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Um conto, um ponto Um ponto, um conto 1

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Três histórias. [de viver]

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Page 1: Um conto, um ponto

Um conto, um ponto

Um ponto,

um conto

Aglaé Gil 2015

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Page 2: Um conto, um ponto

Um conto, um ponto

Sumário

Fortunata 03

Malena 09

Gisele 19

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Um conto, um ponto

Fortunata

Um fazer de conta que se é feliz

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Um conto, um ponto

Fortunata

Fazia de conta que poucos dias haviam passado, mas lá se iam mais de vinte anos. Fortunata gostava de se imaginar menina ainda, repleta daquela vitalidade que lhe fora dada pela natureza e que, de uma forma ou de outra, ela tratara de desprezar.

Vinte anos e uma solteirice que a trancara em casa, atrás das portas cinzentas e das janelas que recebiam alguma cor do lado de fora e cujas cortinas rosadas já se desbotavam, sem viço, sem vontade de esvoaçar.

Fortunata tinha um jeito estranho de observar os dias. Quase sempre à janela, assim que terminava seus afazeres [mesmo se ao longo da vida eles jamais tivessem fim], ela se apoiava sobre uma almofada que foi ficando velha com o passar daqueles anos modorrentos, naquela cidade que bocejava tardes sem fim. E olhava para ambos os lados rapidamente, para em seguida escolher um deles, o qual iria focalizar pela próxima hora inteira.

Só os bons janeleiros sabem de fato o que pode ocorrer durante uma hora do dia.

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Page 5: Um conto, um ponto

Um conto, um pontoÀs vezes um pouco de movimento nas casas vizinhas, alguns passantes sem jeito nas tardes de sábado, uns cachorros magros a buscar comida e água em poças. Outras vezes, na maioria dos dias, nada. Absolutamente nada. Ou, melhor, nada além do silêncio, do calor que fazia suar até as árvores; do ondulado ar extremamente quente que subia das calçadas; nada além da poeira que se respirava com ares de acomodação. E algumas nuvens aboletadas que apenas passeavam pelo céu de um azul minguado, desbotado como a pele e os olhos da cidade do interior.

Fortunata assistia assim aos dias, principalmente depois que a mãe se fora, levada por uma doença estranhamente silenciosa e mansa, mas que chegara e se instalara para dar cabo do corpo franzino de Antonieta em menos de dez meses. Sozinha na casa antiga, que dava para a rua lateral da igreja matriz da velha cidade, Fortunata viu vinte anos se passarem em plena e fustigada solidão.

Quando a mãe se foi, ela contava com quarenta anos. Já era, então, uma solteirona reconhecida pela cidade inteira. E nem se lembrava porque ficara solteira. Afinal, fora noiva de Getúlio por quase oito anos!

Por que mesmo eles se haviam afastado?

Por que ele terminara o noivado?A um canto do quarto de moça de

Fortunata, estava seu baú de madeira onde jazia seu enxoval de casamento, todo

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Page 6: Um conto, um ponto

Um conto, um pontobranco e bordado, ponto a ponto, fio a fio. Enxoval bordado com delicadeza de mãos que ainda sonhavam em seguir as linhas do corpo de seu homem e banhar filhos, alimentar a família, coser meias, bordar um outro enxoval, dessa vez para uma filha. Uma filha que teria os mesmos olhos verdes e vivos e grandes de Getúlio.

Como era bonito o ‘seu’ Getúlio!Como era garboso, bem cuidado e

inteligente!Havia tido sorte em encontrá-lo ou,

em ser encontrada por ele, certo dia, perto do quiosque de doces do ‘seu’ Chandal.

Sentiu-se, no frescor de sua juventude de 18 anos – não mais – presenteada pela vida. Nos dias seguintes, quase sem acreditar que aquele moço tão bonito olhara para ela e lhe dirigira intenções de namoro, foi à igreja acender lamparinas em agradecimento.

Haviam sido quase oito anos de esperança, entre os bordados que foram se acumulando dentro do baú e alguns beijos roubados, quando ambos tinham uma oportunidade a sós. Sonhara até sentir-se em plena gestação de sua felicidade que, então, já tinha apenas um nome: Getúlio.

Fortunata já escolhera até mesmo os nomes dos filhos: se meninos tivessem, seriam Giovani, Pedro, Luca; se meninas, seriam Elisabeta, Sônia, Verônica. Ou Rosa. Porque Fortunata adorava rosas. E Getúlio lhe trazia sempre algumas, colhidas deus-sabe-onde.

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Um conto, um ponto[Deus sabia, claro: eram roubadas do jardim, na praça, em volta do coreto]

Tantos anos depois e já curada da dor que sentiu ao ser deixada pelo noivo, Fortunata aprendera a se esquecer de que fora ele a deixá-la para fugir com a moça que trabalhava na farmácia do Doutor Genival. Era uma loura aguada que tinha uns 20, 25 anos, viúva de um maquinista da Rede que, forasteiro, trouxera a esposa para a cidade apenas alguns meses antes de morrer, atropelado pelo trem das oito da manhã enquanto ajudava a trocar os trilhos.

A viúva sobrou ainda jovem e considerada bonita por muitos. Arranjou um emprego com o médico e farmacêutico da cidade que –muitos diziam- arrastava asa para ela. Mas foi com Getúlio que a loura partira.

O Getúlio de Fortunata, que quase morreu, mas que renasceu de umas cinzas de fogão, para sempre se sentindo mal amada e oca, porém forte, sem laços, apaziguada por uma solidão que lhe seria útil nos próximos tantos anos.

Agora, à janela, a observar os dias, Fortunata conseguia ver além do que se mostrava. E, no que via, percebia a história se repetindo em um número de vezes maior do que gostaria, e em seu coração que guardava uma bondade dessas inerentes a pessoas simples demais, as quais passam a vida sem saber que são muito boas.

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Um conto, um pontoE se repetiam lágrimas e risos. E

beijos escondidos. Repetiam-se despedidas e fugas sem nenhuma despedida.

A cidade desmaiada na preguiça e estendida à margem de alguns rios rasos era por si um monumento à solidão. Fortunata era o retrato de seu lugar e, do seu jeito, levava a vida antes que a vida a levasse. Vivia uma vida de olhar demorado sobre as coisas e as pessoas. Coisas que não via, pessoas que não passavam sob a janela de sua casa, onde se debruçava com os cotovelos protegidos sobre a velha almofada.

Aos sessenta anos – ou quase – ainda era a moça casadoira no coração que sepultara esperanças, mas que rasgava, vez em quando, alguns sonhos tolos de ser feliz.

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Um conto, um ponto

Malena

Quem ficou?9

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Um conto, um ponto¥

Malena

Uma casa pequena e um coração imenso dentro dela, que cheirava, já às seis da manhã, o cheiro bom dos grãos de café moídos e torrados pouco antes de virarem, no coador de pano, o café mais delicioso de Mariana, o cantinho mimoso das Minas Gerais. Era a casa de Malena, filha ilegítima do padre Antônio com Maria Helena, a moça que fora mãe solteira e assumira toda a sua sorte de cabeça erguida e costas eretas, cuspindo sobre os degraus da escadaria da igreja em que concebera a filha cada vez que passava por ali até o dia em que desencarnou e, segundo a tia de Malena, Maria do Carmo, foi para o Purgatório tentar se salvar de tamanho pecado jamais

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Page 11: Um conto, um ponto

Um conto, um pontoesquecido e sempre condenado a bocas pequenas pelas esquinas da cidade tão católica, de ruas delicadas e línguas afiadas.

Malena era ainda muito menina quando começou a ouvir coisas estranhas a respeito de sua origem. A mãe, Maria Helena, certo dia colocou-a em seu colo e disse que era a hora de ela saber toda a verdade e do jeito certo. Malena, aos oito anos, ficou assustadíssima: o padre Antônio lhe daria a Primeira Comunhão na semana seguinte, pois ela já estava concluindo seu curso de Catecismo. O padre Antônio era aquele homem alto, bonito e quieto que rezava a missa que ela frequentava escondido da mãe, em companhia das tias Do Carmo e Da Luz. Ele às vezes olhava de soslaio para onde elas estavam sentadas e Malena tinha um arrepio só de sentir aquele olhar escuro que ela jurava que conhecia, mas não sabia exatamente de onde.

Maria Helena havia se tornado uma moça triste e amargurada, mas Malena era uma menina alegre, sonhadora, mesmo tendo perdido a mãe tão cedo, quando chorou toda a água que havia no rio de seu amor, o maior que conhecia. Olhando para o rosto encovado da mãe no caixão enfeitado com tule branco e flores amarelas, a menina de dez anos só conseguia ver uma santa, mesmo que a tia Maria do Carmo dissesse o contrário.

Nas vicissitudes da vida – e não haveria de ser poucas – Malena encontraria vários tipos de amor e vários tipos de

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Um conto, um pontopessoas, mais ou menos santas, mais ou menos demoníacas, mas seriam apenas pessoas. Jamais permitiria que qualquer acontecimento ou qualquer pessoa, estando condenada ao inferno ou não, a tornasse amarga e dura. Bastaria a lembrança da mãe que odiava o padre Antônio depois de tanto tê-lo amado. Por isso, e para isso, já aos dezoito anos decidiu que viveria sozinha e longe das tias – pois elas também haviam se tornado taciturnas [ou sempre haviam sido?] e amargas, e seu silêncio feria Malena como se a jogasse num breu sem fim. Queria a alegria própria, ao menos. Dentro dela havia um manancial de alegria que sentia jamais ter fim e isso era seu tesouro.

O cheiro bom do café pela manhã anunciava que o sabor do dia seria de sol e algumas horas na escola, onde dava aulas de Português para os pequenos. Saía de casa com sua saia plissada e sua blusa branca e os cabelos arrumados num rabo-de-cavalo, cantarolando a última canção que ouvira no rádio, ligado desde as seis para ouvir notícias e música.

À esquina da escola, distraída, esbarrou com um homem vestido de negro. Deu um salto quando viu que estava diante do padre Antônio que, naquele momento, sorria para ela. Era um sorriso tão parecido com o seu que Malena ficou sem jeito, mas não pôde evitar devolver o sorriso.

O padre, na verdade agora Monsenhor, disse que era com ela mesma que queria conversar e por isso havia

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Um conto, um pontovoltado à cidade. Viera à procura dela. Malena tinha aulas a dar e, educada, delicada, gentil, aceitou almoçar com seu pai para que conversassem.

Mais tarde, na pensão de Dona Zica, Malena chegou e deu com o padre[monsenhor] Antônio já a uma mesa à espera dela, com o mesmo sorriso aberto nos lábios e aqueles olhos brilhantes nos quais Malena se via retratada tão bem. O problema era que todos à volta estavam olhando para ambos. Os que sabiam da história da moça comentavam à boca pequena e seus cabelos naturalmente se eriçavam, no desespero de seus sustos e no amargor de seus preconceitos.

Dona Zica, uma destemida mulher mineira, não afeita a fofocas e intrigas, deu seu jeito de chamar a atenção para outro lado e num tom de voz que já dava a entender não querer comentários maléficos durante seu almoço. Ao mesmo tempo, tratou de servir o prato do dia a pai e filha do mesmo modo educado e silencioso com o qual servia a todos.

Malena cumprimentou a velha amiga e voltou seus olhos para o padre [monsenhor] Antônio, sentindo-se investigada, medida, atentamente observada...

Ele tinha muito que dizer. Havia saído da cidade quando Malena ainda tinha dez anos, na verdade logo após a morte de Maria Helena, e em momento algum, nos últimos dez anos, dera notícias ou quisera

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Um conto, um pontosaber de Malena, pelo menos não por ela mesma. Sentia-se irremediavelmente culpado por isso, mas reconhecia que jamais o fizera por simples temor. Sim, ele temia ser desprezado pela jovem, assim como fora odiado por Maria Helena, mesmo depois de ambos terem, ele admitia, vivido um belo amor.

Malena, naquele momento da conversa, poderia tê-lo interrompido. Como haviam ‘vivido’ tal amor, sendo ele um padre, portanto celibatário? Como se atrevera ele a menosprezar votos sagrados em nome do apelo carnal? Mas ela não o fez, mesmo porque não acreditava no celibato dos homens que serviam à Igreja. Mesmo porque não era uma mulher católica. Nem havia como ser, sendo ela filha de um padre com uma antiga devota. Assim sendo, não interrompeu o padre em sua fala – mansa e compenetrada, ilustrada pelos olhos marejados e a expressão séria, franzida, quase dolorida que expunha com facilidade mesma com a qual expunha seu belo sorriso.

Antônio prosseguiu. Falava e não comia o tutu de feijão, a couve, a costelinha. Malena, por sua vez, saboreava com muito gosto a comida. Nada nela demonstrava perturbação. Pelo contrário, aquela situação parecia acontecer a outra pessoa. O que parecia deixar tão perturbado aquele homem – o qual não duvidava nem por um segundo que era seu pai, dadas tantas semelhanças, pelo menos físicas - não fazia

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Um conto, um pontomais parte da vida dela. Havia sido algo a ser expurgado e era como se estivesse naquele caixão, entre o tule e as flores amarelas em que se deitou o corpo de sua mãe. Por isso, enquanto o padre [monsenhor] falava e falava, dizendo de sua dor e culpa, Malena saboreava o almoço delicioso de Dona Zica. Na verdade, estalava a língua por conta do doce de abóbora que era a sobremesa, sob os olhares admirados da velha amiga, quando o pai-padre-monsenhor parou de falar e a última palavra havia sido: “Perdão”.

Malena, num repente, deu-se conta de que aquela dor para o homem era coisa presente, fazia parte dos dias dele e que ela não pudera, não soubera, não quisera, transformar em algo melhor. Ela não sabia ao certo, mas poderia ser algo que efetivamente expiasse a culpa do que considerava pecado: o que incluía a sua existência no mundo. Ela própria então era um pecado. Seu respirar, seu andar, seu saber, seu sorrir tão parecido com o dele, haviam sido considerados o maior erro da vida daquele homem. Por fim, ali estava ele, diante dela, depois de considerar-se tão detestável e reprovável, depois de ver-se como digno da mais dura excomunhão, não só da Santa Igreja como da própria vida, quem sabe, mostrando-se, enfim vencedor das duras batalhas interiores e prostrado diante dela: Malena era a causa e o efeito de seu pecado e de seu amor.

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Um conto, um pontoEstava, segundo ele mesmo, pronto

para uma renovação, para um resgate.Ela olhou para o prato dele, repleto ainda de tutu de feijão e outras iguarias. Engoliu a última colherada de doce de abóbora, satisfeita até a alma, porque uma refeição para ela era coisa sagrada e plena, coisa do Deus que ela conhecera na vida, no dia a dia, na boca grande que engolia o sol todos os dias e enfeitava o mundo de lilás. Foi quando os olhares se encontraram de novo e, daquela vez, talvez a primeira, Antônio percebeu que Malena estava muito além de tudo, que ela era uma chama vitoriosa de todo o mal que havia sido sua semente e que resplandecia, flor mimosa das serras de Minas, única e perfumada de alegria e fé naturais.

Malena não tinha os olhos fundos e enevoados. Eram claros, límpidos como água de bica. O rosto exibia uma expressão honrada de quem tem na simplicidade a alegria de ser. Alimentara-se tal qual criança, saboreando cada naco como se tomasse a hóstia que um dia o pai lhe ofertara pela primeira vez. Assim recebia Deus, aquela jovem corajosa e bela, sentada à sua frente, filha de um erro que talvez fosse dos mais acertados que puderam existir. No alimento, sentia a presença do Deus da natureza e de todas as coisas. Do amor à vida, bebia o simples ato de fé. As missas, ela as rezava no dia a dia, no trabalho e no viver- enquanto cantarolava, enquanto ria, enquanto respirava o ar de

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Page 17: Um conto, um ponto

Um conto, um pontoMariana e sentia o cheiro da terra que amava.

Num minuto de longo olhar trocado como quem se encontra e se despede, Malena e o padre[monsenhor]Antônio se reconheceram próximos e distantes. Ela, a promessa do que ele poderia ter sido e do que Maria Helena poderia ter transformado nele. Ele, um homem que não sabia bem o que era. Viera à Mariana tão repleto de suas verdades descobertas, de reconhecimento de seus erros, quase se arrogou a achar-se dono da filha que um dia tivera e deixara escapar por medo. Por fim, via-se mais do que nunca uma parte mínima da vida dela, que escolhera não ser dele e de mais ninguém, muito menos fruto de qualquer erro. Malena era toda acerto e beleza. Nada naquela moça honrada e vital remetia aos anos de dor e amor que vivera, roubando da vida de Maria Helena, moça que o amara muito, a chance de ser feliz.

Malena tinha nos olhos um sorriso. No fundo, não o entendia. Não compreendia aquele homem que era seu pai e que agora vinha-lhe com um discurso que deveria ter sido feito à mãe. Sim, porque fora a mãe, era assim que ela entendia – que sofrera até adoecer o corpo e a mente, até não mais poder, nem mesmo por amor à filha, viver. Aquelas palavras vinham com muitos anos de atraso, portanto. E em direção errada. Porque ela não era a jovem Maria Helena, apaixonada e densa, tampouco a Maria Helena mãe, amargurada, ferida de morte

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Page 18: Um conto, um ponto

Um conto, um pontoem sua alegria de viver. Entretanto, havia sido, para ambos, Antônio e Maria Helena, uma escolha. Haviam dito sim ao amor que sabiam desde o início ser impossível. Depois, com um ser se desenhando em seu ventre, Maria Helena escolhera odiar e adoecer, sem contar com a possibilidade de seguir rumo a outros mundos e viver novas vidas.

A moça não entendia por que caberia a ela perdoar aquele homem – um padre, um monsenhor, um pai ausente. Porque ela escolhera viver e fazer isso da melhor maneira possível, desde muito menina, desde que se despedira da mãe – uma santa, rodeada de tule e flores amarelas. Naquele dia triste, tão triste, despedira-se da dor da mãe, dor que incluía o padre da igreja de Nossa Senhora das Dores e de uma espécie de fé que tornava as pessoas tão presas e tão infelizes.

Malena largou o guardanapo e tomou as mãos do homem que, à sua frente, transformara-se num menino perdido, tomada por uma onda de ternura que, no entanto, nada tinha além do que sentiria por qualquer outra pessoa. Sua voz, de uma delicadeza angelical, o chamou a si e pediu para que se soltasse das amarras do tempo, porque pouco ou nada poderia ser feito neste mundo. Maria Helena havia muito morava em outras serras, em montanhas distantes das Minas Gerais e apenas a ela importaria tanta dor, assim como apenas a

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Page 19: Um conto, um ponto

Um conto, um pontoDeus importaria tamanha oportunidade de perdão.

A ela, Malena, nada cabia além de continuar a própria vida, pois que sempre o fizera, embalada pelos próprios problemas e lidas. O homem, espesso olhar de escuridão, apertou as mãos da moça antes que elas lhe escapassem. Buscou nos olhos dela um resquício que fosse de amor. Havia amor, sem dúvida, mas o amor que um ser humano bom dedica a outros. Nada além. Nada que tivesse um desenho de amor filial. Nem poderia, visto que a menina a quem ele dera a primeira comunhão era apenas a menina que o via com um sentimento de estranheza em relação ao que diziam dele e da mãe e do que a própria Maria Helena lhe contara sobre ele. Não fosse por isso, sua omissão tão evidente, sua ausência tão plangente já teriam sido suficientes para que não se criassem de forma alguma elos de amor entre ambos.

Despediram-se à porta da pensão de Dona Zica, sem promessas nem abraços. Ele, um espectro duzentos anos mais velho, duzentos anos mais triste, mil anos de dor.

Ela, cantarolando a canção da manhã e olhos sorridentes. Na boca, o gosto do doce mais gostoso de Mariana, o de abóbora, de Dona Zica. E no coração, a mesma leveza de sempre. A leveza de quem nada tem a temer. Nada ficou a dever.

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GiseleA aprendiz da liberdade

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Um conto, um ponto

Gisele

Alguns dias depois, ela estava novamente sobre a ponte que levava para fora da cidade. Uns poucos passantes não a notavam. Os últimos raios de sol esmaeciam sobre as águas lamacentas do rio que já devia estar correndo havia milhares - se não milhões - de anos. Desde quando nem poderia se imaginar fazer uma ponte sobre ele, naquele ponto exato que agora era o limite entre duas cidades...já também antiga, porém menos. Riu-se por um momento, de seus tolos pensamentos.

Ela havia sido sempre assim: exagerada em sua maneira de pensar, raciocinar sobre as coisas... pois que tudo parecia levar a mais um devaneio.

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Page 22: Um conto, um ponto

Um conto, um pontoCobriu-se mais com o xale que havia

sido de sua avó e trazia ainda o cheiro dela, uma espécie de mistura de todos os cheiros que haviam marcado sua infância, incluindo o cravo-da-índia, que a avó mascava durante quase todo o dia. De certa forma, era como manter-se abraçada a ela, a avó, a mulher que a criara e lhe ensinara tantas coisas. Até mesmo a não ultrapassar aquela ponte. Dizia que além da cidade, nada haveria que pudesse fazê-la mais feliz do que seria ali por toda a vida. Mas, como Gisele poderia segurar seus impulsos juvenis de se aventurar além de quaisquer fronteiras e respirar ares diferentes, olhar caminhos desconhecidos e pisá-los com seus pés, alma e coração?

Depois que partiu, tomando coragem para ultrapassar aqueles limites havia tanto tempo desenhados para ela, sentiu-se menos livre do que imaginara e mais temerosa também. O mundo, além do que conhecia, tinha cores mais escuras e a chuva parecia ser mais ácida. Entretanto, nada em Gisele a faria retornar, pelo menos não naqueles primeiros passos que dava, mais hesitantes que os que ela dera quando aprendera a andar.

Sabia que, em casa, já haviam dado por falta dela. Sabia que se voltasse, ralhariam e em seguida, poderia servir-se de sopa e de um pouco de vinho. Tinha sede, tinha fome. De comida talvez mais do que de vida, naqueles momentos. Os primeiros momentos do início de sua nova vida.

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Page 23: Um conto, um ponto

Um conto, um pontoA noite era uma boca imensa que a

tudo engolia e que soltava criaturas estranhas de suas tocas: sons amedrontadores, luzes voadoras, cheiros abissais. Até Gisele dar-se conta de que eram vagalumes aqueles pequenos pontos luminosos, ela viveu uns bons minutos acreditando serem pequenos olhos a lhe seguirem os passos, afoitos por assustá-la.

O xale da avó que a aquecia começou a ficar úmido com a chegada da madrugada. Havia uma garoa fina, talvez apenas uma bruma, já que ela seguia o caminho curso do rio. Fosse o que fosse, logo estava tiritando, pois o ar gelado parecia penetrar sua pele e alcançar os ossos. Como doía ultrapassar os limites do seu mundo!

Os pés de Gisele pesavam, doloridos, gelados. Cada passo já era um sacrifício para uma garota que todos os dias de sua vida até aquele momento haviam sido bem mais amenos. Pensou que certamente àquela hora, estaria em casa, deitada em sua cama fofa e cheirosa, aquecida pelo fogo que não se apagava no andar de baixo da construção simples, de pedras. Teria se alimentado bem, dormiria o sono pesado e justo. Agora, no entanto, passos em fuga, seu estômago reclamava, com rangidos, roncos. Fome. Frio. Cansaço.

O rio cantarola, seguindo seu rumo. Gisele ficou surpresa de manter a mesma alegria cantante apesar de sobre ele também cair a noite fria, escura. Alguma voz interior respondeu-lhe como que de

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Page 24: Um conto, um ponto

Um conto, um pontoimediato: seguir era a missão do rio, seu ofício, seu destino; com sol ou sob a noite fria, que mais ele poderia fazer além de seguir? E como seguir sem cantarolar pelo fluir das águas? Não seria bem mais triste a noite se ele fosse quieto e macambúzio? Sem dúvida que sim!

O destino de cada um é o destino de cada um. Podemos alterá-lo? Temos tal direito e, mais do que isso, poder para tanto?

Lá ia ela de novo. Gisele pensava de um jeito que fazia graça aos que a conheciam. Mas pensava. Não seriam seus pensamentos o cantarolar de seu seguir? Não estaria ela fugindo naquele exato momento de mostrar às pessoas um novo modo de pensar e viver e ajudá-las a compreender coisas que não viam ainda?

É...como o fato de as coisas todas estarem ligadas...umas às outras, feito elos de correntes... – pensava Gisele, sempre aguda, sempre intensa.

A noite continuava abocanhando tudo, mas já parecia saciada, porque lá adiante havia o prenúncio de um clarão. Seria a aurora chegando?

Gisele sentou-se à margem do rio, sob uma árvore, um grande carvalho. Ele devia ter mais anos que sua avó, pensava a menina, enquanto erguia o olhar até perder de vista aquele tronco imenso, folhoso, denso. E severo como a noite que, pelo visto, estava mesmo chegando ao fim. Na

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Page 25: Um conto, um ponto

Um conto, um pontocerta, quando já estivesse mais claro, ele pareceria até mesmo sorrir.

Clareou com força e beleza e o sol dissipou a bruma úmida e fria. Gisele não viu o momento exato, porque acabou pegando no sono, recostada no velho carvalho.

Sonhava com a família. Ela os ouvia falando, conversando, contando coisas. Sonhava com o rio a conversar com ela e até com o velho carvalho zangado. Viu em seus sonhos a ponte a chamá-la como se fosse humana.

Acordou um tanto febril, dolorida, sendo sacudida pela avó, cujos olhos apertavam-se de preocupação. A noite lhe custara um resfriado, a avó identificou. Iria para casa e tomaria um banho quente, uma farta refeição e se deitaria. E que não fizesse mais aquilo. Ainda não era hora de partir!

Enquanto a avó falava e falava, e outras pessoas as cercavam, amorosas, preocupadas, Gisele sorriu. Talvez um sorriso de paz que havia tempos não sorria. Compreendera algumas coisas das quais precisava se munir para explicar, com o tempo, como as coisas simples, naturais, são livros do tempo e do universo a derramarem ensinamentos sem fim. A noite, de fato, mudara muitos pensamentos seus. Dera outro sentido ao que Gisele conhecia por prisão, medo, paz e felicidade. A noite lhe dera um abraço de vida.

E muitas lições.

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Um conto, um ponto

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Page 27: Um conto, um ponto

Um conto, um pontoOs olhos que emprestam atenção ao que se

escreve com tanto prazer, são dádivas.

Gratidão, sempre

Aglaé Gil2015

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Um conto, um ponto

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