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1 Falas através de/com Cobra Norato SAULO DE ARAÚJO LEMOS Cobra Norato (1931) é o poema mais famoso (mesmo que não tanto hoje em dia) do escritor, jornalista e diplomata gaúcho Raul Bopp (1898-1984). Em versos predominantemente livres, dividido em 33 partes, esse texto apresenta um eu poético que rouba a pele da mitológica Cobra Norato, utilizando-a como suplemento corporal que lhe possibilita procurar sua amada, a “filha da rainha Luzia”, com mais desenvoltura e chances de sucesso. Logo no início da narrativa, o leitor descobre que o eu-Cobra Norato se encontra em meio à floresta amazônica, a qual terá de ser trilhada no intuito de achar a tal princesa; como o leitor poderá perceber também, o personagem-narrador não faz ideia clara de onde ela esteja. Para auxiliá-lo em sua busca, ele aceita a ajuda de alguns dos vários habitantes da selva, especialmente o Tatu-de- Bunda-Seca. Absolutamente não há caminho pronto, prévio, e aquelas matas também encurralam o viajante-protagonista em seus peculiares becos sem saída de lama e planta. A Cobra Norato feita voz, aliás, se afeiçoa à incerteza do trajeto e passa a usufruir dos lugares afins a suas andanças. Em alguns momentos, o personagem esquece do objetivo inicial e resolve visitar acontecimentos por perto, como o encontro do rio com o mar na pororoca, uma farinhada de tapioca ou um ritual mágico de pajelança indígena. Por onde passa, registra cenas, envolvendo animais, vegetais e águas, e vozes: palavras, sons, cantigas. A paisagem natural se mistura ao rumor imemorial das lendas. Em dado momento, o personagem descobre casualmente que a Cobra Grande, uma espécie de rival, irá encontrar a própria filha da rainha numa localidade chamada “Buraco do Espia”. Com a ajuda do companheiro Tatu, Norato engana a Cobra Grande e faz com que ela involuntariamente fique aprisionada debaixo da Catedral da Sé de Belém. Finalmente, o protagonista Norato-cobra pode desfrutar tranquilamente da companhia de sua princesa, com quem pretende viver numa casinha simples no meio da selva. Isso, não sem uma festa de casamento que contará igualmente com artistas do modernismo nacional e com animais UFC, Doutor em Literatura Comparada, apoio Capes/Funcap; Uece-Fecli, professor de Literaturas de Língua Portuguesa.

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Falas através de/com Cobra Norato

SAULO DE ARAÚJO LEMOS

Cobra Norato (1931) é o poema mais famoso (mesmo que não tanto hoje em dia) do

escritor, jornalista e diplomata gaúcho Raul Bopp (1898-1984). Em versos predominantemente

livres, dividido em 33 partes, esse texto apresenta um eu poético que rouba a pele da mitológica

Cobra Norato, utilizando-a como suplemento corporal que lhe possibilita procurar sua amada,

a “filha da rainha Luzia”, com mais desenvoltura e chances de sucesso. Logo no início da

narrativa, o leitor descobre que o eu-Cobra Norato se encontra em meio à floresta amazônica,

a qual terá de ser trilhada no intuito de achar a tal princesa; como o leitor poderá perceber

também, o personagem-narrador não faz ideia clara de onde ela esteja. Para auxiliá-lo em sua

busca, ele aceita a ajuda de alguns dos vários habitantes da selva, especialmente o Tatu-de-

Bunda-Seca. Absolutamente não há caminho pronto, prévio, e aquelas matas também

encurralam o viajante-protagonista em seus peculiares becos sem saída de lama e planta. A

Cobra Norato feita voz, aliás, se afeiçoa à incerteza do trajeto e passa a usufruir dos lugares

afins a suas andanças.

Em alguns momentos, o personagem esquece do objetivo inicial e resolve visitar

acontecimentos por perto, como o encontro do rio com o mar na pororoca, uma farinhada de

tapioca ou um ritual mágico de pajelança indígena. Por onde passa, registra cenas, envolvendo

animais, vegetais e águas, e vozes: palavras, sons, cantigas. A paisagem natural se mistura ao

rumor imemorial das lendas. Em dado momento, o personagem descobre casualmente que a

Cobra Grande, uma espécie de rival, irá encontrar a própria filha da rainha numa localidade

chamada “Buraco do Espia”. Com a ajuda do companheiro Tatu, Norato engana a Cobra Grande

e faz com que ela involuntariamente fique aprisionada debaixo da Catedral da Sé de Belém.

Finalmente, o protagonista Norato-cobra pode desfrutar tranquilamente da companhia de sua

princesa, com quem pretende viver numa casinha simples no meio da selva. Isso, não sem uma

festa de casamento que contará igualmente com artistas do modernismo nacional e com animais

UFC, Doutor em Literatura Comparada, apoio Capes/Funcap; Uece-Fecli, professor de Literaturas de Língua

Portuguesa.

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folclóricos da Amazônia. Com esse enredo, o poema parece pueril, mas não deixa de ser

bastante adulto em sua dicção.

A obra literária de Raul Bopp contém elementos similares ao que se observa em outros

autores da Geração Modernista de 1922, como Mário de Andrade, com Macunaíma (1928), e

Cassiano Ricardo, com Martim Cererê (1928): a pesquisa folclórica aliada à abordagem crítica,

o humor irônico, a linguagem que absorve e funde traços de poesia, prosa e oralidade cotidiana.

Esta, a propósito, foi consolidada como imagem artística por aquela Geração, o que, como se

sabe, seria levado a extremos pela escrita de João Guimarães Rosa décadas depois. De sonetos

cujo descritivismo, ainda meio parnasiano, já envolve pitadas de um futuro olhar modernista,

Bopp transita gradualmente para o verso livre e para a prosa figurada, como se nota nas

reportagens poéticas em que descreve algumas de suas muitas viagens através do país (e do

mundo). Em certos momentos de sua vida, o escritor gaúcho esteve relativamente próximo de

figuras questionáveis da vida política do Brasil, como o integralista Plínio Salgado e o ditador

Getúlio Vargas. Entretanto, sua intensa experiência com a poesia moderna teve a interferência

de mentores da antropofagia modernista, como Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, no que

toca, sobretudo, à procura de novos olhares para o que o Brasil tinha sido e o que buscava ser.

Isso tornava urgente pensar no problema da contradição entre uma modernidade civilizatória

xinfrim e uma tradição cultural tão elogiada quanto pouco conhecida, naquela altura.

A oralidade é um dos aspectos mais exaltados na literatura produzida pela Geração de

1922, tanto pelo seu potencial artístico quando político. O interesse intelectual vanguardista por

linhas de intensidade provindas de registros linguísticos e culturais desprestigiados é

mencionado em praticamente qualquer discussão a respeito das obras do modernismo

brasileiro. Em muitas abordagens, o uso do registro oral no texto literário é meramente elogiado

como indício mimético de um recorte autêntico da realidade brasileira da rua, do cotidiano,

como se fosse a porta para a efetiva realidade brasileira. Porém, aí não se trata de escritas como

cartilhas pedagógicas ou fotográficas da oralidade no cotidiano brasileiro em dado momento

histórico, mas de atos de invenção artística em que o dado oral, em vez de fossilizado numa

pose museológica, é potencializado por uma abertura da significação que dá à obra de arte um

caráter felizmente informe e inacabado, em permanente construção pela leitura e pela história;

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é o que se verifica em Cobra Norato, em Macunaíma, de Mário de Andrade, em muitos poemas

de Oswald de Andrade e em outros autores contemporâneos a eles.

Dentre outros motivos, o não fechamento dos sentidos, ocorrência habitual na obra de

arte moderna do século XX em diante, ocorre não porque elas sejam depositórios de oralidade

pura, em estado bruto, mas pelo fato de que os traços orais se misturam a registros discursivos

que remetem a situações funcionais e sociais diversificadas (ou seja, ali se encontram diversas

modalidades do oral, seja mais “culto”, seja mais “popular”) bem como a registros

habitualmente compreendidos como próprios da linguagem escrita. A escrita da obra se mostra,

assim, como um composto linguístico de variância imanente, com heterogeneidade, diferença.

A norma padrão da língua, assim, não é o cúmulo de um aprimoramento linguístico, mas o

limiar entre usos diferenciados do idioma: os que visam a uma adequação ritual, e os que

primordialmente cumprem uma função comunicativa ou, melhor ainda, expressiva. Se

considerarmos o fato pouco observado de que mesmo a norma padrão da gramática normativa

não consegue ser rigorosamente unificada devido a inúmeras divergências entre os gramáticos

mais reputados, será possível pensar então que a linguagem não é feita de compartimentos

purificados pelo uso, mas de nuanças nem sempre nítidas. A partir do modernismo de 1922 é

que a literatura brasileira começa a explorar esse fato de maneira potencializada.

Observando-se Cobra Norato em seu comprimento, vê-se uma ampla topografia de usos

de linguagem que não é bem um manual de falares amazônicos, mas um possível estímulo para

pensar a linguagem e o pensamento como problemas cruciais a qualquer tentativa de percorrer

e habitar o mundo que os sentidos físicos, a consciência e os inconscientes encontram e recriam

o tempo todo. Há no poema toda uma escala matizada de ocorrências entre o coloquial e a

norma culta, que frequentam e partilham a mesma frase em muitos casos. Aqui se torna

inevitável lembra o subtítulo que Bopp deu ao poema: “Nheengatu da margem esquerda do

Amazonas”. Em um sentido técnico e literal, Nheengatu é o nome dado à língua derivada do

tupi pré-colonial acrescentada de certos vocábulos e fenômenos da língua portuguesa; por causa

desses atributos, também é chamado de tupi moderno ou língua geral, já que servia como meio

de comunicação entre brancos, índios e mestiços em toda a região da Amazônia1. Cobra Norato

1 Uma conceituação e uma introdução ao dialeto Nheengatu e a seu vocabulário podem ser encontradas em Freitas

(1976) e Navarro (2011).

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foi predominantemente escrito em português e, portanto, não é literalmente nheengatu; só se

for um nheengatu outro, um nheengatu-poema.

A bibliografia disponível que consultamos, sobre Cobra Norato, contempla com

frequência o problema da oralidade na obra2. Entretanto, de um modo geral, ele é abordado na

perspectiva de sua desejada representatividade em relação a uma ideia de cultura nacional,

como no caso de outros autores modernistas. A leitura da oralidade como diferença e

mobilização de linguagem, relacionada ao exercício do poder conforme o que o olhar humano

chama de tempo e de história, merece provavelmente uma investigação mais cuidadosa. É o

caso, então, de percorrer o poema e exemplificar o que foi descrito nas observações dos

parágrafos anteriores. Nas primeiras linhas, a voz narradora, comumente chamada “eu lírico”

ou “eu poético”, anuncia um plano futuro (e todo o poema é, de fato, seu plano futuro, sua

utopia): vai morar nas “terras do Sem-fim” (BOPP, 2013: 167). Na medida em que ela ruma

para concretizar esse intento, as vírgulas da norma-padrão começam a sumir de seu discurso,

ao passo que aquele narrador se mistura “no ventre do mato mordendo raízes” (BOPP, 2013:

167). Uma puçanga, termo indígena para medicamento feito com ingredientes naturais,

permitirá atrair a lendária Cobra Norato, que em lendas da região amazônica é um réptil ofídio

gerado em útero humano.

Além da puçanga, uma conversa persuasiva possibilitará que a Cobra Norato seja morta

pelo narrador e tenha sua pele roubada por ele. Assim, munido de uma máscara de corpo inteiro,

de um rosto-corpo, o eu-poema se transforma em Cobra Norato e desfruta da prerrogativa que

lhe interessa: a capacidade de percorrer a selva, seus rios e matas, como nenhum humano e

nenhuma voz humana poderiam conseguir. A pele é de “seda elástica”; a identidade Norato,

talvez como qualquer identidade, torna-se acessível ao desejo de assumi-la. O peso nos passos

e o sono que apaga os olhos humanos ativam a nova condição ontológica do personagem como

um teatro para si, um estar no mundo como “pura apresentação”, como diz Foucault sobre a

modernidade artística e intelectual desde o século XIX (2013: 31). Quando o trajeto rumo à

“filha da rainha Luzia” começa de fato, o personagem se depara com uma “floresta cifrada”

(BOPP, 2013: 168). A voz que soa, então, é a da escrita, que descreve a paisagem visual ao

2 Ver referências ao final deste trabalho, que também podem servir como fontes para a relação entre o poema de

Bopp e as fontes folclóricas assimiladas por este.

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redor. Os sons de um lugar sem tamanho surgem para a escuta: “De todos os lados me chamam

/ – Onde vais Cobra Norato? / Tenho aqui três arvorezinhas jovens à tua espera” (BOPP, 2013:

169). Junto a essas vozes, ressalta a fala do narrador, como uma afirmação de si e para si a partir

da compreensão de seus desafios:

– Agora sim

Vou ver a filha da rainha Luzia

Mas antes tem que passar por sete portas

Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados

guardadas por um jacaré

– Eu só quero a filha da rainha Luzia

Tem que entregar a sombra para o Bicho do Fundo

Tem que fazer mirongas na lua nova

Tem que beber três gotas de sangue (BOPP, 2013: 168).

Cobra Norato, aí, não é mais quem havia sido. Não cumpre mais os papéis de antes de

ter a pele roubada; agora, aparentemente ela/ele aparenta ter um único e inadiável objetivo. Os

habitantes do lugar parecem perceber isso: “Espia-me um sapo sapo / Aqui tem cheiro de gente”

(BOPP, 2013: 171). O trajeto a seguir, na selva-labirinto, equivale ao dos gestos das simpatias

ou dos feitiços condenados pela tradição cristã, mas que nela se infiltram e sobrevivem, como

as mirongas (palavra para feitiço nos cultos bantos) e o ato de beber sangue. Livre e

indomesticável, a selva chega a ser hostil (“Erva-picão me arranhou”; “O resto da noite me

enrola” – BOPP, 2013: 170; “Esta é a floresta de hálito podre / parindo cobras” BOPP, 2013:

171). O longo desfile de seres dos reinos animal, vegetal e mineral por todo o poema não se dá

necessariamente por um eixo sequencial, apesar de os versos evidentemente se apresentarem

em sequência; isso quer dizer que a coesão entre eles não é fixa, engessada, mas, em lugar disso,

a sucessão temporal é espacializada, não necessariamente sequencial, de modo que passado,

presente e futuro oscilam, colocando-se num mesmo plano. Na poesia moderna, esse efeito é

observado desde Un coup de dés [Um lance de dados] (1897), poema de Stéphane Mallarmé que

inaugura a múltipla possibilidade de leitura em vários quadrantes e direções da página (cf.

MALLARMÉ, 2008: 417-444). A especificidade de Cobra Norato a esse respeito é a

espacialidade específica dessa selva que é o poema.

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Junto aos estímulos sensoriais diversos ao redor do protagonista, pode-se destacar as

muitas vozes que o interpelam, mesmo que sem intenção destinatária. Tanto que Norato chega

a conversar com elas enquanto se movimenta, e sua conversa, tal como algumas situações

folclóricas ibérico-brasileiras recolhidas em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo

Neto (cf. 1999: 172-175; 177; 182-186; 187-191), não se compõe de falas direcionadas

reciprocamente, mas que se interpõem paralelamente, como numa letra de música com refrão:

– Vocês são cegas de nascença. Têm que obedecer ao rio

– Ai, ai! Nós somos escravas do rio

–Vocês estão condenadas a trabalhar sempre sempre

Têm a obrigação de fazer folhas para cobrir a floresta

– Ai, ai! Nós somos escravas do rio

Vocês têm que afogar o homem na sombra

A floresta é inimiga do homem

– Ai ai! Nós somos escravas do rio

Atravesso paredes espessas

Ouço gritos miúdos de ai-me-acuda:

Estão castigando os pássaros

–Se não sabem a lição vocês têm que ser árvores

– Ai ai ai ai… (BOPP, 2013: 172).

A selva é sobretudo um emaranhado de registros orais, mesmo quando não propiciados

por bocas. O poema, grosso modo, é feito especificamente por esse amontoado, o qual explora

de maneira tão variada a diversidade dos habitantes da Amazônia que isso parece resguardá-lo

do risco de transmitir uma impressão homogênea e tediosa da floresta. As falas que fluem com

o rio Amazonas são, em sua essência líquida, heterogeneidade e multidão:

Correm vozes em desordem

Berram: Não pode!

– Será comigo?

Passo por baixo de arcadas folhudas

Arbustos incógnitos perguntam:

– Já será dia?

Manchas de luz abrem buracos nas copas altas (BOPP, 2013: 174).

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Assim como o aspecto especializado de uma página de Un coup de dés permite a

construção imediata de sentidos em várias direções, em Cobra Norato podem se efetivar

contaminações mútuas de ressignificação pela interposição e fricção de registros de voz entre

o sentido e o ininteligível, entre o oral propriamente dito e a sonoridade ambiente. Alguns dos

sons ouvidos se intensificam a ponto de se tornarem falas identificadoras de certos episódios da

narrativa, como no caso do trovão, da chuva, ou daquele se a partir de um encontro repentino

se torna companheiro de viagem do narrador-Norato: trata-se do já referido Tatu-de-Bunda-

Seca. Norato já sabe, porque seu conhecimento é afim ao cancioneiro folclórico amazônico,

que “compadre Tatu” (BOPP, 2013: 177) é quem pode guiá-lo ao objetivo proposto desde o

início, mas também, e sobretudo, dinamizar seu trajeto, naquilo que lhe falta como rumo

definido e lhe sobra como deriva e devir potencializado: desse modo, seguir um caminho é

também se perder nele, e habitar um lugar é não se fixar em nenhum de seus pontos específicos.

O Tatu é o guia para se desorientar prazerosamente na selva, espécie de Virgílio de última hora

para um Dante além do bem e do mal, daqueles que são amorosos, mas que matam animais

incautos3.

A companhia de um interlocutor produz uma situação específica de diálogo que, no

entanto, não deixa de se contaminar com a interferência do aberto ao redor. Para continuar o

percurso, o narrador precisa se livrar do cansaço, que é o ônus de suas andanças sem rumo.

Precisa de um sono de três dias, sob as bênçãos do acutipuru (roedor silvestre semelhante aos

esquilos de países estrangeiros), o que lhe faz pedir ao interlocutor recém-chegado: “Você me

espere / que depois eu vou le contar uma história” (BOPP, 2013: 178, grifo nosso). De fato, com

a retomada da vigília, Norato relata ao companheiro a ânsia por sua amada em forma de cantiga:

[…] que eu quero somente

3 Em Cobra Norato se verifica um procedimento comum na literatura narrativa moderna, que chamaríamos de

prestidigitação da voz: o narrador chama a atenção do leitor para um aspecto que acaba por encobrir outro dado

que ele não quer ressaltar, que dialogaria diretamente com uma compreensão das muitas máscaras utilizadas para

a vida em sociedade, bem como pode servir a uma discussão sobre os limiares entre consciência e inconsciente no

discurso literário. Exemplos desse recurso, antes uma questão de escrita que de ética, são: a tentativa de Bento

Santiago de incriminar a esposa falecida ao passo que seu discurso também contém detalhes que potencialmente a

inocentariam; o fato de o narrador e outros personagens de On the road, de Jack Kerouac, se dizerem cristãos, mas

não raro serem incapazes de atos cristãos elementares, como fazer o bem ao próximo ou perdoar (o que se vê na

cena final do livro, por exemplo); a autoindulgência de Riobaldo, estuprador, assassino e ladrão, que tende a

conquistar uma simpatia talvez absoluta do leitor devido ao drama amoroso que este presencia; dentre outros

exemplos possíveis, como em Marcel Proust, James Joyce, Clarice Lispector, Samuel Becket etc.

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ver os seus olhos molhados de verde

seu corpo alongado de canarana

Talvez ande longe…

E eu virei um vira-mundo

para ter um querzinho

da filha da

rainha Luzia (BOPP, 2013: 180 – grifos do autor).

O mundo é tudo que há ao redor, e se dá pelo entrelaçamento intenso de seres e corpos

e gestos nessa “Terra do Sem-fim”, terra sem um lado de fora a não ser as falas inumanas e

inesperadas que chegam o tempo todo (No auto de um cumandá / está cantando a Maria-é-dia”;

“Horizontes riscados de verde me chamam” – BOPP, 2013: 181). Rios somem resmungando;

gritos de arapapá se quebram na mata. Na cena permanente do contraste, não o silêncio como

força homogênea, mas fios e redes e jorros de silêncio se ladeiam ou se atravessam, como falas

de uma tonalidade própria, oralidades que são ouvidas graças à intermitência das outras vozes

no entorno: “Um socó-boi sozinho / bebe silêncio” (BOPP, 2013: 183); “Silêncios imensos se

respondem” (BOPP, 2013: 188); “Dentro do mato de árvores niqueladas / silêncio fez tincuã”

(BOPP, 2013: 193). No rio-floresta-corpo, “vozes se dissolvem” para que a voz do som-nenhum

também ecoe e confirme que toda fala é feita da multiforma sem forma definida que repousa

no silêncio interposto entre quem fala e quem ouve, quem escreve e quem lê.

Nenhuma fala é matemática. Nenhuma fala é o menor caminho entre dois pontos do

real. Falar é, em alguma intensidade, desviar-se das coisas a que a fala daria nome, é criar uma

pulsação vital e real à parte do que a linguagem designa. A rota meio sem rumo de Cobra Norato

também diz isso. Como mencionado acima, aliás, a chegada do compadre Tatu à expedição

restringe apenas relativamente a perambulação de Norato: agora ele pode escolher para onde

quer vagar enquanto não sabe ou adia a direção que o levará a sua princesa. Assim, Norato pede

a seu compadre que o leve a lugares que vai sentindo vontade de visitar. No início do 16.º

fragmento, ele quer ver o mar, apesar de que este fica a “dez léguas de mato e mais dez léguas”

(BOPP, 2013: 185). Indo para lá, a dupla continua encontrando paisagens faladas com a pitada

surrealista habitual: “Águas de barriga cheia / espreguiçam-se nos igapós” (BOPP, 2013: 186).

A cada estrofe, personagens das matas encenam seus problemas para si mesmos e suas vozes o

dizem aos outros; “Há gritos e ecos que se escondem” (BOPP, 2013: 186). De repente (assim

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como tudo no poema), eles estão diante do mar, essa outra floresta, essa Amazônia em

semicontraste com o que se costuma chamar de Amazônia.

A vista marítima interrompe o movimento dos viajantes para se oferecer como

movimento incessante. A imensidão de água salgada se apronta para a maré grande que se

aproxima. A chegada da pororoca então é o espetáculo pretendido, a fala para ser escutada. As

águas do rio e do mar se encontram para afirmarem a heterogeneidade de seus fluxos.

Paralelamente, o nível das águas pela régua das margens muda: ele sobre e desce; a lama, a

terra firme e a água desgarrada são tempos e espaços cruzados em uma imanência, em uma

vizinhança, em modos próximos de sentir e expressar o fato de estar vivo, de estar em contato

com o permeável do vivo. “Pororoca traz de volta a terra emigrante que fugiu de casa / levada

pela correnteza” (BOPP, 2013: 191). Cada uma dessas vertentes ou manifestações é uma

variação dialetal afetando essa sinestesia cujo nome é corpo:

A água engomada de lama

resvala devagarinho na vasa mole

Abrem-se pântanos de aninga

nas clareiras alagadas

Raízes descalças afundam-se nos charcos

[…]

O vento rói as margens de beiços rachados (BOPP, 2013: 190).

Dois passeios dentro do passeio, que destoam mais ainda de tudo o que já é variação nas

trilhas percorridas, são a visita à farinhada e à pajelança. Cobra Norato, sempre junto a seu

companheiro de rota, retoma contato com seres humanos e sua linguagem, bem como com a

música peculiar a esta. É o que se vê e ouve na ida ao “putirum”, palavra tupi para mutirão,

trabalho conjunto e cooperativo, no caso, de beneficiamento da mandioca para elaboração da

farinha resultante. Norato e Tatu querem comer tapioca para matar a fome e se dirigem ao

“Casão das farinhadas grandes” (BOPP, 2013: 194). É a ocasião para escutarem cantigas como

as que narram a ação do boto, outro anfíbio da Amazônia, que se traveste de humano violeiro e

loiro para seduzir garotas, cuja lembrança pode ser suficiente para atrapalhar o trabalho: “–

Gente! / Olhe a tapioca embolando nos tachos” (BOPP, 2013: 195). Para entrar e participar do

momento de trabalho e festa conjugados, os dois bichos andarilhos precisam assumir forma

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humana, cumprimentar os presentes e, como uma espécie de tributo (que, segundo a lenda, é o

mesmo que Gregório de Matos oferecia a seus anfitriões durantes suas andanças boêmias pela

Bahia), oferecer versos de viola aos presentes.

– Puxe mais um chorado na viola, compadre

– Mano, espermente um golinho de cachaça ardosa pra tomar sustança

– Então abram roda:

Tajá da folha comprida

não pia perto de mim

Tajá

Quando anoitece na serra

tenho medo que ela se vá

Tajá

[…] (BOPP, 2013, 197).

Continuando suas sendas sem mapa, os compadres encontram uma pajelança, sessão

mágica e ritual de uma tribo indígena. Ali, o transe transforma o pajé em onça, que assim cura

doenças e quebrantos, faz e desfaz feitiços, não sem ajuda da “diamba”, outro nome para a

maconha. O efeito psicotrópico do momento não muda a percepção potencializada que

certamente é uma maneira propor a selva como escritura, que “se avoluma”. “Floresta

ventríloqua brinca de cidade” (BOPP, 2013, 202). Passam um trem e o que parece ser um navio,

que, na verdade, é a cobra grande, maior e mais perigosa que Norato. Este descobre que aquela

ruma ao encontro da princesa desejada para toma-la como esposa; o protagonista precisa então

despistar o oponente, não sem alguma ajuda de moradores das matas, como o Pajé-pato e o

Curupira. Com sua saga finalmente concluída, saga que também é a digressão de si mesma,

Norato pode rumar para as sonhadas Terras do Sem-fim, onde viverá numa “casa de morar /

com porta azul piquinininha” e, na companhia da amada, irá “le contar histórias / escrever

nomes na areia / pro vento brincar de apagar” (BOPP, 2013: 210). Isso, não sem antes instruir

seu amigo Tatu sobre os convidados para a festa, o “Caxiri grande” que haverá:

Traga a Joaninha Vintém, o Pajé-pato Boi-queixume

Não se esqueça dos Xicos Maria-Pitanga o João Ternura

O Augusto Meyer, Tarsila Tatizinha

Quero povo de Belém, de Porto Alegre e de São Paulo

- Pois então até breve, compadre

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Fico lê esperando

atrás das serras do Sem-fim (BOPP, 2013: 211).

Delimitar o problema da oralidade numa abordagem para Cobra Norato toca o fato de

este se tratar de um texto escrito, no qual, inclusive, muitas de suas passagens foram registradas

dentro da modalidade padrão da língua portuguesa. Esta, ditada pelas gramáticas normativas, é

fonte de preconceitos dura e sensatamente criticados por linguistas de nosso país desde algumas

décadas. O que se vê em Cobra Norato, bem como nas obras de Mário de Andrade e Cassiano

Ricardo citadas no começo deste trabalho, é exatamente uma mistura díspar de registros

coloquiais e formais por meio da escrita. Num certo sentido, a modalidade escrita da língua

exerce o poder que lhe foi conferido socialmente pelo prestígio elitista de que desfruta e que no

Brasil se conhece bem (seja apoiando-o, seja questionando-o). O efeito prejudicial desse tipo

de poder ficaria talvez mais explícito se o poema se dispusesse a ser um compêndio de falares

orais, possibilidade que, como se ressaltou acima, foi irônica e felizmente evitada pela própria

presença do registro da norma dita culta. Esta, entretanto, é a matéria de preenchimento desse

nheengatu-poema. Estipular um nheengatu em língua portuguesa parece um grande deboche;

essa impressão possivelmente é atenuada caos se considere que essa língua-geral de Raul Bopp

não se faz com a predominância do português, mas por meio do que se desvia dele, seja com o

uso de termos tupis ou africanos, seja pela desobediência à norma do dominador alienígena,

europeu.

A perspectiva de uma relação não hierárquica entre as várias falas do cotidiano, sejam

normativas, coloquiais, orais ou escritas, bandeira de combate de muitos poemas da

modernidade do século XX, e, de um modo particular, do modernismo brasileiro desde 1922, é

um dos ganchos principais da filosofia de Jacques Derrida (1930-2004). Questionando o

estatuto de preponderância dado à oralidade pelo Curso de Linguística Geral atribuído a

Ferdinand de Saussure, Derrida relaciona essa suposta primazia à secular pretensão metafísica

de associar à fala e à linguagem em geral um acesso direto tanto à realidade exterior como ao

mundo interior individual (cf. DERRIDA, 2011). Em contraponto a isso, o filósofo franco-

argelino propõe que todo objeto perceptível é um significante em potencial, que leva não a um

significado, como na teoria de Saussure, mas a outros significantes, em um processo infinito;

tudo, desse modo, é escritura, caracterizada não por essa ou aquela coleção de signos

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linguísticos, mas pelo contraste entre diferentes que se inscrevem sentidos um no outro, como

uma rasura mútua; esse contraste, essa diferença (ou seu movimento puro, designado pelo

neologismo francês différance) seriam uma questão de um espaço em branco ou “espaçamento”

(DERRIDA, 2011: 95) como uma espécie de essência que não está na escritura, mas que a

desloca permanentemente.

Relevante, para uma discussão com Cobra Norato, é confrontar as disposições de

Derrida com a abordagem de Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Mil platôs, a respeito da

linguagem. Esses autores tiveram a iniciativa de pensar uma filosofia não do ponto de vista das

instituições humanas, como a história, mas procurando que ela extrapole o máximo possível a

visão antropomorfizadora do universo que sempre foi peculiar ao conhecimento humano

(operação já iniciada pela obra de Friedrich Nietzsche), no encalço da geografia e da ecologia

(considerando suas posições de limiar entre o humano e outros reinos). Assim como para

Nietzsche a vida, inclusive humana, é apenas uma ínfima exceção da matéria no quadro geral

do universo (cf. o fragmento 109 de A gaia ciência – NIETZSCHE, 2009: 135-136), para

Deleuze e Guattari, a linguagem humana e sua produção de sentidos são uma ocorrência restrita

e que não corresponde ao funcionamento das relações efetivas ou potenciais entre os diversos

seres materiais. Em vez da significação, eles postulam a expressividade, ligada à percepção,

mas que não necessariamente coincide com ela, ao menos numa perspectiva biológica. O que

existe e se relaciona com seus entornos, expressa algo que pode ser percebido por uma gama

variadíssima de criaturas, mesmo que apenas potencialmente (cf. DELEUZE; GUATTARI:

2013: 95-139).

A linguagem humana, em contrapartida, não seria caracterizada essencialmente por seu

papel comunicativo ou informativo, mas por desempenhar a função de “palavra de ordem”; as

sociedades humanas teriam sido estabelecidas desde seus primórdios pelo ato de alguém dar

ordens justificáveis, por sua vez, por outras palavras de ordem, ainda que persuasivas

(necessidade de coesão social etc.). A dissonância disso em relação aos comportamentos

animais, vegetais e minerais conhecidos seria, e bem que nos parece, uma explicação

convincente para a tese de Deleuze e Guattari sobre a linguagem do autoproclamado homo

sapiens; inexiste, fora do âmbito humano, uma forma qualquer de linguagem que atue

imperativa e sistematicamente como interferência decisiva para o comportamento comunitário;

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animais, por exemplo, não obrigam seus semelhantes nem a obedecê-los, nem a servi-los.

Expresso por meio da linguagem verbal, o poema de Raul Bopp, apesar de um certo

antropocentrismo das metáforas, oferece uma errância como intensificado afastamento da urbe

e da sua correspondente concepção de política. A polarização entre cultura e natureza, bem

como dicotomias hierárquicas entre os diversos registros da linguagem hominídea, é esvaziada

a partir do movimento contínuo que leva do diferente ao diferente. O que aqui se elege como

foco de atenção e importância, no poema-Norato, é o período em que o eu poético abandona a

forma humana e se transforma; assim, o fato de, literalmente se perder na selva, bem como o

enfrentamento de rivais pela fêmea, são mais importantes que o encontro de uma amada, que

aliás parece despertar um desejo emocional apenas na medida em que é sensorial. Isso, não

como dado de animalização fatal na perspectiva do naturalismo do século XIX (que é, no fundo,

agudamente antropocêntrica), mas como proposição pela qual a vida humana se sustenta

somente pelo fato de relacionar intimamente com o além-fronteira que é, para nós, o animal. A

progressiva extinção de espécies do planeta provará isso, talvez, de maneira cada vez mais

trágica.

Derrida colhe da escrita de Platão o termo pharmakon, que designa tudo aquilo que pode

atuar tanto na categoria de medicamento como de veneno. Para o filósofo de língua francesa, o

pharmakon do ocidente, desde a metafísica platônica, inclusive, é a escritura (cf. DERRIDA,

1993: 77-213), capaz de servir a desígnios políticos e econômicos opostos (como a arte

moderna, que por exemplo foi uma questionadora do mercado, mas em tantos momentos soube

se adequar docilmente a ele). Em sua Gramatologia (2011), Derrida cogita que o que ele chama

de escritura talvez não seja de fato uma escritura, ou seja, que esse próprio termo envolva uma

operação de desvio para fora da escritura4; a ver com isso, a dissenção entre Derrida e

Deleuze/Guattari é aguçada pela abertura-pharmakon do poema, que atiça a questão dos limites

da linguagem humana em vez de propor uma solução dialética, conciliadora e fictícia para isso.

Assim, uma política seria possível não como mapeamento ordenado e sistêmico da pólis, mas

4 A observação de que a escritura seria o nome a se dar para o que não é escritura, nem sentido, nem sequer

linguagem humana, talvez possa ser obtida a partir da citação de Heidegger (em Ser e tempo e Introdução à

metafísica), por Derrida, segundo a qual o ser autêntico é designado como um pleno silenciamento, uma não-

linguagem, o que levaria à constatação de uma ambiguidade: a ontologia heideggeriana seria um dos primeiros

campos efetivos, embora ainda vacilante, tanto de afirmação da primazia do significado (com todas as suas

conotações referenciais) bem como de sua plena adulteração (cf. DERRIDA: 2011: 35-37).

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como sua abertura para o que a extrapola; o animal, por exemplo, não é o limite regressivo do

humano, mas talvez o que o amplia potencialmente, o que o faz sempre inacabado, informe (cf.

AGAMBEN, 2012), o que talvez o salve como nenhum deus antropomorfo conseguiria salvar.

Essas questões parecem ser, também, um problema para a história. Desacorrentá-la cada

vez mais da armadilha de ter um olhar excessivamente centrado no humano e seus parâmetros

é, quem sabe, pensá-la a partir não do dado inequívoco, mas também e sobretudo pela abertura

da alegoria, como sugerido por Walter Benjamin (cf. 1984: 181-237) em sua Teoria do drama

barroco alemão; isso significaria pensar a história, portanto, como criação opaca de linguagem,

complexa, heterogênea entre discursos e práticas, resvalando de si mesma, problema também

relativo a usos da oralidade como fermento discursivo daquilo que resvala da palavra: o

espaçamento de Derrida, a semiótica assignificante de Deleuze e Guattari, a língua muda

resvalada da palavra, de Agamben. A oralidade, em Cobra Norato, não é, como dito, uma

cartilha universalista, mas uma mistura pulverizada de estilos discursivos em que o oral é linha

de emaranhado, poeira molecular. A escrita do poema, se é poder, também é potencialmente

um contrapoder alimentado pelo não-escrito que ela carrega consigo. A oralidade disseminada

demonstra o trânsito e a diferença entre oralidades.

Poemas modernistas como Cobra Norato são comumente abordados em relação ao

interstício entre as gerações modernistas de 1922 e 1930, de modo que esta é considerada mais

madura e politizada que a primeira. Com a ressalva de compreender o que parecia importante

para uma agenda politizada no brasil da época, ou seja, uma prática discursiva clara, inequívoca

e contundente, principalmente em se tratando de um país com ainda mais analfabetos que hoje,

é preciso talvez pensar que nossa noção e nossa prática política requerem uma ampliação

permanente. Assim, a geração de 1922 também pode e deve ser lida conforme o potencial

político de ampliação de horizontes, de leitura crítica, irônica e mordaz (e o leitor pode

presentear a leitura com sua mordacidade também, aliás, o que é muito bem-vindo).

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