lágrimas dereconhecimento. Nan levava,pois, o pequenino, poupando-lheao mesmo tempo a fadiga, à qualteria sucumbido, e às chicotadasdo condutor. Mas era fardo muitopesado para a velha Nan. Assimreceava ela que cedo lhefaltassem as forças, e pensavaentão em Jack... Via-o nos braçosde sua mãe. A doençaemagrecera-o, mas devia serainda pesado para Mrs. Weldon.Onde estaria ele? Tornaria a vê-lo, a sua velha criada?

Dick Sand tinha sido

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colocado quase na retaguarda.Não podia ver Tom, nem os seuscompanheiros, nem a velha Nan.A frente da pequena caravana sópara ele era visível quandoatravessava alguma planície.Caminhava entregue aos maistristes pensamentos, de que só e amuito custo o perturbavam osgritos dos agentes. Não pensavaem si, nem lhe davam cuidado asfadigas que ainda havia desuportar, nem mesmo as torturasque Negoro lhe tinha talvezreservadas. Só pensava em Mrs.Weldon. Procurava, mas em vão,no terreno, entre os espinhos das

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veredas, nos ramos rasteiros dasárvores, vestígios da suapassagem. Não devia ela ter idopor outro caminho, se, como tudofazia crer, a levavam paraKasonde. O que não daria elepara encontrar algum indício dasua marcha para o mesmo pontoaonde eles eram conduzidostambém!

Tal era a situação física eimoral do jovem prático e dosseus companheiros. Masquaisquer que fossem os receiosque tivessem, por muito grandesque fossem os seus sofrimentos, odó era neles ainda maior vendo a

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lastimosa miséria daquele tristerebanho de cativos e a revoltantebrutalidade dos seus senhores.Ah! Nada podiam fazer para darsocorro a uns nem para resistiraos outros!

A região que ficava a lestedo Cuanza era uma floresta devinte milhas de extensão. Asárvores, porém, ou porquemorressem pela mordedura dosinsetos daquelas zonas, ou porquemanadas de elefantes asdeitassem por terra quando aindanovas, estavam menosaglomeradas do que na regiãovizinha do litoral. A marcha

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através dos bosques não devia,por consequência, oferecerobstáculos, e mais embaraçariamos arbustos do que elas. Havia,com efeito, abundância dealgodoeiros, de sete a oito pés dealtura, cujo algodão serve parafabricar os tecidos listrados depreto e branco, muito em uso nointerior da província.

Em alguns sítios o solocobria-se de espessos canaviais,que encobriam completamente acaravana. De todos os animais daprovíncia, unicamente oselefantes e as girafas podiamdominar os juncais, semelhantes a

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bambus, cuja haste mede umapolegada de diâmetro. Eranecessário que os agentesconhecessem muito bem a regiãopara não se perderem.

Todos os dias a caravanapartia ao raiar da manhã, e nãoparava para descansar senão domeio-dia à uma hora. Abriam-sealguns fardos que continhammandioca, que era entãoparcimoniosamente distribuídaaos escravos. Juntavam-lhebatatas, ou carne de cabra e devitela, se acaso os soldados, napassagem, roubavam algumasaldeias. Mas tão grande era a

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fadiga, tão insuficiente o repouso,e mesmo impossível durante asnoites chuvosas, que, chegada ahora da distribuição da comida,mal podiam comer. Assim, todosos dias desde que se levantou oarraial nas margens do Cuanza,cerca de vinte escravos ficavamextenuados no caminho, à mercêdas feras, que seguiam acaravana. Leões, panteras eleopardos aguardavam as vítimas,que não lhes faltavam; e todas asnoites, depois do ocaso do Sol,os rugidos destes animaisestrugiam os ares, a tão curtadistância, que se podia temer um

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ataque.Ouvindo aqueles rugidos,

que o silêncio da noite tornavamaiores, Dick Sand pensava, nãosem terror, nos obstáculos quetais encontros podiam levantaraos projetos de Hercule e nosperigos de que a cada passo esteseria ameaçado. Contudo, se aDick se tivesse deparado ocasiãode fugir, não teria hesitado.

Eis alguns apontamentosescritos por Dick Sand durante oitinerário do Cuanza a Kasonde.Caminharam-se duzentas ecinquenta milhas em vinte e cincojornadas. Cada jornada, na

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linguagem dos traficantes denegros, equivale a dez milhas,com o descanso de dia e de noite.

De 25 a 27 de Abril. —Viu-se uma aldeia cercada por umcanavial de oito a nove pés dealtura. Campos cultivados demilho, fava, massango e diversasaráquidas. Dois negros feitosprisioneiros. Quinze mortos.População posta em fuga.

No dia seguinteatravessou-se uma ribeiraruidosa, de cento e cinquentajardas de largura. Ponte flutuante,feita de troncos de árvoresligados; as estacas quase

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destruídas. Duas mulheres queiam ligadas com a mesma varacaíram na água. Uma levava ofilhinho. Agitam-se as águas etingem-se de sangue. Oscrocodilos aparecem entre osmadeiros da ponte. Corre-se operigo de meter os pés nasenormes fauces de tão horríveisrépteis. de A bril. — Atravessou-se uma floresta de bauínias.Árvores muito altas, que dão opau-ferro aos portugueses.Marcha extremamente penosa.

No centro da leva vai apobre Nan, levando ao colo umpretinho. Caminha com

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dificuldade. A escrava ligada aela pela mesma corrente coxeia, eo sangue escorre-lhe dos ombroslacerados pelo azorrague.

Acampados durante a noitesob a copa de uma enormeadansônia de flores brancas e defolhas verdes-claras.

Durante a noite ouvem-seos rugidos dos leões e dosleopardos. Ouviu-se um tiro dadopor um indígena sobre umapantera. Que terá acontecido aHercule?... e 30 de Abril. —Primeiros frios do que se chamaorvalho africano. Orvalhoabundantíssimo. Finda a estação

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chuvosa com o fim de Abril, aqual começa em Novembro.Planícies ainda inundadas.Predominam os ventos de leste,que suspendem a transpiração edesenvolvem mais as febrespaludosas.

Nenhuma notícia ouvestígios de Mrs. Weldon, nem doSr. Bénédict. Aonde os levarão, anão ser para Kasonde? Devem terseguido o mesmo caminho dacaravana e preceder-nos. Estouinquieto. Teria a febre acometidonovamente o pequeno Jack nestainsalubre região? Viverá eleainda?...

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De 1 a 6 de Maio. —Atravessaram-se, durante muitasjornadas, extensas planícies que aevaporação ainda não pôde secar.Algumas vezes a água chegava àcintura. Aderem à pele miríadesde sanguessugas. É preciso,porém, andar. Em algumasalturas, que estão fora de água,veem-se lódãos e papiros. Nofundo, sob as águas, outrasplantas de grandes folhas, sobreas quais se tropeça, o queocasiona numerosas quedas.

Nestas águas, grandequantidade de pequenos peixes daespécie dos siluros, que os

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indígenas prendem dentro decaniçados e vendem às caravanas.

Não é possível encontrarbom sítio para acampar durante anoite. Não se avistam os limitesda planície inundada. É forçosocaminhar nas trevas. Amanhãfaltarão muitos escravos. Quesofrimentos! Quando se cai,melhor é ficar. Bastavam algunsinstantes debaixo destas águaspara pôr termo a tudo. Não sesofrerá mais, nem de noite nem dedia, o azorrague do condutor!Assim é... Mas Mrs. Weldon e oseu filho? Não posso abandoná-los. Resistirei enquanto tiver

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forças! É o meu dever!Ouvem-se durante a noite

gritos terríveis!Cerca de vinte soldados

arrancaram alguns ramos deárvores resinosas cuja copaemergia. Pálidos clarões duranteas trevas.

A causa dos gritos queouvi foi um ataque de crocodilos.Doze ou quinze destes monstroslançaram-se durante a noite sobreum dos flancos da caravana.Mulheres e crianças foramapanhadas e levadas por elespara as suas “pastagens”. Assimchama Livingstone aos antros

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profundos onde aquele anfíbio vaidepor a sua presa, depois de a terasfixiado, porque só a comedepois de ela ter atingido umcerto grau de decomposição.

As escamas de umcrocodilo roçaram-measperamente. Um escravo adultofoi colhido perto de mim earrancado da forquilha que oprendia pelo pescoço. Quebrou-se a forquilha, e que grito dedesespero, que gemido de dor!Ouço-o ainda! e 8 de Maio. —No dia seguinte contaram-se asvítimas. Tinham desaparecidovinte escravos.

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Logo ao amanhecerprocurei Tom e os seuscompanheiros! Graças a Deus,vivem! Mas deve agradecer-se aDeus? Não será menorinfelicidade o termo de tantasdesventuras?

Tom vai na frente dacaravana. Na ocasião em que Batfez uma pequena volta, Tom pôdever-me.

Procuro em vão a velhaNan. Estará confundida no grupodo centro ou teria morridodurante a noite terrível?

No dia seguinte passou-seo limite da planície inundada,

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depois de vinte e quatro horas decaminho dentro de água. Pára-sesobre uma colina. O sol seca-nosum pouco. Come-se, mas quealimentos! Uma pequena porçãode mandioca e alguns punhadosde milho.

Nada há para deitar naágua! Dos prisioneiros estendidosno solo, quantos jamais selevantarão!

Não, não é possível queMrs. Weldon e o seu filho tenhamsofrido tanto! Deus quis decertoque fossem conduzidos a Kasondepor outro caminho. A desgraçadamãe não teria resistido!

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Novos casos de bexigas nacaravana, o “nedué”, como elesdizem. Os doentes não poderão irmuito longe. Abandoná-los-ão. deMaio. — Continua a marcha aoalvorecer. Desta vez não ficougente para trás. O azorrague docondutor excitou aqueles que asfadigas ou as doençasprostravam. Estes escravos têmvalor! São como dinheiro! Osagentes não os deixarão nocaminho enquanto eles puderemandar. Estou rodeado deesqueletos vivos. Nem sequer játêm voz para se queixarem.

Vi, finalmente, a velha

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Nan! Faz pena! Já não traz aocolo a criança. Caminha só! Serápara ela menos penoso, mas acorrente ainda lhe pende dacintura e ela pôs o outro extremosobre os seus ombros.

Apressando-me, conseguiaproximar-me dela. Dir-se-ia quenão me reconheceu! Estarei, pois,tão mudado?

— Nan! — disse eu.A velha criada olhou-me

muito tempo, e por fim disse: —Ah! O Sr. Dick!... Eu não possoresistir!

— Tenha ânimo —respondi, ao mesmo tempo que

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abaixava os olhos para não ver oque não era mais do que oesqueleto exangue da infelizpreta!

— Morro — continuou ela—, não tornarei a ver a minhaquerida senhora, nem o meumenino Jack! Meu Deus, meuDeus, tende piedade de mim!

Quis ajudar a velha Nan,cujo corpo tremia sob os seusesfarrapados vestidos.

Seria um favor ligarem-mea ela para a aliviar de uma partedo peso da corrente, que elacarregava sozinha desde quemorrera a sua companheira.

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Um braço vigoroso meafasta, e a desgraçada Nan,envolvida no chicote, é atiradapara o meio dos escravos. Quislançar-me sobre aquele brutalcondutor. O chefe árabe apareceu,agarrou-me pelo braço e teve-meseguro até que passou a últimafileira da caravana.

Por sua vez pronuncioueste nome:

“Negoro!”Negoro! Será por ordem

dele que procede assim comigo eme trata de maneira diferente dosmeus companheiros deinfortúnio?

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Que sorte me espera? deMaio. — Passamos hoje perto deduas aldeias incendiadas. Aschamas rebentam por todos oslados. Os cadáveres estãosuspensos nas árvores que oincêndio respeitou. A populaçãovai de fugida. Camposdevastados. É a “guerra”.Duzentas mortes, talvez, paraconseguir uma dúzia de escravos.

Chegou a noite. Fez-se aparagem. Assentou-se oacampamento sob grandesárvores. Ervas muito altascrescem por toda a orla dafloresta.

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Alguns dos cativosconseguiram fugir na véspera,tendo previamente quebrado asforquilhas. Foram apanhados etratados com crueldadeextraordinária. Aumenta avigilância dos guardas e doscondutores.

Veio a noite. Rugidos deleões e de hienas. Roncoslongínquos dos hipopótamos. Há,sem dúvida, algum lago ou rio nasproximidades.

Apesar do cansaço, nãoposso dormir. Assaltam-me oespírito tantas coisas!

Parece-me também que

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ouço andar por entre as ervas.Alguma fera talvez. Ter-se-iaatrevido a forçar a entrada doacampamento?

Escuto. Nada. Um animal,sem dúvida, passa por entre asmoitas. Estou desarmado!Contudo, eu me defenderei. Dareisinal de alarme. A minha vidapode ainda ser útil a Mrs. Weldone aos meus infelizescompanheiros!

Olho através das trevasprofundas. Não há Lua. A noiteestá extremamente escura.

Dois olhos brilham naescuridão, entre os papiros. São

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olhos de hiena ou de leopardo?Desaparecem... tornam aaparecer.

Enfim, sentiu-se umsussurro confuso nas ervas. Umanimal salta sobre mim...

Vou gritar.Felizmente, pude calar-me

a tempo!...Não posso acreditar no

que os meus olhos veem!... ÉDingo... Dingo, que está junto demim! Valente Dingo! Como veioele até aqui?... Como conseguiuele dar comigo? Ah! O instinto!...O instinto bastará para explicartantos prodígios de fidelidade?

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Lambe-me as mãos. Ah! Meu bomamigo! Meu único amigo! Nãoconseguiram matar-te!...

Faço-lhe festas.Compreende-me. Quer ladrar...

Sossego-o. Convém que onão ouçam! Que siga a caravanasem ser notado e talvez... Masesfrega obstinadamente o pescoçode encontro às minhas mãos.Parece querer dizer-me:“Procura”. Procuro e encontrouma coisa presa ao pescoço... umpedaço de cana está amarrado nacoleira, onde tem gravadas asduas letras S. V., cujo mistério éainda inexplicável para nós.

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Desprendo a cana.Quebro-a! Tem dentro um bilhete.

Mas... não o posso ler. Émister esperar pelo dia!... O dia...Queria segurar Dingo, mas o bomanimal, lambendo-me as mãos,parece que tem pressa de medeixar... Compreendeu que tinhajá desempenhado a sua missão.Dando um pulo de lado,desaparece sem ruído entre aservas. Deus o livre dos leões edas hienas!

Dingo voltou decerto aencontrar-se com quem o mandouaqui!

Este bilhete, que não

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posso ainda ler, queima-me asmãos! Quem o escreveu? Virá deMrs. Weldon? Será de Hercule?Como foi que o fiel animal, quejulgávamos morto, encontrou umou outro? Que me dirá estebilhete? Será um plano de evasãoque me traz, ou dar-me-áunicamente notícias dos que mesão caros? Seja como for, esteincidente comoveu-me muito e foium lenitivo aos meus pesares.

Ah! Como o dia custa achegar!

Espero com ansiedade aprimeira luz no horizonte. Nãoposso dormir. Ouço ainda os

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rugidos das feras! Meu pobreDingo, possas tu escapar-lhes!

Finalmente, vem o dia,quase sem aurora, nestas latitudestropicais. Disponho-me a ler obilhete sem que me vejam...

Tento lê-lo... Não possoainda.

Finalmente, li. É deHercule.

Está escrito a lápis numpedaço de papel.

Eis o que diz: “Mrs. Weldon levada com

o menino Jack em uma“kitanda”. Harris e Negoro vão

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com ela. Precedem a caravanatrês ou quatro “jornadas” comprimo Bénédict. Não pudecomunicar com ela. EncontreiDingo, que foi ferido com umtiro... mas curado. Boasesperanças, Sr. Dick. Penso emtodos e fugi para lhes ser útil.

Hercule.” Ah! Mrs. Weldon e o seu

filho estão vivos. Graças a Deus!Não têm sofrido, como nós, asfadigas destas longas marchas!Uma “kitanda” é uma espécie deliteira feita de ervas secas,

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suspensa num comprido bambu, eque dois homens carregam aosombros. Cobre-a uma manta defazenda. Mrs. Weldon e o meupequenino Jack vão, pois, em“kitanda”. Que farão deles Harrise Negoro? Estes marotos levamevidentemente a mãe e o filhopara Kasonde, sim!... Sim! Hei detornar a ver Mrs. Weldon, hei dever Jack. No meio de tantasmisérias, foi uma boa notícia, foia alegria que Dingo me trouxe.

De 11 a 15 de maio. — Acaravana continua o seu caminho.Os escravos arrastam-se, já nãoandam.

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A maior parte deixam emcada passada uma mancha desangue. Calculo que são aindaprecisos mais dez dias parachegar a Kasonde. Quantosdeixarão de sofrer daqui até lá?Pela minha parte, como é precisoque eu chegue, chegarei!

É atroz! Há na caravanadesgraçadas cujo corpo é umachaga! As cordas que as prendementram na carne!... Desde ontem,uma escrava leva nos braços ofilho morto de fome!... Mas nãoquer separar-se dele.

O caminho fica juncado decadáveres. As bexigas atacam

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com extrema violência.Passamos junto a uma

árvore... Estavam presos pelopescoço alguns escravos. Ali ostinham deixado morrer à fome.

De 16 a 24 de Maio. —Estou quase sem forças, mas nãome é lícito fraquejar. As chuvasacabaram completa-mente. Temosdias de “marcha forçada”. É aoque os negreiros dão o nome de“tirikesa” ou marcha da tarde. Énecessário andar mais depressa, eo terreno eleva-se em declivesmuito ásperos.

Passa-se por entre ervasmuito resistentes. É o “nyassi”,

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cujas hastes me ferem a cara e assementes espinhosas se metementre a minha pele e o fato todocortado. O meu calçado,fortísimo, tem felizmenteresistido.

Os agentes começaram aabandonar os escravos muitodoentes para poderem continuar.Demais a mais, os víveresprincipiam a rarear; guardas e“pagasis” revoltam-se se lhesdiminuem a ração. Não seatrevem a tirar-lhes nada, e nestecaso pior para os cativos.

— Que se comam uns aosoutros — disse o chefe.

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Seguiu-se disto quepequenos escravos, aindavigorosos, morreram semaparentarem moléstia. Lembro-medo que a tal respeito disse o Dr.Livingstone: “Esses infelizesqueixam-se do coração, põem asmãos e caem. É positivamente ocoração que se lhes despedaça. Éisto peculiar aos homens livres,reduzidos à condição deescravos, sem que para talestivessem preparados!”

Hoje vinte cativos, quenão podiam já arrastar-se, forammortos pelos condutores! O chefeárabe não se opôs a esta

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mortandade.A cena foi terrível.A pobre velha Nan caiu

também sob o cutelo, naquelahorrível matança. Caminhando,tropeço no seu cadáver. Nãoposso sequer dar-lhe sepulturacristã!...

É o primeiro dosnáufragos do “Pilgrim” que Deuschamou à sua presença. Pobremulher! Pobre Nan!

Todas as noites espero porDingo. Não volta. Ter-lhe-iaacontecido alguma desgraça ou aHercule? Não... não! Não queroacreditar em tal. Este silêncio,

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que tão longo me parece, provaque Hercule não tem notícias adar-me. Convém que sejaprudente e acautelado.

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CAPÍTULO IX

KASONDE Em 21 de maio a caravana

de escravos chegava a Kasonde.Cinquenta por cento dosprisioneiros feitos nesta últimacorreria tinham ficado nocaminho. Contudo, o negócio eraainda bom para os traficantes.

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Afluíam os pedidos, e os preçosdos escravos iam subir nosmercados da África.

Angola fazia nesta épocagrande comércio de negros. Asautoridades portuguesas de SãoPaulo de Luanda e de Benguelanão poderiam senão muitodificilmente pôr-lhe obstáculos,porque as levas dirigiam-se parao interior do continente africano.Os barracões do litoral estavamcheios de prisioneiros; os poucosnavios negreiros que conseguiampassar entre os cruzadores nãoeram bastantes para embarcartantos negros para as colônias

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espanholas da América (1).

*1. Como dissemos numanota na primeira parte destaobra, há muito acabara ocomércio de escravos nasprovíncias ultramarinas, e osbarracões de escravos acabaramao mesmo tempo que aescravatura.

(O Tradutor)

Kasonde, situado atrezentas milhas da foz doCuanza, é um dos principais“lakonis”, um dos mercados maisimportantes desta província. É na

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grande praça, a “tchitoka”, que sefazem os negócios. Lá, são osescravos expostos e vendidos, e édeste ponto que as caravanasirradiam para a região dosgrandes lagos.

Kasonde, como todas asgrandes povoações da ÁfricaCentral, divide-se em duas partesdistintas: uma é o bairro dosnegociantes árabes, portuguesesou indígenas, e nela estão osbarracões; a outra é a residênciado rei negro, um feroz beberrãocoroado, que reina pelo terror evive das subvenções em gênerosque os traficantes lhe dão

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generosamente.Em Kasonde, o bairro

comercial pertencia então a JoséAntónio Alves, acerca de quemfalaram Harris e Negoro, seusagentes. Era lá o principalestabelecimento daquelemercador de escravos, quepossuía um segundo no Bié e umterceiro em Caçange, onde otenente Cameron foi encontrá-loalguns anos depois.

Uma grande rua central, deum e do outro lado grupos decasas “tembés”, tendo os tectossem inclinação, as paredesrebocadas de terra, e pátios

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quadrados servindo de currais degado; na extremidade da rua avasta “tchitoka” rodeada debarracões, dominando tudo porárvores altas, de ramadasenormes; aqui e ali palmeirasplantadas como se fossemvassouras que estivessem com aspalhas viradas para o ar,recebendo o pó das ruas, ealgumas aves de rapina,encarregadas da salubridadepública. Tal é o bairro comercialde Kasonde.

Perto corre o Luhi, riocujo curso está aindadesconhecido, mas que é um

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afluente do Zaire, ou pelo menosdo Cuango, rio tributário doZaire.

A residência do rei deKasonde, que confina com obairro comercial, é um montão decubatas pouco asseadas,ocupando o espaço de uma milhaquadrada. Algumas delas têmentrada fácil, outras estãocercadas de paliçadas de canasou rodeadas de figueiras-do-inferno. Um cerrado particular,que uma orla de papiros rodeia,cerca de trinta palhotas, servindode habitações dos escravos e doschefes, um grupo de cubatas para

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as mulheres, um “tembé” maior,mais elevado e mais escondidonas plantações de mandioca,forma a residência do rei deKasonde, Moini Lunga, homem decinquenta anos de idade e jámuito inferior em prestígio aosseus antepassados. Não temquatro mil soldados, ali onde ostraficantes portugueses já viramvinte mil, e não pode, comonoutro tempo, ordenar a imolaçãode vinte e cinco a trinta escravospor dia.

Era o rei um velhoprecoce, gasto pelos vícios,queimado pelas bebidas

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espirituosas, maníaco, fazendopor mero capricho mutilar os seussúbditos, os seus oficiais ou osseus ministros, cortando de uns onariz ou as orelhas, os pés ou asmãos de outros. A sua morte,proximamente esperada, devia seracolhida com grande indiferença.

Um único homem em todoo reino de Kasonde perderiatalvez com a morte de MoiniLunga. Era o mercador de negrosJosé António Alves, que seentendia perfeitamente com obeberrão, a quem toda aprovíncia prestava vassalagem.Tinha Alves a recear que a

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exaltação ao trono da primeiradas mulheres do rei, a rainhaMoina, tivesse contestação, queos estados de Moini Lungafossem invadidos por umcompetidor vizinho, um dos reisde Ukusu. Este, mais novo e maisativo, tinha-se já apoderado dealgumas aldeias dependentes doreino de Kasonde, e era ajudadopor um outro mercador de negros,rival de Alves, Tipo-Topo, pretoárabe de puríssima raça, que maistarde visitou Carneran, emNyamgué. Eis quem era Alves, overdadeiro soberano, no reino doembrutecido negro, cujo vício ele

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desenvolvera e explorava: JoséAntónio Alves, homem deavançada idade, não era, como sepoderá julgar, um “musungo”, istoé, homem de raça branca. Deportuguês tinha apenas o nome,usado sem dúvida para o seucomércio. Era um preto muitoconhecido por todos osmercadores de escravos e cujoverdadeiro nome era Kendelé.Nascido no Dondo, nas margensdo Cuanza, começou por simplesagente dos corretores deescravatura e acabara emtraficante de grande nomeada, istoé, como grande infame, dizendo-

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se, não obstante, o homem maishonesto deste mundo.

Foi este mesmo Alves queCameron, pelos fins do ano de1874, encontrou em Kilembe,capital de Kasongo, chefe deOriza, e que o conduziu,percorrendo setecentas milhas,bem como toda a caravana deCameron, até ao seuestabelecimento no Bié.

O comboio de escravos,logo que chegou a Kasonde, foiconduzido para a praça principal.

Os cálculos de Dick Sandestavam justificados. A viagemdurara trinta e oito dias, a contar

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desde a partida do acampamentoassente nas margens do Cuanza.Foram cinco semanas das maisterríveis misérias que enteshumanos podem sofrer! Era meio-dia quando entraram em Kasonde.Os tambores refuvam, os sons doschavelhos de “codu” atroavam osares e sobressaíam as detonaçõesdas armas de fogo. Os guardas dacaravana descarregam as suasespingardas e os criados de JoséAntónio Alves correspondiamcom entusiasmo. Todos estesbandidos se sentiam felizes por setornarem a ver, depois de quatromeses de ausência. Iam,

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finalmente, descansar e recuperarna orgia e na embriaguez o tempoperdido.

Os prisioneiros, na suamaioria já sem forças, eram aindaduzentos e cinquenta. Depois deterem sido enxotados para diantecomo um rebanho, iam serfechados dentro dos barracões,que os rendeiros da América nãoaproveitariam para currais degado. Aguardavam-nos ali outroscem ou duzentos escravos, quedeviam ser expostos à venda nodia seguinte no mercado deKasonde.

Encheram-se os barracões

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com os escravos recém-chegados.Tiraram-lhes as pesadasforquilhas, mas conservavam-nosacorrentados.

Os “pagasis” tinhamficado na praça, onde depuseramas cargas de marfim, queentregaram aos negociantes deKasonde. Depois, pagos comalguns metros de chita ou dequalquer outra fazenda de maiorvalor, voltaram ao encontro dacaravana.

O velho Tom e os seuscompanheiros estavam enfimlivres das golilhas que traziamhavia cinco semanas.

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Bat e seu pai abraçavam-se finalmente. Todos apertavamas mãos, mas era com dificuldadeque conseguiam falar. Quepoderiam eles dizer que nãofossem palavras de desespero.Bat, Acteon e Agostinho,acostumados ao trabalho rude,tinham resistido às fadigas, mas ovelho Tom, enfraquecido pelasprivações, estava extenuado.Alguns dias mais, e o seu cadáverseria abandonado, como foi o davelha Nan, à ferocidade das ferasdaquela região!

Todos os quatro, logo quechegaram, foram metidos em um

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acanhado barracão, cuja porta sefechou imediatamente sobre eles.Ali recebiam alguns alimentos eali esperavam a visita domercador de escravos, junto doqual pretendiam, mas inutilmente,fazer valer a sua qualidade deamericanos.

Dick Sand ficara na praçasob a vigilância especial de umcondutor.

Estava finalmente emKasonde, aonde não duvidava queMrs. Weldon, o pequenino Jack eprimo Bénédict tinham jáchegado. Procurara-os com avista quando atravessou os

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diversos lugares da povoação,penetrando até ao fundo dos“tembés” que orlavam as ruas, ena “tchitoka” que então estavaquase deserta.

Mrs. Weldon não estavalá!

“Não a teriam conduzidopara aqui?”, perguntava a simesmo Dick Sand. “Mas ondeestaria ela? Não! Hercule não seenganou decerto. Demais, istodevia fazer parte dos secretosdesígnios de Harris e deNegoro!... E, contudo, tambémnão os vejo...”

Pungente ansiedade

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dominava Dick Sand. Que Mrs.Weldon, feita prisioneira, lhefosse ainda escondida, explicava-se; mas Harris e Negoro — esteprincipalmente — deviam terpressa de ver o jovem prático,que agora estava em poder deles,ainda que fosse só para gozaremdo seu triunfo, para o insultarem,para o torturarem, para,finalmente, se vingarem dele.

Porque não estavam ali,devia concluir-se que tinhamtomado outra direção, e que Mrs.Weldon fora levada para qualqueroutro ponto da África Central?Ainda que a presença do

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americano e de Negoro fosse osinal do suplício de Dick, estedesejava-a com impaciência.Harris e Negoro em Kasondeseria para ele a certeza de queMrs. Weldon e o seu filho ali seencontravam também!

Dick Sand pensava entãoque, depois daquela noite em queDingo lhe trouxera o bilhete deHercule, nunca mais o cãovoltara. Uma resposta que ojovem prático preparara aoacaso, na qual recomendava aHercule que só pensasse em Mrs.Weldon, que não a perdesse devista, e que a tivesse quanto fosse

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possível ao fato de tudo quanto sepassava, esta resposta nãoconseguira Dick fazê-la chegar aoseu destino. O que Dingo puderafazer uma vez, isto é, penetrar atéjunto da caravana, porque nãotentara Hercule fazê-lo segundavez? Teria o fiel animal morridoem alguma tentativa semresultado, ou Hercule continuavaa seguir as pisadas de Mrs.Weldon como teria feito DickSand? Ter-se-ia Hercule, seguidode Dingo, internado nasprofundezas daquele planalto daÁfrica, coberto de matas, com amira de chegar a alguma feitoria

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do interior?Que podia imaginar Dick

Sand se efetivamente nem Mrs.Weldon, nem os seus raptores,estivessem ali? Acreditara tanto— talvez com razão — que osencontraria em Kasonde, que foipara ele um terrível golpe não osver logo que chegou. Teve ummomento de desespero que nãopôde dominar. Se a sua vida nãoera já útil às pessoas que eleestimava, para nada serviria e sólhe restava a morte! Mas,pensando deste modo, Dick Sanddesconhecia o seu caráter. Sob aação de tais provas, a criança

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fizera-se homem, e o desânimonele não era mais do que umtributo acidental pago à naturezahumana.

Formidável concerto decornetas e de gritos se ouviunaquele momento. De repente,Dick Sand, que acabamos de verprostrado na “tchitoka”, levantou-se. Qualquer incidente podia dar-lhe indicações daqueles queprocurava. O desesperado de ummomento antes estava agora cheiode confiança! “Alves! Alves!” —este nome era repetido pelamultidão de indígenas e desoldados que invadiam a grande

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praça. O homem de quemdependia a sorte de tantosinfelizes ia, enfim, aparecer!

Era provável que osagentes Harris e Negoroestivessem com ele. Dick Sandestava de pé, tinha os olhosextraordinariamente abertos e asventas dilatadas. Os doistraidores iam encontrar o jovemprático, de quinze anos de idadeapenas, resoluto e firme, eencarando-os sem receio. Nãoseria o capitão do “Pilgrim” quetremeria na presença do antigocozinheiro de bordo!

Uma maca, coberta com

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uma manta velha, remendada,desbotada e franjada pelosrasgões, apareceu na extremidadeda rua principal. Dela desceu umnegro, já idoso. Era o traficantede escravos José António Alves.

Acompanhavam-no algunscriados, que faziam grandealgazarra.

Ao mesmo tempo queAlves, aparecia também o seuamigo Coimbra, filho do majorCoimbra, do Bié, e, segundorefere Cameron, o maior bandidode toda aquela província, enteimundo, quase nu, de olharinflamado, guedelha áspera e

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encarapinhada, tez amarela,vestindo uma camisa esfarrapadae um saiote feito de ervas. Dir-se-ia que era uma velhahorrivelmente feia com umchapéu de palha roto na cabeça.Era Coimbra, o confidente, aalma danada de Alves, oplaneador das correrias, e muitodigno de dirigir os bandidos dotraficante de escravos.

Este, vestindo trajo deturco no dia seguinte ao deCarnaval, tinha talvez aspectomenos sórdido que o seu acólito.Contudo não dava boa ideia dosproprietários das feitorias, que

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faziam o comércio de negros emgrande escala.

Com grande espanto doprático, nem Harris nem Negoroacompanhavam Alves. Tinha,pois, Dick Sand de perder aesperança de os ver em Kasonde?

Entretanto, o chefe dacaravana, o árabe Ibn Hamis,apertava a mão a Alves e aCoimbra. Recebeu ele muitasfelicitações.

A falta de cinquenta porcento no número total dosescravos obrigou Alves a fazeruma careta; mas o negócio, apesarde tudo, era ainda bom. Estes

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escravos, juntos ao que otraficante possuía de mercadoriashumanas nos seus barracões,bastavam-lhe para podersatisfazer aos pedidos que tinhado interior, trocá-los por dentesde marfim e “hahnas” de cobre,semelhantes a cruzes de SantoAndré, sob a forma das quaisaquele metal se exporta no centroda África.

Não se pouparamcumprimentos aos condutores;quanto aos carregadores, otraficante ordenou que lhespagassem imediatamente.

José António Alves e

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Coimbra falavam uma espécie deportuguês, misturado com umidioma indígena, que um lisboetanão compreenderia comfacilidade. Dick Sand nãopercebia uma única palavra doque aqueles negociantes diziamum ao outro. Tratar-se-ia dele edos seus companheiros,traiçoeiramente metidos nacaravana? Não duvidou o jovemprático, logo que, a um aceno doárabe Ibn Hamis, um condutor sedirigiu para o barracão onde Tom,Agostinho, Bat e Acteon tinhamsido fechados. Quase ao mesmotempo, os quatro americanos

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foram conduzidos à presença deAlves.

Dick Sand aproximou-selentamente. Não queria perdernada daquela cena.

A cara de José AntónioAlves brilhou de alegria quandoviu aqueles negros tão robustos,aos quais o descanso e sustentoabundante fariam recuperar onatural vigor. Olhoudesdenhosamente para o velhoTom. A idade deste tirava-lhe ovalor; mas os três restantesseriam vendidos por bom preço,no próximo “lakoni” de Kasonde.

Foi então que Alves

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procurou lembrar-se de algumaspalavras inglesas, que algunsagentes, tais como o americanoHarris, lhe haviam ensinado, e ovelho entendeu devercumprimentar ironicamente osseus novos escravos.

Tom, que compreendera otraficante, avançou, e, apontandopara os seus companheiros e parasi, declarou:

— Somos homens livres!Somos cidadãos dos EstadosUnidos!

Alves entendeu-o semdúvida, porque respondeu,fazendo uma carantonha de bom

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humor e abanando a cabeça aomesmo tempo:

— Sim... Sim...americanos! Pois estimo vê-los...estimo vê-los...

— É verdade... Estimamosvê-los — acrescentou Coimbra.

O filho do major do Biéavançou então para Agostinho, ecomo um mercador que examinauma amostra, depois de lhe terapalpado o peito e os ombros,quis obrigá-lo a abrir a boca afim de lhe ver os dentes.

Mas nesta ocasião osenhor Coimbra recebeu na cara omais valente murro que jamais

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apanhou um filho de major!O confidente de Alves foi

cair a dez passos de distância.Alguns guardas correram sobreAgostinho, que ia talvez pagarmuito caro aquele ímpeto decólera.

Alves, com um gesto, fê-los parar. Ria da desgraça queacontecera ao seu amigoCoimbra, que perdera doisdentes, dos cinco ou seis que lherestavam.

José Agostinho Alves nãoqueria que lhe estragassem a suamercadoria.

Demais a mais tinha

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caráter alegre, e havia muitotempo que não ria com tantavontade.

Animou, porém, ocontundido Coimbra, e este, já depé, voltou para o seu lugar juntoao traficante, fazendo paraAgostinho gestos ameaçadores.

No mesmo momento, DickSand, empurrado por umcondutor, foi levado à presençade Alves.

Este sabia evidentementequem era o jovem prático, deonde vinha e como fora preso noarraial do Cuanza.

Assim, depois de lhe ter

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lançado um olhar rancoroso”disse em mau inglês:

— O pequeno ianque.— Sim, ianque —

respondeu Dick Sand. — Quepretendem fazer dos meuscompanheiros e de mim?

— Ianque! Ianque! Opequeno ianque! — repetiaAlves.

Não teria compreendidoou não queria compreender apergunta que lhe fizeram? DickSand, pela segunda vez, perguntouo que pretendiam fazer dos seuscompanheiros e dele. Dirigiu-setambém a Coimbra, que pelas

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feições, conquanto alteradas peloexcesso das bebidas alcoólicas,reconheceu que não era de origemindígena.

Coimbra tornou a fazer omesmo gesto ameaçador quefizera a Agostinho, e nãorespondeu.

Enquanto isto se passava,Alves conversava animadamentecom o árabe Ibn Hamis a respeitode coisas que evidentementediziam respeito a Dick Sand e aosseus amigos. Iam sem dúvidasepará-los novamente, e quemsabe se teriam outra ocasião detrocar entre si algumas palavras.

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— Meus amigos — disseDick Sand a meia voz, e como sefalasse consigo mesmo —, recebipor Dingo um bilhete que meescreveu Hercule. Seguiu acaravana. Harris e Negorolevaram Mrs. Weldon, Jack e oSr. Bénédict. Para onde? Não sei,se acaso não estão aqui, emKasonde. Tenham paciência ecoragem e estejam prontos paratudo. Deus tenha compaixão denós!

— E Nan? — perguntou ovelho Tom.

— Morreu!— Foi a primeira!

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— E a última! —respondeu Dick Sand. —Porque...

Neste momento, alguémlhe pôs a mão sobre o ombro,dizendo ao mesmo tempo asseguintes palavras pronunciadascom um certo tom de amabilidadeque ele conhecia bem: — Olá,meu jovem amigo, creio que menão engano! Muito folgo de otornar a ver!

Dick Sand voltou-se.Harris estava diante dele.— Onde está Mrs.

Weldon? — perguntou Dick Sand,crescendo para o americano.

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— Ah! — respondeuHarris, afectando dó. — Pobresenhora! Como poderia elasobreviver!...

— Morreu! — exclamouDick Sand. — E o filho?...

— A inocente criancinha— volveu Harris, no mesmo tom— era impossível que resistisse atantas fadigas!...

Assim, pois, tudo quantoDick Sand mais estimava nãoexistia já. Que se passou no seuíntimo? Um irresistívelmovimento de cólera, anecessidade de vingança, quedevia satisfazer, custasse o que

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custasse, se apoderou dele.Dick Sand saltou sobre

Harris, tirou um punhal do cintodo americano e cravou-o nocoração.

— Maldição! — exclamouHarris caindo. Estava morto.

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CAPÍTULO X

UM DIA DE FEIRA Foi tão rápido o ímpeto de

Dick Sand que não puderamevitá-lo. Alguns indígenascorreram sobre ele para omatarem, quando Negoroapareceu.

A um sinal deste

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afastaram-se os indígenas, quelevantaram e levaram o cadáverde Harris. Alves e Coimbraexigiram a morte imediata deDick Sand, mas Negoro disse-lhes em voz baixa que nãoperderiam com a demora. Deu-seentão ordem para levar o jovemprático, com a recomendação denão o perderem de vista.

Dick vira enfim Negoro,pela primeira vez, depois dehaverem partido da costa. Sabiaque este malvado era o únicoculpado do naufrágio do“Pilgrim”... Devia odiá-lo aindamais do que odiava o seu

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cúmplice; contudo, depois de termorto o americano, não pensousequer em dirigir uma únicapalavra a Negoro.

Dissera Harris que Mrs.Weldon e o seu filho tinhamsucumbido! Nada mais ointeressava, não se preocupavaaté com o destino que lhe dariam.Levavam-no; para onde? Era-lheindiferente.

Dick Sand, depois de bemamarrado, foi metido numabarraca sem janelas, uma espéciede cárcere, onde o traficanteAlves prendia os escravoscondenados à morte por motivo

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de rebelião ou por outros crimes.Ali não podia Dick comunicarcom o exterior. Era-lheindiferente... Vingara aqueles quetanto estimava e que já não eramdeste mundo. Fosse qual fosse asorte que lhe estivesse reservada,não a temia.

Fácil é de supor que, seNegoro fez parar os indígenas quequeriam castigar o assassino deHarris, é porque resolvera queDick Sand padecesse um dessesterríveis suplícios que só osindígenas conhecem. O cozinheirode bordo tinha em seu poder ocapitão de quinze anos. Só faltava

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Hercule para completar a suavingança.

Dois dias depois, a 28 deMaio, abriu-se o mercado, ogrande “lakoni”, no qual sedeviam encontrar os traficantesvindos das principais feitorias dointerior e os indígenas dasprovíncias vizinhas de Angola.Não era a feira especialmentedestinada para a venda deescravos, mas sim, também, paraa de todos os produtos daquelaregião da África, que ali afluíamcom os seus produtores.

Desde a manhã que haviagrande animação na vasta

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“tchitoka” de Kasonde, da qualnão é fácil dar ideia exata. Erauma aglomeração de quatro acinco mil pessoas, entrando nestenúmero os escravos de JoséAntónio Alves, entre os quaisestavam Tom e os seuscompanheiros. Estes desgraçados,porque eram estrangeiros, nãodeviam ser menos procuradospelos corretores de carne humana.

Alves, o primeiro entretodos, acompanhado porCoimbra, fazia os lotes deescravos, com que os mercadoresque tinham vindo do interiorformariam as caravanas. Entre os

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mercadores notavam-se algunsmestiços de Ujiji, principalmercado do lago Tanganica, eárabes, que neste gênero denegócio se avantajam aosmestiços.

Encontravam-se tambémali grande número de indígenas:crianças, homens e mulheres.Mostravam estas grande paixãopelo comércio de escravos, e,pela propensão para o negócio,poderiam servir de exemplo àssuas semelhantes de cor branca.Nas feiras das grandes cidades,até mesmo nos dias de maioranimação, não há mais bulha nem

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se fazem tantos negócios. Entre ospovos civilizados, a necessidadede vender excede talvez o desejode comprar. Entre os selvagens daÁfrica, as ofertas igualam ospedidos.

Para os indígenas deambos os sexos, o “lakoni” eraum dia de festa, e, se nãoenvergavam por isso os seusmelhores trajos, traziam contudoos seus mais ricos ornamentos.As guedelhas eram apartadas emquatro partes, cobertas de enfeitese formando trancinhas ligadasumas às outras como um chignon,ou dispostas como cabos de

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caçarolas sobre a parte anteriorda cabeça e enfeitadas com penasvermelhas; outras tinham pontasrecurvadas e empastadas comterra encarnada e óleo, como omínio, que serve para untar asjuntas das máquinas a vapor; enaquelas massas de cabelosfingidos ou verdadeiros, pregos,alfinetes de ferro ou de marfim, enão raro, entre os elegantes, umafaca lavrada, espetada nacarapinha, cujos cabelos,enfiados a um por um em pérolasde vidro, davam ao todo oaspecto de bordados demissangas de várias cores. Tais

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eram as trunfas que geralmente seviam na cabeça dos homens. Asmulheres preferiam dividir oscabelos, formando pequenaspoupas do tamanho de umacereja, com formas variadas, ouentão em pequenos caracóis,dispostos aos lados das faces.Algumas, as mais simples e quiçáas mais belas, deixavam cair oscabelos sobre as costas,afectando a moda inglesa; outras,à moda francesa, traziam-nos emfranjas, recortados sobre a testa.E quase sempre naquelas grenhasuma -massa de gordura, de argilaou brilhante “nkola” —

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substância vermelha extraída dosândalo —, fazendo parecer quetais elegantes estavam toucadascom telhas.

Não se julgue contudo queeste luxo de enfeites se aplicavasó aos cabelos. Para queserviriam as orelhas aosindígenas, se não asatravessassem por pequenascavilhas de madeira rica, poranéis de cobre e tranças de palhade milho, ou não lhespendurassem pequenas cabaças,em que guardam o tabaco — detal modo que os lóbulosdistendidos destes apêndices

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caem às vezes sobre os ombrosdos seus proprietários? Osselvagens da África não têmalgibeiras, e como as poderiamter? Disto resulta a necessidadede colocarem onde é possível asfacas, os cachimbos e outrosobjetos de seu uso. O pescoço, osbraços, os pulsos, as pernas e osartelhos são para eles destinadospara trazer braceletes de cobre oude latão, chavelhos recurvados ecravejados de botões brilhantes,fios de pérolas vermelhas,chamadas “sainessanies” ou“talakes”, e que então estavam emmoda. Assim, pois, com tantas

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alfaias profusamente ostentadas,os ricos do lugar eram como quejoalheiros ambulantes.

Demais, se a natureza deudentes aos indígenas não foicertamente para que arrancassemos incisivos superiores einferiores, para que os limassemem pontas aguçadas, osrecurvassem em forma de ganchoscomo os dentes das cobras decascavel? Se lhes plantou unhasnas pontas dos dedos, que outrofim teve senão o de tornar quaseimpossível o uso da mão peloexagerado comprimento delas? Sea pele negra ou parda cobre a

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estrutura humana, não foi para queazebrassem de “tembos” oulavores, representando árvores,pássaros, luas cheias oucrescentes, ou de linhasonduladas, nas quais Livingstonejulgou ver os desenhos do antigoEgipto? Os lavores que usam ospais, feitos com uma matéria azulintroduzida nas incisões, écopiada ponto por ponto noscorpos dos filhos, reconhecendo-se assim facilmente a que tribo efamília pertencem. Quando não sepode pintar o brasão naportinhola da carruagem, grava-seno peito.

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Tais eram os enfeites emmoda entre os indígenas. Pelo querespeitava ao vestuário, resumia-se: para os senhores, a um aventalfeito de pele de antílope, caindoaté aos joelhos, ou a um saiote detecido vegetal, de cores muitovivas; as mulheres traziam umacinta de pérolas, prendendo sobreos rins uma saia verde bordadade seda e ornada de missangas oude cauris; algumas vezes traziamtangas de ulamba”, fazenda detecido vegetal, azul, preta eamarela, muito procurada peloszanzibaritas.

Refere-se o que fica dito

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aos negros da alta sociedade,porque os outros, mercadores ouescravos, andavam quase nus. Asmulheres, pela maior parte dasvezes, eram quem carregava, evinham ao mercado trazendo àscostas cestos enormes, queseguravam por meio de umacorreia passada sobre a testa.Tomavam lugar, desenfardavamas mercadorias e sentavam-se noscestos vazios.

A espantosa fertilidade doterritório fazia afluir ao “lakoni”produtos alimentícios de primeiraqualidade. Havia abundância dearroz, que dá cento por um, de

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milho, que, em três colheitas noespaço de oito meses, produzduzentos por um, gergelim,pimenta de Urua, mais forte que ade Caiena, mandioca, massango,noz-moscada, sal e óleo depalma. Encontravam-se tambémali centenas de cabras, porcos,carneiros sem lã, peixe, até.Louça de barro bem feita,chamando a atenção pelas coresfortes. As variadas bebidas queos pequenos indígenasapregoavam com voz aguçada etentavam os amadores eram ovinho de banana, o “pombe”,licor fortíssimo muito apreciado,

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o malufo, bebida doce, feito debananas, e o hidromel, límpidamistura de mel e água, fermentadacom cevada.

Entre os tecidos contavam-se por milhares os “chukas”, o“mericani”, algodão cru vindo deSalem, no Massachusetts, o“kaniki”, chita azul de trinta equatro polegadas de largura, o“sohari”, tecido de quadradosazuis e brancos com orlaencarnada com alguns fios azuis,fazenda menos cara que os“diules” de seda de Surrate, defundos verdes, vermelhos ouamarelos, cujo valor regula por

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sete dólares, para os cortes detrês jardas, e oitenta dólaresquando no tecido se encontramfios de oiro.

O marfim vinha em grandecópia de todos os pontos daÁfrica Central, com destino aCartum, a Zanzibar ou à costa deNatal, e grande número denegociantes se empregamexclusivamente na exportaçãodeste importantíssimo ramo docomércio africano.

Imagine-se quantoselefantes são necessários parafornecer os quinhentos milquilogramas de marfim(1) que a

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exportação lança todos os anosnos mercados da Europa eprincipalmente nos de Inglaterra!Só o Reino Unido consomequarenta mil. A costa ocidental daÁfrica dá ao comércio cento equarenta toneladas desta preciosamercadoria. A média do peso decada par de dentes de elefante éde vinte e oito libras, que em1874 valeram mil e quinhentosfrancos; mas alguns há queatingem o peso de cento e setentae cinco libras, e, na feira deKasonde, os amadores poderiamadmirar alguns magníficosespécimes de bom marfim

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translúcido, fácil de trabalhar, decasca parda, não perdendo aalvura e não amarelecendo com otempo, como acontece ao marfimde outras procedências.

*1. A cutelaria deSheffield consome 170 000quilogramas de marfim.

Disto isto, resta saber

como se regulavam entrecompradores e vendedores asdiversas operações comerciais.Qual era a moeda corrente? Entreos traficantes da África não podiadeixar de ser o escravo.

O indígena paga com

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pérolas de vidro de fabricaçãoveneziana, chamadas“cachocolos”, se têm a brancurada cal, “bubulos” quando sãonegras, e “sikundereches” quandosão cor-de-rosa. Estas pérolas oumissangas, reunidas em seisfiadas ou “khetes”, fazendo duasvoltas à roda do pescoço, formamo “fundo”, cujo valor é grande. Amedida mais usual destas pérolasé o “frasilah”, que pesa sessentalibras.

Livingstone, Cameron eStanley tiveram sempre o bomcuidado de estarem bem providosde tal moeda. Faltando as pérolas

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de vidro, o “picé”, moeda deZanzibar de valor correspondentea quatro centésimos do franco, eos “viunguas”, conchas peculiaresà costa oriental, têm curso nosmercados do continente africano.As tribos antropófagas ligamalgum valor aos dentes e maxilashumanas, e no “lakoni” viam-seenfiadas de dentes nos pescoçosdos indígenas, que sem dúvidatinham devorado os seuspossuidores; os dentes, porém,começam a ser agoradepreciados.

Tal era o aspecto dogrande mercado. Ao meio-dia a

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animação atingira o mais altograu, a bulha era extraordinária.O furor dos vendedoresdesprezados, a cólera doscompradores a quem pediampreços exorbitantes, não sepodem exprimir. Disto nasciamfrequentes lutas, e, como é deprever, poucos guardas haviapara apaziguar tão ruidosamultidão.

Foi pelo meio-dia queAlves ordenou que conduzissempara a praça os escravos que elepretendia vender. Aumentou-se amultidão com mais de dois mildesgraçados, de todas as idades,

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que o traficante tinha fechadosnos seus barracões havia já doismeses. Este depósito estavamagnífico. O descansoprolongado e a alimentação fartatinham posto os escravos emcondições de figurarvantajosamente no “Lakoni”. Osúltimos que vieram, porém, nãose podiam comparar com osprimeiros, e, se tivessem ficadomais um mês nos barracões,Alves tê-los-ia vendido melhor;mas eram tantos os pedidos dacosta oriental que se decidiu aapresentá-los tais como estavam.

Foi uma desgraça para

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Tom e para os seus companheiros.Os condutores levaram-nos parao rebanho, que encheu a“tchitoka”. Estavam agrilhoados;os seus olhares exprimiam aomesmo tempo o furor e avergonha que os oprimia.

— O Sr. Dick Sand nãoestá aqui — observou Bat, logoque percorreu com a vista a vastapraça de Kasonde.

— Não está — respondeuActeon — , porque decerto o nãovendem!

— Matá-lo-ão, se acasonão está já morto! — acrescentouo velho negro. — Pelo que nos

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diz respeito, só uma esperançanos resta: é a de sermoscomprados pelo mesmomercador. Teríamos ao menos aconsolação de nos nãosepararmos.

— Ah!... Quando pensoque meu pai pode ir para longe demim trabalhar como escravo!...Ah! Meu pobre e velho pai! —exclamou Bat, soluçando.

— Não — disse Tom. —Não nos separarão, e talvezpossamos...

— Se Hercule aquiestivesse... — murmurouAgostinho.

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Mas o gigante não tornaraa aparecer. Desde as notícias queteve Dick Sand, nunca mais seouviu falar nem dele nem deDingo. Seria a sua sorte digna deinveja? Era, decerto, porque, seHercule havia sucumbido, aomenos não tinha arrastado, comoeles, os grilhões da escravidão.

Começara a venda. Osagentes de Alves conduziam porentre a multidão lotes de homens,mulheres e crianças, semcuidarem de saber se separavamas mães de suas crias. Não sepoderão designar assim aquelesdesgraçados, que eram tratados

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como animais? Tom e os seuscompanheiros foram assimconduzidos de compradores emcompradores. Um agentecaminhava adiante deles,apregoando o preço porque seriaadjudicado o lote. Os corretoresárabes ou mestiços dasprovíncias centrais vinhamexaminá-los. Não lhesencontravam os sinais peculiaresà raça africana, sinais jámodificados nestes americanosdesde a segunda geração. Masestes negros vigorosos einteligentes, diferindo muito dosnegros trazidos das margens do

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Zambeze ou do Lualaba, tinhampara os compradores não pequenovalor. Apalpavam-nos, viravam-nos, examinavam-lhes os dentes,como se fossem cavalos. Depoisatirava-se um pau para longe eobrigavam-nos a correr, para oapanharem, e julgavam assim dasua agilidade.

Era o método empregadopor todos, e todos se submetiam aestas humilhantes provas. Não sejulgue que aqueles desgraçadosolhavam com indiferença para omodo como os tratavam. Não.Excetuando as crianças, que nãopodiam compreender o estado da

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degradação a que as reduziam,todos os mais, homens oumulheres, se sentiam vexados.Não lhes poupavam injúrias nemchicotadas. Coimbra, meioembriagado, juntamente com osagentes de Alves, tratava-os comgrande brutalidade, e nas mãosdos novos senhores, que ostinham comprado a troco demarfim, de fazendas ou depérolas, não encontravam melhoracolhimento. Arrancadosviolentamente os filhos às mães,os maridos às mulheres, ouseparados os irmãos, não lhes erapermitido um derradeiro abraço

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ou um beijo sequer. No “lakoni”viam-se pela última vez.

As necessidades docomércio exigem que os escravostenham destino diferente segundoo sexo a que pertencem. Osmercadores que compram oshomens não compram mulheres.

Estas, em virtude dapoligamia, que é lei entre osmuçulmanos, são mandadasprincipalmente para as terrasárabes, onde as trocam pormarfim. Os homens, destinadospara mais rudes trabalhos, vãopara as feitorias da costaocidental e oriental, e são dali

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exportados para as colôniasespanholas, ou para os mercadosde Mescate e de Madagáscar.Esta escolha é a causa de cenasque despedaçam o coração, entreaqueles que os agentes separam eque decerto morrerão sem nuncamais se verem.

Tom e os seuscompanheiros deviam participarda sorte comum. Não a receavam,porém. Melhor era para eles, comefeito, que os exportassem paraalguma colônia de escravos. Aíteriam ao menos algumaprobabilidade de seremreclamados, ao passo que, pelo

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contrário, retidos numa provínciada África Central, perderiam aesperança de tornar a ser livres.

Aconteceu comodesejavam. Tiveram até a quaseinesperada consolação de nãoserem separados.

O seu lote foi muitodisputado pelos mercadores deUjiji. José António Alves batia asmãos de contentamento. Todoscorriam a ver esses escravos devalor até então desconhecido nomercado de Kasonde, mas cujaprocedência Alves teve o cuidadode ocultar. Tom e os seuscompanheiros, porque não sabiam

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a língua da terra em que estavam,não podiam protestar.

Foram comprados por ricotraficante árabe, que dentro depoucos dias ia mandá-los para olago Tanganica, onde se faz amaior passagem de escravos, edali para as feitorias de Zanzibar.

Chegariam eles tão longe,caminhando através das maisinsalubres e perigosas terras daÁfrica Central? Mil e quinhentasmilhas a percorrer em taiscondições, no meio de guerrasfrequentes, levantadas entre uns eoutros potentados, e sob a açãode um clima mortífero! Teria o

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velho Tom bastante força parasuportar tantos trabalhos? Nãoficaria no caminho, comoaconteceu a Nan?

Mas estes infelizes aomenos não estavam separados.Pareciam-lhes por isso menospesadas as correntes que osprendiam. O traficante árabe fê-los conduzir para um barracãoespecial. Evidentemente tinhacuidado na mercadoria, que lheprometia bons lucros emZanzibar.

Tom, Bat, Acteon eAgostinho saíram da praça e nãoviram, por isso, nem souberam da

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cena com que ia acabar o grande“lakoni” de Kasonde.

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CAPÍTULO XI

UM PONCHE

OFERECIDO Ao REI DEKASONDE

Eram quatro horas da tarde

quando se ouviu um estrépito detambores, timbales e outrosinstrumentos africanos, no

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extremo da rua principal. Aanimação aumentou então emtodos os lugares do mercado. Agritaria e as lutas de tantas horasnão tinham feito enrouquecer nemquebrado os braços e as pernasaos desesperados negociantes.Havia ainda para vender grandenúmero de escravos; ostraficantes disputavam os lotescom frenesi nunca visto na Bolsade Londres nos dias de subida defundos.

Mas, quando se ouviu adesafinada música, suspenderam-se as transações e os pregoeirospuderam, enfim, descansar das

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suas fadigas.O rei de Kasonde, Moini

Lunga, vinha honrar com a suavisita o grande “lakoni”. Séquitonumeroso, formado pelas suasmulheres, altos dignitários,soldados e escravos,acompanhava o rei. Alves eoutros traficantes vieram aoencontro do monarca, exagerandomuito as zumbaias que lhe faziame que mais particularmenteagradavam àquele selvagemcoroado.

Moini Lunga vinha numpalanquim, de que desceu nomeio da grande praça, ajudado

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por algumas pessoas.Tinha cinquenta anos, mas

parecia ter oitenta; era como queum macaco decrépito e de idadeavançada.

Na cabeça trazia umaespécie de tiara ornada comgarras de leopardo pintadas deencarnado e enfeitada com tufosde pêlo branco: era a coroa dossoberanos de Kasonde. Nacintura, dois saiotes de couro,bordados de pérolas, e maisencoscorados que um avental deferreiro. No peito, grande númerode desenhos, sinal da antiganobreza do rei, e os quais, dando-

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se-lhes fé, mostravam que agenealogia de Moini Lunga seperdia na noite dos tempos. Nosartelhos, nos pulsos e nos braçosde Sua Majestade, braceletes decobre, engastados de “sofis”, e ospés metidos numas botas delacaio com canhão amarelo,presente que lhe fizera Alveshavia já vinte anos. Na mãodireita uma grande bengala comcastão de prata, na esquerda umaventarola com o cabo enfeitadode missangas, no nariz a lente eos óculos de primo Bénédict, quetinham sido encontrados naalgibeira de Bat, e finalmente

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coberto por um velho chapéu desol, tão cheio de remendos queparecia feito dos calções dosarlequins. Tal é o retrato fiel damajestade negra, que fazia tremera província num perímetro de cemmilhas.

Moini Lunga, porqueocupava um trono, pretendia serde origem celeste; aqueles entreos seus súbditos que duvidassemseriam por ele mandados para ooutro mundo, a fim de secertificarem. Dizia que não tinhanecessidades mundanas. Se comiaé porque queria, se bebia éporque isso lhe dava prazer.

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Contudo não havia quem bebessemais. Os seus ministros eempregados, ébrios requintados,podiam dizer-se sóbrios quandocomparados com ele. Era umamajestade alcoolizada no últimograu e sempre embebida emlicores fontes, em “pombe”, eprincipalmente numa qualidadede aguardente que Alves lhefornecia com abundância.

Moini Lunga tinha no seuharém mulheres de todas asidades e condições. A maior partedelas acompanhavam-no nestavisita ao “lakoni”. Moina, a maisantiga, e à qual chamavam rainha,

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era uma megera de quarenta anose de sangue real, como as suascolegas.

Envergava uma espécie deblusa aos quadrados de coresvivas, uma saia feita de ervastecidas e bordadas de missangas;tinha enfiadas de pérolas por todaa parte, trunfa recortada, fazendocomo que uma moldura enorme àpequena cabeça, enfim, ummonstro. As outras mulheres,primas ou irmãs do rei, ricamentevestidas, mas mais novas,caminhavam atrás dela, prontas,ao mais leve aceno do seu senhor,a servir de móveis humanos, que

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na verdade não são outra coisaaquelas desgraçadas. Se o reiquer sentar-se, curvam-se duasdas suas mulheres e servem-lhede cadeira, enquanto os reais pésdescansam sobre outros corposde mulheres como sobre um chãode ébano!

No séquito de MoiniLunga vinham os empregados,oficiais e mágicos, e saltava logoà vista que àqueles selvagens, quetitubeavam diante do seu senhor,faltava uma parte qualquer docorpo: a uns uma orelha, a outrosum olho, a este o nariz, àqueleuma das mãos. Não havia um

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único que estivesse completo,porque em Kasonde aplicam-seduas espécies de castigo: amutilação e a morte, segundo avontade do rei. Pela maispequena falta, uma amputação; eos mais castigados são aqueles aquem se tiram as orelhas, porficarem privados do gosto detrazer brincos!

Os capitães dos quilolos,governadores dos distritos,hereditários ou nomeados porquatro anos, usavam comouniforme barretes de pele dezebra e coletes encarnados.Brandiam compridas bengalas de

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rota, untadas em uma das pontascom drogas mágicas.

Os soldados tinham porarmas ofensivas e defensivasarcos enfeitados com franjas e emcuja madeira estava enrolada umacorda de sobresselente, facasafiadas como línguas deserpentes, lanças largas ecompridas, escudos de madeirade palma guarnecidos dearabescos. O uniforme, porém,não custava absolutamente nadaao tesouro de Sua Majestade.

Finalmente, na comitiva dorei vinham em último lugar osmágicos da corte e os músicos.

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Os feiticeiros,“megangas”, são os médicos doreino. Dão aqueles selvagensgrande fé aos ofíciosadivinhatórios, aos encantos e aosfeitiços — figuras de argila commalhas brancas e encarnadas,representando animais fantásticosou pequenas estátuas de homens ede mulheres, feitas de madeira.Os mágicos, contudo, nãoestavam menos mutilados que oscortesãos, porque sem dúvidaalguma o monarca lhes pagavacom a mutilação as curas que nãoconseguiam fazer.

Os músicos, homens e

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mulheres, agitavam estrídulasmatracas, faziam ressoar ruidosostambores ou vibrar por meio debaquetas terminadas por bolas decauchu as marimbas, feitas deduas ordens de cabeças dediversos tamanhos. O conjunto detodos estes sons era insuportávelpara quem não tivesse ouvidosafricanos.

Sobre a multidão quecompunha o séquito realtremulavam bandeiras egalhardetes, e em chuços,espetados, os crâniosembranquecidos de alguns doschefes rivais que Moini Lunga

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vencera.Logo que o rei desceu do

palanquim, romperam de todos oslados as aclamações. Os guardasdas caravanas descarregavampara o ar as espingardas, cujasfraquíssimas detonações não sepodiam ouvir, tal era a algazarraque fazia a multidão. Oscondutores, “halvidares”, depoisde terem pintado a negra caracom cinábrio em pó, que traziamnum saco, prostraram-se. DepoisAlves, dirigindo-se para o rei,entregou-lhe uma porção detabaco — erva mitigativa —como lhe chamam na região; e

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tinha Moini Lunga grandenecessidade de alguma coisa queo acalmasse, porque estava, semse saber a razão, de muito mauhumor.

Ao mesmo tempo queAlves, foram Coimbra, Ibn Hamise os traficantes árabes oumestiços cumprimentar opoderoso soberano de Kasonde.“Marhaba”, diziam os árabes,palavra que na sua língua daÁfrica Central quer dizer — bem-vindo — ; outros batiam com asmãos e curvavam-se até ao chão;alguns enlambuzavam-se comlodo, e davam à horrenda

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majestade todas as provas domais baixo servilismo.

Moini Lunga mal via todaaquela gente e caminhava abrindoas pernas, como se o terrenobalanceasse como um barco.Andou assim, ou antescambaleou, entre os lotes deescravos, e se os traficantesreceavam que ele tivesse afantasia de tomar para si algunsdos cativos, estes não temiammenos de cair em poder desemelhante bruto.

Negoro não deixava Alvesum momento, e junto a eleapresentava os seus respeitosos

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cumprimentos ao rei.Conversavam na língua indígena,se a palavra “conversar” pode serempregada para dar ideia de umdiálogo no qual Moini Lunga sótomava parte empregandomonossílabos, que a muito custosaíam dos seus lábios avinhados,e ainda assim era para pedir aoseu amigo Alves que lherenovasse a provisão deaguardente que se gastara emgrandes libações.

— Bem-vindo seja o reiMoini Lunga à feira de Kasonde!— dizia o mercador de escravos.

— Tenho sede —

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respondia o monarca.— Terá o rei a sua parte

nos negócios do grande “lakoni”— acrescentava Alves.

— Dá-me de beber —insistia Moini Lunga.

— O meu amigo Negoroestá satisfeitíssimo por tornar aver o rei de Kasonde depois detão grande ausência.

— Quero beber — repetiao beberrão, que exalava de toda asua pessoa desagradável cheiro aálcool.

— Pois bem, terá ponche ehidromel — afirmou José AntónioAlves, como quem percebia bem

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aonde Moini Lunga queria chegar.— Não... não — atalhou o

rei. — Quero aguardente, Alves,e por cada gota darei...

— Uma gota de sangue deum branco — propôs Negorodepois de ter feito a Alves umsinal, que ele entendeu e aprovou.

— Um branco!... Matar umbranco! — replicou Moini Lunga,cujos instintos ferozes sedespertaram com a proposta doex-cozinheiro.

— Um agente de Alves foimorto por um branco —continuou Negoro.

— É verdade, foi o meu

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agente Harris — -informou otraficante de escravos —, e a suamorte requer vingança.

- — Pois bem; mandemesse branco ao rei Massongo noAlto Zaire, do reino dos Assuas.Vão cortá-lo em pedaços e comê-lo vivo! Ainda não se esqueceramdo gosto que tem a carne humana!— declarou Moini Lunga.

Era, com efeito, Massongoo rei de uma tribo deantropófagos. Em algumasprovíncias da África Central ocanibalismo é usado ainda.Refere-o Livingstone nos seusapontamentos de viagem. Nas

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margens do Lualaba, osManyemas comem não só oshomens mortos na guerra, mas atécompram escravos para devorar,e dizem que a carne humana éligeiramente salgada e exigepouco condimento! Cameronencontrou canibais em MoénéBougga, onde comem oscadáveres depois de os teremamolecido em água corrente.Stanley viu igualmente entre oshabitantes de Ukussu aantropofagia, evidentementegeneralizada entre as tribos docentro. Mas por muito cruel quefosse o gênero de morte proposto

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pelo rei para Dick Sand, nãoconvinha ele a Negoro, que nãodesejava perder de vista a suavítima.

— Foi aqui — explicouele — que o branco matou onosso camarada Harris.

— É aqui que ele devemorrer — acrescentou Alves.

— Morrerá onde quiseres,Alves — respondeu Moini Lunga—; mas gota de aguardente porgota de sangue!...

— Decerto — concordouo traficante de escravos. — Hojevereis que bem merece ela talnome. Fá-la-emos deitar chamas!

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José António Alves oferecerá umponche ao rei Moini Lunga!...

O borrachão bateu nasmãos do seu amigo Alves. Estavalouco de alegria. As concubinas eos cortesãos participavam dodelírio do seu senhor. Nuncatinham visto a aguardente emchamas, e contavam bebê-la nesseestado. Demais a mais à sede deálcool juntava-se a sede dosangue, igualmente imperiosaentre os selvagens.

Pobre Dick Sand, quehorrível suplício o esperava!Quando se pensa nos efeitosterríveis ou ridículos da

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embriaguez nos paísescivilizados, compreende-se a queexcessos pode ela levar gentebárbara.

Acredita-se facilmente queo pensamento de torturar umbranco não podia desagradar nemaos indígenas nem a José AntónioAlves, negro como eles, nem aCoimbra, mestiço de sanguenegro, nem finalmente a Negoro,animado como estava de ódioferoz contra a gente da sua cor.

Veio a noite, noite semcrepúsculo, hora propícia para severem as chamas do álcool.

Fora na verdade magnífica

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ideia que Alves tivera deoferecer um ponche à negramajestade e de lhe fazer saboreara aguardente sob outra forma.Moini Lunga começara a acharque a aguardente não justificavabastante o seu nome. Talvez quechamejante excitasse maisagradavelmente as papilas jáinsensíveis da sua língua! Oprograma da noite era, porconseguinte, um ponche primeiro,um suplício depois.

Dick Sand, rigorosamenteencerrado na escura prisão, sódevia sair dela para morrer. Osescravos, vendidos ou não,

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tinham sido reenviados para osrespectivos barracões. Na“tchitoka” estavam apenas ostraficantes, os condutores e ossoldados, prontos para provar doponche, se o rei e a sua corte osdeixassem.

José António Alves, porconselho de Negoro, dispôs tudobem.

Trouxeram uma largabacia de cobre, em que podiamcaber cem canadas de líquido, e aqual foi colocada no meio dagrande praça. Despejaram-se nabacia alguns barris de álcool deinferior qualidade, mas muito

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forte. Não se poupou a canela,pimenta e outros ingredientes quepudessem tornar ainda mais forteeste ponche feito para selvagens.

Todos haviam cercado orei. Moini Lunga dirigiu-secambaleando para a poncheira.Dir-se-ia que aquela tina deaguardente o fascinava e que iaprecipitar-se nela.

Alves, porém, reteve-o edeu-lhe para a mão uma mechaacesa.

— Fogo! — exclamou ele,fazendo semblante de fingidasatisfação.

— Fogo! — repetiu Moini

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Lunga, agitando o líquido com aextremidade inflamada da mecha.

Que facho e que efeitoquando as chamas azuladasflutuaram na superfície da bacia!Alves, para sem dúvida fazer oálcool ainda mais acre, tinha-lhemisturado alguns punhados de salmarinho. As faces dos assistentestomaram então a lividez dosespectros que a imaginação dáaos fantasmas. Aqueles negros, jáébrios, começavam a gritar, agesticular e, agarrando nas mãosuns dos outros, dançavam à rodado rei de Kasonde.

Alves, com uma enorme

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colher, remexia o líquido, quelançava grandes mas pálidosclarões sobre aqueles macacosdelirantes.

Moini Lunga avançou.Tirou a colher das mãos deAlves, mergulhou-a na bacia e,retirando-a cheia de ponche aarder, chegou-a aos beiços.

Grito terrível foi o queentão deu o rei de Kasonde!

Produzira-se um fenômenode combustão espontânea. Pegarafogo no rei como em petróleo!Mas este fogo, que desenvolviapouco calor, consumia bastante.

À vista de tal espetáculo, a

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dança dos indígenas parou. Umdos ministros de Moini Lungaprecipitou-se sobre o seusoberano para lhe apagar o fogo;mas, porque não estava menosalcoolizado do que o seu senhor,começou também a arder.

Toda a corte de MoiniLunga corria grande risco de seincendiar! Alves e Negoro nãosabiam como socorrer SuaMajestade. As mulheres, cheiasde espanto, tinham fugido.Coimbra, porque conhecia bem asua natureza combustível, retirou-se depressa.

O rei e o ministro, que

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tinham caído, rolavam no chão,sofrendo horrivelmente.

Nos corpos tãoprofundamente alcoolizados, acombustão produz apenas umatênue chama azulada, que a águanão pode extinguir. Abafada queestivesse no exterior, continuariainteriormente. Quando os licorestêm penetrado em todos ostecidos, não há meio de fazerparar a combustão.

Instantes depois, MoiniLunga e o seu ministro tinhamsucumbido, mas ardiam ainda, enão tardou muito que no lugar emque ambos caíram se vissem

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apenas alguns restoscarbonizados, um ou doispedaços da coluna vertebral,dedos das mãos e dos pés, que ofogo não consome no caso dacombustão espontânea, mas quecobre com uma espécie deferrugem infecta e nauseabunda.

Era quanto restava do reide Kasonde e do seu ministro!

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CAPÍTULO XII

UM ENTERRO REALNo dia seguinte, 29 de

Maio, a grande sanzala deKasonde apresentavaextraordinário aspecto. Osindígenas, aterrados, não saíamdas cubatas. Nunca tinham vistoum rei, que pretendia ser deorigem divina, nem sequer umsimples ministro, sucumbir de tãohorrível morte. Já tinhamqueimado alguns dos seussemelhantes, e os mais idosos nãopodiam esquecer certos

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preparativos culinários que serelacionavam com o canibalismo.Sabiam, pois, com quedificuldade se opera aincineração dos corpos humanos,e contudo o rei e o seu ministrohaviam ardido rapidamente!Parecia-lhes, e devia parecer-lhes com efeito, que isto era umacontecimento inexplicável.

José António Alvesconservava-se em casa, sem nadadizer. Temia que o fizessemresponsável pelo fatal acidente.Negoro fez-lhe compreender arazão daquele acontecimento eadvertiu-o para que tivesse

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cuidado. Lançar à sua conta amorte de Moini Lunga seria ummau negócio, do qual não sesairia bem sem grande custo.

Teve, porém, Negoro umaboa ideia. Por diligências suas,Alves fez espalhar a notícia deque a morte do soberano deKasonde fora sobrenatural, imorteque o grande Manitu reservavaunicamente para os seusescolhidos, e os indígenas,sempre propensos para asuperstição, aceitaram semrepugnância este embuste. O fogoque saía do corpo do rei e do seuministro era o fogo sagrado.

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Restava pois honrar Moini Lunga,fazendo-lhe um enterro digno deum homem elevado até à ordemdos deuses.

O funeral, com todas ascerimônias que o acompanhavam,entre as tribos africanas, davaboa ocasião a Negoro para fazercom que Dick Sanddesempenhasse nele um papel.

Não se acreditariafacilmente quanto sangue ia custara morte do rei Moini Lunga se osviajantes da África Central, eentre outros o tenente Cameron,não tivessem relatado certos fatosde que não é lícito duvidar.

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A herdeira natural do reide Kasonde era a rainha Moina.Procedendo, sem demora, àscerimônias, fazia ato deautoridade soberana e podiaassim afastar os competidores,entre os quais estava o rei deUkusu, que tentava usurpar osdireitos dos soberanos deKasonde. Além disto, Moina,porque era proclamada rainha,não teria a sorte cruel reservadapara as outras mulheres dodefunto, e, ao mesmo tempo,livrava-se das mais novas, dequem ela, primeira em data, tinhacom certeza motivos para se

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lastimar. Este resultado convinhaparticularmente ao temperamentoferoz da megera. Fez poisanunciar, ao som de chavelhos de“codu” e de marimbas, que ofuneral do defunto rei serealizaria na tarde do dia seguintecom todas as cerimônias doestilo.

Não houve um únicoprotesto, nem da gente da corte,nem dos indígenas. Alves e outrostraficantes de escravos nadatinham a recear pela exaltação darainha Moina. Com algunspresentes e lisonjas facilmente asubmeteriam à sua influência. A

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herança real transmitia-se, pois,sem dificuldades. Só no harémhouve terror, e não foi sem razão.

No mesmo dia, deu-seprincípio aos trabalhospreparatórios do funeral. Naextremidade da rua principal deKasonde corria uma ribeiraprofunda e torrencial: era umafluente do rio Cuango. Tratou-sede desviar o curso da ribeira, afim de lhe descobrir o leito, paranele se cavar a sepultura do rei.Depois do enterro, a ribeiratornaria a seguir o seu antigocurso.

Os indígenas construíram

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uma espécie de dique, queobrigou a ribeira a formar umleito provisório, atravessando aplanície de Kasonde. No fim dafúnebre cerimônia, romper-se-iao dique, e a torrente retomaria oseu antigo caminho.

Negoro destinava DickSand para complemento donúmero de vítimas que deviamser sacrificadas sobre a sepulturado rei. Vira o ímpeto de cólera dojovem prático quando Harris lhenotificou a morte de Mrs. Wel-don e de Jack. Negoro, que eramau, mas covarde, não se expôs ater a mesma sorte que o seu

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cúmplice. Agora, porém, empresença de um prisioneiro bemamarrado de pés e mãos, supôsque nada tinha a recear, eresolveu ir visitá-lo. Era Negoroum desses miseráveis que se nãocontentam só com as torturas dassuas vítimas. Querem o gozo deas ver sofrer.

Foi, pois, pelo meio-diaao barracão onde Dick Sandestava guardado à vista; ali,rigorosamente amarrado, jazia oprático, quase privado dealimentos, havia vinte e quatrohoras, enfraquecido pelasprivações passadas, torturado

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pelas cordas que lhe apertavamas carnes, podendo apenas voltar-se, mas aguardando a morte, pormais cruel que fosse, como o fimde tantos sofrimentos.

Contudo, vendo Negoro,sobressaltou-se. Fez um esforçoinstintivo para quebrar os nós queo impediam de se lançar sobreaquele miserável e vingar-sedele; mas nem Hercule seriacapaz de os quebrar.Compreendeu que um outrogênero de luta se ia travar entreambos e, armado de paciência,Dick Sand limitou-se a olhar paraNegoro, fitamente, decidido a não

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lhe dar a honra de uma resposta,dissesse ele o que dissesse.

— Julguei do meu dever— disse Negoro, para darprincípio à conversação — vircumprimentar ainda mais esta vezo meu jovem comandante, e dizerquanto sinto que não governe aquicomo governava a bordo do“Pilgrim”.

Mas vendo que Dick Sandnão respondia, continuou: — Oque ocorrerá no caso de que nãoconheça o seu antigo cozinheiro,capitão? Saiba que venho receberas suas ordens, e perguntar-lhe oque quer almoçar.

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Ao mesmo tempo Negoroempurrava brutalmente com o péo jovem prático, que estavaestendido no chão.

— Tenho também —acrescentou Negoro — umapergunta a fazer-lhe, meu jovemcapitão. Poderá, finalmente,explicar-me como foi que,querendo ir para a costa daAmérica, veio parar à costa deAngola?

Dick Sand não carecia daspalavras de Negoro paracompreender o que já tinhaadivinhado, quando reconheceuque a agulha do “Pilgrim” fora

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desviada por aquele malvado. Apergunta de Negoro equivalia auma confissão. Dick Sandrespondeu-lhe com desdenhososilêncio.

— Deve confessar,capitão, que foi uma felicidadeter encontrado a bordo ummarinheiro como o que encontrou.Onde estaríamos agora se nãofosse ele! Em vez de morrersobre os escolhos para onde oatirasse o temporal, o capitãochegou, por favor dele, a porto desalvamento, e, se a alguém deve oestar em lugar seguro, é a essemarinheiro, que o meu capitão

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teve o mau gosto de desprezar.Falando desta maneira,

Negoro, cujo sossego aparenteera o resultado de imensoesforço, chegara por tal modo acara a Dick Sand, e tão ferozestava que parecia até quererdevorá-lo. O furor daquele patifenão se podia reprimir por maistempo.

— A cada um a sua vez!— exclamou ele repentinamente,no paroxismo de violentaagitação, que mais lhe excitava apassividade da sua vítima. —Hoje sou eu o comandante, sou euo senhor! A tua carreira e a tua

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vida estão nas minhas mãos!— Pois dispõe dela —

respondeu-lhe Dick Sand, sem sealterar. — Fica sabendo, porém,que há no céu um Deus quecastiga todos os crimes, e a tuapunição não tarda!

— Se Deus se ocupa doshomens, é tempo que pense em ti.

— Estou pronto paraaparecer ante o Supremo Juiz —retorquiu friamente Dick Sand. —Não temo a morte.

— Isso veremos! — gritouNegoro. — Contas talvez comalgum socorro! Socorro emKasonde, onde Alves e eu somos

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poderosos. Estás louco! Imaginastalvez que os teus companheirosainda aqui estão, o velho Tom eos outros! Desengana-te! Hámuito tempo que foram vendidose que partiram para Zanzibar.Muito felizes serão se nãomorrerem por esses caminhos!

— Deus tem muitos meiosde administrar a sua justiça —replicou Dick Sand. — O menorinstrumento lhe basta. Herculeestá livre.

— Hercule! — exclamouNegoro, batendo com o pé nochão. — Esse há muito quemorreu às garras dos leões e das

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panteras, e só lastimo que as ferastivessem adiantado a minhavingança.

— Se Hercule morreu —volveu-lhe Dick Sand — , Dingovive ainda. Um cão como Dingo éde mais para matar um homem datua casta. Conheço-te bem,Negoro, não és valente. Dingoprocura-te, há de achar-te, e entãomorrerás despedaçado por ele.

— Maldito! — exclamou,cheio de desespero, o ex-cozinheiro. — Maldito! Dingomorreu com um tiro que lhedisparei! Está morto como Mrs.Weldon e o seu filho, e como hão

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de morrer todos os náufragos do“Pilgrim”!...

— E como tu morrerástambém, não tardará muito tempo!— respondeu Dick Sand, cujoolhar tranquilo fazia empalidecerNegoro.

Este, fora de si, estevequase a passar das palavras àsações e a estrangular por suaspróprias mãos o seu prisioneirodesarmado. Tinha-se lançadosobre ele e sacudia-oenraivecido. Repentina reflexão,porém, o fez parar. Compreendeuque ia matar a sua vítima, quetudo acabaria ali, e que por tal

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modo lhe poupava vinte e quatrohoras de torturas que lhe haviapreparado. Levantou-se, dissealgumas palavras ao guarda, queficara impassível, e,recomendando-lhe que vigiassebem o prisioneiro, saiu dobarracão.

Em vez de o abater, estacena fez recuperar a Dick Sandtoda a força moral, de cujainfluência se ressentiu a suaenergia física. Negoro,agarrando-se a eledesesperadamente, teria de algummodo alargado as cordas que atéentão lhe impossibilitavam

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qualquer movimento? É provável,porque Dick Sand percebeu queos seus membros se moviammelhor do que antes da chegadado seu algoz. O jovem prático,sentindo-se aliviado, pensou quetalvez fosse possível soltar osbraços sem grandes esforços.Encerrado como estava numaprisão, seria sem dúvida umincômodo, um suplício de menos,mas há momentos na existênciaem que o menor bem-estar temgrande valor.

Dick Sand nada esperava.Nenhum socorro humano lhepodia vir senão de fora; mas de

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onde? Estava, pois, resignado.Não lhe interessava viver.Pensava naqueles que haviammorrido antes dele e só aspiravaa encontrá-los na outra vida.Negoro repetia-lhe o que Harrisjá lhe havia dito: isto é, que Mrs.Weldon e Jack tinham sucumbido.Era verosímil que Hercule,exposto a tantos perigos, tivessesofrido morte cruel! Tom e osseus companheiros estavam jálonge, e era crível que parasempre perdidos para Dick Sand.Esperar outra coisa que não fosseo fim dos seus sofrimentos, pelamorte que não lhe podia ser mais

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terrível do que lhe era a vida,seria grande loucura. Preparava-se, pois, para morrer, entregando-se a Deus e rogando-lhe que lhedesse coragem para chegar ao fimdos seus tormentos sem fraquejar.É grande e inefável o prazer quese sente em pensar em Deus. Nãoé em vão que se eleva a almaÀquele que tudo pode; e, quandoDick Sand acabou a sua súplica,percebeu que, se fosse possívelpenetrar até ao mais fundo do seucoração, ver-se-ia talvez umtênue raio de esperança, que a umsopro divino podia transformar-se em brilhante luz.

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Decorreram horas. Veio anoite. Os raios do dia, que sefiltravam através do colmo dobarracão, foram-se pouco a poucoenfraquecendo e apagando. Osúltimos ruídos da “tchitoka”, quedurante aquele dia estivera maissilenciosa, depois do horrorosoalarido da véspera, extinguiram-se também. Havia profundaobscuridade no interior daacanhada prisão. Dentro de poucotempo tudo repousaria na sanzalade Kasonde.

Dick Sand dormiu umpequeno sono reparador, quedurou duas horas. Depois acordou

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refeito. Conseguiu desprender umdos braços, já um pouco inchado,e sentiu enorme prazer em oestender e encolher à vontade.

A noite devia estar emmeio. O guarda dormiaprofundamente, devido a umagarrafa de aguardente, cujogargalo segurava ainda. Oselvagem tinha-a bebido até àúltima gota. Dick Sand lembrou-se então de se apoderar das armasdo seu carcereiro, as quais lhepodiam ser de grande auxíliodado o caso de evasão; mas,quando assim pensava, julgououvir esgaravatar levemente na

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parte inferior da porta dobarracão. Com a ajuda do braçoque tinha livre conseguiu arrastar-se até ao umbral, sem que oguarda acordasse.

Dick Sand não seenganara: continuava o mesmoruído, mas mais distintamente.Parecia que da parte de foraescavavam o terreno por debaixoda porta.

“Hercule! Se fosseHercule!”, pensou o jovemprático, e os seus olhos fixaram-se sobre o guarda: estava imóvel,dormia profundamente. DickSand, aproximando a boca do

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limiar da porta, atreveu-se amurmurar o nome de Hercule. Umgemido, como um latido abafadoe lamentoso, foi a resposta queteve.

“Não é Hercule”, disseconsigo mesmo Dick Sand, “éDingo! Pressentiu-me nestebarracão! Dar-se-á o caso quetraga algum bilhete de Hercule?Mas se Dingo não morreu, mentiuNegoro, e talvez que...”

Neste momento passou pordebaixo da porta uma pata de cão.Dick agarrou-a e reconheceu queera de Dingo. Mas se ele tivesseum bilhete, só ao pescoço o devia

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ter. Como faria? Seria possívelaumentar o buraco para quepudesse passar a cabeça deDingo? Fosse como fosse,convinha experimentar.

Mas apenas Dick Sandcomeçou a escavar a terra com asmãos ouviram-se na praça latidosque não eram de Dingo. O fielanimal fora descoberto pelos cãesindígenas e teve sem dúvida defugir. Estrondearam no ar algumasdetonações. O guarda estava meioacordado. Dick Sand, nãopodendo já pensar em se evadir,porque o sinal de alarme estavadado, voltou novamente para o

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seu canto, e, depois decrudelíssima espera, viu,finalmente, brilhar o dia, que paraele devia ser o último.

Durante todo este dia asepultura cavava-se com grandeatividade. Muitos indígenastrabalhavam nela sob a direçãodo primeiro-ministro da rainhaMoina. Devia estar tudo prontopara a hora marcada, sob pena demutilação, porque a novasoberana prometia seguir, pontopor ponto, todos os métodos dodefunto rei.

Foram desviadas as águasdo ribeiro, e foi no seu leito,

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completamente seco, que a grandecova se abriu. Tinha dez pés deprofundidade, sobre cinquenta decomprido e dez de largura.

Pelo fim do diacomeçaram a juncar-lhe o fundo ea revestir-lhe as paredes commulheres vivas, escolhidas entreas escravas de Moini Lunga.Habitualmente, estas escravas sãoenterradas vivas. Màs, em razãoda extraordinária e quasemilagrosa morte de Moini Lunga,decidiu-se que elas morressemafogadas juntas ao corpo do seusenhor(1).

*1. Não se imagina o que

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são estas horríveis hecatombesnas tribos do centro da Áfricaquando se trata de honrardignamente a memória de umpoderoso chefe. Cameron refereque mais de cem vítimas foramsacrificadas no funeral do rei deKasonde.

É também de uso que o reidefunto, antes de ser metido nasepultura, seja vestido com o seumais rico vestuário. Mas destavez, porque da real pessoa apenasrestavam alguns ossos calcinados,era mister proceder de outromodo. Fez-se um manequim, querepresentava suficientemente, e

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talvez com vantagem, MoiniLunga, e meteram-se-lhe dentroos restos que o fogo poupara.Revestiu-se depois com o fatoreal, o espólio, que, como sesabe, nada valia, e puseram-se-lhe, como ornamento, os óculosde primo Bénédict. Havia nestamáscara alguma coisa de cômicoe de horrendo.

A cerimônia devia fazer-seà luz dos archotes e com grandeaparato. A ela devia assistir todaa população de Kasonde,indígena ou não.

Assim que veio a noite, umlongo cortejo desceu pela rua

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principal, desde a “tchitoka” atéao lugar onde estava cavada asepultura. Gritos, dançasfúnebres, feitiços dos mágicos,bulha de instrumentos, detonaçõesde velhos mosquetes, nadafaltava.

José António Alves,Coimbra, Negoro, os traficantesárabes como os seus condutores,engrossavam as alas de povo deKasonde. Ninguém deixara aindao grande “lakoni”. Não opermitira a rainha Moina, e nãoseria prudente infringir as ordensdaquela que começava a exercero papel de soberana.

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O corpo do rei, deitadonum palanquim, ia no fim docortejo, rodeado pelas suasconcubinas de segunda categoria,algumas das quais oacompanhariam para além davida. A rainha Moina, vestida degala, caminhava atrás do que sepode talvez chamar esquife. Eranoite escura quando chegaram àsmargens da ribeira, mas osbrandões de resina, agitados poraqueles que os levavam,Rançavam sobre a multidãosinistros clarões.

Viu-se então distintamentea cova. Estava alcatifada com

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corpos de negras ainda vivas,porque se Viam mexer sob ascadeias que as prendiam ao solo.Cinquenta escravas aguardavamali que a torrente voltasse para oseu antigo leito, correndo sobreelas. A maior parte eram novas e,se umas estavam resignadas emudas, outras soltavam gemidos.

As concubinas do rei quedeviam perecer, ornadas como sefossem para uma festa, tinhamsido escolhidas pela própriarainha.

Uma das vítimas, a queusava o título de segunda mulher,curvou-se sobre as mãos e

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joelhos, para servir de cadeirareal, assim como fazia durante avida do monarca; a terceiraesposa sustentou o manequim,enquanto a quarta se deitava aospés em guisa de almofada.

Em frente do manequim, naextremidade da vala, saía da terraum poste pintado de encarnado.Nele estava um branco, que se iatambém contar entre as vítimasdaquela ostracíssima cerimônia.

Era Dick Sand. No seucorpo, meio nu, viam-se os sinaisdas torturas que lhe haviam sidoinfligidas por ordem de Negoro.Ligado ao poste, esperava a

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morte como quem só na outravida tem esperança!...

Não chegara, porém, aindao momento em que se deviaromper o dique.

A um sinal da rainha, aquarta esposa, a que estavadeitada aos pés do rei, foidegolada pelo carrasco deKasonde, e o sangue da vítimacorreu na cova. Foi o princípiode uma horrorosa cena decarnificina. Cinquenta escravascaíram sob os cutelos dosexecutores; no leito do ribeirocorreram ondas de sangue.

Durante meia hora os

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gritos das vítimas confundiram-secom as vociferações da multidão,e em vão se procuraria entreaquela gente um sentimento deindignação ou de pena.

Finalmente, a rainhaMoina fez um aceno, e a barreiraque retinha as águas superiorescomeçou a abrir-se pouco apouco. Com requintada maldade,deixaram filtrar a corrente, emvez de a precipitar por meio deuma grande ruptura. A morte lentaem vez da morte rápida.

A água cobriuprimeiramente o tapete deescravas que enchiam o fundo da

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sepultura. Viram-se as horríveisoscilações daquela gente aindaviva, lutando contra a asfixia.Viu-se também Dick Sand,submerso até aos joelhos, tentarum derradeiro esforço paraquebrar as correntes que oprendiam.

Mas a água subia, subiasempre. As últimas cabeçasescondeu-as a torrente, queretomava o seu antigo curso, e jánão havia sinal de que no fundodaquela ribeira se cavara umavala onde cem vítimas tinhamperecido em honra do rei deKasonde.

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A pena se recusaria atraçar tais quadros se o amor pelaverdade não impusesse o deverde descrevê-los com toda a suaexecrada realidade. Ahumanidade está ainda, naquelastristes regiões, como a pintamos.Convém que todos o saibam.

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CAPÍTULO XIII

O INTERIOR DE UMA

FEITORIA Harris e Negoro tinham

mentido quando disseram queMrs. Weldon e Jack estavammortos. Ela, Jack e primoBénédict achavam-se então emKasonde.

Depois do assalto ao

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formigueiro, foram levados paraalém do acampamento do Cuanzapor Harris e Negoro,acompanhados por doze guardasindígenas.

Um palanquim (“kitanda”),então em uso, serviu paratransportar Mrs. Weldon e opequenino Jack. Porque eramtantos os cuidados da parte de umhomem como Negoro?

Mrs. Weldon não seatrevia a explicá-los.

Rapidamente e sem fadigase fez a jornada desde o Cuanzaaté Kasonde. Primo Bénédict, aquem as desgraças não pareciam

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abalar, caminhava bem. Como odeixavam ver à vontade, para ume outro lado, não se queixava. Opequeno rancho chegou, pois, aKasonde, oito dias antes dacaravana de Ibn Hamis. Mrs.Weldon, com o filho e primoBénédict, foi recolhida na feitoriade Alves.

Jack estava muito melhor.Logo que saiu da regiãopantanosa, onde fora atacadopelas febres, foi o seu estadopouco a pouco melhorando, eestava bem. Nem ele nem sua mãeteriam podido suportar as fadigasda caravana. Nas condições,

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porém, em que fizeram a últimajornada, durante a qual não lhesrecusaram um certo número decuidados, o seu estado erasatisfatório, pelo menosconsiderado fisicamente.

Dos seus companheirosnão teve Mrs. Weldon notícias.Depois de ter visto Hercule,fugindo, embrenhar-se pelafloresta, nunca mais soube dele.Pelo que respeita a Dick Sand,esperava, porque Harris e Negoronão estavam com ele, que a suaqualidade de homem branco lheevitaria maus tratamentos. Nan,Tom, Bat, Agostinho e Acteon,

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por serem negros, era crível quecomo tais fossem tratados! Pobregente, que bom lhe fora nunca terpisado aquela terra da África,onde a traição os lançara!

Quando a caravana de IbnHamis chegou a Kasonde, Mrs.Weldon, porque estavaincomunicável, nada pôde saber.

Os ruídos do “lakoni” emnada a instruíram. Soube apenasque Tom e os seus camaradastinham sido vendidos a umtraficante de Ujiji e quebrevemente partiriam. Não teve,porém, conhecimento, nem dosuplício de Harris, nem da morte

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do rei Moini Lunga, nem dascerimônias do régio funeral, quehaviam juntado Dick Sand aonúmero das vítimas.

A desgraçada senhoraachava-se, pois, só em Kasonde,à mercê dos negreiros e em poderde Negoro. Para lhes escapar nãopodia, sequer, pensar na morte,porque tinha consigo o filho!

Mrs. Weldon ignoravacompletamente a sorte que aesperava. Durante o tempo dajornada do Cuanza a Kasonde,nem Harris nem Negoro falaramcom ela.

Depois da chegada nunca

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mais os tornara a ver, e não podiaela sair do cercado que fechava afeitoria do rico negreiro.

Será necessário dizer queMrs. Weldon não teve auxílio deespécie alguma de primoBénédict? É fácil supor-se quenão teve.

Logo que o digno sábiosoube que não estava nocontinente americano, comojulgava, não se inquietou eminvestigar a razão de talacontecimento. Não pensou nisso!

O seu primeiro sentimentofoi de despeito. E, com efeito, osinsetos que imaginou ter sido o

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primeiro a ver na América, astsé-tsé, e muitos outros, eramsimplesmente hexápodesafricanos, que muitos naturalistasantes dele haviam já descobertonos lugares donde tais insetos sãooriundos.

Adeus, pois, sonhadaglória de ligar o nome a tãograndes descobertas! Que poderiahaver de maravilhoso no quefizera primo Bénédict: classificarinsetos africanos, estando naÁfrica?

Mas, passado o primeiroímpeto de despeito, primoBénédict a si mesmo disse que a

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“Terra dos Faraós” — teimavaele em lhe chamar assim —possuía incomparáveis riquezasentomológicas, e que por nãoestar na “Terra dos Incas” nãoperdera com a troca.

— Ah! — repetia ele a simesmo e a Mrs. Weldon, que o -não ouvia. — É a pátria dasmanticoras, coleópteros de pernascompridas e aveludadas, clitosligados e cortantes, grandesmandíbulas, e a mais notável dasquais é a manticora tuberculosa!É o país dos colosonos de pontasdouradas — auropuntactus; doscetonirs polyphemas da Guiné e

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do Gabão, cujas pernas sãoguarnecidas de serras; das anthiasmosqueadas, que põem os ovosnas cascas dos caracóis; dosateuchgus sagrados, que oshabitantes do Alto Egiptoveneravam como deuses. É daquique são oriundas as acheronteasatropos, já tão espalhadas portoda a Europa, e essas IdiasBigoti, cuja mordedura é muitotemida pelos naturais da costa doSenegal. Há aqui, sem dúvida,importantes achados que fazer, efá-los-ei eu se esta “boa gente”me deixar.

Sabe-se quem era a “boa

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gente” de quem primo Bénédictnão achava motivo de se queixar.Como ficou dito, o entomologistagozara na companhia de Negoro ede Harris de certa liberdade, quelhe não fora consentida por DickSand, durante a viagem desde acosta até ao Cuanza. O ingênuosábio estava, pois, muito gratopor tal condescendência.

Enfim, primo Bénédictteria sido o mais feliz dosentomologistas se não fosse aperda que tivera, para ele tãosensível. Conservava a caixa defolha, mas os óculos já lhe nãopousavam no nariz, nem a lente

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lhe pendia do pescoço!Ora, um naturalista, sem

lente e sem óculos, não secompreende. Mas primo Bénédictnão tornaria a ver estes doisaparelhos de óptica, porqueambos haviam sido enterradoscom o real manequim.

Assim, pois, quandoapanhava algum inseto, eraobrigado a metê-lo pelos olhos,para lhe distinguir asparticularidades maiselementares. Ah! Era isto motivode grande amargura para primoBénédict, que por bom preço teriapago um par de óculos, se este

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artigo se encontrasse à venda nosmercados de Kasonde. Apesar detudo, porém, primo Bénédictpodia andar livremente na feitoriade José António Alves. Sabiamque ele era incapaz de tentarfugir. Demais a mais, umaestacada alta separava a feitoriado resto da sanzala, estacada quenão era fácil de saltar.

Mas este bem segurocerrado não tinha menos de umamilha de circunferência. Árvorese arbustos de espécies peculiaresda África, ervas altas, algunsdelgados cursos de água, o colmodos barracões e das cubatas, era

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quanto bastava para conter osraros insetos do continente efazer, se não a riqueza, pelomenos a felicidade de primoBénédict. Efetivamente descobriualguns hexápodes, e esteve quaseperdendo a vista por ter queridoestudá-los sem óculos, masconseguiu, enfim, aumentar a suapreciosa coleção e lançar osfundamentos de uma grande obrasobre a entomologia africana.Quisesse a sua boa estrela que eledescobrisse um inseto, a queligasse o seu nome, e nada maisambicionaria neste mundo.

Se a feitoria de Alves era

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suficientemente espaçosa para asexcursões científicas de primoBénédict, parecia imensa aopequeno Jack, que podia correrpor ela à vontade.

Mas a pobre criancinhaprocurava pouco os brinquedostão naturais na sua idade.

Raras vezes deixava amãe, que não gostava de o deixarsó, receando sempre algumadesgraça. Jack falava frequentesvezes de seu pai, que de longadata não via! Pedia que olevassem para junto dele.Perguntava por todos, pela velhaNan, pelo seu amigo Hercule, por

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Bat, Agostinho, Acteon e porDingo, que parecia tê-lo tambémabandonado. Queria ver o seucamarada Dick Sand. A sua tenraimaginação vivia apenas destasrecordações. Às perguntas deJack, Mrs. Weldon respondiaabraçando o filho e cobrindo-o debeijos. Tudo o que podia fazerera não chorar diante dele!

Contudo, Mrs. Weldon nãodeixava de notar que, se os maustratamentos lhe tinham sidopoupados durante a viagem doCuanza até ali, nada indicava quena feitoria de Alves mudassem deconduta a seu respeito. Aqui, só

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havia os escravos ocupados noserviço do negreiro. Todos osmais, os que eram objeto decomércio, tinham sido metidosnos barracões da “tchitoka” evendidos depois aos corretoresvindos do interior. Naquelaocasião os armazéns da feitoriatrasbordavam de fazendas e demarfim, aquelas destinadas paraas permutações nas províncias docentro, este para ser exportadopara os principais mercados docontinente.

Em poucas palavras, nafeitoria havia pouca gente. Mrs.Weldon ocupava com Jack uma

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cubata especial, e primo Bénédictuma outra. Não comunicavamcom os criados do negreiro.Comiam juntos. A alimentação,que se compunha de carne decabra ou de carneiro, legumes,mandioca, inhame e frutos daregião, era abundante. Halima,jovem escrava especialmentedestinada ao serviço de Mrs.Weldon, testemunhava-lhe, comosabia e podia, uma certa afeiçãoselvagem, mas sincera.

Mrs. Weldon raras vezesvia José António Alves, queocupava a casa principal dafeitoria, e nunca via Negoro, que

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estava alojado fora, mas cujaausência era bastanteinexplicável.

Tal reserva não deixava deespantá-la e inquietá-la ao mesmotempo.

“Que quer ele? Que esperaele?”, pensava Mrs. Weldon.“Porque nos trouxe paraKasonde?”

Assim se passaram os oitodias que precederam a chegadada caravana de Ibn Hamis, isto é,os dois dias antes das cerimôniasfúnebres, e finalmente os seisdias seguintes.

No meio de tantas

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ansiedades, Mrs. Weldon nãopodia esquecer que o seu maridodevia estar aflitíssimo, vendo quenem a sua mulher nem o seu filhochegavam a São Francisco.

Mr. Weldon não podiasaber que sua mulher tinharesolvido embarcar-se a bordo do“Pilgrim”, e devia acreditar, pelocontrário, que ela teria tomadopassagem em um dos vapores dacompanhia transpacífica. Osvapores chegavam regularmente,e nem Mrs. Weldon, nem Jack,nem primo Bénédict vinham abordo. Também já era tempo parao “Pilgrim” estar fundeado no

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porto da chegada. Como, porém,não aparecia, James Weldondevia classificá-lo entre osnavios considerados perdidos porfalta de notícias. E que terrívelgolpe seria quando recebesse dosseus correspondentes deAuckland o aviso da partida do“Pilgrim” e do embarque de Mrs.Weldon!

Que teria ele feito? Ter-lhe-ia custado a acreditar que elae o seu filho tivessem perecido nomar! Mas, em tal caso, aondedirigiria ele as suasinvestigações? Evidentementepara as ilhas do Pacífico, e talvez

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para todo o litoral americano.Mas nunca, nunca, lhe acudiria aopensamento que ele tivesse sidolevado para a costa da África!

Assim pensava Mrs.Weldon. Mas que podia elatentar? Fugir? Como? Se avigiavam tanto! E demais, fugir,para se aventurar, por entre asdensas florestas, no meio deperigos sem número, aempreender uma viagem de maisde duzentas milhas para chegar àcosta! Contudo, Mrs. Weldonestava resolvida a fazê-lo se nãose lhe oferecesse outro meio derecuperar a sua liberdade. Antes,

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porém, queria saber com certezaquais eram as intenções deNegoro.

Soube-as enfim.No dia 6 de junho, sete

dias depois do funeral do rei deKasonde, Negoro entrou nafeitoria, aonde ainda não tinha idodepois da sua volta, e dirigiu-separa a cubata ocupada pelaprisioneira.

Mrs. Weldon estava só.Primo Bénédict andava numa dassuas excursões científicas; Jack,vigiado pela escrava Halima,brincava no pátio da feitoria.

Negoro empurrou a porta

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e, sem preâmbulos, informou:— Mrs. Weldon: Tom e os

seus companheiros foramvendidos para os mercados deUjiji.

— Deus os proteja! —respondeu Mrs. Weldon,limpando uma lágrima.

— Nan morreu nocaminho, Dic Sand foi morto...

— Quê? Nan morreu! EDick... também! — exclamouMrs. Weldon.

— Sim, era justo que o seucapitão de quinze anos pagassecom a vida o assassinato deHarris — replicou Negoro. —

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Agora está só em Kasonde,senhora, só em poder do antigocozinheiro do “Pilgrim”,absolutamente só, entende-mebem?...

O que dizia Negoro eraverdade, até no que se referia aTom e aos seus camaradas. Ovelho negro, com seu filho Bat,Acteon e Agostinho, tinhampartido na véspera com acaravana do negreiro de Ujiji,sem terem a consolação de tornara ver Mrs. Weldon, sem saberemmesmo que a sua companheira dedesgraça estava em Kasonde, nafeitoria de Alves. Tinham partido

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para a região dos lagos, viagemque se conta por centenas demilhas, que poucos conseguemfazer e de onde ainda menosvoltam!

— Ah! — murmurou Mrs.Weldon, fitando Negoro e sem lheresponder.

— Mrs. Weldon —continuou o ex-cozinheirosecamente — , podia vingar-meda maneira como fui tratado abordo do “Pilgrim”. Mas a mortede Dick Sand basta parasatisfação da minha vingança.Agora sou negociante,! e eis quaissão os meus projetos a seu

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respeito. Mrs. Weldon fitava-osem lhe dizer nada.

— A senhora — continuouNegoro — , o seu filho e esseimbecil que se diverte a apanharmoscas, têm um certo valorcomercial que eu pretendoaproveitar. Assim, pois, vouvendê-los.

— Sou de raça livre —respondeu Mrs. Weldon comenergia.

— É escrava, porque euquero.

— E quem comprará umabranca?

— Um homem que me dará

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tudo quanto eu lhe pedir(1)...Mrs. Weldon curvou a

cabeça, porque bem sabia quenaquele terrível continente tudoera possível.

— Entendeu-me? —perguntou Negoro.

— Quem é esse homem aquem quer vender-me?

— Vender ou revender...Suponho pelo menos... —continuou Negoro, sorrindo-se.

— O nome desse homem?— insistiu Mrs. Weldon.

— James W. Weldon!— Meu marido! —

exclamou Mrs. Weldon, que não

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podia acreditar no que ouvia.— Sim, Mrs. Weldon, o

seu marido, a quem eu não queroentregar, mas fazer pagar por bompreço, a mulher, o filho e primoBénédict!

Mrs. Weldon perguntava asi mesma se Negoro não lheestaria preparando uma cilada.Contudo pareceu-lhe que elefalava seriamente. Pode-seconfiar num miserável para quemo dinheiro está acima de tudo,quando se trata de negócios, eneste caso tratava-se de umnegócio?

— E quando pensa fazer

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essa operação? — inquiriu Mrs.Weldon.

— O mais cedo possível.— Onde?— Aqui! James W. Weldon

não hesitará em vir até Kasondebuscar a mulher e o filho...

— Não hesitará decerto!Mas quem o avisará?

— Eu! Irei a SãoFrancisco procurar JamesWeldon. E não me faltará dinheiropara fazer a viagem.

— O dinheiro roubado debordo do “Pilgrim”?

— Sim... esse... e outromais — respondeu

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impudentemente Negoro.- — Masse a quero vender com brevidade,quero também vendê-la por bompreço. Julgo que James Weldonnão fará questão de cem mildólares...

— Não, decerto, se ospuder dar — respondeu friamenteMrs. Weldon. — Mas meumarido, a quem decerto dirá queestou retida como prisioneira emKasonde, na África Central...

— Exatamente.— Não o acreditará sem

provas, e não cometerá aimprudência de vir até Kasondefiado unicamente na sua palavra.

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— Virá se eu lhe levaruma carta que Mrs. Weldon lhe háde escrever, e na qual lhe diráqual é a sua situação, e me pintarácomo um servo fiel, fugido aosselvagens...

— Nunca a minha mãoescreverá tal carta — afirmouainda mais friamente Mrs.Weldon.

— Recusa? — exclamouNegoro.

— Recuso!...A lembrança dos perigos

que correria o seu marido vindoaté Kasonde, a pouca confiançaque mereciam as promessas de

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Negoro, a facilidade que esteteria de reter James Weldon,depois de haver recebido o preçoajustado, todas estas razõesfizeram que no primeiro momentoMrs. Weldon, não pensando senãoem si, e esquecendo tudo, atémesmo seu filho, recusasse semhesitar a proposta de Negoro.

— Há de escrever! —teimou Negoro.

— Não... — afirmou outravez Mrs. Weldon.

— Ah! Tome bem conta!— exclamou Negoro.

— Olhe que não está aquisó. O seu filho também está em

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meu poder, e eu bem sei o quetenho a fazer!...

Se Mrs. Weldon quisesseresponder, ser-lhe-ia impossível.O coração batia-lheextraordinariamente. Não podiafalar.

— Mrs. Weldon — avisouNegoro — , pense bem naproposta que lhe fiz. Daqui a oitodias, ou me entregará uma cartadirigida a James Weldon, ou searrependerá se o não fizer!

Dito isto, o ex-cozinheirodo “Pilgrim” retirou-se sem darexpansão à sua cólera; mas erafácil de ver que nada haveria que

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o impedisse de obrigar Mrs.Weldon a obedecer-lhe.

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CAPÍTULO XIV

BREVE NOTÍCIA DO

DR. LIVINGSTONE Quando Mrs. Weldon ficou

só, pensou antes de tudo quedecorreriam ainda oito dias atéque Negoro lhe viesse pedir aresposta definitiva. Era tempobastante para refletir e tomar

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qualquer resolução. Na probidadede Negoro não havia que confiar,mas sim no seu interesse. O valorcomercial que ele dava àprisioneira devia sem dúvidasalvaguardá-la e acautelá-la,temporariamente pelo menos,contra qualquer tentativadesagradável. Talvez que elaconseguisse achar um meio termopelo qual pudesse ser entregue aseu marido sem que este fosseobrigado a vir até Kasonde.James Weldon, vendo uma cartade sua mulher, partiria eafrontaria os perigos de umaviagem através das mais terríveis

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regiões da África. Mas chegadoque fosse a Kasonde, e quandoNegoro tivesse já nas suas mãosos cem mil dólares, que garantiateriam James W. Weldon, suamulher, Jack e primo Bénédict deque os deixariam partir? Não osimpediria qualquer capricho darainha Moina? A entrega de Mrs.Weldon e dos seus não se fariaem melhores condições em umponto determinado da costa,evitando a James W. Weldon osperigos da viagem pelo interior eas dificuldades, para não dizer asimpossibilidades, da volta?

Era no que refletia Mrs.

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Weldon. Foi por isto que recusouaceder imediatamente à propostade Negoro de lhe dar uma cartapara seu marido. Pensava tambémque, se Negoro tinha fixado asegunda visita para daí a oitodias, era, sem dúvida, porquenecessitava desse tempo parapreparar a viagem; senão viriadecerto mais cedo obrigá-la aescrever.

“Pretenderá ele realmenteseparar-me do meu queridofilho?”, murmurava ela.

No mesmo momento, Jackentrou na cubata, e por ummovimento instintivo a mãe

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agarrou-o, como se ali estivesseNegoro para lho arrancar dosbraços.

— Mãe, tens algumdesgosto? — perguntou a criança.

— Não, meu Jack, nãotenho! — respondeu Mrs.Weldon. — Lembrava-me do teupapá! Gostavas de o ver agora?

— Oh, se gostava! Entãoele vem cá?

— Não, não. Não énecessário que ele venha!

— Então vamos nós tercom ele?

— Sim, meu Jack.— Com o meu amigo

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Dick... e Hercule... e o velhoTom?

— Sim... Sim! —respondeu Mrs. Weldon, baixandoa cabeça para esconder aslágrimas.

— O papá escreveu? —perguntou Jack.

— Não, meu querido.— Então é a mamãe que

lhe vai escrever?— Sim... sim... talvez!E, sem o saber, Jack

entrava diretamente nospensamentos de sua mãe, que,para não lhe responder de outromodo, o cobriu de beijos.

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Convém dizer que aosdiversos motivos que levaramMrs. Weldon a resistir àsexigências de Negoro se juntavaum outro, de não pequeno valor.Mrs. Weldon tinha talvez aprobabilidade inesperada, écerto, de ser posta em liberdadesem intervenção de seu marido eaté contra a vontade de Negoro.

Era apenas um vago clarãode esperança, mas era esperança.

Com efeito, algumaspalavras de uma conversação,que ela ouvira dias antes, tinham-lhe deixado antever apossibilidade de socorro em

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época próxima. Podia dizer-seque era um socorro providencial.

Alves e um mestiço deUjiji conversavam a algunspassos da cabana que Mrs.Weldon ocupava. Não é deestranhar que o assunto daconversação destes honradosnegociantes fosse a escravatura.Os dois mercadores de carnehumana falavam de negócios.Discutiam o futuro do seucomércio e mostravam-seinquietos pelos esforços quefaziam os Ingleses para o destruir,não só nas costas marítimas comos cruzadores, mas no interior do

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continente, servindo-se dosmissionários e dos viajantes.

José António Alves era deopinião que as explorações destesatrevidos viajantes se opunham àliberdade das transaçõescounerciais. O seu interlocutortinha absolutamente as mesmasideias, e dizia que essesvisitantes deviam ser todosrecebidos a tiro de espingarda.

Pouco menos lhes fariam,mas, com grande desprazer dosnegociantes, se acaso matassemalguns dos tais curiosos, vinhamlogo outros. Estes, de volta ao seupaís, contavam “exagerando”,

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dizia Alves, os horrores dotráfico de escravos, o que faziagrande mal a este comércio, jámuito decaído.

O mestiço concordava edeplorava, sobretudo pelo quedizia respeito aos mercadores deNyamgué, de Ujiji, de Zanzibar ede toda a região dos lagos. Alitinham ido sucessivamente Speke,Grant, Livingstone, Stanley eoutros. Era uma invasão. Dentroem pouco, a Inglaterra e aAmérica ocupariam todo oterritório.

Alves lastimavasinceramente o seu colega, e

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confessava que as províncias daÁfrica Ocidental tinham sido atéali menos maltratadas, isto é,menos visitadas; mas a epidemiados viajantes ia-se espalhando.Se Kasonde havia sido poupada,não acontecia outro tanto aCaçange e ao Bié, onde Alvespossuía também feitorias. Nãodeve ter-se esquecido que Harrisfalou a Negoro de um certotenente Cameron, que poderia tertalvez o atrevimento de atravessara África de uma costa para aoutra, entrando por Zanzibar, parasair pela província de Angola.

O negreiro tinha, com

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efeito, razões para recear, pois ésabido que, alguns anos depois,Cameron pelo sul e Stanley pelonorte, exploravam essas ignotasprovíncias de oeste e descreviamas grandes atrocidades daescravatura, patenteavam ascumplicidades criminosas dosagentes estrangeiros e faziamrecair toda a responsabilidadesobre quem realmente a deve ter.

Da exploração deCameron e de Stanley nadapodiam saber ainda, nem Alvesnem o mestiço; o que porémsabiam, o que disseram, o queMrs. Weldon ouviu, o que era de

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grandíssimo interesse para ela,numa palavra, o que a firmara narecusa de satisfazerimediatamente às exigências deNegoro, foi o seguinte:

O Dr. Livingstone deviachegar a Kasonde dentro depouco tempo.

Ora a chegada deLivingstone, com a sua escolta, amuita influência que o grandeviajante tinha na África, oconcurso das autoridadesportuguesas de Angola, que nãodeixariam de lhe prestar auxílio,tudo isto podia contribuir parapôr em liberdade Mrs. Weldon e

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os seus, contra a vontade deNegoro e de Alves! Era talvez asua repatriação, em épocapróxima, e sem que James W.Weldon tivesse de arriscar a vidanuma viagem cujo resultado nãopodia deixar de ser mau.

Mas haveria algumaprobabilidade de que o Dr.Livingstone viesse proximamentevisitar esta parte do continente?Havia, porque, seguindo talitinerário, completava aexploração da África Central.

É conhecida a vidaheróica do filho do pequenonegociante de chá de Blantyre,

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vila do condado de Lanark.Nascido em 13 de março de1813, David Livingstone, osegundo dos seis filhos, obteve, àforça de estudar, os diplomas deteólogo e médico, e, depois de terfeito o seu noviciado em LondonMissionary Society, desembarcouem 1840 no Cabo da BoaEsperança, com o intento de sejuntar ao missionário Moffat, naÁfrica Meridional.

Do Cabo passou o futuroviajante para o reino dosBechuanas, que pela primeira vezexplorou, voltou a Kuruman,desposou a filha de Moffat, essa

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valente companheira que tãodigna foi dele, e, em 1843,fundava uma missão no vale deMabotsa.

Quatro anos depois,encontrava-se Livingstoneestabelecido em Kolobeng,duzentas e vinte e cinco milhas aonorte de Kuruman, no reino dosBechuanas.

Dois anos depois, em1849, Livingstone deixavaKolobeng, acompanhado por suamulher, pelos seus três filhos epor mais dois amigos, Oswell eMurray. No dia 1 de Agosto domesmo ano descobria o lago

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Negami e voltava para Kolobengdescendo o Zuga.

Durante esta viagem,Livingstone, contrariado pela mávontade dos negros, nãoconseguira ir além de Negami.Não foi mais feliz na segundatentativa. À terceira devia serbem sucedido. Seguindonovamente a caminho do norte,com a sua família e Mr. Oswell,depois de misérias terríveis, faltade víveres e de água, pensandoque lhe custaria a vida dos seusfilhos, chegou, finalmente,caminhando ao longo do Chobé,afluente do Zambeze, ao reino dos

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Macolobos. O chefe, Sebituane,veio ter com Livingstone aLinyanti. No fim de junho de1851, o Zambeze estavadescoberto, e o doutor voltavapara o Cabo a fim de mandar asua família para Inglaterra.

O intrépido Livingstonequeria ser o único a arriscar avida na difícil viagem que iaempreender.

Propunha-se desta vez,partindo do Cabo, atravessar aÁfrica obliquamente do sul para ooeste e ir a São Paulo de Luanda.

Partiu, com efeito,acompanhado por alguns

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indígenas, em 3 de junho de 1852.Chegou a Kuruman e atravessou odeserto de Kalahari. Em 31 dedezembro entrou em Litubaruba efoi encontrar a terra dosBechuanas assolada pelos Boers,antigos colonos holandeses,senhores do Cabo da BoaEsperança antes de os Inglesestomarem posse dele. Livingstonesaiu de Litubaruba a 15 deJaneiro de 1853, penetrou até aocentro do reino dos Bamanguatose, em 23 de maio, chegou aLinyanti, onde o poderososoberano dos Macololos,Sekeletu, o recebeu com honras.

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Aí, o doutor, retido porintensas febres, entregou-se aoestudo dos costumes da região, epela primeira vez teve ocasião dever os danos que fazia na África ocomércio de escravos. Um mêsdepois desceu o Chobé, viu oZambeze, entrou em Naniele,visitou Katonga e Libonta, chegouao confluente do Zambeze e doLeba, projetando subir por esterio até às possessões portuguesasdo oeste, e voltou a Linyanti parase preparar para tal viagemdepois de nove semanas deausência.

Em 11 de novembro o

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doutor, acompanhado por vinte esete macololos, deixou Linyanti, eem 27 de dezembro chegou àembocadura do Leba. Subiu esterio até ao território dos Balundas,no lugar onde recebe o Makondo,que vem de leste. Era a primeiravez que um homem brancoaparecia naquela região.

Em 14 de janeiro de 1854entrou Livingstone na residênciade Shinte, o mais poderososoberano dos Balundas, que orecebeu bem, e em 26 do mesmomês, depois de haver atravessadoo Leba, chegava até junto do reide Katema. Aí teve igualmente

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boa recepção e daí partiu semdetença a pequena caravana, queem 20 de fevereiro acampou nasmargens do lago Dilolo.

A partir deste ponto,regiões más, exigências dosindígenas, ataques das tribos,revolta dos que o acompanhavame ameaças de morte, tudo sejuntou, tudo conspirou contraLivingstone, e um homem menosenérgico teria sucumbido.

O doutor resistiu sempre, eem 4 de abril chegou às margensdo Cuango, corrente de águacaudalosa a que forma a fronteiradas possessões portuguesas, e,

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caminhando para o norte, lançou-se no Zaire.

Seis dias depoisLivingstone entrou em Caçande,onde Alves o viu, e a 31 de Maiochegou a São Paulo de Luanda.

Pela primeira vez, edepois de dois meses de viagem,era a África atravessadaobliquamente do sul para o oeste.

Em 24 de setembro domesmo ano, David Livingstonedeixou Luanda e, seguindo pelamargem direita do Cuanza, rioque tão funesto foi a Dick Sand eaos seus companheiros, chegou àconfluência do Lombe,

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encontrando numerosas caravanasde escravos, tornou a passar porCaçande, de onde partiu a 20 defevereiro de 1855, atravessou oCuango e entrou no Zambeze emKawawa. Em 8 de junho tornou aencontrar o lago Dilolo, foi aShinte, desceu o Zambeze e deuentrada em Linyanti, de ondepartiu em 3 de novembro.

A segunda jornada emdireção à costa oriental deviacompletar a viagem através daÁfrica do oeste para leste.

O Dr. Livingstone, depoisde ter visto a famosa catarataVitória, o “fumo ruidoso”, deixou

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o Zambeze para se dirigir aonordeste. Atravessou o territóriodos Batocas, indígenasembrutecidos pelo fumo docânhamo, visitou Semalembue,chefe poderoso, atravessou oKafue, voltou ao Zambeze, visitouo rei Beburuma, viu as ruínas deZumbo, antiga cidade portuguesa,encontrou-se em 17 de Janeiro de1856 com o chefe Mepende, queentão estava em guerra com osPortugueses, e chegou finalmentea Tete, nas margens do Zambeze,no dia 2 de Março. Tais foram osfatos mais notáveis desteitinerário.

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Em 22 de abril,Livingstone deixou esta região,tão rica outrora, desceu até aodelta do rio e chegou a Quelimaneem 20 de maio, quatro anosdepois de ter partido do Cabo.Em 12 de julho embarcou para asilhas Maurício e em 22 dedezembro voltou a Inglaterra, aocabo de dezasseis anos deausência.

Prémios da Sociedade deGeografia de Paris, a primeiramedalha da Sociedade deGeografia de Londres, recepçõesbrilhantes, nada faltou ao ilustreviajante.

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No seu lugar outros teriampensado que o repouso lhes eradevido. Não o julgou assim odoutor, e no dia 1º de Março de1858 partiu novamente,acompanhado por seu irmãoCharles, pelo capitãoBedindfield, pelos Drs. Kirk eMeller e por Mr. Thornton e Mr.Baines, chegando em maio à costade Moçambique, tendo por fim oreconhecimento do vale doZambeze.

Alguns destesexploradores não deviam voltardesta viagem.

Um pequeno vapor, o

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“MacRobert”, permitiu aosexploradores subir o grande rio,entrando pela boca do Kangone.Chegaram a Tete em 8 desetembro. Reconheceram emjaneiro de 1859 o curso inferiordo Zambeze e do Chire, seuafluente na margem esquerda,visitaram o lago Chirua em abril,exploraram o território dosManguenjas, e descobriram olago Niassa em 10 de setembro,voltando às cataratas Vitória em 9de agosto de 1860.

Em 31 de janeiro de 1861,Mackenzie e os missionários queo acompanhavam chegaram ao

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Zambeze; em março fez-se aexploração do Rovuma, a bordodo “Pioner”; em setembro de1861 voltaram ao lago Niassa,onde ficaram até fins de outubro.Em 30 de janeiro de 1862 chegouMrs. Livingstone em outro vapor,o “Lady Niassa”. Tais foram osfatos mais notáveis da segundaexpedição. A este tempo já obispo Mackenzie e um dosmissionários tinham sucumbidopela ação do clima, e, em 27 deabril, Mrs. Livingstone morreunos braços do marido.

Em maio tentou o doutorfazer segundo reconhecimento do

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Rovuma, e nos fins de novembroentrou no Zambeze, subiu oChobé, perdeu o seu companheiroThornton em abril de 1863, emandou para a Europa o seuirmão Carlos e o Dr. Kirk,extenuados pelas doenças. A 10de Novembro viu pela terceiravez o Niassa, do qual completouo estudo hidrográfico. Três mesesdepois voltou novamente à foz doZambeze, de passagem paraZanzibar, e em 20 de julho de1864, depois de cinco anos deausência, chegou a Londres epublicou o livro Exploração doZambeze e dos seus afluentes.

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Em 28 de janeiro de 1866,Livingstone desembarcou de novoem Zanzibar; começava então asua quarta viagem.

Em 8 de agosto, depois deter assistido às terríveis cenasque o comércio de escravosproduzia naquela ilha, o doutor,levando apenas consigo, destavez, alguns sipaios e negros,estava novamente em Mokalaose,nas margens do Niassa. Seissemanas depois a maior parte dagente que o acompanhava fugiu,voltando a Zanzibar, onde seespalhou o falso boato da mortede Livingstone.

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Este, porém, não recuava.Queria visitar as terras queficavam entre o Niassa e oTanganica. Em 10 de dezembro,guiado por alguns indígenas,atravessou a ribeira de Loangula,e em 2 de abril do ano seguintedescobriu o lago Liemba. Aíesteve um mês entre a vida e amorte. Apenas restabelecido, em30 de agosto chegou ao lagoMoero, do qual viu toda amargem setentrional, e em 21 denovembro entrou em Cazembe,onde esteve quarenta dias,durante os quais por duas vezesrenovou a sua exploração ao lago

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Moero.De Cazembe, Livingstone

caminhou para o norte com odesígnio de chegar à importantecidade de Ujiji, no Tanganica.

Contrariado pelas cheias eabandonado pelos guias, teve devoltar a Cazembe. Desceu para osul em 6 de julho de 1868, e seissemanas depois estava no grandelago de Banguelo. Ali se demorouaté 9 de agosto, tentando entãonova marcha para o Tanganica.

Que viagem! A partir de 7de janeiro de 1869, a fraqueza doheroico doutor era tal que tinhamde transportá-lo.

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Em fevereiro chegou aolago e entrou em Ujiji, ondeencontrou alguns objetos que lhehaviam sido enviados pelaCompanhia Oriental de Calcutá.

Livingstone tinha entãouma única ideia: descobrir asorigens ou o vale do Nilo,subindo o Tanganica.

Em 21 de setembro estavaem Bambarre, no Manyema,região de canibais; pouco depoischegou ao Lualaba — o Lualabaque Cameron suspeitaria eStanley descobriria ser o AltoZaire ou Congo. Em MamohelaLivingstone esteve doente oitenta

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dias, tendo apenas trêsempregados. Em 21 de julho de1871 voltou para o Tanganica, esó em 23 de outubro estava devolta a Ujiji. Era um esqueleto.

Antes desta época, porém,havia muito que não se recebiamnotícias do famoso viajante. NaEuropa julgavam-no morto. Opróprio Livingstone chegou aperder a esperança de sersocorrido.

Onze dias depois da suachegada a Ujiji, em 3 denovembro, ouviram-se muitostiros de espingarda a cerca de umquarto de milha do lago. O doutor

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apressou-se a ir ver. Um homembranco apareceu diante dele.

— Doctor Livingstone, Ipresume...

— Dr. Livingstone, eusuponho...

— Sim — respondeu este,tirando o boné com um sorrisobenevolente.

E apertaram as mãos comefusão.

— Dou graças a Deus portê-lo encontrado!

— E eu considero-memuito feliz em me achar aqui pararecebê-lo.

Era o americano Stanley,

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correspondente do New YorkHerald, que Mr. Bennett, diretordo jornal, enviara em busca deDavid Livingstone.

No mês de outubro de1870, este americano, semhesitar, sem alardear, massimplesmente como um herói,embarcou em Bombaim comdestino a Zanzibar, e, seguindoproximamente o itinerário deSpeke e Burton, depois de grandenúmero de provações e tendomuitas vezes a vida em granderisco, chegou a Ujiji.

Os dois viajantes, jáamigos, fizeram então juntos uma

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expedição ao norte do Tanganica.Embarcaram, foram até o CaboMalaga, e, depois de minuciosaexploração, concordaram que ogrande lago tinha pordesaguadouro um dos afluentes doLualaba. Foi isto mesmo queCameron e o próprio Stanleydeterminaram poucos anosdepois.

Em 12 de dezembro, o Dr.Livingstone e o seu companheiroestavam novamente em Ujiji.

Stanley dispôs-se a partir.Em 27 de dezembro, ao cabo deoito dias de navegação, o doutore Stanley chegaram a Urimba, e

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em 23 de fevereiro do anoseguinte entravam em Kuihara.

O dia 12 de março foi o dadespedida.

— Fez o que poucoshomens seriam capazes de fazer— disse o doutor ao seucompanheiro —, e muito melhordo que alguns viajantes notáveis.Fico-lhe muito obrigado. Deus oacompanhe, meu amigo, e oabençoe!

— Permita Ele — desejouStanley, apertando a mão deLivingstone — que o nosso carodoutor volte são e salvo.

Stanley separou-se

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rapidamente, voltando-se paraesconder as lágrimas.

— Adeus, doutor! Adeus,caro amigo! — disse com vozsufocada.

— Adeus — respondeufracamente Livingstone. Stanleypartiu, e em 12 de julho de 1872desembarcava em Marselha.

Livingstone continuou nassuas investigações. Em 25 deagosto, tendo passado cincomeses em Kuihara, acompanhadopelos empregados Susi, Chumba eAmada, de mais dois criados deJacob Wainuright e cinquenta eseis homens enviados por Stanley,

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dirigiu-se para o sul doTanganica.

Um mês depois, no meiode trovoadas, que grandes secashaviam provocado, chegou acaravana a Mura. As chuvas, a mávontade dos nativos e a perda dasmontarias, mortas pelas picadasda tsé-tsé, contrariaram nãopouco a pequena caravana, quechegou, no entanto, a Chkanokue.Em 27 de abril de 1872, tendocontornado pelo leste o lagoBanguelo, caminhou em direção àaldeia de Chitambo.

Foi neste ponto que algunstraficantes de escravos tinham

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deixado Livingstone. É isto o que,por eles, sabiam Alves e o seucolega de Ujiji. Era crível que odoutor, depois de explorar o ladosul do lago, se aventurasse aprocurar para o ocidente regiõesdesconhecidas, seguindo depoispara Angola, visitando osterritórios infestados pelaescravatura, passando porKasonde. Era o itinerárioprovável, e era verosímil queLivingstone o seguisse.

Foi, pois, com achegada próxima do grandeviajante que Mrs. Weldoncontava, porque no princípio de

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junho havia mais de dois mesesque ele deveria ter chegado ao suldo lago Banguelo.

Em 13 de junho, vésperado dia em que Negoro viriareclamar de Mrs. Weldon a cartaque lhe renderia cem mil dólares,espalhou-se uma triste notícia,que alegrou imensamente Alves eos outros negreiros.

No dia 1º de maio de1873, ao romper da manhã, o Dr.David Livingstone morreu.

A pequena caravanachegara com efeito, em 29 deabril, à aldeia de Chitambo, namargem sul do lago. O doutor era

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conduzido numa padiola. Na noitedo dia 30, sob a influência deexcessivos sofrimentos, soltou eleeste lamento que mal se ouviu:"Oh! dear! dear!", e caiu emgrande torpor.

Uma hora depois chamavaSusi, pedia alguns medicamentose murmurava com vozextremamente fraca: — Muitobem! Agora pode retirar-se!

Pelas quatro horas damanhã, Susi e mais cinco homensentraram na cabana do doutor.

David Livingstone estavaajoelhado junto ao leito, com acabeça apoiada entre as mãos.

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Parecia estar rezando.Susi pôs-lhe

cautelosamente o dedo na face:estava fria.

David Livingstone já nãoera deste mundo.

Nove meses depois seucorpo, transportado pelos fiéiscriados à custa de grandesesforços, chegava a Zanzibar, eem 12 de abril de 1874 erasepultado na Abadia deWestminster, entre os grandeshomens que a Inglaterra honra apar dos seus reis.

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CAPÍTULO XV

AONDE PODE

CONDUZIR UMA MANTICORA Qual é a tábua de salvação

a que não se agarre odesgraçado? Qual é a luz deesperança, por vaga e tênue queseja, que o condenado nãoprocure descobrir?

Assim aconteceu a Mrs.

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Weldon, e compreende-se o queela sentiu quando soube, porque oouviu de Alves, que Livingstonetinha morrido havia pouco temponuma pequena aldeia próxima dolago Banguelo. Pareceu-lhe queestava mais isolada que nunca,que uma espécie de laço, que aprendia ao viajante, e com ele aomundo civilizado, se desfizera. Atábua de salvação escapava-lhedas mãos, a luz de esperançafugira-lhe dos olhos. Tom e osseus companheiros tinham partidode Kasonde para a região doslagos.

De Hercule não havia a

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menor notícia. Mrs. Weldon nãopodia contar com pessoa alguma.Tinha por consequência de acederà proposta de Negoro, tratando dea modificar e de lhe assegurarbom resultado.

Em 14 de junho, diafixado, Negoro apresentou-se nacabana de Mrs. Weldon.

O ex-cozinheiro do“Pilgrim” foi, como sempre, ecomo ele próprio dizia,perfeitamente prático. Não tevede ceder sobre a importância, quealiás a sua prisioneira nãodiscutiu. Mrs. Weldon, porém,mostrou-se também muito prática,

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porque lhe disse: — Se querrealizar um negócio, não o torneimpossível propondo condiçõesinaceitáveis. A troca da nossaliberdade pela quantia que exigeobtém-se sem que o meu maridoprecise de vir a uma terra onde sesabe o que pode acontecer a umbranco. Ora, custe o que custar,não quero que ele venha aqui!

Depois de pequenahesitação, Negoro cedeu, e Mrs.Weldon conseguiu que JamesWeldon não tivesse necessidadede se aventurar até Kasonde. Onavio que o transportasse surgiriana baía de Moçâmedes, porto

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muito conhecido de Negoro. Seriaali que este levaria James W.Weldon e ali que, em datadeterminada, os agentes de Alvesconduziriam Mrs. Weldon, opequeno Jack e primo Bénédict.

A soma ajustada seriaentregue aos agentes, a troco dosprisioneiros, e Negoro, que teriapassado para James Weldon porhomem honrado, desaparecerialogo depois da chegada do navio.

Era importantíssimo o queMrs. Weldon obtivera. Evitava aseu marido os perigos da viagematé Kasonde, ou da volta para olitoral, e o risco de ser retido

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como prisioneiro depois de terpago o resgate ajustado. Asseiscentas milhas que separavamKasonde de Moçâmedes nãocausariam a Mrs. Weldon,percorrendo-as nas mesmascondições em que tinha viajadodesde que partiu do Cuanza,senão pequena fadiga, mas ointeresse de Alves — porquetinha parte no negócio — era queos prisioneiros chegassem sãos esalvos.

Combinadas assim ascoisas, Mrs. Weldon escreveu aseu marido, no sentido indicado,deixando a Negoro o cuidado de

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se apresentar como servodedicado, fugido aos indígenas.Negoro pegou na carta, que nãodava a James Weldon motivo dehesitação para o seguir atéMoçâmedes, e no dia seguinte,escoltado por vinte negros,dirigia-se para o norte. Porqueseguia esta direção? Teria aintenção de ir embarcar em algumdos navios que frequentam aembocadura do Zaire, evitandodeste modo as autoridadesportuguesas, assim como ascadeias de que já fora hóspedeinvoluntário? É provável. E foijustamente esta razão que deu a

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Alves.Depois da partida de

Negoro, Mrs. Weldon deviadispor-se a passar o melhor quefosse possível o tempo que aindativesse de demora em Kasonde.Eram três ou quatro meses,admitindo as hipóteses maisfavoráveis. A ida e volta deNegoro não exigia decerto menostempo.

Não tencionava Mrs.Weldon deixar a feitoria. Ali, ela,o filho e primo Bénédict estavamrelativamente seguros. Oscuidados de Halima suavizavamum pouco os rigores da prisão.

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Era também verosímil que otraficante os não deixasse sair.

A boa maquia que lhehavia de dar o resgate daprisioneira valia bem a pena de aguardar com todas as cautelas.Fora bom que Alves não tivessesido obrigado a sair de Kasonde,para visitar as suas duas feitoriasde Bié e de Caçande. Coimbrafora substituí-lo na expedição denovas correrias; nunca haviamotivo para sentir a ausênciadeste borrachão.

Finalmente, Negoro, antesde partir, fizera as mais vivasrecomendações a respeito de

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Mrs. Weldon. Convinha vigiá-larigorosamente. Não se sabia oque era feito de Hercule. Setivesse escapado aos muitosperigos da terrível província deKasonde, era possível quetentasse aproximar-se daprisioneira e arrancá-la das mãosde Alves. O traficante tinhacompreendido bem uma situaçãoque representava bom número dedólares. Respondia por Mrs.Weldon, como pelo seu dinheiro.

A vida monótona para aprisioneira, durante os primeirosdias que passou na feitoria, logodepois da chegada, continuou

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ainda. O que se passava dentro docerrado reproduzia com exatidãoos diversos atos da existênciaindígena. Alves tinha os hábitosdos naturais de Kasonde. Asmulheres pertencentes à feitorialidavam, como se estivessem nasanzala, trabalhando em proveitodos seus maridos ou senhores. Oarroz era pisado com pilõesdentro de almofarizes até estarcompletamente descascado;escolhia-se, joeirava-se o milho,e faziam-se-lhe todas asmanipulações necessárias paralhe extrair uma substânciagranulosa que serve para fazer a

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sopa a que na região se dá o nomede “metylé”; a colheita de umaespécie de milho “miúdo", quenaquela época estavaperfeitamente em estado de secolher; a extração do óleoodorífero dos caroços de“mepafu”, espécie de azeitona,cuja essência constitui um aromamuito apreciado pelos indígenas;a fiação do algodão, cujas fibrassão torcidas com um fuso de umpé de comprimento, e ao qual asfiandeiras imprimem rápidomovimento de rotação; afabricação, por meio de macetes,dos tecidos vegetais; a extração

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da raiz de mandioca e apreparação da terra para osdiversos produtos da região: afarinha de mandioca, as favaschamadas “mosksamés”, cujasvagens têm quinze polegadas decomprimento e crescem emárvores de vinte pés de altura, aspistaceiras, destinadas a fazeróleo, as ervilhas vivazes, azuis-claras, conhecidas pelo nome de“chibolés”, cujas flores tornammelhor o gosto um poucodesenxabido do caldo demassango, o café indígena, ascanas-de-açúcar, cujo suco setransforma em melaço, as

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cebolas, as goiabas, o gergelim,os pepinos, cujas pevides sãoassadas como castanhas; apreparação das bebidasfermentadas, o malufo, feito debananas, o “pombe” e outroslicores; o tratamento dos animais,como as vacas, que se não deixamordenhar sem que tenham à vistaos próprios filhos ou um vitelofeito de palha, as bezerras, deraça pequena, de chavelhoscurtos, e algumas das quais têmcorcova, as cabras, que, na regiãoonde a carne delas serve para aalimentação, são objetoimportante para as permutações, e

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até, pode dizer-se, moedacorrente, como é o escravo;finalmente, o tratamento das avesdomésticas e dos porcos, doscarneiros, bois, etc; toda estaextensa enumeração mostra quaissão os rudes trabalhos queincumbem ao sexo fraco naquelasselváticas regiões do continenteafricano. Enquanto as mulherestrabalham, os homens fumamtabaco ou cânhamo, caçamelefantes ou búfalos, contratam-secom os traficantes para fazercorrerias. Colheita de milho ouescravos é sempre colheita, quese faz em épocas determinadas.

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Destas diversasocupações, Mrs. Weldon conheciaapenas na feitoria do Alves asque eram desempenhadas pormulheres. Algumas vezes paravapara as ver, mas estas acolhiam-na mal. O instinto da raça levavaaquelas desgraçadas a odiar umabranca, e decerto não se lhesencontraria no coraçãocomiseração por ela. Halima eraa única exceção, e Mrs. Weldon,tendo aprendido um pouco dalíngua indígena, conseguia trocaralgumas palavras com a jovemescrava.

Jack acompanhava muitas

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vezes a mãe, quando estapasseava dentro do cerrado, masteria maior prazer se o deixassemsair. Havia porém lá dentro, sob acopa de uma enorme adansônia,ninhos de marabus, feitos compequenas varinhas, e de“suimangas” de peito e pescoçoencarnado, as quais seassemelham aos tecelões; viam-setambém as viúvas, que, paraabrigo da sua prole, tiram aspalhinhas ao colmo; “calaos”,cujo canto é agradável; papagaioscinzentos-claros e de caudavermelha, os quais no Manyemase chamam “suss” e dão nome aos

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chefes das tribos; e finalmente“drugos” insetívoros, semelhantesa pintarroxos que tivessem o bicogrande e vermelho. Pelo aresvoaçavam centenas deborboletas de diferentes espécies,principalmente na proximidadedos ribeiros que atravessavam afeitoria, mas isto interessava maisa primo Bénédict do que a Jack,que tinha muita pena de não sermaior para poder ver por cimados muros. Ah! Onde estaria oseu bom amigo Dick Sand, que namastreação do “Pilgrim” subiacom ele a tão grande altura!Como ele o seguiria sobre os

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ramos daquela árvore, que seelevava a mais de cem pés! Quegrandes divertimentos teriam ali!

Primo Bénédict achava-sesempre bem onde estava, contantoque não lhe faltassem os insetos.

Tinha descoberto nafeitoria — porque estudavaquanto podia sem lente e semóculos — uma abelha minúscula,que formava os alvéolos entre ocaruncho da madeira, e um“sphex” dos que põem os ovosnas células que lhe nãopertencem, exatamente como faz ocuco no ninho dos outrospássaros. Os mosquitos também

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não faltavam, perto dos arroiosde água, e mordiam por tal modoprimo Bénédict que o tornavamdesconhecido. Quando Mrs.Weldon o censurava por se deixardevorar de tal maneira por tãoimportunos insetos, respondia,coçando-se até fazer escorrersangue: — É o instinto, primaWeldon, é o instinto. Não lhesdevemos querer mal por isso!

Enfim, um dia — foi em17 de junho —, primo Bénédictesteve quase sendo o mais felizdos entomologistas. Mas estaaventura, que teve inesperadasconsequências, merece ser

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contada com algumasparticularidades.

Eram pouco mais oumenos onze horas da manhã.Insuportável calor obrigara oshabitantes da feitoria aconservarem-se nas suas cabanas,e não se encontrava um indígenanas ruas de Kasonde.

Mrs. Weldon estavasentada perto de Jack, quedormia.

Primo Bénédict, que nãoescapara à influência daquelatemperatura tropical, abandonaraas suas caçadas favoritas, o quenão deixava de lhe ser

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extremamente sensível, porquesob os ardentíssimos raios do soldo meio-dia ouvia ele zunirmilhares de insetos. Tinha-se poisabrigado, com grande pena,dentro da sua cubata, e o sonocomeçava a apoderar-se deledurante aquela sesta involuntária.

Repentinamente, quandoos olhos mal se lhe fechavam,sentiu um estremecimento, isto é,um desses insuportáveiszumbidos de insetos; algunsdestes pequenos animais dãoquinze a dezasseis mil batedurasde asas em um segundo.

— Um hexápode! —

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exclamou Bénédict, queimediatamente acordou, passandoinstantaneamente da posiçãohorizontal para a posiçãovertical.

Que era um hexápode quezumbia dentro da cubata de primoBénédict, não havia dúvida. Masse primo Bénédict era muitomíope, tinha em compensação umouvido delicadíssimo, a tal pontoque podia distinguir um inseto dooutro pela intensidade dozumbido. Pareceu-lhe, porém, queeste lhe era desconhecido,conquanto fosse produzido porum gigante da espécie.

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“Que hexápode será?”,perguntava a si mesmo primoBénédict.

E ei-lo tentando distinguiro inseto, o que era muito difícilpara a sua vista desarmada, masprocurando principalmenteconhecê-lo pela agitação dasasas.

O instinto deentomologista advertiu-o de quetinha boa caçada e que o inseto,tão providencialmente entrado nasua cabana, não devia ser oprimeiro.

Primo Bénédict, sentadono chão, não se mexia. Escutava.

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Alguns raios de sol penetravamna cubata até onde ele estava. Osseus olhos descobriram então umgrande ponto negro, que adejava,mas que não passava perto obastante para que ele o pudessereconhecer. Reprimia arespiração e, se se sentissepicado na cara ou nas mãos,estava decidido a não fazer omenor movimento sequer queobrigasse a fugir o hexápode.

Finalmente o inseto,zunindo sempre e depois de tergirado muito tempo em volta doentomologista, pousou-lhe nacabeça. A boca de primo

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Bénédict estendeu-se um pouco,como se fosse para sorrir; e quesorriso! Sentia o ligeiroanimalzinho a correr-lhe peloscabelos. Teve num momentovontade de lhe deitar a mão; masresistiu, e fez bem.

“Não, não!”, pensou ele.“Podia escapar-me ou, o queseria pior ainda, podia fazer-lhe -mal. Deixá-lo chegar mais! Cáanda ele! Desce agora! Sinto-lheas delicadas pernas sobre a minhacabeça! Deve ser um hexápode debom tamanho. Oh! Meu Deus! Seele descesse até à ponta do meunariz, aí, envesgando um pouco os

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olhos, podia vê-lo, e determinar aque ordem, gênero, espécie ouvariedade pertence!”

Assim pensava primoBénédict. Mas era longe do seucrânio oblongo à ponta do seucomprido nariz. Muitos outroscaminhos podia seguir ocaprichoso inseto; para o ladodas orelhas ou do alto da cabeça,caminhos que o afastariam dosolhos do sábio, sem contar que deum instante para o outro podiatornar a voar, sair da cubata eperder-se nos raios do sol, ondepassava a sua vida, entre oszumbidos dos seus congêneres,

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que de fora o atraíam.Primo Bénédict pensou

tudo isto. Nunca durante toda asua vida de entomologista passaratantas emoções em tão curtoespaço de tempo. Um hexápodeafricano, de espécie, ou pelomenos de variedade, ou talvez desubvariedade nova, estava sobrea sua cabeça, e não podiareconhecê-lo, a não ser que ele sedignasse passear a menos de umapolegada dos olhos do pacienteentomologista.

Porém a súplica de primoBénédict devia ser ouvida. Oinseto, depois de haver

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caminhado sobre aquela cabeleiraeriçada, como na copa de umarbusto inculto, começou a descerpela testa de primo Bénédict, e aeste sorriu enfim a esperança deque ele se aventuraria até ir àponta do nariz. Chegado ondeestava, porque não desceriamais?

“No seu lugar, comcerteza, eu descia”, pensava odigno sábio.

O que é verdade é quequalquer outro teria dado umagrande palmada na testa, a fim deesmagar o inseto importuno, oude, pelo menos, o obrigar a fugir.

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Sentir seis perninhas a moverem-se sobre a pele, sem falar noreceio de ser mordido, e nãofazer um gesto sequer, deveconfessar-se que era heroísmo. Oespartano, deixando que umaraposa lhe devorasse o peito, oromano, conservando entre osdedos carvões incandescentes,não resistia melhor do que primoBénédict, descendente semdúvida destes dois heróis.

O inseto, depois de daralgumas pequenas voltas, chegouao alto do nariz. Primo Bénédictteve um momento de indecisão. Ohexápode subiria ou desceria?

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Desceu. Primo Bénédictsentiu-lhe as pernas aveludadasmexerem-se perto do nariz. Oinseto não se inclinou, nem para adireita nem para a esquerda.Conservou-se ao meio, sobre aaresta levemente quebradadaquele nariz de sábio, tão bemdisposto para trazer óculos.Transpôs a pequena cova feitapelo uso incessante de talinstrumento de óptica, que tantafalta fazia ao pobre primo, eparou finalmente na ponta do seuapêndice nasal.

Foi o melhor lugar que ohexápode podia ter escolhido. A

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tal distância, os dois olhos deprimo Bénédict, fazendoconvergir os raios visuais,podiam, como duas lentes, lançarsobre o inseto duplo olhar.

— Oh! Louvado sejaDeus! — exclamou primoBénédict, que não se pôde conter.— A manticora tuberculosa!

Não era preciso gritar,bastava apenas pensar. Não seria,porém, exigir muito do maisentusiasta de todos osentomologistas?

Ter na ponta do nariz umamanticora tuberculosa, de grandesélitros, um inseto da tribo das

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cincidelas, exemplar raríssimonas coleções, e que parece serespecial das regiões meridionaisda África, e não soltar um bradode admiração, era superior àsforças humanas!

Infelizmente, a manticoraouviu um grito, que foi quaseseguido de um espirro, quesacudiu o apêndice sobre o qualela estava pousada. PrimoBénédict quis agarrá-la, estendeua mão, fechou-a violentamente econseguiu apenas agarrar a pontado nariz.

— Maldita! — exclamouele.

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Mas depois deu provas denotável paciência.

Sabia que a manticoratuberculosa apenas esvoaça, quemelhor anda do que voa.Ajoelhou-se e conseguiudistinguir, a menos de dezpolegadas de distância dos olhos,um ponto negro passandorapidamente pelos raios do sol.

Antes estudá-la emcompleta liberdade. Convinhaporém não a perder de vista.

“Posso apanhar amanticora, mas corro o risco de aesmagar!”, pensou primoBénédict. “Nada, não! Segui-la-

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ei! Admirá-la-ei primeiro! Tenhomuito tempo para lhe deitar amão.”

Enganar-se-ia? Ou se seenganasse ou não, ei-lo de pés emãos pelo chão, com o narizquase junto à terra, como um cãoque fareja, e seguindo omagnífico hexápode, à distânciade quatro a cinco polegadas.Pouco depois estava fora dacubata, sob a ação do ardente soldo meio-dia, e minutos depoisjunto da paliçada que circundavaa feitoria de Alves.

Iria a manticora voltearpor cima do cerrado, e de tal

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sorte pôr uma parede entre ela e oseu adorador? Não! Não estavaisso na sua natureza, bem o sabiaprimo Bénédict. Assim, pois,seguiu-a sempre, arrastando-secomo uma cobra, bastante longepara entomologicamentereconhecer o inseto, mas àdistância indispensável parapoder distinguir aquele grandeponto móvel que caminhava pelosolo.

A manticora, chegandoperto do cercado, encontrou aentrada de uma toca de toupeiras,que perto dela se abria. Semhesitar, penetrou por aquela

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galeria subterrânea, porque é dosseus hábitos procurar os lugaresescuros. Primo Bénédict julgouque ia perdê-la de vista, mas,com grande surpresa, verificouque o furo aberto pelas toupeirastinha a largura de dois pés pelomenos, e que a toca formava umaespécie de galeria em que o seucorpo magro e delgado podiacaber. Nesta caçada, era ele comoo furão, e por isso nem sequerpercebeu que, enterrando-se poraquele modo, passava pordebaixo da paliçada, porque atoca punha em comunicaçãonatural o exterior com o interior

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da feitoria. Em meio minutoprimo Bénédict achava-se dolado de fora. Não era porémcoisa que o preocupasse. Todo oseu espírito estava concentradona contemplação do eleganteinseto que o guiava. Este, porém,tinha já caminhado bastante. Osélitros afastaram-se, as asasabriram-se. Primo Bénédictconheceu o perigo, e ia fazer damão prisão provisória para amanticora, quando esta, frrrr...voou!

Ficou desesperado! Amanticora, porém, não podia irlonge. Primo Bénédict levantou-

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se, olhou e avançou as mãosestendidas e abertas.

O inseto esvoaçava-lhepor cima da cabeça; ele apenasdistinguia um grande ponto negro,sem forma apreciável.

A manticora viria repousarnovamente na terra, depois de tertraçado alguns círculoscaprichosos em torno da cabeçadesgrenhada de primo Bénédict?Tudo fazia supor que assimsucederia.

Infelizmente, porém, aparte da feitoria de Alves, queestava situada na extremidadenorte da povoação, confinava

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com uma vasta floresta, quecobria o território de Kasonde naextensão de muitas milhasquadradas. Se a manticora semetesse pela espessura doarvoredo, e lá começasse a voarde ramo em ramo, estava perdidaa esperança de a fazer figurar nafamosa caixa de folha, da qual elaseria jóia preciosa.

Foi o que aconteceu. Amanticora pousara novamente nochão. Primo Bénédict, tendo ainesperada probabilidade de atornar a ver, precipitou-seimediatamente com o nariz para aterra; mas a manticora já não

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andava, saltava.Primo Bénédict, cansado,

com os joelhos e as unhasensanguentados, saltava também.Os braços e as mãos parecia quese desmanchavam, ora para adireita, ora para a esquerda,conforme o ponto negro saltavade um ou do outro lado. Dir-se-iaque o entomologista nadava debruços sobre aquele soloardentíssimo.

Trabalho inútil! Fechavaas mãos repetidas vezes, massempre as fechava vazias. Oinseto fugia-lhe sempre também,e, logo que chegou debaixo da

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fresca ramagem das árvores,elevou-se, mas depois de terroçado levemente as orelhas deprimo Bénédict e feito o maisirônico zumbido que podemproduzir asas de coleóptero.

— Maldita! — exclamoupela segunda vez primo Bénédict.— Escapar-me! Ingratohexápode! Tu, que tinhas um lugarde honra marcado na minhacoleção! Pois não te deixarei!Perseguir-te-ei até que teapanhe!...

Esquecia-se, odesconcertado primo, que os seusolhos de míope não lhe permitiam

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distinguir a manticora entre afolhagem. Mas estava fora de si.O despeito e a cólera faziam-nolouco. E era ele, e só ele, oculpado da sua infelicidade! Setivesse agarrado o inseto quandodevia, em vez de o seguir para over em “liberdade”, nada distolhe teria acontecido e possuiriaaquele admirável exemplar dasmanticoras africanas, cujo nome éo do animal fabuloso que tinha acabeça de homem e o corpo deleão!

Primo Bénédict estavacom a cabeça perdida. Nãopensava que a mais imprevista

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circunstância lhe dera aliberdade. Não percebia que atoca da toupeira, na qual seintroduzira, lhe abriu uma saída, eque estava fora da feitoria deAlves. Achava-se, porém, nafloresta, e sobre as árvores, a suafugitiva. Queria tornar a vê-la,custasse o que custasse.

Ei-lo, pois, correndoatravés do denso mato, semconsciência do que fazia,imaginando sempre ver oprecioso inseto, e movendo oslongínquos braços, como umgrande aranhiço! Onde ia, comovoltaria, não pensava, e assim

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andou mais de uma milha,embrenhando-se nos bosques,com o risco de ser encontradopelos indígenas ou atacado pelasferas.

Repentinamente, comopassasse junto a uma balça, umvulto enorme pulou e saltou sobreele. Depois, exatamente comoprimo Bénédict teria feito àmanticora, o vulto deitou-lhe umadas mãos à nuca e a outra àscostas, e, sem que Bénédicttivesse tempo de reconhecerquem era, foi levado pelo bosquedentro.

Primo Bénédict perdera

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naquele dia a melhor dasocasiões para se proclamar omais feliz de todos os entomo-logistas das cinco partes domundo!

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CAPÍTULO XVI

UM MEGANGA Quando, no dia 17, Mrs.

Weldon não viu aparecer à horado costume primo Bénédict, ficouextremamente inquieta. Não eracrível que ele tivesse conseguidofugir da feitoria, cujo cercado eramuito alto. Além de que Mrs.

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Weldon conhecia bem o seuprimo. Se lhe tivessem propostofugir, abandonando a caixa defolha e a coleção de insetosafricanos, teria recusado sem amenor hesitação. Ora, a caixaestava na barraca, intacta,contendo tudo quanto o sábioconseguira apanhar desde a suachegada ao continente africano. Ahipótese, pois, de que elevoluntariamente se separara doseu tesouro entomológico erainadmissível.

Contudo, primo Bénédictnão se encontrava dentro dafeitoria de José António Alves.

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Durante todo o dia Mrs.Weldon procurou-oobstinadamente, juntamente comJack e com a escrava Halima. Foiinútil.

Mrs. Weldon teve, pois, deaceitar esta hipótese poucoanimadora: o prisioneiro foralevado dali por ordem dotraficante, e por motivo que elanão podia descobrir. Mas, em talcaso, o que lhe fez Alves?Encarcerou-o num dos barracõesda praça principal? Qual era arazão de tal surpresa, depois defeita a convenção entre Mrs.Weldon e Negoro, convenção que

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compreendia primo Bénédict nonúmero dos prisioneiros que otraficante devia conduzir aMoçâmedes, para serementregues, a troco de dinheiro, aJames W. Weldon? Se Mrs.Weldon tivesse visto a cólera deAlves, quando este soube dodesaparecimento do prisioneiro,teria percebido que Alves nãofora a causa de taldesaparecimento. Mas se primoBénédict se evadiravoluntariamente, porque não lheconfiou o segredo da evasão?

Entretanto as pesquisas deAlves e dos seus servos, feitas

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com o maior cuidado, levaram àdescoberta da toca das toupeirasque estabelecia comunicaçãoentre a feitoria e a florestavizinha. O traficante ficouconvencido de que o “apanha-moscas” fugira por aquelaabertura. Julgue-se qual foi o seufuror quando pensou que a fuga deBénédict seria lançada à conta dasua responsabilidade, econsequentemente diminuída aparte que lhe devia caber!

“Não valia muito aqueleparvo”, pensava ele “e contudohá de custar-me caro! Ah! Se eu otornasse a apanhar...”

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Apesar, porém, das buscasque se fizeram dentro da feitoria,e conquanto se tivessem batido osmatos em larga extensão, foiimpossível encontrar traços dofugitivo. Mrs. Weldon teve deconformar-se com a perda do seuprimo, e Alves de lastimar a fugado seu prisioneiro. Como não eraprovável que este tivesserestabelecido relações com oexterior, parecia evidente que foio acaso que lhe deparou a tocadas toupeiras, e que por elafugira, pensando tanto nos quedeixava na feitoria como se elesnunca tivessem existido.

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Mrs. Weldon foi obrigadaa julgar que assim devia ser, masnão pensou por tal motivo emquerer mal àquele pobre homem,que não tinha consciência dosatos que praticava.

“Desgraçado! Que lheacontecerá?”, dizia ela consigomesmo.

Inútil será dizer que nomesmo dia foi tapada com omaior cuidado a entrada da toca eque aumentou a vigilância tantoda parte de dentro como do ladode fora da feitoria.

A vida monótona dosprisioneiros continuou, pois, para

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Mrs. Weldon e para Jack.Entretanto produziu-se na

província um fenômenoclimatérico raríssimo naquelaépoca do ano. Em 19 de Junhocomeçaram chuvas persistentes,apesar de o período da “masica”,que finda em Abril, ter jápassado. O céu estava coberto, eaguaceiros contínuos inundavam oterritório de Kasonde.

Isto, que foi desagradávelpara Mrs. Weldon, por não podercontinuar os seus passeios nointerior da feitoria, para osindígenas era uma calamidade. Osterrenos baixos, cobertos de

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searas já em estado de seceifarem, ficaram completamentealagados. Os habitantes daprovíncia, aos quais as colheitasfaltavam tão repentinamente,viram-se a braços com a miséria.Todos os trabalhos próprios daestação estavam paralisados, e arainha Moina não sabia, nem osseus ministros, de que modoafrontariam a catástrofe.

Recorreu-se então aosfeiticeiros, mas não aos quecuram os doentes por meio deencantamentos ou bruxarias ouque lêem as sinas aos indígenas.Como se tratava de uma

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calamidade pública, pediu-se aosmelhores megangas, que têm afaculdade de provocar ou de fazercessar as chuvas, queconjurassem o perigo.

Perderam o tempo.Entoaram cânticos monótonos,agitaram os guizos e campainhas,empregaram os mais preciososamuletos e usaramparticularmente de um chavelhocheio de lodo e de casca deárvores, em cuja ponta tinha trêspequenas protuberâncias;esconjuraram, atirando com bolasde esterco ou cuspindo na caradas mais augustas personagens da

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corte; mas, apesar de tudo, nãoconseguiram expulsar os mausespíritos que presidiam àformação das nuvens.

As coisas iam de mal apior quando a rainha Moina selembrou de mandar chamar umcélebre meganga, que se achavaentão ao norte, nos sertões deAngola. Era um mágico deprimeira ordem, cujo valor eratanto mais maravilhoso quanto,como era certo, nunca foraexperimentado naquela província,onde ainda não estivera. Mastratava-se unicamente dos seussucessos na região das “masicas”.

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Foi na manhã de 25 dejunho que o novo megangaanunciou ruidosamente a suaentrada em Kasonde, por grandebulha de guizos e de campainhas.

Veio o feiticeiro direito à“tchikoka” e logo a multidão deindígenas se precipitou para ele.O céu tinha aspecto menoschuvoso, o vento indicava que iamudar, e estes sintomas debonança, coincidindo com achegada do meganga,predispunham os espíritos em seufavor.

Era um homem magnífico,um negro perfeito. Media seis pés

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de altura, e devia serextraordinariamente vigoroso. Talgentileza impô-lo à multidão.

Normalmente osfeiticeiros reúnem-se aos três,aos quatro ou cinco, quandopercorrem as povoações, e sãosempre acompanhados por algunsajudantes. Este porém vinha só.Tinha o peito todo zebrado commalhas brancas feitas com giz. Aparte inferior do corpo era tapadapor um amplo saiote feito detecido vegetal, cuja “cauda” nãodesdenhariam damas elegantes.Trazia ao pescoço um colar feitode crânios de pássaros, na cabeça

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um casco de couro com penasenfeitadas com missangas, sobreos rins um cinto de cobre do qualpendiam centenas de guizos, maisruidosos do que os dos arreiosdos machos espanhóis. Assimestava vestido o magníficoexemplar da corporação dosnecromantes indígenas.

Todo o material da suaarte consistia numa espécie desaco, cujo fundo era formado poruma cabaça, cheio de conchas,amuletos, ídolos pequenos demadeira e outros feitiços, e alémdisso uma não pequenaquantidade de bolas de esterco,

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acessórios importantes dosencantamentos e necromancias docentro da África.

Uma particularidade notoutoda a gente: o meganga eramudo, mas este defeito orgânicoaumentava ainda mais aconsideração que lhe tributavam.Fazia apenas ouvir um somgutural, grave e prolongado, semsignificação. Mais uma razãopara ser bem aceite em assuntosde sortilégios.

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O meganga principiou adar a volta à praça principal,

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executando uma espécie depavana, que fazia ressoar ocarrilhão de guizos que consigotrazia. Seguia-o a multidão,imitando-lhe os movimentos. Dir-se-ia um bando de macacosseguindo um enorme quadrúmano.Depois, mas de repente, ofeiticeiro tomou pela ruaprincipal de Kasonde e dirigiu-seà residência real.

Logo que a rainha Moinateve conhecimento da chegada donovo adivinho, apareceu,acompanhada por todos os seuscortesãos.

Então o meganga inclinou-

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se até ao chão e levantou-se logo,mostrando a sua bela estatura.Levantou os braços para o céu,onde corriam rapidamente nuvensesfarrapadas. Apontou para elas,imitou-lhes os movimentos derotação que se não podia travar.

Repentinamente e comgrande surpresa do povo e dacorte o feiticeiro agarrou pelamão a temível rainha de Kasonde.Alguns cortesãos quiseram opor-se a este ato, que contrariava asetiquetas da corte; mas o vigorosomeganga, deitando a mão aopescoço do que estava maispróximo, fê-lo ir cair a quinze

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passos de distância.A rainha pareceu não

desaprovar este arrogante modode proceder e fez para onecromante -uma espécie decareta, que devia ser um sorriso.O necromante levou a rainha compasso arrebatado; a multidãoseguia-os.

Foi para a feitoria deAlves que se dirigiu o feiticeiro.Chegou à porta, que estavafechada. Meteu-lhe os ombros,atirou-a por terra e fez entrar arainha.

O traficante, com os seusguardas e escravos, correram a

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castigar o imprudente que seatrevia a arrombar as portas semesperar que lhas abrissem.Porém, vendo a soberana, quenada dizia, pararam, ficando ematitude respeitosa.

Alves ia, sem dúvida,perguntar à rainha qual era acausa a que devia a honra da suavisita, mas não lhe deu tempo omágico, e, fazendo recuar amultidão, para que ficasse grandeespaço livre em volta dele,recomeçou a pantomima commaior animação ainda. Mostrouas nuvens, ameaçou-as,esconjurou-as, primeiro fez-lhes

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gestos para que parassem, depoispara que se afastassem. Encheu asenormes bochechas e soprousobre aquela massa de vapores,como se tivesse poder de osdissipar. Em seguida endireitou-se, pareceu querer obrigá-las aparar. Dir-se-ia que a sua enormeestatura lhe dava a faculdade delhes deitar as mãos.

A supersticiosa Moina,“empalmada”, é o termo, poraquele grande farsante, não erasenhora de si. Soltava gritos.Delirava, e repetiainstintivamente os gestos domeganga. Os cortesãos e a plebe

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imitavam a rainha, e os sonsguturais do mudo confundiam-secom os cânticos, gritos e os urrosem que tanto abunda a linguagemindígena.

Cessariam as nuvens de selevantar do horizonte para o ladodo oriente e de velar aquele céutropical? Iriam desfazer-se sob ainfluência dos exorcismos dorecém-chegado feiticeiro? Não. Ejá quando a rainha e o seu povoimaginavam rendidos os espíritosmalignos que ameaçavam de asubmergir com chuvastorrenciais, o céu, menoscarregado desde a madrugada,

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escureceu profundamente, egrossos pingos de chuva, como adas trovoadas, caíram, crepitandono solo.

Então operou-se grandemudança na opinião de todos.Desconfiaram que este meganganão valia mais do que os outros,e, por um franzimento desobrancelhas da rainha,perceberam que ele, pelo menos,tinha as orelhas em muito risco.Os indígenas haviam apertado ocírculo em torno do meganga,ameaçavam-no, e iam talvezcastigá-lo, quando um incidenteimprevisto mudou as disposições

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hostis.O meganga, que pela sua

altura dominava aquela agitadamultidão, estendera o braço paraum ponto do recinto ondeestavam. Foi tão imperioso estegesto que todos olharam.

Mrs. Weldon e Jack,atraídos pelo tumulto e clamores,tinham saído da sua palhota.Foram eles que o mágico, com ummovimento de cólera, designoucom a mão esquerda, apontandocom a direita para o céu.

Eles, eram eles! Era abranca e o seu filho que causavamtantos males! Deles provinham

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tantos malefícios! Tinham trazidoaquelas nuvens das suaspluviosas regiões para inundar oterritório de Kasonde.

Compreenderam-no. Arainha, apontando para Mrs.Weldon, fez um sinal ameaçador.Os indígenas, soltando gritosterríveis, correram para ela.

Mrs. Weldon julgou-seperdida, e, apertando o filho entreos seus braços, ficou imóvelcomo uma estátua ante aquelaplebe exaltada.

O meganga dirigiu-se paraela. Afastaram-se para darpassagem ao feiticeiro, que,

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descobrindo a causa do mal,parecia ter achado o remédio.

O traficante Alves, paraquem a vida da prisioneira erapreciosa, aproximou-se também,sem contudo saber o que fizesse.

O meganga lançara asmãos a Jack, e, arrancando-o dosbraços da mãe, ofereceu-o ao céu.Acreditou-se que lhe ia quebrar acabeça de encontro ao solo paraapaziguar a ira dos deuses!

Mrs. Weldon deu um gritoterrível e caiu desmaiada.

Mas o meganga, depois deter feito um sinal à rainha, quesem dúvida a tranquilizou sobre

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as intenções dele, levantou ainfeliz mãe e levou-a, bem comoao filho, enquanto a multidão,perfeitamente dominada, lhe abriacaminho.

Alves, furioso, nãoentendia as coisas do mesmomodo. Depois de ter perdido umprisioneiro entre três que tinha,não queria ver fugir o depósitoque estava confiado à sua guarda,e, com o depósito, a grossaquantia que lhe reservavaNegoro, embora desaparecessesob outro dilúvio todo o territóriode Kasonde! Quis porém opor-seàquele rapto.

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Foi então contra Alves quese revoltaram os indígenas. Arainha ordenou aos seus guardasque o prendessem, e o traficante,sabendo quanto lhe podia custar asua ousadia, aquietou-se,amaldiçoando, porém, a estúpidacredulidade dos súbditos daaugusta Moina.

Os selvagens esperavamver limpar o céu, com odesaparecimento dos que tinhamatraído as nuvens, e nãoduvidavam de que o mágicoquisesse conter as águas, quetantos danos lhes causaram, como sangue dos estrangeiros.

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Entretanto o megangalevava as suas vítimas, como umleão leva dois cabritinhos naboca poderosa, Jack espantado,Mrs. Weldon sem sentidos. Amultidão seguia-o enraivecida,mas o meganga saiu da feitoria,atravessou Kasonde, meteu-sepela floresta, caminhou perto detrês milhas, sem que fraquejasseuma única vez e finalmente — osindígenas tinham compreendidoque ele não queria que oseguissem — -chegou junto a umaribeira, cuja rápida corrente sedirigia para o norte.

Aí, no fundo de uma larga

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cavidade, por detrás decompridas folhas pendentes deuma sarça que escondia amargem, estava amarrada umacanoa coberta por uma espécie decolmo.

O meganga embarcou,depôs dentro dela o duplo fardoque trazia, e afastou-a com um pé,lançando-a para a corrente, querapidamente lhe pegou; depoisdisse com voz bem clara edistinta:

— Meu capitão, aí temMrs. Weldon e o menino Jack! Acaminho agora, e que todas asnuvens do céu se abram sobre os

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idiotas de Kasonde!

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CAPÍTULO XVII

À MERCÊ DA

CORRENTE Era Hercule, impossível

de reconhecer sob os atavios demágico, quem assim falava, e eraa Dick Sand que ele se dirigia —a Dick Sand, tão fraco ainda, que

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necessitava de se apoiar emprimo Bénédict, perto de quemDingo estava deitado.

Mrs. Weldon, querecuperara os sentidos, apenaspôde proferir estas palavras:

— Tu, Dick! Tu aqui!O prático levantou-se, mas

já Mrs. Weldon o abraçava e Jacklhe prodigalizava milhares decarícias.

— O meu amigo Dick! Omeu amigo Dick! — repetia ele.

Depois, voltando-se paraHercule, disse-lhe: — E eu que tenão conheci!

— Que tal era o disfarce!

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— respondeu Hercule, esfregandoo peito para tirar as manchas queo zebravam.

— Estavas muito feio!- —disse Jack.

— Pudera não! Se eu era odiabo, e o diabo nunca foi bonito.

— Obrigada, Hercule! —agradeceu Mrs. Weldon,estendendo a mão ao valentenegro.

— Libertou-a —acrescentou Dick Sand — comome salvou a mim, apesar de elenão ser desta opinião.

— Salvos! Salvos! Por oraainda não! — respondeu Hercule!

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— E demais, se não fosse o Sr.Bénédict, que nos veio dizer ondeestava Mrs. Weldon, nadapoderíamos fazer!

Fora com efeito Herculequem, cinco dias antes, saltarasobre o sábio, na ocasião em queeste, depois de se haverdistanciado duas milhas dafeitoria, andava em perseguiçãoda manticora. Se não fosse talincidente, nem Dick Sand nem onegro saberiam onde estava Mrs.Weldon, e portanto Hercule nãose teria arriscado a ir a Kasondecom o vestuário de mágico.

Enquanto a canoa era

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levada pela rápida corrente,naquele ponto mais apertado dorio, Hercule contou o que sepassara desde a sua fugida noarraial junto ao Guanza, comoseguira, sem que fosse visto, a“kitanda” em que era conduzidaMrs. Weldon e o seu filho; comoencontrara Dingo ferido por umabala; de que modo ambos haviamchegado até aos arredores deKasonde; como um bilhete deHercule levado pelo cão instruíraDick Sand do que acontecera aMrs. Weldon; como, depois dainesperada chegada de primoBénédict, tentara, mas em vão,

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penetrar na feitoria, maisrigorosamente vigiada do quenunca; como, finalmente,encontrara aquela oportunidadede roubar a prisioneira ao terrívelJosé António Alves. A ocasiãooferecera-se naquele mesmo dia.Um meganga que andava em girode bruxarias — o célebre mágicotão impacientemente desejado —passou próximo da floresta poronde Hercule vagueava todas asnoites, espiando, escutando esempre pronto para tudo. Saltarsobre o meganga, espoliá-lo dasvestimentas e do trem de mágico,prendê-lo ao tronco de uma

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árvore com voltas de cipó e portal modo que nem os irmãosDavenport seriam capazes de sedesprenderem, pintar o corpotomando o feiticeiro para modelo,e desempenhar o seu papel, foitudo obra de poucas horas; masainda assim era necessária aextraordinária credulidade dosindígenas para serem de tal modoenganados.

Na narrativa de Herculenão se falava de Dick Sand.

— E tu, Dick Sand? —perguntou Mrs. Weldon.

— Eu — respondeu oprático — nada lhe posso dizer.

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O meu último pensamento foipara Mrs. Weldon e para Jack!...Quis, mas em vão, quebrar ascordas que me prendiam aoposte... A água cobriu-me acabeça... Perdi os sentidos...Quando os recuperei, servia-mede abrigo um buraco, escondidoentre os canaviais da margem quenos fica além, e Hercule,ajoelhado, cuidava de mim.

— Demônio! — respondeuHercule. — Pois se eu soumédico, necromante, feiticeiro,mágico e se, além disso, leiosinas!...

— Hercule — perguntou

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Mrs. Weldon — , comoconseguiste salvar Dick Sand?

— Então julga que fui eu?E não seria possível que acorrente tivesse quebrado o postea que estava preso o nossocapitão, e o arrastasse, já altanoite, sobre aquela viga de ondeeu o tirei meio-morto? Demais,não era difícil, naquelas trevasprofundas, confundir-se qualquercom as vítimas que estavam nofundo da sepultura, esperar que serompessem os diques, nadar entreduas águas e com um poucochinhode força arrancar ao mesmotempo o nosso capitão e o cepo a

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que aqueles patifes o tinhamamarrado. Nisto nada há deextraordinário! Todos o podiamfazer. Até o Sr. Bénédict oumesmo Dingo! E, é verdade, porque não seria Dingo?...

Ouviu-se um pequenolatido, e Jack, agarrando a cabeçado cão, deu-lhe pequenaspalmadas de amizade,perguntando-lhe:

— Dingo, foste tu quesalvaste o nosso amigo Dick? Eao mesmo tempo obrigou acabeça do cão a abanar daesquerda para a direita.

— Olha, Hercule: diz que

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não! Bem vês que não foi ele.— Dingo, foi Hercule

quem salvou o nosso capitão? Opequenito obrigou a cabeça dofiel animal a mover-se cinco ouseis vezes de baixo para cima.

— Diz que sim, Hercule!Diz que sim! — exclamou Jack.— Agora não podes negar!

— Ah! Dingo — disseHercule, afagando o cão — , issonão se faz. Tinhas prometido nãome descobrir!

Foi, com efeito, Herculequem arriscara a sua vida parasalvar a de Dick Sand. Mas erafeito assim, e a sua modéstia não

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lhe permitia confessar a verdade.Além de que julgava que eracoisa simples, e repetiu quenenhum dos seus companheirosem tais circunstâncias teriahesitado em proceder como ele.

Deu isto causa a que Mrs.Weldon falasse do velho Tom, deBat, de Acteon, de Agostinho, dosseus companheiros de desgraça.

Iam de marcha para aregião dos lagos. Hercule vira-ospassar com a caravana deescravos. Seguira-os, mas nuncase lhe ofereceu ocasião decomunicar com eles. Tinhampartido! Estavam

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irremediavelmente perdidos!E ao riso franco de

Hercule sucederam-se grossaslágrimas, que ele não tentoureprimir.

— Não chores, meuamigo--disse-lhe Mrs. Weldon.

— Quem sabe? TalvezDeus nos faça a mercê de ostornarmos a ver!

Alguns esclarecimentosmais foi quanto bastou para queDick Sand ficasse sabendo tudoquanto se passou durante o tempoque Mrs. Weldon esteve nafeitoria de Alves.

— Quem sabe? —

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acrescentou ela. — Talvez fossemelhor ter ficado em Kasonde...

— Muito desastrado soueu! — exclamou Hercule.

— Não, Hercule, não és!— respondeu Dick Sand. —Aqueles malditos acharam talvezmeio de armar alguma cilada aMrs. Weldon. Convém, pois,fugirmos sem demora!Chegaremos à costa antes deNegoro estar de volta, emMoçâmedes. Lá teremos o auxílioe a proteção das autoridadesportuguesas, e quando o traficanteAlves se apresentar para receberos cem mil dólares...

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— Receberá cem milcacetadas na cabeça! —acrescentou Hercule. — Eu meencarregarei de lhe fazer ascontas!

Não deixava, porém, deser o caso complicado; contudoMrs. Weldon não pensava voltar aKasonde. Era forçoso chegarantes de Negoro. Todos osulteriores projetos de Dick Sanddeviam tender para este fim.

Dick Sand conseguira,finalmente, realizar o que desdemuito tempo havia imaginado:encaminhar-se para o litoral,aproveitando a corrente de uma

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ribeira ou de um rio. Encontrara-aenfim; dirigia-se para o norte eera possível que fosse misturar assuas águas com as do Zaire.

Em tal caso, Mrs. Weldome os seus companheiros, em vezde irem diretamente a São Paulode Luanda, seria à embocaduradaquele grande rio que iriamparar. Era-lhes, porém,indiferente, porque não lhesfaltariam socorros por toda acosta de Angola.

A primeira ideia que teveDick Sand, já decidido a descer acorrente do pequeno rio ondeestava, foi a de se fazer

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transportar, como se fosse numajangada, nalguma das muitas ilhasde capim (1) que se encontramcom frequência nas correntes dosrios da África.

*1. Cameron falarepetidas vezes destas ilhasflutuantes.

Mas Hercule, vagueando

pela margem durante a noite, tevea fortuna de achar umaembarcação, que ia abandonada eà tona de água. Assim o desejavaDick Sand. O acaso favoreceu-o.Não era, com efeito, dessasestreitíssimas canoas de que os

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indígenas usam frequentemente,mas das que medem trinta pés decomprimento por três de largura,e que, ao impulso de grandenúmero de pás, correm comextraordinária velocidade sobreas águas dos grandes lagos. Mrs.Weldon e os seus companheirospodiam, pois, acomodar-se bemdentro dela, e bastaria conservá-la direita na corrente da água, pormeio de uma ginga, para descerbem o rio.

Dick Sand, desejandopassar sem ser visto, imaginouviajar unicamente durante a noite.Mas andar só doze horas por dia,

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e essas mesmas à mercê dacorrente, equivalia a duplicar otempo de viagem, que não podiaser longa.

Felizmente, Dick teve alembrança de fazer cobrir a canoacom um tecto de capim,sustentado sobre uma varacomprida, posta de vante a ré; ecomo o capim pendia até àsuperfície das águas, escondia aginga. Dir-se-ia que era ummontão de ervas correndo entreilhotas flutuantes. E era tãoengenhosa a disposição daquelachoça que os pássaros seenganavam; as gaivotas de bico

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encarnado, as anhingas de penasnegras, e os maçaricos cinzentose brancos vinham repetida vezespousar sobre elas e debicar nocapim.

Além disto, aquele tectode verdura servia de abrigocontra os ardores do sol. Umaviagem em tais condições, pois,podia fazer-se sem fadiga, masnão sem perigos.

Devia ser longa e, alémdisso, era mister prover dia a diado sustento quotidiano. Daquiprovinha a necessidade de caçarem uma e na outra margem,quando a pesca não bastava; e

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Dick Sand tinha apenas aespingarda que Herculeconservara, depois do assaltocontra o formigueiro. Esperava,porém, não perder um único tiro.Talvez que passando a espingardaatravés da cobertura daembarcação pudesse atirar commais certeza.

Entretanto a canoadeslizava mansamente pela açãoda corrente, cuja velocidade DickSand não estimava em menos deduas milhas por hora. Esperava,por consequência, percorrerproximamente cinquenta milhasem vinte e quatro horas. Mas, em

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razão da rapidez da corrente,convinha que a vigilância nãofosse interrompida, para evitar osobstáculos, tais como rochas,troncos de árvores e baixios.Havia ainda o receio dos saltos edas cataratas, que tãofrequentemente se veem nos riosafricanos.

Dick Sand, a quem aalegria de tornar a ver Mrs.Weldon e seu filho fizerarecuperar o antigo vigor, forapostar-se na proa da embarcação.Por entre o capim observava ocurso do rio para o lado da foz e,ou por palavras ou por gestos,

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indicava a Hercule, que manejavaa ginga, o que convinha fazer paraseguirem bom caminho.

Mrs. Weldon, estendida nomeio da canoa sobre uma camafeita de folhas secas, ia absorvidanos seus pensamentos. PrimoBénédict, taciturno, franzindo ossobrolhos quando olhava paraHercule, a quem não perdoava asua intervenção na caçada àmanticora, pensando também nasua coleção, nos seusapontamentos entomológicos, aque os indígenas de Kasonde nãodariam o menor apreço, estavaali, de pernas estendidas, os

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braços cruzados sobre o peito,fazendo às vezes o movimentoinstintivo de levantar para a testaos óculos, que já lhe nãodescansavam no nariz. Jackcompreendera que não deviafazer bulha, mas, como não lheera proibido mexer-se, imitava oseu amigo Dingo, correndo comas mãozinhas pelo chão de um aooutro extremo da canoa.

Durante os primeiros doisdias sustentaram-se Mrs. Weldone os seus companheiros dosalimentos que Hercule conseguiraarranjar antes da partida. DickSand só parou durante a noite

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para descansar algumas horas.Não desembarcou, porém,querendo fazê-lo unicamentequando a necessidade de seabastecer de provisões a isso oobrigasse.

Nenhum incidente notávelse deu no princípio da viagemnaquele rio desconhecido, o qualem média não tinha mais decinquenta pés de largura.Algumas ilhas de capim eramarrastadas também pela corrente,com velocidade igual à daembarcação.

Não havia pois receio deatracar com elas, se, por acaso,

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inopinado obstáculo as fizesseparar.

As margens pareciamdesertas. Evidentemente aquelaporção de território de Kasondeera pouco frequentada pelosindígenas.

Nas praias crescia grandenúmero de plantas selvagens, decores muito vivas e variadas.Asclépias, espadanas, lírios,clematites, balsaminas, aloés,fetos arbóreos e arbustosodoríferos formavam uma orla deincomparável beleza. Algumasflorestas vinham quase banhar-seno rio e receber a frescura das

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suas águas correntes. As árvores de onde se

extrai a goma-copal, as acácias,as bauínias, de que se corta amadeira conhecida pelo nome depau-ferro e cujos troncos estavamcobertos de líquenes do ladooposto àquele de onde sopram osventos frios, e outras árvores dediversas espécies levantadassobre as raízes, semelhandoestacadas, como os mangues, ealgumas mais de grandeslançamentos, inclinavam-se sobreo rio. As ramadas mais altas,entrelaçando-se e confundindo-sea grande altura, formavam uma

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abóbada que os raios do Sol nãopenetravam. Em alguns lugareslançavam-se de um lado para ooutro uma espécie de pontesformadas de plantas enredadiças.Por uma dessas pontes viu Jack,com grande espanto seu, na manhãde 27, passar um bando demacacos, segurando-se com acauda, para se acautelarem daqueda, se porventura a pontequebrasse.

Pertenciam à família doschimpanzés, que na ÁfricaCentral são conhecidos pelonome de “sokos”. São horrendosexemplares da sua raça: testa

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pequena, focinho amarelo-claro eorelhas grandes. Vivem aosbandos de dez, ladram como cãese são muito temidos pelosindígenas, a quem roubamalgumas vezes as crianças, queagatanham e mordem. Ao passarpela ponte de cipós, malcuidavam eles que, sob aquelemontão de ervas que a correntelevava, havia uma criança, com aqual eles se poderiam divertirbastante. O aparelho imaginadopor Dick Sand estava tão bemdisposto que enganava aquelesperspicazes animais.

No mesmo dia, vinte

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milhas mais abaixo, aembarcação estacourepentinamente.

— Que é isto? —perguntou Hercule, que seconservava ao leme.

— Um obstáculo natural.— Que é forçoso vencer,

Sr. Dick.— Sim, Hercule, mas a

machado. Já algumas ilhas decapim caíram sobre ele, e eleresistiu!

— Nesse caso, mãos àobra, meu capitão! Mãos à obra!— disse Hercule, dirigindo-separa a proa da embarcação.

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Era o obstáculo produzidopelo enlaçamento de uma plantaresistente, de folhas lustrosas, quepor si mesmo se junta ecomprime, tornando-se muitoresistente. Chamam-lhe “tikatika”,e pode dar passagem sobre asribeiras a quem não recearenterrar os pés cerca de dozepolegadas no seu tabuleiroervoso. Cobriam-lhe a superfíciemagníficas ramificações delódãos.

Começava a cair a noite.Hercule pôde sem grandeimprudência sair da embarcação,e tão bem manejou o machado que

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duas horas depois o obstáculoestava vencido, a correnteprolongava sobre as margens asduas metades cortadas porHercule, e a canoa corrianovamente sobre as águas serenasdo rio.

É forçoso dizê-lo! PrimoBénédict, sempre criança, apesarda idade, teve por um momento aesperança de que nãocontinuariam para diante. Aviagem era-lhe fastidiosa. Tinhasaudades da feitoria de JoséAntónio Alves e da palhota ondese conservava ainda a suapreciosa caixa de entomologista.

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Era verdadeira a pena que sentia,e fazia dó ver o pobre homem.Nem um inseto sequer!

Qual foi a sua alegriaquando Hercule — que fora seudiscípulo — lhe deu um horrendoanimalzinho, que apanhara numahaste da “tikatika”. Coisa notável,o negro parecia estar um poucoembaraçado quando lho entregou.

Mas que exclamaçõessoltou primo Bénédict quandoaproximou o inseto, que tinhaentre os dedos polegar e oindicador, o mais próximopossível dos seus olhos de míope,aos quais faltavam os óculos e a

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lente.— Hercule! — exclamou

ele. — Hercule! Ah! Este insetovale o teu perdão. Prima Weldon!Dick! Vejam, um hexápode únicono seu gênero e de origemafricana! Este, ao menos, hão depermitir-me que só me deixe coma vida!

— Então é muitoprecioso? — perguntou Mrs.Weldon.

— Se é precioso! — disseprimo Bénédict.

— Um inseto que não écoleóptero, nem neuróptero, nemhimenóptero; que não pertence a

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nenhuma das ordens reconhecidaspelos sábios, e que seria talvezbem classificado na segundasecção dos aracnídeos! Umaespécie de aranha, que seriaaranha se tivesse oito pernas, masque é um hexápode, porqueapenas tem seis! Ah! Meus caros,o céu devia dar-me esta alegria.Vou finalmente ligar o meu nomea uma descoberta científica! Esteinseto chamar-se-á “HexápodeBénédictus”!

O entusiasta sábio estavacontentíssimo, esquecia todas assuas desgraças passadas e futuras.Mrs. Weldon e Dick Sand não lhe

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pouparam cumprimentos.Entretanto a canoa

deslizava nas águas escuras dorio. O silêncio da noite eraapenas interrompido pelo ruídodas escamas dos crocodilos oupelo ronco dos hipopótamos quepastavam pelas margens.

Por entre as fendas docolmo, a Lua, que se via atravésdas ramadas do arvoredo,lançava a suave claridade nointerior da embarcação.

Mas de repente ouviu-sena margem direita um estrondolongínquo, depois um ruído surdo,como se fossem bombas

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gigantescas a trabalhar.Eram muitas centenas de

elefantes que, fartos de raízeslenhosas, que durante o diahaviam devorado, vinham beberágua antes de repousarem. Poder-se-ia julgar que todas as trombasdestes animais, abaixando-se eelevando-se por um mesmomovimento automático, iamestancar o rio.

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CAPÍTULO XVIII

VÁRIOS INCIDENTES Durante oito dias foi a

pequena embarcação levada pelacorrente, nas condições que ficamrelatadas. Não se deu nenhumacontecimento importante. Naextensão de muitas milhasbanhava o rio as orlas de

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magníficas florestas; depois nasterras, já despidas das belasárvores, até ao horizonte, só seviam juncais.

Se não havia indígenasnaquela região — o que DickSand não lastimava —abundavam os animais. Zebrascorrendo pelas margens, alces,caamas, espécie de antílopesextremamente graciosos, que seescondem à noite, quandoaparecem os leopardos, cujosbramidos se ouviam, e os leões,que se viam saltando por cimadas moitas. Até então os fugitivosnão sofreram dano causado pelos

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ferozes carniceiros, ou fosse dosque povoavam a terra ou dos queviviam no rio.

Contudo, todos os dias,normalmente de tarde, Dick Sandaproximava-se de uma dasmargens, atracava, desembarcavae explorava os lugares vizinhos.Era mister renovar o sustentoquotidiano, e naquele territórioinculto não havia mandioca,massango, milho ou os frutos queconstituem a alimentação vegetaldos indígenas. Estes vegetais, quecresciam sem amanho, nãopodiam servir de comestíveis.Dick Sand via-se, pois, obrigado

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a caçar, apesar de a detonação dasua espingarda lhe poder atrairalgum mau encontro.

Obtinha-se fogo pelafricção de dois pedaços demadeira, segundo o uso indígena,ou como se afirma que fazem osgorilas. Depois cozia-se umaporção de carne de alce, ou decorça, que durasse para muitosdias. No dia 4 de Julho, DickSand conseguiu matar com umúnico tiro um “pokou”, que deuboa porção de alimento. Eraanimal de cinco pés decomprimento, tinha chavelhoscompridos, guarnecidos de anéis,

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pele amarela-avermelhada, cheiade pontos brilhantes, e ventrebranco; a carne deste animal eraexcelente.

Em razão dosdesembarques quase quotidianose das horas de descanso durante anoite, o caminho andado até 8 dejulho não se devia calcular emmais de cem milhas.

Era já bastante, e DickSand perguntava a si mesmo atéonde o levaria aquele rio semfim, que recebia pequenostributos de água e que pouco sealargava. A direção, que seconservara por muito tempo ao

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norte, inclinou-se então para onoroeste.

O rio fornecia tambémalimentos. Compridos cipós,armados de espinhos em guisa deanzóis, traziam alguns“sandjikas”, de sabor delicado,os quais, secos, se conservavamfacilmente; “usakas”” muitoapreciados, “monndés” de grandecabeça, e que nas gengivas têm,em vez de dentes, uma espécie debarbas de escova, “dagalas”,pequenos peixes que frequentamde preferência as águas correntes,pertencentes ao gênero dosarenques, e que fazem lembrar os

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“whitebeats” do Tamisa.No dia 9 de Julho, Dick

Sand deu provas do seu grandeânimo. Estava só em terraesperando um caama, cuja cabeçase via por cima de uma pequenamata; tinha feito fogo, quando, atrinta passos de distância, saltouum outro caçador, mas que vinhasem dúvida reclamar a sua parteda presa, e não se mostravadisposto a abandoná-la.

Era um leão enorme,daqueles a que os indígenas dão onome de “karamos”, e não dosque pertencem à espécie que nãotem juba, chamados leões de

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Nyassi. Este media cinco pés dealtura; era formidável.

Com o salto que deu, caiusobre o caama que o tiro de DickSand lançara por terra, e que,ainda vivo, berrava sob as garrasdo terrível animal.

Dick Sand, desarmado,não teve tempo de carregarnovamente a sua carabina.

O leão vira-o logo, masnão fez mais do que olhar paraDick Sand.

Este, muito senhor de si,não fazia um movimento sequer.Lembrou-se de que em taiscircunstâncias a imobilidade

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pode ser a salvação. Não tentoucarregar a arma nem fugir.

O leão, sempre com osolhos fixados em Dick Sand,olhos de gato, brilhantes eluminosos, hesitava entre as duaspresas, a que mexia e a queestava completamente imóvel. Seo caama não se estorcesse entreas garras do leão, Dick Sandestava perdido.

Passaram assim doisminutos. O leão não despegava avista de Dick Sand e Dick Sandfixava o leão sem pestanejarsequer.

Então o leão, abocando o

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caama ainda palpitante, levou-ocomo um cão leva uma lebre, e,sacudindo os arbustos com acauda, meteu-se pelo mato dentro.

Dick Sand ficou imóvelainda alguns instantes, depoissaiu do lugar onde estava e veiojuntar-se aos seus companheiros,sem lhes contar o perigo de queescapara pelo seu valorosoânimo. Mas se, em vez de iremlevados pela corrente, osfugitivos tivessem de atravessaras planícies e as florestasfrequentadas pelas feras, talvezque àquela hora não existisse umúnico dos náufragos do “Pilgrim”.

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Aquela região, que então se viadesabitada, não o fora sempre.Mais de uma vez em certasdepressões do terreno seencontravam vestígios de antigasaldeias. Um viajante como DavidLivingstone, habituado apercorrer aquelas terras, não seteria enganado. Quem visse asestacadas de eufórbios resistindoainda, quando já não havia sinaisde cubatas, a árvore sagradaelevando-se no meio da antigapovoação, afirmaria que aliexistia uma aldeia. Mas, segundoos usos indígenas, a morte de umchefe basta para obrigar os

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habitantes a abandonar as suascasas e a transportarem-se paraoutro lugar.

É também possível quenaquela região, que o rioatravessava, as tribos vivessemdebaixo da terra, como em outroslugares da África. Estesselvagens, colocados no maisbaixo grau da humanidade, apenassaem de noite para fora dos seusantros, como os animais que saemdos covis, e tanto seria paratemer o encontro de uns como ode outros.

Dick Sand não duvidavade que aquele território fosse

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habitado por antropófagos. Portrês ou quatro vezes, em algumaclareira, entre cinzas mal frias,viam-se ossos humanos, meiocalcinados, restos sem dúvida dehorrendo banquete. Um funestoacaso podia atrair os canibais doalto Kasonde àquelas margens,exatamente quando Dick Sanddesembarcasse. Não parava, pois,sem que fosse obrigado porgrande necessidade e sem queHercule lhe prometesse que, aomais leve sinal, a embarcaçãoseria impelida para o meio dorio. O bom preto prometera comefeito, mas, quando Dick Sand

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desembarcava, custava-lhe muitoa esconder a sua inquietação aMrs. Weldon.

Durante toda a noite de 10de julho foi preciso usar ainda demais prudência. Na margemdireita do rio estava uma aldeiaformada de habitações lacustres.O alargamento do rio ali formavacomo que uma espécie de lago,cujas águas banhavam cerca detrinta cubatas construídas sobreestacadas. A corrente metia-sepor debaixo das habitações e acanoa tinha de passar sob elas,porque, perto da margemesquerda, o rio, semeado de

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rochedos, não era navegável.A aldeia era habitada.

Viam-se brilhar algumas luzes pordebaixo dos colmos. Ouviam-sevozes que pareciam rugidos. Sepor desgraça, como acontecemuitas vezes, estivessem redesestendidas entre as estacas, podiadar-se o alarme enquanto a canoaforcejasse a passagem.

Dick Sand, na proa,abaixando a voz, dava asindicações para não abalroar deencontro àquelas carcomidasconstruções. A noite estava clara.Via-se bastante para se poderdirigir a embarcação, e bastante

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também para se ser visto.Houve um momento

terrível. Dois indígenas, queconversavam em voz baixa,estavam acocorados rente da águasobre as estacas, por entre asquais a corrente ia levar a canoa,e cuja direção não se podiamodificar em razão de apassagem ser muito estreita. Eramais que provável que a vissem,e não era de recear que os seusgritos de alarme despertassemtoda a população?

Havia ainda a percorrerum espaço de cem pés deextensão proximamente quando

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Dick Sand ouviu os doisindígenas falar maisanimadamente. Um mostrava aooutro o montão de ervas quevinha à tona de água e queameaçava destroçar as redes queeles estavam lançando.Suspendendo-a apressadamente,chamaram para que osauxiliassem.

Cinco ou seis pretosdesceram pelas estacas epuseram-se sobre os barrotestransversais que as ligavam esustinham, gritando por modo talque difícil é fazer ideia. Nacanoa, o contrário: absoluto

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silêncio, interrompido apenas poralgumas ordens dadas por DickSand em voz muito baixa;imobilidade completa, a não serdo movimento de vaivém dobraço direito de Hercule,manobrando a ginga; às vezes umbramido abafado de Dingo, cujasmaxilas Jack comprimia com asmãozinhas; fora, o murmúrio dacorrente de encontro às estacadas;nas margens, os rugidos das ferase dos canibais.

Entretanto os indígenasalavam as redes com rapidez. Sefossem colhidas a tempo, aembarcação passaria; senão

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embaraçar-se-ia nelas eacabariam todos os que a canoatransportava. Modificar esuspender o andamento não opodia fazer Dick Sand, e tantomenos quanto era mais forte acorrente, em razão dasconstruções que apertavam o rio.

Em meio minuto a canoaestava entre as estacadas. Porgrande, mas rara fortuna, osindígenas conseguiram tirar asredes.

Mas, ao passar, comoreceava Dick Sand, a canoaperdeu parte do capim que lhecobria o lado direito.

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Um dos indígenas soltouum grito. Teria ele tido tempopara ver o que o colmo escondia,e teria avisado os seuscamaradas? Era mais queprovável.

Dick Sand e os seusestavam já fora do alcance, e,dentro de poucos minutos, sob oimpulso da corrente transformadanuma espécie de salto, perderamde vista a aldeia lacustre.

— Guina para a margemesquerda! — mandou Dick Sandpor prudência. — O rio torna aser navegável.

— Para a margem

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esquerda! — repetiu Hercule,fazendo mover vigorosamente oremo com que governava.

Dick Sand veio postar-sejunto dele, observando asuperfície das águas que a Luailuminava. Nada viu que lhecausasse suspeita. Nem umacanoa os perseguia. Talvez queaqueles selvagens não astivessem, e, quando despertou odia, não se viu um único indígenana praia ou na terra alta. Contudo,e por maior precaução, a canoaconservou-se sempre encostada àmargem esquerda.

Durante os quatro

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seguintes dias, de 11 a 14 dejulho, Mrs. Weldon e os seuscompanheiros não deixaram denotar que aquela porção deterritório de Kasonde tinhaaspecto diferente. Não era só umaregião deserta, mas o própriodeserto, e podia-se compará-lo aesse Kalahari, explorado porLivingstone na sua primeiraviagem. A aridez do solo nãofazia lembrar os feracíssimoscampos da região elevada.

E sempre aquele rio semfim! Merecia este nome, poisparecia ir desaguar no Atlântico!

Era difícil em território

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tão estéril obter alimentação.Haviam-se acabado todas asprovisões. A pesca dava pouco, acaça absolutamente nada. Alces,antílopes, “pokus” e outrosanimais não tinham de que viverem tal deserto. A falta deles era acausa de faltarem os carnívoros.

Não se ouviram, pois,durante a noite, os rugidos docostume. O que unicamenteperturbava o silêncio era oconcerto das rãs, que Cameroncompara à bulha dos calafates,dos ferreiros abatendo rebites, edos furadores fazendo girar osroquetes, num estaleiro de

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construções navais.A terra das duas margens

era baixa e sem arvoredo, até àscolinas longínquas que se erguiama leste e a oeste. Só aseuforbiáceas cresciamprofusamente, não aseuforbiáceas que produzem afarinha de mandioca, mas aquelasde que se extrai óleo e que nãoservem para comer.

Era mister, porém, proverà alimentação. Dick Sand nãosabia o que devia fazer, quandoHercule lhe lembrou que osindígenas comiam às vezes osrebentos ainda novos dos fetos e

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a medula da haste dos papiros. Eele quando seguia, por entre asflorestas, a caravana de IbnHamis, mais de uma vez lançoumão de tal recurso para matar afome. Felizmente os fetos e ospapiros abundavam em ambas asmargens e a medula, cujo sabor éadocicado, foi apreciada portodos, e principalmente por Jack.

Era contudo substânciapouco alimentar; mas no diaseguinte, graças a primoBénédict, tiveram melhorsustento.

Desde a descoberta do“Hexápode Bénédictus”, que

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devia imortalizar o seu nome,primo Bénédict recuperara a suaantiga feição. Tendo o inseto emsítio seguro — espetado no forrodo chapéu — o sábio entregava-se de novo às suas pesquisas,assim que punha pé em terra. Foineste dia que, procurando entre asplantas, fez levantar um pássarocujo canto lhe chamara a atenção.

Dick Sand ia fazer fogo,quando primo Bénédict gritou: —Não atire! Não atire! — repetiuprimo Bénédict. — Um pássaropara cinco pessoas épouquíssimo!

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— É quanto basta paraJack — respondeu Dick Sand,

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apontando segunda vez para opássaro, que não se apressava emfugir.

— Não atire! Não atire!— tornou a repetir primoBénédict. — É um “indicador”,que nos vai mostrar grandeabundância de mel!

Dick Sand desviou a arma,calculando que algumas libras demel valiam mais do que umpássaro, e imediatamente foramem perseguição do indicador,que, ora pousando, ora voando,os convidava a acompanhá-lo.

Não tiveram de ir longe:alguns minutos depois

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descobriram troncos velhos,escondidos entre os eufórbios, erodeados por enxames deabelhas.

Primo Bénédict teriapreferido não despojar estesindustriosos himenópteros “dofruto do seu trabalho” — foiassim que ele se expressou —mas Dick Sand não o entendeu domesmo modo. Afugentou asabelhas com fumo de ervas secas,e apoderou-se de grandequantidade de mel. Depois,deixando ao indicador os favos,que são o seu quinhão, voltoupara a canoa com primo Bénédict.

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Foi bem recebido o mel,mas era pouco, e todos teriamsofrido grande fome se no dia 12a canoa não tivesse parado pertode uma angra, onde pululavamgafanhotos. Contavam-se pormiríades, em duas ou três ordens,cobrindo a terra e os arbustos.

Como primo Bénédicttivesse já dito que os indígenas sesustentavam frequentementedestes ortópteros — o que eraexato — , apanharam grandequantidade daquele maná. Era tãogrande quantidade que se podiacarregar duas vezes aembarcação. Grelhados em fogo

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lento, aqueles gafanhotoscomestíveis teriam agradadomesmo a gente que tivesse menosfome. Primo Bénédict comeu boaporção deles — suspirando, écerto — , mas enfim comeu.

Era já tempo que estalarga série de provações morais efísicas tivesse fim. Conquanto aviagem naquele rio não fosse tãoincômoda como a marcha porentre as primeiras florestas dolitoral, o calor excessivo do dia,a umidade da noite, os ataquesincessantes dos mosquitos, tudotornava ainda muito penosa adescida pelo rio. Era já tempo de

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chegar, e, contudo, Dick Sand nãopodia prever ainda o termo daviagem! Demoraria oito dias ouum mês? Nada havia que oindicasse. Se o rio tivessecorrido diretamente para o oeste,estariam já na costa do norte deAngola; mas a direção inclinava-se mais para o norte, e podiamcaminhar assim muito tempo antesde chegar ao litoral.

Dick Sand estavaextremamente inquieto quando, namanhã de 14 de Julho, mudou adireção do caminho.

Jack estava na proa daembarcação, olhando através do

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colmo, quando um grande espaçocoberto de água lhe apareceu nohorizonte.

— O mar! — exclamouele.

A estas palavras DickSand estremeceu e correu paraonde estava Jack.

— O mar! Não, ainda não,mas, pelo menos, um rio quecorre para oeste, e do qual esteem que vamos é afluente. É talvezo Zaire!

— Deus te ouça, Dick —disse Mrs. Weldon.

Era, com efeito, o Zaire ouCongo, que Stanley devia

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reconhecer alguns anos depois.Não havia, pois, mais do quedescer o seu curso para chegar àsfeitorias portuguesas, que estãopróximas da sua foz. Dick Sandesperava que fosse assim, e tinharazões para isso.

Durante os dias 15, 16, 17e 18 de julho, a embarcaçãocorria entre terras menos áridas,levada pelas águas prateadas dorio. Contudo, continuavam asmesmas precauções, e era sempreo mesmo montão de ervas que acorrente arrastava.

Mais alguns dias e, semdúvida, os náufragos do

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“Pilgrim” veriam o termo detantos trabalhos e privações. Acada um caberia uma parte detanta dedicação, e se o jovemprático não reivindicasse para sia maior, Mrs. Weldon a daria.

Mas em 18 de julho, ànoite, produziu-se umacontecimento que quase arriscoua salvação de todos.

Às três horas damadrugada, ouviu-se um ruídolongínquo, ainda pouco distinto,na direção de oeste. Dick Sand,cheio de ansiedade, quis saber acausa de tal ruído. Enquanto Mrs.Weldon, Jack e primo Bénédict

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dormiam, chamou Hercule à proae pediu-lhe que escutasse comatenção.

A noite estava serena.Nem a mais leve aragem agitavaas camadas atmosféricas.

— É a arrebentação domar! — disse Hercule, cujosolhos brilhavam de alegria.

— Não — discordou DickSand, sacudindo a cabeça.

— Que é então? —perguntou Hercule.

— Esperemos o dia, eentretanto vigiemos ainda commais atenção.

Ouvindo esta resposta,

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Hercule voltou para a popa.Dick Sand ficou à proa.

Escutava sempre. O ruídoaumentava. Parecia já um rugidoafastado.

Nasceu o dia, quase semaurora. Rio abaixo, sobre ele, àdistância de meia milha,proximamente, flutuava naatmosfera uma espécie de nuvem.Mas não eram vapores de água, oque evidentemente se mostrouquando, aos primeiros raios doSol, apareceu um arco-íris deuma a outra margem.

— Anda para a praia! —gritou Dick Sand, por tal modo

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que acordou Mrs. Weldon. —Cataratas além. Aquela névoa é aágua dividida em partículaspequeníssimas, como quepulverizada! Anda para a praia,Hercule!

Não se enganava DickSand.

Mais abaixo de ondeestavam, o solo deprimia-se maisde cem pés, e as águasprecipitavam-se com imponentemas irresistível impetuosidade.Meia milha mais, e a embarcaçãoteria sido levada para o abismo.

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CAPÍTULO XIX

S. V. Hercule, com uma

vigorosa remada, dirigiu-se paraa margem esquerda. A correntenão se acelerava ainda naquelelugar e o leito do rio conservavaaté junto das cataratas a suainclinação normal. Era, como fica

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dito, o solo que faltava derepente, e a atração só se sentia atrezentos ou quatrocentos pés dacatadupa.

Na margem esquerdaerguiam-se grandes e densosbosques. Nem um raio de luzpassava através da suaimpenetrável espessura. DickSand via com terror aqueleterritório habitado pelos canibaisdo Zaire e que, contudo, erapreciso atravessar, pois que aembarcação não podia continuar aseguir o curso do rio.

Transportá-la para baixodas quedas de água não era

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possível.Este inesperado golpe

atingia aquela infortunada gente,quando estava quase a ponto dechegar às feitorias portuguesas!Tinham lutado bastante. Não osauxiliaria agora o céu?

A canoa atracou à margem.À medida que ela se aproximava,Dingo dava sinais de impaciênciae de tristeza.

Dick Sand, que oobservava — porque por toda aparte há perigos — , julgou queestaria alguma fera ou algumindígena escondido entre o altocapim que orlava a praia.

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Reconheceu, porém, que não eraum sentimento de cólera queagitava o animal.

— Parece que chora! —observou Jack, abraçando Dingo.

O cão, porém, fugiu-lhe e,saltando para a água, quando acanoa chegou à distância de vintepés da terra, desapareceu porentre o capim.

Nem Mrs. Weldon, nemDick Sand, nem Hercule sabiam oque pensar.

Atracaram, instantesdepois, no meio da escuma verdede confervas e de outras plantasaquáticas. Alguns pica-peixes,

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dando assobios agudos, epequenas garças, brancas como aneve, levantaram voo. Herculeamarrou a canoa ao tronco de umrizóforo, e depois treparam todospela encosta, no cimo da qual sedebruçavam árvores enormes.

Nem uma vereda seencontrava na floresta. Contudo,as ervas pisadas do soloindicavam que aquele sítio forarecentemente visitado pelosindígenas ou pelos animais.

Dick Sand, com a carabinaengatilhada, e Hercule, demachado, não tinham aindacaminhado dez passos quando

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descobriram Dingo. Este, de narizno chão, farejava, ladrandosempre. Primeiramente, foraatraído por um inexplicávelpressentimento para aquelamargem, depois era um outro queo levava pelo bosque dentro. Foiisto notado por todos.

— Atenção! —recomendou Dick Sand. — Mrs.Weldon, Sr. Bénédict, Jack,sigamos! Atenção, Hercule!

Nesta ocasião Dingolevantava a cabeça, e, pulando,parecia desafiá-los a que oseguissem.

Um instante depois Mrs.

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Weldon e os seus companheirosreuniram-se a Dingo, junto a umvelho sicômoro, escondido nolugar mais fechado do bosque.

Aí, erguia-se uma cabanaarruinada e desconjuntada, dianteda qual Dingo ladravatristemente.

— Quem está aí? —perguntou Dick Sand.

E entrou na cabana,seguido de Mrs. Weldon e dosoutros.

O solo estava juncado deossos, já embranquecidos pelaação descorante da atmosfera.

— Nesta cabana morreu

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um homem! — afirmou Mrs.Weldon.

— E era conhecido deDingo — acrescentou Dick Sand.— Foi, deve ter sido o seu dono!Ah! Vejam!

Dick Sand mostrou nofundo da cabana o tronco despidodo sicômoro.

Nele distinguiam-se aindaduas grandes letras vermelhas,quase apagadas pela ação dotempo.

Dingo pôs a pata direitasobre a árvore, como paramostrá-las.

— S. V. — exclamou Dick

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Sand. — As mesmas letras queDingo reconheceu entre todas! Asmesmas iniciais que tem nacoleira!...

Não acabou. Abaixou-se epegou numa pequena caixa decobre, oxidada, que estava numcanto da cabana.

Abriu a caixa e tirou delaum pequeno papel, no qual DickSand leu estas poucas palavras:

Assassinado... roubadopelo meu guia Negoro... 3 dedezembro de 1871... aqui... a 120milhas da costa... Dingo! Dingo!

S. Vernon.

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Este bilhete explicava

tudo. Samuel Vernon, tendopartido com o seu cão paraexplorar o centro da África, foiguiado por Negoro. O dinheiroque aquele trazia excitou a cobiçadeste infame, que resolveu roubá-lo. O viajante francês, chegadoàquele ponto das margens doZaire, estabeleceu o seuacampamento naquela cabana. Aífoi mortalmente ferido, roubado eabandonado. Feito o assassinato,Negoro fugiu, e foi então que caiunas mãos dos Portugueses.Reconhecido como um dos

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agentes de Alves e conduzidopara Luanda, foi condenado aprisão perpétua. Sabe-se comoconseguira evadir-se edesembarcar na Nova Zelândia,como depois embarcou a bordodo “Pilgrim”, para desgraçadaqueles que nele vinham! Mas oque acontecera depois do crime?Nada que não fosse fácil decompreender! O infeliz Vernon,antes de morrer, haviaevidentemente tido tempo deescrever um bilhete, no qual, coma data e o móbil do assassinato,indicava o nome do assassino.Metera o bilhete na caixa de

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cobre, onde sem dúvida estava odinheiro roubado, e, por últimoesforço, com o dedoensanguentado traçou comoepitáfio as iniciais do seu nome.Ante aquelas duas letrasvermelhas esteve Dingo muitosdias! Aprendeu a conhecê-las!Não se devia esquecer! Depois,voltando à costa, fora recolhidopelo capitão do “Valdeck”, efinalmente a bordo do “Pilgrim”,onde se encontrara com Negoro.Durante este tempo os ossos doviajante faziam-se brancos nomeio daquela floresta perdida daÁfrica Central, e apenas revivia

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na lembrança do seu cão. Ascoisas deviam ter acontecidoassim, e já Dick Sand e Herculese dispunham a dar sepulturacristã aos restos de SamuelVernon quando Dingo deu umuivo de cólera e correu para forada cubata.

Pouco depois ouviram-sea curta distância gritos horríveis.Era evidentemente um homem queestava lutando com o vigorosoanimal.

Hercule fez como Dingo.Saiu, correndo, da cubata,seguido por Dick Sand, Mrs.Weldon, Jack e Bénédict, que o

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viram lançar-se sobre um homem,que se debatia em terra, e a quemos terríveis dentes do cão tinhamseguro pelas goelas.

Era Negoro.Dirigindo-se para a

embocadura do Zaire, a fim de sepassar à América, este malvado,deixando ficar para trás a genteque o acompanhava, veio aomesmo sítio onde assassinou oviajante que a ele se confiara.

Não era, porém, semmotivo, como por todos foi vistoquando deram com algunspunhados de dinheiro francês emouro, que brilhava numa cova

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recentemente feita junto a umaárvore. Era, pois, evidente quedepois do assassínio, e antes decair “nas mãos dos Portugueses,Negoro escondera o roubo, com aintenção de voltar mais tarde parao levar, e ia lançar mão desteouro quando Dingo o descobriu elhe saltou às goelas. O miserável,surpreendido, arrancara o punhale ferira o cão, exatamente nomomento em que Hercule corriasobre ele, gritando:

— Ah! Patife. Vais enfimmorrer às minhas mãos!

Era desnecessário! Oantigo cozinheiro do “Pilgrim” já

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não dava sinais de vida,fulminado, para assim dizer, pelajustiça divina, e no mesmo lugaronde o crime fora cometido. Maso fidelíssimo cão, que receberaum golpe mortal, arrastou-se até àcubata e foi morrer onde foramorto Samuel Vernon.

Hercule enterrouprofundamente os restos doviajante; e, Dingo, chorado portodos, foi metido na mesma covacom o seu antigo dono.

Se Negoro não existia já,os indígenas que oacompanhavam desde Kasondenão podiam estar longe. Não o

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vendo, procurá-lo-iam com toda acerteza para a banda do rio. Eraisto não pequeno perigo.

Dick Sand e Mrs. Weldonpensaram sobre o que convinhafazer, e sem perda de tempo.

Ficara bem demonstradoque aquele rio era o Congo, a queos indígenas chamam Kuango, ouIkutu-ya-Kongo, que é o Zaire atécerta longitude e o Lualaba emoutra. Era, com efeito, a grandeartéria da África Central, à qualos geógrafos deveriam dar agorao nome de Stanley, em honra dojornalista americano que quatroanos depois lhe descobriu o

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curso.Não havia, pois, motivo

para duvidar de que era o Congo,como era certo também que obilhete do viajante francêsindicava que a embocadura dogrande rio distava ainda cento evinte milhas daquele ponto, e,infelizmente, naquele lugar nãoera navegável. Cataratasimponentes, provavelmente ascataratas de Ntemo, obstavam aque as embarcações continuassema navegar. Havia, pois, mister deseguir por uma ou por outramargem, pelo menos até quefossem passadas as quedas de

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água, isto é, na extensão de duasmilhas, e construir depois umaoutra jangada para de novo correrà tona de água.

— Resta decidir — disseDick Sand — se desceremos amargem esquerda, onde estamos,ou a margem direita. Ambas, Mrs.Weldon, me parecem perigosas, eem ambas os indígenas são paratemer. Contudo, deste ladoparece-me que corremos maisrisco em razão de recearmos agente de Negoro.

— Passemos para a outramargem — decidiu Mrs. Weldon.

— E poder-se-á ir por

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ela? — observou Dick Sand. —O caminho para a foz do Zaire édecerto melhor pela margemesquerda, porque Negoro oescolhia. Seja como for! Não hátempo para hesitações, mas, antesde atravessarmos todo o rio,convém que eu saiba se opodemos descer até abaixo dascataratas.

Era proceder comprudência, e Dick Sand quisrealizar o seu projetoimediatamente.

O rio naquele lugar nãotinha mais de trezentos aquatrocentos pés de largura.

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Atravessá-lo era obra fácil para ojovem (prático, habituado comoestava a governar com a ginga.

Mrs. Weldon, Jack e primoBénédict deviam ficar entregues àguarda de Hercule, esperando oregresso de Dick Sand.

Dispostas as coisas assim,ia este partir quando Mrs. Weldonlhe disse: — Não receias serarrastado para as cataratas?

— Não, Mrs. Weldon,porque passarei a quatrocentospés acima delas!

— Mas na outramargem?...

— Não desembarcarei, se

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vir o menor perigo.— Leva a tua carabina.— Sim, levarei, mas não

se preocupe comigo.— Talvez fosse melhor

não nos separarmos, Dick —acrescentou Mrs. Weldon, comoque impressionada por umpressentimento.

— Não... deixe-me ir só...— pediu Dick Sand. — Convémque assim seja, para a salvaçãode todos! Antes de uma horaestarei de volta. Hercule, tomamuito cuidado!

Depois desta resposta, aembarcação, desamarrada, levou

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Dick Sand para o outro lado doZaire.

Mrs. Weldon e Hercule,escondidos entre o capim,seguiam-no com a vista.

Dick Sand em poucotempo estava a meio rio; acorrente, sem que fosse muitoforte, sentia-se mais devido àatração das cataratas. À distânciade quatrocentos pés o estrondoenorme das águas enchia oespaço, e as brumas, açoutadaspelo vento oeste, chegavam aojovem prático. Tremia elepensando que a canoa, se nãotivesse havido tanta vigilância

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durante a última noite, se teriaperdido naquelas catadupas. Masjá não havia motivo para recear, enaquela ocasião a ginga,habilmente manobrada, bastavapara conservar a canoa emdireção um pouco oblíqua àcorrente.

Um quarto de hora depoisDick Sand chegou à margemoposta e dispunha-se para saltarna praia...

Ouviram-se então gritos, edoze indígenas se precipitaramsobre o tecto de capim, que aindacobria a embarcação.

Eram os canibais da aldeia

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edificada sobre estacas no meiodo rio. Durante oito dias seguirameles a margem direita. Sob ocolmo da canoa, que se abrira deencontro às estacas que lhessustentavam as casas, tinhamvisto os fugitivos, isto é, presacerta, porque contavam que ascataratas obrigariam estesinfelizes a desembarcar maiscedo ou mais tarde em uma dasmargens.

Dick Sand julgou-seperdido, mas perguntou a simesmo se com o sacrifício da suavida não poderia salvar os seuscompanheiros. Senhor de si, de

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pé na proa da embarcação, com acarabina apontada, conservava oscanibais em respeito.

Estes, entretanto, tinhamarrancado o colmo, debaixo doqual supunham encontrar outrasvítimas. Quando perceberam queo jovem prático era o único quelhes caíra nas mãos, julgaram-sepor tal modo logrados quesoltaram vociferações de espanto.Um rapaz de quinze anos paradez!

Mas um dos indígenasreparou e, apontando com o braçopara a margem esquerda, mostrouMrs. Weldon e os seus

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companheiros, que, tendo vistotudo, e não sabendo o que fazer,tinham subido a encosta.

Dick Sand não pensava emsi: esperava do céu umainspiração que os pudesse salvar.

A embarcação foraimpelida para fora da praia. Oscanibais iam atravessar o rio.Diante da carabina, apontada paraeles, não se atreviam a mexer-seporque conheciam o efeito dasarmas de fogo. Mas um deleslançara a mão à ginga emanejava-a como quem sabia; acanoa atravessava o rioobliquamente. Estava já a cem

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pés de distância da margemesquerda.

— Fuja! — gritou DickSand para Mrs. Weldon. — Fujaimediatamente!

Nem Mrs. Weldon nemHercule se mexeram. Dir-se-iaque tinham os pés pegados aosolo.

Para que lhes servia fugir?Em menos de uma hora estariamem poder dos canibais!

Compreendeu-o DickSand. Então teve a inspiraçãosuprema que ele pedia ao céu.Entreviu a possibilidade desalvar aqueles que ele tanto

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estimava, fazendo o sacrifício dasua própria vida!... Não hesitou.

— Deus os proteja —murmurou ele — e que a suainfinita bondade tenha piedade daminha alma!

E no mesmo instante DickSand disparou sobre o indígenaque manobrava a embarcação,quebrando-lhe a ginga.

Os canibais soltaram umgrito de terror.

Com efeito, a canoa, semgoverno, caíra no veio da água. Acorrente arrastava-a comvelocidade crescente, e poucosinstantes depois distava apenas

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cem pés das cataratas.Mrs. Weldon e Hercule

tinham compreendido tudo. DickSand tentara salvá-losprecipitando com ele os canibaisno abismo. Jack e sua mãe,ajoelhados na praia, enviaram-lheum último adeus! Herculeestendia-lhe o seu braço, agoraimpotente!...

Então os indígenas,querendo tentar chegar a nado àmargem esquerda, atiraram-separa fora da embarcação, quefizeram virar.

Dick Sand não perdera oânimo em presença da morte que

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de tão perto o ameaçava. Acudiu-lhe então ao pensamento que acanoa, por isso mesmo que estavavoltada, podia servir para osalvar.

Havia efetivamente doisperigos para recear, no momentoem que Dick Sand chegasse àscataratas: a asfixia pela água e aasfixia pelo ar. Ora aquele cascovoltado era como caixa, na qualele poderia talvez conservar acabeça fora de água, ao mesmotempo que ficava abrigado do arexterior, que decerto o sufocariaem razão da rapidez da queda.Em tais condições parece que

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qualquer homem teriaprobabilidade de escapar à duplaasfixia, até mesmo descendo ascataratas de um Niágara!

Dick Sand viu tudo istocomo um relâmpago. Agarrou-seinstintivamente ao banco queprendia as duas bordas daembarcação, e, com a cabeça forade água dentro da canoa virada,sentiu a irresistível correntearrastá-lo a cair quaseperpendicularmente...

A canoa sumiu-se noabismo cavado pelas águas juntoà catadupa, e, depois de termergulhado profundamente,

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voltou à superfície. Dick Sand,como bom nadador, percebeu quea sua salvação dependia agora dovigor dos seus braços.

Um quarto de hora depoischegava à “margem esquerda eencontrava Mrs. Weldon, Jack eprimo Bénédict, que Hercule aliconduzira apressadamente. Masjá os canibais haviamdesaparecido no redemoinho daságuas. Eles, que não foramprotegidos pela embarcaçãosoçobrada, morreram antesmesmo de chegar àsprofundidades do abismo, e osseus corpos foram despedaçar-se

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de encontro às rochas aguçadas,onde se quebrava a correnteinferior do rio.

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CAPÍTULO XX

CONCLUSÃO Dois dias depois, a 20 de

Julho, Mrs. Weldon e os seuscompanheiros encontravam umacaravana que se dirigia paraBoma. Não eram mercadores deescravos, mas honradosnegociantes portugueses, quecomerciavam em marfim.Tiveram os fugitivos bomacolhimento, e a última parte da

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viagem fizeram-na em condiçõesmais suportáveis.

O encontro daquelacaravana foi realmente um favorda Providência. Dick Sand nãopoderia numa jangada descer oZaire. Desde as cataratas deNtemo até Yallala, o rio não émais do que uma série decatadupas e saltos de água.Stanley contou setenta e duas, e écerto que nenhuma embarcação selhes atreve. Foi ali que ointrépido viajante sustentou,quatro anos mais tarde, o últimodos trinta e um combates que elese viu obrigado a dar aos

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indígenas, e escapar por milagredos perigos das cataratas deMebelo.

Em 11 de agosto, Mrs.Weldon, Dick Sand, Jack, Herculee primo Bénédict chegavam aBoma, onde os Srs. Mota Veiga eHarrison os recebiam comgenerosa hospitalidade. Estava apartir um vapor para o istmo dePanamá. Mrs. Weldon e os seuscompanheiros embarcaram nele echegaram felizmente à costaamericana.

Um telegrama, expedidopara São Francisco, avisou aJames Weldon da chegada

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inesperada da mulher e do filho,de quem em vão procuravanotícias em todos os pontos ondesupunha que o “Pilgrim” tivessenaufragado.

Finalmente, no dia 25 deagosto, o trem conduzia osnáufragos para a capital daCalifórnia! Ah! Se o velho Tom eos seus companheiros pudessemestar com eles!...

Que se diriam agora deDick Sand e Hercule? Um ficoucomo filho, o outro como amigoda casa. James Weldon sabiaquanto era devedor ao jovemprático e ao valente negro. Foi

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realmente bom que Negoro nãochegasse a procurá-lo, porquedecerto teria dado toda a suafortuna para resgatar mulher efilho. Teria partido para a costada África, e lá quem sabe aquantos perigos e perfídias seexporia!

Uma palavra mais arespeito de primo Bénédict. Nomesmo dia da chegada, o dignosábio, depois de ter apertado amão de James Weldon, fechou-seno seu gabinete e entregou-se aotrabalho, como se o tivesseinterrompido na véspera.Meditava uma obra enorme, sobre

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o “Hexápodes Bénédictus, um dosdesideratos da ciênciaentomológica.

No seu gabinete, cheio deinsetos por toda a parte, achoulogo uma lente e uns óculos... Ah!Que grito de desespero foi o queele deu quando pela primeira vezse serviu dos dois instrumentosde óptica para estudar o únicoexemplar que lhe forneceu aentomologia africana.

O “Hexápode Bénédictus”não era um hexápode! Era umaaranha vulgar! E se tinha apenasseis pernas, em vez de oito, éporque lhe faltavam as duas de

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diante! E se lhe faltavam, éporque Hercule, quando aapanhou, lhas cortoudesastradamente! Tal mutilaçãoreduzia o pretendido “HexápodeBénédictus” ao estado deexemplar incompleto eclassificava-o entre os aracnídeosmais vulgares, o que a miopia deprimo Bénédict impedira de vermais cedo! Esteve doente porcausa disto, mas curou-se,felizmente.

Três anos depois, tinhaJack oito, Dick Sand ensinava-lheas lições ao mesmo tempo quenão descansava nos seus

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trabalhos. Apenas chegou a terra,lembrando-se de tudo quanto lhefaltara, dedicou-se ao estudo comuma espécie de remorso, o quetem o homem a quem, faltando aciência, se acha acima do quevale.

— Na verdade — diziaele repetidas vezes. — Se abordo do “Pilgrim” eu soubessetudo quanto um marinheiro devesaber, quantas desgraças teriaevitado!

Assim falava Dick Sand.Aos dezoito anos tinha terminadocom distinção os estudos depilotagem, e, munido da

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respectiva carta, por favorespecial, ia comandar os naviosda casa James Weldon.

Eis até onde chegara pelasua conduta, pelo seu trabalho, opobre e pequenino órfão,encontrado na ponta de Sandy-Hook. Via-se, apesar da suamocidade, rodeado pela estima epode dizer-se pelo respeito detodos, mas era tão simples e tãomodesto que o não enchiam deorgulho tais provas deconsideração. Não suspeitavasequer, conquanto não se lhepudessem atribuir dessas açõesde que toda a gente fala, que a

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audácia, o valor e a constância deque dera tantas provas tivessemfeito dele um herói.

Contudo, absorvia-o umpensamento. Durante os rarosmomentos de descanso, que lhedeixavam os seus estudos,lembrava-se sempre do velhoTom, de Bat, de Agostinho e deActeon, pela desgraça dos quaisse julgava responsável!

James Weldon, Dick Sande Hercule revolveram céus e terrapara os descobrir. Conseguiram-no afinal, por meio doscorrespondentes que o ricoproprietário de navios tinha por

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toda a parte do mundo. Foi emMadagáscar, onde demais a maisa escravatura ia ser abolida, queTom e os seus companheirosforam vendidos. Dick Sand queriadar as suas pequenas economiaspara resgatar os pobres pretos,mas não o consentiu JamesWeldon. Um dos seuscorrespondentes fez o negócio, eum dia, a 15 de Novembro de1877, quatro negros batiam àporta da casa de James Weldon.

Eram o velho Tom, Bat,Acteon e Agostinho. Os pobreshomens, depois de haveremescapado a tantos e tão grandes

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perigos, estiveram a ponto demorrer sufocados pelos abraçosdos seus amigos.

De quantos o “Pilgrim”lançara na funesta costa daÁfrica, faltava ali somente apobre Nan; mas à velha criada,como a Dingo, ninguém lhespodia dar vida. E foi na verdadeum grande -milagre que só doisentes tivessem sucumbido nomeio de tantas desgraças.

Aquele dia, de mais serádizê-lo, foi todo de festa em casado rico negociante da Califórnia,e a melhor saúde, a que todosaclamaram entusiasticamente, foi

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a que Mrs. Weldon levantou aDick Sand, ao herói de quinzeanos.

FIM

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Tradução epolêmica

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Um Capitão de quinzeanos ou Angola na obra

de Júlio Verne

ALBERTO OLIVEIRA PINTO

Universidade de Lisboa

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RESUMO: A LEITURA DAOBRA DE JÚLIO VERNE UMCAPITÃO DE QUINZE ANOSFLAGRA A PRESENÇA DEANGOLA EM SUAS PÁGINASE REFLETE COMO ALGUMASDE SUAS IMAGENSREPERCUTEM EM OUTROSTEXTOS DE TEMPOSDIVERSOS.

“Viagem fatal” aocontinente maldito

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O espaço africanosubsahariano surge como pano defundo em pelo menos seisromances de Júlio Verne (Nantes,1828- Amiens, 1905), queconstituem o corpus do ensaio deCarlos J. F. Jorge Jules Verne. OEspaço Africano nas Aventurasda Travessia: Cinq semaines enballon (1863), Aventures de TroisRusses et de trois Anglais dansl’Afrique australe (1872), UnCapitaine de quinze ans (1872),L’Étoile du Sud (1884), Levillage aérien (1901) eL’étonnante aventure de laMission Barsac (1919) (JORGE,

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2000). De todos, porém, o únicoque contempla especificamente oterritório angolano é UnCapitaine de quinze ans, razãopela qual o escolhemos paraobjeto deste estudo. Pretendemos,numa apreciação de UnCapitaine de quinze ans,publicado em França em doisvolumes em 1872 e traduzidopara português ainda no séculoXIX, mostrando Angola em plenaépoca em que o tráfico deescravos subsiste apesar dasmedidas persecutóriaspreconizadas pela Grã-Bretanha,analisar algumas representações

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do imaginário de Júlio Verne, quemais tarde viriam a repercutir-sena literatura colonial portuguesa ena própria literatura angolana,acerca de realidades como oespaço geográfico angolano, oshomens angolanos, oscolonizadores portugueses eainda o próprio tráfico deescravos e a escravatura.

A ação do romance desenrola-se entre o dia 2 de Fevereiro e odia 25 de Agosto do ano de 1873e é narrada em dois volumes, oprimeiro dos quais se intitula AViagem Fatal e contém dezoitocapítulos. O segundo, com um

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título bem apelativo para o leitordo exotismo oitocentista, NaÁfrica, é dividido por vintecapítulos.

O patacho “Pilgrim”,pertencente ao armador norte-americano James W. Weldon,parte de Auckland, na NovaZelândia, rumo a São Francisco,na costa ocidental dos EUA,percorrendo, portanto, o OceanoPacífico de sudeste para noroeste.Leva a bordo, como passageira, aesposa do armador, Mrs. Weldon,acompanhada do seu filho Jack,criança de cinco anos, uma amanegra já idosa de nome Nan e

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ainda o primo Benedict, solteirãode cinquenta anos detemperamento pueril e excêntricoque se dedica maniacamente àentomologia, o estudocolecionista dos hexápodes,insectos de seis patas. Atripulação do pequeno navio éconstituída pelo capitão Hull, porcinco marinheiros e por um jovempraticante de quinze anos deidade chamado Dick Sand. Este éum enjeitado cujo nome próprio éo do homem que o recolheu,Richard, de que Dick édiminutivo, acrescido do apelidoSand, que em inglês significa

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“areia”, em alusão à ponta deSandy-Hook, a entrada do portode Nova Iorque, lugar onde foiencontrado. A estes tripulantesacresce um oitavo elemento, ocozinheiro, o único homem abordo que não é de origemamericana, recém contratado emAuckland, indivíduo taciturno eenigmático cujo nome sinistro,Negoro, augura desde logo aperversidade que lhe seráinerente ao longo de toda a tramado romance. Juntam-se-lhes aindacinco negros recolhidos de umnavio abalroado, todos cidadãosnorte-americanos livres que

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regressavam ao seu país ao fimde três anos de trabalho rural aoserviço de um fazendeiroaustraliano. O mais velho, Tom,nascera e fora capturado alguresem África – não se diz nunca emque ponto exato do continente –quando tinha seis anos e levadopara a América como escravo,adquirindo já adulto aemancipação. Os outros quatro,Bat, filho de Tom, Agostinho,Acteão e Hercule, eram muitomais jovens e todos já nascidosna vigência da “lei do ventrelivre”. Hercule tem aparticularidade de se vir a

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revelar, como o próprio nomeindica, um bom gigante devotadoe fiel, sobretudo em relação aMrs. Weldon, ao pequeno Jack e aDick Sand. Mas é recolhidoigualmente um sexto sobreviventedo navio abalroado, um cão,corpulento mastim de nome Dingoque, segundo informação de Tom,fora pouco tempo antesencontrado nas margens do rioZaire e em cuja coleira seencontram gravadas as letras S eV, as iniciais do nome de umexplorador francês, SamuelVernon, desaparecido em África,provavelmente o seu antigo dono.

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Tendo o capitão Hull e os seuscinco marinheiros sucumbido aotentarem desesperadamentecapturar uma baleia, Dick Sand,secundado por uma tripulaçãoimprovisada constituída peloscinco negros, assume o comandodo “Pilgrim”, fazendo jus aotítulo do romance, e compromete-se a conduzir Mrs. Weldon e osrestantes passageiros pelo menosaté à costa ocidental da Américado Sul. Mas os precocesconhecimentos científicos docapitão de quinze anos não sãoainda suficientes para lhepermitirem detectar um ato

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fraudulento de Negoro. O sinistrocozinheiro de bordo consegue, àsescondidas, aplicar um ímã àagulha magnética da bússola donavio e desviar assim a sua rota.Ao fim de cinquenta dias, a 27 deMarço, surpreendido por umatempestade, o “Pilgrim” vaiencalhar numa praia fronteira auma floresta, onde os náufragosestabelecem acampamento poruma noite, durante a qual Negorodesaparece. Todos estãoconvencidos de que estão naAmérica do Sul e essa ilusão vema ser alimentada por Harris, umnorte-americano que surge

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inexplicavelmente montado acavalo, vindo da floresta, quelhes garante encontrarem-se nolitoral da Bolívia e lhes propõeconduzi-los, subindo o curso deum riacho que desagua meioquilômetro a norte, a umafazenda. Durante o percurso,Harris desaparece, e Dick Sanddesconfia de que ele se encontraconluiado com Negoro.

Neste ponto da narrativa, quecoincide com o último capítulodo primeiro volume, o heróicompreende finalmente que seencontra no continente africano.Os indícios que o confirmam

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prendem-se por um lado com anatureza física, isto é, com a florae a fauna, por outro com anatureza socializada, ou seja, como tráfico de escravos e aescravatura. Entre os que dizemrespeito à flora, evidencie-se,logo no momento em que osnáufragos desembarcam, apresença junto à costa deadansônias, árvores conhecidasem Angola pelo nome deembondeiros ou imbondeiros (dokimbundu mbondo), inexistentesno continente americano (Ribas,1998, p.93).

A fauna africana é identificada

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em três momentos cruciais doCapítulo XVII (pp.185-199), openúltimo do primeiro volume,pelas personagens Jack, DickSand e primo Benedict. Opequeno Jack apercebe-se daausência das araras coloridas edos papagaios de penas verdes,abundantes nas florestas dasAntilhas e da América do Sul, ena vez deles só vê os tipicamenteafricanos papagaios de penascinzentas e cauda vermelha. DickSand está convencido de queavistou ao longe girafas a correr,não obstante Harris tentar enganá-lo assegurando-lhe que se trata de

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uma ilusão de óptica e que essesanimais de pescoço comprido nãosão girafas e sim avestruzes, avescorredoras de que proliferamvárias espécies igualmente nocontinente americano. Finalmenteo primo Benedict captura uminsecto que identifica como sendoa mosca tsé-tsé, propagadora datripanossomíase, a doença dosono, que só existe na ÁfricaEquatorial. Mais adiante, aliás, jáno Capítulo V do segundo volume(pp. 58-67), o mesmo primoBenedict assegura que só emÁfrica se encontram exemplaresdo que designa por “sirafus”, a

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variedade de térmites obreiras doformigueiro argiloso em cujointerior os náufragos se refugiam,que mais não é do que aquilo aque em Angola se chama ummorro de salalé, isto é, umformigueiro de térmites cujonome, salalé, provém do termokimbundu sualala (Ribas, 1998,p. 264-265).

Quanto ao tráfico de escravose à escravatura, é graças a umachamada de atenção do velhoTom que Dick Sand identifica asmanchas de sangue que vê nostroncos das árvores, assim comoos restos de membros humanos

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mutilados, as cangas quebradas eas cadeias rebentadas queencontra no chão, como sendovestígios recentes de caravanas(kibukas) de cativos acorrentadosconduzidos pelos negreiros até aolitoral. O velho negro malconsegue balbuciar “Já vi… jávi… estes ferros… Era muitopequenino… Vi!...”, mas a DickSand, ainda que preocupado emocultar a realidade a Mrs. Weldone aos demais companheiros, logoocorre exclamar horrorizado: “AÁfrica! A África Equatorial! AÁfrica dos negreiros e dosescravos!”. O título do Capítulo

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XVIII, que se conclui com estaexclamação do herói, éprecisamente “A palavraterrível”.

O espaço geográficoangolano

Até aqui, nada evidenciaAngola ou o seu território emrelação à África em geral vistacomo o continente dos horrores –algo de similar ao que JosephConrad viria a imortalizar em

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1904 com Hart of Darkness – edos homens selvagens. Naperspectiva de Júlio Verne, quevai ao encontro da mentalidadeocidental da época, os africanosseriam, aliás, ainda maisselvagens ou, pelo menos, maismaus selvagens do que osamericanos, pois Dick Sand, afim de tranquilizar oscompanheiros, no momento emque enveredam pela florestaainda convencidos de que seencontram na Bolívia, garante que“os índios americanos não sedeviam confundir com osselvagens da África ou da

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Polinésia e que provavelmente assuas agressões não seriam derecear” (Verne, s.d., p.153). Noseu cientismo rigoroso, JúlioVerne tem a preocupação deassinalar de passagem que, aocontrário do que sucederia seefetivamente Dick Sand e os seuscompanheiros se encontrassem nocontinente americano, não seavistam na costa nem palmeirasnem seringueiras, árvores que nãosão oriundas da África, se bemque umas e outras tenham sidoplantadas e domesticadas emterritório angolano e fossemmesmo abundantes nesse ano de

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1873. A palmeira terá entrado emAngola pelo menos logo após adescoberta do Brasil e aintensificação do tráfico atlânticode escravos. Quanto à seringueiraou árvore da borracha,igualmente trazida do Brasil,viria a proliferar em Angola nasegunda metade do século XIX,mas não em regiões costeiras, afim de que a borracha setransformasse numa mercadoriado comércio “lícito” emsubstituição do escravo(Henriques, 1997, p.515-563).

Mas afinal em que ponto dacosta de Angola é que os

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náufragos do “Pilgrim”desembarcaram? Segundoindicação dada já no segundovolume, o “Pilgrim” encalhou acerca de cem milhas, ou seja,aproximadamente a 160quilômetros, da foz do Kuanza(VERNE, s.d., p.88). Não se dizse a norte ou a sul, maspresumimos que a sul, uma vezque a norte, a essa distância daBarra do Kuanza, se encontraquer a cidade de Luanda –adiante, aliás, se dirá que Luandadista 400 milhas de Kasonde(Verne, s.d., p.146) -, quer olitoral socializado dessa região.

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No entanto a descrição dapaisagem feita por Júlio Verne, seexceptuarmos o exagero queatribui ao tom verdejante davegetação, que em geral não seavista a não ser nas margens dosrios ou a um mínimo de 50quilômetros para o interior,corresponde no essencial à dequalquer ponto da costa angolana,com a sua aridez sahélica e osseus barrocais a erguerem-se apartir das praias:

“Era uma estreita praia deareia, semeada de pedrasescuras, da qual se erguia a

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rocha escarpada e cortadapor sulcos irregulares. (…)No alto do rochedo (…)havia uma espessa floresta,cujos tufos de verdura,ondulantes à vista, seestendiam até às montanhasque formavam o fundo doquadro” (Verne, s.d., p.146).

Cremos tratar-se de uma praiasituada algures entre Benguela-Velha, abandonada desde o séculoXVII e só vindo a ser recuperadaem 1913, adquirindo então onome de Porto Amboim, e o entãoPresídio de Novo Redondo

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(actual cidade do Sumbe),fundado em 1769 pelogovernador Sousa Coutinho maisa sul, na foz do rio Ngunza(Milheiros, 1972, p.223-224 ep.230). O pequeno rio cujaembocadura Júlio Verne aponta acerca de meio quilômetro (umquarto de milha) a norte do lugardo naufrágio é, certamente, oLonga. Estranhamos, no entanto,não haver qualquer referência aosvestígios da antiga povoação deBenguela-Velha, cuja existênciaJúlio Verne certamente ignorava.Do mesmo modo que asmontanhas a que faz referência só

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podem ser as da Gabela e daKibala, situadas na realidademuito mais para o interior. É aliásnesta direção, ou seja, paranordeste, percorrendo mais deduzentos quilômetros do territóriodo que em 1919 viria a serdesignado por distrito e em 1975por província do Kuanza Sul, queDick Sand e os seuscompanheiros se dirigem, querenquanto são guiados por Harris,quer já depois de capturadospelos negreiros uma vez saídosdo formigueiro inundado.

A partir deste ponto os seisnegros, incluindo a ama Nan, são

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separados dos seus companheirosbrancos e, mesmo sendo cidadãosamericanos, destinam-se a servendidos como escravos na costa,excepto Hercule, que logra fugiracompanhado do cão Dingo. Osnegreiros não libertam os brancosDick Sand, Mrs. Weldon, Jack e oprimo Benedict, mantendo-oscomo reféns dos quais seráexigido avultado resgate. Sãoentão todos conduzidos a “Umarraial nas margens do Cuanza” –é este o título do Capítulo VII dosegundo volume -, arraial esseque provavelmente é o Dondo, amesma localidade que mais

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adiante Júlio Verne referirá comosendo a terra natal do negreiroJosé António Alves. Tal comoatrás Benguela-Velha se encontraausente, também aqui é deestranhar que não se indique aexistência, nem do Presídio deCambambe, logo em frente aoDondo, na margem sul do Kuanza,nem a histórica povoação deMassangano, no ponto deconfluência entre o Kuanza e oLukala, situada a menos decinquenta quilômetros a noroestedo Dondo. A explicação reside nofato de Júlio Verne não ter tidoacesso a nenhum autor português

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nem brasileiro sobre o territóriode Angola, nem aos cronistas dosséculos anteriores, como Antóniode Oliveira de Cadornega, nem aJoaquim Rodrigues Graça, quepercorrera o Kuanza trinta anosantes, em 1843, e muito menosaos exploradores científicospatrocinados pela Sociedade deGeografia de Lisboa, dos quais osprimeiros a passarem por este rioserão Capelo e Ivens, na suaprimeira viagem, que só ocorreriaem 1877, aliás apenas dois anosdepois de ter sido criada aentidade patrocinadora daexpedição. As fontes do

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romancista restringiram-se aostestemunhos dos britânicosLivingstone, Standley e Cameron,sobretudo deste último, cujospercursos reproduz com grandeentusiasmo em várias partes doromance.

As personagens de Júlio Verne,sempre conduzidas pelosnegreiros, seguem do Dondo parao Kasonde, que a par do Kasanjee do Bié é evidenciado pelosreferidos autores britânicos comosendo um dos mais prestigiadosmercados angolanos de escravos.Júlio Verne utilizarárigorosamente, daqui em diante,

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quer no que diz respeito àpaisagem e à localização doKasonde, quer quanto apersonagens verídicas que seentrecruzam com as fictícias, asdescrições constantes do entãorecentíssimo relato Across Africado tenente da marinha inglesaVerney Howet Cameron, que entreos anos de 1872 e 1876, àprocura de Standley, o qual porsua vez tinha partido em busca deLivingstone e era dado comodesaparecido – entretanto é ocorpo do próprio Livingstone quea expedição de Cameron vem aencontrar pelo caminho -,

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atravessou o continente africanodesde Zanzibar até S. Filipe deBenguela.

Kasonde, localidade que nãoencontramos indicada emqualquer mapa ou índicetoponímico de Angola (não seconfunda com Kassongue,povoação localizada,precisamente, no Kuanza Sul) masque Cameron descreve compormenor, situa-se, segundo JúlioVerne, a cerca de 640 quilômetros(400 milhas) a sudeste de Luandae a 480 quilômetros (300 milhas)a nordeste da foz do Kuanza,passando perto o rio Luhi (que

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também não deve confundir-secom o território do Lui, noBarotse, onde existia outroimportante mercado que SilvaPorto frequentou nas décadas de1850 e 1860), afluente doKuango, o qual, por sua vez,entroncará no Kongo/Zaire muitomais a norte, já fora de territórioangolano (Verne, s.d., p.88 ep.105-106). Faz parte, portanto,da actual província de Malanje,separada das Lundas pelo Luhi epelo Kuango. À existência do seumercado não é, decerto, alheia asaída dos portugueses da Feira deKasanje, que se deu dez anos

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antes, em 1862, em virtude dasrevoltas do Jaga Bumba, nem aconsequente criação do concelhode Malanje em 1867. TeráCameron querido dizer Kisonde,nome de uma das onze divisõesque integravam o concelho deMalanje em 1868 (Milheiros,1972, p.193)? Ou, atendendo aque o prefixo ki é aumentativo e oprefixo ka diminutivo, ter-se-áKisonde chamado Kasonde numtempo anterior em que,porventura, seria um povoadomais pequeno?

Numa fase final Hercule eDick Sand logram salvar alguns

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dos companheiros, com os quaisseguem numa canoa os cursos doLuhi e do Kuango, para norte, quelhes dá acesso ao Kongo/Zaire. Adescida deste grande rio até aoAtlântico, interrompida a 183quilômetros da foz pelas cataratasde Ielala – não se referindo,evidentemente, as inscriçõesdeixadas nas pedras por DiogoCão e outros navegadoresportugueses, que só viriam a serdescodificadas por LucianoCordeiro já no início do séculoXX -, é descrita, já não a partirdo relato de Cameron, e sim dode Standley.

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Os portugueses, otráfico de escravos, odegredo e a personagemNegoro

Analisar aqui a questão dosportugueses e do tráfico deescravos tem interesse sobretudoem relação às observações dotradutor português nas notas derodapé. O tom de indignaçãonelas utilizado reflete um dosargumentos mais obsessivos dodiscurso colonial português queviria a ser apropriado por uma

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grande parte da historiografiaportuguesa posterior,influenciando igualmenteintelectuais brasileiros eangolanos: o do tabu do tráfico deescravos e da escravatura, isto é,a operação retórica de negaçãoou de ocultação da longevidadeda participação portuguesa nestasduas realidades e de atribuição aPortugal de um espúrio papelpioneiro na sua supressão,impostura que ainda hoje subsisteescandalosamente nos manuaisescolares. A realidade, contudo,foi bem diferente, pois Portugalfoi, não só o primeiro país

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europeu a desenvolver o tráficoda escravatura negra destinada àEuropa e ao continenteamericano, como o último aaboli-lo juridicamente, assimcomo à própria escravatura,persistindo na sua práticaclandestina até um período muitotardio do século XIX que atingiuem alguns casos os primeirosanos do século XX.

Impulsionadointernacionalmente pela Grã-Bretanha em consequência daindependência dos EUA e darevolução industrial de finais doséculo XVIII e consagrado no

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Congresso de Viena (1814-1815),o abolicionismo viria a ter aadesão quase imediata daslegislações das potênciaseuropeias, como a Dinamarca(1792), a Grã-Bretanha (1806), aSuécia (1813), a Holanda (1814),a França (1815) e a Espanha(1817). Assente numa economiarural e esclavagista e numasociedade secularmentedesprovida de uma tradiçãofilosófica e humanística, Portugalresistiria durante décadas a estadinâmica. Graças à habilidadediplomática do duque de Palmela,o tráfico negreiro português

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conseguiu manter-se legal nohemisfério sul, entre a costaangolana e o litoral brasileiro,depois de independência doBrasil em 1822. O decretoemitido pelo marquês de Sá daBandeira em 1836 proibindo otráfico de escravos em todas ascolônias portuguesas, sobretudoem Angola e em Moçambique,não seria aplicado por não tertido a aceitação dos governadoresdessas mesmas colônias, elespróprios envolvidos com otráfico, e viria a ser revogadomenos de um ano após a suaentrada em vigor. A aprovação

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em 1839 do bill de Palmerstonpelo parlamento britânicopermitiu aos navios inglesesfiscalizar os cargueirosportugueses a sul do Equador edeclará-los piratas caso sedescobrissem escravos a bordo, oque apressou a celebração de umtratado abolicionista entrePortugal e a Grã-Bretanha em1842 que só viria a ser ratificado,isto é, a entrar em vigor entre aspartes, cinco anos depois. Tal nãoobstou a que a Grã-Bretanhainstalasse em São Tomé, Luanda eLourenço Marques consuladoscujo ponto estratégico da sua

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localização nestas cidadespermitia aos ingleses vigiar oembarque de navios negreiros, oque viria a impulsionarsobremaneira o tráficoclandestino, que no caso deAngola não é feito apenas a partirdos arredores das cidades deLuanda e Benguela, masigualmente de pontos recônditosdo interior e da costa angolana eparticularmente dos portos entãoindependentes de Cabinda. Otráfico clandestino fora de Luandae de Benguela viria a crescerainda mais quando, depois de alegislação do senador brasileiro

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Euzébio Queiroz em 1850 proibiro desembarque de escravos emportos do Brasil, se assiste a umaumento considerável dosimpostos alfandegários naquelasduas principais cidadesangolanas. Se podemos apontaresta data como a da aboliçãolegal do tráfico negreiro emPortugal e nas suas colônias, já aabolição da escravatura, previstapara 1878, será antecipada para1876 por iniciativa de AndradeCorvo, ministro tão malquisto dasociedade portuguesa quanto ofora quarenta anos antes Sá daBandeira. Mas insista-se que, no

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caso de Angola, só em Luanda eem Benguela é que as autoridadescoloniais portuguesas sepreocuparam a partir de então empunir os eventuais escravistasrecalcitrantes, e mesmo assimsempre sob a pressão dosdiplomatas britânicos ebrasileiros (estes últimos a partirda década de 1860) e perante osdesagrados manifestados peloscomerciantes angolanos. Noutrospontos do território, não obstanteos esforços empreendidos porcomerciantes como Silva Portoou Rodrigues Graça por substituirgradualmente o escravo por

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outros produtos “lícitos” taiscomo o marfim, a cera eposteriormente a borracha(Santos, 1998, P.83-176), osnegreiros actuaram com a maiorliberdade durante a segundametade do século XIX efrequentemente com a conivênciados governadores coloniais,apesar de algumas ações pontuaispor parte destes – como foi ocaso da tomada violenta doAmbriz em 1855 – destinadas atentar convencer a Grã-Bretanhade que Portugal era um paísabolicionista. O objetivo era,evidentemente, procurar

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demonstrar perante a comunidadeinternacional que Portugal tinha aocupação efetiva da maioria dosterritórios angolanos quereivindicava, princípio que sóteria consagração jurídica naConferência de Berlim (1884-1885), mas que então já sedebatia entre as potênciaseuropeias como fundamento deocupação do continente africano.O abolicionismo e a ocupaçãoefetiva dos territórios vão, pois,andar de mãos dadas ao longo dasegunda metade do século XIX emesmo durante as primeirasdécadas do século XX como

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princípios de direitointernacional e édesesperadamente e semconvicção que os portugueses,ainda agarrados ao argumentoobsoleto dos direitos históricos,procuram demonstrar aos seusparceiros coloniais que tambémos acatam (Pinto, 2006, p.213-219 e p.236-244).

As anotações de PedroGuilherme dos Santos Dinis,tradutor de Um Capitão deQuinze anos de Júlio Verne, vãoao encontro desta argumentação.Perante a eloquente resenha deVerne acerca do tráfico de

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escravos e da escravatura, queocupa todo o Capítulo I dosegundo volume, e a observaçãoacertada do romancista francês deque estas práticas só prevaleciamao tempo nas colôniasportuguesas, o tradutor não hesitaem introduzir uma nota de rodapétão extensa quanto o própriocapítulo, chegando a abranger trêspáginas (Verne, s.d., nota derodapé das pp.13-15), ondecomeça desde logo por acusarVerne de se desviar, ainda queinvoluntariamente, da verdade epor declarar que, além de nãohaver qualquer fato que provasse

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a existência de escravatura nas“províncias ultramarinas”portuguesas, os portugueses seencontrariam ilibados de culpasquanto ao seu passadoesclavagista pelo simples fato denão terem sido os únicos aescravizar africanos e a issoterem sido instigados pelos outroseuropeus e pelos muçulmanos. Aestes argumentos farisaicos,infelizmente ainda hoje assazutilizados na sociedadeportuguesa, seguem-se outros quenão menos o são, como aevocação das malogradaslegislações de Sá da Bandeira e

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de Andrade Corvo e ainda doabsurdo e persistente mito dodecreto do rei D. José em 1773proibindo o desembarque deescravos em Portugal continentale nas ilhas da Madeira e dosAçores, que faria do seu ministroSebastião José de Carvalho eMelo (então já Marquês dePombal), ao olhos néscios de umacerta intelectualidade lusa, umestranho percursor doabolicionismo em Portugal e até,pasme-se, na Europa! Não énecessário, evidentemente,conhecer a fundo a sociedadeportuguesa do século XVIII para

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perceber que o referido decretode D. José mais não foi do queuma medida circunstancialdestinada a reduzir o número deindigentes, que o abandono dosescravos por parte de umanobreza arruinada aumentava, eque o Marquês de Pombal, àsemelhança de todos osportugueses do seu tempo, não sóignorava o que fosse oabolicionismo como, além de tersempre possuído escravos,notabilizou-se mesmo como umgrande incentivador do tráficonegreiro entre Angola e Brasil.Mais adiante, o tradutor persistirá

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nos seus propósitos supostamentepatrióticos noutras anotaçõesmais curtas, nomeadamentesolidarizando-se com os que emPortugal protestaram contra asacusações de esclavagistas aosportugueses feitas por Cameron,que os considerava ainda maiscruéis do que os muçulmanos, einclusive refutandoperemptoriamente o tráficoclandestino (Verne, s.d., notas derodapé da p.85 e da p.30). O fatode estas notas se dirigirem a umpúblico juvenil torna o seu teorainda mais grave e perverso, poisprocuram ludibriar a juventude

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com a ideia subversiva de quebasta que mudem as instituiçõesnuma sociedade para que asmentalidades e os interessesautomaticamente se alterem.

A preocupação do tradutor emdemonstrar os direitos históricosdos portugueses sobre osterritórios angolano emoçambicano e mesmo sobre oespaço que medeia entre eles eque viria a dar corpo em 1886-1890 ao delirante sonho do MapaCor-de-Rosa encontra-se bemexpressa na nota em que enunciaexaustivamente as travessias docontinente africano anteriores a

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Livingstone, Grant, Speke,Burton, Cameron e Standley,como as dos brasileiros Lacerdae Almeida (1798-1799) eJoaquim Rodrigues Graça (1843-1847), as dos portuguesesMonteiro e Gamito (1831-1832) eSilva Porto (1853-1856) e a dosangolanos Pedro João Baptista eAmaro José (1802-1811), àsquais acrescenta as que serealizaram já depois dapublicação de Um Capitão deQuinze Anos, como as de Capeloe Ivens, Serpa Pinto e Anchieta(Verne, s.d., nota de rodapé daspp. 32-33).

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Merece ainda, a propósito dotradutor, uma apreciação dapersonagem Negoro. A suanacionalidade foideliberadamente omitida natradução portuguesa por setratar… de um português! Quem éNegoro? Júlio Verne dedica-lhetodo o Capítulo II do segundovolume, intitulado “Harris eNegoro”. É através do diálogoentre os dois homens que selevanta todo o véu que pendiasobre o passado do cozinheiroportuguês. E deparamos entãocom outra realidade que, a par dotráfico de escravos e da

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escravatura, a historiografia dePortugal ocultou: o degredo.Abolido apenas em 1932 e entãosubstituído pelas colônias penais,o degredo de criminosos de delitocomum esteve secularmente naorigem de grande parte dapopulação branca do Brasil, deAngola e de Moçambique.Inicialmente depositados nasfortalezas do litoral, como foi ocaso da Fortaleza de S. Miguelem Luanda, os degredadosportugueses eram depois postosem liberdade e acabavam na suamaioria por se tornarcomerciantes, muitos percorrendo

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o sertão angolano como funantes(do kimbundu ku funa, comerciar)e obtendo dos povos do interiorescravos destinados a embarcarna costa em troca de produtoscomo o vinho português ou acachaça brasileira. Negoro foi,certamente, um desses homens, osverdadeiros povoadores dascolônias, mas a quem os políticosportugueses da PrimeiraRepública, como Norton deMatos, e do Estado Novo, comoArmindo Monteiro, não hesitaramem transformar em bodesespiatórios do tráfico negreiro eda escravatura, considerando-os a

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“escória da humanidade” eapodando-os de cafrealizadospor viverem com mulheresnegras. Ao seu enselvajamentoprocederia a literatura colonialde Henrique Galvão nos anos de1930 (Pinto, 2002).

Antecipando-se a estaperspectiva, sem que aliás otradutor português nada objete emcontrário, escreve Júlio Verne, arespeito dos negreiros, que “osagentes de origem europeia, emgrande parte portugueses, são osfacínoras que os seus respectivospaíses têm expulsado do seu seio,condenados, fugidos das prisões

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(…) Tal era Negoro (…)” (Verne,s.d., p.83). Tendo sido degredadopara Angola depois de crimespraticados em Portugal, Negoroviveria durante anos do tráfico deescravos com toda a legitimidadee todo o apoio do governocolonial português. Em 1870,porém, num período em que asautoridades de Luanda e Benguela– e apenas estas – começam aperseguir os negreiros a instânciados britânicos e dos brasileiros,Negoro tem o azar de sercapturado quando conduzia umacaravana a um porto clandestinoperto de Luanda, sendo

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encarcerado numa enxovia dacapital de Angola. Daí conseguefugir e embarcar clandestinamentepara a Nova Zelândia, de onderegressará dois anos depois comocozinheiro do “Pilgrim”. O seuobjetivo é retomar a atividade decomerciante de escravos, decertoa única que lhe permitiu em todaa sua vida ser um homem livre epróspero. Júlio Verne faz dele umvilão, raptor de Dick Sand e doscompanheiros e assassino doexplorador francês SamuelVernon, e reserva-lhe uma mortehedionda e humilhante emcombate com um cão, Dingo, com

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o qual se cruza no momento emque os heróis interrompem opériplo pelo Kongo/Zaire nascataratas de Ielala.

Os angolanosesclavagistas eenselvajados

Se o tradutor se indigna, comovimos, com as acusações deesclavagismo feitas aosportugueses, em contrapartida é

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plenamente conivente com oretrato enselvajador que JúlioVerne faz dos africanos e que vaiao encontro dos estereótiposdesenvolvidos pelos escritoresportugueses já durante o séculoXX. Sempre partindo dos relatosde Cameron e com base em trêsfiguras reais descritas peloexplorador inglês – José AntónioAlves, Lourenço de SousaCoimbra e o Moini Lunga -, JúlioVerne apresenta os angolanossegundo as categorias sociais emque o discurso colonial portuguêsos dividiria.

José António Alves, reputado

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comerciante de escravos entreKasonde, Bié e Kasanje, édescrito como um negro deavançada idade que “de portuguêstinha apenas o nome” (Sic.), poisna realidade chamar-se-iaKendelé. Tendo em tempostrabalhado ao serviço decomerciantes brancos, há mais devinte anos que traficava por contaprópria (Verne, s.d., pp.107-108).À semelhança de Cameron, JúlioVerne diz que Alves nasceu noDondo, embora segundo Capelo eIvens fosse natural de PungoAndongo, igualmente nas margensdo Kuanza mas mais a leste. Num

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caso ou noutro, porém, não restamdúvidas de que se tratava de umambaquista (aportuguesamento dokimbundu muku a mbaka, pl. akua Mbaka, literalmente gente deAmbaca) de entre os muitos aquem o conhecimento da línguaportuguesa e da escrita conferiuum estatuto superior ao doskimbares, os guias das caravanasdescendentes de escravos forros,o que lhes permitiu, nos séculosXVIII e XIX, dedicarem-se aocomércio no sertão angolano.Sendo embora na maioria negrose mestiços, consideravam-sefrequentemente “portugueses” ou

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descendentes de portugueses(Heintz, 2004, p. 59-61). Alvesintegrava-se, pois, na categoriaque no século XIX se designavapor “pretos calçados”,intermediários dos europeus nocomércio com as populações dointerior, e que no século XX, emconsequência da legislaçãoiniciada em 1875 com o primeiroCódigo de Trabalho Indígena,desapareceria ou seria substituídapela dos “assimilados”.

Lourenço de Sousa Coimbra, obraço direito de Alves, tem aparticularidade de ser um mestiço(ou mulato), pois é neto de um

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português branco que, tendoemigrado para o Brasil, aí secasara com uma mulher negra oumestiça com a qual fora paraAngola e de quem tivera um filho,Júlio José Francisco Coimbra,também conhecido por FranciscoJosé Coimbra, nascido naCaconda, major do exércitoportuguês e capitão-mor do Biéentre 1838 e 1885, data em quefoi substituído por Silva Porto(Milheiros, 1972, p.33 e Heintz,2004, p.206). A descrição queJúlio Verne faz de Lourenço deSousa Coimbra, um dos muitosfilhos do major do Bié, mais não

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é do que a reprodução do retratodele já traçado por Cameron,impregnado do preconceito dopositivismo naturalista epoligenista que associa a ideia dedegeneração da espécie dosmestiços à sordidez, àperversidade e à torpeza decaráter: “ente imundo quase nu,de olhar inflamado, guedelhaáspera e encarapinhada, tezamarela, vestindo uma camisaesfarrapada e um saiote feito deervas” (Verne, s.d., p.112).

Finalmente o Moini Lunga,soberano do Kasonde cujo nomeé adequadamente alusivo aos

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títulos políticos dos mbunduorientais das margens do Kuangoe do baixo Luhi – moini é umacorruptela de muene, o senhordas terras, e lunga é o símbolodos espíritos das águas daschuvas, dos rios e dos lagos que,representado normalmente poruma figurinha humana emmadeira, legitima a autoridadesobre as fronteiras territoriais(MILLER, 1995, p.59-63) -,personifica o africanoenselvajado com todos osrecursos usados pelo discursocolonial para negar a cultura ou a“civilização” do Outro, de que se

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destacam a animalização(associada, numa primeira fase,às feras e aos animais de carga, enuma fase mais recente aoantropóide), a antropofagia, odespotismo e a propensãoexcessiva para o sexo e para oabuso de bebidas alcoólicas oude estupefacientes:

“Era o rei um velhoprecoce, gasto pelos vícios,queimado pelas bebidasespirituosas, maníaco,fazendo por mero caprichomutilar os seus súbditos, osseus oficiais ou os seus

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ministros, cortando a uns onariz ou as orelhas, os pésou as mãos a outros” (Verne,s.d., p.107).

O enselvajamento do africanodestinou-se sempre a legitimar adominação do homem europeu.No entanto, se entre o século XVe a primeira metade do séculoXIX essa dominação seprocessava pela submissão doafricano à condição de escravo, apartir da segunda metade doséculo XIX, período em que àseconomias europeias interessa aabolição do tráfico de escravos e

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da escravatura e a suasubstituição por uma exploraçãodos recursos naturais da África, oafricano, que continua a ser vistocomo selvagem e atrasado, vaiser agora reduzido ao estatuto deindígena, destinado a fornecermão-de-obra barata às unidadesprodutivas controladas peloseuropeus. Assiste-se,consequentemente, a uma curiosainversão do discurso colonial nosentido de transformar oesclavagismo num elemento deenselvajamento. Por outraspalavras, se antes o mérito daescravatura residia em subtrair o

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africano à selvajaria, doravante oafricano vai ser ironicamenteconsiderado selvagem pelo fatode… ser esclavagista! Estediscurso, também ele assazutilizado pela literatura colonialportuguesa do século XX, é aquiintroduzido por Júlio Verne aofazer do Moini Lunga o principalcúmplice, enquanto fornecedor deescravos, do comerciante JoséAntónio Alves, o qual por suavez, sendo igualmente negro, “seentendia perfeitamente com obeberrão, a quem toda aprovíncia prestava vassalagem”(Sic.) (Verne, s.d., p.107).

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À semelhança de muitosautores seus contemporâneos e detantos que o seguiram, Júlio Vernefaz do soberano africano umretrato físico escarnecedor,evidenciando os seus ornamentos,quer os tradicionais, quer aquelesque são introduzidos peloseuropeus e que por isso setransformam em bens de prestígioentre os seus mas que segundo odiscurso colonial não passam dedemonstrações da ideia de que ocolonizado jamais igualará ocolonizador em grau de“civilização”, não passandonunca de uma sua imitação

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ridícula e caricatural:

“Na cabeça trazia umaespécie de tiara ornada comgarras de leopardo pintadasde encarnado e enfeitadacom tufos de pêlo branco:era a coroa dos soberanosde Kasonde. Na cintura,dois saiotes de couro,bordados de pérolas, e maisenroscados que um aventalde ferreiro. No peito,grande número de desenhos,sinal da antiga nobreza dorei, e os quais, dando-se-lhes fé, mostravam que a

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genealogia de Moini Lungase perdia na noite dostempos. Nos artelhos, nospulsos e nos braços de SuaMajestade, braceletes decobre, engastados de“sofis”, e os pés metidosnumas botas de lacaio comcanhão amarelo, presenteque lhe fizera Alves haviajá vinte anos. Na mãodireita uma grande bengalacom castão de prata, naesquerda uma ventarola como cabo enfeitado demissangas, no nariz a lente eos óculos do primo

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Benedict, que tinham sidoencontrados na algibeira deBat, e finalmente cobertopor um velho chapéu de sol,tão cheio de remendos queparecia feito dos calçõesdos arlequins” (Verne, s.d.,p.128).

Resta ainda referir que, a pardo Mau Selvagem, hostil aohomem ocidental e personificadono Moini Lunga, também o BomSelvagem, aquele que se mostra“grato” à ação civilizadora dohomem branco e a ele se submetecom docilidade enquanto amigo e

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aliado, se encontra presente nesteromance de Júlio Verne, aindaque na figura de um norte-americano descendente deescravos, o bondoso e servilHercule, que mais do que umacriança grande – o mérito docolonizador, segundo o discursocolonial, reside sempre natransformação dos “déspotas” em“crianças grandes” -, é umacriança gigantesca ou, como opróprio nome indica, hercúlea. OCapítulo XVI do segundo volume,intitulado “Um Meganga” e ondese descreve a aventura deHercule, sob o disfarce de um

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meganga (ou nganga, o sacerdotecurandeiro da tradição bantu),subtraindo Mrs. Weldon e opequeno Jack à antropofagia dopovo do Moini Lunga, é disso umbom exemplo.

Referênciasbibliográficas

Bibliografia ActivaVERNE, Júlio. Um Herói de

Quinze Anos1. Primeira Parte. AViagem Fatal, Trad. Pedro

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