um golpe pela democracia? o projeto de transição política ... · o projeto de transição...

18

Click here to load reader

Upload: dinhliem

Post on 09-Dec-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

Um golpe pela democracia? O projeto de transição política dos militares guatemaltecos

(1982-1986)

Ana Carolina Reginatto Moraes*

A proposta deste artigo é analisar o processo de transição política na Guatemala

centrando-se, especificamente, no golpe promovido por parte dos oficiais do Exército em

1982 e a posterior construção de um projeto militar de transição. Tendo em vista a falta de

estudos no Brasil voltados para os processos vivenciados pela América Central, em geral, e

especificamente pela Guatemala, faz-se necessário apresentar alguns fatos fundamentais do

desenrolar histórico-político do país em questão.

A abrupta interrupção do ciclo democrático, inaugurado com o governo de Juan José

Arévalo em 1944 e deposto em 1954 com a queda de Jacobo Arbenz, pôs fim a um conjunto

de medidas populares e democráticas como reforma agrária, leis trabalhistas e sufrágio

universal. A articulação de interesses entre as oligarquias agrárias nacionais e o grande capital

privado estrangeiro, sobretudo, os da United Fruit – empresa norte-americana, cuja área de

atuação envolvia diversos setores da economia guatemalteca1 -; foi corroborada por uma forte

campanha internacional anticomunista orquestrada pelo Departamento de Estado norte-

americano e pela operação militar para derrubar Arbenz, dirigida pela agência de inteligência

dos Estados Unidos – CIA.

Após o golpe, os militares que tomaram o poder conviveram com um período de

intensa instabilidade política e social. No início dos anos 1960, no momento em que tentavam

se estabilizar, tiveram que conter grandes protestos populares urbanos e a formação dos

primeiros grupos guerrilheiros. A partir de 1965, uma nova Constituição foi promulgada e

eleições periódicas foram autorizadas, sempre de forma fraudulenta, garantindo que o

Ministro da Defesa do governo anterior chegasse à Presidência. As primeiras campanhas

contra-insurgentes foram então implementadas sob a égide de uma política de segurança

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ). 1 Além de ser a maior proprietária de terras da Guatemala, a United Fruit não se restringia ao setor fruteiro agroexpotador, atuando no setor ferroviário, através de sua subsidiária, a International Railways of Central America e no controle de Puerto Barrios, o único porto do país. Para maiores detalhes ver: (BANDEIRA, 1998:124-125).

Page 2: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

2

nacional contra a ameaça interna. A combinação de um projeto econômico ampliador das

desigualdades sociais, com o fechamento dos espaços políticos e a dura repressão culminaram

em uma nova onda de protestos, aliando trabalhadores urbanos e rurais, no final dos anos

1970. Foi em resposta a essa crise social e também econômica, que um grupo de militares

tomou o poder, em 1982, propondo uma reorganização da filosofia de atuação do Exército

que possibilitasse a derrota do movimento guerrilheiro e um processo de transição política

seguro.

Que transição?

A partir de meados da década de 1970, mas, sobretudo, no decênio 1980-1990, os

movimentos democratizantes ocorridos na Europa do Sul, na América Latina e no bloco

socialista do leste europeu, suscitaram amplos estudos no campo da Ciência Política sobre os

processos de transição de regime. Neste contexto, alguns estudiosos da “transitologia”

buscaram reconstruir aspectos comuns destes processos vivenciados por diferentes países,

elaborando alguns paradigmas sobre as transições, no entendimento das mudanças políticas e

institucionais que levaram à democracia que, por vezes, revelaram-se demasiadamente

mecânicos e etapistas.

Neste sentido, como nos alerta Ricardo Sáenz de Tejada, a experiência centro-

americana não se enquadra em certas tipologias “transitológicas”, mesmo em comparação

com seus vizinhos do Cone Sul por algumas razões específicas:

En primer lugar, y como se ha hecho notar por algunos estudiosos, no se trató como en el caso chileno de un retorno a la democracia, pues se trata de países que no poseen tradiciones democráticas. (…)En segundo lugar, un factor clave en la discusión lo constituye el hecho de que este proceso se dio bajo la continuidad de guerras civiles o enfrentamientos armados internos. A diferencia de otros procesos en los que los grupos en conflicto pactaron la paz y posteriormente la celebración de elecciones libres; en Guatemala se celebraron elecciones no fraudulentas en medio de la guerra. Finalmente, y en contraposición a los países del este europeo e incluso de las dictaduras del cono sur de América, donde la democratización era una demanda social impulsada por amplios sectores de la ciudadanía, en este caso la continuidad de la represión había eliminado las posibilidades de demanda de la sociedad civil y, fueron las elites políticas y militares las que pactaron las condiciones del cambio político. (TEJADA, 2013).

Page 3: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

3

No caso dos debates suscitados sobre o processo guatemalteco, podemos delimitar três

grandes eixos de análise. O primeiro dedica-se a atuação preponderante dos militares na

condução da transição, o segundo procura analisar os interesses e a influência das classes

dominantes na pacificação do país e no retorno ao regime civil e o terceiro investe na atuação

das organizações de direitos humanos e nos movimentos sociais no aprofundamento da

democratização. Tais análises, muitas vezes, apresentam divergências sobre a delimitação

temporal do processo. Grosso modo, alguns autores entendem o início da transição a partir do

golpe de 23 de março de 1982 e seu término com a chegada ao poder do presidente civil

Vinicio Cerezo, em 1986. Outros, porém, entendem que a convocação da Assembleia

Nacional Constituinte, em 1984, inicia o processo que tem seu fim somente com a assinatura

do último Acordo de Paz entre o governo e a guerrilha, em 1996. Vejamos alguns exemplos.

As considerações apresentadas por Jennifer Schirmer (1998; 2006), por exemplo,

enfatizam a liderança da transição política na Guatemala pelos governos militares instituídos a

partir do início da década de 1980. Segundo a autora, o golpe militar de março de 1982 que

depôs o general Lucas García da presidência, significou uma ruptura com antigas lideranças

políticas dentro do Exército 2 e a ascensão de um novo grupo que acreditava na sobrevivência

institucional das Forças Armadas, através de uma abertura política gradual e de um governo

civil em parceria com as medidas contra-insurgentes. A criação do Plano Nacional de

Segurança e Desenvolvimento e suas sucessivas campanhas militares, responsáveis pelo

massacre de centenas de comunidades indígenas, foi acompanhada por uma nova estratégia

para conquistar “corações e mentes” com a criação de instituições como as Patrulhas de

Autodefesa Civis e os Pólos de Desenvolvimento. Desta maneira, os militares buscavam se

aproximar da população rural, obrigando-as a servir como estruturas de vigilância contra a

guerrilha, ao mesmo tempo em que ofereciam investimentos e uma atuação mais presente do

Estado nessas comunidades.

Para a autora, a partir de 1982 os militares guatemaltecos que tomaram o poder,

procuraram reformular a filosofia de atuação de Exército, colocando em prática um projeto

político que se iniciou com massacres e terminou, de fato, com a realização de eleições civis

presidenciais em 1985. Diante do caráter ambíguo da nova Constituição, um Estado

2 Os anos 1970 foram marcados pelo o que muitos autores consideram como uma democracia de fachada. Mantinha-se a vigência da Constituição de 1965, porém, os presidentes eleitos eram sempre os ex-Ministros da Defesa do governo anterior.

Page 4: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

4

constitucionalista fora forjado consolidando e legitimando a estrutura militar existente, da

mesma forma com que o discurso democrático e dos direitos humanos era incorporado e

ressignificado:

Como sublinhado na Tese de Estabilidade Nacional, de Hector Gramajo, em 1989, essa estratégia reconhece a Constituição enquanto, ao mesmo tempo, delega ao Exército o papel de guardião dos interesses nacionais; a missão dessas forças, por outro lado, será a de preservar o “equilíbrio” quando o Estado é ameaçado por “opositores do Estado” ou por uma vacância de poder criada por políticos civis ineptos. A implementação desta estratégia permitiu aos militares guatemaltecos agir com base em novos cálculos constitucionais, legais e democráticos, mesmo que a Guatemala permanecesse um dos maiores violadores dos direitos humanos da região. (op.cit, 2006).

Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas y el fin del conflicto armado,

Rachel McCleary (1999) também privilegia a participação dos setores “agroindustriais” no

processo. Segunda a autora, a derrota militar das forças guerrilheiras entre 1982-1983 fizeram

da continuidade da violência de Estado e sua paranóia contra-insurgente, o grande entrave

para o desenvolvimento dos interesses econômicos de uma nova geração de industriais e elites

comerciais que apostavam na liberalização econômica do país para usufruírem da abertura de

mercados, vigente à época. Neste sentido, a democracia e o respeito às suas instituições

tornaram-se bandeiras essenciais para o desenvolvimento capitalista em sua nova fase,

neoliberal.

Estes grupos, organizados através do Comitê Coordenador de Associações Agrícolas,

Comerciais, Industriais e Financeiras (CACIF), reivindicavam não só uma transição política

para um regime civil que contornasse a crise dos anos 1980 e a imagem internacional do país,

mas também, uma transição econômica de uma política de substituição de importações, com

intensa interferência do Estado, para uma liberalização dos mercados e sua maior autonomia

perante o governo. Segundo a autora, foi a partir da liderança do CACIF diante da Instância

Nacional de Consenso, na oposição ao golpe promovido por Serrano Elías em 1993, que

Exército e setor privado selaram um “acordo entre elites” no respeito ao regime

constitucionalista, onde a liberalização política e econômica seria controlada e promovida

“desde cima”. Esse tipo de transição, alerta McCleary, representou uma continuidade de

antigas práticas políticas baseadas em relações paternalistas e troca de favores que

deslegitimaram o processo de transição e a dimensão democrática no país.

Page 5: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

5

O cientista político Roddy Brett (2006), por sua vez, acredita que a criação de

estruturas mais democráticas pela nova Constituição, como a Corte Suprema de Justiça e a

Procuradoria dos Direitos Humanos, e a instituição de um regime civil, possibilitou não só

uma brecha para a articulação de movimentos civis, mas também, permitiu aos grupos de

direitos humanos legitimarem suas reivindicações dentro do espaço político, mesmo diante

desse cenário de adversidades.

Estas organizaciones sacaron ventaja del discurso más amplio y del régimen legal internacional de derechos humanos, que se mostró receptivo a sus demandas y además, utilizaron los mecanismos establecidos en la Constitución de 1985 y las obligaciones internacionales del Estado para exigir los derechos humanos a los que legalmente tenían derecho. (op.cit, 2006).

A legitimidade da atuação desses grupos recebia apoio de uma rede de direitos

humanos internacional e fora construída, em um primeiro momento, através do discurso de

direitos humanos fundamentais. Entretanto, o autor ressalta que na medida em que o processo

de democratização se consolidava, esse conceito foi ampliado. Se a priori, as reivindicações

centraram-se principalmente na defesa do direito à vida e no fim imediato das violações, com

o tempo, as demandas baseadas em direitos coletivos específicos dos povos indígenas e

ligadas a questões de gênero, começaram a ganhar um espaço significativo no debate público.

Essa mudança estava ligada ao clima local e internacional receptivo e aos antecedentes

históricos de racismo, discriminação e a cultura machista que modelaram as práticas

autoritárias no país. Desta forma, a evolução da noção de direitos humanos presente nas

reivindicações sociais, estava profundamente ligada ao sentido desse passado recente e a

necessidade de superação de suas práticas e valores.

Tendo por objeto a transição política, entendemos que as condições para o início de tal

processo são dadas a partir do golpe de 1982 e da construção de um projeto militar que

visava, não só, abrir caminho para o retorno ao regime civil mantendo a importância

institucional do Exército na vida política do país, mas também, atender aos interesses de

importantes setores das classes dominantes da Guatemala.

O golpe e a reestruturação do poder militar

Nos meses anteriores ao golpe, o país apresentava uma crise econômica em escalada

desde 1973. A produção de café foi afetada pela queda dos preços no mercado internacional.

Page 6: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

6

Os grandes produtores passaram a exigir uma redução dos impostos de exportação, que não

foi atendida pelo governo do general Romeo Lucas García. O setor algodoeiro, além de sofrer

com os incêndios provocados pelos insurgentes, também começou a sentir a queda dos preços

internacionalmente. A violência que se alastrava pelo país, no conflito entre forças

guerrilheiras e o Exército, ainda trouxe consequências aos investimentos estrangeiros e ao

turismo. 3

Dentro da instituição militar, pairavam muitas incertezas. A possibilidade real de uma

derrota final das forças guerrilheiras ainda era motivo de questionamento por alguns setores

do Exército. O desgaste das campanhas contra-insurgentes e a falta de estrutura para o avanço

do contra-ataque militar, situação que deixava muitos soldados e oficiais em condições

precárias no interior do país, também eram alvos de crítica. Além disso, o descontentamento

com o envolvimento da alta cúpula militar em fraudes eleitorais nos últimos 12 anos e os altos

índices de corrupção dos sucessivos governos, eram dois pontos relevantes dentro de um

processo de questionamento da instituição armada, não mais por opositores partidários ou

populares, mas agora, também por setores de peso econômico e político.

O golpe de 1982 foi uma resposta a este cenário, como afirma Carlos Figueroa (2011),

uma decisão do Exército em romper com sua própria legalidade. A derrubada de Lucas García

se concretizou na madrugada do dia 23 de março. Cerca de 950 militares se prepararam para

retirar do poder um general que as mesmas forças armadas haviam transformado em

presidente, através da fraude eleitoral de 1978. Pouco antes do meio dia, depois de ver o

Palácio Nacional cercado por tanques e a capital sobrevoada por aviões de guerra, Lucas

García renunciou.

Os dirigentes militares mais visíveis do golpe de Estado, conhecidos como el

triunvirato, foram o general Efraín Ríos Montt, Horacio Maldonado Schaad e o coronel

Francisco Luis Gordillo. Maldonado era vinculado ao MLN e, como chefe de quartel,

manteve estreito contato com a direção central da inteligência militar e com o Estado Maior

do Exército. O coronel Gordillo foi chefe das brigadas dos departamentos de Izabal e

Quetzaltenango e, sob as ordens do general Benedicto Lucas García, irmão de ex-presidente,

participou de campanhas militares em 1981, nestes departamentos. Ríos Montt era velho 3 Entre 1981 e 1982, o otimismo com o aumento da produção petrolífera foi barrado pela decisão de algumas companhias que se dedicavam a exportação e produção em não mais atuarem no país, devido violência. Também em 1981, o Departamento de Estado norte-americano emitiu uma nota afirmando que viajar para a Guatemala poderia ser perigoso. Ver: idem, p. 170-171.

Page 7: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

7

conhecido da política nacional. Regressou de sua estadia na Espanha como membro de uma

seita religiosa evangélica, La Iglesia del Verbo. Como “vítima” da fraude eleitoral de 1974 o

general era, sem dúvida, a figura ideal para dirigir um novo modelo de gestão do Estado,

atraindo apoio político e social.

A primeira medida adotada, após o golpe, foi afastar a cúpula militar do governo

Lucas, criando um órgão deliberativo ou uma junta militar, conhecida como la juntita, que

reorganizaria o novo governo. O Congresso foi fechado e a Constituição, em vigor desde

1965, suspensa. No início de maio um novo programa de governo foi promulgado, o Plano

Nacional de Segurança e Desenvolvimento, onde os militares eram designados como os

condutores da reconstrução nacional na luta contra a corrupção e a desigualdade econômica,

afirmando o compromisso de promover uma integração participativa dos diferentes grupos

étnicos da Guatemala e restabelecer, o mais rápido possível, a ordem constitucional e o livre

jogo democrático (BATAILLON, 2008).

Em junho, com o apoio da juntita, Ríos Montt se autoproclamou presidente, afastando

os demais funcionários vinculados ao governo anterior. Em nome do combate à corrupção e

aos excessos cometidos, o novo presidente também dissolveu o corpo de detetives da Polícia

Nacional. Este expurgo, assim como o afastamento da cúpula militar de Lucas García, de

forma alguma foi acompanhado por uma depuração. Foram antes, resultado de negociações e

compromissos de não prender ou julgar oficiais ou membros do Exército do governo anterior.

Como afirma Gilles Bataillon, fazendo alusão à opção religiosa de Ríos Montt: “Todo ocurre

como si, gracias el golpe de Estado y a sus reordenamientos y reajustes, el ejército quedara

absuelto de todos sus crímenes pasados, al igual que un reborn christian se libra de todos sus

pecados anteriores” (op.cit: 288).

Este aparente rompimento com o passado também foi forjado nos discursos do novo

governo que enalteciam o jogo democrático e a tolerância social e étnica, escamoteando a

manutenção do terrorismo de Estado e, mais ainda, seu incremento. Para Carlos Ibarra, o

golpe de 1982 foi, antes de tudo,uma manobra para normalizar as relações do aparato estatal e

o conjunto das classes dominantes. A crise dentro da própria burguesia, durante o período

final de Lucas García, resultou em uma tentativa dos militares em contorná-la, como

negociador de uma “socialização” do poder com outros grupos da burguesia guatemalteca,

Page 8: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

8

interessados em entrar em confluência com o novo viés liberalizante da economia mundial

(IBARRA, op. cit.: 176-177).

Outro ponto importante é que os discursos de combate à corrupção e de refundação do

jogo democrático, encontravam apoio em diferentes setores da sociedade guatemalteca.

Partidos reformistas e de extrema direita, como a Democracia Cristã (DCG) e o Movimento

de Libertação Nacional (MLN), foram voz uníssona ao afirmarem que a derrubada de Lucas

García era necessária e inauguraria uma nova era para a Guatemala, provocando uma

reconstrução da legitimidade do poder militar dentro do espaço político do país.

Para Jennifer Schirmer , dentro deste cenário de crise de legitimidade, a partir do golpe

e do Plano Nacional, os militares promoveram uma reestruturação da sua filosofia de atuação

procurando fortalecer a importância institucional do Exército na vida política do país.

Estratégia que, segundo a autora, começou com a ampliação da contra-insurgência, através de

massacres as comunidades indígenas, e resultou no controle do processo de transição política

e do novo governo civil (SCHIRMER, op. cit).

Esta reestruturação obrigou a uma reavaliação da concepção de segurança nacional. O

objetivo primordial era derrotar a guerrilha pelo fortalecimento do Estado e, neste sentido,

como afirmou o coronel Héctor Gramajo, figura central de todo este processo, a estratégia

fundamental era “pelear una guerra en todos los frentes: militar, político y, sobre todo, social

y económico. Las voluntades y corazones del pueblo eran nuestros objetivos.”(GRAMAJO,

1995: 181). Os militares passaram a assumir que a múltipla exclusão indígena da sociedade

guatemalteca, tinha tornado estas populações propícias à influência do discurso

revolucionário. Era preciso incorporá-las ao controle do Estado, tirá-las da situação de

marginalidade onde ficavam mais suscetíveis as promessas de igualdade comunistas.

Esta nova filosofia foi fundada pelo Plano Nacional e seguida através da formulação

de campanhas militares anuais intituladas como Victoria 82, Firmeza 83, Reencuentro

Institucional 84, Estabilidad Nacional 85, Consolidación Nacional 86 e Fortaleza 87 que,

apesar de possuírem metas específicas, eram erguidas sobre a anterior, em um processo de

aprimoramento das novas estratégias político-militares.

Militarmente, o Plano resultou na criação de um sistema altamente centralizado,

coordenado a partir do Estado Maior do Exército. As regiões do interior do país foram então

classificadas em zonas, de acordo com seu envolvimento com os insurgentes. As zonas

Page 9: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

9

brancas estavam livres da influência rebelde; as identificadas pela cor rosa eram áreas onde a

guerrilha possuía alguma atuação e, por isso, deveriam ser atacadas, mas mantendo a

configuração estrutural das aldeias; já as zonas vermelhas eram as regiões cooptadas pela

guerrilha e, portanto, todos deveriam ser executados e a tática de terra arrasada empregada.

Deste modo, os comandos militares de cada departamento, ligados ao Estado Maior,

formaram forças-tarefas para realizar varreduras mais ou menos drásticas nas comunidades

indígenas, dependendo da classificação militar. 4 O plano fundamental era destruir e

reconstruir essas áreas e populações, promovendo a integração nacional sob a mão forte do

Exército guatemalteco.

A estratégia, em relação às zonas rosas e vermelhas, era promover varreduras

sucessivas que alternassem massacres e a captura daqueles que fugissem do terror militar,

com o intuito de implementar uma destruição permanente do que os militares consideravam

como a base social de apoio à guerrilha. As comunidades eram atacadas pela queima de seus

espaços físicos e muitas foram bombardeadas. As perdas materiais também atingiram as

formas elementares de sobrevivência, com a destruição das plantações e de animais cativos e

o envenenamento da água que abastecia essas populações.

Paras as zonas brancas ou nas regiões pós-massacres, os militares criaram o Plano de

Ação para Áreas de Conflito (PAAC). Era preciso evitar a “síndrome do Exército invasor”, 5

reaproximando os militares da população nas regiões “pacificadas”, criando mecanismos de

bem-estar social que pudessem reconquistar a confiança e o apoio dos indígenas em relação

ao Exército. Como afirmou Ríos Montt à época: “Naturalmente, si una operación subversiva

existe donde los indígenas están involucrados con la guerrilla, los indígenas morirán. Sin

embargo, no es la filosofía del ejército de matar indígenas, pero de reconquistarlos, de

ayudarlos.”(CEH, 1999:241).

Essa reconquista foi na verdade uma reorganização das comunidades pela região do

Altiplano, dentro de um plano de desenvolvimento militarizado destas populações. Os índios

foram obrigados a trabalhar por comida na construção de aldeias modelos ou polos de

4 Ver: GRANDIN, Greg. A revolução guatemalteca. São Paulo: Editora UNESP, 2004. p. 104-106 e SCHIRMER, Jennifer. op. cit. p. 44-49. 5 Segundo Grandin, com base em experiências de outras operações contra-insurgentes, particularmente no fracasso norte-americano no Vietnã, os estrategistas militares guatemaltecos desenvolveram uma filosofia que procurava reaproximar o Exército da população atingida por suas ofensivas, aliviando o repúdio às Forças Armadas por essas comunidades, dando oportunidade aos militares de manter uma presença prolongada no campo.

Page 10: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

10

desenvolvimento. 6 Estes novos espaços de convivência, que quase nunca eram os locais de

origem da maioria das comunidades, recebiam investimentos do governo e de agências

internacionais, 7 oferecendo uma infraestrutura básica (água, comida e habitação) que buscava

demonstrar a preocupação do governo com esses povos, além de tentar atrair aqueles que

optaram por fugir para as montanhas, ficando fora do controle estatal.

Com as comunidades arrasadas e suas populações manejadas de acordo com os

interesses militares por diferentes áreas do Altiplano, a intenção era tornar o Exército o único

provedor de bens de primeira necessidade. Transformando a fome em moeda de troca pela

lealdade ao governo. Na maioria dos casos estas aldeias modelo eram, na verdade, centros de

concentração indígena forçada que possibilitava a normatização da vida indígena, sob a égide

militar.

Neste período, o processo de militarização das comunidades, iniciado ainda durante o

governo de Lucas García, foi intensificado com a formação das Patrulhas de Autodefesa Civis

(PAC), a partir do decreto-lei n° 160 de 1983. Apesar de tecnicamente não serem soldados, os

patrulheiros eram homens obrigados a exercer controle e vigilância locais, respondendo à

hierarquia militar e pagos com alimentos. Muitas vezes, se tornar um patrulheiro era uma

estratégia de sobrevivência básica. As PAC tinham como responsabilidade primordial formar

pelotões de vigia alternada, durante 24h, assim como, acompanhar o Exército em operações

de busca, quando necessário (CEH, 1999).

As consequências da ampliação das técnicas de contra-insurgência foram drásticas

para as comunidades indígenas. A mortalidade dos massacres foi acompanhada por uma

perversidade tamanha que mutilou corpos, violou mulheres, torturou e matou anciões e

crianças. Eram práticas comuns a extração do feto em mulheres grávidas, estupros coletivos e

o assassinato de meninos e meninas através de métodos cruéis. (REMHI, 1998).

Além da matança, que levou a comissão da verdade a afirmar que entre 1981-1983,

“atos de genocídio” foram praticados por agentes do Estado, a nova política contra-

6 Programas como Fusiles y frijoles ou Techo, Trabajo y Tortillas, foram implementados durante o governo de Ríos Montt. 7 O Congresso norte-americano, durante o primeiro mandato de Ronald Reagan, aprovou verbas cada vez maiores de ajuda econômica e militar para a Guatemala. Entre 1980 e 1986, essa ajuda financeira subiu de 11 milhões para 104 milhões de dólares. A principal agência que dirigiu seus investimentos para as aldeias modelo e polos de desenvolvimento foi a United States Agency for International Development (USAID). Outras instituições internacionais também foram importantes ao apoio do programa militar, encarado internacionalmente como uma campanha de pacificação do país. Entre as mais relevantes estão os programas mundiais de alimento da ONU e organizações voluntárias particulares. (GRANDIN, 2002: 109-110).

Page 11: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

11

insurgente, provocou a quebra de laços comunitários e uma crise de identidade cultural. Como

afirma Jennifer Schirmer, dentro da estratégia militar de reconquistar os povos indígenas,

trazê-los para o círculo de controle do Estado, os militares buscaram criar um novo índio,

muito menos ligado às tradições históricas de seu povo e mais leal aos símbolos nacionais, ao

Estado e, consequentemente, ao Exército (SCHIRMER, op. cit.: 59).

Com este intuito, durante as varreduras militares, os líderes religiosos indígenas foram

especialmente caçados e mortos, assim como, os locais sagrados, muitas vezes transformados

em câmaras de tortura. A violência contra as mulheres também foi um exercício de

dominação cultural, uma vez que, dentro da cultura maia, a figura feminina está ligada a

reprodução física e também cultural da comunidade. Ao expor as mulheres indígenas,

incluindo crianças e anciãs, a estupros coletivos perante toda a aldeia ou a mutilações sexuais,

os militares macularam uma cultura, como forma de vitória e poder.

A ofensiva também foi responsável pela ruptura das relações entre os indígenas e a

terra. Toda a cosmovisão maia, que pressupõe relações afetivas e espirituais com a terra e com

o produto de seu cultivo, foi brutalmente cortada com os deslocamentos forçados e a fuga

para as montanhas ou para a fronteira com o México. (REMHI, 1998).

O massacre cultural também foi corroborado pelo processo de militarização. Através

das PAC, novas relações de poder e coerção foram estipuladas nas comunidades. Substituindo

relações hierárquicas tradicionais, os líderes das patrulhas eram escolhidos não por sua

liderança comunitária, mas por serem homens de confiança do Exército, muitas vezes, ex-

soldados. Um controle físico e psicológico responsável por 18% do total de violações aos

direitos humanos investigadas pela comissão da verdade guatemalteca. Por outro lado, a

obrigatoriedade de se juntar às PAC foi, por si só, uma violência. Os patrulheiros eram

coagidos a participar com ameaças a seus familiares e obrigados a vigiar e assassinar grupos

de sua própria comunidade, além de participarem de sessões de tortura e terem que comprovar

o cumprimento de suas tarefas aos militares, através da entrega de partes mutiladas dos corpos

de suas vítimas.

Em um cenário de crise da legitimidade institucional do Exército, o Plano Nacional de

Segurança e Desenvolvimento impulsionou uma reorganização militar e de suas estratégias,

dentro da Doutrina de Segurança Nacional. Uma nova concepção de Estado foi formulada

para legitimar a união do político, do econômico e do social, com o militar, visando o objetivo

Page 12: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

12

primordial de promover a segurança e a estabilidade nacional e assegurar o poder militar

sobre a arena pública do país.

Neste sentido, a noção de inimigo interno foi ampliada para abranger aqueles cujo

potencial ameaçador era imenso: os indígenas. A periculosidade destas populações e de uma

possível rebelião orquestrada pelos insurgentes, deveria ser combatida não só através de

massacres, justificáveis pela participação indígena nas guerrilhas, mas também, pela sua

integração ao controle do Estado. Após o sucesso das campanhas de 1982-1983, o passo

seguinte da estratégia militar foi criar mecanismos e promover alianças políticas que

permitissem o controle do processo de transição e a manutenção da inteligência militar como

pilar do novo governo civil.

A articulação do Exército rumo à transição de regime

Logo após o golpe, depois de fechar o Congresso e suspender a Constituição, a junta

militar que tomou o poder passou a governar através de decretos-lei estabelecidos a partir do

Estatuto Fundamental de Governo. Através destes instrumentos, os militares guatemaltecos

declararam estado de sítio em 1982, estado de alarme em 1983 e a convocação de eleições

para a Assembleia Constituinte em 1984.

O arquiteto de todos os decretos foi o coronel e advogado Manuel de Jesús Girón

Tánchez, secretário de governo entre 1983-1986 e ex-participante da Assembleia Constituinte

de 1964. Para Girón o Estatuto Fundamental e os decretos subsequentes, foram “uma espécie

de constituição com um mínimo de garantias individuais”, capazes de regular as relações

entre governantes e governados. 8

Segundo Jennifer Schirmer, através dos decretos e de todo arcabouço do Estatuto

Fundamental, o objetivo primordial era reestruturar as leis para fins de segurança, criando um

novo tipo de ordem constitucional contra-insurgente. A intenção era inserir todas as operações

militares dentro do aparato das leis. Como afirmou o general Ríos Montt ao New York Times,

em 1983: “Quando a Constituição (1965) estava em vigor, eu não poderia procurar alguém em

uma casa. Então, eu tive que criar um quadro legal para que agora eu possa entrar numa casa

dentro do âmbito da lei.” (op.cit.:127). Neste cenário, em nome da defesa nacional, criou-se

8 Parte da entrevista realizada pela autora com o coronel Girón está reproduzida em (SCHIRMER, op. cit.: 130).

Page 13: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

13

uma total dependência do poder judiciário em relação ao militar e o Exército se tornou o

principal ator responsável pela normatização jurídica do país.

Exemplo desta dependência e falta de autonomia, foi a postura do judiciário frente à

criação dos Tribunales de Fuero Especial. Autorizados pelo decreto-lei n° 46-82 de julho de

1982, os Tribunais foram apresentados como um instrumento para garantir uma justiça rápida

e exemplar. Eram compostos por membros do Exército da Guatemala e deveriam julgar

crimes contra a segurança coletiva e do Estado, entre eles: provocar incêndios ou outros

estragos nos meios de comunicação, transporte ou outros serviços públicos, ações contra a

ordem e demais crimes comuns que fossem considerados ameaças a segurança nacional. Os

julgamentos deveriam ser públicos, mas adquiriram um caráter secreto e sem direito a defesa.

Entre 1982-1983, ano em que foram revogados, esses Tribunais condenaram 14 pessoas à

morte e a Corte Suprema de Justiça não se pronunciou sobre o seu funcionamento, negando

recursos aos condenados (TOJO, 2009: 105-106).

A construção de todo um aparato de leis que inserissem as operações contra-

insurgentes dentro de uma legalidade, entretanto, não significou uma calmaria no âmbito

político. Nos meses iniciais de 1983, Ríos Montt começou a dar claros sinais de que poderia

suspender o processo de abertura e continuar no poder. Além disso, a continuidade da crise e

o programa econômico do governo não agradavam ao setor privado. Ríos Montt foi, então,

deposto da presidência e substituído por seu próprio Ministro da Defesa o general Oscar

Mejía Víctores, em 8 de agosto de 1983, fato que gerou uma certa resistência por parte dos

oficiais que apoiavam Ríos Montt, mas que acabou sendo negociado com a alta cúpula

militar.

Com Mejía Víctores no poder, a transição pode ser iniciada. A eleição para a

Assembleia Constituinte foi realizada em 1° de julho de 1984 com a participação de antigos e

novos partidos. Nenhum deles possuía um projeto político que questionasse a autoridade

militar. Todos assumiam a importância do momento transitório, mas sem romper com o poder

do Exército. Desta forma, a Assembleia Constituinte foi consolidada como um espaço político

de discussão entre representantes dos setores privados agroindustriais e dos militares, aliados

a interesses partidários.

A nova Constituição foi publicada em diário oficial no dia 3 de junho de 1985. Seu

conteúdo, não foi uma ruptura com o poder militar ou o fortalecimento da autonomia do poder

Page 14: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

14

civil. Ao contrário, em seu artigo 16, no item sobre as disposições transitórias reconhecia “la

validez jurídica de los decretos-leyes emanados del Gobierno de la República a partir del 23

de marzo de 1982, así como a todos los actos administrativos y de gobierno realizados de

conformidad con la ley a partir de dicha fecha.” 9 Neste sentido, a recém criada Constituição

não repreendia o amplo controle militar sobre as leis, mas sim, trazia este controle para dentro

da nova legalidade.

As eleições gerais, para presidente e para o Congresso Nacional, foram realizadas em

3 de novembro de 1985. No primeiro turno foram oito candidatos à presidência, entre eles,

velhos conhecidos da política nacional, como Mario Sandoval Alarcón (MLN-PID) e

Alejandro Maldonado Aguirre (PNR). No segundo turno a disputa ficou entre Vinicio Cerezo

(DCG) e Jorge Carpio Nicolle (UCN). O candidato da Democracia Cristã foi eleito com

68,37% dos votos e o partido conseguiu maioria no Congresso, com 51 deputados. 10

A eleição de Cerezo acabou sendo muito proveitosa para o projeto de transição de

regime dos militares. Ainda nos anos 1970, a DCG passou por um momento de fortes disputas

em sua base. Setores em processo de radicalização à época, ligados a Confederação Nacional

do Trabalho (CNT), começaram a questionar o projeto político de poder do partido que não

implicava em um amplo entendimento da situação socioeconômica do país e nem o apoio real

aos setores populares. Muitos deixaram o partido neste momento e a DCG aproximou, cada

vez mais, seus laços políticos com os militares e com o setor privado. Em toda a década, o

partido apoiou a candidatura de oficiais e apoiou o golpe de 1982. Durante o ano eleitoral,

procurou construir uma imagem contrária à repressão, ao mesmo tempo em que admitia a

importância de um governo em harmonia com o setor militar.

Vinicio Cerezo, por sua vez, há muito defendia que o Exército deveria participar do

projeto democrático. Antes mesmo do golpe de 1982 e da formulação do projeto político-

militar de desenvolvimento e segurança, como secretário-geral da DCG, em 1975, Cerezo

escreveu um panfleto intitulado “O Exército como Alternativa”, onde afirmava a necessidade

de enxergar os militares como parceiros dentro da democracia. Em uma entrevista à Jennifer

9 Todas as citações da Constituição de 1985 presentes neste trabalho foram retiradas do conteúdo completo do documento presente em um CD-ROM comemorativo dos 25 anos de vigência da Constituição, adquirido por mim durante minha estadia na Guatemala, entre janeiro e fevereiro de 2012. 10 Informações sobre as eleições de 1985 em: COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Tecer informe sobre la situación de los derechos humanos en la Republica de Guatemala. OEA: 1985. Disponível em: < http://www.cidh.oas.org/countryrep/Guatemala85sp/Cap.1.htm> Consultado em abril de 2012.

Page 15: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

15

Schirmer, concedida em 1991, já como ex-presidente, Cerezo demostrou sua crença no

Exército como ator político de peso:

É preciso aceitar que o Exército faz parte do gabinete, da estratégia de governo, e assim, eles também estão participando politicamente! [Isto é] algo que eu acho que é correto, porque se o Exército é co-responsável pela política do governo, eles também devem ter o direito de expressar a sua opinião sobre ele. Não podemos mais ter a atitude tradicional de alguns governos na América Latina, que dizem: "Você [o Exército] tem toda a responsabilidade, mas você não tem o direito político". Isso não pode ser mais o caso. (...) Você vê, eles [o Exército] também devem fazer parte do poder. A partir daí, sua co-participação em todas as decisões [governamentais] é fundamental, a fim de criar um personagem nacional. (SCHIRMER, op. cit.: 194).

Durante seu governo, sob os auspícios do Ministro da Defesa, coronel Héctor

Gramajo, o Plano Nacional de Segurança e Desenvolvimento foi substituído pelas Teses de

Estabilidade Nacional, inseridas dentro do Plano de Ação do Governo. Esta nova estratégia

militar baseava-se na atuação da inteligência para promover uma repressão mais restrita e

eficaz. Desta forma, houve uma criminalização das organizações civis e movimentos sociais,

que começavam a se rearticular, acusando-os de servirem aos interesses insurgentes de

desestabilização da democracia nacional. Ao mesmo, a apropriação do discurso democrático e

de respeito aos direitos humanos foi ampliada, com o objetivo de ressaltar internacionalmente

o novo momento político do país.

A Constituição não restringiu o poder militar, nem desmantelou suas estruturas tão

presentes na vida cotidiana da Guatemala. Ao contrário, legalizou, por exemplo, o pagamento

parcial em alimentos aos trabalhadores e restringiu os grupos armados aos regulamentados

pelas leis da República, como era o caso das PAC. 11

Como afirma Schirmer, na visão militar sobre o novo regime constitucional, os

objetivos de segurança pairavam sobre a nova Constituição e a permeavam. Neste sentido, os

direitos e as liberdades civis eram dependentes da segurança nacional e continuamente

sujeitos a qualificação ou negação, quando considerados conflitantes com os interesses de

segurança do Estado.

11 Artigo 102 e 245, respectivamente. “Obligación de pagar al trabajador en moneda de curso legal. Sin embargo, el trabajador del campo puede recibir, a su voluntad, productos alimenticios hasta en un treinta por ciento de su salario. En este caso el empleador suministrará esos productos a un precio no mayor de su costo” e “Es punible la organización y funcionamiento de grupos armados no regulados por las leyes de la República y sus reglamentos.”

Page 16: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

16

Ao mesmo tempo, porém, o Exército buscou forjar um cenário democrático e de

respeito aos direitos humanos e, por isto, a semântica entrou em cena, construindo um novo

linguajar e vocabulário. Dessa forma, a Doutrina de Segurança Nacional virou estabilidade

nacional, as Patrulhas de Autofesa Civis tornaram-se Comitês Voluntários de Defesa Civil ou

Comitês de Paz e Desenvolvimento. Mesmo termos consagrados como “subversivo”,

sofreram modificações, primeiro em uma simbiose com o crime comum e a delinquência,

depois de acordo com a aceitabilidade internacional. Como afirmou Gramajo, em entrevista à

autora em 1990:

(...) Nós começamos com [o termo] “subversivo-delinquente” como alguém que era contra a ordem, subvertia a ordem [...] Todas as coisas ruins contra o Estado, o poder estabelecido, que [ocorreram] na Guatemala. Mas, então, terroristas mataram os pobres judeus na Alemanha [nas Olimpíadas], porque Reagan se manifestou contra o terrorismo internacional, o terrorismo do Exército Vermelho – tudo isso se tornou uma questão internacional. Então, nós paramos de utilizar [o termo] “subversivo” e o substituímos por “terrorista-delinquente”. Deste modo, nós demonstramos nosso apoio internacional através do nosso vocabulário. (op.cit.: 145).

Dentro deste cenário de camuflagens e apropriações, podemos perceber que a

reestruturação da filosofia de atuação do Exército, nascidas a partir do golpe e do Plano

Nacional, foram se constituindo, até o retorno ao regime civil e mesmo durante o governo de

Vinicio Cerezo (1986-1991), em um sólido projeto político-militar que não só fortaleceu o

Exército institucionalmente dentro da vida política guatemalteca - em um momento de crise e

questionamento sobre sua relevância -; mas produziu todo um aparato estatal de controle

militar que, a partir da inclusão das novas estratégias contra-insurgentes dentro da legalidade

constitucional, resultou em um retorno ao regime civil em co-governânça com o poder militar.

Neste sentido, os militares guatemaltecos conceberam uma transição política onde a

segurança nacional e, consequentemente a relevância do Exército dentro do cenário público,

era o ponto essencial da regulamentação da relação entre governantes e governados, através

de um novo sistema constitucional que deixou intacta suas estruturas de inteligência e

segurança.

Referências Bibliográficas

Page 17: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

17

BATAILLON, Gilles. Génesis de las guerras intestinas en América Central (1960-1983).

México: FCE, 2008.

BRETT, Roddy. Movimiento social, etnicidad y democratización en Guatemala, 1985-1996.

Guatemala: F&G Editores, 2006.

COMISIÓN PARA EL ESCLARECIMENTO HISTÓRICO (CEH). Guatemala, memoria del

silencio. Guatemala, 1999.

GRAMAJO, Héctor Alejandro. De la guerra…a la guerra: la difícil transición política en

Guatemala. Guatemala: Fondo de Cultura, 1995.

GRANDIN, Greg. A Revolução Guatemalteca. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

IBARRA, Carlos Figueroa. El recurso del miedo: Estado y terror en Guatemala. Guatemala:

F&G Editores, 2011.

MCCLEARY, Rachel. Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas y en fin del

conflito armado. Gainesville: University Press of Florida, 1999.

PROYECTO INTERDIOCESANO DE RECUPERACIÓN DE LA MEMORIA HISTÓRICA

(REMHI). Guatemala: nunca más. Guatemala: Oficina de Derechos Humanos del

Arzobispado de Guatemala, 1998.

SAÉNZ DE TEJADA, Ricardo. “La democratización en Guatemala: algunas interpretaciones

en contienda”. In: Revista Estudios Digital. Guatemala: Escuela de História, USAC, nº 1,

2013.

SCHIRMER, Jennifer. The Guatemalan Military Project: A violence called democracy.

Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1998.

Page 18: Um golpe pela democracia? O projeto de transição política ... · O projeto de transição política dos militares guatemaltecos ... Em Imponiendo la democracia: las elites guatemaltecas

18

_____________. “A Apropriação do Discurso Democrático pelos Militares Guatemaltecos:

Implicações para os Direitos Humanos”. In: Elizabeth Jelin; Eric Hershberg. (Org.).

Construindo a Democracia: Direitos Humanos, Cidadania e Sociedade na América Latina.

São Paulo: EDUSP, 2006, pp. 133-151.

TOJO, Edgar A. Balsells. Olvido o memoria. El dilema de la sociedad guatemalteca.

FLACSO-Guatemala/Família Balsells. 2009.