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UM BRASIL FEITO COM ARTE A vida de um sapateador que cursa arquitetura A jovem cantora fala das novas experiências no mundo da música em Florianópolis A música de resistência como ferramenta para o enfrentamento da realidade social DANDARA MANOELA CANTADORES DE VIDA PLANTA DO PÉ N° 1 - junho/2018

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UM BRASIL FEITO COM ARTE

A vida de um sapateador que cursa arquitetura

A jovem cantora fala das novas experiências no mundo da música em Florianópolis

A música de resistência como ferramenta para o enfrentamento da realidade social

DANDARA MANOELA

CANTADORES DE VIDA

PLANTA DO PÉ

N° 1 - junho/2018

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Sofia Soares [email protected]

TEXTOS Emily Leão, Kauane Lahr, Sofia Dietmann REVISÃO Sofia DietmannPROJETO GRÁFICO Sofia DietmannFOTOGRAFIA Camila Rhodes, Guilherme Meneghelli, Mathias Luz, Sofia Dietmann

Esse trabalho é experimental, sem fins lucrativos e de caráter puramente acadêmico, desenvolvido pala acadêmica Sofia Soares Dietmann, como exercício de projeto gráfico-editorial para a disciplina de Laboratório de Produção Gráfica do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no semestre 2018-1. Não será distribuído, tampouco comercializado. Todos os materiais estão creditados.

ENDEREÇO DA REDAÇÃOUniversidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Campus Reitor João David Ferreira Lima, s/n - Trindade, Florianópolis - SC, 88040-900 - Centro de Comunicação e Expressão, Departamento de Jornalismo, Curso de Jornalismo

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A revista ELIS. é dedicada à arte brasileira. Visando a valorização da cultura do país, a ELIS. busca divulgar e enfatizar a relevância da produção artístico-cultural do Brasil nos meios nacionais e internacionais. Além disso, se tem como objetivo dialogar com discussões atuais - igualdade entre gêneros, classe, raça e representavidades sociais - em todo seu conteúdo, tendo este aspecto como ponto crucial para a publicação de qualquer reportagem.

A partir desse objetivo, a revista ELIS. publica não só conteúdos referentes a artistas de grande renome nacional, mas também de pessoas que vivem da arte e de alguma forma se destacam através dela. Então não se surpreenda se você, leitor ou leitora, que está envolvido no meio, esteja nas próximas páginas dessa revista.

CARTA DA EDITORA

editora

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sumário

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panis et circenses

Cantadores de vidasA

os 18 anos, Caroline ainda acreditava em príncipe encantado, era romântica e adorava compor. Ela passava as tar-des com sua prima escrevendo músi-cas com letras que falavam sobre amor.

Através de suas composições, Caroline transmitia suas ideias e deixava transparecer a menininha que acreditava em contos de fadas.

Mas, como na música “Cota não é esmola” de Bia Ferreira, “o tempo foi passando, ela foi crescendo”. Agora ela não acredita mais em príncipe encantado. Caroline não atende mais como Caroline, seu nome é Carú. Carú ainda compõe, ainda transmite suas ideias através da música e deixa transparecer a mulher que se tornou. Suas canções não falam mais sobre amor. Agora Carú fala sobre força e liberdade, sobre aquilo que tem e o que ainda vai conquistar. A música serve como ferramenta de luta.

A música de resistência pode se manifestar de di-versas maneiras. Não se trata apenas de canções com letras fortes e marcantes. A resistência pode estar no formato, no período histórico em que é composta, nos locais onde é cantada, na forma como é divulgada. Um músico de rua não necessariamente canta sobre suas vitórias e derrotas, ou sobre as dificuldades da vida. O fato de pegar um instrumento e ir pra rua gerar seu sus-tento faz de sua música uma ferramenta para resistir.

Numa perspectiva histórica, a música cumpriu um papel importante em períodos de conflitos ou

em épocas em que as repressões sociais eram mais acentuadas. Ela servia como um símbolo cultural e representava, entre outras coisas, as dores de um povo. Ao falar sobre essas canções, Andre Alexandri, 23 anos, estudante de música da Universidade do Es-tado de Santa Catarina - UDESC cita desde o samba, que retrata a vida no morro e os confrontos com a polícia, até o rap indígena, que aborda as dificuldades desses povos em se integrar à sociedade.

Segundo Andre, os maiores expoentes da música de resistência se deram durante o século XX, quando as camadas mais altas da sociedade passaram a re-conhecer essas canções como forma de expressão. Desde então, tornou-se mais comum a difusão desse tipo de música, fazendo com que surgissem novos cantores e cantoras de destaque neste meio.

Durante a ditadura militar brasileira, por exemplo, músicas como “Cale-se” de Chico Buarque, e o “O bêbado e o Equilibrista” de Elis Regina, burlavam a censura ao brincar com as palavras. Gilberto Gil e Ca-etano Veloso são outros expoentes deste período. “A canção popular propaga a memória, é a poesia de um povo”, relata Rafael Hagemeyer, professor de mú-sica da UDESC. No entanto, Rafael afirma que não surgiram outros músicos que seguiram neste ramo e obtiveram a mesma repercussão. Isso se deu devido à simplificação do mercado musical, ou seja, devido a perda do caráter crítico e poético das canções, no qual muitas vezes o compositor prioriza o entreteni-

A música de resistência como ferramenta para o enfrentamento da realidade social

TEXTO POR MAYRAH LUIZA E SOFIA DIETMANN

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mento sobre a mensagem da música.Isso acontece, em parte, devido às inúmeras “dis-

trações” do dia a dia. Uma rotina atolada em traba-lhos, horas perdidas no trânsito, cuidados com a casa, com a família e tantas outras tarefas diárias tiram das pessoas o tempo de desfrutar e refletir sobre coisas menos essenciais. Como diz Andre, as pessoas ficam anestesiadas. “É o que o sistema quer: o pão e circo. Eles te dão o que você quer para você sentir prazer e te deixar anestesiado”.

Na atualidade, o cenário político do país faz com que a música de resistência volte a cumprir um papel importante na vida social. Como diria Chico Buarque de Holanda em “Roda Viva”, uma das canções mais representativas do período da ditadura, a música “vai contra a corrente, até não poder resistir”, trabalha em oposição ao sistema vigente.

SUA NEGRA TINTA FARÁ BROTAR A COR NESSA CIDADE CINZA QUE TANTO TE NEGOU

Carú Bonifácio é estudante de Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista - UNESP, faz teatro, além de ser cantora e compositora. Apesar de não haver nenhum músico na sua família, desde cedo a música faz parte de sua vida. Com seu ingresso na faculdade, passou a perceber o seu espaço na so-ciedade de forma muito mais clara. “Quando eu co-mecei a estudar a história e todos esses processos do Brasil, foi que eu percebi que tenho esse corpo, eu sou a representação de tudo isso. Eu sou mulher, negra e periférica”. Essa consciência permitiu que escrevesse suas músicas a partir de suas trajetórias.

Carú já ouviu de amigos e colegas que as com-posições estavam ficando “pesadas demais” ou tra-tando de assuntos de forma muito agressiva, mas afirma que nada do que compõe é forçado ou não condiz com sua realidade. Ela vê sua música como um grito de liberdade, algo preso na garganta que precisa ser dito, não para provocar ou incomodar al-guém, mas sim aliviar as pressões do cotidiano. “É o meu desabafo, é a minha voz em algum lugar. Por-que às vezes a gente fala e ninguém escuta, então cantando vamos ver se funciona”.

Preta, pintaO mundo com seu tom

Que essa tua negra tintaFará brotar a cor nesta cidade, cinza

Que tanto te negou, mas ôh preta pinta

Aos 22 anos, Carú Bonifácio é cantora e compositora. Sua musica possui influência de diversos ritmos brasileiros.

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Essa foi sua primeira música de grande sucesso que hoje, ultrapassa 200.000 visualizações no Youtu-be. Carú nunca recebeu grandes críticas negativas ou comentários maldosos via redes sociais, mas acredita que se seu trabalho ganhar maiores proporções, esse tipo de situação se tornará inevitável. Ela ainda está dando os primeiros passos na carreira. Sua maior experiência no palco foi na abertura de um sarau na Virada Cultural, um evento de música que acontece em São Paulo desde 2005, organizado pela Prefeitura Municipal. Na ocasião ela ficou muito nervosa, sentiu um furacão de emoções, mas o ambiente e a recep-ção das pessoas fez com que se soltasse e aprovei-tasse a nova experiência.

Carú tem vontade de continuar crescendo no mundo da música e fazer dela a sua forma de susten-to, e sabe que isso implica vários desafios. “O que eu mais quero é poder viver de música, honestamente. Porque na verdade eu acho que eu não tenho outra saída não, ou é isso ou ferrou! Só que cada vez mais eu enxergo a dificuldade em relação ao cenário da música independente, porque tudo tem o seu valor, para conseguir materiais, para gravar um disco […] música é investimento. Muito investimento, muito tra-balho, e às vezes o retorno demora”.

NÃO FOMOS CRIADOS PARA ESTAR NOS MATANDO

Como outros jovens de sua idade, Tiago Costa de Jesus acredita no poder de transformação. Aos 19 anos, compõe canções de rap para denunciar situações que evidenciam seu cotidiano. Morador do Saco dos Limões, bairro de Florianópolis - SC, está envolvido com o rap desde muito novo, seja na forma de se vestir, nas gírias ou no jeito de andar. O rap para ele é uma forma de se mostrar ao mundo, mostrar o seu lugar na sociedade. Suas inspirações são seus vizinhos, seus colegas de trabalho, sua família. Suas músicas gritam aquilo que os olhos não querem ver:

“Eu procuro passar o outro lado da vida das pessoas que batalham todo o dia, que sofrem no trabalho pelo fato de não terem uma boa condição de vida, mas sempre deram um jeito de permane-cer firmes nas suas escolhas, no seu modo de viver,

Olha como os muleques estão ficandoEu só pisquei já estão traficando

Até onde vai eu não seiSó ouço o estudo larguei

Não fomos criados para estar se matandoAtrás de grade e mamãe chorando

A vida é tipo um barranco

no modo como tratar as pessoas”, defende.Tiago canta em cima da lage de sua casa, lo-

cal preferido para compor, onde vê a comunidade do alto e sonha um dia conseguir viver apenas do rap. Ainda no início da carreira, com duas músicas gravadas, é no palco democrático na batalha da Al-fândega, no centro de Florianópolis, onde ele cos-tuma cantar suas composições e improvisar junto a outros cantores de rap.

As batalhas são movimentos político-culturais, e ocupam os espaços públicos para expor a realida-de de comunidades carentes. São enfrentamentos musicais, duelos de rimas entre dois cantores, mais conhecidos como MC´s, que devem improvisar dentro do ritmo. Elas são divididas em dois tipos: batalhas de sangue, em que os rappers devem usar recursos para desprezar o adversário, e batalhas de conhecimento, onde os MC’s rimam a partir de um tema preestabelecido. Em ambos os tipos, quem escolhe o ganhador é a plateia.

O HIP HOP SALVA OS IRMÃO E TRAZ A ESPERANÇA

Toda semana, Daniel Guedes Couto sai de casa e, com seus CD’s de baixo do braço, caminha em direção ao seu sonho. MC DKG, como é conhecido nas ruas, trabalha com música desde 2008 e hoje faz de suas composições uma fonte de renda. Ele ainda não consegue se sustentar apenas com a música, se vê obrigado a fazer trabalhos temporários. Com a ajuda de amigos, produz e dirige seus videoclipes e grava seus CD’s em um estúdio montado em casa.

A família apoia a coragem do cantor de per-seguir seu sonho. Para os amigos, Daniel é fonte de inspiração e, assim como ele, acreditam que a música é capaz de transformar vidas, levando a arte para lugares onde o acesso é limitado. “O hip hop me educou, me ensinou a ser tudo que eu sou hoje”. Na sua música “Mantenha a Esperança”, lançada em 2017, o rapper fala do seu cotidiano:

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MC DKG luta por sua música pelas ruas de Flo-rianópolis. Tiago canta de cima de sua laje, sonhan-do por dias melhores. Carú fala sobre suas dores para aliviar as tensões do dia a dia. Os três fizeram da música o seu próprio megafone. A famosa frase do escritor britânico Oscar Wilde já dizia que “a arte imita a vida” e, por isso, é muito importante que a música mantenha seu caráter crítico e seja o reflexo de uma realidade. Cantar é, muitas vezes, o único meio de expressar uma ideia, a única forma de falar e ser ouvido em lugares onde a voz normalmente não chega. Seja na rua, na garagem de casa ou em um palco no Maracanã, música é uma forma de expres-são e representa as vozes de um povo. Ou, como diria Elis Regina, em “O Cantador”:

Cantador não escolhe o seu cantarCanta o mundo que vêE pro mundo que vi meu canto é dorMas é forte pra espantar a mortePra todos ouvirem a minha vozMesmo longe

vida de camelô vendendo os cdzin aquece o cafezinho abre a porta e deixa entrar os mano que apoiaram [...]provaram amizade eu não duvido

MC DKG cantando na primeira edição da Batalha da Lomba em 2018.

Foto: Mathias Luz

ESTA REPORTAGEM FOI ESCRITA PARA A DISCIPLINA DE

APURAÇÃO, REDAÇÃO E EDIÇÃO III, SOB ORIENTAÇÃO

DA PROFESSORA MELINA DE LA BARRERA AYRES

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Exatamente 17h27, ela chega para a passa-gem de palco. Com um sorriso sempre no rosto e um olhar cativante, me recebe no teatro como quem recebe um amigo para um café na sua sala de estar. Durante a

nossa conversa, os técnicos de som testam o áu-dio, os holofotes estão sendo ajustados e a diretora do espetáculo prepara sua equipe. É neste cenário de bastidores, que conheço mais sobre a vida de Dandara Manoela.

Nascida no interior de São Paulo, na cidade de Campinas, Dandara é um expoente da música bra-sileira no estado de Santa Catarina. Vencedora do Prêmio da Música Catarinense em 2017 como me-lhor cantora da edição, ela comemora o lançamento do primeiro disco de sua carreira. Intitulado “Retrato Falado”, o disco contém músicas autorais, que abor-dam temas como liberdade, resistência e denúncia.

Receptiva e sempre fazendo brincadeiras, Dandara aproveitou entre uma passagem de som e outra para falar sobre sua história de vida, e as ex-pectativas para sua carreira como cantora. Esperan-çosa e com um futuro grandioso pela frente, ela fala com carinho dos lugares pelos quais passou e das pessoas que a ajudaram a chegar até aqui.

Quando começou a sua relação com música?A música está presente comigo desde que tinha

7 anos. O marco foi quando eu assisti um filme que se chama Mudança de Hábito 2. Era bem inspirador, sobre uma professora de coral. Na época a minha família era da igreja, e por isso eu comecei lá [na igre-ja]. Mas no início eu era muito exagerada, fazia caras e bocas e minha tia morria de vergonha. Por causa disso eu acabava ficando travada, nem piscava, com medo da minha tia. Mas com o tempo, com uns 15 ou 16 anos, eu comecei a perceber que eu queria outros espaços, que eu gostava de outros tipos de música. Quando eu ia visitar a minha mãe - porque eu fui criada pela minha tia e pela minha avó - ela ti-nha vários tipos de música, tinha samba, coisas que eu achava legal pra caramba.

Quando a música virou profissão?Trabalhar [com música] oficialmente eu comecei

aqui em Floripa, que foi onde eu me profissionalizei. Lá [em Campinas] eu cantava na Igreja até os 17 anos. Depois eu saí da Igreja e comecei a cantar “pra fora”, às vezes me chamavam pra uma festinha de casamento ou uma festinha das amigas, um barzinho aqui outro ali, mas nada profissional. Até porque eu

Dandara Manoela

A jovem cantora do interior de São Paulo que conquistou palcos em Florianópolis, nos conta um pouquinho da sua história.

TEXTO POR SOFIA DIETMANN

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era super sem experiência, não tinha repertório po-pular nem nada, só sabia cantar as músicas da igreja.

Até que em 2014 eu decidi fazer Serviço Social, e passei aqui na UFSC. E um dia na universidade eu vi um cara com um cavaquinho e pedi pra cantar com ele. Eu tava super tímida, mas logo em seguida ele já me chamou pra conhecer um lugar que tinha samba “não-sei-o-que” e ir cantar “não-sei-onde”.

Uma outra vez eu fui na casa de uma amiga mi-nha, e pediram para eu cantar. Um cara que estava na festa me ouviu e me chamou pra fazer parte da banda de um amigo dele, a banda do seu Baldecir. Na época eu pensei “agora as coisas vão começar a acontecer”. E começaram. Nessa época a gente começou a cantar nas festas da UFSC e nos barzi-nhos ao redor. Com o tempo eu comecei a ficar mais conhecida - pelo menos na faculdade. As pessoas começaram a me conhecer pra além da banda e a me chamar pra cantar em vários lugares.

Como funciona seu processo de composição?Isso é super novo. Eu fui começar a compor fa-

zem dois anos. Foi uma coisa que eu conquistei aqui [em Florianópolis], por isso que eu acho Floripa é o lugar onde eu nasci enquanto cantora. Mas foi muito por acaso, comecei a escrever por vários motivos, por coisas que eu sentia, coisas que eu percebia. Eu escrevo sobre coisas que me tocam.

Mas eu não me sinto compositora, só sei que eu sou capaz de compor. Mas eu acho que isso também é um processo de se perceber, sabe, de autoconhe-cimento. Então eu acredito que com o tempo eu vou começando a entender mais o que realmente me mo-tiva. Na verdade são só coisas que estão aqui e que às vezes a gente consegue colocar pra fora. Então eu acredito que o processo de compor vem muito dessa capacidade de se entender, de autopercepção.

Como foi a experiência de ter ganho o Prêmio da Música Catarinense?

Acho que o Prêmio da Música Catarinense foi um marco de que as coisas estão dando certo, estão rolando. Foi muito emocionante. O momento em que anunciaram meu nome, eu não acreditei, fiquei muito feliz. E não exatamente pelo título - porque eu acho que isso é bem relativo - mas porque eu sabia o que aquilo representava simbolicamente.

Teve muita gente envolvida, foi o momento da mi-nha vida que eu percebi que realmente as pessoas estavam abraçando o que eu estava fazendo, esta-vam curtindo. Inclusive foi umas das coisas que me encorajaram a fazer o financiamento coletivo; antes, eu não acreditava que alguém ia me dar dinheiro. Eu pensava “ai, vou passar vergonha”. Mas depois que eu vi a galera envolvida, vi que tinha gente que acre-ditava no que eu tava fazendo, foi quando eu reuni forças para tentar.

E por falar em financiamento coletivo, como está sendo a experiência com o primeiro disco?

É o primeiro autoral. Eu já tive participações em discos, mas esse tem significado porque é o primeiro autoral e solo também, né, no sentido de levar o meu nome. É incrível poder falar das coisas que eu sinto e ver isso materializado. E esse era um sonho distante pra mim, porque é um projeto caro, e eu nunca tive grana, e eu sempre pensava que financiamento cole-tivo nunca ia dar certo. Então eu to recebendo como um presente mesmo. E justamente por ter sido feito através do financiamento coletivo, eu me sinto muito mais autoconfiante, porque eu percebo isso como se fosse uma aprovação. As pessoas me veem e eu tô no caminho certo.

Foram cerca de 420 pessoas. É muita gente. Eu não tenho 420 melhores amigos. Não são pessoas tipo a minha mãe, mas sim pessoas que estão contri-buindo porque realmente se sentem tocadas de algu-ma forma pelo o que eu estou fazendo. Por que pra essas coisas a gente precisa de uma aprovação mí-nima, e não digo isso por questão de ego, mas é que se zero pessoas gostarem do que você faz, não faz sentido fazer, daí eu ficaria cantando só no chuveiro.

Eu penso que a música, e a arte no geral, tem a função de trocar, de se comunicar, de despertar sentimentos, de despertar conexões.

a arte tem a função de trocar, de se comunicar, de despertar sentimentos, de

despertar conexões

““

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cortiço

Gosto muitode escreverA

primeira pergunta que é feita quando se entra em uma faculdade de jorna-lismo é: Por que você escolheu jorna-lismo? A primeira resposta que se dá a essa pergunta irrefutavelmente, quase

em unissono, é: Porque eu gosto muito de escrever. O que é lógico. não se espera que um estudante de jornalismo não goste de escrever. E nem se deve es-perar tal incoerência. Isto não está em discussão. Já deixo avisado, caso não tenha sido clara, que gostar de escrever é um pré-requisito importantíssimo para pode exercer tão nobre profissão - tão nobre como qualquer outra, diga-se de passagem.

Mas existe um pequeno segredo guardado a sete chaves pelos jornalistas que só se descobre depois de entrar na faculdade. Um detalhe que ninguém conta para que não seja um motivo de desistência - o que certamente seria. Lá vai: jornalismo não é para quem gosta de escrever.

Dito. Pois fiquem indignados à vontade, esper-neiem e tentem convencer-me do contrário. Mas a verdade é que quem diz que gosta de escrever não se refere a notícias monótonas, boletins de rá-dio ou scritps para televisão. Quem gosta de escre-ver, se exprime em prosa ou poesia. Tenho certeza de que agora o leitor do contra está argumentando que somos todos diferentes e que nem todos preci-sam necessarimente gostar de prosa ou poesia. E é verdade. Mas convenhamos, ninguém aqui escreve

um boletim de rádio // com parágrafos contados e números sublinhados // para dizer que teve um dia ruim. // Sem falar dessas barrinhas clássicas para marcar as respiradas.

Provocações a parte - e sabendo que este texto teme ser cortado por um editor a qualquer moento - todos somos adaptáveis. Depois do susto inicial, muitos de nós aprendemos a moldar as nossas ideias para que sejam passadas através das novas ferra-mentas que nos são dadas. Alguns de nós não con-seguem. Mas os que ficam, aprendem que não ape-nas em prosa e poesia é que se pode transmitir ideias.

Mas isso não nos faz esquecer dos nossos ver-sos. E me incluo nesta contagem pois também res-pondi “Porque gosto muito de escrever” e, se você leu até aqui, pode perceber que este texto também teve um “pezinho” no literário. E nesta edição, a Re-vista Elis dará espaço aos textos literários dos alunos do curso de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Foram escolhidos apenas dois, mas tenha a certeza de que essa comunidade secreta de ávidos escritores é extensa.

Afinal, suas produções não se resumem nos tra-balhos do final do semestre, nas reportagens escri-tas ou nos programas de rádio e tv apresentados. E aqui, você leitor verá os mais sinceros de todos os textos. As mais íntimas e devotas produções desses alunos. Espero que você faça bom proveito e desejo a você um bom estômago.

TEXTO POR SOFIA DIETMANN

O que passa na cabeça de um estudante de jornalismo que tem paixão pela escrita?

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o tempo tem andado sobre o casco de uma tartaruga. uma tartaruga idosa. doente. tem andado assim enquanto estou aqui. enquanto estou sozinha.

o sol vem dar uma espiada no que ando fazendo e, novi-dade: nada. e como se escon-de dos pais aquela cartinha do namorado, escondo o meu nada do sol. vou fugindo. mas também, assim como quando os filhos precisam dos pais e voltam cabisbaixos, envergo-nhados procurá-los; quando na sombra já não encontro acalento, quando minha pele se arrepia com a mais fraca das brisas, vou me redimindo, engatinhando arrependida de volta ao sol. ao seu calor.

Antes de ser problema dos outros, eu sou problema meu.

Eu gostaria de falar sobre as tantas vezes que me frustrei com os outros. Dos amores

que perdi. Pelos amigos que não fiz e pelos que foram

desfeitos. Sobre achar que eu não merecia ser amada, nem

pela minha família. Sobre a ausência de vontade de viver,

de seguir em frente. De ser eu. É tudo sobre o que eu projetei

nos outros, e não encontrei nem em mim. Dos amores que

nem se iniciaram, por conta da falta do meu amor por mim mesma. Aquele ditado de que, só se ama de verdade, quando amamos nós mesmo é o clichê mais verdadeiro. Eu nunca falei

e pareço a única de fato obstinada nessa fuga. os demais parecem-me tão… confortáveis. isso ainda não havia me incomodado, afinal, não pertenço a este lugar. estou de passagem. é claro, uma pas-sagem deveras demorada, mas ainda passagem. e por ser assim demorada, me preocupa que ainda viva nessa fuga. seria tão simples sentar-me aqui e absorver as energias da natureza. mas aqui o tempo passa tão devagar.

já não posso entender. longe daqui o tempo parece mudar. cria uma rebeldia e desata a correr. fora daqui o tempo tem pegado carona não mais com uma tartaruga, mas com uma lebre. e corre tão depressa. passa por mim e nem o vejo.

longe daqui, ou até mesmo por aqui. com você, o tempo tem sido igualmente rebelde. creio que sua companhia o assuste. então logo o tempo abandona a lebre e foge junto a um leopardo. e sol continua a espiar. se ao menos a Terra girasse mais deva-gar. percebo que ao teu lado o tempo não para de passar.

KAUANE LAHR

da minha insegurança em ser assim, exatamente do jeito que eu sou. Eu nunca falei em como é difícil

olhar todo dia a sua volta, e achar que todos são me-lhores do que você e você menos. Sempre menos,

minúscula, nada. Eu nunca te contei, que fugi de você naquele dia, porque eu achava não ser suficien-

te, como pode você me querer? Olhe atentamente para mim, o que você vê? Porque eu não vejo nada

mais do que menos. Eu nunca falei da minha falta de capacidade de acreditar em mim. Acreditar que

alguém possa me enxergar e me amar. Acreditar que eu sou capaz de fazer o que eu quiser fazer, porque

cara, eu sou capaz. É tão difícil falar de nós mesmos, dos nossos medos, das nossas angústias, das nos-

sas paranóias, da gente assim mesmo como a gente é. Eu não sou perfeita, você também não é. eu estou

trabalhando nessa coisa chamada amor próprio. Porque no fim, é isso, o melhor amor é o que você

sente por você mesma.

EMILY MENEZES

UM AMORNÃO TÃOPRÓPRIO

AS FUGASDOTEMP0

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por onde andei

A Curitiba de Leminski

isso de querer ser exatamente aquilo

que a gente é ainda vai nos levar além

PAULO LEMINSKI | INCENSO FOSSE MÚSICA

Paulo Leminski certamente foi um homem de muitos talentos. Jornalista, músico, poeta, crítico literário, tradutor, professor. Seu trabalho, recon-hecido nacional e internacionalmente, lhe rendeu

premiações importantes, como o Prêmio Jabuti de Poesia, em 1995.

Leminski morou a vida inteira em Curitiba, cenário que inspirou muitos de seus contos e poe-

mas. Sua obra pode ser vista nos muros e calçadas da cidade. Leminski dá vida a Curitiba, e Curitiba

carrega seu legado.Pensando nisso, o Instituto Municipal de Turismo

de Curitiba refez os passos do escritor pela cidade, e uniu as inspirações de Leminski em uma rota

turística. Com mais de 30 pontos diferentes, a rota foi criada com a ajuda da filha, Áurea Leminski e

lançada em homenagem aos 70 anos do escritor.Conheça agora alguns desses lugares.

Conheça os lugares que inspiraram as obras do escritor Paulo Leminski

SOFIA DIETMANN

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cROTA PAULO LEMINSKI

RESTAURANTE BIFE SUJOEra aqui que Leminski encontrava amigos e artistas da cidade. Local

que inspirou Nós Fumo, canção em parceria com a mulher, Alice Ruiz.

BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁLocal onde Leminski procurava livros de todo o tipo, principalmente de literatura estrangeira e dicionários.

TEATRO DA CLASSENa época foi apelidado como

Teatro 13 de Maio. O local sediava o espetáculo Leminski

Convida, em que vários artistas eram convidados pelo autor para

participar.

ACADEMIA KODOKANLeminski treinava judô na

academia, onde conquistou a faixa-preta e disputou diversos campeonatos. Foi um ponto de

conexão com a cultura japonesa.

CASA DO PILARZINHOA segunda casa onde Leminski morou no Pilarzinho foi um local de grande produção. Também foi palco de encontro com grandes artistas brasileiros, como Gilberto Gil, Moraes Moreira, Gal Costa.

PEDREIRA PAULO LEMINSKIConstruída após a sua morte, a pedreira, que é sede de grandes shows, presta uma homenagem ao escritor e mantém vivo o seu nome em Curitiba

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bailando

Planta do PéEntre a arquitetura e o sapateado, Fernando corre atrás do sonho de viver da arte

E le olhou para os seus concorrentes e pen-sou “puta que pariu, o que eu tenho para oferecer? O que será que eles podem ver em mim?!”. Vestindo suspensórios e meias do Mickey até metade da canela, lá se foi

Fernando Flesch para mais um desafio na sua vida.24 anos, 15 como sapateador e 4 como profes-

sor. Seus quase dois metros de altura fazem com que ele raramente passe despercebido. Mas naque-la noite, não foram nem sua altura e nem suas meias que chamaram a atenção. Mais preparado do nun-ca, Fernando colocou para fora naquela coreografia, todos os monstros que havia construído nos últimos dois anos. O que lhe rendeu o primeiro lugar. Na 14° edição do festival carioca de sapateado Tap in Rio, o vencedor do concurso foi o “manezinho” Fernando Flesch. Esse foi o nome de destaque naquela noite, e em várias outras.

Sua relação com a dança começou em 2003, aos 9 anos, depois de assistir uma adaptação de “Os Ma-rujos do Amor”. Na coreografia, uma menina sapatea-va vestida de ratinha. “Quando ele viu aquilo, ele ficou louco”, relembra sua mãe, Ana Maria. Depois da apre-sentação, Fernando correu até a menina e perguntou:

- Como é que eu vou aprender a fazer isso aí?- Ah, minha mãe é professora. Ela tá aqui, vamos

lá falar com ela. - respondeu a menina.A mãe da ratinha era Bia Mattar, que viria a ser

a grande mestre de Fernando por muitos anos. “O Fernando é um menino muito talentoso. Ele tem arte passando nas veias, é uma pessoa sensível, como ser humano também”, relata a professora.

Desde pequeno sempre foi próximo ao meio ar-tístico. Além da dança, fez aulas de desenho, parti-cipou do coral da escola e frequentou, junto ao seu irmão Bernardo, aulas de piano. “Ele sempre fez mui-ta coisa. Quando ele era pequeno, a gente não po-dia ter programação [no domingo] porque tinha que levar ele pros ensaios. A gente ia depois do almoço e voltava de noite”, lembra a mãe.

Sua rotina não é muito diferente daquela época. Hoje, os dois irmãos e mais alguns amigos têm uma banda, a Step by Tap. Com aulas de segunda à sába-do, mas agora como professor, Fernando almeja cons-truir uma comunidade de “amantes do sapateado” em Florianópolis. “Como estou na finaleira da graduação, acabo não tendo muito tempo para praticar, mas dar aula me permite interagir com pessoas e criar um públi-co”. Ainda assim, arranja um espacinho na sua agenda para os ensaios da Cia. Trupe Toe, um grupo profis-sional de sapateado dirigido por Marina Coura, que se prepara para o lançamento de um novo espetáculo.

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O amor pelo sapateado já têm 15 anos e ele ain-da lembra com detalhes seu primeiro dia de aula. Assistiu tudo atentamente, sentado no canto es-querdo da sala. Vestindo uma calça de agasalho cinza e tênis preto de velcro da Ortopé, observava as meninas dançando, e elas estranhavam sua pre-sença. Em um dado momento, uma delas, curiosa, foi até ele e perguntou:

- O que é que tu tá fazendo aqui?- Eu vim assistir a aula. - ele respondeu sem dar

muita atenção. Não via nenhum problema em ser o único menino da sala.

A riqueza de detalhes daquele momento, revela sua excelente memória - um de seus pontos fortes. Até hoje lembra com exatidão coreografias que dan-çou em 2005, e até sequências que aprendeu em dois ou três dias em um festival há vários anos atrás.

Além da infância, lembra com clareza de sua adolescência, que trouxe novas conquistas e res-ponsabilidades. Escolhas que, apesar de pare-cerem muito distantes do sapateado, acabaram aproximando Fernando do seu lado artístico. O fim do ensino médio o colocou de frente com a maior dúvida de um adolescente: Qual curso fazer na faculdade?

Influenciado pelo sonho de seu pai, prestou ves-tibular e passou para arquitetura. “Eu percebi que não era isso que eu queria logo na segunda fase.

Mas daí surgiu uma oportunidade de fazer intercâm-bio na metade do curso e eu fui. Agora já estou ter-minando, o mais difícil já passou”.

Na época, Fernando viu no intercâmbio uma chance de tentar fazer as pazes com a arquitetura. Participando do programa Ciências sem Fronteiras, estudou na cidade de Dresden, na Alemanha.

Na esperança de não ficar um ano sem contato com a dança, enviou uma mensagem para Daniel Borak, um dos grandes sapateadores europeus que havia conhecido no Chicago Human Rhythm Project em 2014. Com ele, conseguiu o endereço de um site com todos os professores e escolas de sapateado da Alemanha.

Foi através desse site que conheceu Georgi Ma-rinov, professor de danças folclóricas búlgaras que, depois de um ou dois cursos e alguns vídeos do You-tube, começou a dar aulas de sapateado. Mesmo

No álbum de fotos de sua mãe, encontram-se momentos muito especiais, como este. Abraçado com Bia, sua professora, e Marininha, grande amiga de infância, Fernando transborda felicidade antes de entrar no palco.

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através da dança a gente chega em lugares que não dá para chegar

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sabendo que não seria Georgi seu grande mestre, fez sua matrícula. “No final das contas, de todas as pessoas na Alemanha, a galera da turma do Georgi foram os que mais me acolheram”. Além da amiza-de, o professor búlgaro trouxe oportunidades.

Foi através de Georgi que Fernando conhe-ceu um pouco mais do Campeonato Mundial de Sapateado que acontecia na cidade de Riesa, há 70 quilômetros de Dresden. Formando o primeiro time brasileiro a participar do campeonato, ele re-presentava um país de um homem só: era o pre-sidente, o diretor, o co-diretor, o coordenador e o bailarino do time do Brasil. “Foi terrível, terrível. Eu coreografei e ensaiei meu solo de meia no meu banheiro, porque eu achava que era o lugar que menos fazia barulho pro vizinho de baixo. Depois eu fui descobrir que não tinha ninguém morando no andar de baixo”.

“Na guerreiragem”, como ele mesmo diz, foi até o campeonato. Pegou um trem até Riesa, onde es-tava escuro e muito frio. Caminhou até o local do evento, que ficava a mais de meia hora de distância a pé. Durante a performance, foi surpreendido por uma torcida organizada pelos alunos de Georgi, que vibravam com pompons verde e amarelo. “Eu lembro que eu não passei [para a próxima fase] e me senti um lixo, porque sempre que eu perco eu me sinto assim. Mas todos eles torceram muito por mim, foram muito queridos”.

A experiência, sem dúvida alguma, foi um marco em sua estadia na Alemanha. A partir daquele mo-mento, Fernando percebeu que precisava fazer seu intercâmbio valer a pena não só para sua gradua-ção, mas para o seu crescimento como sapateador. Esse anseio por aprender o levou até o Festival de Estocolmo em 2015, o maior festival internacional de sapateado do mundo. “A experiência em Estocolmo foi a chave. Foi o melhor festival de sapateado que eu já fui. Foi lá que eu percebi que eu queria ser um daqueles caras que eu vi dando aula. Eu quero ser exatamente um deles. Então eu voltei [para o Brasil] com toda essa energia”.

Mesmo sabendo que ainda tem um longo e desafiador caminho pela frente, ele já se prepara e sonha com seu primeiro workshop em um festival internacional de sapateado. Sua dedicação e disci-plina para alcançar seus sonhos também são claras

quando se trata da sua carreira como professor.Murilo, seu aluno há dois anos, diz que Fernan-

do sempre foi muito conectado às suas turmas e que seu jeito brincalhão e paciente os tornaram bons amigos. “Ele ama muito o que faz. Nas au-las, sinto que ele se preocupa muito com a forma como cada um dança, e não só com a técnica. Ele deixa a gente se expressar sem medo”.

De todas as transformações que a dança pro-porcionou ao longo desses 15 anos, a mais valiosa, segundo ele, foi seu crescimento como pessoa. “A dança abre muito a nossa cabeça. Através dela, a gente chega em lugares que não dá pra chegar na vida normal. Através da arte, na verdade, né. E aí entra o meu ‘super-dever’ como ser humano e como artista: a gente tem que tentar levar as pessoas até esses lugares que a gente consegue alcançar, para elas entenderem que a vida não pre-cisa se resumir a essa encheção de saco”.

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ESTA REPORTAGEM FOI ESCRITA PARA A DISCIPLINA DE APURAÇÃO, REDAÇÃO E

EDIÇÃO III, SOB ORIENTAÇÃO DA PROFESSORA MELINA DE

LA BARRERA AYRES

“Meus alunos são como meu laboratório, porque com eles eu posso explorar coisas que eu mesmo posso aplicar no futuro”

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