trocas gasosas: 1 grave princÍpios na...

18

Upload: buitruc

Post on 09-Feb-2019

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

TROCAS GASOSAS: PRINCÍPIOS NA CRIANÇA GRAVE1

0

0

Trocas Gasosas: Princípios na Criança Grave

1

INTRODUÇÃO

O processo de troca gasosa pode ser realizado em três partes:• ventilação dos pulmões, o qual determina os níveis de oxigênio (O2) e dióxido de

carbono (CO2) alveolar;• armazenamento e transporte desses gases no sangue;• processo de equilíbrio entre o gás alveolar e o sangue arterial.

VENTILAÇÃO DOS PULMÕES

Devido às diferentes pressões parciais entre o alvéolo e o sangue venoso que entra nos pulmões, existe um fluxo de O2 a partir dos sacos pulmonares para o sangue e inversamente, o fluxo de dióxido de carbono na direção oposta. Uma troca similar ocorre a nível tecidual, onde a PO2 é < 40 mmHg e a PCO2 é de 45 mmHg. O fluxo de gases para as células a partir do sangue oxigenado é demonstrado na Figura 1.1.

Existe um gradiente da pressão parcial de O2 entre o ar atmosférico, alvéolos e até chegar à mitocôndria. O O2 total disponível para os tecidos passa em uma evolução do tipo cascata, sendo conhecida como fluxo de O2, representando o fornecimento de O2 (DO2), conforme demonstrado na Figura 1.2.

A troca gasosa ocorre entre o alvéolo e os capilares pulmonares, devendo existir uma diferença nas pressões parciais. A Figura 1.3 evidencia o tamanho e a direção desses gra-dientes para o O2 e CO2.

O retorno venoso para os pulmões tem um PO2 menor do que o gás alveolar, sendo o gradiente de pressão para difusão do O2 de aproximadamente 60 mmHg (100 a 40 mmHg). Conforme o fluxo passa pelos alvéolos, capta O2 e se move para o átrio esquerdo com uma PO2 próxima a 100 mmHg nas pessoas saudáveis. O sangue venoso tem uma PCO2 mais elevada do que o gás alveolar (46 versus 40 mmHg), ocasionando um gradiente de pressão de CO2 e a difusão desse a partir do sangue para os alvéolos.

Ventilação Pulmonar Mecânica em Neonatologia e Pediatria

4

FIGURA 1.1. Níveis de O2 no sangue e nos tecidos.Adaptado de: Pneumac Ventilation, Smiths edical international, Luton, United (Kingdom).

PCO2 = 0,3 mmHgAlvéolo PO2 = 159 mmHg

Capilar pulmonar

RESPIRAÇÃO EXTERNA (A)

RESPIRAÇÃO INTERNA (B)

Células teciduais

Capilar sistêmico

Ar armosférico

Fluido intersticial

PCO2 = 40 mmHgPO2 = 105 mmHg

PCO2 = 40 mmHgPO2 = 100 mmHg

PCO2 = 45 mmHgPO2 = 40 mmHg

PCO2 = 40 mmHgPO2 = 105 mmHg

PCO2 = 45 mmHgPO2 = 40 mmHg PCO2 = 40 mmHg

PO2 = 100 mmHg

PCO2 = 45 mmHgPO2 = 40 mmHg

Para os pulmõesPara o coração esquerdo

Para as células teciduaisPara o coração direito

Capítulo 1 — Trocas Gasosas: Princípios na Criança Grave

5

FIGURA 1.2. Cascata do O2. Fatores que contribuem para os valores típicos que estão sendo demonstrados. 21 kpa ao nível do mar = 160 mmHg (1 atm = 100 kpa = 760 mmHg).Adaptado de: Bellamy MC et al, 2006.

FIGURA 1.3. A ventilação mantém as pressões dos gases alveolares do O2 e CO2 em aproximadamente 100 e 40 mmHg, respectivamente.Adaptado de: Cohen Z, 2017.

Cascata do O2

Tensão do gás inspirado: PtO2 (160 mmHg)• Pressão barométrica• Concentração de O2

Gás alveolar: PaO2 (103,36 mmHg)• Umidificação • Ventilação alveolar• Produção de CO2• Consumo de O2

Sangue arterial: PaO2 (80 a 100 mmHg)• Difusão • Alteração da relação V/Q• Shunt: Qs/Qt• Tensão de O2 venoso

Citoplasmático: PO2 (15,2 a 38 mmHg)• Perfusão tecidual• Concentração de hemoglobina

Mitocondrial: PO2 (1,52 a 15,2 mmHg)• Sistemas enzimáticos intactos

Venoso Capilar Arterial

O2

CO2

100 mmHg

40 mmHg

40 mmHg

46 mmHg

40 mmHg

100 mmHg

O2 CO2

Alvéolo

Ventilação Pulmonar Mecânica em Neonatologia e Pediatria

6

O CO2 se difunde aproximadamente 20 vezes mais rápido por meio da membrana alveolocapilar do que o O2, porque a sua solubilidade plasmática é muito maior.

Transporte de dióxido de carbono

Existem três vias, pelas quais o CO2 pode ser transportado no sangue:• dissolvido no plasma;• como íons bicarbonato;• como compostos carbamino.

A solubilidade do CO2 no sangue é muito maior do que o O2 (20 vezes maior) de ma-neira que diferentemente do O2, uma quantidade significante de CO2 é transportada em solução (aproximadamente 10%). Aproximadamente 60% do CO2 é transportado como íons bicarbonato. O bicarbonato produzido nos glóbulos vermelhos acaba sofrendo difusão pela troca com os íons cloro (processo conhecido como desvio de cloreto) (Figura 1.4).

FIGURA 1.4. A troca de O2 e CO2 que ocorre entre o sangue o gás alveolar. Íons bicarbonato entram nos glóbulos vermelhos na troca por íons cloreto (são transportados para fora). Forma-se ácido carbônico que é convertido em CO2 e água. O CO2 é então excretado a partir das células. O CO2 é armazenado na forma de composto carbamino e pode ser excretado passivamente a partir da célula sem envolvimento de uma enzima. 2,3 DPG = 2,3 difosfoglicerato.Adaptado de: Horton-Szar D, 2013.

O efeito Haldane minimiza as alterações no pH do sangue quando ocorre a troca ga-sosa. A diminuição do pH devido à oxigenação da hemoglobina é contrabalançada por um aumento resultante a partir da perda do CO2 para o ar alveolar. O inverso ocorre a nível tecidual. Esse efeito permite uma troca gasosa eficiente de CO2 nos tecidos e nos pulmões.

Dissolvido Anidrase carbônicaDissolvido

Compostos carbamino

H+ + Prt HPrt

HCO3- H2CO3 H2O

CO2 + H2O

HCO3- Cl-

HCO3-

H2O

H2CO3CO2CO2

O2 + Hb- Hb- + H+H+

HHb + CO2

HbO2

CO2 O2

O2

CO2

Plasma

Alvéolo

b2

a2

a1

b1

2,3 -DPG

Cl-

Hemácia

Capítulo 1 — Trocas Gasosas: Princípios na Criança Grave

7

O efeito Haldane é importante porque nos capilares periféricos a hemoglobina sem O2 ajuda a ligação do CO2 na sua molécula, e nos capilares pulmonares a hemoglobina ligada ao O2 diminui a ligação do CO2 na sua molécula.

A curva de dissociação do CO2 descreve a dependência do transporte de CO2 em re-lação à pressão parcial de CO2 no sangue. Comparativamente com a curva de dissociação do O2, ela:

• apresenta uma curva mais linear; • a curva é mais íngreme do que a curva de O2 (entre a pressão parcial venosa e

arterial dos gases respiratórios);• a curva de CO2 varia de acordo com a saturação de O2 da hemoglobina.

Com O2 a 100% (FiO2 = 1,0) apenas o mecanismo de shunt pulmonar contribui para a diferença pressão alveolar de O2(PAO2) – PaO2. Respirando ar ambiente ou em qualquer FiO2 < 100%, tanto o shunt e as áreas de relação V/Q baixas (adicionalmente a qualquer limitação de difusão) contribuem para a diferença PAO2 – PaO2. Esse efeito combinado é chamado mistura venosa ou, também, shunt fisiológico.

A respiração fornece O2 e remove o gás carbônico do corpo. A expansão do tórax facilita o movimento de gás para dentro e fora dos pulmões. Uma função adequada da res-piração inclui questões complexas, como o controle da respiração, atividade neuromuscular e interrelações com fatores endócrinos e metabólicos.

CAUSAS DE HIPOXEMIA

As principais causas de hipoxemia estão listadas na Tabela 1.1.

Tabela 1.1. Mecanismos fisiológicos da hipoxemia

Diminuição da pressão parcial alveolar de O2 (PaO2); diferença normal alveolar menos arterial• PiO2 diminuída:

– pressão atmosférica menor (Patm) com fração inspirada de O2 (FiO2) normal (por exemplo, altitude alta);– FiO2 mais baixa com Patm normal (por exemplo, iatrogênio);

• Hipoventilação alveolar:– PaO2 = PiO2 – PaCO2 (por exemplo, diminuição da condução respiratória);

R• PAO2 – PaO2 aumentada:

– alteração da difusão - sangue que chega ao alvéolo não atinge um equilíbrio com o gás alveolar raramente é uma causa de hipoxemia clínica significante;– alteração da relação ventilação/perfusão (V/Q) – especificamente, as áreas de baixa V/Q causam hipoxemia

Shunt: valores extremamente baixos de V/Q, o fluxo de sangue desoxigenado pelo shunt não tem contato com o gás alveolar

Ventilação Pulmonar Mecânica em Neonatologia e Pediatria

8

Existem quatro problemas primários que alteram a oxigenação do sangue arterial: hipoventilação, shunt intrapulmonar, alteração da difusão e alteração da relação V/Q.

Hipoventilação

A hipoventilação não é a causa mais frequente de hipoxemia na criança grave. Quando a ventilação minuto cai, a PaCO2 aumenta e, para que ocorra hipoxemia, a PaCO2 deve ser bem elevada, como observado na Figura 1.5.

FIGURA 1.5. Pulmão hipoventilado: interrelação do alvéolo com o capilar.Adaptado de: McLean BA, 2012.

A suplementação de O2 pode aumentar rapidamente a pressão inspirada de O2 (PiO2) e contrabalançar os efeitos da alta concentração de PCO2 no alvéolo. São causas comuns de hipoventilação: diminuição da condução respiratória, como por exemplo, com a administração de hipnóticos e opiáceos, fraqueza muscular respiratória, como ocorre na polineuromiopatia da criança gravemente enferma e na síndrome de Guillain-Barré e, aumento da resistência ou da carga ventilatória elástica, como ocorre na asma grave e na distensão abdominal.

Alteração da difusão

O O2 e CO2 devem se difundir por meio da membrana alveolocapilar, que é cons-tituída do epitélio alveolar, espaço intersticial e endotélio capilar. O espaço entre essas estruturas contém fluido livre de produtos, permitindo que o gás de mova rapidamente por meio dessa estrutura.

O2 O2 O2 O2

CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2

CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2

Capítulo 1 — Trocas Gasosas: Princípios na Criança Grave

9

Ocorre alteração da difusão quando existe um aumento anatômico da distância e/ou a presença de produtos (fluidos, proteínas, neutrófilos) altera a troca gasosa entre o alvéolo e o capilar. A PaCO2 geralmente não se altera com essa modificação fisiopatológica e a PO2 é, geralmente, corrigida pela administração de uma fração inspirada de O2 (FiO2) maior para o paciente (Figura 1.6).

FIGURA 1.6. Aumento da distância para a difusão dos gases: interrelação do alvéolo com o capilarAdaptado de: McLean BA, 2012.

O2 O2 O2 O2

CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2

Interposição de fluidos, proteína e outros produtos

Shunt intrapulmonar

Ocorre quando existe uma consolidação importante ou disfunção do alvéolo que limi-ta a troca gasosa. Esse processo ocorre habitualmente quando os alvéolos não são recrutados na inspiração devido à presença de atelectasia, perda significante da integridade da mem-brana e de surfactante ou quando o alvéolo está preenchido de fluido, devido às pressões pulmonares elevadas e edema extravascular (Figura 1.7).

Clinicamente, o shunt verdadeiro ocorre na presença de fluxo intracardíaco da direita para a esquerda e em várias condições patológicas pulmonares, como a atelectasia, lesão pulmonar aguda/síndrome do desconforto respiratório agudo.

Em circunstâncias que não existe ventilação para todos os alvéolos que recebem o fluxo sanguíneo, a PaO2 é igual a PvO2. Um achado importante que diferencia o shunt da relação V/Q baixa é que no shunt um aumento na PiO2 por meio da administração de O2, poderá não corrigir a hipoxemia. O recrutamento alveolar pela aplicação de pressão expiratória final positiva (PEEP) poderá ser uma intervenção adequada para a melhora na PaO2.

Ventilação Pulmonar Mecânica em Neonatologia e Pediatria

10

Estimativa do shunt total

Conceitualmente, no shunt total se assume que o sangue arterial é composto de uma mistura do sangue oriundo de apenas duas origens, sangue de um alvéolo “perfeito” e san-gue “shuntado” (nunca exposto ao O2 alveolar), sendo:

• CaO2 = conteúdo arterial de O2;• CvO2 = conteúdo venoso de O2;• CcO2 = conteúdo de O2 no final do sangue capilar oriundo de um alvéolo “perfeito”.

Desse modo, tem-se a seguinte expressão:

FIGURA 1.7. Pulmão hipoventilado (presença de fluído, derrecrutamento, atelectasia): interrelação do alvéolo com o capilar.Adaptado de: McLean BA, 2012.

O2 O2 O2 O2

CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2

CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2

CaO2 = x (CcO2) + y (CvO2)

Onde:x + y = 1A equação pode ser rearranjada:

x = CcO2 – CaO2

CcO2 – CvO2

Capítulo 1 — Trocas Gasosas: Princípios na Criança Grave

11

Alterações da relação V/Q

Espaço morto

A ventilação alveolar do espaço morto ocorre quando existe um problema primário re-lacionado à perfusão pulmonar. O alvéolo pode estar funcionante, mas a perfusão é propor-cionalmente menor do que a ventilação. Portanto, a relação V/Q pode chegar a um número infinito, caso haja uma perfusão zero. EsSa condição ocorre mais frequentemente quando existe um débito cardíaco (DC) baixo ou embolia pulmonar, como ilustrado na Figura 1.8.

FIGURA 1.8. Espaço morto: interrelação do alvéolo com o capilar.Adaptado de: McLean BA, 2012.

O2 O2 O2 O2

CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2

Como a perfusão para um alvéolo diminui, os gases dissolvidos no sangue venoso de-crescem para atingir o alvéolo, menos CO2 poderá ser eliminado, o PCO2 exalado poderá diminuir e para uma condição constante de produção de CO2 (VCO2) a PaCO2 poderá au-mentar. Esse fenômeno tem como base a medida da fração do espaço morto fisiológico, que é a fração não perfundida do espaço ventilatório sobre o volume corrente (VC).

VD/VT fisiológico = (PaCO2 – PetCO2)/PaCO2

Onde:PetCO2 é a pressão média exalada de CO2.Essa definição de espaço morto inclui espaço morto anatômico (vias aéreas proximais)

e o espaço morto alveolar. Embora o espaço morto anatômico seja a maior parte fixa (apro-ximadamente 25% da ventilação total), o cálculo do espaço morto alveolar é mais útil, pois ele é próximo de zero nos pulmões normais e aumenta com a inadequação da ventilação, devido a um processo patológico. O cálculo do espaço morto alveolar (VD/VT alv) pode ser realizado pela seguinte equação:

Ventilação Pulmonar Mecânica em Neonatologia e Pediatria

12

Onde:PetCO2 é igual a pressão expiratória de CO2 no final expiração.

Alterações da relação ventilação/perfusão

Assim como a ventilação regional, a gravidade resulta em uma distribuição não unifor-me do fluxo sanguíneo pulmonar em pulmões normais, podendo se dividir as características da perfusão pulmonar do paciente na posição de pé em três zonas de distribuição de fluxo (Figura 1.9).

VD/VT alv = (PaCO2 – PetCO2)/PaCO2

FIGURA 1.9. Diagrama demonstrando as zonas de West. Zona 1: Palv > Ppa > Pvp; zona 2: Pap > Palv > Pvp; zona 3: Pap > Pvp > Palv. Zona 1: No ápice do pulmão, a pressão alveolar no final da inspiração excede as pressões arteriolar pulmo-nar e a venular pulmonar e o fluxo sanguíneo transcapilar ocorre durante o final da expiração e final da inspiração. Zona 2: Na porção medial do pulmão, a pressão arteriolar pulmonar é maior do que a pressão alveolar no final da inspiração, a qual é menor do que a pressão venular pulmonar. Nesse caso, o fluxo sanguíneo transcapilar cessa próximo ao final da inspiração e retorna durante o início da expiração. Zona 3: Na base do pulmão, as pressões arteriolar pulmonar e venular pulmonar são maiores do que a pressão alveolar no final da inspiração e, desse modo, o fluxo de sangue.

ZONA 1 (ápice do pulmão)

ZONA 2 (porção medial do pulmão)

ZONA 3 (base do pulmão)

Fluxo de entrada

Fluxo de entrada

Fluxo de entrada Fluxo de saída do capilar

Fluxo de saída do capilar

Fluxo de saída do capilar

Alvéolo

Alvéolo

Alvéolo

Capítulo 1 — Trocas Gasosas: Princípios na Criança Grave

13

Pode-se adicionar uma quarta zona (zona 4), na qual o fluxo sanguíneo está progressi-vamente diminuído na base do pulmão, possivelmente devido ao aumento da pressão inters-ticial ao redor dos vasos extraalveolares.

A distância vertical entre o ápice e a base do pulmão está diminuída com a criança na posição supina, resultando em desaparecimento da zona I. A zona II também diminui conforme a pressão venosa pulmonar se torna maior no pulmão na posição supina. O efeito da gravidade em lactente e crianças pequenas, particularmente na posição supina, poderá ser pequeno, embora isso não tenha sido documentado.

Qualquer doença que interfira com a ventilação ou a perfusão, alterando o ba-lanço fisiológico, ocasiona uma alteração da relação V/Q. Ocorre mais comumen-te do que a alteração devida ao shunt e ao espaço morto.

Essa situação está presente de maneira ocasional em pulmões normais e são a causa mais comum de hipoxemia em pulmões doentes. Alguns fatores que alteram essa relação incluem: hipersedação, condições com alto ou baixo débito cardíaco, doença pulmonar obs-trutiva crônica (DPOC).

De acordo com uma relação V/Q abaixo do normal, a PAO2 pode ter um valor abaixo de 100 até 40 mmHg (enquanto que os valores da PACO2 variam de 40 a 46 mmHg). Essas variações possíveis colocadas estão ilustradas no gráfico PAO2 – PACO2 (Figura 1.10).

FIGURA 1.10. Espectro dos valores alveolares possíveis de PO2 e PCO2, de acordo com a variação da relação V/Q de zero até infinito. Os valores seguem uma linha a partir do ponto venoso misto (V).Adaptado de: Rahn e Fenn, 1964.

Pres

são

alve

olar

par

cial

de

CO2

Pressão alveolar parcial de O2

V/Q baixo

V/Q normal

V/Q alto

40 60 80 100 120 140

20

40

60

0

V

Ventilação Pulmonar Mecânica em Neonatologia e Pediatria

14

A hemoglobina fetal tem uma alta afinidade pelo O2 e limita o seu fornecimento a nível tecidual, como demonstrado na Figura 1.11.

FIGURA 1.11. Curva de dissociação da oxi-hemoglobina e cooperação intermolecular. A molécula de hemoglobina possui quatro cadeias, cada uma com um sítio de ligação para a molécula de O2. Quando uma molécula de O2 ocupa seu sítio de ligação em uma das cadeias, provoca uma alteração na forma cadeia aumentando a afinidade da cadeia vizinha ao O2, tornando mais fácil a ligação do O2 à cadeia. A afinidade pela hemoglobina pode estar aumentada (linha azul interrompi-da ou diminui vários fatores desviando da (linha rosa interrompida) por vários fatores. Existe um desvio da curva para a direita por um aumento no número de íons hidrogênio (H+), pelo número de moléculas de CO2, pela temperatura ou pela concentração de 2,3 – difosfoglicerato.

A maior afinidade do O2 à hemoglobina nos RNs se associa a alguns fatores relacio-nados à anestesia, diminuindo ou abolindo mecanismos compensatórios e diminuindo o volume expiratório final pulmonar ao nível de fechamento da via aérea com a possibilidade de colapso alveolar e atelectasia. Os lactentes têm uma possibilidade maior de obstrução da via aérea superior devido às diferenças anatômicas e fisiológicas, sendo que a anestesia dimi-nui preferencialmente as atividades física e tônica da faringe e outros músculos do pescoço, o qual normalmente resiste às forças de colapso da faringe, fazendo com que os lactentes menores do que 3 meses de idade tenham uma demanda maior de O2 do que os adultos. Portanto, os lactentes e crianças mais jovens têm uma possibilidade maior de hipoxemia no perioperatório (Tabela 1.2) e hipóxia tecidual.

• Concentração H+

• PCO2• Temperatura• 2,3 DPG

Pressão parcial de O2 (kPa)

Aumenta¡ Afinidade pelo O2 ¢ Diminui

Satu

raçã

o da

hem

oglo

bina

(%

)

100

75

50

25

0

0 5 10 15Sítio de ligação de O2

Hemoglobina

Moléculas de O2

Capítulo 1 — Trocas Gasosas: Princípios na Criança Grave

15

Tabela 1.2. Predisposição dos lactentes a hipoxemia no perioperatório

Controle respiratório imaturo e respiração irregular, a hipóxia não estimula, mas deprime a ventilação

Lactentes tem a capacidade residual funcional menor e uma alta demanda de O2

Anestesia diminui a CRF, ocorre fechamento da via aérea e atelectasia

Predisposição dos lactentes a obstrução da via aérea superior

Alta afinidade da Hb fetal ao O2

CRF: capacidade residual funcional; Hb: hemoglobina.

Uma condição que pode alterar essa relação ocorre quando da presença de acúmulo (aprisionamento) de gás no alvéolo (Figura 1.12).

FIGURA 1.12. Aprisionamento de gás: interrelação do alvéolo com o capilar.Adaptado de: McLean BA, 2012.

O2 O2

CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2

CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2

CO2 CO2 CO2 CO2 CO2 CO2

Mensuração da oxigenação

O gradiente alveoloarterial (A-a) é um índice clinicamente útil e a PAO2 teórica pode ser calculada conforme a fórmula:

PAO2 = FiO2 (pressão barométrica – pressão do vapor de H2O) – (PaCO2/QR)

Onde:Pressão do vapor de H2O = 47mmHg e QR = quociente respiratório = 0,8Subtrai-se a PaO2 mensurada para se obter o valor do gradiente A-a. Esse gradiente

calculado representa a mistura de sangue circulante que passa pelo alvéolo sem uma venti-lação ideal e o sangue que passa pelo alvéolo que apresenta uma mistura baseada na fisio-

Ventilação Pulmonar Mecânica em Neonatologia e Pediatria

16

logia de processos fisiológicos dependentes e independentes. Em pessoas saudáveis, a PaO2 é próxima da PAO2, de tal maneira que a diferença entre as duas é pequena (< 10 mmHg no adulto jovem).

A relação PaO2/FiO2 pode ser usada de maneira mais simples para avaliar a gra-vidade do defeito da troca gasosa. Valores < 300 (com uma FiO2 > 0,4) indicam uma alteração da troca gasosa e valores abaixo de 200 (com uma FiO2 > 0,4) indicam uma alteração grave na troca gasosa.

É importante considerar a relação inversa da diferença A-a de O2 e da relação PaO2/FiO2 quando se discute o nível da falha da troca gasosa (Figura 1.13).

FIGURA 1.13. Interrelações inversas das medidas de troca gasosa.Adaptado de: McLean BA, 2012.

Curvas não pulmonares

Conceitualmente, a hipóxia pode ocorrer nas situações aonde os tecidos estão com um fornecimento otimizado de O2 e a mitocôndria não pode utilizá-lo, por exemplo, pacientes com intoxicação por cianeto.

Os diferentes tecidos toleram graus distintos de hipoxemia e o conceito de sobrevida e tempo de revitalização têm sido utilizados (cérebro 1 versus 4 minutos, coração 5 versus 20 minutos e fígado/rins 10 versus 40 minutos). As causas não pulmonares de hipóxia estão descritas na Tabela 1.3.

Troca gasosa alveolar

A -a DO2 PaO2/FiO2

Capítulo 1 — Trocas Gasosas: Princípios na Criança Grave

17

Tabela 1.3. Causas não pulmonares de hipóxia

Hipóxia estagnantePerfusão tecidual ruim com diminuição do fluxo sanguíneo ou aumento da distância para a difusão, como ocorre no edema tecidual

Hipóxia histotóxicaIntoxicação celular como no desacoplamento da fosfoliração oxidativa na mitocôndria (por exemplo, intoxicação por cianeto)

Hipóxia anêmica Diminuição da concentração de hemoglobina ou diminuição da capacidade de transporte de O2 pela hemoglobina

CONCLUSÃO

Objetivamos descrever como o O2 e o CO2 se movem entre a atmosfera e os tecidos, identificando as pressões alveolares de O2 e CO2. Delineamos fórmulas para cálculo da pres-são parcial alveolar de O2 em uma determinada pressão barométrica e fração inspirada de O2, adicionalmente, a fórmula para cálculo de shunt.

Descrevemos os efeitos que as variações regionais na ventilação e perfusão têm nas trocas gasosas, além de identificar fatores que ajudam e diminuem a ligação do O2 com a hemoglobina. Descrevemos como o transporte de O2 e do CO2 estão inter-relacionados.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA• Bellamy MC, Turner S. Gas exchange. In: Foundations of Anesthesia (Second Edition) Basic

Sciences for Clinical Practice, Mosby, 2006. p.1-22.• Bruells CS, Rossaint R. Physiology of gas Exchange during anaesthesia. Eur J Anaesth.

2011;28(8):570-9.• Bhutani VK. Pulmonary gas exchange. In: Donn SM, Sinha SK (eds). Manual of Neonatal

Respiratory Care. Third edition. New York. Springer, 2012. p.39-47.• Campbell I, Waterhouse J. Measurement of respiratory function: gas exchange. Anaesth Intens

Care Med. 2005;6-366-9.• Cohen Z. Gas exchange and transport. In: Kacmarek RM, Stoller JK, Heuer AJ, et al. Egan’s

fundamentals of respiratory care. 11th edition. Canadá. Elsevier, 2017. p.247-68.• Corwin EJ. The respiratory system. Handbook of Pathophysiology, 3rd Ed. Lippincott Williams

& Wilkins, 2007, p.465-75.• Glenny RW. Determinants of regional ventilation and blood flow in the lung. Intensive Care

Med. 2009;35(11):1833-42.• Goldsworthy S, Graham L. Compact clinical guide to mechanical ventilation : foundations of prac-

tice for critical care nurses. Library of Congress Cataloging-in-Publication Data. New York, 2014.• Guazzi M. Alveolar gas diffusion abnormalities in heart failure. J Card Fail. 2008;14(8):695-702.• Guyton AC, Hall JE. Physical principles of gas exchange: diffusion of oxygen and carbon diox-

ide through the respiratory membrane. In: Text book of medical physiology. Chapter 38.11th ed. Philadelphia: Elsevier Inc, 2006:491-501

• Rahn and Fenn, Chap. 31 in Renn and Rahn, eds., Handbook of physiology, Respiration. Bethesda, MD: American Physiological Society, 1964.

• Hardy KA. The ventilation/perfusion relationship and gas exchange. ACCP/AAP Pediatric Pulmonary Medicine Board Review. 1st Edition.

Ventilação Pulmonar Mecânica em Neonatologia e Pediatria

18

• Horton-Szar D. Crash Course. 4th edition. Toronto. Mosby Elsevier, 2013. p.47-59.• Hughes JMB. Review series. Lung function made easey: assessing gas exchange. Chron Respir

Dis. 2007;4(4):205-14.• Lucangelo U, Blanch L. Dead space. Intensive Care Med. 2004;30(4):576-9.• McLean BA. Acute respiratory failure and intensive measures. Crit Care Nurs Clin. 2012;24:361-75.• Qureshi SM. Measurement of respiratory function: an update on gas exchange. Anaesth Intens

Care Med. 2011;12(11):490-5.• Qureshi SM. Measurement of respiratory function: gas exchange. Anaesth Intens Care Med.

2008;487-91.• Rodriguez-Roisin R, Echazarreta A, Gomez FP, et al. In: Stockley RA, Rennard SI, Rabe K, et

al. (eds). Chronic Obstructive Pulmonary Disease: A Practical Guide to Management. Oxford. Blackwell Publishing, 2007. p.102-14.

• Wagner PD. Gas exchange principles in the critically ill. In: Webb A, Angus DC, Finfer S et al. Oxford Textbook of Critical Care. Second edition. Oxford University Press, 2016.p.340-4.

• Wagner PD. Gas exchance assessment in the critically ill. In: Webb A, Angus DC, Finfer S et al. Oxford Textbook of Critical Care. Second edition. Oxford University Press, 2016. p.345-9.

• Wayman M, Errington D. Respiration: gas transfer. Anaesth Intensive Care Med. 2011;12(11):481-4.• West JB. Respiratory Physiology: The Essentials. 7th ed. Philadelphia, PA: Lippicontt Williams

& Wilkins; 2005.