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1 UMA HISTÓRIA DA HISTÓRIA COMPARADA: Entre críticas e possibilidades de um profícuo campo metodológico Ana Luiza de Oliveira Duarte Ferreira Doutoranda pelo PROLAM-USP [email protected] Resumo : Este artigo se dedica a traçar a trajetória dos estudos comparados de história, e percorre propostas apresentadas desde o início do século XX até os dias de hoje. Se refere às elaborações de cientistas sociais do porte de Émile Durkheim e Max Weber, pouco conhecidos pelos historiadores brasileiros. Trabalha também historiadores contemporâneos dos annalistas franceses, mas que tiveram propostas distintas para o tratamento comparativo porque desejaram, diferentemente dos representantes da chamada Nova História, compor uma História Mundial, História das Civilizações – foco Oswald Spengler e Arnold Toynbee. Aqui também abordo, é claro, as propostas de Marc Bloch, representante da École des Annales que mais se interessou pela História Comparada; e, em seguida, críticas a ele destinadas por Marcel Detienne. Por fim, esboço considerações sobre novas possibilidades para o comparativismo para pesquisas na área da História. Abstract : This paper is dedicated to trace the history of comparative studies; and it analyzes proposals submitted since the beginning of the twentieth century until the present day. It refers to the elaborations of social

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Texto NÃO PUBLICADO sobre proposições de diversos pesquisadores e grupos de pesquisa para abordagens comparativas no campo da História.

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Page 1: Historia Comparada

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UMA HISTÓRIA DA HISTÓRIA COMPARADA:

Entre críticas e possibilidades de um profícuo campo metodológico

Ana Luiza de Oliveira Duarte Ferreira

Doutoranda pelo PROLAM-USP

[email protected]

Resumo: Este artigo se dedica a traçar a trajetória dos estudos comparados de história, e

percorre propostas apresentadas desde o início do século XX até os dias de hoje. Se refere às

elaborações de cientistas sociais do porte de Émile Durkheim e Max Weber, pouco

conhecidos pelos historiadores brasileiros. Trabalha também historiadores contemporâneos

dos annalistas franceses, mas que tiveram propostas distintas para o tratamento comparativo

porque desejaram, diferentemente dos representantes da chamada Nova História, compor uma

História Mundial, História das Civilizações – foco Oswald Spengler e Arnold Toynbee. Aqui

também abordo, é claro, as propostas de Marc Bloch, representante da École des Annales que

mais se interessou pela História Comparada; e, em seguida, críticas a ele destinadas por

Marcel Detienne. Por fim, esboço considerações sobre novas possibilidades para o

comparativismo para pesquisas na área da História.

Abstract: This paper is dedicated to trace the history of comparative studies; and it analyzes

proposals submitted since the beginning of the twentieth century until the present day. It

refers to the elaborations of social scientists of the stature of Émile Durkheim and Max

Weber, both not well known by Brazilian historians. It also refers to contemporary historians

of Annales that (unlike Annales) wanted to compose a World History, or a History of

Civilizations – Oswald Spengler and Arnold Toynbee. Here I approach, of course, the

proposals of Marc Bloch, representative of the École des Annales who was interested

in Comparative History; and then, I analyze the Marcel Detienne’s review. Finally, this paper

presents considerations about new possibilities for comparative studies for research in history.

Palavras-chaves: História Comparada, Durkheim, Weber, Spengler, Toynbee, Marc Bloch,

Detienne, História e Ciências Sociais, História e Antropologia, História e Estudos Literários,

História dos Conceitos.

Keywords: Comparative History, Durkheim, Weber, Spengler, Toynbee, Marc Bloch,

Detienne, History and Social Sciences, History and Anthropology, History and Literacy

Studies, History of Concepts.

Page 2: Historia Comparada

2

Introdução

Quase sempre, quando se aborda a história da História Comparada, se fala do trajeto

cumprido por pesquisadores, sobretudo europeus e norte-americanos, explorando

possibilidades e a necessidade de se produzir estudos que associassem, integrassem,

sintetizassem dados obtidos através da análise de fontes. Essa análise de fontes, concebida em

geral como anterior ao procedimento comparativo, se daria conforme uma dada metodologia,

essa em geral bem consolidada nas universidades do Centro. Quer dizer: o próprio

procedimento comparativo não chegaria, nesses casos, a ser considerado uma opção

propriamente metodológica, mas sim uma ação comum e característica do trabalho

acadêmico.

Efetivamente, como veremos, os historiadores mais reputados no Brasil e no mundo,

ligados à célebre École das Annales, não tendem a reconhecer o comparativismo como campo

metodológico. Dois exemplos de pesquisadores brasileiros bastante referenciados quando se

trata de História Comparada no Brasil, Boris Fausto e o argentino Fernando Devoto, por

exemplo, em livro recentemente publicado nos informam que aos olhos de um dos fundadores

dos Annales que mais se interessou pela História Comparada, Marc Bloch, ela corresponderia

a instrumento e não a uma teoria – seria instrumental, ocasional, focada, e limitada; talvez

fundamental para escolha dos objetos, mas não estruturadora de todo o universo da pesquisa.1

Outro nome bastante importante do comparativismo brasileiro também se filia a

Bloch: a professora uspiana Maria Ligia Coelho Prado. Ela, porém, considera as proposições

do annalista, para a História Comparada, como proposições tipicamente metodológicas –

escreveu que, para Bloch, “o método comparativo supunha determinados procedimentos...”

(PRADO: 17). Julgaria a mesma, também ou por isso, que é possível sim se fundar a História

Comparada como campo caracterizado por critérios rigorosos e fecundos.2

Entretanto, devo fazer notar que mesmo Prado reconhece que são pouco expressivos

os trabalhos em História Comparada no Brasil e na América Hispânica.3

Particularmente, considero que outras referências de uso do comparativismo, distintas

aquelas feitas pelos e sob inspiração dos annales, poderiam enriquecer o debate, e a análise

delas poderia levar à consolidação crítica da metodologia da comparação em História; para

desfrute de acadêmicos e não-acadêmicos, para desfrute de europeus e não europeus.

1 FAUSTO, Boris & DEVOTO, Fernando. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada. São Paulo: Editora 34, s/d. p. 13.

2 PRADO, Mª Ligia Coelho. Repensando a História Comparada da América Latina. Revista de História. v. 153. n. 2. 2005. Capturado em 9 de maio de 2011, e disponível na web através do link: http://miud.in/H59. p. 30.

3 Idem, p. 29.

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O presente texto dedica-se, assim, a avaliar lugares comuns da redigida História da

História Comparada, e a avaliar a possibilidade e importância da estruturação dos campos

metodológicos denomináveis: História Comparada dos Conceitos, e História Comparada dos

Conceitos de Identidade.

Começo, então, citando alguns célebres autores europeus que, antes da chegada do

século XX, utilizaram a comparação quando elaboraram estudos até hoje considerados

relevantes. Depois, abordo a sistematização do comparativismo por grandes nomes das

Ciências Sociais: Durkheim, Weber e Marx. Em seguida, trato de autores não-franceses que

teriam apresentado contribuições importantes ao debate sobre a comparação como método:

Spengler e Toynbee. Parto, então, para abordar a visão da École des Annales e de seu

principal crítico, Marcel Detienne. E, por fim, avalio possibilidades para a História

Comparada, hoje.

1. Comparação nas Ciências Sociais: sobretudo Durkheim, Weber e outros

A comparação faz parte de toda reflexão mais articulada, e é indício de erudição. Foi

praticada por renomados pensadores século XIX, como o francês Alexis de Tocqueville e o

inglês John Stuart Mill. Antes disso, tendeu a ser muito explorada por autores europeus que

pensavam o Novo Mundo, a América, mas também a África e a Ásia. Não existia uma

formalização do procedimento comparativo, é claro, mas ele serviu para melhor se pensar os

países da Europa, diferenças e identificações, e para melhor pensar o ser humano como um

todo, quando do contato com os homens e mulheres americanos, africanos e asiáticos que

tinham outros estilos de vida e de pensamento.

A comparação, até esse momento, não corresponde a um método, mas a uma opção

tomada pelos estudiosos que pretendem abordar mais de uma comunidade, um povo, uma

nação, integrando os elementos estudados. A idéia era, em última instância, compor-se uma

“quadro geral”.

Fausto e Devoto apontam intelectuais que antes do século XX trabalhavam com

comparativismo em análises históricas: o francês Charles Victor Langlois, o inglês lorde

Acton, e o alemão Otto Hintze. Contudo, Fausto e Devoto afirmam que esses autores

utilizaram a comparação mais como base do que ferramenta de reflexão mais orgânica. Ao ver

desses dois estudiosos latino-americanos, apenas no século XX intelectuais interessados em

história foram além da justaposição de dadas características dos elementos comparados.4

4 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 9.

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4

Conforme Fausto e Devoto, não podia ser fácil, para os historiadores, trabalhar

sistematicamente qualquer modelo de comparação que acreditassem ser científico. Desde a

historiografia positiva, fundada na Alemanha por nomes como Leopold Ranke, entendia-se a

História como uma ciência do único, do irrepetível. Como pontuou ironicamente o sociólogo

francês François Simiand, que viveu na transição do século XIX ao XX, essa noção era tabu;

o fato histórico singular era o ídolo maior da tribo dos historiadores. Seria possível pensar

semelhanças, diferenças e relações entre fatos históricos de maneira que eles seguissem sendo

concebidos como singulares? Parecia uma tarefa muito difícil. Generalizar e formular leis

eram consideradas funções não de historiadores; mas de cientistas sociais, filósofos, ensaístas

– tais como Tocqueville, Mill, Langlois, Acton, Hintze.5

Mesmo hoje, se Prado categoriza que “o historiador não está à procura de

generalizações e não constrói suas análises a partir de modelos elaborados a priori”,6 Fausto e

Devoto pontuam que se apóiam “na sensatez do historiador, mais do que nas sofisticadas

teorias das vizinhas ciências sociais”.7

Por isso, por essa questão de “princípios”, os passos iniciais dados no sentido da

conformação de um campo metodológico denominado História Comparada foram dados por

cientistas sociais e/ou por historiadores que militavam pela renovação da História como um

todo.8

Nas Ciências Sociais, o comparativismo ganhou projeção nos trabalhos do francês

Émile Durkheim e do alemão Max Weber. Crítico do evolucionismo, mas indiscutivelmente

herdeiro de Comte, em As regras do método sociológico Durkheim apresentou o

comparativismo como um ponto de partida seguro para análises do social; como o recurso

mais objetivo do qual poderiam dispor os cientistas sociais; como a estratégia de investigação

mais semelhante à experimentação nas Ciências da Natureza.9

Durkheim propôs a comparação como “método das variações concomitantes”, quer

dizer, como maneira de se observar, sistematicamente, empiricamente, transformações

sociais; gerando, por indutivismo, entendimentos em relação às causas dos eventos (FAUSTO

& DEVOTO: 10).

5 Ibidem.6 PRADO. Op. Cir. p. 22.7 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 25.8 Idem, p. 10.9 FRANCO, Maria Ciavatta. Quando nós somos o outro: questões teórico-metodológicas sobre os estudos

comparados. Revista Educação & Sociedade. v. 21. n. 72. 2000. Capturado em 8 de maio de 2000, e disponível na web através do link: http://miud.in/GVZ. p. 213.

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5

Além disso, Durkheim apresentou, no que diz respeito ao comparativismo, uma

classificação que seria bastante repetida por cientistas sociais e historiadores. Diferenciou a

comparação entre sociedades semelhantes, próximas, vizinhas, da possibilidade de

comparação de sociedades de estruturas distintas, afastadas no tempo/espaço.10

Max Weber propôs a importância do comparativismo para as Ciências Sociais em

diversos livros e artigos publicados na revista que editou junto a Weber Sombart: Arquivos de

História Social e Sócio-Política.11 Sua proposta privilegiava as heterogeneidades,

peculiaridades, excepcionalidades. Ele falava na necessidade do analista mergulhar nas fontes,

definindo parâmetros, selecionando, apontando probabilidades, enfim, formulando e

trabalhando com os chamados “tipos ideais” – célebres conceitos weberianos.12

Não é difícil se encontrar razões bem ponderadas para o fato de que Durkheim tem

sido considerado mais interessante, aos olhos dos historiadores, que Weber. É verdade em

geral pouco se conhece do primeiro deles; porém, é ao segundo que de destinam nossas

críticas mais severas. Ora, como disse acima os especialistas em História tendem se

concentrar no singular; se Durkheim parte de um essencial singular para a conformação

esquemática de respostas, Weber dá destaque às generalizações, parte de generalizações (a

elaboração de “tipos ideais”), e as testa, toma e retoma, dialogando com elas, todo o tempo.13

Entretanto, creio que as generalizações de Weber na composição de “tipos ideais”

podem, sim, ser muito úteis à História. Elas ajudaram o sociólogo alemão a conceber o

desenvolvimento histórico como assimétrico e desigual, no Ocidente e no Oriente. A partir

delas, Weber e muitos outros autores passaram a trabalhar o conceito de “Sonderweg”, quer

dizer, do peculiar e autêntico desenvolvimento capitalista alemão.14 Isso pode, a meu ver, ser

ricamente inspirador para historiadores interessados na América Latina, que pretendem pensá-

la em suas especificidades. Quiçá terá sido esse o aspecto que despertou o interesse de Sergio

Buarque de Holanda por Weber e pelos tipos ideais, quando da escritura do fundamental

Raízes do Brasil.

10 THEML, Neyde & BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha. História comparada: olhares plurais. Revista de História Comparada. v. 1. n. 1. 2007. Capturado em 8 de maio de 2011, e disponível na web, através do link: http://miud.in/GVY. p. 4.

11 Idem, p. 5, n. 11.12 Idem, 5 & FRANCO. Op. Cit. p. 215.13 PRADO. Op. Cit. p. 16.14 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 12.

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6

É preciso ter-se em mente, aqui, que o sociólogo alemão Karl Marx e seus seguidores

já trabalhavam a História de maneira crítica, sistêmica e problematizante, e lançando mão do

comparativismo, desde o século XIX. Usavam-na como via a partir da qual estabeleciam e

testavam leis históricas. Dessa tradição, tornaram-se expressivos os trabalhos dos ingleses

Edward Palmer Thompson e Perry Anderson, e do norte-americano Barrington Moore Jr.15

Cabe aqui lembrar que o historiador norte-americano Raymond Grew afirma que até

hoje pesquisadores de história de todo mundo recorrem à comparação sobretudo em trabalhos

com foco na Economia. Segundo seu ponto de vista, todavia, em geral isso se dá de maneira

limitada: tomando-se a comparação menos como uma metodologia de análise de dados

qualitativos, e mais como uma forma, um esquema para se pensar dados quantitativos.16

Por fim, outro sociólogo que desenvolveu célebres estudos comparados e que muito

influenciou a nós historiadores foi o francês Nobert Elias. Como falta sobre ele um cuidado

maior, por parte dos pesquisadores hoje interessados em História Comparada, passo a bola e o

sugiro como tema para futuras pesquisas.

2. Comparação para historiadores não-franceses: Spengler e Toynbee

Outros pesquisadores que contribuíram bastante para se repensar o comparativismo em

análises históricas foram o alemão Oswald Spengler e o inglês Arnold Toynbee.

Era início do século XX quando Spengler dedicou-se à realização de estudos históricos

comparados, e publicou A decadência do Ocidente. Para utilizar palavras do próprio autor,

podemos dizer que ele partiu do estudo de diversas formas singulares para agrupá-las,

produzindo um sistema, uma “Morfologia da História Mundial”.17

Sua idéia era proceder, comparativamente, da seguinte maneira: analisar diversos

grupos sociais, vasculhando similaridades e disparidades. As semelhanças entre os elementos

comparados lhe fizeram pensar num “ciclo vital” comum a todos; as diferenças, na existência

da “força misteriosa do chão”, quer dizer, em preciosos condicionantes locais.18

Conforme o professor da Universidade Severino Sombra, José D’Assunção Barros,

isso permitiu que Spengler definisse a existência de cinco estágios civilizatórios: o

nascimento, a juventude, a maturidade, a senilidade e a morte. Sob um juízo bem claramente

15 SEAN PURDY, Robert. A História Comparada e o desafio da transnacionalidade. Anais eletrônicos do VII Encontro de ANPHLAC. Campinas, 2006. Capturado em 8 de maio de 2011, e disponível na web através do link: http://miud.in/GW5. p. 5 & PRADO. Op. Cit. p. 13.

16 GREW, 1980: passim. Apud. PRADO. Op. cit. p. 19.17 SPENGLER, Oswald. A decadência do Ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1964. p. 25 e. 35.18 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 11.

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moral e um tanto subjetivo, e comparativamente, avaliou quais povos correspondiam a tal ou

qual estágio. Concluiu, assim, contrapondo a civilização ocidental a outras espalhadas pelo

mundo, que estaria a primeira delas em fase de franco declínio.19

Atenção para um importante detalhe: Spengler preferiu, para abordar regionalizações,

as designações “Ocidente” e “Oriente”. É que, segundo o uspiano Márcio Santos de Santana,

no sistema-mundo spengleriano o termo “Europa” perdia a validade, na medida em que não

contribuía em nada para a percepção da diversidade; dava a impressão de que correspondia a

um corpo homogêneo e lógico, que contrastava com a pluralidade e desordem do restante do

mundo.20

Entre os anos 1934 e 1961, Toynbee trabalhou em estudos comparados que se

tornaram célebres em todo mundo. Pretendia promover, para além das abordagens com foco

no nacional, o que chamava “História das Civilizações”. Foi radical na crítica aos estudos que

se baseavam em fronteiras das nações. E enxergou um mundo globalizado não apenas na

Antiguidade Clássica, na qual se especializou, mas também no presente e no futuro. Escreveu,

certa feita:

Creio na iminência de um mundo único, e creio que no século XXI a vida humana vai ser novamente uma unidade, em todos os aspectos e atividades. Creio que no campo da religião, o sectarismo vai ser subordinado ao ecumenismo; que no campo da política o nacionalismo vai ficar subordinado ao governo mundial, e que no campo do estudo dos assuntos humanos a especialização vai ser subordinada a uma visão abrangente.21

Leitor de Spengler, Toynbee desejou romper com a visão eurocêntrica e evolucionista;

e denominou “civilização” mais de 20 grupos espalhados pelo mundo, próximos ou distantes

da influência cultural européia.22

Tal como Spengler foi ainda profundamente crítico da cultura ocidental

industrializada, que considerava “pervertida” e “estreita”.23 Foi, contudo, certamente mais

otimista do que o alemão.24

Toynbee defendia ser primordial iniciar as investigações com uma visão do todo, para

em seguida remeter e analisar setores específicos. Porém, foi crítico à idéia spengleriana de

19 BARROS, José D’Assunção. Arnold Toynbee e a História Comparada das Civilizações. Revista Biblos. v. 23. n. 1. 2009. Capturado em 9 de maio de 2011, e disponível na web através do link: http://miud.in/H58. p. 222.

20 SANTANA, Marcio Santos de. Em busca da especificidade: considerações sobre a História. Revista Opsis. n. 2. 2007. Capturado em 10 de maio de 2011, e disponível na web através do link: http://miud.in/H5P. p. 103.

21 TOYNBEE, 1953: 43. Apud. BARROS. Op. Cit. p. 225.22 BARROS. Op. Cit. p. 224. n. 9.23 TOYNBEE, 1934-1961: 27. Apud. BARROS. Op. Cit. p. 224.24 BARROS. Op. Cit. p. 222 e 225.

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8

“ciclo vital”.25 Herdeiro do empirismo de John Locke, percebia que relações entre os povos

estavam dadas, hoje, e de maneira articulada, mas não se poderia garantir, nem em tese ou por

projeção, uma articulação para além do que nossos olhos vêem, quer dizer, para um tempo

histórico que ainda não se deu.26

De acordo com Fausto e Devoto, o empirismo de Toynbee imprimiu fortes marcas em

suas análises, de tal maneira que resultaram esquemáticas. Ele, na realidade, afirmam esses

autores, recorreria à comparação mais no momento de identificação dos objetos que

compunham um todo a ser investigado, do que ao longo do processo de reflexão sobre o todo.

E assim comporia um “geral” que, em última instância, correspondia a uma fórmula

“genérica”.27

Toynbee arcou com esse risco, por ser muito ambicioso. Seu grande propósito era

chegar a uma visão geral dinâmica, e fazer com que os cidadãos do mundo inteiro

percebessem a si e a seus convivas planetários de forma integrada, holística e pulsante.

A propósito, não me posso furtar a destacar que foi profundamente crítico em relação

ao monografismo, quer dizer, à pulverização das análises históricas em diversos estudos

monográficos realizados por historiadores superespecializados. Como lembra Barros, o inglês,

professor da cátedra de História da Grécia antiga, costumava pontuar que suas viagens ao

redor do mundo, o contato com todo tipo de gente, nos mais diversos lugares, haviam sido tão

senão mais importantes para sua formação intelectual do que seus estudos universitários.28

3. Comparação na historiografia francófona: antes e depois dos Annales

Sim, o comparativismo tem sido explorado pelas mais diversas gerações de

historiadores. Contudo, como pontuam as professoras Neyde Theml e Regina Maria da Cunha

Bustamante, foi apenas no início do século XX que a designação “História Comparada”

passou a ser utilizada mais amplamente por profissionais da História.29

Nessa época, Louis Davillé, combatendo a historiografia tradicional francesa, propôs

que a comparação em análise histórica deixasse de ser mera compilação, sobreposição,

descrição de informação sobre sociedades/nações/povos diversos.30 Porém, não se espere que

ele e outros historiadores seus conterrâneos passassem então, de ímpeto, a se interessarem

por, a partir de comparações, formularem leis – ao gosto dos marxistas –, ou por uma História

25 Idem, p. 223.26 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 11.27 Ibidem.28 BARROS. Op. Cor. p. 223-224. n. 5.29 THEML & BUSTAMANTE. Op. cit. p. 2.30 BARROS. Op. Cit. p. 227 & FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 13.

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9

Comparada tipológica – como a de Weber –, morfológica – como a de Spengler –, ou

generalizadora – como a de Toynbee.

Conforme Theml e Bustamante, a chamada École des Annales, famosa por iniciar um

movimento relativamente organizado de transformação das práticas de pesquisa histórica,

sofreu influência do pensamento de Durkheim, pois, dentre os autores aqui tratados, apenas

ele falava na necessidade de se afastar do objeto de análise, e os mobilizava na transição do

descritivo para o explicativo.31

Ora, os Annales tinham como pressuposto a mesma tradicional concepção de que a

História deveria ser pautada no singular, no específico; e que, apenas a partir de então, se

poderia estruturar sínteses mais gerais. Um de seus nomes mais expressivos, Lucien Febre, no

livro A Terra e a evolução humana havia proposto algo como uma “Mega História

Comparada”: o mais interessante para o historiador deveria ser, sob seu ponto de vista, “o

particular, o indivíduo, o irregular”, mas, com a amplas difusão desse tipo de estudo

localizado, quase naturalmente deveriam ser tecidas algumas associações e generalizações.32

Especificamente sobre História Comparada, houve o engajamento sobretudo de dois

annalistas: Henri Pirrene e Marc Bloch. Pirrene se interessou pelo projeto de elaboração de

uma História Européia e, depois, Universal. Com pretensões historiográficas e cívicas,

defendeu que apenas a comparação permitia a execução de sínteses históricas complexas; e

que apenas a comparação permitiria uma reflexão mais crítica e generalizada, em relação aos

patriotismos e às rivalidades entre países.33

A Primeira Guerra Mundial havia desembocado em tantas tragédias, e não era preciso

ser erudito ou acadêmico para compreender que ela tinha ocorrido por razão dos exacerbados

nacionalismos. A idéia de nação havia, além de tudo, conforme muitos pensadores da época,

engessado as reflexões historiográficas, restringindo-as ao que os governos se interessavam

por bancar, ao que as administrações nacionais viabilizavam para acesso nos arquivos, quer

dizer, aos limites do Estado-nação.34

A História acadêmica européia se havia consolidado com apoio dos Estados nacionais,

e se legitimara por meio de um discurso patriótico que inspirava a rejeição cultural e embates

militares contra os vizinhos de continente. A Nova História desejou, de maneira distinta,

31 THELM & BUSTAMANTE. Op. cit. p. 4.32 FEBVRE, 1922: 90. Apud. BARROS. Op. Cit. p. 224-225.33 PRADO. Op. Cit. p. 13 & FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 12 & BARROS, José D’Assunção. História

Comparada: da contribuição de Marc Bloch à constituição de um moderno campo historiográfico. Revista História Social. v. 1. N. 13. 2007. Capturado em 8 de maio de 2005, e disponível na web através do link: http://miud.in/GW1. p. 16.

34 PRADO. Op. Cit. p. 16.

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10

apresentar uma Europa de experiências históricas articuladas, de formação multicultural mas

comum, e caracterizada pelo estabelecimento de influências mútuas de região para região. 35 E

a História Comparada, crítica, ajudava a vislumbrar novos objetivos históricos de uma

maneira renovada.

Marc Bloch, na célebre conferência Por uma história comparada das sociedades

européias, resumiu os procedimentos de comparação, conforme Prado, em quatro etapas:

primeiramente, dever-se-ia definir dois ou mais objetos de análise que apresentassem a priori

elementos em comum, que se apresentassem como contíguos; depois, decupar os

desenvolvimentos históricos nos quais se inserem ou a que se referem cada um desses objetos;

em terceiro lugar, caberia ao historiador apontar as semelhanças e diferenças entre um objeto

e outro; por fim, dever-se-ia explicar as razões das semelhanças e diferenças –

“aproximações”, “influências” e “origem comum”.36

Pode-se concluir, a partir disso, que, dentre as duas possibilidades de comparativismo

apontadas por Durkheim e há pouco citadas, Bloch considerou que apenas a primeira poderia

ser proficuamente explorada pelos historiadores – quer dizer, a análise de sociedades vizinhas

e com estruturas semelhantes.37

É verdade que Bloch chegou a esboçar comparações entre o feudalismo europeu e o

feudalismo japonês.38 Porém, considerava muito mais interessante:

estudar paralelamente sociedades vizinhas e contemporâneas, constantemente influenciadas umas pelas outras, sujeitas em seu desenvolvimento, devido a sua proximidade e sua sincronização, à ação das mesmas grandes causas, e remontando, ao menos parcialmente, a uma origem comum.39

Alguns anos antes, Bloch havia publicado um bom exemplo daquilo que entendia por

História Comparada, Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio na França e

na Inglaterra. Nesse livro, estudara sobre monarcas franceses e ingleses que por volta do ano

1000 e 1100 acreditava-se terem o poder de curar doenças com o toque de suas mãos.

Partindo da percepção de que tanto em uma localidade quanto em outra davam-se fatos

semelhantes, Bloch percorreu as fontes, buscando especificidades.40

35 THEML & BUSTAMANTE. Op. Cit. p. 3.36 PRADO. Op. Cit. p. 17-19.37 THEML & BUSTAMANTE. Op. Cit. p. 3.38 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 14.39 BLOCH, 1928: 19. Apud. BARROS. Op. Cit. p. 15.40 BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio na França e na Inglaterra. São

Paulo: Cia das Letras, 1993, passim.

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11

Porém, nessa obra, como lembra o professor da UFRJ Alexandre Santos de Moraes, o

historiador francês não deixou de se fixar e se interessar pelo que há de comum entre a França

e a Inglaterra daquele período; tanto que, em determinado momento, se questiona:

“coincidência ou interação?”.41

Efetivamente, a leitura de Os rei taumaturgos nos faz pensar que a História

Comparada de Bloch é limitada; faltou abordar ali os contatos, quer dizer, faltou propriamente

escapar do nacional, que tanto se criticava e critica na tradicional historiografia

nacionalizante. É verdade que Bloch fala sobre a necessidade de se tratar do transnacional na

conferência Por uma história comparada das civilizações européias,42 mas não é possível vê-

lo fazendo-o em seu célebre livro, acima referido.

Aliás, de fato os estudos medievalistas consagrados de Febvre e Bloch tendiam a

romper com a abordagem nacionalista e nacionalizadora comum entre os pesquisadores do

século XIX. Era natural que, estudando a fragmentada Europa medieval e rompendo com o

anacronismo que dantes caracterizara boa parte dos trabalhos de História, escapassem da

tradicional abordagem do nacional. Porém, ainda estabeleciam seus objetos de análise a partir

do recorte da nação: estudavam, em grande parte das vezes, a França, e um ou outro vizinho

dela.43

Não podemos deixar de lembrar, aqui, do famoso estudo do também annalista francês

Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Nesse

livro as fronteiras nacionais se obscurecem para se falar de eventos, geografia, relações

sociais e mentalidades que caracterizavam os povos que viviam ao derredor daquele mar, no

século XVI. Minha impressão era que o autor havia tomado como referência as proposições

de Bloch para História Comparada, e ido além, estudando comparativamente sociedades

contíguas e não-nacionais, repletas de inter-relações e mútuas influências notáveis.44 Essa

impressão se confirmou ao ver constar, em um livro posterior de Braudel, a referência clara ao

conceito de História Comparada.

Que referência é essa? O que ela nos revela sobre o modo de Braudel ou mesmo Bloch

perceberem a História Comparada? Em Civilização material, economia e capitalismo,

Braudel afirmou que O Mediterrâneo foi concebido “à margem (...) de todas as teorias, 41 MORAES, Alexandre Santos de. Marcel Detienne e os caminhos do comparativismo. Revista de História

Comparada. v. 3. n. 1. 2009. Capturado em 9 de maio de 2011, e disponível na web através do link: http://miud.in/H55. p. 4.

42 BLOCH, 1928. Apud. PRADO. Op. Cit. p. 17.43 BARROS. Op. Cit. p. 2009.

44 BRAUDEL, Fernand. Mediterraneo y el mundo mediterraneo en la epoca de Felipe II. México: Fondo de

Cultura Económica, 2010, passim.

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exclusivamente sob o signo da observação e da história comparada”.45 Ora, queria ele dizer

com isso que aos seus olhos a comparação não poderia ser considerada propriamente um

campo teórico? Fausto e Devoto responderiam que sim.

Pontuei, na Introdução deste artigo, que Fausto e Devoto acreditam que Bloch, e eu

diria, por associação, que também Braudel, não percebiam a comparação como

“procedimento teórico”, e sim como “instrumento estreitamente vinculado à prática do

historiador”, presente aqui e ali, sustentando tal ou qual iniciativa, mas não estruturando todo

um aporte teórico e exploratório, em uma pesquisa.46

Cabe aqui questionar a noção de “contiguidade”, proposta por Bloch e desenvolvida

por Braudel. Ora, é mesmo muito óbvio que no ano 1000 França e Inglaterra, e comunidades

mediterrânicas sob controle do rei espanhol Felipe II eram sociedades contíguas, aos olhos

daqueles homens e mulheres, e também a nossos olhos, hoje. Mas, como nos lembra Barros, o

conceito de contiguidade varia com o tempo;47 no mundo globalizado atual, por exemplo,

podemos nos sentir mais próximos de cidadãos que vivem em Paris ou Barcelona do que de

moradores de bairros vizinhos ao nosso.

A Antropologia trouxe contribuições importantes a esse respeito. É dessa área, por

exemplo, o norte-americano Sidney Mintz, que propôs, ao findar da década de 1950, que

embora a História deva dedicar-se a perceber os acontecimentos e culturas como únicos, as

experiências históricas de distintas comunidades, em períodos distintos, podem sim ocorrer de

maneira semelhante. Para esse autor, notar e analisar tal possibilidade é não só importante

como erudição. Tem “valor científico”, na medida em que viabiliza a revisão dos sentidos e

das formas de entendimento antropológicos; na medida em que viabiliza a revisão dos

paradigmas institucionalizados para estudo da história e dos comportamentos históricos.48

Barros e Mintz fazem lembrar, nesse ponto, o ilustre historiador francês Paul Veyne,

que, em O inventário das diferenças, declarara que toda análise histórica é essencialmente um

estudo comparado. Para Veyne, como historiadores profissionais todo o tempo antepomos

nossos entendimentos a entendimentos de homens e mulheres mortos, modos de vista de tal

ou qual grupos humanos, essa ou aquela informação. E o fazemos porque tais procedimentos,

que não deixam de respeitar o arbítrio dos pesquisadores mais do que as fontes, são

politicamente rotulados como convencionais e aceitáveis. Ora, não deve ser considerada

45 BRAUDEL, F. Civilização  material,  economia  e  capitalismo.  São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 13.46 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 13.47 BARROS. Op. Cit. p. 14.48 MINTZ, 1959. Apud. FRENCH: 57. Apud. PRADO. p. 14.

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menor uma abordagem comparativa que deseje contrapor elementos aparentemente bem

desiguais; ela se dá sem dúvida sob a prescrição de um impertinente analista, mas isso não

quer dizer que não tenha serventia investigativa.49

O belga Marcel Detienne nos dá um bom exemplo de quão interessante pode ser

comparar o “incomparável”: em seu livro mais famoso narra que em um grupo de pesquisa

coletiva comparada andavam os investigadores debatendo sobre os conceitos basilares que

deveriam assumir na próxima temporada; estavam chegando, juntos, ao propósito de trabalhar

as idéias de “fundar, fundação, fundador”.

Um dia, dos japonizantes, há muito silenciosos enquanto avançávamos às

apalpadelas, intervieram para nos contar – estavam desolados com isso – que

no Japão, segundo os textos mais antigos, não havia fundação nem fundados.

(...)

[Essa descoberta não ocorreu por acaso. Foi] graças à provocação do

incomparável que uma categoria tão familiar como “fundar” veio a abalar-se,

rachar-se, desagregar-se.50

Detienne, na década de 1960, esteve atento às questões inquiridas por Veyne e, em

Comparar o incomparável, escreveu um manifesto em defesa do resgate da segunda

possibilidade de análise comparativa destacada por Durkheim – aquela entre estruturas

consideradas distintas.51 Detienne percebia as sociedades em si como conjuntos

essencialmente complexos, variáveis, imbricados, que assumem “por natureza” formas

múltiplas, fluidas e não hierarquizáveis; daí que se sentisse à vontade para argumentar que

caberia aos historiadores estabelecer padrões de entendimento para elas, dentre os quais, os

mais diversos padrões comparativos.52

Sean Purdy afirma que pautar diferença dos elementos comparados no espaço,

sobretudo em espaços nacionais, pode resultar em estudos mais alienantes do que pautar em

diferenças temporais; para esse autor, a tradicional História Comparada das Nações tende a

partir de estereotipações vulgares comprometidas com certos grupos políticos.53 Detienne,

apresentou-se como crítico de Bloch por razão semelhante: não apenas porque esse, como

49 VEYNE, Paul. O inventário das diferenças. Lisboa: Gradiva, 1989. p. 6.50 DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. São Paulo: Idéias & Letras, 2004. p. 50.51 THEML & BUSTAMANTE. Op. Cit. p. 10.52 Idem, p. 11.53 SEAN PURDY. Op. Cit. p. 10.

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vimos, defendera a tese da comparação de unidades contíguas; mas porque ao belga

incomodava o insistente marco nacional.54

Especialista em História Antiga, Detienne desejou que a História Comparada

ultrapassasse não apenas as fronteiras nacionais, mas também os marcos temporais

tradicionais. Curioso notar que essa idéia hoje inspira historiadores inclusive ligados

intimamente aos Annales, como o norte-americano Robert Darnton, que no artigo O

significado cultural da censura analisa a França do Antigo Regime e na Alemanha Oriental

do século XX.55

Para Detienne, tão errôneo quanto se abordar a Grécia da Antiguidade sem fazer notar

as similitudes entre povos distintos e rivais como atenienses e troianos, é prender-se à noção

de que quase não há nada em comum entre um combatente da Guerra do Peloponeso e um

eleitor de Károlos Papúlias. O estudo dos mitos e mitologias não nos permite vislumbrar

continuidades de interesses através dos séculos?56 Caberia então, creio eu, um diálogo entre os

historiadores e não apenas com a Antropologia, mas também com a Psicologia Analítica de

Jung, que trabalha com arque-tipos? Conforme Moraes quiçá a qualidade mais essencial da

abordagem de Detienne é “mostrar a pertinência que as sociedades antigas possuem para as

reflexões acerca do presente de nossa vida social”, e – Por que não? - individual.57

Mas Detienne propôs um modelo de História Comparada inovador não apenas

metodologicamente mas também organizacionalmente. Pretendia ele que os trabalhos

comparados fossem realizados por equipes, nas quais cada pesquisador se ocuparia de um

corpo temático ou de determinados objetos, atendendo sempre a propósitos investigativos

coletivamente estabelecidos.58

Considero importante, aqui, confessar uma deficiência: ao que me parece, há uma

série de semelhanças entre as experiências acadêmicas e propostas de Toynbee e de Detienne.

Além de especialistas em História Antiga e além de defenderem hábitos acadêmicos mais

irreverentes, eram críticos em relação a se restringir análises comparadas a comparações entre

Estados nacionais. Nada encontrei, porém, nenhum artigo que fosse ou pesquisador, que

contrapusesse diretamente as obras desses dois autores. Eis uma possibilidade de pesquisa,

um vazio no campo da História Comparada a ser preenchido.

54 MORAES. Op. Cit. p. 2.55 BARROS. Op. Cit. p. 14. n. 3.56 MORAES. Op. Cit. p. 7.57 Idem, p. 9.58 THEML & BUSTAMANTE. Op. Cit. p. 13 & MORAES. Op. Cit. p. 5.

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Mais uma possibilidade de pesquisa a ser aventada é a adaptação das propostas de

Detienne, voltadas ao tratamento da História Antiga, para o tratamento da História

Contemporânea e da História Recente. Seria possível uma simples aplicação dos

procedimentos estipulados pelo professor belga a uma área com a qual ele não trabalha? São

precisas muitas alterações em seu roteiro, para a abordagem de fontes e temáticas mais atuais?

4. Novidades na História, e possibilidade para a História Comparada

Nos últimos anos, historiadores de todo o mundo têm se interessado pela presença dos

sujeitos na história. Para nós, envolvidos com História Comparada, como essa presença se

poderia fazer mais notável?

Acredito que a comparação como método pode revelar não apenas a singular

importância das subjetividades e das razões dos indivíduos que viveram no período histórico

passado, em análise. Ela dá também voz ao historiador, como sujeito produtor de sentido

histórico.

Sim, para se produzir um bom trabalho em História Comparada é preciso sempre

destacar semelhanças e diversidades entre os objetos selecionados. E isso deve ser feito,

sempre, lembram Theml e Bustamante e concordo em absoluto, a partir de alguns critérios,

claramente definidos antes do início da prospecção das fontes, e criticamente revistos ao

longo da realização da pesquisa.59 Conforme a professora da UFF Maria Ciavatta Franco, a

comparação não é um processo que ocorre no vazio; daí a necessidade dos investigadores da

área deixarem bem claros os paradigmas e critérios dos quais se servem.60

Quanto à preocupação em se fugir a interpretações quantitativas que ofuscam o senso

de humanidade dos personagens anônimos ou não-anônimos da história, quanto à

preocupação em se fugir às grandes sínteses e leis históricas, eu diria que trouxe grande

contribuição, aos estudos comparados, a já referida Antropologia.

Fausto e Devoto afirmam que o professor norte-americano Raymond Grew, na revista

de História Comparada de maior projeção internacional, a Comparative studies in society and

history, afirmou que, há um par de décadas, eram bem comuns, em todo o mundo, análises

comparadas dedicadas ao social; porém, eram bastante raras as análises sobre

“comportamentos”.61 O que Grew quis dizer com isso? Que os modos de ser, de se relacionar,

de se sentir grupo e indivíduo não andavam sendo bem explorados pela História Comparada?

A meu ver, isso vem sendo revertido nos últimos anos.59 THEML & BUSTAMANTE. Op. Cit. p. 8.60 FRANCO. Op. Cit. p. 198.61 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 18.

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Considero, na verdade, que é hora do diálogo com outros campos do saber

humanístico, para além da Antropologia, nos trazer novas inspirações para o trabalho

comparado; novas inspirações inclusive para a abordagem comparada dos comportamentos

humanos. Como afirma Moraes, nós comparativistas não deveríamos nos restringir a

considerar palpites vindos das Ciências Sociais, da Economia e da Antropologia; deveríamos

também nos interessar um tanto mais, e mais seriamente, pela Filologia e pela Linguística.62

Fausto e Devoto lembram que o afastamento da História em relação à Linguística pode

ser percebido desde a primeira formação dos Annales. Marc Bloch, conforme os referidos

autores latino-americanos, se teria sentido desencorajado a adotar qualquer proposta de

comparativismo inspirada na História das Línguas Européias, praticada, entre outros, pelo

também francês, seu contemporâneo e amigo, Antoine Meillet. Bloch considerava esse campo

histórico “rígido”, específico e esquemático demais para inspirar algum insight teórico

interessante.63

Já Detienne considera que conhecer um pouco mais de Linguística Comparada poderia

sim inspirar ricamente a nós, historiadores. Escreveu ele que, caso conhecêssemos melhor

essa cadeira universitária, seus propósitos e procedimentos, acabaríamos por,

comparativamente, repensar e bem remodelar a própria cadeira de História. Se todos os

nossos pesquisadores comparativistas tomassem nota de que cotidianamente e proficuamente

linguistas comparam morfologia, fonética e até mesmo vocabulário de sociedades bastante

afastadas no tempo e no espaço, passaríamos a nos sentir todos ridículos por termos

condenado a comparação de sociedades não-contíguas ao limbo acadêmico.64

De minha parte acrescentaria que também deveria incomodar nossa negligência em

relação à Teoria da Literatura (sobretudo a literatura Comparada) e à Filosofia (sobretudo a

Metafísica, a Hermenêutica, e a Filosofia da História). Me pergunto: demasiadamente

concentrados em explorar documentos arquivísticos e singularidades, não estamos, como

historiadores, deixando de perceber a construção narrativa de determinados conceitos, e/ou

determinados conceitos de identidade, e seus desdobramentos?

O historiador francês Serge Gruzinski, um dos mais conhecidos críticos da História

Comparada, afirma que Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, a despeito de ser um

clássico exemplo de comparativismo, tem muita qualidade investigativa; seria uma ótima

exceção à regra.65 Ora, Holanda ali produziu um estudo sobre o comportamento dos

62 MORAES. Op. Cit. p. 8.63 FAUSTO & DEVOTO. Op. Cit. p. 13.64 DETIENNE. Op. Cit. p. 9.65 GRUZINSKI, 2001: Apud. PRADO. Op. Cit. p. 26.

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brasileiros, e não o fez sob um viés antropológico, e sim sociológico e psicologizante e, creio

eu, bastante inspirado pelos Estudos Literários.

Holanda se formou intelectualmente não em uma universidade, mas como jornalista e

companheiro dos principais expoentes da vanguarda literária brasileira, o Modernismo. Sua

obra mais famosa é, assim, um misto de preocupações com o presente e formulação de ricas

metáforas.

Essas metáforas ali não se fazem, contudo, sobre uma estrutura comparativa frágil. O

leitor certamente se lembra que o dantes citado cientista social alemão, Max Weber, é uma

das principais referências de Holanda, em Raízes do Brasil. Além de tomar conceitos-chaves

weberianos, como o de “patrimonialismo”, o brasileiro recorre à elaboração dos já

mencionados “tipos ideais”.66

Não sugeri há pouco que seria interessante que envolvêssemos nós, historiadores, em

análises menos tacanhas das propostas do autor de A ética protestante e o espírito do

capitalismo?

Ora, é de meu entendimento que, ao contrário do que se sugere correntemente, e do

que condenam muitos historiadores, Weber não propunha um trabalho de generalização puro

e simples, seguido por esquemática classificação. Ele simplesmente estabelecia, através da

formulação dos “tipos ideais”, padrões de referência de análise. Em outras palavras:

baseando-se no conhecimento das fontes, Weber formulava os chamados “tipos ideais”, que

eram composições generalizantes, sim, mas que não correspondiam de fato o objetivo final do

autor; seu objetivo era usá-los, testá-los, partir deles para a reavaliação de novas fontes, novos

objetivos, novos projetos.67

O que pretendo argumentar por ora é que, para além das Ciências Sociais, os tipos

ideais de Holanda (e eu diria que também de Weber) têm uma profunda carga narrativa e

poética. Quer dizer, se Holanda falava em “homem cordial”, não era apenas por perceber a

existência de tal comportamento em suas fontes; o percebia entre os homens e mulheres com

quem convivia, então, naquelas primeiras décadas do século XX, e o notava circulando nas

ruas, nas cartas, nas obras e estilos literários.

Além do mais, note-se que o termo “cordialidade” não deixou de circular anos e anos

após a primeira publicação de Raízes; e ironicamente seguiu um percurso inusitado mas

bastante compreensível, escapando ao sentido pretendido pelo dito autor – não, o “homem

cordial” de Holanda não é, como muito se imagina, o cidadão gentil e pacífico, e sim o

66 HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2000.67 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

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sorridente e hipócrita defensor de interesses pessoais, a qualquer custo. Raízes do Brasil,

como toda boa idéia literária, não abriga plenamente e sistematicamente todo o corpo social

ao qual remete; é como um quadro modernista, que não traz um retrato preciso da realidade

brasileira, nem respostas prontas – faz pensar.

O historiador inglês Ian Watt, que contribui frequentemente para a Comparative

studies in society and history, em Mitos do individualismo moderno tomou alguns

personagens clássicos da literatura universal, e os trabalhou como típicos. Não se fechou a um

recorte espacial nacional, e abordou o alemão Fausto, os espanhóis Dom Quixote e Dom Juan,

e o inglês Robinson Crusoé como igualmente, embora cada um à sua maneira, mitos

representativos do comportamento individualista moderno. Watt não focou, para tanto, o

período em que esses mitos foram supostamente concebidos; buscou perceber como homens e

mulheres em outra época – o Romântico – retomaram-nos, revalorizaram-nos e

ressignificaram-nos, garantindo a eles, todos eles, um sentido universal.68

Pode parecer desmedido, a uma altura dessa, uma transcrição tão longa, como a que se

seguirá. Mas o fato é que, ao definir sua noção de mito, Watt apresenta um quadro bastante

interessante e lindamente estruturado. Não vejo outra saída senão aqui reproduzi-lo quase

inteiramente:

Neste livro não uso o termo “mito” em seu sentido mais comum de crença falsa ou imprecisa. (...) De outro lado, não concordo com a visão implícita na obra de alguns modernos antropólogos e críticos da cultura, que, partindo da correta crença de que o homem não é um ser inteiramente racional, chegam de um salto à conclusão, nem sempre clara mas nem por isso menos convicta, de que o pensamento mitológico é sob todos os aspectos superior e desejável. (...) Aceito a visão de que histórias míticas são se certa maneira simbólicas; ou seja, tendem a adquirir significados mais duradouros e mais permanentes do que denotam as suas representações cultas; mas esses significados não estariam acima nem além da razão.(...) [Além do mais,] procuro ser mais empírico e descritivo. Meus quatro mitos derivam da transição do sistema social e intelectual da Idade Média para o sistema dominado pelo pensamento individualista moderno, e essa transição foi ela própria marcada pelo notável desenvolvimento de seus significados originalmente renascentistas para os seus atuais significados românticos.69

O “homem cordial”, então, poderia ser considerado um mito conceitual? Um mito,

tipicamente brasileiro, sobre a maneira de expressarmos nossa individualidade, frente Às

imposições do meio social? A idéia de cordialidade não teria sofrido uma “romantização”?

68 WATT, Ian. Mitos do individualismo moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.69 Idem, p. 15-16.

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Não era isso que Holanda pretendia analisar, revelar, discutir e pôr em pauta? Eu, mesmo

correndo o risco de estar sendo precipitadas, responderia sim a todas essas perguntas.

A filosófica História dos Conceitos, tutoriada pelo historiador alemão Reinhard

Koselleck talvez tenha, neste ínterim, muito a dizer a nós interessados em História

Comparada. Koselleck, durante tantos anos desconhecido no Brasil, tem despertado,

atualmente, interesse de muitos pesquisadores.70

Como abordar a história de um conceito, suas continuidades e descontinuidades? Ora,

me parece evidente que uma idéia, tal como a de nacional, de individualismo, de brasilidade,

de cordialidade, ou mesmo de “jeitinho”, se estabelece por meio de comparação. Um conceito

se estabelece e ganha aplicabilidade pela via relacional, quer dizer, em relação a outros

conceitos... 71

Entretanto, há mais uma questão pertinente a ser explorada, no diálogo entre a História

dos Conceitos e a História Comparada: não é essencial buscar compreender como distintos

grupos sociais concebem, aplicam e significam determinado termo?

Acredito que uma percepção da História Comparada que dê conta de tais questões

deve não apenas agradar a Gruzinski, nosso principal rival, mas ser muito útil a pesquisadores

que não desejam seguir, desavisados, reproduzindo estereótipos acadêmicos. Sobretudo viria

de encontro aos interesses de pesquisadores que percebem que a Academia está repleta de

estereótipos sutis e traiçoeiros que devem também ser constantemente averiguados – clichês

tais como nacional, contiguidade, singular, global, e a aversão à generalização.

70 KOSELLECK, Reinhard. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, passim.71 Ibidem.