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Genética Genética N o registro civil, no campo referente ao pai, não está escrito o nome de nin- guém. O incômodo que esta situação pode gerar é sentido por milhares de pessoas em todo o Brasil. Mas em Araraquara, na Unesp, cientistas da Faculdade de Ciências Farma- cêuticas não apenas ajudam estas pessoas a encontrarem os seus pais biológicos como tam- bém estão desenvolvendo a genética forense. Campo da ciência importante não apenas em pesquisas sobre paternidade, mas também na elucidação de crimes, inclusive os que envol- vem questões sexuais. Em um mutirão realizado em parceria com a Defensoria Pública do Estado de São Pau- lo, em agosto, na Assembleia Legislativa de São Paulo, na capital paulista, os casos de 70 famílias foram elucidados por meio das aná- lises feitas pelo grupo de genética forense de Araraquara. A identificação do pai biológico, muitas vezes pedida à Justiça pela mãe bio- lógica da criança, é importante em caso de determinação de pagamento de pensão, por exemplo. As famílias que tiveram acesso aos testes, por meio da ação dos defensores pú- blicos paulistas, tinham uma renda mensal de até três salários mínimos. “Foram emitidos 70 laudos no mutirão na Assembleia. Como a presença é voluntária, existe normalmente uma porcentagem de 30% de ausentes”, afirma a professora Regina Cicarelli, coordenadora do grupo de genética forense da Unesp de Araraquara. O convênio assinado entre a Unesp e a Defensoria Pública de São Paulo estabelece a elaboração de 78 laudos por mês. Desde o início do acordo, em 2015, foram emitidos 1.674 laudos de paternidade. Crianças que, a partir dos testes genéticos, passam agora a ter o nome do pai em seus registros ou até um novo sobrenome. Além do mutirão da capital do Estado, ocor- reram mais dois. Um na região de São José do Rio Preto e outro, em Jacareí. O convênio continua até 2020. De acordo com Regina, este é um trabalho importante, porque uma tecnologia de ponta está sendo usada para fins sociais. CONCILIAÇÃO E DEMANDA GRANDE No dia a dia, os pedidos para os testes de pa- ternidade surgem a partir das audiências de conciliação feitas na região de Araraquara. O objetivo do encontro, segundo a Defensoria, é fazer com que as famílias já saiam da sala de audiência com dia e hora marcados para a coleta. Além da questão jurídica resolvida. Como, por exemplo, a quantia de uma even- tual pensão alimentícia, o sistema de guarda, os horários das visitas e, se for o caso, o novo nome da criança. O ordenamento jurídico brasileiro assegura a todas as pessoas os direitos da personalidade, para que se efetive o Princípio da Dignidade da pessoa humana. Das demandas jurídicas que transitam nas Varas de Família, a in- vestigação de paternidade é a que apresenta ACORDO DO LABORATÓRIO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DA UNESP COM A DEFENSORIA PÚBLICA JÁ EMITIU 1.674 LAUDOS DE PATERNIDADE EM VÁRIAS REGIÕES DO ESTADO Técnicas modernas da genética chegam às crianças que desconhecem o pai 6 EDUARDO GERAQUE UNESPCIÊNCIA | DEZEMBRO 2018 7 DEZEMBRO 2018 | UNESPCIÊNCIA

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GenéticaGenética

N o registro civil, no campo referente ao pai, não está escrito o nome de nin-

guém. O incômodo que esta situação pode gerar é sentido por milhares de pessoas em todo o Brasil. Mas em Araraquara, na Unesp, cientistas da Faculdade de Ciências Farma-cêuticas não apenas ajudam estas pessoas a encontrarem os seus pais biológicos como tam-bém estão desenvolvendo a genética forense. Campo da ciência importante não apenas em pesquisas sobre paternidade, mas também na elucidação de crimes, inclusive os que envol-vem questões sexuais.

Em um mutirão realizado em parceria com a Defensoria Pública do Estado de São Pau-lo, em agosto, na Assembleia Legislativa de São Paulo, na capital paulista, os casos de 70 famílias foram elucidados por meio das aná-lises feitas pelo grupo de genética forense de Araraquara. A identificação do pai biológico,

muitas vezes pedida à Justiça pela mãe bio-lógica da criança, é importante em caso de determinação de pagamento de pensão, por exemplo. As famílias que tiveram acesso aos testes, por meio da ação dos defensores pú-blicos paulistas, tinham uma renda mensal de até três salários mínimos.

“Foram emitidos 70 laudos no mutirão na Assembleia. Como a presença é voluntária, existe normalmente uma porcentagem de 30% de ausentes”, afirma a professora Regina Cicarelli, coordenadora do grupo de genética forense da Unesp de Araraquara.

O convênio assinado entre a Unesp e a Defensoria Pública de São Paulo estabelece a elaboração de 78 laudos por mês. Desde o início do acordo, em 2015, foram emitidos 1.674 laudos de paternidade. Crianças que, a partir dos testes genéticos, passam agora a ter o nome do pai em seus registros ou até um novo sobrenome.

Além do mutirão da capital do Estado, ocor-reram mais dois. Um na região de São José do Rio Preto e outro, em Jacareí. O convênio continua até 2020. De acordo com Regina, este é um trabalho importante, porque uma tecnologia de ponta está sendo usada para fins sociais.

CoNCiliação e demaNda GraNdeNo dia a dia, os pedidos para os testes de pa-ternidade surgem a partir das audiências de conciliação feitas na região de Araraquara. O objetivo do encontro, segundo a Defensoria, é fazer com que as famílias já saiam da sala de audiência com dia e hora marcados para a coleta. Além da questão jurídica resolvida. Como, por exemplo, a quantia de uma even-tual pensão alimentícia, o sistema de guarda, os horários das visitas e, se for o caso, o novo nome da criança.

O ordenamento jurídico brasileiro assegura a todas as pessoas os direitos da personalidade, para que se efetive o Princípio da Dignidade da pessoa humana. Das demandas jurídicas que transitam nas Varas de Família, a in-vestigação de paternidade é a que apresenta

aCordo do laboratório de iNvestiGação de PaterNidade da UNesP Com a defeNsoria PúbliCa já emitiU 1.674 laUdos de PaterNidade em várias reGiões do estado

Técnicas modernas da genética chegam às crianças que desconhecem o pai

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UnespCiênCia | dezembro 2018 7dezembro 2018 | UnespCiênCia

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maiores dificuldades em termos de geração de prova, segundo estudos sobre o tema. Mas a evolução das análises genéticas ajudou bas-tante o campo do Direito.

O Código Civil de 2002, de forma indire-ta, começou a dar uma importância inédita à prova de paternidade por meio de exame de DNA. Hoje, neste campo, as leis estão con-solidadas. A recusa do suposto pai de fazer o exame, na prática, significa que ele está as-sumindo a paternidade da criança.

No Brasil, o contingente de menores de idade que não têm o nome de seus pais bio-lógicos nas certidões é enorme. Em 2015, segundo o relatório Pai Presente e Certidões, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 5,5 milhões de crianças em todo o país não tinham o registro do pai na certidão de nascimento. O estudo teve como base os dados do Censo Escolar de 2011.

Outro levantamento, mas feito pela Secre-taria de Educação do Estado de São Paulo, identificou que por volta de 8% dos estudan-tes matriculados no ensino fundamental es-tão registrados apenas com o nome da mãe.

A demanda pelas análises genéticas é gran-de. Mesmo pessoas adultas, que muitas ve-zes têm a chamada paternidade socioafetiva – ou seja, existe a relação, reconhecida pela lei, com um pai, mas ele não é o pai biológi-co – têm curiosidade de procurar pela figura paterna sanguínea.

Um dos tipos de testes genéticos que po-dem ser feitos pelas técnicas e equipamentos disponíveis em Araraquara é a reconstrução do perfil genético do suposto pai, mesmo que esta pessoa esteja morta. Neste caso, além das amostras sanguíneas do filho ou da fi-lha, e da mãe, serão coletadas e analisadas amostras de sangue de familiares da pessoa que morreu. Como os pais, irmãos ou filhos do suposto pai. Quanto maior for o número de pessoas analisadas geneticamente mais conclusivo será o resultado.

“Temos até um trabalho de pós-doutorado, na área de Direito, que tem como objetivo buscar sensibilizar os juízes para utilizarem os

dados destes testes de reconstrução em seus julgamentos em vez de pedirem a exumação”, diz Regina Cicarelli.

Há casos, segundo a bióloga, em que mui-tos fêmures são exumados para um único pro-cesso em que se pretende identificar um pai. “É possível fazer os testes sem o cadáver. A metodologia de reconstrução, que é bastante segura, tem um custo menor que o da exu-mação”, afirma a cientista.

O fato de muitos cemitérios do país estarem com a manutenção ruim dificulta, inclusive, a localização exata dos restos mortais de uma determinada pessoa. Muitas vezes, em túmu-los antigos, espalhados por várias necrópoles do país, o material usado nas análises nem chega a ser encontrado.

Pelos testes disponíveis hoje, os índices de acerto, no caso da análise ser realmente do pai biológico, é de quase 100%. “Quando não

é. Ou seja, os testes excluem a relação gené-tica entre o filho e o suposto pai, a afirmação equivale a 100% de certeza”, afirma Regina.

Mas a genética também permite que o su-posto pai seja identificado, mesmo sem a mãe, quando ela estiver ausente ou morta. Neste caso, o exame pode ser realizado com alta precisão por meio da análise das amostras sanguíneas da criança e do suposto pai dela.

laboratórioAlém dos mutirões feitos em convênio com a Defensora Pública de São Paulo, o Laborató-rio de Investigação de Paternidade da Unesp também atende pessoas particulares, que podem pagar pelo serviço em Araraquara. O exame particular de DNA simples, sem ser via ação judicial, custa R$ 1.000. No caso da reconstrução do perfil genético, os valores dependem do número de envolvidos na perí-

trabalho de reCoNstrUção do Perfil GeNétiCo ajUda a redUzir o CUsto Na bUsCa do sUPosto Pai e evita exUmar Cadáveres

Acima, professora Regina Cicarelli, coordenadora do grupo de genética forense da Unesp de Araraquara.

Ao lado, 1 coleta do sangue, por meio de um pequeno furo na ponta do dedo, 2 3 4 e o Laboratório

de Investigação de Paternidade da Unesp, onde são realizados os testes de DNA.

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cia. Em todos os casos, o sigilo é garantido.A coleta do sangue, por meio de um pe-

queno furo na ponta do dedo, e as análises quase sempre conclusivas do DNA humano, ocorrem em Araraquara desde 2001, quan-do surgiu o Laboratório de Investigação de Paternidade. Atualmente, os laudos sobre as relações genéticas entre as amostras analisa-das demoram por volta de 20 dias para fica-rem prontos. “A coleta é de sangue. Nada de fio de cabelo ou bituca de cigarro, como se vê de vez em quando na televisão”, afirma a professora da Unesp.

Os resultados sociais apresentados pelo grupo forense da Unesp de Araraquara estão embasados em muito conhecimento científi-co, acumulado em todo o mundo nas últimas décadas, desde que as técnicas de manipu-lação e estudo de DNA começaram a ficar mais robustas. A agora famosa forma da es-trutura dimensional da molécula de DNA, a dupla hélice, foi publicada pela primeira vez

na revista Nature em 25 de abril de 1953. Francis Crick (1916-2004), James Watson (1928) e Maurice Wilkins (1916-2004), que trabalhavam na época em Cambridge, no Reino Unido, formavam o trio que assinou o trabalho científico. Se a descoberta abriu caminho para o avanço gigantesco da biolo-gia molecular, o sequenciamento do genoma humano, em 2003, 50 anos depois da desco-berta da molécula do DNA, também abriu um novo campo científico para a genética.

Em Araraquara, as várias pesquisas em curso no Laboratório de Investigação de Pa-ternidade envolvem questões importantes da área de genética de populações. Estudar os cromossomos X e Y, como também a frequên-cia dos genes alelos (variação específica de um mesmo gene) é muito importante para caracterizar uma determinada população.

“Nossos estudos ajudam, por exemplo, na ampliação de dados estatísticos da população de Araraquara e região”, diz Regina Cicarelli.

O estudo do DNA mitocondrial, uma mo-lécula circular presente na mitocôndria, orga-nela responsável pela respiração e produção de energia da célula, também é muito importante tanto para a genética de populações quanto para análise forense. Este DNA é herdado exclusivamente por via materna e a altera-ção desta molécula permite diferenciar os indivíduos. Como alguns conjuntos de alelos podem ser transmitidos em blocos de indiví-duos para indivíduos, o que se convencionou chamar de haplótipos, quanto mais os banco de dados com estes grupos de alelos forem alimentados, melhor vai ser para caracterizar uma certa população de indivíduos.

Análises feitas por cientistas da Unesp em Araraquara com um conjunto destes haplótipos identificados na literatura científica mostram, por exemplo, assim como várias outras pesqui-sas genéticas e históricas, que as populações das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil tem predomínio de ancestralidade africana (44%).

Enquanto o Sul do país apresenta uma origem predominantemente europeia (68,4%). No caso da região Norte, os dados identificam existir uma ancestralidade de nativo-americanos (58,5%). Como as informações das regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste são escassas, aumentar os dados genéticos das populações é fundamental, segundo o estudo de mestrado orientado por Cicarelli.

Além de desvendar a ancestralidade de determinados grupos de indivíduos com ca-racterísticas genéticas semelhantes, o estu-do dos alelos e haplótipos também permite entender o mecanismo hereditário de várias doenças ligadas aos genes.

De acordo com Regina Cicarelli, os es-tudos de sequenciamento massivo são mui-to importantes também para a evolução das metodologias de manipulação do DNA nas bancadas dos laboratórios. Ter protocolos de análise cada vez mais eficazes torna os resul-tados bem mais confiáveis.

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