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Projeção UE perderá 50 milhões de trabalhadores até 2050. Imigração vai disparar, com risco de convulsão social Europa a caminho do "suicídio demográfico" POPULAÇÃO Texto JOANA PEREIRA BASTOS e RAQUEL ALBUQUERQUE Infografia SOFIA MIGUEL ROSA m nenhum país da União Europeia (UE) o número de nascimentos é sufi- ciente para assegurar a renovação das gerações e na grande maioria dos Estados-membros vá- rios anos que se fabri- cam mais caixões do que se montam berços. Com a população em declínio, o Velho Continente, cada vez mais envelhecido, perderá 50 mi- lhões de habitantes em idade ativa até 2050. As projeções não deixam dúvidas: a Europa caminha para um "suicídio de- mográfico", avisam dois investigadores da Fundação Robert Schuman, um dos mais importantes centros de estudos sobre a UE. Apesar do cenário ser alar- mante, "ninguém na Europa fala deste problema e menos ainda se prepara para ele", acusam, num artigo publicado esta semana. Em entrevista ao Expresso, o econo- mista Michel Godet, coautor do artigo, explica que "não consciência da di- mensão deste problema" (ver página ao lado). Mas apesar de não constar da agenda política, a demografia tem um forte impacto na economia: o crescimen- to do PIB é mais baixo nos países onde o aumento de população é menor (ver grá- fico). A verdade é que o envelhecimento fará diminuir para metade o potencial de crescimento económico da Europa até 2040. E a tecnologia não será suficiente para o contrariar. A prova é que, "apesar de todos os avanços tecnológicos, tanto o crescimento económico como a pro- dutividade têm vindo a desacelerar de forma consistente na Europa, no Japão e nos Estados Unidos desde o início da década de 80". O problema, porém, está longe de ser apenas económico, havendo o risco de uma verdadeira convulsão cultural. Ao mesmo tempo que a população europeia vai encolher, em África deverá disparar, com um crescimento de 1,3 mil milhões de habitantes nas próximas três décadas, dos quais 130 milhões no Norte de África. "A pressão migratória sobre a Europa será maior do que nunca. Haverá um choque demográfico: uma implosão dentro da UE e uma explosão fora das suas fronteiras", vaticinam os investiga- dores, lamentando que as instituições europeias ajam como se este 'tsunami' não estivesse prestes a acontecer. Mesmo assim, Michel Godet consi- dera que ainda tempo para evitar o suicídio demográfico, através de uma aposta forte em políticas de família que promovam a natalidade. "Se os países europeus conseguissem aumentar os nascimentos, isso faria com que tives- sem menos necessidade de ir buscar população estrangeira e mais facilidade

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Page 1: UE milhões até vai disparar, com risco convulsão social ...€¦ · turcos ou asiáticos, por exemplo, que são encarados como uma ameaça", ex-plica o investigador. Se isso acontecer,

Projeção UE perderá 50 milhões detrabalhadores até 2050. Imigração vaidisparar, com risco de convulsão social

Europaa caminhodo "suicídiodemográfico"

POPULAÇÃO

Texto JOANA PEREIRA BASTOSe RAQUEL ALBUQUERQUE

Infografia SOFIA MIGUEL ROSA

m nenhum país da UniãoEuropeia (UE) o númerode nascimentos é sufi-ciente para assegurar arenovação das geraçõese na grande maioria dosEstados-membros há vá-rios anos que já se fabri-cam mais caixões do que

se montam berços. Com a populaçãoem declínio, o Velho Continente, cadavez mais envelhecido, perderá 50 mi-lhões de habitantes em idade ativa até2050. As projeções não deixam dúvidas:a Europa caminha para um "suicídio de-

mográfico", avisam dois investigadoresda Fundação Robert Schuman, um dosmais importantes centros de estudossobre a UE. Apesar do cenário ser alar-mante, "ninguém na Europa fala deste

problema e menos ainda se prepara paraele", acusam, num artigo publicado estasemana.

Em entrevista ao Expresso, o econo-mista Michel Godet, coautor do artigo,explica que "não há consciência da di-mensão deste problema" (ver páginaao lado). Mas apesar de não constar daagenda política, a demografia tem umforte impacto na economia: o crescimen-to do PIB é mais baixo nos países onde o

aumento de população é menor (ver grá-fico). A verdade é que o envelhecimentofará diminuir para metade o potencial decrescimento económico da Europa até2040. E a tecnologia não será suficiente

para o contrariar. A prova é que, "apesarde todos os avanços tecnológicos, tantoo crescimento económico como a pro-dutividade têm vindo a desacelerar deforma consistente na Europa, no Japãoe nos Estados Unidos desde o início dadécada de 80".

O problema, porém, está longe de ser

apenas económico, havendo o risco deuma verdadeira convulsão cultural. Aomesmo tempo que a população europeiavai encolher, em África deverá disparar,com um crescimento de 1,3 mil milhõesde habitantes nas próximas três décadas,dos quais 130 milhões só no Norte deÁfrica. "A pressão migratória sobre aEuropa será maior do que nunca. Haveráum choque demográfico: uma implosãodentro da UE e uma explosão fora dassuas fronteiras", vaticinam os investiga-dores, lamentando que as instituiçõeseuropeias ajam como se este 'tsunami'não estivesse prestes a acontecer.

Mesmo assim, Michel Godet consi-dera que ainda há tempo para evitar o

suicídio demográfico, através de umaaposta forte em políticas de família quepromovam a natalidade. "Se os paíseseuropeus conseguissem aumentar os

nascimentos, isso faria com que tives-sem menos necessidade de ir buscarpopulação estrangeira e mais facilidade

Page 2: UE milhões até vai disparar, com risco convulsão social ...€¦ · turcos ou asiáticos, por exemplo, que são encarados como uma ameaça", ex-plica o investigador. Se isso acontecer,

em integrá-la", diz ao Expresso.A Comissão Europeia admite a gravi-

dade do problema, mas apesar de reco-mendar alterações no mercado de tra-balho e nos sistemas de proteção social,explica que essas políticas competem acadaEstado-membro. Ao Expresso, fon-te da Comissão sublinha ainda que a imi-

gração poderá contribuir para absorvero impacto do declínio demográfico, em-bora reconheça que não seja suficiente.

A integração dos imigrantes é, preci-samente, um dos principais desafios daEuropa, que se tornará cada vez mais

premente, tendo em conta a dimensãoavassaladora do fluxo migratório pre-visto para as próximas décadas. "Sevirmos como a frágil União Europeiatremeu em 2015, quando um milhão de

refugiados entrou no continente, per-

cebemos que tem mesmo de começar a

preparar-se para esta situação", frisa o

artigo da Fundação Robert Schuman.

Portugal, o Alentejo da Europa

Há três anos, também Vítor Constâncio,vice-presidente do Banco Central Euro-

peu, defendeu que "a Europa tem feitouma espécie de suicídio demográficocoletivo" e que, sem a chegada de maisimigrantes, há "um entrave" ao cresci-mento económico e ao bem-estar dasfuturas gerações.

Se o problema é dramático a níveleuropeu, mais trágico ainda é em Por-tugal — o quinto país mais envelhecidodo mundo e o oitavo com menor índicede fecundidade à escala global. "Por-tugal junta a baixa natalidade à perdade população por via das migrações.Temos o pior dos mundos. Uma verda-deira tragédia demográfica", descreveJoão Peixoto, sociólogo e investigadordo Instituto Superior de Economia e

Gestão (ISEG).Segundo as projeções das Nações Uni-

das, o país deverá perder mais de 1,1milhões de habitantes nos próximos 30anos, mas o cenário poderá ser aindamais grave, caso haja um novo êxodo

dos portugueses. "Só a Alemanha iráperder cerca de 11 milhões de habitantesem idade ativa, tendo de ir buscar mãode obra fora das suas fronteiras. Vaitentar resolver esse problema atraindosobretudo os povos do Sul da Europa,nomeadamente os portugueses, porquesomos vistos como culturalmente mais

iguais e fáceis de integrar do que os

turcos ou asiáticos, por exemplo, quesão encarados como uma ameaça", ex-plica o investigador. Se isso acontecer, aemigração será tão forte que "Portugalpoderá transformar-se numa periferiasemidesertificada, uma espécie de Alen-

tejo da Europa", avisa.

Jorge Malheiros, investigador do Cen-tro de Estudos Demográficos da Uni-versidade de Lisboa, vai mais longe: "A'drenagem' de trabalhadores portugue-ses, sobretudo qualificados, por parteda Alemanha é um risco muito sério.Haverá um êxodo muito grande dos paí-ses periféricos — Portugal, Espanha, Sulde Itália, Bulgária, Roménia, algumaszonas da Polónia — para o velho cora-ção da Europa, nomeadamente para aAlemanha, França ou Bélgica. Grandescidades como Lisboa, Madrid ou Bar-celona vão ficar como uma espécie deilhas de gente no meio de grandes áreas

despovoadas e envelhecidas."Enquanto Portugal mantiver uma po-

lítica de baixos salários e uma das maisaltas taxas de trabalhadores precáriosda União Europeia será impossível retera população, evitando que seja "sugada"para colmatar a falta de trabalhadoresnoutros países, garante Jorge Malheiros.

A nível europeu, o investigador de-fende que a solução tem de passar peladefinição de uma política de apoio ànatalidade que se torne prioritária naagenda política. Mas isso não chega,ressalva. "É irrealista pensar que as

pessoas vão voltar a ter quatro ou cincofilhos. Por isso, é preciso criar uma po-lítica europeia de migrações."

Perante a falta de mão de obra, os

imigrantes serão cada vez mais neces-sários e será inevitável ir buscá-los aregiões do globo onde os valores sãomuito distintos dos europeus. O pro-blema é que, "quando há quebra de-mográfica e recessão, como tem sido o

caso da Europa, a imigração não é vistacomo um ativo, mas encarada comouma ameaça, o que tem feito crescera extrema-direita e os nacionalismos",explica o sociólogo João Peixoto, doISEG. Daí que pela frente tenhamos"um cenário assustador, que misturasuicídio demográfico com xenofobia".

A integração de pessoas com valoresculturais muito diferentes é, por isso,um dos maiores desafios da Europa."É preciso olhar para tudo o que foifeito de errado a este nível nas últimasdécadas, como a criação de bairros que

se transformam em guetos, para seguir-mos outro caminho", diz o especialistaem migrações. Mas uma coisa é certa,avisa: "Se fecharmos a porta aos es-

trangeiros, suicidamo-nos ainda maisrapidamente."

[email protected]

"LISBOA, MADRIDOU BARCELONAVÃO FICAR UMAESPÉCIE DE ILHASDE GENTE NO MEIODE GRANDES ÁREASDESPOVOADASE ENVELHECIDAS"CINCO PERGUNTAS A

Michel GodetEconomista e membro do conselhocientífico da Fu ndação Robert Sch uman

? Quais são as consequênciasdo suicídio demográfico?? Há consequências económicas,

tanto sobre a produção comosobre a capacidade de manter aeconomia e as exportações. Passa

a haver pouca mão de obra e é

preciso recrutar trabalhadoresestrangeiros. O que se prevê é queos países do Norte de África tenhammais 130 milhões de habitantesaté 2050 e isso vai aumentar osfluxos migratórios para a Europa.Por isso, é preciso encorajar umaumento dos nascimentos entre os

europeus que garanta um mínimode vitalidade demográfica nestes

países, para serem capazes de

integrar mais imigrantes.? Como se faz a integração demilhões de pessoas com valoresdiferentes dos dos europeus?? A questão põe-se de maneiradiferente de país para país.Portugal, por exemplo, conseguiufazê-lo melhor do que outros,porque tinha a tradição dasex-colónias e de ligações entreportugueses e africanos. Já naGrã-Bretanha acreditaram quedeviam criar comunidades, tendoum quarteirão só com indianos ou

outro só com africanos. Hoje está

provado que isso cria problemas. É

preciso saber integrar as pessoas e

o fator de integração é a criança que

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já nasce no país, aprende a língua,a cultura e frequenta a escola.Por isso, é preciso ter o máximode crianças a nascer nos países

europeus. Depois, a questão passatambém por repartir a populaçãono território e mudar a forma comoé feito o reagrupamento familiar.Não é uma questão de limitar onúmero de pessoas, mas sim de asfazer vir em condições em que aintegração seja possível.

? Com a pressão migratória, hárisco de um choque cultural?? Se 1% do aumento da populaçãoafricana se fixasse em Françaaté 2050, a população francesaduplicaria, o que criaria umarejeição porque o país se sentiriainvadido. É como se em Itália se

deixasse de comer piza e massa

para se começar a comer arroz.É uma mudança alargada, não só

religiosa ou cultural.

? A que se deve o silêncio da UEsobre este assunto?? Acho que não há consciência da

dimensão do problema. O assuntonão está no centro da discussão.Foi abordado nas cimeiraseuropeias em 2004, mas a crise

pôs os assuntos económicos decurto prazo à frente dos temasdemográficos de longo prazo. Fala-se de energia e de tecnologia, masnão de demografia.

? Diz que ainda há tempo paraevitar o "suicídio". Como?? A solução passa por apostar nas

políticas de família e aumentar afecundidade. Se os países europeusconseguissem aumentar osnascimentos, isso faria com que

tivessem menos necessidade deir buscar população estrangeira e

mais facilidade em integrá-la. Paraisso é preciso ter uma política quepermita às pessoas ter o númerode filhos que desejam sem baixaro nível de vida. Por outro lado, osistema fiscal em todos os paíseseuropeus é individualizado e nãoé pensado para o casal. Ou seja, é

feita uma política social, em vez deuma política de família. França foi

um bom exemplo, mas há três anos

que a fecundidade está a baixar

porque foram cortados apoiose benefícios fiscais às famílias.Além desta vertente, é precisointegrar melhor os estrangeirosque já estão na Europa e percebero papel da escola na integração. Éna escola que se faz a mistura quecria a tolerância.

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