tugendhat- o que é filosofia

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O que é filosofia? 1 Ernst Tugendhat I Apesar de todas as dúvidas quanto à possibilidade de se chegar a um acordo relativo a um conceito unitário de filosofia, devo agora fazer uma tentativa de esboçar o que se quer dizer com esta palavra. É inevitável que nem todos possam se pôr de acordo acerca do mesmo. O critério decisivo deve ser aqui que o máximo possível do que historicamente se considerou filosofia caia sob tal conceito. O que é então filosofia? Talvez a maneira menos capciosa possível de proceder consista em partir de algumas determinações do conceito de filosofia fornecidas por reconhecidamente grandes filósofos. Uma maneira muito concisa de fazê-lo encontramos em Husserl (Meditações Cartesianas): a filosofia é designada como uma “ciência universal a partir de uma fundamentação absoluta”. Uma determinação semelhante encontramos em Hegel no começo de sua Enciclopédia, embora em Hegel tanto o conceito de universalidade quanto o de fundamentação absoluta sejam entendidos de forma bastante diferente de Husserl. Faz perfeitamente sentido deixar a princípio os conceitos que ocorrem em tal determinação um tanto 1 O presente artigo corresponde às duas primeiras aulas do curso “Vorlesungen über Methode der Philosophie” ministrado pelo Prof. E. Tugendhat na Universidade Livre de Berlim em 1982. O texto é inédito e a tradução do alemão para o português, de responsabilidade de Maria Clara Dias, foi feita a partir do manuscrito, não revisado, cedido pelo autor. – In: M. C. Dias (org.), O que é filosofia? Ouro Preto: IFAC/UFOP, 1996, p. 7-33. quanto vagos. O importante é o seguinte: tanto Husserl como Hegel entendem a filosofia, primeiro, como ciência (este, pois, é o conceito superior), e, em seguida, distinguem-na das demais ciências quanto (1) ao conteúdo e (2) ao método. Quanto ao conteúdo: ela é, como diz Husserl, universal; de algum modo ela visa o todo. Quanto ao método: o ponto de vista da fundamentação é radicalizado. Se voltarmos bem atrás na história, até Platão e Aristóteles, encontraremos em Aristóteles, nos dois primeiros capítulos da Metafísica, uma determinação bastante semelhante: uma ciência mais alta que as demais e, [8] isso deve significar uma ciência que contenha na mais alta medida as propriedades características das ciências: universalidade e fundamentação. Façamos, contudo, mais uma amostragem: Kant. Aqui as coisas ficam um pouco mais complicadas. Kant faz, na Crítica da Razão Pura (B 866), uma distinção entre um “conceito da escola” (Schulbegriff) e um “conceito do mundo” (Weltbegriff) de filosofia. O “conceito da escola” diz: a filosofia é “o sistema (...) dos conhecimentos racionais a partir de conceitos”. O que isso deve significar não é, sem mais, compreensível. Devo retornar a esse tema na próxima seção. De todo o modo, Kant quer com isso caracterizar o lado metódico da filosofia, acerca do qual até aqui ouvimos dizer que está de uma forma especial voltado para a fundamentação. No que diz respeito ao chamado conceito do mundo, Kant esclarece que entende por essa expressão “o que interessa necessariamente a todos”. Com base nessa elucidação ele diz que a filosofia, segundo o “conceito do mundo”, é a “ciência dos fins últimos da razão humana”. Ao invés dos fins últimos da razão humana, Kant poderia também simplesmente ter falado dos fins

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O que é filosofia?1

Ernst Tugendhat

I Apesar de todas as dúvidas quanto à possibilidade

de se chegar a um acordo relativo a um conceito unitário de filosofia, devo agora fazer uma tentativa de esboçar o que se quer dizer com esta palavra. É inevitável que nem todos possam se pôr de acordo acerca do mesmo. O critério decisivo deve ser aqui que o máximo possível do que historicamente se considerou filosofia caia sob tal conceito. O que é então filosofia?

Talvez a maneira menos capciosa possível de proceder consista em partir de algumas determinações do conceito de filosofia fornecidas por reconhecidamente grandes filósofos. Uma maneira muito concisa de fazê-lo encontramos em Husserl (Meditações Cartesianas): a filosofia é designada como uma “ciência universal a partir de uma fundamentação absoluta”. Uma determinação semelhante encontramos em Hegel no começo de sua Enciclopédia, embora em Hegel tanto o conceito de universalidade quanto o de fundamentação absoluta sejam entendidos de forma bastante diferente de Husserl. Faz perfeitamente sentido deixar a princípio os conceitos que ocorrem em tal determinação um tanto 1 O presente artigo corresponde às duas primeiras aulas do curso “Vorlesungen über Methode der Philosophie” ministrado pelo Prof. E. Tugendhat na Universidade Livre de Berlim em 1982. O texto é inédito e a tradução do alemão para o português, de responsabilidade de Maria Clara Dias, foi feita a partir do manuscrito, não revisado, cedido pelo autor. – In: M. C. Dias (org.), O que é filosofia? Ouro Preto: IFAC/UFOP, 1996, p. 7-33.

quanto vagos. O importante é o seguinte: tanto Husserl como Hegel entendem a filosofia, primeiro, como ciência (este, pois, é o conceito superior), e, em seguida, distinguem-na das demais ciências quanto (1) ao conteúdo e (2) ao método. Quanto ao conteúdo: ela é, como diz Husserl, universal; de algum modo ela visa o todo. Quanto ao método: o ponto de vista da fundamentação é radicalizado.

Se voltarmos bem atrás na história, até Platão e Aristóteles, encontraremos em Aristóteles, nos dois primeiros capítulos da Metafísica, uma determinação bastante semelhante: uma ciência mais alta que as demais e, [8] isso deve significar uma ciência que contenha na mais alta medida as propriedades características das ciências: universalidade e fundamentação.

Façamos, contudo, mais uma amostragem: Kant. Aqui as coisas ficam um pouco mais complicadas. Kant faz, na Crítica da Razão Pura (B 866), uma distinção entre um “conceito da escola” (Schulbegriff) e um “conceito do mundo” (Weltbegriff) de filosofia. O “conceito da escola” diz: a filosofia é “o sistema (...) dos conhecimentos racionais a partir de conceitos”. O que isso deve significar não é, sem mais, compreensível. Devo retornar a esse tema na próxima seção. De todo o modo, Kant quer com isso caracterizar o lado metódico da filosofia, acerca do qual até aqui ouvimos dizer que está de uma forma especial voltado para a fundamentação. No que diz respeito ao chamado conceito do mundo, Kant esclarece que entende por essa expressão “o que interessa necessariamente a todos”. Com base nessa elucidação ele diz que a filosofia, segundo o “conceito do mundo”, é a “ciência dos fins últimos da razão humana”. Ao invés dos fins últimos da razão humana, Kant poderia também simplesmente ter falado dos fins

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últimos do ser humano, e o que ele considerava como fins últimos poderia ser compreendido sob o título da felicidade e da moral, e estes últimos, por sua vez, poderiam ser colocados o sob o título do bem. A filosofia de acordo com o conceito do mundo refere-se, portanto, àquilo que é bom para nós; ela é agora distinguida das outras ciências na medida em que estas, em termos práticos, podem apenas fornecer o meio para um fim dado, ao passo que certamente podemos também ter em vista algo como um saber acerca daquilo que é bom para nós, não enquanto meio, mas como fim. O que Kant tem em vista aqui como tema da filosofia é algo que pode ser também descrito, no jargão atual, como a questão acerca do sentido da vida. Com a expressão “o sentido da vida” se quer dizer aproximadamente também o que podemos descrever como o seu fim ou finalidade (Zweck). Kant faz referência aqui explicitamente também ao significado corrente da palavra filosofia, segundo o qual descrevemos como filósofo alguém que sabe viver corretamente, e isso quer dizer também: alguém que é capaz de aconselhar corretamente, pois isso pressupõe: alguém que saiba o que é bom. Kant retoma com isso explicitamente um sentido que a palavra “sophia” já possuía com os gregos.

Como se relaciona, então, essa determinação do tema da filosofia com a que encontramos anteriormente em Husserl, Hegel e Aristóteles, aquela, portanto, segundo a qual a filosofia deve, de alguma maneira, visar o todo? Para Husserl e Hegel o bem também pertence essencialmente a esse todo. E também Aristóteles reflete explicitamente, no começo da Metafísica, sobre o fato de que o bem também deve pertencer enquanto princípio (Grund) supremo do agir aos princípios supremos. Poder-se-ia, pois, dizer: a [9] caracterização kantiana apenas torna explícito o que os

grandes filósofos também sempre tiveram em vista em suas auto-reflexões, e poderíamos exprimir isso da seguinte maneira: se a filosofia, distintamente das outras ciências, deve visar o todo, então por esse todo já se tem sempre em vista o todo entendido em termos práticos, de nossa autocompreensão e de nossa compreensão do mundo. Poder-se-ia, portanto, entender o “conceito do mundo” de filosofia em Kant como tendo o objetivo particular de lembrar que, ao se falar aqui do todo, ou, como em Aristóteles, do mais universal, não se deve entendê-lo em termos simplesmente teoréticos - como seria o caso se falássemos do mundo como o domínio total das experiências teóricas - mas, sim, precisamente também em termos práticos. Também em termos práticos ou, quem sabe, até mesmo em termos primeiramente (primär) práticos? Para Kant havia um primado do prático. O mesmo já ocorria também para Platão, que foi o ponto de partida de Aristóteles. Aquele saber especial que é almejado pela filosofia e que não é um saber de uma ciência particular é, para Platão, não apenas também, mas, sobretudo, referido ao bem.

O que se segue de tudo isso para o conceito de filosofia? O mais razoável, parece-me aqui, é admitir a indicação de Wittgenstein de que muitos conceitos devem ser compreendidos no sentido das “semelhanças de família”. Como exemplo Wittgenstein toma o conceito de “jogo”. É necessário que todos os jogos possuam algo em comum? Ele responde: não:

“Vemos uma complicada rede de semelhanças que se envolvem e se cruzam... Não posso caracterizar melhor tais semelhanças do que através da expressão ‘semelhança de família’; pois assim se envolvem e cruzam as diversas semelhanças que existem entre os membros de uma família: estatura, traços fisionômicos,

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cor de olhos, o andar, o temperamento etc. - E digo: os “jogos” formam uma família. E do mesmo modo, as espécies de número, por exemplo, formam uma família. Por que chamamos algo de “número”? Ora, talvez porque tenha um parentesco - direto - com muitas coisas que até agora foram chamadas de número; por isso, pode-se dizer, essa coisa adquire um parentesco indireto com outras que chamamos também assim. E estendemos nosso conceito de número do mesmo modo que, para tecer um fio, torcemos fibra por fibra. E a robustez do fio não está no fato de que uma fibra o percorre em toda sua longitude, mas sim em que muitas fibras estão trançadas umas com as outras.”2

Também acerca das diversas concepções de filosofia

pode-se dizer que elas constituem uma família. Vocês poderiam temer que isso nos conduza a uma imprecisão, mas não é o caso. Devemos considerar os conceitos de [10] filosofia como uma família de conceitos, porque caso contrário, dogmaticamente, não poderíamos mais designar como filosofia o que várias pessoas designam como tal. Naturalmente não queremos também ter um conceito indeterminado de filosofia, que abarque todo o possível e assim também oculte possíveis encruzilhadas. O que importa é antes tornar clara a relação das diferentes concepções entre si. A maneira mais simples de apresentar as coisas é como se tivéssemos diante de nós um mapa no qual inscrevemos determinadas províncias que se recobrem parcialmente. Ao invés de falar, como Wittgenstein, de fibras, falarei pois em regiões. Ao continente, por assim dizer, no qual tudo se passa, chamarei saber. Todas as caracterizações fornecidas até agora concordam que a filosofia seja um determinado saber, ou melhor, a aspiração a um

2 L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 66/7.

determinado saber. Mas existem naturalmente diferentes formas de saber e de ciências que não são descritas como filosóficas. O que, então, há de privilegiar a filosofia no domínio do saber? Para isso acabamos de ver três determinações: (1) que o saber se refira de algum modo ao todo ou que seja especialmente geral, universal; (2) que se trate de um modo privilegiado de fundamentação; (3) que o saber se refira ao bem. Do modo como o conceito de filosofia é introduzido em Husserl e Hegel e já também em Aristóteles, não precisaríamos falar aqui em semelhanças de família. Ao contrário, nesses filósofos as duas regiões do saber universal e do saber privilegiadamente fundamentado coincidem e compreendem, como uma sub-região, a do bem. Mas se agora, de acordo com Kant e Platão, o saber do bem deve ser a determinação primária, surge aqui então um ponto central que não aparece na elucidação precedente. Podemos, então, prosseguir e, sem rodeios, separar as regiões que até aqui, em larga medida, ainda coincidiam. É, por exemplo, plausível deixar que se recubram a região do saber universal e a da fundamentação privilegiada? Tomemos como exemplo uma concepção de filosofia como a de Heidegger. Para ele a questão fundamental da filosofia é a questão do ser, isto condiz com o modelo visto até agora, na medida em que o ser já é também, segundo Aristóteles, o mais universal. Por outro lado, Heidegger abandonou a idéia de uma fundamentação absoluta. Só podemos, portanto, inscrever sua concepção em nosso mapa, se as regiões da universalidade e a da fundamentação privilegiada não estiverem mais simplesmente sobrepostas. Do mesmo modo, podemos agora também levar em conta a possibilidade de que alguém assuma uma concepção de filosofia que se refira ao bem, mas que não esteja necessariamente associada nem a uma orientação para o

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todo, nem para uma fundamentação privilegiada. Naturalmente todo filósofo que entenda sua

concepção de filosofia, seja mais estreitamente, como indicado ou de uma outra maneira qualquer, seja mais amplamente, tem razões para tais delimitações. Dessas razões não tratarei agora. [11] Contento-me simplesmente em apresentar o ponto de partida para a produção de um mapa que fixe o teor descritivo de cada determinação conceitual em sua relação com as demais, de tal sorte que as partes possam, antes de mais nada, chegar a um acordo acerca do conteúdo de suas concepções.

Coloca-se agora a questão se devemos separar ainda mais os resultados até agora obtidos. Tudo o que obtivemos até agora repousa sobre o pressuposto de que se trate sempre de um saber, ou melhor, de uma ciência. Não deveríamos, contudo, levar em conta a possibilidade de que existam também concepções de filosofia que não a consideram como uma ciência? Isto significaria, então, que não mais inscreveríamos todo o complexo de nossas três regiões parcialmente coincidentes no continente do saber, mas faríamos com que ele avançasse, em parte, para dentro do oceano que banha esse continente. Teríamos, assim, levado em conta a possibilidade de poder também chamar filosofia um empreendimento que estivesse de algum modo relacionado ao todo, ou ao bem, ou a ambos, porém não mais sob a forma do saber. Falar de uma fundamentação privilegiada fora da dimensão do saber não teria sentido algum, pois falar em fundamentação remete, com efeito, essencialmente a um saber ou opinar e isso, tal como é compreendido, seria, fora dessa região, desprovido de qualquer sentido. Resta, no entanto, a possibilidade de que ao menos duas das regiões até aqui mencionadas: a referência ao todo e a referência ao bem, não mais sejam entendidas como

saber. Mas o que positivamente significaria isto? Aqui uma referência a Hegel pode prosseguir nos

ajudando. Para Hegel três saberes se referem ao absoluto, logo, ao todo, quais sejam: a arte, a religião e a filosofia. A filosofia se distingue dos outros dois precisamente pelo fato de referir-se ao absoluto, no meio constituído pelo pensamento, ou precisamente pelo saber. Hegel tomou com isso uma decisão conceitual que não deixa o conceito de filosofia estender-se além do conceito de saber, mas que ao mesmo tempo implica que uma das regiões que deve ser igualmente definitória para o conceito de filosofia avance além da fronteira do saber para dentro do domínio da arte e da religião. “O que importa?” - poder-se-ia retrucar. “Vemos exatamente esse parentesco e podemos ao mesmo tempo estabelecer que só denominamos filosofia a relação ao todo quando ela se situa no meio constituído pelo saber ou pela opinião.” Devemos, contudo, estar preparados para a possibilidade de não haver um limite nítido entre as regiões que delimitamos mutuamente. Por que não deveríamos deixar aberta a possibilidade de uma filosofia poética ou uma filosofia religiosa, tanto mais que, de fato, têm ocorrido na história semelhantes criações? Para manter aberta a possibilidade dessas delimitações contidas nas concepções tradicionais de filosofia, devemos deixar aberto também um outro lado: é perfeitamente [12] pensável que não haja, o limite nítido, pressuposto nas determinações feitas até aqui entre a filosofia e as ciências particulares.3 Disso tratarei na seção seguinte. Mas, no que concerne agora à

3 A frase correspondente do manuscrito alemão é a seguinte: “es ist ja durchaus denkbar, dass es nicht die in den bisherigen Bestimmungen vorausgesetzte scharfe Grenze zwischen der Philosophie und den Einzelwissenschaften gibt” (nota do tradutor).

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fronteira com a religião e a arte, penso que existem fortes razões para não a deixar aberta. Em todo caso, é importante dar-se conta do que está em questão aqui.

A problemática no tocante à religião e à arte tem que ser tratada, sem dúvida alguma, separadamente. Começarei pela religião. A religião e o mito, por um lado, e filosofia, por outro, estão de fato muito próximo um do outro, mas exatamente por isso eles me parecem incompatíveis. Depois que todas as determinações conceituais que mencionei até aqui caíram de certo modo no vazio, não tendo ficado de modo algum visível por que se deva abraçar um empreendimento assim definido, denominado filosofia, esbarramos então com a questão da motivação, que também está ligada à gênese histórica da filosofia. Aquilo que denominamos filosofia e ao qual se referem as determinações conceituais mencionadas até agora surge, como se sabe, na Grécia dos séculos VI e V a.C., em um processo de emancipação a partir do mito e da religião. Como constitutivo do mito e da religião pode-se certamente considerar o que gostaria de designar como crença, sendo que entendo crença, não no sentido, que é na religião igualmente importante, de ter confiança,4 mas, sim, no sentido de um “tomar por verdadeiro”5 específico, a saber: um assentimento que não pode ser recolocado em questão.6 O “tomar algo por verdadeiro” é o que a crença e a ciência têm em comum e 4 No alemão há uma única palavra para designar crença e fé, a saber: Glaube. O que Tugendhat aqui designou como crença no sentido “de ter confiança” é o que em português designamos como fé. (N.tr). 5 Fürwahrhalten (literalmente: “tomar por verdadeiro”) é o termo correspondente em alemão para o termo latino assensus, em português: assentimento, a saber: o assentimento dado à pretensão de verdade erguida para uma proposição no juízo ou asserção. (N.tr.) 6 Nicht zu hinterfragend, literalmente: que não admite um questionamento regressivo. (N.tr)

o que distingue a ambas da arte. O critério lingüístico do “tomar algo por verdadeiro” é o fato de se exprimir em enunciados (Aussagesätze). Distinguimos enunciados de outras frases, como por exemplo, frases imperativas ou frases optativas, por estarem associados a uma pretensão de verdade. O suporte gramatical normal de uma frase declarativa é a chamada frase indicativa, uma frase através da qual dizemos: é assim e assim, e com cada um destes “é assim” exprime-se uma pretensão de verdade. Ora, é característico de um enunciado e do “tomar algo como verdade” nele expresso que possamos indagar por sua fundamentação, [13] ou legitimação. Isso está relacionado com a sua pretensão de verdade. A fundamentação é precisamente o que legitima a pretensão de verdade.

Com isso, chego a um complexo de problemas que ainda nos ocupará consideravelmente, em seus detalhes. Conforme a pessoa que toma algo por verdadeiro e profere um enunciado correspondente também possa fundamentá-lo suficientemente ou não, dizemos que a pessoa em questão não apenas opina, mas sobe o que toma por verdadeiro. Eu acho, por exemplo, que há um camundongo na cozinha. “Você acha apenas ou sabe disso?” podem retrucar. Eu posso então responder: “Bem, saber eu não sei, há apenas alguns indícios disso, e também que haja tais indícios, sei disso apenas por minha mulher, e ela pode ter mentido ou ter-se enganado.” Mas posso também responder: “Claro, eu mesmo vi o camundongo, não apenas acho, mas sei disso”. Neste caso a percepção é acrescentada como um fundamento. Ou eu posso dizer: “Embora não tenha visto o camundongo, os indícios deixam bem claro que não poderiam ser causados por nada senão um camundongo”; neste caso o fundamento é indireto, mas ao mesmo tempo suficiente, e eu direi: “É claro que não

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apenas acho isso, eu sei.” Esse estado de coisas fundamental pode ser descrito também dizendo que todo enunciado, segundo o seu sentido, pode ser verdadeiro ou falso, caso contrário não seria informativo. E ligado a isso está o fato de estar sempre envolto em uma aura de possíveis dúvidas. O que fazemos quando fundamentamos uma opinião ou uma proposição (Satz) é eliminar a dúvida, e por isso dizemos então que ao menos pensamos não poder mais duvidar, que estamos certos dela, que a sabemos.

Retornemos ‘então ao “tomar por verdade” especificamente religioso. Eu o caracterizei antes como crença. A palavra crença é ambígua. Algumas vezes a empregamos praticamente no mesmo sentido que opinar; eu poderia então ter dito: “Creio que há um camundongo em minha cozinha”. Mas quando falamos de uma crença religiosa não temos em mente apenas, como há pouco, uma opinião não suficientemente fundamentada, de tal sorte que ela, como em geral ocorre com as demais opiniões, nos convida a colocá-la em dúvida, mas, sim, uma opinião que em si poderia colocada em questão, mas acerca da qual não se admite dúvida. Nós nos fiamos nela como se já constituísse um saber, um saber baseado na autoridade. O que se crê neste sentido vale como fundamentado, porque é apresentado como verdadeiro por uma autoridade da qual não é lícito duvidar. Pode-se chamar a essas autoridades intangíveis de sagradas. O contraste de que precisamos aqui entre a religião e a filosofia não consiste em que a religião se refira a algo de divino; o contraste não reside no conteúdo daquilo que é tomado por verdadeiro, mas, sim, na maneira de tomar por verdadeiro. Quem toma determinadas coisas por verdadeiras porque foram transmitidas por uma tradição ou [14] revelação sagrada intangível comporta-se

religiosamente. Em contraposição, comporta-se filosoficamente, em face dos mesmos conteúdos, quem não aceita como fundamentação última a fundamentação oriunda de uma instância particular que diz ser assim, mas insiste em que este conteúdo (tanto quanto todos os outros que são afirmados como verdadeiros), quando não deve ser colocado em dúvida, deve poder ser fundamentado por nós mesmos. Esbarramos aqui na relação entre esclarecimento e emancipação que Kant destacou em seu pequeno escrito: O Que é Esclarecimento? Vocês talvez conheçam a famosa passagem com a qual o artigo começa:

“O esclarecimento é a saída das pessoas de sua menoridade, da qual é ele próprio culpado. A menoridade é a incapacidade de servir-se do entendimento sem o governo de outrem. O homem é o próprio culpado dessa menoridade quando a causa da mesma não está na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem para se servir do entendimento sem o governo de outrem. Sapere aude! Tem coragem de servir-te de teu próprio entendimento, é, pois, o lema do esclarecimento”.

Com o conceito de menoridade acertamos bem no

alvo o estado de coisas acima descrito. O conceito jurídico de menoridade segundo o qual as pessoas abaixo de uma determinada idade não são consideradas juridicamente capazes, necessitando de um tutor, remete para o conceito psicológico de menoridade utilizado por Kant, que é, portanto, suposto quando não consideramos que alguém tenha desenvolvido entendimento e capacidade de julgar suficientes para que possa tomar por si próprio as decisões de sua vida e, isso quer dizer: com autonomia. Como uma menoridade, da qual somos nós mesmos culpados descreve Kant aquela forma de

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menoridade que não advêm de incapacidade, mas, como diz Kant em seguida, do comodismo. Ora, enquanto o conceito jurídico de emancipação pressupõe apenas que alguém tenha a capacidade de incluir, em suas reflexões, as conseqüências que o rompimento das normas jurídicas acarretam para ele, o conceito fundamental de emancipação psicológica, que está relacionado à idéia do esclarecimento é mais abrangente, porque ele pressupõe que o indivíduo esteja em condições de, e preparado para, colocar em questão também a fundamentação intrínseca (innere Begründetheit) das normas dadas de antemão, quer se trate de normas jurídicas, quer morais, e isso quer dizer: não aceitá-los como válidos ou bons com base em autoridades aceitas de antemão. O que Kant aqui descreve como esclarecimento caracteriza precisamente o ocorrido na Grécia nos séculos VI e V a.C., quando o que então foi denominado filosofia se destacou em face da atitude mítico-religiosa. Em sua coletânea Conjectures and Refutations, Karl Popper ressaltou, no artigo sobre os pré-socráticos, ao meu ver com razão, como característica da [15] primeira escola de filosofia em Mileto, que ela justamente não era uma escola no sentido usual do termo até então, a saber: no sentido da transmissão de uma sabedoria, mas no sentido de um processo de crítica e exame. O que, em termos de conteúdo, nos foi deixado por esses primeiros filósofos são teses que dizem respeito sobretudo à estrutura da totalidade da natureza, e a isso provavelmente desde muito cedo se associavam também questões que dizem respeito ao Direito e à Moral. Esta é a questão, anteriormente mencionada, acerca do bem, e essa questão passou então a ser central, no século VI, com os chamados sofistas, logo com o esclarecimento grego propriamente dito e com Sócrates. A situação histórica parece ser, pois, a seguinte: parece ser uma

característica geral da sociedade humana antes da ocorrência do esclarecimento que sua coesão seja mantida por um saber-entre-aspas que está de algum modo referido ao todo do mundo e, ao mesmo tempo, ao bem. Esse saber-entre-aspas tem o caráter anteriormente mencionado da crença. Trata-se, pois, de um “tomar por verdadeiro” que na prática atua como um saber. Julgamos poder confiar nele sem questionamento, mas, distintamente daquilo que cotidianamente chamamos de saber, ele não se apóia em uma fundamentação, mas, sim, em uma autoridade. Não é um saber que tenha passado pela dúvida; ao contrário, a dúvida não é consentida. Ela é indevida, pecaminosa. O esclarecimento é então o rompimento com esta sujeição à autoridade; ele é, pois, a proclamação da autonomia intelectual dos homens, e isso significa concretamente o seguinte: já que aparentemente não podemos existir sem de algum modo saber como nos relacionar ao todo e ao bem, somos levados agora a reivindicar também para o saber acerca daquilo que até então se encontrava sob a guarda da crença exatamente os critérios de fundamentação que sempre valeram para o saber cotidiano. E agora se diz: ou podemos também alcançar um saber autônomo, fundamentado, a respeito desses estados de coisas fundamentais, ou compreenderemos que tal saber era um saber aparente, e aí teremos de ver como será possível seguir vivendo sem esse saber; um retorno consciente à menoridade não existe, há quando muito um retorno inconsciente. O que naquela época surgiu entre os gregos é o que chamamos retrospectivamente de ciências particulares e também o que chamamos de filosofia em sentido estrito. De ambos os lados vê-se radicalizado e universalizado o que já era também cotidianamente chamado de saber nas sociedades míticas. Um tal processo de radicalização e

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universalização apresenta as seguintes caraterísticas: (1) o saber passa a ser buscado de maneira sistemática e independentemente de contextos tecno-práticos particulares; (2) a passagem pela dúvida é explicitamente buscada, ou seja, o aspecto crítico já pertencente ao sentido cotidiano do saber é reconhecido agora como fundamental para a aquisição sistemática de saber; (3) essa idéia do saber vê-se agora também estendida ao [16] domínio da crença. O surgimento daquilo que chamamos ciência em geral, portanto, das assim chamadas ciências particulares e dessa ciência especial, a filosofia, aconteceu, pois, de forma mais ou menos simultânea.

O que no começo da história da filosofia não estava claro, mas hoje se tornou mais claro, é que a filosofia se encontra propriamente em um domínio intermediário peculiar. Quanto ao conteúdo, está mais voltada para o que pertencia ao domínio da crença; mas, quanto à sua forma está tão orientada para o saber natural como as ciências particulares. E a questão é, pois, saber se, acerca dos temas especificamente filosóficos, que se encontram além das ciências particulares, é de todo possível chegar a um saber. A dúvida se, afinal, pode haver um saber acerca do todo e do bem, e isso quer dizer, se de todo pode haver um saber especificamente filosófico, tem desde sempre acompanhado a filosofia. Poder-se-ia pensar que esta possibilidade, que talvez aqui não haja nada para se conhecer, fosse uma razão adicional para deixar aberta a fronteira com o mito. Mas creio que isso seria um equívoco. Acabo, precisamente, de dizer que não vejo bem como alguém possa, conscientemente, retornar à crença. Mas quer seja possível quer não, isso em todo caso não se segue do reconhecimento de que nada sabemos sobre tais coisas no sentido natural e, talvez, até mesmo nada possamos saber, ou ainda, de que talvez não haja nada para se saber. A conseqüência

correta seria então, como foi dito, ver como se pode viver com base nesse reconhecimento.

Ao tratar da delimitação com a religião, eu havia partido da questão se devemos estabelecer para a filosofia que esta deva ser um saber. As reflexões que percorri até agora mostram que, de todo o modo, devemos qualificar essa determinação da filosofia como saber, principalmente quando se é de opinião que a fronteira com a crença não deve ser deixada aberta. A delimitação com a crença mostrou que não é possível apreender o que é o característico da ciência dizendo apenas que se trata de um saber. O que temos em mente é bem mais a aspiração crítica ao saber, a pergunta pela fundamentação, ou como Sócrates classicamente formulou, a capacidade do lógon didónai - em latim traduzido por rationem reddere, prestar contas, ou seja, a capacidade de realmente fundamentar o que se supõe saber. É esse aspecto, o qual, é verdade, já se encontra no conceito natural de saber, que se desloca para o centro no interesse explícito pelo saber, saber que está dado com a formação de algo como uma ciência. Isso deve ser destacado porque acabamos de ver que também a crença pode ser descrita como um saber-entre-aspas; porque a crença, embora não possa prestar contas com autonomia daquilo que se crê, na prática atua como um saber. Desse modo, a diferença decisiva com relação à crença só se deixa manifestar expondo-se à dúvida, e a isso está agora também relacionado o fato de que a dúvida possa se revelar insuperável.

[17] Nesse caso, o saber a ser alcançado consistiria tão somente em saber que não sabemos A maioria de vocês saberá que esta era a concepção que Sócrates tinha da filosofia, tal como é descrita de maneira particularmente explícita na Apologia de Platão, mais especificamente, na defesa judicial de Sócrates. Aí,

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Sócrates apresenta a tarefa de sua vida interrogando seus concidadãos (que acreditavam todos eles saber algo sobre as coisas essenciais da vida) acerca dos fundamentos de seu pretenso saber, exigindo deles lógon didónai, ficando claro todas as vezes que eles apenas acreditavam saber, mas, como não podiam fundamentar o que diziam, na realidade não sabiam, enquanto ele, Sócrates, ao menos sabia que não sabia. O que é apresentado na Apologia de Platão é o embate entre a pretensão de saber filosófica autônoma e o saber tradicionalista baseado na crença, e o fato de que essa atividade de Sócrates tenha levado à sua condenação à morte é bastante coerente, pois um Estado fundado sobre a crença se vê solapado em suas bases normativas, quando o que se crê acerca do bom e do justo passa a poder ser colocado em dúvida e a exigir fundamentação. À concepção socrática está associada também a significação especial que Platão fornece à palavra filosofia em seus primeiros diálogos: filosofia significa “amor à sabedoria”, e sua tese é a de que nós, seres humanos, apenas com referência ao bem podemos aspirar ao saber, portanto, a sabedoria. Esta não era, por exemplo, a concepção de Hegel; já Husserl situou-se, em certo sentido, no meio. A idéia de uma ciência universal, a partir de uma fundamentação absoluta, era para ele uma mera idéia que não se podia realizar completamente, mas da qual poderíamos nos aproximar passo a passo. Creio que deve ter ficado plausível que devemos conceber nosso conceito de filosofia de maneira suficientemente abrangente, de forma a englobar todas essas diferentes concepções acerca da questão se, e até que ponto, um saber nesse domínio é possível.

Devo tirar agora uma conclusão acerca da questão sobre o sentido de deixar aberta a fronteira com a religião, a crença e o mito. Antes de mais nada, gostaria

de fazer uma importante observação metodológica que vale de modo muito geral para maneira de fixar os limites de um conceito. A questão quão ampla ou quão estreitamente empregamos uma palavra não é nunca uma questão acerca da verdade. Não se pode nunca dizer: é falso chamar isto ou aquilo de filosofia; pode-se apenas dizer: é falso chamar isto ou aquilo de filosofia, se o conceito de filosofia foi fixado como tal e tal. O que deve ser exigido é unicamente que se preste contas com exatidão do modo como se emprega uma palavra, logo, do modo como o conceito é fixado, e como se tem clareza acerca do modo pelo qual essa maneira de fixar conceitos se relaciona com outras maneiras possíveis. Cada qual é naturalmente livre para compreender a palavra filosofia com tal amplitude [18] que ela não permaneça limitada ao saber fundamentado, mas possa abarcar também a crença baseada na autoridade, e é até mesmo um fato histórico a existência, por exemplo, de filosofias cristãs. Quando essa extensão não é permitida, como eu faço, é porque considero esta fronteira especialmente importante. Creio que quem a suprime passa por cima de uma decisão sem tê-la propriamente tomado. Trata-se, é o que me parece, de duas atitudes fundamentalmente diferentes, e se alguém não reconhece aqui a fronteira, isso redunda em reconhecer critérios de fundamentação para uma parte de seus enunciados e para outra não. Talvez esta seja uma posição possível, mas então seria necessário ao menos ter clareza acerca do ponto em que a fronteira é transgredida, e por este motivo faz sentido traçá-la nitidamente. Parece-me ao menos estar claro que não há aqui, em todo caso, uma transição contínua. No contexto desta preleção tenho, contudo, ainda uma razão adicional para traçar nitidamente essa fronteira: nossa questão aqui diz respeito aos possíveis métodos da filosofia e, para a

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crença, é constitutivo que ela não siga método algum, exatamente porque ela não é um modo de conhecimento, mas simplesmente toma suas verdades de uma autoridade. Na medida em que, nesta preleção, quero indagar pelos possíveis métodos de filosofia, quero compreender essa palavra no seu sentido mais próximo, qual seja, como métodos de fundamentação. Já indiquei que o problema especial da filosofia, diferentemente das ciências particulares, consiste em que, logo à primeira vista, não está claro como se pode afinal fundamentar enunciados que, de alguma maneira, visam o todo e o bem; isso, de acordo com o que foi dito, quer dizer precisamente indagar se nesse domínio é possível um saber no sentido natural. A questão se a filosofia tem um método é, portanto, idêntica à questão: como se pode fundamentar enunciados filosóficos, e isso redunda na questão: como é, de todo, possível a filosofia? Esta questão perderia o seu sentido se a colocássemos para a crença, simplesmente porque a crença não ergue pretensão alguma de fundamentação. Se alguém adotar um conceito de filosofia que abarca também enunciados - ou seja, um “tomar algo por verdadeiro” - que não erguem qualquer pretensão de fundamentação, não precisaremos brigar por palavras: ele admitirá que a questão que aqui está sendo colocada, acerca das possibilidades de fundamentação de enunciados filosóficos, só é relevante para aquela parte de seu conceito amplo de filosofia que coincide com o meu conceito de filosofia em sentido estrito.

E o que dizer agora da fronteira com a arte? Há pessoas que pensam que não se deve traçar entre a filosofia e a arte nenhuma fronteira nítida. Eu considero isto falso. A fronteira com a arte é muito mais clara do que a com a crença. A dificuldade de traçar uma fronteira entre a filosofia e a crença consistia em que

ambas são modos de tomar por verdadeiro. Essa característica [19] se manifesta lingüisticamente na medida em que ambas se exprimem em enunciados. Aqui há portanto um comportamento genuinamente concorrencial, que será percebido de forma mais clara em relação aos enunciados morais. Um mesmo enunciado moral, por exemplo, “não se deve matar”, pode ocorrer em um texto religioso e também em um filosófico, e aqui então se defrontam, rudemente, a legitimação religiosa (Deus ordenou) e a fundamentação natural, autônoma. A arte, ao contrário, não consiste absolutamente em um “tomar algo por verdadeiro”, e isto se manifesta mais uma vez lingüisticamente na medida em que esta não faz enunciados. Para as artes não-lingüísticas, isto se compreende por si mesmo. Na arte que se expressa lingüisticamente, na literatura (Dichtung), é verdade que ocorrem enunciados, mas no gênero literário, ou em tudo aquilo que inequivocamente mereça esse título: o romance, a novela, a epopéia, os enunciados não são visados singelamente, mas com uma modificação na fantasia ou uma quasi modificação. O escritor não exprime com seus enunciados nenhuma opinião, ele não diz: é assim, mas descreve possibilidades. Seria, portanto, um equívoco acerca do que supomos ser um texto literário se envolvêssemos o autor em argumentações acerca da verdade de suas frases enunciativas. Um escritor apresenta algo que não carece nem é passível de fundamentação. Embora também ele tenha a.ver com questões acerca do bem viver, não faz sobre isso nenhum enunciado e, por conseguinte, não se coloca em uma relação de concorrência com um texto religioso ou filosófico. Enunciados morais podem ser fundamentados religiosamente por recurso a uma autoridade; e podemos também tentar fundamentá-los filosoficamente, portanto, naturalmente, mas não podem

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ser fundamentados artisticamente, e isso, simplesmente, por não estar implicado no sentido da linguagem artística. Porque aqui não se encontra nenhuma relação de concorrência, alguém pode tanto filosofar como escrever literatura, só não pode fazê-lo ao mesmo tempo. A atitude “autoritativa” e a argumentativa, a “crente” e a filosófica se excluem mutuamente porque elas, ao menos em parte, possuem o mesmo tema, fazem os mesmos enunciados, mas frente aos mesmos se comportam de forma distinta. O artista, ao contrário, não fundamenta nada, não porque ele, tal como o crente, tenha banido a dúvida, mas porque ele tem a ver com uma matéria que de modo algum incita a dúvida, no sentido teórico desse termo.

Talvez esse contraste seja problemático, mas, de todo o modo, parece-me valer para a delimitação com a obra literária (Dichtung) o mesmo que para a delimitação com a crença, a saber: que uma delimitação nítida faz sentido - ao menos no contexto da questão que está sendo discutido nesta aula porque tanto na arte como na crença, ainda que por razões distintas, não há uma questão de fundamentação.

[20] Aqui mais uma vez posso dizer: também aquele que tem em vista uma filosofia literária, não pode colocar para este tipo de filosofia a questão de como fundamentar seus proferimentos, pois, se erguesse enunciados com uma pretensão de fundamentação, então já se trataria de filosofia, no que chamei sentido estrito do termo, e não de uma obra literária. Insisto, portanto, em situar a filosofia, tal como parece ter sido quanto ao conteúdo definida por diferentes filósofos, no círculo do pensamento científico, com as pretensões de fundamentação características para o conceito natural de saber.

Ora, vimos anteriormente que existem filósofos

como Husserl ou Hegel que vão até mesmo além e propõem uma idéia de filosofia, segundo a qual ela não se distingue das ciências apenas por possuir um tema especial, mas também pelo fato de fundamentar seus enunciados ou de uma maneira superior ou mais radical, ou de uma outra maneira, absoluta, qualquer que seja o sentido deste termo. Tomemos isso tão somente como uma tese possível. Nosso problema deve ser como a filosofia pode fundamentar, em geral, as questões por ela levantadas. Será que de todo há - assim deve ser formulada a questão - métodos filosóficos específicos, portanto, modos de fundamentação específicos? Esta é a questão mais geral e abarca a questão acerca da existência de modos de fundamentação filosóficos que sejam também de algum modo ainda mais rigorosos ou superiores aos das demais ciências.

O que quero fazer neste curso é examinar as diferentes noções de métodos filosóficos particulares quanto a sua plausibilidade. A noção de que existe um modo de fundamentação filosófico particular implica que a filosofia paire, de alguma maneira, acima das ciências particulares. Quando consideramos como característica das ciências particulares, à exceção da matemática, serem todas elas ciências empíricas, e isso quer dizer, que elas fundamentam seus conhecimentos mediante a experiência, isso deveria, então, significar que de alguma maneira existe um domínio de conhecimentos aquém ou além da experiência, o que, naturalmente, nos soa extraordinariamente estranho. Há boas razões para suspeitar que esse domínio filosófico especial não seja senão um resíduo secularizado da origem religiosa da filosofia. Por um lado, deve tratar-se de um saber autonomamente fundamentado, mas, se nesse saber filosófico, por oposição à crença religiosa, o sentido natural de saber deve se fazer valer, devemos

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ser, então, levados a pensar que aquilo que designamos no sentido cotidiano como saber é sempre um saber empiricamente fundamentado. Por conseguinte, sempre houve na filosofia moderna tendências que contestavam a possibilidade de um saber filosófico específico. O primeiro e mais significativo filósofo a defender esse ponto de vista foi David Hume. Há, segundo Hume, apenas duas espécies de saber legítimo: primeiro, saber empírico e, segundo, o matemático. A princípio, a [21] mesma concepção foi defendida no nosso século pelo positivismo lógico, ensinado no assim chamado Círculo de Viena formado em torno de Schlick e Carnap, no início da década de trinta - os mais importantes manifestos dessa escola aparecem nos dois primeiros volumes da revista Erkenntnis. Por positivismo compreende-se em geral que apenas o chamado saber positivo, e isso deve significar: saber empírico, seria um verdadeiro saber. O novo positivismo denomina-se positivismo lógico porque concebe que a lógica, embora não sendo empírica, consista apenas de tautologias. A matemática seria, por sua vez, fundada completamente na Lógica. Deste modo resulta, como em Hume, que existem apenas duas espécies de conhecimento: o analítico da lógica e da matemática e o empírico das ciências da experiência.

Se quisermos nos orientar acerca da questão se existe a possibilidade de enunciados especificamente filosóficos e de uma espécie de fundamentação especificamente filosófica, deveremos em certo sentido nos situar entre essa posição cética e a tese segundo a qual existem fundamentos particularmente filosóficos, tal como a encontramos na Fenomenologia de Husserl e no Idealismo Alemão em Fichte e Hegel e, finalmente, também em Kant. A posição cética é à primeira vista muito sedutora, mas já em um segundo olhar surgem

dificuldades. Devemos também ser céticos em face dos céticos. Assim, se coloca imediatamente a questão acerca do sentido dos enunciados feitos pelos próprios filósofos céticos e por eles reclamados como verdadeiros. Como se fundamenta, por sua vez, o enunciado de que todos os enunciados dotados de sentido se fundam na experiência? Esse enunciado não pode ser, por sua vez, considerado como uma questão empírica. Além disto, surge imediatamente a questão: o que devemos então entender por experiência? Será que a questão: “o que devemos entender por empiria?” é ela própria uma questão empírica? Tanto Hume quanto o positivismo lógico certamente fizeram suposições sobre o que significa examinar empiricamente um enunciado. Como proposições empíricas mais elementares foram consideradas proposições acerca de nossos chamados dados sensíveis. Proposições, portanto, com conteúdo do tipo: “agora tenho uma representação de amarelo”. Frente a isso, defendeu-se nesse ínterim, de uma maneira bastante geral, a concepção segundo a qual as proposições empíricas elementares não são as proposições de cada indivíduo sobre os conteúdos de suas percepções, mas sim enunciados acerca de objetos intersubjetivamente perceptíveis em um sistema espaço-temporal objetivo. Nosso problema aqui não pode consistir em examinar qual destas concepções é a correta, mas o que importa é ver que já a tese de que haja apenas um saber lógico-matemático e um saber empírico é, em certo sentido, contraditória, posto ser ela mesma um enunciado que não é nem lógico nem empírico e que, além disso, enseja [22] outras questões, como a questão: “o que significa então experiência, e o que significa um saber fundamentado de acordo com a experiência?”. Deste modo, torna-se evidente que, juntamente com o estabelecimento das chamadas ciências particulares, um

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determinado todo é pressuposto - precisamente o todo da experiência científica - que dessa maneira, ainda não estava de modo algum presente, ao menos explicitamente, no todo dado desde sempre na vida mítica pré-científica. A filosofia não assume simplesmente, numa nova abordagem, a perspectiva para o todo que estava dado de antemão na vida mítica, e que, de acordo com a sua concepção, só poderia ser objeto de uma crença. Algumas coisas escapam; outras, através de um modo de acesso especificamente científico, fazem-se notar pela primeira vez e o que certamente permanece, ainda que eventualmente com um novo sentido, é a perspectiva para o sentido da vida, para o bem. Devemos entender com isso que o positivismo lógico não possa ser de modo algum sustentado e que exista, sim, um domínio do conhecimento próprio à filosofia? Isso teremos que examinar. Já agora gostaria de sugerir uma possibilidade que imediatamente nos ocorre: posto que nós, seres humanos, somos, nós mesmos, objeto da ciência empírica, ocorre-nos se também tais questões que acabo de mencionar - a questão acerca da essência da experiência científica e, isso quer dizer, da experiência humana em geral - não devam, por sua vez, cair sob a competência de determinadas ciências empíricas. A questão acerca da essência da experiência humana e tudo a ela relacionado poderia ser tema da psicologia e da biologia. A questão acerca do bem poderia ser tema das ciências empíricas da cultura. Há atualmente até mesmo muitas pessoas que consideram isso óbvio, de tal modo que, por fim, toda necessidade de um método de fundamentação propriamente filosófico seria suspensa. Eis aqui a razão por que temos que evitar partir de uma concepção de filosofia que de antemão trace uma nítida fronteira entre a filosofia e as ciências particulares. Com certeza, a

perspectiva indicada acima também encerra suas dificuldades. Não está claro como podemos de todo conservar as questões filosóficas enquanto tais se as abordamos empiricamente. Eu digo apenas: não está claro, não afirmo que não seja possível. Já a investigação empírica filosoficamente relevante carece ela mesma, manifestamente, de uma orientação filosófica, e isso parece mais uma vez pressupor que haja, sim, algo como uma reflexão especificamente filosófica que se distinga da investigação das ciências particulares.

Com isso nomeiam-se questões que se tornam especialmente candentes, caso se mostre que não existe um domínio propriamente filosófico. Nessa direção posso, nestas preleções, fornecer algumas perspectivas; primeiro, porque eu mesmo não possuo uma concepção clara; segundo, porque a própria tarefa destas preleções, entendidas como lições para [23] introdução e orientação, deve consistir em uma discussão crítica das idéias existentes acerca de possibilidades autônomas de uma fundamentação filosófica distinta das ciências particulares.

II

O que procurei fazer na seção anterior foi, sobretudo, distinguir a filosofia da religião por um lado e por outro da arte. A necessidade dessa distinção resultava de que as três, filosofia, religião e arte, de alguma forma se referem ao todo, seus meios, porém, são distintos. A filosofia pertence à ciência, ela é, em certo sentido, ela mesma ciência, e isso quer dizer, está referida à verdade, aliás à maneira de uma fundamentação. Seu meio é o questionamento e, por isso

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mesmo, a dúvida e, seu procedimento, uma vez que ele consiste em indagar pela razão de ser, é argumentativo e metódico. Seu meio é de tal forma a dúvida que permanece em aberto se nós na filosofia de todo saímos da dúvida, do saber de que não sabemos. O contraste entre a religião, por um lado, e a arte, por outro, e o pertencimento da filosofia à ciência tornam obrigatório a análise da distinção entre a filosofia e as ciências, e tal será o tema da aula de hoje. Assim como a distinção da filosofia relativamente à religião e à arte está ligada à proximidade da filosofia relativamente à ciência, assim também a necessidade de distinguir a filosofia das ciências está, inversamente, ligada ao aspecto que a filosofia, a religião e a arte têm algo em comum, a saber, o fato de que nelas de algum modo sempre se trata da vida em seu todo. Deixei esse conceito do todo na vez passada muito indeterminado, e ele só pode ser aclarado tematizando-se a distinção entre a filosofia e o que muito significativamente chamamos de ciências particulares, e, mais uma vez, devemos estar preparados para enfrentar o fato de que aqui existem diferentes concepções. É muito mais fácil dizer em que medida as ciências particulares têm a ver com domínios parciais do que determinar o que deve se estender além desses domínios particulares de modo a constituir precisamente o domínio da filosofia. Quando se pergunta a propósito de uma ciência particular: o que é a física, a biologia, a sociologia, a arte, temos a possibilidade de apontar para um domínio de objetos, a natureza inanimada, a vida, as relações sociais, os produtos da arte e sua história etc. Com isso, naturalmente, ainda não se disse muito, seria necessário agora dizer alguma coisa sobre a perspectiva na qual semelhante domínio de objetos é tematizado, bem como o método, mas de qualquer modo isso já é um começo. Na filosofia não podemos sequer começar com

semelhante designação de um domínio de objetos. Ou devemos dizer acerca da filosofia que ela visa a totalidade, que seu domínio de objetos é precisamente o mundo? Mas o que estaríamos querendo dizer com “o mundo”? Há um filósofo moderno que [24] começou exatamente com um enunciado sobre O Mundo, a saber, Wittgenstein em seu Tractatus, e a maioria dos filósofos pré-socráticos procederam da mesma forma, na medida em que seu tema era descrito como sendo o mundo - ho kosmos - ou, o que para eles significava o mesmo, a natureza - he physis. Nesse conceito de “o mundo” parece estar contida uma opção prévia por aquilo que também denominamos natureza, ele também parece não abranger sem mais o mundo dos seres humanos, e, assim se deu que o termo “o mundo”, embora pudesse aparecer como o mais abrangente, mais uma vez não foi suficientemente abrangente. Eis por que, em geral, a filosofia não tem se orientado por esse termo.

Partamos mais uma vez dos domínios particulares das ciências. Poder-se-ia então perguntar: será que a ciência particular tematiza também enquanto talo domínio no qual ela pesquisa? Será que a física indaga acerca da natureza como natureza, a história da arte acerca da arte como arte e a matemática acerca da essência dos objetos matemáticos? Sobre essa questão talvez se possa disputar, mas também há coisas como a filosofia da natureza, a filosofia da arte, a filosofia da matemática. Estamos, pois, aqui às voltas com um domínio limítrofe entre a ciência particular e filosofia. Mas, então, poderíamos dar também um passo adiante. O que não é mais tema de qualquer ciência determinada é aquilo que é comum a todos os domínios de objetos, e poder-se-ia dizer então que este seria o domínio temático primeiro da filosofia. Mas será que existe tal coisa? Sim, isso parece realmente existir. Tomemos, por exemplo, o

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próprio conceito de objeto. Há objetos da física, objetos da matemática, mas o que é então comum a eles, o que é um objeto enquanto objeto? Assim, chegamos à maneira pela qual Aristóteles determina aquilo que caracterizou como “filosofia primeira”. Ele não utiliza a palavra objeto, mas sim a palavra ente (Seiendes). Tudo o que é é, precisamente; ou seja, é ente (seiend). A primeira questão da filosofia é, portanto, segundo Aristóteles: o que é o ente enquanto ente, em outras palavras, o que devemos entender quando se diz que algo em geral é. E Aristóteles acrescenta: e também tudo o mais que pertence ao ente enquanto ente. Com esse “tudo o mais” Aristóteles tem em mente os demais conceitos que são igualmente tão universais, que não pertencem ao domínio de objetos de uma ciência especial. Conceitos como, por exemplo, identidade ou verdade ou a oposição entre possibilidade e realidade e necessidade, ou o conceito da relação ou da qualidade, ou a oposição entre o particular e o geral. É verdade, porém, que também esse equacionamento inicial parece conter uma opção preconcebida, talvez não pela natureza, mas de qualquer modo certamente pelo que podemos chamar de mundo da teoria, o mundo teórico. Parece, no entanto, faltar aqui a prática, que, como vimos, devia de antemão também estar aí [25] incluída. Como um indício disso podemos também considerar o fato de que se fala da oposição entre o ser e o dever ser. Mas, se realmente existe essa oposição, então também o conceito de ser e o de ente não seria, por sua vez, suficientemente abrangente. A opção prévia pelo teórico nessa concepção de filosofia está naturalmente ligada ao fato de que as ciências particulares são na sua totalidade disciplinas teóricas. Por isso, ao nos elevarmos abstrativamente a partir delas a uma disciplina formal geral, não chegamos a nenhum conceito de filosofia que possa fazer justiça à sua intenção original voltada para o

todo. Desde que tomou consciência disso, ou seja, desde a concepção abstratizante de Aristóteles, a filosofia tem se socorrido na medida do possível com o fato de ter passado a existir então as duas coisas: uma filosofia teórica que se ocupa com as determinações mais universais dos entes e uma filosofia prática que está referida ao dever.

Façamos agora mais uma amostragem com um filósofo clássico. Tomemos Kant. Também em Kant se faz uma distinção entre filosofia teórica e prática. Quero, porém, referir-me a algo diferente, ao modo como Kant dá o salto a partir das ciências particulares. Embora, para Kant, a filosofia teórica como um todo não se esgote por inteiro nessa caracterização, pode-se dizer que o que para Aristóteles era a questão do ente enquanto ente, portanto, a ontologia, se transforma na questão que se formula da seguinte maneira: quais são as condições de possibilidade da experiência? Neste ponto Kant ainda se orienta muito de perto por uma ciência teórica específica, a saber: pela ciência natural teórica, a física. A física é para ele a ciência empírica sistemática por excelência. E, agora, Kant leva a cabo em face das ciências empíricas um movimento de abstração semelhante ao empreendido por Aristóteles com sua questão pelo ente enquanto ente. Só que esse movimento de abstração experimenta agora em Kant uma virada mais subjetiva. Ele pergunta: o que significa dizer que algo pode ser um objeto da experiência, e tal é, então, precisamente a questão acerca da condição de possibilidade da experiência em geral. No contexto da questão assim definida reaparecem os mesmos conceitos formais que, para Aristóteles, pertenciam à ontologia: conceitos como possibilidade e realidade, particularidade e generalidade etc.

Ora, partindo dessa determinação kantiana da

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filosofia teórica ou, em todo o caso, de uma parte da filosofia teórica, pode-se empreender mais um passo, o qual se encontra em Husserl. Com efeito, pode-se dizer: a experiência científica (e podemos entender por isso todas as ciências empíricas e não apenas as ciências da natureza) está alojada, por sua vez, no todo de nossa experiência pré-científica; Husserl cunhou para esse todo de nossa experiência pré-científica o conceito de mundo da vida (Lebenswelt). Aqui reaparece, portanto, o conceito de mundo, mas este é agora determinado de tal forma [26] que por ele não se entende mais o todo da natureza, mas o todo é agora entendido a partir de nós. Ele compreende o todo da natureza, mas é o todo no qual vivemos, por isso, mundo da vida, ele é visto a partir da nossa perspectiva, e isso tem por conseqüência que esse conceito de mundo não deve mais ser primariamente entendido num sentido teórico - o mundo no qual vivemos não é apenas o mundo factual, mas também o possível e, sobretudo, não apenas o teoricamente existente (dos theoretisch Vorhondene), mas também o sentido (Sinn) a partir do qual nos entendemos - ou no caso limite negativo, que nos falta. O discípulo de Husserl, Heidegger, retomou esse conceito de mundo ao falar de um estar-no-mundo humano (menschlichen In-der-We/t-Sein), e expôs em um curto escrito, Vom Wesen des Grundes, publicado pouco tempo depois de Sein und Zeit, um esboço histórico do desenvolvimento do conceito de mundo, mostrando que já também para os primeiros filósofos pré-socráticos o conceito de cosmos era compreendido não apenas teórica, mas também praticamente, e naturalmente essa nuance prática também encontra expressão na idéia kantiana do conceito cósmico da filosofia, mencionado na semana passada.

O conceito de mundo da vida de Husserl fornece-

nos assim a possibilidade de compreender o todo ao qual a filosofia deve se referir de uma maneira que não é mais puramente teórica, mas que abarca a filosofia teórica e prática conjuntamente. Aqui, porém, tenho de afastar dois mal-entendidos. Em primeiro lugar, permanece de pé, naturalmente, a diferença entre ser e dever ser; não se trata de apagar quaisquer diferenças com fundamento na coisa, mas apenas de ter uma concepção global suficientemente abrangente, no interior da qual tais distinções possam então ser feitas. Em segundo lugar, a filosofia prática por sua vez também é, naturalmente, teórica. Ela é chamada prática apenas porque seu tema é a prática. Na determinação básica de que a filosofia é essencialmente científica, e isso quer dizer, teórica, na qual insisti na vez passada, nada pode alterar-se.

Mas, com essa explicação de que o tema da filosofia deve ser o mundo da vida, muito pouco ainda ficamos sabendo, Em primeiro lugar, isso de fato, quase não passa de uma mera palavra, e o que eu gostaria de mostrar no final desta aula é que, por detrás desse título, se escondem diferentes possibilidades de decidir se queremos compreender a filosofia antes em uma do que em outra direção, Primeiro, é compreensível que se pense em ligar essa nova determinação o mais próximo possível à determinação aristotélica da ontologia. Assim como na concepção ontológica se trata do aclaramento de conceitos formais igualmente fundamentais como o de objeto ou de ente, do mesmo modo na concepção atual também se trataria do aclaramento de semelhantes conceitos, só que hoje podemos dizer que estes são precisamente os conceitos [27] que já estão dados desde sempre junto com a nossa vida ou, de forma mais precisa, com o nosso compreender (Verstehen). Essa abordagem mais subjetiva permite-nos do mesmo modo retomar os conceitos fundamentais da ontologia, só que

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agora formulamos isso precisamente de modo a dizer: esses conceitos do ente, da identidade, da verdade etc. são conceitos que de algum modo já compreendemos desde sempre. Mas essa abordagem permite-nos agora, justamente, expandir ao mesmo tempo a nossa base de modo a acolher também os conceitos fundamentais da psicologia filosófica, da teoria da ação e da ética. Partindo, por exemplo, do conceito de verdade, podemos dizer agora: a verdade é algo a que estamos dirigidos em nossos juízos, assim como nossos enunciados também estão referidos à verdade. Coisas como julgar ou asserir uma proposição são conceitos fundamentais, dos quais podemos dizer, assim como o conceito de verdade, que de algum modo já os compreendemos desde sempre. Mas do mesmo modo como julgar, assim também querer e desejar; do mesmo modo que enunciar, assim também pedir e perguntar. Ou assim também conceitos como consciência, autoconsciência, razão. Ou ainda: Agir, intencional idade, responsabilidade. Há ainda os conceitos fundamentais de espaço e tempo, número e causalidade que já poderiam ter sido mencionado em conexão com a questão kantiana quanto à condição de possibilidade da experiência.

Ora, não é um mero acaso que tais conceitos remetam em determinados contextos uns aos outros, e podemos perguntar se todos eles não estão, de alguma forma ou de outra, direta ou indiretamente, relacionados entre si. Por certo, muitos desses conceitos não se deixam esclarecer sem uma referência a outros, e assim pode-se falar aqui em uma rede de conceitos.

Com isso, teríamos agora dado um passo a frente. Interrogados sobre o tema da filosofia, já poderíamos dizer agora algo mais além dessa vaga referência ao todo. Poderíamos dizer: o tema da filosofia não os conceitos que pertencem ao nosso mundo da vida, e se

quisermos evitar este termo técnico pouco familiar “mundo da vida”, podemos dizer: são os conceitos que de algum modo já compreendemos desde sempre,

Naturalmente, seria um mal-entendido pensar que esse conceito só passou a existir depois que Husserl cunhou o termo “mundo da vida”. Esse termo permite tão somente introduzir num contexto um pouco mais unitário algo que tem ocorrido desde sempre na filosofia. Se nos perguntarmos quais eram os temas dos quais se ocupavam Sócrates e Platão, encontraremos repetidamente a questão: “O que é tal e tal coisa”, onde o objeto dessas questões sobre o-que-é serão sempre conceitos a propósito dos quais Sócrates e Platão sempre acentuaram que já os compreendemos desde [28] sempre. E em grande medida, se bem que não, de certo, exclusivamente, isso vale para toda a história da filosofia. A filosofia consiste pois, em grande medida, no aclaramento de conceitos. Como vocês bem sabem, eu represento em nosso Instituto a filosofia analítica, e vocês podei-iam pensar que o fato de que eu dê tanto peso ao aclaramento de conceitos decorre precisamente daí. Em parte, isso pode ser correto. Mas a peculiaridade da filosofia analítica é o peso que a mesma dá à linguagem no aclaramento de um conceito recorremos a linguagem como o meio no qual os conceitos em geral nos são dados. Mas, se abstraímos dessa peculiaridade, pode-se aceitar para toda a tradição filosófica que nela se trata, em grande medida, do aclaramento de conceitos. Até mesmo, por exemplo, uma obra como o Lógico de Hegel tem a ver com o aclaramento de conceitos, naturalmente segundo uma concepção bem determinada, a saber: dialética, do que seja o método adequado de aclaramento conceitual, mas sempre, em todo o caso, aclaramento conceitual.

Se isso é correto, resulta daí um peculiar contraste

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entre a filosofia e as ciências. As ciências têm a ver com fatos e, eventualmente, com regularidades, também estas não passam de fatos, embora fatos gerais. Lingüisticamente falando, em cada ciência se trata de proferir e fundamentar enunciados, na maioria das vezes empíricos, mas até mesmo na matemática se trata de proposições, de enunciados. A filosofia, em contrapartida, parece que nada tem a ver com enunciados, mas apenas com o aclaramento de conceitos. Há aqui algumas exceções. O princípio da contradição, por exemplo, é um enunciado universal, e Aristóteles procurou fundamentá-lo de uma maneira determinada. Também na filosofia kantiana encontramos determinadas proposições que devem ser fundamentadas, tais são as chamadas proposições sintéticas a priori, como, por exemplo, a lei da causalidade. Isso mostra em que consistiriam ou de fato consistem as proposições que a filosofia teria ou, em parte, tem por tema. Seriam uma espécie de super-leis (Supergesetze), assim como, precisamente, a lei universal da causalidade (que toda ocorrência tem uma causa) seria uma super-lei em face das leis particulares da causalidade da ciência natural. Mas o que eu gostaria precisamente de dizer é que estas são exceções. Não é isto o que em geral acontece na filosofia. Todavia, poder-se-ia objetar: até mesmo quando se aclaram conceitos, isso se realiza numa proposição qualquer. Mas esta seria, então, antes algo como uma definição do que uma lei. Eu digo: “antes algo como uma definição”, pois não está tão claro assim como tais aclaramentos conceituais devam ser estruturalmente pensados, e eu não posso mais aqui entrar em detalhes, sobretudo porque isso difere de acordo com as concepções particulares de filosofia.

O que então, devemos, compreender afinal por conceitos que, como disse, já compreendemos desde

sempre? O que significa este “já desde [29] sempre” (immer schon)? Surge aqui um conceito que desde o início desempenhou um papel de grande importância na filosofia: o conceito do apriori. Em Kant encontramos muito explicitamente a distinção entre conceitos dados a priori e conceitos empíricos. Conceitos empíricos são conceitos que construímos com base em notas características fornecidas pela experiência. Se, agora, porém, no que diz respeito aos conceitos a serem tematizados pela filosofia, deve se tratar - para me ater à formulação de Kant - de conceitos pertencentes às condições de possibilidade da experiência, estes não podem ser, por sua vez, adquiridos empiricamente. Conceitos como verdade ou objeto ou identidade, nós não os adquirimos a partir da experiência. Mas, se assim é, então o aclaramento de tais conceitos levanta para nós dificuldades especiais, resultantes do fato de que ainda deveremos de alguma maneira aclara-los. Gostaria de recordar aqui as palavras de Santo Agostinho sobre o tempo, retomadas em nossos dias por Wittgenstein. Santo Agostinho disse: “O que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei. Mas, se me perguntam, não sei”. Isso parece paradoxal. Eu sei e, no entanto, não sei. Mas, nesta frase, Santo Agostinho usa a palavra “saber” em dois sentidos. O que ele quer dizer é o seguinte: já dispomos desde sempre de um conceito do tempo (e, neste sentido, sei o que é o tempo), mas quando eu devo explicar o conceito, não “consigo (e, neste sentido, não sei). Isso parece de fato ocorrer com todos esses conceitos dados a priori, e é justamente nisso que eles parecem se distinguir nitidamente dos conceitos empíricos. Tomemos, por exemplo, o conceito de plutônio. Eis um conceito empírico. Eu pessoalmente, por exemplo, sei apenas que existe um tal conceito, não sou um físico. Mas um físico poderia aclarar esse conceito. Se de todo

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dispomos de semelhante conceito empírico, também podemos aclará-lo. Aqui, pois, deveríamos dizer, modificando as palavras de Santo Agostinho: Não sei o que é o plutônio, mas se eu soubesse e alguém me perguntasse, então eu o saberia também no sentido estrito de que poderia explicá-lo.

Como tornar inteligível para nós essa distinção? Já disse que os conceitos empíricos são explicados através de notas características que podem ser exibidas na experiência. Quando, ao contrário, um conceito já pertence desde sempre à nossa compreensão, só podemos explicá-lo retornando de algum modo à nossa compreensão, refletindo sobre a nossa compreensão. O aclaramento desses conceitos, pelos quais a filosofia se interessa, só pode ter lugar em algo como a reflexão. Mas como deve ser entendida essa reflexão? Sobre esse ponto não quero me aprofundar agora, pois aqui se separam os caminhos dos diferentes métodos filosóficos. Gostaria tão somente de registrar os nomes de tais métodos: o método dialético, o método da intuição das essências, ou da intuição intelectual, o que quer dizer que a reflexão equivaleria aqui a algo [30] como uma visão interna, e finalmente o método de análise da linguagem: aqui a reflexão filosófica é compreendida como uma reflexão sobre a maneira pela qual explico o emprego da palavra correspondente a alguém que ainda não a conhece e que também não conhece nenhuma palavra de igual significado.

Prosseguir aqui significaria dar início à colocação de questões filosóficas concretas. Estaria, pois, ultrapassando o limite da mera questão: “O que é filosofia”, embora isso talvez não seja uma imagem totalmente apropriada, pois se poderia dizer, é verdade, que a questão: “O que é filosofia?” só pode ser respondida na medida em que filosofamos, por

conseguinte, exibindo concretamente um segmento da filosofia. Mas, no curto espaço de tempo de que disponho, só posso apresentar uma espécie de panorama.

Gostaria agora de chamar atenção para um outro problema que está associado a essa idéia de que a filosofia tem a ver com o aclaramento de conceitos dados a priori. Com efeito, coloca-se a questão: será que há mesmo alguma coisa como esse domínio no qual algo já está dado a priori? Como teríamos de pensar isto? A filosofia antiga falou aqui de ideae innatae, de representações inatas. Para evitar mal-entendidos previsíveis, Kant escreveu no início de sua introdução à Crítica da Razão Pura: “em sentido temporal, nenhum conhecimento em nós antecede a experiência”, mas isto não significa que todo conhecimento provenha da experiência. Se pensarmos, por exemplo, no conceito de número, as crianças só o aprendem quando já têm alguma idade. Mas será que elas o adquirem por abstração a partir da experiência? Este não parece ser o caso. Para Kant, a consciência enquanto tal era, em princípio, um domínio fundamentalmente pré-empírico. Hoje nos inclinamos a pensar esse apriori de um ponto de vista que é, em grande medida biológico e, em parte, também histórico, e assim pois, em última instância, sim, empírico. Por fim, nossa consciência é ela mesma o produto de desenvolvimentos empíricos. Contudo, do discernimento desse fato não se segue que já disponhamos também de métodos empíricos para esclarecer esses conceitos já fornecidos (vorgegeben) a priori e que nos estão dados apenas a partir da perspectiva interna.

Em todo o caso, é, o mais tardar, neste ponto que nos damos conta de que não é lícito pensar o domínio desses conceitos, que já estão dados a priori, como um

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cosmos que, descansando em si mesmo, se defronta com a nossa experiência e com as ciências empíricas que a investigam. Mas, então, todo o ponto de partida inicial de minha explicação da filosofia até aqui, segundo o qual a filosofia teria a ver com um domínio próprio que de algum modo está diante do das ciências particulares, é questionável. Pois parece que, com as diversas ciências empíricas em planos diversos, encontramos um equacionamento inicial para recuperar por assim dizer desde fora a perspectiva [31] interna da filosofia. Isto acontece de maneira diversa com a biologia, a psicologia, a lingüística e a história. Por um lado, o princípio dessa recuperação é um fato, por outro lado não temos nenhuma idéia de como ele poderia levar a romper a diferença entre a perspectiva reflexiva interna e a perspectiva empírica externa. Daí surge uma série de problemas, que são problemas entre determinados achados empíricos por um lado e achados dados reflexivamente por outro, e pode-se dizer agora que são exatamente tais problemas que, por sua vez, devem ser designados como filosóficos. Poder-se-ia talvez apresentar tais problemas como pontos de entroncamento críticos, com os quais alguns de nossos conceitos dados a priori estão particularmente onerados. São conceitos nos quais os diferentes modos de acesso estão de tal modo contíguos, que daí resultam contradições a desafiar de maneira especial a reflexão filosófica. Quero indicar alguns exemplos. Em primeiro lugar, o chamado problema da mente e do corpo. Um de nossos conceitos dados a priori é o de consciência. Mas não somente nenhum filósofo conseguiu dizer até agora o que propriamente se quer dizer com isso, como também se coloca a questão de como essa consciência, caso ela tenha sua sede, se podemos dizer assim, no cérebro, e caso o cérebro seja uma realidade biológica e,

em ultima instância, física, se relaciona com essa realidade. Um segundo exemplo: também os conceitos de liberdade da vontade e responsabilidade parecem estar entre os conceitos já dados a priori. Quando uma pessoa fez algo intencionalmente, imputamos a ela o resultado, nós a responsabilizamos moral e juridicamente pelo que fez. Dependeria dela, é o que dizemos, ter agido de outra maneira. Por outro lado, a psicologia tende a mostrar, a partir da perspectiva externa, que a pessoa, em razão dos pressupostos que ela traz consigo, e no ambiente em que ela cresceu, não poderia ter agido senão do modo como agiu. Portanto: não poder agir de outro modo, necessidade na perspectiva externa; poder agir de outro modo, possibilidade na perspectiva interna intersubjetiva. Um terceiro exemplo: nossas concepções morais e legais erguem a pretensão de serem em si fundamentáveis, mas a sociologia histórica parece abrir a perspectiva de que se trata tão somente de epifenômenos de interesses econômico-materiais.

Devemos dizer que, em todos esses problemas, estaria de um lado a filosofia e do outro uma ou mais ciências empíricas? Mas como designar então a perspectiva que considera ambos os lados? Se a filosofia ergue uma pretensão à totalidade, todos esses problemas são em seu todo, com os seus dois lados, problemas filosóficos; com efeito, o critério do qual eu havia partido, de que a filosofia, ao contrário das ciências particulares tem a ver de certo modo com o todo, também se aplica quando a filosofia tem de incluir uma ciência particular, mas ao mesmo tempo se estende além dela em seu [32] questionamento. Posto que o cientista particular também é uma pessoa e vê a perspectiva interna, está claro que podemos dizer aqui, também inversamente, que as ciências particulares adentram por

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sua vez contextos que são de relevância filosófica. Ora, dos exemplos que acabo de mencionar, alguns

têm com toda certeza uma eminente importância prática. A questão da responsabilidade, por exemplo, tem efeitos imediatos em nossa compreensão do direito penal, ela tem ao mesmo tempo efeitos sobre a maneira de configurar a própria vida, não importando se algo como a idéia da responsabilidade própria desempenhe ou não um papel dentro dela. E, do mesmo modo, a questão se, por exemplo, consideramos nossa idéia dos direitos humanos como uma idéia fundada em si mesma ou como um simples epifenômeno de determinadas relações socio-econômicas, tem um efeito prático eminente sobre a maneira pela qual nos relacionamos moral e politicamente uns com os outros. Aqui, certas questões que, à primeira vista, nos pareciam filosoficamente abstratas adquirem uma importância que remete ao conceito kantiano da filosofia numa intenção cosmopolita, e isto me conduz por fim à questão se não haveria uma outra possibilidade de compreender a referência à totalidade da filosofia, de tal sorte que essa referência se destacasse dos domínios das demais ciências não por uma maior abstração, mas, ao contrário, por uma maior concretude.

Para isso, podemos refletir mais uma vez acerca do conceito de mundo da vida. O mundo da vida é nosso mundo subjetivo. Poder-se-ia dizer também, ele é a situação de nosso agir. Uma situação do agir é determinada por tudo o que nela realmente existe, mas também por tudo o que nela é possível como nosso ato de reagir a mesma. Há situações de ação individuais e situações de ação comuns, as individuais convertem-se nas comuns. O conceito de mundo da vida é como uma abstração das situações de ação, no sentido em que podemos precisamente chamar de mundo da vida o que

em geral caracteriza uma situação de ação enquanto tal. Essa tendência de refletir acerca do universal, em contraposição às ciências particulares, me conduziu antes à concepção de filosofia como aclaramento de conceitos que já compreendemos desde sempre. Isso corresponde ao “conceito de filosofia da escola” em Kant. Esse conceito trouxe-nos agora, via os problemas especiais das contradições entre as perspectivas interna e externa, de volta ao mundo da vida, agora, porém, concretamente compreendido.

Será possível delinear aqui um outro conceito de filosofia, que venha a ser então, um pendant moderno para a filosofia kantiana numa intenção cosmopolita? Gostaria de utilizar aqui um termo que nos remete sobretudo a Karl Jaspers, o conceito da orientação no mundo (Weltorientierung). Poder- [33]se-ia dizer, sim, que deve haver um saber que nos dê uma orientação em nosso mundo da vida concreto, e isso quer dizer: na situação-de-ação concreta que temos em comum. Esse saber tampouco seria um saber especial, pelo contrário, ele se referiria ao todo, mas precisamente ao todo agora compreendido não abstrata, porém concretamente. O ponto de partida desse saber deveria ser a referência ao bem e ao mal, compreendidos agora, porém, não como conceitos universais, mas como o que para nós é hoje concretamente bom e mau. Partindo daí, indagar-se-ia pelos riscos e chances concretas. O ponto de partida seriam, pois, os valores, o que é bom e mau, e partindo daí, deveríamos refletir acerca da realidade concreta e nossas possibilidades de ação na mesma. Isso é mais ou menos o que deveríamos compreender por filosofia como orientação no mundo. Esse conceito de filosofia teria que ser visto, de maneira ainda essencialmente mais forte como um empreendimento interdisciplinar, do que aqueles entrecruzamentos de problemas, que

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mencionamos acima, levantados pelas contradições da perspectiva interna e externa. Pois como nos orientaremos no mundo atual sem considerar o que as ciências particulares podem nos dizer sobre isso? Por outro lado, uma ciência particular enquanto tal está sempre apontando para o conhecimento sistemático de um domínio de objetos. A orientação para o que é bom e mau, e para as possibilidades de ação, significa um outro direcionamento. Por essa razão e também porque esse direcionamento deve ser compreendido como um direcionamento para o todo de nossas vidas, compreendido de uma maneira determinada, o título mais adequado para esse empreendimento também parece ser o de filosofia.

Seria uma outra questão a de saber como a filosofia, no sentido do aclaramento de conceitos que já compreendemos desde sempre, deveria se inserir por sua vez na filosofia entendida neste segundo sentido, como orientação no mundo. Tudo o que disse aqui sobre esse conceito de filosofia como orientação no mundo sinto que são apenas indicações extremamente vagas e insuficientes. Não tenho acerca disso nenhum conceito claro e tampouco conheço filósofos que o tenham. Mas seria importante tomar consciência de que aqui estaria a verdadeira tarefa. Suponho que a maioria das pessoas que chegam à universidade para estudar filosofia buscam alguma coisa que tem a ver com essa idéia de filosofia. Eis aí uma situação tipicamente filosófica, que tenhamos de confessar que pouco sabemos sobre a imagem que a filosofia assumiria nesse sentido que é justamente o mais importante de todos. E o que torna tão insatisfatória entre nós a filosofia como atividade acadêmica consiste também no fato de que com isso pouco nos temos preocupado.