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Falas através de/com Cobra Norato
SAULO DE ARAÚJO LEMOS
Cobra Norato (1931) é o poema mais famoso (mesmo que não tanto hoje em dia) do
escritor, jornalista e diplomata gaúcho Raul Bopp (1898-1984). Em versos predominantemente
livres, dividido em 33 partes, esse texto apresenta um eu poético que rouba a pele da mitológica
Cobra Norato, utilizando-a como suplemento corporal que lhe possibilita procurar sua amada,
a “filha da rainha Luzia”, com mais desenvoltura e chances de sucesso. Logo no início da
narrativa, o leitor descobre que o eu-Cobra Norato se encontra em meio à floresta amazônica,
a qual terá de ser trilhada no intuito de achar a tal princesa; como o leitor poderá perceber
também, o personagem-narrador não faz ideia clara de onde ela esteja. Para auxiliá-lo em sua
busca, ele aceita a ajuda de alguns dos vários habitantes da selva, especialmente o Tatu-de-
Bunda-Seca. Absolutamente não há caminho pronto, prévio, e aquelas matas também
encurralam o viajante-protagonista em seus peculiares becos sem saída de lama e planta. A
Cobra Norato feita voz, aliás, se afeiçoa à incerteza do trajeto e passa a usufruir dos lugares
afins a suas andanças.
Em alguns momentos, o personagem esquece do objetivo inicial e resolve visitar
acontecimentos por perto, como o encontro do rio com o mar na pororoca, uma farinhada de
tapioca ou um ritual mágico de pajelança indígena. Por onde passa, registra cenas, envolvendo
animais, vegetais e águas, e vozes: palavras, sons, cantigas. A paisagem natural se mistura ao
rumor imemorial das lendas. Em dado momento, o personagem descobre casualmente que a
Cobra Grande, uma espécie de rival, irá encontrar a própria filha da rainha numa localidade
chamada “Buraco do Espia”. Com a ajuda do companheiro Tatu, Norato engana a Cobra Grande
e faz com que ela involuntariamente fique aprisionada debaixo da Catedral da Sé de Belém.
Finalmente, o protagonista Norato-cobra pode desfrutar tranquilamente da companhia de sua
princesa, com quem pretende viver numa casinha simples no meio da selva. Isso, não sem uma
festa de casamento que contará igualmente com artistas do modernismo nacional e com animais
UFC, Doutor em Literatura Comparada, apoio Capes/Funcap; Uece-Fecli, professor de Literaturas de Língua
Portuguesa.
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folclóricos da Amazônia. Com esse enredo, o poema parece pueril, mas não deixa de ser
bastante adulto em sua dicção.
A obra literária de Raul Bopp contém elementos similares ao que se observa em outros
autores da Geração Modernista de 1922, como Mário de Andrade, com Macunaíma (1928), e
Cassiano Ricardo, com Martim Cererê (1928): a pesquisa folclórica aliada à abordagem crítica,
o humor irônico, a linguagem que absorve e funde traços de poesia, prosa e oralidade cotidiana.
Esta, a propósito, foi consolidada como imagem artística por aquela Geração, o que, como se
sabe, seria levado a extremos pela escrita de João Guimarães Rosa décadas depois. De sonetos
cujo descritivismo, ainda meio parnasiano, já envolve pitadas de um futuro olhar modernista,
Bopp transita gradualmente para o verso livre e para a prosa figurada, como se nota nas
reportagens poéticas em que descreve algumas de suas muitas viagens através do país (e do
mundo). Em certos momentos de sua vida, o escritor gaúcho esteve relativamente próximo de
figuras questionáveis da vida política do Brasil, como o integralista Plínio Salgado e o ditador
Getúlio Vargas. Entretanto, sua intensa experiência com a poesia moderna teve a interferência
de mentores da antropofagia modernista, como Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, no que
toca, sobretudo, à procura de novos olhares para o que o Brasil tinha sido e o que buscava ser.
Isso tornava urgente pensar no problema da contradição entre uma modernidade civilizatória
xinfrim e uma tradição cultural tão elogiada quanto pouco conhecida, naquela altura.
A oralidade é um dos aspectos mais exaltados na literatura produzida pela Geração de
1922, tanto pelo seu potencial artístico quando político. O interesse intelectual vanguardista por
linhas de intensidade provindas de registros linguísticos e culturais desprestigiados é
mencionado em praticamente qualquer discussão a respeito das obras do modernismo
brasileiro. Em muitas abordagens, o uso do registro oral no texto literário é meramente elogiado
como indício mimético de um recorte autêntico da realidade brasileira da rua, do cotidiano,
como se fosse a porta para a efetiva realidade brasileira. Porém, aí não se trata de escritas como
cartilhas pedagógicas ou fotográficas da oralidade no cotidiano brasileiro em dado momento
histórico, mas de atos de invenção artística em que o dado oral, em vez de fossilizado numa
pose museológica, é potencializado por uma abertura da significação que dá à obra de arte um
caráter felizmente informe e inacabado, em permanente construção pela leitura e pela história;
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é o que se verifica em Cobra Norato, em Macunaíma, de Mário de Andrade, em muitos poemas
de Oswald de Andrade e em outros autores contemporâneos a eles.
Dentre outros motivos, o não fechamento dos sentidos, ocorrência habitual na obra de
arte moderna do século XX em diante, ocorre não porque elas sejam depositórios de oralidade
pura, em estado bruto, mas pelo fato de que os traços orais se misturam a registros discursivos
que remetem a situações funcionais e sociais diversificadas (ou seja, ali se encontram diversas
modalidades do oral, seja mais “culto”, seja mais “popular”) bem como a registros
habitualmente compreendidos como próprios da linguagem escrita. A escrita da obra se mostra,
assim, como um composto linguístico de variância imanente, com heterogeneidade, diferença.
A norma padrão da língua, assim, não é o cúmulo de um aprimoramento linguístico, mas o
limiar entre usos diferenciados do idioma: os que visam a uma adequação ritual, e os que
primordialmente cumprem uma função comunicativa ou, melhor ainda, expressiva. Se
considerarmos o fato pouco observado de que mesmo a norma padrão da gramática normativa
não consegue ser rigorosamente unificada devido a inúmeras divergências entre os gramáticos
mais reputados, será possível pensar então que a linguagem não é feita de compartimentos
purificados pelo uso, mas de nuanças nem sempre nítidas. A partir do modernismo de 1922 é
que a literatura brasileira começa a explorar esse fato de maneira potencializada.
Observando-se Cobra Norato em seu comprimento, vê-se uma ampla topografia de usos
de linguagem que não é bem um manual de falares amazônicos, mas um possível estímulo para
pensar a linguagem e o pensamento como problemas cruciais a qualquer tentativa de percorrer
e habitar o mundo que os sentidos físicos, a consciência e os inconscientes encontram e recriam
o tempo todo. Há no poema toda uma escala matizada de ocorrências entre o coloquial e a
norma culta, que frequentam e partilham a mesma frase em muitos casos. Aqui se torna
inevitável lembra o subtítulo que Bopp deu ao poema: “Nheengatu da margem esquerda do
Amazonas”. Em um sentido técnico e literal, Nheengatu é o nome dado à língua derivada do
tupi pré-colonial acrescentada de certos vocábulos e fenômenos da língua portuguesa; por causa
desses atributos, também é chamado de tupi moderno ou língua geral, já que servia como meio
de comunicação entre brancos, índios e mestiços em toda a região da Amazônia1. Cobra Norato
1 Uma conceituação e uma introdução ao dialeto Nheengatu e a seu vocabulário podem ser encontradas em Freitas
(1976) e Navarro (2011).
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foi predominantemente escrito em português e, portanto, não é literalmente nheengatu; só se
for um nheengatu outro, um nheengatu-poema.
A bibliografia disponível que consultamos, sobre Cobra Norato, contempla com
frequência o problema da oralidade na obra2. Entretanto, de um modo geral, ele é abordado na
perspectiva de sua desejada representatividade em relação a uma ideia de cultura nacional,
como no caso de outros autores modernistas. A leitura da oralidade como diferença e
mobilização de linguagem, relacionada ao exercício do poder conforme o que o olhar humano
chama de tempo e de história, merece provavelmente uma investigação mais cuidadosa. É o
caso, então, de percorrer o poema e exemplificar o que foi descrito nas observações dos
parágrafos anteriores. Nas primeiras linhas, a voz narradora, comumente chamada “eu lírico”
ou “eu poético”, anuncia um plano futuro (e todo o poema é, de fato, seu plano futuro, sua
utopia): vai morar nas “terras do Sem-fim” (BOPP, 2013: 167). Na medida em que ela ruma
para concretizar esse intento, as vírgulas da norma-padrão começam a sumir de seu discurso,
ao passo que aquele narrador se mistura “no ventre do mato mordendo raízes” (BOPP, 2013:
167). Uma puçanga, termo indígena para medicamento feito com ingredientes naturais,
permitirá atrair a lendária Cobra Norato, que em lendas da região amazônica é um réptil ofídio
gerado em útero humano.
Além da puçanga, uma conversa persuasiva possibilitará que a Cobra Norato seja morta
pelo narrador e tenha sua pele roubada por ele. Assim, munido de uma máscara de corpo inteiro,
de um rosto-corpo, o eu-poema se transforma em Cobra Norato e desfruta da prerrogativa que
lhe interessa: a capacidade de percorrer a selva, seus rios e matas, como nenhum humano e
nenhuma voz humana poderiam conseguir. A pele é de “seda elástica”; a identidade Norato,
talvez como qualquer identidade, torna-se acessível ao desejo de assumi-la. O peso nos passos
e o sono que apaga os olhos humanos ativam a nova condição ontológica do personagem como
um teatro para si, um estar no mundo como “pura apresentação”, como diz Foucault sobre a
modernidade artística e intelectual desde o século XIX (2013: 31). Quando o trajeto rumo à
“filha da rainha Luzia” começa de fato, o personagem se depara com uma “floresta cifrada”
(BOPP, 2013: 168). A voz que soa, então, é a da escrita, que descreve a paisagem visual ao
2 Ver referências ao final deste trabalho, que também podem servir como fontes para a relação entre o poema de
Bopp e as fontes folclóricas assimiladas por este.
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redor. Os sons de um lugar sem tamanho surgem para a escuta: “De todos os lados me chamam
/ – Onde vais Cobra Norato? / Tenho aqui três arvorezinhas jovens à tua espera” (BOPP, 2013:
169). Junto a essas vozes, ressalta a fala do narrador, como uma afirmação de si e para si a partir
da compreensão de seus desafios:
– Agora sim
Vou ver a filha da rainha Luzia
Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados
guardadas por um jacaré
– Eu só quero a filha da rainha Luzia
Tem que entregar a sombra para o Bicho do Fundo
Tem que fazer mirongas na lua nova
Tem que beber três gotas de sangue (BOPP, 2013: 168).
Cobra Norato, aí, não é mais quem havia sido. Não cumpre mais os papéis de antes de
ter a pele roubada; agora, aparentemente ela/ele aparenta ter um único e inadiável objetivo. Os
habitantes do lugar parecem perceber isso: “Espia-me um sapo sapo / Aqui tem cheiro de gente”
(BOPP, 2013: 171). O trajeto a seguir, na selva-labirinto, equivale ao dos gestos das simpatias
ou dos feitiços condenados pela tradição cristã, mas que nela se infiltram e sobrevivem, como
as mirongas (palavra para feitiço nos cultos bantos) e o ato de beber sangue. Livre e
indomesticável, a selva chega a ser hostil (“Erva-picão me arranhou”; “O resto da noite me
enrola” – BOPP, 2013: 170; “Esta é a floresta de hálito podre / parindo cobras” BOPP, 2013:
171). O longo desfile de seres dos reinos animal, vegetal e mineral por todo o poema não se dá
necessariamente por um eixo sequencial, apesar de os versos evidentemente se apresentarem
em sequência; isso quer dizer que a coesão entre eles não é fixa, engessada, mas, em lugar disso,
a sucessão temporal é espacializada, não necessariamente sequencial, de modo que passado,
presente e futuro oscilam, colocando-se num mesmo plano. Na poesia moderna, esse efeito é
observado desde Un coup de dés [Um lance de dados] (1897), poema de Stéphane Mallarmé que
inaugura a múltipla possibilidade de leitura em vários quadrantes e direções da página (cf.
MALLARMÉ, 2008: 417-444). A especificidade de Cobra Norato a esse respeito é a
espacialidade específica dessa selva que é o poema.
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Junto aos estímulos sensoriais diversos ao redor do protagonista, pode-se destacar as
muitas vozes que o interpelam, mesmo que sem intenção destinatária. Tanto que Norato chega
a conversar com elas enquanto se movimenta, e sua conversa, tal como algumas situações
folclóricas ibérico-brasileiras recolhidas em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo
Neto (cf. 1999: 172-175; 177; 182-186; 187-191), não se compõe de falas direcionadas
reciprocamente, mas que se interpõem paralelamente, como numa letra de música com refrão:
– Vocês são cegas de nascença. Têm que obedecer ao rio
– Ai, ai! Nós somos escravas do rio
–Vocês estão condenadas a trabalhar sempre sempre
Têm a obrigação de fazer folhas para cobrir a floresta
– Ai, ai! Nós somos escravas do rio
Vocês têm que afogar o homem na sombra
A floresta é inimiga do homem
– Ai ai! Nós somos escravas do rio
Atravesso paredes espessas
Ouço gritos miúdos de ai-me-acuda:
Estão castigando os pássaros
–Se não sabem a lição vocês têm que ser árvores
– Ai ai ai ai… (BOPP, 2013: 172).
A selva é sobretudo um emaranhado de registros orais, mesmo quando não propiciados
por bocas. O poema, grosso modo, é feito especificamente por esse amontoado, o qual explora
de maneira tão variada a diversidade dos habitantes da Amazônia que isso parece resguardá-lo
do risco de transmitir uma impressão homogênea e tediosa da floresta. As falas que fluem com
o rio Amazonas são, em sua essência líquida, heterogeneidade e multidão:
Correm vozes em desordem
Berram: Não pode!
– Será comigo?
Passo por baixo de arcadas folhudas
Arbustos incógnitos perguntam:
– Já será dia?
Manchas de luz abrem buracos nas copas altas (BOPP, 2013: 174).
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Assim como o aspecto especializado de uma página de Un coup de dés permite a
construção imediata de sentidos em várias direções, em Cobra Norato podem se efetivar
contaminações mútuas de ressignificação pela interposição e fricção de registros de voz entre
o sentido e o ininteligível, entre o oral propriamente dito e a sonoridade ambiente. Alguns dos
sons ouvidos se intensificam a ponto de se tornarem falas identificadoras de certos episódios da
narrativa, como no caso do trovão, da chuva, ou daquele se a partir de um encontro repentino
se torna companheiro de viagem do narrador-Norato: trata-se do já referido Tatu-de-Bunda-
Seca. Norato já sabe, porque seu conhecimento é afim ao cancioneiro folclórico amazônico,
que “compadre Tatu” (BOPP, 2013: 177) é quem pode guiá-lo ao objetivo proposto desde o
início, mas também, e sobretudo, dinamizar seu trajeto, naquilo que lhe falta como rumo
definido e lhe sobra como deriva e devir potencializado: desse modo, seguir um caminho é
também se perder nele, e habitar um lugar é não se fixar em nenhum de seus pontos específicos.
O Tatu é o guia para se desorientar prazerosamente na selva, espécie de Virgílio de última hora
para um Dante além do bem e do mal, daqueles que são amorosos, mas que matam animais
incautos3.
A companhia de um interlocutor produz uma situação específica de diálogo que, no
entanto, não deixa de se contaminar com a interferência do aberto ao redor. Para continuar o
percurso, o narrador precisa se livrar do cansaço, que é o ônus de suas andanças sem rumo.
Precisa de um sono de três dias, sob as bênçãos do acutipuru (roedor silvestre semelhante aos
esquilos de países estrangeiros), o que lhe faz pedir ao interlocutor recém-chegado: “Você me
espere / que depois eu vou le contar uma história” (BOPP, 2013: 178, grifo nosso). De fato, com
a retomada da vigília, Norato relata ao companheiro a ânsia por sua amada em forma de cantiga:
[…] que eu quero somente
3 Em Cobra Norato se verifica um procedimento comum na literatura narrativa moderna, que chamaríamos de
prestidigitação da voz: o narrador chama a atenção do leitor para um aspecto que acaba por encobrir outro dado
que ele não quer ressaltar, que dialogaria diretamente com uma compreensão das muitas máscaras utilizadas para
a vida em sociedade, bem como pode servir a uma discussão sobre os limiares entre consciência e inconsciente no
discurso literário. Exemplos desse recurso, antes uma questão de escrita que de ética, são: a tentativa de Bento
Santiago de incriminar a esposa falecida ao passo que seu discurso também contém detalhes que potencialmente a
inocentariam; o fato de o narrador e outros personagens de On the road, de Jack Kerouac, se dizerem cristãos, mas
não raro serem incapazes de atos cristãos elementares, como fazer o bem ao próximo ou perdoar (o que se vê na
cena final do livro, por exemplo); a autoindulgência de Riobaldo, estuprador, assassino e ladrão, que tende a
conquistar uma simpatia talvez absoluta do leitor devido ao drama amoroso que este presencia; dentre outros
exemplos possíveis, como em Marcel Proust, James Joyce, Clarice Lispector, Samuel Becket etc.
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ver os seus olhos molhados de verde
seu corpo alongado de canarana
Talvez ande longe…
E eu virei um vira-mundo
para ter um querzinho
da filha da
rainha Luzia (BOPP, 2013: 180 – grifos do autor).
O mundo é tudo que há ao redor, e se dá pelo entrelaçamento intenso de seres e corpos
e gestos nessa “Terra do Sem-fim”, terra sem um lado de fora a não ser as falas inumanas e
inesperadas que chegam o tempo todo (No auto de um cumandá / está cantando a Maria-é-dia”;
“Horizontes riscados de verde me chamam” – BOPP, 2013: 181). Rios somem resmungando;
gritos de arapapá se quebram na mata. Na cena permanente do contraste, não o silêncio como
força homogênea, mas fios e redes e jorros de silêncio se ladeiam ou se atravessam, como falas
de uma tonalidade própria, oralidades que são ouvidas graças à intermitência das outras vozes
no entorno: “Um socó-boi sozinho / bebe silêncio” (BOPP, 2013: 183); “Silêncios imensos se
respondem” (BOPP, 2013: 188); “Dentro do mato de árvores niqueladas / silêncio fez tincuã”
(BOPP, 2013: 193). No rio-floresta-corpo, “vozes se dissolvem” para que a voz do som-nenhum
também ecoe e confirme que toda fala é feita da multiforma sem forma definida que repousa
no silêncio interposto entre quem fala e quem ouve, quem escreve e quem lê.
Nenhuma fala é matemática. Nenhuma fala é o menor caminho entre dois pontos do
real. Falar é, em alguma intensidade, desviar-se das coisas a que a fala daria nome, é criar uma
pulsação vital e real à parte do que a linguagem designa. A rota meio sem rumo de Cobra Norato
também diz isso. Como mencionado acima, aliás, a chegada do compadre Tatu à expedição
restringe apenas relativamente a perambulação de Norato: agora ele pode escolher para onde
quer vagar enquanto não sabe ou adia a direção que o levará a sua princesa. Assim, Norato pede
a seu compadre que o leve a lugares que vai sentindo vontade de visitar. No início do 16.º
fragmento, ele quer ver o mar, apesar de que este fica a “dez léguas de mato e mais dez léguas”
(BOPP, 2013: 185). Indo para lá, a dupla continua encontrando paisagens faladas com a pitada
surrealista habitual: “Águas de barriga cheia / espreguiçam-se nos igapós” (BOPP, 2013: 186).
A cada estrofe, personagens das matas encenam seus problemas para si mesmos e suas vozes o
dizem aos outros; “Há gritos e ecos que se escondem” (BOPP, 2013: 186). De repente (assim
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como tudo no poema), eles estão diante do mar, essa outra floresta, essa Amazônia em
semicontraste com o que se costuma chamar de Amazônia.
A vista marítima interrompe o movimento dos viajantes para se oferecer como
movimento incessante. A imensidão de água salgada se apronta para a maré grande que se
aproxima. A chegada da pororoca então é o espetáculo pretendido, a fala para ser escutada. As
águas do rio e do mar se encontram para afirmarem a heterogeneidade de seus fluxos.
Paralelamente, o nível das águas pela régua das margens muda: ele sobre e desce; a lama, a
terra firme e a água desgarrada são tempos e espaços cruzados em uma imanência, em uma
vizinhança, em modos próximos de sentir e expressar o fato de estar vivo, de estar em contato
com o permeável do vivo. “Pororoca traz de volta a terra emigrante que fugiu de casa / levada
pela correnteza” (BOPP, 2013: 191). Cada uma dessas vertentes ou manifestações é uma
variação dialetal afetando essa sinestesia cujo nome é corpo:
A água engomada de lama
resvala devagarinho na vasa mole
Abrem-se pântanos de aninga
nas clareiras alagadas
Raízes descalças afundam-se nos charcos
[…]
O vento rói as margens de beiços rachados (BOPP, 2013: 190).
Dois passeios dentro do passeio, que destoam mais ainda de tudo o que já é variação nas
trilhas percorridas, são a visita à farinhada e à pajelança. Cobra Norato, sempre junto a seu
companheiro de rota, retoma contato com seres humanos e sua linguagem, bem como com a
música peculiar a esta. É o que se vê e ouve na ida ao “putirum”, palavra tupi para mutirão,
trabalho conjunto e cooperativo, no caso, de beneficiamento da mandioca para elaboração da
farinha resultante. Norato e Tatu querem comer tapioca para matar a fome e se dirigem ao
“Casão das farinhadas grandes” (BOPP, 2013: 194). É a ocasião para escutarem cantigas como
as que narram a ação do boto, outro anfíbio da Amazônia, que se traveste de humano violeiro e
loiro para seduzir garotas, cuja lembrança pode ser suficiente para atrapalhar o trabalho: “–
Gente! / Olhe a tapioca embolando nos tachos” (BOPP, 2013: 195). Para entrar e participar do
momento de trabalho e festa conjugados, os dois bichos andarilhos precisam assumir forma
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humana, cumprimentar os presentes e, como uma espécie de tributo (que, segundo a lenda, é o
mesmo que Gregório de Matos oferecia a seus anfitriões durantes suas andanças boêmias pela
Bahia), oferecer versos de viola aos presentes.
– Puxe mais um chorado na viola, compadre
– Mano, espermente um golinho de cachaça ardosa pra tomar sustança
– Então abram roda:
Tajá da folha comprida
não pia perto de mim
Tajá
Quando anoitece na serra
tenho medo que ela se vá
Tajá
[…] (BOPP, 2013, 197).
Continuando suas sendas sem mapa, os compadres encontram uma pajelança, sessão
mágica e ritual de uma tribo indígena. Ali, o transe transforma o pajé em onça, que assim cura
doenças e quebrantos, faz e desfaz feitiços, não sem ajuda da “diamba”, outro nome para a
maconha. O efeito psicotrópico do momento não muda a percepção potencializada que
certamente é uma maneira propor a selva como escritura, que “se avoluma”. “Floresta
ventríloqua brinca de cidade” (BOPP, 2013, 202). Passam um trem e o que parece ser um navio,
que, na verdade, é a cobra grande, maior e mais perigosa que Norato. Este descobre que aquela
ruma ao encontro da princesa desejada para toma-la como esposa; o protagonista precisa então
despistar o oponente, não sem alguma ajuda de moradores das matas, como o Pajé-pato e o
Curupira. Com sua saga finalmente concluída, saga que também é a digressão de si mesma,
Norato pode rumar para as sonhadas Terras do Sem-fim, onde viverá numa “casa de morar /
com porta azul piquinininha” e, na companhia da amada, irá “le contar histórias / escrever
nomes na areia / pro vento brincar de apagar” (BOPP, 2013: 210). Isso, não sem antes instruir
seu amigo Tatu sobre os convidados para a festa, o “Caxiri grande” que haverá:
Traga a Joaninha Vintém, o Pajé-pato Boi-queixume
Não se esqueça dos Xicos Maria-Pitanga o João Ternura
O Augusto Meyer, Tarsila Tatizinha
Quero povo de Belém, de Porto Alegre e de São Paulo
- Pois então até breve, compadre
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Fico lê esperando
atrás das serras do Sem-fim (BOPP, 2013: 211).
Delimitar o problema da oralidade numa abordagem para Cobra Norato toca o fato de
este se tratar de um texto escrito, no qual, inclusive, muitas de suas passagens foram registradas
dentro da modalidade padrão da língua portuguesa. Esta, ditada pelas gramáticas normativas, é
fonte de preconceitos dura e sensatamente criticados por linguistas de nosso país desde algumas
décadas. O que se vê em Cobra Norato, bem como nas obras de Mário de Andrade e Cassiano
Ricardo citadas no começo deste trabalho, é exatamente uma mistura díspar de registros
coloquiais e formais por meio da escrita. Num certo sentido, a modalidade escrita da língua
exerce o poder que lhe foi conferido socialmente pelo prestígio elitista de que desfruta e que no
Brasil se conhece bem (seja apoiando-o, seja questionando-o). O efeito prejudicial desse tipo
de poder ficaria talvez mais explícito se o poema se dispusesse a ser um compêndio de falares
orais, possibilidade que, como se ressaltou acima, foi irônica e felizmente evitada pela própria
presença do registro da norma dita culta. Esta, entretanto, é a matéria de preenchimento desse
nheengatu-poema. Estipular um nheengatu em língua portuguesa parece um grande deboche;
essa impressão possivelmente é atenuada caos se considere que essa língua-geral de Raul Bopp
não se faz com a predominância do português, mas por meio do que se desvia dele, seja com o
uso de termos tupis ou africanos, seja pela desobediência à norma do dominador alienígena,
europeu.
A perspectiva de uma relação não hierárquica entre as várias falas do cotidiano, sejam
normativas, coloquiais, orais ou escritas, bandeira de combate de muitos poemas da
modernidade do século XX, e, de um modo particular, do modernismo brasileiro desde 1922, é
um dos ganchos principais da filosofia de Jacques Derrida (1930-2004). Questionando o
estatuto de preponderância dado à oralidade pelo Curso de Linguística Geral atribuído a
Ferdinand de Saussure, Derrida relaciona essa suposta primazia à secular pretensão metafísica
de associar à fala e à linguagem em geral um acesso direto tanto à realidade exterior como ao
mundo interior individual (cf. DERRIDA, 2011). Em contraponto a isso, o filósofo franco-
argelino propõe que todo objeto perceptível é um significante em potencial, que leva não a um
significado, como na teoria de Saussure, mas a outros significantes, em um processo infinito;
tudo, desse modo, é escritura, caracterizada não por essa ou aquela coleção de signos
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linguísticos, mas pelo contraste entre diferentes que se inscrevem sentidos um no outro, como
uma rasura mútua; esse contraste, essa diferença (ou seu movimento puro, designado pelo
neologismo francês différance) seriam uma questão de um espaço em branco ou “espaçamento”
(DERRIDA, 2011: 95) como uma espécie de essência que não está na escritura, mas que a
desloca permanentemente.
Relevante, para uma discussão com Cobra Norato, é confrontar as disposições de
Derrida com a abordagem de Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Mil platôs, a respeito da
linguagem. Esses autores tiveram a iniciativa de pensar uma filosofia não do ponto de vista das
instituições humanas, como a história, mas procurando que ela extrapole o máximo possível a
visão antropomorfizadora do universo que sempre foi peculiar ao conhecimento humano
(operação já iniciada pela obra de Friedrich Nietzsche), no encalço da geografia e da ecologia
(considerando suas posições de limiar entre o humano e outros reinos). Assim como para
Nietzsche a vida, inclusive humana, é apenas uma ínfima exceção da matéria no quadro geral
do universo (cf. o fragmento 109 de A gaia ciência – NIETZSCHE, 2009: 135-136), para
Deleuze e Guattari, a linguagem humana e sua produção de sentidos são uma ocorrência restrita
e que não corresponde ao funcionamento das relações efetivas ou potenciais entre os diversos
seres materiais. Em vez da significação, eles postulam a expressividade, ligada à percepção,
mas que não necessariamente coincide com ela, ao menos numa perspectiva biológica. O que
existe e se relaciona com seus entornos, expressa algo que pode ser percebido por uma gama
variadíssima de criaturas, mesmo que apenas potencialmente (cf. DELEUZE; GUATTARI:
2013: 95-139).
A linguagem humana, em contrapartida, não seria caracterizada essencialmente por seu
papel comunicativo ou informativo, mas por desempenhar a função de “palavra de ordem”; as
sociedades humanas teriam sido estabelecidas desde seus primórdios pelo ato de alguém dar
ordens justificáveis, por sua vez, por outras palavras de ordem, ainda que persuasivas
(necessidade de coesão social etc.). A dissonância disso em relação aos comportamentos
animais, vegetais e minerais conhecidos seria, e bem que nos parece, uma explicação
convincente para a tese de Deleuze e Guattari sobre a linguagem do autoproclamado homo
sapiens; inexiste, fora do âmbito humano, uma forma qualquer de linguagem que atue
imperativa e sistematicamente como interferência decisiva para o comportamento comunitário;
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animais, por exemplo, não obrigam seus semelhantes nem a obedecê-los, nem a servi-los.
Expresso por meio da linguagem verbal, o poema de Raul Bopp, apesar de um certo
antropocentrismo das metáforas, oferece uma errância como intensificado afastamento da urbe
e da sua correspondente concepção de política. A polarização entre cultura e natureza, bem
como dicotomias hierárquicas entre os diversos registros da linguagem hominídea, é esvaziada
a partir do movimento contínuo que leva do diferente ao diferente. O que aqui se elege como
foco de atenção e importância, no poema-Norato, é o período em que o eu poético abandona a
forma humana e se transforma; assim, o fato de, literalmente se perder na selva, bem como o
enfrentamento de rivais pela fêmea, são mais importantes que o encontro de uma amada, que
aliás parece despertar um desejo emocional apenas na medida em que é sensorial. Isso, não
como dado de animalização fatal na perspectiva do naturalismo do século XIX (que é, no fundo,
agudamente antropocêntrica), mas como proposição pela qual a vida humana se sustenta
somente pelo fato de relacionar intimamente com o além-fronteira que é, para nós, o animal. A
progressiva extinção de espécies do planeta provará isso, talvez, de maneira cada vez mais
trágica.
Derrida colhe da escrita de Platão o termo pharmakon, que designa tudo aquilo que pode
atuar tanto na categoria de medicamento como de veneno. Para o filósofo de língua francesa, o
pharmakon do ocidente, desde a metafísica platônica, inclusive, é a escritura (cf. DERRIDA,
1993: 77-213), capaz de servir a desígnios políticos e econômicos opostos (como a arte
moderna, que por exemplo foi uma questionadora do mercado, mas em tantos momentos soube
se adequar docilmente a ele). Em sua Gramatologia (2011), Derrida cogita que o que ele chama
de escritura talvez não seja de fato uma escritura, ou seja, que esse próprio termo envolva uma
operação de desvio para fora da escritura4; a ver com isso, a dissenção entre Derrida e
Deleuze/Guattari é aguçada pela abertura-pharmakon do poema, que atiça a questão dos limites
da linguagem humana em vez de propor uma solução dialética, conciliadora e fictícia para isso.
Assim, uma política seria possível não como mapeamento ordenado e sistêmico da pólis, mas
4 A observação de que a escritura seria o nome a se dar para o que não é escritura, nem sentido, nem sequer
linguagem humana, talvez possa ser obtida a partir da citação de Heidegger (em Ser e tempo e Introdução à
metafísica), por Derrida, segundo a qual o ser autêntico é designado como um pleno silenciamento, uma não-
linguagem, o que levaria à constatação de uma ambiguidade: a ontologia heideggeriana seria um dos primeiros
campos efetivos, embora ainda vacilante, tanto de afirmação da primazia do significado (com todas as suas
conotações referenciais) bem como de sua plena adulteração (cf. DERRIDA: 2011: 35-37).
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como sua abertura para o que a extrapola; o animal, por exemplo, não é o limite regressivo do
humano, mas talvez o que o amplia potencialmente, o que o faz sempre inacabado, informe (cf.
AGAMBEN, 2012), o que talvez o salve como nenhum deus antropomorfo conseguiria salvar.
Essas questões parecem ser, também, um problema para a história. Desacorrentá-la cada
vez mais da armadilha de ter um olhar excessivamente centrado no humano e seus parâmetros
é, quem sabe, pensá-la a partir não do dado inequívoco, mas também e sobretudo pela abertura
da alegoria, como sugerido por Walter Benjamin (cf. 1984: 181-237) em sua Teoria do drama
barroco alemão; isso significaria pensar a história, portanto, como criação opaca de linguagem,
complexa, heterogênea entre discursos e práticas, resvalando de si mesma, problema também
relativo a usos da oralidade como fermento discursivo daquilo que resvala da palavra: o
espaçamento de Derrida, a semiótica assignificante de Deleuze e Guattari, a língua muda
resvalada da palavra, de Agamben. A oralidade, em Cobra Norato, não é, como dito, uma
cartilha universalista, mas uma mistura pulverizada de estilos discursivos em que o oral é linha
de emaranhado, poeira molecular. A escrita do poema, se é poder, também é potencialmente
um contrapoder alimentado pelo não-escrito que ela carrega consigo. A oralidade disseminada
demonstra o trânsito e a diferença entre oralidades.
Poemas modernistas como Cobra Norato são comumente abordados em relação ao
interstício entre as gerações modernistas de 1922 e 1930, de modo que esta é considerada mais
madura e politizada que a primeira. Com a ressalva de compreender o que parecia importante
para uma agenda politizada no brasil da época, ou seja, uma prática discursiva clara, inequívoca
e contundente, principalmente em se tratando de um país com ainda mais analfabetos que hoje,
é preciso talvez pensar que nossa noção e nossa prática política requerem uma ampliação
permanente. Assim, a geração de 1922 também pode e deve ser lida conforme o potencial
político de ampliação de horizontes, de leitura crítica, irônica e mordaz (e o leitor pode
presentear a leitura com sua mordacidade também, aliás, o que é muito bem-vindo).
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